Atalhos na pós-metrópole. Acaso, incomunicabilidade e melancolia

Transcrição

Atalhos na pós-metrópole. Acaso, incomunicabilidade e melancolia
Atalhos
na
pós-metrópole
Atalhos na
pós-metrópole.
Acaso,
incomunicabilidade
e
melancolia em três
filmes americanos dos
anos 90
Angela
Prysthon
e
Rodrigo
Carrero*
Pretendemos, neste ensaio, relacionar os processos de transformação urbana mais
relevantes da contemporaneidade a três filmes americanos da década de 90, Grand
Canyon – Ansiedade de Uma Geração (1991), Short Cuts – Cenas da Vida (1993)
e Magnolia (1999). O propósito é identificar, além de uma evidente unidade estética,
um padrão de recorrências temáticas que definam a experiência metropolitana de Los
Angeles. Para isso, vamos nos aproximar primeiramente do conceito de pós-metrópole,
definido por Edward Soja, para chegar à cidade de Los Angeles e algumas de suas
representações cinematográficas na década de 90.
Pós-metrópole - cinema dos anos 90 - representações urbanas - comunicação e
cidades
This paper concerns the processes of contemporary urban transformation through the analysis of
three American movies of the nineties, Grand Canyon (1991), Short Cuts (1993) and Magnolia
(1999). Our purpose is to identify, besides the evident aesthetic unity, a pattern of thematic
recurrences that define the metropolitan experience of Los Angeles. In order to achieve this, we
*
Angela Prysthon é professora do Programa de Pós-graduação em Comunicação da
UFPE ([email protected]). Rodrigo Carrero é jornalista e mestre em comunicação
pela UFPE (email).
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approach the city of Los Angeles and some of its cinematographic representations via the concept
of postmetropolis (Edward Soja).
Postmetropolis - cinema of the nineties - urban representations - communications and cities
Dans cet essai nous cherchons à mettre en perspective les processus de transformation urbaine les
plus significatifs de la contemporanéité à travers l’analyse de trois films américains des années 90,
Grand Canyon (1991), Short Cuts (1993) et Magnolia (1999). Notre intention est d’identifier, audelà d’une évidente unité esthétique, un modèle de récurrences thématiques définissant l’expérience
métropolitaine de Los Angeles. Pour cela, nous allons nous intéresser tout d’abord au concept de
post-métropole, comme le défini Edward Soja, pour aboutir à la ville de Los Angeles et certaines
de ses représentations cinématographiques des années 90.
Post-métropole - cinéma des années 90 - représentations urbaines - communication et ville
Pretendemos, en este ensayo, relacionar los processos de transformación urbana más relevantes
de la época contemporána con tres filmes norteamericanos de la década de los 90, Grand Canyon
– Ansiedad de Una Generación (1991), Short Cuts – Escenas de la Vida (1993) y Magnolia
(1999). El propósito es identificar, además de una evidente unidad estética, un esquema de
recurrencias temáticas que definan la experiencia metropolitana de Los Angeles. Para eso, vamos
a aproximarnos primero al concepto de post-metrópolis, definido por Edward Soja, para luego
llegar a la ciudad de Los Angeles y a algunas de sus representaciones cinematográficas en la
década de los 90.
Post-metrópolis - cine de los años 90 - representaciones urbanas - comunicación y ciudades
Atalhos
Mapeando
a
na
pós-metrópole
pós-metrópole
The world is a suburb of Los Angeles
Michael Ford
Não parece haver dúvidas quanto às mudanças radicais ocorridas no
cerne da experiência urbana das grandes metrópoles nas últimas décadas.
Essas modificações não se resumem ao evidente adensamento
populacional que os grandes centros vêm sofrendo. Não se trata tampouco
de modificações de natureza estritamente geográfica, ou de transformações
meramente materiais. Trata-se, sobretudo, de mutações de ordem cultural.
Parece evidente que as relações humanas nas megacidades tiveram uma
espécie de degradação, uma queda de qualidade significativa – queda
essa que pode ser analisada como produto de uma extensa gama de
fatores, desde o aumento crescente da criminalidade até as modificações
arquitetônicas e urbanísticas. Os cidadãos contemporâneos estabelecem
suas relações sociais de maneiras diferentes, mais frágeis, ambíguas,
estruturadas a partir de elementos mutantes, fragmentados. Esse painel
das relações humanas nas metrópoles contemporâneas emerge atualmente
como reflexo social manifesto de um novo processo de urbanização por
que passam esses territórios.
Talvez o exemplo mais flagrante dos processos contemporâneos de
reestruturação urbana seja a região metropolitana de Los Angeles. A partir
de sua vasta malha urbana, com uma intrincada rede de bairros, uma
infinidade de pequenos centros locais e subúrbios de perfis amplamente
diversificados, Los Angeles vem sendo uma das cidades mais estudadas,
tanto por especialistas em urbanização, como por cientistas sociais. Em
meio ao debate, que já dura pelo menos quarenta anos, há um consenso:
existe uma crise que permeia o crescimento de uma nova Los Angeles,
entrelaçada com a estrutura arquitetônica e social já existente desde
meados do século XX. São, melhor dizendo, diferentes Los Angeles que
convivem dentro de um mesmo espaço físico – uma convivência nem
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sempre harmônica. Pouco pode haver de harmônico dentro de uma cidade
em crise.
