CADERNOS DE ESTUDOS BRASILEIROS Publicação - CEB
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CADERNOS DE ESTUDOS BRASILEIROS Publicação - CEB
Universidade Federal de Goiás – UFG Edward Madureira Brasil Reitor Eriberto Francisco Bevilaqua Marin Vice-Reitor Sandramara Matias Chaves Pró-Reitora de Graduação Divina das Dores de Paula Cardoso Pró-Reitora de Pesquisa e Pós-Graduação Anselmo Pessoa Neto Pró-Reitor de Extensão e Cultura Orlando Afonso Valle do Amaral Pró-Reitor de Administração e Finanças Jeblin Antônio Abraão Pró-Reitor de Desenvolvimento Institucional e Recursos Humanos Ernando Melo Filizzola Pró-Reitor de Assuntos da Comunidade Universitária CADERNOS DE ESTUDOS BRASILEIROS Publicação Semestral do Centro de Estudos Brasileiros da Universidade Federal de Goiás Ano L, n. 2 – julho/ dezembro de 2013 Wolney Unes Direção Geral Anselmo Pessoa Neto e Antón Corbacho Quintela Editores CONSELHO EDITORIAL Anselmo Pessoa Neto – Faculdade de Letras (UFG) Antón Corbacho Quintela – Faculdade de Letras (UFG) Edward Madureira Brasil – Escola de Agronomia (UFG) Gilberto Mendonça Teles – Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro Lisandro Nogueira – Faculdade de Comunicação e Biblioteconomia (UFG) Tasso de Sousa Leite – Centro de Estudos Brasileiros (UFG) Wolney Unes – Escola de Música e Artes Cênicas (UFG) FICHA CATALOGRÁFICA Cadernos de Estudos Brasileiros/ Universidade Federal de Goiás. Centro de Estudos Brasileiros. – vol. 1 n. 1 (jan.-jun. 1963). Goiânia, 1963 – Semestral I. Universidade Federal de Goiás. Centro de Estudos Brasileiros. 1. Artigos. 2. Ensaios. Os Cadernos de Estudos Brasileiros • são uma publicação de divulgação de estudos sobre a realidade brasileira, de periodicidade semestral; • dirigem-se a um público amplo nacional. • As opiniões expressas nos textos são de responsabilidade exclusiva dos autores. Os Cadernos de Estudos Brasileiros, no formato digital, e as normas para a submissão de textos ao conselho editorial <http://www.ceb.ufg.br>. Contato: <[email protected]> Endereço para correspondência: Cadernos de Estudos Brasileiros Centro de Estudos Brasileiros da UFG Caixa Postal 131 74001-970 – Goiânia-GO encontram-se em: Editorial Um filósofo qualquer já deve ter notado a diferença entre Porvir e Futuro. Os dicionaristas não dizem nada de proveitoso a este respeito, carregando na sinonímia, como é o caso do Houaiss: “o tempo que está por vir, por acontecer; futuro”. O mesmo se passa com o Aurélio: “o tempo que há de vir; o futuro”. Ambos, entretanto, separam a definição com ponto-e-vírgula, não com uma simples vírgula. Isto pode sugerir que existe mesmo alguma diferença, já que para os semanticistas os sinônimos nunca são perfeitos: a estrutura silábica e fônica pode sugerir nuances de sentido que o poeta (ou o filósofo) costuma recolher, e administrar na sua expressão. Assim, se o presente se faz passado e se se atualiza num futuro horizontalmente tradicional, é possível pensar num Futuro vertical, diferente pela origem e pela estrutura – é o Porvir, tipo novo de futuro, vanguarda de um futuro que já não é o mesmo da tradição. É por aí que enfrento este editorial sobre os Cadernos de Estudos Brasileiros numa relação do passado com o presente que se quer futuro. Futuro, nada: um Porvir. É como passo a compreender um número que se fez e ficou à espera de continuidade e um que se faz e se tornar porvir. O único número do Cadernos de Estudos Brasileiros saiu exatamente há cinqüenta anos, em janeiro-junho de 1963. Teve boa repercussão nacional, com muitas resenhas, muitas cartas de agradecimento e ofertas de artigos. Guardei o material que ia chegando (de professores, político, filósofo, maestro) e, quando me preparava para organizar o segundo, eis que o Golpe Militar de 1964, temendo a intelligentsia goiana, houve por bem (= por mal) fechar o Centro de Estudos Brasileiros da Universidade Federal de Goiás e interromper a sequência das publicações programadas. Ele se iniciava com uma nota não assinada (mas escrita por mim), cujo último parágrafo declarava modestamente os objetivos do CEB: Com o diálogo que agora abrimos, pretendemos, apesar de nossas limitações, pôr em foco e debater os problemas de Goiás e do País. Move-nos o interesse de tomar posição no sentido de entrosar o ensino com a realidade, orientando os estudantes não somente na busca do saber haurido nos livros, mas também na sua equação em termos de verdade, na solução adequada às nossas peculiaridades, debaixo de um caráter de sinceridade e coragem acima de tudo nacional. Além da introdução teórica sobre o sentido, o objetivo, a história e atividades do CEB (do diretor, embora não assinada), o número publicado trazia textos do reitor Colemar Natal e Silva sobre a UFG, do Prof. Agostinho da Silva sobre o CEB, de Domingos Félix de Sousa (sociologia), de Bernardo Élis (reforma agrária), de Gilberto Mendonça Teles (literatura em Goiás), de Horieste Gomes (bacia do Tocantins), Ruy Bretas (vontade social), Élder da Rocha Lima (história da arte), Lena Ferreira Costa (coronelismo e capanguismo), Jean François Douliez (música no Brasil), Modesto Gomes (arraiais goianos), Genezy de Castro e Silva (considerações), Amália Hermano Teixeira (o “eterno” descobrimento de Goiás), José Luís Nunes (o momento é de opção), Antônio Teodoro da Silva Neiva (dois estudos antropológicos) e do aluno José Carlos de Almeida (entrosamento estudantil). Havia também um noticiário do CEB e uma página de Arquivo (literário). Finda por aqui um passado que não teve futuro, a não ser a ressonância de um presente vivido com energia e desejo do melhor, segundo o termo Aretê, que vem desde Homero e toca sempre o espírito de quem que vive a grandeza de um sonho. *** É desta ressonância do novo que se deseja recolher o sentido de tempo e de transformação de um futuro concluído em um porvir cheio de esperança. É por esta esperança que se pode apresentar o segundo número do Cadernos de Estudos Brasileiros, que a Universidade Federal de Goiás está lançando hoje nesta primeira Jornada do seu novo Centro de Estudos Brasileiros. O material que ora se publica esteve guardado há 50 anos e dá bem a dimensão cultural do que se fazia pela cultura universitária em Goiás num lugar social que, embora novo, sonhava o melhor para Goiás e para o Brasil. São de ex-professores do antigo CEB, como o estudo antropológico de ANTÔNIO THEODORO DA SILVA NEIVA sobre a formação cultural de Goiás; o ensaio geográfico de MODESTO GOMES DA SILVA sobre os vilarejos goianos; o trabalho fitogeográfico de HORIESTE GOMES sobre o cerrado goiano; e três ensaios de estudiosos de fora, como o do deputado federal JOÃO DE ABREU sobre a exploração do babaçu; do maestro JEANFRANÇOIS DOULIEZ sobre Bach e Villa-Lobos; e, finalmente, do filósofo paulista LUIZ WASHINGTON VITA sobre a filosofia no Brasil. O mais são flores, tinir de brindes, hinos festivos para o Reitor-Presidente e para os organizadores do segundo número dos Cadernos de Estudos Brasileiros, nesta primeira jornada do Centro de Estudos Brasileiros na atualidade. Aqui e agora o futuro se faz porvir, e tudo são flores, tinir de brindes, hinos festivos ao que há de vir. Rio de Janeiro, 8 de outubro de 2013 GILBERTO MENDONÇA TELES SUMÁRIO • QUATRO FACES DOS VILAREJOS GOIANOS Modesto Gomes da Silva • TENDÊNCIAS ATUAIS DA FILOSOFIA NO BRASIL Luís Washington Vita • O PROBLEMA DA EXPLORAÇÃO DO BABAÇU João de Abreu • UM ESTUDO ANTROPOLÓGICO: A FORMAÇÃO CULTURAL DE GOIÁS Antônio Theodoro da Silva Neiva • SE BACH FOSSE VIVO E BRASILEIRO Jean-François Douliez • A VEGETAÇÃO E O APROVEITAMENTO DOS CAMPOS CERRADOS Horieste Gomes QUATRO FACES DOS VILAREJOS GOIANOS Modesto Gomes de Silva I Assim que Bartolomeu Buenos Filho, o segundo Anhangüera, através de dramático rush, revela as minas goianas, a terra se vê imediatamente violentada em sua intimidade, rasgando-se-lhe à superfície os sulcos evidentes de uma ocupação divorciada da ordem. Grupos humanos heterogêneos, oriundos dos mais distantes pontos da Colônia, e vindos igualmente da Metrópole, invadem prontamente os centros de mineração. Nêsse verdadeiro assalto, concretizado por sêres que mais se assemelham a animais em disparada, nada contém as massas invasoras para disciplinar-lhes convenientemente a voracidade. Tão logo se descobre um filão aurífero, em conseqüência da louca corrida que se verifica no local se improvisa um arraial, que cresce numa velocidade assustadora. As habitações são simples ranchos, construídos com o dispêndio de poucas horas de trabalho. A parede é sempre de pau-a-pique, embora mais tarde se empregue o adôbe, que dá vistoso aspecto às residências. A cobertura da moradia se faz, invariàvelmente, com fôlhas de palmeiras, especialmente da espécie buriti. Já o piso não mostra qualquer revestimento. Quanto ao mobiliário, sabe-se que é rude, não oferecendo grande parcela de confôrto. Resume-se em bancos mal feitos, tamboretes e jiraus, sendo que êstes servem de mesas e camas. Sòmente algum tempo depois aparecerá o catre. Autor que escreveu sôbre época relativamente recente, mas cujas palavras se ajustam ao período que estudamos, observa: “Se nos perguntarem por móveis, mostramos as rêdes de panos ou de fibras, que substituem as camas mais macias, naquêle clima tropical onde não se fala em frio e garoa. Havendo, por acaso, necessidade de cama, basta fincar na terra batida quatro pés de madeira lavrados a facão e nêsses fixar os quatro cantos de um couro de boi, de onça ou de cervo suçuapara. Nada de cadeiras e sofás, apenas tamboretes baixos feitos em quatro paus cruzados e cobertos de couro” (1). Referentemente à mesa, peça tão útil no sertão, informa o autor citado que “se não fôr simples esteira de fibras, constará de larga tábua cortada a machado no cerne de alguma árvore de pouca dureza como o tamboril. Furam-na nos quatro cantos e nela introduzem os quatro pés que não hão de fixá-la no chão”. (2) O desleixo que se verifica nas edificações e a parcimônia no uso de móveis e utensílios se justificam plenamente, bastando atentar-se para a natureza inequìvocamente aluvional dos depósitos auríferos. Esgotando-se ràpidamente o veio em que pesquisa, o minerador vai em busca de nova área, onde possa reiniciar a extração. “Definia-se a região – anota o emérito professor – por ondas migratórias de uma população flutuante, precariàmente agarrada aos arraiais à borda das minas descobertas” (3). Tal estado de coisas perdura por muito tempo. Mesmo após a criação da Capitania de Goiás ainda se nota desinterêsse dos moradores da terra por habitações mais condignas. E o exemplo vinha de cima, partindo dos próprios quadros administrativos. O primeiro palácio governamental levantado em Goiás, e que se construiu no govêrno de d. Marcos de Noronha, não passa de um casarão com paredes de terra socada (4). II O problema mais cruciante, todavia, com que se defrontam os primitivos colonizadores relaciona-se com o abastecimento de víveres aos povoados. A febre do ouro, atacando aquêles homens ambiciosos, faz com que se relegue a plano inferior questão de tão transcendente importância. Ninguém quer desviar escravos ou prepostos para o trabalho agrícola, sob o receio de que outros se aproveitem de suas datas. A falta de alimentos traz uma série de complicações, permitindo que inescrupulosos comerciantes paulistas, através de livre especulação, espoliem mineiros incautos. O câmbio negro, à ausência de atos coibitivos, é norma comum. E o minerador desprevenido, entregue ao labor de pesquisar ouro, se vê despojado de seu tesouro, que passa incólume às mãos vorazes de mercadores. Os altos preços da época causam assombro ao estudioso de nossos dias. O suíno chega a ser vendido a razão de duzentas e cinquenta gramas de ouro por cabeça, alcançando uma vaca a espantosa quantia representada por novecentas e vinte gramas (5). Se a importação de alimentos se constitui em dura prova para os mineradores, roubando-lhes grande parte do lucro obtido, não deixa, entretanto, de beneficiar áreas produtoras, via do amplo sistema de troca que se estabelece. A zona aurífera pode pagar prêços elevados pelos produtos de que necessita. Valoriza, desta forma, mercadoria que não possuía valor ou que o tinha reduzido, abrindo perspectivas de consumo para o que era produzido e insatisfàtoriamente consumido na fonte de produção (6). Realizam-se, porém, operações nem sempre favoráveis aos cofres reais; operações que, por outro lado, resultam benéficas para a Colônia, já que o ouro permutado por gêneros alimentícios muitas vêzes escapa ao pagamento de impostos, perdendo-se nas trilhas do contrabando, responsável direto, outrossim, pela fixação dos primeiros rebanhos em Goiás, os quais vêm, sobretudo, do Vale do São Francisco, não obstante a obrigatoriedade do uso de via única estabelecida pelo Conde de Sarzedas (7). A situação se agrava de tal maneira, quase atingindo os limites da calamidade, que a administração se vê na contingência de conceder datas auríferas apenas aos que se comprometem a manter a lavoura de subsistência. Já a essa altura, presenciando naturalmente as transações em que negociantes paulistas se enriquecem vertiginosamente, elementos radicados em Goiás resolvem-se, conforme assinala Cunha Matos, a lançar mão da agricultura. Todos aquêles que se incorporam às atividades agrárias, daí para a frente, não somente formam os primeiros estabelecimentos permanentes da região, que passam a produzir cereais em regular quantidade, mas igualmente se apoderam, com relativa facilidade, de boa porção do ouro extraído (8). III A ausência de higiene é completa, circunstância, aliás, que caracteriza bem a época. O interior das moradias, regra geral, apresenta o mesmo aspecto contristador da oca indígena. É o lixo amontoado aqui, enquanto que acolá vão se espalhando restos de cozinha. As nuvens de mosquitos, atraídas pelo nauseabundo odor que se volatiliza, dominam o ambiente ao som de música sui generis. Observa Taunay, laborioso pesquisador da história dos primeiros anos de Goiás, citando Cunha Matos, que “as escavações das minas, os tanques feitos nos vales, as lagoas cheias de ervas em putrefação, os animais mortos e corrompidos no campo, de tal forma estragavam o ar que os corpos se ressentiam, as constituições mais robustas se alteravam e os espíritos se abatiam” (9). Além das epidemias de sarampo, do bócio, da hidropisia e mal céltico (10), por si sós altamente prejudiciais, os escravos são portadores e transmissores de tuberculose, de sífilis, de bôba, de bexiga (11). Tais moléstias, ao lado de outras então desconhecidas e por isso mesmo arroladas como pestes, dizimam inúmeras vidas, principalmente de escravos. Vale acrescentar, finalmente, que a malária e outras febres próprias da região jamais deixam de cobrar seu tributo, levando à sepultura centenas e centenas de pessoas. IV Os habitantes dos povoados são uma mistura singularmente heterogênea. As ruas estão sempre movimentadas, mostrando um vai e vem constante. Os tipos que desfilam por êsses logradouros tortuosos são o retrato em ponto pequeno da massa humana que compõe as comunidades cosmopolitas. Diz um cronista que os habitantes dos vilarejos são “desbravadores encourados, índios domesticados, pretos forros, escravos africanos, mulatos atrevidos, soldados insolentes” (12). Sobressaem-se, à crista dessa saga variada, os mineradores de mais largos recursos, precisamente os que estão na posse de muitos escravos, encarregados de trabalharem por êles, enquanto seus proprietários, sem maiores ocupações, alimentam a turbulência dos arraiais. Vêm, depois, os sacerdotes, dirigentes da vida espiritual. Quase sempre, tão logo se funda um povoado, há o levantamento da igreja, que reflete a religiosidade dos portugueses e seus descendentes. A