Surrealismo
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Surrealismo
XIII. – MÓDULO L Em que se investiga o surgimento e desenvolvimento do movimento surrealista: apresentando algumas de suas oposições, características e, também, alguns de seus ‘resultados’. “Não existe revolução total, há unicamente a Revolução perpétua, vida verdadeira, como o amor, deslumbrante a todo momento. Não existe ordem revolucionária, há apenas desordem e loucura. A guerra da liberdade deve ser conduzida com cólera e conduzida sem cessar por todos aqueles que não aceitam... Éluard. Philosophies. “Eis que chegará a hora em que os mares de cálida cólera vão subir a corrente gelada dos rios, transbordar, fecundar em grandes braçadas um solo esclerosado, petrificado, acabar com as fronteiras, suprimir as igrejas, limpar as colinas da auto-suficiência burguesa, decapitar os picos de insensibilidade aristocrática, inundar os obstáculos que a minoria dos exploradores opunha à massa dos explorados, levar a seu futuro a humanidade. Libertando-a das instituições caducas, dos temores religiosos, da mística patrioteira e de tudo o que faz e diviniza os males da maioria em proveito dos tubarões de duas patas, de suas presunções e de toda a sua corja”. René Crevel. La Révolution Surréaliste. “Foi em 1919 que minha atenção se fixou nas frases mais ou menos parciais que, em plena solidão, à chegada do sono, se tornam perceptíveis ao espírito sem que se possa descobrir-lhes (a não ser com uma análise bastante minuciosa) uma determinação prévia. Certa noite, em especial, antes de adormecer, percebi nitidamente articulada, a ponto de ser impossível mudar-lhe uma palavra sequer, mas isolada, no entanto, de qualquer ruído vocal, uma frase bastante bizarra que chegava sem trazer vestígio dos acontecimentos aos quais, conforme o testemunho de minha consciência, eu me encontrava misturado naquele momento, frase que me pareceu insistente, frase, ousaria dizê-lo, que martelava a vidraça. Rapidamente tomei consciência dela e me dispunha a passar além quando seu caráter orgânico me deteve. Na verdade essa frase me espantava; infelizmente não a guardei até hoje, era alguma coisa como: ‘Há um homem cortado em dois pela janela’, mas ela não podia sofrer equívoco, acompanhada que estava da fraca representação visual de um homem andando e cortado ao meio por uma janela perpendicular ao eixo do corpo. Fora de qualquer dúvida, tratava-se de simples reerguimento no espaço de um homem que se mantinha debruçado à janela. Mas como tal janela havia seguido o deslocamento do homem, eu percebia que estava diante de uma imagem de tipo tão raro que tive desejo de incorporá-la a meu material de construção poética. Tão logo lhe concedi esse crédito ela deu lugar a uma seqüência quase intermitente de frases que não me surpreenderam menos e me deram a impressão de extrema gratuidade...”. André Breton. Manifesto Surrealista. XIII. 1. – O ‘a que viemos!’ do Surrealismo e suas oposições (em continuidade) ao Dadá. “Os surrealistas encontram nas descobertas de Freud uma solução provisória. Doravante, está provado que o homem não é somente um ‘raciocinador’, nem mesmo um ‘raciocinador sentimental’, como o foram muitos poetas antes deles, mas também um dormidor, um dormidor insensível, que, toda noite, dissipará em trocados. O homem não era somente um prisioneiro da natureza, de suas conquistas sobre ela, mas de si mesmo; havia cercado o espírito com fitilhos que o asfixiavam pouco a pouco. Atrasados silogismos, corolários, CQD, a causa e o efeito. (...): abram as portas ao sonho, dêem lugar ao automatismo! Vamos ver o homem tal como é, seremos homens por inteiro, ‘desacorrentados’, libertos, ousando realizá-los. Basta de escuridão! Vamos todos viver na ‘casa de vidro’, ver-nos-emos tais como somos e assim poderão nos ver aqueles que o quiseram”. Maurice Nadeau. História do surrealismo. “Imaginação querida, o que sobretudo amo em ti é não perdoares. Só o que me exalta ainda é a única palavra: liberdade. Eu a considero apropriada para manter indefinidamente, o velho fanatismo humano. Atende, sem dúvida, à minha única aspiração legítima. Entre tantos infortúnios por nós herdados, deve-se admitir que a MAIOR LIBERDADE de espírito nos foi concedida. Devemos cuidar de não fazer mau uso dela. Reduzir a imaginação à servidão, fosse mesmo o caso de ganhar o que vulgarmente se chama a felicidade, é rejeitar o que haja, no fundo de si, de suprema justiça. Só a imaginação me dá contas do que PODE SER, e é bastante para suspender por um instante a interdição terrível. (...) Onde começa ela a ficar nociva, e onde se detém a confiança do espírito? Para o espírito a possibilidade de errar não é, antes, a contingência do bem?” André Breton. Manifesto do surrealismo. “Desde o início, o conceito de ‘surrealismo’ traduz uma investigação nova, apresenta já o rótulo de um produto cultural novo e manifesta fortemente o seu cuidado em se distinguir sem cambiantes das outras etiquetas. A contradição entre o rigor voluntarista e o compromisso, objetivamente solicitado a exteriorizar-se pelo retorno à cultura, é um dos pontos de dilaceramento permanente a propósito do qual o grupo não cessará de se dividir”. Jules-François Dupuis. História desenvolta do surrealismo. Em seu sentido etimológico1, o vocábulo surrealismo (usado pela primeira vez com relação aos textos dramáticos de Guilhaume Apollinaire2) significaria não uma simples predisposição para transcender o real, mas a aprofundá-lo e, paradoxalmente, tal intento, na evolução experimentada pelo movimento, significou, fundamental e essencialmente, uma verticalização (algo parecido a uma alma falando à outra) no ‘universo dos sonhos e do inconsciente’, passando por leituras/interpretações pessoais e ‘personalistas’: alavancadas e sinalizadas sobretudo pela psicanálise moderna, criada e desenvolvida, sobretudo por Sigmund Freud. Com relação ao nome dado ao movimento ou àquilo que ele ‘guardaria/traria/acalentaria’, afirmou Breton no Primeiro Manifesto do Surrealismo: “Em desespero de causa, invoca ele [o homem] o acaso, divindade mais obscura 1 No “Manifesto Surrealista” (que é uma espécie de colcha de retalhos de ideias) o próprio Breton, afirmava que o surrealismo abrangia todo o espectro da atividade humana, englobando, principalmente, áreas, até aquele momento, negligenciadas da vida como o sonho e o inconsciente. Nesse sentido, para distinguir-se dos outros movimentos (e fundamentalmente do Dadá), Breton apresentou a seguinte definição do Surrealismo:‘SURREALISMO, s.m. Puro automatismo psíquico, através do qual se pretende expressar, verbalmente ou por escrito, o verdadeiro funcionamento do pensamento. O pensamento ditado na ausência de todo o controle exercido pela razão, e à margem de qualquer preocupação estética ou moral.ENCICL. Filos. O surrealismo se assenta na crença na realidade superior de certas formas de associação até agora desprezadas, na onipotência do sonho e no jogo desinteressado do pensamento. Visa à destruição definitiva de todos os outros mecanismos psíquicos, substituindo-os na resolução dos principais problemas da vida’.” 2 “Tudo bem analisado, creio, com efeito, que será melhor adotar surrealismo que sobrenaturalismo, que eu havia empregado anteriormente. Surrealismo ainda não se encontra nos dicionários, e será de mais fácil manuseio que sobrenaturalismo já empregado pelos filósofos”. G. APOLLINAIRE, Apud M. NADEAU. Op.cit., p.21. A esse respeito, ainda, afirma Breton no Primeiro Manifesto: “Em homenagem a Guilhaume Apollinaire, que morrera há pouco, e que por diversas vezes nos parecia ter obedecido a um arrebatamento desse gênero, sem entretanto ter aí sacrificado medíocres meios literários, Soupault e eu designamos com o nome de SURREALISMO o novo modo de expressão pura, agora à nossa disposição, e com o qual estávamos impacientes para beneficiar nossos amigos”. que as outras, à qual atribui todos seus desvarios. (...) o espírito do homem que sonha se satisfaz plenamente com o que lhe acontece. (...) do momento em que seja submetido a um exame metódico, quando, por meios a serem determinados, se chegar a nos dar conta do sonho em sua integridade (isto supõe uma disciplina da memória que atinge gerações: mesmo assim comecemos a registrar os fatos salientes) quando sua curva se desenvolve com regularidade e amplidão sem iguais, então se pode esperar que os seus mistérios, não mais o sendo, dêem lugar ao grande Mistério. Acredito na resolução futura destes dois estados, tão contraditórios na aparência, o sonho e a realidade, numa espécie de realidade absoluta, de surrealidade, se assim se pode dizer”. O movimento vertical ou mergulho radical proposto por Breton: espécie de busca do sentido no ‘fundo do fundo’ de-si-mesmo, como se pode depreender, transitou abstratamente pelo inefável e pelo abstrato conceito de ‘misterioso’ (em alguns momentos da evolução do movimento amparado em um lastro de natureza mais metafísica e ontológica e, em outros, apenas como simulacro de ‘condições inexplicáveis’), sendo que o vislumbrado pelos artistas e militantes ligados ao movimento era trazer para dentro da vida (ou para ‘o estado de vigília’ como chamava Breton) a força geradora do ‘maravilhoso’: encontrada fundamentalmente nos sonhos e cuja característica básica, ainda com Breton, era ‘ser sempre belo’. Enfim, essa espécie de ‘surrealidade’ como síntese de uma apologia ao sonho e ao aludido estado de ‘vigília misteriosa e inefável’ foi, ao longo do movimento surrealista, mudando de inclinação (por exemplo a participação no Partido Comunista Francês – em determinada fase de evolução do movimento), mas nunca de eixo; isto é, com relação, digamos, às propensões místicoonírico-metafísicas de seus artistas. Tais características, segundo muitos historiadores, ‘devem-se’ àquelas semelhantes do Expressionismo, desse modo, afirma Gilberto Mendonça Teles. Op.cit., 164: “origens estão ligadas ao expressionismo, embora se possam assinalar alguns pontos de contato com o futurismo de Marinetti. Mas é com o expressionismo que o surrealismo encontra um paralelo bastante evidente, a começar pela revalorização do passado: os alemães viam em Novalis e Hölderlin os seus precursores; os surrealistas redescobriam escritores como Sade, Nerval, Baudelaire, Lautréamont, Rimbaud e Mallarmé (...) Além disso, ambos os movimentos buscavam a emancipação total do homem, o homem fora da lógica, da razão, da inteligência crítica, fora da família, da pátria, da moral e da religião – o homem livre de suas relações psicológicas e culturais. Daí a recorrência à magia, ao ocultismo, à alquimia medieval na tentativa de se descobrir o homem primitivo, ainda não maculado pela sociedade”. Muitas, portanto, foram as contradições do Surrealismo (talvez como em nenhum outro movimento ligado às vanguardas, principalmente por conta de integrantes do movimento: das drogas alucinógenas à militância política de partidos de esquerda); muitas também foram as mudanças de bandeiras (e de causas opostas) defendidas; incontáveis foram as polêmicas, cisões e expulsões de vários de alguns de seus membros do movimento, sob as mais diversas acusações: como vocação e interesses comerciais, opostos aos pressupostos-em-transformação; não adesão a partidos e tendências políticas; rejeição àqueles que permaneceram no Dadaísmo... Enfim, o Surrealismo, a partir de um, digamos, chamado ‘estado de contradição imanente’, representou uma tentativa de instaurar uma revolução imaginativa (ou uma espécie de ‘enlouquecimento imaginativo’3) desenvolvida a partir de uma (e sempre confortável) artilharia estética: que foi uma característica (à exceção dos expressionistas) bastante comum a todos os movimentos das vanguardas históricas. De outra forma, o modo pelo qual os surrealistas escolheram para fazer oposição ao quadro político-social de que discordavam ou a ‘trincheira’ escolhida para apresentar suas oposições e descontentamentos, (diferentemente de alguns poucos dos futuristas que participaram, de fato, da guerra), foi a senda da ‘ficção super imaginativa’. Esse procedimento marcou a história das artes e Sarane Alexandrian, a propósito da permanência do ‘espírito surrealista’, mesmo depois de passada a fase de sua produção mais intensa e revolucionária, afirma: “Para compreender os artistas surrealistas é preciso saber que todos eles consideravam a arte não como um fim em si, mas como um meio de valorizar o que de mais precioso, mais secreto e mais surpreendente há na vida. Eles não pretenderam ser nem artesãos nem estetas: apenas inspirados e jogadores”.4 Com relação ao ‘estado de guerra’ ou ‘estado estético de guerra’ proposto pelos arautos da arte surrealista Walter Benjamin, a partir de uma sutil e contundente ironia, afirma: “desde o início Breton declarou sua vontade de romper com uma prática que entrega ao público os precipitados literários de uma certa forma de existência, sem revelar essa forma. Numa formulação mais concisa e mais dialética: o domínio da literatura foi explodido de dentro, na medida em que um grupo homogêneo de homens levou a ‘vida literária’ até os extremos do possível”.5 Assim, André Breton6 – um dos fundadores e, também, um de seus arautos mais 3 Bom lembrar que Breton preconiza a loucura, as alucinações, as ilusões etc como fontes de prazer e de gozo não desprezíveis. Por outro lado, e como afirma Maurice Nadeau. Op.cit., p.46: “O surrealismo é considerado por seus fundadores não como uma nova escola artística, mas como um meio de conhecimento, particularmente de continentes que até então não haviam sido explorados: o inconsciente, o maravilhosos, o sonho, a loucura, os estados de alucinação, em suma, o avesso do cenário lógico”. 4 Sarane Alexandrian. O surrealismo. Portugal: Editorial Verbo, s/d. 5 Walter Benjamin. Obras escolhidas: magia e técnica, arte e política. São Paulo: Brasiliense, p.22. 6 Sarane Alexandrian. Op.cit, p.8, acerca da liderança de Breton e das marcas que o movimento deixava em todos que participaram que dele participaram, afirma: “Breton soube impor àqueles que dele se aproximaram, não só uma disciplina de ação, mas também, o que é mais notável, uma disciplina de sonho. No entanto, um artista não deixava de ser surrealista, na altura em que, depois de se ter comprometido fiéis e importantes do movimento surrealista (ex- participante do movimento dadaísta, ainda que de modo algo reticente com relação a este movimento, por um intenso processo de ‘bate-bocas’, sobretudo com Tzara) – afirmou em seu Primeiro Manifesto que o Surrealismo representaria: “uma consciência cada vez mais clara e ao mesmo tempo cada vez mais apaixonada do mundo sensível. (...) Finjo, infelizmente, atuar em um mundo no qual, para conseguir perceber suas sugestões, seria obrigado a passar por dois tipos de intérpretes, uns para me traduzirem suas determinações, outros impossíveis de encontrar, para impor a meus semelhantes a compreensão que deles teria. Este mundo, no qual suporto o que suporto (não queiram saber), este mundo moderno, afinal, diabo!, o que querem que eu faça nele?” Dessa forma, é bastante comum, principalmente no início do movimento, assim como já o haviam feito as outras vanguardas, haver uma forte oposição e recusa ao caráter utilitarista, filisteísta e funcionalista (passando pelo crivo do mercantil) da arte burguesa e que, a despeito de todo tipo de experimentação estética de oposição a ela, permanecia na condição de tendência hegemônica. Apesar de em seus primeiros momentos, o movimento surrealista ter apresentado características ‘revolucionárias’, na medida em que contestava manifestações, produções e mentalidades mais conservadoras e também aquelas mais características e niilistas do próprio Dadaísmo, afirma Benjamin: “Há sempre um instante em tais movimentos em que a tensão original da sociedade secreta precisa explodir numa luta material e profana pelo poder e pela hegemonia, ou fragmentar-se e transformar-se, enquanto manifestação pública. O surrealismo está atualmente passando por essa transformação. Mas no início, quando irrompeu sobre criadores sob a forma de uma vaga inspiradora de sonhos, ele parecia algo de integral, definitivo, absoluto. Todo o que tocava se integrava nele. A vida só parecia digna de ser vivida quando se dissolvia a fronteira entre o sono e a vigília, permitindo a passagem em massa de figuras ondulantes, e a linguagem só parecia autêntica quando o som e a imagem, a imagem e o som, se interpenetravam, com exatidão automática, de forma tão feliz que não sobrava a mínima fresta para inserir a pequena moeda a que chamamos ‘sentido’. A imagem e a linguagem passam na frente”.7 Para os surrealistas (e a partir de uma formulação confusa), do mesmo modo como já o havia sido para os dadaístas, a degradada obra artística burguesa encontravase e sufocava-se num determinado estado degradado – rigorosamente e em consonância à lógica do sistema capitalista – que priorizava o Ter ao Ser8, configurando-se, pois, em nessa empresa comum, era levado a separar-se dela pela sua própria evolução. Aí adquirira para sempre princípios e estímulos que nunca teria encontrado sozinho, pois tudo nela se destinava alimentar um clima lírico incondicional, desde as diatribes apaixonadas, a propósito de uma leitura, aos divertimentos”. 7 W. Benjamin. Op.cit., p.22. A esse respeito, e de modo bastante inspirado em algumas das reflexões de Adorno (e companheiros da chamada ‘Escola de Frankfurt’ sobre a indústria cultural, assim comenta Jules8 mais uma mercadoria, destituída de qualquer espírito artístico e de expressão mágicoonírico-imaginativa verdadeira; ou seja, a imaginação em seu estado místico-primitivo e como expressão daquilo que os artistas resolveram chamar de ‘irrupção pura do maravilhoso’. Dessa forma, era necessário que o ato de criação fosse e se assemelhasse aos relâmpagos: que em determinados momentos e sob condições específicas rasgam os céus marcando os olhos de medo e encantamento e, por esse viés, que o ato criador pudesse ser substituído também pelo conceito de loucura9, que, à semelhança dos relâmpagos, iluminavam as ‘cavernas do ser’, deixando exprimir um ‘hóspede desconhecido’ (ou na morte: concebida como sociedade secreta – “sepultando aí o M profundo por onde começa a palavra Memória.”): em sua profundeza, em sua totalidade (sem passar pelo crivo de qualquer das lógicas existentes), automaticamente. No sentido, portanto, da irrupção pura do maravilhoso, do mistério e da derrocada de toda e qualquer forma de razão, era necessário atacar o primeiro inimigo do movimento que era o próprio Realismo/Naturalismo. Desse modo, em seu primeiro Manifesto, em duas passagens, assim comenta Breton acerca do Realismo: “A atitude realista, inspirada no positivismo, de São Tomás a Anatole France, François Dupuis. História desenvolta do surrealismo. Op.cit, pp.14-5: “O esteticismo apresenta-se como a ideologia do antivalor mercantil que torna o mundo viável e detém, por isso, o segredo dum certo estilo de vida, duma certa valorização do ser, oposto ao ser reduzido ao ter, que é o capitalista. Assim, no espetáculo, a cultura fornecerá modelos de papéis valorizadores. À medida que o econômico cria um mercado cultural, transformando os livros, os quadros e as esculturas em mercadorias, as formas dominantes da cultura tornam-se mais e mais abstratas e suscitam, em contrapartida, reações de anticultura. Ao mesmo tempo, quanto mais a economia ganha em importância e impõe por toda a parte o sistema da mercadoria, mais a burguesia tem mister de renovar o espetáculo do seu livre mercador ideológico que dissimulará a exploração crescente e recusada, cada vez com maior brutalidade, pelo proletariado. Depois da guerra de 1940-1945, a ruína das grandes ideologias e a exploração do mercado (livros, discos, gadgets culturalizados) vão atirar a cultura para o primeiro plano das preocupações, e isto até porque a pobreza da sob(re)vida incita a viver abstratamente segundo modelos cuja ficção para todos (predominância das imagens dos estereótipos) tem grande necessidade de renovação. O surrealismo pagará a fatura de uma tal recuperação que o seu coração, quando não o seu espírito, sempre recusou”. 9 A esse respeito aparece a seguinte indicação de Breton no Manifesto de 1924:“Todos sabem, com efeito, que os loucos não devem sua internação senão a um reduzido número de atos legalmente repreensíveis, e que, não houvesse estes atos, sua liberdade (o que se vê de sua liberdade) não poderia ser ameaçada. Que eles sejam, numa certa medida, vítimas de sua imaginação, concordo com isso, no sentido de que ela os impele à inobservância de certas regras fora das quais o gênero se sente visado, o que cada um é pago para saber. Mas a profunda indiferença de que dão provas em relação às críticas que lhe fazemos, até mesmo quanto aos castigos que lhes são impostos, permite supor que eles colhem grande reconforto em sua imaginação e apreciam seu delírio o bastante para suportar que só para eles seja válido . (...) São pessoas de escrupulosa honestidade, cuja inocência só tem a minha como igual. ” (sic) Como diz o ditado popular, parece que pretensão e água benta não fazem mal a ninguém. Não é, mesmo?... Um pouco mais adiante, ainda, afirma Breton: “As confidências de loucos, passarei a vida a provocá-las. São pessoas de uma honestidade escrupulosa e ninguém os iguala na inocência a não ser eu. Foi preciso que Colombo partisse com alguns loucos para poder descobrir a América. E vejam como essa loucura se espalhou e durou...”. parece-me hostil a todo impulso de liberação intelectual e moral. Tenho-lhe horror, por ser feita de mediocridade, ódio e insípida presunção. É ela a geradora hoje em dia desses livros ridículos, dessas peças insultuosas. Fortifica-se incessantemente nos jornais, e põe em xeque a ciência, a arte, ao aplicar-se em bajular a opinião nos seus critérios mais baixos; a clareza vizinha da tolice, a vida dos cães. (...) Nada se compara a seu vazio; são superposições de imagens de catálogo, o autor as toma cada vez mais sem cerimônia, aproveita para me empurrar seus cartões-postais, procura fazer-me concordar com os lugares-comuns”. “Por que o romance se converteu nessa forma quase universal de literatura? Porque satisfaz ao apetite de lógica daqueles que o leem, e que encontram nele, mesmo e sobretudo quando pobres paixões estão descritas nele, o prazer de adicionar e de subtrair forças, tal como sucede na mecânica, e porque, de outro lado, não é para aquele que o produz nada mais que o emprego de faculdades lógicas. Faz-se mister um quadro determinado e minuciosamente descrito (ó Balzac!), personagens com o respectivo nome e idade, cuidadosamente etiquetadas, acerca das quais pode-se estar certo de que de seus contatos jamais jorrará o milagre”. Diferentemente, ainda, dos demais movimentos de vanguarda, o Surrealismo foi a única escola a buscar uma mais próxima, explícita (e constantemente complicada) aproximação política com um partido político, que no caso específico aconteceu com o Partido Comunista Francês (ou mais especificamente com o Grupo Clarté10). Tal aproximação (e curtíssima permanência) deu-se sempre a partir de inúmeras confusões e desentendimentos, como seria de se esperar, de ambos os lados, ou de outro modo: por certa ortodoxia no partido e por certa ciosidade de liberdade e autonomia dos artistas. A quase totalidade dos comunistas sempre desconfiou das verdadeiras intenções ‘políticas’ dos surrealistas, sendo que estes, naturalmente (e por mais que tentassem) da mesma forma, nem sempre conseguiam adotar a ortodoxia de parte significativa dos membros do partido. Nesse particular, vale destacar que a filiação de alguns dos integrantes do movimento surrealista não se deu imediatamente após o lançamento do “Manifesto do Surrealismo” em 1924, que rigorosamente não apresentava nenhuma alusão ou referência à necessidade de participação, definição e opção política de qualquer natureza. 