Os especialistas não entram em consenso semelhante, contudo, quase
se trata de debater a respeito da magnitude da crise experimentada por
Los Angeles. Alguns acreditam que a cidade esteja vivendo a mais ampla
mudança dos rumos do urbanismo desde o surgimento das cidades, há
6 mil anos. Outros vêem essa crise como a mais recente de uma série de
reestruturações urbanísticas efetuadas nas cidades, a partir da era
moderna. De uma forma ou de outra, sabe-se que não apenas Los Angeles
passa por este fenômeno. Há a certeza de que as transformações na vida
urbana contemporânea estão sendo experimentadas, em diferentes graus,
por todas as grandes metrópoles do mundo. Edward W. Soja observa
que: “ (...) There can be little doubt that something quite exceptional
has been happening to the modern metropolis during the last quarter of
the twentieth century” [Há pouca dúvida de que algo realmente excepcional
aconteceu com a metrópole moderna durante os últimos 25 anos do
século XX.] (Soja, 1997: 19).
Para estabelecer de modo mais claro a transição da cidade moderna,
habitada pelos cidadãos há algumas décadas, para um padrão de vida
urbana significativamente diferente, Soja cria um novo termo, a pósmetrópole1.Ele argumenta que o prefixo ‘pós’ acentua de forma convincente
a fragmentação das novas formas de experimentar a cidade, em tempos
pós-modernos. Los Angeles, nesse caso, assume a forma da pós-metrópole
por excelência, embora – o próprio Soja reforça – o processo de
reurbanização da cidade californiana faça parte de um padrão global de
reestruturação da experiência urbana nas grandes cidades do mundo.
Soja identifica seis discursos, ou seis tipos de narrativas, como forças
que agem simultaneamente, no sentido de contribuir para uma
representação da complexidade da pós-metrópole. Ele propõe seis
diferentes identidades, cuja interpolação vai produzir um conjunto mais
ou menos coerente das características de Los Angeles. Cada um dos seis
discursos recebe um rótulo, a saber: Flexcity, Cosmopolis, Exopolis,
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Metropolarities, Carceral Archipelagos e Simcities. Diferentes narrativas
que, juntas, capturam um instantâneo da pós-metrópole, com toda a
fragmentação e ambigüidade que esta possui.
Flexcity diz respeito à reestruturação econômica da pós-metrópole, a
partir da decadência dos setores industriais e o crescimento de um largo
setor de economia informal. Cosmopolis fala sobre a estruturação de
novas hierarquias econômicas das grandes cidades, a partir da
globalização do mercado. Exopolis centra o foco na reengenharia do
formato urbano, com o crescimento de cidades-satélites e a redefinição
dos limites geográficos da pós-metrópole. Metropolarities dá conta da
reestruturação do mosaico social da cidade, com o desaparecimento da
dicotomia centro/periferia e o surgimento de um fluxo contínuo entre as
diversas localizações geográficas da pós-metrópole, gerando o surgimento
e o desaparecimento de pequenos centros econômico-socais flutuantes.
Carceral Archipelago fala da obsessão com a segurança – condomínios
fechados, vigilância eletrônica –, dado fundamental na pós-metrópole.
Finalmente, Simcity flagra a reestruturação do imaginário urbano, a partir
da cultura do simulacro e do hiper-real no mundo contemporâneo.
Os seis discursos propostos por Soja são traduzidos, na vida cotidiana,
pelo isolamento emocional do habitante da pós-metrópole. O sujeito urbano
contemporâneo está tão em crise quanto a cidade que habita – de certa
forma, ele individualiza a mesma crise. É um sujeito incompleto, que
constrói relações humanas de forma problemática. Esse indivíduo incorpora
um paradoxo. Ele espelha a sensação de que, embora estejam crescendo
a cada ano, as pós-metrópoles conduzem cada vez mais à impossibilidade
de comunicação, à experiência individual do ato de viver – à solidão,
enfim. Na pós-metrópole, as relações humanas perdem a estabilidade e
a longevidade. Passam a ser conduzidas pelo acaso, pelas coincidências,
por um elemento randômico e aleatório que enfatiza a impossibilidade de
o homem tomar as rédeas do próprio destino. A dissolução da família, a
construção de novas formas – quase sempre temporárias – de sociabilidade
e o caráter transitório e superficial da amizade são elementos fundamentais
para entender a face humana da crise da pós-metrópole.
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A pós-metrópole, também já ganhou representações artísticas. Exemplos
da vida na pós-metrópole, e dos laços humanos existentes nestas
megacidades, podem ser encontrados em muitos filmes. O encontro/
desencontro de seus habitantes, característica fundamental da pósmetropole, já parece ser protagonista de um pequeno conjunto de filmes
norte-americanos. Um conjunto que ganha contornos mais firmes, mais
evidentes, à medida que avançamos rumo ao século XXI. Os meandros
da pós-metrópole ganham uma representação fiel nesse tímido subgênero
do cinema contemporâneo. Short Cuts – Cenas da Vida (1993), de Robert
Altman, além de ser um dos primeiros filmes que trata a pós-metrópole
como protagonista, talvez seja o que melhor marca suas características.
