Edilma Oliveira Souza Quadros - PPGHIS
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Edilma Oliveira Souza Quadros - PPGHIS
UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA – UNEB DEPARTAMENTO DE CIÊNCIAS HUMANAS – CAMPUS V PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA REGIONAL E LOCAL Edilma Oliveira Souza Quadros Transformações na cidade: vivências urbanas em Santo Antonio de Jesus/Ba (1950-1970) Santo Antonio de Jesus Janeiro / 2009 2 Edilma Oliveira Souza Quadros Transformações na cidade: vivências urbanas em Santo Antonio de Jesus/Ba (1950-1970) Dissertação apresentada como requisito parcial para a obtenção do título de Mestre, pelo Programa de Pós-Graduação em História Regional e Local, na Universidade do Estado da Bahia. Orientador: Santana Prof. Santo Antonio de Jesus Janeiro/2009. Dr. Charles D’Almeida 3 FICHA CATALOGRÁFICA Q1v Quadros, Edilma Oliveira Souza Transformações na cidade: vivências urbanas em Santo Antonio de Jesus: 1950-1970 / Edilma Oliveira Souza Quadros. Santo Antonio de Jesus – BA, 2009. 153f.: il. Orientador: Charles D’Almeida Santana Dissertação (Mestrado em História Regional e Local) – Universidade do Estado da Bahia, 2009. 1.Vivências urbanas. 2. Santo Antonio de Jesus. 3. Urbanização. I. Santana, Charles D’Almeida. II. Universidade do Estado da Bahia. III. Título. 4 Edilma Oliveira Souza Quadros Transformações na cidade: vivências urbanas em Santo Antonio de Jesus/Ba (1950-1970) Dissertação apresentada como requisito parcial para a obtenção do título de Mestre, pelo Programa de Pós-Graduação em História Regional e Local, na Universidade do Estado da Bahia. Banca Examinadora: ___________________________________________________ Profº. Drº. Charles D’Almeida Santana (UNEB) Orientador ___________________________________________________ Profº. Drº. Daniel Francisco dos Santos (UNEB) Examinador ____________________________________________________ Profº. Drº. Rinaldo César Nascimento Leite (UEFS) Examinador Janeiro / 2009. 5 Aos meus pais, Cornélio Maurício de Souza e Maria Macária de Oliveira 6 AGRADECIMENTOS: A realização desse trabalho tornou-se possível graças à participação de pessoas que se colocaram à disposição em diversos momentos, seja ao emprestar seus ouvidos para escutar as angústias do percurso, sobretudo relacionadas ao tempo escasso e às longas noites de insônia, seja ao entender a ausência em ocasiões que a presença tinha um significado tão importante. Meus sinceros agradecimentos são para todos que, de alguma forma, deram a sua contribuição. Especialmente, quero manifestar minha profunda gratidão aqueles que acompanharam mais diretamente os caminhos percorridos até aqui. Primeiramente, devo um agradecimento especial aos meus pais, que não vacilaram ao tomar a decisão de migrar do campo para a cidade, na tentativa de viabilizar a formação escolar minha e de meus irmãos. A minha família, pelo incentivo e apoio constante, por ter compreendido os momentos de distanciamento e reclusão. Ao meu companheiro Fábio, por conseguir relevar os dias de mau humor e intermediar os pequenos conflitos que surgiram na minha relação com a tecnologia do computador. Ao meu filho Kaian, por ter tornado mais leves aqueles dias cheios de afazeres, convocando-me para brincar com ele. A meu sobrinho Kaique, que sempre me divertia com a doçura da sua voz ao telefone, fazendo-me esquecer, momentaneamente, as angústias. Aos meus irmãos Edinélia, Edinaldo, Edilson e Érica, minhas cunhadas Adriana e Cristiane pela preocupação em oferecer conforto em situações não tão cômodas. A Edinaldo e Edinélia, com quem compartilhei minhas reflexões, meu agradecimento especial, pelo apoio incondicional, inclusive por encontrar, dentro dos seus dias corridos, tempo pra ler os meus escritos e propor sugestões valiosas. Ao professor Charles Santana, a quem sou profundamente grata, por não ter desistido de me incentivar na pesquisa desde os tempos da graduação, pela ampla contribuição intelectual e por ter me orientado, pacientemente, em cada fase desse processo. 7 Ao professor Rinaldo Leite e Daniel Francisco dos Santos, pelas enormes contribuições prestadas quando do exame de qualificação e por aceitarem o convite para participar da banca examinadora deste trabalho. A este último, agradeço ainda pela presença na minha trajetória acadêmica, desde a graduação. A todos os depoentes que, gentilmente, aceitaram re-visitar suas memórias ao abrir seus arquivos pessoais, oferecendo-me as fotografias, os jornais e a relatar suas experiências de vida. A todos os bibliotecários, arquivistas e demais funcionários das instituições visitadas, que facilitaram o meu acesso aos documentos utilizados nesta pesquisa. Pela dedicação e disponibilidade, referencio o Sr. Augusto, no arquivo Público Municipal de Santo Antonio de Jesus e Nice, na biblioteca e arquivo da COELBA de Salvador. Aos amigos Lucas Virgolino, que oportunizou as minhas visitas à COELBA e a Tau Tourinho por ceder fotografias do seu arquivo particular. Aos colegas do Curso que, muitas vezes, ajudaram a suavizar as dificuldades. Aos colegas de trabalho, do Colégio da Polícia Militar João Florêncio Gomes, que se multiplicaram para não me sobrecarregar de atividades, deixandome mais livre para a pesquisa. Ao Major Maurício e a Célia Marina pela leitura e correção da escrita. 8 “Poderia falar de quantos degraus são feitas as ruas em forma de escada, da circunferência dos arcos dos pórticos, de quais lâminas de zinco são recobertos os tetos; mas sei que seria o mesmo que não dizer nada. A cidade não é feita disso, mas das relações entre as medidas de seu espaço e os acontecimentos do passado” (Ítalo Calvino) 9 RESUMO O tema abordado neste estudo é a constituição das vivências que permearam o cotidiano dos moradores da cidade de Santo Antonio de Jesus, nas décadas de 1950-1970, momento em que a cidade dava os primeiros passos em um processo de urbanização marcado sobretudo pela modernização do seu espaço. Para tanto, utilizamos como fontes: depoimentos orais, jornais, fotografias, documentos oficiais do Legislativo e Executivo, processos trabalhistas, entre outras. Discute-se a coexistência dos costumes rurais e citadinos e as novas formas de viver em Santo Antonio de Jesus, configuradas pelos seus moradores, concomitantemente às transformações processadas, num contexto em que os sujeitos forjaram estratégias de sobrevivência nas suas práticas cotidianas e se envolveram numa multiplicidade de negociações e tensões para manter-se na urbe. A partir do diálogo com a historiografia recente sobre cidade e respaldado nos postulados teóricos da história social e cultural, destaca-se o advento da energia elétrica em Santo Antonio de Jesus e evidenciam-se alterações experimentadas pelos moradores nos espaços públicos e privados, assinalando a sua participação nas atividades ligadas ao lazer. Ao mesmo tempo, analisa-se os desdobramentos da utilização da eletricidade na vida material e também nas práticas e hábitos sociais, sem perder de vista a integração de tais aspectos a outras conjunturas vividas pela sociedade brasileira no período. PALAVRAS-CHAVE: Vivências urbanas – Santo Antonio de Jesus – Urbanização 10 ABSTRACT The theme addressed in this study is the constitution of that permeated the daily experiences of the residents of the city of Santo Antonio de Jesus, in the decades from 1950-1970, when the city gave the first steps in a process of urbanization marked mainly by the modernization of your space. For both, we use as oral sources, newspapers, photographs, official documents of the Legislative and Executive, labor processes, among others. It discusses the coexistence of rural and city habits and new ways of living in Santo Antonio de Jesus, set by its residents, to change processed concurrently, in a context in which the subjects forged strategies for survival in their daily practices and engaged in a multiplicity of negotiations and to keep tensions in the city. From the dialogue with the recent historiography on city and backed the theoretical postulates of social and cultural history, there is the advent of electricity in Santo Antonio de Jesus showed up and changes experienced by residents in public and private, noting the their participation in activities related to leisure. At the same time, it examines the ramifications of the use of electricity in the material life and social habits and practices, without losing sight of the integration to other aspects of such situations experienced by Brazilian society in the period. KEY WORDS: Urban experiences - San Antonio de Jesus - Urbanization 11 ÍNDICE DE FIGURAS: Figura 1 – Esquema Geral da Estrada de Ferro de Nazaré, 1973.............................20 Figura 2 - Localização de Santo Antonio de Jesus e cidades vizinhas..................... 23 Figura 3 - Feira de Santo Antonio de Jesus, 1957.................................................... 41 Figura 4 - Croqui de Santo Antonio de Jesus, anos 1940 - 1950..............................47 Figura 5 - Aspecto da Rua de Cima nos anos 1940, atual Rua Ruy Barbosa...........48 Figura 6 - A Igreja Matriz em construção...................................................................56 Figura 7 - Travessa Rio Branco, atual Travessa15 de novembro ...........................113 Figura 8 – Sessão no Cine Rex................................................................................130 Figura 9 - Sede da Rádio Clube/ Sociedade Palmeirópolis.....................................134 12 LISTA DE SIGLAS E ABREVIATURAS: ACMSAJ – Arquivo da Câmara Municipal de Santo Antonio de Jesus ALB – Academia de Letras da Bahia AP – Arquivo particular APMSAJ – Arquivo Público Municipal de Santo Antonio de Jesus BNB – Banco do Nordeste do Brasil S/A BPEB – Biblioteca Pública do Estado da Bahia CHESF - Companhia Hidroelétrica de São Francisco CLT – Consolidação das Leis do Trabalho COELBA – Companhia de Eletricidade do Estado da Bahia CPE - Comissão de Planejamento Econômico EMBASA – Empresa Baiana de Águas e Saneamento IBGE – Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística RFFSA – Rede Ferroviária Federal Sociedade Anônima SEI – Superintendência de Estudos Econômicos e Sociais da Bahia SSVP – Sociedade São Vicente de Paulo SUDENE – Superintendência de Desenvolvimento do Nordeste UFBA – Universidade Federal da Bahia UNEB – Universidade do Estado da Bahia 13 SUMÁRIO CONSIDERAÇÕES INICIAIS.............................................................................. 14 CAPÍTULO I: DIMENSÕES DO CAMPO E DA CIDADE.................... ................ 36 1.1 Leituras da cidade.......................................................................................... 37 1.2 Reformas urbanas.......................................................................................... 46 1.3 Redefinindo espaços e costumes.................................................................. 61 1.4 Cenários urbanos e costumes rurais............................................................. 66 CAPÍTULO II: SOBREVIVÊNCIAS, TENSÕES E SOCIABILIDADES NA URBE SANTOANTONIENSE......................................................................................... 77 2.1 Estratégias de sobrevivência urbana............................................................. 78 2.2 Práticas de solidariedade e caridade no cotidiano santoantoniense............. 90 2.3 Tensões no espaço urbano............................................................................ 96 CAPÍTULO III: ESPAÇOS DE LAZER............................................................... 107 3.1. A rua – espaço de encontros e festas......................................................... 108 3.2. A casa .............................................. ......................................................... 121 3.3. Outros espaços .......................................................................................... 126 CONSIDERAÇÕES FINAIS .............................................................................. 137 FONTES E REFERÊNCIAS.............................................................................. 141 14 CONSIDERAÇÕES INICIAIS A problemática da urbanização e seus corolários sociais se apresenta como uma das mais importantes questões das sociedades contemporâneas. No Brasil, o século XX assinala a transição de uma sociedade com população rural para uma sociedade cada vez mais urbana, como um fenômeno que marcaria de forma iniludível múltiplos aspectos da vida social. O processo de urbanização vivenciado na Bahia, a partir de meados do século XX, relaciona-se em grande medida com as iniciativas de investimentos no setor industrial observadas, sobretudo, desde a década de 1950. Em sua fase inicial, o processo de industrialização na Bahia esteve permeado pela influência e disputa de, sobretudo, dois projetos de desenvolvimento econômico. Enquanto a política do governo Vargas prosseguia seu intento nacionalista, outros setores desejavam a internacionalização do capital brasileiro. É nessa conjuntura, que algumas iniciativas são tomadas, com vistas a dotar o Recôncavo de uma infra-estrutura capaz de permitir a instalação dos futuros centros industriais: rodovias foram construídas e pavimentadas, empresas públicas de eletricidade e telefonia, como também um Banco de Fomento foram criados. Igualmente foram feitos investimentos em educação e saúde; iniciou-se a implantação de indústrias em Aratu e acordos foram firmados para obras com a Petrobrás; observou-se ainda a criação da CPE - Comissão de Planejamento Econômico e a elaboração de um plano de diretrizes econômicas para o estado. Foi, também, nessa década que a Usina de Paulo Afonso entrou em funcionamento para gerar a energia elétrica que viabilizaria tal projeto de desenvolvimento. Na década de 1950, ocorreu a construção da Refinaria Landulfo Alves. Já nos anos 1960, no governo Lomanto Júnior, foi instalado o Centro Industrial de Aratu. Nesse período, foram implementados vários centros industriais em municípios do interior da Bahia, culminando com a implantação do pólo petroquímico de Camaçari, no final dos anos 1970. Esse processo de industrialização foi acompanhado pelo êxodo rural e pelo crescimento acelerado da população urbana, tendo como desdobramento o fenômeno da favelização, a ocupação desordenada do espaço urbano e o surgimento de muitas demandas sociais. 15 Por força do surgimento de um complexo conjunto de desdobramentos das transformações urbanas por que passou a capital do estado, ampliou-se o interesse pela questão urbana, desde os anos 1950. Geógrafos, cientistas sociais e historiadores passaram a analisar o fenômeno da urbanização nos mais variados ângulos. Os estudos, em grande parte, estiveram fortemente referendados pela idéia de urbanidade da época, em que a cidade aparecia constantemente associada à idéia de progresso, modernização, contrastando com o campo geralmente analisado em termos de atraso, conservadorismo e ignorância. Nesse caso, a partir de uma visão dicotômica, aqueles trabalhos não atentaram para a existência de relações de complementaridade e interdependência que se estabelecem entre o campo e a cidade. Thales de Azevedo e Rômulo Almeida, aqui na Bahia, podem ser incluídos no universo de algumas dessas teses sociológicas dos anos 1950 e 1960. À época, cristalizaram-se e generalizaram-se imagens e atitudes sobre o campo e a cidade como “realidades separadas e contrastantes”, vinculando o campo como o lugar onde se constituem modos de viver ligados à natureza, com uma economia doméstica, formas simples de organização social, lugar de tranqüilidade, mas também de ignorância e atraso; e a cidade, como o lugar das realizações, do saber, da produção, da comunicação, do fortalecimento da política e da administração, como também o lugar da multidão e do barulho. Tais idéias nos intrigam e nos conduzem a outras possibilidades de análises, ao menos no sentido de “reexaminar essa divisão e essa oposição e refletir sobre campos e cidades como fatos sociais e como paisagens fortemente imbricadas, ou como dimensões de uma mesma realidade”. A cidade e o campo constituem realidades dinâmicas que se relacionam e estão em constante transformação.1 As distâncias entre o campo e a cidade encurtaram-se muito, a partir da segunda metade do século XX. As trilhas foram substituídas pelas estradas de rodagens e a velocidade do automóvel suplantou as tropas de homens, carroças e animais. A abertura e o beneficiamento de ruas e avenidas, as escolas, os cinemas, telefones e mercados modernizaram as cidades. Entretanto, os benefícios do desenvolvimento econômico, que fomentou essa modernização urbana, deixaram de fora uma grande parte da população. Nesse contexto, ampliou-se a expropriação no 1 KHOURY, Iara Aun. “Apresentação”. Revista do Programa de Estudos Pós-Graduados em História e do Departamento de História da Pontifica Universidade Católica de São Paulo, nº 18, Educ, São Paulo, 1999, p 9-11. 16 campo e na cidade, como também se desencadeou um processo de reconstrução de identidades e costumes no Recôncavo Baiano. Localizado em torno da Baía de Todos os Santos e compreendendo uma das mais antigas áreas de ocupação do território brasileiro, o Recôncavo Baiano, desde o período colonial, teve sua formação histórica fortemente influenciada pelo desenvolvimento de atividades econômicas, destinadas aos mercados externos (como o açúcar e o fumo) e ao abastecimento da cidade de Salvador, sobretudo a partir da produção de gêneros de subsistência. Era a economia do Recôncavo, com a produção de açúcar, farinha e tabaco, entre outros produtos, que sustentava o comércio de Salvador. Assim, qualquer problema que atingisse a região, como secas e enchentes, provocava dificuldades para a população da capital. Pode-se afirmar, ainda, que “essa região sempre foi determinada por relacionamentos com o exterior, quase sempre processados através de Salvador”.2 No final do século XIX, a partir dos cenários inaugurados pela abolição da escravidão e pela proclamação da República, começava a surgir uma visão pessimista em relação à economia da Bahia. Naquele contexto, as elites baianas sofreram duros golpes com as mudanças políticas e econômicas processadas que abalaram profundamente a então frágil economia regional, com seus graves problemas internos e externos. Diante disso, “o Recôncavo perdeu progressivamente sua antiga importância econômica e política, passando a ocupar uma posição marginal nos processos que então marcariam a vida nacional”.3 Os efeitos desse quadro desanimador começavam a se fazer sentir no clima de pessimismo que tomou conta das narrativas da intelectualidade baiana, através de projeções saudosistas e tomando como referencial o desenvolvimento econômico do Sudeste brasileiro. Esse olhar nostálgico levou um grupo de intelectuais, políticos e setores da imprensa baiana a fomentar um acalorado debate em torno do quadro de “retrocesso” com que avaliavam a posição da Bahia e do Recôncavo, buscando compreender o porquê da não industrialização do Estado. Dessa forma, tentava-se “desvendar o ‘enigma baiano’ para poder superá-lo”.4 2 PEDRÃO, Fernando. Novos e velhos elementos da Formação social do Recôncavo da Bahia de Todos os Santos, Salvador, 2001, Mimeografado, p 1. 3 BRANDÂO, Maria de A. “Introdução”. In: BRANDÃO, M. de Azevedo (org.). Recôncavo da Bahia: sociedade e economia em transição. Salvador: Fundação Casa de Jorge Amado; ALB; UFBA, 1998, p. 34. 4 Em síntese, o “enigma baiano” consistia na não industrialização da Bahia, ou melhor, no porquê dessa não industrialização. ALBAN, Marcus. O novo enigma baiano, a questão urbana-regional e a 17 Representando “um território em constante transformação, plural e complexo, com uma multiplicidade de histórias e agentes econômicos e sociais”,5 o Recôncavo contrasta com as demais regiões por possuir “identidade cultural única” no Estado da Bahia. Para Milton Santos, o Recôncavo também constitui um “complexo regional”, cuja unidade “provinha das relações mantidas de longa data entre suas várias porções com vocações e atividades diferentes”,6 coordenados pela cidade de Salvador. A diversidade identificada na região “possibilita-nos pensar o Recôncavo como um grande conjunto composto por porções diferenciadas, que, apesar de se integrarem, dão-lhe um caráter multifacetado” em que podem ser encontrados “pequenos recôncavos”: o canavieiro, o fumageiro, o mandioqueiro e da subsistência, o da pesca, o ceramista.7 Em uma dessas “porções”, hoje denominada de Recôncavo Sul, está localizado o município de Santo Antonio de Jesus, uma das mais tradicionais áreas de ocupação e colonização do território brasileiro, fora das tradicionais áreas açucareiras que teve sua formação histórica marcada pela presença de uma economia de subsistência, além da produção de alimentos e materiais de construção que abasteciam a cidade de Salvador. Já em meados do século XX, a micro-região constituía um mosaico de subáreas compostas por diferentes atividades que, além da subsistência dos produtores, eram responsáveis pelo abastecimento das feiras locais, ajudavam a prover a cidade de Salvador e até mesmo mantinham relações com mercados externos, “através de pequenas exportações de artigos como fumo, açúcar, café, minérios, madeira, cacau, couro, etc”.8 Ao estudar a evolução da sua rede de cidades, na década de 1950, Santos assinala que “o Recôncavo é uma região de vida urbana notável e ao mesmo tempo alternativa de uma nova capital. Anais do XI Encontro Nacional da Associação Nacional de PósGraduação e Pesquisa em Planejamento Urbano e Regional – ANPUR, Salvador, maio de 2005. 5 MACHADO, Gustavo Bittencourt & SANTOS, Valdir J. dos. Desenvolvimento Regional e Arranjos Produtivos no Recôncavo. Bahia Análise & Dados, Salvador: SEI, v.14, nº. 3, p. 551-561, dezembro de 2004, p 1. 6 SANTOS, Milton. “A Rede Urbana do Recôncavo”. In: BRANDÃO, M. de Azevedo (org.). Recôncavo da Bahia: sociedade e economia em transição. Salvador: Fundação Casa de Jorge Amado; ALB; UFBA, 1998, pp. 63-65. 7 OLIVEIRA, Ana M. dos Santos. Recôncavo Sul: terra, homens, economia e poder no século XIX. Dissertação de Mestrado em História, UFBA, Salvador, 2000, p 49. 8 SOUZA, Edinaldo A. O.. Lei e Costume: Experiências de Trabalhadores na Justiça do Trabalho ( Recôncavo Sul, Bahia, 1940-1960). Dissertação de Mestrado em História UFBA, Salvador, 2008, p 45. 18 onde as densidades rurais atingem índices bem elevados, os mais altos do estado”.9 O geógrafo identifica uma fase de grandes modificações na hierarquia” dos núcleos urbanos da região, cujos agentes das mudanças seriam, a superposição de uma rede de estradas de rodagem aos antigos caminhos e ferrovias; a complementação de uma verdadeira rede de estradas de ferro; o agravamento da decadência das lavouras de fumo e cana-de-açúcar e o crescimento da cidade de Salvador, acompanhado da elevação dos seus padrões de vida, exigindo um abastecimento mais numeroso e animando o desenvolvimento de 10 novas regiões de produção alimentar. Percebe-se que o processo de urbanização nos municípios do Recôncavo estava diretamente ligado à evolução dos meios de transporte na região. Com o aparecimento de políticas de infra-estrutura e de modernização, iniciadas desde o período do Estado Novo, modificaram-se os papéis de cidades tradicionais como Cachoeira, que deixou de ser a única “porta de entrada para o Sertão, através do vale do Rio Paraguaçu, cedendo lugar a Santo Antonio de Jesus, onde iniciou o plano de transporte rodoviário”.11 Costa Pinto observa que a introdução do transporte rodoviário, na segunda metade do século XX, promoveu alterações significativas na hierarquia das redes de cidades do Recôncavo, afirmando ainda que a ferrovia foi uma das inovações tecnológicas relativamente recentes, que determinaram fundas alterações nos padrões tradicionais e depois a rodovia e o caminhão promoveram mudanças ainda mais profundas.12 O crescimento urbano verificado na espacialidade recôncava desenha-se a partir do entrecruzamento de sua história com o desenvolvimento dos sistemas de comunicação e transporte ferroviário e, posteriormente, rodoviário. Desde o final do século XIX, havia a presença de uma estação de linha férrea, que ligava Santo Antonio de Jesus à cidade de Nazaré e depois a São Roque do Paraguaçu, dando acesso à capital. Com a ligação dessa ferrovia a Santo Antonio de Jesus, 9 SANTOS, Milton. “A Rede Urbana do Recôncavo”. In: BRANDÃO, M. de Azevedo (org.). Recôncavo da Bahia: sociedade e economia em transição. Salvador: Fundação Casa de Jorge Amado; ALB; UFBA, 1998, pp. 63-65. 10 Idem, op. cit., pp. 80-81. 11 PEDRÃO, Fernando. Op. cit, p 8-9. 12 COSTA PINTO, L. A. “Recôncavo: Laboratório de uma Experiência Humana”. In: BRANDÃO, M. de Azevedo (org.). Recôncavo da Bahia: sociedade e economia em transição. Salvador: Fundação Casa de Jorge Amado; ALB; UFBA, 1998, pp. 120-121. 19 abre-se, festivamente, em data de 7 de setembro de 1880, o tráfego definitivo de Nazaré a Santo Antonio de Jesus, da Tram-Road, depois denominada, Estrada de Ferro de Nazaré, cujos trilhos foram prolongados até alcançarem a cidade de Jequié.13 Com a Tram-Road, o município passou a integrar uma expressiva rede de comércio e de passageiros, fora da área de influência da Estrada de Ferro Central da Bahia,14 o que o tornava um importante centro de convergência e circulação de pessoas, com vistas a atender às mais diversas necessidades, como o escoamento do café, fumo, açúcar e farinha de mandioca, cereais, madeiras e do minério de manganês.15 Durante os dez anos que Santo Antonio de Jesus foi ponta de trilhos, a estrada trouxe prosperidade para o município, que em pouco tempo tornou-se um dos principais centros comerciais da redondeza.16 Contudo, sua ampliação, até Jequié não diminuiu substantivamente sua importância regional. O esquema a seguir apresenta o traçado da Estrada de Ferro de Nazaré que permitia a ligação da cidade de Santo Antonio de Jesus à capital, através da Baía de Todos os Santos. 13 Enciclopédia dos Municípios Brasileiros, 2 de julho de 1958. Rio de Janeiro, XXI volume. “A Estrada de Ferro Central da Bahia partia da borda do Recôncavo desde Cachoeira e São Félix, para o interior da província, em direção à Feira de Santana e à Chapada Diamantina. Seu traçado obedeceu à lógica locacional de conectar o interior da província da Bahia, através dos portos fluviais do Recôncavo, com a capital, Salvador. A estrada de ferro deveria se apoiar na rede das estradas gerais e caminhos de tropa do sertão”. ZORZO, F. A. . O Movimento de Tráfego da Estrada de Ferro Central da Bahia e seu Impacto Comercial. Sitientibus, v. 1, p. 63-79, 2002. 15 SIMÕES, Lindinalva. As estradas de ferro do Recôncavo. Dissertação de Mestrado. Salvador-Ba. Bahia: UFBA, 1970, p. 101. 16 ALVES, Isaías de Almeida. Matas do Sertão de Baixo. Bahia: Reper, 1967, pp. 171 e 233. 14 20 Figura I: Esquema Geral da ex-Estrada de Ferro de Nazaré, 1973. Fonte: RFFSA. 4ª Divisão – Leste. É uma imagem que provoca lembranças. Sr. Manoel Oliveira, nascido em Santo Antonio de Jesus em 1931, viveu por longa data em Salvador. Há oito anos voltou a morar na terra natal e ao ser entrevistado rememorou um tempo em que viajar de trem era o único meio de chegar à capital, saindo da estação de Santo Antonio até Nazaré: Antigamente a gente ia pra Salvador no trem né, não tinha navio até Nazaré. No dia que fui pra Salvador eu fui de trem, ainda não tinha ônibus não... todo mundo andava de trem, não tinha outro transporte [...] Era uma viagem muito demorada naquela época [...] Antigamente só vinha até Nazaré o trem, aí pegava o navio [...] mas quando o mar secava o navio encostava na areia, aí ficava atracado. Agora, quando o mar enchia é que ele saía pra Salvador. Então, era uma viagem muito demorada, naquela época. Era pra mais de seiscentos saveiros ali. Carregava mercadoria pra Salvador era 21 através dos Saveiros.17 Depois que inventaram assim essa história que vai até São Roque do Paraguaçu.18 Naqueles tempos, a aventura de “ir pra Bahia”, realizada por Sr. Manoel e tantas outras pessoas, envolvia um percurso de 34 Km de trem, indo de Santo Antonio de Jesus até Nazaré, e, a partir daí, uma longa viagem de saveiro até Salvador. Era uma “viagem demorada”, pois além da baixa velocidade do trem, devido às linhas irregulares e sinuosas, havia a necessidade de contar com a ajuda das marés para seguir viagem pelo mar. Só em 1941 a Estrada de Ferro de Nazaré alcançou São Roque do Paraguaçu e Nazaré deixou de ser o ponto final da ferrovia. Esse prolongamento até São Roque do Paraguaçu “foi um acontecimento que levantou muitas dúvidas, quanto ao acerto da medida”, pois os opositores a essa decisão mostravam que Nazaré seria grandemente prejudicada, e não traria nenhuma contribuição para o progresso da ferrovia, nem maior conforto para os passageiros, que continuariam tendo de tomar o navio no terminal para alcançar Salvador. Em seguida, “o tempo veio demonstrar o acerto dos que se colocaram contra o prolongamento”, na medida em que “a cidade sofreu forte abalo em suas atividades”.19 A partir daí, o percurso do trem aumentou e ficou mais curta a travessia de saveiro que cruzava a Baía de Todos os Santos. É também nessa década que o transporte rodoviário passa a ser outra opção para os santoantonienses, nos deslocamentos para Salvador. Logo, a rapidez do transporte rodoviário e a falta de manutenção da ferrovia provocaram o abandono e a decadência dessa Estrada de Ferro, extinta em 1971, quando “não só Nazaré, mas toda a região servida pela Estrada recebeu, impassível, o golpe fatal”.20 Anunciados nos discursos e projetos da política nacional- desenvolvimentista, o planejamento econômico e seus ideais de progresso, desenvolvimento e modernização se materializavam no Recôncavo, em meados do século XX. Relacionavam-se, sobretudo, ao processo de implementação da indústria Sobre os Saveiros da Bahia, ver CASTELLUCCI, Wellington J.. Pescadores da Modernagem: Cultura, Trabalho e Memória em Tairu, Bahia. 1960-1990, 1ª Ed. São Paulo: AnnaBlume, v. 1, 2006. 18 Depoimento do Sr. Manoel Oliveira, em agosto de 2007, 76 anos de idade, nascido em Santo Antonio de Jesus. 19 AUGUSTO, Lamartine. Porta do Sertão. 2ª ed. Salvador: Edições Kouraça, 1999. 20 Idem 17 22 petrolífera, da construção das rodovias, além de outras realizações financiadas por instituições estatais como a SUDENE e o BNB.21 No final dos anos 1940, o clima de expectativa criado pela iniciativa estatal e pela mobilização social em prol das atividades petrolíferas no Recôncavo, a chegada da energia elétrica – viabilizada pela construção da Companhia Hidroelétrica de São Francisco (CHESF), somados aos efeitos da política desenvolvimentista, como a ampliação da malha ferroviária e a progressiva abertura de rodovias, foram acompanhados com grande euforia pela imprensa e pela intelectualidade baianas, contrastando com o pessimismo até então predominante. Os novos ares de progresso e modernização, inaugurados com a descoberta do petróleo na Bahia, mostram que os anos 1950 ficaram marcados por fazer ceder a visão pessimista apresentada anteriormente. No Recôncavo Sul, esses novos ares foram sentidos com a ampliação do uso do automóvel e dos transportes rodoviários. De uma forma particular, com dinâmica própria, a região experimentava a sua inserção nos ideais de modernização largamente propagados pelas elites política e econômica nacionais. Com a implementação do sistema de transporte rodoviário, a partir dos anos 1940, configuraram-se novos circuitos comerciais e de comunicações - processo que favoreceu Santo Antonio de Jesus pela sua localização geográfica e sua posição estratégica na malha rodoviária construída. Com a ampliação da oferta de serviços urbanos, a partir dos anos 1950, alcançou um relevante crescimento urbano. Aos poucos a cidade tornou-se pólo de atração comercial e de serviços, ampliando significativamente sua população, com uma forte presença de migrantes do campo, de toda a micro-região, que influenciaram nos modos de viver urbano da Capela do Padre Matheus, como é também conhecida.22 A cidade experimentou um significativo processo de urbanização. Já nos anos 1970, o crescente dinamismo urbano23 e a localização privilegiada, margeada pela BR 101 e pela BA 028, que dá acesso ao sistema ferry boat - responsável pela travessia de passageiros, veículos e mercadorias a bordo de navios, de Itaparica para Salvador - dimensionaram o poder 21 MATTOSO, Kátia de Queiroz. “Prefácio”. In: BRANDÃO, M. de Azevedo (org.). Recôncavo da Bahia: sociedade e economia em transição. Salvador: Fundação Casa de Jorge Amado; ALB; UFBA, 1998, p. 18. 22 Ver QUEIROZ, Fernando P.. A capela do Padre Matheus. Feira de Santana: Sagra, 1995. 23 Sobre a dinâmica urbana de Santo Antonio de Jesus ver SANTOS, Miguel C. dos. O Dinamismo Urbano e suas implicações regionais: o exemplo de Santo Antonio de Jesus, Ba. Salvador. Editora UNEB, 2002. 23 de atração que Santo Antonio de Jesus exerceu/exerce sobre os habitantes dos municípios vizinhos. A este respeito, visualizemos o mapa abaixo: D. M Costa Figura II: Localização de Santo Antonio de Jesus e cidades vizinhas Fonte: http://maps.google.com.br A centralidade de Santo Antonio de Jesus mostra-se melhor evidenciada na imagem. A rodovia construída acompanhando o leito da antiga ferrovia, entre Nazaré e Varzedo cruza a BR 101, justamente na cidade. Para lá passam a convergir as atenções de uma vasta quantidade de municípios. Ao mesmo tempo, algumas iniciativas começaram a ganhar vulto, sobretudo implementadas pelo poder público local, visando criar um aspecto mais urbano, mais afinado com as representações das metrópoles modernas. Em geral, as reformas, então adotadas, sintonizadas com os discursos e ideais desenvolvimentistas, não consideravam o antigo como algo que devesse ser conservado. Assim, o “velho” passava a ser substituído pelo “novo” de uma forma agressiva, representando um processo de “destruição criativa”, segundo o qual, acreditava-se que seria necessário ”destruir o existente para a 24 construção de um novo mundo”.24 Ao longo do século passado, muitas cidades brasileiras vivenciaram efetivamente essa perspectiva da experiência civilizadora, como ação destruidora, em que “ser moderno é encontrar-se em um ambiente que promete (...) autotransformação e transformação das coisas em redor – mas ao mesmo tempo ameaça destruir tudo o que temos, tudo o que sabemos, tudo o que somos”.25 Ainda que em Santo Antonio de Jesus esse espírito de modernidade possa ter motivado alguns projetos do poder público local, a cidade carregava sua própria temporalidade. De um modo geral, seus moradores possivelmente pouco se identificaram com esse ambiente promissor de mudança, além do que nem todos estavam dispostos a destruir tudo o que tinham, sabiam e eram, ou pretendiam romper com os seus costumes de uma maneira tão abrupta. Embora faça referência a outro período e outro local, Rinaldo Leite, ao analisar o processo de modernização da cidade de Salvador, no contexto compreendido entre 1912 e 1916, assinala que o processo de modernização das cidades renegava todo e qualquer legado arquitetônico e cultural do passado que pudesse representar um elemento de atraso. As noções de modernidade e de atraso quase sempre tiveram como referência as idealizações elaboradas por segmentos das elites urbanas, caracterizando, assim, a sua tendência demolidora, destruidora de tudo que fosse tomado por velho, ou associado ao antigo.26 Pode-se observar que o cenário urbano de Santo Antonio de Jesus, particularmente na década de 1950, também passou por significativas remodelações no contexto do seu processo de urbanização, buscando substituir o que era tido como antigo pelos símbolos do moderno. Assim, a velha igreja cedia lugar à nova Matriz, a feira e o velho Mercado seriam afastados das áreas centrais. A energia elétrica, símbolo marcante da urbanização, que durante longas décadas fora apenas um sonho acalentado pela população, tornava-se um assunto de primeira hora. Desde a década de 1930, O Palládio, periódico local que circulou durante cinqüenta anos, já dedicava algumas notas ao assunto. Mas foi, sobretudo a partir das décadas de 1940 e 1950, com a construção da Companhia Hidroelétrica do São Francisco (CHESF) e o início das obras de eletrificação urbana no Recôncavo, que a 24 HARVEY David, Condição pós-moderna. Edições Loyola, São Paulo, 1992, p 26. BERMAN Marshal. Tudo que é sólido desmancha no ar: a aventura da modernidade. São Paulo, Companhia das Letras,1986, p 15. 26 LEITE, Rinaldo Cesar Nascimento. E a Bahia civiliza-se. Dissertação de Mestrado em História, UFBA, Salvador, 1996, 14. 25 25 falta da eletricidade e os “limites” que ela impunha à vida urbana tornaram-se temas recorrentes, tanto na imprensa como nos discursos dos políticos santoantonienses.27 Criada em 1945 e constituída em 1948, com a missão de produzir, transmitir e comercializar energia elétrica para a Região Nordeste, a CHESF possibilitou a extensão do serviço para todo o Estado da Bahia, através de um programa de eletrificação, que não se deu ao mesmo tempo para todo o estado,28 o que em Santo Antonio de Jesus só veio a se concretizar na década de 1960. Além da energia elétrica, outra inovação freqüentemente cobrada pela imprensa local era o melhoramento do sistema de abastecimento de água encanada. As antigas fontes e a compra de água nas mãos dos aguadeiros tornavam-se incompatíveis com os propósitos da modernização urbana. O novo modelo de cidade deveria oferecer a seus moradores certo conforto, o que destoava das caminhadas com as latas de água na cabeça. Afinal as idéias de civilidade estavam associadas a imagens de cidades bem iluminadas e higienizadas. Outro aspecto importante da urbanização é a extensão dos espaços de atuação da mulher. Atividades predominantemente femininas, desde o século XIX, como as de ganhadeiras e vendedoras, são ampliadas em Santo Antonio de Jesus, nos anos 1950, não obstante as resistências que aquelas mulheres encontravam no mercado de trabalho. Nas barracas das feiras elas “vendiam flores, mingau de milho, de tapioca ou carimã, entre outros produtos”;29 nos armazéns, realizavam o trabalho da destalagem do fumo, abrindo e separando as folhas que chegavam amontoadas em grandes fardos. Essa era uma função não muito bem aceita pelos maridos, devido a grande presença masculina no ambiente do armazém, o que gerava certo preconceito quanto àquele local de trabalho ser adequado ou não para as mulheres.30 As funções de professora, costureira e bordadeira, também comumente femininas de longa data, expandiram-se na cidade, durante o período. Nas escolas predominava a presença feminina, onde se exercia quase que exclusivamente a função de ensinar às crianças e adultos a ler e escrever. Algumas davam aula de corte, costura e bordados em suas próprias residências. Havia uma preocupação de 27 Inúmeras matérias referentes a esse assunto podem ser encontradas no Jornal O Palládio, especialmente nos exemplares nº. 2068, nº. 2184 e o nº. 2187. 28 NASCIMENTO, Luiz Fernando Motta, Paulo Afonso: luz e força movendo o nordeste, Salvador: EGBA/ACHÉ, 1998, p 215. 29 Depoimento de José Santos Vieira, de 67 anos idade, em maio de 2007. 30 ASSIS, Cristina da Anunciação da Silva. Os trabalhadores dos armazéns de fumo. Monografia do Curso de Especialização em História Regional, UNEB, CAMPUS V, fevereiro/2004. 