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1
POR UMA TEOLOGIA AFRICANA A PARTIR DO “SUJEITO
AFRICANO”
David Mesquiati de Oliveira1
Miguel da Piedade Satjyambula2
RESUMO
O presente texto busca refletir uma teologia africana que promova o que chamaremos aqui de
“o resgate do eu”. Pretendemos mostrar que as problemáticas de âmbito interno por parte do
homem africano representam pontos de partida fundamentais para o pensar/fazer teológico. A
tese de fundo é que a teologia produzida no ocidente quando posta em contato com os
africanos faz destes estranhos a eles mesmos, ou seja, eles precisam deixar de ser quem são
para poder se encaixar nos modos de pensar ocidental. A conclusão indica que este resgate só
será realmente possível quando a teologia deixar de ser feita para o africano e passar a ser
feita pelos africanos.
Palavras-chave: Teologia africana; sujeito histórico; mundo do africano.
INTRODUÇÃO
O presente ensaio propugna-se a discutir a teologia africana, considerando ser sua
maior tarefa o que chamaremos aqui de “o resgate do eu africano”. Pretendemos mostrar que
as problemáticas de âmbito interno por parte do homem africano representam pontos de
partida fundamentais para o pensar/fazer teológico. Seguiremos as pistas da história para
entendermos como se deu a relação entre o Ocidente e a África e refletiremos sobre o que é
teologia africana e seu mundo de relações.
O africano vive atualmente em “dois mundos” por meio do contato com o Ocidente.
Um primeiro “mundo” seria a sua africanidade e o segundo, a imperativa homogeneização
ocidental. Veremos que a teologia produzida no ocidente quando posta em contacto com os
africanos faz destes estranhos para si mesmos, ou seja, eles precisam deixar de ser quem são
para poder se encaixar nas categorias ocidentais. Se isso é assim, nos perguntamos se uma
teologia africana que considere o africano sujeito 3 da sua própria história teria um papel
1
Doutor em Teologia (PUC-Rio) e pós-doutorando em Teologia (PUC-Rio). É docente do Programa de PósGraduação em Ciências das Religiões e da Graduação em Teologia na Faculdade Unida de Vitória e pesquisador
na Cátedra Unida de Teologia Pública “João Dias de Araújo”. E-mail: [email protected].
2
Graduando em Teologia na Faculdade Unida de Vitória, membro do Núcleo de Estudos da Religião da Cátedra
Unida de Teologia Pública “João Dias de Araújo”, graduando em Ciências Sociais na Universidade
Metropolitana de Santos. É angolano e reside atualmente em Vitória-ES. Email: [email protected].
3
Sobre a necessidade de se trabalhar a transformação do indivíduo em sujeito da sua história, ver por exemplo:
OLIVEIRA, David Mesquiati. Missão, cultura e transformação. 2. ed. São Leopoldo: Sinodal; Quito: Clai,
2014, especialmente o capítulo 8.
2
emancipador e resgatador não só do próprio africano, mas também da teologia. O que temos a
seguir são algumas notas a este respeito.
1 UMA BREVE HISTÓRIA DO ENCONTRO DE DOMINAÇÃO ENTRE O
OCIDENTE E A ÁFRICA
Para a Europa, o período entre os séculos XV e XVII representaram o momento das
grandes navegações em busca de novas rotas comerciais. Os europeus exploraram
intensivamente diferentes continentes. A história das relações entre a Europa e os demais
povos do mundo deu-se por meio do contraste entre vida e morte, explorador e explorado,
conquistador e vencido. A expansão territorial resultou em riqueza e desenvolvimento para a
Europa, mas para os países conquistados (“descobertos”), resultou em miséria e negação do
próprio. Muitos deles foram deportados e feitos escravos, famílias foram desfeitas, as terras
conquistadas e exploradas indevidamente, além da negação das práticas culturais e religiosas
que foram tidas como demoníacas. Enfim, para a África, a conquista representou um clima de
estiolamento.