mulher, apesar do desprestígio do matrimônio na faixa aurífera, ocupa lugar de relêvo. Devido ao seu número limitado, em localidades fervilhantes de homens indisciplinados, vê-se ela guindada a um posto elevado. Mestiça como é, não atrai o homem para o casamento. Contudo suas ligações são vantajosas, já que ela pode impor condições e exigir prêços altos. A grande presença, todavia, é a do escravo. É êle o agente principal na humanização da paisagem. Muitos já vêm com prática de mineração, afeitos ao árduo labor. Seu número, em diversas localidades, suplanta o de brancos, existindo mesmo regiões em que há dez escravos para um branco ou mestiço (13). Jogado ao trabalho inexoravelmente, extraindo o branco tôda a seiva de sua exuberância, o negro às vêzes não suporta os horrores dos maus tratos, sucumbindo inglòriamente. Não são poucos os que se revoltam com a situação, reunindo-se a companheiros de infortúnio na quietude das florestas onde formam quilombos (14). A autoridade de Vila Boa, atendendo aos apelos da população alarmada, determina a destruição do quilombo formado em Pilar (15). Posição de destaque ocupam os comerciantes, dos quis depende o abastecimento. A sociedade que se aglomera nos povoados não apenas os teme, mas também se escraviza ao seu jugo, receosa de se perder na fome e na miséria. Notas (1) Frei José M. Audrin, O. P. – “Os sertanejos que eu conheci”, Livraria José Olympio Editôra (Coleção “Documentos Brasileiros”), Rio, 1963, pág. 67. (2) Idem. (3) Domingos Félix de Souza – “A projeção do micro-organismo social”, in “Cadernos de Estudos Brasileiros (1)” – Centro de Estudos Brasileiros da Universidade Federal de Goiás, Goiânia, 1963. (4) Revista “Oeste” – “A posse do Conde de São Miguel”, Goiânia, 1944, nº 19, pág. 34. (5) Afonso Taunay – “História geral das bandeiras paulistas”, edição do Museu Paulista, 1950, tomo undécimo, pág. 136. (6) Nelson Werneck Sodré – “Formação histórica do Brasil”, Editôra Brasiliense, São Paulo, s/d, pág. 130. (7) Conde de Sarzedas – “Bando de 2 de outubro de 1732”, in Taunay, op. cit. (5). (8) Cunha Matos – “Corografia histórica da Província de Goiás”. Rev. Inst. Hist. Bras., 2º sem. 1874, pág. 80. (9) Taunay, Op.cit. (5), pág. 134. (10) Cunha Matos , citado por Taunay, op. cit., pág. 134. (11) Odorico Costa – “A escravidão nas minas de Goiás”, in Revista Oeste, nº 16, 1944, pág. 7. (12) “A posse do Conde de São Miguel”, cit. (4). (13) Odorico Costa, Op. cit. (11) (14) Idem. (15) Idem. TENDÊNCIAS ATUAIS DA FILOSOFIA NO BRASIL Luís Washington Vita Instituto Brasileiro de Filosofia 1. Considerações preliminares Na atual filosofia praticada no Brasil, sem dúvida ainda aparecem – e, em última instância, são todos – epígonos de pensadores europeus. Desta vez, porém não apenas como um reflexo passivo, de pura receptividade e assimilação, mas como decorrência da própria universalidade e historicidade da filosofia. A isto se juntam os motivos inspiradores da realidade nacional, de profundo sentido político-social, que alentam o nosso especular, marcando-o de circunstancialidade brasileira. Nêsse sentido, observa Cruz Costa: “Naturalmente são as correntes da filosofia européia que ainda exercem aqui a sua influência, mas o seu alcance e sua significação revelam-se já, em parte, de maneira diferente daquela pela qual se expressavam no passado. A nossa alfândega intelectual tornou-se mais exigente e rigorosa, desde que se sentiu dotada de melhores instrumentos de análise que, cumpre também reconhecer, longe estão ainda perfeição. Mas há, sem dúvida, uma consciência mais clara acêrca do que somos, do que somos em face dos outros e de nós mesmos. Estamos talvez a liquidar um certo bovarismo, as ilusões que alimentávamos acêrca de nós e dos outros. Superamos, ou estamos em via de superar, um velho complexo colonial, embora ainda, como era de prever – estejamos a resolvê-lo contraditòriamente...” (Panorama da história da filosofia no Brasil. São Paulo, 1960, pp. 74-7). Claro está que o chamado “pensamento puro” também aparece, motivado por três fatôres relacionados entre si: o primeiro dêsses fatôres, de ordem epigônica e meramente imitativo, é conseqüência do exemplo das filosofias analíticas de procedência anglo-americana, haurido por estudiosos que estagiaram nos Estados Unidos, como são exemplificativos Euryalo Cannabrava e Leônidas Hegenberg, o primeiro de nítida formação filosófica e o outro saído de um instituto de matemática pura. O segundo fator é fruto de um anseio de “tecnicação” da filosofia, que acaba reduzida a expedientes metodológicos no plano linguístico, com especial ênfase filosófica. O terceiro fator, recôndito e nem sempre explícito, é de ordem por assim dizer ideológica, justificadora dos fatôres antes apontados e, ao mesmo tempo, atuando como atenuador do especular político, sempre ameaçante das instituições sociais vigentes, em geral retrógradas e obscurantistas. Êsse pensamento “puro”, contudo, é excepcional – além de ser insólito no evolver da filosofia brasileira –, e, mesmo aqui, as tendências mais “logicistas” nem sempre se ocupam exclusivamente de temas abstratos (os dois filósofos citados, por exemplo, estão também interessados em problemas estéticos enquanto vivência do fato artístico), assim como, em contrapartida, o restante espetacular brasileiro também não é simples reflexão sôbre circunstâncias concretas com uma finalidade meramente prática (a Álvaro Vieira Pinto, ideólogo do desenvolvimentismo nacional, se deve um importante trabalho sôbre o Timeu de Platão). Portanto, a atual filosofia no Brasil longe está de ser um organismo eidético, supra-temporal, totalmente imune à nossa contingência histórica, sendo, em grande medida, a elevação abstrata de uma situação vital històricamente dada. Daí poder-se apontar, tendo em vista as observações anteriores, três tendências entendidas weberianamente como “tipos ideais”: a tendência antropológica, a tendência analítica e a tendência diamática. Essas tendências, evidentemente, não são “puras” mas “típicas”, construções auxiliares expositivas, já que uma tendência é mais – ou menos – que uma corrente de idéias, pois enquanto esta implica um “sistema” fechado, coerente e sistematizado, aquela é aberta, eclética e dispersiva. Feita esta advertência, vejamos as principais tendências da filosofia contemporânea no Brasil. 2. Tendência antropológica Os representantes desta tendência não obstante ostentarem, em maior ou menor grau, certa forma de pensamento filosófico de cunho existencial, coincidentes na identidade formal de sua pergunta – que é o homem? –, nem sempre se limitam a uma explicação conceitual da idéia de homem a partir da concepção que êste tem de si mesmo numa fase determinada de sua existência. Assim, se em alguns é flagrante a filiação heideggeriana ou diltheyana ou orteguiana, em outros as raízes partem de certas correntes tomistas ou neotomistas, idealistas ou irracionalistas. A principal figura da tendência antropológica na filosofia brasileira é, talvez, Vicente Ferreira da Silva (1916-1963), certamente a mais estupenda vocação metafísica já aparecida entre nós. O pranteado pensador paulista levou às últimas conseqüências a “atitude” existencial (isto é, a exigência de que o filósofo deve pensar existencialmente, ou seja, incluindo-se a si mesmo em seu pensamento, ao invés de fazer do pensamento alguma coisa externa ao ser humano, alguma coisa cuja missão seria puramente a de refletir, de modo objetivo, as circunstâncias que o rodeiam), vinculando-se o ponto de partida de sua crença filosófica à doutrina da Dialética Transcendental kantiana, que coloca o Mundo não como correlato objetivo de um ato de conhecimento transcendente, mas como desênho de uma experiência infinita. Esta tese torna impossível, a seu ver, qualquer filosofia do objeto em detrimento de uma filosofia do sujeito. O fim da reflexão filosófica é, portanto, sempre e ùnicamente, a ação humana em sua dialética interna e em seus desenvolvimentos. Para Vicente Ferreira da Silva as ciências do espírito, a antropologia filosófica e a ontologia existencial completam o quadro das disciplinas pròpriamente filosóficas. Qualquer possibilidade de uma representação naturalística do real, baseada nas categorias do objeto, é limitada, pela redução contínua dos objetos ao plano transcendental de sua possibilidade. Também fica eliminada qualquer oportunidade de uma concepção vitalista, de tipo bergsônico. A liberdade fica assim entendida como única fundação para uma elucidação do sentido último do real, pois, de acôrdo com o filósofo paulista, “a filosofia, como queria Fichte, é uma extenuada análise do conteúdo infinito da liberdade humana.” Outra figura relevante da tendência antropológica é o jusfilósofo Miguel Reale (1910), em cujo pensamento, desde as obras da mocidade até seus mais recentes escritos, há uma nota ou diretriz dominante: a postulação de uma filosofia do concreto infensa às fórmulas vazias ou às formas abstratas, e capaz de integrar o homem e as coisas numa unidade orgânica. Essa aspiração de concretitude revela-se em múltiplos sentidos, notadamente no que se refere à teoria do conhecimento, a qual evolui de um realismo crítico um tanto vago, expôsto em trabalhos juvenis, para um “criticismo ontognosiológico” que acaba por apresentar-se, em tôda a sua plenitude, como historicismo ontognosiológico. Cumpre observar que êsse historicismo não assume uma atitude agnóstica perante os problemas metafísicos, pois, ao ver de Miguel Reale, se nada podemos dizer do Absoluto em si, no entanto tudo o que se desenrola no âmbito ontognosiológico (que coincide, no fundo, com o âmbito da experiência histórica) é condicionado pelo Absoluto, pressuposto, conseqüentemente, como condição transcendental de possibilidade da experiência total do homem. Além do mais, em meu historicismo há um valor fundante que é o próprio homem na universalidade de seu dever-ser: “o ser do homem é o seu dever-ser”, sendo “a pessoa humana a fonte de todos os valores”. No seu último livro – Pluralismo e liberdade (1963) –, Miguel Reale chega a um verdadeiro “sistema”, onde os conceitos se relacionam e se conjugam entre si e se formalizam em proposições e enunciados num embricamento orgânico que nada tem de mecânico, mais derivando do real que impôsto pelo conceitual. Quer dizer: também o pensador paulista intenta trazer Hegel do céu à terra, não porém através de mera inversão de têrmos, como ocorre no marxismo, mas por meio de uma correção de atitude metodológica. Com efeito, a idéia de “sistema” no citado livro de Miguel Reale é flagrante, desdobrando-se numa organicidade sistemática que parte da idéia de filosofia (entendida como “síntese e unidade”, sendo próprio dela, filosofia, “elaborar uma cosmovisão, ou seja, uma compreensão geral do universo e da vida”), passa pela idéia do homem (de caráter personalista, pois “o homem se sente na plenitude de seu ser como pessoa, valor-fonte de todos os valores”) e pela idéia de sociedade (que afirma que o social já está “originàriamente no ser mesmo do homem, no caráter bilateral de tôda atividade espiritual”), para culminar na idéia de valor (entendidos os valôres como dados estimativos, “dados vetoriais da experiência humana, suscetíveis de conhecimento racional, embora incompleto”). Como, de acôrdo com Miguel Reale, “vivemos num mundo plural”, é evidente que “ficaríamos divorciados do valor por excelência da cultura do Ocidente se almejássemos fundir uma única matriz de pensamento para impingi-la às novas gerações”. Nisso consiste seu pluralismo metodológico, que longe está de se constituir numa posição teórico-metafisica, convertendo-se antes num “monopluralismo” ao sustentar, por um lado, a independência das realidades e, por outro, ao não negar que exista, direta ou indiretamente, uma interação, superando assim tanto os “valores coletivizantes” como os “valores de insulamento egoístico”, o que o leva a um “totalismo plural” (ou universo), porquanto “se o ser do homem é o seu dever ser, é sinal de que se sente em sua finitude algo que o transcende, que o seu valor e o seu atualizar-se como pessoa implica no reconhecimento de um valor absoluto, que é a razão de ser de sua experiência estimativa: valor absoluto que êle não pode reconhecer senão como procura, tentâmen, renovadas atualizações no plano da história, mas sem o qual a história não seria senão uma dramaturgia de alternativas e de irremediáveis perplexidades”. A essa tendência também se vincula Leonel Franca (1893-1948), eminente figura da Companhia de Jesus, seguidor de um tomismo aberto aos estímulos das correntes mais progressistas dos adeptos de Santo Tomás de Aquino, sendo notória a sua simpatia pelo pensamento de um Sertillanges ou de um Maréchal. Nêsse sentido, Leonel Franca parece optar por aquela ala do neotomismo que, em face da filosofia moderna, pensa dever assumir uma atitude menos polêmica e mais compreensiva, pois “nem tudo é para rejeitar depois de Descartes”. Isto porque “a fidelidade, não tanto à letra quanto ao espírito de Santo Tomás impõe o dever de repensar as questões modernas em função de sua problemática atual. Importa prolongar as linhas do pensamento tomista numa fidelidade que não seja repetição simples mas assimilação orgânica e vital, isto é, progressiva e adaptada a exigências novas e iniludíveis do pensamento humano em marcha”, porquanto, para Leonel Franca, “a inteligência humana não progride nem se enriquece senão no contraste das discussões”. Nessa mesma tendência pode ser inserido Almir de Andrade (1911), crítico de Freud e seguidor de uma “psicologia dinâmica como base de uma teoria do conhecimento”, para quem a vitalidade, o dinamismo da consciência, que se desenvolve num esfôrço de adaptação ao mundo real, traduz uma potencialidade de reprodução psicológica dos caracteres dos objetos que se oferecem ao nosso conhecimento – potencialidade que se realiza tanto na percepção imediata, como através das representações mentais não percebidas, subterrâneas, obscuras e inexprimíveis. “Essa potencialidade para a realização de certa espécie de movimentos (que, no caso, são os processos de elaboração de representação) é, pois, o que caracteriza e define a consciência. E tôda representação consciente do mundo exterior é um processo de síntese dos dados da sensação – síntese que se opera pela seleção de certos elementos da sensação, com abstração de outros”. Seguem a tendência antropológica os pensadores próximos dos aqui arrolados, nem sempre como discípulos, ou quase nunca, mas como coincidentes. Assim, ao lado de Vicente Ferreira da Silva podem ser apontados todos os “existencialistas”; ao lado de Miguel Reale os “historicistas”; ao lado de Leonel Franca os “neo-tomistas”; e ao lado de Almir de Andrade os “psicologistas”. A tendência antropológica, por outro lado, manifesta-se na análise da presente realidade brasileira entre aquêles que defendem um “nacionalismo desenvolvimentista”, cuja tese central afirma que a promoção do desenvolvimento econômico e a consolidação da nacionalidade constituem dois aspectos correlatos do mesmo processo emancipatório. Para levá-lo avante preconiza a mobilização da consciência nacional no sentido do desenvolvimento e dos esforços requeridos pelo desenvolvimento e a adoção da programação global como técnica para atingir a máxima e ótima utilização dos fatôres disponíveis. Seu mais importante representante é Hélio Jaguaribe (1923), teórico e militante do desenvolvimento nacional. 