Untitled - Rubens Ferneda

Transcrição

Untitled - Rubens Ferneda
Ao meu bom Deus, que me permitiu viver tantas histórias e que me concedeu
a faculdade de contá-las.
Um velho timbira, coberto de glória,
Guardou a memória
Do moço guerreiro, do velho Tupi!
E à noite, nas tabas, se alguém duvidava
Do que ele contava,
Dizia prudente: - “meninos, eu vi”.
Gonçalves Dias, em I-JUCA-PIRAMA
ÍNDICE
ANTES DE COMEÇAR
ANTES DO DEPOIS
O MASCATE
BOLÍVIA
A MORTADELA
UMA MALDADE
UMA EDUCAÇÃO EUROPÉIA
UMA FASE DIFÍCIL
DONA STELA
DURANTE A GUERRA
UMA CERTA BICICLETA
JÁ FUI BABÁ
UMA GRANDE COMPRA
UMA BOA VENDA
EU E O BEIJA-FLOR
“TAFÚIA”
VENDENDO PIPOCA
LUZES AMARELAS
UMA COISA NOTÁVEL
“INSPIRACION”
BOLERO
A BANDA DA MINHA BANDA
BÚRICA & BIROLA
DONA ESMERALDA
NO LUGAR DE SEMPRE
“FLASH GORDON”
UM JUIZ LADRÃO
PRÓXIMA PARADA: TORRINHA
EM CAMPINAS
O MEU PRIMEIRO AMOR
PASSAGEM DE IDA E VOLTA
NO COLÉGIO ESTADUAL
ANOS DOURADOS
O CINE MARÍLIA
MINHA DOCE MARÍLIA
CLARICE SANCHES
MINHA AMIGA YBE
31 DE JANEIRO DE 1953
TRÊS A DOIS
DONA ARGENTINA
PARA PREFEITO: JÂNIO
O APARTAMENTO 18
COMO TOMAR ÁGUA
O NÚMERO, POR FAVOR
DE BRAÇOS DADOS
RUA URANO, 157
OUTROS PAIS
AMIGOS
IVETE
EU NÃO SABIA POR QUÊ
O BONDE “ANGÉLICA”
ALUNO DO BANDEIRANTES
CINQUENTA CRUZEIROS
À LA INDIANA JONES
OUTRA FASE DIFÍCIL
NO QUARTEL
EXAME ORAL DE QUÍMICA
TIMIDEZ
O SABOR DA FOME
UMA NOITE DE ANGÚSTIA
CASOS E COISAS
QUADRA 7, SEPULTURA 4
SOMOS ONZE
REGINA MARIA
MEIA DÚZIA DE “R”
UM TESOURO PERDIDO
OS QUE VIERAM DEPOIS
NÃO CONSEGUI FUMAR
ÍDOLOS
FORMAÇÃO RELIGIOSA
VIRTUDES E ESCALA DE VALORES
CARA SUJA
CONTRASTES E CONFRONTOS
OS CAMPEÕES MUNDIAIS DA BELEZA
ILUSÕES PERDIDAS
O RECANTO ANA MARIA
19 DE NOVEMBRO DE 1995
HISTÓRIAS QUE EU NÃO CONTO
COISAS DO ENTARDECER
OS MEUS OLHOS
GENROS & NORAS
TIBIDABO
FRANCISCO
MARÍLIA, OS CIRCOS E EU (nova 14/04/2015)
AQUELA QUE DEIXOU DE SER SEM TER SIDO
VOCÊ CHORARIA TAMBÉM?
ANTES DE COMEÇAR
Se você tiver paciência para ir até o fim desta obra, encontrará 83 crônicas, escritas em
estilo que considero agradável, estilo compatível com os acontecimentos que elas procuram
descrever, pelo menos na grande maioria dos casos. São histórias que fazem parte da minha
história, embora não completem essa mesma história.
Se não definem uma vida, porque se referem a fatos isolados, pelo menos retratam os
episódios que mais acentuadamente marcaram a minha existência, até aqui, neste final do século
XX.
Talvez seja importante que você saiba que elas foram escritas de meados de 1998 a maio
de 1999, isto para o caso de ter interesse em saber qual foi o intervalo de tempo entre o
acontecimento e a sua descrição, vários anos depois. Esse intervalo variou de pelo menos 60 anos
a 4 anos, isto é, o fato mais antigo aqui descrito, que se refere diretamente a mim e sem considerar
o meu nascimento, aconteceu por volta de 1937, e o mais atual, em novembro de 1995.
É importante que se diga que essas crônicas não foram escritas na mesma seqüência em
que aqui aparecem. Foram sendo escritas na mesma ordem em que vieram à minha lembrança,
tendo sido anotadas à medida em que isso ocorria, para depois serem desenvolvidas, nessa ordem.
Isso pode explicar eventuais repetições ou referências a determinados fatos, uma vez que nem
sempre eu tinha uma boa noção do que viria antes e do que iria depois, na organização final do
trabalho. Dentro do possível, os fatos se apresentam, aqui, na ordem cronológica.
Procurei ser absolutamente fiel aos acontecimentos, inclusive quanto a locais, datas e
momentos exatos em que eles ocorreram. Em pelo menos 90% dos casos, isso se deu. Nos demais,
talvez tenha havido algum deslize, seja por falha de memória, seja porque uma pequena adaptação
se tornou necessária, por uma questão de linguagem ou estilo, sem, contudo, alterar a natureza, a
importância ou a magnitude dos fatos descritos.
Usei os nomes reais, acreditando, com isso, ser mais fiel aos fatos e às pessoas neles
envolvidas, bem como imaginando que isso não represente problemas aos meus personagens.
Talvez até se sintam um tanto envaidecidos pela citação, embora jamais com a mesma dimensão
da vaidade que sinto eu, por tê-los tido comigo, na vida, como por tê-los agora, ao longo destas
páginas.
Vivi intensamente cada fato aqui descrito, sem imaginar que, anos mais tarde, estaria
voltando a eles, para recordá-los e revivê-los à medida em que os descrevia. Não se trata de força
de expressão, não se trata de meras palavras que são colocadas para completar a dinâmica da
leitura. Os fatos foram realmente revividos, enquanto descritos, causando, sem dúvida, mais
emoção agora do que antes. Posso afirmar que, pelo menos no que se refere aos episódios aqui
narrados, vivi duas vezes. Daí, a minha crença de que recordar é viver de verdade. Ou reviver.
Um pouco mais pra frente, quase lá no fim, algumas crônicas não se referem a fatos, mas
a pensamentos. Como também tenho o hábito de sentir e de pensar, decidi transmitir-lhe algumas
coisas sobre esse sentir e sobre esse pensar. Se isso não lhe fizer bem, certamente não fará mal. Se
não lhe for útil, não lhe parecendo correto o que digo, pelo menos você terá tido alguma distração
e, no mínimo, saberá o que penso, ainda que isso não venha a acrescentar coisa alguma à sua vida
ou ao seu pensamento.
Não tive a pretensão de falar do bem, nem do mal. Não considerei sequer a possibilidade
de analisar o certo e o errado (ou o acerto e o erro), bem como procurei não fazer juízo de pessoas
ou de valores, embora, por vezes, essas coisas possam acontecer, como no caso de dona
Argentina, por exemplo, de quem falo mais adiante. Simplesmente, procurei me ater aos
acontecimentos e à maneira pela qual me comportei diante deles, seguro de que tais
acontecimentos saibam falar por si mesmos.
Agora, convido você à leitura. Se estiver chovendo lá fora, tanto melhor. Se sentir frio,
agasalhe-se, ajeite-se tranqüilamente onde você estiver e venha comigo, não para um mundo de
fantasias, mas para fatos que simplesmente aconteceram. Com essa leitura, certamente você não
acrescentará nada ao que já sabe sobre as ciências ou sobre as artes. Como também não descobrirá
nenhuma novidade quanto a teorias ou idéias transcendentais, dessas coisas que, quando se ouve
ou quando se lê, pergunta-se automaticamente: será?! Não creio que aprenderá alguma coisa
significativa sobre Filosofia, Política ou Religião. Porém, vivendo comigo nessa leitura e me
acompanhando nesse retorno ao passado, pelo menos ao meu passado, espero que sinta comigo,
que vibre comigo, que ria comigo e, se possível, que chore comigo. Boa leitura.
O AUTOR
ANTES DO DEPOIS
Nasci na primeira hora do dia 9 de janeiro de 1935. Foi na fazenda do meu avô, quase
embaixo de um pé de café. Algumas horas antes, no Mississipe, Estados Unidos, nascia um sujeito
que seria conhecido por Elvis Presley. Mas só fiquei sabendo sobre aquilo mais de 20 anos depois.
Antes de mim e em diversos lugares por aí, no interior de São Paulo, haviam nascido
nove, dos quais sete sobreviveram, cresceram e deram muito trabalho, não porque fossem maus,
mas porque eram muitos. Depois de mim, ainda nasceriam mais três. Falo sobre todos eles depois.
Não é muito fácil falar sobre os meus primeiros anos, os primeiros quatro ou cinco, não
apenas porque eles estão bem distantes, mas também porque, quando se é muito pequeno, não se
consegue um relacionamento bastante estreito com os fatos que nos cercam, acabando, muitos
deles, por serem esquecidos. Outros ficam.
Acredito que o mais antigo dilema que travei na vida tenha sido, curiosamente, em
relação à morte. Lembro-me de que a consciência de que, algum dia, se morre, eu a tive
incrivelmente cedo, mas eu não saberia dizer como foi isso. Talvez porque eu visse os animais
morrerem, nas mãos do meu pai, no caso do porco, ou da minha mãe, no caso do frango e da
galinha. Lembro-me bem que, inicialmente e sem que ninguém me dissesse, imaginava que se
morria e que, depois, se ressurgia, mas eu não entendia como e nem em que condições aquilo
pudesse se dar. Depois, ainda sem a influência de ninguém, passei a achar que a morte era o fim
de tudo, o nada, a escuridão eterna e a inconsciência completa. Mais algum tempo, mas ainda bem
pequeno, passei a não pensar mais naquilo, talvez porque, aos poucos, a idéia da morte me
aterrorizasse.
Quase ninguém falava sobre o que acontecia no mundo, sobre a guerra, por exemplo,
mas eu sabia que esse mundo não terminava ali, tão perto de mim. Sabia que ele era uma bola e
que havia gente por todos os lados.
Lembro-me com alguma clareza das constantes visitas do meu avô Ferdinando. Embora
eu não tenha fixado claramente a sua fisionomia, lembro-me de uma verruga que ele tinha atrás de
uma das orelhas e que eu supunha ser um enorme carrapato, como também não me esqueço do
cordão do seu relógio, pendente do bolso superior do seu colete, sempre de cor escura. Ele e
minha mãe falavam em Italiano. Sempre atento ao que diziam, fui aprendendo aos poucos o
significado de cada palavra.
Quando se matava um porco era uma festa, sempre num sábado, com o preparo da
gordura, da lingüiça e da carne que, frita, era guardada em latas, dessas de 18 litros, imersa na
gordura, que já havia sido derretida. Esta, solidificando-se, a conservava melhor do que qualquer
geladeira que, aliás, nem sei dizer se já tinha ou não sido inventada. A festa terminava sempre no
fim da tarde, quando a meninada organizava uma “pelada”, tendo como bola a bexiga do porco.
Era ovalada. Gordurosa como era, é fácil imaginar como se apresentava depois de alguns minutos
em contacto com a areia. Depois da briga, que nunca deixou de acontecer, uma boa machadada
acabava com a nossa “bola”. E como bola de verdade não havia, o negócio era esperar pelo
próximo porco.
Não podem ser esquecidas as vacas Tetéia e Fortuna, boas de leite como só elas.
A cada sete ou oito sábados, meu pai decidia que nós cinco, os homens, estávamos muito
cabeludos. Colocava uma cadeira lá fora e gritava:
- Quem vai ser o primeiro?
O mais próximo, ou o mais corajoso, se apresentava, sentava-se, era envolto por um
lençol e lá ia o meu pai se transformar em barbeiro, usando uma máquina manual que funcionava
na base do quatro por um, isto é, para cada cinco fios de cabelo, um ela cortava e quatro ela
arrancava. E ninguém tinha o direito de chorar, nem mesmo de resmungar ou fugir. Se necessário,
seria caçado, mas ficávamos todos “lindos”, tendo a cabeça diminuído e as orelhas, aumentado.
Lembro-me de ter sido muito nervoso, briguento, explodindo por qualquer coisa. Era
muito chorão. Todas as manhãs, enquanto tomava uma caneca de leite, ainda quente do úbere da
Tetéia ou da Fortuna, aquecia-me na taipa do fogão à lenha, onde subia e ficava de cócoras. Minha
mãe me disse, certa vez, que, algum dia, eu iria queimar o pipi e ficar sem ele.
Ainda hoje, tenho uma cicatriz bem nítida e de tamanho invejável no dedo indicador da
mão esquerda. Foi um golpe de faca, desferido pelo meu irmão Álvaro, quando apontei o lugar
onde deveria cortar a cana (de açúcar) que iríamos dividir. A ponta do dedo ficou pendurada, mas
não a perdi porque o meu padrinho Aurélio a colocou no lugar, fazendo um belo curativo com pó,
ou raspa, que ele tirou do chapéu, usando um canivete. Uma outra cicatriz, na base do dedo
indicador da mão direita, maior e mais nítida do que a primeira, ficou como recordação, também
do Álvaro, quando fazíamos carrinhos de carretel. Mas ele também pode exibir uma cicatriz,
devida a mim, que foi provocada vários anos depois; esta, na parte posterior de um dos joelhos.
A égua do meu tio Salvador (não estou dizendo que ele era uma égua; muito pelo
contrário, era o meu padrinho de batizado e uma bela pessoa; estou dizendo que ele tinha uma
égua, esposa legítima do cavalo), essa égua ficava lá e era o nosso meio de transporte em muitas
ocasiões, inclusive certa vez, quando minha irmã Ada e eu voltávamos para casa, depois de termos
levado o almoço na roça. Por causa de uma abelha, ela se assustou e eu fui com a cara no chão,
logo no primeiro pulo, arranhando bastante o meu rosto, que foi de encontro à terra dura e
vermelha. A Ada ficou firme em cima da égua e garante que em poucos segundos estava em casa,
onde minha mãe, assustada, fez a égua parar. Derrapou pelas patas traseiras, sujando o bum-bum
na terra, no melhor estilo de qualquer desenho animado. Claro que estou falando da égua e não da
minha mãe. Dá pra imaginar a égua, lá, sentadona no chão? Minha irmã, que demonstrou ser uma
amazona de primeira, estava ali, branca como o avental de minha mãe, a égua estava ali, talvez já
livre da abelha, mas eu, por onde andaria? Fui resgatado pouco depois, quando já vinha estrada
abaixo, com o rosto ralado, sangrando bastante, chorando muito e maldizendo a abelha, a égua e o
dono da égua.
Enfim, apesar do tempo já decorrido, algumas histórias ficaram, compondo aqueles
primeiros seis anos e meio de vida, quando, na metade de 1941, logo depois da primeira “cata” do
algodão, a bordo de uma possante e respeitabilíssima carroça, puxada por seis simpáticos e muito
bem dispostos animais, partimos para uma longa viagem (seis quilômetros, se tanto) até a vila
mais próxima, que mais tarde se chamaria Oscar Bressane. Lá, por mais um ano e meio, eu iria
completar o meu antes, pronto e apto - segundo me parecia - para o meu depois, sobre o qual,
depois eu conto.
O MASCATE
Naqueles tempos, ainda antes que a 2ª Guerra Mundial começasse, pouca coisa me dizia
respeito além do sol escaldante, mesmo o de julho, que secava os grãos do nosso café; além do
leite quente que eu tomava todas as manhãs, aquecendo-me junto ao fogo do nosso fogão à lenha;
além dos banhos que tomávamos, nus, no rio que passava lá embaixo, a Água da Panela; além dos
animais com os quais convivíamos; além das verdadeiras festas que se faziam quando se matava
um porco; além das pelotas de barro que eu ajudava a preparar para que, depois de secas,
pudessem ser usadas nos estilingues; além do itinerário religiosamente seguido para ver cada
arapuca, pegando a ave que lá estivesse ou armando-a de novo, com um misto de arte e técnica,
que eu já dominava, mesmo antes dos cinco anos; além do pavor que eu sentia quando um
caminhão aparecia por lá; além do chiado do carro de boi, que se ouvia ao longe; além das
primeiras lições de vida que vinham da minha mãe ou do meu avô, sempre em Italiano.
O meu mundo era pequeno, mas suficientemente grande para conter essas coisas
maravilhosas, e muito mais, que começaram a plasmar a minha personalidade e que se
constituíram nas primeiras páginas de uma história, linda porque minha e linda porque me foi dada
por Deus.
Existiam, naquela época, inúmeros personagens que povoavam o meu pequeno mundo.
Alguns eram fictícios, mas me apavoravam: assombrações, lobisomens, mulas-sem-cabeça.
Outros eram reais. Alguns deles, mesmo sendo reais, me inspiravam receio ou constrangimento.
Havia um senhor chamado Ambrósio, que morava nunca soube onde, que me causava medo.
Andava sempre a cavalo. Faltava-lhe um dos braços e usava uma barba bastante longa. Jamais me
aproximei dele, mesmo que eu estivesse em companhia de alguém.
Um personagem folclórico daquela época era o mascate. Uma figura bem típica daquele
tempo. Era encontradiço em todos os lugares, era visto em todas as estradas e batia em todas as
portas. O mascate vendia de tudo, pelo menos de tudo o que pudesse ser acomodado em suas
malas. Desde agulhas, linhas e botões até tecidos. Vendia rouge, batom, carmim e água-de-cheiro,
além de uma quantidade enorme de bugigangas. Andava a pé e, por isso, sempre cansado e suando
por todos os poros.
Entre eles, havia um que eu posso chamar de especial. Era motorizado. Tinha um “pé-debode”, isto é, um “fordeco” 29, com duas portas e teto de lona. Além de todas as quinquilharias,
como qualquer outro mascate, vendia objetos maiores e mais caros. Numa das vezes, tinha uma
máquina de costura e achava que minha mãe devia comprá-la, mesmo sabendo que ela já tinha
uma.
Na primeira vez que esteve lá, ficou encantado com uma das crianças de minha mãe. Era
um menininho, o menor deles, dois ou três anos de idade, loirinho, brabo, cabelos encaracolados
(que depois se tornariam lisos). Segundo alguns, era a cara de São João Batista, aquele mesmo que
aparecia no alto dos mastros, nas festas juninas. Chamava-se Rubens e era eu.
- A senhora me dá esse menino?
A recusa foi veemente e o homenzinho teve de sair às pressas. Sorte dele que o seu
“automóvel” “pegou” logo na primeira tentativa.
Tempos depois, ele voltou e insistiu:
- Gostaria de levar esse menino. A senhora tem tantos! Um não vai fazer falta.
Pobre homem, não sabia com quem estava falando. Imaginava que ali fosse uma fábrica
de crianças e não sabia que a mãe delas era uma “italianona” daquelas, com uma visão de vida
muito diferente daquela que ele supunha.
Não sei dizer quantas vezes ele lá esteve e quanto ele insistiu, mesmo porque, depois da
segunda vez, eu sumia para o meio dos cafezais assim que ouvia o barulho do seu “pé-de-bode”.
Não conseguiu me levar com ele, não vendeu a máquina e nenhuma das suas bugigangas.
Apesar de brabo e chorão, de desobediente e briguento - como me tornaria depois – eu
era fruto do amor e não de uma produção em massa. Foi a minha primeira experiência importante,
sentindo-me querido e entendendo que fazia parte de um todo chamado família que, apesar de
numerosa, deveria permanecer una e inexpugnável.. Lembro-me de ter feito várias vezes algumas
conjecturas sobre como poderia ser a minha vida em outro lar, talvez com uma visão diferente do
mundo e com perspectivas diferentes. Se tivesse tido, contudo, a possibilidade de escolher,
certamente continuaria em casa, com minha mãe, que não me beijava e nem me acariciava, mas
que demonstrou me amar, e com os meus irmãos e irmãs que, no fundo, me queriam bem. Afinal,
eu precisava de alguém para xingar e com quem brigar. Aliás, as minhas fugas, quando o mascate
aparecia, indicavam que o meu negócio era lá mesmo.
Até que aquele mascate acabou sumindo de lá, sem nunca mais aparecer.
Mas os mascates continuaram pelas ruas das cidades e pelas estradas esburacadas e
poeirentas de sítios e fazendas, vendendo linhas, agulhas e botões, oferecendo rouge, batom, águade-cheiro e carmim, além de tecidos, quinquilharias e bugigangas. Eles continuaram ainda por
longo tempo, ao que parece não simplesmente para ganhar a vida, mas também – e, talvez,
principalmente - para completar aquele quadro bucólico e até romântico que colaborou na
definição de uma época e ajudou a construir uma história..
BOLÍVIA
O meu mundo era bem pequeno no início dos anos 40. Antes dos sete anos e antes que eu
fosse para a escola, no início de 1942, o meu mundo se resumia à fazenda de café do meu avô
Ferdinando, onde nasci - quase embaixo de um daqueles pés de café - e onde plantei nada mais do
que sonhos. Não sei se era feliz e não sabia, como diz aquele velho samba do Ataulfo Alves. Sei
que, sonhando, esperava pela vida.
Lembro-me bem que, certa ocasião, meu pai decidiu alfabetizar seus filhos. Éramos 11,
mas eu e minhas três irmãs menores, muito pequenos, ficaríamos para depois. Minha irmã Diva
também ficaria de fora, porque, deficiente visual, vivia em São Paulo, onde estudava, no Instituto
Padre Chico.
O Joãozinho foi então chamado para a tarefa de alfabetizar os meus seis irmãos. Não era
professor. Apenas sabia um pouquinho mais do que os outros, que não sabiam nada.
À luz de algumas lamparinas à querosene, reuniam-se os sete ao longo de uma mesa
rústica, acomodando-se sobre bancos de madeira, em nossa casa. O “professor”, quase sempre
inclinado junto de cada um, régua na mão, acompanhava a leitura, palavra por palavra, frase por
frase, com incrível paciência, notável interesse e indiscutível amor. Enquanto cuidava de um, os
outros estudavam, guardando silêncio absoluto.
Curioso como era, eu andava sempre por lá. Encostava-me no meu irmão Álvaro, apenas
dois anos mais do que eu, tentando adivinhar o que ele mal conseguia ler em seu livro.
- Puxa vida, você continua nessa lição?, perguntei-lhe, certa noite, em voz baixa.
- Você é bobo mesmo, respondeu-me ele, também baixinho. Pensa que é assim, só ler e
pronto? Precisa ler direitinho, sem errar, e entender bem o que leu. Só depois é que se muda de
lição.
Alguns dias depois, antes que a aula se iniciasse, o Álvaro me mostrava um livro de
Geografia. Sempre ele! Eu não tinha acesso muito fácil aos meus outros irmãos. Eles eram
maiores, mais espertos e mais sabidos. Poucas vezes tomavam conhecimento de mim.
- Olha aqui, disse-me ele com o livro aberto e apontando para uma figura colorida, esse é
um outro país.
- Outro país?!, perguntei e exclamei admirado.
- Claro, seu bobo, você pensa que o Brasil é o único país que existe? Existem muitos
países. Este aqui chama-se Bolívia.
Caí na risada. Não podia ser! Para mim, um país chamado Bolívia era a coisa mais
engraçada do mundo. Mas tem uma explicação: Bolívia era a mula que puxava a carroça do meu
pai. Às vezes, sozinha; outras vezes, com a ajuda de um burrinho chamado Ferreiro. Existem
muitas histórias, tanto da carroça como da Bolívia e do Ferreiro, ou do Barão, um burro imponente
e vistoso que apareceu depois, e ainda do Comiti, o nosso cachorro. (Pronuncia-se Comití, palavra
oxítona). Mas fiquemos com a Bolívia por enquanto.
Sem saber o que viera antes, o país ou a mula, mas apostando na mula, lembro-me de,
em seguida, ter me sentido orgulhoso ao saber que aquele animal, tão querido por nós, havia sido
homenageado por um país, que lhe copiara o nome.
Confusões à parte, a verdade é que, naquela noite, à luz das lamparinas, tive a minha
primeira aula de Geografia. E aprendi que existiam outros países, o primeiro dos quais me estava
sendo apresentado: a Bolívia. A partir daí, duas entidades diferentes, mas com o mesmo nome,
passariam a fazer parte da minha vida, cada uma com a sua história.
O país, onde jamais estive, acompanhou-me através de muitas outras aulas de Geografia.
Aprendi bastante sobre ele, mas somente agora, crescido e responsável, posso afirmar que me
ocupo política e fraternalmente dele - e dos outros também - porque pertence ao mesmo mundo ao
qual pertenço, porque, como eu, luta por um lugar melhor e porque seus filhos nasceram do
mesmo Deus do qual nasci.
Mas a mula também teve a sua história. Escura, encorpada e forte, por muitos anos foi
amiga e companheira. Ajudou-nos bastante na lida da fazenda. Café pra lá, milho pra cá, arroz ou
feijão que nunca pareciam estar no lugar certo. O seu salário? Além da água pura e fresca, além do
milho e do farelo e além do capim-gordura que a esperava todas as tardes no pasto, o nosso
reconhecimento e o nosso amor. Pode-se afirmar que todos nós, na minha casa, estimávamos
bastante a nossa Bolívia.
E como tudo passa, e como tudo se transforma, para a Bolívia o tempo também passou, e
aquela relação de trabalho e amizade caminhou para o fim. Mudamo-nos para a cidade, onde não
havia lugar nem função para ela. Não me lembro se houve uma despedida formal.
Algum tempo depois, velha e sem forças, perambulava triste e inútil ao longo do pasto,
tudo o que lhe restara daqueles dias de glória. Não havia mais a carroça e nem o Ferreiro, não
havia mais a voz de comando do seu dono, não havia mais o afago de nós todos, seus amigos.
Além do pasto, apenas o caminhar inseguro, rumo ao fim. Até que um dia foi encontrada morta.
Junto a uma cerca, tentara nela se apoiar para alcançar alguma comida mais no alto. E, não
conseguindo se livrar da cerca, ali ficou. Não tendo sido socorrida, porque ninguém a viu, a nossa
Bolívia morreu de pé, como merecia.
A MORTADELA
No ano de 1942, o acesso a Oscar Bressane, para quem chegava de Marília, era bem
diferente do atual. Chegava-se direto à rua principal da cidade, cujo nome atual desconheço e cujo
nome, naquela época, nunca soube, porque não existia. Mas é uma rua que passa atrás da igreja.
Até pouco tempo antes, a chegada era pela rua de baixo, onde eu morava, passando pela frente do
cemitério, que ainda lá se encontra e onde está sepultada boa parte da família de minha mãe,
inclusive o meu avô Ferdinando Bocchi e minha avó Theodolinda Tedeschi. Pra não esquecer as
origens, estou falando do meu “nono” e da minha “nona”.
Antes de chegar à cidade, à esquerda, havia quase sempre uma cultura de algodão. Ali eu
costumava apanhar “Maria preta”, uma frutinha sem-vergonha, porque aparecia em qualquer
lugar, da qual a criançada gostava bastante. Depois, as instalações de uma escola primária, toda
em madeira e sem qualquer cerca, onde fui alfabetizado. No outro lado da estrada, um vigoroso
cafezal e, depois dele, a primeira residência, onde morava o meu primo Henrique. Naquele ponto a
estrada se transformava em rua, parte em terra batida, parte em grama.
Numa daquelas tardes, eu e dois dos meus primos, o Oswaldo e o Arlindo, desocupados
como sempre, andávamos por aquele início de rua quando se aproximou de nós, chegando à
cidade, uma pequena camioneta, um “fordequinho” 29, um tipo de veículo que todos conheciam
por “pé-de-bode”. Uma cobertura de lona dava-lhe o formato de um caminhão-baú, de pequenas
dimensões, é claro, com uma espécie de janela na parte traseira, fechada por uma lona, presa em
cima mas livre nas laterais e na parte de baixo.
Certamente não sabíamos o que ela trazia. Por isso o Arlindo resolveu “conferir”.
Com aquele barulho bem característico dos motores da época e daquele tipo de veículo,
passara por nós com uma velocidade não muito superior àquela de uma tartaruga. O Arlindo não
precisou correr muito para alcançá-la e, apoiando-se no pára-choque, desaparecer no seu interior.
Eu e o Oswaldo observávamos à distância.
Em alguns segundos, vimos que um objeto fora lançado de dentro para fora, depois de ter
aberto, ele mesmo, passagem pela janela de lona - ou de plástico, não me lembro bem -, indo
estatelar-se no chão e dando alguns pulos na grama, como se fosse uma bola não bem cheia. Era
uma mortadela.
Ato contínuo, surge o Arlindo, não tendo nenhuma dificuldade em descer do “pé-debode” em movimento. E abraçou a mortadela como os norte-americanos abraçam uma bola de
“rúgbi”. E saiu correndo, também como fazem os norte-americanos nesse mesmo jogo. E sumiu,
cafezal adentro.
A camioneta parou um pouco adiante.
Meu primo Henrique, homem adulto e já casado, acabara presenciando a cena, não sei
como. Embora com algum atraso, saiu em perseguição ao Arlindo. O Oswaldo e eu o seguimos,
enquanto o motorista, dono da mortadela, esperava o desfecho do caso. Não demorou muito para
encontrarmos o Henrique, que, irritado, segurava o Arlindo por um dos braços e pelo pescoço,
quase a lhe estrangular, enquanto perguntava energicamente:
- Onde está a mortadela?
Sem alternativa, o Arlindo levou-nos ao “esconderijo”.
Era comum entre os cafeicultores cavar buracos no cafezal, quadrados, 60 ou 70
centímetros de profundidade, para receberem o adubo, muitas vezes a própria casca do café, e
também para acumular água. O Arlindo havia jogado a mortadela num daqueles buracos e,
rapidamente, havia jogado terra sobre ela.
Ajoelhado, meu primo a desenterrou, atendendo à exigência do Henrique.
Como se sabe, a mortadela apresenta-se sempre um tanto gordurosa na superfície
externa. Não é difícil imaginar como ela ficou, em contacto com a terra. Parecia qualquer coisa,
menos uma mortadela.
Abraçando-a novamente, lá seguiu o cortejo, encabeçado pelo infortunado Arlindo, com
o Henrique à sua direita, segurando-o e esbravejando. Atrás, o Oswaldo, e, depois, eu, ambos
alguns anos mais jovens do que o Arlindo. Eu era sempre o último, em todas as aventuras, e
andava invariavelmente atrás.
Chegamos à camioneta. Sol quente.
- Aqui está a sua mortadela, disse o Henrique ao motorista.
Minha memória se apaga exatamente aí. O resto da história fica por conta da sua
imaginação. Não sei quem deu banho na mortadela, nem onde foi esse banho e nem qual foi o bar
ou o armazém que a comprou. Como também não sei se minha tia Maria acabou punindo o seu
filho, se é que tomou conhecimento daquele fato.
O meu primo Arlindo, coadjuvante de tantas histórias daquele tempo, morreu bem cedo,
antes dos 40 anos, mas com certeza não por causa da mortadela, nem pela possível dor de
consciência por haver tentado “escondê-la” do seu dono.
Aquela cena, que, como várias centenas de outras, ficou gravada em minha memória,
com o Arlindo devolvendo a mortadela num lugar bem próximo daquele onde a houvera jogado
para fora do “pé-de-bode”, ilustrou, com antecedência de vários anos, um ensinamento que eu iria
receber bem mais tarde: o criminoso sempre volta ao local do crime.
UMA MALDADE
O quintal do meu tio Sócrates era bem grande e terminava num pomar. À esquerda, entre
a casa e o pomar, havia um terreiro para secar café. Era anterior a mim. Os seus dias de glória
deviam já estar longe porque se encontrava em condições bem precárias. De qualquer maneira,
cheguei a vê-lo algumas vezes no exercício da sua função, com aquela camada espessa de café,
bem nivelada por um enorme rodo, secando ao sol. Sempre achei gostoso andar sobre os grãos
escuros e quase secos.
