- Grupo de Trabalho

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SABERES HISTÓRICOS PRÉVIOS CONSTRUÍDOS NA
ARTICULAÇÃO COM A MÍDIA: UMA EXPERIÊNCIA DE
ESTÁGIO-PESQUISA NO ENSINO MÉDIO1
HISTORICAL KNOWLEDGE BUILT IN THE ARTICULATION
WITH THE MEDIA: AN INTERNSHIP EXPERIENCE IN THE
SECONDARY EDUCATION
Márcia Elisa Teté Ramos (UEL)
Resumo: Partimos-se da noção de Jörn Rüsen de que a construção do pensamento
histórico resulta de múltiplas (re)apropriações e/ou interpretações informais e
interacionais ocorrentes nos variados espaços de circulação de saberes e não
exclusivamente nos espaços escolares. Propusemos que alunos do curso de história
relacionassem a prática de estágio com a prática de pesquisa, elaborando um
questionário de conhecimento prévio, para apreender sobre se e como as mensagens
veiculadas pela mídia interferem da formulação do pensamento histórico dos jovens
alunos do Ensino Médio (14-17 anos). Buscávamos elementos denunciativos das
interferências midiáticas no pensamento histórico dos alunos do Ensino Médio, para
refletir sobre a natureza do conhecimento histórico e/ou a cultura histórica dos jovens.
Tal pesquisa corria em dupla direção: também refletimos sobre a questão de se ter um
saber prévio em relação aos alunos do Ensino Médio, nos servindo de referencial de
pesquisa-estágio, obtido pelas mensagens advindas da mídia ou pela teoria crítica em
relação às influências da mídia. Concluiu-se que tendemos a tomar as mensagens
midiáticas para formar pré-noções sobre quem são os alunos do Ensino Médio (perfil),
sobre o que pensam (em relação à história), sobre o que devem aprender (saberes
históricos ensináveis), enquanto que a formação acadêmica favorece a pré-suposição da
“manipulação negativa” exercida pela mídia sobre adolescentes. Assim, ao buscarmos o
pensamento histórico dos alunos do Ensino Médio em suas articulações com a mídia,
terminamos por nos reconhecer como pesquisadores, ou seja, como sujeitos que não
apenas observam ou analisam um “fenômeno”, mas que também o constrói.
Palavras-chave: ensino de história; cultura midiática; juventude
ABSTRACT: We start from the notion of Jörn Rüsen that the construction of historical
thinking is the result of multiple (re) appropriations and / or interpretations and informal
interaction occurring in various areas of circulation of knowledge and not just in school
spaces. We have proposed that students of history related to the practice of probation
with the practice of research, issuing a questionnaire to prior knowledge to understand
whether and how the messages in the media affect the formulation of historical thought
of the young Secondary Education students (14 -17 years). We searched for evidence of
1
Esta pesquisa refere-se ao Projeto de Pesquisa em Ensino intitulado “Saberes históricos e mídia:
articulações possíveis produzidas por alunos do Ensino Médio”.
alleged interference in media historical thinking of Secondary Education students to
reflect on the nature of historical knowledge and / or historic culture of youth. Such
research ran in two directions: if we ourselves had no prior knowledge Secondary
Education students, stemmed from the media or critical theories in relation to media.
We concluded that we tend to take the media messages to form pre-notions about who
are the Secondary Education students (profile) on what they think (about history), about
what they should learn (teachable historical knowledge), while that scholarship favors
the pre-supposition of the "negative manipulation" exercised by the media on
adolescents. Thus, when we seek the historical thought of Secondary Education students
in their links with the media, can not only observe "phenomenon" but we have
introduced as part of the same.
Keywords: teaching of history, culture media, youth
Inicialmente, interessou-nos pesquisar a cultura histórica de determinado grupo
de sujeitos, jovens considerados “adolescentes” 2, atuantes em determinado ambiente, no
caso, o escolar. Partimos do pressuposto de que a formação e/ou aprendizagem histórica
não circula, não é elaborada, não é transmitida tão somente na escola, pois diferentes
tipos de saberes históricos são continuamente engendrados e repassados na
multiplicidade de relações, espaços e tempos (RÜSEN, 2001, p. 91).
Segundo Jörn Rüsen, a “consciência histórica” ou a “cultura histórica” – que
aqui também denomino de “pensamento histórico” – diz respeito a todas as elaborações
da história com ou sem forma científica, presente em qualquer sujeito ou grupo, e não se
resume em ter noção sobre o que aconteceu no passado, mas sim, saber situar-se na
temporalidade que compreende tanto o passado, como o presente e o futuro, de modo a
orientar-se no tempo construindo e reconstruindo identidade(s) (Ibid., p. 87). Nesta
perspectiva, não existiria “consciência histórica” certa ou errada, mas níveis
diferenciados, não hierárquicos, de entendimento/pensamento histórico (RÜSEN, 2007,
p. 44).
O saber histórico dos historiadores não é visto por Rüsen, como o único
“válido” porque científico, e que por isso mesmo, deveria ser reproduzido ou
simplificado em sala de aula, o que ele critica como sendo “didática da cópia” (Ibid., p.
89), o que já era questionado por outros pesquisadores, em especial por CHERVEL
(1990), como a “transposição didática” do saber acadêmico para o espaço escolar.
Pensar que a ciência de referência é transposta para o universo escolar através de uma
2
Uso aspas nas palavras derivadas de “adolescente” no decorrer do texto, pois o próprio termo vem se
consolidando ao longo do tempo – passa a ser empregado no Brasil a partir de aproximadamente 1950 – ,
conformando-se a uma significação pejorativa em relação a este sujeito.
forma “vulgarizada”, reduziria a questão da formação do professor de história “na
profissionalização pedagógica como a mera obtenção de competência técnica em sala de
aula, com o que os termos ‘aplicação’ e ‘mediação’ fazem sentido” (Ibid., p. 90).
O objetivo primeiro era pesquisar o protoconhecimento e/ou as protonarrativas3
dos jovens estudantes do Ensino Médio em relação à história, para que pudéssemos
reorganizar prospectivamente os saberes teóricos e práticos do processo de estágio, no
intuito de distanciamento da “didática da cópia” da qual nos fala Rüsen. Assim, em
conjunto com alunos-estagiários por mim orientados e supervisionados, realizamos um
instrumento investigativo para apreender as protonarrativas relacionadas ao pensamento
histórico dos alunos do Ensino Médio (do período noturno) de uma escola pública4,
nosso campo de desenvolvimento de pesquisa/estágio/regência.