3. Tendência analítica A tendência analítica no pensamento atual brasileiro é um ponto de intersecção para onde confluem os carnapianos, os wittgensteinianos, os russellianos, os logísticos e os linguísticos, de fortes tendências positivistas mas, nem por isso, se trate sempre de neopositivismo ou de empirismo lógico, coincidindo seus membros num empênho em estabelecer uma definição exata dos conceitos fundamentais das ciências no quadro de uma linguagem idealmente formalizada ou uma terapia lógica dos pseudo-problemas. O primeiro representante dessa tendência, cronològicamente, é Pontes de Miranda (1892) que, numa Introdução à sociologia geral, em 1926, propõe a interpretação do determinismo probalitário, superando o determinismo mecanicista com auxílio de novas técnicas de análise, e onde expõe também o princípio da simetria no plano das relações sociais, culminando, em 1937, com O problema fundamental do conhecimento, onde afirma que conhecemos o mundo pelas sensações, “mas tôda sensação por si só já é uma abstração ou uma extração, pois o ser só se dá a nós abstraído. Assim, os sentidos não nos dão a realidade total do mundo, mas apenas aquilo que do mundo nos excita”. Por outro lado, a inteligência, depois que recebe as impressões dos sentidos, não se limita a representá-las, mas vai além, faz associações, induções, deduções, generalizações. O problema fundamental do conhecimento é, portanto, o de saber o que se passa entre a sensação e o conceito ou o julgamento intelectual. Para Pontes de Miranda, é estéril discutir se o que conhecemos está realmente no objeto ou é uma relação entre sujeito e objeto, onde se faz a extração dos elementos próprios de uma e de outro, a fim de se obter um conceito que contenha apenas o que é comum a um e a outro, com eliminação das diferenças. A oposição tradicional entre (su)jeito e (ob)jeto desaparece desde o instante que a nossa inteligência extrai o “sub” do sujeito e o “ob” do objeto, que é o elemento comum aos dois. Não se trata de mera questão de palavras, mas sim da tradução, em palavras, de uma operação mental, que é a base do tôdo o conhecimento. Extrair os “jetos” ( ou “jectos”, de que o “jeito” de “sujeito” é mera variedade verbal) dos objetos e do sujeito é assegurar a objetividade e a realidade duradoura do conhecimento. É, porém, com Euryalo Cannabrava (1903) que a tendência analítica atinge sua máxima ressonância. Sua missão é de defêsa do “conceito de filosofia científica contra as tentativas de reduzir a atividade especulativa ao mero exercício verbal ou à divulgação inconsistente”. Essa atitude missionária se explica, pois “nos países sem tradições em matéria de cultura, como o nosso, a tarefa do pensador consiste mais em destruir preconceitos ativos do que em criar pròpriamente idéias ou teorias”. Para êle, a finalidade da construção filosófica é elaborar a metalinguagem apropriada para discorrer sôbre o conhecimento científico, tomado como linguagem-objeto, sendo a mais importante tarefa da filosofia “estabelecer critérios formais e empíricos para a justificação da teoria científica”, substituindo então a metafísica (“tipo de conhecimento incompleto”) pela ciência (“mais completo”). Nêsse ponto, esclarece o filósofocientista: “o que se procura afirmar, mesmo na hipótese de se concluir pela legitimidade do conhecimento ontológico ou metafísico, é o seu caráter incompleto relativamente ao conjunto de princípios e leis que se submetem ao teste da verificação experimental”. Seu propósito, portanto, é abrir caminho ao ensaio oposto à pretensão de subordinar a ciência à filosofia e que consiste “na fundamentação científica da filosofia”. À tendência analítica pertencem os filósofos da ciência, em geral, os logísticos e os “filólogos”, quase sempre alienados da realidade nacional, cuja expressão, no campo da atual controvérsia ideológica, é o que Hélio Jaguaribe chamou “cosmopolitismo liberal” que se caracteriza pelo conteúdo liberal de sua formulação, assegurador das condições de liberdade de movimentação e da remuneração dos fatôres econômicos, pelos motivos em que se fundamenta o liberalismo clássico, e a partir do postulado de harmonia preestabelecida, em virtude da qual a perseguição por cada indivíduo, de seu interêsse próprio, resulta no atendimento do interêsse geral, sendo seu principal representante Eugênio Gudin (1886). 4. Tendência diamática A tendência diamática é de acentuada influência marxista, porém nem sempre dogmática ou de plena submissão partidária. Três são seus principais representantes: Caio Prado Júnior (1907), filiado ao Partido Comunista, João Cruz Costa (1904) e Álvaro Vieira Pinto (1912), os dois últimos “simpatizantes” das idéias e ideais comunistas. Para Caio Prado Júnior a filosofia marxista é, sobretudo, um método – o método dialético – de elaboração do conhecimento, entendido êste como sistematização da experiência para o fim de ser utilizável e utilizado na condução da ação e direção do comportamento humano. Portanto, o conhecimento resulta da ação e retorna à ação. Desta procede a experiência que se faz conhecimento (através da atividade do pensamento que é uma função orgânica do homem). O conhecimento assim elaborado inspira e conduz a ação, e essa nova ação produzindo nova experiência, resulta em ampliação do conhecimento anterior. Dêsse modo se comporta o ciclo do conhecimento, renovando-se permanentemente (tanto no plano individual como no plano coletivo em que se comunica e conjuga o pensamento de todos os indivíduos em comunicação uns com os outros por fôrça da vida social de que, em conjunto, participam). Para João Cruz Costa – que é, acima de tudo, um historiador da filosofia no Brasil – tôda a atenção deverá estar dirigida para os “fascinantes problemas que de mais perto nos tocam”, já que “a nossa origem, as condições de nossa formação, a nossa experiência histórica nos afastam do alcantilado das metafísicas e nos impelem para a meditação de realidades concretas e vivas, convidando-nos a refletir sôbre as interessantes e contraditórias aventuras do nosso devir”. Isto porque o progresso do espírito, ou, mais exatamente, da inteligência, está ìntimamente relacionado com o condicionalismo da atividade humana. Por isso o conhecimento histórico é uma necessidade gnosiológica que não poderá ser eliminada do campo do devir humano, isto é, torna-se impossível um conhecimento teórico que não atende às condições históricas. “É preciso, porém, não esquecer que a história exclui certas restaurações. Ela não é feira para restaurar mas para libertar do passado. A filosofia encontra a verdade na sua adequação com a realidade”. Para Cruz Costa, afinal de contas, a reflexão filosófica, no Brasil, “não termina na contemplação do mundo. Vai além. Ela exige a sua transformação”. Assim sendo, julga o pensador paulista que a filosofia não é uma ciência, “é uma atitude em face da vida, do mundo; um ‘conhecimento’ incessantemente renovado e a se renovar, no que vai grandeza e, ao mesmo tempo, miséria de sua condição”. Com o frade dominicano Maydieu, pensa Cruz Costa que a aquisição do filósofo é muito pobre mas permite coordenar muita riqueza. Investigação interminável sôbre os problemas do espírito ou da inteligência, a filosofia, no meu parecer, é abstração que não se perde no abstracionismo. Por certo é a abstração o essencial, talvez, de sua tarefa. Mas, por detrás dessas abstrações, dêsses esquêmas, que são produtos dessa única luz que nos pode conduzir pela estrada da vida e que é a razão, o que há é o homem na sua aventura. Aventura que não é apenas aventura do espírito mas engajamento total no fluir concreto da existência histórica, – história que não é cemitério, mas movimento, ação. Não acredita Cruz Costa que a filosofia se resuma num mero jôgo contemplativo. “Ela tem sido e é transformadora do mundo. Mais: as filosofias não se confundem, a meu ver, com as escolásticas, escolásticas que são, no dizer de MassonOursel, pedagogias das ortodoxias”. Para Álvaro Vieira Pinto, cabe ao filósofo a busca das categorias que nos capacite a bem compreender a realidade nacional, partindo do âmbito a que pertence. A missão que se impõe à filosofia do desenvolvimento é contribuir para dar aos homens de Estado a compreensão crítica do papel que já estão efetivamente desempenhando, sem disso terem a correspondente consciência. Contudo, sòmente se torna pensador aquêle que, com raízes individuais na vida do povo, assume o ponto de vista dêste, recolhe do convívio e comunicação com o ‘outro’, enquanto trabalhador comum, a expressão de uma concepção da sociedade e do mundo nada requintada nem sistemática, mas nem por isso menos autêntica. O pensador autêntico do país em desenvolvimento não preexiste ao processo, mas é constituído por êle. Entretanto, êsse fato – a incorporação, pelo filósofo, do ponto de vista coletivo – está submetido a determinações históricas concretas, não acontecendo do mesmo modo em qualquer situação nacional. No país subdesenvolvido, com muito maior dificuldade as massas encontram os seus filósofos, porque em tal condição a filosofia é, pràticamente, domínio de pura alienação; o simples fato de ser filósofo ou estudioso da filosofia já é indício de afastamento em relação às camadas ignorantes do povo. A filosofia é aí a fuga à realidade, cultuá-la é sinal de que a consciência não está interessada na circunstância pobre e monótona a que pertence, mas encontra nas delícias das altas especulações, ao tentar solucionar os problemas abstratos de que se ocupa, a compensação para o abatimento que lhe causa a impossibilidade de resolver os outros, que a atormentam na existência cotidiana. É preciso que o país esteja emergindo do estado de subdesenvolvimento para que seus sociólogos e pensadores despertados aos acontecimentos significativos se revertam à realidade que é a sua. Tudo porque não há conceito “dado aí”, pronto, constituído por obra de um pensamento impessoal: “o conceito é conteúdo de uma subjetividade que se defronta com um processo vivo, do qual é parte interessada, e não com um mundo morto, visto através de um instrumento óptico”. Em suma: o filósofo tem a vivência de sua realidade nacional suficiente para percebê-la, e ademais se informa junto aos pesquisadores especializados do que está acontecendo. Tem direito, assim, de formular em teoria o esquêma dos modos de consciência no âmbito social a que pertence. Seguem a tendência diamática, no plano social, os adeptos do “nacionalismo estatista”, cuja fórmula, de acôrdo com Hélio Jaguaribe, é comandada por uma concepção e uma motivação socialista, predominantemente de caráter marxista, compreendendo, além dos comunistas, que são minoritários e de pequena e declinante influência, uma maioria de marxistas independentes e um grupo menor de socialistas cristãos. O principal representante dessa tendência é Nelson Werneck Sodré (1911). 5. Conclusão Considerada em conjunto, a filosofia brasileira atual, herdeira da européia e integrada no espírito ocidental, mas vinculada à realidade do Brasil e representativa de suas necessidades, tende a obviar os fatôres que até agora impediram a eclosão de um verdadeiro pensamento especulativo. Como observa Hélio Jaguaribe, “é de registrar-se, contudo, uma acentuada tendência para que se formem, ideal e realmente, as condições necessárias à cogitação filosófica, graças à profunda crise em que se encontra o país, crise essa que, se não fôr destruidora, poderá ter os melhores efeitos sôbre nossa cultura” (A filosofia no Brasil. Rio de Janeiro, 1957, p. 50). Porque o filósofo brasileiro, vivendo autènticamente a impetuosa vida da civilização ocidental plantada em terras americanas, procura entendê-la e entender-se a si próprio a partir desta realidade concreta. Aos historiadores do futuro cumprirá julgar esta atitude, que se reveste do mais profundo sentido de opção. São Paulo, 9 de outubro de 1963 O PROBLEMA DA EXPLORAÇÃO DO BABAÇU Dr. João de Abreu Primeira Parte Aqui comparecendo, não me limito a agradecer o convite que me fez o Prof. Gilberto Mendonça Teles, diretor do Centro de Estudos Brasileiros, da Universidade Federal de Goiás; desejo manifestar-lhe o júbilo com que aplaudo de tôdo coração, com a autoridade que os anos me conferem, qualquer movimento no sentido de dotar o nosso povo dos elementos que lhe venham proporcionar o progresso de nossa terra, o seu bem estar, encorajando-o com perspectivas radiosas que se nos apresentam, no momento. Convidado, com a liberdade de discorrer sôbre o que sabemos de nossos problemas socioeconômicos, de preferência os da “imensa região Norte de Goiás”, estimaria se pudesse abranger, numa palestra, todos os temas interessantes, êsse punhado de jóias contidas nêsse majestoso escrínio que é o norte goiano. Sua história, capitulada de lances heróicos, dos nativos ou invasores, das bandeiras ou isolados, dos mineiros, dos caminhos, dos elementos que substituíram os garimpeiros – os imensos campos de dois verdes, a floresta amazônica, cuja fímbria alcança ali um milhão de HP, e o Babaçu. Na impossibilidade de estreitar tôda essa grandeza nos limites de minutos, tomei o último citado, o Babaçu, para tema de hoje. Devo, de início, prevenir, que as pessoas idosas sofrem, com mais intensidade, o fluxo rápido do sangue, quando sujeitas a qualquer excitação emocional, mesmo agradável, devido à pouca elasticidade de seus vasos. Daí resultam, muitas vêzes, os erros e retardamento de raciocínio, impedindo de expressar o pensamento conforme desejo. Essa foi uma das razões porque me afastei da vida pública, embora saiba que a capacidade mental não se atrofia, quando dela fazemos uso adequado, podendo, portanto, ainda ser útil em campo que não demande compromisso com o povo na sua justa ambição. Donde, embora repousando das atividades políticas, jamais me retirarei do convívio com aquêles que cuidam do estudo e ampliação dos fenômenos socioeconômicos. Pelas razões expostas e atendendo à justeza da ponderação de alguém, isto é, que êsses estudos devem ser continuados, vulgarizados, acrescidos de novos conhecimentos, reduzidos a escritos e impressos e acessíveis aos estudiosos, como meio de facilitar, indiretamente, o aproveitamento econômico de nossas enormes riquezas, entendi que, embora me desse mais trabalho, deveria reduzir a escrito esta palestra. Palestra, sim, e não conferência, porque não disponho de floreados, nem de estilo fluente para enfeitar o pensamento, com beleza da linguagem nos seus requintes mais caprichosos, que arrastam os ouvintes para o campo principal da conversa. Procurarei, contudo, evitar canseiras e inquietações, falando linguagem própria de uma conversação informal sôbre o assunto que nos reúne, do qual devo, sem pretensões, dar uma visão panorâmica, oriundo de minhas observações e dos conhecimentos que colhi em 30 anos de trato com o mesmo. Não admirem o tempo, 30 anos. Conhecer os problemas fundamentais do babaçu e os dêle decorrentes absorve tempo, quanto mais as respectivas soluções. Vamos abordar um assunto debatidíssimo, que vem atribulando o espírito de sucessivas gerações, há séculos, ainda erradamente, tanto pelos gabinetes, como pelos comerciantes, porque procuram sempre solução parcial. Tudo quanto diz babaçu, até hoje, tem girado em torno da quebra do côco. A quebra tem sido o espantalho. Constitui o “pivot” de tôdo o problema, não obstante não haver nela nenhum óbice à sua industrialização. Nesta, como já o fizemos, e noutras oportunidades, pretendemos indicar NORMAS para a industrialização do babaçu, fora dos limites do empirismo sôbre que tem sido colocado o problema, mas sim, dentro de fórmulas econômicas e métodos racionais. Perlustrando os anais de nossa história econômica, ressalta desde logo, como causa principal de nossas crises cíclicas, a falta de um aproveitamento racional de nossas riquezas naturais. Temos malbaratado aquilo que a natureza dadivosamente colocou à disposição do homem. O pau-brasil foi objetivo de pirataria no período colonial. A cana-de-açúcar deu origem à invasão estrangeira. A borracha – o algodão – o