10 De modo esquemático, tratava-se de uma organização revolucionária que (à semelhança de outras) apelava aos ensinamentos de Lenin e Trotski e cuja origem ligou-se à defesa de Marrocos contra o colonialismo francês. Segundo Nadeau. Op.cit., p.82: “Os diretores de Clarté, Jean Bernier, Marcel Fourrier, livraram-se pouco a pouco da influência pacifista e humanitária de Henri Barbusse, fundador do movimento no fim da guerra (1919), para se engajarem no movimento revolucionário, num plano paralelo ao da Internacional Comunista. Em torno dessa organização criaram uma ‘aura’ de intelectuais e simpatizantes; atacavam duramente a ideologia burguesa e tentam criar contra ela valores novos a partir do exemplo da Rússia dos Sovietes. (...)O acordo entre os surrealista e Clarté (...) concretizou-se sob a forma de um Manifesto: ‘A Revolução primeiramente e sempre’ onde, depois de uma saudação respeitosa à Ásia eterna, entramos outras ideias novas aceitas pelos surrealistas, e bem estranhas, pelo menos da maneira como são formuladas, as suas preocupações anteriores. Ei-los agora engajados nos problemas do assalariado, ou seja, em plena economia política”. O movimento surrealista, desenvolvido basicamente entre o período compreendido pelas duas grandes guerras mundiais (chamado por alguns de fase áurea, tendo em vista sua permanência até os dias de hoje), foi criado em Paris a partir de algumas das características do Dadaísmo, sem que se possa, entretanto (pela ótica dos artistas do movimento), atribuir uma filiação tão direta a este, fundamentalmente pela produção de um novo conjunto de regras estéticas e pelo desfraldar da palavra de ordem: ‘ato de criação espontânea’, que abolia, definitivamente, vários dos vetos característicos apresentados pelo Dadá. Ocorre que alguns dos militantes da nova escola mantiveram, antes da fundação do próprio Surrealismo, boas relações e alguns chegaram a participar dos mesmos espetáculos ou soirées, a escrever nas mesmas revistas literárias, trocar correspondência etc. Dessa forma, especificamente com relação ao dadaísmo, é bom que se diga que um exame mais acurado das duas tendências ou escolas mostra que no início do movimento surrealista houve até mesmo relações hostis à tradição em curso, incluída aí o próprio dadaísmo, já em estado dissolvente.11 “De Dadá, os primeiros surrealistas conhecem sobretudo a versão morna de Paris, as palhaçadas de Tzara, a oposição ao futurismo e ao cubismo, algumas querelas pessoais. Grosz, Huelsenbeck, Schwitters, Haussmann, Jung e mesmo Picabia são-lhes, larga medida, estranhos”.12 “Faltava a Tzara o quanto basta de sentido crítico e de combatividade lúcida para levar os artistas a desesperarem da arte e a agarrarem a vida quotidiana como tema da obra coletiva revolucionária. Indecisos e, no fundo, mais sensíveis do que o que gostariam de deixar transparecer ao atrativo de uma carreira artística, os criadores depressa encontraram na repetição das mesmas troças orquestradas por Tzara e no papel de vedeta que o show antiarte de Dadá lhes propunha, o pretexto para reatar com a atividade cultural sem renegar o desprezo dadaísta pela arte, mas apenas fingindo acreditar que o descrédito tinha sido parcial e unicamente lançado sobre as formas então dominantes da literatura, do pensamento e da arte. O surrealismo existia adormecido nas incapacidades de Dadá”.13 “O relacionamento entre o surrealismo e o Dadá é complexo, porque, sob muitos aspectos, eles eram bastante semelhantes. Politicamente, o surrealismo herdou 11 A despeito das oposições, vale destacar que os surrealistas também tiveram sua fase de enfants terribles... , e sempre com a desculpa de que se opunham à cultura hegemônica. Das performances ou atitudes herdadas dos dadaístas, uma delas promove um grande escândalo em toda França. Em 1925 é lançado um panfleto chamado Un Cadavre, saudando o enterro (que não havia morrido) de Anatole France, intelectual respeitadíssimo nos círculos da chamada ‘gente bem’. A esse respeito, assim justificou-se Breton: “France representava o protótipo de tudo o que execrávamos. Se havia, do nosso ponto de vista, uma reputação usurpada, era a sua. Éramos completamente insensíveis à pretensa limpidez do seu estilo e, sobretudo, repugnava-nos o seu famosíssimo ceticismo.(...) No plano humano considerávamos a sua atitude a mais equívoca e desprezível de todas: tinha feito o necessário para atrair os sufrágios da direita e da esquerda. Estava corrompido de honrarias e jactância, etc. Estávamos dispensados de qualquer tipo de deferência.Este fole esvaziou-se tão perfeitamente que é hoje difícil imaginar os furores que foram capazes de provocar essas quatro páginas reunindo os textos de Aragon, Delteil, Drieu la Rochelle, Éluard e o meu. Segundo Camille Mauclair, Aragon e eu pertencíamos ao ‘gênero louco furioso’. Exclamava: ‘Já não são costumes de oportunistas e de apaches, mas de chacais...’ Havia quem fosse mais longe: pediam sanções”. Apud Dupuis. Op.cit., p.27. 12 Jules-François Dupuis. Op.cit.,p.20. 13 Idem, ibidem, p.23. a burguesia como seu inimigo, e continuou, pelo menos em teoria, seu ataque às formas tradicionais de arte. Artistas previamente associados ao dadá aderiram ao surrealismo; mas é impossível dizer que a obra de Arp, Ernst ou Man Ray, por exemplo, VIROU surrealista de um dia para o outro. O surrealismo foi, por assim dizer, um substituto do Dadá; como disse Arp, ‘expus com os surrealistas porque sua atitude rebelde em relação à ARTE, e sua atitude direta em face da vida eram semelhantes às do Dadá’. A diferença radical entre eles residia na formulação de teorias e princípios, em vez do anarquismo dadaísta”.14 Ape distintos movimentos... Mas, a despeito disso, em outros países da Europa as produções artísticas eram e continuavam a ser apresentadas com os (digamos) rigores e características intrínsecas do ‘movimento-mãe’. Tanto esse dado é verdadeiro que em uma exposição dadaísta apresentada, na Alemanha, ou mais precisamente na cidade de Colônia, em janeiro de 1920: “Essa exposição, orientada por Ernst, Johannes Baargeld e Arp, recém-chegado de Zurique, realizou-se num pequeno pátio a que se chegava através do banheiro da Bräuhaus Winter. Os visitantes, no dia da inauguração, eram recebidos por uma garotinha vestida com o traje branco de primeira comunhão, recitando poemas obscenos. A exposição continha um grande número de objetos ‘descartáveis’. Uma escultura de Ernst tinha um machado preso ao lado, com o qual o público era convidado a despedaçá-la. Fluidoskeptrick der Rotzwitha van Gandersheim, de Baargeld, um precursor de muitos objetos surrealistas, consistia num pequeno tanque cheio de água colorida de vermelho (manchada de sangue?), com uma fina capa de cabelo flutuando na superfície, uma mão humana (de madeira) sobressaindo da água e um despertador no fundo do tanque. A peça foi destruída durante a exposição. Ironicamente, a exposição esteve fechada enquanto as autoridades investigavam queixas de obscenidade, mas tudo o que puderam encontrar foi a gravura de Adão e Eva de Dürer, e a exposição foi reaberta”.15 Motivos de várias e outras ordens vêm se somar à separação dos dois grupos, em fase dos acontecimentos mundiais (sobretudo aqueles referentes à carnificina da guerra), categoricamente, não era possível imaginar que a arte se propusesse a destruir um mundo já destruído e dilacerado. Dupuis, apresenta mais algumas evidências no processo ‘separatista’: “Depois do esmagamento da revolução, de Berlim a Cronstadt passando por La Courtine e pelas planícies da Ucrânia, Dadá fica sozinho a exigir, ao mesmo tempo confusa e nitidamente, a destruição global da arte, da filosofia, da cultura, enquanto setores separados, e a sua realização numa vida social unitária. Toda a má consciência do reformismo surrealista ostenta a marca do projeto revolucionário global, renegado com reticência e aceite no refluxo. Assim, já pouco importa que Breton proclame na Révolution Surrealiste (n.°4): ‘Não há obra de arte que agüente perante o nosso primitivismo integral’, e que Aragon fale em Un Cadavre da ‘miserável atividadezinha revolucionária que se produziu a nosso Oriente no decorrer destes últimos anos’; apesar de sua justeza, o primeiro propósito é ainda o de um inconsciente, e o segundo já o de 14 15 Dawn Ades. Op.cit., p. 90. Idem, ibidem, p.87. um imbecil; o futuro encarregar-se-á de mostrar que não passam de palavras em conseqüência prática. O espírito Dadá sobrevive como forma verbal enquanto o surrealismo nele enxerta um outro conteúdo”.16 Das oposições e incidentes entre os dadaístas e os futuros surrealistas, em 13 de maio de 1921, Breton e Aragon promovem a manifestação pública e o julgamento de Maurice Barrés17. O ‘réu’ era um manequim (tão ao gosto de muitas das experimentações teatrais propostas desde Craig, passando pela dramaturgia simbolista), sendo que o ‘julgamento’ foi presidido por Breton. Nesse julgamento estético-público-performáticoteatral, Ribemont-Dessaignes fez o papel de acusador público, Aragon e Soupault fizeram sua defesa. Tzara, sempre alegre e pronto aos eventos, resiste em participar do ‘julgamento’ tentando, mesmo, sabotar a iniciativa, fundamentalmente por recusar-se a responder (segundo declarações de alguns dos participantes do evento, em depoimentos posteriores) com ‘seriedade’, às questões que lhes foram formuladas, tendo em vista que não lhe interessava participar, seriamente de uma encenação dessa natureza. Quanto aos motivos de tal recusa: para além da justificativa de que todos, inclusive os dadaístas, serem canalhas não foram apresentadas, concretamente, outras informações mais específicas e/ou justificáveis. A transcrição abaixo mostra/aponta Tzara colocando o ‘ventilador na farofa’ dos jovens surrealistas mais afoitos, senão vejamos: “Tzara – Não tenho nenhuma confiança na justiça, mesmo se esta justiça é feita por Dadá. Você há de convir comigo, senhor Presidente, que somos apenas um bando de canalhas e que, por conseqüência, as pequenas diferenças, canalhas maiores ou canalhas menores, não têm nenhuma importância (...) Pergunta – Você sabe por que foi obrigado a testemunhar? Tzara – Naturalmente porque sou Tristan Tzara. Embora eu ainda não esteja de todo persuadido. Pergunta – Quem é Tristan Tzara? Tzara – É todo o contrário de Maurice Barrès. Soupault – A defesa, persuadida de que a testemunha inveja a sorte do acusado, pergunta se a testemunha ousa confessá-lo? Tzara – A testemunha diz merda à defesa (...) Pergunta – Ao lado de Maurice Barrès, você pode citar ainda outros porcos? Tzara – Sim, André Breton, Theodor Fraenkel, Pierre Deval, Georges RibemontDessaignes, Louis Aragon, Philippe Soupault, Jacques Rigaut, Pierre Drieu la Rochelle, Benjamin Péret, Serge Charcoune. Pergunta – A testemunha quer insinuar que Maurice Barrès lhe é tão simpático quanto todos os porcos que são seus amigos e que ela acaba de enumerar? Tzara – Pelo amor de Deus! Trata-se aqui de porcos e não de simpatia. Meus amigos me são simpáticos, enquanto que Barrès me é antipático (...) 16 J.-F. Dupuis. Op.cit., p.45. Maurice Barrés (1862-1923), escritor e político francês. Criador de uma vasta produção literária, revelando uma grande contradição entre um espírito apaixonado, oscilando entre um individualismo, a sedução pelas obras e os destinos exemplares e a necessidade de ordem e de disciplina. Barrés era conhecido como o “anarquista literário do culto do eu”. Foi eleito deputado por Nancy 1888-91, tornando-se a partir daí um líder do movimento intelectual nacionalista Escreveu a trilogia O culto do eu (1888-1891); Os desenraizados, 1897; A colina inspirada, 1913; 17 Crônica da grande guerra, 1920-24; Do sangue volúpia e da morte, 1893-1909 etc Soupault – A defesa registra que a testemunha passa seu tempo fazendo piadas (...) Tzara – Eu não julgo. Eu não julgo nada. Eu me julgo todo o tempo e me acho um indivíduo pequeno e desagradável, qualquer coisa no gênero de Maurice, até mesmo um pouco menos. Tudo isso é relativo”. 18 Esse julgamento, fundamentalmente pela ‘postura’ e respostas dadas por Tzara, abala a relação entre muitos dos representantes de Dadá e aqueles do futuro Surrealismo19 . Depois de vários estremecimentos, um processo de fissura mais intenso deu-se, entretanto, quando Breton assumiu a direção da revista Littérature e mudou, tanto o corpo de colaboradores (desligando muitos dos dadaístas que escreviam regularmente nela) como a própria proposta editorial da revista, que, até aquele momento, de certa forma, era determinada pelos representantes do movimento Dadá. Nesse ‘processo de sangria do convalescente’, e segundo alguns comentaristas, o rompimento definitivo deuse com o anúncio de Breton, em 1922, de realização do Congresso Internacional das Artes, com o objetivo de determinar as direções da arte moderna, contando com a participação de representantes de todos os movimentos artísticos em produção naquele momento histórico. Estratégica e maldosamente (Será? E há vozes dissonantes nesse sentido), Breton convidou Tzara para participar do evento, inscrevendo no ‘quadro da história das artes’ o dadaísmo que, desde sempre, e como já se viu, ‘autopropalava-se’ na condição de (anti)movimento, antiarte, antiestética... antitudo. Bem, desse modo, a atitude de Breton de, à semelhança de todos os outros movimentos, esquadrinhar’ o Dadaísmo no quadro mundial das artes, ‘conformar e acabou com as antigas e sempre confortáveis processos retóricos dos antiartistas e, assim, digamos, por ‘matálos’ definitivamente20 e por criar uma série de enfrentamentos e dissensões de toda ordem. “Para Tzara, qualquer que fosse a linha adotada, a mera proposta de discutir-se a sério a arte na modernidade lhe parecia totalmente incompatível com a filosofia dadá e se, em princípio, aceitou participar da empresa, foi com o mesmo espírito burlador com que torpedeou a sessão do ‘Processo Barrès’. Breton, por seu lado, via no Congresso a possibilidade de dar vazão a suas ansiedades e tornálas instrumento de ação, algo que já tentara anteriormente com o projeto das excursões e o próprio ‘Processo Barrès’. (...) 18 Silvana Garcia. Op.cit., pp.224-5. “Nenhum detalhe fora negligenciado para provocar as perseguições judiciais e suscitar o confronto em que as facções revolucionárias pudessem reconhecer a ação sediciosa de Dadá. A salvação do movimento disso estava dependente. Benjamin Péret que será animado, durante toda a vida, por uma igual e intransigente radicalidade, fez, no papel de ‘soldado desconhecido’, uma intervenção muito notada, testemunhando em língua alemã. O conjunto das declarações sublinhou, aliás, a natureza excrementícia dos antigos combatentes, de Barrés e de tudo o que se aparentava com o caráter nacional”. Jules-François Dupuis. Op.cit., pp.24-5. 19 20 dos desentendimentos com Tristan Tzara, na véspera da data marcada”. Assim se re Uma carta de Tzara, declinando o convite para participar do Congresso acaba por deflagrar toda uma situação conflituosa que culminará com a não-realização do evento. Breton, certo de que Tzara pretende manobrar contra o Congresso, faz o Comitê assinar um comunicado à imprensa, no qual se dá um voto de desconfiança a ‘um personagem conhecido por promotor de um ‘movimento’ vindo de Zurique’. A inclusão dessa frase irá provocar uma sucessão de cartas, desistências (Éluard, Ribemont-Dessaignes e, posteriormente, Jacques Rivière) e protestos contra o xenofobismo de Breton, culminando com a convocação deste por um comitê improvisado de artistas, por iniciativa de Eric Satie.”21 Vários foram os desdobramentos advindos da discussão entre os dois ‘ativistas’, e que (a despeito de serem contrários às estruturas burocratizadas) talvez, no fundo, brigassem pela liderança do movimento... Dessa forma, Breton acaba recebendo do julgamento ‘chamado’ por Satie um ‘voto de desconfiança ao projeto e ao comitê de organização’. Tal atitude de seus companheiros parece ter deixado Breton bastante irado motivo pelo qual o artista escreve um texto chamado Após Dadá e publicado em Comoedia: “Dadá muito infelizmente, não está mais em questão e seus funerais, em torno de maio de 1921, não provocaram nenhum tumulto. O cortejo, pouco numeroso, seguiu-se àqueles do cubismo e do futurismo, que os estudantes de belas-artes farão afundar em efígie no Sena. Dadá, se bem que tenha tido, como se diz, sua hora de celebridade, deixa poucas saudades: com o tempo, sua onipotência e sua tirania tornaram-no insuportável”. Tzara, em ‘direito de resposta’ à provocações de Breton, escreveu com tons bastante melodramáticos O lado Secreto de Dadá na mesma Comoedia, utilizando-se de prática bastante desabonadora, lamentavelmente, utilizada como expediente para ‘acabar’ com os concorrentes políticos em época de campanhas e tantas outras instâncias de diferentes tipos de disputa pelo poder): “Se escarneço totalmente de Dadá e de todas as minhas obras, não é menos evidente que o sr. Breton não existe e não existirá senão por Dadá. Um amigo escreveu-me que ‘Breton era um comediante completo e que mudava de homem como mudamos de botinas’. Eu não penso como ele, pois estou convicto de que o sr. Breton possui uma inteligência, infelizmente torturada por falsos tormentos de ordem moral, pelos exemplos que tive de seus exageros doentios, num ou noutro sentido. Tenho apenas um sentimento de piedade que é a resposta a tudo aquilo que poderia reprovar. Tenho tempo para esperar, pois sei de onde vêm as desgraças da vida conjugal. Mais dia, menos dia, saberemos que antes de dadá, após dadá, sem dadá, através de dadá, por dadá, contra dadá, com dadá, apesar de dadá, é sempre tudo dadá. Mas que tudo isso não tem a menor importância”. Muito mais irado do que antes e sentindo-se, logicamente, desafiado moralmente, Breton escreveu novo texto chamado Abandonem Tudo, ‘oficializando’ seu desligamento 21 Silvana Garcia. Op.cit., p.227. do movimento. “Enfim, quem fala? André Breton, um homem sem grande coragem, que até aqui se satisfez bem ou mal de uma ação derrisória e isso porque talvez um dia haja sentido mais duramente do que nunca ser incapaz de fazer aquilo que queria. E é verdade que tenho consciência de já ter desvalorizado a mim mesmo em inúmeras circunstâncias; é verdade que me acho menos que um monge, menos que um aventureiro. Isso não me impede de manter a esperança de me recuperar e que, nesse início de 1922, nesse belo Montmartre em festa, eu sonhe com aquilo que ainda possa vir a ser”.22 Acresça-se, ainda, ao quadro de rompimento dos dois movimentos (ou dos dois líderes em processo de desentendimento pessoal), o fato de o propalado e sempre alardeado niilismo dadaísta, negando a tudo e a si mesmo: “O verdadeiro dadaísta é contra o Dadá”, não se coadunava com as inquietações que alguns dos líderes do movimento surrealista vislumbravam, principalmente no que concernia ao poder do ATO DE CRIAÇÃO ESPONTÂNEA: que, segundo eles mesmos, criaria a chamada “imagem surrealista”23, representando uma síntese de justaposição de inúmeros elementos diferentes, mas – ainda que constituída por uma determinada visão niilista – jamais se negaria. “Dos grandes testemunhadores do mal de viver, dois morreram, Cravan e Vaché. O primeiro internou-se no mar, uma noite de tempestade no golfo do México, o outro, que escrevia da frente ‘chatear-me-ia morrer tão novo’, mata-se em Nantes, logo a seguir ao fim da guerra. Mais tarde, será a vez de Jacques Rigaut, Raymond Roussel (...) “A sob(re)vida, enquanto ausência de verdadeira vida e realidade imediatamente conhecida, encontra em Dadá o espelho que ‘torna a vergonha mais vergonhosa’ e no suicídio, a denúncia, pelo negativo, da sua lógica de morte”.24 Assim, depois dos desentendimentos, mal-estares e rompimentos, os jovens surrealistas conseguem finalmente ‘libertarem-se’ de (das ‘nocivas’) influências anteriores e constituírem-se em movimento ‘autônomo’, originado, oficialmente, em Paris em 1924, com a publicação do Primeiro Manifesto Surrealista de André Breton. Curiosíssimamente, 22 23 Apud Silvana Garcia. Ibidem, pp.228-9. No Manifesto de criação do movimento surrealista, Breton dedica grande destaque à “imagem surrealista”, afirmando, de saída: que “a linguagem foi dada ao homem para ser usada de um modo surrealista”. Dessa forma, a metáfora, em sendo natural na imaginação humana, só poderia ser concretizada “dando” [cabe perguntar por quem?] ao inconsciente plena liberdade de ação. Assim procedendo, as mais deslumbrantes imagens ocorreriam espontaneamente. Entusiasmado por tais teses, Breton afirmava, ainda, que a imagem surrealista nasceria da justaposição fortuita de duas realidades diferentes (e quanto mais diferente, melhor), sendo que da centelha gerada por esse encontro é que dependeria a beleza da imagem. Parece que a justificativa para esse princípio foi fundamentado na frase de Lautréamont (Isidore de Ducasse, em Cantigas de Maldoror, canto VI) segundo a qual: “Tão belo quanto o encontro fortuito de uma máquina de costura e de um guarda-chuva sobre uma mesa anatômica”. Esse aludido processo de justaposição de imagens, e como já apresentado no Módulo X, caracteriza-se no chamado processo de montagem. Ainda com ralação ao niilismo surrealista, lembra-nos Benjamin. Op.cit., p.25: “Antes desses videntes e intérpretes de sinais, ninguém havia percebido de que modo a miséria, não somente a social como a arquitetônica, a miséria dos interiores, as coisas escravizadas e escravizantes, transformavam-se em niilismo revolucionário”. 24 J.