A casa do meu tio era a última naquele lado da cidade, o lado de baixo. Talvez por isso, o
grande espaço, com o pomar, o terreiro e outras coisas mais.
Além do pomar, depois de uma cerca de arame farpado, um pequeno pasto. Nele,
espalhavam-se algumas árvores. Entre elas, a nossa favorita. Era uma árvore bem encorpada, com
inúmeros galhos que haviam crescido a partir de um tronco relativamente curto, mas grosso,
permitindo que se subisse facilmente a partir dele. Galhos que se multiplicavam em ramos mais
finos, com uma infinidade de folhas, e que vergavam na direção do solo, dando à árvore o formato
de um guarda-chuva, ou de um cogumelo. Se fosse possível vê-la do alto, confirmar-se-ia o
formato de uma circunferência, projetando grande sombra no chão, num raio de pelo menos três
metros.
Íamos lá de vez em quando. Naquele dia éramos três: o meu primo Irso, o meu irmão
Álvaro e eu. Brincávamos bastante, junto à árvore. Nela subíamos e dela descíamos. Por vezes,
descíamos pelos galhos, que, com o nosso peso, se curvavam quase até o chão. Outras vezes,
fazíamos o caminho inverso: puxando os galhos pelas extremidades, nós os trazíamos até
próximos ao chão, subindo por eles. E o tempo passava rápido.
Em dado momento, estávamos os três no início dos primeiros galhos, a dois metros do
chão, quando o Irso, sentado num deles, disse:
- Vou saltar para aquele galho.
Não haveria nada de mais sério se não conseguisse. Cairia no chão, que estava logo ali.
- Ele está longe; acho que você não consegue, disse o Álvaro.
- Não vai conseguir mesmo, acrescentei eu, que estava logo atrás do Irso.
No meu caso, não se tratava de subestimar as condições atléticas do meu primo. Tivera
uma idéia um tanto sinistra; no mínimo, maldosa. O Irso trazia um estilingue pendurado ao
pescoço, com a malha junto a ele, na frente, e a forquilha nas costas, logo ali, diante de mim.
- Vou segurar a forquilha e ele irá para o chão, pensei maldosamente.
- Lá vou eu, decidiu o Irso. Um, dois, e... três.
E se atirou na direção do outro galho.
No entanto, mal começara a contagem, e sem que ele percebesse, peguei a forquilha e
segurei firme. O meu plano até que fora razoável, mas a execução foi desastrosa. O Irso, três anos
mais que eu, era bem mais encorpado e com mais peso. Não tive força suficiente para segurá-lo,
obrigando-o a ir para o chão, num salto sem sucesso, como eu pensara. As duas pernas de
borracha - do estilingue, é claro - esticaram-se até onde foi possível e até o limite da minha força.
Naquele momento, a forquilha me fugiu do controle, escapou-me e foi se chocar violentamente
contra a nuca do indefeso Irso. O grito de dor ouviu-se ao longe. De qualquer maneira, acabou
indo ao chão, mas esse foi o mal menor. Dor e sangue foram as consequências de um ato
irresponsável, de uma criança que planejara mal uma brincadeira de péssimo gosto. Tudo o que eu
pretendia era evitar-lhe o sucesso naquele salto, mas, evidentemente, não àquele preço. Ele foi
para casa aos berros e foi socorrido de imediato.
Claro que me arrependi amargamente, ficando bastante tempo sem ter como olhar para
ele e sem ter coragem para isso. Afinal, ele era bem mais forte e poderia me dar uma surra. Mas
não o fez. Por bastante tempo, pareceu-me conveniente não encarar a minha tia Teresa, mãe dele.
Mas o tempo passou e ambos me perdoaram. Menos mal.
Aquele meu gesto irrefletido fez-me pensar bastante, embora tivesse menos de oito anos.
Durante muito tempo, sempre que me lembrava daquele acidente que eu havia irrefletidamente
provocado, não conseguia entender o duplo aspecto que ele encerrava, além de uma possível
relação de causa e efeito entre esses dois aspectos. Em primeiro lugar, eu não queria que ele
obtivesse êxito com o pulo. Pensamento equivocado, mas compreensível na mais do que natural
disputa entre crianças, geralmente egoístas. O segundo aspecto foi não ter medido as possíveis
consequências, no caso de alguma coisa sair errada, como saiu. Finalmente, a relação de causa e
efeito, uma vez que um mau pensamento, ou um mau desejo, (eu não queria o sucesso dele) nunca
pode levar ao bem.
Também nesse caso, eu levaria vários e vários anos para entender essas coisas. Na vida,
se alguém busca o sucesso, ainda que ele seja apenas através de um salto entre os galhos de uma
árvore, mandam a consciência e o bom senso que todos devemos ter, sugerem as mais primárias
noções de civilidade e convivência sadia, exige o Deus no qual quase todos nós acreditamos que,
em vez de nos opormos ao sucesso buscado, colaboremos com esse alguém, nessa busca, e com
ele nos alegremos quando tal sucesso for conseguido.
Até aquele dia eu não conseguia entender isso. Mas comecei a pensar nessas coisas.
Hoje, felizmente, sei que é assim. Fácil saber, fácil entender, mas, ainda hoje, difícil de executar.
“Mea culpa, mea culpa, mea maxima culpa”.
UMA EDUCAÇÃO EUROPÉIA
A pequenina Oscar Bressane era ainda menor por volta de 1940; minúscula mesmo. Três
ruas numa direção e quatro na outra. Além delas, cafezais, pastos, pomares. Mais gente no campo
do que na cidade. Nada de infra-estrutura. Sem água encanada, sem esgoto, sem luz e sem
telefone. Por algum tempo e por iniciativa do meu tio Manoel, um gerador movido a carvão
conseguiu iluminar a cidade e as residências, mas apenas por algumas horas, no início de cada
noite. Duas farmácias, mas nenhum médico. Um dentista. Um padre, que depois acabou sumindo
de lá. As más línguas diziam que ele “aprontava”, mas nunca conseguiram provar nada. Uma
escola primária, onde fui alfabetizado pelo prof. Edmur. Um único automóvel, um ônibus (que era
chamado de “jardineira”) e três caminhões.
Ao povo, nada mais do que a vontade de sobreviver. E por falar em sobreviver, já ia me
esquecendo que havia lá um cemitério, onde tenho vários parentes sepultados, inclusive os meus
avós maternos Ferdinando Bocchi e Theodolinda Tedeschi.
Pelo menos dois terços da população eram constituídos de italianos e seus descendentes,
divididos em quatro ou cinco famílias, bem numerosas, que dominavam a cidade. Eu pertencia a
uma delas. O terço restante era formado por alguns espanhóis, por duas famílias de origem árabe e
por aqueles que nada tinham a ver com os imigrantes.
Não tínhamos autonomia político-administrativa. Desnecessário dizer que a autoridade
máxima era a do padre, enquanto esteve lá.
Quase não se viam revistas naquela época. Lembro-me só de uma, que trazia, na capa,
uma fotografia do papa, que era Pio XII. Alguns jornais apareciam, sempre atrasados, através dos
quais a minha “italianada” se informava sobre o andamento da guerra.
Quando falo da minha “italianada”, é claro que não falo exclusivamente das pessoas que
nasceram na Itália. Aliás, bem poucos haviam nascido lá. Falo também dos filhos e netos de
italianos, os “oriundi”, que se mostravam como italianos, fosse pelo sangue latino, que ninguém
via, fosse pelo pensamento e pelo comportamento, que logo transpareciam, fosse pelo
temperamento, que sempre exibiam, quisessem ou não, fosse pela mistura do Português com o
Italiano, não sabendo eu, quase sempre, se inúmeras palavras ou mesmo expressões que usávamos
pertenciam à língua portuguesa ou à italiana, fosse pelo sotaque, sempre impossível de esconder,
se tivéssemos a consciência de que ele existia.
O setor agrícola, vigoroso, dava vida à cidade, onde não se produzia nada, a não ser os
“oriundi”. Estes, aliás, surgiam de todos os lados. Como disse, eu era, e sou, um deles.
A característica mais marcante daquele lugarejo, e que iria fazer marcas profundas na
minha personalidade, era uma visão européia de vida, determinada principalmente pelos italianos,
a maioria. O que se sentia na cidade, no relacionamento entre as pessoas, na maneira particular de
cada um se posicionar diante de um determinado fato, nada mais era do que um prolongamento
daquilo que eu vivera nos seis anos anteriores, dentro da minha casa. Dia após dia, a cada instante,
a cada fato, eu e os demais “oriundi” éramos convidados, ainda que de maneira não explícita, ou
informal, a comparar a mentalidade dos italianos com a dos outros, especialmente se esses outros
pertencessem ao “resto”, isto é, aos brasileiros propriamente ditos. Quisesse ou não, aceitasse ou
não, acabei aprendendo que os europeus, especialmente os italianos, eram gente, e os demais, os
brasileiros, como se dizia quase que pejorativamente, não eram. Talvez estivessem certos, em
alguma medida, mas era também certo que chegaram ao exagero, coisa que iria me trazer alguns
malefícios, mais tarde. Afinal, ao longo da vida eu iria acabar encontrando muitos brasileiros que
eram gente e muitos “oriundi” que não eram. Como eu nunca esperava por aquilo, tais fatos me
causavam surpresa, choque e, muitas vezes, transtornos.
Em linhas bem gerais, que estavam bem próximas da minha compreensão ainda naquela
época, com os meus sete anos de idade, posso citar algumas coisas que transpareciam bem claras
no espírito e na mente daquela “italianada”, coisas, ou ensinamentos, que aqui transcrevo como se
fossem normas escritas, sem considerar os méritos e os possíveis deméritos de cada uma:
- O hoje é importante, mas, muito mais importante, é pensar no amanhã e trabalhar em
função dele.
- Só há um caminho para se viver bem e garantir que se esteja sempre “bem de vida”:
o trabalho.
- Evite, a todo e qualquer custo, fazer uma dívida, mas, se a fizer, trate de pagá-la até
mesmo antes do prometido. É uma questão de honra da qual não se pode fugir, sob
pena de não se poder andar de cabeça erguida.
- Os mais velhos, nem sempre mais sábios mas, com certeza, mais experientes, a
começar pelos pais, precisam sempre ser ouvidos e respeitados. Desobediência,
jamais.
- Não discuta e, muito menos, não brigue com ninguém. Cale-se sempre, mesmo
quando tiver razão.
- Jamais emita qualquer opinião, de qualquer natureza, sobre uma pessoa, diretamente
para ela. Se tiver elogios a fazer, faça-os a terceiros; jamais à pessoa em questão.
Nunca diga, por exemplo, a uma moça que ela é bonita.
- Cumpra sempre as suas obrigações, os seus deveres, acima de qualquer custo ou de
qualquer sacrifício e seja absolutamente honesto, em todos os sentidos, sem jamais
mentir.
-
Acumule bens ao máximo que puder. Com eles, não se imagina que possa ganhar o
céu, mas se deixar boa herança para os filhos será sempre admirado e respeitado por
todos, da família ou não.
As crianças tinham pouca liberdade, ou mesmo nenhuma, para participar das conversas
entre os adultos, na presença de visitantes ou estranhos, a não ser que estes desejassem. Na
educação dessas crianças, as palavras e os exemplos eram importantíssimos, sendo usados até a
exaustão. Mas, sempre que se mostrassem insuficientes, o chinelo era chamado a intervir. E o
fazia com eficiência e eficácia. Penso que a intervenção do chinelo pode até ser discutida hoje em
dia, quanto ao método; porém, quanto ao conteúdo e quanto aos resultados, jamais.
Dos “brasileiros”, ao contrário dos “oriundi”, pensava-se – e até mesmo se dizia
abertamente – que eles não tinham palavra, trabalhavam pouco ou quase nada, “esqueciam-se” das
dívidas, mentiam, não sabiam fazer as coisas como elas deviam ser feitas, pensavam apenas no
agora, não sabiam direcionar e organizar a vida, e outras coisas mais. Enfim, consideravam
problemática a convivência com “aquela gente”, mantendo, sempre que possível, uma cautelosa e
discreta distância.
Economicamente, aqueles de origem estrangeira eram mais bem-sucedidos do que os
demais. Não me lembro de exceções.
Não existiam imposições muito rígidas quanto aos casamentos. Afinal, já estávamos
chegando à metade do século XX. Mas era mais do que claro e certo que um descendente de
italianos, se tivesse juízo, iria procurar um casamento numa das outras poucas famílias italianas
que existiam lá. Tais casamentos eram sempre aprovados, abençoados e festejados. E lá vinha uma
nova penca de “oriundi”. Mas aconteceram algumas exceções; pouquíssimas. O meu primo
Orlando (menos mal) casou-se com uma filha de espanhóis. O meu primo Adolfo, irmão dele,
casou-se com uma mulatinha, a Lazinha, mas, como ela era uma doçura e um encanto, entrosou-se
no meio daquela “italianada” e passou logo a ser tratada como gente que era. Na minha casa, por
exemplo, embora muitos anos depois e já bem longe de lá, eu e meus dez irmãos, a segunda
geração no Brasil, casamo-nos com nove descendentes de italianos e dois descendentes de
portugueses. Deu pra ilustrar?
Exageros à parte, é bom não esquecer uma realidade indiscutível: os imigrantes tinham
uma filosofia de vida bem clara e bem firme, cujos traços mais marcantes relacionei acima e que
transmitiam de maneira intacta aos seus descendentes. E o faziam com eficiência e vigor. O
mesmo não parecia acontecer com os demais. Entre eles não havia - e acredito que ainda não haja
- uma linha filosófica definida e que pudesse se transmitir dos pais para os filhos. Estes pareciam
aprender sobre a vida na própria rua. E ali, um confronto muito sério com aqueles que levavam
para lá as lições recebidas em casa. Os choques eram tremendos. Vivi tudo isso. Foi-me muito
difícil não apenas viver, como também entender, pelo menos naquela época, aos sete anos de
idade.
Ocorre que a minha amostragem era muito pequena, o que poderia me levar a
importantes erros de interpretação. Mais tarde, ao longo da vida, os contactos com os não
“oriundi” se tornaram gradativamente mais numerosos, e eu fui descobrindo que as verdades dos
meus ascendentes italianos me pareciam bem próximas da verdade definitiva, quando
consideradas no seu conjunto e em si mesmas, mas se constituíam em verdades apenas relativas
quando se tratava de fazer comparações com os chamados “brasileiros”. Existiam - e continuam
existindo - diferenças entre uns e outros, mas, em muitos casos, tais diferenças eram, e são, bem
mais de enfoque do que de substância.
Seja como for, o meu objetivo é relatar o que aconteceu e como aconteceu. É dizer quais
foram as influências que recebi, quais os impactos que elas me causaram, e falar das dificuldades
imensas que tive por ter de desenvolver a minha personalidade, num período estratégico da minha
vida, envolvido por choques muito grandes, estabelecidos por duas culturas nitidamente diversas.
Sou, portanto, o resultado de toda uma linha de pensamento tipicamente européia e italiana,
imensa na sua formação e na sua prática, mas geograficamente reduzida, confinada inicialmente
aos limites da minha casa e, logo depois, às minúsculas dimensões do atual município de Oscar
Bressane. Eu tinha, forçosamente, que ser um produto, teórico e prático, daquela cultura e daquela
vivência. Não havia como ser diferente. E, convenhamos, não havia motivo para ser diferente. Do
meu avô Ferdinando, mas através de minha mãe, (eu tinha apenas quatro anos quando ele se foi)
herdei inúmeras verdades importantes, primordiais ao longo de toda a minha vida. Tudo o que sou
e tudo o que sei, de verdade e em verdade, sobre a vida, devo a ele. Mas me parece hoje que a
verdade definitiva talvez ainda esteja por ser encontrada, embora eu considere, muito a
contragosto, que não terei tempo para isso. E nem gostaria eu que as minhas verdades não fossem
as melhores, como sempre me pareceram ser.
Nota: Para esta definitiva versão desta crônica, contei com a colaboração (sugestões) de minhas
filhas Rosângela e Regina Maria, nove anos depois da versão original. Agradeço a elas.
UMA FASE DIFÍCIL
No dia 30 de novembro de 1942 chegávamos todos a Marília, iniciando eu a segunda
fase da minha vida. Os primeiros anos da minha existência, quase oito, haviam ficado para trás,
dando lugar aos dez que se seguiriam e que viriam a ser os mais felizes, entre todos os já vividos.
Fomos morar no número 622 da Rua Dirceu, atual Cel. José Brás, casa já destruída há
muitos anos. Levei comigo uma enorme bagagem, cujo peso e cuja importância não tinha ainda
como avaliar: a educação européia que eu havia recebido e que continuaria recebendo nos anos
seguintes. Além dessa bagagem, eu trazia algo mais comigo, que não imaginava pudesse existir,
mas que seria de grande importância para mim nos primeiros tempos que teria pela frente.
Os meus dez anos de Marília, como eu disse, foram bastante felizes e venturosos.
Contudo, o início foi difícil e amargo. Tudo era novo, diferente e estranho. Foi nesse início que
sofri a pior fase do meu tracoma, cujo tratamento era demorado e doloroso, além de me ter
deixado sequelas que iriam me preocupar somente 50 anos mais tarde.
Lembro-me que um dos meus primeiros amigos se chamava Joel. Tinha a perna esquerda
mais curta do que a outra e andava com dificuldade. Certo dia falou-me do seu pastor. Mas ele
falava de um “Pastor”, digamos com “P” maiúsculo, e eu entendia um “pastor” com “p”
minúsculo, isto é, eu pensava naquele homem do qual já ouvira falar e que conduzia ovelhas pelo
campo. Mas como poderia ele ter um pastor, se eles não existiam por lá? Depois de algumas vezes
falando sobre aquilo, criei coragem, vale dizer, decidi deixar a vergonha e a ignorância de lado, e
procurei esclarecer o assunto com o próprio Joel. Foi aí que fiz uma descoberta importante: não
existiam apenas católicos no mundo; existiam também os protestantes, que, mais tarde, seriam
conhecidos genericamente por evangélicos. Estes tinham pastores, enquanto nós tínhamos padres.
Foi uma descoberta e tanto.
Nos primeiros meses fiz poucos amigos. A bem da verdade, devo dizer que fiz muitos
inimigos. Como eu disse antes, em Oscar Bressane eu já enfrentara dificuldades na rua, em virtude
do choque de culturas, das enormes diferenças quanto à educação recebida em casa. Em Marília
não seria diferente. Com um agravante: havia muito mais crianças e, portanto, muito mais gente
com quem se desentender e com quem brigar.
O particular drama vivido na escola será relatado no próximo capítulo.
Desde o início, observei uma coisa: riam quando eu falava. Nessa época, eu ainda
gaguejava (acho que nasci gago) e pensava que fosse só por causa daquilo. Como riam, eu me
irritava muito e, porque me irritava, as dificuldades para falar triplicavam. E então eles riam ainda
mais. Poucas vezes me arrisquei a uma briga corporal porque, parecia uma sina, em todos os
lugares e em todas as circunstâncias eu era sempre o menor. Portanto, oportunidades para brigar e
apanhar nunca me faltaram. A minha única saída era ir para casa, nervoso e chorando. Minha mãe
me ouvia, quando eu conseguia explicar, mas a resposta era sempre a mesma:
- Fique em casa, em vez de ir arrumar encrenca na rua!
Eu queria que ela fosse lá, gritar com eles e, se possível, bater neles, como muitas vezes
as outras mães faziam. Mas, “maledetta” educação européia, ela exigia comportamentos
diferentes, atitudes diferentes. Era preciso que eu ficasse no “nosso nível”.
Contudo, nem sempre eu gaguejava. Muitas vezes, calmo, eu procurava falar tranqüilo e
devagar, sem gaguejar, mas, mesmo assim, riam. E riam com boa dose de deboche. Eu não
entendia aquilo. Como riam, eu me irritava e, irritando-me, gaguejava, coisa que os fazia rir ainda
mais. Novas brigas, novo choro e nova decepção em casa, porque minha mãe não mudava a sua
atitude:
- Fique em casa, que é bem melhor!
E a coisa continuava. Eu falava, gaguejando ou não, e eles riam. Eu chorava e brigava
sempre. Até que, oh Dio, alguns começaram a tentar falar como eu, a me imitar. Foi então que fiz
a minha segunda descoberta importante nos meus tempos de Marília: eu tinha sotaque. Eu vivera
mais de oito anos sem perceber que falava à moda italiana, misturando inúmeras palavras e
expressões italianas, no meu vernáculo. Existiam muitas palavras que eu nem mesmo desconfiava
como seriam ditas em Português e, pior, eu nem imaginava que não pertenciam à língua
portuguesa. Quer um exemplo? Só um? Lá vai: brodo. Eu levaria ainda muitos anos para
encontrar uma palavra, em Português, que lhe correspondesse: sopa. Mas não eram apenas as
palavras ou as expressões; havia também a pronúncia, o jeito típico de falar de um italianinho,
apesar de ser eu apenas um descendente de italianos, e apenas neto. E a meninada se divertia!
“Maledetta” sina de um “oriundi” em fase de adaptação!
O sotaque era aquele algo mais que eu levara comigo, quando chegamos de Oscar
Bressane, como eu disse no início.
Depois, fiz várias outras descobertas. Descobri que quase todas as pessoas tinham um
emprego, um horário a ser obedecido e que recebiam um salário no fim do mês. Aquilo também
era novidade para mim. Eu estava habituado com o ciclo do café, que era colhido e vendido uma
vez por ano, por volta de junho, julho ou agosto. O nosso ciclo de renda era, portanto, anual. Mas
foi apenas uma novidade, não me afetando em nada.
O tempo passou, o sotaque desapareceu, o menino foi crescendo e a gagueira foi sumindo.
Observe que eu não disse que as brigas terminaram, porque a cultura européia, impregnada
em mim, fazendo parte de mim, continuaria por longo tempo provocando “chuvas e trovoadas”
nos meus contactos com as outras pessoas. Ainda hoje, decorridos tantos anos, surgem de vez em
quando alguns “relâmpagos” e algumas “trovoadas”. Não tenho tido como evitá-los. Nesse
aspecto, ainda hoje levo as mãos à cabeça, exclamando: “maledetta” educação! Mas só nesses
momentos, porque, em verdade, dela me orgulho e dela me ufano.
DONA STELA
Uma vez instalados em Marília, eu e mais três irmãos fomos matriculados no 2º Grupo
Escolar, que ficava na esquina das ruas Santo Antônio e Paes Leme, onde hoje existe algo como
um orfanato, asilo ou coisa parecida. O Duílio conseguiu matrícula no 1º Grupo Escolar.
Meu irmão Álvaro e eu fomos para o segundo ano, uma vez que o primeiro já havia sido
cumprido em Oscar Bressane.
As primeiras semanas de escola foram indescritivelmente terríveis. Como vários outros
alunos, meu irmão e eu pagamos um alto preço pelo noviciado numa cidade maior, numa escola
melhor e por um flagrante desnível de formação. O desnível quanto aos conhecimentos de cada
um era simplesmente criminoso. A sala se caracterizava, além disso, por uma enorme indisciplina.
A professora, incapaz de resolver tais problemas, acomodou-se e passou a cuidar apenas daqueles
que lhe pareciam ser os melhores, ou os mais simpáticos. A maioria ficou esquecida no meio da
confusão e da algazarra, da metade da sala para o fundo. Desgraçadamente, meu irmão e eu
estávamos lá. Eu me sentia esquecido, humilhado e desprezado. Em casa, chorava seguidamente.
Não tinha condições de sequer entender o que estava acontecendo e, muito menos, explicar por
que estava acontecendo. Minha mãe também não tinha o discernimento necessário para analisar a
minha situação e sequer sabia por que eu chorava. Portanto, as duas pessoas que tinham por dever
resolver o meu problema, minha professora e minha mãe, não tinham condições para fazê-lo.
O meu sofrimento foi enorme, indescritível e incontrolável.
Passadas algumas semanas, surgiu uma notícia segundo a qual as quatro turmas do
segundo ano seriam reorganizadas. Haveria uma divisão entre os alunos, separando-se os fracos,
numa sala, os fortes, em outra, e os médios, nas outras duas. Lembro-me que inicialmente associei
tais termos às nossas condições físicas e admiti que pudesse ficar entre os fracos. E fiquei mesmo,
como o meu irmão, mas não por causa daquilo. Simplesmente porque sabíamos pouco, ou quase
nada.
Das quatro salas, que ficavam ao nível da rua, nós, os mais fracos, fomos para o lado
esquerdo e de frente para a rua. Antes da reorganização, estávamos naquele mesmo lado, nos
fundos.
Agora, estávamos todos lá, em irreconhecível silêncio. Sentei-me na frente, bem próximo
da mesa da professora.
Ela entrou, fechou a porta e sentou-se à mesa, logo ali, à minha frente. Um tanto magra,
era feia e sisuda. Parte dos cabelos caia na direção dos ombros e outra parte subia para formar um
saliente “rolo”. Silêncio total. Não fez a chamada, talvez porque a nova lista ainda não estivesse
pronta. Com o braço direito em posição de repouso sobre a mesa e com o cotovelo esquerdo como
apoio, amparava o rosto com a mão esquerda, tendo o indicador apontado para cima, junto ao
nariz.
Aquela figura causava medo e impunha respeito. Chamava-se Stela Vieira Silveira.
Eu tremia na carteira enquanto ela nos fitava, muda. Jamais eu poderia imaginar,
naqueles instantes, que aquela mulher iria pertencer à minha história e que, 56 anos depois, eu
estaria escrevendo sobre ela, chorando de saudade e ternura. Depois, ela resolveu falar.
- Minha missão é muito difícil. Seu Antônio determinou que eu deveria ficar com vocês.
Não sei como vou fazer. São todos muito fracos e péssimos na disciplina.
E continuou falando durante algum tempo, raramente fugindo àqueles “elogios”.
Mas dona Stela, que já tinha o nome firmado no conceito da escola, iniciou o seu
trabalho para se tornar mais uma vez vitoriosa. A indisciplina simplesmente desapareceu por
completo e, também graças àquilo, a turma toda se desenvolveu, elevando-se a um nível de causar
inveja às outras três turmas e de orgulhar seu Antônio, o nosso diretor.
Nunca mais chorei por causa da escola. Agora eu tinha disposição e vontade de estudar e
aprender. E estudei. E aprendi. Por obra de uma santa milagreira, feia, enérgica, sisuda e
rabugenta, mas uma mulher competente, que havia nascido para aquele sacerdócio, quase uma
santa de verdade.
Dona Stela nos acompanhou até o quarto ano. Foi ela quem preencheu o meu diploma,
para que eu o recebesse, em 30 de novembro de 1945. Esse diploma, que guardo ainda hoje com
imenso amor e carinho, é o meu maior troféu e, para mim, tem um significado imenso. Tem a
assinatura dela.
Daqui para a frente, nestas últimas linhas, vou falar somente a ela. E que ninguém me
leia, e que ninguém me ouça.
Sabe, dona Stela, foi muito bom passar três anos na sua companhia, como professora,
como amiga e como uma verdadeira mãe. Ensinou-me tudo o que eu precisava aprender naquela
época. Deu-me afago e carinho, com certeza bem mais do que a minha própria mãe. Cuidava de
mim com uma ternura especial, talvez porque eu fosse o menorzinho da turma, ainda um pouco
menor que o Nelson Corciolli; lembra-se dele?
Eu poderia relatar inúmeras passagens sobre a nossa convivência e sobre esse
“escandaloso” afeto que tinha por mim, falando inclusive do vazio que nos deixou durante algum
tempo, quando, doente, precisou se afastar. Mas vou lembrar aqui apenas um desses fatos. Era o
dia do desfile do 7 de Setembro, lembra-se? Eu havia ganhado do meu padrinho um jogo de cinto
e suspensórios e seria natural que quisesse estreá-lo naquele dia. Eu estava impecável. Sapatos
pretos, bem engraxados, meias pretas, calça azul e blusa de fustão branco. Era o nosso uniforme.
Lembra-se do nosso distintivo, em forma de losango, na posição horizontal? Eu queria ficar na fila
do lado direito, para que, na avenida, ficasse do lado do palanque. Mas como eu era o único que
tinha suspensórios, a senhora me passou para a fila do meio, fato que me deixou azedo. Não
contente com aquilo, pouco depois e antes que chegássemos à avenida, a senhora apareceu por trás
de mim, acompanhando minha marcha, disse-me ao ouvido que os meus suspensórios eram lindos,
mas que, por serem os únicos, eu destoava da turma. E foi desabotoando-os para que eu os
colocasse no bolso. Lembra-se do que aconteceu com as minhas calças? Quase caíram, uma vez
que o cinto servia apenas de enfeite quando eram usados os suspensórios. Se eu não tivesse sido
esperto, a senhora teria sido apresentada a outras partes do meu corpo. Sabe, dona Stela, naquele
tempo, acho que nenhum menino usava cuequinha. E eu completei o desfile, irritado, azedo, e
segurando as calças na fila do meio. Mas entendi mais aquele seu gesto de amor.
O tempo foi passando, mas eu nunca tive uma oportunidade, nem jeito, para abraçá-la e
agradecê-la. Depois, fui embora de Marília e nunca mais tive notícias de dona Stela.
Hoje, como paga, dona Stela, por tudo o que representou para mim, vou lhe oferecer o
que tenho de melhor neste momento: as lágrimas que inundam os meus olhos e rolam pelo meu
rosto.
DURANTE A GUERRA
A 2ª Guerra Mundial começou em 1939, quando eu tinha quatro anos e quando eu
poderia me preocupar com qualquer coisa, menos com as idéias fascistas que haviam enfeitiçado
Hitler e depois Mussolini, além dos milhares de seus seguidores.
Durante os primeiros anos, a guerra não nos trouxera consequências imediatas muito
significativas, mas me lembro bem que a minha “italianada”, sediada em Oscar Bressane, a
acompanhava com boa dose de interesse, de vez que os seus ancestrais estavam diretamente nela
envolvidos. Mais do que dos ancestrais, deve-se falar dos sentimentos.
Algum tempo depois, com a participação efetiva do Brasil, mesmo sendo eu uma criança
de oito ou nove anos, conseguia perceber - e entender - o conflito de consciência em que todos os
meus parentes se encontravam. A posição brasileira se apresentava como amiga aqui, porque aqui
viviam, e como inimiga lá, porque de lá vieram os seus pais ou eles próprios e lá se enraizaram os
seus sentimentos. Viviam no Brasil, dependiam do Brasil e já amavam o Brasil, ao mesmo tempo
em que o sabiam lá, lutando em suas terras, contra a sua gente. Parecia-me que viviam um drama
bastante difícil. E assim realmente o foi.
Com a participação brasileira na guerra, aumentaram significativamente as nossas
dificuldades. Até então, a única coisa que me ficou na memória foi a falta da gasolina. Surgiram
os caminhões movidos a gasogênio, duas enormes geringonças adaptadas entre a cabina e a
carroçeria, que os tornavam esteticamente feios, fumacentos, sem considerar a potência do motor,
que nunca soube eu se era melhor ou pior com aquela adaptação.
Faltava-nos quase tudo, a começar por aquilo que era importado, muitas coisas se
elevando a preços proibitivos. Os produtos vinham do exterior, especialmente aqueles de boa
qualidade, tornando-se cada vez mais escassos e difíceis. Entre eles, a minha tão desejada
bicicleta.
Vivíamos, portanto, numa economia de guerra, faltando-nos principalmente o sal, o
açúcar, o óleo e a farinha de trigo. Esses produtos eram racionados e vendidos em quotas, de
acordo com o tamanho da família. Mesmo assim, faltavam nos armazéns e as filas surgiam de
maneira inevitável. Quanto ao óleo, sempre havia a alternativa da gordura de porco que, na minha
casa, nunca foi difícil; sempre a tivemos quando necessária. Aliás, nos primeiros tempos não se
usava o óleo vegetal. Afinal, tínhamos a nossa tradição de uma família rural e tínhamos as nossas
propriedades no campo. Mas quanto ao sal e quanto ao açúcar, não se tinha como produzi-los e
tivemos que nos adaptar aos limites do racionamento e às filas.