café têm sido e estão servindo de pasto a interesses estranhos aos nossos. Quanto ao petróleo, então nem se fala. Por isso, perdemos, ontem, o monopólio natural da produção da Hevea brasiliensis; hoje, a situação de predomínio incontrastável na produção da cofea; amanhã, quem sabe, a oportunidade de tirar o proveito econômico de centenas de riquezas naturais, dentre as quais coloco o babaçu, como uma das fontes de enriquecimento de que até agora não temos sabido aproveitar. Permanecemos, assim, alvos de crítica de órgãos da imprensa estrangeira e de autoridades nos diversos setores da economia, como sendo um povo que não sabe aproveitar devidamente suas riquezas naturais, e que, pelo contrário, ficamos à espera que tudo nos venha de fora, numa demonstração de incúria que estarrece e causa pena. Com o babaçu, então, a displicência é criminosa. A prática, atual, do sistema de exploração do babaçu é um desperdício, quer dêle próprio, como do potencial humano que dêle cuida, transformando o imenso valor dessa riqueza num paradoxal disseminador de miséria. Donde resulta que desde os primórdios do Brasil, empresas que se fundaram para a exploração do babaçu foram todas condenadas ao fracasso. E até nossos dias essa indústria extrativa ainda não mereceu da parte dos próprios interessados, como dos poderes públicos, aquela atenção necessária à solução cabal do problema. (O presidente Jânio Quadros nomeou um grupo de trabalho que lhe desse os dados necessários à solução do caso. A convite do governador de Goiás, tomei parte como representante do Estado nêsses estudos. E tenho a satisfação de comunicar aos senhores, sem empáfia, que a nossa tese foi a vitoriosa, naquêle conclave, de representantes do Pará, Maranhão, Piauí e dos ministérios da Agricultura e Viação, Bancos do Brasil, Desenvolvimento Econômico e do Banco Nacional Cooperativa. Do relatório que o grupo enviou ao presidente, resultou um decreto com as características de resolver o momentoso problema. Êsse decreto é datado de 5 de agosto de 61 e publicado no Diário Oficial do mesmo dia. Dêsse conclave trouxe as conclusões ao nosso govêrno, que tomou todas as medidas necessárias para a solução racional do assunto, entre nós). Daí a pergunta: êsse problema terá solução que corresponda aos interesses da indústria? A resposta será dada na demonstração que vamos desenvolver. Mas, antecipamos essa resposta, para satisfazer a vossa curiosidade, citando uma opinião de autoridade incontestável. William Lever, mundialmente acatado, o qual fundou diversas companhias com enormes capitais, em várias possessões na Ásia, na África, principalmente nas Filipinas, para plantio e industrialização do côco da Bahia – “copra”. William Lever afirmou, em publicações divulgadíssimas que “não existe melhor negócio, em tôdo mundo, do que a exploração do côco”. A autoridade dêsse homem é tamanha que as companhias por êle organizadas sujeitaram-se a restrições por êle estabelecidas, isto é, “dividendos só começarão a ser distribuídos após dez anos”. “Não existe melhor negócio do mundo do que a exploração do côco”, repetimos. E acreditamos. Veremos. Mas, descrevamos primeiro o que seja o babaçu. É uma palmeira. É a mais bela palmeira do Brasil. Não foi à toa que o grande vate maranhense, Gonçalves Dias, em delicada fantasia, exaltou a palmeira que aninha o sabiá, cujo canto sonoro recordava de Coimbra, saudoso, na “Canção do Exílio”. E nêsses 100 anos após não tem sido mais que poesia. O seu hábitat compreende principalmente o Maranhão, Goiás e Piauí, havendo menos densamente em outros Estados. Nativa no Brasil. Atinge até 20 metros de altura. Tem vida longa. Vai aos 300 anos. Começa a frutificar aos 20 anos. Muito produtiva. Cada palmeira, em média, dá 800 a 1.000 cocos, anualmente, ou seja, 8 a 10 quilos de amêndoas. Todas as partes da palmeira são aproveitáveis. Palhas – ou palmas – servem para cobertura de casas; para fabricação de cordoames empregados com vantagem nas embarcações marítimas, porque resistem à ação do sal; para chapéus, bolsas, peneiras, cestos, esteiras, etc. Tronco – do tronco, além do palmito, tão procurado como comestível, retiram-se ripas, celulose e outros produtos empregados como fertilizantes (adubos, etc.). Côco – côco é irregular na forma e em tamanho, dependendo das condições do cocal. Varia, em tamanho, entre um ovo de galinha e um côco da Bahia, descascado. Pesa de 40 a 400 gramas. O de Goiás é maior do que o de outros Estados. Já fizemos disso prova na Usina Piloto da Sociedade Anônima do Gás, do Rio, destinada aos estudos de combustíveis susceptíveis de produzirem gás. O côco é composto de casca e amêndoa. A casca se dobra em pericarpo, mesocarpo e endocarpo. O pericarpo, parte fibrosa corresponde a 15% do tôdo; contém celulose. Serve para fazer tapetes, capachos, etc. Quando verde, produz fumaça que serve para coagulação do látex de borracha. O mesocarpo corresponde a 20% do côco, farináceo, empregado em mingaus, bebidas nutritivas, material isolante, empregado também na fabricação de dinamites. Endocarpo constitui a maior parte do côco – 55%. Com êle se fabricam várias utilidades, botões, isoladores e a sua maior importância está na sua transformação em coque – carvão vegetal, empregado com êxito notável na fundição de metais, e pelos vários produtos que resultam da sua destilação – álcool, tintas, alcatrão, petróleo e gás. Amêndoa – parte mais interna do côco, do qual representa 10%. De largo emprego na indústria. Produz óleo alimentício e industrial e tortas. E o caso sobe de importância quando se sabe, ao certo, que no Maranhão há 40 bilhões de palmeiras, mais de dez bilhões em Goiás e outro tanto no Piauí. Produzindo cada palmeira 8 quilos de amêndoas, poder-se-ia, aproveitada tôda a produção, obter, em número redondo, 500 bilhões de quilos de amêndoas. No prêço atual do óleo – notem bem – só do óleo, sem falar noutros produtos resultantes da operação, corresponderia a uma soma astronômica em cruzeiros – 300 bilhões de quilos de óleo, a CR$ 100,00, é igual a 30 ou 40 trilhões de cruzeiros. Entretanto, a maior safra até hoje, a de 1948, que atingiu apenas 80 mil toneladas, ou 80 milhões de quilos de amêndoas, ou 400.000 vêzes menos do que poderíamos produzir. Assim mesmo foi para atender a um oferecimento de prêço recorde do govêrno norte-americano, que desejava 200.000 toneladas, dispensando também direitos alfandegários para o produto nos Estados Unidos. Damos-lhe, apenas, a 10ª parte. Nessa ocasião, Fortune, revista norte-americana, em longo editorial, acompanhado de ilustrações, disse que o babaçu é o pesadelo do Brasil. Êsse artigo, que estudou a imensa possibilidade dessa riqueza, assegurou que o babaçu vale quatro e meia vêzes mais do que o café. Realmente, e além do óleo, como produto principal da amêndoa, e de que o mundo está morrendo de fome, oferecendo-nos mais o babaçu, petróleo, coque e gás. Até há pouco, tinha-se que o não aproveitamento do babaçu era devido à falta de um processo que facilitasse a quebra do côco. Um processo inventado pelo festejado técnico patrício, Dr. Antônio Vivaqua Filho, levado a efeito em Minas e com demonstrações práticas no Rio de Janeiro, cerca de 10 anos atrás, abriu largo e luminoso horizonte à liberdade econômica do Brasil pelo aproveitamento inteligente do côco babaçu, dispensando-lhe a quebra. Êsse processo consiste na transformação das oleaginosas em produtos petrolíferos, carbonáceos, gasosos, tendo como ponto de partida não os óleos, mas sim os frutos oleaginosos, no caso, principalmente, o babaçu, quer integral ou em casca. Com uma única aparelhagem, simples, fabricada mesmo no Brasil, pode-se obter todos os produtos e subprodutos de petróleo do babaçu. Quarenta produtos foram obtidos, os quais podem ser desdobrados em centenas de subprodutos, inclusive os mais importantes – coque siderúrgico e gás. Sentimos todos os dias a alfinetada deprimente, de inferioridade de subdesenvolvido, sem, muitas vêzes, buscarmos saber a causa dêsse estado de coisas, Reside na nossa pouca produtividade. Estamos ainda na civilização muscular. Tôdo o nosso esfôrço produtivo baseia-se na energia muscular (gasolina de cotovelo). Os Estados Unidos e outros países civilizados assentam sua produção na energia do carvão, do petróleo e da fôrça hidráulica. Um homem produz, nêsses países, 10, enquanto nós, na China, na Índia, produzimos 0,50. Somos países escravizados. Não podemos transformar as próprias matérias-primas em produtos essenciais à vida civilizada. Quando tomamos parte na Conferência de Araxá, por delegação da Federação das Indústrias de Goiás, em tese que ali defendemos transcrevemos o seguinte estudo publicado na véspera, pelo “Correio da Manhã”: Nós importamos 3.800 milhões de cruzeiros de produtos manufaturados, de origem mineral. Pelos preços da matéria-prima valeriam apenas 854 milhões. Como sairmos dêsse estado? Pela agricultura? Pela pecuária? Pela mineração? Impossível, sem mecanização, sem rede de transporte, dependentes ainda do petróleo e do carvão. Sòmente pelo combustível sairemos do pauperismo. O nosso carvão é de má qualidade. Resta-nos o petróleo. Ou explorá-lo, para sairmos do grupo dos países de civilização muscular, ou permanecermos escravos. Citei êsse trecho, em abono de nossa tese, que assim concluía: Ora, se possuímos uma riqueza natural, imensa, como é o babaçu, porque não o aproveitarmos, como alavanca de Arquimedes, para darmos uma reviravolta nêsse mundo de miséria em que ainda vivemos? Porque se retarda uma obra que o país reclama, brada e exige, como necessidade primária para que afirma sua soberania econômica, como libertação inicial das algemas que o manietam e aniquilam? Se o mundo batalha pela posse dos centros da produção da Copra, de aproveitamento mais difícil do que o babaçu, que impede que esta maravilhosa palmeira, que cresce exuberantemente em nossas vastidões, não se transforme em produtor da matéria-prima, não representa obra segura. Nesta época, em que se quer atingir a lua, ainda temos párias, lidando no nosso meio, como sustentáculos de empresas industriais. Só mesmo a extrema penúria dos sertanejos abriga-os ainda a extrair um punhado de amêndoas. E todos sabemos que a melhoria de certas espécies vegetais, em virtude de processos científicos, ou racionais, pela seleção; o aumento da produção per capita do trabalhador pelo aperfeiçoamento técnico, concorrem para o progresso da indústria. Aqui me ocorre o seguinte pedido: se há aqui entre nós algum filiado ao Partido Trabalhista, eu concito-o a levar para o programa de sua agremiação o grande, o patriótico empenho de elevar os babaqueiros a uma vida à altura da dignidade humana. Ao invés de, frente aos Institutos de Previdência, estarem conseguindo financiamento para seus adeptos das cidades, voltem as vistas para essa pobre gente, que, aliás, constituirá até mesmo mais vantajosa a messe eleitoral. Defendamos as massas se almejamos uma pátria próspera e feliz e capaz de se defender. Ou se ajusta essa gente à indústria organizada, ou êsses proletários rurais cairão nos braços da assistência pública. Segunda Parte Do que vimos, não temos óleo nem se explora o babaçu por falta de maquinismo eficiente para a quebra de côco. Veio Vivaqua e mostra que o babaçu pode ser aproveitado sem ser preciso a quebra do côco, retirando dêle petróleo, coque, gás, cujas aplicações já focalizamos. E o babaçu continua inexplorado. Nascendo e morrendo nas florestas. E os poucos pobres que procuram tirar dêle assim como está, ficam mais miseráveis que dantes eram. Dá mal para matar a fome, E a mina vegetal de ouro inesgotável continua inexplorada. Mas apesar do que aí está, penso e ouso afirmar que esteja reservada ao babaçu a liderança da economia nacional. É que a causa principal, ou o obstáculo à sua racionalização ainda não foi atacado. Daí a razão do fracasso das empresas, diante da abundância da matéria-prima. É o que pretende esclarecer, isto é, mostrar que a principal causa, que se opõe à exploração proveitosa do babaçu, reside na superficialidade lastimável com que tem sido encarado o problema. Até aqui não racionalização do trabalho nessa indústria. Nem óleo, nem petróleo, nem coque, nem gás, com a sua procura imensa e os mil e um demais produtos que se podem extrair do côco, os quais resolveriam muitos outros problemas, têm podido fazer a sua exploração eficiente pelo sistema atualmente adotado. Simplesmente por falta de côco. E as florestas infindas descritas? Aí é que está a incógnita do babaçu. A chave do problema está na coleta do côco. O sistema atual de “catar” o côco é empírico e o responsável por tudo que tem havido de desengano no babaçu, a ponto de se supor que êle seja uma ilusão. A coleta, como é feita atualmente, no estado em que se acha o babaçual, contínuo, silvestre, compacto na sua exuberância de vegetação, a floresta espessa e selvagem, além de não produzir suficientemente, dificulta a penetração do homem, na “apanha” do côco, colocando o produto acima de sua utilização econômica, Já dissemos que um homem, pelo método até agora adotado, colhe dois mil quilos de amêndoas anualmente, quando, pelo sistema que indicamos, essa produção atinge a 30.000, no mesmo período. Como se deve proceder, então, para resolvermos o impasse? Colocando o trabalhador em condições de recolher, racionalmente, o produto. É o único meio. Desde 1944 batalho por que se adote o método adequado, por mim apresentado à Conferência Brasileira de Imigração e Colonização, realizada naquela época em Goiânia, e em 1951, oferecido ao Conselho Nacional de Economia e que constituiu objeto de suas observações e foi adotado em relatório enviado ao Sr. Presidente da República. Êsse método consiste em possibilitar a produção a baixo prêço: a) pelo ajustamento dos cocais; b) pelo povoamento dos cocais; c) pela mecanização da coleta. O prêço é um dos fatôres mais importantes em qualquer indústria, quer quanto ao da matéria-prima, quer se refira ao do produto, tendo-se em vista que o consumidor também deve participar dos lucros da empresa. Por outras palavras: sua matéria-prima barata não subsistirá a indústria, atendendo à capacidade aquisitiva do consumidor e à concorrência científica de outros povos. Sabemos que quanto mais reduzido o custo da produção, maior possibilidade de lucros. E sem lucros nenhum empreendimento industrial poderá existir. Assim, no nosso caso: se um homem, no estado atual dessa produção, só pode colher 250 côcos por dia (75 kg), que correspondem a 8 quilos de amêndoas, ou ainda 4 quilos de óleo, porque prêço não sairá o produto da primeira mão dos agentes dessa produção? Dessa operação resultaria impossível, por falta de mercado, a venda do produto em estado de utilizar-se na alimentação, por exemplo. Com baixa produtividade, no setor inicial, que à da colheita da matéria-prima, e indústria será também de baixa produtividade. Isso é que ocorre para ser impraticável a exploração do babaçu, dentro dos métodos até aqui adotados. Nas condições atuais, tomando-se por base apenas o aproveitamento do babaçual do norte de nosso Estado, e se o homem se sujeitasse a ganhar 60 cruzeiros diários, a sua custa, para apanhar côco entre os coqueiros nativos, seria necessária a metade da população do estado para colher os cocos em condições de aproveitamento industrial. Por que prêço não seria o produto da sua primeira manipulação? Ainda mais: e que garantia oferece uma indústria, se não possui os seus próprios trabalhadores? Fiar-se em côcos “catados” por quem nenhum vínculo obrigacional mantenha com ela, a fábrica corre o risco de, a qualquer afloramento de outro interesse melhor, ficar sem matéria-prima. Torna-se uma indústria aleatória, e por isso cara, e, nêste caso, insubsistente. É o que vem acontecendo com a