O filme “Jornada pela liberdade” (Amazing Grace, 2006) 4 ilustra como o contato
europeu com os africanos foi uma relação de escravidão e morte, em que a liberdade do
africano foi violentamente retirada, sendo obrigado a deixar sua terra-mãe e dirigir-se a uma
terra desconhecida. Uma vez “instalado” nestas terras era obrigado a abandonar
completamente seu modo de vida, suas práticas culturais, sua religião e teologia, seu modo de
ser. Agora ele precisa esquecer quem era e tornar-se a pessoa que o seu senhor quer que ele
seja. Foi um encontro de anulação de identidades e negação do “eu” que caracterizou o
contato dos africanos com os europeus.
Estar sobre jugo em uma terra estranha, no entanto, deve ter sido menos dolorido do
que estar subjugado em sua própria terra. Era um sentimento de impotência que permeava a
mente e o coração dos africanos que ficaram em suas terras. Com o passar dos anos foi como
se eles começassem a olhar para os opressores como superiores a eles (para além do poderio
militar), e olhavam a si mesmos como uma camada inferior. Este pensamento tornou-se tão
presente que foi difícil superá-lo. Memoráveis são as lutas históricas contra o racismo do
abolicionista inglês William Wilberforce no século XVIII, do estadista Nelson Mandela na
África do Sul e do teólogo James Cone no século XX, que articulou a teologia negra norte-
4
APTED, Michael (Dir.). Jornada Pela Liberdade. Reino Unido: Bristol; Sunflower, 2006 (157min.).
3
americana, além do pastor batista Martin Luter King, só para ficar em alguns exemplos.
Contudo, o crédito não deve ser dado somente a estas grandes figuras, mas também a tantos
outros movimentos e pessoas que colaboraram ativamente para que a luta contra o racismo
avançasse no presente século. Colaboraram também para elevar o valor e reconhecer a
sabedoria dos povos autóctones os novos estudos de campo conduzidos por antropólogos,
como Clifford Geertz5 e Pierre Clastres6, e outros mais, nos seus contatos com povos nativos.
Cada cultura revela um dado momento histórico e atende necessidades próprias de um povo,
fruto de longo processo cultural. Não existe uma cultura superior à outra, elas são apenas
culturas diferentes, cada qual com seu nível de complexidade próprio.
2 AFRICANOS E SUA RELIGIOSIDADE
As culturas dos diferentes povos africanos privilegiam o elemento religioso, que
explica e ordena seus respectivos mundos7. Este viés é bastante promissor. Daí a importância
da reflexão teológica, que ocuparia um papel de extrema importância na reconstrução e no
resgate da identidade perdida ou suprimida. Vale dizer que este esforço não tem sido feito
unicamente pela teologia, mas também pelos movimentos de conscientização social
(expressos pela música, arte e etc.) que têm se pronunciado e feito contribuições
significativas.
Na segunda metade do século XX, quando do fim da segunda guerra mundial,
acentuou-se o processo de descolonização. Tal processo levou muitos países da África e Ásia
à independência política. Começa, então, neste período, a irrupção dos países do chamado
“Terceiro Mundo”.8 O Terceiro mundo seria uma realidade que abarcaria a América Latina, o
Caribe, a Ásia, a África, e a Oceania meridional. No início dos anos sessenta este conceito se
5
GEERTZ, C. O saber local. Petrópolis: Vozes, 1998. Neste livro Geertz além de discutir qual a postura ideal
do antropólogo na aproximação a uma questão no campo onde está atuando, realça acima de tudo o ponto de
vista do nativo. É em torno do parecer do nativo que ele vai tratar as questões da “experiência próxima” e da
“experiência distante”, assim sendo há ele reconhece a importância de interpretar as questões a partir da
explicação do próprio nativo, isto já representa uma valorização do nativo enquanto sujeito, o que os colocava a
pé de igualdade, pois partindo daí o nativo é o antropólogo à priori.
6
CLASTRES, Pierre. A sociedade contra o Estado. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1982. Neste livro o
antropólogo francês problematizou a noção de que de que as sociedades que tinham o poder político estruturado
hierarquicamente seriam “mais evoluídas” que as sociedades igualitárias, isto é, sociedades com contingentes
populacionais enormes e com diferenças de status entre variados chefes, como os povos incas ou astecas, seriam
mais evoluídos que as sociedades sul americanas, que apresentam grupos pequenos de indivíduos e uma falta de
organização completa do poder.