Capítulo bastante especial foi o da farinha de trigo. Poderia ser considerada como não
sendo um produto de primeira necessidade, mas, nesse caso, ter-se-ia que abrir mão do bolo, da
bolacha e do pão. As padarias recebiam as suas quotas, que eram sempre insuficientes. As famílias
não tinham quota alguma. Surgiu a mistura com o fubá, que dava ao pão um sabor especial e até
gostoso, mas que o tornava duro como uma pedra, duas ou três horas depois de ter saído do forno.
Por causa disso tudo, a Padaria Expressa, que ficava na Rua Cel. Galdino de Almeida, também
entrou para a minha história. Por incontáveis vezes fui lá, sempre antes das cinco da manhã,
enfrentar uma enorme fila para levar alguns pães para casa e que deviam ser consumidos já e
agora. Às seis da manhã abriam-se as portas e, antes das oito, acabando-se os pães, elas eram
fechadas novamente, até a manhã do dia seguinte, uma vez que vendiam quase só pães. Muitos
voltavam para casa sem eles.
O anedotário se desenvolveu bastante, mas fogem aos meus objetivos a coleção e o relato
de anedotas. Os italianos tinham de “ver onde pisavam” e o Palestra Itália cedeu lugar à Sociedade
Esportiva Palmeiras. Instituiu-se a censura nos meios de comunicação; todas as correspondências
eram abertas. Criou-se o “salvo-conduto”, que passou a ser o documento mais importante. Era
impossível viajar sem ele. Em nome da liberdade deixava-se de ser livre; em nome da vida
buscava-se a morte, nas trincheiras ou fora delas; em nome da paz fazia-se a guerra.
Lembro-me que eu procurava saber quem tinha razão naquela guerra, sem entender que a
razão não estava com ninguém, porque haviam todos perdido essa razão, isto é, a lógica e o
entendimento. Contra os fascistas, havíamos nos unido aos comunistas, mas nos voltamos contra
estes, tão logo acabou a guerra. Então, não existia lógica e muito menos ideologia, mas apenas o
momento, apenas o eclodir destemperado de um momento, lembrando-nos de que, para a História,
um momento não significa um instante, podendo significar um ano, uma década ou mesmo um
século, tempo suficiente para que se encontre a verdade, mas não a verdade dos fascistas, não a
verdade dos socialistas ou a dos comunistas, não a verdade dos liberais ou a dos conservadores,
não a verdade dos arianos nem a verdade dos semitas (judeus), mas a verdade verdadeira do
homem, o filho mais querido de Deus e, ao mesmo tempo, o mais ingrato e o mais rebelde. Mas
deixemos Deus em seu canto, mesmo porque Ele está em todos os cantos e em todos os meios, e
voltemo-nos para a sua criatura, feita à sua imagem e semelhança, segundo dizem, o que
significa, uma vez aceita a hipótese da criação, a busca eterna da verdade. Temos de encontrar a
verdade que seja única e que seja de todos a um só tempo, para que a Ética e a Moral, nascidas de
todos, possam ser igualmente consideradas por todos e possam eliminar as explosões loucas,
mesmo que historicamente momentâneas.
Independentemente de Deus, portanto, se buscarmos a verdade, não a minha e nem a sua,
mas a nossa, haveremos por certo de encontrar a liberdade no lugar das cadeias, a paz no lugar da
guerra, a vida no lugar da morte.
UMA CERTA BICICLETA
Naquela tarde - era maio de 1945 - eu descia a Rua São Luís, na minha jovem e meiga
Marília. De repente, vozes, gritos, alegria, festa. Rádios que se ouviam de longe. Parecia que
estavam comemorando um gol na decisão de um campeonato. Mas não era um gol. Nem um
campeonato. Mas, pensando bem, talvez fosse mesmo um gol e talvez fosse um campeonato.
Acabara a guerra.
Súbito, um pensamento, um sorriso, uma alegria: a minha bicicleta! Finalmente, eu iria
ganhar a minha tão desejada bicicleta.
Explico. Já fazia três ou quatro anos, dos meus dez até então vividos, que eu insistia com
o meu pai: eu queria uma bicicleta. Mas havia dois problemas igualmente sérios. O primeiro deles
estava no coração da Europa, com reflexos no Brasil: a guerra. Vivíamos uma economia de guerra
e, aqui, quase todos os produtos industrializados eram importados, principalmente os de boa
qualidade. As bicicletas eram importadas. Uma delas vinha da Holanda. A outra, da
Tchecoslováquia. Eram muito boas, dizia meu pai e sabia eu, mas custavam muito caro por causa
da guerra, afirmava seu Gentil. Quando acabasse a guerra, os preços iriam cair e eu ganharia a
minha bicicleta, dizia ele. O segundo problema não estava no coração da Europa, estava no
coração do meu pai. Ele sempre foi um excelente homem e um pai fora do comum. Sempre o amei
bastante, como o amo ainda hoje, apesar de ter partido há 13 anos. Mas comprar presentes, como
uma bicicleta, por exemplo, era coisa que não fazia parte do seu mundo. Talvez por isso os preços
iriam “demorar indefinidamente” para cair.
Para o mundo, acabara a guerra. Para mim, acabara uma espera, pensava eu. Para mim, o
fim da guerra, que não estava só no coração da Europa, significava apenas uma bicicleta. Mas para
o mundo, significaria alguma outra coisa, além de uma bicicleta? Além dela, claro que o mundo
lucrou bastante quanto ao desenvolvimento científico e tecnológico. Mas a que preço? Teria
valido a pena? Destruição, morte, miséria, fome, uma nação dividida. Teria valido a pena? Muitos
conseguiram sobreviver, saciando a fome, com a produção e a venda de armas para a morte de
outros. Existiriam apenas essas duas maneiras de morrer? Pela fome ou pelas armas?
Mas deixemos a guerra de lado e voltemos à minha bicicleta.
Eu sonhava com ela, eu a queria ardentemente. Eu a via bem equipada, com farol e com
campainha. Eu a via toda enfeitada com bandeirinhas de feltro; uma brasileira, uma paulista e duas
do São Paulo F.C. São Paulo do Leônidas, mas também do Gijo, do Piolim, do Virgílio, do Zezé
Procópio, do Zarzur, do Noronha, do Luisinho, do Sastre, do Remo, do Pardal e de tantos outros.
Mas eu não sonhava apenas com a bicicleta. Tinha noção bem clara e definida de família,
se bem que quase nada soubesse do mundo e da sociedade.
Nos anos que se seguiram, fui aprendendo sobre um e sobre o outro. Tempos depois,
constituí família, sem perder de vista nem a sociedade e nem o mundo. A família me absorvia
quase por completo, mas, aos poucos, a sociedade me inquietava. O mundo havia feito uma
guerra, mais uma, que não seria a última, sem que, com isso, se tornasse melhor. E eu fui vendo o
mundo, que se desenvolvia cientificamente, que se aprimorava tecnologicamente, mas que
continuava dividido entre ricos e pobres, entre o querer, o ser e o poder, de um lado, e o sonhar, do
outro. Eu também via o meu país, com ricos e com pobres, mas, embora entendendo esses
extremos como naturais entre os seres humanos, não conseguia aceitar nem os injustamente ricos
nem os descabidamente pobres. Nunca pensei em igualdade social, porque esta não é
humanamente justa, mas sempre pensei, além da fraternidade, na racionalidade, porque esta é
socialmente necessária. Nunca imaginei todos iguais, todos inteligentes, todos saudáveis, mas
todos felizes, caminhando e avançando para a vida, pela força do trabalho e ao sabor das
circunstâncias, como andava tanta gente em Marília, nas suas bicicletas, pela força de seus pés
contra os pedais e ao sabor dos ventos que balançavam as bandeirinhas: a brasileira, a paulista, a
do São Paulo, ou a do Palmeiras, ou a do Corinthians.
Caminhei, enfim, mas não de bicicleta. Com os pés bem no chão, com os olhos bem
abertos e com os ouvidos bem atentos. E lá dentro, recebendo o que os olhos viam e o que os
ouvidos escutavam, uma constante e interminável luta entre a irracionalidade do coração e a
insensibilidade do cérebro. Foram necessários muitos anos até que, uma vez realizado quanto à
família, eu entendesse que, se competia ao coração viver e sentir, ao cérebro cabia discernir e
julgar, como na bicicleta, onde aos pedais cabe o impulso para andar e ao guidão cabe o
direcionamento que se deseja.
Da mesma maneira que eu confundia as funções do cérebro com as do coração, exigindo
de ambos sensibilidade e raciocínio, essa gente toda que nos tem governado confundia, e continua
confundindo, o pessoal com o coletivo, o presente com o futuro, o certo com o errado, o remendo
e temporário com o novo e definitivo. Muitas vezes, acionam os pedais sem movimentarem o
guidão. Outras, direcionam este, sem movimentarem os pedais. Quase sempre, nem forçam os
pedais e nem usam o guidão.
Desfeitos os sonhos da criança e cumpridos os deveres do adulto, resta-me agora o
coração para sentir essa gente e o cérebro para discernir entre o bem e o mal, entre o bom e o mau,
entre o que não pode ou não deve ser feito e o que precisa ser realizado. Socialmente, governei
uma família. Profissionalmente, ajudei bastante no governo de várias empresas. Politicamente,
estou convencido de saber como se deve e se precisa construir e governar uma nação. Só não
consegui governar a minha própria bicicleta porque, mesmo passados 53 anos, ela ainda não
chegou.
JÁ FUI BABÁ
A minha primeira sobrinha nasceu em Adamantina, no dia 5 de junho de 1946. De sete
meses, pesava menos de dois quilos. A cada instante, pensava-se que iria morrer. Não parecia
haver muita diferença entre ela e o filhote de uma macaca.
Algumas semanas depois, foram para Marília, intensificando a luta para que ela
sobrevivesse. Passados os dias mais difíceis, decidiram voltar para casa, levando na bagagem uma
babá: eu. Talvez fosse mais certo dizer “um” babá.
Aos 11 anos, eu já terminara o meu curso primário, mas ainda não se sabia se iria para o
ginásio ou não. Estava, portanto, desocupado, fazendo travessuras. Daí, o “convite”.
Foi uma viagem inesquecível. De trem, até Tupã. Foram duas horas para vencer uma
distância de 80 quilômetros, sem qualquer problema ou dificuldade. De Tupã, às duas da tarde,
saiu o ônibus para Adamantina. Era de um amarelo pálido, talvez creme. O motorista era o Bento
e o cobrador era o Baianinho, ambos conhecidos de todos em Adamantina. Foram quatro horas de
luta. Ônibus cheio, bastante chuva e estrada de terra, evidentemente enlameada. Isso tudo para
uma distância não superior a 70 quilômetros. Mas no escurecer de uma tarde já escura, chegamos.
Tudo estranho. Uma pequenina cidade onde não havia nada, nem mesmo a luz da CPFL
(Companhia Paulista de Força e Luz).
No dia seguinte, uma manhã cinzenta e triste, ainda com um pouco de chuva, começou
para mim um período que foi bem mais triste do que alegre, mas bastante enriquecedor e que
marcou a minha vida para sempre. Foram alguns meses terríveis, de dor e lágrimas, no meio das
quais me restava uma única e imensa alegria: a de ser útil a alguém, especialmente à minha
sobrinha.
O leite materno desaparecera logo no início e não se descobrira ainda um alimento que a
fizesse se desenvolver. Por isso, ela continuava fisicamente bem abaixo do normal. Posso afirmar
que todas as tentativas foram feitas e que todos os tipos de alimentação foram experimentados.
Até que um dia nos falaram de uma japonesa, mãe de um bebê gorducho e forte, que se
prontificou a amamentar a nossa Cidinha. E lá ia eu, às nove, ao meio-dia, às três e às seis da
tarde. Era uma distância de uns cinco ou seis quarteirões. Era comum alguém me parar, curioso.
- Ei, menino, o que você está levando aí? É uma criança?
- É minha sobrinha. Tô levano ela pra mamá na japonesa. Qué vê? Qué vê? Puxa esse
pano aí. (Eu tinha os meus dois braços ocupados).
- Ah, que lindinha!
Mentira! Ela continuava ainda muito feia.
O leite da japonesa, que tornava cada vez mais forte e gorducho aquele japonesinho lindo
e bochechudo, quase nenhum efeito apresentava para a Cidinha.
Benzimentos, quase bruxarias ou pajelanças, e nada.
Mas sempre vem um certo dia, como em qualquer história. E, nesse dia, disseram ao meu
cunhado que leite de égua seria infalível. E lá veio a égua, com o seu potranquinho. Havia lugar
para eles num quintal bem grande, com grama e capim. E lá ia eu fazer a ordenha, direto para a
mamadeira, e, desta, para o nosso bebê, que teimava em não crescer. Sem ferver, e quente como a
natureza o produzia, era avidamente sugado pela nossa criança. Experimentei certa vez. É natural
e pronunciadamente doce, mas não tem o aspecto de leite.
Em poucos meses, ela atingia peso e altura normais, deixando de ser feia para se tornar
uma criança bem bonitinha. Estava salva, graças ao leite de uma égua.
Mas a coisa não foi fácil. Por exemplo, a égua não permitia que se lhe tirasse o leite sem
a presença do potranquinho (pra quem não sabe, potranquinho é o filhote da égua). E nem sempre
eu conseguia fazê-lo entender da importância de sua presença. Quantas e quantas vezes lutei
contra ele, que insistia em ficar longe. Como ele tinha mais força e como o meu choro e o meu
ranger de dentes não o comoviam, era preciso paciência e esperar, enquanto a minha sobrinha
chorava de fome.
Numa tarde escura e de muita chuva, a égua sumiu. E lá fui eu, saco de estopa na cabeça,
em forma de capuz, à sua procura. Até que, enfim, a encontrei. A corda que vinha do seu pescoço
e que, molhada, se arrastava pela lama, já pesava dez vezes mais. Peguei-a, mas foi inútil. Eu não
tinha força sequer para puxar a corda, quanto mais a égua, que, decididamente, não parecia
disposta a voltar para casa. Irritado, nervoso e chorando desesperadamente (minha sobrinha
esperava pelo leite), voltei sozinho, sob a chuva e pelas ruas cheias de lama. O meu primo Vitório,
adulto, foi buscá-la comigo e tudo terminou bem naquele dia.
Eu tinha a alma profundamente ferida por outros acontecimentos, que não pretendo
relatar, mas, no fundo, sentia-me bastante feliz, porque, afinal de contas, eu estava sendo útil,
coisa que ainda não houvera experimentado e que marcaria a minha vida, enquanto existisse.
Quando apareciam as visitas e quando a minha irmã Zelinda me apontava, orgulhosa,
falando do seu irmãozinho feio e sardento, - como eu me sentia - com os cabelos em desalinho e
as meias caídas sobre os sapatos sujos, eu me sentia envergonhado. Era muito bom ajudá-la a
cuidar da minha sobrinha, mas identificar aquele trabalho como o de uma babá me desgostava, e
muito. Esse trauma levou muitos e muitos anos para desaparecer. Por isso, eu preferia dizer que
era auxiliar do meu cunhado, no armazém. Mas isso já pertence à próxima história.
UMA GRANDE COMPRA
O armazém do meu cunhado ficava no início de uma colina, numa das esquinas da
Avenida Principal (atual, Cap. José Antônio de Oliveira). Com alguma imponência, lia-se no alto
da parede: “Casa Adamantina”. E, um pouco abaixo: “secos e molhados”.
Como eu não gostava de ser tido como babá, ou pajem da minha sobrinha, embora me
sentisse interiormente feliz com aquilo, nas poucas horas vagas que tinha fugia para o armazém.
Em pouco tempo aprendi tudo sobre aquilo. Atendia a todos. Vendia de tudo. Sabia pesar, sabia
calcular e sabia receber. A maioria comprava “fiado” e muitos acabavam não pagando. Mas eu
sabia anotar direitinho, venda por venda, freguês por freguês, na folha de cada um. Conhecia todos
pelo nome. Aprendi a receber as mercadorias quando chegavam, a calcular o preço de venda e a
colocar cada coisa no seu lugar. Pena que a alegria durava pouco. Minha sobrinha chorava e
reclamava a minha presença. E lá ia eu cuidar dela.
Era grande a luta entre minha irmã e eu. Volta e meia, ela me chamava às falas e à
responsabilidade, exigindo a minha presença. Se eu me realizava enquanto ser humano ao cuidar
da Cidinha, ainda que eu fosse apenas uma criança, a verdade é que me divertia no armazém,
relacionando-me bem com todos, tanto em nível social quanto em nível comercial. Por vezes,
aparecia alguém mais “invocado”, que não queria saber de mim e me punha de lado. Sentia-me
muito mal com aquilo. Levei quase toda uma vida para entender que nem sempre é possível
agradar a todos e que raramente se consegue obter o melhor de todos.
E assim passava o tempo. E assim eu dividia esse tempo entre a minha função oficial, de
babá, e a minha função desejada, ou usurpada, ou ainda, por mim divulgada, a de vendedor de um
armazém de secos e molhados.
Lembro-me de ter cometido apenas dois deslizes. O primeiro, numa tarde de sol, quando
decidi tomar um guaraná, sem que ninguém visse. Bobagem, porque, afinal, eu merecia até mais
do que aquilo. Mas dona Luíza, mãe do meu cunhado, “me pegou no pulo”. O segundo deslize foi
mais dramático. Meu cunhado havia comprado um barril de vinho, aliás de péssima qualidade, e
chegou o dia de engarrafá-lo. Experimenta daqui, prova dali, e eis que o mundo começou a girar,
dando várias voltas ao redor de mim, antes que eu perdesse o almoço daquele dia, que chegara ao
meu estômago não fazia muito tempo.
Volta e meia, achava-me sozinho no armazém. Meu cunhado saia bastante e seu pai não
parava lá. Numa dessas vezes, realizei uma verdadeira proeza. Chegou um vendedor de um
atacadista bastante conhecido: Julio Meca (ou, Mecca, não me lembro bem).
- Seu Deolindo está?
- Não, saiu.
- Volta já?
- Acho que não. Por quê?
Fez um gesto de desaprovação.
- Mas eu posso atender o senhor.
Respirou fundo, colocou uma espécie de fichário sobre o balcão e, ao lado dele, o talão
de pedidos.
E lá fomos nós. De um lado do balcão, um vendedor adulto e experiente e, do outro lado,
uma criança de 11 anos. E foi passando em revista cada uma das mercadorias que tinha para
vender. Isto sim, quero; isto, não. Aquilo é novidade; vamos experimentar. Aquele outro não
interessa, porque não se vende; veja, está ainda tudo na prateleira. Uma caixa deste, duas daquele,
algumas unidades daquele outro. Depois de algum tempo, uma lista enorme, num valor que a
minha memória não registrou, mas acredito que aquele tenha sido o vendedor mais premiado pelo
sr. Julio Meca (ou Mecca), pelo menos em 1946, e graças a mim. Guardou tudo numa pasta preta e
me estendeu a mão, depois de ter solicitado a minha assinatura no pedido. Certamente, aquele
pedido não se encontra arquivado até hoje. Para mim, seria uma relíquia curiosa.
- Obrigado, até logo.
- Quando chegam as mercadorias?
- No máximo, daqui a duas semanas.
Mais tarde, chegando meu cunhado, estendi-lhe a cópia do pedido. Pegou, examinou, fez
uma careta e respirou fundo. Não me disse nada, mas acredito que, além dos calafrios que devia
ter sentido até o fundo da alma, tenha me xingado exaustivamente, desde mim até o mais jovem
dos meus tataranetos. (Espero tê-los em abundância).
Mas a minha estrela brilhou. As mercadorias chegaram. E foram pagas. E foram
vendidas. E geraram lucro, excluindo-se, evidentemente, os calotes, que sempre existiam. Mas
isso não era culpa minha. Afinal, além de um razoável babá, que trocava fraldas, ordenhava a
égua, dava mamadeira e embalava minha sobrinha até que dormisse, minhas funções eram vender
e, às vezes, comprar. Exigir de mim análise e concessão de crédito, aos 11 anos de idade, seria
demais. Era função do meu cunhado, que, aliás, nunca a exerceu bem. Ele vendia fiado para
qualquer “gato pingado” que aparecesse. Não sei se eu teria sido melhor porque nunca fui
experimentado. De qualquer maneira, pior do que ele teria sido impossível.
UMA BOA VENDA
Pela metade dos anos 40, a pequena Adamantina era uma espécie de posto avançado. Até
ela, alguns vestígios de civilização. Depois dela, o nada, o sertão e a esperança.
Os trilhos da Companhia Paulista de Estradas de Ferro não iam além de Tupã. Mas a
Companhia mantinha uma frota de caminhões, a CPT (Companhia Paulista de Transportes), que
levavam as cargas até Adamantina.
Era enorme a quantidade de ônibus, alguns ainda chamados de “jardineiras”, vindos
quase todos de Tupã, que chegavam à cidade, parando à frente de um bar na parte mais baixa da
então Avenida Principal e fazendo dele um terminal rodoviário. Formigava gente por todos os
lados. Os que chegavam, os que partiam, mas principalmente os que apenas passavam pela cidade.
Enorme era a lista das vilas e dos lugarejos para onde ia, ou de onde vinha, toda aquela
gente. Curiosos eram os nomes ou denominações pelas quais aquelas paragens eram conhecidas.
Mas se perdiam sertão adentro, sem escolas, sem assistência médica, sem energia elétrica e sem
estradas. No refluxo, o primeiro sinal de uma vida que poderia ser dita civilizada era Adamantina,
onde havia um único médico e duas ou três farmácias, mas onde também não havia luz elétrica. À
noite, a escuridão tomava conta da cidade. Desenvolvera-se o uso de lanternas e lampiões. Estes
iluminavam as residências e os estabelecimentos comerciais, dividindo tal função com as
lamparinas à querosene, principalmente no caso das residências. Para sair às ruas, usavam-se
lanternas, então chamadas de faroletes, pequenas ou grandes, com duas ou com três pilhas, com
pequeno ou grande alcance, com o fluxo luminoso mais estreito ou mais amplo. As lanternas à
pilha eram, enfim, um objeto de uso e de estima, com boas perspectivas comerciais, conferindo até
um certo status a quem as usava, de acordo com as suas características técnicas.
Apesar de muito pequena, Adamantina era o centro de um mundo econômico que
florescia vigoroso, à base dos cafezais que, lentamente, avançavam, à medida em que as matas iam
sendo devastadas. O dinheiro circulava rapidamente e em volumes assustadores. Mas sabia-se que
o futuro não seria igualmente promissor, de vez que as terras não eram de tão boa qualidade.
Digna de registro foi a rivalidade estabelecida com a sua vizinha mais próxima, Lucélia,
a apenas sete quilômetros de lá, no sentido de quem ia para Tupã. Bem maior do que Adamantina,
nunca admitira a posição estratégica desta, a ponto de, quando a Companhia Paulista de Estradas
de Ferro decidiu estender a sua linha até Adamantina, reivindicar para si tal primazia. E lutou
bastante por ela, chegando mesmo a tentar impedir, pela força, a passagem da estrada, e, depois, a
circulação das locomotivas, usando, para isso, a tática de construir quiosques sobre trilhos e
dormentes.
Antes que tudo isso acontecesse, a direção da estrada estivera em Adamantina para, num
domingo de grande festa, lançar as bases onde iria construir a sua estação terminal. Eu estava lá. E
participei do churrasco. E disputei arduamente um pedaço de carne. Mas não consegui assá-la por
falta de espaço. Sozinho e triste, voltei para a casa de minha irmã. Mais de duas horas da tarde, e
com fome. Não havia ninguém em casa. Acendi o fogo, à lenha, e coloquei a carne sobre a chapa.
O meu estômago roncava e, vendo-a frigir sobre a chapa quente, engolia a saliva que me enchia a
boca. Alguns minutos depois estava pronta, mas fora tudo inútil porque se apresentava ainda mais
dura do que a chapa onde fora assada. Minhas lembranças daquele dia terminam aí e não me
lembro quando e nem o que fui almoçar... ou jantar. Mas sobrevivi.
Adamantina estava em festa naquele domingo, mas eu me sentia só e desolado. Pareciame estar longe do mundo e longe de todos. Na disputa pela carne e por um lugar onde assá-la, eu
me sentira pequeno, muito menor do que realmente era, nos meus 11 anos, impotente e sozinho
naquela verdadeira briga pela carne e pelo fogo; quase humilhado. Além disso, eu não tinha a
menor idéia do que poderia estar acontecendo no resto do mundo naquele dia, nem mesmo na
minha casa, em Marília, a não mais de 150 km dali, embora a pelo menos seis horas de viagem
(ônibus e trem), naqueles idos de 1946.
Passado aquele domingo, voltei à minha rotina, voltei ao meu “ambiente” na casa de
minha irmã Zelinda, onde fui babá. E fui vendedor no armazém de secos e molhados. E enchi a
cara de vinho no dia do seu engarrafamento; por isso, vomitei até o que não havia comido. E fiz
aquela enorme compra de um vendedor do Julio Meca (ou Mecca).
Como nos filmes do “Daniel Boone”, Adamantina era a última parada, antes do fim do
mundo, e os seus três ou quatro armazéns eram os postos de comércio, onde as famílias e os
aventureiros se abasteciam, rumo à grande aventura.
Certo dia, ainda uma vez estava eu sozinho no armazém, quando, junto dele, na rua que
fazia esquina com a Avenida Principal, estacionou um pequeno caminhão, se não me engano um
“fordeco” 37. Alguns cacarecos sobre ele sugeriam uma mudança. Duas ou três pessoas de uma
família nordestina entraram no armazém. E começaram a comprar. E eu fui separando as
mercadorias, pesando e anotando. E não paravam de comprar. No chão, quase não havia mais
espaço para elas. Por fim, os cálculos, a soma e o “totalzão”. (Não se esqueça, eu ainda não
completara os meus 12 anos). Minha memória nunca chegou a registrar o valor daquela venda. E
nem seria útil hoje porque seria difícil avaliá-la pela moeda atual. Mas era bastante dinheiro.
Colocamos tudo no caminhão, junto com a “mudança”. E veio o pagamento, em dinheiro, é claro.
Também não me lembro quantas e quais eram as notas. Mas eu precisava de troco. E onde estaria
esse troco? Quase nada havia na gaveta de um armazém que vendia quase tudo “fiado”. Chamei
por dona Luíza, desesperado:
- Onde está essa gente que some e não me deixa troco?
O “grande homem de negócios” reclamava a presença dos seus “auxiliares”. Dona Luíza
não se assustara porque, minutos antes, havia visto as compras pelo chão. (Eles moravam nos
fundos). Alguém foi procurar os meus ilustres “subordinados”. Chegou seu Belardino, pai do meu
cunhado, que providenciou o troco.
E lá se foram os meus fregueses, como tantos outros, caminhão cheio, rumo ao novo e ao
desconhecido, mas levando muitas mercadorias e muitas esperanças.
Quanto a mim, mal o caminhão dobrou a primeira esquina, voltei às fraldas, à mamadeira
e, andando de lá pra cá e de cá pra lá, ao mesmo tempo em que tentava entoar uma cantiga de
ninar, levei minha sobrinha ao sono e eu mesmo à auto-realização e à alegria; alegria de um
menino feio, irritadiço e briguento, com muitas sardas, com os cabelos em desalinho e as meias,
velhas e largas, caídas sobre os sapatos sujos.
EU E O BEIJA-FLOR
Dona Maria Luíza, irmã do meu cunhado, me olhava a uma certa distância.
Já fazia algum tempo que eu estivera perseguindo um beija-flor, daqui pra lá, de lá pra
cá, sem conseguir pegá-lo. Por vezes, ele sumia e eu voltava pra casa. Mas depois, lá estava ele de
novo, entre as flores, e lá ia eu, pé ante pé, respiração contida, tentando apanhá-lo com as mãos.
Rindo, ela me chamou:
- Ei, você está querendo pegar o beija-flor?
Envergonhado, porque não percebera que ela me olhava o tempo todo, fui até ela.
- É, eu queria pegar, mas ele não deixa, ele foge.
- Fácil, respondeu ela. Conheço o segredo. Sei como se pega um beija-flor. Volte pra
casa, vá até a cozinha da sua irmã e pegue uma pedrinha de sal. Quando o beija-flor voltar, segure
firme o sal entre esses dois dedos e, quietinho, vá se aproximando dele, devagar. Vá se
aproximando aos poucos, até encostar a pedrinha de sal no rabinho dele. Depois, pegue-o com a
outra mão. É infalível.
Saí correndo e feliz. Agora eu conhecia o segredo e poderia pegar aquele beija-flor.
Na inocência dos meus 11 anos, lembrando que estávamos em 1946, época em que as
crianças eram bem mais ingênuas do que as de hoje, pensei que o sal pudesse exercer uma certa
atração sobre a ave, impedindo-a de fugir. Para dona Maria Luíza, contudo, nada mais do que o
óbvio, porque, se eu conseguisse encostar o sal na cauda do beija-flor, nada mais fácil do que
segurá-lo com a outra mão.
Poucos minutos depois, lá estava o beija-flor de volta e lá fui eu. Pedrinha de sal firme
entre as pontas dos dedos indicador e polegar da mão direita, fui andando calmo e confiante. Eu
estava seguro do que fazia. Tinha certeza do sucesso. Praticamente parada no ar, graças ao
velocíssimo movimento de suas asas, e deliciando-se com o néctar que sugava, a avezinha parecia
esperar por mim. Foi fácil. Cheguei, encostei o sal no rabinho dela, conforme a receita, e a peguei
suave e confiantemente com a mão esquerda.
Sem qualquer espanto, porque, afinal, eu descobrira o segredo, fui para a casa de dona
Luíza, mãe de dona Maria Luíza, que entrara depois de me passar a “receita” e que agora se
encontrava na cozinha. À frente dela, abri ligeiramente os dedos e mostrei-lhe, entre eles, o
encantador verde da avezinha aprisionada.
Se dona Maria Luíza tivesse que morrer de surpresa ou susto, com certeza aquele teria
sido o momento adequado e certo. Ela não acreditava no que via. Eu realizara o milagre, ou a
proeza, que, para ela, minutos antes parecia impossível. Havia me ensinado nada mais do que o
óbvio, mas a minha ingenuidade e a minha pureza haviam conseguido fazer com que o quase
impossível se realizasse.
Emocionada e ainda incrédula, sugeriu-me que a soltasse.
Por alguns instantes apreciei de perto aquela beleza rara, aproximando os olhos, da mão.
Asas paradas e olhar aflito, a pequenina ave parecia em dúvida, se pudesse escolher, entre
satisfazer à curiosidade de uma criança e recuperar a liberdade, para voltar às flores que, lá fora,
talvez a esperassem. Sua incerteza durou pouco. Logo depois, fui até a porta, abri a mão, e o beijaflor voou de novo para a liberdade. Mas me deixou um presentinho entre os dedos. Não o que
você talvez esteja pensando, mas uma minúscula pena, de um verde estonteantemente lindo.
Eu jamais veria outro beija-flor tão de perto e jamais contemplaria um verde tão típico,
tão próprio e tão belo. E, por vários anos, guardei aquela peninha verde, aquela relíquia, entre as
folhas de um livro, até que um dia, a exemplo da minha inocência, ela se perdeu.
Nunca tive consciência dos reflexos que tal ventura possa ter exercido sobre mim. Mas o
certo é que jamais cacei, nem pesquei. Sempre admirei as aves, sua beleza e seu canto, mas, não
sei por que, jamais me alegrei vendo-as presas.
Não foi por causa de uma pedrinha de sal que peguei aquele beija-flor. Foi graças a
alguém que acreditou na minha inocência. Foi a candura que colocou aquela ave na minha mão.
Mais tarde, eu aprenderia isso de maneira mais lógica e racional, quando, já adulto,
sentia necessidade de prender mentes e corações. Foi aí que me disseram ser mais fácil apanhar
um inseto com um pingo de mel do que com um litro de fel. E, com os corações, não seria
diferente, asseguraram-me.
A única forma pela qual eu poderia manter o beija-flor comigo seria pela violência.
