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Actividade Física e Saúde – A Perspectiva do
Médico1
António Duarte Araújo
Médico especialista em Pneumologia
3º Dan de Karate Shotokan, Treinador de Grau II
[email protected]
«Uma das particularidades mais destacáveis do karate é
que todos podem praticá-lo, jovens e velhos, fortes e
débeis, homens e mulheres»
Funakoshi Gigin2
«O karate como arte de defesa pessoal e como meio de melhorar
a saúde, existe há muito tempo. Nos últimos vinte anos uma
nova actividade ligada a essa arte marcial está a ser cultivada
com êxito: o karate como desporto.»
M. Nakayama3
Justificação
O karate é uma modalidade desportiva bastante divulgada no
nosso país, e com uma boa relação preço/acessibilidade; é uma
modalidade de inclusão, contando com crianças e adultos das
mais diversas idades e dos dois sexos. Por ser simultaneamente
1
Comunicação apresentada no 9º Encontro Nacional de Karate organizado pelo Clube de Karate de Barcelos
a 15 de julho de 2012.
2
Funakoshi, G, Karate-Dô, Mi Camino, Madrid, Ed Dojo, 2007
3
Nakayama, M., série O Melhor do Karatê, S. Paulo, Brazil, ed Cultrix, 1977
1
uma arte marcial, incutindo nas crianças e adolescentes princípios
de disciplina e de reforço da auto-estima, associado a um
desenvolvimento harmonioso, tanto físico como da personalidade,
tem levado a classe médica a sugerir a sua prática às crianças,
muitas vezes com problemas de saúde, bem como aos seus pais e
educadores, e que o treinador da modalidade não deve defraudar,
assumindo uma responsabilidade para a qual deve estar
preparado.
Introdução e objectivos
O conceituado historiador David S. Landes, em A Riqueza e a
Pobreza das Nações4 considera, de uma forma algo irónica, que o
mundo se divide em duas partes, a dos pobres, que diariamente
lutam para conseguir alimento, e a dos ricos que lutam por tempo
para ir ao ginásio, sobretudo para tentar queimar as calorias em
excesso. Mas o mundo não foi sempre assim. A Revolução
Industrial trouxe consigo a riqueza e a abundância ao Ocidente, e
o progresso na medicina, sobretudo os conceitos de higiene e mais
tarde a antibioterapia, ao diminuir a mortalidade por situações
infecciosas, trouxe a longevidade. E com ambas apareceram as
doenças degenerativas, sobressaindo as doenças cérebro e
4
LANDE, David S., A Riqueza e a Pobreza das Nações, Lisboa, ed. Gradiva, Nov 2011
2
cardiovasculares, e as doenças metabólicas, como a obesidade, e
que hoje aflige uma significativa parcela da população.
O problema da necessidade de actividade física, muscular, não
se colocava nas sociedades pré-industrializadas, em que o
trabalho da população era essencialmente físico, e de contacto
com a natureza; e a actividade desportiva, realizada de uma forma
regular e organizada, era um luxo a que a maioria da população
não se podia dar, sendo até, nalguns casos, mal vista por alguns
estratos sociais. Foram o progressivo sedentarismo e a abundância
de
calorias,
com
o
consequente
aumento
das
doenças
cardiovasculares e metabólicas que trouxeram a actividade física
e o desporto para a primeira linha das nossas preocupações com a
saúde. Mas que a actividade física era importante, sempre o
souberam os médicos, desde a antiguidade, e também com ela
sempre se preocuparam. Para Hipócrates, chamado “Pai da
Medicina” (460-355 a.C) «(…)a manutenção da saúde assenta no
contrariar a tendência para a redução exercício. Não existe
nenhuma forma de substituir o exercício (…) que expele o mal
feito pela maior parte dos maus regimes que a maioria dos
homens segue. (…) todas as partes do corpo são destinadas a
uma função específica. Se usadas com moderação, fazendo
regularmente os movimentos para que foram concebidas, tornamse por esse meio saudáveis (…)». Pedro Hispano (1210-1277
d.C.), médico e o único papa português, na sua obra «Liber de
3
Conservanda Sanitate»5 refere que «(…) no regime de saúde
daqueles que vivem bem e tranquilamente, o exercício temperado
(…) consome as humidades e excessos, pelos quais se originam
muitas doenças (…)». No Oriente também é patente, desde a
antiguidade, a preocupação com o exercício, como forma de
manter a saúde. A medicina ayuvédica, de origem indiana e
conhecida como a “Mãe da Medicina” desenvolveria o yoga,
como
prática
promotora
de
vida6.