7
SETILOANE, Gabriel. Teologia africana: uma introdução. São Paulo: Faculdade de Teologia da Igreja
Metodista, 1992. p. 13.
8
Este termo foi cunhado primeiramente pelo demógrafo francês Alfred Sauvy em 1952.
4
alarga a ponto de incluir trabalhadores imigrantes e as minorias marginalizadas.9 Hoje o termo
está desgastado, mas ajuda a pensar essas regiões do globo como engajadas em um processo
de libertação, tentando desvencilhar-se de uma condição ruim a que foi submetida.
2.1 O que é teologia africana?
Não há uma definição única do que venha a ser teologia africana. Muitas sugestões
têm sido oferecidas para defini-la. Para John S. Mbiti, a teologia africana seria a “reflexão e
expressão teológica feita por cristãos africanos”. Ambrose M. Moyo propôs que a teologia
africana é “uma tentativa de traduzir a mensagem de Jesus por meio de formas de pensamento
que a África achará relevantes e significativas”.10 Para Hovland, a definição mais abrangente
é a formulada por John W. Z. Kurewa que define Teologia Africana como sendo “o estudo
que procura refletir sobre e expressar a fé cristã em idiomas e formas de pensamentos
africanos tais como são experimentados nas comunidades africanas, estando sempre em
diálogo com o resto da cristandade”. 11 Gabriel M. Setiloane entende a teologia africana como
a libertação da própria “alma da África”. 12 É nesta perspectiva que assumimos a teologia
africana neste texto.
A teologia africana encontra-se no bojo das chamadas teologias contextuais, que
também são fruto deste período pós-guerra, e como afirma Brandt, “o conceito contexto ou
teologia contextual, foi pela primeira vez usada no final dos anos 60 e início dos anos 70 por
diversos autores... e teve lugar no Canadá”.13 O projeto de uma teologia africana tem a sua
primeira elaboração em um dossiê de intervenções em Paris, em 1956. A partir deste projeto,
surgiu um novo projeto teológico sobre o qual se discutiu nos anos sessenta em encontros
pan-africanos, tanto por parte de teólogos católicos (em Kinshasa, República do Congo),
quanto por protestantes (em Ibadam, Nigéria). Em um primeiro momento era uma “teologia
da adaptação”, porém a discussão avançou para uma “teologia da encarnação”, expressão
oficial na declaração dos bispos de África e de Madagascar presentes no Sínodo romano sobre
evangelização em 1974:
9
GIBELLINI, Rosino. Breve história da teologia do século XX. Aparecida-SP: Santuário, 2010. p. 201.
HOVLAND, Thor H. O novo paradigma da teologia africana. In: Estudos Teológicos 33.3, 2013, p. 213-226.
Aqui, p. 214.
11
Cf. HOVLAND, 2013, p. 215.
12
SETILOANE, 1992, p. 65.
13
BRANDT, Hermann. O povo como portador da promessa de Deus: a contribuição da teologia contextual. In:
Estudos Teológicos, 39.2, 2013, p. 167-185.
10
5
Nesta concepção da missão, os bispos da África e de Madagascar consideram como
totalmente superada certa teologia da adaptação, em favor em favor de uma teologia
da encarnação. As jovens igrejas da África e de Madagascar não podem subtrair-se a
esta exigência fundamental14
A teologia da encarnação buscava exprimir um cristianismo africano dentro do
cristianismo universal. Um dos propugnadores desta linha foi o teólogo congolês Oscar
Binwenyi-Kweshi. Ele escreveu em 1981 o livro Discurso teológico negro-africano.15
2.2 Teologia africana em diálogo com outras teologias contextuais
As teologias contextuais emergem em um momento de intensas mudanças no cenário
mundial e vão tentar responder às problemáticas dos seus contextos, cada uma de forma
peculiar. Há uma tendência de confundir a teologia africana com as teologias negra e da
libertação. No entanto, são propostas distintas. A teologia negra, por exemplo, é fruto de um
contexto em que os negros são vítimas de segregação e se encontram em situações de
marginalização em uma sociedade racista, como a dos negros residentes nos Estados Unidos.