Felizmente, não tive coragem de usá-la, e a avezinha voou e viveu enquanto a natureza lhe
permitiu. Lição simples e clara que a vida me ofereceu bem cedo, mas que é difícil de ser
entendida ou praticada. Por alguns instantes consegui ser plenamente feliz, porque, através da
pureza, obtive o sucesso e, por meio do amor, permiti a liberdade, ainda que tivesse sido apenas a
de uma minúscula ave. Foi sem dúvida um gesto de amor.
Li, mais tarde ainda, que a essência do amor não está no receber, mas no doar. O amor
não existe no egoísmo, mas no altruísmo.
Quantas e quantas vezes, entre as flores e os espinhos que nos cercam, buscamos
aprisionar corações. E quantas e quantas vezes eles nos fogem, como o beija-flor de 1946. E isto
porque os corações não se aprisionam pelo egoísmo, mas se libertam pelo amor.
“TAFÚIA”
Não adianta ir procurar no dicionário, porque você não vai encontrar essa palavra. Nem
mesmo no Aurélio. Mas não se preocupe, porque eu explico. Trata-se da terceira pessoa do
singular, presente do indicativo, do verbo “tafuiar”, que, segundo a meninada com quem eu
convivi, lá pelos anos 40, significa “entrar”. Aprenda comigo: eu tafúio, tu tafúias, ele tafúia, nós
tafuiamos, vós tafuiais, eles tafúiam. Lindo isso, não? Veja bem: vós tafuiais. Lembra-me um
castelo, com o rei (com coroa, cetro e tudo o mais que um rei usa) dizendo aos seus súditos: “No
instante em que vós tafuiais neste humilde castelo, sabei...” e vai por aí afora. O resto do discurso
fica por sua conta. Você deve entender dessas coisas de castelo e sabe o que um rei que se presa
costuma dizer a seus súditos.
Esqueçamos agora o rei e fiquemos com algumas aulas práticas sobre o verbo tafuiar.
Num sábado qualquer de 1942, um modestíssimo circo (e nem poderia ser diferente
porque a cidadezinha não comportava coisa melhor) estava armado numa das poucas esquinas de
Oscar Bressane. É difícil dizer em qual delas porque as ruas não tinham nome, mas o circo estava
lá.
As laterais não eram montadas com módulos de zinco, como eu iria ver mais tarde, em
Marília, nos circos maiores. Eram de uma lona muito modesta, quase transparente à luz que vinha
do interior do circo e deixando uma abertura de 40 ou 50 centímetros no lado de baixo, junto ao
terreno. Uma cerca com modestos três ou quatro fios de arame farpado contornava o circo.
A vontade de ir lá era bem grande, mas o dinheiro não existia. Então, o Álvaro - sempre
ele - montou um plano infalível, pelo menos na opinião dele.
- Não podemos ir muito cedo, porque ainda estará claro, mas não podemos demorar
muito, porque acho que eles vão colocar um guarda, rondando pelo lado de fora. Precisamos ir na
hora certa, disse-me ele.
Então, na “hora certa” estávamos lá, numa das laterais do circo. Tudo iluminado lá
dentro e nenhum vigia lá fora. Passamos pela cerca de arame.
- Eu vou primeiro, disse o meu irmão.
Abaixou-se, entrou e me disse baixinho:
- Tafúia, tafúia logo, rápido.
Tafuiei.
Como previa o engenhoso plano, saímos embaixo das arquibancadas e não tivemos
dificuldade em subir pelas vigas de sustentação para, em seguida, nos sentarmos tranqüilamente lá
no alto, junto à “lona” da cobertura.
Olhei para o circo e estremeci. Olhei para o meu irmão, que já olhara para o circo e que
agora olhava para mim. Alguma coisa estava errada. Não havia ninguém no circo, a não ser nós
dois e algumas pessoas que tomavam as primeiras providências para o espetáculo, junto à porta
principal.
Era certo que a “hora certa” não fora assim tão certa.
- Chegamos muito cedo; não vai dar certo, disse eu, quase borrando as calças, de medo.
- Agüenta firme.
Agüentei, mas, logo logo, um daqueles funcionários, com aquele uniforme bonito e
vistoso, começou a andar para o nosso lado e parou lá embaixo, bem à nossa frente.
- Ei, vocês dois aí, por onde vocês entraram?
- Pela porta, lógico, respondeu o Álvaro.
- Como, pela porta, se ainda não começamos a vender as entradas?
O problema era que o sujeito estava com a razão. Ele queria saber por onde nós
havíamos tafuiado.
- Já pra baixo! E saiam por onde entraram.
Naquela noite ficamos sem o circo, mas me parece ter sido uma ilustração interessante e real - do uso do verbo tafuiar. O uso do verbo foi perfeito, mas o plano de entrar no circo, nem
tanto.
O tempo foi passando e, sempre que surgiam oportunidades, a criançada ia tafuiando.
Vamos recordar a aula teórica. Eu tafúio, tu tafúias, ele... ele, o quê? Muito bem, acertou:
ele tafuia.
Algum tempo depois... já em Marília.
Descemos a Rua 15 de Novembro, lado direito, entre a Dom Pedro e a 9 de Julho, pouco
depois das sete e meia da noite. Havia um lugar certo. Subimos no muro da frente e, por ele,
alcançamos o muro que separava as duas casas. A dona de uma delas já nos conhecia e sabia que o
nosso objetivo era o Cine São Luis. De pé, andamos por ele até o fim, onde formava um ângulo
reto com outro muro. Além dele, a lateral do cinema, exatamente onde ficava a toalete. Agora, era
só se abaixar e esperar o momento certo de tafuiar. Momento certo era quando não vinha ninguém
por aquele corredor formado entre o muro e a parede lateral do cinema, para ir à toalete.
Não demorou muito e ninguém estava no corredor. E lá veio a voz de comando do meu
irmão:
- Vamos tafuiar. (Na verdade, ele disse: vamo tafuiá).
E nois tafuiemo. (E nós tafuiamos, diria você, em “bom Português”).
Um pequeno salto e, logo em seguida, estávamos na toalete, para um “xixizinho
disfarçante”. Depois, o filme da noite.
O importante não é que você aprenda a entrar no cinema sem pagar, mesmo porque o
Cine São Luis não existe mais, já faz bastante tempo; aliás, um pecado. Importante mesmo é que
você se familiarize com o nosso verbo tafuiar.
Também se tafuiava no Cine Marília, sem pagar, é claro, mas era bem mais complicado.
Uma das maneiras nos levava à toalete das mulheres, que ficava no lado da rua. Um tanto
embaraçoso, não? Mas conseguimos tafuiar por lá, ao menos uma vez.
Tarde de sol. Sol quente, propício para se comer abacaxi.
Um pouco pra lá do cemitério, uma estradinha que saia à direita. Lado de lá, cafezal;
lado de cá, uma plantação de abacaxi. Diziam que o japonês, o dono, tinha uma espingarda de sal
e que já havia sapecado o bum-bum de muita gente atrevida que insistia em “tomar emprestados”
os seus abacaxis. Plantas ao longo da cerca (Flor de São João) ajudavam a nossa perigosa
operação. Atrás dos pés de café, examinamos o terreno. Certos de que o japonês e sua espingarda
de sal, cuja existência jamais foi comprovada e cuja invenção talvez jamais tenha ocorrido, não
estavam por lá, saímos rastejando até a cerca de arame farpado. Aberto o espaço, logo se ouviu:
- Tafúia!
E quem vinha atrás, sempre eu, tafuiou.
Não víamos nada de errado naquilo. Tratava-se apenas de uma aventura, bem mais do
que uma questão de sede ou vontade de abacaxi.
Agora, voltemos à nossa lição teórica. Eu tafúio, tu tafúias, ele tafúia...
VENDENDO PIPOCA
Dividimos o circo em duas metades. Do lugar onde estávamos, logo depois da entrada,
estabelecemos uma linha divisória que ia até o palco, no fundo, à nossa frente. Eu ficaria com o
lado direito e o meu irmão Álvaro, com o lado esquerdo. Cada um de nós tinha nas mãos uma
grande cesta, dessas que têm uma alça no meio. Cartuchos de pipoca - não eram saquinhos enchiam as duas cestas. Esses cartuchos tinham o formato de um cone, 20 centímetros de altura,
ou um pouco mais, e oito ou dez de boca. Eram feitos com papel de embrulho, desse de embrulhar
pão, e se fechavam em cima. Fico devendo o preço. Eles pertenciam, cesta e tudo, a uma velhinha
do próprio circo, muito sovina, por sinal. Trabalhávamos quase só a troco do ingresso.
Estabelecido o território de cada um, estávamos os dois junto à cerca que separava as
cadeiras das arquibancadas. O público mal começava a chegar.
Quanto ao meu irmão, aquela era mais uma das tantas coisas que ele inventava. Já
havíamos vendido velas no caminho do cemitério e na entrada deste, nos dias de finados, sem
grandes lucros, porque, sem licença, os fiscais nos perseguiam. Já havíamos promovido rifas ações entre amigos - para ver se ganhávamos algum dinheiro, mas, na falta de quem nos
comprasse os números, o lucro se transformava em prejuízo. De vez em quando surgia algum tipo
de trabalho, como, por exemplo, carregar marmitas de uma pensão para alguns professores, ou
professoras, que não podiam cozinhar em casa, mas as marmitas eram quentes e pesadas e o
ganho, insuficiente. Enfim, as tentativas foram inúmeras para que se conseguisse ganhar alguns
trocados, que fossem só nossos, que garantissem o cinema, ou o circo, ou ainda o aluguel de uma
bicicleta na bicicletaria do Orlando, na esquina da Rua Carlos Gomes com a Maranhão.
Quanto ao circo, a história é bem mais bonita. Convivi com ele durante os meus dez anos
de Marília, aliás, os melhores da minha vida. Lembro-me bem que o primeiro deles, nesse período,
chamava-se Circo Teatro Universal e foi armado numa praça, ao lado da Igreja de São Bento.
Hoje, lá existe um belo jardim, mas em 1943 era terra vermelha e poeirenta. Outros foram
armados na esquina da Cel. Galdino com a Lima e Costa. O Circo Garcia, o maior de todos,
instalou-se num terreno, também de terra vermelha, que ficava numa das esquinas da Rua Santo
Antônio. Mas quase todos eram armados junto à Praça Saturnino de Brito, onde hoje se ergue o
imponente edifício da Prefeitura e da Câmara Municipal. Era lá que estávamos naquela noite, com
as nossas cestas de pipoca.
Durante dez anos, o circo também fez parte da minha vida. Eram os palhaços, eram os
malabaristas, eram os trapezistas, eram os animais adestrados, mas, sobretudo, era o globo da
morte, a atração maior, o nervosismo e o suspense à flor da pele. Os irmãos Temperani - Jaime e
Jair - além do Ícaro François, eram os meus ídolos no circo. Estiveram em Marília algumas vezes.
Vi vários outros mais tarde, mas ninguém como eles. E havia também a segunda parte do
espetáculo, dedicada ao teatro, que sempre me pareceu muito bem cuidado. Enfim, era um mundo
de sonhos e emoções. O único problema era o dinheiro para o ingresso. Dos bolsos do seu Gentil
saia pouco. Por isso, o nosso esforço em ganhá-lo.
Enquanto fiz esse preâmbulo, o público teve tempo de chegar, podendo eu agora voltar
às nossas pipocas.
E lá fomos nós. Eu, do lado de cá; o Álvaro, do lado de lá. E o público ia chegando. Casa
cheia quase todas as noites, segundo diziam, porque não era sempre que estávamos lá, lutando
bravamente pelos nossos tostões.
- Piiiiiiii...poca!, ouvia-se do lado de cá.
- Piiiiiiii...poca!, ouvia-se do lado de lá.
E o público ia se acomodando. E ia comprando pipoca, além de outras coisas que
também eram vendidas, mas, por outros meninos, talvez até mais necessitados do que meu irmão e
eu.
Mais tarde, naquela mesma noite, a parte circense havia terminado e se aguardava pelo
teatro. Eu ainda tinha alguns cartuchos de pipoca e insistia com eles. Mas estava difícil. Parecia
que ninguém mais os queria. E começou o teatro. E ninguém mais queria saber das pipocas. E a
peça, um drama daqueles, atraia cada vez mais a atenção de todos, inclusive a minha. Encostei-me
naquela cerca que separava as cadeiras e os camarotes, das arquibancadas. Apoiei a cesta sobre ela
e ali fiquei imóvel e atento ao que acontecia no palco. Silêncio absoluto. O circo, quase todo
escuro. Luzes apenas no palco, para onde todas as atenções estavam voltadas. Na platéia, nenhum
pio. Silêncio sepulcral.
Desculpe-me por interromper a narrativa neste ponto. Faço-o porque gostaria de mudar o
título desta crônica. Gostaria de chamá-la UM VENDEDOR “CAXIAS”, isto é, obstinado. Veja
por quê.
De repente, no auge do silêncio e das emoções, no ponto máximo do debulhar das
lágrimas, tanto no palco como na platéia, vindo do lado esquerdo do circo, ouviu-se um apelo que
insistia:
- Piiiiii...poca!
Era a voz firme do meu irmão, que insistia em se livrar dos seus últimos cartuchos.
O que sentiu o galã, que estava contracenando no palco, nem imagino. Se a heroína
parou de chorar para rir disfarçadamente, também não sei. Quantos foram os que, na platéia,
deploraram aquela voz incômoda e estapafúrdia, seria impossível calcular. Mas o certo é que o
esforço do meu irmão foi inútil porque sobrou pipoca naquela noite, como sobraram, para nós, a
reprovação e a bronca da velha sovina.
LUZES AMARELAS
Fazia pouco tempo que o mundo respirava aliviado com o fim da 2ª Guerra Mundial.
Aos poucos, estávamos deixando para trás aqueles dias difíceis, marcados pelas filas e pelo
racionamento de quase tudo, marcas terríveis de uma economia de guerra. Poucos meses depois do
chamado “Dia da Vitória”, um retrato bastante familiar à criançada teve de ser retirado das salas
de aula. Ele estivera lá por 15 anos seguidos, sem que ninguém explicasse por quê. Mas nos
ensinavam que se deveria morrer pela pátria, se necessário. Ensinavam-nos que o futuro do nosso
país dependia de nós, aquelas crianças que lá estavam e que não entendiam essas coisas.
Eu me considerava um menino feio. Era sardento, cabelos loiros e lisos, difíceis de
pentear, meias soquete com os punhos bem largos e caindo sobre os sapatos sujos. Fisicamente, eu
me achava uma figurinha ridícula. Irritava-me por qualquer coisa e chorava muito.
À noite, era freqüente eu ficar do lado de fora, na rua, de onde se via boa parte da cidade,
a minha encantadora Marília, que dormia cedo, sob a luz das estrelas, sentindo ainda o calor do dia
que já se fora e misturando as trevas com as luzes amarelas e tímidas que tentavam clarear a
cidade.
Eu me sentia só e longe do mundo. Não me interessava saber o que poderia existir além
das estrelas, mas ansiava por conhecer tudo o que estivesse além daquelas luzes amarelas.
Anos antes, durante a guerra e ainda em Oscar Bressane, era comum que a minha
“italianada” se reunisse depois do jantar, na rua, sobre a grama macia e à luz de uma lamparina à
querosene, para ler num jornal, que certamente não era daquele dia, as notícias sobre a guerra. Eu
ouvia tudo sem entender nada. Sabia apenas que o mundo não acabava onde terminava a claridade
emitida por aquela lamparina. Sabia que ele era imenso, sentia-me longe dele, mas queria abraçálo por inteiro, vê-lo, senti-lo e entendê-lo. Eu tinha menos de oito anos.
Agora, eu vivia na minha doce e ensolarada Marília.
Nos anos que se seguiram, os meus pais, os meus irmãos, os meus amigos, a escola e a
Igreja trabalharam juntos, embora sem o saberem, plasmando a minha personalidade e a minha
vida.
Eu continuava feio, irritadiço, briguento e chorão. Mas continuava namorando aquelas
luzes amarelas, na esperança de entender, tão cedo quanto fosse possível, o que poderia existir
além delas.
Morrer pela pátria! Eram palavras que eu não entendia e não aceitava. Até que um dia,
finalmente, concluí: não morrer pela pátria, mas viver por ela.
O futuro do nosso país depende de vocês, insistiam seu Antônio, o diretor, e dona Stela,
minha professora, que certamente não vive mais, a não ser no meu coração e na minha saudade.
Essa lição, eu também iria demorar muitos anos para entender.
O tempo se foi e Marília andou. A cidade-menina se fez adulta e se fez bela.
Modernizou-se. Ao mesmo tempo, o mundo se transformou. Novas guerras, novas descobertas,
mais ódio e menos amor. O Brasil também andou. Sucederam-se eleições, acumularam-se
dificuldades e problemas, sem que tivesse havido tempo e capacidade para resolvê-los. E aquele
menino feio, com sardas no rosto e esperanças no coração, também andou. E sonhou. Mas,
enquanto andava e enquanto sonhava, foi sentindo aos poucos que a vida rude e difícil alterava os
seus sonhos, sem contudo diminuir-lhe as esperanças. E enquanto as luzes amarelas, na sua agora
longínqua Marília, se tornavam brancas, aquela antiga lição se tornava clara. O futuro havia
chegado e o país esperava e dependia cada vez mais da contribuição e da ajuda de alguém, já não
tão feio, nem sardento, como aquele menino chorão das ruas de Marília.
E enquanto o tempo passava e enquanto tentava construir sua vida, aquele menino
sardento, aquele jovem desengonçado e aquele homem, a um só tempo sentimental e chorão,
racional e enérgico, assistia às injustiças, via a fome de perto e de longe, sentia a chuva e o frio na
pele e nos ossos de muitos, acompanhava a luta da gente brasileira, que, em muitos casos, não
tinha onde morar, não tinha o que comer, sem trabalho, sem saúde, sem escola e sem esperança.
Acompanhava o peregrinar de um país que se fazia adulto, sem, no entanto, ter crescido cultural e
mentalmente. Por vezes, voltava à infância e aos primeiros anos da sua juventude. E, voltando, lá
estavam as luzes amarelas, e uma lembrança, e um contraste imenso, e uma diferença enorme
entre o mundo sonhado e desejado e o mundo real e frio, tal qual havia sido encontrado e sentido,
além e depois daquelas luzes.
A criança de ontem se fez homem, e o país, que não pode esperar muito tempo nem por
ela e nem por ele, continuava dependendo de ambos. O menino sardento das ruas de Marília
entendeu enfim que pátria, na verdade, são as pessoas, as gentes, o povo, povo que canta, que
chora, que ri, que sofre, que espera. Entendeu que pátria, pela qual se deve e se precisa viver,
jamais morrer, é o amor que edifica, é o trabalho que constrói, é a luta e a determinação que geram
a riqueza e o bem-estar, é a perseverança que garante a justiça social. Pátria é a compreensão, é o
entendimento, é a visão da igualdade, da fraternidade e da justiça.
Desde aquele menino feio e sardento que andava e sonhava pelas ruas de Marília e que
desejava ver o que se escondia atrás e além daquelas luzes amarelas, até o homem feito e
consciente deste fim de século, vai uma grande distância, tanto no tempo como no entendimento.
Se antes era preciso crescer e entender, agora, tendo crescido e entendido, é preciso sonhar menos
e trabalhar mais.
O país cresceu porque Deus permitiu e ajudou, mas o povo, não, porque os homens não
quiseram. Esse povo continua ingênuo, puro, manso e bom, embora não saiba discernir nem
julgar, embora não saiba onde colocar o pé, a fim de andar seguro e confiante. O menino chorão
de ontem acredita saber, e está disposto a ajudar.
UMA COISA NOTÁVEL
Depois do episódio da Casa Dalva, que vou relatar mais adiante, fui trabalhar no
Empório São Paulo. Não se apresentava ao público como um armazém de secos e molhados. Era
algo mais sofisticado, com uma clientela classe A e, no máximo, B. Atendia à “fina flor” da
cidade. Dizia-se ser “a casa dos bons produtos”. Ficava na Rua 9 de Julho, à direita de quem
descia para a Igreja de São Bento, que ainda não era catedral, logo depois da Rua Carlos Gomes e
vizinha da Farmácia Noturna. Esta ainda existe, e no mesmo lugar.
Eu também atendia à clientela no balcão, mas a minha função era fazer entregas com
bicicleta. Existiam três delas, dessas com uma roda bem pequena na frente e com um recipiente
bem grande sobre ela. Havia também uma outra bicicleta, tipo esporte, que era usada para entregas
pequenas e mais urgentes, além de outras idas e vindas pela cidade.
Por vezes, eu ia fazer uma entrega a pé, porque era logo ali, dobrando à direita na Rua
Carlos Gomes e atravessando a rua. Havia um grande sobrado, junto à rua, com pintura antiga, em
tom azul. Às vezes era o próprio morador quem me atendia. Era um senhor de meia idade e de
poucas palavras. Parecia viver só, naquele casarão, além de uma empregada. Ele se chamava
Amador Aguiar. Eu sabia que ele era importante no Banco Brasileiro de Descontos, que havia sido
fundado em Marília fazia alguns poucos anos. O endereço telegráfico do banco era Bradesco.
Mais tarde, passou a ser a razão social do banco, ou o seu nome fantasia, nome pelo qual é
conhecido já faz vários anos.
Quanto aos rapazes que faziam as entregas, éramos três: o meu irmão Álvaro, eu e um
outro, cujo nome não me lembro, mas que, depois, foi substituído pelo Guilherme.
Agora, é importante que fechemos as portas do Empório São Paulo para irmos até a
minha casa. Entre outros, lá encontraremos o meu irmão Álvaro e eu. Há uma diferença de quase
exatos dois anos entre nós. O Álvaro era maior, mais encorpado e mais forte. Eu, como
decorrência, mais baixo, mais magrinho e mais fraco. Diziam que éramos muito parecidos, “cara
de um, focinho do outro”. Em casa, evidentemente, ninguém se confundia com ninguém. Eu sabia
quando estava falando com ele e ele sabia quando estava falando comigo. Mas lá fora a coisa era
diferente. Sem contar os vizinhos e os amigos mais próximos, já habituados, havia muita confusão
entre nós. Há várias histórias interessantes sobre essa confusão, mas agora vou relatar apenas uma
delas.
Estamos então preparados para reabrirmos as portas do Empório São Paulo. Estamos
todos lá, à espera da clientela e dos telefonemas que irão acontecer durante todo o dia, com os
pedidos. Na rua, as quatro bicicletas, apoiadas na sarjeta pelo pedal. Não se preocupe porque não
serão roubadas, uma vez que estamos ainda na segunda metade dos anos 40. O roubo parece ter
sido inventado depois.
Como eu disse, a nossa função era fazer entregas, atender à freguesia da melhor maneira
possível e deixá-la sempre satisfeita. Os simpáticos turquinhos, donos do empório, sabiam o que
estavam fazendo.
Havia uma freguesa, cujo nome jamais guardei, que morava na Rua São Luis, logo no
começo, mais ou menos na direção do Ginásio do Estado. Fico devendo o local exato.
Certa vez, fui lá para fazer uma entrega. Como de hábito, passei pelo corredor lateral e
entrei pela porta da cozinha. Coloquei as compras, que não eram muitas, sobre a mesa. Era uma
mulher exigente, que reclamava muito. Naquele dia, ela demorou bem pouco para começar a sua
“ladainha”:
- O que é isso? Eu já disse pra você, várias vezes, que não uso café Profeta. Só uso café
Índio. Pode levar de volta e trazer o outro.
- Desculpe, vou trocar o café e volto já.
Saí pensando que aquela mulher, além de exigente e chata, estava ficando maluca,
porque em dia algum, em momento algum me dissera aquilo, sobre o café. Além disso, o café
Profeta era o preferido de quase todos. Na dúvida, sempre se levava o Profeta.
Seguindo as enérgicas instruções que eu tinha, alguns minutos mais tarde voltei lá e
entreguei a ela um pacote do café Índio do Brasil, o segundo na preferência da cidade. Mas uma
coisa me parecia certa: ela estava ficando maluca.
Alguns dias depois, voltei lá e coloquei as compras sobre a mesa. Ela conferiu. Tudo
certo, conforme o pedido.
Tchau!
E fui saindo.
- Espere um pouco. E as garrafas vazias? Você disse que iria passar por aqui para levar as
garrafas vazias, e ainda não passou!
- É maluca mesmo, pensei. Eu nem sei que história é essa de garrafas vazias! Nunca me
disse nada sobre garrafa nenhuma.
Mas como as minhas instruções eram bem claras...
- Está bem. Onde estão as garrafas?
E as “reboquei” de lá.
Ela ficou sem as garrafas, e eu, com uma certeza: aquela mulher estava maluca. No
mínimo, exigia demais e inventava coisas.
Passados mais alguns dias, eis que estávamos no empório o Álvaro e eu, quando ela
chegou. Coisa rara. Os clientes dificilmente iam lá.
Entrou como um bólide e bem falante; aliás, sua marca registrada. De repente, estacou,
emudeceu, arregalou os olhos, olhou para ele, olhou para mim e, passado o susto inicial,
conseguiu exclamar, perguntando:
- Vocês são dois?! Que coisa notável!
Estava explicada a história do café e também ficara entendida a história das garrafas
vazias. Melhor que isso, instantaneamente ela deixou de ser maluca e talvez até de ser chata. Pelo
menos naquele momento, ela me pareceu ser uma senhora simpática.
Daquele dia em diante, mudou o seu discurso:
- Foi pra você que eu disse isso? Foi você ou o seu irmão que me prometeu aquilo?
Quanto a nós, além das largas risadas, também mudamos o nosso discurso. Por exemplo:
- Onde você vai fazer essa entrega?
- Na casa da “coisa notável”.
- De quem são essas compras?
- São da “coisa notável”.
Talvez tenha sido por isso que não consegui reter na memória o nome daquela senhora,
freguesa assídua do Empório São Paulo, a casa dos bons produtos. Para mim e para o meu irmão,
ela passou a ser simplesmente a “coisa notável”, tão notável que, de maluca, passou a ser normal,
de chata e exigente, passou a ser simpática e cordial, e, ao menos para mim, tornou-se importante,
uma vez que passou a fazer parte da minha história.
“INSPIRACION”
Naquele tempo - eu tinha 13 ou 14 anos - era freqüente a meninada se reunir lá embaixo,
descendo a Rua Almirante Tamandaré, à esquerda, num campinho esburacado e de terra vermelha.
Jogávamos o nosso futebol, tão bem quanto podíamos e quanto o terreno nos permitia. Quantas
brigas, não sei. Quantos socos e empurrões, impossível calcular. Mas nós nos divertíamos, entre
nós e a bola, nas tardes ensolaradas da minha linda Marília.
Quando a hora chegava, ou quando o cansaço nos vencia, ou ainda quando as brigas
aumentavam, o jogo terminava. Muitas vezes xingando-nos uns aos outros, cada um pegava o seu
caminho de volta. Até o dia seguinte, ou a semana seguinte.
Eu morava bem aqui em cima e o trajeto para casa era sempre o mesmo.
Lembro-me bem de uma cena bastante própria e comum daquelas tardes. É bem fácil
imaginá-la, principalmente sabendo-a real.
O sol, ainda quente, procurava o seu lugar de repouso, lá pelos lados do cemitério.
Chuteiras na mão esquerda, sustentadas pelos dedos médio e indicador, enquanto a bola
descansava, presa entre o meu braço direito e o corpo, mas raramente eu era o dono dela. E eu
subia a rua, descalço, cansado e talvez ainda suando. E então, olhando à minha direita, via o sol
que desaparecia atrás das casas e das árvores para, alternadamente, reaparecer entre elas. E
enquanto aquele esconde-esconde se sucedia, das casas, quase todas de portas abertas e com o
rádio ligado, vinha o som inconfundível de um tango. Tango que, apesar de naturalmente
melancólico e triste, alegrava o fim da tarde e festejava a minha volta para casa. Era o programa
de todas as tardes, das 5 às 5 e 15. Ao fim de cada música, e tendo ao fundo a característica
musical do programa, ouvia-se uma voz: pela Rádio Clube de Marília, vocês estão ouvindo
“INSPIRACION”, o seu programa de tangos, para o seu fim de tarde.
E aquele menino irritadiço e briguento ia subindo para casa, enquanto o sol brincava de
se esconder e reaparecer entre casas e árvores e enquanto os tangos invadiam a rua, mas invadiam
também a sua alma e o seu ser, impregnando-os de forma indelével, definitiva. E ele continuava
andando, enquanto o sol continuava se escondendo e reaparecendo e enquanto a música
continuava tomando conta de tudo. E outra tarde, e mais outra, e mais outra ainda. Bola, suor,
cansaço, sonhos e tangos se misturavam, preparando e plasmando uma vida, que mal começava e
que mal se definia.
E assim o tango me acompanhou por toda a juventude, em cada momento, em cada
instante. Ainda que quisesse, eu não tinha como me separar dele.
E o tempo passou, enquanto a juventude foi ficando para trás. Mas, feliz ou infelizmente,
a vida não se compõe apenas de fatos que constituem o hoje ou de esperanças que acenam para o
amanhã. A vida está cheia de lembranças que trazem o passado ao presente. E cada fato que me
volta traz consigo o som de um tango, ou vice-versa, porque se associaram um dia e continuarão
juntos para todo o sempre.
Eis por que o tango, que é belo em si mesmo, a mim se apresenta como mais belo ainda.
São subjetivamente lindos todos os fatos que marcaram a minha infância e a minha juventude.
Associado a muitos deles, fazendo parte deles, o tango se torna, à minha alma e aos meus sentidos,
subjetivamente belo e encantador. Não há como ser diferente.
Ouvir um tango, hoje, não significa para mim apenas ouvir uma música que - entendo já passou. Não significa me deliciar com letras muitas vezes patéticas, retratando dramas
profundos ou mesmo tragédias inimagináveis. Não significa absorver uma melodia, por vezes de
gosto objetivamente até discutível. Ouvir um tango, para mim, significa viver, uma vez que afirmam por aí - recordar é viver. Não vivo do passado. Vivo do presente e tento construir o
futuro. Mas o passado me reconforta e me reanima. E existem duas maneiras físicas de trazê-lo até
mim: pela fotografia e pela música. Mas a fotografia é estática e muda. Reflete apenas um
instante, ficando o resto por conta da imaginação e da saudade. A música é bem mais completa.
Associada a um fato, ela o traz à minha mente. E o fato, que já fez parte da minha vida, a ela
retorna pela música, a ela se reencorpora. E consigo reviver! Fortalecido! Revigorado!
Eis um dos poderes da música. Eis um dos poderes do tango.
Sinto muito se o que me resta a dizer ofende a quem me lê. Espero que isso não
aconteça. Mas não se trata de julgar se o tango é bom ou se não é, se está ultrapassado ou se não
está, se merece ou não ser tocado e ser ouvido, se significa ou não uma volta vazia aos tempos da
brilhantina. Nem todos precisam gostar de tango, de vez que, para a maioria de hoje, ele nada diz e
nada significa. Mas não entender essas coisas, e, pior, não respeitar essas coisas de maneira adulta
e objetiva, como infelizmente tenho visto, é um problema que pode vir de qualquer lugar, menos
de mim e menos do tango. O problema, portanto, não está em mim, como não está no tango. Com
quem estará?
BOLERO
Muita gente que anda por aí, quando se refere ao bolero, fala do ritmo do “dois pra lá,
dois pra cá”. Isso não corresponde à verdade, uma vez que o bolero exige dois passos pra lá e um
pra cá. Se alguém insistir em dar dois passos pra cada lado verá que não vai dar certo e vai
arrumar uma bela confusão, porque esses passos vão estar em rigoroso desacordo, ou
descompasso, com o ritmo da música. “Dois pra lá, dois pra cá” corresponde ao baião.
Mas essa é apenas a maneira de dançar, envolvendo o corpo e especialmente os pés. O
bolero é muito mais do que uma dança ou um ritmo, muito mais do que movimentos. O bolero é
música, o bolero significa sons, com uma capacidade extraordinária de aguçar a sensibilidade e de
renovar lembranças. Claro que o essencial é o ritmo, mas a beleza está no todo, ritmo e melodia.