26 ensinar as prendas domésticas, tidas como importantes requisitos para as moças que pretendiam se casar. Os anúncios podiam ser vistos nos jornais O Palládio31 e A Voz das Palmeiras.32 Essas tarefas eram mais aceitáveis pelos maridos e pela sociedade em geral, pois além de tratar de atribuições consideradas femininas, aconteciam em ambientes familiares e algumas vezes em pequenas escolas. A investigação das experiências urbanas de Santo Antonio de Jesus aponta nuances que por si só justificariam o tema. Entretanto, esse estudo insere-se entre as iniciativas historiográficas que atualmente esforçam-se em compreender/analisar as complexidades inerentes ao processo de urbanização em cidades de porte médio do interior do Brasil ao longo do século XX, bem como as interações e inter-relações entre as práticas sociais urbanas e rurais que permearam tal experiência. Refletir sobre esse cenário urbano, os sentidos e significados atribuídos pelos diferentes sujeitos sociais da cidade de Santo Antonio de Jesus, é também redimensionar experiências minhas da infância e adolescência, onde se cruzam vivências rurais e urbanas, particularmente a partir da migração do campo para esta cidade nos anos 1980, a fim de continuar os estudos. As lembranças do cheiro de cabelo queimado pelas chamas do candeeiro a querosene e do longo percurso a pé ou a cavalo para ir à cidade imbricam-se com outras que vivenciei, quando junto com minha mãe e meus irmãos, fomos morar na cidade em busca de trabalho e escola. Naquele momento não foi fácil deixar o campo e aceitar a cidade com o seu ritmo acelerado. Mas, a adaptação não tardou. Logo fui atraída pelas luzes que permitiam brincar na rua até tarde da noite, a bicicleta que fascinava pela capacidade de locomoção, a proximidade da escola, da igreja, do consultório médico, a manutenção das relações de vizinhança, a televisão que nos nossos primeiros dias de vida urbana apresentou-se como um sonho que enfim, virava realidade. Minhas memórias ainda trazem à tona aventuras vividas nos caminhos da roça para conhecer o mundo mostrado pela televisão. Um episódio vivido quando eu e meus irmãos éramos crianças marcaria as nossas experiências de vida longe da cidade. Nos anos 1970, morávamos em um sítio na zona rural do município de Dom Macedo Costa, vizinho de Santo Antonio de Jesus. Mas, se na cidade a energia elétrica havia chegado, naquela localidade a única iluminação existente era a dos 31 32 Jornal O Palládio, Santo Antonio de Jesus, 9 abril de 1947, p 4. Jornal A Voz das Palmeiras, Santo Antonio de Jesus, março de 1954, p 2. 27 lampiões e candeeiros. Possuir geladeira e televisão em casa era um luxo. Nós tínhamos uma geladeira que funcionava a gás, pois o meu pai era dono de venda e precisava oferecer cerveja e refrigerante gelados para os seus fregueses. Era um domingo de carnaval. Os moradores ouviam no rádio, ou através de pessoas que chegavam da capital, histórias e anúncios das atrações da grande festa. A curiosidade era inevitável, e como não havia possibilidade de participar do carnaval, podia-se satisfazê-la assistindo às atrações pela TV. Foi assim que minha mãe tomou a iniciativa, juntamente com sua sobrinha Marlene, de levarem a mim e meus três irmãos mais velhos, na velha jumenta da família, até a localidade do Gandu, para assistirmos o carnaval na casa de D. Eufulosina, numa televisão em preto e branco que funcionava à bateria. Lá fomos nós quatro distribuídos nos dois panacuns e na cangalha, enquanto minha mãe e minha prima iam a pé, guiando o animal. Tudo isso acontecia sem o conhecimento do meu pai que não aprovaria tal aventura. Inesperadamente, um acidente quase transforma aquele domingo de carnaval numa lembrança triste. Ao atravessar o Riacho de Água Suja, em virtude das fortes chuvas que haviam caído, a terra que sustentava uma pequena ponte de troncos de árvores cedeu e a jumenta tombou, derrubando todos nós nas águas escuras daquele riacho. O resgate foi rápido, e nós conseguimos sair a salvo, mas assustados e enlameados. Naquele estado não seria possível seguir viagem. Então, minha prima Marlene voltou em casa e pegou roupas limpas, sem que meu pai desconfiasse de nada. Tomamos novo banho e, sem nos intimidar continuamos a nossa viagem. Já na casa de D. Eufulosina, em frente à televisão, as imagens em preto e branco nos encantava e divertia, fazendo-nos acreditar que havia valido a pena a aventura que tornou aquele carnaval um momento inesquecível em nossas vidas. A experiência relatada diz do poder de sedução exercido pela televisão sobre moradores do campo, atraídos pela novidade das imagens que aproximava vivências rurais e urbanas. As limitadas oportunidades de lazer no meio rural e até mesmo nas pequenas e médias cidades faziam/fazem da TV um grande instrumento de diversão. Já morando na cidade, os modos de viver urbanos foram sendo incorporados às nossas práticas de vida, sem, contudo nos distanciar de costumes e valores experimentados no campo. Certamente trata-se do que Raymond Williams 28 chamou de “terra de fronteira”, entendendo-a como “aquela terra em que muitos de nós vivemos: entre a tradição e a instrução, entre o trabalho e as idéias, entre o apego ao torrão natal e a vivência das mudanças.”33 Eis o lugar de onde falo, o ponto de referência, o lugar social,34 a posição de partida das reflexões sobre Santo Antonio de Jesus. Entende-se, portanto, que os viveres rurais e urbanos imbricam-se, interagem e tensionam; ampliam-se e se reelaboram através dos processos da memória. Dessa forma, fazendo uso do cruzamento das memórias inscritas na oralidade, na imprensa, nos documentos oficiais, na fotografia, buscou-se desenvolver o estudo da temática das vivências urbanas em Santo Antonio de Jesus. Contudo, conforme já havia notado Rezende, verifica-se que “cada cidade contém todas as cidades, percorrer sua história é encontrar-se com a multiplicidade e conviver com a sinfonia, às vezes dissonante, de todos os tempos”.35 Compreendendo a História, tal como concebida por Nora, uma “reconstrução sempre problemática e incompleta”, a intenção dessa pesquisa é revisitar o passado através da memória, “aberta à dialética da lembrança e do esquecimento, inconsciente de suas sucessivas deformações, vulnerável a todo tipo de uso e manipulações”.36 Portanto, busca-se apreender modos de viver, idéias e pensamentos forjados nas experiências de vida de homens e mulheres de diferentes identidades étnicas e condições sociais, que se relacionavam e/ou se enfrentavam cotidianamente na constituição da sociedade santoantoniense, durante seu processo de urbanização entre 1950 e 1970. Para além dos aspectos apresentados nas conjunturas nacional e estadual presentes nas transformações em Santo Antonio de Jesus, o recorte justifica-se por ter sido a partir dos anos 1950 que o serviço de energia elétrica ampliou-se na cidade, estendendo-se a ruas, praças e casas, o que pode ser considerado um marco para a construção das suas vivências urbanas, fortemente influenciadas pela eletricidade. Por entender que as experiências de urbanização na cidade não têm fim, mas trata-se de um processo que continua acontecendo, elegemos os anos 33 WILLIAMS, Raymond. O Campo e a Cidade na história e na literatura. São Paulo: Companhia das Letras, 1989, p. 387. 34 CERTEAU, Michel de. Operação historiográfica. In: A Escrita da História: Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2006, p 65. 35 REZENDE, Paulo Antonio. O Recife: histórias de uma cidade. Recife: Fundação de Cultura Cidade de Recife, 2002, p 135. 36 NORA, Pierre. Entre memória e História: a problemática dos lugares. In: Projeto História nº 10, São Paulo, EDUSC, 1993, pp.7-28. 29 1970 para delimitar o término desse estudo. Afinal, trata-se de uma década em que fatos importantes como a desativação da estrada de ferro, o asfaltamento da rodovia BR-101, a transferência da feira, entre outros, inauguraram uma nova fase na vida urbana santoantoniense. Como o recorte temporal desse estudo é recente, tornando possível colher depoimentos de pessoas que vivenciaram tais experiências, a memória oral foi uma grande aliada, ainda que ela nos ofereça sempre “um sem número de significados”.37 Considerada como um “instrumento e um objeto de poder”, a memória é também “um elemento essencial do que se costuma chamar identidade, individual ou coletiva, cuja busca é uma das atividades fundamentais dos indivíduos e das sociedades de hoje, na febre e na angústia”.38 Além disso, através do testemunho oral, “novas histórias” são geradas e estas, podem, “literalmente, contribuir para o processo de dar voz a experiências vividas por indivíduos e grupos que foram excluídos das narrativas históricas anteriores, ou foram marginalizados”.39 Através da apreensão dos registros da memória na voz dos próprios sujeitos e do contato com suas práticas de vida, tornou-se possível surpreender pormenores que, certamente, estão na contramão dos estudos oficiais sobre vivências urbanas. A pesquisa oral, “além de romper com a tradicional distância entre pesquisador e fontes, [...] permite ao historiador refletir sobre o sentido das falas, gestos e silêncios dos sujeitos entrevistados”,40 portanto, extrapola o universo das palavras, além do que “o resultado final da entrevista é o produto de ambos, narrador e pesquisador”.41 As experiências sociais relatadas nos depoimentos trazem lembranças de Sr. Gregório Tavares da Silva, atualmente aposentado, que trabalhou no cultivo da terra, na criação de animais e na feira vendendo carne do sol; lembra como era “acanhada” a cidade quando ele chegou e como foi se modificando ao longo dos anos. José Santos Vieira trabalhou comprando carne do sol na feira de Santo Antonio para vender em Salvador, recorda as festas de largo, as micaretas, as sessões de cinema, as diversões que a cidade oferecia. Seu Gilberto Mello, artista 37 MALUF, Marina. Ruídos da Memória. São Paulo: Siciliano, 1995, p.28. LE GOFF, Jacques.História e memória.Campinas, SP: Editora UNICAMP, 1990, p.476. 39 THOMSON, Alistair. “Recompondo a Memória: questões sobre a relação entre a história oral e as memórias”. Revista do Programa de Estudos Pós-Graduados em História e o Departamento de História – PUC/SP, Projeto História n.º 15, 1997. 40 SOUZA, Edinélia Mª Oliveira. Memórias e Tradições: viveres de trabalhadores rurais do município de Dom Macedo Costa – Bahia (1930-1960). Dissertação apresentada ao Mestrado em História da Pontifica Universidade Católica de São Paulo (PUC), São Paulo, 1999, p 11-12. 41 PORTELLI. Alessandro. “O que faz a História Oral diferente”. In: Projeto História nº 16, p. 21. 38 30 local, que viveu sua juventude em Santo Antonio de Jesus e há décadas mora em Brasília, refere-se também às atividades de lazer, à lavagem da igreja na véspera de Santo Antonio e à procissão do padroeiro que percorria as ruas principais da cidade ao som das filarmônicas locais. José Souza Sampaio rememora as brincadeiras nas ruas com a chegada e a partida do trem, as transformações trazidas com a construção das rodovias e com a chegada da energia elétrica. Antonio Santana Vieira e Manoel Oliveira recordam as relações de trabalho que se desenvolviam na cidade, sobretudo nas alfaiatarias em que trabalharam; lembram que o movimento era constante naquela época, pois não havia confecções, e se intensificava ainda mais em tempos de festas. Adelino Silvério de Assis se lembra da luta pela sobrevivência na cidade, dos percalços que passou para não voltar pra roça e se adaptar à vida urbana. Irênio Santos Pereira, mestre em marcenaria, fala das dificuldades enfrentadas pela família, de origem humilde, para viver na cidade e da sua experiência como marceneiro. Edivaldo Oliveira Souza e Tereza Leal Vita Souza denunciam a presença dos pobres na cidade e recordam as campanhas de caridade desenvolvidas pela sociedade santoantoniense. Maria Soares de Jesus rememora a dupla jornada de trabalho, nos armazéns de fumo e em casa, que ajudava a sustentar a família; fala das missas e procissões, das rezas e dos brinquedos de roda; recorda ainda as relações de solidariedade entre vizinhos. Maria da Conceição Souza Silva fala dos valores da época, das festas, quermesses, do namoro, e das mudanças nas ruas e nas casas, a partir da energia elétrica. As experiências de vida acumuladas na cidade de Santo Antonio de Jesus nas décadas de 1950 a 1970 e a disposição para relatá-las foram os principais requisitos utilizados na seleção dos depoentes. Inicialmente, contatamos pessoas que já tinham sido vistas contando seus casos na venda do meu pai. A partir daí, os próprios entrevistados indicaram nomes de contemporâneos com os quais haviam compartilhado suas histórias. Parentes e amigos, ao tomarem conhecimento da pesquisa que estava sendo desenvolvida, também participaram desse processo, sugerindo alguns nomes. Apesar de pessoas mais próximas dos entrevistados terem intermediado os encontros, momentos de insegurança, dúvidas e ansiedades acompanharam as visitas aos sujeitos. No primeiro contato ocorria apenas uma conversa informal sem fazer uso do gravador. Nos encontros seguintes, com o receio e a desconfiança já superados, as conversas passavam a ser gravadas. No local de moradia ou de trabalho das pessoas realizaram-se as conversas. Nesses 31 momentos, foi possível perceber segurança, confiança e certo conforto para expor suas memórias. Por vezes, evidenciou-se grande satisfação e auto-estima o fato de estar sendo ouvido por alguém, talvez em virtude do pouco tempo que é dispensado, de modo geral, aos mais velhos. O local da entrevista, a ausência de outras pessoas no ambiente e o clima de proximidade que tentou-se propiciar através da linguagem familiar, das palavras e dos gestos, foram aspectos importantes para deixar o depoente mais a vontade ao narrar suas práticas de vida. A utilização de textos memorialísticos foi de grande relevância para ajudar a compor o mosaico constituído pelas vivências urbanas de Santo Antonio de Jesus. Em produções ensaístas locais, como Matas do Sertão de Baixo,42o educador Isaías Alves, descendente de uma das mais tradicionais famílias do município, registrou suas memórias e impressões da infância e da mocidade, sobre o Recôncavo Sul Baiano. Descreve o processo de ocupação da região e destaca momentos memoráveis da cidade de Santo Antonio de Jesus, através da trajetória de algumas famílias. Fernando Pinto de Queiroz, advogado, professor e pesquisador, em A Capela de Padre Matheus,43 foi em busca das origens do primeiro povoamento santoantoniense e reavivou a figura do padre fundador da Vila. Em Memórias de um Pária,44 Eduardo de Souza Almeida, narrou sua história e registrou suas reminiscências, desde o final do século XIX, quando migrou do campo para a cidade de Santo Antonio de Jesus, onde viveu boa parte de sua vida, vindo a falecer em 1970. Embora priorizem períodos anteriores e não tratem especificamente de trabalhos sobre o viver urbano, lançaram luz sobre alguns aspectos do cotidiano urbano santoantoniense e sobre fontes documentais que contribuíram no caminhar desta pesquisa. Sobre o período pesquisado, Santo Antonio de Jesus – 1965 – A cidade que encontrei45, de Geraldo Pessoa Sales, morador local e oficial reformado do Exército Brasileiro, possibilitou passear pelas antigas ruas e encontrar personagens que protagonizaram a história da cidade. Constituem, portanto, mananciais de dados e informações indispensáveis para quem se dedica a re-visitar a memória da cidade. Os jornais revelaram-se fontes de extrema importância pela riqueza de informações sobre temas diversos do cotidiano urbano, mesmo considerando que 42 ALVES, Isaias. Matas do Sertão de Baixo. Rio de Janeiro: Reper, 1967. QUEIROZ, Fernando P. A capela do Padre Matheus. Feira de Santana: Sagra, 1995. 44 ALMEIDA, Eduardo de Souza. Memórias de um Pária. Salvador: Adipro, 2006. 45 SALES, Geraldo Pessoa. Op. Cit. 43 32 por detrás de toda notícia está implícita uma visão de mundo que orienta o modo de produzir a notícia, de veiculá-la, de propagar idéias e valores. Ressalto, sobretudo, o semanário santoantoniense O Palládio, fundado e mantido pelo maragogipano Antonio Mendes de Araújo, tendo circulado, ininterruptamente, desde 15 de novembro de 1901 até o falecimento do seu fundador, ocorrido em 30 de maio de 1952; A Voz das palmeiras, do proprietário e diretor José Martins de Souza, circulou na cidade semanalmente, a partir de 1953; O Detetive, dirigido por Artur M. da Silva e redigido por Estevam M. Sampaio entre final dos anos 1940 e início dos anos 1950, de caráter humorístico e literário, apresentava notícias sobre a vida social e cultural da cidade. Eles nos deram a possibilidade de “ler” a cidade a partir dos discursos moralizadores e urbanistas que representavam os interesses das elites urbanas da época e que procuravam estabelecer os critérios para elaboração de um “novo homem” público. Contudo, por vezes, flagramos nesses periódicos, temas do cotidiano das camadas populares, o que sugere que a elaboração de suas pautas ultrapassava os limites do interesse das elites locais. Cenas do cotidiano das camadas populares e de outros grupos sociais também foram surpreendidas através de imagens fotográficas, que “assim como textos e testemunhos orais, constituem-se numa forma importante de evidência histórica”, pois, “registram atos de testemunho ocular”46 que descortinam elementos da vida material da época. Sinalizaram aspectos da arquitetura, indumentária, formas de trabalho, manifestações populares e outros elementos de infra-estrutura urbana, tais como a iluminação, fornecimento de água, obras públicas, proporcionando reflexões sobre as intenções daqueles que as produziram, bem como quanto à seleção dos elementos que deviam ser mostrados e dos que deviam ser ocultados, ao dirigir o olhar para um determinado ponto que se quer deixar em evidência, obscurecendo e/ou ocultando o que, para o produtor da imagem, não é relevante ou digno de ser registrado.47 As fontes iconográficas utilizadas nesse trabalho foram localizadas em jornais locais, em arquivos pessoais de antigos moradores - verdadeiros guardiães da memória de Santo Antonio de Jesus - e em textos de autores que também reconhecem a importância da fotografia como fonte documental privilegiada pela sua BURKE, Peter. Testemunha Ocular: história e imagem. São Paulo: EDUSC, 2004, p 17. REZENDE, Eliana Almeida de Souza. A Cidade e o Sanitarista - imagens de um percurso. In: Revista do Programa de Estudos Pós-Graduados em História e do Departamento de História, PUCSP, 2000, p.265-279. 46 47 33 capacidade de sobreviver e de perpetuar a memória. Em outras palavras, “o momento vivido, congelado pelo registro fotográfico, é irreversível” e jamais se repetirá. Por outro lado, “os personagens retratados envelhecem e morrem, os cenários se modificam, se transfiguram e também desaparecem”48. Foi vasculhando caixas empoeiradas, arrumadas cuidadosamente num velho baú, em um quarto de sua casa, que Sr. Edivaldo Oliveira, depoente desse estudo, reviveu a inauguração do Cine Rex, através da cena gravada na imagem, que “contém em si um inventário de informações acerca de um determinado momento passado”.49 O atelier do cineasta Tau Tourinho, também guarda uma boa parte da memória santoantoniense, pois naquele pequeno sótão de dimensão grandiosa em significado, abriga o seu arquivo particular de imagens que atravessaram os tempos e se mantiveram para contar a história da cidade. Lá encontrei um rico material fotográfico que apresenta “sinais e indícios, fragmentos minúsculos de tempo e espaço”50 das vivências urbanas dos santoantonienses. Considerando que já não é mais possível se falar em uma história periférica e uma história central, ou em uma grande história e uma pequena história, o estudo sobre o espaço da cidade de Santo Antonio de Jesus, no seu processo de urbanização, não pode prescindir de uma investigação mais acurada, no tocante às implicações provocadas nos viveres citadinos, nas experiências históricas de homens e mulheres, cujas identidades são ainda freqüentemente ignoradas. Nessa perspectiva, esse estudo não tem a intenção de enquadrar a experiência de urbanização santoantoniense em modelos pré-estabelecidos, pois concordando com Certeau “a tarefa do historiador nos dias de hoje é encontrar os desvios, avançar na pesquisa com maior quantidade de material para analisar profundamente para descobrir o que não é evidente, o que não é modelo”51. 48 KOSSOY, Boris. Fotografia e História: São Paulo, Ateliê Editorial, 2001, p. 155-156. Idem, op. cit. p 101. 50 FRAGA, E. K. C. . A Revolução Constitucionalista de 1932: Fotografia e Memória. Projeto História, Edusc, v. 21, p. 301-309, 2000. 51 CERTEAU, Michel de. Operação Historiográfica. In: A Escrita da História. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2006, p 86. 49 34 Partindo da percepção da cidade como texto52, tentou-se, através desse trabalho, fazer leituras possíveis das vivências dos moradores da cidade de Santo Antonio de Jesus, entre os anos 1950 a 1970. Para tanto, foi necessário lançar mão de um conjunto de fontes que, embora não tenham se apresentado como “janelas escancaradas” ou possibilitassem um “acesso imediato à realidade”, ofereceram pistas valiosas para decifrar as linguagens urbanas. Isso se tornou possível, através de um trabalho metodológico orientado por preocupações de historiadores como Ginzburg, ao tratar as fontes como “espelhos deformantes”53, que carecem “ser desvendadas para delas extrair o não dito, as entrelinhas e aquilo que potencialmente permite olhares e leituras diversas”.54 Esta dissertação está organizada em três capítulos. O primeiro capítulo intitulado Dimensões do campo e da cidade discute a coexistência dos costumes rurais e citadinos na pequena cidade que começava a se urbanizar, situação que muito desagradava aqueles que queriam imprimir-lhe uma imagem de civilizada e moderna. Em contrapartida, a experiência vivida pelos moradores urbanos, que carregavam fortes vínculos com costumes e tradições rurais e se envolveram em novas formas de viver na cidade, não passaria despercebida. O segundo capítulo que leva o título Sobrevivências, tensões e sociabilidades na urbe santoantoniense, tenta desvendar sociabilidades e práticas de sobrevivência urbana, negociações e conflitos, como estratégias criadas nas experiências citadinas da urbanização santoantoniense. Nesse contexto, as relações de solidariedade e vizinhança foram constantemente re-elaboradas e fortalecidas, a partir das experiências vivenciadas no ambiente rural. Surpreendidos pelas regras do viver citadino, os moradores foram reinventando os seus modos de vida e se envolvendo numa multiplicidade de negociações e tensões para permanecer na urbe. No terceiro capítulo, intitulado Espaços de luzes, pretende-se destacar o advento da energia elétrica em Santo Antonio de Jesus, evidenciando alterações experimentadas pelos moradores nos espaços públicos (ruas, cinema, teatro, estádio de futebol, etc.) e privados (residências), sobretudo assinalando a sua 52 BARTHES, Roland. Semiologia e Urbanismo. In: A aventura semiológica. São Paulo: Martins Fontes, 2001, p.219-231. 53 GINZBURG, Carlo. Relações de força: história, retórica, prova. São Paulo: Companhia das Letras, 2002, p. 43-44. 54 FENELON, Déa R.. Cultura e História Social: Historiografia e pesquisa. Revista do Programa de Estudos Pós-Graduados em História e do Departamento de História da PUC – SP. São Paulo: Educ, 1981, p.73 – 90. 35 participação nas atividades ligadas ao lazer. Buscou-se investigar os desdobramentos da utilização da eletricidade na vida material e também nas práticas e hábitos sociais, procurando, sempre, integrar tais aspectos a outras conjunturas vividas pela sociedade brasileira no período. 36 CAPÍTULO I: DIMENSÕES DO CAMPO E DA CIDADE “Era uma vez, uma Vila; Vila de gente pobre, de poucas ruas e poucas casas e pouca gente; mas gente que quer ser gente, que quer crescer, quer progredir... e o caminho das tropas que chegavam a esta vila se tornou o mesmo caminho de trem de ferro; e, por este caminho, chegou gente e saiu gente; chegou mais do que saiu; saiu pra ser doutor, senador, governador, ser gente grande; ficou pra ser gente grande e engrandecer a Vila. E plantaram muitas Palmeiras; e as Palmeiras cresceram; e a Vila também cresceu; cresceu quis ser cidade. Virou cidade, CIDADE DAS PALMEIRAS; pequena, de pouca gente e de poucas casas; e a capela pequena, capela do Padre Matheus, cresceu, cresceu virou Matriz; no centro da grande praça... ... e a cidade cresceu; chegou mais gente; fizeram casas nasceram ruas, fizeram ruas e bairros... ... e a pequena Matriz cresceu, cresceu se tornou imponente... ... e a gente, que é muita gente, no adro se sua igreja, não se cansa, não se poupa, de fazer a sua gente cada vez mais gente grande.” (Texto do ex-prefeito Ursicino Pinto de Queiroz extraído de O Padroeiro, folhetim anual da Festa de Santo Antonio, de junho de 1969.) 37 1.1 Leituras da cidade Entre fins do século XIX e meados do século XX, o Brasil viveu um processo de intensas mudanças, tanto na vida material, quanto nas formas de compreensão do tempo e dos espaços público e doméstico, dos hábitos cotidianos, das formas de percepção da realidade, dos costumes e do comportamento social.55 De um certo ângulo, pode-se observar transformações estritamente vinculadas à multiplicação de usuários de energia elétrica. O clima de desenvolvimentismo e os ideais de progresso propalados pelas diretrizes políticas nacionais, cujos esforços “deveriam concentrar-se, no sentido de incrementar o fornecimento de energia e de melhorar o sistema de transportes para viabilizar o crescimento econômico”,56 encontraram desdobramento em Santo Antonio de Jesus. A pequena cidade, sobretudo a partir dos anos 1950, com ritmo próprio, passou a experimentar um processo de urbanização percebido nos hábitos, costumes e práticas sociais dos santoantonienses. Os jornais foram, sem dúvida, um dos principais porta-vozes dos discursos e ideais urbanistas das elites locais. Periódicos como O Palládio, A Voz das Palmeiras e O Detetive, geralmente dirigidos por pessoas ligadas às camadas urbanas mais abastadas, freqüentemente veiculavam queixas em relação à precariedade das condições apresentadas pela cidade, revelando grande preocupação com a aparência de Santo Antonio de Jesus. Também eram comuns as denúncias contra a abertura do comércio fora dos horários e dias estabelecidos. Segundo A Voz das Palmeiras, “muitas lojas abriam suas portas em dias de domingo e feriado, e nos dias úteis da semana, algumas vendas abriam às seis horas da manhã, quando o regulamento determinava às oito horas”.57 Não se observa, entretanto, nessas matérias, uma posição efetiva em defesa dos trabalhadores. O motivo da insatisfação estaria no fato de que o descumprimento da legislação afetava a imagem que queriam construir de uma cidade “civilizada”.58 Outro aspecto muito debatido na imprensa era a presença de mendigos e crianças maltrapilhas nas portas, pedindo esmolas no centro da cidade. Tal Centro de Memória da Eletricidade no Brasil. A vida cotidiana no Brasil moderno: a energia elétrica e a sociedade brasileira (1880-1930). Rio de janeiro: 2001, p 27. 56 MANTEGA, Guido. A economia política brasileira. Petrópolis – RJ: Vozes, 1984, p 67. 57 “A cidade em revista”. A Voz das Palmeiras. Santo Antonio de Jesus, fevereiro de 1954, p 1. 58 Idem 55 38 realidade comprometia a imagem positiva da cidade que se queria passar aos viajantes que a visitavam e que se deparavam com esses “quadros de vergonha”. Entre 1945 e 1951, no material acessado do periódico O Palládio, considerando os inúmeros exemplares que se perderam com o tempo pela falta de conservação e cuidado, foram encontradas dez matérias que sinalizavam o problema das crianças pobres. Em uma dessas matérias, intitulada “Clama ne cesses“, defendia-se a “urgência e a precisão de uma colônia correcional para os menores que abundam à toa nas ruas da cidade”.59 A imagem de cidade “civilizada”, ordeira e harmoniosa, tão defendida nos periódicos locais, era colocada em cheque com a presença de menores abandonados nas ruas. Em 1954, uma matéria de A Voz das Palmeiras exasperava “Já está demais! Mendigos e crianças maltrapilhas, de segunda a sábado em nossas portas! E a péssima impressão que tudo isso vinha causar aos viajantes vendo na cidade semelhantes quadros de miséria”.60 Na ocasião, o periódico ensaiava uma discussão sobre os conceitos de “civilização”, “progresso” e “adiantamento”, numa crítica veemente ao modismo instalado na cidade por um grupo de jovens santoantonienses que, em “altas horas da noite, saíam pelas ruas da cidade cantando, gritando, correndo, urrando cantigas imorais e indecentes e soltando palavras de fazer mover as pedras”.61 Os rapazes estariam freqüentando as casas de “mulheres de vida livre”, que ficavam espalhadas por toda a cidade, inclusive nas chamadas “ruas de residência de família”: os moços quando para lá vão arrombam portas, quebram tudo de dentro da casa, gritam, fazem o diabo e as famílias que moram nas cercanias desses antros, além da perturbação do seu sagrado sossego, ainda tem que ouvir o diabo e quase presenciar. 62 A mesma nota afirma ainda ser uma perda de tempo pedir providências a esse respeito, pois os moços dizem que assim fazem porque têm força, o que nos leva a pensar que se trata de pessoas com certa influência. O periódico aparentemente critica a ação da polícia em tais circunstâncias, insinuando a possibilidade de que viesse a prender algum inocente só para dizer que estaria “Clama ne cesses”. O Palládio, Santo Antonio de Jesus, 24 de novembro de 1950, p 2. “Calúnias brancas”. A Voz das Palmeiras. Santo Antonio de Jesus, 12 de março de 1954, p 1. 61 “A cidade em revista”. A Voz das Palmeiras, Santo Antonio de Jesus, 27 de janeiro de 1954, p 1. 62 Idem. 59 60 39 agindo. Situação que nos reporta a uma prática ainda comum nos dias atuais. Mas conclui afirmando que “os jovens dizem que isto é civilização, progresso e adiantamento”.63 Pelo que foi possível apurar, as casas de “mulheres de vida livre” encontravam-se espalhadas por vários bairros residenciais, conforme nos informa também o Sr. José Santos Vieira, antigo morador da cidade de Santo Antonio de Jesus. Com 67 anos de idade, Zeca Vieira, como é popularmente chamado, desde que nascera mora na Rua Wellington Figueiredo, no bairro de São Benedito. Lembra-se do tempo quando ali ainda era uma grande fazenda gerenciada por seu pai. Em sua narrativa, percebe-se elementos também destacados pela Voz das Palmeiras, a respeito dessas casas: De ponta a ponta onde você fosse não tinha madame fulana de tal não, onde tinha madame tinha uma puta do lado, uma casa [...] muito brega. Era a feira de mulheres aqui. Aqui foi um dos lugares que teve prostituta. A Rua do Gás, tudo era brega, a Maria Nunes, tudo era brega, Espera Negro, tudo era brega.64 Parece que, em certo momento, a presença dessas casas passou a incomodar, principalmente aos vizinhos mais próximos que provavelmente preferiam uma vizinhança mais disciplinada, melhor comportada quanto aos costumes e normas vigentes na cidade. No interior de uma perspectiva que entende a imprensa como prática social e momento de constituição/instituição dos modos de viver e pensar,65 compreende-se que a imprensa local colocava-se como porta-voz dessa insatisfação, passando a insinuar a necessidade da transferência dessas casas para um outro local. É possível perceber que conceitos como “civilização” e “progresso” foram sendo apropriados de diferentes formas e sentidos, dependendo da visão do grupo que os utilizava.66 Talvez para os jovens, eles fossem entendidos como o amor livre, o sexo sem compromisso, a liberdade. Já a imprensa local, tinha uma visão mais moralista, empresarial e relacionava esses conceitos à idéia de cidade limpa, Idem Depoimento de José Santos Vieira, de 67 anos idade, em maio de 2007. 65 CRUZ, H. de F. reflete sobre as relações entre cultura letrada, periodismo e vida urbana na cidade de São Paulo, entre os anos 1890 e 1915. In: São Paulo em papel e tinta. Educ, São Paulo, 2000, p 20. 66 Sobre o conceito de apropriação cultural, ver CERTEAU, Michel de. A invenção do cotidiano – artes de fazer. Vol. I, Petrópolis / RJ: Vozes, 1994, p 40. 63 64 40 higienizada, disciplinada, que cumpre as leis e que se mostra de forma harmônica, sem a presença de pobres, mendigos, pedintes e até mesmo de feirantes na praça, armando suas barracas antes do dia da feira. Outra situação muito questionada na imprensa dizia respeito à organização da feira livre. As cobranças insidiam, principalmente, sobre a fiscalização da Prefeitura, especialmente no que se referia à armação das barracas, que começava a ser feita “à uma hora da tarde de sexta feira, enfeando e quebrando a beleza da grande praça”. Pedia-se que essa montagem “só começasse a ser feita sexta-feira à noite já que era imprescindível a necessidade de amanhecer o dia com elas armadas”. 67 Ao que parece, a pretensão era distanciar o mercado da praça, que deveria estar livre e bela aos olhos dos transeuntes: O antigo [referindo-se ao mercado municipal], da Praça Luiz Viana, é um pardieiro já condenado pela época, pelo modernismo, pela marcha progressiva das coisas de serventia pública. Não só é de dimensões acanhadas, não permitindo todo o serviço ali dentro nos dias de feira, como é, ainda, um prédio que afeia a praça em questão. Desfigurando-a de modo incontestável. [...] Um mercado com aspecto de coisa moderna é o que visamos ao escrever estas linhas sobre assuntos urbanos. Um mercado, que, por sua construção, dimensões, divisões, ventilação e higiene desperte apreciação lisonjeira dos que nos visitam, dos que procuram aos sábados o ponto em que se faz entre nós a vendagem de todas as especiarias, cereais e gêneros de primeira necessidade. O antigo mercado seria então convertido em jardim público, pois aqui temos um só na cidade, coisa esquisita, aliás, porquanto todo mundo sabe que Santo Antonio de Jesus é a terra por excelência – das flores.68 Matérias desta natureza eram publicadas insistentemente nos periódicos locais e, por certo, acabavam por contribuir para a divulgação de um modelo de organização e funcionamento que queriam implantar na cidade. Fonte de expressão das elites, a imprensa é uma das instâncias sociais que mais colaboram na execução dos seus projetos políticos, criando condições favoráveis à aceitação do seu domínio, através da divulgação de idéias e valores.69 No novo modelo de cidade não cabia mais a paisagem composta pelo velho mercado, “aquele pardieiro já condenado pela época”, no meio da praça. Nesse caso, o que estava sendo “A cidade em revista”. A Voz das Palmeiras, Santo Antonio de Jesus, fevereiro de 1954,p 1. “Mercado Municipal”. O Palládio, Santo Antonio de Jesus, 3 de fevereiro de 1949, p 1. 69 SOARES, Maria do Socorro. A Tarde e a construção dos sentidos. Dissertação de Mestrado em História, UFBA, Salvador, 2002, p 13. 67 68 41 questionado pelo periódico era mais uma vez a imagem da cidade, sobretudo como ela se apresentava esteticamente para os visitantes. Numa época em que ainda não havia supermercados, a população santoantoniense e também de cidades vizinhas, periodicamente, “fazia feira”, ou seja, adquiria os produtos necessários à subsistência na feira livre. Nela, pessoas de diferentes origens tanto compravam como vendiam produtos os mais variados. Inicialmente, a feira livre ficava localizada no centro da cidade. A Praça da Matriz, atual Praça Padre Matheus, era um local de concentração e grande movimentação de pessoas, onde encontravam-se o Correio e Telégrafo, a imponente Matriz e o Cine Glória. Era lá que se realizava a feira, inicialmente apenas aos sábados, fazendo triplicar o número de pessoas na cidade. Figura III - Feira de Santo Antonio de Jesus ( Fotografia de Pedro Carmelito – 1957, cedida pelo IBGE-DERE/NE I)70 A imagem em foco sugere que o fotógrafo compartilhava das influências de idéias referentes à higienização e à disciplinarização que as metrópoles estavam Extraída de SANTANA, Charles D’Almeida. Fartura e Ventura Camponesas: trabalho, cotidiano e migrações: Bahia 1950-1980. São Paulo: Annablume, 1998. p. 89. 70 42 vivenciando desde o século XIX, como uma espécie de denúncia, tentando mostrar a aparente desorganização que existia no espaço da feira. Todavia, seguindo as pistas, numa tentativa de decifrar a referida fotografia, Santana observou que: o ângulo escolhido e profundidade de perspectiva na imagem visual descortinam seu interesse em registrar a pujança da feira de Santo Antonio de Jesus. Um registro fundado, talvez, numa visão melancólica que pressentia e já anunciava a sua transferência para áreas mais distantes do centro da cidade em expansão. Prenúncio de transformações várias nos modos de viver dos agricultores. Previsões de mudanças capazes de afastar este importante espaço social da proteção da igreja imponente, um templo monumental abençoando a população que circula no mercado.71 Nessa perspectiva, o fotógrafo estaria eternizando, talvez, a última imagem da antiga feira, onde sobressai certa contigüidade entre o rural e o urbano. Observase a presença de animais e de pequenos caminhões, meios de transporte geralmente utilizados para conduzir, das zonas rurais e cidades vizinhas, a farinha de mandioca, o café, o fumo, a carne do sol, as frutas, as verduras, além de flores como palmas de Santa Rita, rosas, angélicas e gérberas - muitas vezes transportadas sobre as próprias cabeças -, que faziam da Terra das Palmeiras, também, a cidade das flores, pela grande quantidade que produzia, matizando com cores e cheiros o espaço da feira. Apesar de imagens fixas de um instante apenas, as fotografias sugerem inúmeras histórias, representam uma vida em movimento e um tempo que não para de passar.72 A história de vida de Sr. Gregório pode ser uma, entre tantas outras registradas na fotografia. Nascido no vizinho município de Conceição do Almeida, o Sr. Gregório mudou-se para Santo Antonio de Jesus em 1948, instalando-se com familiares em um sítio nos arrabaldes da cidade, hoje praticamente integrado ao espaço urbano. Durante 42 anos trabalhou na feira-livre comercializando carne de sol. Começou ainda na feira velha. Toda sexta-feira ia, a pé, armar a sua barraca e voltava sábado bem cedo para vender a carne que, segundo conta, vinha de Castro Alves. No alto dos seus 99 anos, ele puxou pela memória para assim descrever a cidade que ele encontrou: 71 SANTANA, Charles D Almeida. Fartura e Ventura Camponesas: trabalho, cotidiano e migrações: Bahia 1950-1980. São Paulo: Annablume, 1998. pg. 88-89. 72 LEITE, Miriam Lifchitz Moreira. História e Fotografia, p 50. apud SANTANA, Charles D’Almeida. Linguagens Urbanas, Memórias da Cidade: vivências e imagens da Salvador de migrantes. Tese de Doutoramento em História. PUC/SP, 2001, p 70. 