-F. Dupuis. Op.cit., p.46. o último parágrafo do referido Manifesto termina, da seguinte forma (e ao que tudo indica fazendo uma crítica, próxima ao tratamento post scriptum, naturalmente aos antigos aliados e agora novos inimigos): “O surrealismo é o ‘raio invisível’ que um dia nos fará vencer os nossos adversários. ‘Não tremes mais, carcaça’. Neste verão as rosas são azuis, a madeira é de vidro. A terra envolta em seu verdor me faz tão pouco efeito quanto um fantasma. Viver e deixar viver é que são soluções imaginárias. A existência está em outro lugar”. XIII. 2. – O ‘aqui chegamos’ do Surrealismo “Padeço horrorosamente da vida. Não há estado que eu não possa atingir. E muito seguramente estou morto há muito tempo, estou já suicidado. Suicidaramme, quer dizer. Mas o que pensariam vocês de um suicídio anterior, de um suicídio que lhes obrigasse a arrepiar caminho, mas do outro lado da existência e não do lado da morte?” Antonin Artaud. La Révolution Surrealiste. “Dadá cristaliza ao mesmo tempo a consciência da pulverização das ideologias e a vontade da sua supressão em proveito da vida autêntica. Mas o niilismo dadaísta assume-se como experiência da ruptura absoluta e, portanto abstrata. Não só não se apoia nas condições históricas que presidiram ao seu aparecimento como, dessacralizando a cultura, ridicularizando-a enquanto esfera autônoma, jogando com os seus fragmentos, se isola também de uma tradição de criadores que prosseguiam o mesmo objetivo de destruição da arte e da filosofia (...) O surrealismo reata com esta tradição, depois do falhanço (sic) de Dadá. Retoma-a como se Dadá não tivesse existido, como se a dinamitagem da cultura não já tivesse tido lugar. Dilata a esperança, conservada de Sade até Jarry, sem notar que a superação se tornou possível. Coleta e vulgariza as grandes esperanças sem descobrir que estão já presentes as suas condições de realização. Com tal procedimento, renova o espetáculo que dissimula à última classe, ao proletariado portador da liberdade total, a história a fazer. O seu mérito terá sido o de uma escola para todos, popularizando os pensadores revolucionários, à falta de realizar a revolução”. Jules-François Dupuis. História desenvolta do surrealismo. “Quando Dadá denunciava em toda a parte a poluição cultural e o apodrecimento espetacular, o surrealismo chega com projetos de limpeza geral e de regeneração”. Dupuis. Ibidem. Em 1924, através do lançamento do Manifesto Surrealista, André Breton, assume a incumbência de promover uma ‘revolução’ (artística, naturalmente) – tendo como ‘mestres e modelos’ as mais antagônicas, desencontradas e ecléticas teorias, ideias, especulações... formuladas pelos senhores: Sade, Lautréamont, Fourier, Marx, Nerval, Novalis, Paracelso, Basile Valentin, Poe (assumido e depois expulso, por sua ‘ajuda’ à investigação policial) – maior que a anterior, pretendida pelos dadaístas, apresentando, dentre outros, os seguintes (e megalomaníacos) intentos: “abranger todo o espectro da atividade humana, com o objetivo de explorar e unificar a psique humana, englobando áreas até então negligenciadas da vida, como o sonho e o inconsciente” 25. Dessa forma, nesse primeiro manifesto e como síntese do, digamos, ‘a que viemos’, Breton pretendia, através daquilo que ele designava como sendo a função precípua do poeta: “confundir interior com exterior, juntar particular e geral, encerrar a eternidade no instante” mais que isso, emendava o ‘articulista’ em cuja alma: “a alma do poeta é o que é: um magma onde turbilhonam sensações, sentimentos, desejos, aspirações que se exprimem no tumulto, na incoerência, na gratuidade, por intermédio da palavra ou da escrita, molde imemoravelmente lógico que deve ser desmembrado, quebrado, reduzido a seus elementos simples: os vocábulos, os únicos suscetíveis de expressar fielmente o transe poético em sua integridade”.26 Com uma perfeita estratégia de lançamento – e apropriando-se de experiências anteriores, ao mesmo tempo em que o Manifesto estava sendo publicado –, foram criados, também, a revista La Révolution Surréaliste (e que, em seu primeiro número, alardeia na capa: “É preciso conseguir uma nova declaração dos direitos do homem.” e na contracapa: “O surrealismo não se apresenta como a exposição de uma doutrina. Certas ideias que atualmente lhe servem de ponto de apoio não permitem prejulgar o seu desenvolvimento ulterior. Este primeiro número de La Révolution surréaliste não oferece qualquer revelação definitiva. Os resultados obtidos pela escrita automática, pelo relato de sonhos, por exemplo, são reapresentados, mas não se consigna qualquer resultado de pesquisas, de experiências ou de trabalhos: é preciso aguardar tudo no futuro”.) e o Centro de Pesquisas Surrealistas tendo como dois de seus primeiros editores Pierre Naville (que no número três da revista teria declarado que: “Memória e o prazer dos olhos: essa é toda a estética”)27 e Benjamin Péret. Nesse mesmo Centro, trabalhou um dos 25 Dawn Ades. Op.cit., p.91. Ainda nesse particular, Hauser. Op.cit., pp. 1124-25, afirma: “O novo século é tão rico dos mais profundos antagonismos, a unidade do seu conceito de vida está tão profundamente ameaçada, que a combinação dos extremos mais opostos, a unificação das maiores contradições, tornam-se o tema principal, muitas vezes, o tema único da sua arte. O surrealismo, que, como André Breton nota, começou por gravitar exclusivamente em torno do problema da linguagem, isto é, da expressão poética. (...) arte que fez do paradoxo de tudo o que é forma e do que há de absurdo em toda a existência humana a base do seu ponto de vista. (...) O surrealismo, que acrescenta ao método do dadaísmo o ‘método automático de escrever’, já exprime, por esse meio, a crença de um novo conhecimento, uma nova verdade e uma nova arte surgirão do caos, do inconsciente e do irracional, de sonhos e das incontroladas regiões do espírito. (...) a partir de um mergulho no inconsciente, no pré-racional e no caótico, e recorrem ao método psicanalítico de livre associacionismo, isto é, de desenvolvimento automático de ideias e sua reprodução sem qualquer processo de crítica, racional, moral e estética”. 26 Maurice Nadeau. Op.cit., p.20. 27 Esse princípio ‘bate’ com aquele preconizado no Primeiro Manifesto, segundo o qual: “Escrevam rápido sem assunto prefixado, bastante depressa par nada guardar na memória e para não serem tentados a reler o que escrevem. (...) Prossigam tanto quanto lhes der prazer. Confiem no caráter inexaurível do murmúrio”. Alguns anos mais tarde (mais precisamente em 1928), para colocar mais ‘linha’ ainda nessa fogueira, Aragon. Traité du style. Apud Nadeau. Op.cit., p.57, afirma: “O surrealismo é a inspiração reconhecida, aceita e praticada. Não mais como uma visita inexplicável, mas como uma faculdade que se maiores nomes do teatro – e não só surrealista – Antonin Artaud28. A despeito do texto de Artaud, conclamando todos os países da Europa a aderirem ao movimento, publicado na Révolution, o Surrealismo. (Artaud fala/pensa em Europa, tendo em vista que o movimento tornou-se ou ‘ganhou’ importância internacional somente em 193629). Com a criação do Centro, os integrantes do movimento criam algumas estratégias de estudo, contemplando os seguintes aspectos: a importância e a necessidade dos sonhos; a escrita automática; as teorias de Freud; os ‘acasos’, na condição de insights (ou iluminações) necessárias e facilitadoras do ato de criação e, posteriormente, batizado de l’hasard objetif e l’hasard subjetif; as experiências mediúnicas – êxtase ou espécie de ‘dialética da embriaguez’ – (ou ‘trânsito’ com as forças místicas e ocultas) e cujos conhecimentos eram dominados por iniciados (daí, entre outros, o nome de Paracelso figurar como uma das fontes buscadas pelos surrealistas). Nesse aspecto, várias experiências foram desenvolvidas, como a hipnose e a utilização das drogas; mas, afirma exerce. Normalmente limitada pelo cansaço. (...) Assim, o fundo de um texto surrealista importa ao máximo e é isto que lhe confere uma valiosa característica de revelação”. Com relação à revista, segundo Nadeau. Idem, ibidem, pp.58-9: “difere bastante de uma revista literária comum. Sua apresentação é propositadamente severa à semelhança de uma revista científica. Pierre Naville, co-editor juntamente com Benjamin Péret, quisera intencionalmente esta semelhança com uma revista com La Nature, jornal científico bem conhecido. Poucas coisas atraentes aos olhos: alguns desenhos, algumas fotografias; nenhum esmero tipográfico, títulos de artigos propositadamente em preto e branco, assinaturas que nada destaca. Sutil camuflagem! Não obstante o propósito de nada conceder ao prazer dos olhos, La Révolution surréaliste tornar-se-á, assim mesmo, ‘a revista mais escandalosa do mundo’.” 28 A partir de sua contribuição e trabalho no Instituto, Artaud, escreve, na revista La révolution surréaliste, n°3, de abril de 1925, o texto: Carta aos Reitores das Universidades Européias, em que expressa seu desejo de liberdade e um incondicional otimismo no Surrealismo. “Mais longe do que a ciência jamais irá chegar, lá onde as flechas da razão se quebram contra as nuvens, existe esse labirinto, num ponto central onde convergem todas as forças do ser e todos os nervos essenciais do Espírito. Nesse dédalo de paredes móveis e sempre mutantes, fora de todas as formas conhecidas de pensamento, o nosso Espírito se agita, atento aos seus movimentos mais secretos e espontâneos – aqueles com o caráter de revelação, um ar de ter vindo de alhures, de ter caído do céu... A Europa se cristaliza, mumifica-se lentamente sob o envoltório de suas fronteiras, suas fábricas, seus tribunais de justiça, suas universidades. A culpa está nos vossos sistemas bolorentos, na vossa lógica de dois mais dois igual a quatro; a culpa está em vocês, reitores... O menor ato de criação espontânea é um mundo bem mais complexo e revelador do que qualquer metafísica”. 29 A vitória do Surrealismo pôde, para orgulho de seus promotores ser percebida concretamente em janeiro/fevereiro de 1938, através da Exposição Internacional do Surrealismo, em Paris, que contou com a participação de quatorze países. Depois de decorrido muito tempo do lançamento e do predomínio da chamada ‘imagem verbal’, a qual Breton dizia ser sua melhor forma de concretizar os sonhos inconscientes, na exposição de 1938 – que marca o apogeu do movimento – o que dominou foi a criação do objeto. Segundo Ades, op.cit., p.97: Duchamp, que organizou toda a decoração, pendurou no teto duzentos sacos de carvão; folhas mortas e grama cobriam o chão em redor de um tanque orlado de caniços e samambaias, um braseiro de carvão ardia no centro e em cada um dos cantos do recinto havia uma enorme cama de casal. Na entrada para a exposição estava colocado o Táxi Chuvoso de Dalí, um carro abandonado em que a hera crescia por todo o lado, tendo em seu interior os bonecos do motorista e de uma passageira histérica, que eram regados com água, e havia caracóis vivos rastejando por eles. O acesso ao pavilhão principal fazia-se por uma ‘rua surrealista’, com manequins femininos alinhados de ambos os lados e ‘vestidos’, por Arp, Dalí. Duchamp, Ernst, Masson, Man Ray e outros. No interior do pavilhão estavam reunidos, além dos numerosos quadros, objetos surrealistas tais como a xícara com pires para o café da manhã, forrados e revestidos com peles, e Jamais, de Dominguez, um imenso gramofone com um par de pernas sobressaindo do pavilhão acústico e uma mão de mulher substituindo o braço do pick-up. Benjamin (Op.cit., p.23.): “essas experiências não se limitam de modo algum ao sonho, ao haxixe e ao ópio. É um grande erro supor que só podemos conhecer das ‘experiências surrealistas’ os êxtases religiosos ou os êxtases provocados pela droga”. A partir desse conjunto de ações, juntam-se ao grupo: André Masson, Mathias Lubeck, Georges Malkine, Pierre Naville30, Raymond Queneau, Antonin Artaud, Jacques Prévert, Marcel Duhamel e Pierre Brasseur; lembrando que do grupo já faziam parte: Paul Éluard, Benjamin Péret, Roger Vitrac, Joseph Delteil, Limbour, Jean Carrive, Baron, Georges Limbour, Robert Desnos, Marcel Noll, Francis Gerard, Marcel Duchamp, Max Ernst, Crevel, Max Morise, Georges Auric, Jean Paulhan, e Man Ray. De modo esquemático, tanto no primeiro manifesto quanto na revista Révolution, Breton e seus companheiros incitariam os artistas e intelectuais a reduzirem ao máximo a pressão exercida pela preocupação estética e moral, deixando aflorar ao máximo o impulso de suas vidas interiores, fundamentalmente por meio da imaginação. Desse modo, em uma passagem do primeiro manifesto, assim afirmava Breton: “Reduzir a imaginação à escravidão, ainda que se fizesse pouco caso do que se chama grotescamente de felicidade, é esquivar-se a tudo o que se pode encontrar, no fundo de si mesmo, de justiça suprema. Só a imaginação me faz perceber aquilo que pode ser e é o suficiente para levantar um pouco a terrível interdição; bastante também para que eu me abandone a ela sem receio de me enganar”. Acresça-se a isso, ainda, o fato de estar sendo defendido um princípio segundo o qual seria extremamente insuficiente que as formas mais tradicionais de arte pudessem ser suficientes para exprimir a angústia do homem moderno. Dessa forma, os impulsos inconscientes, que os surrealistas pretendiam captar, não encontrariam tradução numa articulação lógica e consciente. Segundo a ótica de Breton, dentre outras coisas, e no sentido de oposição à moral burguesa e sua crença nos valores judaico cristãos, aparece no primeiro manifesto: “O surrealismo proclama a onipotência do desejo e a legitimidade de sua realização, tendo o Marquês de Sade como a figura central de seus propósitos”. O objetivo da arte surrealista centrar-se-ia na estimulação das capacidades verdadeiramente imaginativas que se esconderiam no subconsciente e, como decorrência disso, na exposição/expressão do pensamento sem mediação da lógica cartesiana e 30 Naville, em seu texto La révolution et les intellectuels, escreveu que o movimento surrealista poderia ser considerado como dialético, fundamentalmente pela evolução das atitudes contemplativas às revolucionárias, posto que: “a hostilidade da burguesia contra toda manifestação de liberdade espiritual desempenha um papel decisivo. Foi essa hostilidade que empurrou para a esquerda o surrealismo”. Apud Benjamin. Op.cit., p.28. tradicional (ou qualquer outro tipo de lógica), segundo a qual toda causa produziria um efeito, semelhante ao par ação/reação. Nessa perspectiva, era preciso que o artista libertasse seus instintos e impulsos sem nenhuma espécie de preocupação moral ou estética, tendo como eixo principal o deixar-se levar pela busca de materialização do sonho: de forma natural ou induzida31, da fantasia utópica e metafísica e com grande ênfase aos pesadelos32. Atitudes dessa natureza justificavam-se fundamentalmente pelo Estado burguês encontrar-se totalmente falido (guerra como índice incontestável disso). Nessa perspectiva, portanto, arte, ciência, filosofia e literatura produzidas por artistas e intelectuais ligados ao sistema eram totalmente execráveis pelos militantes ligados ao movimento.33 O conceito de niilismo dos dadaístas correspondia naquele momento, para os surrealistas ao de derrotismo (pela guerra passada e a eminência de outra em curso), expressando uma total descrença com relação à própria civilização, motivo pelo qual a arte deveria constituir-se em um canal de expressão que apresentasse sua possibilidade de redenção em um perspectiva onírica (e jamais admitida como escapista). No caminho, portanto, de “criação de um misticismo de um novo gênero”, através de Breton este objetivo transforma-se um pouco depois em “criação de um mito coletivo”. Nesse sentido (dissolvência do Estado burguês e reiteração de um ‘a que viemos’ importante dos surrealistas ), há um opúsculo surrealista, cujo trecho é transcrito de Maurice Nadeau. Op.cit., pp. 55-6: “Os surrealistas são os primeiros a declarar que não têm talento, que o talento não existe. Afinal, o que é talento? A possibilidade dada ou adquirida de arranjar sutil ou vigorosamente pequenas histórias, de descobrir maneiras engenhosas 31 De 1922 a 1924, tentando buscar uma nova ‘identidade’ e a constituição de um grupo autônomo, os futuros representantes do movimento, como Breton, Aragon, Eluard, René Crevel e outros, viveram um período denominado por eles de période des sommeils (algo semelhante a período de sono ou período dos sonâmbulos, como correspondente a diferentes formas de hipnotismo e uso de drogas), em que era explorado as possibilidades do automatismo e dos sonhos. Cita, a esse respeito, Dawn Ades. Op.cit., p.90: “Num artigo intitulado ‘Entrée des médiuns’, em 1922, Breton descreve a excitação que eles sentiram quando descobriram que, durante um transe hipnótico alguns deles, especialmente, Desnos, podiam produzir surpreendentes monólogos, escritos ou falados, repletos de imagens vividas de que seriam incapazes, afirmou ele, num estado consciente. Mas uma série de incidentes perturbadores, como a tentativa de suicídio em massa de todo um grupo deles durante um transe hipnótico, levou ao abandono desses experimentos e, no primeiro Manifesto Surrealista, Breton evita qualquer discussão de auxiliares ‘mecânicos’, como drogas ou o hipnotismo, enfatizando o surrealismo como atividade natural, não induzida”. 32 Aragon. Une vague de rêves. Apud Nadeau. Op.cit., p.50, nesse sentido afirmou: “Uma epidemia de sonos se abateu sobre os surrealistas... São sete ou oito que vivem tão-somente para esses instantes de esquecimento, onde com as luzes apagadas, falam sem consciência, como afogados ao ar livre”. 33 “Um regime incapaz de disciplinar suas energia para outra coisa que não o enfraquecimento e a destruição do homem foi à falência. Falência igualmente das elites que em todos os países aplaudem o massacre generalizado, engenhando-se para encontrar medidas capazes de fazê-lo perdurar. Falência da ciência, cujas mais belas descobertas residem na qualidade nova de um explosivo, ou no aperfeiçoamento de alguma máquina de matar. Falência das filosofias, que não vêem no homem nada mais que seu uniforme, e que se engenham em dar-lhe justificativas a fim de que não se envergonhe da função que o mandaram desempenhar. Falência da arte, que para nada mais serve que propor a melhor camuflagem, falência da literatura, simples apêndice ao comunicado militar. Falência de uma civilização que se volta contra si mesma e se devora”. Maurice Nadeau. Op.cit., p.15. de descrever o que existe, de inventar do melhor modo possível vocábulos raros. Longe de nós o escritor, longe de nós o poeta, longe de nós o próprio homem! ‘O eu aqui é mais detestável do que alhures’: Com sua massa compacta ele tapa a caverna de onde procedem todas as vozes, essas vozes que transtornam. Encontram-se em toda a parte em torno de nós; nem mesmo é preciso ter ouvido afinado para ouvi-las, basta escutá-las, basta ser dócil. E que ridícula pretensão de se prevalecer disso! O poeta à escuta de seu inconsciente terá contribuído com algo para a riqueza desse? Todos são poetas desde que se disponham a se colocar às ordens, e se o surrealismo não significa outra coisa senão este ‘colocar-se às ordens’, todos podem praticar esta ‘arte mágica’; a receita é de uma simplicidade derrisória: ‘o surrealismo está ao alcance de todos os inconscientes’.” Voltando novamente às oposições entre os dois movimentos, pode-se dizer que, apesar de haver diferenças(?) eles; ou, melhor dizendo – e talvez fosse mais interessante estabelecer uma analogia – o Surrealismo foi um filho que negou o pai Dadaísmo (e Freud explicou isso, não é mesmo?), tanto é que (e aqui se apresenta mais um exemplo à luz de tantos outros) Breton, ‘o primogênito’, eivado por um sentimento niilista e anárquico (característico daqueles mais tradicionais dos dadaístas: ou do pai, segundo a analogia) escreve no Segundo Manifesto Surrealista: “O mais simples ato surrealista consiste em ir para a rua, empunhando revólveres, e atirar ao acaso, até não poder mais, na multidão. Quem não teve, ao menos uma vez, vontade de assim acabar com o sisteminha de aviltamento e cretinização em vigor, tem seu lugar marcado nessa multidão, barriga à altura do cano da arma. A legitimação de um tal ato, não é de modo nenhum incompatível com a crença nesse clarão que o surrealismo busca revelar no fundo de nós. (...) Claro está também que o surrealismo não tem interesse em valorizar tudo que se produz a seu lado a pretexto de arte, até de antiarte, de filosofia ou de antifilosofia, em cada palavra, de tudo que não visa o aniquilamento do ser em um brilhante, interior e cego, que não seja nem a alma do gelo nem a do fogo”. XIII. 3. – Brevíssimo parênteses para as artes plásticas “As telas de Dalí são perturbadoras, mas não tão verdadeiramente transgressoras quanto às de Magritte. As telas de Magritte são controvertidas; questionam os nossos pressupostos acerca do mundo, acerca das relações entre um objeto pintado e um objeto real, e estabelecem analogias imprevistas ou justaposições de coisas completamente desconexas num estilo deliberadamente inexpressivo, o que tem o efeito de um lento estopim. Não têm um significado no sentido de que um argumento é resolúvel”. Dawn Ades. Surrealismo. Como o Surrealismo foi um movimento fundamentalmente literário,34 caberia ao 34 Aliás muitas são as teses segundo as quais as artes plásticas teriam sido meras ‘auxiliares’ do surrealismo, uma vez que as preocupações surrealistas, centradas nos problemas com a poesia (literatura) e a filosofia, parece ter preterido as artes pictóricas. Outros autores afirmam que, a despeito de raras indicações nos manifestos sobre as artes plásticas, os artistas plásticos teriam mantido uma posição de independência em relação à personalidade dominante de Breton. De qualquer forma, afirma Dawn Ades. Op. cit., p. 93: “Max Ernst talvez fosse o mais chegado aos poetas surrealistas, sobretudo a Paul Éluard, e acompanhou com interesse os desdobramentos teóricos do surrealismo. Em 1925, descobriu o frottage, que descreve como ‘o verdadeiro equivalente do que já é conhecido pelo termo escrita automática’. ‘Fui poeta, segundo a ótica de Breton, criar uma ‘poética anímica inconsciente’ (ideia essa amparada, desde a formação inicial do grupo, nas observações de Lautréamont: “a poesia deve ser feita por todos” e, também, na de Rimbaud, segundo a qual era preciso: “mudar a vida”35) que ultrapassasse e negasse a poesia: infensa e sem nenhuma preocupação característica pelo qual haviam sido rotulados os conceitos burgueses de ‘arte’ e de ‘beleza’, tidos como ordinários; dessa forma, e em seu lugar: “A ALMA do poeta é o que é: um magma onde turbilhonam sensações, sentimentos, desejos, aspirações que se exprimem no tumulto, na incoerência, na gratuidade, por intermédio da palavra ou da escrita, molde imemoravelmente lógico que deve ser desmembrado, quebrado, reduzido a seus elementos simples: os vocábulos, os únicos susceptíveis de expressar fielmente o transe poético em sua integridade”.36 A respeito dessa verdadeira profissão de fé na “alma em estado de inconsciência”, Gaston Regeot, Revue Blue, de 04/07/1925. Apud Henry Behar. Op.cit., p.15, apresenta uma espécie de balanço sobre o surrealismo, afirmando que: “Vê-se que o surrealismo não é outra coisa que uma adaptação ao atual gosto de mistério, do inexprimível [inexpressável], do inefável que encantava os simbolistas e que foi levado da poesia ao teatro por um Maurice Maeterlinck. Essa atualização do velho tema deve-se aos neurólogos e bastou para substituir a velha e simples análise psicológica pela psicanálise do conhecido doutor Freud”. Conceitos como alma, libertação de amarras burguesas, utopia, niilismo, transgressão, transe, choque e quejandos, tomando como mote principal o de automatismo tem sua origem, segundo Breton: “Como estudante de medicina, trabalhara na Clínica Charcot sob a orientação do neurologista Babinski e passara algum tempo no hospital de Nantes (onde assaltado pela obsessão que mostrava ao meu olhar excitado as tábuas do assoalho, nas quais mil arranhões tinham aprofundado as estrias. Decidi então investigar o simbolismo dessa obsessão e, para ajudar minhas faculdades meditativas e alucinatórias, fiz das tábuas uma série de desenhos, colocando sobre elas ao acaso folhas de papel que passei a friccionar com grafite. Olhando atentamente para os desenhos assim obtidos... surpreendeu-me a súbita intensificação de minhas capacidades de visão e a sucessão alucinatória de imagens contraditórias umas às outras”. 