Baixar este arquivo PDF - Faculdade Novo Milênio

Transcrição

Baixar este arquivo PDF - Faculdade Novo Milênio
Revista FOCO. ISSN: 1981-223X
MATERNIDADE CONTEMPORÂNEA: um estudo exploratório sobre vulnerabilidade
e consumo
Priscila De Nadai1
Natani Carolina Silveira2
Resumo
Na pesquisa sobre o comportamento do consumidor, estudos sobre vulnerabilidade do
consumidor apresentam uma proposta de unificação para diversos estudos que focam as
consequências sociais do consumo. Ao se analisar a maternidade contemporânea, percebe-se
aumento na oferta de produtos e serviços. No Brasil, um dos serviços que chama a atenção é a
assistência médica privada para gestantes, pelo elevado número de cesarianas realizadas. O
objetivo do artigo consiste em explorar potenciais situações de vulnerabilidade que gestantes
possam encontrar, especialmente vindas do serviço de assistência médica, com foco no parto.
A metodologia focou na análise de conteúdo em blogs direcionados à gestantes e mães em
busca de depoimentos. Os principais resultados mostram que as gestantes brasileiras, no papel
de consumidoras de serviços médicos para o parto, se encontram em papel de vulnerabilidade
devido a um conjunto de fatores.
Palavras-chave: vulnerabilidade do consumidor. Gestante. maternidade contemporânea.
Abstract
In consumer behavior research, studies about consumer vulnerability present a framework that
aims to unify various studies that focus on the social consequences of consumption. Analysis
of contemporary motherhood shows an increase in the offer of products and services. In
Brazil, one of the services that stands out is private medical service for pregnant, due to its
high occurrence of cesarean delivery. The objective of this paper is to explore potential
situations of vulnerability that pregnant women may find, especially coming from the medical
service, with a focus on delivery. The methodology focused on the analysis of content in
blogs directed to pregnant women and mothers in search of evidence. The main results show
that Brazilian pregnant women, in the role of medical services consumers for delivery, are in
a vulnerable role due to a number of factors.
Key words: Consumer Vulnerability. Pregnant Women. Contemporary Motherhood.
1
Doutora em Administração pela FEA/USP. Professora da Faculdade Novo Milênio e pesquisadora no Núcleo
de Estudos e Pesquisas em Administração/NEPA.
2
Doutora em Administração pela FEA/USP. Professora da Universidade Nove de Julho/Uninove e da Faculdade
SENAC - SP.
293 INTRODUÇÃO
O dinamismo das relações de consumo no Brasil e no mundo moldam mercados e
provocam transformações em todos os aspectos ligados aos processos de decisão de compra.
Dificilmente, algum setor da economia se mantém alheio a essas transformações.
No caso da maternidade, uma infinidade de produtos e serviços aparece a cada dia,
desde o enxoval do bebê comprado em Miami (atividade que constitui quase uma praxe entre
os consumidores da classe média brasileira) até o promissor segmento de festas infantis, um
dos serviços que chama a atenção de consumidores mais críticos e até dos responsáveis pela
saúde pública no Brasil é a assistência médica privada para gestantes. O que vem chamando a
atenção nesses serviços é a quantidade de procedimentos cirúrgicos (cesarianas) para proceder
ao nascimento do bebê.
Para a Organização Mundial de Saúde (OMS), entre 15% e 20% do total de partos
realizados em um país deveriam ser por meio da cesariana. Ao se ultrapassar esses limites,
aumenta-se muito os riscos para a saúde da mãe e do bebê. No Brasil, a taxa de partos
realizados por meio de cesarianas corresponde à 46% e mantêm-se em ascensão desde a
década de 1970, sendo o país o segundo no ranking da OMS, atrás apenas do Chipre.
Entretanto, ao se olhar de forma isolada as assistências pública e privada, dados do Ministério
da Saúde revelam que em 2012, quase 80% das cesarianas realizadas no país ocorreram na
rede privada de saúde.
Diante da 'marketização' da maternidade contemporânea que é fortemente permeada
pelo consumo, abre-se espaço para investigar a situação das gestantes atualmente em meio a
um emaranhado de práticas, hábitos e noções do que condiz a uma 'boa mãe'.
O objetivo deste artigo consiste em explorar potenciais situações de vulnerabilidade
que gestantes possam encontrar, ao lidarem com experiências de consumo desconhecidas e
que se tornaram amplamente 'marketizadas'. Especificamente, foram exploradas as situações
de consumo de serviços médicos para gestantes, com especial atenção para o parto. Para isso,
foram analisados blogs de gestantes e mães em busca de diários, depoimentos, desabafos e
demais comentários que representem a gestação e a maternidade, atualmente.
Nas linhas que se seguem, o leitor encontrará a seguinte divisão do artigo: além de
breve introdução, a revisão teórica aborda as temáticas de vulnerabilidade do consumidor e a
construção do consumo na maternidade contemporânea, a descrição da proposta metodológica
adotada com a apresentação dos principais resultados e por fim as considerações finais.
V.9, nº1. Jan./jul. 2016.
294 Revista FOCO. ISSN: 1981-223X
1
REFERENCIAL TEÓRICO
1.1 Vulnerabilidade do Consumidor
No campo de pesquisa sobre o comportamento do consumidor, os estudos sobre
vulnerabilidade do consumidor apresentam uma proposta de unificação para diversos estudos
que focam as consequências sociais do consumo, em diferentes populações e contextos de
mercado. Entretanto, o conceito de vulnerabilidade do consumidor, quando associado aos
processos de consumo, tem sido erroneamente compreendido como situações de
desvantagens,
discriminação
ou
proteção
ao
consumidor
(BAKER,
GENTRY
e
RITTENBURG, 2005).
A clareza em relação ao que realmente constitui o conceito de vulnerabilidade do
consumidor e como ele se desenvolve nas relações de mercado ainda encontra-se em fase de
discussão. Algumas conceituações de vulnerabilidade do consumidor focam em determinadas
características ou limitações do indivíduo, outras em condições do ambiente externo e/ou a
interação entre fatores intrínsecos e extrínsecos do indivíduo (BAKER; GENTRY;
RITTENBURG, 2005; MOSCHIS, 1992).