43 Quando eu cheguei aqui a cidade era uma caixa de fósforos. A feira era uma bacatelazinha, na rua da Praça Padre Matheus. É tanto que não tinha higiene, não tinha nada, tinha um mercado velho, tinha desmanchado a igreja, feito uma igreja nova, mas não tinha sanitário, não tinha nada. O pessoal se despachava ali mesmo [...] A rua de meio dia pra tarde, os catingueiros botavam os animais pra comer capim, ficava tudo sorto. Tinha um carçamento tudo coberto de capim.73 A descrição de Sr. Gregório converge com a imagem apresentada na fotografia e acrescenta dados que só a memória e a voz de quem vivenciou determinadas experiências são capazes de trazer à tona, pois “há verdades que são gravadas nas memórias das pessoas mais velhas e em mais nenhum lugar, eventos do passado que só eles podem explicar-nos, vistos sumidos que só eles podem lembrar”.74 Na fala do Sr. Gregório parece estar implícita a influência de idéias de modernização e higienização do espaço urbano, contatadas ao longo da experiência que acumulou como feirante. A sua preocupação em destacar a falta de sanitários, os animais soltos na rua, ou ainda a ênfase que dá aos adjetivos quando se refere ao mercado “velho” e a igreja “nova”, aponta um complexo exercício de memória, sem conseguir estabelecer um tempo linear. As lembranças daqueles tempos estão sempre misturando-se com o tempo presente, pois “nada é esquecido ou lembrado no trabalho de recriação do passado que não diga respeito a uma necessidade presente daquele que registra”.75 Nesse sentido, a forma como a cidade se apresenta hoje para ele, acaba servindo como parâmetro, levando-o a estabelecer comparações ao rememorar a cidade de ontem. O processo de transferência da feira da Praça Padre Matheus para a atual Praça Duque de Caxias, é relembrado por Sr. Gregório de uma forma que nos sugere que algumas das idéias expressas em suas lembranças talvez não sejam originais, mas ”foram inspiradas nas conversas com os outros”.76 Depoimento do Sr. Gregório Tavares da Silva de 99 anos de idade, em maio de 2007, morador da cidade desde 1948. 74 SAMUEL, Raphael. História Local e História Oral. In: SILVA, Marco Antonio. (Org). Revista Brasileira de História . História em quadro Negro: escola, ensino e aprendizagem. São Paulo: ANPUH/Marco Zero, vol. 9, nº. 19, setembro de 1989 - fevereiro de 1990. 75 MALUF, Marina. Ruídos da memória, São Paulo: Siciliano, 1995.p 31. 76 BOSI, Ecléa. Memória e Sociedade : lembrança de velhos. São Paulo: Cia. das Letras, 1994. p 407. 73 44 Eu não achei ruim. Não achei ruim porque... Ficou ruim porque os freguês ficava tudo sem saber a donde era, dispois acertou, pronto. Segundo disso, quando passou pra a gente cortar carne no garpão melhorou porque era encoberta. A gente vendia nas barracas de tauba sabe? Aquilo era um desarranjo enorme. Toda sexta feira armar, quando era de tarde desarmar e dava prejuízo à gente. Dispois que fez o arpão, tinha bloco, conforme é até hoje, aí a gente se desenvolvia melhor. Não, não, ninguém achou ruim porque se a gente tava no tempo, então passou pra vender debaixo do bloco e ternit, né, coberto demais. Deu pra todo mundo.77 A posição de Sr. Gregório sobre a mudança da feira começa meio confusa. Apesar da firmeza inicial ao afirmar que não achou ruim, imediatamente ele lembra que “ficou ruim porque os fregueses não sabiam onde era”. A infra-estrutura da nova feira quase conseguiu fazê-lo esquecer esse fato, pois, logo em seguida ele recorda nitidamente como ficou melhor em um local coberto, deixando de trabalhar “no tempo”, sem ter que armar e desarmar a barraca toda semana. Segundo Sr.Zeca Vieira, que comprava carne do sol e outras mercadorias na feira para vender em Salvador, os feirantes “acharam o maior absurdo do mundo”, consideraram “um desperdício, uma loucura aquele mundo de terra ali pra fazer a feira”, pois estavam acostumados com o espaço limitado na Praça Padre Matheus e foram surpreendidos com toda aquela área. Naquele local “era uma fazenda que tinha animal, boi, burro [...] e era um fazendão retado, era fazenda mesmo”.78 É provável que tenha ocorrido insatisfação, sobretudo devido ao costume das pessoas de fazerem a feira ali na praça, perto de tudo, e de repente ter que andar um pouco mais para chegar até o local, o que pode ter provocado inicialmente uma queda nas vendas, pelo menos até as pessoas se acostumarem com o novo local. Entretanto, é possível que Sr. Gregório e outros companheiros seus tenham sido convencidos da necessidade das mudanças pelas próprias denúncias do incômodo que a presença da feira causava na praça central. Mas é também provável que, com o tempo, eles tenham percebido benefícios com a mudança. Se o funcionamento da feira na Praça Padre Matheus incomodava a alguns, para outros ela já fazia parte daquele cenário e a sua saída deixaria uma enorme lacuna, com a ausência de todo aquele burburinho comum nos dias de sábado. Nos dias de feira a dinâmica de relacionamentos entre o campo e a cidade ficava ainda mais visível, aprofundando-se a troca de experiências vivenciadas nesses universos 77 78 Depoimento de Sr.Gregório Tavares, já citado. Depoimento do Sr. José Santos Vieira, já citado 45 inseparáveis; afinal “a cidade se alimenta daquilo que o campo a seu redor produz”79 e, concomitantemente, ajuda a prover o campo com gêneros que ele normalmente não produz. Do campo, os trabalhadores abasteciam a cidade com farinha, café, carne do sol e frutas que os feirantes traziam para a cidade; na volta, levavam para casa querosene, cachaça, tecidos, tamancos, bacalhau, carne de boi fresca, comprados com o dinheiro da venda de suas mercadorias. Além da simples troca de mercadorias, as feiras eram também um espaço de sociabilidade. Nelas discutia-se os mais diversos assuntos, trocava-se informações sobre parentes e amigos, pilheriava-se, paquerava-se ou simplesmente batia-se papo. Era o “dia do encontro na cidade” e esses encontros significavam “comunicação entre lugares e povos e que a troca de bens não se dava sem a troca de idéias e de prazeres”.80 Essa relação campo-cidade deixa continuamente suas marcas no espaço vivido, de modo que a vida nas ruas da cidade abriga a presença do campo, através das vivências rurais trazidas nas mentes e sentimentos das pessoas que migram para lá e “em suas bordas pulsam viveres rurais, assim como viveres engendrados na cidade vão penetrando no campo, modificando gestos e rotinas, transformando olhares e perspectivas”.81 A transferência do mercado pode ser inserida também num processo mais amplo de divisão e hierarquização do espaço público urbano. Com este fim, outra iniciativa adotada seria o afastamento das prostitutas das regiões centrais da cidade. Tentar-se-ia também evitar a penetração das camadas populares nas festas e outros espaços de lazer freqüentados pelos mais ricos. As lavagens da igreja na festa de Santo de Antonio, como recordou seu Gilberto Melo, agrônomo e artista que vive há muitos anos em Brasília, fazem parte desse contexto. Segundo nos informa, eram as Sobre esta relação entre o campo e a cidade, ver Raymond Williams “O Campo e a Cidade: na história e na literatura”, p.75. Analisando “imagens” e “associações” conectadas a variadas experiências históricas, Williams percebe que as atitudes inglesas em relação ao campo e às concepções da vida rural persistiram com um poder extraordinário, de modo que, mesmo depois de a sociedade tornar-se predominantemente urbana, a literatura, durante uma geração, continuou basicamente rural; e mesmo no século XX, numa terra urbana e industrializada, é extraordinário como ainda persistem formas de antigas idéias e experiências”. 80 CARDOSO Carlos Augusto de Amorim & MAIA Doralice Sátyro. Das feiras às festas: as cidades médias do interior do Nordeste.IN Sposito Maria Encarnação Beltrão (org.). Cidades Médias: espaços em transição 1.ed. São Paulo: Expressão Popular, 2007.. 81 KHOURY, Iara Aun. “Apresentação”. Revista do Programa de Estudos Pós-Graduados em História e do Departamento de História da Pontifica Universidade Católica de São Paulo, nº 18, Educ, São Paulo, 1999, p 9-11. 79 46 camadas populares que, mais efetivamente, participavam,82 o que sugere uma espécie de concessão às camadas populares para realizarem sua festa separada, com os trajes, as danças, as músicas que possivelmente não seriam aceitas na tradicional procissão do padroeiro. O mesmo tipo de preocupação pode ser identificado nos apelos pela construção de um abrigo para guardar as crianças pobres e maltrapilhas, escondendo-as dos olhares dos visitantes; para que se desse um jeito nos animais criados soltos pelas ruas, apagando as feições de “quintal” que a cidade apresentava e pela transferência dos feirantes desarrumados e suas barracas que enfeavam a Praça Padre Matheus para outro lugar, afastando-os da “sala de visita”. Afinal, “as cidades são como as mulheres, os homens só as disputam e se apaixonam quando elas se apresentam bem tratadas, enfeitadas e sedutoras”.83 Essa era a imagem que os políticos, empresários, comerciantes queriam imputar a Santo Antonio de Jesus: uma cidade limpa, bonita e bem tratada, capaz de atrair e seduzir cada vez mais pessoas para desfrutar dos produtos e serviços que oferecia. Os melhoramentos efetivados intensificaram a oferta de serviços urbanos e a cidade começou a receber um número crescente de pessoas que saíam do campo em busca de escolas, atendimento na Santa Casa de Misericórdia, oportunidades de trabalho em lojas, armazéns, feira livre, diversão no cinema, shows e festas. Mudanças que se fizeram acompanhar de outras alterações, notadamente na arquitetura urbana, no ritmo de vida, nas práticas de trabalho, no lazer, no cotidiano do espaço público e do privado. 1.2 Reformas Urbanas Um conjunto de reformas urbanas empreendidas pelo poder público fazia parte dos projetos e iniciativas que tinham como objetivo oferecer à cidade ares de urbanidade, capazes de atrair e de seduzir pessoas, ao mesmo tempo em que redimensionava as vivências citadinas. O olhar aqui lançado sobre essas vivências privilegia algumas reformas que redefiniram espaços e costumes em Santo Antonio de Jesus. À medida que novos elementos como a eletricidade, a água encanada, 82 83 Depoimento de Seu Gilberto Mello, 25 de maio de 2007. A cidade em revista. A Voz das Palmeiras. Santo Antonio de Jesus, 12 de março de 1954, p 1. 47 uma nova arquitetura foram entrando na vida das pessoas, elas experimentaram, vivenciaram e consumiram essas novidades dando-lhes, porém, novos significados. Modificaram, portanto, os comportamentos, hábitos e costumes, na perspectiva da “conjugação entre o efêmero e fugidio e o eterno e imutável”,84 para assim constituírem suas práticas sociais. Embora os projetos das reformas urbanas santoantonienses possam ter sido pensados por uma parcela pequena da cidade, representada por empresários, políticos e demais autoridades locais, a participação dos sujeitos que receberam, resignificaram e vivenciaram esse processo, acabou transformando essas experiências de urbanização numa construção social. Recuando um pouco o olhar para o final dos anos 1930 e início da década de 1940, observamos que a cidade de Santo Antonio de Jesus correspondia à Praça Padre Matheus e algumas ruas adjacentes, formando um pequeno aglomerado de casas residenciais e comerciais, conforme o desenho apresentado a seguir. Av en ida Lu iz Ar go lo Rua Espera Negro (R. St°Antônio) Rua Mª Nunes (R. Ant° Fraga) ar sp a G BA-028 o o B Rua Tiradentes Rua C astr o Alv e s (Rua d a s Q ueim a da s ) Figura IV: Croqui da cidade de Santo Antonio de Jesus – alguns logradouros dos anos 1940 - 1950. Editoração: Zaca Oliveira. 84 HARVEY, David. Condição Pós-moderna, Edições Loyola, São Paulo, 1992, p 21. ç ão Almeida Barros e Ave nida o do o La rg Bene dit Av São en id a Lu Rua S iz ete de Via Setem bro na Casco Rua do ei onc aC ad Praça Luiz Viana (Praça Padre Mateus) We lli ngton Figue ired Ru ndulf o Alv es) Rua Ri a vaJa rdim (Rua La aç Rua Sil li x Fe Ru Rua Chile a aç Pr Pr Rua de Cima ( Rua R ui Barbosa) ran a A co rm a n d o T a va re s Rua P r ude nte d e M o r ae s 48 A população urbana era composta por 9.052 habitantes.85 O Mercado Municipal, no centro da praça, era o principal fornecedor de farinha, feijão, carne, café, frutas e verduras; a Loja Celeste propagava que vendia “o melhor sapato do Brasil feito na Bahia”;86 a Loja das Estrelas se encarregava dos tecidos finos, linhas e demais aviamentos para costura; a Loja Bahia abastecia a população com tecidos, perfumarias, chapéus, calçados, brinquedos, ferragens e artigos correspondentes ao ramo de miudezas. Havia ainda a Casa Imperial, que oferecia artigos para vestidos, casemira, calçados, brins, a Casa do Povo que fornecia bebidas, a Padaria Vitória, o Café Santo Antonio que entregava também em domicílio, além de armazéns de compra e venda de fumo e café, entre outros. A imagem apresentada na fotografia a seguir permite visualizar alguns aspectos do cotidiano “pacato” da pequena cidade, que ainda abrigava suas casas comerciais nos casarões centenários que integravam a arquitetura do início do século XX. Figura V: Aspecto da Rua de Cima nos anos 1940, atual Rua Ruy Barbosa. Foto do arquivo pessoal de Tau Tourinho. 85 86 Dados do IBGE e SEI 2001. O Palládio, Santo Antonio de Jesus, 6 de outubro de 1938, p 3. 49 Dimensões do campo e da cidade podem ser percebidas a partir dos elementos que se misturam na imagem, como a pavimentação das longas ruas calçadas, a movimentação de pessoas nas portas das lojas, a presença dos animais - responsáveis pelo transporte daqueles que vinham das roças negociar na cidade. O paletó, o chapéu e as botas sete-léguas, trajes indispensáveis àqueles que mantinham fortes relações com o viver urbano, indicam também o abreviamento da distância entre as fronteiras que demarcam os dois mundos. Nesse cenário urbano, o lazer e a diversão ficavam, sobretudo, por conta das festas. Na Rádio Sociedade Palmeirópoles, que funcionava na Rua Sete de Setembro, aconteciam os bailes sociais das camadas mais abastadas. No calendário de festas religiosas estavam a do Padroeiro Santo Antonio, de São Benedito, de São José e do Senhor do Bonfim, patrono da Filarmônica Amantes da Lira. Havia também a micareta, os ternos de reis, as festas juninas e as festas de fim de ano. Eram diversões garantidas as apresentações das filarmônicas Amantes da Lira, Carlos Gomes e do Jazz Tupi. Também faziam parte do lazer santoantoniense o Cine Glória, o Cine Rex, os passeios de recreio a bordo de trem para cidades vizinhas e o futebol que atraía, aos domingos, uma multidão para o campo do matadouro e mais tarde, para o Estádio Municipal. O Hospital da Santa Casa de Misericórdia, situado na Avenida Luiz Argolo, e alguns consultórios médicos localizados próximos ao centro prestavam assistência médica à população, dividindo espaços de cura com os curandeiros. Havia ainda uma agência bancária, escolas primárias, pequenas escolas de costura espalhadas nas ruas centrais. A água chegava até as casas das pessoas através dos aguadeiros ou dos próprios moradores que iam buscá-la na Fonte Santo Antonio, ali bem próximo da Praça Padre Matheus, onde ainda hoje podem ser encontradas algumas pessoas lavando roupas ou carros; ou na Fonte Maria Nunes, um pouco mais afastada da praça, localizada na Rua Maria Nunes, atualmente denominada Rua Antonio Fraga. Água encanada ainda era um problema a ser resolvido. Em 1938, o jornal O Palládio anunciava o comprometimento do poder público com a realização de obras para o abastecimento de água. De acordo com o periódico, “Santo Antonio de Jesus 50 precisava de um serviço de água à altura das cidades adiantadas do Estado”87. Destarte, Dando mão forte à obra da água, que vem melhorar a cidade, de modo progressivo, no sentido hygiênico principalmente, o governo da cidade em ação conjunta com o do Estado, promette a Santo Antonio de Jesus esse commettimento. Obra de utilidade geral, nivelando Santo Antonio às outras localidades já providas deste grande recurso que se liga de perto aos interesses vitais do povo, a perspectiva em que estamos, a respeito, é a mais sympática e prazeirosa de quantas podiam nos dominar o espírito. 88 Assim, a higiene era um dos requisitos exigidos a uma cidade que pretendia alcançar o status de adiantada e a instalação do serviço de água encanada garantiria melhoramentos nesse aspecto. A nota vincula a água encanada a uma “utilidade geral” ou a “interesses vitais do povo”. Mas será que o projeto, ora em andamento, incluía a grande maioria da população da cidade, sobretudo aqueles moradores das áreas mais afastadas do centro? Embora a concessão de financiamentos para implantação de rede de água encanada nos municípios fizesse parte da pauta política desenvolvimentista, do governo do estado na época, não foram poucos os percalços enfrentados para a realização desse fim. Quase um ano depois de o prefeito e médico Gorgônio José de Araújo ter assumido um compromisso público quanto à questão da água, O Palládio informava, em tom eloqüente, a chegada de engenheiros e do diretor do Serviço de Águas para inspecionar a primeira perfuração. Estes, depois de inteirados das condições locais, definiram que a primeira perfuração seria feita naquele mesmo dia ou no dia seguinte, em terrenos situados ao lado do prédio da Usina Elétrica, na Rua Chile, no mesmo local onde atualmente funciona a COELBA.89 Ainda em relação à década de 1930, campanhas pela reabertura do Hospital da Santa Casa de Misericórdia são matérias recorrentes nos periódicos locais, chamando a atenção para a necessidade de melhoria dos serviços de saúde da cidade. Nos casos da luz e da água, essas campanhas destacaram-se pela “O problema da água”. O Palládio, nº. 1879, Ano 37, Santo Antonio de Jesus, 6 de outubro de 1938, p 4. 88 Idem 89 “A água em Santo Antonio de Jesus vai ser uma realidade”. O Palládio, Santo Antonio de Jesus, 14 de julho de 1939, p 2. 87 51 criação de um forte clima de mobilização social. Na reinauguração teve missa celebrada pelo padre Osvaldo da Silva Ramos, que benzeu as enfermarias, quermesse patrocinada pela Congregação Mariana, discursos de agradecimento e sons apresentados pela Filarmônica Amantes da Lira.90 A longa trajetória percorrida até chegar a esse momento contou com a caridade daqueles que contribuíram financeiramente, bem como dos que se envolveram e se dedicaram na organização de festas, passeios de recreio, sessões de cinema, feiras, quermesses em prol da reforma. O dia da reabertura do Hospital foi um dia de festa na cidade. A Mesa Administrativa da Santa Casa convidou as autoridades, as sociedades locais, o professorado, a Congregação Mariana, as bandas de música, todos os irmãos da Casa, as famílias e o povo para assistirem à solenidade.91 O hospital era uma obra de interesse geral para os habitantes do município e de toda região. Não era um lugar para atender apenas pobres, condição que provavelmente estimulou as iniciativas realizadas para arrecadar fundos, contando com a participação de pessoas ligadas ao poder político, religioso e econômico local. Já na década de 1940, a Santa Casa de Misericórdia aumentou suas campanhas de donativos com a meta de construir o pavilhão de cirurgias, onde seriam instalados os serviços de raio X e salas de operação. Motivado por esse apelo, o Dr. Otávio Soveral, Vice-Provedor do hospital, instalou, durante dois dias, numa casa espaçosa na Praça Félix Gaspar, próximo à antiga estação, o cinema que mantinha nas minas de manganês, ficando os resultados das entradas para auxílio das obras.92 A ampliação da Santa Casa e a abertura do cinema nas proximidades da estação são dois indicadores daquilo que os santoantonienses começaram a vislumbrar nos finais dos anos 1940. Esse importante processo de remodelação do seu espaço urbano seria intensificado nas duas décadas seguintes. À medida que obras iam sendo realizadas, a cidade adquiria novas feições. A pequena cidade que se assemelhava a uma grande fazenda passou a ganhar contornos e expressões novas. O conjunto de reformas na cidade alterou de forma significativa o cenário até “A Santa Casa, afinal, renasce!“. O Palládio, Santo Antonio de Jesus, 12 de agosto de 1939, p 1. Idem. 92 “Uma diversão visando a caridade”. O Palládio, nº. 2319, Ano 48, Santo Antonio de Jesus, 6 de setembro de 1949, p 2. 90 91 52 então existente e deu origem ao moderno espaço urbano, interferindo no cotidiano das pessoas que viviam ou apenas transitavam por ela. Nessa perspectiva, a mudança de paisagem significa muito mais do que uma série de alterações nas características das construções, das vias de circulação, do traçado das ruas, representando o estabelecimento de uma nova relação entre as pessoas e o seu espaço.93 Espaço que ganhava novos desenhos a partir de desapropriações pelo poder público municipal para fins de construção de prédios na região do centro da cidade. Afinal, “as cidades são antes de tudo uma experiência visual”.94 Entre as intervenções realizadas com tal finalidade, encontra-se a autorização do prefeito Antonio Fraga, empresário, eleito no ano de 1956, de desapropriar uma área de um terreno pertencente à família do médico Gorgônio de Almeida Araújo, na Rua Monsenhor Francisco Manoel, medindo 20 metros de frente a fundo, para construção do prédio dos Correios e Telégrafos, considerada uma obra de utilidade pública e de extrema urgência.95 Também faz parte desse processo a desapropriação, em 1951, de uma parte do prédio nº. 2, situado à Rua Armando Tavares, pertencente ao Sr. Belarmínio Américo Franca, demolido para efeito de alinhamento da referida rua96. Ou ainda a desapropriação, no mesmo ano, do prédio nº. 7, da Rua Dr. Gorgônio José de Araújo, de propriedade do Monsenhor Francisco Manoel da Silva, para construção de um “moderno” edifício destinado ao funcionamento do Banco Econômico S/A.97 Embora a documentação encontrada não nos permita afirmar que esses prédios possuíam algum valor histórico, a ausência de processos na justiça e também de maiores desdobramentos sobre o assunto nos jornais locais, ou de algum tipo de mobilização contra a demolição, pode ser um indício de que se tratava de imóveis que representavam significado apenas para os seus proprietários. LUCAS, Meize Regina de Lucena. Imagens do Moderno: o olhar de Jacques Tati. São Paulo: Annablume; Fortaleza: Secretaria da Cultura e Desportos, 1998, p 65. 94 BRESCIANNI, Maria Stella M.. História e Historiografia das Cidades, um Percurso. In:FREITAS, Marcos Cezar (org). Historiografia Brasileira em perspectiva. 5ª. ed. São Paulo: Contexto, 2003. 95 Lei nº 15 de 7 de fevereiro de 1956. Arquivo Público Municipal de Santo Antonio de Jesus, Livro de Leis, Decretos e Portarias da Prefeitura Municipal de Santo Antonio de Jesus. 96 Lei nº. 5 de 1º de junho de 1951. APMSAJ, Livro de Leis, Decretos e Portarias da Prefeitura Municipal de Santo Antonio de Jesus. 97 Lei nº. 02, de 1º de junho 1951. APMSAJ, Livro de Leis, Decretos e Portarias da Prefeitura Municipal de Santo Antonio de Jesus. 93 53 Ainda que eventualmente essas desapropriações pudessem carregar interesses de perseguições a adversários ou favorecimento a aliados políticos, elas não deixaram de representar despesas para o poder público municipal, que recorria a empréstimos para pagá-las. As intervenções municipais e seus respectivos custos eram justificados pela necessidade de dar à cidade um caráter de civilizado e moderno, conforme podemos observar em inúmeras matérias de jornais à época, legitimando a derrubada de uma memória arquitetônica que pouco restou. No Palládio, periódico local de maior tempo de circulação, que foi editado por 50 anos, de propriedade do jornalista Antonio Mendes, é notável a presença de matérias difundindo essas idéias, ao mesmo tempo em que comparavam o ritmo de “civilização” das cidades. As conotações que a palavra “civilização” assumia no contexto da urbanização de Santo Antonio de Jesus estavam associadas a múltiplos aspectos tecnológicos, ao refinamento dos hábitos, vestuário, entre outros.98 Jornais locais registraram a passagem da década de 1940 para 1950 como uma fase de crescimento em Santo Antonio de Jesus. A cidade estava avançando na organização do seu espaço urbano para alcançar aquilo que era considerado por algumas autoridades da época como cidade adiantada: construções de estradas de rodagem e de ferro, calçamento a paralelo das principais ruas, reconstrução da cadeia pública, construção de novos prédios e abertura de estradas para o interior do Município.99 Fazia parte desse conjunto de modificações urbanas, a construção da nova Igreja Matriz, obra que mobilizou a participação dos fiéis católicos que não pouparam contribuições. Os fortes apelos do padre nos seus sermões e das comissões responsáveis pelas obras, através da imprensa, convenciam os seguidores do padroeiro Santo Antonio a disponibilizarem animais ou outros bens para os famosos leilões. Bois, carneiros, porcos, perus, galinhas, queijo, goiabada, uísque, bolos eram alguns dos prêmios doados pela comunidade. Os leilões podiam acontecer antes ou durante as trezenas. Um palanque todo ornamentado era armado em frente à igreja, onde ficavam os prêmios, o leiloeiro e a comissão responsável. Ao redor, autoridades locais, fazendeiros, comerciantes, empresários, populares dividiam espaço para dar seus lances e adquirir os produtos ou apenas De algum modo podemos aproximar o período aqui estudado com as reflexões de Nicolau Sevcenko em relação ao termo “moderno” que passa a ser corrente no uso cotidiano dos anos 1920. Ver do autor Orfeu extático na metrópole, São Paulo, 1922, p 227-231. 99 “A Nova Matriz”. O Palládio, Santo Antonio de Jesus, 4 de março de 1949, p 1. 98 54 para participar da festa que incluía, dentre as suas distrações, barraquinhas, quermesses e bandas musicais.100 Listas circulavam pela cidade e adjacências, com os nomes dos prováveis doadores, que dificilmente retornavam em branco. Não se sabe até que ponto essas contribuições eram movidas apenas pela fé. Sabe-se, entretanto, que o folhetim anual, O Padroeiro, produzido pela igreja com o objetivo de divulgar a programação da festa, e também os periódicos locais, publicavam os nomes dos contribuintes com suas respectivas quantias,101 atribuindo-lhes certo status e notoriedade, até porque, como advertiu Thompson, “um ato de doar deve ser simultaneamente visto como um ato de ganhar”.102 Por ser um espaço de portas abertas para todos, a igreja atraía ricos e pobres, criando um forte vínculo da população com a matriz; a festa do padroeiro Santo Antonio, celebrada durante treze noites, no mês de junho, levava e ainda leva muitos fiéis todas as noites ao templo. Comissões eram encarregadas da ornamentação das fachadas das casas, passeios e ruas por onde a procissão iria passar, o que gerava uma disputa na qual vencia a rua mais bonita. Durante os treze dias de festa, cada noite era patrocinada por determinadas instituições ou segmentos da sociedade. Havia a noite das escolas, dos comerciários, dos funcionários públicos, dos motoristas e mecânicos, dos fazendeiros, comerciários, artistas, bancários, entre outros.103 Tudo isso promovia uma aproximação das pessoas com a igreja que seguia em construção, proporcionando encantamento aos passantes.104 Com os esforços do vigário e da comissão responsável pela obra e com os donativos dos mais diversos segmentos da população, apesar de pairar algumas suspeitas de desvio do dinheiro arrecadado,105 o prédio da nova igreja foi erguido, causando impacto aos que visitavam a Praça Padre Matheus. D. Maria Soares de Jesus, mais conhecida como D. Senhora, reside em Santo Antonio de Jesus desde “Diversões Populares”. O Padroeiro. Santo Antonio de Jesus, 1º de junho de 1944, p 3. Idem 102 THOMPSON, E. P. As peculiaridades dos ingleses e outros artigos, Editora Unicamp, Campinas – SP, 2001, p 252. 103 Os exemplares de O Padroeiro, folhetim anual produzido pela Igreja Católica, trazem detalhadamente a programação do Trezenário de Santo Antonio com os nomes dos responsáveis por cada noite. 104 “A Nova Matriz”. O Palládio, Santo Antonio de Jesus, 4 de março de 1949, p 1. 105 “A consciência popular da cidade de Santo Antonio de Jesus”. O Palládio, 4 de dezembro de 1942, p 1. 100 101 55 pequena, quando sua família, fugindo da seca no município de Ipirá, encontrou abrigo e trabalho numa fazenda nos arrabaldes da cidade. Fazia charutos em casa para vender e também trabalhou nos armazéns de fumo. Para ela, era uma obra bonita de se ver e causava deslumbramento. Assim, lembra quando a torre da igreja foi colocada: Num dia de segunda feira eu vim na rua que eu ia comprar um vestido [...] Tinha aquele bando de gente ali. Eu perguntei ao homem. Alguma novidade? Ele disse: – Não é a igreja nova? [...] Tava botando a pedra daquela nova igreja que ta ali. Graças a Santo Antonio eu vi botar a pedra, vi fazer, na primeira missa eu tava lá. A primeira missa daquela igreja nova foi com o padre Gilberto Sampaio Piton, que se formou em Salvador [...] Mas foi gente!!106 Ir ao centro da cidade, para além da intenção de fazer compras, significava tomar contato com as novidades. As rememorações de D. Maria Soares, moradora da Joeirana, bairro afastado do centro e próximo à BA 028, que liga Santo Antonio de Jesus a Nazaré, evidenciam um pouco como certas pessoas que viviam longe do centro, recebiam e viam essas obras modificadoras do cenário urbano. A curiosidade, registrada na memória, pois “tinha aquele bando de gente ali”, indica que as pessoas comuns não estavam alheias aos fatos. Estavam lá, nas rodinhas de conversa, emitindo opiniões favoráveis ou contrárias. Sua expressão “Mas foi gente!”, evidencia que muitos estavam presentes também na primeira missa celebrada na nova igreja, ocasião em que provavelmente inaugurou o seu vestido novo. É possível notar na sua fala uma forte carga de satisfação, sobretudo, ao afirmar “eu vi botar a pedra, vi fazer, na primeira missa eu tava lá”, um forte sentimento religioso de pessoas das camadas populares e o seu envolvimento com a construção do templo católico, que ainda em 1º de junho de 1954 apresentava-se sem a torre, conforme mostra a fotografia: Depoimento de D. Maria Soares de Jesus, em nov. de 2007, de 84 anos de idade, moradora da cidade desde os sete anos. 106 56 Figura VI – A Nova Igreja Matriz [O Padroeiro – folhetim anual da Festa de Santo Antonio]107 A imagem é da primeira página do folhetim anual da Festa do padroeiro, no ano de 1954, compondo uma matéria sobre o andamento dos trabalhos para conclusão das obras da nova Igreja Matriz. Entretanto, imagens fotográficas trazem em si não a reprodução mecânica e objetiva de um fato real, mas sim uma reconstrução, uma representação de uma realidade,108 Sendo assim, quais motivações estariam envolvidas no momento de sua produção? Considerando o conjunto da qual a foto é parte integrante, teria sido intenção do fotógrafo criar uma imagem capaz de sensibilizar os fiéis, tendo em vista a oferta de doações que seriam utilizadas na construção da torre? A imagem estaria indicando até onde a obra já havia chegado com as doações e o que restava para a sua conclusão? A obra da matriz estava quase concluída, faltando para isso apenas alguns cruzeiros, portanto era preciso reforçar a necessidade das contribuições e talvez a imagem pudesse ajudar a transmitir essa mensagem aos fiéis. “A Nova Igreja Matriz”. O Padroeiro, Santo Antonio de Jesus, 1º de junho de 1954, p 1. LACERDA, A. L.. Os sentidos da imagem: Fotografias em arquivos pessoais. Acervo, Rio de Janeiro, v. 6, n. 1-2, 1993, p 44. 107 108 57 Se ainda hoje a imagem fotográfica pode causar a sensação de que uma parte importante na composição do conjunto da obra estava faltando, quais sentimentos não teria provocado nos fiéis ao olhar para aquela construção grandiosa inacabada, que, esteticamente, pedia o complemento? Na Praça Padre Matheus, era para o templo majestoso que convergiam os olhares dos santoantonienses; além da notável imponência da obra, havia certo orgulho por parte daqueles que durante o longo período de construção atenderam aos apelos, contribuindo como podiam para essa causa. Os pedidos de donativos naquele momento eram para a construção da torre e para a compra dos sinos, pois a obra deveria ser concluída até o final do ano.109 A construção da nova igreja fazia parte do processo de remodelação do espaço vivenciado pela cidade, em que as obras de calçamento também tiveram um significado importante. Em nota de O Palládio de 1949, vigilante, preocupado em acompanhar, passo a passo, as obras, mencionava que a nova Rua Armando Tavares, uma das mais centralizadas, estava com o seu calçamento a paralelepípedo quase concluído e que a seguir iniciaria-se o calçamento da Rua Santo Antonio,110 também nas proximidades do centro urbano. Entre os serviços de utilidade pública, executados pela prefeitura, o calçamento de algumas áreas era uma reclamação que começava a ser atendida, “no sentido de dar uma feição especial de elegância e progresso a terra em que habitamos”.111 O prefeito Antonio Fraga na sua primeira administração (1947 -1951), apresentou mensagem à Câmara dos Vereadores na qual relata suas atividades referentes ao exercício de 1949 e relaciona as obras de calçamento de áreas próximas ao centro, como a Rua Armando Tavares, a Praça Rio Branco, o leito da Estrada de Ferro Nazaré, e pavimentação de ruas mais afastadas, tais como Conceição, Velha de São Benedito, das Queimadas, da Passagem, São José, Ponto Chique, Bela Vista, Machado Bitencourt e Travessa para a Rua da Linha.112 Outros melhoramentos ocorreram na Travessa Dois de Julho, que também recebeu “A Nova Igreja Matriz”. O Padroeiro, Santo Antonio de Jesus, 1º de junho de 1954, p 1. “Melhoramentos”. O Palládio, Santo Antonio de Jesus, 25 de abril de 1949, p2. 111 “Vida Urbana”.O Palládio, Santo Antonio de Jesus, 21 de março de 1949, p 2. 112 “Relatório das atividades no exercício de 1949”.O Palládio, Santo Antonio de Jesus, 10 de maio de 1950, p 2 . 109 110 58 paralelepípedos, o que representou uma importante medida, pois no inverno era aquela mais suscetível a alagamentos naquela época.113 Permeada pela idéia de “destruição criativa”, que “se baseia na desvalorização ou destruição forçada de ativos antigos para abrir caminhos novos”,114 a construção do novo mercado talvez tenha sido a obra mais polêmica da cidade. Portanto, é um tema que merece ser retomado, do ponto de vista das implicações que essa mudança trouxe para o viver citadino.Trata-se de uma luta já travada pelo Palládio, desde os anos de 1920. Na publicação de 26 de janeiro de 1921, clamava por um novo mercado e afirmava que a demolição do barracão municipal era uma medida de acerto para a estética da Praça Luiz Viana [atual Praça Padre Matheus]. De acordo com o periódico, o barracão antigo era uma construção do final do século XIX, tempo em que a praça era uma espécie de brejo ninguém a transpunha sem dificuldade, havia poças, musgo e lama, e a opinião geral na cidade era que o barracão devia ali ser edificado. E assim se sucedeu. Hoje o aspecto da praça é outro, são outros os tempos, outras as exigências do progresso, e tudo indica e exige sem hesitações a demolição daquela intendência [referindo-se ao prédio do barracão] da praça principal da cidade [...] O mercado deve ser feito em linha com os prédios que estão enfileirados ao lado direito da praça [...] desaparecendo do meio da praça o barracão antiquado. E então seja levantado o mercado higiênico e decente. 115 Se no final do século XIX, a presença do barracão na praça principal atendia às necessidades daquele momento, no século seguinte esse quadro iria se alterar, com as transformações provocadas no espaço da cidade e particularmente da praça central, então projetada para ser o cartão-postal da cidade. O prédio do mercado ali no “meio da praça” tornara-se, na visão de alguns, um incômodo que precisaria ser removido. Defendia-se a demolição “daquele obsoleto barracão, verdadeiro monstrengo, que tem dado motivo a tanta chacota por parte dos que transitam por aqui”.116 Na visão daquelas pessoas, a melhoria da imagem da cidade justificava a demolição do prédio; não cabia, em uma cidade urbanizada, aquele “prédio sem arte, abarracado e feio [...] despertando o reparo, a crítica, a censura, de quantos “Melhoramentos”. O Palládio, Santo Antonio de Jesus, 13 de outubro de 1951, p 2. HARVEY David. Op. cit., p 210. 115 “Mercado Municipal”. O Palládio, Santo Antonio de Jesus, 26 de janeiro de 1921, p.1. 116 “Precisamos de um Mercado”. O Nazareno, Cidade de Nazaré, Bahia, 14 de março de 1957, p 3. 113 114 59 visitantes percorrem a cidade, de quanto hóspede divaga e passeia pela nossa urbe”.117 O desaparecimento do barracão implicava na transferência da feira, que funcionava dentro e ao redor dele, para um outro local. Isso mexia com o espaço de trabalho dos feirantes da própria cidade, do campo e de cidades vizinhas que vendiam farinha de mandioca, feijão, café, fumo, frutas, verduras e demais gêneros de primeira necessidade. Seria preciso convencer aquelas pessoas da necessidade da transferência. Incorporou-se, por isso, ao argumento da beleza, as questões da higiene e da segurança. Até que enfim foram iniciadas as obras de terraplanagem do local em que será construído o Mercado Municipal. Outra não deveria ser a atitude do executivo senão essa, pois é uma exigência da população a construção do novo mercado, para que o “Monstrinho da Praça” seja demolido, principalmente agora que já está se colocando em perigo a vida de todos aqueles que são forçados a irem até lá aos sábados, pois conforme já noticiamos e continuamos a insistir, além da falta de higiene lá reinante, as paredes estão desabando.118 Para desqualificar o antigo espaço, usou-se como argumento a feiúra, a falta de higiene e até mesmo um suposto perigo de desabamento. Até que na administração municipal de Florentino Almeida (1967-1971) começou a obra de construção do novo mercado, na praça onde atualmente funciona a feira. Porém, desde 1958 já havia sido aprovado um plano de obras para ser realizado, num período de cinco anos, que incluía a construção de um Mercado Público na sede do município. 119 Apesar da afirmação insistente dos periódicos de que um novo mercado era uma “exigência da população”, essa mudança certamente não foi recebida com unanimidade. É possível que inicialmente alguns feirantes tenham resistido a essa mudança, temendo prejuízos financeiros. Em uma matéria do Jornal da Cidade, defendendo “a necessidade da mudança da feira”, nota-se toda uma preocupação em defender a justeza dessa mudança. Alguns comerciantes locais, donos de vendas, contudo, viam na transferência da feira uma possibilidade de queda nos seus negócios. Na nota, argumentava-se que “Nazaré, Jequié, Cruz das Almas e “Notícias santantonienses”. Jornal da Bahia, 1968. Idem. 119 Lei nº. 01 de 13 de fevereiro de 1958. Livro de leis, decretos e portarias de Santo Antonio de Jesus 1956-1963. APMSAJ. 117 118 60 outras tantas cidades tiveram as suas feiras transferidas de local e o comércio não saiu em perseguição da feira. E o comércio dessas cidades não pereceu”.120 O medo e a resistência inicial de alguns donos de vendas e feirantes não foram suficientes para impedir que o projeto fosse levado adiante. Mas, podem ajudar a explicar, acrescido ao argumento da falta de recursos, por que a obra teria demorado tanto para ser realizada, já que desde as primeiras décadas do século XX havia o clamor da imprensa e de autoridades para que acontecesse. A memória oral de personagens envolvidos no episódio da transferência da feira guarda sentimentos marcados por insegurança, incerteza e medo. Medo do desconhecido, do que estava por vir. Dimensões e práticas de resistência podem ser identificadas na reação declarada dos sujeitos, contrária à medida do prefeito Florentino Almeida, considerado um “louco”, por muitos, naquele momento. Segundo Sr. José Elias, que trabalhou medindo as terras da fazenda transformada em feira, a insatisfação e a reprovação à decisão tomada, atingiu muita gente, incluindo comerciantes, feirantes e até a Câmara dos Vereadores. Argumentavam que o novo local “não valia nada” por ser distante, entretanto, “o prefeito não aceitou e botou pra lá” mesmo121. Assim, a Praça Padre Matheus começava a ganhar novas feições. Enfim, a fisionomia da cidade ia sendo modificada na medida em que se tentava implantar melhoramentos nos serviços de água, energia elétrica, calçamento de ruas, entre outros. Durante a década de 1950, por exemplo, os serviços de água encanada ainda não haviam avançado. O seu regulamento só foi aprovado no município na década de 1960.122 Somente em 1973, a Prefeitura firmou com a Empresa Baiana de Águas e Saneamento S. A. – EMBASA termo aditivo e de reratificação ao convênio de concessão dos serviços de águas e esgotamento sanitário, celebrado em 8 de junho de 1965, com o Departamento de Engenharia Sanitária do Estado da Bahia.123 Isso nos sugere que o caminho percorrido pela água desde a perfuração dos poços, ainda na década de 1930, até chegar às torneiras das casas foi um processo demorado, marcado pela morosidade muito comum das obras públicas. “Se eu fôra prefeito”. Jornal da Cidade. Santo Antonio de Jesus, 18 de março de 1962, p 2. Depoimento de Sr. José Elias Silva Santos de 91 anos de idade. Entrevista realizada em 2 maio de 2008. 