35 Nesse sentido, e com as ‘descobertas’ das teses de Marx, em 1925, a frase de Rimbaud foi substituído pela ‘correlata’ do marxismo, segundo a qual era preciso: “transformar o mundo”. A adesão, em substituição à nova ideia contida no pressuposto marxista, vale dizer, acabou sendo usada como bandeira por poucos dos ‘ativistas’ do movimento que, por conta das ingerências políticas, acabaram se desligando do Surrealismo. Em 1930, com a publicação do Segundo Manifesto Surrealista, e até por conta da ratificação de alguns dos preceitos marxistas, novas adesões ao grupo se fizeram, destacando-se as de: Louis Buñuel, Salvador Dali e do ‘antigo’ dadaísta Tristan Tzara. Em 1941, Breton vai para os Estados Unidos, retornando a Paris em 1946. Nesse mesmo ano, Breton tratou de reeditar os seus manifestos, acrescentando-lhes um prolegômeno, chamado: ‘Prolégomenes à un troisième manifeste du surréalisme ou non’, no qual ratifica seu protesto contra a exploração do homem pelo homem e, também, pelas religiões. Desse modo, Breton acaba pregando um novo mito social, falando de seres superiores (provavelmente, e também, inspirado em alguns dos conceitos de Nietzsche) que se revelariam ou não, segundo algumas de nossas atitudes e condutas. O texto em epígrafe, terminava com a seguinte questão: “Um novo mito? É preciso convencer esses seres de que são o resultado de um espelhismo ou dar-lhes ocasião de manifestar-se?” Enfim, apesar dos esforços de Breton de retomar o Surrealismo, campeava por entre as consciências do período um forte ceticismo e niilismo, trazidos (naturalmente de modos opostos) sobretudo, pelo pensamento de Sartre e de Heidegger. 36 Maurice Nadeau. Op.cit., p.20 conhecera Vaché). Escrevendo no Manifesto sobre os anos que antecederam a guerra, diz Breton: ‘Completamente ocupado com Freud, como eu ainda estava nessa época, e familiarizado com os seus métodos de observação, que eu tivera ocasião de aplicar em pacientes durante a guerra, decidi obter de mim mesmo o que tentamos obter deles, um monólogo pronunciado o mais rapidamente possível, sobre o qual a mente crítica do indivíduo não deve produzir qualquer julgamento, e que, portanto, não seja embaraçado por nenhuma reticência e seja tão exatamente quanto possível, PENSAMENTO FALADO. Em colaboração com Philippe Soupault, produziu páginas e páginas escritas desse modo e que, quando as leram e compararam, os deixaram espantados com ‘a considerável seleção de imagens’ assim geradas, ‘de uma qualidade tal que não teríamos sido capazes de produzir usando a escrita comum’. As imagens, a vivacidade e a emoção nos seus escritos eram muito semelhantes – as diferenças nos textos provinham das diferenças em seus respectivos temperamentos, ‘sendo os de Soupault menos estáticos do que os meus’. Os surrealistas sempre sublinharam que o automatismo revelaria a verdadeira natureza individual de quem quer que o praticasse, de um modo muitíssimo mais completo do que em qualquer de suas criações conscientes. Pois o automatismo era o meio mais perfeito para alcançar e desvendar o inconsciente. Os textos que Breton e Soupault tinham escrito foram publicados em Littérature, em 1919, sob o título de Les Champs Magnétiques, os quais, cinco anos antes do Manifesto, podiam ser qualificados como a primeira obra surrealista”.37 O chamado automatismo (que guardaria, enquanto ato, a ‘transposição do impossível e do proibido; uma tradução automática do mecanismo ‘desinteressado’ do pensamento; liberação do inconsciente...) criado e preconizado por Breton representou uma das determinações mais características e específicas do Surrealismo; ao mesmo tempo, foi alvo de todo tipo de confusão e de incompreensão.38 Nessa perspectiva, e de modo bastante lúcido, Modesto Carone Neto. Op.cit., tomando Theodor Adorno, como uma de suas referências (e para quem ‘a justaposição descontínua de imagens teria o caráter de montagem’), afirma que o automatismo (escrita automática) aproxima-se – e não paradoxalmente – enquanto característica formal, ao conceito de montagem. Nas 37 Dawn Ades. Op.cit., p.91. Diferentemente da informação apresentada por Ades, no concernente à data de publicação de Champs magnétiques, em outras fontes de consulta aparece a data de 1921. Em outras fontes, ainda – e cuja informação parece mais correta – o texto em epígrafe teria sido criado em 1919, retrabalhado e publicado em 1921. 38 Em O surrealismo e a pintura, Breton, buscando defender suas teses, Apud Ades, p.94, afirma: “Nos termos da moderna pesquisa psicológica, sabemos que fomos levados a comparar a construção do ninho de um pássaro ao começo de uma melodia que tende para uma certa conclusão característica. Uma melodia impõe sua própria estrutura na medida em que distinguimos os sons que lhe pertencem daqueles que lhe são estranhos. Insisto em que o automatismo, tanto gráfico quanto verbal – sem prejuízo das profundas tensões individuais que ele é capaz de manifestar e, em certa medida, resolver –, é o único modo de expressão que satisfaz plenamente o olho ou o ouvido, ao realizar a unidade rítmica (tão reconhecível no desenho ou texto automático quanto na melodia ou no ninho)... E concordo que o automatismo pode participar na composição com certas intenções premeditadas; mas há um grande risco de afastamento do surrealismo, se o automatismo fluir às ocultas. Uma obra não pode ser considerada surrealista se o artista não se esforçar por abranger o campo psicológico total, do qual a consciência é apenas uma pequena parte. Freud mostrou que nessa profundidade ‘insondável’ prevalece a total ausência de contradição, uma nova mobilidade dos bloqueios emocionais causados pela repressão, uma intemporalidade e uma substituição da realidade externa pela realidade psíquica, tudo sujeito exclusivamente ao princípio do prazer. O automatismo conduz diretamente a esta região”. artes plásticas, por exemplo, Max Ernst descobriu, numa espécie de insight, o frottage, segundo o qual o artista pôde descobrir como um espectador e segundo suas próprias declarações: ‘o nascimento de uma obra’. A partir dessa descoberta de Ernst, vários foram os métodos buscados e criados no sentido de solicitar o inconsciente e, dentre eles, Oscar Dominguez criou a ‘decalcomania’: que consiste, por processo de pressão, em tentar captar os registros de tinta não seca em um outro papel. “Para Miró e Mason, automatismo iria oferecer, de formas diferentes, uma direção completamente nova para seus trabalhos. (...) Mason adotou sem reservas o princípio do automatismo, e os desenhos à pena e à tinta que começou no inverno de 1923-1924, logo depois do seu encontro com Breton, estão entre os mais notáveis produtos do surrealismo. A pena move-se rapidamente, sem ideia consciente de um tema, traçando uma teia de linhas nervosas, mas firmes, das quais emergem imagens que são, por vezes, aproveitadas e elaboradas, outras vezes deixadas como sugestões. Os mais bem-sucedidos desses desenhos possuem uma integridade que provém da elaboração inconsciente de referências textuais e sensuais, tanto quanto visuais”.39 Miró, que foi considerado por Breton, o maior de todos os surrealistas, explorou com ‘amplas e ilimitadas liberdades’ seus sonhos e fantasias da vida adulta e principalmente da infância, ao mesmo tempo em que desenvolveu um amplo processo de pesquisa (da arte infantil, da arte popular catalã e das obras de Hieronymus Bosch) e de experimentação. No início dos anos vinte, Miró opunha-se radicalmente à arte cubista, que para ele representava a ‘arte estabelecida’. Assim, em oposição à ‘arte estabelecida’, toda ela racional e calculada, o ato de criação, para o pintor (à semelhança do ocorrido com os poetas em relação às palavras), dividia-se em duas fases distintas, sendo a primeira absolutamente livre e inconsciente: algo como a tinta e o pincel levarem a mão (quase em transe hipnótico); e, a segunda, rigorosamente calculada. Acatando, portanto, a palavra de ordem ‘do chefe’ do movimento, Miró aprofunda-se no automatismo e realiza uma série de experimentações, como: aguada aleatória; improvisação com linhas, formas e cores; criação de formas biomórficas e linguagem de sinais. As produções resultantes dessas experimentações ilusionísticas, como boa parte da produção surrealista, ficaram conhecidas pelo nome de ‘pinturas oníricas’; sem, entretanto, guardar referência direta aos sonhos.40 “A distinção entre o automatismo e os sonhos, postulada, por exemplo, em La Révolution Surréaliste, onde seções separadas são dedicadas a textos 39 Dawn Ades. Op.cit., 94. Segundo Dawn Ades. Op.cit., p. 96: “As telas de Salvador Dalí (...) constituem uma dramatização deliberada de seu próprio estado psíquico, tão substancialmente influenciadas pelas foram leituras de psicologia do autor que parecem, por vezes, ilustrações para um caso clínico estudado por Freud ou KrafftEbing”. 40 automáticos e à narração de sonhos, não se aplica rigidamente, em absoluto, à pintura surrealista. Arp, Miró, Ernst, por exemplo, misturam habilmente ambas as coisas, não só em sua obra como um todo, mas dentro do mesmo quadro. As pinturas, relevos e esculturas de Arp têm afinidades com o automatismo e os sonhos: ele refere-se às suas ‘obras plásticas sonhadas’. Sua morfologia flexível presta-se naturalmente a trocadilhos visuais, como a mão que também é um garfo, os botões que também são seios, que proliferam em suas obras dos anos 20, quando esteve em estreito contato com os surrealistas”.41 Do grupo de pintores surrealistas, Dalí42 afirmava que suas obras, criadas a partir de um hipertrofiado realismo onírico, caracterizavam-se em representantes de antiarte (mas como conceito diferente daquele desenvolvido pelos dadaístas), considerando-as, ainda, livres de “considerações plásticas e outras ‘besteiras’.” Segundo Ades. Op.cit., p.96: “Dalí juntou-se aos surrealistas em 1929, época em que o movimento estava sacudido por conflitos pessoais e políticos. Nos anos seguintes, Dalí emprestoulhe um novo foco, não só na pintura, mas também através de outras atividades, como o filme Um cão andaluz (1920), que ele fez com Buñuel. Em 1936, o modo cínico como ele se promovia e a sua total indiferença política numa época em que o s surrealistas se mobilizavam para a ação positiva provaram ser excessivamente prejudiciais, e ele foi expulso do movimento.43 “Dalí disse que a única diferença existente entre ele próprio e um louco é que ele não era louco. A paranoia, que ele afirmava ser responsável por suas imagens duplas, pouco ou nada tinha a ver com a paranoia médica. A atividade crítico paranoica era uma adaptação do método de frottage de Ernst, que tinha feito entrar em jogo a capacidade visionária do artista. Envolvia a capacidade de perceber duas ou mais imagens numa só configuração. (...) O método baseou-se no ‘súbito poder de associações sistemáticas, próprio da paranoia’, e era ‘um método espontâneo de conhecimento irracional’. Disse Dalí: ‘Acredito estar próximo o momento em que, por um procedimento de pensamento paranoico ativo, será possível sistematizar a confusão para o total descrédito do mundo da realidade”. A Segunda Guerra Mundial – e de certa forma a ocupação de Paris, em 1940 – acaba por dispersar os surrealistas e tornar impossível a continuidade do movimento. Dessa forma, muitos dos artistas acabam por levar vários dos artistas ligados ao movimento para outros países. Breton, por exemplo, vai para a chamada ‘nova Capital do mundo’: Nova York, dando prosseguimento às suas atividades surrealistas. Com a ida de 41 Idem, ibidem, p.95. Segundo J.-F. Dupuis, Dalí fez parte daquilo que de mais reacionário existiu dentro do movimento surrealista. Assim, enquanto boa parte de seus companheiros, a partir de idas e vindas, participavam de discussões consequentes – orientadas e ‘desorientadas’ por tendências ou partidos políticos – Dalí teria aderido ao fascismo, ao catolicismo e ao franquismo. 43 O filme Um cão andaluz aparece em várias fontes como realizado em 1928. A respeito da obra do cineasta Luis Buñuel (1900-38), sem dúvida um dos mais polêmicos e maiores cineastas do cinema mundial (e sempre fiel às características do surrealismo), podem ser citados os seguintes filmes: L’age d’or, de 1930, realizado também em colaboração com Salvador Dali; Os esquecidos 1950; Subida ao céu 1951; A vida criminal de Archibaldo de la Cruz 1955; A morte no jardim 1956; Nazarin 1958; Viridiana 1961; O anjo exterminador 1962; O diário de uma camareira 1964; A bela da tarde 1966; O estranho caminho de São Tiago 1969; Tristana 1970; O discreto charme da burguesia 1972; O fantasma da liberdade 1974; Esse obscuro objeto do desejo 1977. 42 Breton e outros (Ernst, Masson) aos Estados Unidos... muitos dos movimentos norteamericanos surgidos no pós-guerra foram, sem dúvida, ajudados pela influência deles, como a art-pop, o expressionismo abstrato e outros. Para finalizar, à luz do exposto de acordo com classificações formuladas por historiadores das artes plásticas, o movimento surrealista, nas artes plásticas, poderia ser dividido em: surrealismo gestual – Miró, Max Ernst etc; surrealismo figurativo – Dali etc e Action painting – Hans Arp etc. XIII. 4. – Manifestos e fases do Surrealismo “Eu, Sérgio Buarque de Holanda, acho discutível que em todas as coisas exista um limite, um termo, além do qual perdem sua instabilidade, que é uma condição de vida, para se instalarem confortavelmente no que só por eufemismo chamamos de expressão e que na realidade é menos que seu reflexo. (...) Nada nos constrange a que nos fiemos por completo na suave e engenhosa caligrafia que os homens inventaram para substituir o desenho rígido e anguloso das coisas. Hoje mais do que nunca toda arte poética há de ser principalmente – por quase nada eu diria apenas – uma declaração dos direitos do Sonho. Depois de tantos séculos em que os homens mais honestos se compraziam em escamotear o melhor da realidade em nome da realidade temos de procurar o paraíso nas regiões ainda inexploradas. Resta-nos portanto o recurso de dizer das nossas expedições armadas por esses domínios. Só à noite enxergamos claro. (...) Mas de que nos vale ter confiança no milagre se não ousamos transpor aquele impossível e aquele proibido, colocados ali por prudência ou por covardia?” Sérgio Buarque de Holanda. Terra roxa e outras terras. Apud Maria Célia de M. Leonel. Revista Estética e Modernismo. “Partindo de Hegel tal como Marx e Engels, ainda que por outras vias, o surrealismo desemboca no materialismo dialético”. René Crevel. Surrealisme au Service de la Révolution 3. Em várias fontes bibliográficas, e de modo esquemático reducionista (claro!), encontra-se a informação segundo a qual o Surrealismo pode ser dividido em quatro fases, assim organizadas: 1ª (a partir de 1922 até 1924, quando da publicação do primeiro manifesto do Surrealismo) - designada de revolução artística: iniciada a partir da separação e racha com o movimento Dadá, mas , ainda, com muitas das características do movimento anterior: ou seja, radicalização das ideias dadaístas; Obs. – Maurice Nadeau. Op.cit. chama esta primeira fase de pós-dadaísmo ou de “excitadores do Surrealismo”. 2ª (de 1924 até 1927) - de aproximação psicanalítica: em que são experimentadas drogas e desenvolvidas artisticamente algumas das teorias da psicanálise, enfatizando o inconsciente, os sonhos (a partir do desenvolvimento das chamadas imagens pré- lógicas), hipnose e o automatismo; Obs. – para alguns teóricos estas duas fases formam uma única. Nadeau chama esta fase de “O período heroico do Surrealismo (1923-25)”. 3ª (se 1927 até 1929) - de aproximação política: aquela em que são buscadas as filiações políticas, resumida no princípio segundo o qual o surrealismo estaria a serviço da revolução e vice-versa. Esta fase foi absolutamente polêmica, tanto para os artistas ligados ao Surrealismo (que mergulhados em questões místicas de diferentes matizes, tinham dificuldade para entender a filiação/ligação ao Partido Comunista Francês e a adesão ao materialismo histórico) quanto para os militantes do partido que viam com todo tipo de desconfiança os artistas do movimento. No Segundo Manifesto do Surrealismo, dentre outras coisas, Breton afirma: “Desde Hegel, não há sistema ideológico que possa, sem imediato desmoronamento, abandonar o vazio no próprio pensamento, decorrente do princípio de uma vontade operando só por sua conta, e tendendo a se refletir sobre si mesma. Quando eu relembro que a lealdade, no sentido hegeliano da palavra, não pode ser função senão da penetrabilidade da vida subjetiva pela vida ‘substancial’, e que sejam quais forem em outros aspectos suas divergências, esta ideia não encontrou objeção fundamental de parte de espíritos tão diversos como Feuerbach, acabando por negar a consciência como faculdade particular, como Marx, inteiramente absorvido pela necessidade de modificar de alto a baixo as condições exteriores da vida social, como Hartmann, tirando de uma teoria do inconsciente de base ultrapessimista uma afirmação nova e otimista de nossa vontade de viver, como Freud, insistindo cada vez mais na instância própria do superego, penso que ninguém irá ficar admirado por ver o surrealismo, em seu avanço, aplicar-se a outra coisa que não a resolução de um problema psicológico, por interessante que seja. É em nome do imperativo reconhecimento desta necessidade que acredito que não podemos evitar questionar-nos de maneira mais candente sobre o regime social sob o qual vivemos”. Obs. – Esta fase caracterizaria-se por uma grande radicalização e foi conhecida como um período, fundamentalmente, de expurgos. Em 1927, por exemplo, Roger Vitrac e Antonin Artaud (que haviam fundado o Teatro Alfred Jarry) acabaram sendo expulsos do movimento, sob a alegação de comercialização de suas obras. Inúmeras foram as querelas e polêmicas acerca dessa expulsão e a de vários outros integrantes do movimento. Breton polemizou com Soupault, Vitrac e Artaud tanto ‘ao vivo’, por meio de bate-bocas quanto por textos escritos. Algumas das afirmações de Breton acerca de seus contendores, apresentadas no Segundo Manifesto, passam por coisas da seguinte natureza: “o sr. Soupault e com ele, a infâmia total: nem falemos do que ele assina, falemos do que não assina, das pequenas notícias deste gênero que ele ‘passa’, negando sempre sua autoria, com sua agitação de rato percorrendo o ratódromo, nos jornais de chantagem”; “De minha parte, confesso sentir um certo prazer quando o sr. Artaud procura me fazer passar por um homem desonesto e quando o sr. Soupault tem o descaramento de me chamar de ladrão. É, enfim, o sr. Vitrac, verdadeiro porcalhão das ideias (...) pobre coitado que em cuja ingenuidade a toda prova chegou a confessar que seu ideal como homem de teatro, ideal que também é naturalmente o do sr. Artaud, é organizar espetáculos que possam rivalizar em beleza com as ‘batidas’ policiais (declaração do Teatro Alfred Jarry)”; “penso que não estou autorizado a deixar em sua vida de vadios os poltrões, simuladores, arrivistas, falsários, delatores.”; “é mais que tolerável que eu incrimine, de passagem, os trânsfugas do surrealismo, para quem é muito difícil ou elevado demais o que sustento aqui”; “É o sr. Artaud, como foi visto e como se poderia tê-lo visto, esbofeteado num corredor de hotel por Pierre Unik, pedir socorro a sua mãe!”; “Que um ator com fito de lucro e de glória empreenda montar luxuosamente uma peça do vago Strindberg, à qual ele mesmo não dá nenhuma importância, claro, eu não veria nisso nenhum inconveniente particular se este ator não tivesse passado, de tempos em tempos, por homem de pensamento, de cólera e de sangue, se não fosse o mesmo que em tais e tais páginas da Revolução Surrealista desejava ardentemente, a acreditar-se nele, ‘queimar’ tudo, pretendia nada esperar senão desse ‘grito do espírito que retorna a si, bem decidido a triturar desesperadamente seus grilhões’. Que pena! Para ele era só um papel como outro; ele ‘montava’ O sonho de Strindberg, tendo ouvido dizer que a embaixada da Suécia pagaria (o sr. Artaud sabe que tenho a prova), e não lhe escapava que isto julgava o valor moral de seu empreendimento (...) O sr. Artaud, que sempre reverei como um ‘tira’ de cada lado na porta do Teatro Alfred Jarry, instigando outros vinte contra os únicos amigos com que ele contava na véspera, tendo negociado previamente na delegacia sua prisão, é naturalmente o sr. Artaud que me considera mal vindo para falar de honra.” Nesse particular, afirmam alguns historiadores que Artaud, apesar de ligado ao movimento desde, basicamente seu início, foi, sobretudo, criador de uma proposta fundamentada em uma vivência absolutamente pessoal e coerente aos paradigmas com os quais se identificou. Nadeau chama esta fase de “período raciocinante do Surrealismo”. Para Artaud, desde 1924: “A esperança de uma sociedade sem classes e do reino da liberdade, tão apaixonadamente alimentada pelo surrealismo, desapareceu já. Quando a revelação do estalinismo obscurecer o seu efeito no coração de Breton e seus amigos, o surrealismo apropriar-se-á intelectualmente da conclusão de Artaud, o desígnio de viver como tragédia cósmica do espírito o drama da alienação cotidiana”. 44 Segundo algumas fontes bibliográficas, Artaud (por mais metafísico que se pretendesse – e gostaria de lembrar, que a despeito disso tudo – jamais deixou de ser francês) teria sido admirado por muitos diretores alemães e russos, mas o que diferenciaria seus trabalhos, por uma dessas fontes seria: “Aqui tocamos de perto nos limites da influência exercida sobre Artaud pelos russos e pelos alemães, e a admiração que ele lhes dedicou. Artaud lhes é reconhecido por combaterem o teatro literário e psicológico, ao mesmo tempo que instituem um novo espaço cênico. Mas a partir daí os caminhos divergem. Artaud não pretende fazer o mesmo teatro que eles; o teatro deles é político, o seu é metafísico e mágico. Daí vem a condenação inapelável que lança contra 44 J.