Patrick
McCarthy,
provavelmente o maior estudioso (e tradutor) do Bubishi7, obra
complexa e que reúne muita da sabedoria ancestral chinesa sobre
formas de luta, medicina, fitofarmacologia e filosofia, refere que
«(…) a nossa saúde física e o nosso bem-estar mental devem ser
sempre as prioridades mestras da nossa vida. Portanto, treinar
um quanfa (kata, para o gongfu) deve ser um equilíbrio entre
treino físico e estudo metafísico (…)».
Se a necessidade de exercício e actividade física é conhecido
desde sempre e até intuitivo como forma de promover a saúde, foi
só em 1953 que Morris JN et al., no Lancet, publicaram um
estudo que relacionou actividade física e doença coronária em
dois grupos profissionais, motoristas e revisores dos autocarros de
Londres, de dois andares, e por isso com uma actividade física
muito diferente, naquele que foi um dos primeiros trabalhos
relacionando actividade física e doença coronária8. Muitos outros
5
HISPANO, Pedro, Liber de Conservande Sanitate, Lisboa, ed. Port Heartbraiun, 2008
PORTER, Roy, Medicina, A História da Cura, ed. Livros e livros Fev 2002
7
McCARTHY, Patrick, Bubishi – La Bíblia del Karaté, Madrid, ed. Tubos S.A., 2007
8
BARATA, Themudo, Actividade Física e Medicina Moderna, Odivelas, ed Europress, 1997
6
4
trabalhos de investigação se seguiram, sendo hoje inquestionável
a prática regular de actividade física como forma de promover a
saúde, de diminuir a morbi-mortalidade em geral e por causas
específicas, como as doenças cardiovasculares e metabólicas. E
essa quantidade de evidência médica de ganhos para a saúde com
o exercício físico regular e com o desporto, hoje muito robusta,
tem levado a uma mudança no comportamento das pessoas, agora
progressivamente mais activas. Hoje ir ao ginásio ou praticar
desporto, para além dos ganhos com saúde, promove o convívio e
a integração social, e é um sinal de cultura e até de algum estatuto
social. Mas progressivamente também se tornou evidente para a
comunidade médica, e intuitivamente para a população em geral,
que a prática de desporto, a partir de determinado grau, não só
não se traduzia em ganhos para a saúde, como poderia ser
prejudicial.
Então o objectivo deste presente trabalho é apenas o da
clarificação de alguns conceitos que relacionam exercício,
desporto e saúde, bem como o do papel do médico, sem
diferenciação em medicina desportiva ou em medicina do
exercício, mas como agente promotor de saúde.
Entende-se por saúde o bem-estar físico, mental e social do
indivíduo, e não apenas a ausência de doença, pelo que o conceito
de saúde é quantitativo: há vários graus de saúde. Este conceito de
saúde da OMS vai ao encontro do conceito de individuo, um ser
5
bio-psico-social, e segundo Damásio9 essencialmente emocional,
e também por isso a actividade física ou desportiva praticada
deve, antes de mais, ser fonte de prazer, até para poder ser
continuada pela vida fora: se há verdades que temos como certas é
que o exercício físico só é benéfico para a saúde enquanto
praticado, e se a sua prática for regular.