122 Livro de Registro Diário do Expediente do Prefeito de Santo Antonio de Jesus 1964 -1966. APMSAJ. 123 Lei nº. 11 de 27 de outubro de 1972. APMSAJ. Maço de Leis do ano 1972 da Prefeitura de Santo Antonio de Jesus. 120 121 61 1.3 Redefinindo espaços e costumes A ausência de um serviço de abastecimento de água deixava a cidade fora do ranking das mais adiantadas. A sua implantação significava, para as autoridades locais, colocá-la no mesmo nível daquelas que já o possuíam. Na prática, a medida estava inserida no projeto de higienização do espaço urbano, pois a água deixaria de ser transportada por animais conduzidos pelos aguadeiros, ou mesmo nas latas e potes sobre as próprias cabeças das pessoas, pelo menos nas áreas mais centrais. Nos bairros afastados, isso só ocorreria na década de 1970. O Censo de 1960 aponta dados alarmantes para uma cidade em processo de urbanização. O município possuía 7.115 domicílios particulares permanentes, dos quais, 1390 utilizavam serviços de poços ou nascentes e apenas 60 estavam ligados à rede geral de abastecimento de água encanada.124 Algumas casas tinham água encanada das cisternas, usada para tomar banho, lavar roupas e outros gastos. Parte da população até então tinha que comprar a água, ou buscá-la nas fontes e a roupa era lavada na Fonte Santo Antonio, na Maria Nunes ou no riacho da “Má Vida”. O bairro periférico de Santa Madalena é popularmente chamado, “Má Vida”, provavelmente ganhou esse nome devido às precárias condições de vida que o local dispunha. Com a ampliação do fornecimento de água, alguns hábitos foram modificados, passando a ter mais conforto e higiene. O processo de abastecimento de água expandiu-se com a implantação da energia elétrica na cidade, serviço que, em 1949, apenas iluminava precariamente as praças e ruas centrais, com interrupções diversas e periódicos apagões. Em fevereiro daquele ano, após entrevista com o prefeito Antonio Fraga, O Palládio informava à população a respeito de estudos realizados por técnicos sobre as condições, necessidades e providências que estavam sendo tomadas para a implantação definitiva da energia elétrica na Terra das Palmeiras.125 No mês seguinte, anunciava uma “Nova Era de Progresso”, que seria representada pela chegada da luz em Santo Antonio de Jesus, com a construção da estação “Energia 124 125 IBGE – Censo Demográfico de 1960 “O caso da luz”. O Palládio, Santo Antonio de Jesus, 3 de fevereiro de 1949, p 2. 62 das Bananeiras”.126 A nota dava conta da lei que autorizava a prefeitura a contrair um empréstimo de quantia avultada com o Banco Econômico da Bahia, para a aquisição e instalação do material necessário na montagem do serviço, no município.127 Mesmo quando a energia elétrica finalmente chegou, os problemas de fornecimento permaneceram nas manchetes, devido às restrições impostas pela precariedade do serviço oferecido. Em 24 de abril de 1951, um grupo de vereadores solicitou ao prefeito que fosse restabelecido o fornecimento de luz até as 5 horas da manhã,128 provavelmente porque os “apagões” costumavam ocorrer mais cedo. Somente em 24 de junho de 1962, com a presença do poder público municipal e do governador do estado, realizou-se a inauguração da energização de Santo Antonio de Jesus, através da linha de transmissão da Usina de Bananeiras, localizada em Bananeiras, um pequeno distrito de Paulo Afonso.129 Na trajetória do crescimento de Santo Antonio de Jesus, o advento da energia elétrica aparece como um divisor de águas. Marca o início de uma nova fase da cidade, pois, além de possibilitar à iniciativa privada o investimento em pequenas indústrias e fortalecer o comércio que já era um dos mais movimentados da região, condicionou modificações decisivas de cenário, de práticas sociais e de hábitos santoantonienses. Como ainda não havia o temor da violência nos moldes da atualidade, era possível caminhar, correr, brincar até mais tarde, sem os percalços da escuridão. Todavia, se a energia elétrica, por um lado, trouxe a liberdade de percorrer as ruas à noite, mais tarde seria responsabilizada por exercer uma forma de controle social, uma vez que, diante de tanta claridade, todos estavam expostos aos olhares alheios. Assim, o jeito de se vestir, o andar, as paqueras não passavam despercebidos diante de tanta luminosidade. O simples ato de ir ao jardim à noite ou dar uma voltinha na praça passava a exigir uma forma de se apresentar e de se comportar. “A luz – Nova era de progresso”. O Palládio, Ano 48, nº. 2305, Santo Antonio de Jesus, 21 de março de 1949, p 1. 127 Lei nº. 14 de 14 de fevereiro de 1949. Livro de Leis de 1949 da Prefeitura de Santo Antonio de Jesus. APMSAJ. 128 Ata de 24 de abril de 1951. APMSAJ. Livro de Ata da Câmara dos Vereadores de Santo Antonio de Jesus – 1948 a 1951. 129 “Inauguração da Luz”. Jornal da Cidade, Santo Antonio de Jesus, 8 de julho de 1962. 126 63 Aparecer em público de pijama, por exemplo, era motivo pra censuras, pois aquele não era considerado um traje para estar em sociedade.130 Mesmo que não houvesse nesse momento leis ou regras explícitas definindo esses comportamentos especificamente, a reprovação e a exclusão que se davam por meio dos olhares e dos “falatórios”, tentavam criar uma forma de normatização e controle social das pessoas nos espaços de uso coletivo, ao mesmo tempo em que desencorajavam atitudes e posturas incomuns.131 As tentativas de padronização do espaço público e do privado, de controle de habitação e vizinhança, praticadas, por exemplo, na cidade do Rio de Janeiro no início da República, na análise de Marins, acabaram naufragando os anseios de homogeneizar vizinhanças. Além de frustrar as elites nos seus planos de eliminar as convivências de habitações e populações diversas, no seio da maior e mais importante cidade brasileira de então.132 Embora o autor se refira a outro tempo/espaço, é possível conjecturar que no contexto de Santo Antonio de Jesus também houve iniciativas que visavam padronizar o modo de se comportar na cidade. Entretanto, provavelmente a ausência de um rigor na fiscalização desses comportamentos, bem como as adaptações e interferências dos moradores, aceitando alguns, recusando outros, contribuíram para que as camadas populares não fossem excluídas do processo, deixando suas marcas gravadas, sobretudo, no jeito de falar, de se vestir, de andar, enfim, nos hábitos e costumes da cidade133. Nesse particular, em matérias de O Detetive e nos depoimentos do Sr. José Souza Sampaio e D. Maria Soares de Jesus, é possível perceber resistências no comportamento daqueles moradores que mantiveram o hábito de ir para a rua vestido de pijamas, ou descalço, ou ainda que, após as refeições, apareciam de “palito entre os dentes”. Comportamentos reprovados pela sociedade que queria ser reconhecida como “civilizada”, e quando não conseguia convencer as pessoas a mudarem seus hábitos, essas por vezes, poderiam se tornar objeto de certo “desprezo”.134 “Censurando”. O Detetive. Santo Antonio de Jesus, 27 de agosto de 1950, p 1. “Censurando”. O Detetive. Santo Antonio de Jesus, 27 de agosto de 1950, p 1. 132 MARINS, Paulo César Garcez. Habitação e Vizinhança: limites da privacidade no surgimento das metrópoles brasileiras. In: Nicolau Sevcenko (org.) Fernando A. Novaes (coord): História da vida privada no Brasil. São Paulo: Cia. das Letras, 1998. p 142-143. 133 Depoimento do Sr. Irênio Santos Pereira, em 3 de maio de 2008, 71 anos de idade, morador da cidade desde que nasceu e do Sr. José Elias Silva Santos, em 2 de maio de 2008, 91 anos de idade. 134 “Censurando”. O Detetive. Santo Antonio de Jesus, 27 de agosto de 1950, p 1. 130 131 64 Essa nova cidade, cada dia mais atraente, passava a ter uma população cada vez maior. Portanto, a ampliação e a redefinição dos seus espaços tornaramse imperativas. Já em 1960, um decreto estabelecia alterações nos limites das zonas urbanas e suburbanas do município. Para fins censitários, considerava-se que “a delimitação em vigor não correspondia mais às novas condições decorrentes do desenvolvimento demográfico e econômico deste município”.135 Vale ressaltar que a população urbana havia aumentado de 11.839 na década de 1950, para 15.489, na década de 1960,136 por ter recebido um expressivo contingente populacional vindo da zona rural e principalmente de cidades vizinhas, sonhando em melhorar de vida e obter mais conforto. De acordo com o referido decreto, correspondia ao perímetro urbano, uma área que: partindo da Rua Justiniano Galvão [antiga da Cancela], prédio nº 3, no trecho contíguo à Rua Antonio Fraga [antiga Maria Nunes], à altura das casas nº 87 e 14, segue em linha reta, até a frente do Cemitério Municipal, e desse ponto seguindo outra reta, vai até a capela de São José, no chamado Largo do Andaiá e Machado Bitencourt, de onde ruma para a Usina Elétrica e dessa, passando pela “Fonte Santo Antonio”, vai até o final da Rua Tiradentes [exRiacho], daí segue pela Rua Silvestre Evangelista [ex- Rua das Flores], alcançando após essa, as Ruas dos Artistas e Saldanha Marinho; ao final dessa última artéria ruma para a Rua Castro Alves [antiga das Queimadas], até a casa de nº 33, daí incluindo pequeno trecho da Rua Viriato Lobo [antiga da Rodagem do Campo], vai até encontrar o final da Avenida Luiz Viana, de cujo ponto terminal, após incluir a Rua do Expedicionário, vai até a extremidade norte do Largo de São Benedito, de onde ruas em linha reta, até o ponto de partida [junção da Rua Justiniano Galvão, nº 3 com a Rua Antonio Fraga, nº 87 e 14].137 A descrição nos aproxima um pouco da idéia de urbanidade que predominava na ótica daqueles que dirigiam a cidade. Com o crescimento populacional, a acanhada cidade se expandia, estendendo o seu perímetro urbano já não tão restrito, visto que nele estavam inseridos trechos de bairros anteriormente considerados afastados do centro, como Andaiá e São Benedito. É possível perceber, através dessa descrição minuciosa, o que eles entendiam por zona ou espaço urbano. Era nesse espaço que aconteciam os melhoramentos ou obras Decreto nº. 8 de 30 de março de 1960. Arquivo Público de SAJ. Livro de Leis, Decretos e Portarias da Prefeitura Municipal de Santo Antonio de Jesus. 136 Dados do IBGE e SEI. 137 Decreto nº. 8 de 30 de março de 1960. Arquivo Público de SAJ. Livro de Leis, Decretos e Portarias da Prefeitura Municipal de Santo Antonio de Jesus. 135 65 urbanas. A descrição nos situa também quanto aos antigos nomes das ruas, instigando-nos a questionar sobre a sua origem, ao mesmo tempo em que nos lembra que Santo Antonio de Jesus era também a Cidade das Flores, pela quantidade ali cultivada, tão significativa que ficaria registrada em um dos seus logradouros. Esse era um tempo em que as ruas tinham nomes simples que retratavam as características do lugar e que o documento oficial reluta em esquecer. Para fazer parte desse conjunto denominado perímetro ou zona urbana, de acordo com o Código Tributário de 1966, documento criado para regulamentar as taxas cobradas no município, seria necessário apresentar pelo menos dois melhoramentos como: meio fio ou calçamento, abastecimento de água, sistema de esgotos sanitários, iluminação pública, escola primária ou posto de saúde a uma distância máxima de três quilômetros.138 A compreensão que a legislação municipal tinha sobre o espaço urbano estava relacionada com a idéia de oferecer serviços aos seus moradores. Percebese a partir do levantamento de leis, decretos, portarias e dos periódicos locais, que esse foi o caminho trilhado pelo poder público para a definição do espaço urbano santoantoniense. No mesmo sentido, algumas de suas normatizações procuravam controlar e disciplinar a vida da população que crescia na cidade. O Código de Posturas Municipais de 1965, em seu artigo 233º, por exemplo, proibia que se lavasse roupas em chafarizes, fontes ou tanques situados nos logradouros públicos, para preservar a higiene das vias públicas.139 Inspirado no modelo de convívio urbano, trespassado pelos procedimentos de especialização espacial e segregação social, no cerne das medidas de controle da habitação e vizinhanças implementados nas capitais brasileiras a partir do advento da República,140 as determinações legais instituídas pelo Código, a priori, pareciam incompatibilizar-se com a realidade vivenciada por uma grande parte da população, que não dispunha de outros meios para a provisão de tais serviços. Como seria possível seguir a determinação de não lavar roupas nas fontes, quando a situação do abastecimento de água encanada ainda não havia sido resolvida? Lei nº. 71 de 24 de dezembro de 1966. APMSAJ. Código Tributário de 1965. Lei nº. 66 de 4 de dezembro de 1965. Art. 233. APMSAJ.Código de Posturas de 1965. 140 MARINS, Paulo César Garcez. Op.cit.. 138 139 66 Para o Sr. José Elias essa “era uma proibição que não devia ter”,141 pois não condizia com as condições estruturais que a cidade apresentava naquele momento. Ruas, praças e casas ganharam novos desenhos com as reformas. Contudo, afirmar que o espaço urbano santoantoniense passou a ser exatamente como foi pensado pelos que planejaram e efetivaram as obras, é não reconhecer que a história acontece a partir das relações que os sujeitos experimentam nas suas articulações diárias.142 Dito de outra forma, foi no contínuo das relações cotidianas, processadas a partir dessas reformas, que se fizeram as experiências de urbanização em Santo Antonio de Jesus, particularmente influenciadas pelas camadas populares. Nessa perspectiva, até que ponto o sentido que os diversos sujeitos urbanos santoantonienses deram às novidades da urbanização, coincidiu com o que foi pensado pelos grupos que planejaram e implementaram essas ações? No processo de apropriação dos produtos culturais143 recebidos, é possível inclusive que algumas pessoas tenham resistido ao fascínio veiculado por certas novidades, apesar dos atrativos e do conforto que representavam alguns desses símbolos, atribuindo-lhes novos significados de modo que lhes possibilitassem sentir-se à vontade na cidade. 1.4 Cenários urbanos e costumes rurais As reformas urbanas implementadas em Santo Antonio de Jesus visavam dar à cidade um aspecto de progresso e renegavam muito daquilo que pudesse representar um elemento de atraso, procurando fugir do seu passado, destruir sua memória, como se isso garantisse sua identidade moderna, deixando-se embriagar com a mística do progresso.144 Entretanto, transformar o cenário que antes mais parecia uma grande fazenda, dando ares urbanos, provavelmente não foi mais difícil que a tentativa de alterar os hábitos dos seus moradores. As denúncias nos jornais e o desejo de alguns não seriam suficientes para suplantar práticas cotidianas trazidas do meio Depoimento do Sr. José Elias, já citado. O conceito de experiência aqui se baseia em THOMPSON, E. P. Miséria da Teoria ou um planetário de erros. Rio de Janeiro, Zahar, 1981. 143 O conceito de apropriação cultural ancora-se nas reflexões de CERTEAU, Michel de. A invenção do cotidiano - artes de fazer. Vol. I, Petrópoles/ RJ: Vozes, 1994 p 40. 144 REZENDE, Paulo Antonio. O Recife: espelhos do passado e os labirintos do presente ou as tentações da memória e as inscrições do desejo. Revista do programa de Estudos Pós-graduados em História e do Departamento de História, 1999, p.158. 141 142 67 rural. Uma das investidas mais sistemáticas foi o Código de Posturas Municipais de 1965. Sua dimensão coercitiva sugere a coexistência de costumes rurais e citadinos na pequena cidade que começava a urbanizar-se, o que muito desagradava àqueles que queriam imprimir-lhe uma imagem “civilizada”.145 As Posturas Municipais estabeleceram regras que deveriam ser seguidas, com a justificativa de garantir aos seus habitantes, entre outros, o direito de ir e vir, a segurança, um sistema de trânsito eficiente, a limpeza e a conservação dos locais públicos. Trata-se, portanto, de uma série de leis e decretos que pretendiam regular a vida em sociedade, sobretudo no perímetro urbano, quer seja de indivíduo ou de empresa, sob pena de multas e, no caso de estabelecimentos, até mesmo a interdição, se houvesse descumprimento. Representou, portanto, um instrumento de poder utilizado para tentar disciplinar a vida urbana, atacando costumes e práticas tradicionais. Entretanto, “a cidade [...] é um lugar demasiado complexo para ser disciplinada dessa forma; [...] a cidade é lugar em que o fato e a imaginação simplesmente têm de se fundir”.146 Destarte, paradoxalmente às normas impostas aos moradores urbanos, um dos atrativos da cidade encontrava-se justamente na relativa liberdade de ação que as pessoas vislumbravam no espaço urbano. No contexto de Santo Antonio de Jesus, à época, a idéia de desenvolvimento do capitalismo era sentida através do processo de urbanização que movia empresários e autoridades locais, no combate aos tradicionais costumes e práticas sociais rurais presentes na vida urbana.147 Nesse sentido, a tentativa de preservação desses costumes, num momento em que políticos e empresários estavam empenhados em criar uma imagem nova para a cidade, também pode ser percebida como uma postura rebelde, embora tradicional, “pois o costume, por sua natureza, é conservador”.148 O poder normativo da legislação intervinha nos mais simples aspectos da vida cotidiana. O artigo 47º, proibia “colher flores ou transitar pelos canteiros dos 145 Encontramos referências à existência de outras legislações nas décadas de 1940 e 1950, versando sobre o comportamento dos moradores na cidade, cujo conteúdo muito se assemelha ao do Código de Posturas de 1965; entretanto, até o momento não conseguimos acessá-las. 146 HARVEY, David. Op. cit., p 17. 147 THOMPSON, E. P..Analisando a cultura consuetudinária inglesa no século XVIII, Thompson observa a manutenção de práticas e tradições ameaçadas pelo avanço do mercado capitalista e como o povo inglês se situou em um complexo de relações sociais, tradições e rituais que exprimiram uma cultura tradicional rebelde. In Costumes em comum: Estudos sobre a cultura popular tradicional. São Paulo: Companhia das Letras, 1988. 148 THOMPSON, E. P.. As peculiaridades dos ingleses e outros artigos, Editora Unicamp, Campinas – SP, 2001, p. 233. 68 jardins públicos ou deixar que animais os danifiquem”. No seu parágrafo único, determinava que a inobservância dessas proibições importaria em multa de $ 5.000 a $10.000. Desobedecer a essa postura significava ter que desembolsar alguns cruzeiros, sendo assim, tornava-se mais barato comprar flores na feira que correr o risco de pagar a multa. Até mesmo o poético costume de colher flores do campo não seria mais permitido nos espaços públicos da cidade. Afinal, as praças e jardins deveriam ser os principais cartões-postais da urbe. Outro costume que seria fortemente combatido na cidade era a presença de animais nas ruas. Ainda que os burros e cavalos fossem os principais meios utilizados pelos trabalhadores para transportar seus produtos até a cidade nos dias de feira, a presença de animais nas praças e jardins, um dos símbolos do entrelaçamento dos universos rural e o urbano, tornara-se incômodo, incompatível com os ideais de urbanização. Entretanto, alguns anos antes de ser instituído o Código de 1965, uma espécie de crítica encontrada em O Detetive nos informa que na década de 1950 já havia alguma legislação que tentava normatizar os comportamentos na cidade e sugere ainda que as leis não eram pra todos. __ Não dizem que é proibido se correr nas gramas do jardim? __ É sim. __ E como aquele colega está correndo e ninguém o prende? __ A... aquele pode: é funcionário público, meu amigo... __ Funcionário público, como?... __ Ele puxa a carroça da Prefeitura.149 Tentando analisar o trecho destacado, podemos pensar que ele se refere a algum animal que puxava a carroça da prefeitura e que estava solto no jardim. Porém, considerando o perfil humorístico e literário do periódico, e o tom irônico do diálogo, ele poderia estar fazendo uma denúncia à aplicação das leis na cidade, que não estariam sendo obrigatórias para quem fosse ligado ao poder público da prefeitura ou quem, numa linguagem metafórica, “puxa a carroça da prefeitura”, levantando suspeitas sobre a existência de possíveis apadrinhados ou protegidos pelo poder local. Seu Gregório, morador do bairro do São Benedito, sempre viveu entre a roça e a cidade. Quando chegou a Santo Antonio de Jesus, vindo de Conceição do 149 “Recadinho”. O Detetive, Santo Antonio de Jesus, 8 de janeiro de 1950, p 3. 69 Almeida, encontrou muitos sítios e roças, que viu, aos poucos, serem substituídos por ruas e avenidas. Lembra-se do tempo em que o bairro de São Benedito e a Avenida Barros e Almeida, que liga seu bairro ao centro, comportavam chácaras, roças, pastagens e matas que, com o tempo, cederam espaço a casas e ruas, que aos poucos estenderam-se até o pequeno sítio onde ainda reside, na localidade do Casco, próximo à rodovia BA 028, que liga Santo Antonio de Jesus a Nazaré. Teve sua terra cortada pela estrada, tomando-lhe duas tarefas, pelas quais recebeu indenização que, segundo ele “era coisa muito pouca [...], uma bagatela”, que não cobriu as “benfeitorias de bananeiras, manga, jaqueiras,150 suprimidas. Suas idas e vindas aos sábados para vender carne do sol na feira eram alternadas pelo trabalho na lavoura onde plantava feijão, milho, mandioca, frutas diversas. Seus fregueses dividiam-se entre moradores do campo e da cidade. “Gente grande”, como ele mesmo diz: “doutor, coletor, advogado, comerciante, professora”, todos eram seus clientes. Embora tivesse cavalos, preferia não levá-los para a feira, para não ter mais uma ocupação, pois ”ia cedo pra rua só vortava de tarde e não precisava deixar os animais sortos, como arguns fazia”. Conta ainda que “a rua [...] de meio dia pra tarde, os catingueiros botava os animá pra comer o capim, dessa artura”.151 Foi nesse universo onde conviviam modos de vida urbano e rural que algumas leis foram criadas pelos poderes públicos locais, tentando eliminar costumes que não se encaixavam com as suas idéias de urbanização, como a prática de deixar os animais soltos na rua. Quando Sr. Gregório chegou à cidade, ela praticamente não possuía outro meio de transporte além do trem e dos animais de carga. Os automóveis ainda eram novidade. Quando cheguei pra aqui só tinha um carro. Era desse [...] Sinval Martim. Tinha também Irineu, mas vinha de Cruz das Armas com caminhão, fazia linha né. O pessoal viajava tudo no carro dele do Armeida, de Sapé tudo pra aqui. [...] Tinha estrada, agora era cascalho [...] quando chovia tinha lugar que o carro não passava. Argum que tinha bicicleta, era pouquinha mesmo.[...] o povo não tinha dinheiro pra comprar [...] o povo era muito fraco.152 Sr. Gregório Tavares, depoimento já citado. Depoimento do Sr. Gregório Tavares, já citado. Nessa passagem “a rua de meio dia pra tarde...”, a rua que S. Gregório se refere é o centro da cidade, particularmente a Praça onde acontecia a feira. 152 Idem 150 151 70 As lembranças do Sr. Gregório corroboraram com a imagem de uma cidade com forte presença de elementos da vida rural, certamente vistos por autoridades locais como sinais de atraso que deveriam ser substituídos. O automóvel e a bicicleta eram novidades introduzidas na vida urbana, nem sempre acessíveis a todos, certamente adquiridos por aquelas pessoas que desfrutavam de uma condição econômica mais confortável. Restava aos trabalhadores, os animais e os caminhões como meios de transporte nos deslocamentos mais curtos e o trem e navio para chegarem à capital. Nos anos 1960, apesar das mudanças que estavam se processando no município, com a chegada do caminhão, o meio de transporte mais utilizado pela maioria dos moradores ainda era o animal, embora a legislação municipal fizesse algumas exigências quanto a esse costume, que naquele momento, continuava tão necessário. Entre outras proibições, nota-se aquela que se referia à condução de animais e veículos de tração animal em disparada, deixar animais sobre os passeios, domar ou fazer equitação e amarrar em postes, árvores, gradis ou portas.153 Se por um lado, as restrições estabelecidas criavam certa organização do trânsito, facilitando a circulação dos moradores; por outro lado, dificultava o acesso daqueles que vinham das roças, montados a cavalo, para fazer compras na cidade e dos que conduziam, em tropas de burros, cargas de mercadorias como fumo, café, farinha, aves, porcos, frutas e verduras de zonas rurais ou de cidades vizinhas, para venderem na feira, pois era “mais uma ocupação” ter que providenciar um lugar para deixar os animais. O jornal A Voz das Palmeiras denunciava a presença de bois soltos nas ruas da cidade, informando a existência de uma determinação municipal que estabelecia as ruas por onde as boiadas deveriam passar. A mesma matéria informa também que “ainda a semana passada enquanto dezenas de mulheres lavavam roupas na fonte Santo Antonio, foram surpreendidas por enorme boiada, havendo correria, sendo uma pobre mulher alcançada e pegada por um boi”.154 Em um espaço denominado “Notícias santantonienses”, o Jornal da Bahia registrou também quando “um boi [...] se desgarrou e fez um autêntico ‘carnaval’ no centro da cidade 153 154 Lei nº. 66 de 4 de dezembro de 1965. Art.124. APMSAJ. Código de Posturas de 1965. “A cidade em revista”. Jornal A Voz das Palmeiras, 11 de janeiro de 1954, p 4. 71 pondo em polvorosa a população, invadindo casas”.155 Esses bois estavam sendo levados para o matadouro localizado não muito afastado do centro, nos finais dos anos 1960. As denúncias serviam para reforçar a cobrança que o jornal fazia da transferência do matadouro para a periferia da cidade. O hábito de criar animais domésticos e deixá-los soltos nas ruas da cidade, era uma situação denunciada com freqüência nos periódicos. Entre 1945 e 1954, nos exemplares dos jornais que se conservaram, pelo menos uma nota, todos os anos, referia-se ao assunto. Seja em que rua for, encontramos soltos nas ruas, perus, cachorros [ Avenida Barros e Almeida], porcos e as niadas atraz [ Rua 13 de maio], galinhas e porcos [Praça da Matriz], jumentos e cães ferozes [ Rua da Mangueira], e assim quase toda a cidade156. Além de apontar a variedade de animais que perambulava pela cidade, a nota indica que não havia um local específico de concentração destes, podendo ser encontrados soltos em “quase toda a cidade”, inclusive em ruas centrais como a Praça da Matriz e em logradouros mais afastadas, como a Avenida Barros e Almeida, que inicia no largo de São Benedito, bairro considerado distante do centro, na década de 1950. Esse hábito não escapou das normatizações do Código de Posturas de 1965. O Título VIII trata exclusivamente Das propriedades e da Criação de Animais e inclui dois capítulos específicos: um que tratava Dos fechos divisórios, estabelecendo os critérios para a existência de cercas entre as propriedades urbanas ou rurais e o outro, Dos animais e sua criação, determinava as condições para a criação de animais no município bem como as punições para os proprietários de animais encontrados soltos na cidade. Do artigo 199 ao 209 do referido Código estão definidas as normas para a criação de animais no perímetro urbano, proibindo “a pastagem de gado vacum, cavalar ou muar e de outros”, estabelecendo as punições para os proprietários “dos animais ou criações de caráter daninho” que fossem encontrados soltos pela cidade, bem como, os procedimentos a serem tomados nessas ocasiões. No final da década de 1950 e início dos anos 1960, a tentativa de controlar a presença de animais soltos na cidade fez surgir o Curral da Prefeitura, uma 155 156 “Em cada coração uma saudade” – Jornal da Bahia, 7 e 8 de setembro de 1968. “A cidade em revista”. Jornal A Voz das palmeiras, 5 de maio de 1954, nº. 38. 72 espécie de pasto, localizado nas proximidades onde atualmente é a Rua Tiradentes. Para lá eram recolhidos os animais encontrados e só sairiam mediante pagamento de uma taxa que incluía multa, despesas e indenizações pelos prejuízos157. Essa forte presença de costumes rurais na espacialidade urbana era combatida pela imprensa local, pois deixava a cidade como uma “impressão de quintal”. Por isto, solicitava a colaboração da população no sentido de melhorar o aspecto visual de Santo Antonio de Jesus. A experiência vivida por pessoas que carregavam fortes vínculos com costumes e tradições rurais seguia sendo surpreendida pelas novas normas do viver no espaço urbano. Tratava-se de um daqueles contextos e situações em que homens e mulheres, ao se confrontarem com as necessidades de sua existência, formularam seus próprios valores e criaram sua cultura própria, seu modo de vida,158 a partir da capacidade que dispõem os seres humanos, em certas condições, de agir, de negociar e de fazer escolhas, processo que envolveu lutas contínuas e necessariamente irregulares e desiguais, matizadas por uma complexa dinâmica de resistência e aceitação.159 Em outros artigos podemos notar como procuraram estabelecer restrições a hábitos cotidianos como soltar fogos ruidosos, tomar banho nos rios fora dos limites determinados pela Prefeitura, lavar roupa em chafarizes, fontes ou tanques situados nos logradouros públicos.160 A proibição de lavar roupa nas fontes, além provocar alterações diretamente no processo costumeiro de quarar a roupa, interferia no encontro de mulheres que proporcionava conversas sobre assuntos diversos. Ficava proibido também estender roupas nas janelas ou sacadas situadas nas fachadas das vias públicas; atirar às vias públicas águas sujas ou outros detritos que pudessem ser nocivos à saúde pública dos transeuntes; lavar e estender roupas nas vias públicas, assim como colocar colchões, tapetes e outros objetos domésticos.161 Aquela imagem da casa decorada pelo colorido das roupas estendidas nos varais e nas janelas não seria aceita nesse modelo de cidade que estava sendo construído. O hábito de jogar coisas pela janela também não caberia nela. Eram Lei nº. 66 de 4 de dezembro de 1965. Art.200, 201 e 204. APMSAJ. Código de Posturas Municipais de 1965. 158 THOMPSON, E. P. As peculiaridades dos ingleses e outros artigos, Editora Unicamp,Campinas – SP, 2001, p 261. 159 SANTANA, Charles D’Almeida. Linguagens Urbanas, Memórias da Cidade: vivências e imagens da Salvador de migrantes. Tese de Doutoramento em História. PUC/SP, 2001, p 26. 160 Lei nº. 66 de 4 de dezembro de 1965. Art.156, Art.159 e Art.233. APMSAJ. Código de Posturas Municipais de 1965. 161 Lei nº. 66 de 4 de dezembro de 1965. Art. 155. APMSAJ. Código de Posturas Municipais de 1965. 157 73 considerados pelas autoridades locais como hábitos atrasados, ultrapassados, que não elevavam a posição de Santo Antonio de Jesus para o status de uma “cidade adiantada”. As relações de vizinhança estavam sendo normatizadas, na medida em que o Código previa a proibição de “conduzir sem as precauções devidas, quaisquer corpos capazes de molestar a vizinhança” ou “queimar mesmo nos próprios quintais, lixo ou quaisquer corpos, em quantidade capaz de incomodar a vizinhança”.162 Apesar das práticas de solidariedade e trocas que existiam no cotidiano da cidade, o barulho do rádio do vizinho não passaria despercebido, assim como as invasões de galinhas, perus e porcos no quintal. Outro alvo do Código eram as práticas sociais tradicionais. As investidas dos poderes públicos caminhavam na direção de restringir cada vez mais o espaço dessas práticas, a exemplo do que estabelecia seu Art. 160 sobre o Candomblé: Não é admissível a promoção de candomblés, sambas e batuques, outros no perímetro da Cidade [...], sem a competente licença das autoridades, não se compreendendo nesta restrição os bailes e reuniões familiares.163 Contudo, o desconhecimento ou a desobediência à legislação se anuncia com a permanência dessas práticas, registradas pela tradição oral e mantidas vivas na cidade. Observa-se, portanto, a manutenção de experiências acumuladas e herdadas dos antepassados, sobretudo, dos africanos que tiveram grande influência em todo o Recôncavo, resistindo às pressões do poder dominante, através do candomblé, fonte de preservação de valores, de identidade cultural. 164 Num recuo às décadas que antecedem a criação das posturas, do final dos anos 1930 até início dos anos 1960, encontramos nos jornais locais notas sobre preparativos e apresentações dos Ternos de Reis. O Rancho de Ciganos em 1938 percorria, sob os sons de uma charanga, as ruas da cidade, indo depois para os salões da Rádio Palmeirópoles.165 Nos anos 1950, provavelmente o mesmo Terno, com o nome de Terno das Ciganas, continuava a se apresentar na cidade. O Terno Lei nº. 66 de 4 de dezembro de 1965. Art.232. APMSAJ. Código de Posturas Municipais de 1965. Lei nº. 66 de 4 de dezembro de 1965, Artigo 160. APMSAJ. Código de Posturas Municipais de 1965. 164 Sobre as formas de resistência do candomblé na Bahia, ver Júlio Braga, pesquisador das práticas divinatórias afro-brasileiras, em seu livro "Na Gamela do Feitiço - Repressão e Resistência nos Candomblés da Bahia" . 165 “Rancho de Ciganos”. O Palládio, Santo Antonio de Jesus, 28 de janeiro de 1938, p 4. 162 163 74 das Turcas, também nessa década, organizado por senhorinhas e senhoras da cidade, começava a se manifestar, “embora não tivéssemos nada [...] na tradicional Noite de Reis em nossa terra não quer dizer que esteja de tudo morta a tradição em Santo Antonio de Jesus”.166 Apesar das tentativas de eliminar algumas tradições, o que já vinha ocorrendo mesmo antes da instituição do Código de Posturas de 1965, percebe-se que os Ternos foram, ao longo dos anos, através da iniciativa de particulares, mantidos e reinventados e, de fato, essa não era uma tradição que estava “morta”, portanto não seria uma prática esquecida apenas pela força da lei. Nessa mesma cidade, que uns queriam moderna e adiantada, a Marujada e a Burrinha,167 também nos anos 1950, faziam parte da programação da Festa de São Benedito, apresentando-se no adro da igreja. A Marujada tinha espaço garantido, quando percorria as ruas e dava um brilho especial ao Domingo de Carnaval.168 Através dos depoimentos, percebemos como a manutenção dos Ternos de Reis, a devoção a Cosme e Damião, as apresentações da Marujada e da Burrinha permaneceram presentes no calendário festivo e religioso, fortalecidos pela força da tradição e talvez porque o moderno e adiantado não pretendesse romper com todas as tradições. A devoção a Cosme e Damião também guardaria lugar nas convidativas noites de setembro, quando aconteciam as ladainhas nas casas de alguns fiéis, como D. Eugênia Santos, na Rua Maria Nunes [atual Rua Antonio Fraga], Sr. João Moraes, na Rua 7 de setembro, Sr. Vavá Ayres, na Avenida Luiz Viana, Sr. Marciano Castro, na Rua Rui Barbosa, Sr. Félix Sacramento, na Rua Tiradentes, e Sr. Altino Sousa, nas Queimadas [atual Rua Castro Alves], Manoel Felix, na Rua Bela Vista, entre tantos outros devotos anônimos. Nesses festejos que começavam com a reza, eram oferecidos aos convidados licor de jenipapo, vinho de caju, moqueca de galinha e não poderiam faltar os tradicionais caruru e vatapá. Mas a festa só terminava mesmo depois do animado samba.169 Muita gente tomava parte das “chulas calorosas de candomblé, inclusive figuras de alto valor”.170 “Terno das Turcas”. A Voz das Palmeiras, Santo Antonio de Jesus, 11 de janeiro de 1954, p 4. “Festa de São Benedito”. O Detetive, Santo Antonio de Jesus, 5 de fevereiro de 1950, p 4. 168 “Última hora”. O Detetive, Santo Antonio de Jesus, 19 de fevereiro de 1950, p 4. 169 “Reportagem”. O Detetive, Santo Antonio de Jesus, 1º de outubro de 1950, p 4. 170 “Telegrama”. O Detetive, Santo Antonio de Jesus, 30 de setembro de 1951, p 4. 166 167 75 O sentido do termo “candomblé” utilizado no periódico parece fazer referência ao samba de roda praticado nas rezas de São Cosme e Damião. Então, as “chulas calorosas de candomblé” estavam associadas ao tipo de dança e música popular do Recôncavo Baiano, bastante apreciadas nas festas populares e nas ladainhas oferecidas aos santos gêmeos. A tradicional devoção a Cosme e Damião ultrapassava os limites da religiosidade e das condições econômicas, pois muitos fiéis - ricos ou pobres, católicos ou praticantes de outras religiões - participavam organizando os festejos ou apenas como convidados das ladainhas, das refeições e do samba. O samba também está presente na memória de D. Maria, juntamente com as lembranças de outras diversões preservadas171 nas práticas cotidianas, como os brinquedos de roda: Tinha tanta coisa [...] O negócio era samba, brinquedo de roda. Quer ver? [...] Aí assunta, a gente cantava no brinquedo. As duas iam dançando. Um tanto por fora e duas entrava pra dançar. Tinha uma cantiga assim: Vamos ver Vamos, galopeia Eu sei dançar, carinhosa Eu sei dançar, carinhosa Eu sei dançar, carinhosa.172 As reminiscências de D. Maria denunciam a presença de vivências tradicionais de lazer na cidade. O prazer de relembrar aqueles tempos parece querer apontar, além da saudade, a ausência de momentos onde ela possa compartilhar com outras pessoas as “histórias antigas”, como ela costuma chamar os casos que conta. É possível perceber também sinais de uma contra-hegemonia de valores, sugerindo oposições a uma concepção de tempo e espaço homogeneizados,173 que coloca de uma forma simplista o mundo dividido em dois pólos: novo e velho, moderno e antigo. Nessa lógica, seria preciso excluir um para que o outro viesse a se estabelecer. A narrativa de D. Maria caminha no sentido contrário a esse modelo, e sinaliza a coexistência e a convivência da multiplicidade Esta discussão sobre preservação de costume ancora-se no texto “Costumes em Comum”, no qual Thompson faz reflexões sobre a importância da transmissão oral dos costumes do trabalho, percebendo esses costumes como base dos primeiros direitos dos trabalhadores rurais da Inglaterra no final do século XVIII. E. P. Thompson. Costumes em comum: Estudos sobre a cultura popular tradicional. São Paulo: Companhia das Letras, 1988. 172 Depoimento de D. Maria Soares de Jesus, já citado. 173 HARVEY, David. Op.cit, p 88. 