Ao capturar as idas e vindas, aproximações e afastamentos, dores e
amores do cotidiano de indivíduos comuns, desglamourizados, esse novo
gênero parece ser uma tentativa artística de flagrar o processo de
traumática reurbanização que resulta na pós-metrópole. De alguma forma,
esses filmes buscam dar voz à própria cidade. A pós-metrópole tenta
falar.
Falamos em conjunto porque Short Cuts não representa um exemplo
isolado. A ele podemos juntar outros filmes, como Magnólia (1999), de
Paul Thomas Anderson, e Grand Canyon (1991), de Lawrence Kasdan,
entre outros, que operam com características muito semelhantes. Todos
eles trabalham com grandes galerias de personagens, sem divisões claras
entre protagonistas e coadjuvantes. Todos se passam em Los Angeles,
todos enfocam o cotidiano de gente comum.
Os três filmes acima citados nos permitem acreditar que o fenômeno da
pós-metrópole possui uma estreita relação com o que Gilles Deleuze
chamou de “crise da imagem-ação”. Ao realizar sua taxonomia do cinema
no século XX, agrupando (num projeto ambicioso) toda a produção
cinematográfica relevante em dezenas de subgrupos, descrevendo suas
características comuns, em 1983, Deleuze analisou um pequeno número
de obras como representações dessa crise, chegando à conclusão de
que: “(...) o realismo, apesar de toda a sua violência, ou melhor, com
toda a sua violência que continua sendo sensório-motora, não dá conta
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desse novo estado de coisa em que os synsignos se dispersam e os
índices se confundem. Precisamos de novos signos. Nasce uma nova
espécie de imagem” (Deleuze, 1983: 253).
Deleuze não falou em pós-metropole, mas apontou características desses
filmes que afirmam a crise da imagem tradicional, denominação que
usou para falar do cinema clássico de Hollywood. Usando freqüentemente
filmes de Robert Altman para exemplificar essa “nova espécie de imagem”,
Deleuze acredita que o que substituiu a ação foi “o passeio, a
perambulação, a contínua ida e vinda”. Ele vai mais longe: “A imagem
não remete mais a uma situação globalizante ou sintética, mas dispersiva.
Os personagens são múltiplos, com interferências fracas, e se tornam
principais ou voltam a ser de novo secundárias. (...) O acaso torna-se o
único fio condutor” (Deleuze, 1983: 254).
Não temos a pretensão de Gilles Deleuze, de tentar definir as regras para
um novo gênero cinematográfico que defina essa “imagem-passeio”. Mas
acreditamos que a crise da imagem-ação, citada por Deleuze de um ponto
de vista semiótico, evoluiu e ganhou características geográficas, e porque
não dizer, pós-modernas. Falar de Short Cuts,Magnólia e Grand Canyon
pode ser um primeiro passo para refletir a respeito da emergência de um
tipo de cinema que esteja mais de acordo com a experiência urbana que
o cidadão do século XXI vivencia no dia-a-dia.
A característica que nos parece central nessas obras não está estritamente
vinculada às semelhanças estéticas, mas ao surgimento de novas regras
para as relações humanas dentro da pós-metrópole. As diferentes formas
de articulação do indivíduo em grupos – família, amigos – passam a ser
regidas por um elemento aleatório, que não obedece mais apenas a critérios
geográficos, sociais, econômicos, raciais, religiosos (embora estes
continuem operando, já que, como Soja enfatiza, a cidade moderna ainda
vive nas veias da pós-metrópole). Os encontros e desencontros, na pósmetrópole, parecem estar ligados fundamentalmente ao acaso, às
coincidências – enfim, aos atalhos. Exatamente como Deleuze aponta.
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Geografias
pós-modernas
Não se trata de mera coincidência que a cidade retratada no que vamos
chamar de cinema da pós-metrópole seja Los Angeles e suas imediações.
As singularidades da região onde está localizada a cidade mais importante
da Califórnia a transformam instantaneamente no território que melhor
captura o espírito da metrópole pós-moderna – como definiu Soja, “the
quintessential postmodern place” (o lugar pós-moderno quintessencial).
A rigor, quando os filmes, os turistas e até mesmo os habitantes se referem
a Los Angeles, não estão falando da cidade, mas do condado de Los
Angeles. Nos Estados Unidos, essa denominação é adotada, para efeito
administrativo, por regiões metropolitanas que congregam várias cidades
sem fronteiras bem definidas.
Observando-se essa particularidade, é fácil perceber uma característica
fundamental para compreender Los Angeles como uma pós-metrópole –
um rótulo mais amplo do que cidade, e que, portanto, materializa melhor
a idéia de uma malha urbana única – regida pelo acaso: o
desaparecimento de fronteiras entre bairros, cidades, subúrbios,
vizinhanças. A rede de organismos municipais e regionais que administram
o condado é tão enigmática para os moradores locais quanto para turistas
e estrangeiros. Hollywood – o bairro real, não a fábrica de sonhos,a
imagem virtual de poderosa indústria do cinema que o termo evoca – é
um bom exemplo dessa confusão.