Para se entender o conceito de vulnerabilidade do consumidor é importante entender o
que constitui o próprio conceito de vulnerabilidade. No dicionário Houaiss da língua
portuguesa, Houaiss e Villar (2001, p. 2884) apontam a vulnerabilidade como a "qualidade ou
estado do que é ou se encontra vulnerável"; sendo vulnerável algo ou alguém "que pode ser
fisicamente ferido; sujeito a ser atacado, derrotado, prejudicado ou ofendido [...]" (HOUAISS;
VILLAR, 2001, p. 2884). Nesse sentido, o termo vulnerabilidade foca em quem vivência a
vulnerabilidade.
Ao tomar esses conceitos como base para se entender a vulnerabilidade do
consumidor, focar somente em quem vivencia a vulnerabilidade traz falta de clareza para
compreensão do conceito de vulnerabilidade do consumidor de maneira ampla; uma vez que
devido às dificuldades enfrentadas nas interações de consumo, algumas pessoas são
denominadas como consumidores vulneráveis permanentemente. Essas pessoas normalmente
pertencem a determinados grupos sociais marginalizados que, em muitas ocasiões, não veem
a si próprios como vulneráveis, em contextos de consumo. Entre esses grupos encontram-se
adolescentes (CHIA, 2010; PECHMANN et al., 2005), imigrantes (PEÑALOZA, 1995),
analfabetos, obesos, grávidas (DAVIES et al., 2010), idosos (MOSCHIS, 1992), pobres,
deficientes físicos, entre outros. (BAKER, 2009; GARRET; TOUMANOFF, 2010;
MANSFIELD; PINTO, 2008).
295 Há ainda autores que ao focarem em quem é vulnerável, denominam como
consumidores vulneráveis aqueles desprovidos de condições sociais e econômicas suficientes
para interagir de forma positiva no mercado, como por exemplo pessoas que vivem em locais
de extrema pobreza e desigualdades sociais, grupos segregados e estigmatizados ou que
passaram por algum tipo de desastre natural (BAKER, 2009; HILL, 2001; PEÑALOZA,
1995).
Para Baker, Gentry e Rittenburg (2005) a vulnerabilidade do consumidor não deve ser
abordada com foco em quem é vulnerável e sim em quais contextos a vulnerabilidade
ocorre, uma vez que qualquer pessoa pode experienciar a vulnerabilidade nas relações de
consumo, pois todos os indivíduos se deparam com situações de dificuldade ao longo da vida.
A partir de ampla revisão da literatura sobre marketing e comportamento do
consumidor que utilizaram-se de múltiplos métodos de pesquisa Baker, Gentry e Rittenburg
(2005) desenvolveram um modelo para compreensão da vulnerabilidade do consumidor
pautado no fator situacional, mas numa perspectiva multidimensional. Para isso, identificaram
três eixos recorrentes na literatura sobre vulnerabilidade: 1) fatores que aumentam a
possibilidade de ocorrência da vulnerabilidade, 2) experiências de vulnerabilidade do
consumidor e 3) respostas do consumidor à vulnerabilidade. Estes três eixos formam a base
do modelo conceitual que define a vulnerabilidade do consumidor.
Entre os fatores que contribuem para a ocorrência da vulnerabilidade estão os fatores
internos e os externos. Os fatores internos são constituídos pelas características e pelos
estados do indivíduo. As características individuais são formadas por aspectos biofísicos
(adicção, idade cronológica, deficiências físicas e/ou cognitivas, gênero, saúde, raça/etnia) e
aspectos psicossociais (aqueles que abrangem as razões para comportamentos como
autoconceito, percepção social da aparência, status socioeconômico, habilidades percebidas,
recursos do consumidor, aculturação, medo de vitimização, percepção de saúde e isolamento
social). Essas características podem afetar o entendimento e as percepções do consumidor nas
interações de consumo, influenciando assim sua habilidade e discernimento em relação às
mensagens de marketing e decisões de compra. Os estados do indivíduo como o luto, a
motivação, as transições, o humor, entre outros geram instabilidade e estresse e também
contribuem para a forma como o contexto de consumo é vivenciado. Entre os fatores externos
encontram-se aqueles além do controle do indivíduo e que afetam o cotidiano dos
consumidores como discriminação, repressão e estigmatização, distribuição de recursos,
elementos físicos, logísticos entre outros (BAKER, GENTRY e RITTENBURG, 2005).
As experiências de vulnerabilidade do consumidor dizem respeito a inabilidade do
V.9, nº1. Jan./jul. 2016.
296 Revista FOCO. ISSN: 1981-223X
consumidor em controlar sua atenção, comportamento e emoção e, portanto, suas ações estão
além do seu controle. Esse possível descontrole ocorre quando o indivíduo possui ou vivencia
os fatores internos e externos que contribuem para a ocorrência da vulnerabilidade. Essas
experiências podem ser vivenciadas em distintos contextos de consumo por meio de
diferentes estímulos de marketing como propaganda, canais de distribuição, Internet, preços,
produtos, ambiente de serviços etc. (BAKER, GENTRY e RITTENBURG, 2005).
Quando a vulnerabilidade é vivenciada no contexto de consumo, dois tipos de resposta
do consumidor podem ser esperadas: 1) o consumidor responde à essa experiência
desenvolvendo comportamentos e emoções positivas para o enfrentamento e adaptação à
situação; ou experimenta um sentimento de desamparo e desumanização, e relaciona a
experiência ao processo de aprendizagem; 2) o mercado, por meio de reações de contraconsumo e o governo, por meio de políticas públicas, desenvolvem respostas para facilitar ou
impedir o controle individual em contextos de consumo futuros (BAKER, GENTRY e
RITTENBURG, 2005). O modelo conceitual que define vulnerabilidade do consumidor é
apresentado na figura 1.
Com base nesses três pilares, Baker, Gentry e Rittenburg (2005, p. 134) definem a
vulnerabilidade do consumidor como:
Um estado de impotência que surge de um desequilíbrio nas interações de
compra ou do consumo de produtos e mensagens de marketing. Isso ocorre
quando o controle não está nas mãos do indivíduo, criando uma dependência
de fatores externos (por exemplo dos profissionais de marketing) para criar
equidade no mercado. A vulnerabilidade real surge da interação entre
estados individuais, características individuais e condições externas num
contexto onde os objetivos de consumo possam ser prejudicados e a
experiência afeta as percepções pessoais e sociais do indivíduo.