indústria oriunda do babaçu. E como sabemos, o objetivo elementar de qualquer indústria é de compensar condignamente todos os que nela colaboram inclusive o capital sem pôr de lado a parte social representada pelos impostos arrecadados destinados ao bem estar geral. Não constitui assim uma riqueza básica de influência creditória. Um fazendeiro de café traz as suas transações bancárias na base do número de pés dessa planta, que possui. Duvido muito que um banco de fie na produção anterior de uma usina de babaçu, a não ser com outras garantias subsidiárias, que sobreponham ao crédito pretendido do quarenta por cento. Ajustar os cocais aos fins industriais Êsse é o suporte técnico da racionalização produtiva, sem a qual não haverá, nunca, o aproveitamento econômico do babaçu. Disso resulta: 1º Completa abolição da coleta manual dos cocos, removendo a carestia incompatível em relação ao valor produtivo das amêndoas. Por ela (a coleta manual) não há, no estado nativo em que vive o babaçual, nem produtividade nem consequente rendimento econômico. E assim repetimos, relegada ao empirismo, tem sido objeto de fracassados empreendimentos, e está sendo já considerada uma ilusão, a indústria do babaçu. Daí vemos que ontem era considerada a quebra o espantalho da indústria do babaçu. Tudo girava em torno dela. Era o empecilho da indústria do babaçu. Máquinas e mil e um processos foram inventados. Não se resolveu o assunto. Porque a chave do problema babaçu, como vimos, está na coleta mecanizada. Como ajustar os cocais Já expus, em tese defendida junto à Conferência Brasileira de Imigração e de Colonização, realizada nesta cidade, da seguinte maneira: Não vamos pensar em estabelecer culturas novas do babaçu, porque teríamos que esperar duas ou três décadas até que as palmeiras produzissem. Nosso trabalho, ao contrário, baseia-se no aproveitamento das reservas já existentes. Apenas teríamos de eliminar a vegetação daninha que asfixia as palmeiras reprodutivas e dificulta o acesso dos trabalhadores. Teremos de fazer uma eliminação racional dos indivíduos decadentes, de modo a permitir a existência de árvores sadias sem se arriscar às cobras, sem lutar com os roedores, sem peso para conduzir às costas, sem perda de tempo. Enquanto o prêço da lã está sujeito a todas as despesas da família, a da 2ª está livre, podendo garantir a qualquer empreendimento industrial. Um exemplo: A produção atual de Goiás é de 400.000 quilos de óleo por ano, ou seja, 700.000 quilos de amêndoas. Para essa produção são necessários 350 catadores de côco. Quando, num só núcleo de habitantes, com 60 lotes, ou seja, 240.000 palmeiras, dois caminhões recolhem, com apenas 6 empregados, o dobro dessa produção. É irrisória essa produção, diante das possibilidades de que dispomos de matéria-prima. Vamos analisar o prêço dessa produção e suas consequências, para exemplo de que estamos afirmando. Primeiro – 700.000 quilos de amêndoas requerem 350 trabalhadores, durante um ano inteiro. Pagos a 100,00 diários, 350 multiplicados por 100,00, em 300 dias, equivalem a Cr$ 10.500.000,00. O óleo 400.000 quilos, a Cr$ 100,00, vem a somar Cr$ 10.000.000,00. Como vemos, dá para se ganhar na indústria, à custa da miséria do trabalhador e escorchando o consumidor. Assim sendo, não haverá produção da comunidade nos lucros das atividades humanas. Demonstrada a possibilidade da exploração econômica do babaçu, lembremo-nos de que, assim como Goiânia foi inspirada de Brasília, também de Goiás pode partir o grande evento do babaçu. Mesmo porque foi daqui a ideia adotada pelo C.N.E., que estudou o ante-projeto que foi ao Congresso com mensagem do Executivo, com o seguinte programa: terra ao homem e espaço à palmeira, slogan adotado pela cooperativa que fundamos em 1944, em Tocantinópolis. Aos poderes públicos e às indústrias oleíferas cabem pôr mãos à obra, pelo caráter patriótico do empreendimento e pela própria segurança dos industriais. Ao Estado cabe, segundo o moderno conceito de economia, como verdadeira função pública, valorizar o trabalhador, proporcionando-lhe meios favoráveis para produzir nas devidas condições de eficiência. UM ESTUDO ANTROPOLÓGICO: A FORMAÇÃO CULTURAL DE GOIÁS (1) Antônio Theodoro da Silva Neiva (2) A formação cultural de Goiás remonta ao próprio momento da descoberta, quando o Anhangüera reconhece o lugar em que estivera com seu pai, 40 anos antes, e resolve permanecer, construindo as bases físicas da sociedade. Sítio do Ferreiro ou Barra, aí nasceu o primeiro agrupamento, esboço do arraial de Santana, cuja capela se inaugura a 26 de julho de 1727. Nasceu também aí, o traço básico da cultura não material, exatamente aquêle que reúne os homens, no sentido divino. A vida jurídico-administrativa de Vila Boa instala-se, oficialmente, a 26 de julho de 1739. Fundadas a Igreja, a Câmara Municipal e o Pelourinho, ficavam ainda as relações jurídico-administrativas presas à Comarca e Capitania de São Paulo. Em 1749, com a investidura de d. Marcos Noronha, surge o govêrno próprio. Corta-se o cordão umbilical, integrando-se, por êste meio o novo ciclo de cultura. Já sabemos o que significa, em Antropologia, a palavra cultura. Soma total das criações humanas, como a definiu Artur Ramos; ou expressão harmônica do sentir, pensar, querer, poder, agir e reagir de uma unidade social, expressão essa que nasce de uma combinação de fatôres hereditários, físicos e psíquicos com fatôres coletivos e morais e que unida ao equipamento civilizador (instrumentos, armas, etc.) dá a unidade social, a capacidade e a independência necessárias à luta material e espiritual pela vida – como a conceituou Baldus, de qualquer modo, a cultura como somatória de tudo que o homem faz ou produz, no sentido material ou espiritual, constitui uma resposta ao meio ambiente, um processo de adaptação a êste através de inventos criados por satisfazer necessidades. Como réplica à pressão do ambiente, cada sociedade cria processos e realiza inventos distintos. Assim, para um perfeito entendimento da formação cultural de Goiás, é indispensável que analisemos a interação das três raças, que reagiram entre si e o ambiente histórico-geográfico, que constituiu o manancial dos estímulos para a gênese cultural. Paulo Prado, em seu livro Retrato do Brasil, ressalta, no caráter do povo brasileiro, certos atributos que, segundo êle, constituíram herança de nossos antepassados. A luxúria e a cobiça, por exemplo, tiveram entroncamento na paixão genésica que fatigou o português e o índio; e na fome de ouro, que incendiou a alma lusitana, no século XVIII, entroncou-se a tristeza da nova raça a que o africano pagou o atributo de exilado e de escravo. Mas o brasileiro, como bem pondera Fernando de Azevedo, apoiado em arguta observação de Humberto de Campos, não é absolutamente um povo triste, nem tem de onde lhe advenha êste mal. E continua: “O português é jovial, festeiro, comunicativo.” Provam-no a alegria de seus vilarejos e os seus folguedos campestres em que predominam os bailados nacionais. E o nosso índio não o era menos. As suas festas bulhentas, tumultuosas, duravam dias, e às vêzes, semanas. O nosso indígena, isoladamente, mostrava-se, de fato, taciturno. Mas ser taciturno não é ser triste. A taciturnidade é uma das características dos povos caçadores e torna-se um hábito pelas próprias exigências da ocupação. O silêncio e a quietação não significam assim tristeza, que só poderia vir do desgosto da vida. Os nossos silvícolas viviam satisfeitos da sua condição. De outro lado, esta “apagada e vil tristeza” não mergulha as raízes nos africanos, que antes comunicaram à nossa vida doméstica uma nota festiva e cujas reservas extraordinárias de alegria e robustez lhes permitiram tolerar bem – escreve Gilberto Freire – o ramerrão tristonho da lavoura da cana em que falharam os índios. Sem dúvida alguma, o homem possui uma herança constitucional ou biopsicológica na qual o hábitat e os fatôres genéticos e socioculturais desempenham um papel interatuante. O ponto de localização dessa herança é o corpo do individuo com suas estruturas e tendências comportamentais (3). Se o fenótipo, ou morfologia orgânica, resulta de uma complexa interação de fatôres genéticos, ambientais e socioculturais, não há, entretanto, capacidades uniformes inatas a raças. As qualidades psicológicas não se ligam genèticamente a aspectos raciais (côr da pele, natureza do cabelo, etc.). Em todas as raças, o potencial genotípico é variável entre os indivíduos, ou heterogênea a capacidade de reagir a estímulos culturais. O conceito de superioridade racial vem do erro científico de se admitir a existência de correlação de caracteres genéticos e padrões de comportamentos culturais, acreditando-se na uniformidade dêstes em relação a todos os indivíduos de uma raça. Êste foi o supremo erro dos nazistas ao admitirem a superioridade dos dólico-louros; e o de quantos afirmam que todos os orientais são inerentemente industriosos; todos os nórdicos, individualistas; todos os negros, de talento musical; e todos os índios, apáticos (4). Os antropólogos sustentam que os rumos do comportamento não são devidos a uniformidades genéticas inerentes a cada indivíduo, mas devido à tradição cultural da população. Os comportamentos estão ligados a valores, objetivos, ideais peculiares a determinadas culturas. A cultura goiana, bem assim a brasileira, tinha de herdar do povo lusíada a sua forma atual. A argila portuguesa – escreve Fernando de Azevedo –, lançada no molde do mundo americano, então tôdo por colonizar, saiu, evidentemente, transformada; é um sopro sempre poderoso que animou a estátua antiga. Eis que não se pode explicar o caráter e predizer o futuro de um grupo humano, apenas em função de sua composição étnica, porque os fenômenos religiosos, morais, econômicos são sociais e não raciais. A cultura é corolário de um complexo de fôrças externas e internas. Dotada de extremo dinamismo, cresce pela difusão e pela invenção. Assim, os hábitos físicos e mentais, as concepções de vida e as técnicas de trabalho tinham que, forçosamente mudar com os contatos e a interpenetração das três culturas, que se encontraram na mesologia brasileira. Em Vila Boa, no Planalto Goiano, houve uma repetição intensa dos fenômenos que tiveram por moldura a linha litorânea. Lá, como em todos os núcleos surgidos no sertão, ocorreu uma verdadeira orgia de sexo. Era natural isto; não havia mulheres brancas e o intercurso do português e mestiços com as negras e índias tinha de ser forte. Foi a primeira mudança. Das causas da segunda. Fala melhor êste trecho selecionado de um estudioso: As sociedades que se organizam nas regiões, onde a mineração constitui o fundamento da vida, são sempre marcadas pela mobilidade e pela intranquilidade, mobilidade resultante dos descobrimentos continuados, que exigem os vaivéns dos grupos de trabalho e, da exaustão a que descem os filões; e intranquilidade consequente aos choques que se verificam entre os grupos que disputam os veios, ou pretendem, desprezando o regime da lei, enfrentar as autoridades, ou sobrepor-se a elas. Os elementos que integram êsses organismos sociais, na generalidade aventureiros, audaciosos, são homens irrequietos, saídos de todas as camadas, preferentemente das menos elevadas. Com o andar dos tempos, vencida a indisciplina, estabelecida a ordem política, alterada a atividade econômica dos mineiros, a paisagem toma novas cores. E a sociedade sedentariza-se desenvolvendo-se dentro de um nôvo ritmo. Foi o que ocorreu na Austrália, no Transvaal, na Califórnia. No caso do Brasil Central, vamos encontrar êsse quadro, que foi também o que apresentaram as Minas Gerais e o Mato Grosso do ciclo colonial da mineração. (A. C. Ferreira Reis. Goiás, Uma Nova Fronteira Humana) De fato, estas ocorrências são pintadas com tintas vivas pela tonalidade dos historiadores goianos: Zoroastro, Americano do Brasil, Alencastre, Cunha Matos, etc. Mas a terceira mudança não tardaria; veio após o declínio da mineração, quando a infraestrutura econômica passou a ter base agrária e pastoril. Viviam, na Capitania, 60 mil indivíduos, descendentes dos sertanistas do século XVIII. Constituíam uma população mestiça. O índio recuara para o Norte. O negro diminuíra. O branco escasseara. A explicação dêste panorama étnico reside no minguar das correntes imigratórias e na perseguição do índio. Após a independência, a população cresce pela entrada de maranhenses, baianos e mineiros; crescem também a agricultura e o criatório. Define-se uma sociedade goiana, tìpicamente brasileira, cujos traços principais são: a Família Rural, a Igreja e a Escola. Os fundamentos religiosos datam de 1727, quando se erige a capela da Santana; os jurídicos e administrativos vinham da proclamação da descoberta, em 1749. Quanto à Escola, leiamos o que escreve Saint-Hilaire: Na época em que Goiás era ainda um Estado próspero, não se descuidara da instrução da mocidade: criou-se em Vila Boa uma cátedra de Filosofia e de Moral, uma de Retórica, uma terceira de Gramática Latina, e, para completar, contratara-se um mestre de ensino primário. No começo dêste século (XIX), o Conde da Palma, Governador da Província, teve a ideia de fazer economia; incluiu na sua reforma vários professores, e, na época de minha viagem, não havia em tôda a Província, mais do que um professor de Gramática, em Meia Ponte, um outro em Vila Boa, e um mestre-escola em cada uma das principais povoações. Pohl, que visitou Goiás em 1839, diz, pela boca de Kidder, que o número das escolas primárias se eleva, nesta Província, a 60 para meninos, 2 para meninas, existindo 5 ou 6 escolas de ordem mais elevada. (Saint-Hilaire. Viagens às Nascentes do São Francisco e Província de Goiás). Só em 1846, no govêrno de Joaquim Inácio de Ramalho (Barão de Ramalho), inaugura-se a primeira Escola Secundária do Estado, pela Lei nº 29, de 20 de julho de 1846: o Liceu de Goiás. Anteriores ao Liceu e de nível secundário são as aulas do pe. Luís Antônio da Silva e Souza, que não cobrava de seus alunos. Em 1872, surge o Seminário de Santa Cruz, instituído por d. Joaquim. Em 1898, a Faculdade de Direito; e após a revolução de 30, multiplicam-se as escolas primárias, normais e ginasiais; fundam-se: o Instituto Histórico e Geográfico, o Museu Estadual, a Academia Goiana de Letras, o Instituto de Educação e vários estabelecimentos de ensino de nível superior: Faculdade de Farmácia e Odontologia, Faculdade de Engenharia, Faculdade de Filosofia, Escola de Enfermagem, Escola de Belas Artes, etc. Estas são brilhantes antecipações das Universidades, que apareceram: a Católica em 1959, e a Federal em 1960. A imprensa goiana data de 1830, quando surgiu, em Meia Ponte, a Matutina Meiapontense dirigida por Joaquim Alves de Oliveira. O Correio Oficial, impresso nas oficinas daquêle órgão particular, circula em 1837. Daí em diante são numerosos os jornais e revistas goianas, que vão levando o pensamento literário, político e científico por todos os recantos do Estado e para o resto do Brasil. No entanto, se os fundamentos culturais de nosso Estado, fundamentos sociais, econômicos e religiosos constituíram-se, remotamente, a partir do advento do Anhangüera, em 1725 (5), inquestionável é que só puderam desenvolver-se, ostentando complexidade e peculiaridades, quando existiram condições favoráveis, ao desenvolvimento. Os alicerces ou fundamentos são sempre idênticos em panoramas culturais de um mesmo ciclo, como os sistemas latino-americanos. No principio, a família, a igreja, o pelourinho. A lavoura, o criatório ou a mineração formavam a infraestrutura econômica. Esta, a nebulosa primitiva de que surgiram os complexos culturais de tôdo o continente. No Brasil, formaram-se assim as províncias culturais do grande tôdo. Lembrem-se as palavras