Para começar, há um enorme desacordo oficial até mesmo sobre onde
Hollywood está localizada. Cada um dos órgãos governamentais da cidade
e do condado de Los Angeles tem uma unidade de serviços denominada
‘Hollywood’, mas não existem duas que tenham os mesmos limites, e apenas
uma coincide com os limites da antiga Hollywood City, de curta existência
(1903-10). Em outras palavras, a polícia prende suspeitos em uma Hollywood,
enquanto o departamento de limpeza urbana apanha o lixo em outra (Davis,
1998:374).
Há, ainda, um dado ainda mais importante para compreender Los Angeles
como uma pós-metrópole singular. Se o acaso é o elemento principal que
rege as relações humanas dentro da pós-metrópole, não há outro território
urbano que assuma o rótulo com tanta propriedade. Los Angeles, afinal,
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é prisioneira do acaso. A pós-metrópole está, desde o nascimento, no
século XIX, estreitamente associada à ocorrência de desastres e catástrofes
naturais. Eles se multiplicam: terremotos, enchentes, tempestades,
inundações, wildfires2, seguidas invasões de animais selvagens, como
cascavéis, coiotes e leões-da-montanha. Junte-se a isso uma violência
reprimida nas populações dos subúrbios mais pobres, que ocasionaram
eventos como as revoltas nos guetos negros de Watts, em 1965, e os
saques e depredações ocasionados pela prisão de Rodney King, em 1992,
e fica fácil compreender porque Mike Davis chamou Los Angeles de “parque
temático do Apocalipse” (Davis, 1998:14).
Essa sensação de perigo iminente é ampliada, ainda, pelo medo do Big
One, um gigantesco terremoto previsto pelos geólogos, que pode ocorrer
a qualquer momento e causar milhares de mortes e prejuízos incalculáveis.
Desde o nascimento, os moradores de Los Angeles são educados para se
protegerem de terremotos de grande magnitude. Eles sabem que a tragédia
pode vir a qualquer momento. Por isso, vivem sob uma permanente ameaça
de destruição, que aguça o senso de tragédia e agrega um elemento
melancólico ao cotidiano dos habitantes. Associados, os elementos do
acaso e da melancolia são características essenciais no cinema da pósmetrópole: “Los Angeles always seems to be waiting for something.
Permanence seems out of reach; some great apocalyptic event is on the
horizon, and people view the future tentavely. Robert Altman’s Short
Cuts captures that uneasiness perfectly in its interlocking stories about
people who seem trapped in the present, always juggling.” [Los Angeles
sempre parece estar esperando por alguma coisa. A permanência parece
fora do alcance; algum grande evento apocalíptico se anuncia e as pessoas
olham para o futuro com cautela. Short Cuts, de Robert Altman, retrata
perfeitamente esse desconforto nas suas histórias entrelaçadas de pessoas
que estão presas no presente, sempre fazendo malabarismos.] (Ebert,
1993).
Viver em Los Angeles, portanto, significa estar à mercê do acaso. Significa
ser obrigado a trafegar, literal e metaforicamente, pelos atalhos da pósmetrópole. Esse é o cotidiano do habitante da cidade contemporânea.
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Preso no labirinto de atalhos, ele desiste de perseguir um destino; prefere
esperar que este lhe alcance. E o destino se manifesta através dos acasos,
das coincidências. É esta a condição pós-moderna de que nos fala David
Harvey – um compasso de eterna espera, um imobilismo que encerra o
morador da pós-metrópole num estado de melancolia permanente:
Demasiadas pessoas perdiam o rumo no labirinto, era fácil demais nos
perder uns dos outros e de nós mesmos. E se havia algo de libertador na
possibilidade de representar muitos papéis distintos, também havia alguma
coisa estressante e profundamente desestabilizadora e, ação. Por trás de
tudo isso estava a tenebrosa ameaçada de violência inexplicável, a companhia
inevitável da onipresente tendência à dissolução da vida social no caos
absoluto (Harvey, 1989:17).
Lawrence,
Robert
e
Paul
Thomas
Embora não seja o primeiro filme a tentar representar o labirinto de atalhos
que reconfigura as relações humanas nas grandes cidades, Short Cuts –
Cenas da Vida pode ser considerado uma obra-síntese, a representação
mais bem acabada do cinema da pós-metrópole. Em 1991, o cineasta
Lawrence Kasdan já havia lançado Grand Canyon – Ansiedade de uma
Geração, filme que também delineou – embora sem estabelecer
propriamente uma estética full-blown da pós-metrópole, como faz Altman
cerca de dois anos depois – esse cinema da pós-metrópole (que, em
linhas muito gerais, reúne as seguintes características: ensemble de
personagens “desencantados”, personagens estes que nem sempre têm
conexões muito claras entre si e que se vêem imersos numa trama de
retalhos e atalhos às vezes aleatórios). Mas é o filme de Robert Altman
que eleva o acaso, o acontecimento inesperado, à condição de elemento
essencial da vida em Los Angeles. Como próprio título original do filme
indica, os atalhos da pós-metrópole assumem, a partir de Short Cuts3,o
posto de protagonista desse gênero cinematográfico que tentamos
apresentar neste artigo. Esses atalhos se materializam nos encontros
fortuitos entre os habitantes da cidade, e tornam-se elemento fundamental
na conformação do espectro de relações humanas no contemporâneo.