Ao focar nas situações de potencial vulnerabilidade do consumidor os autores se
omitem em apontar quem é vulnerável. Ao contrário, afirmam que qualquer um tem o
potencial para estar vulnerável, de acordo com uma gama de estados, características e
situações que se entrelaçam e nas quais, fundamentalmente, o consumidor não possui o
controle. Em tais situações de vulnerabilidade existem barreiras que impedem o controle por
parte dos consumidores ou previnem que eles tenham liberdade para escolher.
Diante do exposto, uma das potenciais situações de vulnerabilidade que o consumidor
vivencia é aquela experimentada por mulheres grávidas, ao se depararem com situações de
consumo nunca antes ocorridas. Somente pelo fato da mulher estar grávida não significa que
297 ela vivencia situações de vulnerabilidade a todo momento, mas ela reúne características,
estados e condições que a habilitam a experienciar potenciais situações de vulnerabilidade,
pois existem fatores internos e/ou externos que estão além do seu controle. Uma destas
potenciais situações diz respeito ao consumo de serviços de saúde, como por exemplo as
decisões que envolvem o parto do bebê.
Figura 1 - Modelo Conceitual para Definir Vulnerabilidade do Consumidor.
Fonte: Adaptado de Baker, Gentry e Rittenburg (2005, p.135).
Para elaborar esta discussão é importante levantar algumas questões acerca do
consumo e da maternidade contemporânea, que será explorado na próxima seção.
1.2 Consumo e Maternidade Contemporânea
A maternidade representa um período de transição na vida da mulher e está
diretamente atrelada à alterações fisiológicas, psicológicas e comportamentais. Neste período,
além das diversas mudanças inerentes ao processo gestacional, a mulher, principalmente as
primigestas, se deparam com um fenômeno relativamente novo e desconhecido, fazendo com
que esta experiência seja permeada por sentimentos de dúvidas e insegurança.
O período da gravidez e a chegada do bebê no contexto familiar promovem diversas
modificações nos hábitos e nas decisões de consumo. As mudanças no ciclo de vida da
família fazem com que produtos e serviços sejam escolhidos e consumidos para que a mãe e a
família sintam-se seguros em relação aos cuidados e à saúde do novo membro. (CARRIGAN;
V.9, nº1. Jan./jul. 2016.
298 Revista FOCO. ISSN: 1981-223X
SZMIGIN, 2006, TAYLOR; LAYNE; WOZNIAK, 2004).
Carrigan e Szmigin (2006) afirmam que centenas de produtos, serviços e estímulos de
marketing são oferecidos com o intuito de satisfazer necessidades da gestante e do bebê e ao
mesmo tempo ensinar hábitos e comportamentos de consumo de uma 'boa mãe'. Serviços
especializados, utilizados principalmente no período da gestação e do parto, brinquedos,
acessórios, roupas, suplementos e livros são comercializados especificamente para o amplo
mercado da maternidade (DOUGLAS; MICHAELS, 2004).
Além disso, o consumo de produtos e serviços com o foco na maternidade é
influenciado por vários grupos além das preferências e emoções da gestante. A validação de
amigos, familiares e especialistas sobre o tema exerce grande influência nos processos
decisórios de compra (CARRIGAN; SZMIGIN, 2006). Isso demonstra que há uma
idealização da maternidade, refletida e construída pela aquisição de bens e serviços e que o
relacionamento entre a mãe e o bebê é iniciado e fortalecido na contemporaneidade por meio
do consumo. A relação entre o novo membro, a mudança no ciclo de vida da família e o
consumo se faz cada vez mais aparente por meio da proliferação de estímulos de comunicação
de marketing (CLARKE, 2000).
Neste contexto, as ações de marketing podem intensificar a experiência da
vulnerabilidade da gestante, uma vez que constroem crenças sobre a idealização da
maternidade, principalmente quando relacionadas ao consumo de serviços específicos e que
demandam extrema confiança, como é o caso dos serviços médicos (DAVIES et al., 2010).
Portanto, diante destes fatos e das construções sociais criadas sobre a maternidade,
muitas mulheres tornam-se consumidoras vulneráveis em determinados contextos e interações
de consumo (DAVIES et al, 2010), uma vez que as crenças da maternidade e do ato de ser
mãe estão permeadas e são idealizadas a partir da lógica do consumo. Frequentemente,
mulheres grávidas deparam-se com comunicações de marketing que podem influenciar seu
comportamento, direcionando suas crenças sobre o que significa ser uma 'boa mãe'. O excesso
de informações e a pressão imposta pela conduta de como ser uma 'boa mãe' causam estresse
e angústia (ROTHMAN, 2000).
Ao analisar os esforços de marketing voltados para este segmento de mercado, o fator
primordial é entender se essas consumidoras possuem discernimento suficiente para
compreender este processo como algo construído e com o qual elas estão habituadas a lidar ou
se de alguma forma, em decorrência do seu estado emocional transitório, elas sentem certa
imposição ou até mesmo vulnerabilidade em relação às exigências do mercado (DAVIES et
al., 2010)?
299 Ao se pensar em uma gestante a partir do modelo de vulnerabilidade do consumidor
de Baker, Gentry e Rittenburg (2005), percebe-se que ela pode reunir características
psicossociais como a aculturação e a percepção sobre sua saúde, além de se encontrar em um
estado individual de transição, que em conjunto, afetam a maneira pela qual esta grávida
vivencia, responde e interpreta os discursos sobre maternidade oriundos dos estímulos de
marketing.
Dentre os fatores externos, a distribuição de recursos, especificamente, os da área de
saúde são fundamentais para mulheres grávidas e podem proporcionar situações de
vulnerabilidade ao se depararem com falta ou dificuldade de acesso a rede de pública de
saúde (ALWITT, 1996).
Baker, Gentry e Rittenburg (2005) destacam que o ponto fundamental da
vulnerabilidade do consumidor é a falta de controle para lidar com as interações de consumo
presentes no contexto de compras, quer seja por características e estados do consumidor ou
por fatores externos.
Diante do exposto, quando uma gestante consome serviços médicos, é alta a chance
dela se encontrar em uma situação de vulnerabilidade, mesmo que não se perceba como
vulnerável. Neste artigo, o interesse de pesquisa recai sobre a potencial situação de
vulnerabilidade da gestante quando da escolha do tipo de parto, uma vez que esta mulher se
encontre em condições propicias de saúde para escolher.