171 76 de práticas sociais em Santo Antonio de Jesus. Mesclada por valores rurais e ao mesmo tempo envolvida em outros valores trazidos pelo processo de urbanização, a população mantinha fortes vínculos com costumes e práticas tradicionais que marcaram profundamente a construção de suas linguagens/memórias e seus envolvimentos na invenção de modos de vida urbanos.174 Costumes e tradições vividos na cidade sofreram alterações significativas a partir da década de 1950, sobretudo devido ao processo de urbanização que influenciou a vida dos sujeitos. Transformações urbanas que mexeram com idéias e comportamentos e interferiram no modo de vida dos seus moradores provocaram a re-elaboração de valores culturais enraizados nas experiências dessas pessoas. Embora a documentação utilizada aponte, no processo de urbanização da cidade, em alguns momentos, a aprovação e a incorporação de novidades urbanas ao dia a dia dos moradores, a permanência de hábitos como soltar fogos, tomar banho nas fontes e rios, criar animais soltos nas ruas, lavar roupas nas fontes ou estendê-las em frente às casas, sair na rua com trajes simples, realizar as tradicionais festas de Cosme e Damião e o Terno de Reis ou ainda manter práticas religiosas mal vistas pelo poder público local, podem indicar sinais de resistência, quer por desconhecimento das normas, quer por convicção. As recorrentes prisões por desordens indicam que nem todos estavam satisfeitos com as regras da cidade urbanizada, sugerindo a permanência de comportamentos que não eram condizentes com as novas exigências. SANTANA, Charles D’Almeida. Linguagens Urbanas, Memórias da Cidade: vivências e imagens da Salvador de migrantes. Tese de Doutoramento em História. PUC/SP, 2001, p 26. 174 77 CAPÍTULO II: SOBREVIVÊNCIAS, TENSÕES E SOCIABILIDADES NA URBE SANTOANTONIENSE “Seu comércio se consolida e expande. A pequena indústria já se faz presente, buscando diversificar-se. Os animais pouco a pouco vão perdendo o seu papel de tração, substituídos vantajosamente pela máquina. O velho mercado ao seu tempo enorme, hoje desaparece por de traz de tanta gente, gente de mãos calosas, gente cheia de anéis, gente vinda de longe, gente daqui de perto, gente que enche a praça, se espalhando pelas ruas convergentes, como se nela não desse todo esse mundo de gente.” (Texto extraído de O Padroeiro, folhetim anual da Festa de Santo Antonio, de junho de 1968.) 78 2.1 Estratégias de sobrevivência urbana Diferentes significados marcavam o viver na cidade de Santo Antonio de Jesus no início dos anos 1950. As camadas mais abastadas, formadas por pequenos empresários, comerciantes, profissionais liberais, professores, políticos, fazendeiros, usufruíam de melhores condições de vida na cidade que se urbanizava. Já a grande maioria, representada, sobretudo, por comerciários, feirantes, operários, marceneiros, sapateiros, alfaiates, desempregados em geral, precisava criar estratégias de vida que garantissem a sua sobrevivência no espaço urbano, numa tentativa persistente de manter-se na cidade para não ter que voltar para a roça. Estratégias de sobrevivência “nas quais as relações com o meio, os laços societários primários, os ritos do dia a dia e os da religiosidade popular tiveram que ser constantemente reelaborados”,175 como podemos observar em outras épocas e lugares. O jornal O Palládio, desde o início da década de 1940, anunciava melhorias nas fontes de produção existentes na cidade com “as minas de manganês em exploração”, com “a fábrica de amido promovendo a ampliação do plantio da mandioca”, justamente na época do “paradeiro, fazendo surgir trabalho para todos os operários que estavam sujeitos a essa fase – junho a fevereiro”. A nota despertava otimismo, na medida em que ressaltava o “quanto devemos confiar no futuro”.176 Entretanto, cinco anos após, uma avaliação feita da situação dos trabalhadores, pelo dirigente comunista Sebastião Oliveira, no Jornal O Momento, contrariava as expectativas anunciadas. A população da cidade crescia a cada dia, sobretudo em virtude do abandono de áreas rurais do município pelos lavradores, vítimas da exploração dos fazendeiros. E a migração do campo para a cidade não acontecia apenas por parte dos camponeses sem terras - como meeiros, alugados e rendeiros. Até os pequenos proprietários vendiam seus sítios aos grandes senhores de terras que aumentavam cada vez mais suas extensas propriedades.177 Ainda que pese os aspectos ideológicos envolvidos tanto no discurso do Palládio – periódico da 175 WISSENBACH. Maria Cristina Cortez. Da escravidão à liberdade: dimensões de uma privacidade possível. In: História da Vida Privada no Brasil – República: da Bele Époque à Era do Rádio, vol. III, p 61. 176 “Duas grandes necessidades – Urge providências”. O Palládio. Santo Antonio de Jesus, 5 de novembro de 1942. 177 “Reina a maior miséria entre os trabalhadores de S. Antonio de Jesus”. O Momento. Salvador, 15 de junho de 1946. 79 pequena elite intelectual de Santo Antonio de Jesus, quanto no discurso de O Momento – jornal ligado aos sindicatos dos trabalhadores, os depoimentos de pessoas que dependiam do serviço nos armazéns não dizem de uma situação confortável, durante os meses de entressafra, e apontam as dificuldades enfrentadas mesmo quando se tinha trabalho. A vida no campo, além de não oferecer oportunidades de estudo e trabalho, já não garantia mais condições de sobrevivência, devido à exploração que os pequenos lavradores sofriam pelos grandes proprietários. Por isso, enquanto aumentava a população da cidade, as roças iam aos poucos sendo abandonadas. Nessa perspectiva, movidos pelo sonho de continuar a vida na sedutora cidade que oferecia serviços médicos, festas, passeios no jardim, atrações no cinema e futebol aos domingos, os trabalhadores na cidade buscavam a educação formal para os filhos e abusavam da criatividade para ganhar algum dinheiro que lhes permitisse permanecer nela. Nas suas múltiplas faces, Santo Antonio de Jesus apresentava-se como “lugar para viver, trabalhar, rezar, observar, divertir-se, criar espaços de sociabilidades e reciprocidade, no trabalho e no lazer, em meio às tensões historicamente verificáveis, contrastando com a visão clássica de cidade unidade”.178 Ao trabalhar no comércio, nos cinemas, hotéis, bares, na feira livre, nos armazéns de fumo e café, os moradores experimentavam a vida urbana. Realizar serviços de pedreiros, carregar mercadorias da feira, vender água nas portas, aceitar encomendas de doces, oferecer cursos de corte e costuras em casa, criar animais e plantar nos quintais pimenta, limão, andu, mangalô para vender na feira, constituem algumas possibilidades de ganhar a vida na cidade, inventadas pelos moradores santoantonienses. A vida dessas pessoas tinha uma visível ligação com a feira. Além de ser o local de adquirir produtos básicos para a sobrevivência por preços mais baixos que os praticados pelas vendas e pelos grandes armazéns, era o lugar para onde iam nas horas de aperto vender ovos de galinhas, perus, porcos, grãos, frutas, remédios caseiros e tudo que conseguiam produzir nos seus próprios quintais. Nesse sentido, a criação da feira nos dias de quarta-feira179 ampliou as oportunidades de sobrevivência na cidade. Considerando as dimensões acanhadas 178 MATOS, M. Izilda S.. Focaliza o cotidiano urbano nas experiências vividas por sujeitos sociais e suas diversas relações de trabalho na cidade de São Paulo no período de 1890 a 1940. MATOS, M. Izilda S.. Cotidiano e Cultura: história, cidade e trabalho. 1ª ed. Bauru, EDUSC, 2002, v.1, p 35. 179 Lei nº. 5 de 1948. Arquivo Público Municipal de Santo Antonio de Jesus. Livro de Leis, Decretos e Portarias de Santo Antonio de Jesus. 80 do Barracão da farinha, eram poucos os que tinham o privilégio de vender ali, evitando a exposição ao sol ou à chuva. Os menos aquinhoados arrumavam suas mercadorias na “pedra”, esparramadas pelo chão em panos, em folhas de bananeiras ou utilizando caixotes, esteiras, tábuas e tabuleiros, forjando com criatividade alternativas de sobrevivência no concorrido espaço da feira-livre180. As feiras do Recôncavo configuram-se como importantes espaços alternativos de emprego, “em vista da multidão de pessoas que as vivenciavam como se fossem teatros da luta pela sobrevivência”.181 Os preços elevados dos produtos de primeira necessidade, como a carne e o pão, eram sentidos cotidianamente pela população mais pobre, que mal podia pagar por eles. A esse respeito vários requerimentos foram enviados à Câmara Municipal, solicitando providências urgentes para a redução e uniformização dos preços,182 outros pediam que a prefeitura interviesse no sentido de permitir a venda dos diversos gêneros, por atacado, apenas após as 14:00h, quando a população local já estivesse abastecida. A aferição dos pesos e medidas em circulação nas feiras e casas de comércio da cidade era outro ponto presente na pauta das seções da Câmara,183 sinalizando, além das dificuldades de sobrevivência enfrentadas, indícios de tentativas de interferências pelas camadas mais pobres na elaboração de normas para o funcionamento da cidade. Tentar protelar o pagamento do Imposto de Licença para vender na feira foi mais uma reivindicação dos trabalhadores para permanecer no universo urbano. Nesse teatro de luta pela sobrevivência na cidade, Sr. Manoel Oliveira foi um entre tantos outros personagens. Iniciado desde cedo no ofício de alfaiate, durante muitos anos ajudou a vestir os moradores locais e de cidades circunvizinhas. Em vários momentos de sua vida teve que improvisar para garantir a própria sobrevivência e da sua família, às vezes vendendo, na calçada da feira, goiaba, banana, jenipapo, tangerina, produtos colhidos por ele mesmo no quintal de casa, onde também cultivava mandioca e fumo. Ele lembra as negociações que 180 SANTOS, Hamilton Rodrigues dos. Vidas nas Fronteiras: práticas sociais e experiências de feirantes no Recôncavo Sul da Bahia - Santo Antonio de Jesus 1948-1971. Santo Antonio de Jesus. Dissertação de Mestrado em Cultura, Memória e Desenvolvimento Regional, 2008, p 64. 181 SANTANA, Charles D’Almeida. Dimensão histórico-cultural (Cidades do Recôncavo). Salvador: Cadernos CAR – Programa de Desenvolvimento Regional Sustentável, 1999, p. 49. 182 Ata de 23 de agosto de 1948. APMSAJ. Livro de Ata da Câmara dos Vereadores de Santo Antonio de Jesus – 1948 a 1951. 183 Projeto de Lei solicitando a aferição de pesos e medidas. Ata de 17 de maio de 1949. APMSAJ. Livro de Ata da Câmara dos Vereadores de Santo Antonio de Jesus – 1948 a 1951. 81 eram feitas para pagar as contas e manter-se na cidade. Segundo nos conta, a maior parte dos produtos era adquirida na feira, entretanto “os cereais, era nas casas de cereais e carne fresca, era nos açougues”, pois “tinha as nossas amizades nas casas de cereais; conhecido, comprava pra mês, por seis meses, porque tinha que trabalhar primeiro pra pagar e só pagava com fumo e café”.184 Contudo, o Sr. Manoel migrou para Salvador por força da falta de trabalho. A ausência de atividades que absorvessem, sobretudo os desempregados dos armazéns nos meses de entressafra foi exaustivamente comentada pelo Palládio, oito anos após publicar uma matéria com prenúncios otimistas sobre o futuro da economia da cidade. A presença abundante de mão de obra e de freguesia, o fácil acesso a matérias primas e a ligação com a população de municípios vizinhos, razoavelmente aproximados por estradas de rodagem e de ferro, foram aspectos favoráveis apontados para o estabelecimento das fábricas, numa matéria em que analisava as condições que a cidade apresentava para a implantação de indústrias. Em contrapartida, as duas grandes condições que faltavam eram a energia elétrica e a água, requisitos necessários para o desenvolvimento das indústrias, que a cidade ainda não dispunha naquele momento. Ao que tudo indica, tal situação favorecia para o elevado índice de desemprego, pois “há muita gente para trabalhar, que não acha emprego”,185 conforme ressaltou o periódico. A prática de pessoas conhecidas comprarem mercadorias em vendas e o proprietário anotar no caderno, para aguardar o pagamento após um ou até seis meses, era costumeira numa sociedade em que a palavra valia tanto quanto qualquer documento escrito. Tempo em que os armazéns de fumo e café eram os locais de trabalho de um grande contingente de pessoas, que só tinham serviço nos meses referentes ao período de colheita. Portanto, quando terminava a safra, era preciso esperar seis meses para ter novamente trabalho e receber o salário para pagar as contas. À medida que negociações como esta aconteciam, aumentavam as oportunidades de sobrevivência das camadas mais pobres na cidade. Comprar no vale, ou seja, comprar para pagar depois, com trinta dias ou até em várias prestações, sem a necessidade do uso de cartões de crédito ou cheques, é uma prática que se mantém em Santo Antonio de Jesus. Sr. Gregório, de 99 anos 184 Depoimento do Sr. Manoel Oliveira, em agosto de 2007, 76 anos de idade, nascido em Santo Antonio de Jesus. 185 “Indústrias em Santo Antonio”. O Palládio. Santo Antonio de Jesus, 6 de novembro de 1950, p 1. 82 de idade, ex-comerciante de carne do sol, é morador do bairro periférico do Casco e conhece bem esse hábito. Conta, orgulhoso, como as portas se abrem para os seus filhos, já que ele agora vai pouco ao centro, quando é pronunciado o nome “Gregório da carne do sol”, pois na São Luis, ou quarquer casa na cidade, eu fico daqui e mando eles ir. Telefono e mando despachar. Quer dizer eu tenho grande satisfação com a minha procedência porque disse que o cidadão é roxo, não tem valor. Agora, é desvalorizado aquele que quer se desvalorizar, mas aquele que quer proceder bem, todo lugar cabe ele.186 As palavras do Sr. Gregório falam de honra, do orgulho sentido por quem valoriza a honestidade e o nome limpo na praça, garantia de crédito em qualquer casa comercial da cidade. Conhecedor do preconceito racial e das dificuldades a mais que enfrentou por ser pobre e negro, utilizou-se disso como um incentivo para mostrar, através da sua procedência, que é um equívoco dizer que “o cidadão é roxo, não tem valor” e que pessoas como ele, de procedência exemplar, em “todo lugar cabe”. Homens como Sr. Gregório são “dos tempos em que um fio de barba [...] valia realmente um penhor e a segurança inquebrantável de uma palavra empenhada, representava a honra de uma pessoa”187, afirmava-se em matérias de jornais, por exemplo. Nascido em outro pólo da cidade, na Rua Maria Nunes, atual Antonio Fraga, o Sr. Irênio Santos Pereira começou aos doze anos de idade a ser iniciado na arte da marcenaria, quando o seu pai o levava para a tenda do mestre Félix Sacramento, onde ele e muitas outras crianças aprenderam o ofício. Segundo Sr. Irênio, nem todos que começavam a aprender ficavam até o final. Ele só saiu quando sabia o bastante para abrir sua própria tenda, pois entendia que era o caminho que deveria ser trilhado para conseguir o seu espaço de trabalho e sobrevivência na cidade, certamente eis um caminho seguido por muitas outras pessoas que não tiveram acesso à educação formal, em virtude da ausência de escolas, vislumbrando nos ofícios de marceneiros, alfaiates, sapateiros, oportunidades de serem iniciados em uma profissão. Filho “de família pobre” não esquece as dificuldades que passava nos meses que não tinha serviço para os pais, nos armazéns de fumo e café, 186 Depoimento do Sr. Gregório Tavares da Silva de 99 anos de idade, em maio de 2007, morador da cidade desde 1948. 187 “No meu tempo”. O Detetive. Santo Antonio de Jesus, 22 de janeiro de 1950, p 1. 83 situação que muitas vezes o levou a trabalhar aos domingos “para ganhar um dinheirinho a mais”. Minha mãe trabalhava no armazém de fumo. Meu pai trabalhava no armazém de café. Quando acabava, quando não tinha o café. Aí fica assim, aquela coisa ficava fraca. O fumo também tinha aquela coisa, tinha tempo que não vinha porque o fumo não era daqui ele vinha no trem, tinha trem né [risos]. O café também vinha no trem e aí tinha aquele negócio, fazia aquela safra, aquele negócio e tal e daí discia, como diz o tabaréu e aquela coisa fracassava um pouco e num tinha e aquela falta de conhecimento dos mais velhos não sabia como aproveitar aquele dinheiro para manter a família certinho e tal e tal e tal aí os filhos sofrem.188 A vida difícil e as limitadas possibilidades de escolha em relação ao trabalho, principalmente nos meses que “aquela coisa ficava fraca”, não o permitem sentir saudades daquele tempo. Entretanto, a lembrança do trem trouxe à tona uma emoção denunciada pelo tom da voz, pelos risos e por um brilho mais intenso nos olhos, talvez por estar revivendo o único passeio que fez de trem a Varzedo,189 então distrito de Santo Antonio de Jesus, para assistir a um comício de Antonio Fraga. A fala suave, pausada e a maneira cordial de tratar as pessoas que chegam à marcenaria, ele afirma que adquiriu com o seu mestre, observando o seu jeito educado de falar e de atender os fregueses, pois o tinha como mestre na arte e no jeito de se comportar. Ao que podemos observar, o ambiente de trabalho na tenda da marcenaria ameniza o trabalho extra. Fazia-se constante também a companhia da música ouvida no rádio, cantada durante o trabalho ou apresentada pelas Filarmônicas locais, já que muitos sapateiros, marceneiros e alfaiates eram igualmente músicos.190 Afinal, “a música, do mesmo modo que a festa, estava visceralmente vinculada ao cotidiano das trabalhadoras e dos trabalhadores dos campos e das cidades”191 e esteve sempre presente no ambiente de trabalho de Sr. Irênio, uma vez que o seu mestre participava da Filarmônica Amantes da Lira. Quando o rádio da tenda não estava 188 Depoimento do Sr. Irênio Santos Pereira, em 3 de maio de 2008, 71 anos de idade, morador da cidade desde que nasceu. 189 O atual município de Varzedo foi distrito de Santo Antonio de Jesus até 1989, quando a população local, através de um plebiscito, decidiu pela sua emancipação política. 190 Ver MENEZES, Eliane. A Beneficente dos “Artistas” santantonienses. Santo Antonio de Jesus, UNEB – Dissertação de Mestrado em Cultura, Memória e Desenvolvimento Regional, 2008. 191 SANTANA, Charles D’Almeida. Dimensão histórico-cultural (Cidades do Recôncavo). Salvador: Cadernos CAR – Programa de Desenvolvimento Regional Sustentável, 1999, p. 81. 84 ligado, ele tentava reproduzir as canções que ouvia, numa demonstração de alegria, “cantava porque tava alegre, trabalhava alegre”. Trata-se de um apaixonado pela arte que desenvolve ainda hoje. A sua condição econômica não o impediu de participar, ainda que timidamente, de momentos festivos e de diversão na cidade, como as micaretas, as sessões de cinema, o futebol dos domingos, “apesar de nunca ter sido de muita folia”.192 Sr. Gregório e Sr. Irênio tiveram poucas oportunidades de freqüentar escolas, embora a mensagem apresentada pelo prefeito Antonio Fraga à Câmara dos Vereadores, no exercício de 1949, informe que haviam sido instaladas 22 escolas municipais nos dois anos de administração [1949/1950] para a alfabetização da população carente de instrução.193 O contato que mantiveram com a educação formal foi apenas de um ano de estudo, quando aprenderam a ler e escrever. Mas as dificuldades enfrentadas, quanto à adaptação ao ambiente escolar e aos horários os fizeram entender que precisavam trabalhar. Talvez por ter percebido em suas vivências o quanto foi mais difícil, devido a pouca intimidade ou quase nenhuma com os estudos, hoje falam de estudar como um sonho não realizado. Mas será que sonharam mesmo com isso ou seria uma re-elaboração dessa relação, a partir do sonho, no presente? O vasto conhecimento que têm da vida, do trabalho, dos negócios foi acumulado ao longo de suas experiências na observação do comportamento de pessoas que para eles serviram como mestres. As poucas escolas que havia na cidade funcionavam durante o dia, o que dificultava o acesso de quem precisava trabalhar. Na documentação examinada, foi localizada apenas a criação de três escolas noturnas na cidade, na década de 1940. Ações como essa apareciam nos jornais como iniciativas de combate ao analfabetismo, voltadas para “os filhos de operários”194 ou “uma escola para analfabetos”,195 insinuando que as escolas diurnas não eram para eles. As possibilidades de fazer-se profissional para os filhos dos trabalhadores não se limitavam à aprendizagem da arte da marcenaria. O Sr. Antonio Santana, alfaiate de 78 anos, traz recordações importantes sobre sua trajetória profissional. Conhecido apenas como Sr. Eco, ele trabalha no mesmo local há 52 anos, na casa 192 Depoimento de Sr. Irênio, já citado. “Relatório das atividades no exercício de 1949”.O Palládio. Santo Antonio de Jesus, 10 de maio de 1950, p 2 . 194 “Contra o analfabetismo”. O Palládio. Santo Antonio de Jesus, 23 de agosto de 1945, p 3. 195 “Pela instrução”. O Palládio. Santo Antonio de Jesus, 9 de abril de 1947, p 3. 193 85 branca de apenas uma porta e janela azul, que conserva a arquitetura original, mesmo estando ao lado das modernas lojas da Galeria Moura, uma espécie de minishopping que vende roupas, sapatos e outros produtos sofisticados. Ao lado de sua tenda ainda se mantém uma pensão de construção também original, onde funcionou o Hotel Palmeiras. As duas casas, destoando do desenho arquitetônico atualmente predominante ao seu redor, guardam vestígios de uma época em que a cidade comportava antigos sobrados e casarões das primeiras décadas do século XX. Durante a entrevista, realizada no seu local de trabalho, por várias vezes fomos interrompidos por buzinas, carros de som e pelo barulho das pessoas que não paravam de passar. A alfaiataria de Sr. Eco está localizada próximo às Quatro Esquinas, uma das melhores áreas para o comércio da cidade, desde quando havia apenas casas de morada e “quatro predinhos, um cá, um lá”. Iniciado na arte de alfaiate com o mestre Belarmino Ribeiro, nas décadas de 1950 e 1960, manteve até seis operários confeccionando roupas para toda a cidade, inclusive para autoridades. Costurava muita batina, jaquetão, calça e paletó, “bermuda a gente não fazia naquele tempo, o homem que trabalhasse de bermuda, Ave Maria, era uma confusão danada, homem de calça curta” não estava de acordo com os costumes da época. Tempo em que a cidade possuía cerca de “22 ou 23 alfaiatarias; hoje não tem; só tem eu e um rapaz ali, chamado Nôca”.196 Com ar saudosista, ele mostra as seis máquinas usadas pelos operários, hoje aposentadas em um canto da loja. Os seus funcionários, aprendizes ou profissionais, não recebiam salários, tinham o pagamento por cada peça produzida. Nos anos áureos das alfaiatarias, “tinha semana que fazia 40 calças” e em épocas de festa de Natal ou São João, o movimento “aumentava ainda mais”. Colega de profissão de Sr. Eco, Sr. Manoel Oliveira, atualmente aposentado, lembra que “a cidade tinha muitas lojas de tecidos, então as pessoas compravam brim e levavam para a gente fazer, porque quem fazia roupa naquela época era nós, os alfaiates”. Eram eles que vestiam a população, desde aqueles que podiam pagar mais e compravam tecidos caros, àqueles que não tinham melhores condições e recorriam aos mais baratos, mas não deixavam de fazer suas encomendas. Porém, essa posição importante, ocupada pelos alfaiates, começou a ser alterada “depois que começou a confecção, aí a gente ficou numa situação difícil, aí terminei com a minha 196 Depoimento do Sr. Antonio Santana Vieira, em 2 de novembro de 2007, 78 anos de idade, morador da cidade desde que nasceu em 1929. 86 alfaiataria”197, partindo em seguida para Salvador. Convergindo com as idéias de seu colega, Sr. Eco acrescenta que, com o surgimento das confecções na cidade, “a procura diminuiu e os operários saíam, [...] saía porque queria. Nunca botei ninguém pra fora.198 Sr. Eco e Sr. Salvador Palmeira Silva, conhecido como Sr. Nôca, são os únicos alfaiates que mantém as portas abertas. Trabalham sozinhos, utilizando apenas uma máquina, que é o bastante para atender às poucas encomendas que chegam, quase sempre para consertos e ajustes. Ainda hoje, Sr. Eco abre as portas a partir das 6:00h da manhã, todos os dias, inclusive domingos e feriados e só fecha às 17:30h, temendo a chegada da noite, quando, segundo ele, a cidade fica mais perigosa. Lá mesmo ele almoça. Às vezes as portas se fecham durante o dia por alguns minutos, é que ele mantém o costume de dar uma escapadinha rápida até o barzinho próximo para tomar uma cachaça nos intervalos do trabalho. Em poucos minutos lá está ele pedalando a sua velha máquina Vigorelli, toda manual, em meio a tubos, bobinas e roupas espalhadas, ouvindo o rádio já ligado na tomada. É como se ali dentro estivéssemos em outro tempo, o qual termina ao cruzar a porta e dar de frente com a agitação do Supermercado Rio Branco e com o barulho das Quatro Esquinas. Vez por outra, ele olha o movimento da rua e, apesar de estar ali pertinho da sofisticação da Galeria Moura, dividindo o mesmo espaço, não vê problema algum nisso, pois são “eles lá e eu cá”. Não sabe até quando vai se manter ali, mas acredita que “se sair daqui eu acho que eu vou morrer mais ligeiro”.199 Resistente, por ter sido muito dedicado ao trabalho, não consegue pensar em parar de trabalhar. Sua vida está ligada àquele lugar, é o que o mantém disposto a acordar todos os dias às 5:00h da manhã e saber que tem um longo dia pela frente. Sua dedicação, entretanto, não o furtou de usufruir, nas horas vagas, nas décadas de 1950 e 1960, de alguns momentos de lazer, freqüentando de vez em quando o cinema ou participando da micareta, que acontecia ali mesmo nas Quatro Esquinas. Nunca aprendeu a dançar, o que o faz pensar que é um tabaréu, mas o que ele gostava muito mesmo era do futebol. Não perdia uma partida de Vasco e Humaitá, dois grandes times locais da época. Praticante do futebol, nunca jogou nos clubes principais, o que para ele significava que não era um bom jogador, “eu era 197 Depoimento do Sr. Manoel Oliveira, já citado Depoimento do Sr. Antonio Santana Vieira, já citado. 199 Idem 198 87 ruim”, afirma, mas chegou a jogar no quarto quadro, uma espécie de quarta divisão, que recorda com saudades.200 Numa sociedade em que predominava a presença masculina no mercado de trabalho, a mulher foi aos poucos ampliando a sua participação, sobretudo para garantir a sobrevivência na cidade, aumentando a renda da família ou mesmo manter-se sozinha. Elas estavam em toda parte e experimentavam “novas maneiras de viver, através da luta pela conquista de espaços de sobrevivência”,201 dominados até então pelos homens. Trabalhavam nos armazéns de fumo e café, nas barracas da feira, realizavam trabalho domiciliar,202 costuravam e davam aulas de corte e costura, “cursos de flores, arremates, prendas e arte culinária”.203 Transformavam suas casas em pensões, como fez D. Antonia Leal, recebendo “meninos e meninas escolares para dar pensão”,204 realizavam serviços de enfermeira, como D. Rosalva Caldas, quem anunciava no jornal aceite de “colocação para serviço”, por “conhecer os trabalhos de enfermarias,205 praticavam o trabalho de parteira, como Antonieta de Freitas Guimarães; ingressavam no serviço público, na função de professora ou em outros cargos; e até mesmo ocupavam vaga na Câmara Municipal, como D. Maria do Carmo Nogueira Amâncio, mais tarde “exonerada do serviço de assistência aos pobres, em virtude de fazer parte do Legislativo Municipal como vereadora”.206 Em nota transcrita de uma revista, o jornal O Detetive discorre sobre a marcha do progresso e as mudanças no mundo, destacando o avanço da participação das mulheres no campo profissional, visto que “já trabalham e fazem concorrência aos homens”. Estes, por sua vez, habituaram-se à independência econômica feminina. Não mais compreendem uma mulher sem emprego remunerado. Dizem que toda professora pública jamais fica solteira, embora seja preferência atribuída a homens interesseiros. 207 200 Depoimento do Ar. Antonio Santana Vieira, já citado. SOUZA, Edinélia Maria O.. Diálogos sobre memórias do trabalho feminino no Recôncavo Sul da Bahia. Anais do Encontro Estadual – ANPUH – Bahia, 2001. 202 Trabalho domiciliar aqui é entendido como aquele realizado na habitação do trabalhador. MATOS, M. Izilda S.. Cotidiano e Cultura: história, cidade e trabalho, 1ª ed. Bauru, EDUSC, 2002, v.1, p 90. 203 “D. Dalva Vita”. O Palládio. Santo Antonio de Jesus, 30 de maio de 1950, p 3. 204 “Anúncio de Pensão”. O Palládio. Santo Antonio de Jesus, 13 de outubro de 1951, p 3. 205 “Mulher que trabalha”. O Palládio. Santo Antonio de Jesus, 13 de outubro de 1951, p 3. 206 Portaria nº 26/63 de 5 de julho de 1963. APMSAJ. Livro de Atas, Decretos e Portarias da Prefeitura Municipal de Santo Antonio de Jesus. 207 “Não penses assim”. O Detetive. Santo Antonio de Jesus, 7 de maio de 1950. 201 88 Mesmo que a situação descrita estivesse mais adequada às grandes cidades, sobretudo, por se tratar de transcrição de uma revista da cidade do Rio de Janeiro, o texto não foi reproduzido aleatoriamente. Na sociedade santoantoniense, as dimensões da presença feminina no mundo do trabalho, ainda que notadamente por questões econômicas, apontam para esse caminho. Os tempos eram outros, as mulheres eram outras e seus interesses certamente não eram os mesmos daqueles tempos em que viviam apenas sustentadas pelo homem. Na trajetória do trabalho feminino urbano, o tempo cotidiano mostrou-se distinto daquele dos homens. Enquanto os homens vivenciavam a polarização entre tempo de trabalho e de nãotrabalho, as mulheres enfrentavam a rotina dos afazeres domésticos, do trabalho externo ou do trabalho domiciliar. “Seu tempo era modelado pelo dos outros; seus horários eram os do marido, dos filhos, do patrão, do mercado, da costura e dos bordados”.208 D. Conceição, de 66 anos de idade, formou-se como professora em 1962, começou a trabalhar em 1963, tendo se casado no ano seguinte. Acostumada a trabalhar desde cedo, ajudando na padaria do seu pai, no turno oposto ao que estudava, era uma mulher de certa autonomia. Segundo ela, seus pais tinham “uma cabeça mais aberta” para essas questões e deixava que trabalhasse ainda menina e mesmo depois de casada, “seu marido não implicava com isso”.209 A situação confortável de D. Conceição não era comum às trabalhadoras urbanas. Muitas tiveram que enfrentar a reprovação dos pais, as desconfianças dos maridos e os falatórios alheios para trabalhar fora de casa, a depender da função que desempenhavam e do local de trabalho. A matéria citada anteriormente aponta como conseqüências dessa conquista uma situação paradoxal, em que ao mesmo tempo “a mulher valorizou-se e se desvalorizou”. Valorizou-se porque demonstrou “firmeza de vontade, eficiência, proveito do seu esforço”, e desvalorizou-se, no aspecto sentimental “porque não mais se permitem requintes de delicadeza e fidalguia, na labuta cotidiana nivela-se ao sexo contrário”.210 A labuta e o cansaço do dia a dia, o tempo escasso e a situação de ter que dividir às vezes o mesmo espaço com o homem, como acontecia nos armazéns, 208 MATOS, M. Izilda S.. Cotidiano e Cultura: história, cidade e trabalho, 1ª ed. Bauru, EDUSC, 2002, v.1, p 95. 209 Depoimento de D. Maria da Conceição Souza Silva, em dezembro de 2007, de 66 anos de idade, moradora da cidade desde 1944. 210 “Não penses assim”. O Detetive. Santo Antonio de Jesus, 7 de maio de 1950, p1. 89 onde “as mulheres trabalhavam catando café e os homens trabalhavam enchendo o saco de café”,211 talvez tenha aproximado alguns comportamentos da mulher de traços da figura masculina, particularmente no aspecto da resistência a tarefas árduas executadas diariamente. Entretanto, entre as múltiplas formas assumidas pela modernização da cidade, uma das preocupações estava relacionada à beleza pessoal como uma das preocupações de algumas mulheres que pagavam pelos serviços oferecidos no Salão de Beleza Bahia, onde realizavam “permanentes, penteados e serviços de manicure”,212 pois o tratamento das unhas deixou de ser um privilégio das classes ricas para ser uma das mais gratas ocupações dos momentos dedicados durante o dia à higiene pessoal. Recorre-se com freqüência a manicure profissional.213 Ainda que o acesso a esses serviços de higiene pessoal nesse momento não tenha atingido um número significativo de mulheres, já que muitas continuaram sem trabalhar fora de casa e, portanto, não possuindo renda própria, é provável que essas preocupações com o corpo e com a beleza tenham sido intensificadas com a ampliação do trabalho feminino e das formas de socialização na cidade. Novas possibilidades de vida social surgiam e o simples fato de sair de casa todos os dias exigia uma atenção especial com a aparência física, estimulando a vaidade e a busca, com mais freqüência, de uma melhor apresentação pessoal. Mas, era principalmente para as festas, para ir ao cinema e à igreja que as mulheres mais se arrumavam, escolhendo o vestido mais bonito, o sapato de passeio, caprichando na arrumação do cabelo e na maquiagem, conforme recorda D. Maria Soares, antiga trabalhadora dos armazéns de fumo: “eu comprei o vestido bonito pra poder ir pra missa [...]. Ora, graças a Deus. O pano se chamava linho de seda”.214 Optar pelo trabalho das mulheres, para os patrões, significava economia, já que pagavam salários menores. Já para as mulheres, significava adquirir certa autonomia ao ocupar espaços de trabalho na cidade, anteriormente pertencentes apenas aos homens. Nesse sentido, nas vivências urbanas de Santo Antonio de 211 Sr. Irênio Santos Pereira, depoimento já citado. “Salão de Beleza Bahia”. O Palládio. Santo Antonio de Jesus, 8 de outubro de 1948, p 3. 213 “A Beleza das Unhas”. O Detetive. Santo Antonio de Jesus, 1º de outubro de 1950, p1. 214 Depoimento de D. Maria Soares de Jesus, em nov. de 2007, de 84 anos de idade, moradora da cidade desde os sete anos. 212 90 Jesus, o trabalho feminino apresentou-se como mais uma dimensão, sobretudo, exercido pelas camadas populares que buscavam sobreviver na cidade. 2.2. Práticas de solidariedade e caridade no cotidiano santoantoniense Ainda nas primeiras décadas do século XX, a ausência de proteção social pelo poder público local levou um grupo de trabalhadores a se unirem para fundar a Sociedade Beneficiente dos Artistas. Eram marceneiros, ferreiros, alfaiates estivadores, tipógrafos, músicos, homeopatas, comerciantes, carpinteiros, pintores, pedreiros, ajudantes de pedreiros, funileiros, mestres-de-obras, ouríveres, enfermeiros, cabeleireiros, ambulantes, comerciários, sapateiros, chapeleiros, professores e barbeiros. O objetivo era prestar assistência aos seus sócios, através de um pacto de solidariedade de assistência mútua e de defesa coletiva, para cuidar da saúde do mutuário, zelar e garantir seu sustento e de sua família, quando impossibilitado de executar sua atividade laborial.215 Prestar assistência aos sócios e a pessoas carentes não pertencentes à associação bem como possibilitar oportunidades de instrução e lazer, faziam parte das funções dessa Sociedade.216 A solidariedade institucional fazia-se presente, também nos anos 1920, na cidade, através da Sociedade São Vicente de Paulo, instalada em 18 de julho de 1915, que assistia caritativamente a pessoas com dificuldades econômicas, assim como da Santa Casa de Misericórdia217 de Santo Antonio de Jesus que, desde maio de 1918, assumiu o compromisso de minimizar problemas de saúde da população carente.218 Com as transformações urbanas que se processaram na cidade, a partir do final dos anos 1940, “a necessidade de adaptação levava ao estreitamento de laços familiares e comunitários”, ao mesmo tempo em que possibilitava a criação de “redes de solidariedade, através de múltiplas estratégias”.219 Os moradores eram estimulados a inventar novas práticas de solidariedade e atualizar as que já existiam. Algumas trazidas do cotidiano dos trabalhadores rurais, em que “as Sobre práticas de associações mutualistas ver DE LUCCA, T. R. O sonho do futuro assegurado: o mutualismo em São Paulo (1920-1934). São Paulo:Brasília: 1990. p. 165. 216 MENEZES, Eliane. Op. cit., pp. 27-28. 217 RUSSELL-WOOD, A. J. R. Fidalgos e Filantropos: A Santa Casa de Misericórdia da Bahia. Brasília: 1995. 218 MENEZES, Eliane. Op. cit., pp. 27-28. 219 MATOS, Maria Izilda Santos de. A cidade, a noite e o cronista: São Paulo e Adoniran Barbosa. Bauru, SP: EDUSC, 2007, p 52. 215 91 práticas de solidariedade generalizavam-se nas permutas mais simples de doces por frutas [...] no empréstimo de litros de farinha ou de leite para as crianças”.220 Na cidade, esses vínculos de vizinhança também eram comuns quando em uma casa faltava um item no preparo da refeição, batendo-se frequentemente na porta de alguém para pedir emprestado. Nesse sentido, a ajuda entre vizinhas, para realizar algumas tarefas domésticas ou cuidar das crianças, permitiu que a mulher se ausentasse de casa para trabalhar na rua. Esse tipo de relação caracterizou-se como uma estratégia de vida urbana e envolveu “laços muitos fortes de solidariedade e de vizinhança, que improvisavam e modificavam continuamente”.221 Nessa sociedade em que as diferenças sociais podiam ser sentidas na presença de adultos e crianças pedintes nas praças e nas portas, medidas paliativas para amenizar a situação foram frequentemente tomadas. Os exemplares acessados do jornal O Palládio, entre os anos de 1932 a 1951, trazem 9 matérias abordando a situação dos pobres e a caridade, e O Detetive, durante os anos de 1950 e 1951, apresenta mais 8 notas sobre o assunto, o que sugere que os periódicos eram importantes instrumentos de divulgação das campanhas. Iniciativas que incluíam exibição de filmes e festas em benefício dos pobres foram constantes na cidade, promovendo uma aproximação entre o lazer e a caridade. Comissões de professoras, freiras, senhoras e senhores representantes da sociedade, encarregavam-se de organizar esses eventos. Por ser um espaço de lazer dos mais apreciados pela população local, o cinema foi um dos recursos utilizados para esse fim. Eram realizadas seções de cinema, cujos valores arrecadados com a venda dos bilhetes destinavam-se à compra de alimentos para as doações. Nos anos 1930, já se tem notícia de espetáculos que aconteciam “em favor dos flagelados sertanejos que andam aqui na cidade”.222 Na década seguinte, ampliou-se esse tipo de auxílio, recorrendo-se ao cinema também para obter ajuda “em benefício da construção do pavilhão de cirurgia da Santa Casa de Misericórdia”.223 Festa e caridade foram os ingredientes da iniciativa do Sr. Luiz Argolo, provedor da Santa Casa de Misericórdia, ao realizar, em frente ao Hospital, a 220 SANTANA, Charles D’Almeida. Fartura e ventura camponesa: trabalho, cotidiano e migrações: Bahia 1950-1980. São Paulo: Annablume, 1998, p 50. 221 DIAS, Maria Odila Leite da Silva. Quotidiano e poder em São Paulo no século XIX. 2 ed.rev. São Paulo: Brasiliense, 1995, p 15. 222 “Festa e caridade”. O Palládio. Santo Antonio de Jesus, 3 de fevereiro de 1933, p 3. 223 “Uma diversão visando a caridade”. O Palládio. Santo Antonio de Jesus, 6 de setembro de 1949. 