No entanto, o presente texto resulta de uma reflexão sobre as protonarrativas
dos estagiários envolvidos na pesquisa, na medida em que no processo de pesquisaestágio, evidenciou-se um movimento tensional recursivo: os futuros professores de
história acreditavam que encontrariam protonarrativas dos alunos do Ensino Médio
permeadas por representações provindas das instâncias midiáticas, mas se aperceberam
também como portadores de representações articuladas com tais instâncias, quando
inferiam sobre o que faziam, quem eram, o que pensavam os jovens secundaristas5.
***
Entendo o estágio como processo em que a teoria e a prática devam ser
articuladas, e que não se realiza apenas a “aplicação de saberes produzidos por outros”,
pois também é “um espaço de produção, de transformação e de mobilização de
saberes...” (TARDIF, 2002, p. 121). Para Maurice Tardif, o saber docente se estrutura
de uma forma plural e não pode ser enquadrado apenas nos conteúdos específicos, ou
nas técnicas separadas dos objetivos político-pedagógicos, ou nos conhecimentos da
prática, ou ainda na crítica sociológica da escola. Existem os saberes da formação
profissional, transmitidos pelas instituições formadoras, que compreendem as ciências
3
As protonarrativas, ou protoconhecimento, são conhecimentos ou saberes prévios ou tácitos. “...do latim
Tacitus e quer dizer: sem ser expresso de um modo formal; que se subentende”. Pensando tal palavra
relacionada ao domínio da educação histórica, seria “o conhecimento que os alunos adquirem antes ou até
mesmo depois do contacto com o ensino formal. É deste modo um conhecimento muito pessoal
incorporado na experiência dos alunos, envolvendo factos, crenças, emoções, perspectivas, intuições e até
habilidades” (BARBOSA, 2006, p. 10).
4
Participaram da pesquisa (elaboração do instrumento de investigação do protoconhecimento, tabulação e
reflexões conclusivas) 14 alunos-estagiários. Foram aplicados questionários em seis turmas do Ensino
Médio (duas turmas do 1º ano, duas turmas do 2º ano e duas turmas do 3º ano), somando 150 alunos.
5
Para facilitar a exposição, também utilizo o termo “secundarista(s)” para designar alunos do Ensino
Médio, embora este não seja comum no contexto brasileiro.
da educação e saberes pedagógicos; os saberes curriculares que complementam os
saberes da formação profissional e apresenta conteúdos selecionados da cultura geral; os
saberes experienciais que o professor adquire em seu trabalho cotidiano em seu meio de
ação e, finalmente, os saberes disciplinares, que correspondem aos diversos campos do
conhecimento como, por exemplo, história, matemática, ciências, etc. (TARDIF, 2002).
Enfim, distanciar-se da “didática da cópia” e/ ou da “transposição didática” significa
empreender uma “mobilização de saberes”. No caso desta pesquisa-estágio, foi levando
em conta, também o “entrecruzamento dos saberes” – ou das ideias, ou das
protonarrativas, ou do protoconhecimento – dos alunos estagiários e dos alunos do
Ensino Médio.
Para a pesquisa-estágio, seguimos um trabalho que se aproxima do tipo
etnográfico, – seguindo as orientações de Maria Eliza de André (1995) – qualificado
como interpretativo não limitado ao empirismo, em que o aluno-estagiário se
comprometeu a apreender as significações elaboradas pelos alunos na aula de história
(discursos simbólicos e/ou identitários, hábitos, pensamento histórico). Esta fase mais
descritiva do que explicativa, compreendeu anotações sistemáticas e atenção ao que se
passava, considerando atores (alunos), lugar (sala de aula) e atos (práticas relativas ao
livro didático, às metodologias e recursos didáticos, participação na aula, reações, etc.).
Esta primeira fase de observação de campo serviria para obtenção de elementos que
subsidiariam a elaboração do instrumento de pesquisa do protoconhecimento dos alunos
do Ensino Médio em forma de questionário.
Assim, a realização da pesquisa se deu no contato direto dos pesquisadores
(estagiários) com o objeto/sujeito de pesquisa (alunos do Ensino Médio noturno), e,
com a utilização de técnicas emprestadas da pesquisa etnográfica, no sentido de
documentar ações, interações e representações que permeavam o cotidiano da prática
escolar (ANDRÉ, 1995, p.41), o que significou articular o empirismo da coleta de dados
com a participação efetiva no campo de investigação.
Quanto ao instrumento de pesquisa de protoconhecimento, foram elaboradas
questões de base sócio-culturais (relativas à idade, série, sexo, estado civil, número de
filhos, renda familiar, trabalho), questões relacionadas ao universo cultural, como por
exemplo, se tem acesso à Internet, o que costuma acessar, quantas horas semanais em
média usa a Internet, quais as músicas/filmes/livros/programas de TV prediletos, e
ainda, questões que diziam respeito mais especificamente à história e ao seu ensino.
Investigamos sobre os conceitos de segunda ordem relacionados à história6, isto é, sobre
noção de verdade, temporalidade, evidência, etc. Além destas questões referentes à
acepção que se tem sobre a história, também indagamos sobre a perspectiva que se tem
sobre o ensino de história, como por exemplo, sobre metodologias, relacionamento com
o professor, livro didático, sugestões, etc.
Perspectivava-se que estes alunos, devido a sua faixa etária (14-17 anos),
construiriam seu pensamento histórico a partir de elementos provenientes dos canais
midiáticos, nos passos de Rüsen que ressalta a importância da mídia em seu aspecto
pedagógico, já que o sujeito “aprende”, ou melhor, pode obter um novo saber através
dela (RÜSEN, 2001, p. 105). Desta forma, a hipótese era de que o protoconhecimento
dos jovens estudantes secundaristas era elaborado na justaposição de mensagens
midiáticas, pois na cultura atual os canais midiáticos tornaram-se o principal ponto de
distribuição e disseminação simbólica.