Actividade física e desporto
Por actividade física entende-se qualquer movimento do corpo
que dê lugar a um gasto de energia; assim todos os dias fazemos
alguma actividade física, informal e espontânea, importantíssima
para a saúde e que deve ser a base da pirâmide da actividade
física; é o ir a pé para o trabalho, andar de bicicleta, subir escadas,
fazer jardinagem, dançar, ou passear o cão, ou seja a execução de
exercícios habitualmente de baixa intensidade e cujo objectivo
não é o exercício em si. Actividade física organizada é fazer um
programa de caminhada, de corrida, ir ao ginásio, ou ir ao treino
de karate; são actividades habitualmente de moderada intensidade
(mas que podem ter vários graus de intensidade), e associada à
primeira (a espontânea), a que permite colher maiores benefícios
para a saúde: permite quantificar e controlar o esforço, variar e
trabalhar a intensidade, trabalhar a componente aeróbica ou a
9
Sobre este assunto consultar O Erro de Descartes, de DAMÁSIO, António
6
força muscular, ou dar primazia à flexibilidade. O trabalho da
força muscular e a prática de desporto recreativo ou de lazer é o
andar seguinte (o 3º) da pirâmide da actividade física, e devem ser
praticados 2 a 3 vezes por semana quando, apesar do conceito de
desporto implicar competição, o objectivo for a recreação, a
promoção da saúde ou da condição física. O último andar da
pirâmide é o desporto intenso, de competição, cujos objectivos
são
de
âmbito
diferente,
trazendo
frequentemente
mais
inconvenientes que benefícios para a saúde.
Quando um indivíduo inicia uma actividade física regular, o seu
organismo desencadeia um conjunto de adaptações ao esforço;
muitas delas vão ser vantajosas em termos de saúde, outras na
promoção das suas capacidades físicas10: é o health related
fitness; quanto mais sedentário é o indivíduo, maior o benefício
que colhe, tanto para a saúde, como para a condição física, e a
regularidade é a única forma de manter estes benefícios. Com a
continuação do treino, ou seja com o aumento progressivo da
duração, da frequência ou da intensidade, deixa de haver margem
para mais ganhos com saúde, mas continua a haver melhoria
progressiva da condição física; as cargas de treino para promover
a saúde são bem menores que as necessárias à melhoria da
condição física: deixou de haver o health related fitness para se
passar a trabalhar apenas a condição física. Por condição física ou
fitness entende-se as capacidades para poder executar e com
facilidade as tarefas motoras necessárias à vida de cada um, na
7
intensidade e duração necessárias11. Cada desporto tem a sua
condição física específica, dando preferência à força, ou à
velocidade, ou à resistência, ou à flexibilidade, mas a condição
física geral, uma mistura de vários componentes, é importante
para todos, desportistas ou não. Uma boa condição física
associada a um bom equilíbrio psicológico, que tem a haver com
os conceitos de confiança e auto-estima, significa estar em forma.
Do âmbito médico em geral faz parte a promoção de ganhos
com saúde através da actividade física e do desporto, bem como a
melhoria da condição física do indivíduo, tendo presente que
cargas de treino demasiado intensas habitualmente também se
acompanham de inconvenientes: o desporto de alta competição,
quer pelas elevadas cargas de treino, não fisiológicas, quer pelo
stress competitivo, não é seguramente um meio de promover nem
de preservar a saúde.
Benefícios gerais da actividade física e do desporto
São essencialmente de ordem preventiva, raramente de natureza
curativa, e neste caso inserem-se mais no conceito de tratar o
indivíduo como um todo, melhorando a sua auto-estima,
diminuindo os seus níveis de stress, promovendo a socialização e
10
11
BARATA, Themudo, Actividade Física e Medicina Moderna, Odivelas, ed Europress, 1997
BARATA, Themudo, Mexa-se, pela sua Saúde, Lisboa, ed. Don Quixote, 2007
8
integração no grupo, melhorar a sua forma física, mais que o
tratamento de patologias específicas. De qualquer modo são bem
conhecidas as suas indicações, a par da terapêutica farmacológica,
no controlo da asma brônquica, da hipertensão arterial (HTA), da
diabetes tipo 2 (DMNID), da isquémia miocárdica ou da
obesidade.