de Fernando de Azevedo referidas há pouco: A argila portuguesa lançada no molde do mundo americano, então tôdo por colonizar, saiu, evidentemente, transformada. Entretanto, a cultura é portadora de um dinamismo intrínseco pelo qual cresce e se diversifica refletindo as condições ambientais. Por isto – já o assinalamos atrás – dizem os antropólogos: a cultura é uma resposta à mesologia. Tal definição reflete a verdade, pois sendo a cultura um complexo de meios materiais e não materiais criados pelo homem, como arma na luta pela vida, têm de acomodar-se às condições ambientes. Estas lhe determinam as dimensões e os poderes, que são específicos. Daí as peculiaridades, os coloridos sui generis, os regionalismos. Por isto, distingue-se uma cultura goiana, de uma cultura nordestina, de uma cultura gaúcha etc., assim como se distingue também uma cultura brasileira, de uma cultura francesa, de uma alemã, de uma inglesa, etc. A verdade é que nossa cultura mediterrânea, antes de 1930, não podia crescer, nem expandir-se à míngua de estímulos. Atílio Correia Lima, urbanista e idealizador do plano piloto de Goiânia, observou, com justeza, que o Estado de Goiás sofreu, como os outros Estados centrais de grandes extensões, os males provindos da centralização comercial e industrial, no momento em que passa do feudalismo agrário escravocrata para o trabalho livre. É notório o aspecto desolador de tôdo o interior brasileiro, onde, a cada passo, encontramos vestígios de prosperidade em épocas passadas. Essa nova, era na economia nacional, abre um período de larga expansão ao capitalismo, rompendo de direito os laços de um passado feudal, embora de fato subsistam influências dêste sistema. Para as transformações profundas, num ambiente que conserva ainda reminiscências de uma economia feudal agrária e, conseguintemente, de uma sociedade que dela decorre, foram precisas lutas tremendas. Entre as reformas de que carecia o Estado, para o pleno desenvolvimento, destacava-se, como principal medida, a mudança da capital. Sem dúvida, as características feudais e agrárias da cultura goiana amarraram o progresso por intermédio do insulamento, da rotina, do tradicionalismo. Uma das fôrças responsáveis pelas mudanças culturais é o contacto, a intercomunicação, a difusão. Ora, antes de 30, cada comuna goiana vivia isolada, ensimesmada, empelicada ou envolvida por um meristema de tradições impermeável às influências externas. Os contatos eram superficiais e intermitentes, no ritmo lento do carro de boi, ou no passo estradeiro das comitivas. De quando em quando, aparecia o cometa vendendo a mercadoria produzida nas cidades litorâneas, ou o juiz de direito, o médico, o advogado, ou o padre, que vinham de fôrça, quando não fossem filhos da terra, que regressavam dos estudos, depois de longa ausência. Goiás, a velha cidade fundada por Amador Bueno, não possuía condições a fim de polarizar as atividades dos núcleos municipais, mobilizandolhes as potencialidades econômicas, imprimindo-lhes expansão e impulso centrífugos e retemperando-lhes as energias espirituais. A Serra Dourada era como que uma blindagem granítica, que tornava Vila Boa insensível aos anseios da comunidade goiana. Era a capital do Estado, porque nela residia o govêrno, porque dela partia as resoluções fiscais, vinculando-se aos municípios próximos e remotos apenas polìticamente. Em última análise, a velha capital não tinha poderes para abrir as fronteiras de Goiás a novas correntes culturais, nem possuía faculdades para irradiar progresso material e espiritual. Já êste conhecimento se revela, em 1830, na idéia de Miguel Lino de Morais, fazendo sentir a necessidade de transferir-se a capital do Estado para outro lugar (imediações de Água Quente, no Norte de Goiás); no pensamento de Couto de Magalhães, quando escreve: a situação de Goiás era bem escolhida, quando a Província era aurífera. Hoje, porém, que está demonstrado que a criação do gado e a agricultura valem mais do que quanta mina de ouro há pela Província, continuar aqui é condenar-nos a morrer de inanição, assim como morreu a indústria que iniciou a escolha dêste lugar. No interesse do governador Rodolfo Gustavo da Paixão em solucionar o problema; no texto da primeira constituição republicana do Estado, quando diz: “a cidade de Goiás continuará a ser capital do Estado, enquanto outra coisa não deliberar o Congresso”; finalmente, na oração do dr. Pinheiro Chagas, quando focalizava, ao empossar-se no govêrno, em 1930, a necessidade de transferir-se a capital, no menor prazo possível. Coube a Pedro Ludovico fazê-lo, encarnado cìvicamente o ideal de seus antecessores e a aspiração coletiva, que refletia uma necessidade histórica. O mérito dêste homem decidido não está na originalidade, mas na compreensão de um importante problema, cujo equacionamento encerrava o próprio futuro de Goiás, e, na virilidade homérica com que soube vencer os imensos obstáculos que se lhe antolharam na grande marcha, que foram a construção e fundação de Goiânia. As consequências desta empresa arrojada e audaciosa foram tão grandes que se projetaram nos próprios destinos da nacionalidade: sabe-se que além de um estímulo, a construção de Goiânia ensejou uma série de experiências com que se beneficiaria, mais tarde, a de Brasília. No tocante ao expandir cultural vinculado à mudança, refere-se êste argumento extrapolado da apresentação da apresentação do livro Goiânia documentada, escrito em 1958, para comemorar o 25º aniversário da mais jovem metrópole estadual do Brasil: Ressalte-se que com a mudança do eixo político-administrativo, a receita estadual de cerca de 5 milhões de cruzeiros, antes de 1930, oscila atualmente em torno de um bilhão de cruzeiros, com previsão, sujeita à retificação, de um bilhão e seiscentos milhões de cruzeiros em 1959. E, agora, que completa 25 anos de existência, encontra-se entre os primeiros municípios brasileiros, acusando surpreendente expansão de sua população. Em face do ritmo de crescimento vertiginoso que anualmente apresenta, Goiânia, em dez anos, poderá estar com sua população triplicada, isto é, na casa dos 300 mil habitantes. Verifica-se, portanto, que a renda estadual, sob os efeitos da mudança, aumentou em proporções imprevistas, atuando, de outra parte, para favorecer não só o melhoramento do nível de vida de suas populações, como intensificar a produção das atividades básicas da economia goiana – agricultura e pecuária – além de dar forte impulso ao comércio e às indústrias de transformação, apesar de que o estado, por motivos óbvios, não alcançou ainda grau de industrialização apreciável. Hoje que não se tem mais dúvidas quanto às benéficas influências de Goiânia no processo de progressivo desenvolvimento do Estado até então amarrado aos elos de uma economia de tipo feudal, fechada, inacessível aos empreendimentos de vulto, que subsistia à custa da pecuária e lavoura produtiva, pode-se dizer que se transformou num dos principais pontos de atração de capitais do Brasil, tal o surto de progresso que aí se verifica, e passou a ocupar nos últimos anos um lugar de saliência no concêrto geral da nação. Note-se que os dados estatísticos mencionados no fragmento supra são referentes ao ano de 1958, quando Goiânia comemorava o seu 25º aniversário. Hoje, outro é o panorama, e pode-se dizer que, em decorrência da mudança, Goiás pode apresentar, nêste dezembro de 1963, os seguintes índices de desenvolvimento cultural: População do Estado: 2.239.000 habitantes (6) População de Goiânia: 207.000 habitantes (7) Receita Estadual: Cr$ 13.166.711.093,00 (8) Receita Municipal de Goiânia: Cr$ 328.996.912,90 (9) Salas de aula primária: 4 mil (10) Matrículas primárias: 232 mil (11) Estabelecimentos escolares de grau médio: 169 (12) População escolar de grau médio: 19.619 (13) Ensino Superior: Duas Universidades Assistência Médico-Sanitária: 28 Postos de Higiene no interior e 8 em Goiânia. (14) Departamentos Hospitalares: 6 além de numerosos hospitais particulares na Capital e no interior. (15) Unidades Sanitárias: O plano MB prevê a instalação de 135 US no quinquênio 1961-1965. (16) Produção Agrícola: Cr$ 14.468.072.622,00 (arroz, milho, feijão, mandioca, etc.). (17) Produção Pecuária: Cr$ 78.824.659.067,00. (18) Rebanho bovino: 6.616.755 cabeças (5º lugar no país). (19) Êstes elementos estatísticos são atinentes apenas às expressões mais vigorosas do desenvolvimento cultural goiano. Através dêles se pode conjecturar a respeito dos restantes setôres. Como é patente, Goiás ainda não chegou à fase da industrialização. Sua infra-estrutura repousa em atividades predominantemente agropecuárias. Tal fato se deve em parte à carência de energia elétrica que, máxime, em Goiânia, tem travado a expansão industrial, que jamais estêve paralela à agrícola e pastoril. Por isto, o Plano de Desenvolvimento Econômico de Goiás (Plano MB) acelerou a construção das últimas etapas da Usina Cachoeira Dourada, o que dará, em breve, às nossas necessidades uma potência superiora 160 mil KW. Acha-se em elaboração um grandioso projeto para o aproveitamento das possibilidades dos rios Corumbá, Claro e Tocantins, onde se iniciou a construção das Usinas do Lajeado, Mosquito, Farinha e São Félix (tôdas no Tocantins), que representa a passada inicial da industrialização da Zona Norte do Estado, opulenta em minérios. E apesar da complexidade dessa tessitura cultural entretecida a partir das primeiras passadas do Anhangüera em 1725 – temos ainda muito que fazer, pois Goiás possui 64% de seus municípios sem profissionais de medicina, 67% de analfabetos e 300 mil crianças sem escolas (20). (1) Capítulo do nosso livro a publicar-se sob o título ANTROPOLOGIA CULTURAL DE GOIÁS. (2) Professor de Antropologia Cultural do Centro de Estudos Brasileiros. (3) Felix Keesing, in Antropologia Cultural. (4) Idem, ibidem. (5) Colemar Natal e Silva, in História de Goiás. (6) Estimativa do Laboratório Nacional de Estatística do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. (7) Idem, ibidem. (8) Lei Orçamentária do Estado de Goiás publicada no Diário Oficial de 31/12/62. (9) Informação prestada pela Inspetoria do IBGE, em Goiânia, e relativa ao ano de 1962. (10) Estatística colhida no livro Primeiro Plano de Desenvolvimento Econômico do Estado de Goiás (Plano MB). (11) Idem, ibidem. (12) Idem, ibidem. (13) Idem, ibidem. (14) Idem, ibidem. (15) Idem, ibidem. (16) Idem, ibidem. (17) Idem, ibidem. (18) Idem, ibidem. (19) Idem, ibidem. (20) Idem, ibidem. SE BACH FOSSE VIVO E BRASILEIRO (As Bachianas Brasileiras de Vila-Lobos) Maestro Jean François Douliez Conservatório de Música da UFG Estudando nas fontes e nas origens as inúmeras formas e os conteúdos da música de João Sebastião Bach, teremos, inevitàvelmente, a examinar também os ritmos da dança que, de preferência, adotou tão freqüentemente em suas obras. Efetivamente, por que não dizê-lo desde o início, que quase tôda a música de Bach é dançante? Dançantes são êsses ritmos que, não sòmente regulam o decorrer do tempo musical, porém, também incitam o corpo humano a movimentos dançantes. Os “puristas” podem objetar, que a música de Bach é completamente isenta de quaisquer sentimentos sensuais; que ela é pura e ùnicamente espiritual. Certamente, Bach espiritualizou suas danças, entretanto..., ficaram danças e, danças até nos nomes: Minueto, Gavota, Giga, Louré, Bourrée, Allemande, Courante, Sarabanda, Polonaise, Passepied, Siziliano, Passacaglia... quantas são! Tratadas, melódica e periòdicamente como danças, Bach desencarnou e espiritualizou-as de tal forma que, de vulgaridade sensual rítmica, não poderá haver mais questão. Aliás, o ritmo bachiano é tido, ainda hoje, como tão erudito quanto a própria concepção melódica e polifônica dêle, fazendo parte equilibrada dos três elementos que integram a música: melodia, harmonia e ritmo. O sentimento rítmico é, em geral, coisa que o povo europeu perdeu. Um musicólogo suíço fala da “inabilidade rítmica dos povos da Europa Central” (René Matthes. Educação Musical Elementar. Ed. Kassel. 1951. p. 12). Um alemão acha que: A falta de sentimento rítmico é coisa comum na tradição musical dos países noturnos (Abendlaendische Volker – os povos da velha Europa), onde existe um curioso rompimento entre uma tão maravilhosa concepção melódica, harmônica e formal de um lado e, do outro, o empobrecimento dos elementos rítmicos. (Joachim Ernst Berendt. O Nôvo Livro do Jazz. Frankfurt a/M, 1959, p. 113) Um inglês diz: “A maioria dos europeus do norte são mortos do pescoço para baixo” (Rolf Gardiner. Comunicações da Associação Musical Britânica. Caderno do mês de abril de 1957, p. 6). “Não estranha então, que muitos compositores adotam a “motoricidade”, que divida o tempo em batucadas absolutamente iguais e simétricas, o que finalmente deveria produzir ritmo”. (Alfred Baresel. O Ritmo no Jazz e na Música de Dança. Trossingen, 1955, p. 11). Na realidade, êste fenômeno não é coisa comum na tradição musical dos países da Europa, mas de todos os países civilizados. Já Santo Agostinho, em seus escritos sôbre música, disse que: de acordo com o sentido exato da palavra grega “ritmo”, e para uma boa execução musical, é indispensável que a gente tenha uma certa experiência do movimento, isto é: que a sonorização deve ter uma bem ordenada movimentação rítmica. No capítulo “De Música”, Santo Agostinho define a música como “scientia bene modulandi” e a modulação como “quaedam peritia movendi”. Na Idade Média, Berno, abade do Convento de Reichenau, na Alemanha, escreve: “que segundo o exemplo dos antigos mestres, o homem fica aliviado de corpo e alma pela bem ordenada musicalidade do ritmo da melodia” (“Cantilena ex veterum corporisque compago delectatur”). Heinrich Schultz, predecessor de J. S. Bach, já escreveu em 1623: “Que a alma e a vida de tôda música residem na bem ordenada movimentação do compasso e do ritmo, e na acentuação dos tempos fortes e fracos”. Também François Couperin, em seu livro sôbre A Arte de tocar Piano, editado em 1717, disse: “Que o compasso (la mesure) regula a duração e a simetria dos tempos, uma vez que o ritmo (le mouvement) constitui o VERDADEIRO ESPÍRITO E A ALMA DA MÚSICA”. (L’Art de toucher le Clavecin. Paris, 1717 – Nova Edição com textos em alemão e inglês de Anna Linde. Wiesbaden, 1933, p. 24). Não menos importante é, com respeito ao ritmo, o que encontramos no Kurtzgefaszte Musikalische Lexicon, de Stoszel, publicado em Chemnitz no ano de 1737: Movimento ou ritmo é, na música, uma coisa completamente diferente que o compasso, não obstante a maioria não conheça essa diferença e tome um por outro. O movimento ou o ritmo consiste na maneira exata em que uma música é interpretada, o que dá vida à música, sem o qual a música é coisa monótona e morta; e isto é um negócio de experiência, de “judicii et gusto”. Também o Hamburguês Johann Mattheson, porte-estandarte da música Bachiana, repetidamente chamou em seus escritos a atenção sôbre a dificuldade de “discernir o verdadeiro movimento de uma peça musical, o que é a mais perfeita expressão da Arte musical, que a gente sòmente atinge pela experiência e os grandes dotes da natureza. (Johann Mattheson. O Perfeito Maestro. Hamburgo, 1739. Edição em fac-símile, reeditada por Margareta Reimann. Kassel & Basel, 1954, p. 173, parágrafo 27) Ainda muitos outros grandes mestres da música atribuíram ao ritmo e ao compasso um papel preponderante na música. Aliás, os três elementos que formam a música: MELODIA, HARMONIA E RITMO, devem ser equilibrados em cada composição musical. Suprimir o RITMO na música, significaria amputá-la dos membros inferiores, as pernas, porque: melodia = cabeça, harmonia = corpo, ritmo = pernas. Qual era a atitude de Bach perante o problema do ritmo? Conhecê-la através dos estudos sôbre