Embora os resultados desta pesquisa tenham sido interessantes e fundamentais
para a articulação entre teoria e prática na realização do estágio – que serão relatados
com mais profundidade em outra ocasião –, queremos aqui destacar como ocorreu o
transcurso de pesquisa, ou seja, o processo de observação de campo, a elaboração do
questionário (instrumento de conhecimento do protoconhecimento), enfim, como os
pesquisadores (os estagiários, estudantes do 4º ano do curso de História, na faixa dos
21-26 anos) se posicionaram e/ou interagiram diante do “objeto” de pesquisa – os
secundaristas – e como foram compelidos a retomar seus embasamentos teóricos.
Há que enfatizar que na fase de observação, o próprio observador faz parte
integrante da situação observada. No caso de nossa pesquisa-estágio, o estagiário
observa e interage no contexto da sala de aula, mais especificamente, assiste aulas de
história, ministradas pela professora-titular em uma turma de Ensino Médio. O
estagiário-pesquisador, não tem como se desvencilhar do contexto que observa e
interage, tornando-se assim, tanto objeto como sujeito da pesquisa: “passa-se,
paulatinamente, de um saber sobre a alteridade a um saber sobre a interioridade, sobre a
subjetividade, ou ainda, sobre a relação entre o sujeito e seu objeto” (JACCOUD;
MAYER, 2008, p. 261). Portanto, o estagiário-pesquisador termina por empreender um
“retorno sobre si”, sobre seu próprio conhecimento prévio em relação tanto ao universo
6
Os conceitos de segunda ordem são constitutivos da cognição histórica, dizem respeito aos fundamentos
teóricos e metodológicos da história, isto é, à natureza do conhecimento histórico, entre outros,
explicação histórica, fontes e evidências históricas, consciência histórica, inferência e imaginação
histórica, noções de tempo histórico, interpretação histórica, narrativa histórica (LEE, 2001).
do jovem estudante secundarista, como à elaboração do pensamento histórico que este
jovem faz através das mídias.
Relacionando teoria e prática no processo de estágio, foi possível partir do
conceito de “cultura midiática”, na contraposição à ideia de indivíduo alienado,
facilmente manipulável pelas mídias. Em outras palavras: as mensagens midiáticas não
seriam impostas ao sujeito empobrecendo-lhe a razão, como acreditam algumas
interpretações ligadas à Escola de Frankfurt (em especial, em Adorno e Horkheimer)7.
Entretanto, recusar a ideia de que as mídias têm a capacidade de impor seus
valores/interesses, a nosso ver, não justificaria o inverso, ou seja, o de supervalorizar a
atomização cultural do sujeito. Os canais midiáticos preferem divulgar determinados
sentidos em detrimento de outros, e, por sua vez, os sujeitos ressignificam as mensagens
midiáticas de forma não passiva, o que não quer dizer que estas mensagens não
interfiram, mesmo que parcialmente, nos valores, comportamentos, projetos,
experiências dos sujeitos (RAMOS, 2009, p. 26). Foi possível verificar que as
mensagens midiáticas são capazes – não de definir ou condicionar –, mas de influenciar
os saberes históricos (do aluno do Ensino Médio) e o modo que o “aluno adolescente” é
percebido (pelos universitários).
Perguntou-se aos alunos secundaristas através de questionário, bem como por
meio do diálogo: se assistiam TV; quais programas televisivos prediletos; se lembravam
de alguns temas históricos vistos na televisão; se lembravam, como determinado tema
histórico era tratado pelos programas televisivos8. A ideia era de que tais sujeitos
disponibilizavam muito tempo para assistir TV. No entanto, disseram que nos finais de
semana, ou “de madrugada”, compensavam o “tempo perdido na escola e no trabalho”,
acessando a Internet. Esta, considerada muito mais interessante, pois poderiam “baixar
músicas e filmes”, “bater papo no MSN”9, “assistir vídeos”, “ouvir músicas”, “jogar”,
“ver sites sobre fofoca”, “fazer pesquisa escolar” (inclusive, sobre história). Ainda:
7
Pelo consumo estético massificado, segundo estes autores, as pessoas tenderiam a aderir acriticamente a
valores que são impostos de forma repetida e sedutora, incapacitando-se para superar a alienação, desta
forma contribuindo para reproduzir e perpetuar a ideologia dominante, e por consequência, a própria
estrutura social (ADORNO; HORKHEIMER, 1985). Para tais autores, a cultura de massa seria na
verdade uma cultura imposta às massas (Ibid., p. 288) e o efeito da indústria cultural seria o de um
antiesclarecimento, de um “engodo das massas” que “impede a formação de indivíduos autônomos,
independentes, capazes de julgar e de decidir conscientemente” (Ibid., p. 295).
8
Também elaboramos questões referentes ao tema e/ou conteúdo histórico dos quais os alunos-estagiários
iriam ministrar em suas aulas-regência. Assim sendo, nos 1º anos foi questionado o que teriam visto sobre
Grécia e Roma Antigas na TV, nos 2º anos sobre Regime Militar no Brasil (1964-1985) e nos 3º anos
sobre o Renascimento.
9
MSN é um portal de conteúdo da Microsoft com notícias, fotos e vídeos, onde é possível estabelecer
conversas on line em tempo real.
poderiam utilizar sites relacionados às redes sociais elaborando álbuns de fotos, além de
conversarem por tais sites e participarem de comunidades virtuais. Todas essas
atividades ciberespaciais, disseram realizar “ao mesmo tempo”. Apesar de ser uma
escola pública central, caracterizada por ser frequentada por alunos de baixo poder
aquisitivo10, todos tinham acesso à Internet, seja em casa, ou em lan houses. Lembraram
que obter um computador tornara-se algo comum devido à facilidade de parcelamento
de compra oferecido pelas lojas e que a hora/Internet nas lan houses era de custo muito
baixo em seus respectivos bairros.