No Brasil, a taxa de partos realizados por meio de cesarianas corresponde à 46% e
mantêm-se em ascensão desde a década de 1970. A Organização Mundial de Saúde (OMS)
recomenda que entre 15% e 20% dos partos sejam realizados por meio de cesariana e ao se
ultrapassar estes limites, há maior incidência de riscos de mortalidade materna e/ou
complicações e morte neonatal (VILLAR et al. 2006, HOPKINS, 2000).
Porém, percebe-se uma grande variação nessas taxas quando são analisadas as
assistências pública e privada de forma isolada. Dados do Ministério da Saúde para o ano de
2012, revelam que os números de cesarianas realizadas no setor privado de saúde chegou a
cerca de 80% e nas instituições públicas esse número foi em torno de 30% (BITTENCOURT;
VIEIRA; ALMEIDA, 2013, SUS, 2013).
Estudos comprovam que a indicação do parto por cesariana deve ser feita em casos
específicos, nos quais não é possível a realização do parto normal ou mediante casos de
urgência, que podem colocar em risco a vida da mãe e do bebê. A cesariana aumenta os riscos
tanto para a gestante quanto para o feto no momento do parto, pois trata-se de um
procedimento cirúrgico muito complexo. Além disso, o processo de recuperação após a
V.9, nº1. Jan./jul. 2016.
300 Revista FOCO. ISSN: 1981-223X
cesariana é muito mais difícil e exige maiores cuidados com a puérpera. (HOPKINS, 2000;
KASAI et al., 2010).
Apesar de todos os riscos conhecidos que envolvem a realização da cesariana, cada
vez mais esse tipo de parto eletivo está sendo indicado para gestantes saudáveis e sem riscos
na gravidez, especialmente na rede privada de atendimento médico (VILLAR et al. 2006,
SUS, 2013). Percebe-se que a indicação da cesariana em detrimento do parto normal ocorre
principalmente por fatores relacionados ao medo das dores do parto e pela comodidade tanto
para o médico quanto para a gestante; uma vez que o parto pode ser programado e agendado
previamente e também por causa dos lucros advindos deste procedimento. Existe ainda uma
relação da escolha do parto cesariana com fatores não médicos, como educação e classe social
das mulheres e a região do Brasil onde elas vivem (BITTENCOURT; VIEIRA; ALMEIDA,
2013, SUS, 2013, HOPKINS, 2000).
Diante do exposto, apesar das informações e das orientações disponíveis sobre saúde
da mulher e do bebê, em muitos casos, existem barreiras que impedem que a mulher tenha
condições de opinar sobre a via de parto desejada, sendo comum que esta decisão seja
conduzida exclusivamente pela opinião e orientação do médico, não cabendo à ela a decisão
final.
2
PROPOSTA METODOLÓGICA
O objetivo deste artigo consiste em explorar potenciais situações de vulnerabilidade
que gestantes possam encontrar ao consumirem serviços médicos durante o pré-natal, com
foco na situação de consumo do serviço de parto.
De acordo com as particularidades da temática em questão e da escassez de produção
científica nacional sobre as situações de vulnerabilidade encontradas por gestantes, nas
relações de consumo no Brasil; optou-se por realizar uma pesquisa exploratória e qualitativa
que reflita um esboço inicial acerca do assunto.
A exploração está geralmente associada a estágios preliminares de pesquisa e examina
tópicos com pouco conhecimento acumulado com a possibilidade de gerar ideias para estudos
posteriores. Para isto, se utiliza de métodos de pesquisa amplos e versáteis como
levantamentos em fontes secundárias, levantamentos de experiência, estudos de casos
selecionados e observação informal (SELLTIZ et al, 1971).
Neste artigo, optou-se por utilizar o método de levantamento em fontes secundárias,
especificamente, em blogs sobre gestação e maternidade em busca de relatos de experiências
301 de consumo de serviços médicos, com especial atenção para o parto. A escolha do
levantamento em blogs faz parte da crescente pesquisa social online, vista por vários
pesquisadores como forma alternativa que aumenta o campo de investigação da pesquisa
social (LEE; FIELDING; BLANK, 2008, O'CONNOR; MADGE, 2001, MANN; STEWART,
2000). Neste contexto, o blog surge como rica fonte de dados ainda pouco explorada
(WAKEFORD.; COHEN, 2008, HOOKWAY, 2008).
O termo blog é derivado de weblog e surgiu com a chamada Web 2.0 na qual os sites
de Internet possuem o objetivo de facilitar alguns aspectos da interação na rede como o
compartilhamento
de
informações
com
interatividade,
a
interoperabilidade
e
o
desenvolvimento com foco no usuário gerando plataformas amigáveis (SAFKO; BRAKE,
2010). Alguns exemplos são as redes sociais online, comunidades online, wikis, sites de
compartilhamento de vídeo, além dos blogs.
A facilidade de uso e a interatividade proporcionada pela Web 2.0 aumentou
significativamente o conteúdo gerado por usuários (user-generated content), sendo os blogs
uma das mais antigas e populares aplicações da Web 2.0. (SAFKO; BRAKE, 2010). O blog
consiste em um diário online mantido pelo criador que publica ou posta textos, fotos e/ou
vídeos com certa regularidade temporal, sobre questões cotidianas como viagens, moda,
tecnologia, saúde etc. As publicações de textos são listadas em ordem cronológica (LEE;
FIELDING; BLANK, 2008). Os usuários são denominados bloggers e, por meio dos blogs,
podem ampliar sua rede de atuação e influência online ao citarem outros blogs, aderirem a
fóruns, comunidades, redes sociais online etc. Uma das principais formas de interação nos
blogs se dá por meio dos comentários que os leitores podem fazer a respeito dos textos
publicados (CHAU; XU, 2012).
Diante de tais características, os blogs constituem uma boa oportunidade para a
pesquisa social online, uma vez que proporcionam dados públicos, de baixo custo, coletáveis
de maneira imediata, na forma escrita e de indivíduos espalhados geograficamente. Além
disso, os blogs não estão contaminados por interesses particulares do pesquisador que
poderiam enviesar a pesquisa (HOOKWAY, 2008).