-F. Dupuis. Op.cit., p.47. eles, sem que haja nenhuma contradição com os elogios que lhes consagra ocasionalmente. Desde 1924, ele ataca os que: ‘substituíram certas tradições molierescas e oficiais pelas novas tradições vindas da Rússia ou de outros lugares’(...) Condenação retomada oito anos mais tarde (1932) com maior clareza: ‘Considero vãs todas as tentativas feitas na Rússia para fazer o teatro servir a objetivos sociais e revolucionários imediatos, por mais inovadores que sejam os processos de encenação empregados. Tais condutas, na medida em que se submetem aos dados mais estritos do materialismo dialético, viram as costas à metafísica, que eles desprezam, e permanecem apenas uma encenação, na acepção mais grosseira do termo’.”45 4ª - de aproximação mística: aquela em que houve uma aproximação das filosofias orientais.46 Obs.- Nadeau chama esta fase de “autonomia do Surrealismo”, compreendendo o período de 1930-39. Da mesma forma como já havia acontecido com o Romantismo, que passou a designar várias coisas diversas das características mais ‘específicas ou determinantes’ do movimento, originalmente surgido na primeira década do século XIX na Alemanha; o termo surrealismo atualmente presta-se a designar uma série de coisas, objetos, situações que pouco ou quase nada tem a ver com o movimento. Dessa forma, e como aparece no primeiro Manifesto do Surrealismo, é bom recordar, que para além do sonho e da vigília, os surrealistas, vislumbravam ‘concretizar’ um estado de supra realidade ou de sob(re)vida. Assim, afirmava Breton: “Tudo sugere a existência de um certo ponto da mente no qual vida e morte, real e imaginário, passado e futuro, o comunicável e o incomunicável, as alturas e as profundidades deixam de ser percebidos como contraditórios. Ora, seria em vão que se buscaria qualquer outro motivo para a atividade surrealista a não ser a esperança de determinar esse ponto”. “Tanto se crê na vida, no que a vida tem de mais precário, a vida real, entendase, que afinal essa crença acaba por se perder. O homem, sonhador definitivo, cada dia mais descontente com a sua sorte, a custo vai dando a volta aos objetos de que foi levado a fazer uso e que lhe foram entregues pela sua indiferença ou pelo seu esforço, pelo seu esforço quase sempre, já que ele consentiu em trabalhar, ou pelo menos não lhe repugnou jogar a sua sorte (aquilo a que ele chama a sua sorte). Cabe-lhe agora uma grande modéstia: sabe quais as mulheres que teve, em que aventuras risíveis se meteu; a sua riqueza ou a sua pobreza não lhe servem para nada, nesse aspecto ele continua a ser a criança que acaba de nascer e, quanto à aprovação da sua consciência moral, admito que passe bem sem ela”. Entre 1924 e 1925 parece prevalecer no movimento a ideia de que seria necessário completar a crítica feita pelos artistas do surrealismo a uma participação política mais efetiva: e cujo objetivo seria a produção artística buscada a partir de um ‘certo estado de furor’. Dessa forma, alguns dos surrealistas acabam (não sem oposições recíprocas 45 Alain Virmaux. Artaud e o teatro. Op.cit., p.149. Vale, ainda, afirmar (e/ou ratificar) que foram tais pensamentos rigorosamente classistas e alienantes que acabaram por fazer com que ele tivesse sido expulso do movimento surrealista, em fase de ‘compromisso assumidamente político’. 46 Trata-se, e como já falado, evidentemente de um reducionismo total; entretanto, bastante conformado com as inúmeras contradições do movimento como um todo. Breton, em 1938, afirmou que dois seriam os leitmotivs do movimento: primeiro que não haveria saída nenhuma fora do amor (cf. L’amour fou); e, o segundo seria a importância e necessidade da ideia do sagrado e do oculto. ambos os lados) por filiar-se ao Partido Comunista Francês, ou mais especificamente a aproximar-se de alguns dos militantes mais ‘à esquerda do partido’, formado por representantes de vários grupos, ligados de uma forma ou outra à revista conhecida pelo nome de Clarté. A esse respeito, assim comenta Dupuis. Op.cit., pp.29-30: “Para muitos, obter, na impossibilidade do apoio do partido, pelo menos a sua benevolência, era romper com os homens de letras duma forma mais decisiva do que continuando a representar o papel de bárbaros da cultura, correndo o risco de nela instaurarem um dia o seu poder e de acabarem por ser recuperados. Para estes e para alguns outros, a imagem, explorada pela direita, do bolchevista de faca nos dentes não deixava de ser sedutora. (...) Só Artaud, sensível ao menor sinal de opressão, guardou as suas distâncias em ‘conhecimento’ de causa. À medida que os seus amigos se aproximavam de Clarté, eclipsou-se, desapareceu. Soupault, Vitrac, Baron e alguns outros optaram francamente pela carreira literária; saíram pela outra porta”. Em 1927, Breton adere ao Partido Comunista Francês, demonstrando uma grande vontade de agir de acordo com as determinações partidárias mas logo se cansa devido, segundo suas próprias alegações e também a de alguns de seus companheiros, ao excesso burocrático. Decepcionado e desiludido, desliga-se dele, desistindo de buscar conexões partidárias entre arte e política. Assim, a partir do desligamento do partido, em 1931, os surrealistas aderiram à Associação dos Escritores e Artistas Revolucionários, controlada pelo partido, mas de modo militante. As relações entre o partido e os surrealistas tornaram-se cada vez mais hostis. Dessa forma, a ruptura configura-se verdadeiramente em 1935, às vésperas do Congresso dos Escritores para a Defesa da Cultura,47 quando Breton encontra Ilya Ehrenbourg, no Boulevar de Montparnasse, dizendo-lhe: “Eu não tinha esquecido certa passagem do seu livro intitulado Vus par un Écrivain de l’U.R.S.S., aparecido uns meses atrás e onde se dizia nomeadamente: os surrealistas gostam muito de Hegel e de Marx e da Revolução, mas do que não gostam é de trabalhar. Têm as suas ocupações. Estudam, por exemplo, a pederastia e os sonhos... Dedicam-se a devorar, este 47 Segundo J.-F. Dupuis. Op.cit., p.37: “Na véspera do congresso, depois de fatigantes discussões mantidas com os organizadores para que a palavra fosse dada a Breton, René Crevel mata-se. O seu gesto, bem como o solipsismo de Antonin Artaud, contêm a resposta imediata, espontânea e negativa ao problema levantado pelo surrealismo com base em elementos falsos: como, assentado em setores autônomos – já arruinados objetivamente como valores humanos em jugo do sistema espetacular mercantil -, na base de atividades parcelares mas erigidas em totalidade (arte, política, pensamento, inconsciente, sob(re)vida, etc) e apresentadas como positivas, atingir uma unidade do indivíduo consigo próprio e com os outros? Como é que o surrealismo, negligenciando a aspiração dadaísta no sentido do ponto de negatividade total podia fundar historicamente a sua vontade de uma positividade e de superação global?“Os surrealistas denunciam os processos de Moscou. Aproximam-se de Georges Bataille, cujo movimento, Contre-Attaque, se considera uma ‘associação de combate antifascista de intelectuais revolucionários’. (...) Benjamin Péret publica Je ne Mange pas de ce Pain-lá onde a poesia procura verdadeiramente a sua prática, incitando à liquidação da tropa, da polícia, dos padres, dos patrões, do dinheiro, do trabalho e de todas as outras forças de embrutecimento. Péret, que tem a coragem das suas convicções, empenha-se ao lado dos anarquistas na revolução espanhola. Será o único presente neste combate, que todos os seus amigos defenderam com entusiasmo, mas de longe”. uma herança, aquele o dote da mulher..., etc. Depois de me ter apresentado, esbofeteei-o por várias vezes, enquanto ele lastimosamente tentava parlamentar, sem mesmo levantar a mão para proteger a cara. Não vejo que outro desforço pudesse tirar deste difamador profissional...”48 No segundo Manifesto Surrealista de 1929 – espécie de manifesto em que se propunha um ‘ajuste de contas’–, Breton apresenta as novas alternativas do movimento: MOSTRAR, LIBERTAR ou TRANSFORMAR? Ao mesmo tempo em que o manifesto é publicado há uma grande cisão dos membros do movimento que estavam filiados ao Partido Comunista Francês, e cujo lema, até aquele momento havia sido: “Revolução a serviço do Surrealismo ou Surrealismo a serviço da Revolução?”. Com o abandono das questões políticas, houve expulsão de alguns dos membros do movimento como: Baron, Masson, Prévert, Desnos, Vitrac, Limbour e Quenou. A partir desse período, também, uma série de brigas, desentendimentos e rompimentos aconteceram entre os remanescentes. Alguns dos membros do movimento tomam posição defendendo Trotsky, outros Stalin, outros aquilo que de pior havia no fascismo (como se tudo não fosse péssimo) como Franco, outros ainda o catolicismo... Breton, sem dúvida, o líder do movimento, briga com alguns companheiros, reata a amizade e os trabalhos, briga novamente. Enfim, foi um momento em que a situação mundial e a eminência sempre alardeada de uma guerra, demandava atitudes e compromissos e todo tipo de radicalização intransigente no sentido da defesa de princípios. Com o intuito de apenas ilustrar um desses rompimentos, vale acompanhar o ocorrido entre Breton e Éluard (que tomara a defesa do estalinismo). Breton, no México, aproxima-se das proposições críticas defendidas por Trotsky (e às da Quarta Internacional) e escreve com o artista plástico e militante comunista Diego Rivera o manifesto: Pour une Art Révolutionnaire Indépendant (‘Por uma Arte Revolucionária Independente) e fica sabendo que Éluard teve poemas publicados na revista Commune (pró Stalin) – órgão da ‘Casa de Cultura’. Preocupado e decepcionado com a atitude do companheiro, escreve-lhe o seguinte: “apressei-me naturalmente a informá-lo por carta dos inqualificáveis processos que esta organização tinha utilizado contra mim, e eu não duvidava que, em relação a ela, retomasse imediatamente as suas distâncias. Mas não obtive qualquer resposta e, no meu regresso, fiquei estupefato ao ouvi-lo alegar que uma tal colaboração não implicava da sua parte nenhuma solidariedade particular, pois se persuadira que um poema seu se defendia a si próprio, não importa onde, dadas as suas qualidades intrínsecas, de modo que, no decurso dos últimos meses, tão naturalmente como na Commune, tinha elaborado em publicações fascistas – são os seus próprios termos – na Alemanha e na Itália. Limitei-me a observar-lhe que uma tal atitude implicava da sua parte a quebra de 48 Idem, ibidem, p.36. qualquer espécie de contrato existente entre nós e tornava inútil qualquer novo encontro”.49 A já citada briga e rompimento entre Breton e Artaud teve vários lances; assim, em uma carta a Breton, escreve Artaud: “Como poderia escrever um texto para uma exposição à qual o mesmo público fétido vai comparecer, a uma alegria que, ainda que levantasse seus fundos em um banco comunista, é uma galeria capitalista, onde se vendem muito caro quadros que não são mais pinturas, porém valores mercantis, valores intitulados VALORES e que são neste mundo tudo aquilo que, enquanto objeto, se denomina VALOR; essas espécies de grandes pedaços de papel impressos em cores múltiplas e que representam sobre um simples papel (oh, milagre) conteúdo de uma mina, de um campo, de um poço, de um sedimento, de uma empresa, de uma prospecção, e ao qual o possuidor, o proprietário não participou, nem mesmo com a ponta dos seus dedos, enquanto que milhões de operários sucumbiram devido a este mesmo objeto, para que o fenômeno denominado espírito possa usufruir à vontade do trabalho material do corpo”.50 De modo esquemático (com consciência dos ‘perigos’ representados pela pretensão do ‘dar conta’, mas com consciência do exercício didático), pode-se dizer que, dentre as características mais importantes, aquelas destacáveis seriam: - transposição do impossível e do proibido, no âmbito temático e formal. Nesse sentido, há uma declaração (transmitida) por Raymond Queneau e citada por Maurice Nadeau. Op.cit., p.69, bastante significativa: “A adesão a um movimento literário, qualquer que seja ele, pressupõe fé nas possibilidades de que se torne uma realidade. A realidade imediata da revolução surrealista não é de molde a mudar o que quer que seja na ordem física e aparente das coisas, tanto quanto de criar um movimento nos espíritos. A ideia de uma revolução surrealista qualquer visa à substância profunda e à ordem do pensamento... Visa a criar todo um misticismo de novo gênero... Todo adepto verdadeiro da revolução surrealista é levado a pensar que o movimento surrealista não é um movimento no abstrato, e especialmente num certo abstrato poético, sumamente execrável, mas é realmente capaz de mudar alguma coisa nos espíritos”. - escrita automática [“As frases continuavam a brotar em mim, eu estava prenhe de meu assunto”.], fundamentada no trabalho com o inconsciente e tomando como pressuposto (‘justificativo’), as teorias de Freud. Breton, no Primeiro Manifesto do Surrealismo, dentre outras justificativas, afirma: “Tão ocupado estava eu com Freud nessa época, e familiarizado com os seus métodos de exame que eu tivera alguma ocasião de praticar em doentes durante a guerra, que decidi obter de mim o que se procura obter deles, a saber, um monólogo de fluência tão rápida quanto possível sobre o qual o espírito crítico do sujeito não emita nenhum julgamento, que não seja, portanto, embaraçado com nenhuma reticência, e que seja exatamente quanto possível o pensamento 49 50 Idem, ibidem, p.39. Carta falado. (...) a velocidade do pensamento não é superior à da palavra e que ele não desafia forçadamente a língua, nem mesmo a caneta que corre”. “as descobertas de Freud. Com fé nestas descobertas desenha-se afinal uma corrente de opinião, graças à qual o explorador humano poderá levar mais longe suas investigações, pois que autorizado a não ter só em conta as realidades sumárias. (...) Se as profundezas de nosso espírito escondem estranhas forças capazes de aumentar as da superfície, ou contra elas lutar vitoriosamente, há todo interesse em captá-las, captá-las primeiro, para submetê-las depois, se for o caso, ao controle de nossa razão”. “Com justa razão Freud dirigiu sua crítica para o sonho. É inadmissível, com efeito, que esta parte considerável da atividade psíquica (pois que, ao menos do nascimento à morte do homem, o pensamento não tem solução de continuidade, a soma dos momentos de sonho, do ponto de vista tempo, a considerar só o sonho puro, o do sono, não é inferior à soma dos momentos de realidade, digamos apenas: dos momentos de vigília) não tenha recebido a atenção devida”. t radução automática do mecanismo ‘desinteressado’ do pensamento. Além das apologias feitas à capacidade/imaginação poderosa à seiva infantil, à imaginação desregrada (próxima àquela ‘praticada’ pelos loucos), tendo como corolário a ‘submersão’ no inconsciente e no mundo dos sonhos (em oposição ao estado de vigília), afirma Breton em uma passagem do Primeiro Manifesto do Surrealismo: “Creio cada vez mais na infalibilidade de meu pensamento em relação a mim mesmo, o que é justo. Contudo, nesta escrita do pensamento, onde se está à mercê da primeira distração exterior, podem ocorrer ‘sobras’. Não há desculpa se se tentar dissimulá-lo. Por definição, o pensamento é forte, incapaz de levar a mal. É à conta de sugestões exteriores que se devem levar estas fraquezas evidentes”. Ainda com relação a esse mesmo assunto, escreve Breton em outra passagem do mesmo manifesto: “Mande trazer com que escrever, quando já estiver colocado no lugar mais favorável possível para concentração do seu espírito sobre si mesmo. Ponha-se no estado mais passivo, ou receptivo, dos talentos de todos os outros. Pense que a literatura é um dos mais tristes caminhos que levam a tudo. Escreva depressa, sem assunto preconcebido, bastante depressa para não reprimir, e para fugir à tentação de reler. A primeira frase vem por si, tanto é verdade que a cada segundo há uma frase estranha ao nosso pensamento consciente, pedindo para ser exteriorizada. É bastante difícil para decidir sobre a frase seguinte: ela participa, sem dúvida, a um só tempo, de nossa atividade consciente e da outra, admitindo-se que o fato de haver escrito a primeira supões um mínimo de percepção. Isto não lhe importa, aliás; é aí que reside, em maior parte, o interesse do jogo surrealista. (...) Continue enquanto lhe apraz. Confie no caráter inesgotável do murmúrio. Se o silêncio ameaça cair, por uma falta da inatenção, digamos, que o leve a cometer um pequeno erro, não hesite em cortar uma linha muito clara. Após uma palavra cuja origem lhe pareça suspeita, ponha uma letra qualquer, a letra l, por exemplo, sempre a letra l, restabeleça o arbitrário, impondo esta letra como inicial à palavra que vem a seguir”. - persecução e estímulo a todos os tipos de acasos (dando continuidade aos mesmos expedientes buscados pelos dadaístas), com o objetivo de criação das imagens surrealistas, apresentadas no Primeiro Manifesto do Surrealismo da seguinte forma: “Não escondo que, para mim, a mais forte é a que tem o mais elevado grau de arbítrio; a que exige mais tempo para ser traduzida em linguagem prática, seja por conter uma enorme dose de contradição aparente, seja por ficar um de seus termos curiosamente disfarçado, seja por se apresentar como sensacional e pareça se desenlaçar pouco (fechando bruscamente o ângulo de seu compasso), seja porque retira dela mesma uma justificação formal derrisória, seja por ser de ordem alucinatória, seja por atribuir com naturalidade ao abstrato a máscara do concreto, ou inversamente, seja por implicar a negação de alguma propriedade física elementar, seja por provocar o riso”. - morte da palavra lógica, coerente e demonstrável – certa alusão paródica ao princípio segundo o qual “nada pode haver na imaginação que antes não tenha estado no inconsciente”. Escrever como exercício de ‘confessar o inconfessável’. Acerca da lógica, Breton escreve, dentre outras coisas, no Primeiro Manifesto: “Ainda vivemos sob o império da lógica, eis aí, bem entendido, onde eu queria chegar. Mas os procedimentos lógicos, em nossos dias, só se aplicam à resolução de problemas secundários. O racionalismo absoluto que continua em moda não permite considerar senão fatos dependendo estreitamente de nossa experiência. Os fins lógicos, ao contrário, nos escapam. Inútil acrescentar que à própria experiência forma impostos limites. Ela circula num gradeado de onde é cada vez mais difícil fazê-la sair. Ela se apoia, também, na utilidade imediata, que é guardada pelo bom senso”. - apologia ao caos (diferenciado daquele do dadaísmo) como enfrentamento moral; ao niilismo (diferenciado daquele dos dadaístas) com conotação de estado de angústia; ao inconsciente; à desrazão; aos anacronismos; às sinestesias; ao oculto; ao milagre... Nesse sentido, há um texto modelar de Aragon chamado Fragments d’une conférence prononcée à Madrid à la Residencia de los Estudiantes, de 18 de abril de 1925: “Ah! banqueiros, estudantes, operários, domésticas, vocês são os feladores do útil, os abaladores da necessidade. E nunca trabalharei, minhas mãos são puras. Insensatos, escondam-me as palmas de suas mãos, e esses calos intelectuais de que têm tanto orgulho. Amaldiçoo a ciência, essa irmã gêmea do trabalho. Conhecer! Desceram algum dia ao fundo deste poço escuro? O que encontraram aí, que galeria rumo ao céu? Pois bem, não lhes desejo senão um grande jato de gás que os restitua enfim à preguiça, que é a única pátria do verdadeiro pensamento. (...) Teremos razão em tudo. E antes de mais nada arruinaremos esta civilização que lhes é cara, onde são moldados como fósseis no xisto. Mundo ocidental, estás condenada à morte. Somos os derrotistas da Europa... Que o Oriente, o seu terror, responda por fim à nossa voz. Despertaremos por toda parte os germes da confusão e do mal-estar. Somos os agitadores do espírito. Todas as barrigadas são boas, todos os entraves as nossas felicidades malditos. (...) Mexa-se, Índia de mil braços, grande Brahma legendário. A ti, Egito! E que os traficantes de drogas se lancem sobre nossos países terrificados. Que a América ao longe se despenque de seus arranha-céus brancos em meio às proibições absurdas. Levanta-te ó mundo! Vê como esta terra está seca e boa para todos os incêndios. Parece palha. Sorriam. Somos aqueles que sempre estenderão a mão ao inimigo”. - apologia e busca a uma certa pureza encontrada na infância. Tal apologia aparece no Primeiro Manifesto Surrealista da seguinte forma: “O espírito que mergulha no surrealismo revive com exaltação a melhor parte de sua infância. Para ele é um pouco como a certeza de quem, a ponto de morrer afogado, repassa em menos de um minuto todo o insuperável de sua vida. (...) Das recordações de infância e de algumas outras, vêm um sentimento de não abarcado, e pois, de desencaminhado, que considero o mais fecundo que existe. Talvez seja a infância que mais se aproxima da ‘vida verdadeira’; a infância além da qual o homem só dispõe, além de seu salvo-conduto, de alguns bilhetes de favor; a infância onde tudo concorria entretanto para a posse eficaz, e sem acasos, de si mesmo. Graças ao surrealismo, parece que estas chances voltam. (...) Revive-se, na sombra, um terror precioso. (...) Eis ‘os elefantes com cabeça de mulher e os leões voadores’ que Soupault e eu ainda há pouco tremíamos de medo de encontrar, eis o ‘peixe solúvel’ que ainda me assusta um pouco. PEIXE INSOLÚVEL, não serei eu o peixe solúvel, nasci sob o signo de Peixes e o homem é solúvel em seu pensamento! A fauna e a flora do surrealismo são inconfessáveis”. - apologia ao Oriente e aos orientalismos. Tal necessidade aparece fundamentalmente na revista La Révolution Surréaliste 3, número totalmente consagrado à nova tese dos surrealistas com caráter absolutamente laudatório em que a Ásia aparece como o remédio ou “a cidadela de todas as esperanças”. Desse modo em um determinado momento da revista aparece, citado por Nadeau. Op.cit., p.70: “Somos teus fiéis servidores, ó grande Lama, dá-nos, dirige para nós tuas luzes, numa linguagem que nossos espíritos contaminados de europeus possam compreender e, se necessário, muda o nosso espírito, dá-nos um espírito totalmente voltado para os cimos perfeitos onde o espírito do homem não sofre mais”. Segundo muitos dos surrealistas, a Ásia seria o espaço em que as contradições não existiriam como no Ocidente, posto que a sociedade seria muitíssimo menos contraditória e, também, o espaço em que lutas fatigantes contra o mundo mal feito não teriam lugar. Segundo, provavelmente Artaud (e citado de Nadeau), no Oriente os homens pareciam ter descoberto de uma só vez o Segredo que milhares de homens do Ocidente se obstinavam penosamente em descobrir. De acordo, ainda, com Nadeau. Op.cit., pp.712: “O Oriente não é apenas a pátria dos Sábios, é também, para os surrealistas, o reservatório das forças selvagens, a pátria eterna dos ‘bárbaros’, dos grandes destruidores, inimigos da cultura, da arte, das pequenas manifestações ridículas dos ocidentais. Eternos revolucionários, armados com a tocha flamejante e incendiária, eles, sob as pegadas dos cavalos de Átila, semearam a ruína e a morte, com vistas a um renascimento. E a própria revolução russa, misteriosa porque asiática, já não se apresenta aos olhos de Breton e de seus amigos como ‘uma simples crise ministerial’. Nela fundirão finalmente todos os seus desejos ardentes, mas vagos, de revolução universal, encetada por um Oriente negador e regenerador”. XIII. 5. – Dramaturgia surrealista e seus criadores “Pourquoi écrivez-vous? Escrevo para me confessar. É a única resposta. Confessar o quê? O artista não sabe. Os símbolos ocultam suas tendências instintivas. Ele sabe que confessou alguma coisa porque se sente bem”. André Breton. Littérature “Considero a arte de pintar a ciência de justapor as cores de tal forma que o seu aspecto efetivo desapareça e deixe transparecer uma imagem poética... Na minha pintura não há assuntos nem temas, trata-se de imaginar imagens cuja poesia restitua às coisas conhecidas o que elas têm de absolutamente conhecido e ... desconhecível”. René Magritte. Carta a Sarane Alexandrian. “1°Não temos nada a ver com a literatura. Mas somos muito capazes, se necessário, de nos servir dela como todo o mundo. 