Os alunos do Ensino Médio tinham um referencial diferente em relação a filmes
e livros do que os professores de história em formação. Para justificar essa afirmação
nos remeto-me a um exemplo: para falar do Renascimento, a aluna-estagiária indagou
se a turma de 3º ano havia assistido ao filme “O Código da Vinci”, o que todos
responderam que sim, e ainda, dos 20 alunos presentes, 05 leram o livro11. Os alunos
ainda fizeram menção espontânea a outros filmes relacionados ao período como: “Joana
D’Arc”12, “O Nome da Rosa”13, “Lutero”14 e “O Perfume15”. Os alunos disseram
conhecer tais filmes por sinopses, que podem ser lidas em variados sites, ou por trechos
visualizados no YoutTube16. Outro aspecto interessante, foi ver que os alunos do Ensino
Médio faziam várias interferências simultâneas na aula-regência para citar filmes,
desenhos (entre outros, “Tartarugas Ninjas”17) e jogos, bem como para fazer
comentários irônicos, o que a estagiária interpretou como “indisciplina”. A estagiária
disse que os filmes “Lutero” e “O Perfume” não se referiam ao período, e
10
A escola é localizada na cidade de Londrina (500 mil habitantes), Estado do Paraná. Apesar de ser
central, é frequentada por alunos e alunas moradores de bairros periféricos, o que demanda utilizar
transporte público. A escola é por estes frequentada por estar próxima aos seus empregos, e não às suas
moradias
11
The Da Vinci Code (O Código Da Vinci nas edições brasileira e portuguesa) é um romance policial do
escritor norte-americano Dan Brown, publicado em 2003 pela editora Random House nos EUA, pela
Editora Sextante no Brasil e pela Editora Bertrand em Portugal. É um best-seller mundial, décimo
primeiro livro mais vendido no mundo com mais de 80 milhões de cópias. Filme: direção de Ron Howard
(2006)
12
Joana D'Arc, direção de Luc Besson (1999)
13
O Nome da Rosa, direção de Jean Jacques Annaud (1986)
14
Luther direção de Eric Till (2003).
15
O Perfume: romance de Patrick Süskind, publicado em 1985, adaptado para o cinema. Perfume. The
Story of a Murderer sob direção de Tom Tykwer (2006).
16
YouTube: site de vídeos. http://www.youtube.com/?gl=BR&hl=pt
17
Os alunos fizeram referencia às Tartarugas Ninjas porque as quatro tartarugas foram batizadas em
homenagem a artistas renascentistas: Leonardo, Michelangelo, Donatello e Rafael. As Tartarugas Ninjas
foram criadas numa história em quadrinhos da Mirage Comics em 1984, na parceria de Kevin Eastman e
Peter Laird. Um desenho animado iniciou-se em 1987 e durou 9 anos, até 1996. Depois foram adaptadas
em uma série com atores reais, intitulada Ninja Turtles: The Next Mutation (As Tartarugas Ninja: a
Próxima Mutação). Foram produzidos quatro filmes, videogames da Konami e uma nova animação, que
começou a ser exibida em 2003.
complementou dizendo que o filme “Lutero” dizia respeito a outro tema, a Reforma
Protestante. Houve também várias referências dos alunos do Ensino Médio,
principalmente dos rapazes18, quanto a jogos eletrônicos que diziam respeito ao período
da Idade Média19.
Significativo foi o fato da estagiária supramencionada não ter associado o tema
do Renascimento com o tema da Reforma religiosa apresentado no filme “Lutero” ou
com o fim das corporações de trabalho apresentado no filme “O Perfume”, denunciando
a dificuldade de articular temas e temporalidades em sua prática na sala de aula.
Quando pensado para a escola, para a prática, em geral, os estagiários tomam
determinado tema histórico conforme uma cronologia linear presente no livro didático
utilizado ou em acordo com sua “memória escolar”
As rotinas escolares, os repertórios docentes, o modo de organizar as aulas, utilizar
materiais didáticos, selecionar conteúdos, os tipos de provas e exercício, o modo de
permitir ou inibir as vozes dos estudantes, na dinâmica do trabalho pedagógico, a
forma de correção de trabalhos dos alunos, todos esses elementos se constituem e se
firmam como bases de cultura escolar, porque tornam objeto de mecanismos múltiplos
de rememoração, individual e coletiva, com base em lugares de memória dentro e fora
dos espaços escolares (MIRANDA, 2008, p. 270-271).
A memória escolar do sujeito, bem como as representações compartilhadas pelo
coletivo sobre “como deve ser, o que e como deve ensinar o professor de História” são
também importantes na configuração dos saberes docentes. São “saberes” construídos
historicamente, ou seja, são transitórios, mas ao mesmo tempo, são pautados na tradição
e que “conformam valores tacitamente aceitos e facilmente identificáveis no discurso e
na ação” do professor (de história) (Ibid.), e configuram-se parte dos saberes
experienciais. Existe um esforço em superar a ideia de que o conhecimento acadêmico
deve ser reproduzido de forma simplificada/simplista para o contexto escolar, mas
18
Em geral, as turmas de Ensino Médio do período noturno têm mais alunos homens em razão de que
estes trabalham no período matutino e vespertino, enquanto que as alunas têm empregos de meio período.
Além do que, ir para a escola à noite via transporte público é considerado perigoso para as mulheres.
19
Os alunos disseram jogar muito RuneScape, é um MMORPG (Massively Multiplayer Online RolePlaying Game), ou seja, permite a milhares de jogadores criarem personagens em um mundo virtual
dinâmico em que podem interagir/conversar. Não é preciso executar o download e instalação de qualquer
software no computador do jogador, baseado em um browser. Pode ser gratuito, sendo que, quando pago
fornece acesso a mais recursos. Produzido pela empresa britânica Jagex Ltda., foi criado oficialmente em
1998, por Andrew Gower. O jogo possui mais de 138.000.000 (cento e trinta e oito milhões) de contas
criadas acima do nível 25, e foi reconhecido pelo Guinness como o MMORPG mais jogado. Simula a
Idade Média através de classes sociais, feudos, guildas, alimentação, plantações, arquitetura, povos
“bárbaros”, etc. Porém, mescla conteúdo ficcional, com criaturas como dragões, magos, elfos, gnomos,
etc. O objetivo é combater, conquistar e acumular riquezas, progredindo de nível.
também é comum, como no exemplo citado, desassociar o conhecimento adquirido na
formação acadêmica (o que engloba a crítica quanto à noção de temporalidade
linear/sequencial) daquele ensinável na escola.
As representações que podem ser resumidas em “eles [os “adolescentes”] não
sabem nada de história” ou “não se interessam pela história” não encontraram respaldo
em sala de aula. Os próprios questionários aplicados traziam a resposta do aluno de que
não gostavam, não se interessavam, não viam “utilidade” em se aprender história. No
entanto, os alunos do 3º ano do exemplo não apenas demonstraram ter saberes históricos
prévios (protoconhecimento), mas se mostraram interessados pela história – mas não a
escolar –, realizando rápidas associações temáticas e ainda, indicando que sabem buscar
o conhecimento histórico em outros âmbitos. Pelo que os alunos disseram em sala de
aula, pode-se inferir que o protoconhecimento histórico é provavelmente formado por
intermédio também do ensino de história – já que o tema foi estudado no Ensino
Fundamental –, mas que filmes, jogos eletrônicos e revistas de consumo20 são
mediadores significativos nesta formação.