92 matança de 18 bois, “oferecidos à pobreza de Santo Antonio de Jesus”, sendo a carne “distribuída aos indigentes mediante cartões fornecidos anteriormente pela provedoria da Santa Casa de Misericórdia”. Naquela manhã de 7 de janeiro de 1951 a população foi agradavelmente surpreendida com a chegada dos três Reis: Bekchior, Baltazar e Gaspar, que ostentando luxuosos trajes e montados em vistosos cavalos rumaram ao prédio do Hospital da Santa Casa, a fim de visitar o Presépio e mimosear o Deus Menino.224 A festa, que possuía um sentido simbólico, fazia parte das homenagens pelo Dia de Reis e as ofertas naquela data reverenciavam a visita dos Reis Magos para presentear o menino Jesus, conforme publicou O Palládio em “Ofertas de Reis aos pobres”,225 ao relatar como tudo transcorreu e divulgar a lista dos “reis” doadores, composta por políticos, fazendeiros, comerciantes, empresários locais e um médico. O elevado número de “desafortunados” nas ruas da cidade226 deu origem a uma campanha em prol da construção de um abrigo noturno “para acolher os transeuntes desvalidos que moram na alpendrada da Estação ou embaixo de uma árvore”. Realizada pela comissão promotora do Abrigo Noturno, a campanha solicitava “um tijolo, uma telha, a fim de que sejam, quanto antes, atacados os serviços de construção da grandiosa obra de caridade”.227 A resposta acolhedora da sociedade santoantoniense aos pedidos de auxílio para a reforma da Igreja Matriz, para a Santa Casa de Misericórdia ou para a ajuda aos pobres, era publicada constantemente nos periódicos locais, através de listas com os nomes dos doadores. Um apelo que a irmã Maria Natividade dirigiu aos proprietários de padaria da cidade e aos que possuíam laranja, a fim de proporcionar todas as tardes aos doentes hospitalizados uma merenda sadia, foi notícia do Palládio que registrou “a maneira humanitária e caridosa” com que foi aceita a idéia. “Em menos de 24 horas foram encontrados os doadores 224 “Festa da Caridade”. O Detetive. Santo Antonio de Jesus, 13 de janeiro de 1951, p 1. “Ofertas de Reis aos Pobres”. O Palládio. Santo Antonio de Jesus, 16 de janeiro de 1951, p 2. 226 FRAGA FILHO, Walter. Mendigos, moleques e vadios na Bahia do século XIX. São Paulo: Hucitec; Salvador: EDUFBA, 1996. Descreve o drama dos pobres no século passado, suas estratégias de sobrevivência e resistência, o calendário da mendicância, as transformações na política de controle dos pobres e suas ligações com diferentes modos de ver a pobreza. 227 “Albergue noturno”. O Palládio. Santo Antonio de Jesus, 8 de agosto de 1946, p 4. 225 93 samaritanos”,228 que receberam os agradecimentos e tiveram seus nomes divulgados, o que podia significar reconhecimento, prestígio e status. Mas isso não era o bastante para impedir, em alguns momentos, que “os cometas”, aqueles doadores que “aparecem, para depois rapidamente desaparecer, na carreira veloz”,229 abandonassem a caridade. Por isso, os jornais, além de insistentes, chegavam a ser apelativos. A esmola era tema debatido nas reuniões de amigos. O editorial de O Detetive, de 11 de março de 1951, trazia ao público uma calorosa conversa que teria acontecido na noite de Natal sobre a quem devemos dar esmolas. Entre opiniões diversas e nem sempre convergentes, uns defendiam que não se deve dar esmola aos que bebem e outros afirmavam que aqueles “são uns doentes, inutilizados, infelizes”, portanto essa decisão deverá ficar por sua conta, “não sendo nosso o direito de criticar, afinal é preciso lembrar do sábio ensinamento que diz faça-se o bem sem olhar a quem”.230 O ato de dar esmolas em Santo Antonio de Jesus levou D. Tereza Leal Vita Souza, professora aposentada, ex-moradora local, a referir-se à cidade como “a Terra dos esmolés”. Recorda que “todo dia alguém pedia nas portas da gente. Toda hora chegava gente. Botava um bocado de pão no corredor em cima de uma cadeira ou então farinha, ia entrando e pegando. Cada dia era uma coisa”.231 As palavras da professora Tereza ajudam a entender as insistentes notas nos jornais, incentivando a doação de esmolas. O número de pessoas que “pedia nas portas” era significativo o bastante para preocupar aqueles que trabalhavam, tinham comércio e viviam na cidade. Embora naquele momento, de acordo com os depoimentos dos moradores, a cidade ainda se apresentasse calma, bem longe dos índices de violência dos dias atuais, “a indigência em Santo Antonio [...] há muito, vem assumindo proporções descomunais”.232 Aquela gente toda, além de incomodar por causa da péssima impressão que causava aos viajantes,233 podia ser vista como uma ameaça de possíveis arrombamentos e roubos, principalmente durante a noite, 228 “Merenda diária para os hospitalizados”. O Palládio. Santo Antonio de Jesus, 11 de junho de 1949, p 3. 229 “...Que vivam, pois, os cometas!”. O Detetive. Santo Antonio de Jesus, 10 de setembro de 1950, p 1. 230 Idem 231 Depoimento de D. Tereza Leal Vita Souza, em 6 de dezembro de 2007, 84 anos de idade. 232 “Sociedade Protetora dos inválidos”. O Detetive. Santo Antonio de Jesus, 13 de julho de 1951, p 1. 233 “Calúnias brancas”. A Voz das Palmeiras. Santo Antonio de Jesus, 12 de março de 1954, p 1. 94 quando as luzes eram apagadas e não se tinha guardas noturnos. Para os pedintes, a esmola recebida podia significar a oportunidade de continuar sobrevivendo numa cidade cuja rua era o único espaço a que tinha direito. Os que davam esmola podiam entender esse ato como humanitário, a garantia de obter “a chave do céu”,234 um gesto de pura solidariedade, uma forma de dar o mínimo possível àquelas pessoas, evitando talvez o uso da violência para conseguir o alimento. Mas, “o ato de doar ainda pode sugerir outros aspectos” como um meio de obter “prestígio”, reconhecimento popular, já que os nomes dos doadores eram frequentemente publicados, ou incluir também “exemplos de generosidade desinteressada relativos à minoritária tradição do paternalismo benevolente, como já afirmou Thompson”.235 Sr. Edivaldo Oliveira, de 90 anos de idade, ex-vereador da cidade, casado com a professora Tereza, lembra que foi estabelecido um dia certo de dar esmolas “para não se pedir, nos outros”. O dia “era sexta-feira, depois passou para quinta por causa da feira. O movimento do comércio [...] atrapalhava. Na padaria eu pegava saco de pão e botava lá, cada um ia pegando e tirando o seu”.236 A prática de distribuir pães remete-nos à tradição do “pão de Santo Antonio”, que sobrevive. A história do pão de Santo Antônio remonta a um fato curioso que pode ser assim narrado: Antônio comovia-se tanto com a pobreza que, certa vez, distribuiu aos pobres todo o pão do convento em que vivia. O frade padeiro ficou em apuros quando, na hora da refeição, percebeu que os frades não tinham o que comer, pois os pães tinham sido "roubados". O frade padeiro foi contar ao santo o ocorrido. Este mandou que verificasse melhor o lugar onde os tinha deixado. O Irmão padeiro voltou estupefato e alegre ao ver que os cestos transbordavam de pão, tanto que foram distribuídos aos frades e aos pobres do convento. O pãozinho de Santo Antônio é, por tradição, colocado pelos fiéis nos sacos de farinha, com a fé de que, assim, nunca lhes faltará o que comer.237 Além de ofertarem pães da padaria da família, Sr. Edivaldo e D. Tereza também participavam da “campanha do cruzeiro”, contribuindo semanalmente com a quantia em dinheiro de um cruzeiro. Nota-se que a criação do dia da esmola fazia 234 “A caridade em marcha”. Jornal da Cidade. Salvador, 11 de maio de 1962, p 2. THOMPSON, E. P. As peculiaridades dos ingleses e outros artigos, Editora Unicamp, Campinas – SP, 2001, p 246 e 247. 236 Depoimento de Sr. Edivaldo Oliveira Souza, em 6 de dezembro de 2007, 90 anos de idade. 237 Folhinha Sagrado Coração de Jesus, s.n.t.. 235 95 parte de estratégias que provavelmente surgiam de acordos informais entre os comerciantes e empresários locais, numa tentativa de não prejudicar os negócios. Entretanto, a nota de O Detetive afirma que, para alguns mendigos, pedir constituía “um grande sofrimento”, por esse motivo “é que se faz em Santo Antonio, semanalmente, a cobrança do mencionado cruzeiro”,238 evitando assim o constrangimento daqueles. Desamparados, o velho Zacarias, a velha Januária, a cega Aura, Euzébia do Vigário,239 eram alguns dos que recebiam parte do dinheiro arrecadado semanalmente. Outros nomes estão registrados na memória de Sr. Edivaldo Oliveira, como “Lingüiça, Antonio da Lira, Agostinho da Congregação, João do Galo, tinha um bando”. Lingüiça não tinha ninguém. Quando apareceu, ninguém sabe de onde veio. Vivia e dormia pela rua. Chegava lá em casa todo dia, vivia assim. Agora, todo domingo ia pra missa. Chamavam ele de... comia em tudo quanto é lugar, comia galinha podre, chamavam ele de boca de toné, ele danava, saía com um pau atrás correndo. Ignorante, não sabia ler, não sabia nada. Tinha outro popular lá. Antonio da Lira, só carregava as partituras da Lira. Aonde a Lira ia, ia atrás. Perdia a noite por lá. Quando falava em Carlos Gomes ele queria bater em todo mundo.240 A convivência diária com os personagens que viviam a perambular pelas ruas, pedindo nas portas, dormindo na praça ou na Estação, está presente nas suas lembranças. Ficaram gravados, também, os nomes, as características comportamentais de cada um, permitindo distinguir aquele que “todo domingo ia pra missa” ou o que “carregava as partituras da Lira”. Os detalhes apontam certa proximidade com aquelas pessoas, relação que Sr. Edivaldo provavelmente adquiriu quando foi membro da diretoria da Sociedade São Vicente de Paulo, criada nas primeiras décadas do século XX. Nos anos 1930241, jornais locais trazem notas sobre essa Sociedade, ligada à Igreja Católica, que conseguia donativos de roupas, leite, farinha de trigo, fubá de milho, óleo doméstico, latas de manteiga que eram distribuídos aos pobres da cidade.242 Nas 238 “Em favor dos pobres”. O Detetive. Santo Antonio de Jesus, 9 de abril de 1950, p 1. Idem. 240 Depoimento de Sr. Edivaldo Oliveira, já citado. 241 “Quem dá aos pobres, empresta a Deus”. O Palládio. Santo Antonio de Jesus, 1º de abril de 1932 242 “A caridade em marcha”. Jornal da Cidade. Santo Antonio de Jesus, 11 de maio de 1962. 239 96 décadas seguintes, os periódicos locais continuaram acompanhando o trabalho da Sociedade São Vicente de Paulo.243 A partir das informações obtidas no material acessado, percebe-se que os pobres que viviam nas ruas da cidade apresentavam um perfil variado. Homens e mulheres, dos quais raramente se conhecia a origem. Alguns eram flagelados fugindo da seca; outros, como Lingüiça, sem nenhum parente conhecido. Muitos apresentavam algum problema de saúde física, mental ou visual, como o velho Zacarias e Agostinho da Congregação, ambos cegos. Havia ainda uma enorme quantidade de crianças. A situação das pessoas que moravam pelas ruas das cidades baianas na década de 1950 foi retratada pelo governo estadual da época, ao considerar o elevado número de menores que viviam entre “vadios e vagabundos”, sem educação, sem escola, praticamente abandonados pelos pais, uma grande porção já de verdadeiros desajustados sociais, degenerada pelo alcoolismo, entregando-se aos vícios mais torpes, trilhando, enfim, o caminho do crime.244 Dentro desse quadro social, estavam as crianças que viviam de esmola e moravam nas ruas de Santo Antonio de Jesus. Concordando com Thompson ao considerar que “a estrutura, em qualquer relação entre ricos e pobres, sempre corre em mão dupla, e essa mesma relação, quando girada e vista em perspectiva inversa, pode expor uma heurística alternativa”, os atos de pedir e dar esmola podem ser vistos como duas faces da mesma moeda. Podia representar ao mesmo tempo, uma estratégia de sobrevivência para os pobres, pois “sabem que a recusa da dádiva provoca a culpa em quem nega”, e para os doadores, uma condição para ter a consciência leve, uma suposta garantia de não ser incomodados ou ainda a “notoriedade da benevolência”.245 2.3 Tensões no espaço urbano As intensas mudanças que ocorreram nas décadas de 1950 e 1960, em Santo Antonio de Jesus, percorreram todos os níveis da experiência social. 243 Ver particularmente A Voz das palmeiras nº. 34, ano I e o Jornal da Cidade nº. 9, ano I. Mensagem apresentada pelo Dr. Octávio Mangabeira, governador do Estado da Bahia à Assembléia Legislativa, através da Imprensa Oficial da Bahia, em 7 de abril de 1950, p 17. 245 THOMPSON, E. P. As peculiaridades dos ingleses e outros artigos, Editora Unicamp, Campinas – SP, 2001, p 253. 244 97 Mudanças semelhantes a outras tantas que afetaram “desde a ordem e as hierarquias sociais até as noções de tempo e espaço das pessoas”. Estas, por sua vez, passaram a perceber os objetos, a reagir e organizar o mundo ao seu redor de diferentes maneiras, podendo-se afirmar que em nenhum período anterior tantas pessoas foram envolvidas de forma tão completa e tão rápida num processo que transformou drasticamente seus hábitos cotidianos, suas convicções, seus modos de percepção.246 As transformações urbanas ocorreram em concomitância com mudanças nos modos de vida dos moradores. Entretanto, é possível afirmar que eles não ficaram passivos apenas assistindo as mudanças. Por nem sempre entenderem e aceitarem o que estava acontecendo, particularmente quando estavam envolvidos costumes e valores há muito tempo incorporados às suas experiências, os sujeitos urbanos tentavam dar significado às novidades em busca de algo seguro. É somente através da experiência que o indivíduo desenvolve e incorpora valores. E tais valores não podem ser compreendidos apenas como uma imposição, mas como criação, subjetivação, re-significação. Nos costumes, no cotidiano, encontramos férteis exemplos de resistência e luta; não somente nos fóruns institucionais.247 Nesse processo, pleno de incertezas e adaptações, que mexia profundamente com os espaços, as relações de trabalho, os costumes e as práticas de solidariedade, tensões ocorreram constantemente. Dessa forma, “incorporar à história tensões sociais de cada dia implica a reconstrução da organização de sobrevivência de grupos marginalizados do poder e, às vezes do próprio processo produtivo”.248 Estudos e abordagens que incorporam a análise do cotidiano têm revelado todo um universo de tensões e movimento com uma potencialidade de confrontos, descortinando formas peculiares de resistência/luta, integração/diferenciação, permanência/transformação, no qual a mudança não está excluída, mas sim vivenciada de diferentes formas, configurando a história do cotidiano como espaço de resistência ao processo de dominação.249 Recuperar possíveis vivências das 246 SEVCENKO, Nicolau. O prelúdio republicano, astúcias da ordem e ilusões do progresso. In: Nicolau Sevcenko (org)/ Fernando A. Novaes (coord): História da vida privada no Brasil. São Paulo: Cia das Letras, 1998, pp7-8. 247 MELO, Victor Andrade. Lazer e Camadas Populares: reflexões a partir da obra de Edward Palmer Thompson. Revista Movimento, Porto Alegre, v. 7, n. 14, p. 4-19, 2001, p. 4. 248 DIAS, Maria Odila Leite da Silva. Quotidiano e poder em São Paulo no século XIX. 2 ed.rev. São Paulo: Brasiliense, 1995, p 15. 249 HELLER, Agnes. O cotidiano e a história. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1985. apud MATOS, Maria Izilda Santos. Cotidiano e Cultura: história, cidade e trabalho. 1 ed. Bauru, EDUSC, 2002. v. 1, p.26. 98 tensões cotidianas de Santo Antonio de Jesus significa “desfiar a teia de diferentes dimensões de experiência, fugindo dos dualismos e polaridades e questionando as dicotomias”.250 Na tentativa de politizar o cotidiano santoantoniense, no período em foco, é possível perceber experiências de tensões urbanas nos espaços privado e público, ocorridas entre vizinhos, entre gerações diferentes, entre patrões e empregados, com pessoas de camadas sociais diferentes ou não. Um recado encontrado no Jornal O Detetive, pode ser um sinal de que na cidade, a relação entre vizinhos não era marcada apenas pela solidariedade e harmonia, e revela possíveis desentendimentos: “Como é isso? Depois do dominó liga o rádio em altas vozes e não deixa a gente dormir?”.251 Situações simples do cotidiano como o incômodo do barulho causado com “o rádio em altas vozes” são traços que singularizam e ao mesmo tempo podem revelar resistência a alterações de costumes e valores culturais enraizados nas experiências de vida de toda uma população, que estava habituada a dormir cedo, com o silêncio da noite calma, ao som apenas do canto do galo, dos grilos e dos pássaros. Assim, o volume do rádio que “não deixa a gente dormir”, pode não ter sido o único motivo causador da tensão, mas foi o meio utilizado para dar vazão à insatisfação diante da possibilidade de mudança nos hábitos cotidianos, já que o horário de dormir seria afetado. Por vezes, pessoas mais velhas sentiram-se incomodadas com comportamentos praticados pelos jovens, ao tempo em que reprovavam “a falta de escrúpulo que reina entre namorados no jardim não respeitando transeuntes”.252 Namorar no jardim não era um hábito muito aceito pelos moradores. “O namoro era bem diferente, dava até medo. Só se namorava em casa, na rua não podia. E só era pegar na mão”.253 O tipo de namoro que acontecia no jardim fugia dos padrões da época, diferindo do modelo aceito e praticado pelas “moças de família”. Incomodava os mais velhos também o comportamento dos “mocinhos armados a atletas” que “altas horas da noite vivem rompendo o silêncio da cidade, 250 DIAS, Maria Odila Leite da Silva. “Teoria e método dos estudos feministas: perspectiva histórica e hermenêutica do cotidiano”. In: Uma questão de gênero. Rio de Janeiro: Rosa dos Tempos: Fundação Carlos Chagas, 1992, apud MATOS, Maria Izilda Santos. Cotidiano e Cultura: história, cidade e trabalho. 1 ed. Bauru, EDUSC, 2002. v. 1, p. 26. 251 “Recado”. O Detetive. Santo Antonio de Jesus, 24 de junho de 1950, p 2. 252 “Última hora”. O Detetive. Santo Antonio de Jesus, 24 de setembro de 1950, p 2. 253 Depoimento de D. Maria da Conceição Souza Silva, já citado. 99 dando murros nos postes e nas paredes das casas alheias, nos postes da luz elétrica”, sendo alvo de denúncia nos jornais. Alguns anos após a publicação dessa matéria, esse tipo de comportamento seria acompanhado pelas desordens causadas por aqueles jovens que altas horas da noite saíam pelas ruas da cidade gritando, correndo, cantando “músicas imorais e indecentes” e pronunciando palavrões que escandalizavam a população. Os novos modos de se comportar foram sendo incorporados inicialmente à vida dos mais jovens, causando perplexidade e incompreensão aos mais velhos, que só depois de algum tempo passaram a encarálos com certa naturalidade, em nome “da civilização, progresso e adiantamento”. 254 Entretanto, a experiência de urbanização na cidade “não implicou uma padronização total no estilo de vida”, não se tratou de uma “simples substituição de padrões”. Pode-se dizer que houve uma redefinição dos elementos em que “formas de vivência se mantiveram residuais, convivendo com experiências emergentes”, comportando, ao mesmo tempo, “a resistência e/ou um inconformismo”.255 Era em nome do progresso que muitos defendiam a construção de um novo mercado para a realização da feira, já que na praça onde funcionava o antigo, “o burburinho tomou aspecto mais antipático, ocupando toda aquela área quase encostando no passeio das casas os lençóis de verduras, os montes de frutas postas no solo à disposição dos compradores aos sábados”.256 Ao que tudo indica, o clima existente entre os feirantes e comerciantes, por um lado, que queriam a permanência da feira na praça, e os moradores vizinhos do local e autoridades, por outro lado, que pediam a sua saída dali para melhorar o aspecto da praça, era tenso e culminou na transferência da feira para a Praça Duque de Caxias. Contudo, alguns momentos de tensão poderiam ser resolvidos com negociação. Nos dias em que a feira não dava lucro suficiente para o pagamento do imposto obrigatório, os feirantes tentavam negociar, oferecendo aos fiscais um pedaço de bolo, um cafezinho, um sorriso no rosto ou um olhar triste e cabisbaixo, além do tratamento de cordialidade que dispensavam. Artifícios como esses, muitas 254 “A cidade em revista”. A Voz das Palmeiras. Santo Antonio de Jesus, 27 de janeiro de 1954. WILLIAMS, R. Cultura e sociedade. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1992, apud MATOS, Maria Izilda Santos de. A cidade, a noite e o cronista: São Paulo e Adoniran Barbosa. Bauru, SP: EDUSC, 2007, p 68. 256 “Mercado municipal”. O Palládio. Santo Antonio de Jesus, 3 de fevereiro de 1949, p1. 255 100 vezes solucionaram, ainda que momentaneamente, o conflito entre feirantes e fiscais no ambiente da feira.257 Na trama urbana, tensões e conflitos ocorriam com a presença de menores que viviam “à toa nas ruas da cidade”, sendo um tema constante nos jornais e nos discursos das autoridades locais, que definiu oposições entre solidariedades e conflitos. Crianças que passavam o dia brincando em qualquer canto da cidade, sem ir a escola, sem orientação ou regras de convivência podiam tornar-se um perigo para a sociedade. Por isso algumas pessoas vislumbravam a construção de uma colônia correcional, “um centro reformador de tendências perniciosas, visando oferecer depois ao Brasil filhos aproveitáveis e bons”,258 como uma solução para o problema. Nesse espaço eles iriam aprender os valores indispensáveis à vida em sociedade, e os menores “regenerar-se-iam do aprendizado colhido nas ruas. Em se tratando de ser civilizada a cidade, havia a obrigação de se possuir instituições assistenciais de tal natureza”.259 Por viverem em situação de pobreza, passavam o dia pelas portas com diversos adultos “cegos, loucos, doentes, mendigos. Juntos, compunham uma imensa malha de indigentes e deserdados das ruas”,260 podendo ser comparada a uma versão atualizada das classes perigosas,261 a pedir esmolas diante dos olhos de todos, o que tornava, algumas vezes, tensas as relações cotidianas da cidade. Muitos destes meninos e meninas “especializaram-se na arte de roubar na feira”, praticando pequenos furtos de mercadorias consideradas de “pequeno porte” como, cachos de bananas, melancias, fogareiros, chapéus, sandálias de couro, e principalmente, animais como perus, porcos e galinhas.262 Nessa perspectiva, para Santo Antonio de Jesus tornar-se “civilizada” e resolver os conflitos provenientes da presença das crianças de rua, precisava de uma colônia correcional para recolher e educá-las. 257 SANTOS, Hamilton Rodrigues dos. Op. cit., p 84. “Clama ne cesses” O Palládio. Santo Antonio de Jesus, 24 de novembro de 1950. 259 LEITE, Rinaldo Cesar Nascimento. E a Bahia civiliza-s. Dissertação de Mestrado em História: UFBA, Salvador, 1996, p 133. 260 Idem, op. cit. p. 134. 261 Embora a expressão “classes perigosas” possa ter surgido na primeira metade do século XIX, no Brasil, ainda no Império, o conceito foi encontrado como um dos eixos de um importante debate parlamentar ocorrido na Câmara dos deputados, após a abolição da escravidão, em maio de 1888. CHALHOUB, Sidney. Classes Perigosas: trabalhadores. Primeira Versão, Campinas, n 6, p 2-22, 1990, p 5. 262 SANTOS, Hamilton Rodrigues dos. Op. cit., p 89. 258 101 O temor de que esses jovens crescessem na marginalidade era reforçado por pequenos crimes cometidos por homens e mulheres adultos na cidade, como furto de carteiras, arrombamentos, desordens, embriaguez e arruaças.263 A possibilidade desses delitos aumentarem crescia à medida que nenhuma atitude era tomada em relação às crianças. Numa noite de maio de 1950, o Sr. Hilário Bulhões foi uma das vítimas da marginalidade na cidade, pois teve sua loja de tecidos arrombada e os gatunos saíram “conduzindo da loja seis peças de tecidos de brins, chitas e tricoline, além de um relógio [...] e mais 60 cruzeiros que se achavam na gaveta”.264 No contexto dessas vivências urbanas de Santo Antonio de Jesus, adicionado ao problema dos roubos, estavam os aumentos abusivos nos preços dos gêneros de primeira necessidade. Sobretudo, o custo da carne verde vendida nos açougues, causava aflição e indignação aos moradores. De acordo com algumas matérias jornalísticas, não encontravam justificativas para o fato, já que o número de criadores não havia diminuído no Sertão da Bahia, pelo contrário, tinha aumentado; não se tinha notícia de seca que tivesse dizimado os nossos rebanhos; não se adquiria nenhuma informação de motivos sobre a alta da carne, “que precisava ser investigada, estudada pelo governo, fonte de onde o povo poderia esperar o alívio para as suas aflições”.265 Situações como essa deixavam a população, particularmente as camadas menos abastadas, em polvorosa e mereciam destaque nos jornais locais. Ao denunciarem cenas de conflitos entre consumidores e comerciantes, nos remetem aos históricos motins contra a carestia.266 Mas esse não seria o único episódio protagonizado pelos comerciantes, envolvendo circunstâncias tensas. O descumprimento de normas existentes, quanto ao fechamento do comércio nos domingos, feriados e dias santos e sobre o horário de abrir e fechar nos dias úteis, certamente gerava insatisfação dos comerciários. Indignados ficavam também aqueles que acreditavam que para Santo Antonio de Jesus tornar-se uma cidade adiantada, era preciso cumprir as leis, em caso contrário a cidade permaneceria “com legítimo e verdadeiro aspecto de uma aldeia”.267 Do outro lado, alguns comerciantes mantinham suas lojas abertas nos dias de domingo 263 “Delegacia de Polícia”. O Palládio. Santo Antonio de Jesus, 13 de outubro de 1951; “Presos”. O Palládio. Santo Antonio de Jesus, 14 de agosto de 1951. 264 “Roubo”. O Palládio. Santo Antonio de Jesus, 30 de maio de 1950. 265 “Estude-se o caso dos açougues”. O Palládio. Santo Antonio de Jesus, 16 de janeiro de 1942. 266 Para maior aprofundamento no tema, ver o trabalho de: REIS, João José e AGUIAR, Márcia Gabriela D. de. “Carne sem osso e farinha sem caroço”: O motim de 1858 contra a carestia na Bahia. São Paulo: Revista de História – USP, no. 135, 1996, pp. 133-160. 267 “A cidade em revista”. A Voz das palmeiras. Santo Antonio de Jesus, 4 de fevereiro de 1954. 102 e feriado. Abriam suas portas mais cedo e fechavam depois do horário para aumentar cada vez mais os seus lucros, à custa do trabalho alheio, configurando assim, nuanças de “experiência de exploração” vivenciada pelos trabalhadores locais.268 Importa lembrar que, ao refletir sobre as condições de vida dos trabalhadores ingleses, durante a Revolução Industrial, Thompson destaca, ao lado da melhoria material, que o povo foi submetido, simultaneamente, à intensificação de duas formas intoleráveis de relação: a exploração econômica e a opressão política, considerando a exploração “mais que a soma de injustiças e antagonismos mútuos”, podendo ”ser encontrada em diferentes contextos históricos sob formas distintas, que estão relacionadas a formas correspondentes de propriedade e poder estatal”.269 Embora os entrevistados não tenham feito nenhuma referência a recorrências à justiça do trabalho, talvez por naquele momento ainda não ser uma prática tão comum, reclamações trabalhistas das décadas de 1950 a 1970, descortinam relações conflitantes nas vivências entre patrão e empregado em Santo Antonio de Jesus, quanto à garantia dos direitos trabalhistas. Maria dos Santos, brasileira, solteira, analfabeta, residente na cidade, copeira do Hotel Central desde 1º de julho de 1959, por exemplo, apresentou reclamação em 11 de fevereiro de 1963 contra Raimundo Nunes de Souza, representante do referido hotel. A reclamante alegava que nunca teve férias, nem lhe foi dado aviso prévio, nem pago 13º salário, como determinava a Lei nº 4090 de 13 de julho de 1962, publicada no Diário Oficial da União em 26 de julho de 1962, além de ter sido demitida após retornar do período de licença maternidade. A copeira pedia que o hotel pagasse indenização, diferença de salário, aviso prévio, férias não gozadas, auxílio maternidade acumulado durante o período de repouso em virtude da gravidez, gratificação salarial de vida e custos sob pena de revelia. No dia da audiência, em 13 de março de 1963, apareceu apenas uma declaração da funcionária pedindo o arquivamento da reclamação.270 268 THOMPSON, E. P.. Formação da classe operária inglesa, v. II. Rio de Janeiro: Paz e terra, 1987, 28. 269 Ibidem. 270 Autos da Reclamação Trabalhista de Maria dos Santos contra o Hotel Central, representado por Raimundo Nunes de Souza, formulada em 11 de fevereiro de 1963. APMSAJ, pasta de Reclamações Trabalhistas, de 1960 -1970. 103 Não é intenção desse trabalho refletir acerca do desfecho do processo, entretanto, ao utilizar as reclamações trabalhistas como fonte, tornou-se possível afirmar que nas tensões ocorridas entre patrão e empregado no espaço urbano santoantoniense, quando não se obtinha sucesso nas negociações informais, a justiça passou a ser um recurso buscado. No início da década de 1940, os trabalhadores do Recôncavo-Sul da Bahia não só tomaram conhecimento, mas também mostraram-se receptivos a algumas iniciativas da política trabalhista, especialmente em relação à Justiça do Trabalho.271 Isso nos leva a crer que, em momentos convenientes, os trabalhadores se apropriaram de algumas novidades proporcionadas pelo ambiente modernizador que se vivia na cidade, para garantir seus interesses. Outro morador da cidade, que recorreu à justiça para tentar resolver questões, foi o trabalhador José Silva Souza, analfabeto, solteiro, operário da Exportadora de Fumo Suerdieck S/A, residente na Rua Castro Alves. De acordo com o seu depoimento, ele teria “distorcido” o músculo do pescoço, do que diminuiu sua capacidade de trabalho, em conseqüência da tarefa de transportar fardos de fumo. Teria sido admitido em 12 de julho de 1966, porém sua carteira fora assinada como tendo sido admitido em 1º de agosto e decorridos pouco mais de 90 dias fora despedido, sem que fossem pagos seus direitos estabelecidos pela CLT. O acidente de trabalho teria causado a sua incapacidade ou redução de capacidade para o exercício da função. No dia 15 de outubro de 1966, após a 1ª audiência e realização da perícia médica que apresentou resultados inconclusivos, antecipando-se à realização de novos exames, as partes requereram a homologação de acordo celebrada, em que o reclamado foi obrigado a pagar vinte diárias ao operário, 13º salário proporcional, salário família, os custos do processo, honorários advocatícios e indenização ao reclamante.272 Esse foi um dos processos analisados em que a conciliação deu-se através de um acordo que atendia grande parte das reclamações do trabalhador. Independente dos pareceres finais, os processos indicam que os trabalhadores passaram a vislumbrar, através das instituições, novas possibilidades de luta pelos 271 SOUZA, Edinaldo A. O.. Lei e Costume: Experiências de Trabalhadores na Justiça do Trabalho ( Recôncavo Sul, Bahia, 1940-1960).Dissertação de Mestrado em História: UFBA, Salvador, 2008, p 84. 272 Autos da Reclamação Trabalhista de José Silva Souza contra a Exportadora de Fumo Suerdieck S/A, formulada em 5 de outubro de 1966. APMSAJ, pasta de Reclamações Trabalhistas, de 1960 1970. 104 direitos sociais e a justiça funcionou como mediadora de tensões no espaço urbano. Um outro caso foi o de Vital Pereira de Souza, alfabetizado, solteiro, operário, residente na Rua Antonio Fraga reclamava contra José Esdras Diniz, proprietário da sapataria à rua Silva Jardim por pagar salário por peça, abaixo do salário mínimo da região, não receber repouso remunerado, e não gozar de férias desde 1954. Alegava ainda que o patrão só lhe dava sete ou oito peças para fazer por semana, quando ele tinha capacidade para fazer dez, e que terminava o serviço na sextafeira, ficando no sábado sem serviço. A defesa do patrão argumentava que pagava ao funcionário o que ele pedia e que este teria abandonado o trabalho e viajado para a capital, e quando de lá retornou, passou a se recusar a assinar as folhas de pagamento bem como receber os trabalhos que executava. Na primeira audiência realizada, não houve possibilidade de reconciliação, então o juiz passou a ouvir os depoimentos das testemunhas de ambas as partes. O processo terminou com um ofício assinado pelo advogado da empresa, Sr Almir Bastos e pelo Operário Vital Pereira de Souza, datado de 16 de julho de 1958, solicitando ao juiz a designação do dia e hora para lavratura de um acordo feito entre as partes, cujo resultado não consta nos autos.273 Nesse mesmo sentido, caminhou a reclamação de Mário Alves de Andrade, comerciário, brasileiro, solteiro, analfabeto, maior, contra o mesmo empregador, também proprietário da casa de negócio Bazar Diniz. O comerciário afirmava que desde 10 anos de idade era empregado do Sr José Esdras Diniz e sempre o considerou, pois o tinha como um bom protetor. Entretanto, no início de janeiro, depois de muito sofrer em seu estado de saúde, por estar de cachumba, o procurou para que fosse encostado ao Instituto, mas o seu protetor não concordou. Ao mesmo tempo teria recebido um aviso prévio que não fora assinado por seu empregador. A defesa do patrão recorreu à própria CLT no seu artigo 403, que proíbe o trabalho do menor de 14 anos e o Código Civil, no seu artigo 5º, que afirma serem absolutamente incapazes de exercer pessoalmente os atos da vida civil, os menores de dezesseis anos. Um dos principais argumentos foi afirmar não ser verdadeira a declaração do empregado quanto a ter começado a trabalhar desde os 10 anos de idade. Defendia que jamais fora procurado pelo empregado quando estava doente. 273 Autos da Reclamação Trabalhista de Vítor Pereira de Souza contra José Esdras Diniz, formulada em 4 de maio de 1953. APMSAJ, pasta de Reclamações Trabalhistas, de 1950 -1960. 105 Quanto ao aviso prévio, afirmou ignorá-lo e não ter autorizado ninguém a assiná-lo e que o reclamante jamais teria deixado de ser empregado e, tanto assim que as suas portas continuavam abertas ao reclamante. Ainda segundo a defesa, desse entendimento teria resultado o reclamante ir para o seu emprego pedir trabalho ao dito empregador, no que foi atendido. Porém, nesse dia o comerciário teria afirmado que não iria mais trabalhar, abandonando o emprego. Em nova audiência, em 8 de maio de 1953, as partes aceitaram uma proposta de conciliação feita pelo juiz, nas seguintes condições: indenização por parte do empregador na importância de CR$ 2.700,00 relativo a quatro anos de serviços, acrescido da quantia de CR$ 300,00, dando-se por encerrado o processo.274 Os processos se repetem. O alfaiate Genebaldo Ferreira Macedo, solteiro, maior, residente na Jueirana, empregado, desde abril de 1955, na Alfaiataria Elite do Sr. Ezequias de Almeida Sampaio, havia sido demitido em julho de 1957. Tendo protestado contra o empregador que teria deixado de cumprir alguns deveres para com o empregado, como pagamento ao Instituto de Aposentadoria, aviso prévio, indenização por tempo de serviço, salário mínimo inferior ao da região, horas extraordinárias, inclusive noturnas, férias, salário correspondente ao repouso remunerado nos domingos e feriados. Duas audiências ocorreram em que o empregado insistia na argumentação apresentada inicialmente. O patrão negava que existisse qualquer vínculo empregatício entre ele e o alfaiate, que apenas teria trabalhado durante quinze dias na sua alfaiataria, no mês de junho, período de grande demanda em virtude dos festejos juninos e que havia pago ao mesmo pela sua produção. Sem alcançar conciliação, após ouvir as testemunhas, o processo foi julgado em 7 de fevereiro de 1958, tendo condenado o reclamado ao pagamento do aviso prévio, indenização de antiguidade, férias e as custas da lei.275 Recorrer à justiça não deve ter sido uma iniciativa fácil, uma vez que esta decisão envolvia perdas e ganhos. É importante ressaltar algumas dificuldades que os trabalhadores possivelmente enfrentavam ao acessar a justiça, como: “ficar marcado” na cidade, o que diminuía as possibilidades de conseguir um novo emprego; o tempo que o processo podia levar até chegar ao final; e ainda as 274 Autos da Reclamação Trabalhista de Mário Alves de Andrade contra José Esdras Diniz, formulada em 4 de maio de 1953. APMSAJ, pasta de Reclamações Trabalhistas, de 1950 -1960. 275 Autos da Reclamação Trabalhista de Genebaldo Ferreira Macedo contra Ezequias de Almeida Sampaio, formulada em 11 de setembro de 1957. APMSAJ, pasta de Reclamações Trabalhistas, de 1950 -1960. 106 restrições às informações jurídicas, já que muitos trabalhadores eram analfabetos.276 Por outro lado, considerando o conjunto das queixas apresentadas pelos trabalhadores e os resultados dos processos analisados, era uma decisão necessária, diante do quadro de exploração apresentado. Ainda que o pagamento de salário abaixo do valor da região, a ausência de férias, do não pagamento de horas extras, do descanso remunerado do fim de semana, entre tantos outros direitos, apareçam nos processos como motivos das reclamações, colocar o patrão na justiça era mais comum quando o empregado havia sido demitido.277 Sendo assim, a demissão motivava e deixava o empregado mais à vontade para tomar essa decisão. Dava-se início então, a um novo episódio das lutas entre patrão e empregado, pois a experiência do dia a dia, relatada nos processos, já sinaliza situações pouco harmoniosas e até mesmo tensas entre eles. No contexto de re-significação de vivências que a cidade experimentava, naquela época, estavam incluídas alterações nas relações de trabalho em que o patrão aos poucos deixava de ser visto como o “bom protetor” e assumia cada vez mais o papel daquele que tinha obrigações legais para com os seus empregados. Na medida em que estas não eram cumpridas, os palcos da justiça podiam ser o cenário de um novo episódio envolvendo esses personagens. Apesar das hesitações dos trabalhadores, no momento que lhes fosse estrategicamente conveniente paternalistas 278 notadamente quando os tradicionais acordos de moldes não fossem eficientes - estariam dispostos a lançar mão de tais instrumentos para fazerem valer seus interesses perante seus patrões. SOUZA, Edinaldo A. O.. Op. cit., p 169 – 170. SOUZA, Edinaldo A. O.. Op. cit., p 170. 278 Aqui utilizo o termo paternalismo na perspectiva adotada por E. P. Thompson. Em “patrícios e plebeus”, apesar de considerá-lo um termo descritivo frouxo, e que pode levar à visão de uma “sociedade de uma só classe”, sugere que ele não deve ser abandonado por ser totalmente inútil. Mas, ao invés de indicar consenso, “sociedade de uma só classe”, resignação, ou inviolabilidade da hegemonia cultural e das estratégias de poder e controle social dos “de cima”, deve pressupor reciprocidade, conflito, disputas, trocas, negociações entre “os de baixo” e “os de cima”, onde cada qual procura obter vantagens; formulam projetos próprios e interpretam o mundo a partir de sua própria visão de mundo. 276 277 107 CAPÍTULO III: ESPAÇOS DE LAZER Voltamos hoje, num êxtase de contentamento, a informar ao público – que em entrevista ao nosso diretor com sua Excia. o Sr. Prefeito, foi-nos por este assegurado, que, em face do seu entendimento em dias da semana finda, com a direção da Cia de Energia da Bahia, dentro de poucos meses teremos a nossa cidade servida por aquela grande e poderosa empresa de eletricidade do norte do país. Acontecimento desta ordem concorre muito para elevação do nome de nossa terra. Consignamos, pois, esta auspiciosa notícia, levando ao povo os nossos parabéns pela era de eletricidade, no despontar feliz de seus raios brilhantes, trazendo aos santantonienses um complexo de grandezas, para maior conforto dos nossos labores, elegância das nossas ruas e maiores possibilidades à indústria, ao comércio desta gleba tão justamente elogiada por quantos a visitam. (Trecho de A Luz – Nova Era de Progresso. O Palládio, 21 de março de 1949, p 1.) 