A actividade física adequada e o desporto são um dos pilares
para um estilo de vida saudável12, como o são a alimentação
saudável, uma boa higiene do sono, a evicção tabágica e de
substâncias
psicotrópicas,
bem
como
de
actividades
e
comportamentos de risco; para o indivíduo é um eficaz meio de
prevenção de doenças, para os Estados dos melhores métodos
custo-eficácia na promoção da saúde na comunidade; ela deve ser
para todos, independentemente da idade ou da existência de
incapacidades, físicas ou mentais. O sedentarismo associa-se ao
aumento de doenças crónicas e estima-se que seja causador de 3,2
milhões de mortes, a nível mundial13 (dados da OMS); Portugal é
o país mais sedentário da Europa, e o segundo com maior
prevalência de obesidade, e no mundo 60% dos adultos não tem
níveis suficientes de actividade física; se é extensa a lista de
benefícios da actividade física regular, também é verdade que se
centram essencialmente nas patologias cardiovasculares, uma das
principais causas de morte, e nas doenças metabólicas, como a
obesidade e diabetes. Alguns dos benefícios, no adulto, e sem
12
13
Consultar o Portal da saúde, 2007, www.dgs.pt
Consultar sitio oficial da OMS
9
preocupação de ser exaustivo ou na enumeração por qualquer
ordem, são, segundo dados da OMS e da DGS:
- Redução do risco de morte prematura
-Redução
da
morbilidade
e
mortalidade
por
doenças
cardiovasculares
- Redução do risco de desenvolver diabetes tipo 2
- Redução do risco de algumas neoplasias (cólon, mama, recto)
- Prevenção e redução da hipertensão (HTA)
- Melhoria do perfil lipídico
- Prevenção e tratamento da obesidade
- Prevenção da osteoporose e redução do risco de fracturas
- Aumento da força e massa muscular
- Aumento da resistência de tendões e ligamentos
- Prevenção de artroses
- Melhoria do sindroma depressivo, do stress, da ansiedade e da
auto-estima
- Atraso do envelhecimento.
Nas crianças e adolescentes o exercício físico e o desporto são
fundamentais, até para que esses hábitos (de manutenção de uma
boa condição física) se perpetuem ao longo da vida, levando
nomeadamente a:
10
- Aquisição de hábitos de vida saudável e de respeito pelos
colegas
- Prevenção de comportamentos de risco, como tabagismo,
alcoolismo, toxicofilias
- Maior desempenho académico e controlo da ansiedade
- Desenvolvimento das capacidades de integração social,
facilitando a passagem do circulo familiar para a sociedade.
- Enriquecimento do reportório psico-motor, desenvolvimento
da coordenação e controlo do movimento
- Controlo do peso, diminuindo o risco de obesidade
- Ajuda ao crescimento saudável do sistema músculoesquelético (ossos, músculos e articulações)
- Desenvolvimento de sistema cardiovascular saudável.
Níveis gerais de actividade física
Saúde e condição física são dois conceitos diferentes, apesar de
frequentemente confundidos, porque estão muitas vezes associados.
A OMS define condição física como a capacidade para realizar de
uma forma satisfatória determinada tarefa muscular ou motora, o
que pressupõe um estado de adaptação a um estímulo e a tolerância
à fadiga específica daí resultante14, e é estudada pela medicina do
exercício. Quando um indivíduo sedentário inicia uma actividade
física vai inicialmente ter ganhos em saúde e em condição física;
11
mais tarde, com o aumento progressivo da carga, esse paralelismo
perde-se, registando-se apenas ganhos em condição física. Assim,
mesmo quando deixa de ter ganhos com a saúde, ainda há muito a
fazer pela melhoria da condição física, e que vai sendo
progressivamente mais exigente, mas esses ganhos são também um
bem para a qualidade de vida de qualquer indivíduo. As actividades
ligeiras e moderadas são as que permitem obter ganhos com a
saúde, e o indivíduo mais sedentário é o que mais beneficia; por
outro lado é mais importante o volume da carga que a sua
intensidade, mas uma actividade física contínua é preferível a uma
actividade fraccionada, até para se obter algum ganho em condição
física; e porque se trata de respostas adaptativas do organismo, a
prática regular, ou seja, diária, é fundamental, uma vez que os
benefícios só se verificam enquanto a actividade física se mantiver;
actividade física moderada de pelo menos 30 minutos por dia é
fundamental15, e deve ser associada a uma actividade mais intensa,
estruturada, três dias por semana. Como a intensidade do treino é
inversamente proporcional à sua duração, 45 minutos diários de
actividade ligeira ou 15 minutos de actividade intensa podem ser
alternativas. Se o objectivo é o controlo do peso, o tempo duplica
para 60 minutos de actividade moderada diária. Quando se realiza
qualquer actividade física estruturada ou uma actividade desportiva
desenvolvem-se várias capacidades físicas, como a força máxima, a
força resistência, a velocidade, a flexibilidade, etc; a capacidade
14
15
BARATA, Themudo, Actividade Física e Medicina Moderna, Odivelas, ed Europress, 1997
Consultar o Portal da saúde, 2007, www.dgs.pt
12
física que mais interessa desenvolver, em termos de saúde, é a
resistência aeróbia geral, seguida da força resistência, da
flexibilidade, do equilíbrio e da coordenação psico-motora. No
karaté, p.e., é muito importante a aquisição de capacidades
relacionadas com a potência e a velocidade para o êxito
competitivo, mas que não se traduzem necessariamente em ganhos
para a saúde.