2° O surrealismo não é um meio de expressão novo ou mais fácil, nem mesmo uma metafísica da poesia. É um meio de liberação total do espírito e de tudo o que se lhe assemelha. 3° Estamos bastante decididos a fazer uma Revolução. 4° Juntamos o termo surrealismo ao termo Revolução unicamente para mostrar o caráter desinteressado, desprendido e mesmo totalmente desesperado dessa revolução. 5° Não pretendemos mudar nada nos erros dos homens, mas queremos lhes demonstrar a fragilidade de seus pensamentos, sobre que alicerces frágeis, sobre que porões, construíram suas casas trementes. 6° Endereçamos à sociedade esta solene advertência. Que preste atenção aos seus desvios, a cada um dos falsos passos de seu espírito, não a fraudaremos, não... 7° Somos especialistas da Revolta. Não há um meio de ação que não sejamos capazes de empregar, se necessário... O surrealismo não é uma forma poética. É um brado do espírito que se volta para si mesmo e está nitidamente decidido a romper desesperadamente seus entraves. E se necessário com martelos materiais”. Texto transmitido por Raymond Queneau. (separata) La Révolution Surréaliste. 27/01/1925. Seguindo uma tradição presente em vários movimentos de vanguarda e como necessidade das ‘noitadas’ particulares de cada uma delas (serate, soirées), inicialmente os surrealistas criaram esquetes que foram publicadas na revista Littérature. Assim, as palavras de ordem do movimento, como: caos; surpresa; situações de irrealidade na realidade; interesse na morte da palavra (referindo-se ao beletrismo); automatismo; dinamismo; comunicação enigmática – fundamentada no onírico e no inconsciente; liberação do inconsciente; confessar o inconfessável escondido no inconsciente, sinestesias; elevado grau de lirismo..., para além do ‘previsto’ nos manifestos encontraram um canal propício nas obras dramatúrgicas. Vale , ainda, reiterar que o movimento surrealista, por todas as características próprias (e aqui apresentadas), do mesmo modo como procederam os dadaístas, apresentavam seus espetáculos inseridos mais no que se poderia chamar hoje de performances. Desse modo, e tendo em vista a fugacidade da arte – sobretudo a preconizada por eles – acrescentado ao trabalho da imaginação, não lhes interessava escrever textos que pudessem ser fixados em folhas de papel, ganhando, assim, a eternidade. Uma última evidência prende-se ao fato de que os embates entre os surrealistas foram constantes, dividindo-os cada vez mais. Assim, por conta de toda sorte de embates, os surrealistas (divididos em ‘várias facções’) por seu caráter virulento, viam-se obrigados a escrever constantemente para defenderem-se ou acusarem aqueles que os acusavam... Segundo Henry Behar. Op.cit., p. 18, um cronista de Comoedia, em 11/11/1924, saúda O matusalém, de Ivan Goll, representado em Berlin, como o primeiro texto dramático surrealista, já que para ele As mamas de Tirésias, de Apollinaire era “pura farsa”. − Peças: Desde 1919, André Breton, influenciado pelas teorias de Freud, buscando experimentar e exprimir as operações do pensamento (do inconsciente) e de apreender o seu funcionamento, por meio do automatismo e da escrita automática, ‘testando-a’ em Les champs magnétiques. Dessa forma, em processo de parceria, Soupault e Breton escrevem as duas primeiras peças do movimento: Vous m’oublierez e S’il vous plaît. L’Armoire à glace un beau soir, Au pied du mur e Trésor des jesuites, peças de Aragon e Breton. − Representantes do Surrealismo: Breton, Aragon, Soupault, Éluard, Péret, Roberto Desnos, Max Morise, Roger Vitrac, Hans Arp, Max Ernst, Miró, Louis Buñuel, Guilhaume Apollinaire etc. Pablo Picasso, um dos mais destacados artistas das artes visuais do século XX, escreveu um texto teatral bastante interessante, intitulado As meninas (ou As quatro meninas) – e bastante representativo de algumas tendências e palavras de ordem apresentadas pelos surrealistas. Desse modo, a apresentação do fragmento abaixo – do texto de Picasso – aponta algumas das características e aspectos do Surrealismo: “Meninas I, II e IV – Vamos à guerra, à guerra lá de casa. Anjinhos de marshmallow, ratos e ratazanas, noite de caramelos, guizos da manhã. A vida que passa aconteceu nos meus lençóis. É isso, é isso, é isso. A vida empaca para atrair as vacas. A vida é bela, escondamo-nos dela. Os bezerros morreram e já têm asas. A roda que gira desfaz seu vestido e mostra seus seios debaixo das ervas, a noite esconde seus peixinhos. A bela colombela ama o seu colombelo. Diga, malva-rosa, a aurora desta noite, conta uma estória, nos faça rir, tira a coleira, desata os terços, divirta-nos com a sua pistola sobre este buquê de rosas miséria miserere, como estamos contentes. Felizes por estarmos juntas amanhã, depois de amanhã, hoje e ontem”. (rodam, saltam e gritam cada vez mais depressa, cada vez com mais força e caem umas sobre as outras, rindo.) Menina IV – Ai, que gostosura, eu gostoseio, tu gostoseias, ela gostoseia. Feliz, feliz, feliz, feliz... Menina II – Feliz. Menina I – Estou feliz, estou feliz. (grita) É isso, é isso, é isso. (ouvem-se muitos pássaros e em cima delas começa a cair uma chuva de olhos que se pregam aos vestidos e cabelos). XIII. 6 – Excertos e destaques: “Nós não somos livres. E o céu ainda pode cair sobre nossas cabeças. O teatro foi, antes de tudo, criado para nos revelar essas verdades”. Antonin Artaud. O teatro da crueldade. “Atingir diretamente o organismo (...) mas para quê? Para construir o corpo. O projeto de Artaud, na verdade, não medicinal, e sim ontológico. O teatro e seu duplo e principalmente os escritos dos últimos anos frisam incansavelmente essa exigência de um corpo novo: Não aceito o fato de não ter feito meu corpo por mim mesmo. Mudar o corpo, mudar o mundo, uma coisa não se faz sem a outra: Não sou dos que acreditam que a civilização deva mudar para que o teatro mude; e acredito que o teatro, utilizado no seu sentido superior e o mais difícil possível, tem força para influir sobre o aspecto e sobre a formação das coisas (...). Sonho de uma subversão radical, da qual o teatro seria o agente e o princípio”. Alain Virmaux. Artaud e o teatro. “o caso de Gauguin e de Artaud, para os quais a confrontação com religiões e culturas primitivas teve o significado biográfico e artístico de uma revelação profética e de uma esperança histórica. Ambos refletiram artisticamente o niilismo, o vazio simbólico e vital, e o mal-estar cultural das metrópoles européias; ambos expressaram o fim de uma cultura histórica e ambos partiram para fora da civilização em busca de formas, cores e símbolos capazes de dar nova força a suas criações e, com elas, à cultura moderna”. Eduardo Subirats. Da vanguarda ao pós-moderno. Antonin Artaud,51 invariavelmente em boa parte da bibliografia teatral consultada (e para além dela, na quase totalidade existente), aparece ao lado de Bertolt Brecht e Constantin Stanislavski como uma das referências mais importantes do teatro contemporâneo. Trata-se, na perspectiva apresentada, de considerá-lo como um dos pilares e pressupostos estéticos que daria sustentação àquilo que de mais significativo, radical e emblemático se pode fazer em teatro. Considerado, portanto, como um dos paradigmas da linguagem teatral, Artaud – por meio de suas ideias, criações e metodologia – tem sido ciclicamente evocado e retomado; e, dessa forma, por releituras, de modos ‘acertados e equivocados’ muito tem contribuído (direta e indiretamente) por momentos extremamente significativos do teatro contemporâneo. Expulso do movimento surrealista em 1927 (junto com Vitrac), acusado de práticas comerciais no Teatro Alfred Jarry, Artaud justifica: “No dia 10 de dezembro de 1926, às 9 da noite, no café ‘Profeta’, em Paris, os 51 Monique BORIE e outros. Estética teatral: textos de Platão a Brecht. Op.cit., p.447, assim apresentam Artaud: “Antonin Artaud (1896-1948), escritor, encenador e ator francês, participou no movimento surrealista antes de se separar dele no momento da criação do Teatro Alfred Jarry, em 1926. Se nunca chegou a realizar esse ‘teatro da crueldade’ que propõe em O teatro e o seu duplo, não deixou menos de alimentar toda uma corrente do teatro contemporâneo pela força dessa visão limite, nunca atingida, que oferece. Esta visão é a de um teatro não apenas libertado da literatura e da psicologia, mas que reencontraria a eficácia original e mágica (quer dizer criadora de realidade) de uma linguagem de signos unificada, reconciliando, enfim, o corpo e o espírito, o abstrato e o concreto, o homem e o universo. O ator, portador de signos, está no centro; a sua respiração e o seu corpo estão na base desta nova gramática. Eles animam os seus ‘hieróglifos’. É fora do Ocidente – em direção ao Oriente (ele viu em Paris uma representação do teatro de Bali em 1931) ou ao México (faz uma viagem ao México e ao país dos trarahumaras em 1936) – que Artaud olha para encontrar modelos, em direção a essas culturas ‘sintéticas’ e unitárias onde as formas nunca são separadas das ‘forças’. Porque para além do processo do teatro ocidental, é o processo de toda uma cultura que Artaud faz, quer dizer, de uma certa prática da linguagem e, através dela, de uma visão do homem, do mundo e da vida”. surrealistas reúnem-se em congresso. Tratava-se de saber o que, diante da revolução social que estrondeava, o Surrealismo iria fazer do seu próprio desenvolvimento. Para mim, dado o que já se sabia do comunismo marxista, ao qual pretendiam aderir, a questão nem se colocava. Será que Artaud pouco se importa com a revolução?, perguntaram-me. Pouco me importo com a de vocês, pois o Surrealismo também havia se transformado num partido”. Respondendo às inquietações de Artaud, Breton cobra o posicionamento deste (e, também, de Soupault) e em nome de um determinado rigor ideológico à esquerda que impulsionava o Surrealismo ‘em rumo à necessidade de uma revolução’ (e que de modo mais determinado significou a adesão de vários dos surrealistas às fileiras do Partido Comunista Francês), defendia o ‘papa do movimento’ a aludida esquerdização deveria vir antes de quaisquer outros princípios. Como Artaud não concordava com os novos princípios e não se filiou ao partido acabou sendo expulso do movimento. Em resposta à decisão de expulsão, Artaud, defendendo os ‘eternos’ princípios do Surrealismo, em texto chamado Em plena noite ou o blefe surrealista, afirma: “Existe ainda uma aventura surrealista e o surrealismo não morreu no dia em que Breton e seus adeptos entenderam que era seu dever se vincular ao comunismo e buscar no domínio da matéria imediata a consecução de uma ação que só poderia se desenvolver normalmente nas disposições íntimas do cérebro... O Surrealismo sempre foi para mim uma nova espécie de magia. A imaginação, o sonho, toda essa intensa liberação do inconsciente, que tem por finalidade fazer aflorar à superfície da alma aquilo que ele tem por hábito manter escondido, deve necessariamente introduzir profundas transformações na escala das aparências, no valor da significação e no simbolismo do criado. Todo o concreto muda de vestimenta, de casca, não mais se aplica aos mesmos gestos mentais. O além, o invisível rechaçam a realidade. O mundo não resiste... Eu desprezo muito a vida para pensar que uma mudança, qualquer que seja, que se desenvolver no quadro das aparências, possa alterar alguma coisa na minha detestável condição. O que me separa dos surrealistas é que eles amam a vida tanto quanto eu a desprezo”.52 No concernente ao trabalho de encenação mais especificamente, Artaud deixou uma pequena (mas significativa) participação prática, destacando-se a adaptação do texto Os Cenci de Shelley e cuja direção foi considerada como sendo a sua mais expressiva e polêmica contribuição à linguagem teatral. Com relação aos seus textos teóricos (a maioria deles escrita em hospitais psiquiátricos, em que esteve internado de 1936 a 1946, com sérios problemas mentais) o Teatro e seu duplo (Le Théâtre et son doublé, escrito em 1936), transformou-se, ao longo dos anos – e fundamentalmente nos anos de 1960 – em uma espécie de ‘manual de sobrevivência’ para os militantes do chamado teatro de ultravanguarda: do teatro pânico, passando pelo teatro performático (happenings) ao hoje 52 Apud Silvana GARCIA. Op.cit., pp.251-3. chamado de teatro pós-moderno (em que tudo vale a partir da criação de ‘saladas’: tanto de frutas quanto as russas). De outro modo, pode-se dizer que por esse texto Artaud inaugurou e abriu espaço para as realizações mais radicais, anárquicas e antiteatrais da encenação contemporânea, transformando-se, em boa parte dos casos, em uma moda ou estilo. No texto O teatro e seu duplo, Artaud vislumbra o teatro como um flagelo vitorioso, uma epidemia redentora, defendendo a tese de que o teatro ocidental havia perdido seu sentido religioso, místico, mágico ritualístico e coletivo: sendo necessário, portanto, injetar o vírus do teatro no corpo social para desintegrá-lo. ‘Duplo’, portanto, representaria o medo metafísico (já presente no teatro desde a antiguidade), em que o espanto e o horror estariam plasmados em uma imagem (ou um signo). Dessa forma, e ainda no sentido de recuperar os elementos perdidos pela humanidade, a proposta estética preconizada por Artaud dava conta de que o teatro (“filho do delírio e da paixão”) não seria o duplo da realidade socioeconômica, mas da ‘realidade’ das forças ocultas que regeriam o mundo. Assim, as proposições artaudianas buscavam a criação de um teatro cuja linguagem fosse capaz de atingir o homem no mais fundo de si, revelando o interior humano onde habitariam a selvageria, a peste, os sonhos, o erotismo e o crime (numa espécie de metafísica agressiva e destruidora). Como decorrência dessas proposições, Artaud afirmava que sua teoria teria por objetivo: “Drenar um abcesso gigantesco, que seria a própria vida moderna, prevenir a violência descontrolada que a todo o momento nela ameaça deflagar, situando-a no palco, em ação com a intensidade exasperada de uma epidemia redentora”. Urgia, portanto, à luz da decadência da sociedade e da arte ocidentais (e como certeza nisso Artaud tinha razão), criar um teatro puro (e desintegrador da forma cultural tradicional) e cruel em que os atores pudessem afigurar-se como vítimas ardendo em uma imensa fogueira, transmitindo sinais de dentro das chamas com o objetivo de libertar a humanidade das repressões da civilização ocidental. Tais princípios, fundamentalmente de ordem metafísica e mística, foram em muito construídos a partir de uma pesquisa desenvolvida por Artaud da cultura oriental e da mitologia primitiva dos povos da América (e fundamentalmente da mexicana, onde o artista permaneceu um tempo). Assim, além de as imagens estupidificantes, as palavras em seu teatro não poderiam ser ditadas pela lógica, mas pelo misticismo mágico e por toda forma de violência (latente nos indivíduos), buscando refundir: “as ligações entre o que é e o que não é, entre a virtualidade do possível e o que já existe na natureza materializada”. No âmbito do espetáculo, Artaud defendia o princípio de que as ações deveriam ser desenvolvidas e apresentadas em vários planos e simultaneamente, que tornaria mais eficaz o objetivo purificador do teatro através da conquista da compaixão e do terror. O ator, em seu teatro, por ser um SIGNO VIVO deveria renunciar à sua liberdade de intérprete através de uma grande disciplina e capacidade de entrega. Dessa forma, ainda, deveria fugir da falsa representação (característica de todos os outros tipos de teatro e especialmente aquele característico do Realismo), sem entretanto deixar de submeter-se a uma gramática de efeitos ‘metodicamente calculados’. Artaud escreveu, em 1938, O teatro e seu duplo, contendo vários textos escritos anteriormente e, entre eles, dois manifestos, ambos chamados de Manifesto do Teatro da Crueldade escritos, respectivamente, em 1932 e 1933. De modo absolutamente esquemático e redutor, em ambos os manifestos, Artaud faz apologia à crueldade (guardando, ainda, conotação ao conceito de peste) apresentando-a como necessária para que o homem – à semelhança do conceito super-homem nietzschiano – pudesse colocar-se em face de sua realidade integral (priorizando, evidentemente, a interior) com o ‘poder’ de desmascará-la. Nessa acepção o conceito de peste é destacado como: “manifestação e a exteriorização de um fundo de crueldade latente pelo qual se localizam num indivíduo ou numa população todas as perversas possibilidades do espírito”. O teatro da crueldade – representando uma espécie de ritual de expurgo e de exorcismo –, deveria ser constituído pela substituição da poesia da linguagem por uma ‘poesia do espaço’, priorizando os sons, os gritos atávicos; as luzes aliadas à dança; a música e a pantomima, a partir da entrega total do ator e com o objetivo fundamental de atingir a sensibilidade total do espectador. Tal formulação pressupõe uma síntese de inúmeras teses de encenadores contemporâneos, sobretudo daquelas de Craig e Appia, por um lado; e, por outro (a despeito de os objetivos serem opostos) das de Meyerhold, passando, naturalmente por muitos indicadores tirados pelo Expressionismo. Acerca da palavra crueldade, em carta datada de 13/09/1932, assim afirma Artaud: “Não lhe posso dar detalhes sobre o meu manifesto que acarretassem o risco de lhe debilitarem o significado. Apenas posso, por agora, comentar o meu título ‘Teatro da Crueldade’ e tentar justificar tal escolha. Esta crueldade nada tem a ver com sadismo ou derramamento de sangue, ou, pelo menos, nada tem a ver exclusivamente. Não cultivo o horror sistematicamente. A palavra ‘crueldade’ tem de ser tomada num sentido lato, e não no sentido de excesso físico que lhe é habitualmente conferido. E, ao fazê-lo, sinto-me no direito pleno de não pactuar com o sentido habitual da linguagem, de, uma vez para sempre, lhe pôr à mostra os pontos fracos, de lhe libertar o pescoço da coleira de ferro, em resumo, regressar às origens etimológicas da língua que, no meio de conceitos abstratos, sempre evocam um elemento concreto. Pode-se imaginar perfeitamente uma crueldade pura, sem dano físico. E que é, com efeito, a crueldade, filosoficamente falando? Do ponto de vista do espírito, crueldade significa rigor, intenção e decisão implacáveis, determinação inflexível e absoluta. (...) É um erro dar à palavra ‘crueldade’ um significado de sanguinolência impiedosa e de solicitação, desinteressada e gratuita, de sofrimento físico. (...) Crueldade, não é sinônimo de derramamento de sangue, carne martirizada, inimigos crucificados. Esta identificação da crueldade com vítimas torturadas não passa dum aspecto extremamente insignificante da questão. No exercício da crueldade há uma espécie de determinismo mais elevado, a que o próprio carrascomartirizador está sujeito e que tem de estar decidido a suportar, na devida altura. A crueldade é, acima de tudo, lúcida, - uma espécie de controle rígido e de submissão à necessidade. Não há crueldade fora de um estado de consciência e sem a aplicação da consciência. É a consciência que confere à consumação de todos os atos da vida uma cor vermelho-de-sangue, um matiz cruel, uma vez que não restam dúvidas de que a vida é sempre a morte de alguém”. Em outra carta, datada de 14/11/1932, retomando o assunto, escreveu Artaud: “A crueldade não foi introduzida à força no meu pensamento, sempre aí se encontrou espontaneamente; o que tive, foi de me tornar consciente dela. Emprego a palavra crueldade no sentido de um apetite de viver, um rigor cósmico e necessidade implacável, no sentido gnóstico dum turbilhão vivo de vento que devora a escuridão, no sentido duma dor sem cuja necessidade inelutável a vida não poderia continuar. O bem deseja-se, é conseqüência de um ato; o mal é permanente. Quando o deus oculta cria, obedece à necessidade cruel duma criação que a si próprio se impôs, não pode deixar de criar e, por conseqüência, não pode também deixar de introduzir no centro do torvelinho voluntário um núcleo de mal cada vez mais condensado e cada vez mais consumido. E o teatro, no sentido duma criação contínua, duma ação integralmente mágica, obedece a esta necessidade. Uma peça em que esta vontade, este apetite cego de vida, capaz de tudo espezinhar, não fosse visível em todos os gestos e em todos os atos e no caráter transcendente da história, seria uma peça inútil e irrealizada”. O teatro e a peste, Antonin Artaud. “Os arquivos da pequena cidade de Cagliari, Sardenha, contém o relato dum fato histórico surpreendente. Numa noite em fins de abril ou princípios de maio, em 1720, cerca de vinte dias antes da chegada a Marselha do Grand-Saint Antoine, uma embarcação, cujo atraque coincidiu com o mais espantoso surto de peste de que há memória nesta cidade, o vicerei da Sardenha a quem o reduzido encargo governativo havia talvez tornado sensível ao mais pernicioso dos vírus, teve um sonho particularmente aflitivo – viu-se a si próprio contaminado pela peste que, em sonhos grassava por todo o seu minúsculo Estado. Sob um tal flagelo todas as formas estabelecidas da sociedade se desintegram. A ordem dissolve-se. Apercebe-se de todas as infrações à moral vigente, de todas as catástrofes psicológicas. Ouve, dentro de si, os fluídos do seu próprio corpo, a sussurrar. Despedaçados a funcionar cada vez mais precariamente, numa vertiginosa aniquilação de tecidos, sente os próprios órgãos cada vez mais pesados, a transformarem-se gradualmente em carvão. É já porém demasiado tarde para evitar o flagelo? Mesmo destruído, mesmo reduzido ao nada, com os órgãos pulverizados e consumido até a medula, o vice-rei, que sonha, sabe que não morremos em sonhos, que a nossa vontade