Em nenhum momento podemos depreciar as reações e as noções da estagiária
que aqui nos serviu de exemplo. Importa-nos pontuar que a quantidade de informações
e/ou referenciais sobre o tema, bem como as rápidas associações e a concomitância de
manifestações dos alunos do Ensino Médio, expressam maior entrosamento com as
experiências, sensibilidades, racionalidades e condutas que caracterizam a cultura
midiática. Para Martín-Barbero, o suporte midiático da informação e da comunicação
desenhou um modo de experimentar, perceber, sentir e conhecer o mundo que
impregnou a cultura, modificando tanto o estatuto cognitivo quanto institucional das
condições do saber e as figuras da razão. A cultura midiática significa um novo rol de
experiências que tanto propulsionam como são advindas das diferentes formas de dar
significado a si mesmo, ao “Outro”, ao tempo, ao espaço e à realidade (MARTÍNBARBERO, 1999).
As duas “gerações” têm acesso à Internet, no entanto os estudantes
universitários, em sua fase de “adolescência”, tinham o acesso e o hábito de assistir
televisão diariamente, e por diversas horas, o que não acontece hoje com os alunos do
Ensino Médio. Para MARTÍN-BARBERO, são as narrativas televisivas, as quais tanto
20
São várias as revistas de consumo relacionadas à história: História: (Revista de História da Biblioteca
Nacional); Aventuras na História (Editora Abril); História Viva (Duetto); leituras da História (Escala),
etc.
realizariam um como seriam realizadas por um novo paradigma, que desacredita as
metanarrativas: “o fluxo televisivo constitui a metáfora mais real do fim dos grandes
relatos”, principalmente porque transforma “o efêmero em chave de produção e em
proposta de gozo estético” (2001, p. 36). Quando o sujeito senta-se à frente da televisão,
embora visualize imagens que passam velozmente exigindo associações rápidas de
ideias, de significação, é a Internet que pode expressar uma nova episteme, e o
hipertexto eletrônico poderia ser admitido como “metáfora válida” da forma de
conhecer a realidade do momento histórico atual (LÉVY, 2006, p. 25). A realidade
passa a ser interpretada como relativa, transitória, volátil, fluida e não existiriam
verdades ou qualquer referente fixo, mas apenas “ajustes circunstanciais” do
conhecimento em relação à realidade do momento.
A escrita hipermidiática, para Roger Chartier constitui uma alteração importante
na história dos textos e/ou das mídias, isto é, das estruturas e formas do suporte, da
modalidade técnica da produção do escrito, das percepções e dos hábitos de leitura
(CHARTIER, 2002, p. 24 e p. 113). O texto eletrônico por ser maleável, móvel, aberto,
desterritorializado e incomensurável, faz com que os leitores enfrentem “o
desaparecimento dos critérios imediatos, visíveis e materiais que lhes permitam
distinguir, classificar e hierarquizar os discursos” (Ibid., p. 23). Com a Internet, leitor e
autor confundem-se, bem como se confundem formas, processos e funções da oralidade,
da leitura e da escrita, e mais do que isso, antes os sons, imagens e palavras eram
propensos a coexistir, agora “passam a se co-engendrar em estruturas fluidas,
cartografias líquidas para a navegação”, em que “os usuários aprendem a interagir, com
ações participativas, como num jogo” (SANTAELLA, 2007, p. 294).
Segundo Rüsen, as pessoas de determinada comunidade ou grupo podem
partilhar uma cultura histórica apesar das diferenças de gerações, todavia, uma cultura
histórica possui “limites fluidos e membros móveis”, o que permite modos específicos
de sentimento de pertencimento (RÜSEN, 2009, p. 166). O que notamos foi que, os
alunos do Ensino Médio (14-17 anos, nascidos em meados da década de 90 do século
passado) e os alunos-estagiários (21-26 anos, nascidos no final da década de 80 para a
década de 90), ainda que pertencentes à mesma “cultura midiática” e relativamente
próximos em ternos de faixa etária, – pois que a diferença de idade era de
aproximadamente de uma década –, integravam universos simbólicos díspares em
alguns aspectos. Para Steven Johnson, as aceleradas mudanças tecnológicas no campo
das mídias significam também aceleradas mudanças de percepções, sensibilidades,
experiências, etc. E acrescenta o argumento de que o livro imperou como “meio de
comunicação de massa” durante vários séculos, os jornais, cerca de 200 anos para
inovar, o cinema durante 30 anos, antes de se instaurar o rádio, e depois, a televisão e
enfim, o computador: “a cada inovação, o hiato que mantinha o passado à distância
ficou menor, mais atenuado” (JOHNSON, 2001, p. 08) como se ocorre um
“encurtamento” das gerações.
A própria Internet diferiu em uma década: em meados de 1990, os primeiros
internautas se impressionaram com a quantidade de informações disponibilizadas nos
sites, a facilidade de utilização dos mecanismos de pesquisas, o correio eletrônico.
Período este, vivenciado pelos professores de história em formação, distinto daquele
que se inicia aproximadamente em 2000-2001, com elementos mais conhecidos pelos
alunos do Ensino Médio. A web torna-se uma plataforma em que se podem
compartilhar documentos, ter conversas telefônicas (Skype), interagir em blogs, redes de
relacionamento (Orkut, Facebook, Myspace, Monster.com, etc.), entre outros.
Certamente o fenômeno da banda larga incentivou o usuário a estar sempre conectado, o
que é diferente de quando se tem acesso esporádico a uma Internet mais lenta. Essas
alterações mencionadas são importantes na medida em que os navegadores não são mais
seres passivos que “consomem sem reagir a informação que lhes é imposta nos sites
mantidos por especialistas. Os usuários atuais propõem serviços, trocam informações,
comentam, envolvem-se, participam” (PISANI; PIOLET, 2010, p. 16). Assim,
passamos por uma transformação da web: antes “literalmente acentuada no texto
fundador, era no fundo um conjunto de fragmentos de documentos relativamente
estáticos”, depois, “a informação circula, o site é menos um destino do que um ponto de
passagem” (Ibid., p. 62).