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Em Grand Canyon, o acaso surge como elemento capaz de construir uma
amizade improvável entre um advogado de classe média alta, Mack (Kevin
Kline), e um motorista de reboques pobre, Simon (Danny Glover). Eles só
se encontram porque o carro do primeiro quebra, no meio da noite, num
subúrbio negro em Los Angeles. Ameaçado por uma gangue, Mack é
salvo por Simon, que está lá para rebocar o automóvel do advogado. São
vidas completamente diferentes, que nunca se cruzariam sem a ação do
acaso. Duas vidas – e, quase em efeito cascata, as de vários outros
personagens que gravitam ao redor dos dois homens – saem modificadas
a partir de um elemento aleatório.
A despeito das muitas semelhanças estilísticas, há uma diferença sutil,
porém crucial, entre Grand Canyon e Short Cuts. O filme de Lawrence
Kasdan tematiza o acaso, a partir dos encontros ocasionais, mas não se
estrutura em cima do elemento aleatório. As escolhas operadas pelos
indivíduos – ou pelo menos a possibilidade de fazê-las – são o verdadeiro
tema de Grand Canyon. Há uma seqüência crucial no filme: Mack ensina
o filho a dirigir. No final da seqüência, após a lição mais difícil (virar à
esquerda no complicado tráfego local), ele chama a atenção do adolescente
para a importância das escolhas que devem ser feitas na direção. De
certo modo, uma metáfora para as dezenas de pequenas escolhas
cotidianas – que trajeto seguir para o trabalho, que roupa usar, em que
restaurante almoçar – que podem mudar o rumo de uma vida.
De fato, as escolhas importam. Mas, quando o foco está fixo nelas, o
papel do acaso da estruturação da vida urbana – os atalhos da pósmetrópole – torna-se relativo, menos importante. Escolhas individuais
pressupõem o exercício de um papel ativo do homem no comando do
próprio destino. Assim, quando a esposa de Mack, Claire (Mary
McDonnell), encontra um bebê abandonado e decide mantê-lo, é possível
vislumbrar a ação do acaso (a criança é encontrada casualmente numa
das corridas diárias de Claire), mas esse elemento randômico é mantido
sob controle de uma escolha humana (criar o bebê). Em Grand Canyon,
os personagens ainda conseguem controlar o próprio destino. Ainda são
senhores de si mesmos: as escolhas individuais podem proporcionar o
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final feliz, no qual se escapa da pós-metrópole (o refúgio vai ser
precisamente o Grand Canyon do título).
Short Cuts eleva o papel do acaso na vida urbana contemporânea a um
patamar mais importante, quando reduz ao mínimo as interferências das
escolhas conscientes de cada indivíduo no desenrolar de seus cotidianos.
O homem passa de ator (ainda que coadjuvante) do espetáculo da vida a
um mero espectador passivo. Quando a garçonete Doreen (Lily Tomlin)
atropela um garoto de oito anos, Casey (Zane Cassidy), ela não exerce
qualquer tipo de escolha. Sequer é confrontada com a possibilidade de
fazê-lo. Não há nada que possa fazer para alterar o próprio destino. (E
um dos aspectos mais interessantes do filme é precisamente a total
ignorância da parte de Doreen quanto à tragédia desencadeada pelo
atropelamento – ou, mais do que isso, a certeza que ela guarda de ter
escapado do infortúnio.)
Esse acontecimento deslancha um processo de reestruturação de relações
humanas que resulta numa nova cadeia de ligações pessoais. Casey é
hospitalizado, e piora a cada dia. Impotentes, os pais – o âncora de TV
Howard Finnigan (Bruce Davison) e a socialite Ann (Andie McDowell) –
passam a expor abertamente a natureza fria e anestesiada, sem emoção,
do casamento que vivem. Ao mesmo tempo, após muitos anos sem dar
notícias, o pai de Howard, Paul (Jack Lemmon), aproveita a oportunidade
criada pela doença do neto (que sequer conhece, e cujo nome insiste em
esquecer) para reaparecer na vida do filho.
O acaso, nesse instante, provoca mais um encontro (nesse caso, um
reencontro). Paul visita o neto no hospital, mas não está realmente
interessado no estado de saúde dele; trata-se de mais uma tentativa
canhestra de se desculpar com o filho pela ausência de tantos anos. Já o
padeiro (Lyle Lovett), a quem havia sido encomendado o bolo do
aniversário de Casey, passa trotes para a família, furioso por ninguém ter
ido apanhar o doce. Ele não sabe do acidente com o garoto. Quando
descobre o que aconteceu, mais tarde, também tenta estabelecer algum
tipo de empatia com os Finnegan. Formas transitórias de sociabilidade
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vão se conectando a partir dos diversos atalhos, oferecidos por uma
única interferência do acaso – um atropelamento casual.
A visão de mundo de Raymond Carver, como talvez a minha própria, poderia
ser chamada de sombria. Estamos ligados por atitudes similares acerca da
natureza arbitrária do acaso no esquema geral das coisas (...). Alguém
ganha na loteria. No mesmo dia, a irmã desta pessoa morre atingida por um
tijolo que caiu de um prédio em Seattle. São ambos os fatos de uma coisa só.