A teologia da libertação partiu de uma experiência de injustiça e pobreza vivenciada nos
países latino-americanos, bem como a teologia feminista partiu de uma experiência de
sexismo machista.
Por outro lado, a teologia africana se propugna pensar teologia a partir do seu contexto
vivencial, tomando elementos próprios de sua cultura para, em diálogo com a fé cristã, dar
respostas aos problemas africanos e ao africano. Isso pode significar uma ruptura com o fazer
teológico ocidental, pois a teologia pensada no ocidente não daria respostas às questões
vivenciadas pelos africanos.16
A relação nítida entre elas é que pressupõem certa emancipação, ou seja, uma não
dependência dos pressupostos que até então têm dirigido o fazer teológico. A consciência
negra que no olhar de Setiloane “parece ser o ponto de reunião em torno do qual a teologia
negra e a africana se encontram e se reconciliam”17, tem induzido ao equívoco de pensar que
teologia africana e teologia negra representam a mesma tese. Apesar de ambas trabalharem
com a questão da negritude, o que as torna distintas, no olhar de Setiloane, é o fato de “a
Teologia Negra... ter iniciado uma polêmica histórica, ético-moral e sócio-política com o
mundo branco [...] ao passo que a Teologia Africana estende a polêmica às esferas
14
GIBELLINI, 2010, p. 216.
GIBELLINI, 2010, p. 217.
16
HOVLAND, 2013, p. 214.
17
SETILOANE, 1992, p. 64.
15
6
sociocultural e psicológica”.18 Assim, a teologia africana teria dado um passo além, pois se
preocupou não só em dar respostas às questões sociais, mas quis falar à alma do africano.
3 O AFRICANO ENTRE DOIS MUNDOS
Pode-se dizer que o africano no seu dia-a-dia tem uma vida caraterizada pelo respeito,
reverência e honra à tradição e aos ancestrais. Essas culturas baseadas na oralidade sofreram
duro golpe no contato com o Ocidente, passando por um acelerado processo de
transformação. Pouco a pouco foram aderindo à nova cosmovisão, conforme destaca
Setiloane: “nós olhamos para nossa vida com olhos e óculos ocidentais que nos conquistaram,
nos ensinaram seus costumes e nos tornaram escravos de seus padrões de pensamento,
sistema de valores e espiritualidade”.19
Em vista disto o africano se vê envolto a dois mundos20, um mundo que lhe é próprio e
caraterístico, aquele mundo das suas raízes, tradições e costumes, seu mundo materno; e por
outra se vê obrigado a viver também a partir dos pressupostos ocidentais, que foram
atravessados pela lógica da concorrência, do individualismo, do utilitarismo, da ideia
desmedida de progresso, do uso indiscriminado dos recursos da natureza. Para Setiloane, pode
ser até possível viver sob estes dois níveis no mundo físico, como vestir roupas ocidentais,
mudar comportamento, adotar novos valores e depois voltar ao mundo e à vida dos vilarejos
africanos.
Porém, isso não pode ser feito por muito tempo em se tratando de assuntos
relacionados à religião, pois estes procuram dar sentido à vida aqui e agora, à morte e ao
além. Dado que o povo africano é um povo visceralmente religioso, esta questão não pode ser
ignorada. Um fato interessante desta vivência em dois mundos ocorreu com música cristã em
Angola. Tornou-se comum nos últimos 10 anos que os diferentes estilos musicais,
especialmente rap e kizomba, para se firmarem, precisam evidenciar que são iguais à este ou
àquele músico americano ou europeu. Parece que foram acometidos do que chamaremos aqui
de “síndrome do abandono do eu”, como se eles precisassem deixar de ser quem são para
“serem”. E a teologia adotada até o século passado não colaborou para o fortalecimento desse
eu africano.
18
SETILOANE, 1992, p. 63.
SETILOANE, 1992, p. 13.
20
SETILOANE, 1992, p. 50.