O bolero, para muitos, talvez não tenha uma beleza plástica objetiva, isto é, que atinja a
todos e que consiga provocar emoções em todos, independentemente da opinião ou da
sensibilidade de cada um. O bolero - embora eu o considere objetivamente lindo e gostoso - na
verdade, para quase todos aqueles que nasceram depois do seu advento ou da sua época de ouro,
pode ter uma beleza apenas subjetiva, nada mais do que uma correlação íntima e bastante sensível
entre a melodia - ou o ritmo - e os fatos, os acontecimentos de uma época.
Enquanto o tango apenas se ouvia, de vez que a sua dança é particularmente difícil, o
bolero, quase seu contemporâneo, além de ser ouvido, também era dançado, de vez que não exige
muito, além de uma natural percepção quanto à relação que existe entre o ritmo e os movimentos.
Tanto isso é verdade que, ainda hoje, quase ninguém resiste, em qualquer salão, aos seus encantos,
à sua magia e ao seu romantismo inebriante, sedutor e indiscutível.
O bolero dominou uma época, especialmente as décadas dos 40 e dos 50, mas parece ter
sido criado para ficar, para se eternizar, para encantar gerações após gerações. Desde que surgiu,
muitos outros ritmos e muitas outras danças apareceram, sendo esquecidos com a mesma rapidez
com que foram criados, coisa que confirma a beleza e o valor do bolero.
Claro que existe também a questão da qualidade. Como qualquer produto que se faça,
uma parcela costuma ser rejeitada e, não tendo sido aceita, vai para o lixo e para o esquecimento.
Aqui falo, evidentemente, das particulares melodias associadas ao bolero. O bolero, onde também
se encontram dramalhões de indiscutível mau gosto, quando peca pela falta de qualidade na
melodia ou na letra, o faz sem medidas, atingindo as raias do ridículo e do inaceitável. Exige,
portanto, qualidade e bom gosto, uma vez que se destina a tocar a sensibilidade, sensibilidade que
só se manifesta pela qualidade, pelo refinamento.
Não sei dizer se quando nasci o bolero já havia nascido também. O fato é que, na minha
juventude, ele parece ter atingido o seu ponto culminante, lá pela segunda metade dos anos 40 e
durante quase toda a década seguinte.
Como no caso do tango, estive inevitavelmente ligado ao bolero. Era impossível ligar o
rádio sem ouvi-lo. Era impossível andar pelas ruas e lojas sem que ele penetrasse suave e
mansamente pelos meus ouvidos, indo tocar delicadamente as profundezas de minha alma. Não
havia festas nem bailes sem o bolero. As amizades que se firmaram, os flertes que aconteceram, os
namoros que se iniciaram, os amores que surgiram e que se perderam ou mesmo os fatos comuns
do dia-a-dia, tudo isso, que constituiu as delícias mais marcantes para quem, como eu, teve uma
juventude saudável e feliz, tudo isso foi regado a bolero, tudo isso aconteceu ao ritmo e ao som do
bolero. Impossível era, portanto, viver sem ele, como difícil é hoje viver sem a magia da sua
beleza e sem as lembranças, boas ou amargas, que ele, carinhosa ou impiedosamente, me traz.
Saudosismo, dirão maldosamente alguns. Em primeiro lugar, eu diria que não há nada de
errado com a saudade, desde que, é evidente, não se cometa o desatino de parar de viver, de não
caminhar para a frente e de não tentar descobrir os novos encantos que a vida sempre nos oferece,
a cada novo dia. Depois, junto-me àqueles que garantem que recordar é viver, na medida em que,
enriquecidos e fortalecidos pelas coisas boas do passado, enchemo-nos de força e coragem para
viver mais felizes no presente e sonhar - sempre sonhar - com o dia de amanhã. Viver o presente é
fundamental, mas, sem o passado, ao qual se juntará amanhã o presente, fica difícil acreditar no
futuro. Se viver o presente é fundamental, crer no futuro é essencial. Nisso, a música nos ajuda
bastante, especialmente o bolero, especializado nessas coisas, segundo me parece.
O bolero, como qualquer outro ritmo ou música romântica, é o contraponto do barulho, é
o extremo oposto das maluquices mais modernas, também definidas como música, mas certamente
não pela sensibilidade, mas apenas pela conveniência, pela falta de arte, pela força de marketing e
pela busca do lucro. Como a velha anedota do judeu, dizem que vendem música, mas entregam
barulho, danificando não apenas os bolsos, mas principalmente os ouvidos. Apreciar esse tipo de
“musica” é um deslize bastante sério e um viés incompreensível, porém suportáveis. Mas permitir
danos sérios e irreparáveis à capacidade auditiva é prova de ignorância, teimosia e insensatez, para
não dizer burrice.
Cada povo, ou mais especificamente, cada grupo ou indivíduo apresenta manifestações
culturais intimamente relacionadas com o seu grau de desenvolvimento intelectual. É natural que o
ignorante não goste, por exemplo, de música erudita. Ele não tem como e nem por que entendê-la
ou apreciá-la. É mais lógico esperar que ele se identifique com a música mais modesta, menos
refinada, para não dizer primitiva ou mesmo grosseira. Mas não se trata apenas de uma questão
cultural ou intelectual. A questão da sensibilidade pesa bastante. O bolero não exige
necessariamente elevado nível cultural, podendo até dispensá-lo, mas sem um mínimo de
sensibilidade e coração fica realmente difícil captar a sua beleza e o seu encanto. Eu diria que o
bolero é suficientemente grande e nobre para poder ser exigente como é.
A BANDA DA MINHA BANDA
Aquela gente lá de Marília também faz das suas. Os marilienses cometeram o sacrilégio
de destruir o prédio onde funcionava o Cine Marília, para colocarem lá uma agência bancária,
além de terem desativado o simpático e glorioso Cine São Luis, substituindo-o por uma loja. Claro
que é a necessidade imposta pelo tempo, mas foram dois crimes, a meu ver hediondos, e, ainda
segundo a minha opinião, inafiançáveis.
Aos marilienses de hoje, talvez pouco afinados com a história da cidade - o que também
seria uma lástima e um sacrilégio - informo que o Cine Marília se erguia imponente na esquina da
Av. Sampaio Vidal com a Rua Campos Sales, e o Cine São Luis ficava na 9 de Julho, lado ímpar,
bem no meio do quarteirão entre a Rua São Luis e a 15 de Novembro.
Mas não pararam por aí os marilienses. Anos atrás, não me lembro se antes ou depois
dos cinemas, destruíram o coreto, a título de modernizarem a Praça Saturnino de Brito, que o
continha e que deveria permitir a largura normal da Av. Sampaio Vidal, até então mais estreita
naquele ponto. O resultado é que a nossa banda ficou órfã de coreto, já que banda não fica órfã de
pai nem de mãe.
Quando falo em banda, falo em banda de verdade e não nesses “grupecos” de hoje aos
quais chamam, de maneira sacrílega, de banda.
A banda da minha banda, isto é, a banda da minha Marília, era regida por um maestro
cujo nome a nenhum brasileiro deveria ser permitido desconhecer. Jorge Galatti, que, com a ajuda
de Raul Torres, compôs a lendária Saudade de Matão, regia aquela banda em todas as ocasiões
festivas, mas principalmente aos domingos, início da noite, naquele mesmo coreto que os
marilienses ousaram destruir. Saudade de Matão, composta em Araraquara, deveria ser
definitivamente eleita como o nosso segundo hino nacional e, ao mesmo tempo, como o hino dos
paulistas. Define a grandeza de um povo e também a simplicidade e a beleza da nossa gente
interiorana, uma das marcas mais típicas de nós, paulistas, e um ponto marcante da nossa história
e da nossa cultura. A quem ousasse confessar que não conhece a nossa simplória mas encantadora
Saudade de Matão, e os seus autores, ficaria muito bem justificada a aplicação da prisão perpétua,
o mínimo que poderia caber a um crime cultural de tamanha monta.
Lembro-me de, por várias vezes, ter ido à esquina das ruas D. Pedro e Santo Antônio,
local onde a banda fazia os seus ensaios, sempre às segundas-feiras, à noite. Durante o dia e por
algum tempo, aquele lugar era dividido com a Adelaide, uma simpática mulata que trabalhava
com corte e costura. Durante certo tempo, carreguei marmita pra ela, mas depois eu conto.
Imagine agora um domingo de sol, últimos momentos do dia e primeiros instantes da
noite. O pipoqueiro já chegou. O homem do algodão doce, também. Aquele que vende amendoim,
passoquinha, rapadura e tijolo baiano está ajeitando a sua barraquinha. Um outro vende mariamole, pipoca japonesa e sei lá mais o quê. Algumas famílias já chegaram e as crianças correm de
lá pra cá. Os músicos vão afinando os seus instrumentos. O maestro Jorge Galatti coloca a sua
maleta sobre um pequeno banco, abre-a e vasculha entre os papéis com as músicas. Aquela que ele
procura parece sempre que está lá no fim, no fundo da mala. Distribui as partituras entre os
músicos, que enchem o coreto. Mas a música não começa já. Sempre é preciso esperar mais um
pouco. É o tempo suficiente para que vários outros cheguem, inclusive casais de namorados, que
vieram juntos ou que se encontram ali. O sol já não se vê, porque já se pôs, lá pelas bandas do
cemitério. As bandas do cemitério, é bom esclarecer, nada têm a ver com a banda do Jorge Galatti.
Ele é alto, mas não muito; gordo, mas não muito; careca, mas não muito; usa óculos, sempre. É
calado, discreto e simpático. Ele não precisa falar porque não é um orador, é um maestro, e dos
bons. E é famoso, mas muito menos do que deveria ser.
Até que, finalmente, o maestro se apruma, batuta na mão direita. Algumas batidinhas no
suporte das partituras, para chamar a atenção da moçada. E, agora vai, a música começa e a alegria
chega. As crianças pulam e correm. O algodão doce continua surgindo como por milagre, como se
viesse do nada. A pipoca se agita na panela. Os mais velhos param e ficam olhando a banda, como
se fosse preciso olhar para ouvir. Os casais passeiam e alguns procuram os lugares mais distantes
e com menos gente, sabendo que as palavras mais doces são mais fáceis de ser pronunciadas com
a música mais ao longe e mais ao fundo. Mais gente chega. E para. E olha. E ouve a banda. E nem
sequer se dá conta de que, naqueles momentos, tanto essa gente como a banda estão escrevendo
um dos capítulos mais marcantes e inesquecíveis da história da cidade. E a banda toca. E os
corações se alegram. E os mais antigos começam a recordar as mesmas coisas que os mais jovens,
ali presentes, levarão ainda muitos anos para delas se dar conta e para sentir a mesma saudade que
agora talvez ridicularizem. Muitos deles, principalmente os que brincam, que correm e pulam e
que talvez nem estejam ouvindo direito a música, mas, com certeza e inconscientemente,
gravando-a na memória e no espírito, a ouvirão bem melhor mais tarde, não nesta noite de
domingo, mas algumas dezenas de anos depois, premidos - agora, também eles - pela dor e pela
saudade. A banda pode ir, o coreto será destruído, o tempo passa mas a música fica. É um
dobrado, é uma valsa, é uma marchinha, é a Saudade de Matão, não importa muito. A música é
retida na memória para doer mais tarde, bem mais tarde, porque a lembrança e a saudade têm
efeito retardado e têm sempre alguma coisa de dolorida.
Mas ainda é domingo e a banda não se foi. O coreto ainda está ali, como estará num sem
número de domingos pela frente, antes que seja destruído, mais tarde. As músicas se sucedem. A
alegria e a saudade se misturam com a noite que, aos poucos, chega, calma e estrelada. Ouve-se a
última música deste domingo. Cada músico guarda o seu instrumento. O maestro recolhe as
partituras e fecha a maleta. Cada um sai para o seu lado e o coreto se esvazia. As pessoas se
dispersam e as crianças as acompanham. Os casais de namorados se retiram e a praça fica vazia.
Agora, apenas a noite, com as suas estrelas. Os últimos vendedores também saem, ficando apenas,
solitário, o monumento aos pracinhas marilienses da última guerra, que ocupa o centro da praça.
O domingo termina, a semana chega ao fim e, no lugar da banda, apenas se ouve o
silêncio da noite e da cidade.
Algum tempo depois destruíram o coreto e a avenida ficou mais larga, enquanto a praça
encolheu. E a banda ficou órfã, nem de pai, nem de mãe, nem de maestro, mas órfã de coreto. Que
coisa triste! Que saudade!
BÚRICA & BIROLA
Sei que para os mais jovens, e talvez também para alguns não muito jovens, essas duas
palavras podem até soar como palavrões. Explico já, já. Não procure o Aurélio, por enquanto.
Quando criança, nunca tive aptidão para determinadas atividades, ou divertimentos. A
minha distração predileta sempre foram as figurinhas, fossem elas de animais ou de jogadores de
futebol. Era apaixonante colecioná-las, identificando as “difíceis” e as “carimbadas”. A disputa era
grande; a coleção completa, num álbum, era difícil e, às vezes, cara; o prêmio, insignificante. Mas
a emoção e o desafio compensavam tudo. As figurinhas fáceis e repetidas, muitas, eram disputadas
em dois tipos de jogo: a paredinha e o bafo. Mas isso fica para outra ocasião, se ela se apresentar
algum dia.
Afora as figurinhas, existiam pelo menos quatro outros divertimentos que encantavam a
meninada do meu tempo: a bete, o papagaio, o pião e a búrica.
Nunca tive muita intimidade com eles. Nem muita habilidade. Talvez tenha sido por isso
que não tenham me deixado saudade, a não ser pela época esplendorosa em que aconteceram.
A bete era uma espécie de “base-ball” de mangas curtas. Tive boa intimidade com esse
jogo. Compunha-se de dois sarrafos de madeira, de aproximadamente 80 cm de comprimento (as
betes), de uma bola de tênis, de dois pequenos buracos no chão, a uma distância de
aproximadamente 12 metros um do outro, e de duas “casas”, na mesma linha dos buracos e depois
deles. Essas “casas” eram construídas por três gravetos cada uma, de pé, como se fosse um cone.
Jogava-se em dupla. Uma dupla ficava com as betes, por sorteio, com um participante em cada
extremidade, e a outra dupla ficava com a bola, também com um em cada ponta. Jogava-se a bola
de uma extremidade para a outra. O detentor da bete tentava acertar a bola e mandá-la para longe.
Se conseguisse, iniciava-se uma dupla corrida, de um extremo ao outro. Ao se cruzarem no meio,
batiam uma bete contra a outra, marcando, então, um ponto. A cada cruzamento, no meio, um
ponto, até que a dupla adversária conseguisse apanhar a bola e trazê-la para perto. Jogada a bola,
se ela conseguisse desarmar a casa, com a bete fora do buraco, a dupla da bete a perdia, passando
a jogar com a bola.
O papagaio, que recebeu depois outros nomes, quadrado, pipa, de acordo com a época e
o lugar, jamais conseguiu me atrair, fosse na sua confecção, fosse no seu manuseio, embora eu
gostasse de vê-lo subir, preso à linha e por sobre as camadas de ar.
O pião era bem mais complicado. Jamais consegui fazê-lo “dormir”, como dizíamos,
quando girava tão rápido que parecia estar parado, embora de pé. Nunca participei de qualquer
disputa. Eu não era bom naquilo. Ficava assistindo até a hora da briga, quase sempre inevitável.
Mas havia ainda a búrica. A exemplo do papagaio, também ela mudou de nome mais
tarde. Ainda naquela época, deixou a singeleza e o romantismo do seu nome, que nos parecia ser o
original, para receber um outro, bem mais burguês e bem mais nobre e sofisticado. Passou a se
chamar “bolinha de gude”, nome que a acompanharia depois, ao longo de toda a sua trajetória,
como uma despretensiosa contribuição da cultura egípcia. Para nós, era a búrica; para mim,
continua sendo a búrica, nome que não se consagrou na história, mas que ficou no meu coração e
na minha saudade.
Consultemos agora o Aurélio. Não sei como nem por que, mas a verdade é que lá está
ela, garbosa, ocupando o lugar que lhe é devido, no dicionário.
Mas não existe búrica, ou melhor, jogo de búrica, sem a birola. Esta não mereceu um
lugar no dicionário do Aurélio, mas, como a búrica, conserva o seu lugar, pelo menos na minha
lembrança.
Existiam três tipos de jogo com a búrica.
O primeiro deles era o “mata-mata”, modalidade em que cada contendor tentava acertar a
búrica do adversário, colocada a uma certa distância. Se acertava, ganhava a búrica e o jogo
recomeçava. Se errava, era a vez do adversário, a partir do ponto em que a sua búrica havia
parado, na última jogada. Não raras vezes, percorriam-se grandes distâncias, tanto maiores quanto
mais se errava a búrica adversária. Nessa modalidade, não era necessária a birola. Muitas vezes
jogava-se de pé.
A segunda modalidade exigia que se construísse uma birola, nada mais do que um
buraquinho no chão, um pouco maior do que o dobro da búrica. “Tirava-se o ponto”, isto é, a uma
certa distância cada jogador jogava a sua búrica na direção da birola. A mais próxima tinha o
direito de iniciar o jogo, que consistia em jogar a búrica na birola, para depois “matar” o
adversário, jogando a sua búrica contra a dele e recebendo-a como prêmio. Um erro, fosse na
procura da birola, fosse na procura da búrica adversária, significava reversão no direito de jogar, a
favor do adversário.
A terceira modalidade exigia quatro birolas, sendo três em linha reta e uma em seguida,
formando um ângulo de 45 graus com as três primeiras, cada uma delas a uma distância
aproximada de 60 ou 70cm da outra. Como no caso anterior, “tirava-se o ponto”. Aquele que se
saísse melhor começava a jogar, rumo à primeira birola, depois à segunda, à terceira e à quarta.
Em seguida, retorno à terceira, à segunda e à primeira, iniciando-se então a segunda ida até a
quarta birola, ida essa que se chamava “de matança” porque, uma vez cumprida, dava o direito de
“matar” a búrica adversária, acabando o jogo e recebendo-a como prêmio. Caso a búrica
adversária estivesse no caminho entre duas birolas, coisa que por vezes acontecia, era permitido
jogar a búrica contra ela, por estar mais próxima de quem jogava, para depois procurar atingir a
birola. Nesse caso, a búrica adversária funcionava como um trampolim para que se atingisse a
birola seguinte. Outro artifício permitido era a “chimbada”. Atingida uma birola, o normal era que
a búrica adversária estivesse nas proximidades, consequência natural do erro cometido pelo
adversário, na jogada anterior. Podia-se então jogar violentamente a búrica contra a do adversário,
mandando-a para longe, isto é, podia-se “chimbar” (em vez de chimpar, como diz o Aurélio),
antes de procurar atingir a birola seguinte. Isso era desvantajoso para o adversário, uma vez que
teria de retornar ao jogo, ao readquirir a sua vez, do ponto em que parou a sua búrica. Outro
artifício, que fazia parte do regulamento, era a “casquerada”. Atingida uma birola, se a búrica
adversária estivesse a uma distância de um palmo ou menos, o jogador tinha o direito de
“casquerar”, isto é, de pegar a sua búrica, batê-la suavemente sobre a búrica adversária, colocá-la
diretamente na birola seguinte e continuando ainda com o direito de jogar. A cada erro cometido,
o adversário retomava a sua vez de jogar.
É complicado para explicar, mas bem interessante para jogar ou assistir. Ao contrário da
vida, segundo me parece, onde, quase sempre, é bem mais fácil explicar do que efetivamente
viver, mesmo porque numa existência não temos apenas quatro birolas, mas inúmeras barreiras ou
mesmo precipícios. O problema maior, contudo, é que não havendo jogadas alternadas em função
dos erros dos adversários, como no jogo de búrica, mas havendo quase sempre jogadas
simultâneas, na vida real preocupamo-nos muito mais em “chimbar” o próximo para longe, do que
amá-lo e trazê-lo para junto de nós.
DONA ESMERALDA
Quando fizemos os exames de admissão ao Ginásio, tivemos de enfrentar uma fera: dona
Berta. Era a professora de Português do Colégio do Estado. Daquelas que costumavam soltar uma
gargalhada sempre que um aluno cometia um erro um tanto mais grave. Sabíamos sobre ela, ainda
no curso de admissão. Foi nossa examinadora. Quando digo nossa, quero dizer, de toda aquela
turma que foi para o Ginásio no início de 1948.
Felizmente, quase todos do curso de admissão de dona Emerita conseguiram transpor
aquele sério obstáculo, isto é, dona Berta. Mas teríamos que continuar enfrentando-a depois.
As aulas começaram tarde no Colégio Estadual e Escola Normal de Marília, em 1948.
Foi no dia 11 de março que o prof. Paccola ministrou a aula inaugural. Antes dela, porém, veio a
boa notícia: dona Berta, professora já passada na idade e ultrapassada quanto aos seus métodos de
ensino e de manutenção da disciplina em classe, fora transferida. Junto com aquela boa nova, uma
informação lacônica e despretensiosa: a nossa professora de Português seria dona Esmeralda.
E chegou o dia da sua primeira aula. Quase ninguém a conhecia, inclusive eu. Entrou na
sala uma professora jovem, morena e especialmente linda, pelo menos segundo o meu conceito.
Maquiada sem muita discrição, vestia-se de um azul um tanto escuro, mas bem vistoso, com um
vestido que lhe caia muito bem ao longo do corpo, expondo suas curvas com graça e beleza.
Alguns poucos detalhes em branco. Estatura mediana, pele morena, cabelos quase pretos, um tanto
curtos e muito bem acomodados por sobre orelhas e pescoço, do qual pendia graciosamente um
discreto colar, sem contrastar com os brincos.
Dona Esmeralda Peregrino da Silva estava ali, à minha frente. Eu, que a via pela primeira
vez naquele instante, não imaginava que ela seria de enorme importância para mim, não apenas
durante aqueles anos de escola, mas também por toda a minha vida. Posso afirmar que a amei
intensamente, como a amo ainda hoje, no sentido mais verdadeiramente cristão do termo.
Dona Esmeralda foi, para mim, uma professora excepcional, vários pontos acima da
média. Devo a ela muito mais do que ela possa imaginar, se é que vive ainda.
Sempre enérgica, mais sisuda do que sorridente, profundamente dedicada à sua missão
de ensinar e educar, demonstrava competência e desenvolvia o seu trabalho sem esconder um
imenso amor, não apenas por ele, mas também por aqueles que, nas carteiras, buscavam o saber.
Foi uma autêntica sacerdotisa da arte e da ciência de ensinar.
Sei que tenho alguma facilidade para colocar o meu pensamento sobre o papel. Talvez
tenha nascido com essa facilidade. Mas é certo que foi dona Esmeralda quem desenvolveu em
mim essa arte. Mais que isso, foi ela quem gerou, desenvolveu e cristalizou o gosto que sinto pela
arte de escrever. Escreve-se com a alma. Os recursos gramaticais são apenas meios dos quais nos
utilizamos para sacramentar, através da linguagem escrita, o que nos vem da alma e do coração.
Dona Esmeralda ajudou-me, e quanto, a burilar esse trabalho de transportar a alma para o papel.
As aulas de redação eram constantes. Às vezes em classe, às vezes em casa, tínhamos
pelo menos uma redação a cada semana. E elas voltavam religiosamente corrigidas. As melhores
eram lidas e comentadas em classe. As minhas eram lidas com boa frequência. Eu ouvia as críticas
e os elogios. Procurava me corrigir. Dona Esmeralda exigia, ou recomendava, o uso de palavras
fáceis e de frases curtas. Muitas vezes, eu complicava nas palavras, usando aquelas mais difíceis e
menos conhecidas, e construía períodos muito longos. Mas dona Esmeralda não desistia, corrigia
sempre, e falava, e insistia. A palavra “detalhes”, que usei lá atrás, era um dos exemplos de
palavras que ela nos proibia de usar. Nesse caso, por ser um galicismo. Ajudou-me a desenvolver
o estilo, que levou várias décadas para se firmar, mas cujas origens remontam àqueles cinco anos
vividos no Colégio Estadual e Escola Normal de Marília, sob o seu pulso firme e sua orientação
segura.
Naquelas aulas de redação, dona Esmeralda insistia nos seguintes pontos:
- Escrever com correção gramatical. Ela corrigia erro por erro, aluno por aluno, fazendo
comentários e apresentando ilustrações.
- Construir frases curtas e usar palavras fáceis, cujo significado a maioria conhecesse.
- Clareza na linguagem e nas idéias. Frases de sentido dúbio eram proibidas.
Para aqueles que tinham maior habilidade, eu tinha alguma, cuidava ainda do estilo e da
elegância no escrever. Com estes, ela insistia para que escrevessem com desenvoltura, clareza e
objetividade.
E lá vinham também as aulas de gramática. Pesadas, mas compensadoras. E lá vinham
também as aulas de análise sintática. Muito difíceis, mas indispensáveis. E lá veio também um ano
inteiro dedicado ao estudo do Português histórico. Certamente, os alunos de hoje não sabem o que
é isso. É o estudo da passagem do Latim para o Português. Sem esse estudo e sem razoável
conhecimento do Latim, é muito difícil, talvez impossível, aprender a nossa língua. Pode-se
decorar alguma coisa, mas aprender, não. Os criminosos da Educação, nesta nossa terra,
eliminaram ambos. O justo agora seria que se eliminasse a eles.
Na 3ª série, lembro-me bem que eu já não era o mesmo quanto à disciplina. Conversava
muito, talvez mais do que qualquer outro. Também nesse aspecto, dona Esmeralda cuidou de mim.
(E de alguns outros também). Nas suas aulas, mudava-nos de lugar, colocando-nos entre aqueles
mais quietos. Nessas aulas, os alunos tinham uma disposição logística bastante especial. Os
critérios eram técnicos, mas se notava que tudo era feito com bastante amor e ternura. Ela buscava
resultados.
Posso afirmar que dona Esmeralda jamais demonstrou amor no semblante, mas tornavao, no entanto, claro e evidente nas ações.
Depois daqueles inesquecíveis cinco anos, em todos os demais já vividos, a cada
momento em que se exercitava o uso da linguagem, discutindo gramática, formas e estilos, ou
simplesmente escrevendo, um pensamento sempre me dominou e continua me dominando: faço
assim porque assim me ensinou dona Esmeralda, aquela moça linda que, um dia, de azul, surgiu à
minha frente para nunca mais ser esquecida.
NO LUGAR DE SEMPRE
Fiz os quatro anos do meu curso ginasial de 1948 a 195l, no Colégio Estadual e Escola
Normal de Marília. Para os mais jovens, informo que esse curso correspondia aos quatro últimos
anos do atual 1º Grau. Estudava à tarde. Na parte da manhã, tínhamos os três anos dos cursos
Cientíco e Clássico, além do Normal.
Não me lembro bem quando esta história aconteceu. Deve ter sido quando eu estava na
3ª série. Portanto, em 1950, ou então, no ano seguinte.
Aconteceu que a meninada, todos entre 12 e 15 anos, começou a receber bilhetinhos, que
eram deixados nas carteiras e que vinham das meninas que estudavam pela manhã. No início,
eram três ou quatro casos, mas, em pouco tempo, o número daqueles missivistas aumentou
bastante. Lembro-me de ter sido um dos primeiros.
Não foi difícil saber que, naquela sala, funcionava uma das turmas do Curso Normal,
pela manhã. Duas conclusões importantes: não se tinha conhecimento da presença de rapazes
naquele curso e a idade média delas, por já estarem no Normal, devia ser por volta dos 16 anos.
Eram mais velhas do que a “pixotada” da tarde. Mas isso não impediu que a história se
desenvolvesse, para ser contada 48 anos depois.
Numa daquelas tardes, quando eu pouco ou nada sabia sobre os bilhetinhos, vi,
casualmente, que havia algo escrito sobre a carteira. Procurando o ângulo adequado de incidência
da luz, torna-se bem visível a escrita, principalmente se ela tiver sido feita a lápis. Procurei o
ângulo certo e li mais ou menos o seguinte: “Gostaria de saber quem senta nesta carteira. O meu
nome é Maria Helena”.
Na primeira folga, passei a borracha e escrevi no mesmo lugar mais ou menos o
seguinte: “Sou eu. Meu nome é Rubens e gostaria de saber quem é a Maria Helena”.
No dia seguinte, lá estava a resposta. Ela se chamava Maria Helena Barros e fazia o
Curso Normal. Iria ser professora.
E as mensagens se sucederam. E o número de participantes foi aumentando. No início,
eram poucas palavras, mas, em pouco tempo, as mensagens se tornaram bem mais longas. Como
não era prático escrever e nem ler nas carteiras, o método foi melhorado com o surgimento de
bilhetes e, mais tarde, cartas, em papel. Mas seria necessário encontrar um bom lugar para
escondê-las na carteira. A parte de baixo, entre as garras do tinteiro e a madeira, foi um bom lugar
enquanto os bilhetes eram pequenos. Depois, a imaginação de ambos tratou de resolver o
problema da nossa “caixa postal”.
Não me lembro do que se tratava naquele vaivém de bilhetes escritos a lápis sobre a
carteira, nem depois, quando se usava papel. Mas me recordo que a Maria Helena era bastante
meiga e me tratava com sensível ternura e consideração, talvez refletindo os dois ou três anos que
devia ter a mais que eu. Era embaraçoso para mim e ficava difícil manter aquele tipo de diálogo.
Eu não tinha jeito e nem idade para aquilo. Ela parecia me superestimar e não tomar conhecimento
de que eu era apenas um jovenzinho magro, com espinhas pelo rosto e desengonçado, embora
talvez não imaginasse como eu era, fisicamente.
De vez em quando, o nosso “correio” falhava e as mensagens não chegavam. Soubemos
depois que as serventes, na hora da limpeza, andaram estragando a nossa festa. O que teriam elas
lucrado com aquilo, ninguém soube dizer, até hoje.
Até que um dia, o prof. Amílcare entrou na sala. Ele era o diretor do colégio. Magro,
alto, sisudo, bem vestido, quase sempre de cinza claro, elegante mesmo. Como diretor, acho que
posso lhe atribuir o grau 10, não apenas hoje, mas naquela época também. Era enérgico e
disciplinador. A comunidade intelectual e estudantil da cidade devia-lhe a manutenção de uma
escola em nível bastante elevado. O prof. Amílcare Bruno Mattei, que hoje é nome de um colégio,
em Marília, embora ainda moço, morreu pouco tempo depois, vítima de uma grave doença que o
acometeu.
Então, naquela tarde, ele entrou na sala e foi direto ao assunto:
- Vamos acabar com esses bilhetinhos. Vocês estão aqui para estudar e não para namorar.
Ainda é muito cedo para isso. As serventes estão instruídas a vasculhar carteira por carteira. No
próximo bilhete, os envolvidos terão uma conversa muito séria comigo, na minha sala. E não
adianta escreverem “no lugar de sempre” sobre a carteira, porque eu já sei qual é o lugar de
sempre.
E saiu da sala.
Ele tinha razão. Nos últimos tempos, os bilhetes iam para algum esconderijo e, sobre a
carteira, apenas aquela pequena mensagem: no lugar de sempre.
Seria inútil resistir. De qualquer maneira, as mensagens não chegariam mesmo. Por outro
lado, naquela época se estudava de verdade e, sem qualquer objetivo de comparações, éramos
bastante responsáveis. Tínhamos uma excelente escola, um bom diretor e ótimos professores. Era
preciso que continuássemos fazendo a nossa parte. Nem precisaríamos discutir com o Amílcare se
era cedo ou se não era para aquele tipo de namoro. Quem quisesse poderia continuar, mas, além
dos muros do colégio. E assim foi. Nunca tive qualquer notícia de que algum daqueles casos
tivesse evoluído.
Estávamos numa cidade relativamente pequena, onde não era muito difícil ficar
conhecendo quase todos. No meu caso, bastaria que fosse à escola na parte da manhã ou que ela
fosse ao colégio à tarde. Mas isso nunca aconteceu, pelo menos quanto a mim. Pode ser que ela
tenha ido, me visto e que não tenha gostado do que viu, mas nunca fiquei sabendo.
Fica fácil, agora, para que você responda a uma perguntinha: quando foi que eu vi a
Maria Helena Barros, pessoalmente?
A resposta é simples e lacônica: NUNCA!