108 3.1 A rua – espaço de encontros e festas A introdução da energia elétrica no cotidiano das grandes cidades brasileiras, no final do século XIX e nas primeiras décadas do século XX, provocou múltiplas transformações na vida pública e na vida privada. Além de afetar a cultura material, condicionando significativas alterações no cotidiano urbano e de forma iniludível, nos costumes, nas práticas e nos hábitos da população. Esse processo, marcado por inclusão e exclusão social, apresentou variações de ritmo e intensidade nos núcleos urbanos que compunham as diferentes regiões brasileiras. Isto pode ser observado na dinâmica da implantação dos avanços tecnológicos, da propagação das alterações e melhoramentos do espaço urbano e da oferta dos serviços proporcionados pela nova fonte de energia. Deslumbramento e euforia popular marcaram o aparecimento da eletricidade, tida como a representação do moderno, do futuro e do progresso. Um fenômeno que foi acompanhado pela transformação de hábitos, comportamentos e costumes, desdobramentos das inovações tecnológicas em curso.279 As novas máquinas e utensílios elétricos, aos poucos, ofereceram maior segurança e conforto às pessoas, com reflexos sobre quase todos os aspectos do cotidiano, inerentes à vida social e doméstica, incluindo o lazer, o trabalho, a saúde, a alimentação. Além da iluminação propriamente dita – pública ou doméstica –, e dos meios de transporte, a energia elétrica embasava e tornava possível a proliferação do uso de eletrodomésticos e o desenvolvimento dos principais meios de comunicação, como o telégrafo, o telefone e o rádio. Portanto, fica evidente que “nenhuma outra energia foi capaz de conjugar de forma tão eficiente múltiplas funções como a eletricidade, tornando acessível uma gama nunca vista de novas técnicas e de novos produtos”.280 De acordo com Cid Teixeira, “a cidade de Salvador conheceu a energia elétrica em 1885”, através da experiência feita por um professor da Faculdade de Medicina que utilizou pilhas e iluminou, por algumas horas, os cômodos e a área fronteiriça do prédio da Escola do Terreiro, causando espanto aos alunos e ao povo aglomerado na rua. Com a expectativa criada na população, aumentava a pressão 279 CENTRO DE MEMÓRIA DA ELETRICIDADE NO BRASIL. A vida cotidiana no Brasil moderno: a energia elétrica e a sociedade brasileira ( 1880-1930). Rio de janeiro, 2001, p 12 e p 27 280 Idem, p 14. 109 sobre o poder público para que fosse instalada a energia elétrica servindo na iluminação pública e privada e nos transportes da capital. Nas cidades do interior, porém, a eletricidade chegou num ritmo mais lento. Em outubro de 1920, foi inaugurada a Usina Hidroelétrica de Bananeiras, localizada em Bananeiras, um pequeno distrito de Paulo Afonso. Três décadas após, em meio às obras de infraestrutura para a implantação de centros industriais no Recôncavo, os anos 1950 ficariam marcados pela crise energética, provocada pelo aumento de consumo, causado pela conjugação dos processos de ampliação da urbanização e de industrialização que, conseqüentemente, ampliaram a difusão dos bens de consumo duráveis, que precisavam de eletricidade para funcionar.281 De um modo geral, na Bahia, desde a segunda metade da década de 1950, as administrações municipais sofriam grandes dificuldades para atender ao crescente consumo de energia elétrica de suas populações. Essa situação se refletiria em Santo Antonio de Jesus nos constantes “apagões” e nas normatizações que limitavam os horários de funcionamento da iluminação pública na cidade. Em 1957 foi organizada uma comissão de planejamento econômico que concluiu ser necessária a criação de uma concessionária de distribuição de energia, com o objetivo de criar um programa no setor para o interior do estado. Através da Lei estadual número 1196, de 1959, o governador do Estado da Bahia autorizou a criação da Cia de Eletricidade do Estado da Bahia, COELBA, cujo objetivo era prestar serviços essenciais de energia elétrica à comunidade do estado. Entretanto, só em maio do ano seguinte, o governo federal concedeu autorização para o seu funcionamento.282 Em 1960, foi aprovado o Plano de Eletrificação do Estado da Bahia, elaborado pelo Departamento de Energia da Secretaria de Viação e Obras Públicas, executado por intermédio da COELBA, que garantia a destinação, durante dez exercícios, de pelo menos 5% da renda tributária do Estado para a sua execução.283 Para entender o processo que envolveu a chegada da energia elétrica em Santo Antonio de Jesus, parece necessário recuar algumas décadas no tempo. Em 1925 a cidade passou a usufruir os serviços precários de luz e força, fornecidos pela Empresa Fabril S/A de Nazaré das Farinhas. Antes, a iluminação da cidade era feita 281 TEIXEIRA, Cid. História da energia elétrica. Publicações e Publicidade, 2005 pp.68 e 187. Idem, op. cit., p 187. 283 Diário Oficial do Estado da Bahia de 6 de agosto de 1960. 282 110 por meio de lampiões a gás. Em 1929, a prefeitura adquiriu um motor de fabricação alemã, com capacidade de 200 kVA, que funcionava a óleo diesel e inaugurou uma usina termoelétrica em que era usado um gerador que funcionava das 18:00 às 22:00h.284 Entretanto, isso apenas garantiu pequenos melhoramentos ao serviço. Nos anos que se seguem, o fornecimento da energia na cidade continuava irregular, sujeito a freqüentes apagões e constantes interrupções para reparos. A situação era freqüentemente denunciada em jornais locais285 e um tema central dos discursos e promessas dos políticos do município. Nos anos 1950, a cidade de Santo Antonio de Jesus constituía-se de 62 logradouros, dos quais 15 eram pavimentados e 32 possuíam luz elétrica.286 Com a instalação de uma máquina a vapor, na Usina Geradora da Empresa Luz e Força, o serviço de energia elétrica pública e particular ultrapassou os limites do centro da cidade e estendeu-se a ruas e bairros mais afastados, como o São Benedito, a Avenida Luiz Viana, as ruas das Queimadas e Expedicionário. Ainda nessa década, o serviço de iluminação pública foi ampliado até as 5:00 horas da manhã, dobrando assim o trabalho desempenhado pelos funcionários da referida empresa.287 Em 1960 a prefeitura municipal assinou um convênio com a Companhia de Eletricidade da Bahia, mediante o qual esta passaria a distribuir, fornecer e explorar a energia no município;288 contudo, isso somente se concretizaria dois anos depois, com a inauguração da linha de transmissão que ligaria a cidade à Usina Hidrelétrica de Bananeiras. A chegada da energia elétrica às ruas foi marcada por festividades. Assim rememora, o Sr. José Souza Sampaio, popularmente conhecido por Zé de Candu, que mora na cidade desde que nasceu. Conforme lembra, Quando a luz iluminou isso aqui, parecia um carnaval, saiu todo mundo das casas. Cada um pras suas ruas, quer dizer era as ruas do São Benedito, era Andaiá, era rua assim mais próxima. [...] E aí foi uma festa, esse pessoal manheceu o dia, manheceu o dia ali, nunca tinha visto uma boniteza daquela.289 284 SALES, Geraldo P. Santo Antonio de Jesus - a cidade que encontrei. p 47 e 48. Ver os periódicos locais: O Palládio, A Voz das Palmeiras e O Detetive. 286 Dados do Censo de 1950. Enciclopédia dos Municípios Brasileiros. Rio de Janeiro XXI volume. 287 Ver O Palládio: O caso da Luz, 03 de fev de 1949; A Luz – nova era de progresso, 21 de março de 1949; Homenagem a Antonio Fraga , 14 de abril de 1950. Ver ainda Decreto nº 6 de 22 de abril de 1958. Livro de Leis, Decretos e Portaias de 1956- 1963. APMSAJ. 288 Lei nº 17 de 1960. Livro de Leis, Decretos e Portarias de 1956 – 1963. APMSAJ. 289 Depoimento do Sr. José Souza Sampaio, em junho de 2007, 62 anos de idade, morador da cidade desde 1946. 285 111 Nas grandes cidades brasileiras, antes da ampliação da iluminação, as ruas eram caracterizadas, nos discursos de médicos, autoridades públicas e policiais, como lugares de perigo, insalubridade, violência e insegurança. Elas só teriam assumido efetivamente a função de locais de reunião, após a eletricidade, quando se consolidou uma relação entre segurança e iluminação noturna. Em Santo Antonio de Jesus, em meados do século XX, ainda não era a violência que afastava os moradores das ruas à noite e os levava a recolherem-se cedo e sim a falta de opção de lazer público e algumas crenças sobrenaturais, geralmente associadas à noite e à escuridão. Através da memória oral dos entrevistados, percebe-se que o medo noturno, nesse momento, relacionava-se muito mais às lendas, superstições e histórias de assombração que habitavam o universo mental, integrando o conjunto de crenças e costumes locais. O lobisomem, a mula sem cabeça, as visagens que são assombrações ou almas penadas, faziam parte desse universo sobrenatural, nas noites escuras dos santoantonienses. Portanto, as mudanças nos códigos culturais, proporcionadas pela eletricidade, refletiram-se também na superação dos supostos perigos que a noite representava e a vida noturna “começava a crescer na proporção em que se intensificava a expansão da iluminação elétrica, promovendo progressivamente a ocupação popular do espaço público”.290 No bojo de tais mudanças, a utilização do tempo noturno ganhava novos significados. Aos poucos superava-se o costume de dormir “na boca da noite” e apesar dos limites impostos pelos apagões, ampliou-se a vivência noturna com a prática de atividades diversas. As ruas e praças iluminadas permitiam que as reuniões, os bate-papos e as paqueras se estendessem até mais tarde nos jardins; as sessões de cinema ampliaram-se. Nesse sentido, a luz artificial permitiu também, “escapar à dominação do ritmo dos dias e das noites, aos comandos do calendário”, na medida em que as atividades noturnas passavam a depender apenas “da artificialidade e da nova codificação da luz”.291 A lógica do tempo e do espaço passava a ser alterada com o processo de urbanização, criando outras lógicas, outro ritmo de organização e utilização do tempo/espaço em que já era possível, por exemplo, trabalhar ou divertir-se à noite, nas ruas, em casa ou em outros espaços 290 CENTRO DE MEMÓRIA DA ELETRICIDADE NO BRASIL. A vida cotidiana no Brasil moderno: a energia elétrica e a sociedade brasileira ( 1880-1930). Rio de janeiro, 2001, p 127. 291 RONCAYOLO, Marcel. Transfigurações noturnas da cidade: o império das luzes artificiais. In:Projeto História.Revista do Programa de Estudos Pós-Graduados em História e do Departamento de História da PUC- SP. São Paulo, nº 18, Educ, 1999, p 97-101. 112 de lazer. Tais dimensões são aqui compreendidas não com um sentido único e objetivo, mas como conceitos que são criados necessariamente através de práticas e processos materiais que servem à reprodução da vida social. Na sua reflexão sobre a experiência do tempo e do espaço, Harvey percebe a importância destes, como mediadores, entre o dinamismo do desenvolvimento histórico-geográfico do capitalismo e complexos processos de produção cultural e transformação ideológica.292 Em outro momento de sua fala, Sr. Zé de Candu assim nos relatou seu primeiro contato com a cidade iluminada: “eu corri a cidade de ponta a ponta. Eu ainda era menino e fiquei fascinado com aquele clarão todo, acostumado a ver só escuridão. Corri feito um louco por todas as ruas que tinham luz”.293 Fascinado com o brilho das luzes, provavelmente experimentava também uma maior sensação de liberdade; poderia desfrutar mais tempo do espaço da rua, agora ampliado com outras opções de lazer. As possibilidades geradas com a introdução dessa nova forma de energia, provocam reflexões sobre o papel por ela desempenhado na vida social cotidiana. Que significados simbólicos a conquista da luz elétrica assumiu, na mudança de hábitos e de práticas sociais, tanto públicas quanto privadas, na cidade de Santo Antonio de Jesus? Certamente, preocupações relativas à circulação e à remodelação do espaço público, concretizadas através de obras públicas, encurtavam o tempo e as distâncias, permitindo a aceleração da vida social e o trânsito maior das pessoas em espaços diversos. Entretanto, de acordo com as falas dos depoentes, isto não se fez sentir simultaneamente em todas as áreas da cidade, nem foi experimentado de forma homogênea por todos os seus habitantes. Algumas ruas tornavam-se mais atraentes e sedutoras com as luzes; firmavam sua função principal de via de circulação e lugar de reunião, o que reforçava a exigência de regulamentações e melhorias. Ao mesmo tempo em que os responsáveis pelos projetos de modernização urbana buscavam excluir ou afastar das áreas centrais atividades incompatíveis com esse processo, como por exemplo, o comércio informal dos ambulantes, a figura dos aguadeiros, a presença de animais e pedintes, vistas muitas vezes como desorganizadoras da cidade. 292 HARVEY D..Condição Pós-moderna, Edições Loyola, São Paulo, 1992, p 189. Depoimento do Sr. José Souza Sampaio (Zé de Candu), já citado. 293 113 Para garantir rapidez e racionalidade na re-apropriação e re-significação dos espaços, recorreu-se à pavimentação, aos alargamentos, à iluminação, à limpeza e ao afastamento dos despossuídos das áreas centrais, pois sujeira, doença e miséria não cabiam na cidade que se urbanizava. Foi nesse processo que ocorreu a ampliação de bairros considerados periféricos e desprovidos de assistência dos poderes públicos. A imagem apresentada a seguir testemunha melhoramentos realizados nas proximidades centrais: Figura VII: Travessa Rio Branco, atual Travessa 15 de novembro Fotografia do arquivo pessoal de Sr. Edivaldo Oliveira Souza A fisionomia do logradouro em destaque reúne alguns melhoramentos urbanos, como a presença de calçamento, limpeza, passeios, meio-fios e, sobretudo, postes de energia elétrica, que nos horários de funcionamento, iluminavam as ruas, acentuando, ainda mais, tais características. Além de ser o local de trabalho dos vendedores ambulantes, lugar de passagem dos transeuntes nos seus deslocamentos cotidianos, as ruas eram também espaços de lazer e de sociabilidade; local do encontro, dos parques, das festas, procissões, quermesses, micaretas e comícios. Esses eventos reuniam grande parte da população e eram freqüentemente divulgados nos periódicos locais O Palládio, A Voz das Palmeiras e O Detetive. No comício do Partido Republicano santoantoniense, que apresentou Antonio Fraga como candidato 114 à Câmara dos Deputados e Justiniano Rocha Galvão para prefeito do município, em 1950, a Praça Padre Mateus ficou repleta de pessoas; tanto no coreto, onde estava a diretoria do partido, como em toda adjacência da praça, havia abundância de luz e entusiasmo prolongando-se até a meia noite.294 Era nas principais ruas, como a Praça Luiz Viana, a Rua Silva Jardim, a Rua 15 de Novembro, a Rua Sete de Setembro, entre outras, que aconteciam desfiles em comemoração a datas cívicas, caminhadas e procissões religiosas, sempre acompanhadas pelas filarmônicas locais Amantes da Lira e Carlos Gomes.295 Pari passu a essas múltiplas novidades urbanas, experimentadas em Santo Antonio de Jesus, as ruas mudavam a sua aparência com a expansão da iluminação pública, a conservação de logradouros, os serviços de calçamento e pavimentação. Antigamente a Rua do Pau Preto [atual Expedicionário] não reguiava. Ninguém lhe falava no nome. Imundície, águas estagnadas aqui e ali, casebres sem forma nem estilo, enfim figurava como a via pública da cidade mais desprezível. Hoje é uma artéria urbana limpa, com prédios bem regulares, habitados por famílias, com um aterro ótimo, bem executado, oferecendo assim, um aspecto decididamente agradável.296 A chegada do calçamento na rua era motivo de comemoração para os moradores. Segundo a professora Maria da Conceição, “quando chegava [o calçamento] na porta, tinha que dar uma feijoada. Era uma folia”.297 Nessas ocasiões os laços de vizinhança eram intensificados. A prática de oferecer alimentação aos vizinhos além de ser uma forma de congraçamento pela conquista alcançada, remete-nos a outras formas de sociabilidade, sobretudo predominantes entre os moradores do campo, que através de mutirões ou adjutórios, juntavam-se para construir casas, realizar plantações e colheitas, e em retribuição à ajuda recebida, oferecia-se os “comes e bebes”. A rua também era o espaço de moradia dos loucos e mendigos, conforme freqüentemente denunciava a imprensa local. Em 1950, um colaborador do periódico O Detetive, narrou que ao transitar por uma das ruas da cidade deparou-se com um pobre velho pedindo esmola e que este, indagado sobre onde morava, lhe teria respondido que “[...] minha casa é muito grande, meu senhorzinho, é a que vosmecê 294 “Grande comício”. O Detetive. Santo Antonio de Jesus, 30 de julho de 1950. “Festa do Senhor do Bonfim”. O Detetive. Santo Antonio de Jesus, 28 de janeiro de 1951, p 2. 296 “Uma sugestão”. O Palládio. Santo Antonio de Jesus, 29 de setembro de 1948, p 2. 297 Depoimento de D. Maria da Conceição Souza Silva, em dezembro de 2007, de 66 anos de idade, moradora da cidade desde 1944. 295 115 está vendo, olhe para cima que o senhor verá iluminada com as estrelas; este é o meu teto”.298 Em outra edição do mesmo jornal consta que uma louca que vivia pelas ruas, afirmava que morava “debaixo do céu e dorme sobre o leito duro e frio dos passeios públicos, dos mercados, das estações, igrejas e casas comerciais de largas marquises”.299 A multiplicidade de significados atribuídos à rua fazia dela um espaço democrático, que precisava ser “civilizado” para proporcionar “novas áreas e estabelecimentos voltados para o lazer público”.300 O jardim era o lugar preferido pelos mais moços que, após o dia de trabalho, reuniam-se para os bate-papos e as paqueras até às 10:00 horas da noite, quando o serviço de iluminação era desligado.301 Na praça, também eram armados os parques de diversões que, com suas luzes coloridas a piscar, atraíam as crianças para brincar no carrossel, na roda gigante e reunia a população em busca de distrações. Um registro do bem humorado periódico, O Detetive, ilustra como os parques de diversões fascinavam as pessoas e atraíam à praça: Salomão chorar desbragadamente porque o Parque não quis continuar na Praça Padre Mateus está certo, mas dizer que vai deixar a casa de Moisés Barreto, a fim de acompanhar a Roda Gigante até onde ela for não está certo.302 O encontro festivo nas ruas também dava-se na tradicional “Segunda-Feira Gorda”, no mês de janeiro, antes do carnaval. A diversão popular começava às 4 horas da madrugada, quando a população santoantoniense era despertada pelo Clube do Silêncio. No decorrer do dia, grupos mascarados apresentavam-se, caminhões ornamentados transportando pessoas fantasiadas e uma alegre charanga fazia a animação dos “populares”.303 Outra ocasião de grande animação era a Festa de São Benedito, rememorada por Sr. Zeca Vieira, Sr. Irênio e Sr Zé de Candu como uma das melhores da cidade. Antes da chegada da energia elétrica, os moradores do bairro improvisavam uma iluminação feita com varas e gomos de bambu abastecidos de querosene. Essa iluminação clareava o Largo de São Benedito durante toda a noite 298 “O Miserável”. O Detetive. Santo Antonio de Jesus, 22 de outubro de 1950, p 4. “A louca”. O Detetive. Santo Antonio de Jesus, 23 de abril de 1950, p 3. 300 CENTRO DE MEMÓRIA DA ELETRICIDADE NO BRASIL. A vida cotidiana no Brasil moderno: a energia elétrica e a sociedade brasileira ( 1880-1930). Rio de janeiro, 2001, p 127. 301 Depoimento de D. Maria da Conceição Souza Silva, já citado. 302 “Não está certo...” O Detetive, Santo Antonio de Jesus, 17 de junho de 1951, p 4. 303 “Segunda-Feira Gorda”. O Detetive. Santo Antonio de Jesus, 28 de janeiro de 1951. 299 116 e mantinha as pessoas na rua até o amanhecer. Além da face intensamente religiosa, com a procissão e as missas, no largo ficavam as barracas que vendiam comidas e bebidas. Variados brinquedos e jogos eram montados para a diversão de adultos e crianças: pau-de-sebo, quebra-pote, roletas. O jogo da preá era o preferido de Sr. Zé de Candu. Havia ainda muito forró e as tradicionais apresentações da Marujada, da Burrinha e do Bumba-Meu-Boi.304 Como recorda o Sr. José Vieira, A festa era uma tradição tão grande que o povo enlouquecia tudo [...] Só se via gente viajar pra Salvador pra buscar gelo [...] Chegava aqui na estação de trem tirava as “barrica”, os bujão de gelo pra poder gelar a cerveja e refrigerante pra vender na festa.305 Considerada uma festa tradicional, freqüentada por moradores locais, de cidades vizinhas e até de Salvador, a Festa de São Benedito mobilizava uma grande quantidade de pessoas que, além da diversão, buscavam ganhar algum dinheiro. Eram os vendedores ambulantes. Alguns viajavam para a capital em busca do gelo, que chegava de trem e era transportado dentro de bujões de plástico com pó-deserra, para manter a conservação por até três dias e garantir a cerveja e o refrigerante gelados para serem vendidos na festa, quando ainda não se podia dispor da energia elétrica. A tarde de 9 de abril de 1950 não seria como outra qualquer para os moradores do arrabalde de São Benedito. Naquele domingo, de tarde alegre e céu azul, às 16 horas, a comunidade local homenageava o então prefeito Antonio Fraga pela ampliação da rede de iluminação pública até o largo.306 A partir daquele dia, a Praça de São Benedito seria mais um lugar de encontros e bate-papos à noite e já não seria mais preciso ir tão longe para se obter bebidas geladas. Nas homenagens ao padroeiro Santo Antonio e ao Senhor do Bonfim, as procissões percorriam as ruas, ornamentadas apropriadamente para essas ocasiões com flores, plantas nas portas das casas e luzes coloridas. Ruas iluminadas significavam noites mais longas, pois o lazer podia estender-se até mais tarde. Nas tradicionais micaretas, 304 Ver depoimentos de José Santos Vieira, Irênio Santos Pereira e do Sr. José Souza Sampaio, já citados. 305 Depoimento do Sr. José Santos Vieira, já citado 306 “A Festa de domingo”. O Detetive, Santo Antonio de Jesus, 16 de abril de 1950, p 1. 117 as Quatro esquinas, que é sempre o ponto central nas festas desse gênero, exibia seleta e numerosa assistência, com extraordinário serviço de alto-falante, dando banhos de trovoada nos ouvidos de todo mundo.[...] O Largo da 2 de Julho e da Felix Gaspar, como arco-íris noturno, apresentava extensa e magnífica rede de lâmpadas multicores, como incentivo aos bailes que se prolongaram até a madrugada.307 A iluminação utilizada nas festas era um convite aos moradores para permanecerem na rua até mais tarde. Além das “lâmpadas multicores”, a eletricidade estava presente nos serviços de alto-falante tocando discos e na oferta de serviço de “gelados”. Essas novidades seduziam muitas pessoas. As lembranças desses eventos e o referencial das “Quatro Esquinas”, como principal lugar das festas, da animação e do comércio, estão também registrados na memória de Sr. Eco, que abriu uma alfaiataria ali próximo, em 1953. Ele recorda que nesse período “tinha cada micareta danada“, que no local “era tudo casa de morada, mas depois foi modificando, aí transformou tudo em comércio”.308 Ao pesquisar sobre a Baixa dos Sapateiros, Milton Santos observou como naquela artéria urbana da cidade de Salvador, “o papel residencial foi progressivamente sendo substituído pelo comercial” e concluiu que “a rua tem os seus ritmos”309. Já no estudo sobre a cidade do Rio de Janeiro, João do Rio defendeu que “a rua tem alma”.310 Nessa perspectiva, pode-se afirmar que o ritmo acelerado, a animação e a euforia das micaretas faziam parte da alma das “Quatro esquinas”. Animação não faltava durante o mês de junho. A Terra das Palmeiras ganhava um clima mais festivo, como escreveu Sr. Amarílio Orrico, jornalista de ofício e ex-vereador da cidade: Ao despontar de primeiro de junho já a cidade era despertada com o espoucar de foguetes anunciando o início das festividades em louvor ao 307 “A Mi-Careta se apresentou como pode”. O Detetive, Santo Antonio de Jesus, 23 de abril de 1950, p 1. 308 Depoimento do Sr. Antonio Santana Vieira, em 2 de novembro de 2007, 78 anos de idade, morador da cidade desde que nasceu. 309 Em conferência pronunciada por Milton Santos no Instituto Geográfico e Histórico da Bahia, no dia 22 de março de 1957, o geógrafo identifica a função residencial na Baixa dos sapateiros, como “residual” e “com forte tendência a desaparecer”. SANTOS, Milton. A Baixa dos Sapateiros. In REVISTA DO INSTITUTO GEOGRÁFICO E HISTÓRICO DA BAHIA, Nº 81, 1957, p.78. 310 RIO, João do. A alma encantadora das ruas. Rio de Janeiro. Secretaria Municipal de Cultura, 1987. Biblioteca Carioca 4. 118 glorioso Padroeiro, que, além das oblatas na Igreja Matriz, secundavam as trezenas rezadas em duas ou três casas em cada rua.311 A Praça Padre Mateus, enfeitada de bandeirolas, era o cenário principal para o Trezenário de Santo Antonio, que acontecia na Igreja Matriz de 1º a 13 de junho, com a procissão que percorria algumas ruas da cidade, cuidadosamente ornamentadas para a ocasião, encerrando as homenagens ao padroeiro. O dia de São João era de festa no fim da Rua 7 de Setembro. Era muito concorrida a brincadeira do pau-de-sebo. O tronco de uma árvore era descascado, revestido de sebo e fincado ao chão. As pessoas tentavam subir para pegar prêmios, como dinheiro e brinquedos, colocados bem no alto do tronco, mas muitos escorregavam para garantir as gargalhadas dos presentes; na brincadeira do quebra-pote, dinheiro, balas e outros prêmios eram colocados dentro de um pote de cerâmica preso a uma corda. Os participantes individualmente, com os olhos vendados, eram rodados até perder o senso de orientação. Em seguida, tentava-se localizar o pote e quebrá-lo com um porrete. O auge da brincadeira era o momento em que este era quebrado e os prêmios espalhavam-se pelo chão, sendo disputados por todos; em boca-deforno, uma pessoa, que era o mestre da brincadeira, mandava as crianças fazerem uma tarefa e aquela que não conseguia realizar a ordem, “tomava bolo”; na corrida de ovo, um ovo de galinha era colocado em uma colher presa pelo cabo entre os dentes do participante. O vencedor era aquele que conseguia cruzar a linha de chegada sem deixar o ovo cair. Todas essas diversões eram organizadas e patrocinadas por uma comissão formada por pessoas ligadas ao comércio e empresas locais. No São João, além do movimento de pessoas de porta em porta, que visitavam vizinhos, parentes e amigos, aquecidos pelo calor das fogueiras, embalados pelo som do forró, podia-se deliciar com os tradicionais quitutes juninos, como canjica, bolo de milho e aipim, amendoim, laranjas, licor de jenipapo. Tudo isso acompanhado pelo brilho reluzente dos fogos de artifício, que invadiam as ruas da cidade. Cenário privilegiado do convívio social, as ruas eram espaços de muitos encontros e, sobretudo, de lazer público dos moradores. Destarte, as preocupações 311 “Meu São João no tempo de menino”. Jornal Reconvalle, Ano VIII, nº 51, 10 de julho de 1992, p. 2. 119 com a limpeza e a higiene faziam parte da pauta política do Poder Legislativo local. Melhoramentos nos diversos jardins da cidade,312 construção de um bueiro na Praça Padre Mateus para nivelar o local,313 aquisição de um caminhão basculante para o serviço de limpeza pública, constituem alguns dos projetos e requerimentos encaminhados pela Câmara dos Vereadores nas décadas de 1950 e 1960.314 As constantes investidas para manter as ruas limpas e higienizadas coincidem com a ampliação do serviço de energia elétrica na cidade. Além da iluminação deixar as ruas mais expostas, o que contribuiu para acentuarem-se os cuidados com a sua aparência, o aumento da freqüência e da permanência de pessoas nelas, pressionava para a efetivação dos melhoramentos. Nos anos 1960, o Código de Posturas Municipais estabeleceu regulamentos que deviam ser seguidos na organização dos logradouros públicos, como nivelamento, alinhamentos, nomenclatura, numeração, arborização, ajardinamento, colocação de anúncios, ocupação do espaço, circulação urbana, entre outros. Ainda que se possa afirmar que grande parte das medidas era “bem-intencionada e buscava beneficiar a população”, são notáveis as intenções normativas de controle social do espaço público pelo poder municipal.315 Além disso, como afirmou Marins ao analisar os primeiros anos da República na cidade do Rio de Janeiro, aqui também buscou-se “estabelecer a caracterização dos espaços de abrangência pública, reservada à circulação e lazer controlado,” ao tentar limitar “todos os sujeitos a uma mesma gramática de comportamento”.316 Entre 1964 e 1966, na documentação utilizada, observam-se muitas solicitações de licença, alinhamento e aprovação de planta para construção de casas, além de metragens de meio-fios para a construção de passeios de propriedades particulares.317 Tais solicitações eram feitas ao chefe de fiscalização, encarregado de levar ao conhecimento do prefeito, informações diárias sobre a cidade. Para tanto, todos os dias, o chefe 312 Ata da Seção da Câmara dos Vereadores de 19 de novembro de 1951. ACMSAJ. Ata da Seção da Câmara dos Vereadores de 29 de setembro de 1953. ACMSAJ. 314 Projeto nº 12/63. Livro de Leis, Decretos e Portarias da Câmara dos Vereadores de 1963. ACMSAJ. 315 Analisando a fase inicial de consolidação da República na cidade do Rio de Janeiro, Carvalho observou que o Código de Posturas de 1890, bem como as reformas implementadas no período, regulavam em pormenores várias atividades cotidianas e revelava fortes preocupações com o controle da população. CARVALHO, José Murilo de. Os Bestializados: o Rio de Janeiro e a República que não foi. São Paulo. Cia das Letras, 1987, p 35-36. 316 MARINS, Paulo César Garcez. Habitação e Vizinhança: limites da privacidade no surgimento das metrópoles brasileiras. In: Nicolau Sevcenko (org.) Fernando A. Novaes (coord): História da vida Privada no Brasil. São Paulo: Cia. das Letras, 1998, p 136. 317 Livro de Registro Diário do Expediente do Prefeito de 1964 a 1966. APMSAJ. 313 120 escalava um fiscal que devia percorrer as ruas da cidade e anotar as necessidades, bem como fiscalizar construções e exigir licença.318 Morar na cidade significava, também, submeter-se ao cumprimento de normas e, em caso contrário, ao pagamento de multas à administração municipal. Nesse sentido, Sr. Adelino Assis, de 85 anos de idade, nascido no município de Conceição do Almeida, recorda o dia em que foi atravessar pelo meio do jardim novo, construído na Praça Padre Mateus, empurrando o carrinho no qual vendia mercadorias de porta em porta, quando um fiscal municipal o abordou para informálo que era proibido passar por ali. Para evitar a punição prevista em lei, ele, muito respeitosamente, respondeu que prometia não passar mais por ali, mas que “voltar, não ia não”.319 O Sr Adelino seria enquadrado no artigo 121 do Código, o qual determinava que os vendedores ambulantes, mercadores e carregadores não podiam transitar pelos passeios, ou neles estacionar, a não ser o tempo necessário para servir aos consumidores.320 Entretanto, pelo menos naquele momento, a sua palavra empenhada foi suficiente para convencer o fiscal a deixá-lo passar sem recorrer à aplicação da multa. A disposição de padronizar os comportamentos no espaço urbano por parte do poder instituído em Santo Antonio de Jesus, não destoa muito do conjunto de iniciativas empenhadas pelos órgãos públicos em Salvador e em várias outras cidades do mundo, intentando “criar dispositivos mais eficientes de controle da multidão de homens pobres e trabalhadores, de modo a normatizar a vida urbana”.321 Mas, a pretensão de criar espaços homogêneos, com regras definindo o uso dos espaços urbanos, podia ser posta em xeque por possíveis transgressões de seus moradores, ao inscreverem através de suas práticas outros rumos para a cidade. Assim, segundo especificidades locais, algumas vivências, experimentadas nas casas, nas ruas ou em outros espaços de lazer, estavam impregnadas de intenções de padronização, entretanto, os sentidos e significados atribuídos pelos diversos sujeitos, nesse processo, nem sempre direcionaram-se para esse fim e muitas vezes provocaram deslocamentos do modelo totalizador de cidade planejada. Por outro lado, percebe-se a extensão da iluminação como uma medida de grande 318 Livro de Leis, Decretos e Portarias de 1963. Portaria nº 6/63, de 9 de abril de 1963.APMSAJ. Depoimento do Sr. Adelino Silvério de Assis, em 7 de setembro de 2008. 320 Lei nº. 66 de 4 de dezembro de 1965. Art. 121. APMSAJ. Código de Posturas de 1965. 321 JULIÃO, Letícia. Belo Horizonte: itinerários da cidade moderna. BH Horizontes Históricos, Eliana F. Dutra (org), BH, C/Arte, 1996 p.55 apud FONSECA, Raimundo Nonato da Silva. "Fazendo fita":cinematógrafos, cotidiano e imaginário em Salvador, 1897-1930. Salvador: EDUFBA, 2000. 319 121 aprovação pelos moradores, que se apropriaram das ruas durante a noite intensificando a sua função primordial de espaço de encontros. 3.2 A casa Na década de 1950, quando a iluminação pública ampliou-se para alguns bairros da cidade que ainda não desfrutavam desse serviço, poucos domicílios particulares dispunham de energia. Embora o número de consumidores ainda fosse bastante restrito, havia algumas regras que precisavam ser seguidas para garantir a manutenção do fornecimento nos domicílios. Assim, a Companhia Hidro Elétrica Fabril de Nazaré, que atendia Santo Antonio de Jesus, informava aos consumidores que: Proceder-se- à em cada mês uma fiscalização nos limitadores e em caso de violação nos selos ou no tubo flexível será suspenso incontinente o fornecimento de luz. Outrossim, o consumidor só poderá ter em sua instalação o número de velas correspondente ao seu contrato e sendo encontrada quantidade superior de lâmpadas, cobrar-se-à pelo número de velas excedidas, isto é, as instalações sem limitadores.322 As medidas de fiscalização adotadas, além de combater as fraudes, tentavam impedir que se ultrapassasse o limite de consumo permitido às casas, baseado na quantidade de lâmpadas, o que poderia provocar a interrupção do serviço, já que o equipamento da Companhia possuía uma capacidade reduzida, que não suportaria o crescimento dessa demanda. Convém lembrar que ainda não havia eletrodomésticos como televisores e refrigeradores ligados à rede elétrica, apenas algumas lâmpadas com “aquela luzinha fraca e com hora certa pra desligar”.323 O número de prédios existentes na cidade em 1955 era de 3.411; dentre os quais apenas 900 eram iluminados à eletricidade.324 De acordo com o censo de 1960, dos 7.115 domicílios particulares permanentemente ocupados, apenas 846 322 “Serviço de luz”. O Palládio. Santo Antonio de Jesus, 16 de outubro de 1941. Depoimento de Sr. José Elias Silva Santos de 91 anos de idade. Entrevista realizada em 2 maio de 2008. 324 Enciclopédia dos Municípios Brasileiros , 2 de julho de 1958. Rio de janeiro XXI Volume. 323 122 possuíam energia elétrica.325 É importante ressaltar que os dados ora apresentados referem-se a períodos anteriores à inauguração da linha de transmissão que ligou a cidade à Usina Hidrelétrica de Bananeiras, por intermédio da COELBA, o que pode justificar o alcance restrito do serviço no espaço privado do lar, além da taxa fixa de fornecimento criada também com esse fim.326 Em 1962, quando a energia fornecida pela COELBA efetivou-se no município, o número de consumidores cresceu de forma substancial para 4.074. Foi a partir daí que os eletrodomésticos passaram a fazer parte efetivamente da casa do santoantoniense, como relata D. Conça: Em 1964 compramos uma televisão, eu já era casada. Era uma festa, os vizinhos iam assistir, já havia até lugares reservados. Dia de domingo ia assistir, eu acho que era Sílvio Santos. Quando ainda não tinha energia elétrica, não se tinha geladeira, fritava as carnes para não perder e não se podia comprar muita coisa. Com a energia elétrica, se comprava mais coisas, fazia mais merenda gelada, os hábitos mudaram e todo mundo dia de domingo já sabia o que ia fazer – assistir televisão. Os carnavais, todos queriam assistir. Antes da televisão, tinha o rádio para ouvir a Hora do Brasil.327 Nos anos 1940 e 1950 a fraca iluminação que havia nas casas de alguns moradores da cidade, sobretudo daqueles que residiam nas ruas centrais, em torno da Praça Padre Mateus, ainda possuía horário reduzido de funcionamento, com as interrupções constantes. A baixa voltagem não oferecia as condições necessárias para o funcionamento de eletrodomésticos, pois “não é possível ter-se em funcionamento, uma geladeira, por exemplo, pois a voltagem é tão baixa que logo danificaria irremediavelmente o aparelho”.328 A partir de 1962, embora a energia não tenha atingido imediatamente os mais de 15.000 moradores que viviam na cidade, as pessoas passaram a ter mais segurança quanto à regularidade do serviço nas suas casas e intensificaram a aquisição de eletrodomésticos, que, aos poucos, também tornavam-se mais acessíveis. Foi quando D. Conça comprou a televisão e sua casa, principalmente aos domingos, transformou-se num lugar de encontro e festa entre vizinhos, até com “lugares reservados”. 325 Censo Demogáfico de 1960. Projeto de Lei nº 5 de 1955. Livro de Expediente do Prefeito de 1956 a 1964. APMSAJ. 327 Depoimento de D. Maria da Conceição Souza Silva, já citado. 328 “Deve ser obrigatório o uso do medidor de luz”. A Verdade, Santo Antonio de Jesus, 5 de agosto de 1959, p 1. 326 123 O rádio de pilha, que até então ganhava toda atenção da família, para ouvir A Hora do Brasil, começou a ceder espaço para as imagens sedutoras que a televisão trazia das novelas, dos carnavais que “todos queriam assistir”. Além disso, em casa, já era possível ler, costurar, bordar à noite, sem queimar os cabelos nas chamas do fifó. Mas a grande novidade certamente foi a televisão, inicialmente ainda pouco presente nas casas, em virtude do seu alto custo. Dessa forma, a energia elétrica aqueceu não apenas o mercado de eletrodomésticos como também de alimentos em geral e os hábitos domésticos começavam a mudar. Se antes não era possível comprar muita carne para não arriscar a perda do produto, com a geladeira, podia-se adquirir o alimento em maior quantidade e conservá-lo pelo tempo que fosse necessário. Na casa de D. Conça passou-se a fazer “merenda gelada” e já era possível, nos encontros dominicais, oferecer aos vizinhos telespectadores sucos gelados, sorvetes, geladinhos e abafabancas, espécie de picolé ou sorvete feito em casa que tinha como forma a cuba para fazer gelo. Com a energia elétrica e a geladeira, em algumas casas, já era possível beber água gelada, portanto, as moringas e talhas,329 utilizadas para manter a água fresca, aos poucos foram sendo abandonadas nas dispensas. Seu José de Candu também recorda a sedução que a televisão exercia sobre as pessoas, quando ainda era uma novidade que começava a alterar a rotina diária pois, no começo só tinha televisão na casa de quem tinha condição. Na rua que eu morava só tinha uma e quando dava seis horas fazia aquela fila na janela. Todo mundo ia assistir 330 Percebe-se, através de sua fala, como o advento da energia elétrica, acompanhado pela televisão, interferiu nos hábitos cotidianos dos santoantonienses, porém, com certas especificidades, a depender da condição sócio-econômica ou cultural dos sujeitos. Algumas pessoas, de fato, ganharam a rua, podendo passear à noite, ir ao cinema, às festas, aos parques, ou simplesmente ficar em casa assistindo televisão, ouvindo rádio, lendo, bordando ou costurando. Contudo, a chegada da energia elétrica não significou o acesso de todos aos novos bens e serviços que o mercado passou a oferecer, sem impedir que a criatividade fosse 329 330 Recipientes feitos de cerâmica usados para guardar e manter a água fresca. Sr. José Souza Sampaio, depoimento já citado. 