age até mesmo no absurdo, até na negação de todas as possibilidades, até mesmo na transmutação das mentiras de que se pode refazer verdades. Desperta. Todos os rumores que correm acerca da peste, todos os miasmas de um vírus vindo do Oriente, sabe agora como impedi-los de se aproximarem. O Grand-Saint-Antoine, saído há um mês de Beirute, pede autorização para entrar em Cagliari. O vice-rei responde com uma ordem desmentida, uma ordem que tanto a população como o seu próprio corpo administrativo consideram irresponsável, absurda, disparatada e despótica. Envia à toda pressa ao navio que supõe contaminado ordens para o Grand-Saint-Germaine imediatamente mudar de rumo e se afastar a todo da cidade, sob ameaça de ser afundado a tiros de canhão. Guerra à peste. O autocrata estava disposto a não desperdiçar nem um minuto sequer. É indispensável referirmo-nos, de passagem, precisamente à intensidade da influência que este sonho exerceu sobre o vice-rei, pois foi devido a ela que, não obstante os sarcasmos da multidão e o ceticismo da corte, não abdicou das suas ordens violentas, desrespeitando assim não só os direitos do homem, mas a mais elementar consideração pela vida humana e ainda toda a espécie de convenções nacionais e internacionais que, perante a morte, perdem toda e qualquer pertinência. Com efeito o navio seguiu seu rumo, acostou em Leghrorn e entrou no ancoradouro de Marselha, onde lhe foi permitido desembarcar a carga. As autoridades do porto de Marselha não possuem qualquer descrição do que aconteceu à carga empestada. No que diz respeito à tripulação, sabe-se mais ou menos o que se passou: os que não morreram da peste debandaram para outros países. Não foi o Grand-Saint-Antoine que trouxe a peste para Marselha. A peste já lá estava. E precisamente num momento de especial recrudescência. Mas os focos da epidemia haviam já sido localizados com êxito. A peste trazida pelo Grand-Saint-Antoine foi a peste oriental, e é da aproximação e da difusão do vírus na cidade que data uma deflagração, particularmente terrível e generalizada deste mal. Tal fato traz à ideia certos pensamentos. Essa peste que parece ter vindo reativar um vírus era, já de si, capaz de produzir um efeito igualmente virulento; de entre toda a tripulação, apenas o capitão não foi atingido; e para mais não parece que as vítimas recém-chegadas tivessem jamais estado em contato direto com as outras, pois se encontravam confinadas a instalações inacessíveis. O Grand-Saint-Antoine, que passa ao alcance de voz de Cagliari na Sardenha, não deposita aí a peste, todavia o vice-rei capta, em sonhos, certas emanações; não se pode negar que entre o vice-rei e a peste se estabeleceu uma comunicação palpável, por mais sutil que fosse; e é demasiado fácil e nada explica limitar a transmissão de tal doença a um contágio por simples contato. Estas relações entre Saint-Rémys e a peste, suficientemente fortes para se libertarem como imagens no sonho, não foram, no entanto, de intensidade suficiente para o contaminar da doença. De qualquer modo, a cidade de Cagliari ao ter conhecimento, decorrido algum tempo, de que o navio fora afastado da sua costa pela vontade despótica do vice-rei miraculosamente iluminado, originara a grande epidemia em Marselha, registrou tal fato nos seus arquivos, onde pode atualmente ser encontrado. A peste de 1720 transmitiu-nos as únicas descrições, ditas clínicas que possuímos do flagelo. No entanto restam dúvidas se a peste descrita pelos médicos marselheses era de fato idêntica à que grassou em Florença em 1347 e que levou à produção do Decameron. A História, os livros sagrados, e, entre eles, a Bíblia, certos tratados antigos de medicina, todos se ocupam da descrição exterior de toda a espécie de pestes a cujos sintomas mórbidos dedicaram uma atenção muito mais reduzida do que aos efeitos prodigiosos e desmoralizadores deste enfermidade no espírito da vítima. Tiveram provavelmente razão em assim proceder. Pois seria muito difícil à medicina estabelecer uma diferença básica entre o vírus que dizimou Péricles defronte de Siracusa – partindo do princípio que a palavra vírus é algo mais do que uma mera coincidência vocabular – e o que se manifestou na peste descrita por Hipócrates e que, em tratados recentes de medicina, é considerada uma espécie de pseudo peste. Segundo estes mesmos tratados, a única peste autêntica é a peste egípcia que surge dos cemitérios deixados e descobertos quando o Nilo reflui. Tanto a Bíblia como Heródoto chamam a atenção para o surto fulminante de peste que, numa só noite, dizimou os 180.000 homens do exército assírio, salvando assim o império egípcio. Se este fato for verídico, teremos de considerar o flagelo como o instrumento direto ou a materialização duma força inteligente em estreito contato com o que designamos por fatalidade. E, para chegarmos a tal conclusão, tanto se pode ter em conta com não, o exército de ratos que na mesma noite se lançou sobre as tropas assírias e que destruiu as armaduras e os arreios de couro, roendo-os em poucas horas. Este fato pode compararse à epidemia que deflagrou em 660 a.C. na cidade santa de Mékao, no Japão, por altura de uma simples mudança de governo. A peste de 1502 na Provença, que propiciou a Nostradamus as primeiras oportunidades para exercer os seus poderes de curandeiro, coincidiu com as mais profundas convulsões políticas, quedas ou mortes reais, desaparição e destruição de províncias, tremores de terra, fenômenos magnéticos de todas as espécies, êxodos de judeus, que, na ordem cósmica ou política, sempre precedem ou sucedem a cataclismos e devastações cujos efeitos, aqueles que os provocam, por serem demasiado estúpidos, não preveem, nem tampouco desejam, por não serem, na verdade suficientemente perversos para tal. Quaisquer que sejam os erros cometidos por historiadores e físicos com respeito à peste, creio que poderemos admitir a ideia duma doença que seja uma espécie de entidade física, não transmitida por um vírus. E se quiséssemos analisar minuciosamente todos os fatos que nos são relatados pela história ou mesmo até por memória e que se referem ao contágio da peste, seria difícil isolar um exemplo comprovado de contato pro contato. O exemplo, citado por Boccacio, dos porcos que morreram por terem fossado lençóis que haviam envolvido vítimas da peste, sugere muito mais do que uma espécie de misteriosa afinidade entre o porco e a natureza da peste, o que por sua vez teria de ser analisado com minúcia. Embora não exista o conceito de uma verdadeira entidade mórbida, há certas formas que o espírito pode provisoriamente aceitar como sendo características de determinados fenômenos. E sem dúvida, parece-me que não repugnará ao nosso espírito admitir uma peste descrita da maneira que se segue. Antes da manifestação de qualquer mal-estar físico ou psicológico acentuado, o corpo cobre-se de manchas vermelhas das quais a vítima apenas se apercebe de súbito, ao adquirirem um tom negro. A vítima mal tem tempo de se armar e logo a cabeça lhe principia a ferver e a tornar-se insustentavelmente pesada; o paciente cede então, sem resistência, ao mal. É depois tomado por uma tremenda fadiga, a fadiga duma sucção magnética centralizada, das moléculas divididas e impelidas para a aniquilação. Os fluídos que percorrem o corpo da vítima, como que enlouquecidos, parecem repassar-lhe a carne em caudal, agitados e confundidos. Sente-se uma náusea, o interior do estômago parece que forceja por sair em jato, através dos dentes. O pulso que por vezes se retarda, quase imperceptível, a mera virtualidade de um pulso, que em outras acelera-se em proporção ao fervilhar interior da febre, de acordo com o pensamento que flui em aberrações, a bater em pancadas apressadas como o coração que se torna intenso, pesado, sonoro; os olhos, primeiro inflados, depois vítreos; a língua, inchada e ofegante, primeiro branca, depois vermelha, depois negra. Como se carbonizada e em desintegração; - tudo revela uma convulsão orgânica sem precedente. E em breve os fluídos do corpo, enrugado como a terra ativada por um raio, como lava amassada por forças subterrâneas, procuram uma saída. É no centro de cada mancha que se forma o ponto de mais intensa inflamação; em torno destas manchas, a pele levanta-se esfolada como bolhas de ar sob a superfície da lava, e as ampolas estão por sua vez rodeadas por círculos. O último destes círculos, mas exterior como o anel de Saturno em redor do planeta incandescente, indica o limite extremo dum bubão. Todo o corpo fica sulcado por estas saliências, mas exatamente como os vulcões que preferem determinados locais na terra, assim os bubões surgem, de preferência em certos lugares do corpo humano. Nas proximidades do ânus, nas axilas, nos lugares vulneráveis onde as glândulas desempenham fielmente as suas funções, surgem os bubões, onde quer que o organismo esteja a descarregar toda a sua decomposição interna, ou, conforme o caso, a sua própria vida. Na maioria dos casos, uma sensação intensamente escaldante, localizada numa pequena mancha, indica que a vida do organismo em nada perdeu a sua energia e que é possível uma melhoria da doença ou, até mesmo, a cura. Tal como a raiva silenciosa, a peste mais terrível é a que não patenteia sintomas. O cadáver de uma vítima da peste não revela lesões, ao ser aberto. A vesícula biliar que tem de filtrar as rejeições do organismo, densas e inertes, está repleta, inchada, ao ponto de quase estourar, com uma substância fluida, negra e viscosa, tão densa que dá ideia de ser uma outra substância completamente nova. Também o sangue nas artérias e nas veias é negro e viscoso. A carne está endurecida como pedra. Nas superfícies interiores da membrana do estômago, parecem ter ocorrido inúmeros derrames de sangue, em jato. Tudo revela uma desordem fundamental das secreções, mas há, como na lepra ou na sífilis, nem perda nem destruição de matéria. Os próprios intestinos, o local onde se verificam as mais violentas desordens de sangue, onde as substâncias atingem um grau espantoso de putrefação e de petrificação, não são organicamente afetados. A vesícula onde se tem praticamente de arrancar o pus, como em certos sacrifícios humanos, com uma faca afiada, um instrumento de obsidiana, duro e vitro, a vesícula está hipertrofiada e a estalar em certos pontos, todavia intato, sem lhe faltar qualquer parte, sem lesão visível, sem perda de substância. Em certos casos, contudo, os pulmões e o cérebro atingidos, enegrecem a gangrena. Os pulmões debilitados e corroídos desagregam-se em escamas de uma substância negra desconhecida; e o cérebro funde-se, encolhe, torna-se granulado, uma espécie de pó negro-de-carvão. Duas importantes observações se podem fazer a respeito deste fato. A primeira é que a síndrome da peste está completo mesmo sem a gangrena dos pulmões e do cérebro, morrendo a vítima sem sofrer putrefação em parte alguma do corpo. Sem menosprezar a natureza desta afecção podemos até dizer que o organismo não necessita da presença duma gangrena física localizada para determinar o seu próprio óbito. A segunda observação é a seguinte: os dois únicos órgãos que são de fato afetados e lesados pela peste, o cérebro e os pulmões, dependem ambos, diretamente, da consciência e da vontade. Podemos suster o fôlego e o pensamento, ativar a respiração, dar-lhe qualquer ritmo à nossa escolha, torná-la consciente ou inconsciente a nosso bel-prazer, ou estabelecer um equilíbrio entre duas espécies de respiração: a automática que está sob controle direto do sistema nervoso simpático, e a outra, sujeita aos reflexos do cérebro que mais uma vez tornaram conscientes. Podemos identicamente acelerar, retardar e dar um ritmo arbitrário ao nosso pensamento – podemos regular o jogo inconsciente do espírito. O que não nos é possível é controlar a filtragem das substâncias fluidas no fígado, ou a redistribuição do sangue levado a cabo pelo coração e pelas artérias, não podemos também impedir a digestão e suster ou acelerar a eliminação de matérias do intestino. A peste parece portanto preferir tornar manifesta a sua presença nos órgãos essenciais do corpo, os fulcros da atividade física onde justamente a vontade humana, a consciência e o pensamento são eminentes e susceptíveis de se manifestarem. (...) De tudo isto demanda a fisionomia espiritual de uma doença cujas leis não podem ser definidas com precisão e cuja origem geográfica será irrisório tentar determinar, pois a peste do Egito não é a peste oriental, que por sua vez não é a que Hipócrates descreve, e que não é também a de Siracusa, nem a de Florença, nem a Peste Negra que ceifou cinquenta milhões de vidas na Europa medieval. Ninguém pode explicar por que é que a peste atinge o covarde que se lhe tenta escapar e poupa o pervertido que satisfaz os seus apetites nos próprios cadáveres; por muito que a distância, a castidade e o isolamento são improducentes contra os ataques do flagelo; e por que é que um grupo de devassos que se isola no campo, com Boccacio e os seus dois companheiros endinheirados e ainda sete mulheres tão fervorosas em licenciosidade como em religião, pôde calmamente aguardar o tempo quente em que a peste debanda; e por que é que num castelo próximo, transformado numa autêntica cidadela por um cordão de homens armados que impediam todos de qualquer acesso, a peste reduz os cadáveres à guarnição e os ocupantes e apenas poupa os homens armados expostos ao contato. (...) É a partir de todas estas peculiaridades, mistérios, contradições e sintomas que temos de reconstituir a fisionomia espiritual de uma doença que destrói progressivamente o organismo como a dor, que, à medida que se intensifica e aprofunda, multiplica os seus recursos e meios de acesso a todos os planos da sensibilidade. E desta liberdade espiritual com que a peste se desenvolve sem ratos, sem micróbios e sem contato, é possível deduzir a ação obscura e absoluta de um espetáculo que tentarei analisar. Desde que a peste assente em uma cidade, todas as formas estabelecidas se desintegram. Cessa a conservação das estradas e dos esgotos, deixa de haver exército, polícia, administração municipal. Acendem-se piras ao acaso para queimar os mortos, com qualquer material disponível. Cada família quer a sua. E então, como a madeira, o espaço e as próprias chamas cada vez mais escasseiam, surgem dissenções entre famílias, em redor das piras, em breve seguidas de debandada geral, pois os corpos são por demais numerosos. Já os mortos obstruem as ruas, em pirâmides dilaceradas, roídas em derredor pelos animais. O fedor sobe na atmosfera como uma chama. Ruas inteiras estão bloqueadas por pilhas de mortos. E então as casas abrem-se, e as vítimas em delírio, com o espírito de visões pavorosas, dispersam-se, em urros pelas ruas. A doença que lhes fermenta nas vísceras e lhes circula por todo o organismo descarrega-se em tremendas explosões cerebrais. Há os que sem bubões, delírio, dor ou erupção, se observam ao espelho com orgulho, de esplêndida saúde – crêem – e tombam depois mortos com o púcaro da barba na mão, cheios de desprezo pelas outras vítimas. Por sobre os caudais de sangue, venenosos e espessos, cor de agonia e de ópio, que jorram dos cadáveres, passam estranhas figuras, revestidas de cera, com o nariz longo como salsichas e os olhos de vidro, com os pés assentes numa espécie de sandálias japonesas, (...) a cantar litanias absurdas que os não livram de serem, por sua vez, consumidos na voragem. Estes médicos ignorantes nada mais revelam que medo e infantilidade. Os escassos sobejos da população, que uma cupidez frenética aparentemente imuniza, invadem as casas e furtam riquezas que sabem sem qualquer finalidade ou proveito. E é nesse momento que nasce o teatro. O teatro, isto é, uma gratuidade imediata que provoca atos sem utilidade ou proveito. Os derradeiros vivos possuídos de frenesi; o filho obediente e virtuoso mata o pai; o homem casto pratica sodomia com os vizinhos. O devasso torna-se puro. O avaro lança ouro às mancheias pela janela afora. O herói guerreiro deita fogo à cidade por cuja salvação arriscou outrora a própria vida. O peralta atavia-se com as melhores roupagens e passeia defronte das casas mortuárias. Nem a ideia de uma ausência de sanções, nem a de uma morte eminente bastam para motivar estes atos tão gratuitamente absurdos, praticados por homens que não acreditavam que a morte pudesse ser o fim de tudo. E como explicar a vaga de febre erótica que se apossa das vítimas restabelecidas e que, em vez de abandonarem a cidade, ali permanecem, a tentarem obter dos moribundos e até dos mortos, um prazer criminoso, meio esmagados sob as pilhas de cadáveres, onde o acaso os alojou. Todavia, se é necessário um flagelo possante para trazer ao dia tal frenética gratuidade, e se este flagelo se chama peste, podemos então talvez determinar o valor desta gratuidade em relação à nossa personalidade total. O estado da vítima que morre sem destruição material. Com todos os estigmas de uma doença absoluta e quase abstrata, é idêntico ao estado de um ator totalmente repassado e perturbado por sentimentos que não trazem qualquer benefício à sua condição real. No aspecto físico do ator como no da vítima da peste, tudo revela que a vida reagiu ao paroxismo e, no entanto, nada aconteceu. Entre a vítima da peste, que persegue visões, em esganiçada correria e o ator, em perseguição dos seus sentimentos, entre o homem que para si próprio inventa figuras que nunca teria possibilidade de imaginar, não fora a peste, e que as cria no meio de um auditório de cadáveres e loucos delirantes, e o poeta que inventa personagens inoportunamente e que os confia a um público igualmente inerte ou delirante, há outras analogias que confirmam as únicas verdades que importa ter em conta e que situam a ação do teatro, tal como a peste, ao nível de uma autêntica epidemia. Mas as imagens da peste que se produzem em relação a um poderoso estado de desorganização física são como que as últimas emissões de uma força espiritual que inicia a sua trajetória nos sentidos e dispensa por completo a realidade. Desde o momento que se embrenha na violência da sua tarefa, o ator necessita de um poder infinitamente maior, para se coibir de cometer algum crime, do que é necessário a um assassino para o realizar e é precisamente nesta pura gratuidade que a ação e o efeito de um sentimento, no teatro, surgem infinitamente mais válidos do que a ação e o efeito de um sentimento consumado na vida real. Comparada à violência do assassino, que se esgota, a do ator trágico permanece encerrada num círculo perfeito. A violência do assassino pratica um ato, liberta-se e deixa de estar em contato com a força que a suscitou, mas que já não a podem manter. A do ator toma uma forma que a si próprio se nega, exatamente na medida em que se liberta e se dissolve no universal. Indo mais além nesta imagem da peste no seu aspecto de flagelo espiritual, podemos interpretar as substâncias fluidas em agitação, produzidas no corpo das vítimas, como a manifestação material duma desorganização que, noutras circunstâncias, equivale aos conflitos, lutas, cataclismos e derrocadas com que deparamos ao longo da vida. E assim, como não é impossível que o desespero vão de um alienado aos gritos num asilo possa causar a peste por uma espécie de reversibilidade de sentimentos e de imagens, pode-se identicamente admitir que os acontecimentos exteriores, conflitos políticos, cataclismos naturais, a ordem na revolução e a desordem na guerra, ao ocorrerem no contexto do teatro, se projetem na sensibilidade do público com todo o vigor de uma epidemia Santo Agostinho em A Cidade de Deus lamenta esta semelhança entre a ação entre a ação da peste que mata sem destruir os órgãos e o teatro que, sem matar, provoca não só no espírito de um indivíduo como no de toda uma camada popular, as mais misteriosas alterações. ‘Ficai sabendo’, diz, ‘vós que sois ignorantes, que estas representações, espetáculos pecaminosos, foram estabelecidos em Roma, não pelos vícios dos homens, mas por ordem dos vossos deuses. Seria mais razoável prestar honras divinas a Cipião do que aos tais deuses que não são decerto merecedores de tal pontífice!...