A memorização de trajetos para não se perder na significação do texto-primeiro,
a escrita parecida com o falado, o uso de logogramas e abreviações, a constante
execução de ações de selecionar, religar, sintetizar, comentar, fazer triagem, associar,
exigem e produzem novas habilidades de escrita e interpretação, novas “categorias
intelectuais” – com bem diz CHARTIER (1999, p.77) –, em que se sobressaem os
princípios da indeterminação e da transitoriedade um pensamento reticulado,
hiperassociativo, simultâneo, intermitente, fractal. Nem sempre uma interpretação desta
(des)ordem pode ser considerada como “empobrecida”, leviana, fragmentada, mas
apenas diferente (RAMOS, 2009, p. 71). Bauman nos diz que quando consideramos os
referenciais “antigos” e descartarmos o não familiar, conseguimos ver apenas desvios,
anomalias, fragmentação e superficialidade no pensamento contemporâneo (BAUMAN,
2008, p. 164), o que nos remete ao exemplo citado anteriormente, da aluna estagiária
supor a hiperassociação veloz em torno do assunto da aula – Renascimento – e a
manifestação descontínua e simultânea dos alunos do Ensino Médio, como indisciplina
ou desconcentração, próprias de “adolescentes naturalmente problemáticos”.
Fixados em uma imagem típica e essencialista de adolescente, a despeito de que
a infância e a adolescência são construções histórico-culturais, a inquietude, a
curiosidade, a impulsividade, a energia, a necessidade de explorar, ou mesmo de
quebrar regras e normas, são características que costumam não ser entendidas como
“expressão e produto da era em que vivemos”, e este “adolescente” hiperativo não é
visto como “protagonista de um tempo/espaço cada vez mais fluído, instável, matizado,
rápido e desconcertante” (COSTA, 2008, p. 274).
A escola, instituição criada na modernidade, corresponde a uma forma de
conhecer o mundo, pautada na racionalidade linear, sequencial, conceitual, dedutivo,
relacionando ao “pensamento tipográfico”, que convertido em princípio epistemológico
significa um “ponto de vista” que, por ser estável, se pretende ou se define universal,
objetivo e verdadeiro. O tempo e o espaço escolar, as metodologias de ensino, as
representações sobre a escola e o aluno – e sobre a universidade e o estudante
universitário –, os currículos escolares e acadêmicos, permanecem limitados àquela
racionalidade própria da modernidade. Enquanto isso, em nossa cultura se apresenta o
“pensamento cibercultural”, mesmo entre aqueles que não usam o computador, já que o
mundo digital interfere e influencia os modelos de interpretação, de conhecimento e de
linguagem, além de que “contamina” outros materiais comunicacional-midiáticos21.
Habituados a interferir como “co-autores” nos textos hipermidiáticos, realizando
comentários, jogando, construindo, elaborando, respondendo, interagindo, os alunos do
Ensino Médio produzem uma forma de conhecer dissonante com o modelo escolar
posto e com o que em geral os estagiários esperam encontrar conforme suas
representações do que seria o “aluno adolescente”
21
22
. Sancristán argumenta que os
Vale lembrar que o rádio e a televisão, também aceleram sua narrativa, encurtando o tempo da
divulgação das mensagens. As revistas de consumo também são formatadas neste sentido, visto que usam
elementos espaciais, imagéticos e geométricos, ou melhor, trilhas que possibilitam (re)criar caminhos,
fazendo dilatar a memória associativa, em um misto de atualização, recuperação e produção de
significados, os quais correspondem às exigências de um leitor que foi acostumado à aceleração de ritmos
e à superexposição de imagens (RAMOS, 2009, p. 91).
22
Maria Auxiliadora Schmidt, seguindo esta linha de pensamento, considera que ao invés de ver a escola
ou mesmo a universidade “com a função de ensinar”, o que está relacionado ao professor como “um mero
transmissor/reprodutor de conhecimento, depositador de conhecimentos”, há que se perceber a escola [e a
adultos definem a si mesmos, e os jovens são definidos pelos adultos: “se eles não
falam, e nós adultos fazemos isso por eles, é lógico que a explicação de sua experiência
seja muito intermediada pelas visões que temos deles” (GIMENO SANCRISTÁN,
2005, p.12). É construída uma definição sobre o “aluno adolescente” que orienta nossos
comportamentos, práticas e percepções em relação a este “Outro”, sem que se infira que
o movimento poderia ser inverso, isto é, partir das condições, saberes e perspectivas
deste “Outro” para possibilitar a reflexão sobre os processos de ensino (Ibid., p. 18).
Na atualidade, torna-se problemático determinar/situar o “adolescente”
conforme a faixa etária na articulação com certos valores e comportamentos. Em
especial quando se define o acesso à fase adulta conforme a inserção no mercado de
trabalho, a constituição de uma nova unidade familiar e a saída da casa paterna, já que
tais fatores vêm acontecendo cada vez mais cedo para a classe social mais baixa e cada
vez mais tarde para uma classe social mais alta, e ainda: não se configuram etapas
lineares, mas com idas e vindas frequentes (SPOSITO, 2005, p.91)23. Vale dizer que,
diferente dos estudantes universitários (todos do curso de história matutino), muitos
alunos do Ensino Médio (noturno) tinham cumprido pelo menos uma destas “etapas”, o
que, de certo, resultava no que se entende por “descronologização” ou “desregulação”
da “adolescência” (Ibid., p.90-91).
Maria Rita Kehl considera esta “descronologização”, mas destaca que o período
da “adolescência” vem se dilatando, independente da classe social, devido aos fatores
como aumento do período de formação escolar, alta competitividade do mercado de
trabalho, escassez de empregos, que “obrigam o jovem adulto a viver cada vez mais
tempo na condição de ‘adolescente’, dependente da família, apartado das decisões e
responsabilidades da vida pública, incapaz de decidir seu destino” (KEHL, 2004, p. 91).
Por sua vez, superando a questão da cronologia e incidindo em uma questão
conceitual, estamos assistindo a um alargamento da idade juvenil em nossa formação
universidade] como “espaço da experiência (individual e social) dos sujeitos com o conhecimento”
(SCHMIDT, 2009, p. 11), que na contemporaneidade, apresenta-se como baseado em racionalidades
diferentes, instáveis e imprevisíveis.