Os procedimentos para definição e coleta de dados foram desenvolvidos com base nas
abordagens para pesquisa social em blogs propostas por Chau e Xu (2012), Wakeford e
Cohen (2008) e Hookway (2008). A codificação e a análise foram desenvolvidas a partir de
Gibbs (2009) e Bardin (2001). Abaixo seguem as quatro etapas propostas para este artigo:
V.9, nº1. Jan./jul. 2016.
302 Revista FOCO. ISSN: 1981-223X
2.1 Identificação de Blogs sobre um Tópico Específico
Em novembro de 2013, foram feitas buscas no buscador Google para as seguintes
palavras-chave: blogs de gestantes e blogs sobre maternidade. O Google foi escolhido por ser
o principal buscador brasileiro, de acordo com o ranking Alexa, em novembro de 2013. Alexa
consiste em um empresa do grupo Amazon.com que oferece serviços de mensuração do
tráfego mundial da Internet, entre outros serviços (HOOKWAY, 2008).
2.2 Seleção de Blogs que Atendam a Critérios de Elegibilidade para a Pesquisa
Para cada palavra-chave foi obtido mais que 1,5 milhão de resultados. Manualmente,
foram analisados os 100 primeiros resultados para cada palavra-chave. Foram excluídos os
resultados que não atendiam aos seguintes critérios: ser um blog, em português e criado e
administrado por um usuário comum e não por uma empresa ou profissional da área da saúde.
Foram selecionados 48 blogs, sendo que 5 deles apareceram nos resultados de ambas as
palavras-chave o que fez o total de blogs cair para 43.
2.3 Busca por Informações de Interesse nos Blogs Selecionados
Cada um dos 43 blogs selecionados foi avaliado em relação a dois aspectos: deveria
ter pelo menos uma publicação nos últimos seis meses e deveria ter um mecanismo de busca
no próprio blog. Continuaram os 43 blogs elegíveis. Por fim, em cada um dos 43 blogs
restantes foi feita uma busca com a palavra 'parto', por meio do mecanismos de busca dos
blogs. Em cada blog analisou-se de uma a duas publicações.
2.4 Análise dos Blogs
De acordo com o objetivo a ser atingido, optou-se pela codificação baseada em
conceitos (GIBBS, 2009), que foram originados a partir da teoria do modelo de
vulnerabilidade do consumidor, proposto por Baker, Gentry e Rittenburg (2005). A
interpretação dos dados se baseou na análise de conteúdo, com o procedimento de análise
temática (BARDIN, 2001) que consistiu na divisão do texto (trechos ou parágrafos) em temas
principais que foram resumidos e classificados de acordo com os seguintes códigos: fatores
internos, fatores externos e experiências de vulnerabilidade do consumidor em contextos de
consumo. Os procedimentos de síntese e classificação foram executados em distintas fontes
de dados (43 blogs) e por todos os pesquisadores envolvidos numa busca pela triangulação,
por meio de diferentes fontes e pesquisadores, a fim de garantir a validade dos resultados
obtidos (DENZIN; LINCOLN, 2005). Pretende-se ainda proceder a validação comunicativa
303 dos participantes, que consiste em um critério de qualidade da pesquisa que garante validade e
confiabilidade, ao se confrontar os resultados obtidos com a concordância das fontes (PAIVA
JR; LEÃO; MELLO, 2011).
3
PRINCIPAIS RESULTADOS
Dos 43 blogs pesquisados, todos abordam assuntos como gestação, maternidade, dicas
sobre alimentação, produtos, serviços, experiências com produtos e serviços, listas de enxoval
e da maternidade, viagens, festas variadas (chá de bebê, batizado, aniversários). Tratam
também de assuntos como maternidade x trabalho, equilíbrio das funções de mãe, mulher e
profissional, sexualidade feminina após a chegada do bebê, etc.
Na maioria dos blogs, as blogueiras iniciaram suas atividades a partir de 2010 e em 9
casos a partir de 2006. Com relação a indicação de outros blogs, somente 10 deles não fazem
recomendações e também somente 10 deles não comercializam espaços para propaganda.
Somente 4 blogs não possuem redes sociais online atreladas à eles.
Em relação a distribuição geográfica, a maioria dos blogs pesquisados pertence a
blogueiras localizadas nas regiões sudeste e sul, do país. Muitas trabalham como profissionais
liberais e outras não trabalham. Em muitos casos, o blog, juntamente com as redes sociais
online atreladas ao blog e uma loja online tornaram-se fonte de trabalho e renda para estas
mães.
A seguir, os principais resultados são apresentados conforme o aspecto teórico ou
código correspondente.
3.1 Fatores Internos
O conceito de vulnerabilidade do consumidor adotado nesta pesquisa é
multidimensional, sendo os fatores internos (características individuais - biofísicas e
psicossociais, e os estados individuais), juntamente com os fatores externos, parte deste
modelo.
Ao se tratar dos fatores internos que contribuem para a experiência de vulnerabilidade
das gestantes, percebe-se que as características psicossociais estão fortemente presentes nos
relatos dos blogs. Um exemplo se dá por meio da aculturação, onde discursos sobre o parto
normal e o parto cesariana são construídos, inclusive e principalmente, por parte dos médicos
e profissionais da saúde.
V.9, nº1. Jan./jul. 2016.
304 Revista FOCO. ISSN: 1981-223X
Quando eu engravidei do Vitor, eu nunca cogitei fazer parto normal. Parto normal
dói, você sofre! Pra quê se eu posso fazer uma cesárea? E pensando nisso eu me
fechei para receber informação. Não fui pesquisar nem sobre a cesárea, nem sobre o
parto normal. Simplesmente decidi sem ter informação (Blog no. 19).
Eu não fazia nem ideia da importância de se entrar em trabalho de parto para o bebê,
mesmo se for para fazer uma cesárea. Da importância do bebê 'avisar' que está
pronto. E nunca ninguém me falou sobre isso! Nem o médico! E hoje eu acho que
ele nunca falou porque estava pensando nele, na agenda dele e não em mim (Blog
no. 19).