(...) ‘De fato tal é a cegueira, tal a corrupção que as representações originam na alma que até mesmo recentemente, aqueles a quem esta paixão fatal possui, os que tinham fugido ao saque de Roma e se haviam refugiado em Cartago, passavam dia após dia no teatro, a deleitarem-se com o seu próprio entusiasmo delirante pelos atores’. É escusado apresentar as razões precisas deste delírio contagioso. Seria igualmente escusado tentar descortinar as razões por que o nosso sistema nervoso, após um determinado período de tempo, reage às vibrações da música mais sutil e acaba por elas modificado, de uma maneira ou de outra, para sempre. Antes de mais nada, temos de reconhecer que o teatro, tal como a peste, é delírio e é também comunicativo. O espírito acredita no que vê e faz o que acredita; e nisto reside o segredo da fascinação. (...) Há no entanto, condições que têm de ser descobertas para engendrarem no espírito um espetáculo capaz de o fascinar, e tal descoberta não é coisa que diga simplesmente respeito à arte. Pois se o teatro se assemelha à peste, não é apenas por afetar coletivamente classes importantes e as perturbar de uma forma idêntica. No teatro, tal como na peste, há algo simultaneamente vitorioso e vingativo; apercebemo-nos que a conflagração espontânea que a peste ateia, por onde quer que passe, nada mais é do que uma imensa liquidação. Uma calamidade social de tão vasto alcance, uma tão misteriosa desordem de toda e qualquer organização, este transbordar de vícios, esse exorcismo total que força e impele a alma até ao extremo, tudo indica um estado que é, não obstante, caracterizado por uma certa força e no qual todos os poderes da natureza são descobertos, de novo, no momento em que qualquer coisa essencial vai ser consumada. A peste apodera-se de imagens que estão dormentes, uma desordem latente, e expande-se, de súbito, nos gestos mais extremos; também o teatro toma os gestos e os distende tanto quanto der. Tal como a peste, o teatro refunde todas as ligações entre o que é o que não é, entre a virtualidade do possível e o que já existe na natureza materializada. Restabelece a noção de símbolos e de arquétipos que se manifestam como golpes silenciosos, pausas, saltos do coração, apelos de linfa, imagens inflamatórias lançadas de chofre para dentro das nossas cabeças abruptamente despertadas. O teatro devolve-nos os nossos conflitos dormentes e todas as suas potências e dá a estas potências nomes que aclamamos como símbolos; e eis que, ante os nossos olhos, se trava uma batalha de símbolos, a enfrentarem-se entre si, numa impossível contenda. E só pode haver teatro desde o momento que o impossível principie de fato e que a poesia, que acontece no palco, sustente e leve ao rubro os símbolos tornados reais. Estes símbolos, que dão sinal de potências prontas para se manifestarem, mas mantidas até então em sujeição e inacessíveis ao mundo real irrompem sob forma de imagens incríveis que dão direito de cidadania e existência a atos que são por natureza hostis à vida das sociedades. No teatro autêntico, uma peça perturba o repouso dos sentidos, liberta o inconsciente recalcado, estimula uma espécie de revolta virtual (que, para mais, só resultará plenamente se permanecer virtual), e impõe à coletividade reunida uma atitude simultaneamente difícil e heroica. (...) Como a peste, o teatro é um terrível apelo às forças que impelem o espírito, como por exemplo, para a fonte originária dos conflitos. (...) A aparição atemorizante do MAL, que nos mistérios de Elêusis era produzido na sua forma pura, autenticamente revelada, corresponde aos momentos mais puramente trágicos de certas tragédias antigas que todo o verdadeiro teatro tem de recuperar. Se o teatro essencial se compara à peste não é por ser contagioso mas por, tal como a peste, ser a revelação, a apresentação à exteriorização num profundo íntimo de crueldade latente, por meio do qual todas as potencialidades perversas do espírito quer de um indivíduo, quer de um povo são localizadas. Assim como a peste, o teatro é o tempo do mal, por excelência, ou o triunfo dos poderes obscuros que são alimentados por um poder ainda mais profundo, até a extinção. Tanto no teatro como na peste, há uma espécie de sol, estranho, uma luz de intensidade anormal, através da qual parece que o difícil e até mesmo o impossível se torna, repentinamente o nosso elemento natural. (...) Podemos agora dizer que toda verdadeira liberdade é intensamente trágica, e se identifica indubitavelmente com a liberdade sexual que é também intensamente trágica, embora não saibamos precisamente por quê. Pois já muito tempo decorreu desde que Eros de Platão, o sentido da criação, a liberdade da vida se desvaneceram sob a máscara sombria da LIBIDO que se identifica com tudo o que é sujo, abjeto, infame no modo contínuo de vivermos e de nos lançarmos à vida com um vigor natural e impuro, com uma força perpetuamente renovada. É esta a razão porque todos os grandes mitos são violentamente trágicos, a ponto de não se poderem imaginar a não ser numa atmosfera de carnificina, tortura, derramamento de sangue, todas as efabulações magníficas que narram às multidões a primeira divisão sexual e a primeira carnificina de essências, que se produziram na criação. O teatro, tal como a peste, é a imagem desta carnificina e desta separação essencial. Desencadeia conflitos, solta poderes, liberta possibilidades e se estas possibilidades e poderes são tão intensamente trágicos, a culpa não cabe nem à peste nem ao teatro, mas à vida. Não achamos que a vida, tal como é e como foi concebida para nós, nos proporcione muitos motivos de exaltação. Dá ideia que, por meio da peste, um abscesso gigantesco foi coletivamente granado, e que, tal como a peste, o teatro foi criado para extinguir abcessos coletivos. Talvez o veneno do teatro, injetado no corpo social, o desintegre, como diz Santo Agostinho, mas pelo menos, fá-lo como a peste, como um flagelo vingador, uma epidemia redentora na qual as épocas de credulidade quiseram ver a mão de Deus, e que nada mais é, afinal, do que a aplicação de uma lei da natureza pela qual cada gesto é contrabalançado por outro e cada ação pela respectiva reação. O teatro, como a peste, é uma crise que se resolve ou pela morte ou pela cura e a peste é uma doença superior, por ser uma crise total para além da qual nada permanece a não ser a morte ou uma purificação extrema. Identicamente, o teatro é uma doença, porque é o equilíbrio supremo que se não pode atingir sem destruição. O teatro convida o espírito a partilhar um delírio que exalta as energias. E, para concluir, constatamos que do ponto de vista humano a ação do teatro, tal como a da peste, é benéfica, pois, ao compelir os homens a verem-se tais como são, faz com que a máscara tombe, põe a nu a mentira, o relaxamento, a baixeza e a hipocrisia deste nosso mundo, vence a inércia asfixiante da matéria que se apodera até do mais claro testemunho dos sentidos; e, ao revelar às coletividades humanas o seu poder trágico, a sua força oculta, incita-as a tomarem, em face do destino uma atitude superior e heroica, que nunca teriam assumido sem o teatro. E a pergunta que não podemos deixar agora de formular é, se neste mundo instável que se está a suicidar, sem disso se aperceber, é possível encontrar um núcleo de homens capazes de imporem esta concepção superior do teatro, homens que nos restituíram a todo equivalente natural e mágico dos dogmas em que já não acreditamos”. (texto transcrito de Cadernos de Teatro n°95. Rio de Janeiro: Inacen/O Tablado, out./nov./dez., 1982) Sugestão de poema surrealista apresentado no Primeiro Manifesto Surrealista, intitulado Poema e composto a partir de fragmentos de títulos recortados de jornais (procedimento idêntico aquele usado pelos dadaístas). No manifesto as letras aparecem em diferentes tamanhos e estilos. Um risada de safira na ilha de Ceilão As mais belas palhas Na prisão Numa fazenda isolada NO DIA-A-DIA agrava-se o agradável Um caminho carroçável vos conduz à beira do desconhecido O café roga por si mesmo O ARTESÃO QUOTIDIANO DE VOSSA BELEZA SENHORA, um par de meias de seda não é Um salto no vazio UM CERVO antes de tudo o amor tudo poderia acabar tão bem Paris é uma grande aldeia Vigiai o fogo incubado a oração do bom tempo Sabei que os raios ultravioleta terminaram seu trabalho bom e rápido O PRIMEIRO JORNAL BRANCO DO ACASO Vermelho será o cantor errante ONDE ESTARÁ? na memória em sua casa NO BAILE DOS ARDENTES Faço dançando O que se fez, o que se fará Mémoires d’un amnésique - La journée du musicien (fragment), Erik Satie, 15/02/1913. “O artista deve regrar sua vida. Acompanhem a programação de minhas atividades diárias: Levanto-me: às 7h18; inspirado: de 10h23 às 11h47. Almoço às 11h47 e deixo a mesa às 12h14. Saudável passeio a cavalo, no fundo de meu parque: de 13h19 às 14h53. Outra inspiração: de 15h12 às 16h07. Ocupações diversas (esgrima, reflexões, imobilidade, visitas, contemplação, destreza, natação, etc...): de 16h21 à 18h47. O jantar é servido às 19h16 e terminado às 19h20. Vêm as leituras sinfônicas, em voz alta: de 20h09 às 21h59. Meu dormir tem lugar regularmente às 22h37. Semanalmente, acordo sobressaltado às 3h19 (às terças-feiras). Como apenas alimentos brancos: ovos, açúcar, ossos ralados, gordura de animais mortos, vitela, sal, noz de coco, frango cozido em água branca; bolor de frutas, arroz, nabos, morcela canforada, pastas, queijos (brancos), salada de algodão e certos peixes (sem a pele). Faço ferver meu vinho, que bebo frio com suco de fúcsia. Tenho bom apetite; mas não falo jamais quando como, com medo de sufocar. Respiro com cuidado (pouco a cada vez). Danço raramente. Andando, coloco-me de costas e olho fixamente para trás. Com ar muito sério, se rio, é sem ser de propósito. Desculpo-me sempre e com afabilidade. Durmo com um olho só; meu sono é muito difícil.. Minha cama é redonda, com um buraco para a passagem da cabeça. A cada hora um criado toma minha temperatura e me dá outra. Há muito tempo assino um jornal de moda. Uso um boné branco, meias brancas e um colete branco. Meu médico sempre me disse para fumar. Ele acrescenta aos seus conselhos: - Fume, meu amigo: sem isso, outro fumará em seu lugar”. Mémoires d’un Amnésique – Ce que je suis (fragment), Erik Satie, 15/04/1912. “Todos lhes dirão que não sou um músico. Isso é justo. Desde o início de minha carreira, classifiquei-me, imediatamente, entre os fonometrógrafos. Meus trabalhos são pura fonometria. Que se tomem Les fils des Étoiles ou Mourceaux en forme de Poire, En habit de Cheval ou Les Sarabandes, percebe-se que nenhuma ideia musical presidiu a criação dessas obras. É o pensamento científico que domina. De resto, tenho mais prazer em medir um som do que em ouvi-lo. Com o fenômetro na mão, trabalho alegre e seguramente. Que pesei ou medi? Todo Beethoven, todo Verdi etc. É muito curioso. Na primeira vez que me servi de um fonoscópio, examinei um si bemol de grossura média. Asseguro-lhes que jamais vi coisa mais repugnante. Chamei meu empregado para fazê-lo ver. No fonopesador, um fá sustenido ordinário, bastante comum, atinge 93 quilogramas. Ele emanava um tenor consideravelmente gordo que pesei. Conhecem a limpeza dos sons? É bastante suja. Fiar é mais apropriado; saber classificá-los é muito minucioso e demanda uma boa vista. Aqui estamos na fonotécnica. Quanto às explosões sonoras, frequentemente tão desagradáveis, o algodão, fixado nas orelhas, atenua-as convenientemente. Aqui estamos na pirofonia. Para escrever minhas Pièces Froides, servi-me de um caleidofone-gravador. Isso durou sete minutos. Chamei meu empregado para ouvi-las. Creio poder dizer que a fonologia é superior à música. É mais variada. O rendimento pecuniário é muito maior. Devo-lhe minha fortuna. Em todo caso, no monodinamofone, um fonemetrista medianamente treinado pode, facilmente, perceber mais sons do que o mais hábil músico, no mesmo tempo, com o mesmo esforço. Graças a isso, escrevi tanto. O amanhã portanto pertence à filofonia”. Obs.- Apesar de as datas de produção dos textos serem bastante anteriores à eclosão do movimento surrealista, Satie, por suas posturas, militância no movimento e características estéticas, é, normalmente, inserido no surrealismo que só eclode, formalmente em 1924. Benjamin PERÉT. A escrita automática. Texto, originalmente, escrito para o jornal “Diário da Noite” em 1929 (que não o publicou). Tradução de Leila F. Lima. Apud. “A Phala” Revista do Movimento Surrealista. Fundação Armando Alvares Penteado, agosto/1967. “Quem (...) entre os leitores deste jornal não foi arrebatado pela estranha poesia que se desprende dos sonhos? Quem não viveu durante seu sono uma ou mais vidas trepidantes, atormentadas, contudo mais reais e mais fascinantes que a miserável vida quotidiana? Antes de ideias, de imagens, de frases que vinham ao espírito e despertavam em si preocupações, que no estado de vigília, você não teria o mínimo reconhecimento? Você pode observar que o mesmo fenômeno se produzia assim que deixasse o espírito errar ao acaso. Lá, a consciência é abolida, ou quase. A razão retornou ao seu nicho e rói o seu osso eterno. Basta, portanto, expulsar essa razão cadela e escrever, escrever, escrever, sem parar, sem ter conta do engarrafamento das ideias. Não há mais a necessidade de saber o que é um alexandrino ou um litote. Tome uma mão, papel, tinta e caneta com uma pena nova, e se instale confortavelmente à sua mesa. Agora, esqueça-se de todas as preocupações, esqueça-se de que é casado, que seu filho está com coqueluche, esqueça-se de que é católico, de que é comerciante e que o fracasso lhe cerca, esqueça que você é senador, que é discípulo de Augusto Comte ou Schopenhauer, esqueça-se da antiguidade, da literatura de todos os países e de todos os tempos. A você não interessa mais saber o que é lógico e o que não é, você não deseja mais saber o que lhe pretendem dizer. Escreva o mais rápido possível para nada perder das confidências que lhe são feitas sobre si próprio e sobretudo não releia. Você logo aperceberá que conforme e na medida em que você vai escrevendo, as frases chegam mais rápidas, mais fortes, mais vivas. E, se por acaso, você se encontre subitamente parado, não hesite, force a porta do inconsciente e escreva a primeira letra do alfabeto, por exemplo. Uma letra segue a outra. O fio de Ariadne retornará a si mesmo. Isto posto, eu começo. Um maço de espargos que não tinha exatamente sete léguas pôs-se a perseguir um arco-íris dentro de uma lata de graxa. O arco-íris corre sobre a praia à procura de um lume aceso. Ele ouve o mar no côncavo de sua mão e retorna, após anos de estudos, a uma ilha de areias movediças, capitão de fragatas. É quando o rei de um país qualquer lhe faz presente de uma sopeira. Lá ele coloca os ovos de tartaruga e na mudança da lua a sopeira levanta voo como o último suspiro de um tísico. Contudo, fazia uma linda noite e as estrelas após terem perdido tudo no bacará foram pescar a truta com faróis de automóveis. Tudo isto teria passado muito bem se a grande Duquesa Anastácia não tivesse comido aquele dia uma folha de papel esmeril. Num nada de tempo, a grande Duquesa tomando a banca perdeu a cabeça. O resto do corpo seguiu rapidamente e logo não restou mais nada que as unhas dos artelhos que se foram desenhar uma senha luminosa num canto sombrio cheio de mandíbulas se abrindo e se fechando, seguindo o ritmo de: ‘au clair de la lune mon ami Pierrot...’ Nada mais restava ao espectador desolado desta cena que engolir uma grande chávena de tinta bem negra. Ele o fez sem grande repugnância, se bem que a temperatura muito elevada fez germinar canetas em sua tinta. Após isso, ele fechou as venezianas de sua janela e adormeceu, e adormeceu como um pires que se esqueceu de embebedar uma xícara de café. Mas se o café entorna sobre o pescoço do adormecido ele será obrigado a gritar ao fogo para chamar os bombeiros. Eles chegam como arengues defumados; ei-los, as armas sobre os ombros, não mais achando onde está o canhão de seu fuzil e metendo os cartuchos pelo nariz, tirando a orelha da porteira, roendo sementes de papagaio, metendo sanguessugas no cofre forte do patrão, comendo frituras de mosquitos e arrastando o diabo pela cauda para se fazer assim conduzir rapidamente e barato à casa de sua avó. A pobre velha não tem mais que pele sobre os ossos. De vez em quando, ela vende um pedaço da sua pele para fazer um tambor que ela envia a um de seus netinhos por ocasião de seu aniversário. É extremamente comovedor, mas um pouco basta, porque logo que ele esteja reduzido ao estado de esqueleto, ela não terá alternativa que a de habitar as casas mal assombradas; seu proprietário detesta ruídos de ossaturas nas escadas que já são bem carcomidas. O tempo passa e a terra gira, as moscas voam, a água corre sob as pontes que não sabem mais o que fazer de suas arcas depois que Noé que está muito bem morto cujas pulgas que faziam ninho em sua orelha se refugiaram nos cães que dão seus pelos aos gatos ao cantar dos galos. A fonte de beterraba poderá muito bem se secar e o salitre recobrir o nariz do Papa antes que as folhas de acanto tomem o mês nos dentes. Este não é o caso das joaninhas que as autoridades colocaram em camisas de força com desprezo da justiça. Mas a justiça traz apenas velhos calçados acalcanhados pela avareza e suas balanças estão de tal forma pesadas de batatas que elas marcam o ponto da mesma forma que o cuco. Cuco! Cuco! Ele é o soldadinho dos pés gelados. Faz ‘um... dois’ e eis que rola até os pés da escada enfiando a cabeça em uma caixa postal (...) A infelicidade lá está. Existe um garfo na mão esquerda e um par de pinças na mão direita. E num giro de mão, ele arranca o nariz dos audaciosos, o prende com seu garfo e o coloca na posta restante. O nariz não se inquieta por tão pouco. Sabe que sua vez virá e cerejas amadurecem; mas esperando lhe é necessário tomar a guarda e arrancar de uma maneira ou de outra, os longos cabelos que tentam recobri-lo, sem isso o plageador do bairro o tomará por uma peruca e lhe colocará sobre o crânio de sua esposa calva”. O TEATRO DA CRUELDADE, de Artaud, publicado em 1948. “Vocês conhecem algo mais ultrajantemente fecal do que a história de Deus e seu ser: SATÃ, a membrana do coração, a leitoa ignominiosa, do ilusório universal, que com suas mamas babosas jamais nos dissimulou senão o NADA? Diante desta ideia de um universo preestabelecido o homem até agora não conseguiu estabelecer sua superioridade de sobre o império da possibilidade. Pois se nada existe, nada existe a não ser esta ideia excremental de um ser que, por exemplo, teria criado as feras. E de onde vêm as feras nesse caso? Do fato de que o mundo das percepções corporais não está à sua altura, e não amadureceu, do fato de que há uma vida psíquica e nenhuma vida orgânica verdadeira, do fato de que a simples ideia de uma vida orgânica pura pode colar-se, do fato de que uma distinção pôde ser feita entre a vida orgânica embrionária pura e a vida passional e concreta e integral do corpo humano. O corpo humano é uma pilha elétrica no qual castraram e reprimiram as descargas, do qual orientaram para a vida sexual as capacidades e as tendências enquanto que ele foi feito justamente para absorver por seus deslocamentos voltaicos todas as disponibilidades errantes do infinito do vazio dos buracos do vazio cada vez mais incomensuráveis de uma possibilidade orgânica jamais satisfeita. O corpo humano tem necessidade de comer, mas quem experimentou de outro modo, a não ser no plano da vida sexual, as capacidades incomensuráveis dos apetites? Façam finalmente dançar a anatomia humana, de cima para baixo e de baixo para cima, de trás para frente e de frente para trás, porém muito mais de trás para frente, e o problema da rarefação dos gêneros alimentícios, não terá mais que ser resolvido, porque não haverá mais ocasião nem mesmo de colocar-se. Fizeram o corpo humano comer, fizeram-no beber, para evitar de fazê-lo dançar. Fizeram-no fornicar o oculto a fim de se eximir de comprimir e suplicar a vida oculta. Pois não há nada como a assim denominada vida oculta que tenha necessidade de ser supliciado. Foi lá que Deus e o seu ser pensaram enviar o homem demente, lá, naquele plano cada vez mais ausente da vida oculta onde Deus quis fazer o homem acreditar que as coisas podiam ser vistas e percebidas em espírito, enquanto que não há de existente e de real senão a vida física exterior e que tudo aquilo que foge dela e se desvia dela não é mais que os limbos do mundo dos demônios. E Deus quis fazer o homem acreditar nessa realidade do mundo dos demônios. Mas o mundo dos demônios é ausente. Jamais ele alcançará a evidência. O melhor meio de se curar dele e de destruí-lo é acabar de construir a realidade. Pois a realidade não está acabada, ela ainda não está construída. De sua conclusão dependerá no mundo da vida eterna o retorno de uma eterna saúde. O teatro da crueldade não é o símbolo de um vazio ausente, de uma espantosa incapacidade de se realizar em sua vida de homem, Ele é a afirmação de uma terrível e aliás inelutável necessidade. Nas encostas jamais visitadas do Cáucaso, dos Cárpatos, do Himalaia, dos Apeninos, sucedem-se todos os dias, noite e dia, há anos e anos, medonhos ritos corporais onde a vida negra a vida jamais controlada e negra se entrega a espantosos e repulsivos banquetes. Lá, os membros e os órgãos reputados abjetos porque perpetuamente abjetados, reprimidos, fora das capacidades da vida lírica exterior, são utilizados no delírio total de um erotismo que não tem freio, em meio ao derramamento, cada vez mais fascinante e virgem de um licor cuja natureza jamais pôde ser classificada, porque ela é cada vez mais incriada e desinteressada. (Não se trata especialmente do sexo ou do ânus que aliás devem ser decepados e liquidados mas do alto das coxas, das cadeiras, dos dorsos, do ventre total e sem sexo e do umbigo). Tudo é por ora sexual e obsceno porque tudo isso jamais pôde ser trabalhado e cultivado fora do obsceno e os corpos que dançam lá não podem ser desligados do obsceno, eles desposaram sistematicamente a vida obscena mas é preciso destruir esta dança de corpos obscenos para substitui-los pela dança de nossos corpos. Fiquei perturbado e contaminado durante anos pela dança de um mundo assustador de micróbios exclusivamente sexualizados nos quais eu reconhecia na vida de certos espaços recalcados, homens, mulheres, crianças da vida moderna. Fui atormentado interminavelmente por pruridos de intoleráveis eczemas nos quais as purulências da vida erótica do sarcófago tinham livre trânsito. Não há necessidade de procurar mais longe do que nessas danças rituais negras, a origem de todos os eczemas, de todos os herpes, de todas as epidemias, de todas as pestes das quais a medicina moderna cada vez mais confusa se mostra impotente para encontrar a cauterização. Fizeram baixar minha sensibilidade há dez anos, os degraus dos mais monstruosos sarcófagos, do mundo ainda inoperado dos mortos e dos vivos que quiseram (e no ponto em que chegamos, é por vício) que fizeram viver mortos. Mas eu simplesmente me esquivei de ser doente e comigo todo um mundo que é tudo o que eu reconheço. O PEDANA NA KOMEV TAU DEDANA TAU KOMEV NA DEDANU NA KOMEV TAU KOMEV NA COME COPSI TRA KA FIGA ARONDA KA LAKEOU TU COBRA COBRA JA JA FUTSA MATA DA serpente não HÃ. Porque vocês deixaram a língua sair dos organismos foi preciso cortar aos organismos sua língua à saída dos túneis do corpo. Só existe a peste, a cólera, a varíola negra porque a dança e em consequência o teatro ainda não começaram a existir. Qual é o médico dos corpos racionados da atual miséria que tenha procurado ver a cólera de perto? Escutando a respiração ou o pulso de um doente, prestando atenção diante dos campos de concentração destes corpos racionados da miséria, diante do tremor dos pés, os troncos e dos sexos do campo imenso e recalcado de alguns micróbios terríveis que são os corpos humanos. Onde estão eles? Ao nível ou nas profundezas de certos túmulos em lugares historicamente ou geograficamente insuspeitos. KO EMBACH TU UR JA BELLA UR JA BELLA KOU EMBACH Lá onde os vivos marcam encontro com os mortos e certos quadros de danças macabras não possuem outra origem. São estes erguimentos nos quais o encontro de dois mundos incríveis se delineia sem parar que fizeram a pintura da Idade Média como aliás toda pintura toda história e eu diria toda geografia. A terra se pinta e se descreve sob a ação de uma terrível dança à qual ainda não fizeram dar epidemicamente todos seus frutos. POST-SCRIPTUM Lá onde existe a metafísica, a mística, a dialética irredutível, eu ouço se torcer o grande cólon de minha fome e sob os impulsos de sua vida sombria eu dito para minhas mãos sua dança, a meus pés ou os meus braços. O teatro e a dança do canto, são o teatro das revoltas furiosas da miséria do corpo humano diante dos problemas nos quais ele não penetra ou cujo caráter passivo, especioso, chicanista, impenetrável, inevidente o ultrapassa. Então ele dança através de blocos de KHA, KHA infinitamente mais áridos, porém orgânicos; ele põe no passo a muralha negra dos deslocamentos do interior do coração; o mundo das lavras invertebradas do qual se destaca a noite sem fim dos insetos inúteis: piolhos, pulgas, percevejos, mosquitos, aranhas, só se produz porque o corpo de todos os dias perdeu sob a fome sua coesão primeira e ele a perde através de lufadas, de montanhas, de tiras, de teorias sem fim as fumaças negras e amargas das cóleras de sua energia. POST-SCRIPTUM Quem sou eu? De onde venho? Sou Antonin Artaud E basta que eu diga como sei dizê-lo imediatamente vocês verão meu corpo atual partir em pedaços e se recompor sob dez mil aspectos notórios um corpo novo onde vocês não poderão nunca mais me esquecer”.