“FLASH GORDON”
Mais para o fim da década dos 40, o cinema americano colocou nas telas do mundo
inteiro mais uma de suas criações. Esse novo herói, que aparecia nos filmes seriados e nas revistas
de histórias em quadrinhos, não conseguiu, contudo, atrair minha atenção. Lá em Marília, na
minha idolatrada Marília, ele aparecia só às sextas-feiras, o dia da semana que eu menos gostava,
depois do domingo, de ir ao cinema. Seria necessário um bom filme mexicano para que eu abrisse
uma exceção.
Todos se entusiasmavam com o Flash Gordon, todos gostavam do Flash Gordon, todos
falavam do Flash Gordon. Menos eu. Estranho, não? Só porque eu não ia ao cinema às sextasfeiras? Devia existir algo mais que pudesse explicar melhor aquilo. Quanto às suas histórias em
quadrinhos, nem elas e nem as outras me atraiam. Jamais li qualquer história em quadrinhos.
Pareciam-me muito chatas e cansativas. Talvez porque fosse inevitável olhar para um quadro e
ver, ao mesmo tempo, a seqüência que aparecia ao lado. Nunca comprei e jamais li uma história
daquelas. Nem do Flash Gordon, nem do X-9, nem do Capitão América, nem de ninguém.
Já ouvira dizer, não me lembro quem e nem onde, que eu era bastante parecido com o
Flash Gordon. Diziam-me ser ele um moço loiro, aparentemente de pele bronzeada, demonstrando
ter no máximo 18 anos, ágil e inteligente. Eu tinha 15 ou 16 anos, era loiro, tinha os cabelos mais
ou menos como ele, segundo disseram, mas não tinha a pele bronzeada, embora fosse corado, nem
me parecia ser ágil, pelo menos como ele, e não havia como comparar as nossas inteligências.
Seguramente, ele era mais inteligente do que eu.
Lembro-me de, ao contrário do que se poderia esperar ao ser constatada alguma
semelhança com um herói daquele porte e daquela fama, ter sentido um certo constrangimento,
um certo mal-estar com aquilo. Talvez porque, intimamente, eu quisesse ser eu mesmo, nada
havendo em mim que pudesse ser considerado uma imitação a ele, ou nele, em relação a mim. Na
verdade, sempre quis ser eu mesmo. Tive vários ídolos, como digo mais à frente, mas jamais
admiti ser um deles, ou como eles, ou parecido com eles. Eu admirava suas virtudes, fosse a sua
força, a sua inteligência, a sua perspicácia, a sua coragem, a sua destreza, a sua honra, o seu
caráter, a sua dignidade, a sua grandeza enfim. Mas admirava tais virtudes neles mesmos e
observava como as colocavam a serviço do bem. Sem dúvida, imaginava-as em mim, mas
rigorosamente adaptadas a mim, segundo as minhas próprias perspectivas e as minhas
possibilidades ou restrições. Em resumo, admirava os meus ídolos, mas, quanto a mim, queria ser
eu mesmo.
Talvez por isso eu não me empolgasse com o Flash Gordon. Dada a semelhança.física,
poderia haver um risco maior de identificação entre o real e o ídolo.
Certo dia, eu passava pela Rua Lima e Costa, vindo lá das bandas da Igreja de Santo
Antônio e me aproximando da Cel. Galdino de Almeida, quando ouvi alguém dizer em voz bem
alta:
- Ei, Flash Gordon!
Olhei à minha esquerda, porque era de lá que vinha o chamado. No terraço de uma
residência, a última antes da esquina, junto às escadas, havia uma moça com aparência de uma
empregada doméstica. Acenou para mim com uma das mãos enquanto repetiu o chamado:
- Ei, Flash Gordon!
Sem dúvida, era comigo que ela falava, porque não havia mais ninguém na rua, naquele
momento. Retribuí ao aceno e continuei o meu caminho. Lá estava mais uma pessoa que assistia
ao seriado das sextas-feiras e que me achava parecido com o Flash Gordon.
Como aquela cena se repetiu mais uma ou duas vezes (parecia que ela ficava à espreita,
para quando eu passasse), tomei uma decisão “drástica”: vou ver de perto esse tal de Flash
Gordon.
E talvez esperasse ver mais semelhanças entre ele e o King-Kong do que entre mim e ele.
E lá fui eu, na primeira sexta-feira que tive pela frente. Encontrei um herói bastante
diferente de tudo o que eu já havia visto até então. Não tinha a força do Super-homem nem a do
Capitão Marvel. Não tinha a força nem a ingenuidade do Tarzan. Estava bem longe de ser
empolgante como o Zorro. Nada tinha a ver com o Sherlock Holmes ou com o Charlie Chan.
Quanto ao Robin Hood, nem se fala. Mas, desgraçadamente, parecia ter a minha cara. E aquilo se
me apresentava como uma questão importante. Procurei ver mais diferenças do que semelhanças
entre mim e ele, talvez levado bem mais pelo meu subconsciente do que por uma maneira
claramente manifesta. Contudo, quisesse eu ou não, gostasse ou não, lá estava ele, na tela, com
algumas indiscutíveis semelhanças em relação a mim, sentado tranqüilamente entre os outros. Ao
menos lá, ninguém me chamou de Flash Gordon.
É bom lembrar, contudo, que ninguém é assim tão puro e perfeito, tão íntegro e
personalista como me parecia ser em relação aos meus ídolos, alguns dos quais foram acima
citados. No fundo, mas bem lá no fundo mesmo, quase sem eu próprio me dar conta, havia uma
nesga de satisfação íntima, havia uma pequena amostra de um ego que se fortalecia ao perceber
que o novo herói que era apresentado ao mundo não estava muito distante de mim, quanto à
aparência física.
Talvez o Flash Gordon tenha me ajudado mais do que penso e, certamente, muito mais
do que ele próprio possa ter imaginado algum dia. Como tenho dito em outras ocasiões, eu sempre
havia me considerado um menino feio, sardento, com os cabelos difíceis de pentear e com as
meias quase sempre largas e caindo sobre os sapatos sujos. Talvez tivessem se inspirado em mim
quando inventaram a história do Patinho Feio. À época do Flash Gordon, contudo, eu já havia
mudado um pouco a minha aparência. Já usava meias um pouco melhores, engraxava os sapatos e
conseguia pentear os cabelos. As sardas haviam dado lugar às espinhas. Eu me sentia ainda uma
“droga” de rapaz, mas me parecia agora claro que nem todos pensavam daquela maneira, pelo
menos aqueles que se lembravam do Flash Gordon quando me viam.
UM JUIZ LADRÃO
Em 1950, perdemos o tricampeonato paulista. Mais uma vez, foi o Palmeiras que nos
estragou a festa. Com aquele gol do Aquiles. Estávamos cinco pontos na frente, mas conseguimos
perder, em seguida, para o Guarani, para o Ipiranga e para o Santos. Não me lembro em que
ordem foi, mas perdemos esses três jogos. Com o empate diante do Palmeiras, perdemos o título.
Tínhamos uma excursão programada para depois das férias, mas, com a perda do
tricampeonato, diziam que os europeus não estavam muito a fim de nos ver jogar. Por isso, foi
feito um arranjo com o Bangu. Fizemos uma mistura com eles e lá fomos nós para a Europa, no
fim de março.
Foi uma estréia razoável, numa sexta-feira, com um empate de 1 a 1 contra a Lazio, de
Roma. O Geraldo José de Almeida transmitiu o jogo, pela Rádio Record. Foi uma transmissão
horrível, mas dava para se perceber que se tratava de um jogo de futebol.
O segundo jogo já estava programado. Seria no domingo, ao meio-dia, contra o Gênova.
Lá, às quatro ou às cinco da tarde.
Começou a transmissão, aliás, bem típica de uma transmissão internacional daquela
época. Uma chiadeira danada. O som sumia e voltava de maneira intermitente. Escalados os dois
times. Do lado de cá, nem todos os jogadores eram nossos. Quatro ou cinco eram do Bangu.
Começou o jogo. Logo em seguida, o Geraldo gritou o primeiro gol, mas era dos
italianos. A transmissão foi interrompida durante alguns minutos. Conseguimos empatar. Mais um
pouco, e fizemos o segundo, mas foi anulado pelo juiz. Absurdo, dizia o Geraldo, quando a
transmissão foi interrompida novamente. Mais alguns minutos, ouviu-se o Geraldo de novo, agora
dizendo que o Gênova fizera o segundo, em impedimento, mas valera.
Agarradinho ao rádio, eu ouvia tudo o que era possível ouvir. E, embora fosse um jogo
amistoso, xingava o juiz: maledetto!
Melhorou a qualidade da transmissão e os homens de lá fizeram o terceiro e, depois, o
quarto; este, com a mão. O Geraldo José de Almeida foi às núvens:
- Perdoem-me, senhores ouvintes, mas esse juiz é um grande ladrão!
E continuava o jogo. Volta e meia a transmissão era interrompida. Dos 90 minutos,
talvez nem a metade tivesse sido transmitida e, mesmo assim, muito mal. A cada volta do som,
mais um gol dos homens de lá, inclusive com um pênalti inexistente. Uma roubalheira daquelas.
Dois dos nossos foram expulsos. O Geraldo José de Almeida não se cansava de repetir:
- Esse juiz é um ladrão!
Não me lembro se perdemos de seis ou de sete, mas fizemos apenas um. Quanto ao juiz,
segundo o Geraldo, era um ladrão muito safado e muito sem-vergonha. Estragou-me o dia.
Lembro-me de ter ficado profundamente irritado e desgostoso com tamanha derrota. E aquele juiz,
então, que safado e que ladrão era ele!
Fiquei azedo até o início da noite, quando fui para o centro da cidade, como era meu
hábito, na companhia de dois amigos.
Av. Sampaio Vidal cheia, como em qualquer outro domingo. Bares com gente por todos
os lados. As meninas passeavam daqui pra lá e de lá pra cá. Rodinhas de amigos pelas calçadas e
no meio da rua também. Eram proibidos os veículos naquele horário e naquele local.
Completamos uma daquelas rodinhas. Eu continuava bastante azedo e quase não falava. O motivo
viera de Gênova, pela voz do Geraldo José de Almeida.
Conversa vai, conversa vem, alguém disse, na rodinha ao lado:
- Viu o que a Record fez? Deu um tremendo 1º de abril na turma.
Teria eu ouvido bem? Estaria ele falando do jogo? De qualquer maneira, senti o primeiro
alívio do dia. Fui até eles.
- Esse 1º de abril foi com o jogo?
- Não houve jogo nenhum. Foi 1º de abril da Rádio Record.
Pelo menos uma coisa estava certa e confirmada: aquele dia, domingo, era 1º de abril de
1951. O primeiro passo rumo ao meu alívio total fora dado.
No meu espírito, contudo, havia uma mistura bem balanceada de dois sentimentos. O
primeiro deles era um grande alívio, porque, confirmada a informação, não teria havido derrota
nenhuma e eu poderia ficar tranqüilo com o juiz. Pelo menos naquele dia, ele não havia se
comportado como um ladrão. O segundo sentimento, contudo, não me era nada favorável. Eu
havia caído, como um patinho, na brincadeira da Rádio Record. E aquilo me contrariava, talvez
ainda mais do que aquela suposta goleada.
Naquela época, os meios de comunicação não funcionavam como funcionam hoje. Por
isso, tive que dormir com aquela dúvida.
O jornal “A Gazeta Esportiva”, editado no fim do domingo, chegava a Marília na
segunda-feira, no trem das 11 horas, levando tudo sobre os acontecimentos esportivos do fim de
semana. Naquele dia, na última página, quase inteira, em letras garrafais, lia-se mais ou menos o
seguinte:
“JOGO DO COMBINADO SÃO PAULO/BANGU POR CONTA DA RÁDIO
RECORD E POR CONTA DO DIA 1º DE ABRIL”.
PRÓXIMA PARADA: TORRINHA
Minha mãe ia sempre a Campinas para tratamento de saúde com o dr. Armando Rocha
Brito Filho, o dr. Armandinho.
Em abril de 1951 ela esteve lá por um tempo maior do que o habitual. Meu pai a deixou
lá e voltou para casa, em Marília, dizendo que ela iria precisar de mais dinheiro. Seria necessário
levá-lo, uma vez que naquela época não se dispunha de nenhuma das facilidades que temos hoje
para a transferência de dinheiro. Se existia alguma maneira, nós simplesmente a desconhecíamos e
não a usávamos.
Meu pai sugeriu que eu fizesse um passeio até Campinas, para levar o dinheiro. Sendo o
dia 21 um sábado, e sendo feriado, eu não teria aula naquele dia e poderia dispor de dois dias
consecutivos para a viagem. Como já fizesse frio durante as noites, disse-me que levasse a sua
capa de gabardina, daquelas que tinham um lado para o frio e o outro para a chuva. Ela era grande
para mim, mas como se destinava a me agasalhar apenas à noite, durante a viagem, tanto na ida
como na volta, ninguém iria perceber que “o defunto era maior”.
Não me lembro como foi a viagem de ida, mas cheguei lá, pela manhã. E entrei numa
lanchonete para tomar o primeiro CRUSH da minha vida. Sempre ouvia a propaganda pelo rádio,
mas aquele refrigerante de laranja ainda não havia chegado a Marília. Se eu e você nos
encontrarmos algum dia, e se você quiser, prometo que vou cantar a musiquinha da propaganda.
Combinado? À tarde, fui ver o clássico campineiro: Guarani x Ponte Preta, no estádio antigo do
Guarani. Aconteceu um empate: 1 a 1.
O resto daqueles dois dias ficou no esquecimento. A luz da minha memória se acende
novamente no começo da noite do domingo, quando minha mãe me acompanhou até a estação de
trem. Despedimo-nos e eu entrei. Andando pela plataforma da estação, lembro-me de duas placas,
uma em cada extremidade, cada uma delas com uma seta. Num dos extremos da estação, a placa
dizia: São Paulo. No outro, dizia: Interior. Ora, pensei eu, aqui já não é o interior?
O trem chegou às sete e meia, rigorosamente no horário, fato mais do que habitual e
corriqueiro naquela época. Não havia muita gente. Entrei tranqüilo, capa de gabardina dobrada
num dos braços. Não me lembro de nada sobre mala ou sacola. Não tive nenhuma dificuldade em
conseguir um lugar. Sentei-me no lado esquerdo, mas não na janela. Já era noite, as luzes do trem
estavam bem acesas e a minha viagem de volta começou.
Lá pelas tantas, percebi que o terceiro banco depois de mim estava virado ao contrário,
como acontecia muitas vezes, e estava ocupado por duas senhoritas. Naquelas posições em que
estávamos, era fácil à jovenzinha que se sentava junto à janela ver-me pela diagonal, por entre as
pessoas que se interpunham entre nós, uma vez que eu me encontrava sentado junto ao corredor.
Se você puder, faça um pequeno desenho para me acompanhar melhor. Não sei dizer se aquelas
pessoas haviam tomado o trem em Campinas, ou se o fizeram antes ou mesmo depois. Eu tinha
apenas 16 anos e ainda não observava certas coisas. Mas o importante é que elas se encontravam
lá e, ainda mais importante, a jovenzinha da janela me olhava. Mas eu não tinha certeza se era
mesmo comigo.
Um senhor de meia idade, sentado à minha esquerda, parecia dormir ou cochilar. Fazia
frio. Era preciso me agasalhar sem que ninguém percebesse que a capa não era minha. Consegui
vesti-la, quase sem me levantar. Braços cruzados, pensativo, às vezes surpreendia a simpática e
atenciosa passageira olhando para o meu lado.
- Ele é bonitinho, você não acha?, disse ela à sua companheira.
Agora, a minha dúvida aumentou. Não poderia ser comigo, pois não me considerava
bonitinho.
Continuaram os olhares, os sorrisos, ainda que discretos, e mais alguns elogios para
alguém que, segundo ela, era “uma gracinha”.
Eu às vezes fingia dormir; outras vezes tentava mesmo dormir. E a paquera continuava,
mas eu ainda não tinha certeza se era comigo.
Em dado momento, ela levantou um pouco mais a cabeça para ter uma visão melhor dos
passageiros, e talvez de mim, dizendo à sua amiga:
- Veja, ele está sentado bem na frente do meu pai.
Como uma coisa que eu não tinha era discrição, olhei para trás de imediato e vi que ali
estava um casal, a mulher junto à janela e o marido atrás de mim.
E a viagem continuava, naquela noite de domingo, 22 de abril de 1951. E a paquera não
cessava. E a minha dúvida não se desfazia.
Pouco depois da meia-noite, o chefe do trem chegou ao nosso vagão anunciando a
próxima parada: Torrinha.
As duas jovenzinhas se levantaram e aquela que paquerava, talvez a mim, aproximou-se
um pouco, inclinou-se para o meu lado, sorriu e disse:
- Boa noite!
Depois, dirigiu-se ao banco que estava atrás de mim e falou:
- Estamos chegando, papai.
Como ela havia dito antes, eu estava sentando na frente dele.
Um cadáver teria entendido que tudo aquilo se referia a mim, mas eu não.
Dirigiram-se os quatro para a saída.
Foi então que o cavalheiro que dormia ao meu lado abriu os olhos e me disse:
- Puxa, que bola aquela menina deu!
- Pra quem?, perguntei inocente.
- Para o senhor, é claro. (Preferiu me chamar de senhor, no lugar de imbecil, como eu
bem merecia).
Imaginem, ele, que dormia!!!
O trem parou em Torrinha e os passageiros desceram.
Livrei-me rapidamente da capa e desci também, mas ela já havia saído da estação.
Voltei, vesti a capa sem muita preocupação com o seu tamanho, sentei-me, cruzei os
braços, fechei os olhos e pensei antes de dormir:
- Sou uma besta!
EM CAMPINAS
Como já disse antes, fui a Campinas pela primeira vez em abril de 1951. Estive lá por
dois dias, tomei CRUSH e assisti ao “derby” campineiro. Conheci um pouco da cidade.
Em julho daquele mesmo ano, aproveitando uma nova ida de minha mãe e aproveitando
as férias, decidiram que eu voltaria a Campinas, desta vez para uma consulta ao dr. Armandinho.
Eu ainda não me convencera de que as minhas taquicardias nada tinham de mais sério, sendo uma
reação natural do meu organismo ao crescimento rápido e desordenado, como me garantia o dr.
Oswaldo Salvestro, em Marília.
Chegamos lá por volta da metade do mês e nos instalamos numa modesta pensão, numa
das primeiras travessas da Rua Andrade Neves. Proprietárias bastante simpáticas, duas moças
agradáveis e acolhedoras nos cercavam de atenção e gentilezas. Não guardei seus nomes, mas as
tenho em fotografias, num branco e preto de muito boa qualidade. No dia em que nos
encontrarmos para que eu cante a musiquinha da CRUSH, conforme já combinamos na crônica
anterior, aproveito o embalo e mostro as fotos, certo?
Entre os hóspedes, três ou quatro rapazes vindos dos mais variados cantos deste país, à
procura de um bom tratamento para os olhos. Um deles, mais antigo na pensão, adquirira o hábito
de andar de bonde, sem pagar. Ficava sempre no estribo e na hora de acertar as contas com o
cobrador, (os cariocas dizem trocador, mas eu nunca soube o que eles trocam) nessa hora ele
pulava, sob quaisquer circunstâncias. Havia já economizado alguns trocados, mas exibia arranhões
e ferimentos por todos os lados, já que as quedas eram freqüentes. Nas horas vagas, que não eram
poucas, passeávamos por lá, inclusive na lagoa do Taquaral, naquela época um lugar bastante
isolado e deserto. Tenho fotografias desses passeios. Se você quiser, poderei mostrá-las também.
Negócio fechado quanto a isso, vamos em frente.
O dr. Armandinho, filho do dr. Armando Rocha Brito, nos atendia na Beneficência
Portuguesa. Nunca me preocupei em saber qual era a especialidade dele, mas, como cuidava da
minha mãe, devia entender mais sobre os males femininos do que de qualquer outra coisa. E lá
fomos nós, inclusive eu, um rapazote a caminho dos 17 anos, magro, alto, espinhas pelo rosto,
acho que feio, esperando que ele pudesse me curar daquele mal “terrível” que, segundo eu
imaginava, poderia me matar a qualquer instante.
Minha mãe entrou primeiro, em companhia de meu pai. Fiquei esperando do lado de
fora. Algum tempo depois, a porta se abriu e me chamaram. Entrei. À minha frente, um homem de
branco, estetoscópio pendurado no pescoço, com toda a pinta de um bom médico, mas que de
Armandinho não tinha nada. Era alto e forte. Talvez mais de 1,90m de altura, não sei quanto de
circunferência por 97 quilos e algumas gramas, segundo as minhas primeiras estimativas. Impunha
respeito e inspirava confiança. Sentei-me e lhe contei a história da minha “doença”. Ouviu-me
sério e atento. Depois dos exames de rotina, falou-me bastante daquelas coisas que o dr. Oswaldo
já havia falado, lá em Marília. Em seguida, pediu aos meus pais que deixassem a sala.
Agora, vamos falar de homem para homem, disse-me ele.
- Epa!, pensei eu, um tanto assustado.
Eu sabia que havia crescido, mas aquela era a primeira vez que me consideravam um
homem. Percebi mais tarde que a primeira etapa da minha “cura” acontecera naquele instante.
Falou-me bastante sobre o que acontecia comigo e me fez várias perguntas, que
classifiquei como indiscretas, mesmo considerando que ali estavam dois “homens” e que um deles
era um médico. Depois, olhou-me sério e me garantiu:
- Nunca prometi cura à sua mãe, mas a sua eu garanto. Ficará bom em pouco tempo.
Você vai tomar essas pílulas (escreveu na receita) e vamos começar com uma injeçãozinha. Posso
garantir que será doída e que muitos dos seus pecados ficarão aqui, já. Prepare-se.
Fomos para uma outra sala, onde ele mesmo preparou e me aplicou a prometida injeção,
no braço esquerdo, de baixo para cima, sem golpe e sem piedade, simplesmente encostando a
ponta da agulha e pressionando-a no sentido do ombro. Deu pra sentir? Doeu bastante, como ele
prometera, mas agüentei firme. Afinal, Marília ganhava mais um homem, que surgia ali, naquele
instante.
Nas duas semanas seguintes ficamos por lá, minha mãe e eu. Voltei ao médico mais uma
ou duas vezes. Não me lembro se teve mais injeção e mais remédio. O fato é que fiquei “curado”,
embora as taquicardias ainda acontecessem por algum tempo, sem me assustarem no entanto.
Sarei muito menos por obra dos medicamentos e muito mais pela força psicológica que aquele
médico exercera sobre mim. Embora ele falasse baixo, posso jurar que sarei “no grito”.
Fomos conhecer o Castelo, naquela época bastante longe da cidade, num lugar então
deserto, com todos os tipos de capim por todos os lados. Tenho fotos. Já sei, não se preocupe,
mostro depois.
No último sábado de julho, 1951, eu e os rapazes fomos ao cinema. Não me lembro do
filme, mas foi no Cine Rink, que, 40 dias depois, desabou numa tarde de domingo, setembro,
ferindo dezenas de crianças, muitas das quais de maneira fatal.
No dia 31, último dia das minhas férias, voltamos para casa, quase esquecendo numa das
gavetas uma penca de banana nanica que havíamos comprado alguns dias antes e que agora estava
bem pintadinha.
Cheguei radiante e feliz. Afinal, o meu coração não iria me matar tão cedo! Agora, era
pensar na escola, na vida e no futuro. Mais que tudo isso, agora era esperar pela minha primeira
namorada. Quando chegaria? Como seria ela? Eu ansiava por ela. Eu sonhava com ela. Eu pedia a
Deus por ela. Quer saber como foi? Espero que você possa continuar lendo. Essa história vem em
seguida.
O MEU PRIMEIRO AMOR
O dia 9 de dezembro de 1951 foi um domingo de bastante sol e calor na minha
encantadora Marília. Na véspera, dia 8, comemorava-se a Imaculada Conceição, mas, naquele ano,
aproveitou-se o domingo para festejá-la.
Bastante gente na igreja. Inúmeras pessoas vieram das cidades vizinhas. Missas,
reuniões, confraternização, jogos. Foi um dia festivo, alegre e diferente. Depois, cada um para a
sua casa.
No começo da noite, mas ainda sob o sol do horário de verão, fui para o centro da cidade,
como religiosamente acontecia todos os domingos. Mas, também como era hábito, dei uma
passadinha lá pelos lados da igreja. Sempre havia alguns amigos por lá. Entre eles, já na sala de
visitas da Casa Paroquial, encontrei a Madalena, uma filha-de-Maria, minha amiga.
- Você conheceu alguém em especial, hoje?, perguntou-me.
- Não, respondi surpreso. Por quê?
Um tanto confusa, parecia não saber o que dizer, nem como dizer.
- Bem, acontece que houve alguém que ficou conhecendo você. Mas parece que você não
olhou para ela um só instante. Estava sempre atento às cerimônias, na igreja. Ela olhou para você
o tempo todo.
- Puxa, não diga! Não percebi isso.
- Pois é, não percebeu mesmo.
- Mas... e agora?, perguntei.
- Deixou nome e endereço comigo, e gostaria muito que você escrevesse para ela.
E, sem consultar qualquer papel, informou-me: Aparecida Soldeira de Andrade, Caixa
Postal 179, Vera Cruz.
É bom você anotar, insistiu ela.
- Não precisa, não vou esquecer.
- Não esqueça mesmo. Ela insistiu bastante para que você escreva.
Mal sabia a Madalena, e eu também, que não iria esquecer aquele nome e aquele
endereço, não apenas nos dias seguintes, mas também pelo menos nos 47 anos que viriam depois.
Dia seguinte, uma segunda-feira de “ressaca”, pelas festividades, ao voltar da cidade
passei pela Livraria e Papelaria Brasil, na esquina da Rua Cel. Galdino com a 24 de Dezembro,
aquela mesma livraria onde, algum tempo antes, eu havia comprado os primeiros romances de A.
J. Cronin, que ainda estão comigo.
- Quero papel para carta, desses especiais e bem bonitos.
Era um papel de excelente qualidade, com um filete azul em todas as bordas, tanto do
papel quanto do envelope.
Lembro-me bem de quase toda a carta. Começava assim: “Aparecida, sequer sei como
iniciar, uma vez que estou escrevendo para alguém que não conheço, que jamais vi. Contudo, você
me pareceu tão amável e gentil comigo que não tive como deixar de atender ao seu pedido e de
satisfazer à minha curiosidade...”.
E a minha carta seguiu para Vera Cruz.
Esperei ansiosamente pelo “resultado”. Dividi essa ansiedade com minha mãe. Na sextafeira daquela mesma semana, quando cheguei para o almoço (não me lembro de onde eu vinha,
mas parece que nunca estava em casa), perguntei:
- Alguma carta para mim?
- Não.
Chateado, sentei-me para almoçar. Mas, ao virar o prato, lá estava ele, o tão esperado
envelope.
Almocei calmamente e escovei-me os dentes, sem pressa. Fui para o quarto. Sentado na
cama, abri o envelope. Uma fotografia caiu no chão, virada para baixo. Li calmamente.
Emocionado e surpreso. Havia uma mulher bastante apaixonada por mim. Era uma sensação nova
e fascinante. Peguei o retrato. Pareceu-me uma mulher feita, além de encantadoramente linda. Fui
às núvens, embora estas não andassem por lá, naquele dia. Minhas orações haviam sido atendidas
e, agora, surgia alguém só para mim. Mas me parecia muito além do pedido e da expectativa. Li a
carta para minha mãe, que lavava a louça do almoço, e mostrei-lhe a foto. Mais um mês e eu teria
17 anos completos.
Carta vai, carta vem. E, mesmo sem tê-la visto, sentia que a amava. Era tudo muito lindo
e gostoso.
Até que, na quinta-feira, dia 20, escrevi anunciando a minha ida a Vera Cruz para o dia
23. Pela experiência dos últimos dias, calculei que a carta seria recebida no sábado.
Almocei bem cedo naquele domingo, 23 de dezembro de 195l. Sol quente. Vesti um
terno de linho branco e caprichei no nó da gravata da qual mais gostava. Tinha uns desenhos em
losango, na vertical, e, entre as cores, sobressaia-se o amarelo. Fiz-me, portanto, elegante, como
era hábito naquela época, e tomei o trem das 11 e 40. Foram apenas 20 minutos para vencer os 12
quilômetros que me separavam de Vera Cruz. Mas foi uma viagem longa, demasiadamente longa.
Ao meio-dia, o trem chegou, e parou, comigo já na escadinha do vagão. Alguns desciam.
Outros subiam. Entre eles, procurei uma jovem que correspondesse à fotografia e que deveria estar
acompanhada por uma moça de longas tranças (que se chamava Wanda), como me havia sido dito
na última carta que eu recebera, e na qual me informava que, confirmada a minha ida, estaria na
estação ao meio-dia, com aquela amiga. Mas nada. Andando pela estação, entre as pessoas, no
sentido Marília-Vera Cruz, vi uma jovem morena, de cabelos castanhos escuros,
excepcionalmente linda, um tanto diferente da fotografia que me fora enviada, dando a mão para
uma criança de seis ou sete anos. Cumprimentou-me, sorrindo levemente. Parei na extremidade da
plataforma. O trem partiu e as últimas pessoas já saiam. Caminhei no sentido Vera Cruz-Marília.
Ninguém mais na estação, a não ser eu, aquela moça bonita e aquela criança. A minha Aparecida
não havia “aparecido”. Cheguei à extremidade oposta da estação, tendo antes passado por ela, que
me acenou levemente com a cabeça, sorrindo. Seria ela? Mas por que a Wanda não fora? Não, não
podia ser ela; era muito para mim. Tinha havido um desencontro, pensei eu. Talvez não tivesse
recebido a minha carta, mas, nesse caso, por que fora à estação, se é que era ela? Por todos esses
motivos, não podia ser a Aparecida quem estava lá. Parei. Ela ia andando devagar para fora da
estação, protegida por uma sombrinha colorida. Andei em sua direção. Vez por outra, ela olhava
para trás. Devia ter ouvido o meu andar nas pedrinhas que recobriam o terreno da estação, porque,
em dado momento, parou, no exato instante em que cheguei.
- Por favor, você é...
Tombando a sombrinha para trás, sobre um dos ombros, e expondo-se ao sol, não me
deixou concluir a pergunta.
- Sim, sou eu, disse meigamente.
Cumprimentamo-nos. E conversamos por alguns instantes sob o sol quente do meio-dia.
Ela não recebera a minha carta, que só chegou no dia seguinte. Mas fora à estação porque
esperava uma tia que deveria chegar de Oswaldo Cruz. No lugar dela, surpresa, chegara eu. Virame de longe, ao ir chegando, na escadinha do vagão.
...
Foram alguns meses inesquecíveis. Domingo sim, domingo não, lá ia eu para Vera Cruz,
visitar a Doca, como era conhecida entre familiares e amigos.
Mas não tive como sustentar aquele romance. A cada 15 dias, eu mal conseguia juntar
três cruzeiros para a passagem de ida e volta. Ia no trem das 11 e 40 e voltava no das 8 e 25.
Achávamos pouco. Era um desperdício perder boa parte de uma noite de domingo.
Muitos rapazes de Marília tinham namorada em Vera Cruz. Reuniam-se três ou quatro e
acertavam a ida de um “carro de praça”, que lá chegava às dez da noite. E me convidaram para
participar, mas isso custava o dinheiro que eu não tinha. Só uma vez consegui voltar com eles.
Além disso, o número de rapazes era incerto, o que poderia elevar muito a parte que me cabia na
despesa. Também poderia acontecer que eu me achasse sozinho e, nesse caso, teria de voltar no
próximo trem, às 3 e 20 da madrugada.
Por outro lado, tive que enfrentar uma pressão muito forte de minha mãe. Ela via a
minha primeira namorada como uma moça feita - e era; tinha ela 19 anos -, pronta para o
casamento, enquanto eu não passava de um jovenzinho imberbe, de 17 anos, com uma estimativa
de oito anos de estudos pela frente.