Com um sistema obstétrico falho, fui por inúmeros médicos tentada a crer que não
seria capaz de parir naturalmente minha bebê. Que não tinha saúde para tal, que não
teria dilatação ou força de vontade e que eles precisariam me abrir de uma maneira
ou de outra para arrancar minha bebê de mim. Nada disso me fez desistir! Eu sabia
em meu coração, desde o segundo tracinho rosa naquele teste de farmácia, que eu
tentaria até o fim apresentar o mundo para a minha filha na forma que eu julgasse a
mais bela possível (Blog no. 8).
Parir é feio, envolve vagina, mulher de quatro, rebolando, gemendo, gritando.
Dizem até que é nojento e aconselham: 'Você quer parto normal? Não deixa seu
marido acompanhar não, viu, porque depois ele não vai querer sexo com você' (Blog
no. 8).
Um relato interessante foi o descrito no blog no. 3. A blogueira teve seu primeiro filho
por meio do parto cesariana e acreditava não ter uma opinião formada sobre o assunto.
Todo mundo me pergunta do parto...chegam ate me perguntar se eu já agendei a
cesárea (oi? cuma?)..ainda tenho uns 20 dias de Manuela na barriga e sinceramente,
não tenho pensado muito sobre isso, só um pouco (Blog no. 3).
Naaaoooo, não tenho vocação para ter neném em casa, com muito incenso, musica
ambiente e, dentro de uma banheira ou piscina inflável... não, meu lance eh
totalmente o oposto, parto num hospital equipado, com toda equipe mais que
preparada, anos de experiência e de preferencia com muita anestesia (Blog no. 3).
Após o parto da primeira filha, a blogueira mudou de ideia e, caso haja uma segunda
gestação, gostaria de optar pelo parto normal. Aqui, é possível perceber que o tema parto
deixou de ser 'pouco pensado' pela blogueira, que passou inclusive a um estado de
questionamento em relação ao senso comum sobre a prática do parto cesariana versus o parto
normal. Ela demonstra também preocupação com os seus recursos enquanto consumidora
desejosa de ter a opção do parto normal.
Essa semana mesmo comentei com meu marido que vou fazer uma poupança pro
segundo parto (se houver), pq terei q de alguma forma arranjar um medico adepto a
PN pós cesárea e duvido q tenha algum de convênio q faca, o meu já disse q não faz,
então terei q ir pra algum particular...alias vou ter q ler muito sobre o assunto, pq
sempre q comento isso com alguém, tds me respondem, ah, mas como vc teve
cesárea, agora o próximo tem q ser cesárea tb. Será? (Blog no. 3).
305 Uma variedade de estados individuais da gestante também contribui para a forma que
o contexto de consumo é vivenciado. O fato da mulher estar grávida constitui-se num estado
transitório para a mulher em múltiplas perspectivas (mudanças de humor, no ciclo de vida da
família, no fato de deixar de ser somente filha e se tornar mãe também), o que contribui ainda
mais para um possível estado de vulnerabilidade e, por conseguinte, dificuldade e/ou falta de
autonomia nas decisões de consumo.
Como não vamos pirar, me diga? Com tanta gente querendo saber de quanto tempo
você está, se você é casada ou se já se formou, se é menino ou menina, qual o nome,
se você está se alimentando direitinho, se está escutando músicas para o bebê, se
está lendo Lamarque, se sabe como socorrer seu filho se ele se afogar, se vai fazer
parto normal ou cesárea? Não que as pessoas perguntem por mal, mas é que são
muitos questionamentos em um momento em que você mesma mal sabe o que esta
fazendo (Blog no. 2).
Usar o fato do meu marido não estar na mesma cidade que eu para insistir na
cesariana me afetou ainda mais psicologicamente (Blog no. 19).
3.2 Fatores Externos
Da mesma forma que os fatores internos, os fatores externos também contribuem para que a
mulher vivencie experiências de vulnerabilidade, na medida em que é incapaz ou impossibilitada de
assumir o controle e/ou a decisão sobre o tipo de parto que gostaria de ter, caso tenha plenas condições
de saúde para que tal escolha possa ser exercida. Um exemplo é a dificuldade em encontrar, na rede
privada de atendimento de saúde, profissionais que realizem parto normal.
A primeira obstetra que eu fui, logo na primeira consulta, me falou que não fazia
parto normal. (Blog no. 19)
Eu não costumo ver mulheres 'cesareadas' como nós, sendo acusadas de sermos
mães de pior qualidade. A cesariana no Brasil já é uma realidade, eu e você fazemos
parte da maioria esmagadora! Ela, a sua amiga que quis e/ou teve um parto bacana,
ela é pequena minoria e apenas está feliz por ter conseguido atingir seu sonho.
Todos esses movimentos que a mulherada está fazendo pelo direito ao parto natural,
direito ao parto em casa, não dizem respeito a você e às suas escolhas. Elas dizem
respeito a elas! Em nenhum cartaz ou fala você verá escrito "Proíbam as cesarianas,
proíbam as escolhas pelas cesarianas, proíbam as mulheres de optarem pelas
cesarianas, não queremos mais cesáreas que salvem vidas". Essas mulheres querem
que todas as mulheres tenham a chance de experimentar o que elas viveram, caso
elas assim o desejem." (Blog no. 8)
V.9, nº1. Jan./jul. 2016.
306 Revista FOCO. ISSN: 1981-223X
3.3 Experiências de Vulnerabilidade em Contextos de Consumo
O modelo de vulnerabilidade do consumidor em contextos de consumo proposto por
Baker, Gentry e Rittenburg (2005), conforme já mencionado, tem foco nas situações de
vulnerabilidade, privilegiando as situações em detrimento de quem é vulnerável, uma vez que
por meio da situações, qualquer um tem o potencial para estar vulnerável.
A gestante, pelo fato de estar gestante, não necessariamente está vulnerável em todas
as ocasiões de consumo. Contudo, no momento do parto, especialmente para aquelas que
gostariam de ter a oportunidade de tentar o parto normal, fica claro por meio dos diversos
relatos acessados que, o parto normal na rede privada de assistência médica do país,
especialmente nas regiões sul e sudeste, é quase que uma raridade.
Quem acompanha o blog sabe, por alguns posts que já fiz, que eu queria muito ter o
Léo de parto normal e que, com sete meses de gestação, mudei de obstetra porque
senti que ele estava me encaminhando para uma cesárea (Depois, vim a descobrir
que eu não estava errada. Esse obstetra é bastante conhecido por só fazer partos
agendados. Sorte que meu feeling falou mais alto). Não tenho nada contra cesárea
assim como não tenho contra parto natural ou parto humanizado. Sou é a favor de
todas as mães terem seus filhos da forma que desejam, da forma que se sentem bem
e sem nenhuma forma de coação (Blog no. 41).