19
7
3.1 A teologia ocidental como uma das causas da perda de identidade do africano
A teologia que os missionários levaram para os povos com quem mantiveram contato
era uma teologia dualista que entendia o ser humano de forma compartimentada. Posta em
contato com os africanos não fazia sentido, porque o africano não vê o mundo deste jeito. O
mito do campo de caniços21 criado pelos Nguni, povo da faixa costeira da Suazilândia, explica
que as primeiras pessoas saíram de um campo de caniços. Outro mito das origens que é o mito
do buraco no chão22 indica que os primeiros homens saíram de dentro de um buraco no chão,
e saíram juntos, homens com suas esposas, crianças, e animais – gado, carneiros, cabras e
cachorros. Nessa cosmovisão os seres humanos estão ligados à natureza – não só com outros
seres humanos, mas inclusive com os animais e com todo o espaço geográfico. O corpo é
visto como sagrado.
Outro limitante da teologia ocidental foi que não dialogava com a realidade diária do
africano. Para que os africanos pudessem adotar a teologia ocidental eles precisavam deixar
de ser africanos para se transformar em um ser alheio a eles mesmos para que então pudessem
colocar em prática tudo o que estavam “aprendendo” dos ocidentais. A teologia centralizadora
para que pudesse se afirmar como a única teologia possível e simultaneamente a única certa,
teve que demonizar toda teologia outra, afetando o imaginário das gerações africanas
posteriores.
Há alguns anos, na cidade do Lubango, capital da Huíla, província situada ao sul de
Angola, começou um fenômeno relativamente novo: o florescimento de ministérios chamados
inter-denominacionais. Um dos ministérios de maior expressão foi a MPC (Mocidade Para
Cristo). Este ministério causou um grande impacto na vida de muitos jovens e adolescentes na
época, trazendo um novo modo de entender a fé cristã. Nesse movimento diferenciaram-se
tipos de música, uma de adoração e outra de animação. As músicas tidas como de adoração
eram músicas mais elevadas, de inspiração divina. Músicos e bandas internacionais
começaram a exercer forte influência nos jovens de forma que eles passaram simplesmente a
enxergar não só a música deles como sendo a de adoração, mas também as formas de
expressão de adoração estrangeiras como sendo o modelo único e certo.
21
22
SETILOANE, 1992, p. 18.
SETILOANE, 1992, p. 20.
8
Os estilos musicais propriamente angolanos começaram a ser caraterizadas como
sendo músicas de animação, e adotaram-se os estilos americanos como sendo a típica forma
de adorar a Deus. Os estilos nacionais tais como a kizomba, o semba, a kabetula, o kilapanga
e outros, começaram inclusive a ser taxados como algo estranho ao culto cristão por estes
jovens e por estes ministérios. Este exemplo ilustra o que destacamos ao longo deste texto,
que a distorção provocada pela relação assimétrica entre Ocidente e África fez o africano se
sentir estranho em sua própria terra, ter aversão àquilo que lhe é próprio e ter que adotar
padrões externos para que possa se afirmar enquanto sujeito.
3.2 Teologia africana como “resgate do eu”
A teologia africana tem na sua gênese um viés libertário como bem mostra a
declaração da “Conferência das Igrejas de Toda África”:
Falando pela África, o que não podemos comprar é a civilização ocidental, cultura,
ou seja, que nome quiserem dar. Seus modelos de pensamento e formas de
expressão Greco-romanas são as ataduras que precisamos rasgar para chegar ao
Cristo (...). Se na verdade Teologia é reflexão, na Teologia Africana nós tentamos
quebrar o selo dos modelos de pensamento e cultura ocidentais para podermos ver
o Cristo face a face, e nele vermos a nós mesmos (...) e a outros23.
Esta conferência foi realizada em 1973 em Lusaka, capital da Zâmbia, e nestes versos
pode-se perceber o entendimento deles sobre o que seria teologia. Eles consideraram a
teologia como reflexão e, reflexão a partir de um contexto específico. Nesta conferência, os
teólogos africanos perceberam que a civilização ocidental, juntamente com o seu pensar
teológico, mais afastava os africanos de Cristo que aproximá-los. Portanto, a teologia africana
permitiria pensar melhor o Cristo da Vida, a vida boa em África.