- Você irá prendê-la por pelo menos oito anos, disse-me minha mãe, sem a certeza de
que, depois, irá se casar com ela. Isso não se faz.
Por isso, tive que ceder às pressões e às circunstâncias. E foi assim que, numa noite triste
de um domingo, no primeiro semestre de 1952, trocamos as nossas cartas e, chorando ambos, deilhe as costas nas proximidades da estação de Vera Cruz, onde eu iria tomar o trem das 8,25h, para
não mais voltar. (continua).
PASSAGEM DE IDA E VOLTA
Andei apressado até a estação, mesmo porque o trem já estava lá.
Enquanto andava, procurei a passagem de volta, mas nada. Examinei todos os bolsos,
cada vez mais afobado, mas não a encontrei.
Era obrigatório que se mostrasse a passagem ao porteiro, que a picotava com uma
espécie de alicate. A passagem de ida e volta era um cartãozinho de seis centímetros por três, ou
algo parecido, verde na parte correspondente à ida e vermelho na parte que correspondia à volta,
no caso da segunda classe. Portanto, o que eu deveria ter num dos meus bolsos era um cartãozinho
vermelho, quadrado, três por três, mais ou menos. Mas ele sumira.
Ocorre que eu só tinha um cruzeiro no bolso. Uma passagem de ida e volta, Marília-Vera
Cruz, custava três cruzeiros, mas a passagem só de ida (no meu caso, volta) custava dois cruzeiros,
ou quase isso. Portanto, eu me encontrava numa bela enrascada.
Por sorte, a estação de Vera Cruz não era fechada por qualquer muro ou cerca. Não
pensei muito. Dei a volta por fora e corri para o trem, que já ia saindo. Sentei-me esbaforido.
Tinha um sério problema a resolver: a passagem. Antes que chegasse a Marília, o chefe do trem
chegaria e eu não tinha nem a passagem e nem o dinheiro para pagá-la no próprio trem, como
acontecia por vezes com algumas pessoas. Examinei os bolsos mais uma vez. Nada. De repente,
uma idéia que me pareceu genial. Entre Vera Cruz e Marília havia uma parada do trem: Lacio. Eu
desceria rápido e iria comprar uma passagem de ida até Marília. Nesse caso, aquele cruzeiro que
eu tinha deveria ser suficiente. A Estrada de Ferro não seria lesada porque, afinal de contas, a
passagem perdida havia sido paga. Por dez minutos fiquei tranqüilo. O trem ia se aproximando de
Lacio e eu já estava na escadinha. Parou. Andei o mais rápido que me foi possível, entre as várias
pessoas que lá estavam. Com o dinheiro na mão, cheguei ao guichê, mas, desagradabilíssima
surpresa: já havia sido fechado, mesmo porque o trem já dera o primeiro apito. Voltei para ele,
com o meu problema ainda não solucionado.
Nas mãos, as cartas que eu havia mandado para a Doca, nos últimos meses, e que me
haviam sido devolvidas menos de meia hora antes. Nunca me senti tão católico e tão fervoroso
como naqueles instantes. Deus e todos os santos eram invocados repetidamente. Minha única
saída seria o trem chegar na plataforma da estação de Marília antes que o chefe me pedisse a
passagem. Em condições normais, teria sido fácil. Bastaria esperar que o chefe chegasse,
apresentar-lhe um cruzeiro - o único que eu tinha - dizendo que havia tomado o trem em Lacio.
Uma mentirinha de nada. Mas eu não me encontrava emocionalmente equilibrado. Havia rompido
um namoro, muito contra a minha vontade. Por isso, fiquei apenas na “torcida”. Nunca o trem
andou tão devagar e nunca o chefe do trem foi tão eficiente, como mostro a seguir.
Era hábito, antes das estações mais importantes, como era o caso de Marília, picotar
todas as passagens. Nos demais casos, só pediam a passagem daqueles que iam descer.
O chefe do trem entrou no meu vagão. Como eu não via luzes, percebi que ainda
estávamos longe. Levantei-me e fui para o vagão de trás. Mais alguns minutinhos e lá estava ele,
verificando e picotando a passagem de todos. Levantei-me e, pela segunda vez, andei para o vagão
de trás. Mas o vagão de trás não existia; o trem acabava ali. Eu estava agora no último vagão, o
chefe do trem ia chegando, mas já se viam as luzes da estação de Marília. Fiquei na plataforma do
vagão, perto daquela lanterna vermelha que todos os trens carregam. Algumas pessoas estavam lá,
mas, com certeza, cada uma delas tinha a sua passagem. O único aflito era eu. Estávamos nos
aproximando da estação e o trem diminuira a sua velocidade. Como eu estava no fim do trem, é
claro que seria o último a chegar. O chefe abriu a porta de vidro que dava acesso ao lugar onde eu
estava e começou a verificar as passagens daquelas últimas pessoas. Fui para um dos degraus da
escadinha. Chegamos à plataforma da estação, mas o trem ainda estava em movimento.
- Desculpe-me, sr. chefe do trem, mas até a próxima, pensei eu.
E saltei. Não caí, mas por bem pouco. “Pererequei” bastante antes de me reequilibrar e
saí às pressas da estação, como se o chefe do trem estivesse atrás de mim.
Faltavam 15 minutos para as 9 da noite. Andei triste até minha casa, atravessando
aquelas ruas quase vazias, naquele domingo que se acabava.
Minha mãe ouvia rádio na sala, enquanto fazia o seu crochê. Literalmente falando, joguei
as cartas sobre a mesa e fui à cozinha para tomar água. Voltei. Ela parara com o crochê e olhava
para as cartas que eu havia enviado para a Doca e que agora estavam ali.
- O que aconteceu?, perguntou-me tranqüila.
- O que a senhora queria, respondi, já chorando.
Ela respirou fundo. Já estava acostumada com coisas daquele tipo. Tinha um monte de
filhos.
- Não precisava ser assim, desse jeito e tão rápido, ponderou-me.
- Se tinha que ser, por que esperar?
E fui dormir. Não me lembro como foi aquela noite. Deve ter sido terrível.
No dia seguinte, a escola continuava e, mais importante que isso, a vida continuava.
Lembro-me quão difícil foi assistir às aulas nos dias que se seguiram.
O meu primeiro amor fora marcante, inesquecível. Tão inesquecível que falo dele ainda
hoje, decorridos 46 anos. Aliás, dizem - e muito sabiamente - que o primeiro amor nunca se
esquece. Sempre como algo especialmente lindo, que merece ser lembrado mas que não precisa
necessariamente ser revivido, ainda que fosse possível.
Talvez prevendo isso, e entendendo isso, alguns meses depois fiz o fogo que ardia no
fogão à lenha da minha casa queimar as minhas cartas, uma a uma, transformando-as em cinzas e
sepultando um amor, mas respeitando uma saudade.
NO COLÉGIO ESTADUAL
Tenho à minha frente um documento de grande importância histórica para mim. É o
convite para a minha formatura no Ginásio, no Colégio Estadual e Escola Normal de Marília,
formatura que se deu no dia 19 de dezembro de 1951, às 19.30h, no salão nobre da escola. O
convite não diz, mas me lembro que foi numa quarta-feira.
Posso lhe garantir que, nesses 48 anos, esta é a primeira vez que o tenho nas mãos, pelo
menos examinando-o de perto, centímetro por centímetro, e abrindo o meu coração e a minha
alma para abrigarem as recordações e as saudades que ele me inspira e transmite. Esse convite é a
síntese de quatro anos maravilhosos, muito bem vividos.
Abrindo-o, no lado esquerdo, uma relação dos 17 professores homenageados, com
destaque para o nosso paraninfo, o prof. dr. Miguel de Souza e Silva, e com a proeminência, não
no convite mas no meu coração, de dona Esmeralda Peregrino da Silva, aquela que escreveu o seu
nome na minha vida, por ter sido uma professora bastante além do comum. A seguir, o inspetor,
dr. Benjamim Ribeiro de Castro; a diretora, dona Norma Bambini; o vice-diretor, Arduino Luiz
Dal Pian; o secretário, Isaltino de Campos; a orientadora educacional, Lavinia de Almeida; e a
homenagem póstuma a Amílcare Bruno Mattei, ex-diretor.
Ao centro, os dizeres do convite e o programa. Às 8h, missa em ação de graças na Igreja
Matriz de São Bento, que foi celebrada pelo nosso professor de Latim, pe. Luiz Otávio Bicudo de
Almeida. Às 19.30h , sessão solene de entrega dos certificados, no salão nobre do colégio.
No lado direito do convite, a relação dos formandos. Curiosamente dispostos, apresenta à
esquerda 45 nomes femininos, começando no alto com o nome mais longo e terminando embaixo,
com o mais curto. À direita, 31 nomes masculinos, começando com o nome mais curto e
terminando com o mais longo. Além dos 31 nomes masculinos, todos da minha turma, a 4ª série
B, havia algumas meninas que também estavam comigo. Há alguns nomes que eu não consigo
associar à sua figura física. Por outro lado, noto a ausência de alguns que ficaram na minha
memória, mas que não aparecem no convite, não sei dizer por quê. De qualquer maneira, é
emocionante reler os seus nomes e senti-los bem perto, como se estivessem aqui neste momento, a
exibir-me, cada um deles, o seu traço mais marcante de personalidade.
Num cartão em separado, o convite para o baile, naquela mesma noite, no Marília Tênis
Clube. Não diz a hora, mas exige traje a rigor para as damas e azul ou branco para os cavalheiros.
Minha madrinha foi a Djanira Saraiva, amiga, vizinha e colega de escola. Foi ela quem
fez a entrega do meu certificado, mas não poderia ir ao baile. Havíamos providenciado a sua
substituta. Foi a Maria de Lourdes Sobie, a Lola, que trabalhava na secretaria da escola. Falamos
com ela, que encarou a responsabilidade, embora eu não desse certeza de que iria. De qualquer
maneira, ela estaria lá, para dançar a valsa comigo. Sabe quem era a nossa Lola? Miss Marília!
Não sei por que não fui ao baile e não dancei com a Miss Marília. Pode?
Tudo havia começado no segundo semestre de 1947, no curso de admissão de dona
Emerita, na Rua Ipiranga, 169. Lá nos encontramos, entre outros, o Paulo César Giometti, o Édson
Artenzio Muzy e eu. Parece-me que o Aleckcey Kireeff também estava conosco. Enfrentamos
dona Berta nos exames de admissão, mas, vencido aquele dificílimo obstáculo, estávamos firmes
na 1ª série, às voltas com o Latim e o Espanhol de dona Hilda Scarabotollo, com o Português de
dona Esmeralda, com o Francês de dona Rosinha, com a História de dona Regina, com a
Geografia do prof. Paccola, com a Matemática do prof. Gandur, com o Desenho do prof. Miguel,
com o Canto Orfeônico do prof. Tristão e com a Educação Física do prof. Dal Pian. Na 2ª série
chegou o Inglês de dona Norma e o Latim, não mais de dona Hilda, mas do pe. Bicudo. Na 3ª
série, Ciências, com dona Dirce Belluzo. Aconteceram várias mudanças de professores,
principalmente de Matemática, onde tivemos dona Amália, dona Alzira e o prof. José Antônio M.
Campos, o “expressinho”.
A história dos bilhetinhos nas carteiras já foi contada antes.
Eram freqüentes as comemorações. A Semana da Pátria, com o desfile do 7 de Setembro,
o Dia da Bandeira, o dia do Pan-americanismo e várias outras. Tudo era motivo para a turma se
reunir no salão nobre. Eu estava em todas, algumas vezes com uma participação bem especial.
Sempre havia alguns entreveros de natureza política, principalmente quando se disputava
a diretoria do GLESV (Grêmio Literário e Esportivo Sampaio Vidal).
Tínhamos uma fanfarra, e das boas. Por obra e arte do Teruel, participei dela como titular
de um meio-surdo. Ensaiávamos bastante e éramos realmente bons naquilo.
O Colégio Estadual e Escola Normal de Marília, a mais importante instituição de ensino
da cidade naquela época, constituía-se, por isso mesmo, numa elite intelectual. Ser professor de lá
não era fácil e impunha respeito; ser aluno, o que também não era fácil, causava admiração.
Alguns daqueles com quem convivi já estão com Deus. O prof. Amílcare, ainda naquela
época; dona Dirce Belluzo e pe. Bicudo, algum tempo depois; o Édson A. Musy, que esteve
comigo desde o curso de admissão, em setembro de 1990, num acidente.
Coloco agora o cartão do baile no centro do convite e dobro os seus dois lados, com as
marcas do tempo estampadas no seu papel creme já escurecido, fechando-o como se fecha ou
como se vira uma página da vida. Os nomes de pessoas bastante queridas jazem novamente agora
no seu interior. Não permanecerão ali esquecidos porque foram escritos na minha história e dela
farão parte, enquanto essa história puder ser revivida e puder ser contada.
ANOS DOURADOS
Passada a dificílima fase de adaptação em Marília e tendo entendido um pouco melhor
aquele mundo que me cercava, mas que ainda se mantinha distante de mim, eu estava então em
condições de iniciar o período mais extraordinariamente lindo e feliz da minha existência.
Apenas para fixar bem as idéias, divido a minha vida em quatro períodos. O primeiro vai
desde o meu nascimento na fazenda de café do meu avô Ferdinando, a Fazenda União, que ficava
num lugarejo bem próximo a Oscar Bressane, muito bem conhecido naquela época e naquelas
paragens pelo simpático e sugestivo nome de Água da Panela, até o dia 30 de novembro de 1942,
quando “aportamos” em Marília, “a bordo” de um possante caminhão Ford (ou seria um
Chevrolet?), acho que 37. O segundo período começou naquele dia, para terminar em 31 de
janeiro de 1953, como digo mais adiante, com uma duração exata de dez anos e dois meses. Os
outros dois períodos ficam para depois.
Ao longo desses 122 meses, cresci, aprendi, fiz amigos, consegui alguns que não
gostavam de mim, para não dizer inimigos, fiz-me adolescente e moço, paquerei, fui paquerado,
amei, fui amado, sofri e chorei, mas vivi muito mais feliz do que supunha naquela época. Os
acontecimentos estavam muito próximos de mim para entendê-los como verdadeiras delícias que
eram.
Ali estava apenas o meu mundo, exageradamente pequeno para as minhas ambições. Ali
estavam apenas as ruas tranqüilas de Marília; o sol ardente; o vento tão comum e insinuante do
fim de cada ano; a gente pacata e simples que, aos sábados, ia à cidade para as compras; a
flautinha tão esperada de todas as tardes, anunciando a passagem do vendedor de quebra-queixo; a
buzina do vendedor de miúdos de vaca (ou boi); o som do rádio, que invadia as ruas fazendo-nos
ouvir constantemente Ao Luar, Raios de Sol, Sobre as Ondas, Beguin the beguin, entre tangos e
boleros; a areia fria na frente da minha casa, onde minha irmã Elza e eu jogávamos “jam-quempô”; a peteca, que subia desesperada, sem saber se, na descida, iria de encontro a uma palma rígida
de mão ou se iria se estatelar na água suja que escorria do lado de lá; a bola, que jogávamos nos
campos e nas ruas, algumas vezes arrebentando fios, quebrando vidraças ou rasgando a capota de
alguma charrete; as brincadeiras na rua, bem como as brigas, os socos e os pontapés; as encrencas
com o Luizinho, o terrível filho da calabresa, que morava um pouco mais lá pra baixo; o jogo de
cartas; a novela das oito (no rádio, é claro); as “visitas” a chácaras e quintais, onde, desafiando
cercas, cães e proprietárias contrariadas e “ferozes”, conseguíamos frutas sempre que queríamos; a
busca, enfim, pela aventura, onde quer que ela se encontrasse.
O tempo foi passando e eu fui crescendo. Chegou a época de me transformar num
homenzinho. Espinhas pelo rosto, briga com os cabelos para amoldá-los ao meu gosto, com o uso
do Óleo de Ovo, do Glostora e do Firmentex. As dificuldades com a bexiga e com a urina e o
doloroso e longo tratamento com o dr. Oswaldo Salvestro. As transformações orgânicas, as
taquicardias e o tratamento com o dr. Oswaldo, e depois lá em Campinas, com o dr. Armandinho.
A escola, com o Grupo Escolar, o curso de admissão, o curso ginasial e o primeiro ano do
colegial. O cinema, o circo, os programas de rádio e o futebol. As tardes passadas na piscina do
japonês ou no bosque, um pouco além dela. No bosque, mil aventuras nas águas das cachoeiras,
nas pedras e nos cipós, não faltando por vezes uma visita à cachoeira da b... , simpático nome que
lhe fora dado, devido ao fato de aquela água ser proveniente dos esgotos da cidade.
Mais algum tempo e eis que me vejo um jovenzinho encrenqueiro, mas feliz, embora não
o soubesse. Os ternos, as gravatas, as meias Lobo e os sapatos engraxados. Quase 50 anos depois
eu iria me encontrar com dona Maria, uma vizinha daquele tempo, que me diria docemente acharme bonito e elegante naquela época. A essa elegância associava-se o uso do meu uniforme no
Ginásio do Estado: calça e túnica de brim “caque”, amarelo-palha, algo como a gema dos ovos
que as minhas galinhas põem hoje, sapatos pretos, meias pretas, camisa branca e gravata preta. Foi
um custo aprender a dar o nó, tipo americano, isto é, com laçada dupla. Meu irmão Olívio me
ensinou.
Começaram a aparecer as menininhas, as paqueras, os “flirts”, os primeiros namoros e,
sobretudo, as festinhas de aniversário. Pra variar, lá pela metade do ano e principalmente nos
arredores da cidade, a recitação de um terço em honra de Santo Antônio, ou de seus dois amigos
juninos, seguida de fogos e quentão, o erguer do mastro e um “arrasta-pé”, quase sempre numa
barraca de lona, sobre piso de terra. É claro, não me esqueci, a sanfona e o sanfoneiro.
Não preciso dizer que choro, desde o início, lá atrás.
Vivi o bem e vivi o mal; vivi o bom e vivi o mau; vivi o alegre e vivi o triste; vivi o doce
e vivi o amargo; vivi o certo e vivi a dúvida; mas, embora tivesse experimentado o mal, o mau, o
triste, o amargo e a dúvida, vivi imensamente feliz porque, embora sempre sonhando, não vivi o
passado nem o futuro, mas o presente, que estava ali comigo, fazendo parte de mim como uma
dádiva generosa do generoso Deus que me criou, que me deu uma vida, saúde, energia, alguma
inteligência, disposição para a vida e, sobretudo, fé.
Tive uma infância livre e despreocupada. Que felicidade imensa!. Tive uma juventude
radiosa e feliz. Que ventura extraordinária! Tive amigos e amigas que me amaram muito mais do
que eu a eles. Que deslize injustificável! Tive Marília, a minha inesquecível e amada Marília, que
me concedeu dez anos de alegrias e venturas, sem nunca ter me cobrado um só vintém. Por isso a
amo talvez ainda mais do que ela me tenha amado, enquanto nela vivi.
Mais uma vez, agora preciso chorar. Você gostaria de chorar comigo? O convite está
feito.
O CINE MARÍLIA
Andando pela Av. Sampaio Vidal chegava-se à esquina com a Rua Campos Sales. Ali
erguia-se, com boa dose de majestade, o prédio onde funcionava o cinema mais charmoso da
minha inesquecível Marília. Existiam apenas dois. O outro era o São Luis, na Rua 9 de Julho. No
local do Cine Marília, hoje existe uma agência de um banco.
Eu o descobri em dezembro de 1942, mas se passaram alguns meses até que o visse por
dentro pela primeira vez. Não foi fácil entender o inebriante mistério da técnica que tornava
possível tudo aquilo. Os meus irmãos, mais velhos, mais espertos e mais sabidos do que eu, já
haviam entrado em contacto com aquele mundo inexplicável e maravilhoso. E tentaram me relatar
o que viram, mas era difícil entender.
Nos exatos dez anos que se seguiram, aquele cinema iria viver uma história
particularmente interessante para mim. Dos 8 aos 18 anos, eu estaria com ele, e ele comigo,
ajudando-me a projetar a minha vida, justamente ele, para quem a projeção era fundamental. Com
ele, construí um mundo de sonhos e fantasias, porque os sonhos e as fantasias são indispensáveis
quando se projeta uma vida. Com ele, obtive informações que me permitiriam avaliar essas
fantasias, distinguindo os sonhos da vida dura e real que estava lá fora, além das suas paredes.
Com ele, pratiquei o rir e exercitei o chorar. Enfim, também com ele plasmei uma vida. Se ele
tinha a força da chamada “sétima arte”, que iria atingir o seu pico alguns anos mais tarde, eu tinha
a força da minha infância e da minha juventude. Juntando essas forças, eu deixaria rápido para trás
a criança e o adolescente, para me ver homem, um homem de 18 anos. A vida iria me obrigar a ser
esse homem, bem cedo, infelizmente.
O meu primeiro ídolo no cinema talvez tenha sido o Durango Kid, um personagem
criado por Charles Starret. E veio também o “cowboy” cantor, Roy Rogers. Mas ninguém
superava o Randolph Scott. Os filmes de Tarzan arrebatavam multidões, inclusive a mim, mas o
meu maior ídolo era o Zorro, aquele herói da Califórnia que, com capa e espada, distribuía amor e
praticava a justiça.
E vieram os filmes seriados. Divididos sempre em 15 episódios, lá estava eu todas as
terças-feiras. O mais difícil era conseguir um cruzeiro para o ingresso. Para quem quiser fazer uma
avaliação, informo que um quilo de alcatra custava sete cruzeiros. Barato o cinema, não? Mas isso
era meia-entrada, na segunda e na terça-feira. Nas outras noites era mais caro, chegando a quatro
(dois, para a meia-entrada) no sábado.
O “perfil” cinematográfico era bem definido, observando-se que não havia público para
que um filme fosse exibido mais de uma vez, ficando a única exceção por conta dos filmes de
Tarzan. Mas as sessões, pelo menos as das 7,15h, estavam sempre cheias. Segunda-feira, policial.
Terça-feira, acompanhando o seriado, um “western” ou um outro policial, ou ainda uma pequena
comédia. Na quarta-feira, sempre o melhor filme da semana. Na quinta havia variações, mas, em
geral, um filme de aventuras, colorido. Na sexta-feira, o outro seriado, que eu nunca
acompanhava, e um filme “médio”, como, por exemplo, os filmes mexicanos. No sábado,
geralmente um filme de aventuras, a cores, como aqueles das quintas-feiras. Filmes de terror, ou
suspense, ou ainda do Zorro, apareciam também sempre aos sábados. Domingo à tarde havia de
tudo para a criançada. Poucas vezes fui, porque a algazarra era muita. À noite, hora e vez dos
musicais.
De segunda a sábado, depois das três da tarde, religiosamente, era distribuída a
propaganda pelas principais ruas da cidade, num impresso simples mas atraente, acho que no
formato 21x30.
HOJE-Cine Marília, sessões às 19,15 e 21,15h-Cine São Luis, sessão única às 20h-HOJE
1Jornal da tela – atualidades
2Um pato em apuros, desenho animado
3Stan Laurel e Oliver Hardy na engraçadíssima comédia Dois Palermas
em Oxford (eram impressas as caretas do Gordo e do Magro)
4-
Mais um episódio do eletrizante seriado Os Tambores de Fu-man-chu
NÃO PERCAM
Eu tinha um lugar aproximadamente certo para me sentar. Entrando pelo corredor do
lado esquerdo, logo depois do corredor transversal, segunda ou terceira fileira, bem no meio. Nas
proximidades, o prof. Tristão, meu professor de Canto Orfeônico no Colégio Estadual, com sua
esposa, seu filho, seu chapéu, sua gravata-borboleta e sua bengala. Entrando pelo mesmo corredor,
à direita e junto à parede de trás, lá estava sempre ela, dona Norma Bambini, filha do gerente do
cinema, mas – mais importante – minha professora de Inglês no Colégio do Estado e, mais tarde,
diretora.
E lá vinha o Darci, que vendia balas, bombons e chocolates, todo uniformizado. Na
escola, era o mesmo Darci, meu colega de turma, mas nos campos de futebol era o “bolostroca”,
apelido que herdara de um jogador profissional do São Bento. Ambos tinham a mesma cor da
embalagem do chocolate “Diamante Negro”, que o Darci vendia. Jamais comprei dele uma bala
sequer. Como disse, conseguir um cruzeiro para a entrada já era “duro” (difícil) o suficiente.
Lá na frente, publicidade.
Sempre duas sessões, uma às 7,15h e a outra às 9,15h. Às sete e cinco, mais ou menos,
saia a publicidade, do comércio local, e projetavam trechos dos próximos filmes. Depois, fechavase uma deslumbrante cortina vermelha, em veludo, ondulada. Cinco minutos depois começava o
intermitente soar do gongo e, acompanhando-o, as luzes iam lentamente se apagando, enquanto a
cortina se afastava, metade de cada lado. Apagada a última lâmpada, começava um outro mundo.
Era um cerimonial muito bonito; para mim, até comovente.
No fim das sessões, enquanto o público saia e a cortina vermelha se fechava, ouviam-se
músicas. Impossível reproduzi-las aqui, mas “Quantas são” e “Despedida de Mangueira” eram
infalíveis e ficariam para sempre na minha memória e na minha saudade.
Quinze anos de idade e uma decisão: já sou grande; chega desses filminhos bobos.
A partir daí, ia ao cinema quase só às quartas-feiras, mas nem todas, é claro. Na primeira
delas, “A grande valsa”, sobre a vida de Strauss. Depois, os outros, quase sempre um dos clássicos
de Hollywood. Quarta-feira era o dia do melhor filme da semana, como eu disse antes.
Na escola, eu não era o mais inteligente, mas, embora não fosse o mais bem comportado,
era um dos mais estudiosos e aplicados. Por isso, eu nunca precisava estudar na última hora. O
Cine Marília era testemunha daquilo. Às vésperas dos exames, os alunos do Colégio Estadual
desapareciam de lá. Mas eu continuava; como o Darci, que precisava vender os seus chocolates;
como o prof. Tristão, que se preocupava com o entretenimento para esposa e filho; como dona
Norma, a minha simpática e amável professora de Inglês, de pele alva, cabelos castanhos e dois
lindos olhos verdes e brilhantes.
Um instante, por favor, agora preciso chorar.
MINHA DOCE MARÍLIA
Deus não me concedeu a alegria e o privilégio de nascer dentro dos seus limites, mas
teve a gentileza de me levar para lá, aos oito anos, e de permitir que lá eu crescesse e que lá me
desenvolvesse física e mentalmente, definindo a minha personalidade sob aquele sol escaldante e
ao sabor daqueles ventos que, de outubro a fevereiro, costumavam varrer a cidade, ao mesmo
tempo em que balançavam com alegria os galhos das árvores, geometricamente dispostas ao longo
de ruas, praças e avenidas.
Encontrei-me com Marília no fim de 1942, quase às vésperas do meu oitavo aniversário,
trazendo comigo o meu pequeno mundo, a minha formação européia, que já começara inabalável e
firme, e, sobretudo, o meu sotaque, típico de um descendente de italianos que somente agora saia
do seu berço, ou do seu ninho, para entrar em contacto - rude e implacável - com um novo mundo,
povoado de pessoas em tudo diferentes daquilo que eu conhecia. Foi um choque tremendo e
solitário, porque ninguém, em casa, tomou conhecimento dele, como ninguém se prontificou a me
ajudar, se é que tinha condição de fazê-lo. Essa etapa, como tantas outras, tive que enfrentar e
vencer sozinho. Já foi relatada em outras crônicas e representa o lado amargo, e passageiro, da
minha estada entre aqueles que lá viviam, marilienses ou não.
Mas havia o lado bom e doce, para não ficar apenas com o inebriante e o inesquecível,
lado que estaria constantemente exposto a mim, ao longo daqueles dez anos, quando a criança, que
havia chegado em cima de um caminhão, foi sendo aos poucos substituída pelo moço inexperiente
de 18 anos que viria depois. Aquele moço, na noite de 31 de janeiro de 1953, tomou o trem para
chegar à vida, imaginando que ela seria a verdadeira e pensando que seria possível esquecer
aqueles tempos de sonhos e de fantasias, não tendo ainda consciência de que, a partir daqueles
sonhos e daquelas fantasias, seria possível construir toda uma existência.
Marília é linda! Talvez não seja tão urbanisticamente linda como tantas outras cidades
que conheci depois. Mas é certo que permaneci fiel a essa paixão, vendo beleza onde talvez ela
realmente não exista, mas vendo encanto e poesia em todos os lugares, em todas as ruas, em todas
as praças, em todas as árvores e em todas as flores, porque esse encanto e essa poesia não nascem
com as plantas nem surgem com as flores, mas brotam da alma, a partir da vivência desta com as
pessoas e com os fatos, pessoas e fatos que têm o poder quase mágico de dar vida e alegria a tudo
que vemos e a tudo que nos cerca.
Pelas ruas de Marília caminhei em busca do saber, principalmente pela Av. Rio Branco,
que me levava à escola. Pelas ruas de Marília caminhei em busca da fé, principalmente por
aquelas que me levavam à Igreja. Pelas ruas de Marília caminhei em busca da cultura e do
entretenimento, principalmente pela Cel. Galdino e pela Sampaio Vidal, que me levavam à
biblioteca, ao cinema ou ao circo. Pelas ruas de Marília caminhei em busca do amor, mas por
todas elas, porque qualquer uma poderia me levar a ele, sem saber que, nesse caso, elas, em vez de
me levarem, haveriam de me trazer o amor, como relato em outra passagem.
As ruas de Marília, que coisa linda e que coisa mágica! Permitiam-me andar, andar e
sonhar à luz do dia, sob o sol quente de dezembro ou mesmo de julho, sentindo quase sempre o
vento que me despenteava os cabelos ou a aragem tranqüila e despretensiosa que mal conseguia
sussurrar aos meus ouvidos. As ruas e as estradas, as que chegavam e as que saiam. Na direção de
Lins, a estrada arenosa que me permitia as caminhadas até o aeroporto, que, naquela época, me
parecia distante. No lado oposto, os passeios às chácaras, aos sítios e às fazendas, depois do
cemitério. Antes dele, a simpática “curva da nona”, nome dado em homenagem à minha avó, que
lá residiu por algum tempo. A piscina do japonês no prolongamento da Rua Santo Antônio e,
depois dela, o antigo bosque, lugar de tantas e tantas aventuras, no meio da mata, entre precipícios,
pedras e cachoeiras.
O Cine Marília, o Cine São Luis e os circos, ora aqui, ora ali, a povoarem a minha
imaginação de sonhos e de fantasias.
A riqueza que chegava diariamente em cima dos caminhões, principalmente o café, mas
também o algodão, o arroz, o feijão, o milho e o amendoim.
Marília, que estava distante do mundo, longe da moda e não muito perto da notícia.
Marília, que, com poucas escolas e sem faculdades, se via na contingência de se separar
de seus jovens, especialmente os rapazes, que partiam em busca dos cursinhos e das faculdades,
deixando a família e, especialmente, a namorada. Essa foi uma contingência, uma circunstância
que não durou muito, mas que serviu para que se desenhasse uma história especialmente linda e
emotiva, típica do interior e daquela época.
Marília dos terrenos baldios que desapareceram e dos edifícios que surgiram, mas
também do encanto enigmático que plantou em cada um dos corações que lá estiveram ou que lá
viveram.
Marília das missas aos domingos, do esplendor dos meses de maio e das procissões na
Semana Santa.
Marília das pessoas, grandes e pequenas, pobres e ricas, felizes e sofredoras. Marília dos
marilienses que lá nasceram e Marília dos marilienses que, como eu, ousaram não nascer lá. Mas,
sobretudo, a Marília das minhas festinhas, dos meus bailinhos, dos meus sonhos e dos meus
amores, como também das menininhas que conheci e das menininhas que me conheceram. E ainda
a Marília da minha inocência e da minha candura, a Marília dos amores que procurei, que
encontrei
e que perdi, a Marília que me ofereceu vida e sonhos, mas que me cobra lágrimas e saudade.