23
Segundo o “Projeto Juventude”, pesquisa realizada em 2003, quando 300 entrevistadores colheram
depoimentos de 3.501 jovens (de 15 a 24 anos), em 198 municípios brasileiros de todos os Estados.
Pesquisa coordenada pelo Instituto Cidadania, em parceria com o Sebrae e do Instituto de Hospitalidade,
sob responsabilidade técnica da Criterium Assessoria em Pesquisas. Partiam de blocos temáticos para a
investigação, com 158 perguntas: perfil sociodemográfico e situação familiar; percepções da condição
juvenil, da escola, do mundo do trabalho remunerado e de políticas voltadas para a juventude; valores e
referências que norteiam suas escolhas; inserção em espaços de participação, percepções da política, dos
direitos de cidadania e das relações de gênero; fruição cultural e lazer; influências e preferências da
mídia; percepções sobre sexualidade e AIDS, sobre drogas lícitas e ilícitas; violência e políticas de
segurança (VENTURINI, 2005, p. 23-24)
cultural, provavelmente porque o chamado “adolescente” vem se tornando uma nova
fatia do mercado (Ibid.). Existe um processo de “juvenilização” ou de “teenagização” da
sociedade, associada a valores e aos estilos de vida:
(...) os atributos tradicionais da juventude como fase de transição – incerteza,
mobilidade, abertura para a novidade e a mudança, instabilidade, amplas possibilidades,
experimentação de diferentes identidades sociais – parecem ter se deslocado para além
de limites biológicos a fim de se tornarem modelos culturais que os indivíduos assumem
em diferentes estágios da vida (SOUZA, 2003, p. 47).
De um lado, a juventude tornaram-se marketing de felicidade, um “estado de
espírito” como infere o senso comum, e por isso, etapa a ser prolongada: “ser jovem
virou slogan, virou clichê publicitário, virou imperativo categórico – condição para se
pertencer a uma certa elite atualizada e vitoriosa” (KEHL, 2004, p. 92). Ao mesmo
tempo, principalmente quando se usa a palavra “adolescente” ao invés de juventude,
pesa uma conotação pejorativa.
Os estagiários, ao “se observarem a si mesmos observando”, em sua maioria,
perceberam que partiam de determinadas representações recorrentes sobre o
“adolescente” (o jovem estudante do Ensino Médio). Tendiam a ver o aluno do Ensino
Médio segundo concepção – própria de determinado discurso das ciências médicas,
pedagógicas e psicopedagógicas e bastante disseminada pelos canais midiáticos,
principalmente pelo cinema –, pautada na noção de uma identidade do “adolescente”
definitiva e universal, portanto,
anistórica. O “adolescente”
seria: rebelde;
desinteressado da escola e, principalmente, da aprendizagem da história; ou muito
indisciplinado ou muito isolado; ou hiperativo, ou distraído demais; de saberes
superficiais porque fragmentados; consumista; narcisista; egoísta; perigoso (!);
manipulado pelas mensagens midiáticas, etc.
Este tipo de discurso, parte da naturalização do “adolescente”, ou mais
precisamente, de uma explicação sobre uma “essência” deste sujeito, fundamentada na
biologia e/ou no psiquismo. Maria Rita de Assis César, tomando Foucault como
referencial, infere que este discurso foi construído no começo do século XX,
prolongando-se até a década de 70, mas que ainda hoje permanece. Para a autora, o
surgimento do “adolescente”, ocorre quando na configuração do campo da biologia, da
medicina, da psicologia e da pedagogia, em que se buscava apreender o homem como
objeto de investigação das ciências empíricas (CÉSAR, 2008, p. 33-34). Assim,
comprovava-se cientificamente a “essência” do “adolescente”, baseado na ideia de que
“quanto mais jovem o indivíduo, mais próximo ele se encontraria de sua natureza
animal” o que requeria dos poderes públicos, institucionalizar a observação vigilante e a
prescrição de normas e atividades que ajudassem a transformar a “besta em homem”
(Ibid., p. 57).
Para Henry Giroux, no contexto norte americano, existiria uma “política
representacional,
alimentada por degradantes descrições visuais dos jovens,
apresentados como criminosos, sexualmente decadentes, enlouquecidos por drogas e
analfabetos”, divulgada pela mídia, em especial, pelo cinema, em concomitância com a
crescente indiferença das políticas públicas norte-americanas em relação aos
adolescentes – mais do que em relação às crianças –, principalmente, no que diz respeito
à educação e à saúde (GIROUX, 1996, p.124-125). Citando alguns filmes24, o autor nos
mostra a juventude representada de forma patológica, em que o vazio moral e a extrema
indiferença em relação ao futuro caminham juntos, ou então, que retratam uma
juventude de “anti-intelectualismo” (Ibid., p. 126)25. Em especial, o autor analisa o
filme “Kids”26, em que a juventude é mostrada “como se vivessem em um vácuo
histórico, político e cultural” (Ibid., p. 129).
Os estagiários reconheceram que o referencial fílmico que portavam sobre a
“adolescência”, baseava-se nos mesmos “desvios” valorativos, intelectuais e
comportamentais atribuídos aos “adolescentes” nos filmes dos quais Giroux
mencionava e que podiam ser visualizados em filmes atuais como “Juventude
Rebelde”27 ou “Juventude em Revolta”28.
Muitos filmes consolidaram determinada
forma de ver, entender, representar o “adolescente” como: rebelde, revoltado, cruel,
violento, alienado, pouco inteligente, incapaz, impertinente e imoral, mesmo que haja
transformações ocorridas nestas concepções fílmicas no curso do tempo29. Produções
midiáticas ou mesmo pesquisas acadêmicas, no ou sobre o período do movimento
estudantil da década de 60 do século XX, lançaram a noção bipolar de que o jovem
24
Como River’s Edge (Juventude Assassina - 1987), My Own Private Idaho (Garotos de Programa –
1991) e Natural Born Killers (Assassinos por Natureza – 1995)
25
Como Wayne’s Word (Quanto Mais Idiota Melhor – 1992), Dazed and Confused (Jovens Loucos &
Confusos – 1993), Dumb and Dumber (Debi e Lóide: dois idiotas em apuros – 1995),
26
Giroux considera apenas a referência fílmica de: Kids, direção de L. Clark (1995).