E você me cumprimentou. E nem me examinou, em momento nenhum. Apenas me
mediu com o olhar. E jogou, na minha cara, o primeiro balde de água fria.
Comentou que a minha barriga estava alta, que o parto demoraria. Eu disse que
esperaria, sem problemas. Estava tão feliz. Então, você me falou que eu tinha apenas
um centímetro de dilatação. Eu disse que, quando o bebê quisesse sair (mesmo), a
dilatação aumentaria, que aguardaria. Eu estava tão feliz. Você me disse que a
minha bolsa não tinha rompido. E eu disse que ela poderia romper em breve. Afinal,
estava apenas no começo do trabalho de parto. Eu estava tão feliz. Você falou, então
que era melhor desistir, pois demoraria muito e no final teria que fazer cesárea, pois
pela sua experiência, mães com pouca dilatação e com a barriga tão alta não
conseguiam parir. Eu titubeei. E você, então deu o golpe de misericórdia: "Vai
demorar, o seu nenê pode fazer cocô e morrer. Ele pode ficar em sofrimento fetal.
Tem nenês que morrem por conta disso. Você quer correr o risco?" E o meu mundo
desabou (Blog no. 40).
Mas a senhora sabe muito bem a vulnerabilidade de uma mulher no momento de
parir. É o momento mais frágil e vulnerável da vida de uma mulher. O desejo de que
o filho fique bem, a qualquer custo. Os hormônios trabalhando a mil. O quanto é
difícil raciocinar com tranquilidade (coisa que eu não consegui, claro, por motivos
óbvios). E a senhora deveria saber que a mulher deve ser encorajada, acreditar que é
capaz; que ela deve se sentir acolhida e protegida; que não deve ser apavorada e
ameaçada com a morte do filho se não houver um perigo muito real. O que, claro,
fui saber depois, não era o meu caso (Blog no. 40).
E quando o parto normal pode ser realidade na rede privada de atendimento médico,
não são raros os diversos desrespeitos infligidos à parturiente.
307 [...] mesmo assim acredito que dá, sim, pra ter um lindo parto em ambiente
hospitalar, com base em inúmeras histórias que já ouvi. mas é como nadar contra a
correnteza de um rio: o tempo inteiro você precisa se impor, lutar. lutar pra não ser
cortada, lutar pra não tomar anestesia, lutar pra conseguir um médico decente e que
você tenha condições de pagar, lutar pra pagar o médico, lutar pra não tirarem seu
filho de você assim que nascer, lutar dentro do hospital para não darem
complemento caso o bebê não venha a mamar de imediato, lutar, lutar, lutar. (Blog
no. 33)
CONSIDERAÇÕES FINAIS
O objetivo deste artigo consistiu em explorar potenciais situações de vulnerabilidade
que gestantes pudessem encontrar ao consumirem serviços médicos durante o pré-natal, com
foco na situação de consumo do serviço de parto. Para isto, foi feita a revisão teórica com
base na teoria de vulnerabilidade do consumidor, especificamente no modelo de
vulnerabilidade em contextos de consumo proposto por Baker, Gentry e Rittenburg (2005).
Contextualizou-se também a maternidade contemporânea permeada pelas relações de
consumo e as particularidades do serviço de assistência médica à gestantes, com atenção
especial para o serviço de parto, no contexto nacional.
A coleta de dados por meio de blogs de gestantes e mães propiciou rico e atual
material para análise. Observou-se que tanto os fatores internos, quanto os fatores externos do
modelo de vulnerabilidade adotado se fizeram presentes nos relatos dos blogs por meio da
aculturação, percepções sobre a própria saúde, preocupações com recursos do consumidor,
estados transitórios da mulher, mudanças de humor e a questão da distribuição logística, que
afeta a disponibilidade de médicos da rede privada que executem o parto normal e/ou a
cesariana.
As experiências de vulnerabilidade durante a realização do serviço de parto se
confirmam e mostram que grande parte das mulheres têm o desejo de tentar o parto normal e,
caso não seja possível, partir para a cesariana. Contudo, não é isso que se verificou. Os relatos
sobre partos citam médicos que imediatamente dizem não realizar o procedimento de parto
normal; médicos que 'enrolam' as pacientes ao se dizerem executores do parto normal, quando
na realidade, tentam construir um discurso no qual relatam somente os perigos do parto
normal; médicos que realizam o parto normal, mas se utilizam de uma série de procedimentos
e técnicas denominadas violência obstétrica. Enfim, para as mulheres, um momento que
deveria ser único e especial, que envolve seus corpos e a expectativa em torno de uma nova
vida, revelam-se, em muitos casos, situações chocantes e humilhantes, onde a situação da
V.9, nº1. Jan./jul. 2016.
308 Revista FOCO. ISSN: 1981-223X
mulher é total vulnerabilidade, uma vez que não possuem o controle diante de tais situações.
Muitas destas situações poderiam ser evitadas, com a busca de mais informações sobre
o parto por parte das gestantes e também, por meio de um olhar mais crítico enquanto
consumidoras.
As situações de vulnerabilidade no consumo sugerem dois tipos de resposta por parte
dos consumidores: na primeira, eles se adaptam à situação e apreendem a viver com ela. Na
segunda, o mercado se organiza e inicia movimentos de contra-consumo e/ou órgãos
regulamentadores criam políticas públicas para lidar com tais situações. No Brasil, dois
movimentos estão em curso: um guiado pelo contra-consumo e a favor do parto chamado
humanizado (parto normal, no qual a mulher é a protagonista) e outro pelo Ministério da
Saúde, que pretende implantar centro de parto normal em todo o país
REFERÊNCIAS
ALWITT, L. F. Marketing and the Poor. In: HILL, R. P. Marketing and Consumer
Research in the Public Interest. Thousand Oaks: Sage Publications, 1996.
BAKER, S.M. Vulnerability and Resilience in Natural Disasters: a marketing and public
policy perspective. Journal of Public Policy and Marketing, v. 28, n. 1, p. 114-123, 2009.