124 utilizada para inventar estratégias de inclusão na nova cidade que surgia. As possibilidades de não pagar o alto custo da energia multiplicaram-se. Nesse sentido, lançando mão do conceito de “apropriação cultural” de Certeau, somos convidados a deslocar a atenção da suposta passividade dos consumidores para a criatividade oculta, presente num emaranhado de astúcias silenciosas, sutis e eficazes pelas quais cada um apropria-se dos produtos culturais recebidos.331 Em 1959, antes, portanto, da implantação do sistema da COELBA, o Jornal A Verdade, Quinzenário da Associação Cultural e Esportiva local, Vasco da Gama, redigido por Ary Gomes, no seu primeiro ano de circulação, liderou uma campanha contra a taxa fixa paga pelos consumidores de energia elétrica e em defesa do uso obrigatório do medidor de luz nas residências. Entre os principais argumentos apresentados estavam a possibilidade de se pagar um preço mais justo e equivalente à energia consumida; a qualidade deficiente do serviço oferecido que poderia ser superada com o uso do medidor vinculado à aplicação do valor arrecadado na melhoria do próprio serviço; o controle do desperdício, pois alguns mantinham “acesas todas as lâmpadas da casa mesmo sem necessidade”; e o fato da taxa fixa mensal já ter sido abolida nos grandes centros, sendo mantida em inúmeras comunidades, com evidente prejuízo do progresso local.332 Ao que tudo indica, o valor cobrado pela taxa fixa mensal não correspondia à baixa qualidade do serviço prestado, o que causava indignação àqueles que pagavam e pouco tinham a usufruir. Sendo assim, pretendia-se pagar apenas pelo consumo medido. Seu Eco recorda quando a sua alfaiataria funcionava à base da luz do aladim, uma luz forte que “clareava tudo aqui”. Depois o rapaz me deu um ponto de luz. O rapaz chamava Aurelino Sales [...] Me deu um ponto de luz desse hotel aí, uma luzinha fraquinha [...] E com esse pontinho de luz eu tinha que trabalhar fechado pra ele não ver a luz acesa, trabalhava de aladim.333 O Sr. Eco ilustra bem o que a matéria citada anteriormente apresenta como problemas na qualidade e na prestação do serviço da energia fornecida na cidade. Aponta a deficiência da energia, pois era uma “luzinha fraquinha” e uma entre as 331 CERTEAU, Michel de. A invenção do cotidiano - artes de fazer. Vol. I, Petrópoles/ RJ: Vozes, 1994, p 40. 332 “ Deve ser obrigatório o uso do medidor de luz”. A Verdade, Santo Antonio de Jesus, 5 de agosto de 1959, p 1. 333 Depoimento do Sr. Antonio Santana Vieira, já citado. 125 razões que levaram alguns consumidores a defenderem o uso do medidor, ou seja, a possibilidade de um único consumidor disponibilizar pontos de luz para outras residências e continuar pagando a mesma taxa fixa dos demais, o conhecido “gato” dos dias atuais. Ao mesmo tempo, indica uma das estratégias empreendidas por aqueles que não tinham condição de pagar pelo serviço para dispor da energia. Entretanto, para ele, no seu local de trabalho, “não teve o que melhorar não, pelo menos a luz do Aladim era muito mais forte”, embora tivesse que pagar pelo querosene, matéria-prima utilizada para o funcionamento desse equipamento, permitindo que os trabalhos da alfaiataria se prolongassem até mais tarde. Seu José Elias trabalhou na empresa que fornecia energia para a cidade e acompanhou de perto todo esse processo, desde quando a rua era iluminada por fortes lampiões de gás acesos apenas durante a noite e quando nas casas os fifós e lampiões eram elementos indispensáveis. Recorda que, como a máquina utilizada “não satisfazia o número de pessoas que necessitava”, a energia era limitada e quando alguém ia solicitar uma ligação, recebia a delimitação da quantidade de lâmpadas permitida. Isso prolongou-se até 1962, “quando chegou a energia de verdade”; entretanto, a promessa da Usina de Bananeiras foi utilizada por muito tempo para “tapiar o povo”, pois, Quando chegava perto das eleições, era mei mundo de bananeiras. Botava no caminhão um bucado de poste, saía por aí soltando foguete, quando acabava jogava os postes tudo lá e pronto. Esperava outra eleição, usava na outra eleição e era assim.334 Durante décadas a energia elétrica esteve presente na pauta dos discursos de políticos locais, mas a promessa de estendê-la às casas só se cumpriu, de fato, nos anos 1960. Portanto, não custa entender as razões da prática da instalação de “gatos”, à época. Com a eletrificação das casas, a vida doméstica foi modificada, pois se passou a dispor de atividades de lazer antes só possíveis no espaço público; ampliou-se o conforto doméstico e criaram-se novos hábitos e comportamentos sociais, principalmente na medida em que eram oferecidas condições para a utilização desse espaço nos horários noturnos. Assim, novos aparelhos de diversão doméstica, 334 como a televisão, contribuíram Depoimento de Sr. José Elias Silva Santos, já citado. diretamente no processo de 126 transformação do espaço residencial, promoveram outras práticas de sociabilidades e redefiniram as relações estabelecidas nos espaços público e privado. 3.3 Outros espaços Longe de ser um esporte que simplesmente objetivava a disciplinarização dos corpos e o afastamento de jovens da elite do ócio, mantendo-os em constante atividade, como acontecia no momento de sua inserção no Brasil, no final do século XIX - quando era praticado apenas no interior de alguns colégios335 - o futebol na cidade de Santo Antonio de Jesus era uma atividade socializadora, que aproximava as pessoas de diferentes segmentos sociais. Considerado um instrumento de diversão e socialização, tanto pela imprensa local, incentivadora do esporte na cidade, quanto nos depoimentos dos entrevistados, o futebol reunia no mesmo tempo/espaço, trabalhadores e patrões, seja como jogadores dos clubes locais que disputavam as partidas, ou como platéia que apenas assistia. A idéia difundida pelos segmentos do sindicalismo brasileiro de que o futebol seria "o ópio do povo", uma estratégia utilizada para afastar as pessoas dos problemas do dia a dia, uma diversão alienante, servindo para obscurecer a atenção do povo dos seus problemas fundamentais336parece não contemplar as representações construídas pelos moradores de Santo Antonio de Jesus sobre tal modalidade esportiva, ainda que esta possa ter sido uma das intenções dos pioneiros na implantação do esporte na cidade. Submetido a processos de apropriação e re-significação pela população urbana santoantoniense, o sentido principal atribuído ao futebol, vinculava-se à distração nas tardes de domingo, momento em que todos se encontravam, numa cidade que tinha pouco a oferecer de lazer para seus moradores.337 Ao que tudo indica, nas primeiras décadas do século XX o santoantoniense já se divertia com o esporte. Em 1938, O Palládio anunciava o renascimento do entusiasmo pelo futebol, ao mesmo tempo em que insinuava que o esporte já havia 335 ROSA, André Luiz. Futebol: ópio ou prazer? Artigo encontrado no site: http:// www.historiaehistoria.com/materia.cfm?tb=artigos&id=33. 336 SHIKIDA, Cláudio D. & SHIKIDA Pery Francisco Assis. É o futebol o ópio do povo? Uma abordagem econômica preliminar, p 5. Artigo encontrado no site http://www.ceaee.ibemecmg.br/wp/wp19.pdf. 337 Essa afirmação respalda-se nos depoimentos do Sr. José Elias Silva Santos, do Sr. Antonio Santana Vieira, José Santos Vieira e do Sr. Manoel oliveira. 127 chegado à cidade em anos anteriores, talvez como um desdobramento da “febre esportiva” que assolou metrópoles, como o Rio de Janeiro, desde os primórdios do século XX.338 A Sociedade Danúbio Foot-Ball Club havia sido fundada em 20 de maio daquele ano e “um surto de animação sacode a mocidade na reabilitação esportiva local”, promovendo “todos os domingos divertimento desse gênero na praça”.339 Ainda não havia nesse momento estádio para a prática do esporte, que era realizada na Praça Padre Mateus. Em 1946 o mesmo periódico informava que o único campo de futebol da cidade, feito pela Provedoria da Santa Casa de Misericórdia, na Avenida Barros e Almeida, estava decadente, abandonado e desmoronando com as chuvas. Não era mais possível jogar naquele local que precisava de uma reforma urgente para não deixar desaparecer um elemento “proporcionador da diversão tão adotada pela mocidade patrícia, diversão a que acorrem as famílias, numa terra como a nossa, onde os meios de entretenimento são escassíssimos”.340 De acordo com a memória oral, nos anos 1950, o futebol experimentava seu auge na cidade. Nessa década, Vasco da Gama e Humaitá eram os clubes mais famosos da cidade e levavam aos domingos uma multidão para os jogos que aconteciam no Campo do Matadouro. Também aconteciam disputas entre clubes locais e clubes de cidades vizinhas, conforme anúncios veiculados na imprensa local: Com muito prazer levamos ao conhecimento de nossos leitores e ao público santoantoniense, que hoje à tarde [...], vamos apreciar mais uma esplêndida e convidativa função esportiva – entre o referido Vasco da Gama, agremiação local e o valoroso e disciplinado Ipanema Futebol Clube, da vizinha e bela cidade de Cruz das Almas. Todos ao Campo do Matadouro!341 Certamente, Sr Eco foi um dos moradores que atenderam ao chamado do jornal. Apaixonado pelo futebol, não perdia uma partida e lembra que havia forte rivalidade entre Vasco e Humaitá.342 É possível que Sr Irênio, Sr Zé de Candu e Sr 338 SEVCENCO, Nicolau. A capital irradiante: técnicas, ritmos e ritos do Rio. In: História da vida privada: República: da belle époque à era do rádio. Nicolau Sevcenko (org). V.3. São Paulo: Companhia das Letras, 1998. p. 568. 339 “Danúbio Foot -ball Club e O foot-ball renasce entre nós”. O Palládio. Santo Antonio de Jesus, 3 de junho de 1938, p 1. 340 “O campo de futebol em Santo Antonio”. O Palládio, Santo Antonio de Jesus, 27 de setembro de 1946 341 “Pelo esporte”. O Detetive. Santo Antonio de Jesus, 18 de março de 1951. 342 Depoimento do Sr. Antonio Santana Vieira, já citado. 128 Elias, todos apreciadores do esporte, também tenham ido ao Campo do Matadouro naquele domingo torcer pelo Vasco. Sr José Elias, durante a gestão de Antonio Fraga (1955-1959), trabalhou como diretor e tesoureiro do Campo de Futebol que mais tarde seria transformado em estádio. Apesar de ainda não possuir uma boa estrutura, pois era apenas um campo todo cercado de zinco, o então diretor conseguiu levar técnicos de outras cidades para treinar times locais. Posteriormente, o prefeito José Trindade Lobo no seu primeiro mandato (1963-1967) retirou o zinco e construiu o muro com as arquibancadas de madeira e o alambrado. Quando Florentino Almeida assumiu a Prefeitura pela primeira vez (1967-1971), fez um alambrado de ferro e arquibancada de cimento.343 Embora o serviço de energia elétrica tenha sido implantado definitivamente na cidade, através da COELBA em 1962, a rede de força do Estádio Municipal, que alimentava os refletores, continuava precária no final dos anos 1970 e a Liga Santoantoniense de Futebol teve que transferir todos os jogos que seriam realizados às noites de sábado e quarta-feira, para as tardes dos domingos e feriados. Era comum, durante os jogos noturnos, o serviço de iluminação “entrar em colapso” e interromper a competição, com isso surgiam problemas para a administração do estádio - que pelo Código de Posturas de 1965, seria obrigado a devolver o dinheiro do ingresso -, e prejuízos para os clubes participantes.344 Depois de uma tarde esportiva, a noite de domingo reservava ainda a possibilidade de assistir a uma sessão de cinema no Cine-Teatro Glória ou no Cine Rex, ambos localizados nas imediações da Praça Padre Mateus. Além de exibir filmes, ambos eram espaços onde também aconteciam recitais, apresentações teatrais e musicais. O Rex possuía acomodações mais amplas e sofisticadas. O Glória, reaberto no início dos anos 1940, era considerado mais acessível, pois, além do salão principal de exibição, havia o “puleiro”, local com valor do ingresso mais barato, de onde assistia-se ao filme “por detrás” da tela. O Sr. Manoel, quando ainda era aprendiz de alfaiate, era um daqueles que usavam o puleiro.345 A rotina do Cine-Glória, nos anos 1950, era vivenciada por Lauro Fernando de Oliveira Souza que trabalhava nas noites de domingo e feriado, das 19:00h às 21:30min, operando as máquinas que projetavam as imagens na grande tela. Além 343 Depoimento de Sr José Elias Silva Santos, já citado. Portaria nº 15/79 de 4 de junho de 1979. Livro de Leis, Decretos e Portarias da Prefeitura de Santo Antonio de Jesus de 1979. APMSAJ. 345 Depoimento do Sr. Manoel Oliveira, já citado. 344 129 de operador cinematográfico, fazia parte de suas atribuições, confeccionar cartazes anunciando os filmes a serem exibidos e dar manutenção às máquinas. Sua experiência como funcionário do Cine- Glória só terminaria naqueles palcos em dezembro de 1956, quando o cinema foi adquirido pela Empresa Cine Rex Ltda.346 De acordo com o Sr. Zeca Vieira, o cinema era a única diversão noturna da cidade, “freqüentado por todos, ricos e pobres”. Por ser muito concorrido, segundo ele, “às vezes precisava duas ou três sessões” para atender ao público, que caprichava na aparência e se apresentava sempre arrumado. Ele quem sempre ia acompanhado por amigos e afirma que no cinema “não tinha bandoleiro, não tinha vagabundagem. Os casais namoravam lá, [...] se beijavam, mas era com respeito. Eu nunca presenciei uma briga ou qualquer confusão”. Afirma ainda que os pais deixavam as filhas freqüentarem porque era “muito sofisticado, muito bem organizado, arrumadíssimo mesmo”. E não eram apenas os jovens que iam, “tinha pessoas de mais ou menos idade avançada também”.347 Outrossim, o comportamento daqueles que dentro do cinema “não guardam a devida compostura, gargalhando como se estivessem num meio em que tudo lhes fosse permitido”,348 era denunciado pela imprensa local por freqüentadores que primavam pela manutenção da organização do espaço. A foto cedida pelo Sr. Edivaldo Oliveira é reveladora: Autos da Reclamação Trabalhista de Lauro Fernando de Oliveira Souza contra a Empresa Cine Rex, representada por José Pereira Reis, formulada em 22 de dezembro de 1958. APMSAJ, pasta de Reclamações Trabalhistas, de 1950 -1960. 347 Depoimento de Sr. José Santos Vieira, já citado. 348 “Censurando”. O Detetive, Santo Antonio de Jesus, 27 de agosto de 1950, p 1. 346 130 Figura VIII: Imagem do Cine Rex (Fotografia do arquivo pessoal de Sr Edivaldo Oliveira Souza) A imagem, captando os expectadores durante uma sessão do Cine Rex, entre os anos 1950 e 1960, evidencia aspectos relatados pelo Sr. Zeca Vieira, sobretudo quanto às vestimentas, ao comportamento e ao tipo de público que freqüentava o cinema. Pessoas de paletó, calça e sapato social, além do que o elevado número de presentes e a presença feminina constituem indícios da aprovação desse espaço de lazer por homens e mulheres de rostos e cores diferentes. A presença de mulheres no salão, sentadas discretamente em filas do meio e mais ao fundo, pode significar certa timidez ou quem sabe alguma estratégia utilizada no processo de adaptação a um ambiente de lazer ainda pouco conhecido. O chapéu, que alguns podem considerar como um elemento simbólico da vida do homem do campo, pode ser visto não na cabeça, mas sobre o joelho, provavelmente para ser usado ao final da sessão, já fora daquele recinto, em sinal de respeito, educação ou simplesmente para não atrapalhar a visão dos outros. Sinaliza ainda a apropriação do espaço de exibição da sétima arte por pessoas com fortes vínculos rurais, e ao mesmo tempo, dispostas a experimentar as diversões que a noite na 131 cidade podia oferecer, entretanto, “o historiador não pode se dar ao luxo de esquecer que essas imagens foram produzidas num determinado contexto”.349 As memórias de D. Conça são igualmente denunciadoras: ia ao cinema como todo mundo [...], ia com o namorado e com alguém do lado pra não ficar falada, pois ficava falada quem saía sozinha com o namorado. O nome era escrito no papel e colocado na palmeira, próximo à estação. Guardadas as devidas proporções, pode-se pensar que havia certa tolerância por parte dos pais, quanto às moças freqüentarem os cinemas; entretanto, percebe-se que, nessa flexibilidade, havia um limite a ser respeitado, a saber: recomendava-se a companhia de uma terceira pessoa, geralmente uma irmã da namorada que acompanhava o casal, para a moça não “ficar falada” e poder voltar outras vezes. Corroborando a fala do Sr. Zeca Vieira, Sr. José Elias reitera que a “distração única que tinha era [...] ir pro cinema” e acrescenta que havia ainda outro cinema chamado Aliança, na Rua Silva Jardim, atual Rua Landulfo Alves.350 Em Memórias de um pária, Eduardo de Souza Almeida também faz referências a esse cinema, quando recorda que “antes de inaugurar-se o Cinema Glória, João Esteves teve cinema na Rua Silva Jardim que funcionou por muito tempo”.351 Mas, existiam aqueles que não freqüentavam os cinemas da cidade. D. Maria Soares e Sr. Gregório, por exemplo, talvez por morarem nos arrabaldes da cidade, o que dificultava por exemplo os deslocamentos noturnos até as ruas centrais. Sr. Eco só “ia de vez em quando” e Sr Irênio, nunca foi de “fazer folia demais”, foi muito pouco ao cinema, mas recorda do filme que assistiu sobre o nascimento de Cristo. Entre as limitadas opções do lazer santoantoniense, “o cinema destaca-se pela influência que iria exercer, propiciando modificações de valores, costumes e imaginário”.352 Atuaria, portanto, como um instrumento “civilizador” no sentido adotado por Norbert Ellias, em que “civilizado era sinônimo de cultivado, polido, BURKE, Peter. Testemunha ocular: história e imagem. São Paulo: EDUSC, 2004, p. 139. Depoimento do Sr. José Elias, já citado. 351 ALMEIDA, Eduardo de Souza. Memórias de um pária. Salvador: Adipro, 2006. 352 FONSECA, Raimundo Nonato da Silva. "Fazendo fita":cinematógrafos, cotidiano e imaginário em Salvador, 1897-1930. Salvador: EDUFBA, 2000. 349 350 132 contido”.353 Ir ao cinema na cidade, além de ser uma ocupação agradável para a noite, podia expressar ser “chique”, “requintado”, “fino”. As imagens da tela, com algumas restrições, passavam a ser refletidas nas roupas da moda, no corte de cabelo, na maquiagem, nas linguagens e sentimentos que despertavam na platéia. Com um público tão diversificado, o estilo dos filmes exibidos nem sempre podia seguir uma linha tão variada. Os jornais O Palládio e O Detetive trazem na maior parte dos seus anúncios, filmes românticos como, “Ama-me sempre”, “Brinde ao amor”, “Encontro inesperado”; filmes de aventura como, “A máscara de ferro”, “O menino dos cabelos verdes”; algumas comédias e apenas um com título mais sugestivo e ousado: “Prá lá de boa”. Provavelmente, priorizava temas de interesse da maioria sem, contudo, baixar o nível para exibições de temas ainda tabus na cidade, como sexo explícito e violência. Caso contrário, também poderia entrar em choque com um artigo do Código de Posturas de 1965, que proibia “as manifestações violentas de desagrado [...], assim como a representação de peças ou números ofensivos a moral pública ou de desrespeito às autoridades constituídas”.354 Além disso, afastaria as famílias e restringiria o cinema a um espaço freqüentado, sobretudo, por um número restrito de pessoas. Porém, nem sempre o público saía satisfeito. Nesse sentido, um telegrama divulgado por O Detetive, em agosto de 1950, revela a indignação da platéia, após um espetáculo apresentado no Cine-Glória: Srs. Diretores d’O Detetive. – Acabamos de presenciar no palco do CineGlória uma luta de boxe, com a qual expectadores não se conformaram [com os] truques dos artistas, que além da sagacidade... caíam sem ser atingidos. Nossa platéia que não é sopa nem dá água a pinto, quis a muque reaver os monis do ingresso, o que não conseguiu porque os sagazes se juntaram à polícia; mas mesmo assim só se ouvia alta hora da noite, dos expectadores essas expressões: - Manda o meu!355 O “desagrado” dos expectadores relaciona-se com a baixa qualidade do filme; refere-se à ausência de realidade nas cenas assistidas, sentindo-se ofendidos e desrespeitados. O telegrama indica, sobretudo, o nível de exigência do público que 353 ELIAS, Norbert. O Processo Civilizador, 2 vols. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1994. ______.Sociedade de Corte. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001. 354 Lei nº 66 de 4 de dezembro de 1965. Art. 174, Código de Posturas de 1965. Santo Antonio de Jesus, APMSAJ. 355 “Telegrama”. O Detetive, Santo Antonio de Jesus, 27 de agosto de 1951, p 3. 133 “quis a muque reaver os monis” e a disposição de tomar atitude e exigir qualidade nos espetáculos apresentados. Além do cinema e do futebol, os circos e parques de diversões, eventualmente montados na cidade, revelam-se, através da memória oral, importantes espaços de lazer. As brigas de galo e corridas de cavalo também estão presentes no restrito universo de atrações que o viver em Santo Antonio de Jesus propiciava aos seus moradores. Na década de 1950, nos dias de micareta, “após as 20 horas a movimentação pelas ruas cessava e era comum dar-se início a bailes momescos”, na Sociedade dos Artistas, no Mercado Municipal, na Sociedade Amantes da Lira, no Prédio Escolar Félix Gaspar, no Solar Aprígio Alves e na Sociedade Palmeirópolis. A Sociedade Beneficente dos Artistas, “por ser um ambiente congregador de trabalhadores” atraía pessoas de todas as classes. “Constituía-se [...] num espaço plural e quebrava barreiras da hierarquização de cor, classe e gênero”. Assim, contrastava com a Rádio Clube Palmeirópolis, onde os eventos festivos realizados não eram acessíveis às camadas populares, pois estavam reservados aos “altos comerciantes, políticos, doutores e os investidores estrangeiros envolvidos com a comercialização de fumo e do minério de manganês, tão abundantes no período”.356 356 MENEZES, Eliane. Dissertação de Mestrado: A Beneficente dos “Artistas” santantonienses, UNEB, 2008, p 110-111. 134 FIGURA IX: Sede da Rádio Clube/ Sociedade Palmeirópolis Arquivo pessoal de Tau Tourinho. A fotografia traz, pomposa, a imagem do palacete que pertenceu à família Félix Gaspar de Araújo e Almeida, onde funcionou a Rádio Clube/Sociedade Palmeirópolis, na antiga Rua de Baixo, atual Sete de Setembro. As iniciais SSVP, gravadas na fachada do prédio, remete-nos ao período em que ali funcionou a sede da Sociedade São Vicente de Paulo, na primeira metade do século XX. A presença maciça de crianças, mulheres e homens bem vestidos, embora preparados e posando para uma fotografia, insinua que aquele espaço foi cenário de muitas histórias envolvendo pessoas das camadas mais abastadas da cidade, sobretudo nos anos 1940 e 1950, até a sua demolição, no final da década de 1950. Os anúncios dos soirées dançantes e bailes de Micareta convidavam “os seus associados e suas dignas famílias” e solicitavam a apresentação do recibo da mensalidade como ingresso, de modo a manter o ambiente restrito ao lazer de uma minoria. 135 Já no Solar Aprígio Alves, onde hoje é a Pousada Vila das Palmeiras, anteriormente pertencente à Landulfo Alves”,357 como rememora D. Conça, aconteciam as “matinês dançantes”. Foi também no Solar, onde no domingo de 4 de novembro de 1951, ocorreu uma grande festa em que Laura Souza recebeu a coroa de rainha da primavera, Madalena Vieira dos Santos, aluna do Ginásio Santo Antonio e Maria Cilene Araújo Queiroz, aluna da Escola Félix Gaspar, duas alunas vencedoras de um concurso literário, receberam homenagens e prêmios. Durante a festa promovida por professoras da cidade, houve apresentações de números de piano, cantos e recitais e a todos que participaram, deixou uma ótima impressão, registra o jornal O Detetive.358 O Tênis Clube Cultural Santoantoniense, após sua fundação nos anos 1960, atraiu para lá alguns bailes. Na década de 70 entraram em funcionamento o Clube dos 100, freqüentado por famílias mais abastadas e o Clube dos 1.000 (Associação Operária Santoantoniense). Esses espaços tornaram-se importantes para a sociabilidade dos moradores, locais de encontros para as comemorações de aniversários, casamentos, formaturas, noivados e eventos de caráter político e esportivo.359 Outra opção de lazer era representada pelos “passeios de recreio”, viagens coletivas, inicialmente de trem, que os santoantonienses faziam para cidades vizinhas como Cruz das Almas, Nazaré, Cachoeira, Valença, Castro Alves e Aratuípe. Podiam acontecer com a finalidade de angariar recursos para as festas de São Benedito, do padroeiro Santo Antonio, bem como em benefício das obras da construção da Igreja Matriz ou ampliação da Santa Casa de Misericórdia. Entretanto, constituíam em viagens nas quais as pessoas que nelas embarcavam estavam em busca de diversão. Alguns desses passeios eram programados para acompanhar disputas de futebol entre times locais e da cidade visitada, outros levavam os santoantonienses para desfrutar dos banhos de mar das cidades litorâneas ou ribeirinhas, como o passeio que levou um grupo de “cavalheiros, senhoras e senhoritas”, no dia 14 de outubro de 1951, à cidade de Aratuipe. Durante o tempo em que estiveram na vizinha cidade, os visitantes gozaram bastante, não só dos banhos agradáveis, mas também dos 357 Depoimento de D. Maria da Conceição Souza Silva, já citado. “Sobre as festas de domingo”. O Detetive. Santo Antonio de Jesus, 4 de novembro de 1951, p 1. 359 SALES, Geraldo P. .Santo Antonio de Jesus - a cidade que encontrei p14. 358 136 bailes que se desenvolveram ao som de excelente jazz, da filarmônica local.360 A viagem que o trecho citado faz referência aconteceu em um caminhão, o que podia ser um prenúncio da superação do transporte ferroviário pelo rodoviário. O ritmo mais acelerado e a velocidade do caminhão, apesar das precárias condições das estradas, podiam prejudicar um pouco a contemplação da beleza e a inspiração poética motivada pelas belas paisagens das matas do Recôncavo Sul. Entretanto, o grupo, muito entusiasmado, entoava “canções decentes e análogas”. Além de “banhos agradáveis”, o passeio foi enriquecido, como era de costume, por músicas da filarmônica local, que fazia parte da programação.361 Entre as limitadas opções de lazer, intensificadas, sobretudo, a partir da energia elétrica, festas, futebol, cinema, parques, circos, passeios de recreio, destacaram-se através da oralidade e da imprensa, como atividades que intercalavam os dias de trabalho do santoantoniense. As ruas eram locais de encontros e festas, freqüentados pelos moradores. A casa, com a energia elétrica, tornou-se mais confortável, constituindo-se mais um espaço de lazer, que reunia amigos, parentes e vizinhos para festas, ouvir música ou assistir televisão. 360 “O passeio de recreio desta cidade à Aratuipe”. O Detetive. Santo Antonio de Jesus, 21 de outubro de 1951, p 4. 361 Idem 137 CONSIDERAÇÕES FINAIS A heterogeneidade e a diversidade das experiências vivenciadas no espaço urbano santoantoniense, identificadas através da documentação utilizada, sobretudo, nos jornais, nas fotografias e nos depoimentos orais, permitem vislumbrar um processo marcado por descontinuidades, permanências e rupturas nos hábitos, práticas e costumes cotidianos dos moradores da urbe. Isso pode ser observado, por exemplo, na manutenção de práticas tradicionais, como os brinquedos de roda, as festas de largo, as ladainhas de Cosme e Damião, enquanto a televisão passava a fazer-se presente no dia a dia das pessoas. No período analisado, observou-se significativas alterações no cenário urbano santoantoniense, notadamente nos meios de transporte, nas relações de trabalho, na diversificação do lazer e em todos os âmbitos da vida cotidiana na cidade. Entretanto, os moradores da cidade não se comportaram como meros expectadores das mudanças. Embora as iniciativas modernizadoras da cidade tenham partido de um pequeno grupo, constituído, principalmente por representantes da elite política e econômica locais, a população, na sua complexidade, também foi responsável pela configuração dos modos de vida urbanos que começavam a surgir. Seja aceitando, burlando ou negociando as mudanças anunciadas, as iniciativas dos moradores foram decisivas na elaboração dos viveres urbanos e evidenciam, nesse processo, uma reciprocidade de influências, condicionada pela circularidade de relacionamento. Uma dessas situações pode ser identificada na apropriação do cinema como espaço de lazer dos moradores. Ao mesmo tempo em que se adaptaram às regras, como o cumprimento de horário e o modo de se comportar, participaram da formatação desse ambiente, através de queixas e exigências recorrentes da platéia. As interferências e a participação dos moradores manifestam-se a priori através da aprovação e incorporação de algumas novidades urbanas à sua cotidianidade, mas também quando resistiram através da manutenção de práticas e hábitos, que não eram considerados condizentes com os padrões de urbanização que se pretendia implantar. A adaptação às novidades não ocorreu de forma pacífica, mas envolvendo múltiplas estratégias, quase sempre sutis, de apropriação que evidenciam criatividade e habilidade de negociação, buscando converter a seu favor algumas das imposições do projeto urbanizador. 138 Nesse processo de urbanização/modernização, que influenciou de forma indubitável a vida dos habitantes da cidade, costumes e tradições, idéias e comportamentos foram alterados, mediante a re-elaboração de valores culturais já enraizados nas suas experiências cotidianas. De modo geral, as experiências analisadas sinalizaram a convivência de elementos ligados aos viveres rurais com as novidades que anunciavam a inserção da urbe nos trilhos do progresso e da modernidade. Verificou-se, portanto, o imbricamento de valores rurais e urbanos, num momento em que Santo Antonio de Jesus era, ao mesmo tempo, campo e cidade. Apesar das normatizações impostas pelo poder público, a cidade, durante o período pesquisado, continuou recebendo muitas críticas da imprensa local quanto à postura de seus moradores. Estes, certas vezes, pareciam alheios às proibições que definiam a forma como deveriam se comportar em espaços públicos e mesmo privados. Isso, sem dúvida, deixaria marcas na identidade da sociedade urbana santoantoniense, notadamente no que diz respeito ao forte vínculo com práticas costumeiras, arraigadas à tradicional maneira de viver, sobretudo, oriundas do meio rural e continuaram a criar seus animais soltos pelas ruas, a lavar roupas nas fontes, a estendê-las nas portas das casas. Apesar das particularidades apresentadas nas práticas vividas pelos santoantonienses, é possível perceber similaridades em relação a experiências de urbanização de muitas cidades. Entre elas notamos tentativas de hierarquização e segregação sócio-espacial, identificadas no processo de afastamento dos feirantes e das prostitutas das áreas centrais, reafirmando essa tendência. Igualmente podemos destacar políticas de controle social, através de posturas proibitivas quanto ao comportamento das pessoas em lugares públicos definindo, por exemplo, que nas fontes não podiam lavar roupas ou tomar banho. No conjunto das aproximações a outras realidades urbanas, evidenciam-se projetos de urbanização e modernização implantados na cidade, pautados, sem sombra de dúvidas, em interesses políticos e econômicos, que justificam os altos investimentos em desapropriações, bem como os comprometimentos econômicos do poder público local com o governo estadual, por meio de empréstimos freqüentes. Entre mudanças e permanências, a urbe que atualmente carrega a marca do “comércio mais barato da Bahia”, apresenta-se como uma cidade diurna, movida pelo comércio, que durante o dia atrai populações de cidades vizinhas e garante o 139 ritmo acelerado e o movimento cotidiano. Quando a noite chega, a partir das 18:00h, como numa espécie de mágica, aquele movimento todo desaparece. É nesse horário que saem as últimas vans, microônibus e ônibus com destinos diversos, levando aquelas pessoas às suas cidades de origem. À noite a cidade dorme. Com poucas opções de lazer, além do pequeno movimento nas praças, nos bares, restaurantes e cinema, os moradores descansam para no dia seguinte encontrar outros rostos, outros sotaques, outras histórias, contadas por outros consumidores, que certamente virão visitar e comprar no comércio santoantoniense: começa mais um dia de encontros na cidade que, diariamente, reúne muitas outras cidades. Em meio às experiências constituídas e reconstruídas pelos moradores, ao longo dos anos, surgiu uma cidade que atualmente privilegia, acima de tudo, o seu comércio. O perfil do Código de Posturas Municipais de 1965 já sinalizava para isso, na medida em que regulamentava qualquer atividade comercial que pudesse gerar divisas para o poder público local, através da cobrança de impostos. Essa posição privilegiada ocupada pelo comércio pode ser observada atualmente através do poder de interferência desse setor no traçado urbano, nas modificações do trânsito, no patrocínio de eventos, particularmente voltados para o fortalecimento da economia local, que tem essa atividade como principal sustentáculo. Outros aspectos de relevante importância, para elevar a qualidade de vida na cidade como a cultura e o lazer, há décadas foram relegados a um plano secundário, o que colaborou para o peculiar quadro que atualmente a urbe apresenta - durante o dia, têm-se um grande movimento de pessoas que se deslocam das cidades vizinhas para comprar no comércio local. E à noite, apresenta apenas espaços vazios que levariam um visitante desavisado a indagar: onde estão todas aquelas pessoas? Resta dizer, enfim, que esse estudo partilha da percepção de que a cidade pode ser lida e que o seu próprio espaço e a materialidade convertem-se em narradores da sua história, assim como os próprios habitantes vão reescrevendo a escrita de sua cidade permanentemente. Portanto, as possíveis leituras aqui apresentadas ancoram-se na materialidade do espaço urbano, mas principalmente nos gestos, sentidos e significados extraídos de histórias produzidas nos encontros cotidianos dos seus moradores, que são, por excelência, os personagens centrais dessa pesquisa. Os resultados apontados através desse estudo são transitórios, como é a própria vida, a história e as cidades. Assim sendo, abrem caminhos para que, a partir da investigação permanente e da persistência na articulação dos sinais 140 encontrados, continuemos a decifrar os mistérios e a tecer a história das práticas vividas em Santo Antonio de Jesus. 141 FONTES E REFERÊNCIAS: 1. ARQUIVOS E BIBLIOTECAS: APEB- Arquivo Público do Estado da Bahia APMSAJ – Arquivo Público Municipal de Santo Antonio de Jesus. Arquivo da Câmara de Vereadores de Santo Antonio de Jesus Biblioteca da SEI, Salvador, Ba. Biblioteca do IGHB (Instituto Geográfico e Histórico da Bahia) Biblioteca Pública do Estado da Bahia. Biblioteca da COELBA ( Companhia de Energia Elétrica da Bahia), Salvador, Ba. Biblioteca da Fundação Clemente Mariani, Salvador, Ba. Biblioteca da Faculdade de Arquitetura da UFBA. Arquivo e Biblioteca do IBGE Salvador, Ba. 2. FONTES IMPRESSAS: Censo Demográfico de 1950 e 1960. Lei nº. 71 de 24 de dezembro de 1966. APMSAJ. Código Tributário de 1965. Lei nº. 66 de 4 de dezembro de 1965. APMSAJ. Código de Posturas Municipais de 1965. Mensagem apresentada pelo Dr. Octávio Mangabeira, governador do Estado da Bahia à Assembléia Legislativa, através da Imprensa Oficial da Bahia, em 7 de abril de 1950. 3. FONTES JORNALÍSTICAS ( JORNAIS E PERIÓDICOS) O Palládio, Santo Antonio de Jesus, 26 de janeiro de 1921. AP O Palládio, Santo Antonio de Jesus, 1º de abril de 1932. AP 142 O Palládio, Santo Antonio de Jesus, 28 de janeiro de 1938. AP O Palládio, Santo Antonio de Jesus, 3 de fevereiro de 1933. AP O Palládio. Santo Antonio de Jesus, 3 de junho de 1938. 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Santo Antonio de Jesus, 30 de julho de 1950 O Detetive, Santo Antonio de Jesus, 1º de outubro de 1950. AP O Detetive, Santo Antonio de Jesus, 10 de setembro de 1950. AP O Detetive, Santo Antonio de Jesus, 9 de abril de 1950. AP O Detetive, Santo Antonio de Jesus, 16 de abril de 1950. AP O Detetive, Santo Antonio de Jesus, 23 de abril de 1950. AP O Detetive, Santo Antonio de Jesus, 27 de agosto de 1950. AP O Detetive, Santo Antonio de Jesus, 8 de janeiro de 1950. AP O Detetive, Santo Antonio de Jesus, 5 de fevereiro de 1950. AP O Detetive, Santo Antonio de Jesus, 19 de fevereiro de 1950. AP O Detetive. Santo Antonio de Jesus, 22 de outubro de 1950. AP O Detetive. Santo Antonio de Jesus, 28 de janeiro de 1951. AP O Detetive. Santo Antonio de Jesus, 18 de março de 1951. AP O Detetive, Santo Antonio de Jesus, 17 de junho de 1951. AP O Detetive, Santo Antonio de Jesus, 30 de setembro de 1951. AP O Detetive, Santo Antonio de Jesus, 13 de julho de 1951. 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Autos da Reclamação Trabalhista de Vítor Pereira de Souza contra José Esdras Diniz, formulada em 4 de maio de 1953. APMSAJ, pasta de Reclamações Trabalhistas, de 1950 -1960. Autos da Reclamação Trabalhista de Mário Alves de Andrade contra José Esdras Diniz, formulada em 4 de maio de 1953. APMSAJ, pasta de Reclamações Trabalhistas, de 1950 -1960. Autos da Reclamação Trabalhista de Genebaldo Ferreira Macedo contra Ezequias de Almeida Sampaio, formulada em 11 de setembro de 1957. APMSAJ, pasta de Reclamações Trabalhistas, de 1950 -1960. Autos da Reclamação Trabalhista de Maria dos Santos contra o Hotel Central, representado por Raimundo Nunes de Souza, formulada em 11 de fevereiro de 1963. APMSAJ, pasta de Reclamações Trabalhistas, de 1960 -1970. Lei nº. 11 de 27 de outubro de 1972. APMSAJ. Maço de Leis do ano 1972 da Prefeitura de Santo Antonio de Jesus. Lei nº. 27 de 08 de novembro de 1949. Maço de leis 1949 da Prefeitura de Santo Antonio de Jesus. APMSAJ. Decreto-Lei 1.237/19. APMSAJ. 146 6. FONTES ORAIS: Depoimento de José Santos Vieira, de 67 anos idade, em maio de 2007, nascido em Santo Antonio de Jesus. Depoimento do Sr. Gregório Tavares da Silva de 99 anos de idade, em maio de 2007, morador da cidade desde 1948. Depoimento de Seu Gilberto Mello, 25 de maio de 2007. Depoimento de D. Maria Soares de Jesus, em nov. de 2007, de 84 anos de idade, moradora da cidade desde os sete anos. Depoimento do Sr. José Souza Sampaio, em junho de 2007, 62 anos de idade, morador da cidade desde 1946. Depoimento do Sr. Manoel Oliveira, em agosto de 2007, 76 anos de idade, nascido em Santo Antonio de Jesus. Depoimento do Sr. Irênio Santos Pereira, em 03 de maio de 2008, 71 anos de idade, morador da cidade desde que nasceu. Depoimento do Sr. Antonio Santana Vieira, em 02 de novembro de 2007, 78 anos de idade, morador da cidade desde que nasceu. Depoimento de D. Maria da Conceição Souza Silva, em dezembro de 2007, de 66 anos de idade, moradora da cidade desde 1944. Depoimento de Sr. Edivaldo Oliveira Souza, em 6 de dezembro de 2007, 90 anos de idade. Depoimento de D. Tereza Leal Vita Souza, em 6 de dezembro de 2007, 84 anos de idade. Depoimento do Sr. Adelino Silvério de Assis, em 7 de setembro de 2008, 85 anos de idade. 7. FONTES ICONOGRÁFICAS: Arquivo particular de Tau Tourinho Arquivo particular do Sr. Edivaldo Oliveira Souza Acervo da RFFSA. 4ª Divisão – Leste. Site: http://maps.google.com.br. Acervo do IBGE-DERE/NE I. Desenho de Zaca Oliveira. 147 8. LIVROS, ARTIGOS E TESES ALBAN, Marcus. O novo enigma baiano, a questão urbana-regional e a alternativa de uma nova capital. Anais do XI Encontro Nacional da Associação Nacional de PósGraduação e Pesquisa em Planejamento Urbano e Regional – ANPUR, Salvador, maio de 2005. ALMEIDA, Eduardo de Souza. Memórias de um pária. Salvador: Adipro, 2006. ALVES, Isaías de Almeida. Matas do Sertão de Baixo. Bahia: Reper, 1967. ASSIS, Cristina da Anunciação da Silva. Os trabalhadores dos armazéns de fumo. 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