HIPNOSE

Transcrição

HIPNOSE
Faculdade de Medicina da Universidade de Lisboa
Optativa: Ciências da Consciência
06/11/2009
Professor Doutor Mário Simões
HIPNOSE
Sara Martinho de Campos Serafino
Ciências da Consciência
“Hipnose”
INTRODUÇÃO
Contrariamente ao que se pensa, a Hipnose não é de todo uma qualquer
técnica esotérica ou transcendental, daquelas que, com frequência, se vê em
programas de televisão ou filmes e que nos levam a crer que Hipnotismo mais não é
que uma manobra de entretenimento fácil, uma vulgaridade útil apenas para as
“mentes mais fracas”. Não, a Hipnose Clínica é sim uma ferramenta utilizada na vida
real, como parte integrante de planos terapêuticos de múltiplas patologias, desde a
depressão aos mais diversos distúrbios gastro-intestinais.
De acordo com a American Society of Clinical Hypnosis (ASCH), Hipnose “is
a state of inner absorption, concentration and focused attention”. Tal definição
esclarece uma ideia quanto a mim importante: apesar de comummente se pensar na
Hipnose como um estado de inconsciência semelhante ao sono, na verdade ela
caracteriza-se por ser um estado vigil e consciente, de profunda concentração e
atenção introspectiva. O Hipnotismo surge, assim, como um estado de relaxamento
físico (“diminished peripheral awareness”) acompanhado ou induzido por um
reforçado estado de concentração mental (“abstraction”). Este conceito, por si só,
desmistifica um conjunto de ideias e mitos acerca da Hipnose, que tantas vezes afasta
as pessoas desta técnica e do seu enorme potencial terapêutico.
Um dos principais medos associados à hipnoterapia é precisamente a
possibilidade de perder o controlo, de se render à vontade do terapeuta e,
consequentemente, ser dominado. Pelo que ficou dito acima, compreende-se que tal
facto se torna muitíssimo pouco provável, se não mesmo impossível, uma vez que o
estado hipnótico é, em si mesmo, um estado vigil e consciente.
O meu principal objectivo para este trabalho é essencialmente conhecer um
pouco melhor esta técnica “mistério”, quais as suas principais aplicações terapêuticas
e sobretudo qual a sua utilidade. Tendo em conta que, até há pouco tempo, também
eu, por ignorância, incluía a Hipnose no âmbito do Esoterismo, procurarei reflectir e
esclarecer um conjunto de questões que sempre me coloquei.
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BREVE HISTÓRIA DA HIPNOSE
A abordagem de qualquer tema, a meu ver, não pode ou não deve começar
sem uma breve contextualização da questão. Compreender as raízes históricas do
Hipnotismo bem como a razão de ser do seu surgimento é uma das primeiras
interrogações que me coloco e que julgo ser de extrema importância, na medida em
que esclarece a que necessidade humana responde esta técnica.
Assim, das breves leituras que fiz, compreendi que a Hipnose tem vindo a ser
utilizada desde a Antiguidade como ferramenta terapêutica. Textos com mais de
4500 anos relatam como os sacerdotes da Mesopotâmia usavam o “Transe” – estado
alterado de consciência – para realizar diagnósticos e encontrar curas. Portanto, desde
os tempos mais remotos, o Hipnotismo, mesmo que envolvido num certo grau de
misticismo, tem vindo a ser utilizado num contexto terapêutico, “curativo” e porque
não, ouso arriscar, até médico.
Mas a palavra “Hipnose”, tal como a conhecemos, apenas
foi introduzida séculos mais tarde pelo cirurgião escocês, James
Braid (1795-1860), por volta de 1841. A palavra advém de
“Hypnos”, deus grego do sono, e foi escolhida pelo Dr. Braid
devido à semelhança entre o estado de transe hipnótico e o estado
de sono, ainda que ele próprio os considerasse estados distintos.
James Braid (1795-1860)
O interesse do Dr. Braid pelo Mesmerismo – teoria defendida por Franz
Mesmer (1734-1815), que acreditava na existência de uma força magnética ou
“fluido” no interior do Universo que influenciava a saúde do corpo humano –
começou pela observação pessoal das demonstrações do Mesmerista Charles
Lafontaine (1803-1892). Convencido de que tinha descoberto o mecanismo
psicofisiológico natural subjacente aos fenómenos de alteração de consciência que
observara, Braid escreve, ainda em 1841, um relatório intitulado “Practical Essay on
the Curative Agency of Neuro-Hypnotism”. Apesar de o relatório não ter sido
publicado, pensa-se que tenha sido este o primeiro trabalho a introduzir a palavra
“Hipnotismo”. Nos seus vários trabalhos e publicações, dos quais um dos mais
importantes é indubitavelmente Neurypnology (1843), Braid revê a teoria e a prática
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do Mesmerismo e desenvolve o seu próprio método de “Hipnotismo”, como um
alternativa mais racional e científica ao Mesmerismo.