A loteria sorteou o vencedor das duas maneiras. Por diferentes que sejam, os
dois eventos são na verdade adversos a você, e ainda assim ambos
aconteceram. Um morreu e outro ficou rico; trata-se da mesma ação (Altman
in Carver, 1994: 9).
O filme de Robert Altman busca captar a essência de Los Angeles quando
decide trafegar pelos atalhos, para tentar ouvir a voz da cidade. Os 22
personagens que compõem o mosaico humano não estão preocupados
em fazer escolhas. De fato, eles nem parecem ter a oportunidade de fazêlas; parecem aturdidos, não têm um destino final quanto caminham pela
paisagem urbana. Apenas vagam, esperam por algo que não sabem definir,
e que nunca surge. Sem paixão, sem vigor, apenas caminham pelos
atalhos, melancólicos. São peças de um quebra-cabeça que não se
encaixam.
Dos três filmes, Magnólia, de Paul Thomas Anderson, é o que lida mais
diretamente com as coincidências. Desde um “prólogo” sem relação direta
com o núcleo principal de personagens – três narrativas (supostamente
reais) de mortes que envolveram coincidências inacreditáveis – à forma
com que os personagens são apresentados, a natureza dos acasos no
filme parece querer provar um paradoxo: as coincidências apontam uma
espécie de predestinação. Como se por trás dos encontros fortuitos e dos
acasos e coincidências houvesse uma ordem maior, existisse um sistema
organizador.
Aliás, Magnólia é cuidadosamente estruturado. Nesse caso as peças do
quebra-cabeças têm que encaixar para provar que, mesmo sendo ignoradas
ou incompreensíveis, há leis estritas para o acaso. Magnólia conta a
história de onze personagens principais que se cruzam de alguma forma
ao longo de um dia, em San Fernando Valley (no condado de Los Angeles).
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Por mais casual que pareçam os contatos e encontros do filme, sempre
vamos ver depois os elos, os atalhos entre eles: temos o paciente de
câncer terminal Earl Partridge (Jason Robards), seu dedicado enfermeiro
Phil Parma (Philip Seymour Hoffman) e sua esposa cheia de culpa (Julianne
Moore). O filho de Earl, Frank T.J. Mackey (Tom Cruise), guru de autoajuda que ensina homens inseguros a levar mulheres para a cama, vai
encontrar o pai no leito de morte. Há também Rose Gator (Melinda Dillon)
e seu marido, Jimmy Gator (Philip Baker Hall), apresentador de um game
show protagonizado por crianças-prodígio, como Stanley (Jeremy
Blackman), que é pressionado pelo pai, Rick (Michael Bowen), a ter sempre
os melhores resultados. No filme, outro personagem de destaque é Donnie
Smith (William H. Macy), ex-menino-prodígio, como Stanley. Claudia Gator
(Melora Walters), filha de Jimmy, é viciada em cocaína e mora sozinha.
Jim Kurring (John C. Reilly) se interessa por Claudia durante uma batida
no apartamento da moça.
One is the loneliest number
A solidão da vida urbana contemporânea é um tema recorrente nos filmes
que tratam as grandes cidades quase como personagens. Uma derivação
desse tema – que também perpassa todas essas obras – é a desagregação
da família, a deterioração do convívio familiar, na realidade parte de um
fenômeno bastante perceptível na pós-metrópole; a decadência dos
agrupamentos sociais tradicionais. A família e a escola, entre outros
tradicionais espaços públicos onde os indivíduos desenvolvem as formas
clássicas de sociabilidade, entram em crise na pós-modernidade. Essa
crise vai ser ampliada e levada a um nível ainda maior de isolamento
pelas peculiaridades que envolvem a vida na pós-metrópole.
Muitas características das grandes cidades contribuem para a sensação
crescente de solidão que envolve seus habitantes. A falta de segurança –
que se reflete na violência cotidiana vivida dentro dos subúrbios, na
proliferação de condomínios fechados e no clima de desconfiança que se
estabelece no relacionamento entre vizinhos – desempenha papel
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Atalhos
na
pós-metrópole
importante nesse isolamento do cidadão. Dessa condição solitária, como
lembra Beatriz Sarlo (1997), a indústria cultural também vai se aproveitar:
as imagens virtuais da cultura de massa (materializadas na televisão e
nos videogames, por exemplo) vão acabar por ocupar o lugar desses
espaços sociais na formação da personalidade dos indivíduos. Los Angeles,
pela proximidade da indústria do cinema e pelo culto exacerbado à noção
ao entretenimento, representa de maneira arquetípica a “mediatização”
da cidade contemporânea e o empobrecimento da experiência urbana tal
como a conhecíamos na modernidade.
Essa “mediatização” e esse empobrecimento da experiência vão ter reflexos
importantes nos laços entre as pessoas. As relações humanas são mais
frágeis e instáveis, mais fluidas. Vizinhos mal se cumprimentam. Amigos
de infância raramente mantêm os laços durante mais do que alguns anos
(em muitos casos, nem isso). Os círculos de amizade na pós-metrópole
obedecem a um padrão fragmentado e aleatório. Eis de volta o acaso: é
o acaso, o elemento ocasional, que une e afasta as pessoas.