BAKER, S. M., GENTRY, J.W.; RITTENBURG, T. L. Building Understanding of the
Domain of Consumer Vulnerability. Journal of Macromarketing, vol. 25, n. 2, p. 128-139,
2005.
BARDIN, L. Análise de Conteúdo. Lisboa: Edições 70, 2001.
BITTENCOURT, F.; VIEIRA, J. B.; ALMEIDA, A. C. Concepção de Gestantes sobre o
Parto Cesariano. Cogitare Enfermagem, v. 18, n. 3, p. 515-520, 2013.
CARRIGAN M., SZMIGIN, I. “Mothers of Invention”: maternal empowerment and
convenience consumption. European Journal of Marketing, vol. 40, n. 9/10, p. 1122-1142,
2006.
CHAU, M.; XU, J. Business Intelligence in Blogs: understanding consumer interactions and
communities. MIS Quarterly, v. 36, n. 4, 2012.
CHIA, S.C. How Social Influence Mediates Media Effects on Adolescents’ Materialism.
Comunication Research, v. 37, n. 3, 2010.
CLARKE, A. J. Maternity and Materiality: decoming a mother in consumer culture. In:
ROTHMAN, B. K. Recreating Motherhood. Rutgers University Press, 2000.
DAVIES, A.; DOBSCHA, S.; GEIGER, S.; O'DONOHUE, S.; O'MALLEY, L.;
PROTHERO, A.; THOMSEN T. U. Motherhood, Marketization, and Consumer
309 Vulnerability. Journal of Macromarketing, vol. 30, n. 4, p. 384-397, 2010.
DENZIN, N. K.; LINCOLN, Y. S. Introduction: the discipline and practice of qualitative
research. In: DENZIN, N. K.; LINCOLN, Y. S. Handbook of Qualitative Research. 3. ed.
Thousand Oaks: Sage Publications, 2005.
PAIVA JR, F. G.; LEÃO, A. S; MELLO, S. de. Validade e Confiabilidade na Pesquisa
Qualitativa em Administração. Revista de Ciências da Administração, v. 13, n. 31, 2011.
DOUGLAS, S.J.; MICHAELS, M.W. The Mommy Myth: the idealization of motherhood
and how it has undermined all women. New York: The Free Press, 2004.
GARRETT, D.E.; TOUMANOFF, P.G. Are Consumers Disadvantaged or Vulnerable? An
examination of consumer complaints to the Better Business Bureau. The Journal of
Consumers Affairs, v. 44, n. 1, 2010.
GIBBS, G. Análise de Dados Qualitativos. Porto Alegre: Artmed, 2009.
HILL, R. P. Survinving in a Material World: evidence form ethnographic consumer research
on people in poverty. Journal of Contemporany Ethnography, vol. 30, p. 364-391, 2001.
HOPKINS, K. Are Brazilian Women Really Choosing to Deliver by Cesarean? Social
Science & Medicine, v. 51, p. 725-740, 2000.
HOUAISS, A.; VILLAR, M. S. Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa. Rio de Janeiro:
Objetiva, 2001.
HOOKWAY, N. Entering the Blogosphere: some strategies for using blogs in social research.
Qualitative Research, v. 8, n. 1, p. 91-113, 2008.
KASAI, K.E.; NOMURA, R.M.Y.; BENUTE, G.R.G.; LUCIA, M.C.S.; ZUGAIB, M.
Midwifery, v. 26, p. 319-326, 2010.
LEE, R. M.; FIELDING, N.; BLANK, G. (Eds.). Handbook of Online Research Methods.
London: Sage Publications, 2008.
MANN, C.; STEWART, F. Internet Communication and Qualitative Research: a
handbook for researching online. London: Sage Publications: 2000.
MANSFIELD, P.M.; PINTO, M.B. Consumer Vulnerability and Credit Card Knowledge
Among Developmentally Disabled Citizens. The Journal of Consumers Affairs, v. 42, n. 3,
2008.
MOSCHIS, G. P. Marketing to Older Consumers: a handbook of information for strategy
development. Westport: Quorum Books, 1992.
O'CONNOR, H.; MADGE, C. Cyber-Mothers: online synchronous interviewing using
conferencing software. Sociological Research Online, v. 5, n. 4, 2001.
PECHMANN, C.; LEVINE, L.; LOUGHLIN, S.; LESLIE, F. Impulsive and Self-Conscious:
V.9, nº1. Jan./jul. 2016.
310 Revista FOCO. ISSN: 1981-223X
adolescents’ vulnerability to advertising and promotion. Journal of Public Policy &
Marketing, v. 24, n. 2, p. 202-221, 2005.
PEÑALOZA, L. Immigrant Consumers: marketing and public policy considerations in the
global economics. Journal of Public Policy and Marketing, v. 14, p. 83-94, 1995.
ROTHMAN, B. K. Recreating Motherhood. Rutgers University Press, 2000.
SAFKO, L.;BRAKE, D. K. A Bíblia da Mídia Social: táticas, ferramentas e estratégias para
construir e transformar negócios. São Paulo: Blucher, 2010.
SELLTIZ, C.; JAHODA, M.; DEUTSCH, M.; COOK, S. Métodos de Pesquisa nas
Relações Sociais. São Paulo: EPU, 1971.
SUS - Sistema Único de Saúde. Departamento de Informática do SUS, sistema de
informações
de
nascidos
vivos.
Disponível
em:
<
http://tabnet.datasus.gov.br/cgi/tabcgi.exe?idb2012/f08.def >. Acessado em: 11/12/2013.
TAYLOR, J. S.; LAYNE, L. L.; WOZNIAK, D. F. (eds.). Consuming Motherhood. Rutgers
University Press, 2004.
VILLAR, J.; VALLADARES, E.; WOJDYLA, D.; ZAVALETA, N.; CARROLI, G.;
VELAZCO, A.; ACOSTA, A. Caesarean delivery rates and pregnancy outcomes: the 2005
WHO global survey on maternal and perinatal health in Latin America. The Lancet, v. 367,
n. 9525, p. 1819-1829, 2006.
WAKEFOR, N.; COHEN, K. Fieldnotes in Public: using blogs for research. In: LEE, R. M.;
FIELDING, N.; BLANK, G. (Eds.). Handbook of Online Research Methods. London: Sage
Publications, 2008.
311