Uma vez o pensamento livre, a visão também se libertaria. O africano (o angolano em
particular) é desafiado a recuperar suas categorias próprias. A primeira dimensão a ser
trabalhada é a visão de quem ele é – investir na autoestima, nas suas capacidades, na sua
cultura. É importante mencionar que o africano se realiza na comunidade, na tribo, na família,
na relação com o outro:
Os laços sociais que ligam o africano à sua família ampliada e ao seu clã sempre
foram mais fortes que as forças de separação que surgem de membros de diferentes
denominações. As ocasiões familiares importantes como nascimentos, casamentos,
enterros e festas do clã reúnem em um único lugar (de devoção) parentes criados em
diferentes confissões religiosas.24
23
24
SETILOANE, 1992, p. 54.
SETILOANE, 1992, p. 23.
9
Jonh Mbiti parafraseia Descartes em seu famoso “cogito ergo sum” para “Eu pertenço,
logo eu sou”.25 Teologia africana tem como uma das suas principais tarefas resgatar esta visão
do “quem eu sou”. Note-se que é um “ser” na comunidade e não um “ser” individualista,
narcisista, hedonista.
A segunda dimensão é fruto da primeira, uma vez que ao não ver-se corretamente,
abre-se a possibilidade de também não ver o outro corretamente. A ideia de que “o que vem
de fora” e “quem vem de fora” é melhor, permeia muitas nações. O resgate do “Eu” é uma
busca e afirmação da interioridade do homem africano. É levar o africano a apreender que ele
é um sujeito, que seus pensamentos são legítimos, que sua visão de mundo e da vida é
legítima, que seus sentimentos e crises são igualmente legítimos. É leva-lo a perceber que não
existem pessoas superiores a outras, antes o que existem são diferentes visões de mundo.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
As teologias contextuais começam sua reflexão e ação sempre a partir das realidades
sociopolíticas e econômicas para elaboração do seu pensar e fazer teológico. A peculiaridade
da teologia africana na perspectiva aqui abordada, é que ela parte de uma realidade
psicológico-cultural para o seu pensar/fazer teológico. Ela se preocupa não só em lutar contra
a fome, contra a injustiça, a desigualdade, mas vai além: quer resgatar aquele sujeito cultural,
a alma africana. Uma teologia pensada a partir de dentro pode resgatar o homem africano
“perdido no seu próprio mundo”, excessivamente influenciado pelo ocidente. Um pensar
teológico que perceba nas crises, nos medos, nas angústias, nas paixões, nos desesperos e em
toda sorte de sentimentos que o africano enfrenta diariamente, um ponto de partida/reflexão
para o seu pensar/fazer teológico. Tais categorias não seriam estranhas para o africano e
poderiam auxiliá-lo na construção da sua própria identidade.
REFERÊNCIAS
BÉNÉZET, Bujo; MUYA, I. Juvénal. Teologia africana no século XXI: algumas figuras.v. I.
Suíça: Universidade Friburgo, 2002.
25
MBITI, Jonh apud SETILOANE, 1992, p. 24.
10
BIMWENYI-KWESHI,
Oscar.
Discurso
teológico
negro
africano:
problema
de
fundamentos. África subsaariana. Tese de doutorado , 1981.
BRANDT, Hermann. O povo como portador da promessa de Deus: a contribuição da teologia
contextual. In: Estudos Teológicos 39.2, 2013, p. 167-185.
CLASTRES, Pierre. A sociedade contra o Estado. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1982.
GEERTZ, C. O saber local. Petrópolis: Vozes, 1998.
GIBELLINI, Rosino. Breve história da teologia do século XX. Aparecida-SP: Santuário,
2010.
HOVLAND, Thor H. O novo paradigma da teologia africana. In: Estudos Teológicos, 33.3
2013, p. 213-226.
OLIVEIRA, David Mesquiati. Missão, cultura e transformação. 2. ed. São Leopoldo:
Sinodal; Quito: Clai, 2014. (Série Parceria na missão de Deus).
SETILOANE, Gabriel M. Teologia africana: uma introdução. São Paulo: Faculdade de
Teologia da Igreja Metodista, 1992.
TUTU, Desmond. The divine intention. SA: Counsil of Churses, 1982.

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