Intervenção do médico na actividade física na criança
A actividade física e desportiva na criança desenvolve-se em três
cenários principais: o desporto de rua, em que a prevenção e
tratamento de acidentes é a principal função do médico, o desporto
escolar, em que a motivação da criança e dos pais é a sua principal
função, a par de colocar algumas restrições, habitualmente
temporárias, e o desporto de competição, em que é necessária com
frequência a sua especialização. A sua preocupação fundamental
deve ser a saúde da criança, e a sua intervenção deve ter em conta:
-A identificação da criança sedentária.
-A identificação da criança obesa.
-A identificação da criança que necessita de restrição à prática
desportiva, habitualmente temporária, no caso de doenças agudas,
geralmente de natureza infecciosa (gripes, faringites, pneumonias,
13
gastroenterite, etc), menos vezes de média duração (tuberculose,
hepatite vírica, febre reumática…) e raramente de longa duração
(cardiopatias congénitas, asma grave).
-Adequar o desporto à idade da criança (provavelmente os
desportos de combate não seriam, grosso modo, os mais adequados
antes dos 8 anos, onde correr, nadar, andar de bicicleta ou de patins
serão provavelmente mais indicados). Ressalve-se no entanto, que o
novo processo de alfabetização motora, seguido pela FNKP, resolve
estes problemas de base psico-motores; por isso o treinador de
karate com conhecimentos actualizados é capaz de desenvolver com
responsabilidade, e mantendo ainda assim uma fidelidade aos
princípios estruturantes da modalidade, uma prática regular de
karatecas a partir dos 3 anos de idade.
-Aconselhar regras higiénicas e dietéticas.
-Fazer a prevenção de lesões e complicações relacionadas com o
desporto (condições atmosféricas, condições das instalações
desportivas, diagnóstico precoce de lesões ou micro-lesões, sono e
descanso adequado, abstenção de alcool, tabaco e substâncias
dopantes, equipamento adequado, identificação de situações
patológicas que se possam agravar com o treino ou predispor ao
aparecimento de lesões, etc).
-Identificar a competição como factor de ansiogénese, e ter a
noção que a competição deve ser um meio (para o desenvolvimento
da criança) e não um fim.
14
-Adequar o desporto a cada criança (se a criança tem asma
necessitará provavelmente dum aquecimento diferente, ou de um
desporto de interior, no tempo frio, ou da identificação dos esforços
e desportos que desencadeiam a crise asmática, se a criança sofre de
epilepsia provavelmente o karate ou a natação não serão as
melhores opções, se a criança só tem um rim, ou tem miopia
acentuada, ou tem uma escoliose acentuada, provavelmente os
desportos de combate não serão opção, etc.).