Sem estabilidade nas relações, os habitantes da pós-metrópole não
conseguem se comunicar. Daí a sensação permanente de solidão dos
indivíduos, captada de forma precisa em Short Cuts,Magnólia e Grand
Canyon. O já citado encontro entre Mack e Simon, neste último, mostra a
importância do acaso na construção de novas amizades. Esse padrão
aleatório na forma de fazer amigos surge em várias seqüências de Short
Cuts – como na cena em que dois casais, que nunca se tinham visto
antes, fazem amizade durante um concerto de música clássica.
Após uma rápida conversa durante o espetáculo, os casais Stuart/ Claire
Kane (Fred Ward e Anne Archer) e Ralph/Marian Wyman (Matthew Modine
e Julianne Moore) combinam um jantar na luxuosa residência dos últimos.
Quando se separam, nenhum dos quatro consegue identificar exatamente
qual o motivo de terem marcado tal encontro. De fato, os dois homens
parecem francamente desinteressados um no outro, e sequer lembram
dos respectivos nomes. Mas o compromisso está assumido; o jantar é
realizado. E, apesar do encontro, é evidente que os casais não conseguem
realmente se comunicar.
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Em Magnólia, parece sintomático o encontro entre o policial Jim Kurring
encontro, ainda que desajeitado e vacilante, sugere atração física mútua.
Eles iniciam um romance, conturbado por personalidades de índole
conflitante. Ele, de valores conservadores, estranha o vocabulário cheio
de gírias e palavrões que ela utiliza. Ele ainda se esforça nitidamente
para conseguir se comunicar, inutilmente.
Mas não é apenas no encontro entre estranhos, na formação de laços
provisórios de relações a partir dos atalhos da pós-metrópole, que a
incomunicabilidade melhor se manifesta, nos três filmes. As obras
sublinham essa característica a partir da evidente dissolução dos laços
familiares que se pode observar na vida urbana de Los Angeles. Dentro
do núcleo das famílias – em teoria, a mais estável e permanente das
formas tradicionais de sociabilidade – não existe comunicação. Nos três
filmes, maridos e mulheres vivem mergulhados em crises conjugais; pais
e filhos têm contas permanentes a ajustar.
Grand Canyon mostra Mack e Claire em um momento difícil do
relacionamento – inclusive com adultério cometido por Mack com a
secretária Dee (Mary-Louise Parker). Davis (Steve Martin) também tem
problemas com a namorada. Em Short Cuts, o casamento pode estar em
crise evidente, como aqueles vividos pelos casais Tim Robbins (policial) /
Madeleine Stowe (dona-de-casa) e Lily Tomlin (garçonete)/Tom Waits
(chofer de limusine). Ou pode viver numa espécie de crise suspensa, como
é a relação entre o âncora de TV (Bruce Davison) e a socialite (Andie
McDowell). No caso de Magnólia, existe um casamento por interesse
(entre Julianne Moore e Jason Robards) e outro (Philip Baker Hall e Melinda
Dillon) que, de certa forma já desgastado, irrompe em crise violenta após
a revelação de que ele havia molestado a própria filha quando criança.
Tanta água perto de casa
Embora construído num tom mais pessimista – especialmente no que se
refere à incomunicabilidade – do que os outros dois exemplares do cinema
da pós-metrópole, o final de Short Cuts parece concordar com os
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Atalhos
na
pós-metrópole
encerramentos de Magnólia e Grand Canyon. Os três filmes se utilizam
de imagens da natureza para impelir os homens a emergir do silêncio em
que se encontram enterrados, para que o espectador possa ouvir sua voz
novamente. É como se somente a natureza (Deus?) pudesse interferir no
isolamento, na solidão dos personagens, porque os homens, sozinhos,
não conseguem mais se comunicar. A própria pós-metrópole os impede.
Short Cuts e Magnólia terminam com desastres naturais4, que remetem
à própria condição de Los Angeles como “parque temático do Apocalipse”.
O primeiro, mais realista, tenta imprimir uma sensação de unidade à
narrativa a partir de um forte terremoto. O segundo, mais simbólico,
sugere uma surreal chuva de sapos sobre a cidade para alcançar o mesmo
efeito. A diferença no tom do discurso dos filmes opera, nesse momento,
com força: o acontecimento inusitado em Magnólia transforma a vida de
todos os personagens, o que não ocorre em Short Cuts. O fim do terremoto
neste último remete os habitantes de volta ao habitual silêncio, enquanto
a queda dos últimos sapos modifica as vidas – dá a todos uma segunda
chance, apontando os erros cometidos por cada um – dos habitantes da
Magnolia Street (a rua que dá nome ao filme).
Grand Canyon, ao contrário dos outros, não termina com uma catástrofe,
mas também exibe uma poderosa imagem da natureza no final (a paisagem
do Grand Canyon do título), sugerindo que um breve momento de
experiência do sublime – através de uma imagem que evoca o elemento
divino – possa retirar os habitantes da pós-metrópole do imobilismo,
ainda que apenas momentaneamente (e longe da cidade propriamente
dita). Além do encerramento, há outra cena que estabelece uma conexão
com Short Cuts e Magnólia: no meio do filme, ocorre um terremoto, e
este acaba sendo o único momento da obra onde existe socialização
entre os vizinhos. É logo após o terremoto, também, que o casal Mack/
Claire toma a decisão central de manter o bebê encontrado dias antes
por Claire, o que pode ser interpretado como uma pequena vitória contra
a incomunicabilidade dentro daquele casamento em especial.