Deste modo, Braid define “Hipnose” como “a peculiar condition of the
nervous system, induced by a fixed and abstracted attention of the mental and visual
eye, on one object, not of an exciting nature”. Essencialmente, Braid estipula que a
origem e a essência da condição hipnótica resulta da indução de uma abstracção e
concentração focalizada numa única ideia (monoideismo), de tal forma que, os
poderes da nossa mente são quase totalmente canalizados apenas para aquela ideia
única e dominante, tornando o indivíduo “inconsciente” ou “indiferentemente
consciente” a todas as restantes ideias, pensamentos ou impressões.
Não se poderia falar da História da Hipnose sem referir
brevemente um dos rostos mais emblemáticos da História:
Sigmund Freud (1856-1939), neurologista austríaco, pai da
Psicanálise. Inicialmente, Freud foi defensor entusiasta da
hipnoterapia, propondo como métodos terapêuticos a regressão
hipnótica e a “ab reaction” (catharsis). Contudo, gradualmente,
Freud foi abandonando o Hipnotismo em detrimento da
Sigmund Freud (1856-1939)
Psicanálise.
Décadas mais tarde, surge um dos hipnoterapeutas mais influentes do pósguerra, se não mesmo o mais importante: Milton Erickson. Erikson propõe uma nova
metodologia de sugestão indirecta, por oposição à indução hipnótica formal, em que o
hipnoterapeuta é chamado a recorrer mais a metáforas e analogias no sentido de
aceder de forma mais eficiente ao subconsciente do indivíduo.
CONCEITOS-CHAVE EM HIPNOSE
A Hipnose Clínica baseia-se essencialmente em três métodos ou pilares:
Em primeiro lugar, a Hipnose é geralmente precedida por uma técnica de
indução hipnótica. Tradicionalmente, considerava-se que esta técnica tinha como
objectivo colocar o indivíduo num estado de transe hipnótico. Actualmente,
considera-se que a indução permite ao indivíduo focar a sua atenção e sobretudo
concentrar-se. Existem uma enorme variedade de técnicas de indução, de entre as
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quais se destaca a clássica “fixação dos olhos” (eye-fixation) de Braid, também
conhecida por Braidismo.
Em segundo lugar, a utilização da sugestão como técnica fundamental da
Hipnose; o encorajamento do uso da imaginação, sugerindo a construção e recriação
de imagens mentais, é um instrumento poderosíssimo, particularmente em estados de
elevada concentração, como é o caso do estado hipnótico. As imagens ajudam-nos
muitas vezes a reconstituir factos, eventos e ideias. Por si só, a sugestão conduz e guia
o indivíduo na sua procura por si mesmo, na sua introspecção.
Existem diferentes formas de sugestão: verbal e não-verbal. No hipnotismo clássico,
de que é exemplo a concepção de Bernheim, que dominou durante o século XX, era
dada primazia à sugestão verbal.
Actualmente, o Hipnotismo Contemporâneo recorre a um espectro mais
alargado de técnicas que incluem: sugestões verbais directas, sugestões verbais
indirectas (Hipnose Ericksiana), como pedidos, insinuações, metáforas e outros
recursos de estilo, e sugestões não verbais, como imagens mentais, tom de voz e
manipulação física.
Em terceiro lugar, a Hipnose pode ser usada para a exploração do
inconsciente. Esta exploração permite compreender melhor e identificar as possíveis
motivações, experiências ou episódios passados que poderão estar subjacentes a
determinados problemas. O sucesso do Hipnotismo reside em muito na capacidade e
disponibilidade do indivíduo para ultrapassar a observação crítica e a interferência
conscientes, no sentido de aceder ao seu inconsciente.
APLICAÇÕES DA HIPNOSE EM MEDICINA
Subsiste com frequência a ideia de que a Hipnose é apenas útil na resolução de
problemas do foro psíquico, como depressões, traumas, fobias, ansiedade, entre
outros. Eu própria duvidava e, se me é possível, ainda duvido em certas situações, da
utilidade do Hipnotismo como resposta a certas patologias ou condições. No entanto,
após alguma pesquisa, reconheço à Hipnose um espectro de acção, se lhe podemos
chamar assim, mais amplo do que imaginava.
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De entre as várias aplicações curiosas da Hipnose em Medicina, destaco as
seguintes, por me parecerem as mais interessantes:
• Distúrbios gastro-intestinais (úlceras, colite, Doença de Crohn)
• Distúrbios dermatológicos (eczema, herpes, psoríase)
• Cirurgia/anestesiologia – em circunstâncias específicas a hipnose pode
eventualmente ser utilizada como técnica anestésica, como por exemplo na
remoção da vesícula biliar, cesariana, histerctomia ou amputações. As
circunstâncias específicas que podem justificar o recurso à hipnose como
técnica anestésica incluem: situações em que a anestesia química é contraindicada ou situações em que o paciente deve ser capaz de responder a
directivas do cirurgião durante a intervenção cirúrgica.