As crianças e adolescentes, entre os 5 e os 17 anos, à sua
actividade física diária e informal, devem acrescentar pelo menos 60
minutos de actividade física vigorosa, diariamente, e cargas
superiores podem associar-se a benefícios adicionais para a saúde; a
maior parte da actividade física deve ser aeróbia, com reforço
muscular 3 vezes por semana16. O treino da força (treino contra
resistência) que durante muito tempo se desaconselhava, não se
parece associar a risco acrescido de lesões, mas o aumento da força
muscular parece dever-se apenas a factores neurológicos, como
sejam a melhor técnica de coordenação motora e aumento de
activação da unidade motora, e não ao aumento do volume
muscular; parece também ser evidente que o exercício físico em
geral afecta o peso e a composição corporal, diminuindo a massa
gorda total e aumentando a massa corporal total, mas não tem efeito
no crescimento em altura, nem altera os ritmos próprios de
16
Dados da OMS, ver sítio oficial da OMS
15
crescimento
e
maturação
de
cada
criança,
programados
genotipicamente17.
É ainda importante que as crianças contactem com várias
modalidades, com finalidade mais lúdica que competitiva, de modo
a se desenvolverem de forma saudável e harmoniosa; mais que
ensinamentos técnicos de determinada modalidade, deve melhorar a
sua condição física e psicológica, preparando-se para que um dia, se
escolher essa via, possa vir ser um grande desportista numa
determinada modalidade. É este um pouco o conceito actual de
alfabetização motora, em oposição ao de especialização precoce.
Deve ser dada especial atenção ao ritmo próprio de aprendizagem e
desenvolvimento de cada criança, e devem ser evitados o stress
associado à necessidade de bom desempenho, a ansiedade que
precede as competições, bem como o medo do fracasso, ou a
frustração, por não atingido determinadas metas: isto são factores de
abandono precoce, e o que se pretende é o contrário, a aquisição de
hábitos de vida saudável, que se mantenham pela vida adulta.
É de valorizar alguns aspectos fundamentais do desporto em
geral, e das artes marciais em particular, como são a disciplina (sem
disciplina não há aprendizagem), o respeito pelos outros, desde logo
os colegas e o professor, a autoconfiança e auto-estima, a coragem e
o espírito de equipa (a noção de grupo, e noção de pertença a um
grupo), importantes na construção da personalidade e no processo
de socialização.
17
WILMORE, Jack H., COSTIL, David L, Fisiologia del Esfuerzo y del Deporte, Barcelona, ed. Paidotribo
16
A prática de um desporto de alta competição, tanto na criança
como no adulto, não é uma forma de preservar a saúde; alguns dos
efeitos negativos, tanto na criança como no adolescente são o stress
competitivo, que gera ansiedade, depressão e frustração, situações
de fadiga crónica, geralmente por recuperação insuficiente,
alterações no comportamento alimentar, mais prevalentes nas
crianças do sexo feminino, lesões musculares e esqueléticas, mais
graves nos ossos em crescimento, ou lesões microtraumáticas sobre
músculos e articulações, para referir apenas alguns dos mais
frequentes.
A criança asmática e a prática desportiva
A asma brônquica é uma das doenças respiratórias crónicas mais
prevalentes, estimando-se que afecte 300 milhões de indivíduos em
todo o mundo18, tanto adultos como crianças, e é a doença crónica
mais comum na idade pediátrica, atingido entre 10 a 15% das
crianças de ambos os sexos: é por isso um importante problema de
saúde pública. É uma doença com vários graus de gravidade e várias
manifestações fenotípicas, causada por uma inflamação crónica das
vias aéreas, que na criança tem habitualmente uma base alérgica, e é
mais prevalente e mais difícil de tratar na criança obesa.
Exceptuando as asmas crónicas graves e as situações de agudização,
17
estas crianças podem e devem praticar desporto ou outras formas de
actividade física; tanto assim é que a asma é ainda mais prevalente
nos atletas que na população em geral; não o impedindo de atingir o
topo da carreira desportiva, limita-o no seu rendimento, se for
negligenciada. Parece haver nos atletas dois fenótipos distintos de
asma, a asma clássica, prévia à prática desportiva, e que se iniciou
relativamente cedo na infância, e um fenótipo distinto, com início
dos sintomas durante a carreira desportiva do atleta19.