27
Kidulthood, direção de Menhaj Huda, (2006).
28
Youth in Revolt, direção de Miguel Arteta, (2010).
29
Por exemplo: O Selvagem (The Wild One, direção de László Benedek, 1954), Juventude transviada
(Rebel Without a Cause, direção de Nicholas Ray - 1955), de Sem destino (Easy Rider, direção de Dennis
Hopper - 1969), Laranja mecânica (A Clockwork Orange, direção de Stanley Kubrick 1971), Juventude
em Fúria (Bad Boys, direção de Michael Bay, - 1983), Curtindo a Vida Adoidado (Ferris Bueller's Day
Off, direção de John Hughes - 1986), Eleição (Election, direção de Alexander Payne- 1999).
poderia ser rebelde, revoltado, revolucionário ou alienado, conformista, adesista.
Atualmente, “a preservação dessas categorias, presentes nas análises do movimento
estudantil”, tem produzido a ideia de que “a geração atual é apática e incapaz de realizar
uma crítica, agindo simplesmente para a manutenção do status quo” (SOUZA, 2003, p.
61). Assim, a avaliação sobre o que é ser jovem pode depender de um parâmetro de 50
anos atrás, o que termina por provocar a atribuição ao jovem de hoje, a pecha de
apolítico e ignorante, supondo-se que este seria ainda mais “bárbaro” que aquele do
passado. Contudo, de uma forma ou de outra, sendo politizado/revoltado em demasia ou
desinteressado/bruto, nas pesquisas acadêmicas ou nos canais midiáticos, o jovem
passou a ser visto de modo depreciativo.
Joe Kincheloe considera que filmes – como “Anjo Perverso”30 –, produzidos em
acordo com esta perspectiva pejorativa, são projeções do sujeito adulto sobre sujeitos
infanto-juvenis que ele pouco compreende e por isso receia. Para este autor, filmes de
terror, desde “O Exorcista”31, mostram um momento em que as representações sobre a
criança e o “adolescente” sofrem uma mudança significativa, demonstrando o
estranhamento em relação ao sujeito surgente: mais autônomo, mais informado,
perspicaz, etc., que não mais enternece com sua ingenuidade e doçura – como Dorothy
em “Mágico de Oz”32 –, mas assusta (KINCHELOE, 2001). Assim como Kincheloe,
também Gonçalves, analisando o filme “O Chamado”33, considerou que a criança,
principalmente da cultura da passagem do século XX para o XXI, torna-se mais
“entregue a si mesma”, distante da autoridade do adulto, e, por consequência, mais
independente, em razão tanto das mudanças ocorridas na configuração familiar que põe
em xeque as funções tradicionais do homem (pai) e da mulher (mãe), como do maior
acesso às mensagens midiáticas sem qualquer tipo de filtragem (GONÇALVES, 2004).
Mais independência significa tomar para si a responsabilidade dos próprios atos e de
suas consequências, implicando em uma inventividade constante para dar conta dos
desafios diários, o que requer a construção de uma “inteligência”, mas não
necessariamente sob os pressupostos do coletivo e da ética.
Este sujeito infanto-juvenil “sabido”, que saiu do controle do adulto, representa
o “novo” e o imprevisível em uma sociedade, por isso, causa medo, hostilidade e
30
Bad to the Bone, direção de Bill L. Norton (1997).
The Exorcist, direção de William Friedkin (1973).
32
The Wizard of Oz, direção de Victor Fleming (1939).
33
O filme japonês Ringu foi lançado em 1998, dirigido por Hideo Nakata baseado no livro de Kôji Suzuki
de mesmo título, de 1989. The Ring, direção de Gore Verbinski de 2002 é a versão americana.
31
espanto. Afinal, o sujeito jovem representa aquele que muda, que se move, que se define
“como tendo o futuro, como definindo o futuro”, enquanto o adulto está deixando o
futuro para traz (BOURDIEU, 1983, p.119). E, se a juventude pode ser considerada
como uma categoria social sobre a qual “infletem as mudanças”, e que, portanto,
“estudar a juventude numa sociedade em transformação é, em última análise, estudar a
própria mudança [sociocultural]” (SOUZA, 2003, p. 60), então os adultos, estariam
visualizando no sujeito infanto-juvenil a possibilidade de transformação daquilo que
acredita e pratica, e, que deseja conservar. Mais ainda: em nossa formação cultural,
diante da profusão de estímulos, experiências e racionalidades, mudaram as maneiras de
conhecer a realidade, de se posicionar diante dos outros e de entendimento de si. Estes
relativamente
“novos”
códigos
culturais
–
pautado
nas
hipercontradição,
hiperassociação, hiparitividade e hipervelocidade –, se inscrevem com mais facilidade
nos corpos e mentes “adolescentes”, enquanto que para o universo adulto ainda se
apresentam incompreensíveis e/ou desviantes.
***
Em nossa experiência de pesquisa-estágio, o entrecruzamento de ideias dos
alunos do Ensino Médio e dos professores de história em formação, possibilitou ver o
movimento tensional entre formas de conhecer, pensar, agir, e serviu para revermos: as
representações que temos sobre o que pensam e o que são os “adolescentes”, geralmente
obtidas através dos canais midiáticos; as novas organizações do sensorium, das
categorias de pensamento/conhecimento com o advento da cultura midiática, que
ocorrem em curto espaço temporal embaralhando o conceito de “geração”; nosso
parâmetro valorativo e procedimental proveniente de uma memória escolar que também
determina o que esperamos do aluno e do ensino, que tem como base a escola como
instituição moderna, incompatível com o universo simbólico dos sujeitos escolares
habituados na formação cultural midiática, e, como podemos desenvolver uma relação
orgânica entre pesquisa, teoria e prática no processo de estágio.
Agradecimentos:
Sou grata pelo interesse e despojamento demonstrado pelos estagiários em relação a esta
pesquisa; aos alunos do Ensino Médio do Colégio de Aplicação que nos acolheram
superando todas as más expectativas infundadas; à professora-titular, Lusanira Feitosa,
por sua gentileza e dedicação e, finalmente, ao meu filho João Henrique Ramos Marega,
pelas informações valiosas sobre os jogos eletrônicos e o universo “adolescente”.
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