• Dor aguda e crónica (enxaquecas, artrite, reumatismo, dor associada ao
cancro)
• Queimaduras – a hipnose não é apenas eficaz no controlo da dor associada à
queimadura mas sabe-se que, se a anestesia hipnótica induzir também
sensações de frescura e regeneração nas primeiras horas após a ocorrência da
queimadura, é possível verificar-se uma redução da inflamação. Nalguns
casos, acredita-se que é possível evitar a progressão de uma queimadura de 2º
grau para 3º grau.
• Náuseas e vómitos
• Parto – algumas mulheres são capazes de usar a Hipnose como único
analgésico durante o trabalho de parto.
• Hemofilia
• Alergias
• Asma
• Hipertensão
• Doença de Raynaud
• Cessação tabágica
• Performance desportiva
• Disfunções sexuais
• Distúrbios do sono
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É importante salientar que a Hipnose é como qualquer outra modalidade
terapêutica: traz enormes benefícios para certos pacientes com determinadas
patologias mas pode falhar como qualquer outra técnica. De uma maneira geral, a
Hipnose Clínica não é um tratamento per se mas é utilizada no sentido de facilitar e
potenciar outros tipos de terapias e tratamentos. Daí que seja fundamental
compreender que a Hipnose não tem a pretensão de resolver todos os problemas. Na
grande maioria das vezes, e sobretudo quando se fala em perturbações do foro
psíquico, é absolutamente essencial que a pessoa actue, aja de forma consciente, no
sentido de introduzir na sua vida as mudanças de que tanto precisa. A Hipnose não é
uma técnica milagrosa que por acto de magia faz desaparecer tudo aquilo que nos
atormenta. É antes uma enorme ajuda que facilita a descoberta de nós mesmos e que
nos pode eventualmente apontar de forma mais clara aquilo que precisamos de mudar.
No entanto, a mudança em si depende em muito da nossa vontade, da nossa
disponibilidade, da nossa actuação no dia-a-dia.
Outro conceito importante que influencia em muito a eficácia do hipnotismo é
precisamente o facto de todos nós vivermos de forma substancialmente diferente o
chamado de forma errónea “transe hipnótico”. Podemos experienciar o “transe” como
um sentimento profundo e restaurador, como uma sensação de leveza e luz; podemos
ver imagens vívidas ou não; podemos lembrar-nos de tudo ou não; podemos ouvir
claramente todas as palavras do terapeuta ou permitir à nossa mente divagar; no final,
cada experiência hipnótica é única e irrepetível. Certo é que algumas pessoas parecem
ter uma maior tendência inata para mais facilmente vivenciar a Hipnose, capacidade
essa que pode tornar-se uma enorme vantagem relativamente à eficácia da técnica.
CONCLUSÃO
A aceitação da hipnose enquanto técnica válida no âmbito da Medicina Clínica
tem vindo a ser controversa. Apesar de ser utilizada há já alguns anos, com provas
evidentes da sua eficácia, é inevitável que ainda assim continue a ser olhada com
alguma desconfiança e insegurança. Pensar que uma grande fatia daquilo que é o
fenómeno “doença” pode ter subjacentes causas emocionais e psicológicas profundas,
subconscientes, que quando resolvidas podem potenciar o tratamento, ou pelo
contrário pensar que a mente tem a extraordinária capacidade de conter, controlar e
atenuar processos fisiológicos tão importantes como a dor, faz-me crer que a Hipnose
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Clínica deve ser devidamente explorada, enquanto complemento terapêutico válido e
mesmo científico. O reconhecimento de que, quando profissionalmente e eticamente
aplicada, a Hipnose se revela uma ferramenta utilíssima na prática clínica deve ser
consolidado no seio da comunidade médica, numa perspectiva vanguardista de que,
cada vez mais, o tratamento não se esgota nas inúmeras alternativas farmacológicas e
cirúrgicas mas que pode e deve ser complementado com alternativas sérias que
promovam a motivação, o optimismo, o auto-conhecimento e, em última instância, o
auto-controlo.
O esclarecimento de alguns aspectos que me eram completamente
desconhecidos a propósito deste tema foi possível, quer durante as aulas, quer durante
a realização deste trabalho. Ainda assim, muitas questões continuam por responder,
sendo que a principal se prende com aquilo que julgo ser o mais natural: a curiosidade
da vivência em si da hipnose. Se cada experiência hipnótica é única e irrepetível para
cada pessoa, como seria a minha? É uma questão a que conto responder, se não em
breve, em algum momento da minha vida.
Sara Serafino
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