Deve ainda ser diferenciado, no desportista, a «asma induzida pelo
exercício» do «broncospasmo induzido pelo exercício», em
indivíduos sem asma, e de mais difícil caracterização. A asma é
mais prevalente em atletas de determinados desportos, como
desportos de endurance (fundistas), natação ou os desportos de
Inverno, e há desportos mais propensos a causar sintomas de asma
do que outros. Desportos que obriguem a esforço intenso e
prolongado, praticados ao frio ou em meios poluídos (poluição outdoor ou in-door) como ciclismo ou corridas de fundo, corridas de
corta mato em épocas polínicas, ou desportos subaquáticos, por
exemplo, poderão ser desaconselhados. O mais importante no
entanto é que a criança mantenha uma actividade física regular que
a afaste do ciclo vicioso de sedentarismo, e em ultima análise deve
ser ela a escolher o desporto que gosta e quer praticar.
Os treinadores desportivos devem conhecer estas situações, e
saber trabalhar com elas; estas crianças não devem ser
18
GINA (Global Initiative for Asthma) 2011, www.ginaasthma.org
18
desencorajadas da actividade física, nem rejeitadas, mas podem não
poder realizar os exercícios físicos programados, ocasionalmente
excessivos ou desadequados à sua condição física. Não devem ser
criticadas por usarem medicação de alívio, antes devem os
treinadores saber reconhecer o início de um broncospasmo e
incentivar a criança ao uso da medicação inalatória prescrita, e
suspender temporariamente os exercícios em curso, ou, em caso de
se manter a sintomatologia, a criança deve abandonar o ginásio ou
outro local de treino, mas sempre acompanhada. Estas crianças
necessitam de um aquecimento mais prolongado, que pode
necessitar ser feito in-door, se o desporto é de exterior, bem como
um arrefecimento mais gradual.
À asma associa-se frequentemente a rinite alérgica; é uma doença
muito prevalente na população, afectando entre 10 e 20% dos
indivíduos20, e que deve ser devidamente valorizada; estes doentes
tem muito frequentemente obstrução nasal, não efectuando o nariz a
necessária função de humidificação, aquecimento e filtração do ar
inspirado, pelo que a estes jovens desportistas deverá ser facilitada e
incentivada a hidratação durante o próprio treino, até com vista a
diminuir a probabilidade de aparecimento dos sintomas de asma
durante o exercício.
As tricloraminas, decorrente da reacção entre o cloro das piscinas
e os líquidos orgânicos, suor, saliva ou urina, são inaladas pelos
nadadores, podendo desencadear asma, e os nadadores de alta
19
Moreira, A.,Delgado L., Carlsen, K, Exercise-induced asthma: Why is it so frequent in Olympic Athletes?.
Expert Rev Resp Med 5(1), 2011
19
competição tem maior prevalência do diagnóstico de asma, de
sintomas de asma e de uso de medicação anti-asmática do que a
população em geral; vários trabalhos sugerem que a natação não
aumenta o risco de asma ou alergias21, sendo actualmente prematuro
tirar conclusões sobre associação de natação e asma, até devido à
selecção de asmáticos preferencialmente para essa modalidade22.
Sendo o karate um desporto de inclusão e de fácil acessibilidade
no país, convém que o treinador de karate esteja preparado e seja ele
mesmo motor de uma mudança de paradigma, no que respeita à sua
popularização como desporto de referência na população de
crianças com asma, por reunir em si quase todas as condições e
factores determinantes de um bom desporto nesta situação
específica.
(Nota: este artigo não foi escrito ao abrigo do novo acordo ortográfico.)
20
ARIA (Allergic Rhinitis and its Impact on Asthma Guidelines), 2010
Ribera, L. et all, Swimming pool attendance, Asthma, allergies and Lung Function in the Avon
Longitudinal Study of Parents and Child Cohort. AJRCCM, Mar 1, 2011, vol 183, nº5, 582-588
22
Goodman M, Hays S, Asthma and Swimming: a meta-analysis. J Astma, 2008;45:639-647.
21
20

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