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Pequena
melancolia
A melancolia se revela outro traço fundamental no cinema da pósmetrópole. Uma sensação indefinida de tristeza, cuja origem não se
consegue precisar com exatidão, irradia da malha urbana da megacidade,
e é capturada por esses filmes. Uma possibilidade de leitura da melancolia
está na crescente sensação de deslocamento do homem contemporâneo.
O indivíduo descentrado perde as coordenadas de espaço e tempo, vive a
partir de atalhos. Coincidências e encontros fortuitos regem sua trajetória
pessoal.
Há uma profusão de melancólicos habitando a pós-metrópole (e o cinema
da pós-metrópole). O tom dessa melancolia, entretanto, não vai ser grave
como em Hamlet e em Raskolnikov, ou cerebral e nostálgico como no
Prufrock de T.S. Eliot: a melancolia pós-moderna é banal, é vulgar, não é
reflexiva. Nos filmes da pós-metrópole, as micro-narrativas vão se
sucedendo e os personagens não parecem se importar em pensar sobre
a própria condição. Em Short Cuts, que teve seu roteiro construído a
partir de contos de Raymond Carver, a melancolia pode ser um traço
óbvio – como nos casos do motorista Earl (Tom Waits), do padeiro
Bitkower (Lyle Lovett), da violoncelista Zoe (Lori Singer) ou da dona de
casa Sherri (Madeleine Stowe); estar por trás da histeria eufórica de certos
personagens – o policial Gene (Tim Robbins), o piloto de helicópteros
Stormy Weathers (Peter Gallagher), Marian (Julianne Moore), o maquiador
de filmes de terror Bill (Robert Downey Jr.); ou ainda na apatia e
acomodação de outros – o casal Finnigan (Andie MacDowell e Bruce
Davison), o médico Ralph (Matthew Modine).
Entretanto, talvez a melancólica mais emblemática de Short Cuts seja
realmente a atendente de telessexo Lois Kaiser (Jennifer Jason Leigh).
Com o marido, o limpador de piscinas Jerry (Chris Penn), geralmente
assistindo a tudo, ela limpa as fraldas e faz a mamadeira do filho caçula
ao mesmo tempo em que simula relações sexuais, ao telefone, com
desconhecidos. Tanto os gestos como o texto que ela repete para seus
clientes parecem mecânicos. A personagem se abandona à inércia e à
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Atalhos
na
pós-metrópole
apatia. Lois personifica muito acuradamente o universo de perdedores de
Carver que, de certo modo, desenham o reverso do sonho americano
desavisadamente, sem se dar conta.
Embora o registro melancólico de Grand Canyon e Magnólia seja
ligeiramente diferente do de Short Cuts (que tem mais “losers”, mais
desempregados e subempregados, mais desesperançados e cínicos), é
evidente a tentativa de retratar o discreto desespero dos habitantes da
pós-metrópole. Especialmente Dee, Mack e Claire em Grand Canyon,e
quase todos os personagens de Magnólia: todos padecem de uma certa
impotência afetiva, tornada ainda mais explícita pela ação do acaso.
Na opacidade desse mundo de empregos mal pagos, silêncios
constrangedores, acidentes domésticos, álcool e drogas, violência urbana,
maridos e esposas abandonados, pais e filhos em desavença,
encontramos uma nova paisagem cinematográfica: há um estilo enfático
de narrativa fílmica por trás dessa superfície de monotonia e insignificância
aparentes dos encontros e desencontros na pós-metrópole. Nos três filmes
e nas inúmeras “cenas da vida” (como diz o subtítulo em português de
Short Cuts) trazidas à tona por eles, os atalhos da pós-metrópole não
parecem levar tanto a uma compreensão reparadora (talvez os finais de
Magnólia e Grand Canyon tentem apontar para uma certa idéia de
redenção, e talvez por isso sejam menos interessantes que Short Cuts)
,
mas sim à incerteza lúgubre que define a pequena melancolia do cotidiano.
Notas
1
2
3
4
No original, postmetropolis
Incêndios em florestas, provocados pelo calor e pelo clima seco.
A tradução literal de Short Cuts seria Atalhos.
É interessante observar, por fim, uma razão fundamental para que o cinema da pósmetrópole esteja centrado em Los Angeles: somente a cidade californiana experimenta
essa curiosa tendência de medir forças com a natureza. A malha urbana está erguida
sobre a falha geológica de San Andreas, onde especialistas calculam que será originado
um terremoto gigante, chamado Big One, que poderá causar prejuízos de bilhões de
dólares e matar milhares de habitantes. Se nunca enfrentou uma chuva de sapos, Los
Angeles já assistiu, em janeiro de 1995, a uma invasão de cascavéis vindas do mar.
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Segundo Mike Davis (2002:189), nenhum especialista conseguiu desvendar o fato, e
a explicação mais aceita diz que as cobras teriam sido jogadas no oceano – onde
teriam ficado flutuando por meses – pelas enchentes do inverno anterior.
Bibliografia
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