Bach do prof. Johann Mathias Gesner, amigo de Bach, reitor da Thomasschule, da qual Bach era o “Kantor” é indispensável para qualquer estudioso da arte musical. O prof. Gesner, que mais tarde foi professor de Filologia Clássica na Universidade de Goettingen, na Alemanha, caracterizou Bach como “membris omnibus rhytmicus” (Institutiones Oratoriae, 1738). Que Johann Sebastian Bach estava fortemente influenciado pelos ritmos de dança não é sòmente testemunhado pelo prof. Gesner, mas sua própria música nos dá a maior prova disso. Mais de trinta Suítes de Bach, com cada uma, pelo menos, quatro movimentos diferentes, são danças. A maior parte das outras obras de Bach, tanto vocais como instrumentais, religiosas e profanas, são peças e ritmos de danças. Além disso, as peças para piano, que escreveu entre 1722 e 1725 para sua esposa dona Anna Magdalena, são polonaises, marchas, minuetos, bourrées e outras danças. As Partitas ou Sonatas para violino só, são todas elas danças, inclusive a Chaconne. O valor que Bach atribuiu às danças para o ensino da composição nos é testemunhado por um dos seus alunos, Johann Philipp Kirnberger, em sua Teoria Geral das Belas Artes. Escreve êle: Os bons professores de música sempre incentivaram seus alunos a tocar e compor peças de dança; Bach também o fez sempre com preferência, a fim de familiarizar seus discípulos com o mecanismo do compasso e do ritmo. Isto serviu ao mesmo tempo como exercício de interpretação. Os diferentes compassos, os vários ritmos e movimentos imprimiam à música o caráter de expressão, com o qual os instrumentistas ou os compositores têm que se identificar. Quem quer conseguir uma interpretação rítmica exata é aconselhado seguir a orientação de um bom professor de música e SIMULTÀNEAMENTE DE UM BOM PROFESSOR DE DANÇA. Ninguém deveria pretender que as peças de dança não têm bom gosto: elas têm mais do que isso, elas têm caráter e expressão. Mais além, Kirnberger escreve: Que isto não implica que o instrumentista deve fazer movimentos antiestéticos como corpo durante a execução de uma peça bem ritmada; Bach, o grande João Sebastião Bach, nunca fez a menor grimaça, nem movimento com o corpo, quando tocava e, apenas, enxergava-se o movimento de seus dedos. Isto não quer dizer que Bach estava sentado no instrumento como um pau, não: para o “omnibus membris rhytmicus”, coisa semelhante seria impossível, porém, cada movimento do seu corpo era tão gracioso e sincronizado com o ritmo da peça que tocava que apenas seus movimentos pareciam reflexos naturais. Ainda mais convincente é a declaração do próprio filho de Bach, Felipe Emanuel, que encontramos no capítulo “Da Interpretação da Música do meu Pai” do seu famoso Método, dizendo: Nem meu pai, nem qualquer outro membro da minha família, tocavam cravo, piano ou órgão, fica sentado no instrumento como uma estátua de bronze. Porém, tão feios e prejudiciais são os movimentos antiestéticos do corpo, quanto mais úteis são os bons, à condição que ajudam os auditores na compreensão do ritmo. O mesmo Felipe Emanuel Bach, tão genial quanto o próprio pai, criador da forma definitiva da “Sonata”, teve como professor de ritmo o Mestre de dança francês De la Selle, que ensinava na Academia dos Cavalheiros e na Michaelisschule em Luneburgo, onde o jovem Bach estudava (Gustav Fock. O Jovem Felipe Emanuel Bach em Luneburgo de 1700 até 1702. Hamburgo, 1950. Capítulo “Musikforschung” IV, p. 233 f.). Finalmente, o grande musicólogo Johann Nicolaus Forkel, em seu livro Sôbre Johann Sebastian Bach – Sua Vida, Sua Arte e Suas Obras (Leipzig, 1802. Reedição de J. M. Muller. Augsburgo: Blattau, 1925. Fac-símile Frankfurt a/M, 1950), diz o seguinte:“Os compositores deveriam introduzir em suas obras uma multidão de ritmos de danças, que, infelizmente, se perderam (já em 1800) e usá-los, a fim de dar mais caráter às composições”. (p. 52). E mais além: Também êsse ramo da arte musical, Bach o manejava mais e muito além do que qualquer um dos seus predecessores ou contemporâneos. Nenhum ritmo de dança do seu tempo ficou inutilizado por êle, a fim e dar às suas peças mais caráter e mais diversidade de ritmos. Sua habilidade no manejamento dos ritmos de dança era tão grande, que mesmo em suas “Fugas” aparecem do começo até o fim. (p. 52) Concluímos deste pequeno estudo sôbre a música do maior gênio que era Bach, o seguinte: mais de dois séculos após sua morte, a música de Bach é ainda viva e moderníssima, imprescindível nos estudos da Arte musical em qualquer Conservatório do mundo inteiro. E ela ficará viva ainda por muito tempo. Os grandes compositores, tais como Béla Bartók, Darius Milhaud, Stravinsky e os brasileiros Vila-Lobos, Francisco Mignone, Camargo Guarnieri, Lorenzo-Fernandes e mesmo o americano George Gershwin, têm razão quando se voltam para o passado e se inspiram nas fontes do “Kantor de Leipzig”, empregando ritmos de danças do nosso tempo em suas composições. Efetivamente, se Bach fosse vivo e brasileiro, não resta dúvida que suas composições seriam Batuques, Sambas, Frevos, Choros, Ponteios, Devaneios, Modinhas e até Valsas. Por isso, as Bachianas Brasileiras de Vila-Lobos, cheios de Choros e Sambas, são obras do melhor quilate. Com tôdo respeito que devo a Bach e para o despeito dos “puristas”, que querem impor Bach como um “would-be” músico austero, grave, trágico, super-religioso ou coisa que valha, pretendo que, ao contrário, era muito espirituoso e cheio de vida. Visto sob este ângulo, o conteúdo e os ritmos dançantes na música de Bach, têm uma importância primordial na interpretação e merecem mais do que um simples estudo musicológico – isto é, sua música deve ser tocada com aquilo que os alemães chamam de “Schwung”, o que podemos talvez traduzir em português por “saltitância”. AS “BACHIANAS BRASILEIRAS” DE VILA-LOBOS Em 1930, Heitor Vila-Lobos, o mais brasileiro dos compositores contemporâneos brasileiros, iniciou a composição desta grandiosa série de obras musicais, abrangendo diversas peças instrumentistas e corais, nas quais associa o estilo melódico e contrapontístico de Johann Sebastian Bach às características peculiares da música brasileira, de acordo com os estudos profundos que Vila-Lobos fez do nosso folclore em diversas regiões geográficas do Brasil. Na opinião de Vila-Lobos, e concordamos com êle, a música de Bach constitui uma fonte folclórica universal, fazendo o papel de intermediária entre todas as raças e comunidades étnicas. A “Bachiana Brasileira nº 1”, escrita para orquestra composta exclusivamente de violoncelos, possui três partes: Introdução (Embolada), Prelúdio (Modinha) e Fuga (Conversa). O nº 2, para orquestra de câmera, é uma peça que evoca alguns panoramas sugestivos e típicos da vida brasileira. Possui quatro partes: Prelúdio (O Canto do Capadócio), Ária (O Canto de nossa Terra), Dança (Lembrança do Sertão) e Tocata (Trenzinho do Caipira). O último movimento é de grande beleza descritiva, contendo um ritmo que faz lembrar o trem em marcha, com seus ruídos característicos, impregnado de música tìpicamente sertaneja estilizada com sedutora elegância, sem perder suas características próprias e que nos enchem de saudades da nossa gente sertaneja tão querida e tão abandonada. O nº 3, para piano e orquestra, foi escrito em 1938, possui quatro partes: Prelúdio (Ponteio), Fantasia (Devaneio), Ária (Modinha) e Tocata (Picapau). O nº 4, para piano e transcrito para orquestra pelo autor, tem as seguintes partes: Prelúdio (Introdução), Ária (Cantiga), Coral (Canção do Sertão) e Dança (Miudinho). O nº 5, para soprano solo e violoncelos é de imensa beleza, a nosso ver a mais bela de todas as Bachianas Brasileiras. Possui dois números: Ária (Cantilena) e Dança (Martelo), sendo que o texto do primeiro número é da autoria de Ruth Valadares Corrêa e do segundo, do poeta Manoel Bandeira. O nº 6, para flauta e fagote, possui dois números: Ária (Choro) e Fantasia. O nº 7, para orquestra, tem quatro partes: Prelúdio (Ponteio), Giga (Quadrilha Caipira), Tocata (Desafio) e Fuga (Conversa). O nº 8, para orquestra, tem também quatro partes: Prelúdio, Ária, Tocata e Fuga. O nº 9, para vozes e arranjado para orquestra de cordas pelo autor, tem duas partes: não tem texto e as palavras são substituídas por sílabas. As vozes cantam como se fossem instrumentos, pronunciando diversas sílabas, como: ô, â, lô, nan, lé, etc. Além das Bachianas Brasileiras, Vila-Lobos compôs, entre 1920 e 1929, uma série notável de Choros, os quais, segundo o próprio autor, constituem uma nova forma de composição musical, na qual, se acham sintetizadas várias modalidades de nossa música indígena, primitiva, civilizada ou popular, tendo como principais elementos o RITMO e qualquer melodia típica popularizada que aparece de quando em quando, incidentalmente. Essa série é formada por uma Introdução e dezesseis Choros, dos quais nove são sinfônicos. No nº 13 dos Choros, escrito por duas orquestras, uma parte inteira é consagrada puramente ao ritmo, onde são empregados na bateria instrumentos típicos como o “camisão”, o “caxambu”, a “tartaruga”, o “tambi” e o “pio”. Vila-Lobos, que desde criança demonstrou grande e acentuada preferência para as divinas obras de Bach, sobretudo os Prelúdios e as Fugas, compondo as magníficas Bachianas Brasileiras e os Choros, quis trazer à humanidade inteira em geral, e, aos brasileiros em particular, a mensagem da UNIVERSALIDADE DA ARTE MUSICAL e demonstrar que SE BACH FOSSE VIVO E BRASILEIRO, teria escrito música como êle, do mesmo modo que Prokofieff, com sua Sinfonia Clássica, quis demonstrar, como Mozart teria escrita sua música se fosse russo, e, evidentemente, contemporâneo. A VEGETAÇÃO E O APROVEITAMENTO DOS CAMPOS CERRADOS Horieste Gomes Engana-se o viandante, que pensa encontrar no território goiano as florestas compactas e contínuas, citadas nas estatísticas do passado. A paisagem que se estende numa monotonia constante, é o cerrado verde-amarelo interrompido às vêzes pelas matas galerias ao longo dos rios, ou formando manchas isoladas na superfície. A mata tropical latifoliada dos vales e encostas do Paranaíba, Araguaia, Caiapó, Rio Claro, do Peixe, São Patrício, Lontra... etc., são verdadeiras exceções dentro do conjunto vegetal regional. A observação do mapa fitogeográfico evidencia a predominância quase absoluta dos campos cerrados, entre os demais tipos de vegetação. Os dados fornecidos pelo Setor de Fitogeografia do Conselho Nacional de Geografia positivam a afirmação. Floresta equatorial: 14.135 km² Floresta tropical: 39.303 km² (1) Cerrados: 555.835 km² Trata-se realmente de uma apresentação muito generalizada, semi-verdadeira, viste que, estudos do campo já realizados, como o de Spiridião Faissol, retificaram dados incorretos na área sudeste do Planalto Central. O conhecido geógrafo do CNG comenta em seu trabalho, Vegetação e Solos no Sudeste do Planalto Central: “Calcula-se hoje que pelo menos 30% da área do sudeste do Planalto Central seja constituída de matas, muito embora grandemente devastadas”(2). Tal devastação está notadamente relacionada com as práticas agrícolas, e não com a existência de uma indústria extrativa organizada. Realmente incorreríamos em erro, se admitíssemos unicamente 39.303 km² de floresta tropical para o nosso Estado, quando sabemos que as duas maiores regiões florestais que possuímos – o Mato Grosso Goiano e o Vale do Paranaíba – possuem respectivamente 20.000 km² e 18.000 km², restando apenas 1.303 km² para todas as demais regiões, e que seria uma evidente incoerência. Falta-nos um levantamento aerofotogramétrico completo, que possibilitaria a delimitação mais perfeita das atuais reservas do Estado. O que está bem definido, e de conhecimento público, é o domínio dos campos cerrados em nosso meio geográfico, comparado aos demais tipos de vegetação existente. Tal característica reflete a própria economia de Goiás – pastoril – e impõe aos técnicos estudos obrigatórios e aprofundados, buscando as suas reais possibilidades agropastoris, porquanto nossas reservas florestais, sinônimo de terras férteis, caminham a passos largos para a extinção. No artigo intitulado O Cerrado Mineiro e Seus Problemas, o agrônomo Ezechias Paulo Heringer pontifica: O conhecimento dos problemas relativos à conquista do Cerrado é no momento aquêle que merece o maior carinho e atenção dos homens que arcam com as responsabilidades de aumentar a produção agrária do país. Sejam êles, fazendeiros, agrônomos especialistas em silvicultura, experimentação agrícola, fertilidade do solo, zootecnistas, geneticistas, engenheiros civis e metalúrgicos, médicos rurais, professores, etc., etc. (3) Basta salientar que somente para o Centro-Oeste do Brasil, calculam uma superfície de 1,5 milhão de quilômetros quadrados em cerrados, o que comprova a importância que assume no mundo científico atual, chamando a atenção dos estudiosos. Representando a paisagem dominante no Centro-Oeste brasileiro, os campos cerrados são ainda de tal forma desconhecidos, que até a sua própria origem permanece no terreno das controvérsias. O prof. Félix K. Rawitscher e seus discípulos, que o estudaram no Estado de São Paulo, expressaram a princípio, a opinião de que êle é uma vegetação subclímax “Cerrado at Emas is not the natural vegetation of this region, but a fire-climax”. (4) Passivelmente foi uma floresta queimada que se transformou em pasto, resultando finalmente em campo cerrado. Atribuíram assim ao fogo, papel capital na distribuição atual da citada vegetação. Posteriormente, como assevera Karl Arens, “abandonou êsse ponto de vista de que o fogo fosse um fator essencial da ecologia do cerrado”. (5) Uma das objeções apresentadas à hipótese de que o cerrado seja uma vegetação secundária é a existência de cerrado em topos de testemunhos, quase inacessíveis no centro de Mato Grosso (Chapada dos Guimarães). Outros indagam, com muita razão, porque o indígena, em sua agricultura de queimada itinerante estancou a sua ação destrutiva até as barrancas mato-grossenses do Rio Paraná, deixando intacto o lado paulista. A pergunta agrava-se ainda mais, quando sabemos que outros grupos silvícolas habitavam a exuberante floresta paulista, ainda em estado virgem. O prof. Fausto Ribeiro de Barros, da escola de Rawitscher, em sua tese A Transformação Florística dos Campos de Avanhandava pela Ação das Queimadas: “Somos testemunha das transformações florísticas dos campos de Avanhandava. Temos notado que o campo cerrado foi aparecendo mais rapidamente onde se operavam as queimadas” (6). Os defensores da teoria de que os campos cerrados resultam de florestas degradadas, parecem fundamentar suas justificativas na evolução natural da flora, que segundo os botânicos evolui-se a partir de micro-organismos até as formas superiores vegetais. Elemento que não deve ficar desapercebido, apesar de muito conhecido no meio rural, é que após a destruição da mata pela queima ou pelo corte, a nova vegetação silvestre que aparece é a conhecida capoeira e não um campo cerrado. É lógico que com queimas sucessivas num mesmo local, a vida bacteriana tende a desaparecer, juntamente com os elementos minerais, o que ocasionará um evidente raquitismo na vegetação a aparecer. Outros como Eugênio Warming e Lee Waibel, defendem a originalidade do campo cerrado, considerando-o uma vegetação clímax natural, atribuindo ao fogo parcela secundária na formação da vegetação. “Absolutamente inadmissível a hipótese que quer que os incêndios tenham provocado essas transformações em tôda a extensão imensa dos campos que cobrem o interior do Brasil” (7). Se o fogo pode mudar os hábitos das árvores, a sua casca, a densidade da sua formação, o tempo de florescimento e da queda das fôlhas, êle certamente não pode criar as fôlhas singularmente grandes de algumas árvores que não ocorre em nenhuma comunidade vegetal da América Tropical, com exceção de plantas de sombra e de brejo (8). Waibel impressionou-se profundamente com o tamanho das fôlhas em árvores tão pequenas (lobeira, lixeira, pau santo, etc.) e pelo fato das árvores e arbustos conservarem até os meados de agosto todas as suas fôlhas. Êsse proceder foi explicado cientificamente por Félix Rawitscher, por Mário Ferri, demonstrando que elas não necessitam de proteção excessiva à transpiração, uma vez que abrigam no subsolo mais água do que as florestas, e suas raízes buscam-na, às vêzes, a 18 e mesmo 20 metros de profundidade. Realmente, os campos cerrados com as suas formações arbóreas, arbustivas e herbáceas, exercem papel muito importante na manutenção dos lençóis aquíferos subterrâneos, retendo melhor a água de infiltração no subsolo, trazida pela pluviosidade. Waibel invoca também as condições do campo cerrado – arenoso, quase seco, com parcela reduzida de húmus –, opinando pelo contraste com o solo da mata, concluindo ser (os campos cerrados) uma vegetação sui generis, isto é, completamente distinta da mata e do campo. Henrique Veloso em seu trabalho Considerações Geral sôbre a Vegetação de Mato Grosso, atribui ao cerrado da região estudada e caráter de clímax. Outro que advoga a teoria da primitividade dos campos cerrados é Kurt Hueck. Apresenta entre outras justificativas: A – justamente em lugares onde a influência humana é mínima encontramos os cerrados mais importantes e de dimensões gigantescas... revestindo áreas em que nunca viveu uma população suficientemente forte para ser capaz de mudar a cobertura vegetal natural, numa forma progressiva, quer pelas queimas, quer pelos cortes. B – a teoria do fogo não pode explicar a ocorrência de locais onde os campos cerrados surgem como pequenas ilhas nas selvas amazônicas. Parece impossível que, sob as atuais condições ecológicas, possam as sementes das plantas dos cerrados invadir centenas de quilômetros através da espessa floresta amazônica para ocupar pequenas áreas sem árvores, que supõe terem sido forjadas pelo homem... estes locais não parecem ser os primeiros representantes de uma nova vegetação, mas sim os últimos remanescentes de uma vegetação que cobria a região e agora se acham isolados em pequenas ilhas pela poderosa floresta pluvial invasora. (9) Mário Guimarães Ferri tece a seguinte crítica às conclusões de Hueck: “uma reunião de considerações teóricas e de observações ocasionais, feitas em viagens em geral longas, mas de duração relativamente curta”. (10) Para Paulo T. Alvim e Wilson de Araújo, a distribuição dos cerrados é devido principalmente ao solo, cujas condições nutrientes deficitárias não permitem o aparecimento de florestas. O baixo pH e teor em cálcio condicionam ao meio as espécies dos cerrados. Há ainda os que consideram como vegetação ecótone, isto é, transição de campo limpo para o campo sujo e deste para o cerrado. Recentemente, no simpósio realizado em São Paulo, nova hipótese foi aventada com relação a sua origem. Trata-se dos trabalhos do Professor Karl Arens, que apontou as deficiências minerais, em nitrogênio, fósforo, cálcio, enxofre, potássio..., dos solos dos cerrados como responsável direto pelo aparecimento da vegetação, concluindo: A falta do Ca, P, S, N, que foi constatada pela análise química dos solos de cerrados, produz acumulação de carboidratos e consequente escleromorfia, como se desprende de muitos dados de literatura, em parte acima citados. A escassez destes quatro macronutrientes reduz a síntese das proteínas citoplasmáticas, limitando assim o crescimento. A escassez de Zn e Mo age aparentemente pelas mesmas razões, ou seja, pela redução da síntese proteica. Daí concluímos, que as árvores e arbustos são limitados em seu crescimento, não pela falta de água, mas sim, pela escassez de sais minerais dos selos pobres dos cerrados. (11) Esta hipótese, por sinal bastante fundamentada, leva-nos ao raciocínio de que a problemática a respeito da origem dos campos cerrados, caminha para a solução definitiva. Em resumo, segundo as correntes, êles seriam: A – vegetação clímax; B – vegetação degradada; C – vegetação ecótone; D – vegetação como resultado da oligotrofia. Tôdo este emaranhado de considerações controvertidas tem significação muito relativa, pois, mais importante do que a validade ou não de sua primitividade, é sabermos se os campos cerrados, que ocupam a maior porção do território goiano, prestam-se às práticas agropastoris. Spiridião Faissol, em Desenvolvimento Agrícola do Sudeste do Planalto Central, já adverte: “por quatro séculos, a agricultura brasileira tem-se restringido às áreas de floresta tropical, mas, agora chegou o momento em que esta floresta em áreas ainda disponíveis e acessíveis, já não deve mais ser usada para a continuação da expansão agrícola”. (12) A estreita vinculação existente entre a mata e o cultivo no Brasil, tem agido em detrimento do real valor dos campos cerrados. Desta forma, a mata alta, fechada, com muitas lianas, espécies vegetais como o jatobá, a peroba, o cedro, palmeiras como a alta guariroba e o baixo bacuri são características de solo fértil, rico em matéria orgânica e sais minerais. É a cultura de primeira, na linguagem do nosso camponês. Em decorrência de sua fertilidade, verificamos elevada concentração demográfica, quantidade maior de área cultivada, em menores propriedades rurais, proporcionando desenvolvimento econômico mais acentuado. Confirmam-no as regiões florestais do Mato Grosso Goiano e do vale do Paraíba, apresentando a mais elevada densidade humana do Estado e os maiores índices de produtividade. Nos campos cerrados, cujos solos de maneira geral apresentam boa profundidade, capacidade de água disponível inferior ao nível moderado (embora exista em maior quantidade no subsolo) ocorrendo diversos tipos e classes estruturais, desde areia até argila, reduzida capacidade de troca e de matéria orgânica, e elevada acidez, processa-se atualmente o oposto. Constituídos por dois estratos, sendo um arbóreo-arbustivo, com espécies vegetais pequenas, retorcidas, espaçadas, tendo a casca grossa e as fôlhas pilosas – o pau terra, o araticum, o barbatimão, o murici, o pau-santo, o pequi, a lobeira... – o outro herbáceo com presença de gramíneas e capins, como o fedegoso, a barba de bode, forrageiras de baixo valor alimentar para o gado. Daí resulta as terras dos cerrados serem cotadas a prêços reduzidos, metade dos de mata de 2ª classe, determinando fraca fixação humana e baixo rendimento; são mais bem valorizadas nos lugares onde apresentam boas ferragens, como o capim-mimoso e o gordura. Entretanto, êsse conceito vigente em nosso país, já começa a perder a sua validade, mediante as primeiras práticas agrícolas em campos cerrados, cujos resultados são bastante animadores. Cultivos como o de abacaxi, mandioca, algodão, cana para o gado, e mesmo arroz em escala comercial, efetuadas em vários rincões de Goiás, Minas e São Paulo, vem confirmar a viabilidade do aproveitamento dos seus selos para fins agrícolas. Em Goiás, são a mandioca e o abacaxi os mais cultivados nos terrenos do cerrado; o arroz está sendo cultivado nos cerradões de Goiatuba e Itumbiara. Em Minas Gerais, o Triângulo Mineiro é grande produtor de abacaxi, realizando intenso comércio dessa fruta com São Paulo e Rio de Janeiro. Renato de Oliveira Coimbra, fez inúmeros experimentos na Estação Experimental de Sete Lagoas, afirmando que o trabalho feito, partindo-se do zero e chegando-se a rendimentos de 2.000 kg/ha de algodão a 7.600 kg/ha de milho híbrido. O bom êxito deve-se a um conjunto de medidas, indicadas pela experimentação, razão por que, guardando a necessária seqüência, abordaremos os resultados com a calagem, a adubação verde e a adubação química, de par com os de defesa do solo e rotação de culturas, que conduziram o estabelecimento a compensadoras colheitas, mantendo, ao mesmo tempo, o solo em boas condições de fertilidade. (13) Em São Paulo, experiências levadas a efeito em cerrados de Orlândia, Pirassununga e Matão, com culturas de algodão, milho e soja, deram bons resultados. Evidentemente, o uso dos campos cerrados no sentido agrícola, importa numa mudança da técnica de produção rotineira. O sistema primitivo de rotação das terras herdado de indígena brasileiro: “Nos lugares onde querem plantar, cortam primeiramente as árvores e deixam-nas secar de um a três meses; em seguida deitam fogo à derrubada, e nas cinzas, entre troncos menos carbonizados plantam” (Staden), que é usado no Brasil, quase que de ponta a ponta, certamente não pode ser o utilizado. A rotação de terras melhoradas, também não surtiria efeito desejado pelo aproveitamento racional da fertilidade natural dos solos, procurando sempre aumentar o seu potencial através da adubação verde, da adubação química, da correção dos solos ácidos pela calagem, com emprego de fungicidas, matéria orgânica, de sementes selecionadas e integradas ecologicamente em seu habitat, utilizando-se a rotação de culturas e maquinaria, enfim de uma agricultura permanente é que poderão surtir resultados compensadores. É necessário que se diga, que para corrigir a acidez excessiva dos nossos solos, contamos com um recurso natural importante, imensas reservas de calcário, notadamente nas zonas do Paranã, em diversos municípios (Posse, São Domingos, Taguatinga, Dianópolis); do Planalto (Corumbá de Goiás, Formosa, Nova Roma, Veadeiros) e Norte Goiano (Duerê, Cristalândia...). Faissol advoga que unicamente as grandes empresas estariam à altura de tão importante desiderato, invocando a grande produção per capita, como elemento compensador ao pequeno rendimento por área. Ao que parece, assentou tal conclusão na experiência realizada pela fazenda Boa Esperança, município de Formosa, propugnando pela “necessidade absoluta de fazer um levantamento minucioso das diversas variações do campo cerrado para que possam usar as partes mais apropriadas para a agricultura, em cultivo de produtos agrícolas, evitando-se as áreas cobertas por blocos de canga ou as de relevo acidentado pela possibilidade de se acentuar a erosão do solo”. (14) Outro aspecto a observar, parece um paradoxo, é que os maiores obstáculos à utilização agrícola dos campos cerrados têm sido as matas. À medida que vão sendo devastadas, é que se faz sentir a procura da mata secundária ou mato seco, dos cerradões e dos cerrados (exemplo do cerradão de Itumbiara), consequentemente o uso da terra do cerrado está estritamente vinculado à pressão demográfica, o que se traduz pela demanda incessante das matas e dilapidação progressiva de nossas reservas florestais. Quanto ao aproveitamento dos cerrados para a atividade pastoril, sabemos que é o estrato inferior que tem importância, e quanto maior for o espaçamento das formações arbóreas (estrato superior) praticamente inúteis com forragem, tanto melhor será para a criação, porque as espécies rasteiras aumentam à medida que as arbóreas diminuem. A maior parte das pastagens dos cerrados goianos são de fraco valor alimentar, não comportando grandes rebanhos, atendendo em média uma rês por três hectares. Todavia, ao lado de plantas qualitativamente fracas (fedegoso, barba-de-bode), existem boas gramíneas como o capim-mimoso, o jaraguá, o bambu cambaúva, etc. Infelizmente a prática da queimada após a estação seca, destinada ao rápido brotamento das espécies e extermínio das pragas que flagelam o gado, determina a proliferação de ervas daninhas, que invadem a seara de boas forrageiras, constituindo uma verdadeira simbiose vegetal, por sinal negativa. Também o sistema de criação adotado – extensivo, gado criado à solta sem quaisquer requisitos de ordem técnica – não beneficia o aproveitamento dos cerrados, porque determina, muitas vêzes, o excesso de rezes por hectare, e não estimula o nosso rurícola à formação de boas pastagens, que corrigiriam as deficiências alimentares das plantas dos cerrados, redundando no melhoramento dos rebanhos. “Um superpovoamento, pelo partejo contínuo e intensivo, determinará o desaparecimento rápido das plantas forrageiras existentes, apreciadas pelos bovinos, com a consequente desnudação de área ou o aparecimento de uma vegetação insólita e inaproveitável”. (15) Na maioria das vêzes a afirmação do dr. Henrique B. de Freitas, em Alguns Aspectos da Pecuária Brasileira, é verídica: “Faz-se da pecuária uma indústria extrativa e é vulgar ouvir-se dizer nessas regiões que não é o homem que cria o gado e sim o boi que cria o homem”. (16) Finalmente, não podemos nos esquecer das muitas plantas dos cerrados, classificadas pelos botânicos, de alto valor para a indústria e silvicultura que necessitam estudos mais apurados, a fim de serem melhoradas e ordenadas, buscando maior rendimento e possibilitando o aparecimento de indústrias permanentes. Mencionamos entre elas, título de curiosidade, as seguintes: a – barbatimão – possui elevada porcentagem de tanino, substância de largo emprego nos curtumes; b – mangabeira – produz o látex e fruta saborosa; c – pequi – fornece madeira, frutos vitaminados e oleaginosos; d – faveira – além de madeira, fornece legumes forrageiros para o gado; e – pau-santo – fornece a cortiça; f – tingui, araticum, lixeira, plantas medicinais, produtores de essências, etc. Outra preocupação que deve ser objeto dos silvicultores brasileiros é o reflorestamento das terras dos cerrados. Em São Paulo, já se processa tal medida, na Reserva Estadual de Jataí, na Estação Experimental de Santa Rita do Passa Quatro, utilizando-se de pináceas e de eucaliptos. A análise dos dados apresentados leva-nos à necessidade de incrementar os estudos de Pedologia e Edafologia, procurando conhecer as origens, classificações e propriedades físicas e biológicas dos solos dos cerrados, bem como sua utilidade prática no sentido agropastoril, como também os de Botânica, visando buscar o maior rendimento das plantas dos cerrados, e o conhecimento de novas espécies que possam ter utilidade para os homens. Finalizando, não devemos nos esquecer como bem assevera João Soares Veiga, que “o melhoramento do solo, como o melhoramento das plantas e o melhoramento do gado, para dêle tirarmos os maiores benefícios, deve ser precedido ou, no mínimo, deve ser concomitante com o melhoramento do homem que os vais explorar”. (17) Notas (1) Geografia do Brasil-Grande Região-Centro-Oeste. CNG, vários autores. (2) Vegetação e Solos no Sudeste do Planalto Central. Spiridião Faissol. (3) Boletim Florestal – ano 3 n° 3 – 5ª I.R.F. Minas Gerais. (4) The Water Economy of the Vegetation of the “Campos Cerrados” in Southern Brazil – transcrito do Simpósio Sôbre os Cerrados, página 23 – Félix Rawitscher. (5) As Plantas Lenhosas dos Campos Cerrados como Flora Adaptada às Deficiências Mineirais do Solo – Karl Arens – Simpósio Sôbre o Cerrado. (6) A Transformação Florística dos Campos de Avanhandava pela Ação das Queimadas – Fausto Ribeiro de Barros – Anais do X Congresso Brasileiro de Geografia, vel. II. (7) Lagoa Santa. Eugênio Warming. (8) Capítulos de Geografia Tropical e do Brasil. Leo Waibel. (9) Sôbre a Origem dos Campos Cerrados no Brasil e Algumas Novas Observações no Seu Limite Meridional. Kurt Hueck. (10) Histórico dos Trabalhos Botânicos Sôbre o Cerrado – Mário Guimarães Ferri. Simpósio Sôbre o Cerrado. (11) Karls Arens, obra citada (5). (12) Desenvolvimento Agrícola do Sudeste do Planalto Central. Spiridião Faissol. (13) Agricultura no Cerrado-Renato de Oliveira Coimbra-Simpósio Sôbre o Cerrado. (14) Spiridião Faissol, obra citada (12). (15) Pecuária no Cerrado. João Soares Veiga – Simpósio Sôbre o Cerrado. (16) Alguns Aspectos da Pecuária Brasileira. Henrique E. de Freitas. (17) João Soares Veiga, obra citada (15). ----------oooOooo----------