CLARICE SANCHES
Não me parece importante, neste caso, que me lembre de uma data, com exatidão. Por
isso, digo apenas que na segunda metade dos anos 40, numa manhã de um domingo qualquer, eu
ouvia o Programa Infantil, pela Rádio Clube de Marília, quando, entre tantas crianças que lá se
apresentavam, uma me chamou à atenção, não apenas a minha atenção, mas a de toda a cidade.
Chamava-se Clarice Sanches e sabia cantar muito bem. Tanto é que, em pouco tempo, conseguiu
se sobressair de tal maneira que passou a ser considerada a “estrelinha” daquele programa de
rádio.
Passei a dar-lhe uma especial atenção, ouvindo-a com interesse e carinho.
O tempo passou e fomos ambos crescendo. A Clarice, já uma jovenzinha famosa na
cidade e na região, apresentava-se em outros programas de rádio, inclusive no rádio-teatro, sempre
como a “estrelíssima do Programa Infantil”. Eu a admirava à distância.
Lembro-me que num domingo à noite fui vê-la pela primeira vez. Ela se apresentava
sempre num programa chamado “Romance, ritmo e riso”. Pareceu-me linda. Pele clara, cabelos
não muito longos e a meio caminho entre o loiro e o ruivo, com um elegante “chale” branco sobre
ombros e costas, brincos, colar e anéis bem brilhantes. Era um programa de auditório.
Nunca me apaixonei por ela. Sempre a admirei bastante, do ponto de vista
exclusivamente artístico. E mais: sempre me mantive à distância. A minha timidez me impedia vêla de perto. Seria muito embaraçoso para mim se ela soubesse da minha existência. Tê-la à minha
frente seria impossível, de vez que seria necessário que se providenciasse um buraco no qual eu
pudesse me esconder, tão logo o seu primeiro olhar fosse lançado sobre a minha “mísera e
desprezível figura”, segundo a avaliação daquela deplorável timidez que tomava conta de mim.
Passou mais algum tempo. A Clarice, sempre lá; eu, sempre cá; a minha timidez, sempre
entre nós dois.
Por volta dos 16 anos, a convite do meu amigo Teruel, passei a freqüentar mais amiúde a
Igreja de Santo Antônio. Integrei-me não apenas do ponto de vista religioso, mas também cultural,
social e desportivo. Talvez fale sobre isso em outro momento.
Organizamos o nosso grupo de teatro e, partindo do nada, aprendemos o mínimo
necessário para o início e para as nossas primeiras apresentações.
Certa noite, estávamos reunidos no palco, traçando os planos para a nossa próxima
apresentação. Seria a primeira vez que iríamos incluir moças no nosso grupo e precisávamos de
duas. O Arnaldo sugeriu:
- Vamos convidar a Clarice?
Quase caí da cadeira.
- Não, claro que não! Por que a Clarice?, perguntei, reprovando veementemente.
Minha timidez falara por mim. Tê-la à minha frente? Nunca!
- Ela faz teatro, inclusive na Rádio, e sempre colaborou com o teatro aqui na igreja.
Vamos trazê-la de volta?, insistiu o Arnaldo.
Mas não teve jeito. A Clarice ficou de fora e vieram a Ybe e a Irma.
Começaram os ensaios e eu conseguira me manter longe da Clarice.
Numa daquelas noites, porém, - eu era sempre o diretor, além de ator - quando orientava
daqui, corrigia dali, alguém chegou discretamente e se sentou bem no meio da platéia vazia e
quase escura. Todos percebemos que era a Clarice. Agora ela estava ali, a poucos metros de mim.
Pior que isso, não havia como e nem por que expulsá-la e eu não tinha para onde fugir. Mas eu
haveria de agradecer a Deus e a todos os santos se o mundo acabasse ali, naquele momento. Mas o
mundo não acabou, o ensaio terminou logo, sabe lá Deus como, e a Clarice ficou sabendo que eu
existia.
Passado o susto, embora não tivesse havido uma apresentação formal entre nós passamos
a nos ver de quando em vez e, pasme, até conversávamos, como pessoas adultas e civilizadas,
embora ela fosse a “estrela” da cidade e embora eu continuasse a ser o mais tímido dos marilienses
e ocupando lugar expressivo no “ranking” mundial da timidez.
Até que um dia, 31/01/53, deixei Marília e fui para São Paulo, para dar continuidade à
minha vida e, na medida do possível, substituir sonhos e fantasias por realizações que pudessem
dar mais forma e mais substância à minha existência.
Porém, ligado a Marília através de um sem número de laços, de todas as naturezas e de
todos os matizes, providenciei, algum tempo depois, para que um grupo dos amigos que lá ficaram
me visitasse em minha nova casa, a Igreja de Santo Agostinho, isto depois que um bom grupo de
São Paulo tivesse ido até lá, numa confraternização realmente bonita, e com a presença da Clarice,
é claro.
Haveria uma apresentação de teatro e um jogo de futebol, como acontecera em Marília.
E vieram mais de 30.
Nessa altura, mais de um ano depois da minha ida para São Paulo, a Clarice, agora sem a
minha intransigência, se reintegrara ao grupo de teatro, sendo a sua principal figura. E ela viria
também. A cada um de nós competiria hospedar um dos visitantes, como acontecera
anteriormente, quando estivemos em Marília. Mais uma vez, em relação à Clarice, impus uma
condição: ter o privilégio de hospedá-la. E o fiz. Por uma noite, a Clarice dormiu na minha cama;
sem mim, é claro.
Antes da peça, cujo nome não me lembro, haveria uma parte de variedades e,
evidentemente, a Clarice iria cantar. Quando soube disso, ainda durante os contactos com o
pessoal de Marília, enviei um recado a ela, dizendo que eu iria me sentir imensamente feliz se ela
pudesse cantar, para mim, uma das minhas músicas prediletas, entre aquelas que ela cantava.
No sábado à tarde, no salão de festas do Colégio Santo Agostinho, assistíamos ao ensaio
- últimos retoques - dos meus amigos de Marília. Ao meu lado, a Clarice me perguntou:
- E então, que música você deseja que eu cante?
- “Ay Jalisco, no te rajas”, respondi.
Filha de espanhóis, ela se dedicava preferencialmente às músicas em língua espanhola,
usando castanholas quase sempre.
À noite, ao anunciar aquela música, dedicou-a a mim. E depois foi dormir na minha
cama, como eu disse acima.
No dia seguinte, nós nos despedimos como se fôssemos velhos amigos, como se nos
conhecêssemos desde crianças. A timidez, que ainda se prolongaria por alguns anos, em relação à
Clarice não mais existia.
Depois desse episódio, fui a Marília por várias vezes e sempre a vi, inclusive em sua
casa. Imagine você, cheguei a visitar a Clarice, a “estrelíssima do Programa Infantil”, e estrela da
cidade, em sua própria casa!
Até que a vida nos colocou ainda mais distantes um do outro, para não nos vermos mais.
Por que nunca me apaixonei por ela, não sei dizer. Por que não me casei com ela,
também não sei. E ela se casou por lá. E eu me casei por aqui. Até que um dia, friamente, minha
irmã Diva me transmitiu uma notícia muito triste: a minha amiga Clarice Sanches, a “estrelíssima
do Programa Infantil” e a estrela de Marília, havia morrido em Ribeirão Preto, onde passara a
viver depois do casamento. Morrera antes dos 40 anos, e fora sepultada em Marília, onde, segundo
soubemos, a cidade chorou por ela, enquanto a emissora de Rádio não se cansava de lamentar a
sua perda.
Muitos anos depois, fui visitá-la em seu túmulo, e chorar por ela, como choro ainda.
MINHA AMIGA YBE
Natalina Ybe Comucci, nascida em Campinas a 25 de dezembro de 1935, foi uma amiga
e tanto. Morena, de pele amendoada, cabelos pretos e ligeiramente encaracolados, dentes bem
alvos que apareciam quando aquele sorriso discreto e franco lhe assumia aos lábios, seios um tanto
salientes, mas quadris e pernas que não me atraiam muito, exibia ainda algumas poucas espinhas
pelo rosto, típicas da idade, quando a conheci na minha inesquecível Marília, por volta de 1951.
Caminhava ela para os 16 anos, e eu, para os 17.
Como eu disse antes, tínhamos o nosso grupo de teatro e estávamos à procura de duas
moças. O primeiro nome lembrado fora o da Clarice, mas não concordei com ele.
Mais uma vez, a sugestão veio do Arnaldo:
- Então, pode ser a Ybe?
- Quem é a Ybe?, perguntei.
- É uma filha-de-Maria. É bonitinha, canta no Coro e parece que já tem alguma
experiência. No próximo ensaio do Coro a gente fala com ela.
Fomos lá. Terminado o ensaio, desceram todos, fazendo um certo barulho na escada
helicoidal, de madeira. Foi então que apareceu à minha frente a jovenzinha descrita no primeiro
parágrafo acima. Sobre os ombros, uma fita azul, da sua irmandade. O Arnaldo fez as
apresentações e o convite. Com um sorriso, o mesmo de sempre, ela me disse:
- Topo.
E estava “contratada”.
Depois veio a Irma e, com a Irma, uma outra história, que fica para outra vez.
A Ybe e eu aprendemos a nos gostar como amigos e como irmãos. No palco, eu dava as
ordens, uma vez que eu era o diretor. E ela atendia prontamente; às vezes, resmungava. Fora do
palco, éramos amigos para todos os momentos, enquanto as nossas vidas permitiram que o
fôssemos.
Éramos tão amigos e nos dávamos tão bem que, um dia, o Teruel me disse:
- Você deveria namorar com a Ybe. Formam um excelente e belo par.
Um outro amigo, não me lembro se antes ou depois do Teruel, disse-me a mesma coisa.
A Ybe morava bem ao lado da igreja, na Rua Prudente de Moraes, 528. Foi inevitável
que eu começasse a freqüentar a sua casa e fizesse boa amizade com o seu pai, seu Dárdano
Comucci, e com sua mãe, dona Amélia, além de sua irmãzinha de menos de três anos, que se
chamava Dardânia.
Eu e seu Comucci passamos a ser bons amigos. Era um homem inteligente e autodidata.
Eu gostava de falar com ele e aprendi bastante com aquele homem de pele morena, que mais
parecia um baiano do que um descendente de italianos. Ele sabia quase tudo sobre mim. Até que
um dia, quase na época da minha ida definitiva para São Paulo, comecei a perceber algumas
“indiretas” na sua conversa. Pouco tempo depois, aquilo me ficou bastante claro. O grande sonho
daquele homem era me ver casado com a sua filha Ybe. Portanto, as observações do Teruel e de
pelo menos um outro dos meus amigos não eram descabidas.
Jamais pensei em namoro com a Ybe e, pelo que sei, ela também jamais pensou nisso.
Depois que deixei Marília, voltei lá por várias vezes e sempre ia visitar os meus amigos
da Prudente de Moraes, 528. Em mangas de camisa e de chinelos, seu Comucci estava lá, no
confortável banco do terraço, parecia que sempre à minha espera. A conversa não mudava, em
relação a mim e à sua filha. Agora ele se opunha ao namoro da Ybe com o Giovanni. Queria vê-la
casada comigo, embora jamais o tivesse dito abertamente. Via diferenças enormes entre o
Giovanni e eu. Quanto à Ybe, “chorava as pitangas” comigo.
Algum tempo depois, eles se casaram, contra a vontade do pai, e foram morar em
Paranavaí, no Paraná. Por essa época, seu Comucci e dona Amélia adotaram um menininho, o
Amélio César.
Não vejo a Ybe desde alguns meses antes do seu casamento; portanto, há mais de 40
anos.
Passei a ir com menor freqüência a Marília e as notícias dela se tornaram mais raras.
Numa dessas poucas visitas não encontrei mais dona Amélia que, doente havia vários anos,
morrera.
Acontece que o tempo, indiferente a tudo, passou. Os anos varreram os fatos corriqueiros
do dia-a-dia, mas solidificaram os sentimentos e construíram mais uma história.
Em julho de 1995, mais ou menos 44 anos depois do dia em que vi a Ybe pela primeira
vez, voltei a Marília. Livre dos compromissos com a minha própria vida, agora eu me sentia
inteiramente à vontade, como se houvesse voltado para sempre. A cidade estava lá. As ruas, as
praças, as flores, o sol e o vento estavam lá. Mas os amigos, por onde andariam eles? Seria
necessário que se os procurasse, como se procura um objeto perdido entre os escombros, depois de
uma tempestade.
Anda de cá, anda de lá, vasculha aqui, vasculha ali, e eis que encontro o Walter Righetti.
A partir dele, alguns outros e algumas informações. Sua irmã Maria foi procurada e, por meio
dela, notícias da Irma, da Dardânia e da Ybe.
Do seu casamento com o Giovanni haviam nascido três filhos: Bruno, Ítalo e Renato.
Agora moravam todos na Itália, a terra natal do Giovanni, para onde foram havia mais de 15 anos.
O Giovanni morrera fazia pouco tempo e a Ybe estava bastante doente. De um mal incurável que
atacava o sistema nervoso central (Mal de Alzheimer), o prognóstico apontava para uma atrofia
gradativa da consciência e dos movimentos.
Voltar a ver a Ybe seria materialmente possível, mas reencontrá-la e com ela reviver um
pouco dos bons tempos de Marília seria algo que, agora, a vida e o tempo nos negavam; e o
faziam em termos frios, implacáveis e definitivos.
Além de algumas fotografias, dos tempos do nosso teatro, nada mais do que uma
lembrança e uma saudade imensa. E a imagem viva daquela jovenzinha de Marília,
suficientemente bonita por fora e exuberantemente bela por dentro, a exibir-me, hoje e sempre,
aquele uniforme da escola, com boina e tudo, emoldurando o seu sorriso puro e franco, imagem
que dela me ficou e que jamais será desfeita, mesmo depois da consumação dos séculos.
NOTA: A Ybe morreu na Itália, em 23 de outubro de 1999, alguns meses depois de ter eu escrito
esta crônica. Lá está ela, próximo a Udine, sepultada para todo o sempre.
31 DE JANEIRO DE 1953
A segunda etapa da minha vida, aquela que se passara em Marília e que havia durado dez
anos, estava por terminar. Dos dez, foram pelo menos nove anos muito bem vividos e
imensamente felizes. Agora aquela etapa chegava ao fim. Eu estivera em São Paulo, fazia poucos
dias, onde providenciara a minha vaga no Colégio Bandeirantes. Parte das minhas coisas,
especialmente os livros, eu havia levado para a casa de uma família amiga, onde morava minha
irmã Diva, na Rua 21 de Abril, no Brás.
Depois de dez anos, chegara o momento das despedidas. Era sábado, 31 de janeiro de
1953. Eu iria viajar no trem da meia-noite.
Meu pai, minha mãe e minhas duas irmãs menores, a Hilde e a Odete, estavam apenas
esperando que as chuvas parassem para também deixarem Marília, indo para Nova Esperança, no
Paraná. Cinco de nós lá esperavam por eles, havia mais de um ano.
Aquele sábado foi um dia normal, comum como tantos outros, parecendo indiferente a
mim e à minha partida. Na parte da manhã arrumei minha mala. Era uma só, porém grande e
muito pesada. À tarde eu teria dois compromissos. A despedida de minha irmã Ada e um
casamento. Dos amigos e parentes eu havia me despedido durante a semana.
Minha irmã morava na Rua Sergipe, bem perto da Catedral, onde, às 18 horas, eu iria
assistir ao casamento do Elzer, um primo em terceiro grau.
Vesti-me discretamente e, por volta das quatro e meia, cheguei à casa da minha irmã
Ada. Ela costurava e levantou a cabeça para me olhar, quando cheguei.
- Viajo no trem da meia-noite. Vim dar o meu “tchauzinho”.
Ela não disse nada. Debruçou-se, chorando, sobre a máquina de costura.
Eu entendi tudo. Aquela atitude e aquele choro estavam me dizendo que os momentos
ruins haviam sido esquecidos, que as brigas, os maus-tratos e as vassouradas, coisas de
adolescentes irresponsáveis e que já iam bem longe havia algum tempo, agora pertenciam à
história de cada um de nós dois. Afaguei-lhe a cabeça carinhosamente enquanto não tive como
evitar algumas doces recordações. Ela fora e continuava sendo uma irmã bastante dedicada.
Lembrei-me então que, quando criança, os meus brinquedos favoritos, entre os poucos que tivera,
eram os caminhõezinhos. A cada novo caminhão que eu ganhava - não foram muitos - ela se
sentava à máquina e fazia saquinhos com as sobras dos tecidos. Depois, eu os enchia com arroz ou
feijão e ela os fechava, um a um, costurando a entrada, à mão. Tudo isso para que eu tivesse a
carga para os meus caminhões.
Sempre que precisava sair à rua, levava-me a “tiracolo”. Sete anos mais do que eu, moça
bonita e atraente, achava que, comigo, estaria a salvo dos olhares cobiçosos e inconfessáveis que a
esperavam em todo e em qualquer lugar, coisa bem típica daquela época. Mas a minha presença
sempre foi inútil. Eu percebia como ela era olhada, o que me deixava p... da vida.
Não houve despedida. Saí chorando e ela ficou chorando, tendo conseguido dizer apenas:
- Agora, vou ficar sozinha!
Fui para a igreja e lá encontrei o Dáfnis, um amigo da escola e da Igreja de Santo
Antônio.
- O que você faz aqui?, perguntei.
- Vou assistir ao casamento da minha prima Lalita. Prima de segundo ou terceiro grau,
não sei bem.
Sem que soubéssemos antes, o meu primo iria se casar com a prima dele. E se casaram.
E houve uma boa festa na casa dela, bem próximo dali.
Pouco depois das nove da noite eu já estava em casa, tomando as últimas providências
para a viagem. Sentia uma sensação muito estranha e um vazio imenso tomava conta de mim. Eu
não entendia muito bem o que estava acontecendo. Tudo fazia parte de uma programação que já
vinha de longe, mas, chegado o momento, um nó na garganta, uma dor justificável, uma angústia
incontrolável pela separação e, quem sabe, pelo medo do desconhecido, que, quisesse eu ou não,
estava à minha frente.
Dez anos felizes, os mais felizes de tantos quantos já vivi, estavam por terminar.
Onze da noite, um “tchau” bem discreto, mala no ombro e pé na rua.
Alguns minutos depois, ainda na baixada da Rua Cel. Galdino de Almeida, encontrei
dois amigos que voltavam para casa naquela noite de sábado. Um deles era o José Carlos Adriano
e o outro era o Francisco Fava. O Fava pegou minha mala, colocou-a num dos ombros e lá fomos
os três, rumo à estação. Eles haviam decidido voltar e me acompanhar até lá.
Fui ao guichê e fiz o pedido mais dramático da minha vida, até então:
- Uma passagem, só ida, para São Paulo. De segunda classe.
Jamais eu houvera comprado uma passagem só de ida. Aquilo me causou uma profunda
emoção.
Despedi-me daqueles dois amigos e, enquanto desciam os três ou quatro degraus para
fora da estação, a minha passagem foi picotada e eu entrei. Se entrei, foi para algum lugar, que não
era simplesmente a plataforma onde eu me encontrava, mas o início de uma nova etapa a ser
vivida. Se entrei, foi porque também saí. Mas não saíra simplesmente da sala de entrada da
estação, mas sim eu havia saído e deixado para trás os meus 18 anos, dez deles vividos em Marília
e que haviam sido encantadoramente lindos.
Entre o fim de uma etapa, extremamente feliz, e o início de uma outra, bastante incerta,
restava-me apenas aquela viagem de 12 horas.
O trem chegou, parou, e dele pareceu-me ouvir:
- Coragem, entre!
Entrei, acomodei a mala sobre mim, sentei-me, encostei a cabeça junto à janela de vidro
e, partindo o trem, enquanto as luzes desapareciam do lado de fora dando lugar à escuridão da
noite, chorei; chorei bastante e depois dormi.
TRÊS A DOIS
Ao meio-dia desci na Estação da Luz, em São Paulo, depois de uma viagem de 12 horas,
desde Marília. Era domingo, primeiro dia de fevereiro de 1953.
Marília já pertencia à minha história.
Enquanto eu subia as escadas da estação para ganhar a rua, carregando a minha enorme e
pesada mala, não imaginava que teria pela frente, naquela nova etapa da minha vida, nada menos
do que 42 anos, 9 meses e 18 dias. Seria quase uma vida inteira, uma fase tremendamente difícil,
que começava ali, enquanto aquele jovenzinho de 18 anos subia as escadas da Estação da Luz,
para terminar, aquela longa etapa, na noite de 18 de novembro de 1995, quando, depois de se
despedir dos últimos convidados para o casamento de seu filho mais moço, aquele mesmo
jovenzinho de 18 anos, agora um homem com mais de 60 e com os cabelos mais do que grisalhos,
foi ao apartamento daquele seu filho, próximo à Igreja de São Judas Tadeu, colocou calmamente a
cabeça sobre o travesseiro e pensou, antes de dormir:
- Missão cumprida!
Mas para que aquela missão fosse cumprida, através de tantos anos, foi necessária muita
vontade, foram necessários muitos sacrifícios, foram derramadas muitas lágrimas e foi vertido
muito suor. Felizmente, Deus lhe poupou à perda de sangue. Sonhos e ilusões seriam
constantemente renovados. Muitos erros e poucos acertos iriam marcar impiedosamente aqueles
quase 43 anos que estavam à sua espera. Se soubesse disso, talvez tivesse voltado no próximo
trem. Mas nesse caso, hoje, em vez de uma seqüência quase inesgotável de histórias, mostrando
derrotas mas também algumas vitórias expressivas, ele teria uma única história a ser contada,
marcada pela derrota e sobretudo pelo medo e pela covardia. Por isso, talvez menos pela coragem
e mais pelo desconhecimento quanto ao futuro, o jovenzinho continuou subindo aquelas escadas
da Estação da Luz.
Mas como esses anos todos ainda não haviam chegado, voltemos então àquelas escadas,
no primeiro dia dos 15.631 que seriam vividos nessa etapa. Se você for fazer as contas, não
esqueça que tivemos dez anos bissextos naquele período.
Atravessei a Rua Mauá, segui pela atual Av. Cásper Líbero até a Rua Washington Luis,
onde virei à direita e andei mais uma quadra. Numa daquelas esquinas ficava o Hotel Magalhães,
modestíssimo, que eu já conhecia de ocasiões anteriores. Acomodei-me e almocei lá mesmo.
Saí à rua. Lembro-me de que um dos meus primeiros pensamentos foi:
- Vamos ver como será o meu primeiro dia.
Como eu disse antes, não imaginava que, depois daquele primeiro dia, viriam outros
15.630.
Andei até a Praça Ramos de Azevedo, atravessei a rua bem na frente do Teatro
Municipal e me coloquei diante de uma grande loja – fechada, porque era domingo – em cuja
fachada se lia: Casa Anglo-brasileira. (Mais tarde, mudaram-lhe o nome para Mappin).
Passavam alguns minutos da uma da tarde. Eu esperava o bonde Pinheiros, o único que
eu tinha certeza que me levaria aonde eu precisava. Ele chegou logo. Era um bonde pequeno, todo
aberto. Entrei. Ou subi? Na verdade, subi e depois entrei. Deu a volta pela Xavier de Toledo e
subiu pela Consolação. E lá se foram os meus primeiros 50 centavos. Desci pouco acima do
Cemitério da Consolação. Não posso jurar, mas devo ter passado pela Rua Maceió, pela Av.
Angélica, pela Rua Goiás e pela Rua Itápolis, a fim de chegar ao Estádio Municipal do Pacaembu,
numa entrada lateral, no lado das gerais.
O jogo iria começar às três e meia, sob sol bastante quente. Estádio cheio. Talvez você
queira saber que jogo era aquele: São Paulo x Corinthians, último jogo do campeonato paulista do
ano anterior, 1952, e nós já estávamos em fevereiro de 1953. Não duvide. Naquela época, o nosso
futebol já era desorganizado. O que você pensa, a coisa já vem de longe! O Corinthians já era o
campeão.
Aos seis minutos de jogo, o Albeja colocou o São Paulo na frente. No lado da entrada
principal.
- Comecei bem, pensei eu.
No final do primeiro tempo, o Maurinho aumentou para dois a zero.
- Comecei muito bem, pensei eu, apesar de não ter visto o gol porque já chovia bastante e
eu subira para me proteger.
Chuva durante o intervalo. Voltou o sol e recomeçou o jogo. O Corinthians fez o
primeiro.
- Não comecei assim tão bem, pensei.
O Corinthians empatou.
- Não estou começando bem, foi o meu pensamento.
O Corinthians virou o jogo e confirmou o título, que já era seu.
- Comecei mal, concluí no fim do jogo, quando já chovia novamente.
Não me pergunte quem fez os gols do Corinthians. Essas coisas não se guardam. Mas
uma coisa eu guardei: eu sentia que havia começado mal a minha vida em São Paulo.
Não me lembro qual foi o meu caminho de volta. Nem qual foi o meu lanche naquele
domingo. Chovia um pouco e já escurecera. Eu andava por aquelas ruas cheias de gente (Largo do
Paissandu, Av. São João, Av. Ipiranga), sob chuva fina. Tudo estranho, diferente, em nada
parecido com o que eu estava habituado. É difícil dizer exatamente o que eu sentia naqueles
momentos.
O Cine Paratodos ficava na esquina da Rua Santa Ifigênia com a Rua Antônio de Godoi.
Entrei. Não sei dizer qual era o filme, mas havia bastante gente. Saí quase duas horas depois.
Esgueirando-me junto aos edifícios, porque ainda caiam alguns pingos, cheguei ao hotel. Deiteime e apaguei a luz. Talvez tenha apagado a luz, para me deitar depois.
- Puxa vida, sou um irresponsável mesmo. Com o dinheiro curto, ainda tive coragem de
ir ao jogo e ao cinema. Perdemos o jogo e não lucrei nada com o filme. Paciência, agora já foi.
Amanhã será diferente.
Dormi pensativo, como acontecera nos 18 anos anteriores e como iria acontecer pelo
menos nos 43 que viriam depois.
DONA ARGENTINA
Depois da minha primeira semana em São Paulo, durante a qual estive hospedado na
casa de minha prima Jandira, em Ferraz de Vasconcelos, seria necessário que eu procurasse uma
pensão onde pudesse morar. Devia ser nas proximidades da escola, o Colégio Bandeirantes, que
ficava na Rua Stela, no Paraíso. Ainda se encontra lá, no mesmo lugar.
Ao passar de bonde pela Rua Vergueiro, li numa pequena placa, presa numa das colunas
de ferro que sustentavam um terraço, bem à moda antiga: “Vagas para rapazes”. Na volta, fui lá.
Era o número 1.024 da Rua Vergueiro. Fui atendido por um senhor de pouca idade, uns 30 anos
mais ou menos, que se chamava Daniel. Levou-me para ver as duas vagas de que dispunha. Uma
delas ficava nos fundos, do lado onde existe, já faz bastante tempo, a belíssima Av. 23 de Maio,
aliás, a mais linda de São Paulo, naquele trecho. Entrava-se por um terraço estreito e um tanto
longo, com colunas de ferro, passava-se por uma sala de visitas e de jantar a um só tempo, depois
por um corredor com o banheiro à direita, bem grande por sinal, chegando-se então à cozinha e,
depois dela, dois pequenos quartos. O da esquerda estava vago e custaria Cr$1.200,00 (mil e
duzentos cruzeiros) por mês, incluindo o almoço, o jantar e o café da manhã, mas excluindo o
lanche do domingo à noite e os cuidados com as minhas roupas: lavar e passar. Era um quarto
minúsculo. A cama, à esquerda, ocupava toda a sua extensão. À direita, um guarda-roupa e, junto
à janela, no lado oposto à porta, uma escrivaninha e uma cadeira. Sobrava um espaço de mais ou
menos um metro quadrado e meio, mas era o que eu queria e precisava. Sentado à mesa, um
matagal se descortinava à minha frente, no antigo leito da atual Av. 23 de Maio, matagal que
abrigava grilos e gafanhotos, que se faziam ouvir durante a noite, além dos galos da vizinhança, e
talvez até abrigasse, aquele mato, cobras e lagartos. Do outro lado, bem à minha frente, os fundos
do prédio da Sears. Anos depois, a construção do Viaduto do Paraíso e da avenida, lá embaixo, e,
mais tarde, a construção do metrô. Com certeza, incomodaram os grilos, os gafanhotos e, quem
sabe, as cobras e os lagartos, mas não incomodaram a mim, porque eu não estava mais lá, já fazia
mais de dez anos. Uns 40 anos depois, a Sears cederia o seu lugar ao Shopping Paulista.
Voltemos então ao quarto, onde seu Daniel esperava pela minha resposta.
- Fico aqui, disse eu, embora não soubesse como iria pagá-lo, no início de cada mês.
Seria pagamento adiantado, mas isso já é uma outra história.
E me mudei pra lá.
Aos poucos, fui conhecendo a família e os outros hóspedes. Entre eles, o único de quem
me lembro era o José Carlos Bombonatti, que trabalhava até tarde da noite, como locutor da Rádio
Record. Seu Daniel era casado e tinha um filho pequeno. Não me lembro do nome de sua esposa,
mas era jovem e bonita, embora bem pouco simpática. Com eles – e conosco, os hóspedes –
morava sua sogra, dona Argentina, a sogra mais sogra entre todas as sogras do mundo.
Nunca fiquei sabendo se seu Daniel conseguiu sobreviver à sanha e às garras daquela
sogra, que personificava, de corpo e alma, se é que tinha uma, tudo o que já se havia dito ou
escrito de ruim sobre uma sogra, bem como tudo o que pudesse ser dito ou escrito depois, desde
aqueles dias até o fim do mundo. Ela nada tinha a ver com a prata, alusiva ao seu nome.
Dona Argentina era terrível. Mas eu consegui enfrentá-la num domingo, desarmado e de
peito aberto. Acho que jamais tive tanta coragem, nem antes e nem depois daquele dia. Minha mãe
estivera em São Paulo e saí com ela pela manhã. Cheguei à pensão às duas da tarde, ou mesmo um
pouco depois, com bastante fome. Lavei-me e me sentei à mesa, embora ela não estivesse mais
posta. E lá veio a “jararaca”, já furiosa como uma jararaca e falando como uma jararaca, ao tempo
em que as jararacas falavam:
- Não tem mais almoço. Já passou da hora. Almoço, só até uma e meia, conforme o aviso
que foi dado.
- Seu Daniel nunca me disse nada sobre o horário do almoço aos domingos, ponderei
calmo.
- O Daniel não sabe nada e não manda nada. Aqui, quem decide as coisas sou eu.
Quanto àquela informação, sobre quem tomava as decisões, eu não tinha a menor dúvida,
desde que chegara. Seu Daniel era um pobre coitado, embora uma excelente pessoa. A “chefona”
era dona Argentina, que mandava na filha, no neto, na cozinheira, nos cachorros, nos gatos, no
papagaio, se lá tivesse um, e no seu pobre e desprotegido genro. Dominava-lhe os passos, a mente
e a vontade. Talvez até interferisse em seus atos, à noite, quando fosse dormir com a sua filha.
- Para mim, quem decide aqui é seu Daniel. Foi com ele que tratei e é a ele que pago,
respondi em voz alta. Depois, dei um murro na mesa e exigi:
- Quero o meu almoço aqui, agora.
Felizmente, o almoço veio, porque o segundo murro não teria sido desferido contra a
mesa.
Bem sei que você poderá me acusar: numa mulher, nunca se bate!
Mas eu me defendo: aquilo não era uma mulher, era uma jararaca.
A cozinheira era um amor de criatura. Negra e feia eram coisas que não me
incomodavam. Nós nos tratávamos como gente que éramos, e nos respeitávamos, e nos queríamos
bem, como gente que também éramos. Além disso, ela era o meu “despertador”. Sempre que eu
precisava acordar mais cedo, ela batia à minha porta na hora marcada. Fiquei lhe devendo bastante
pela atenção e pelo carinho. Aliás, de maneira ingrata, porque nem o seu nome guardei na
memória, o mínimo que ela merecia.
Certa tarde foram me chamar, dizendo que o tintureiro estava lá. Fui vê-lo, embora não
me lembrasse que o tivesse chamado. De qualquer maneira, o meu terno de linho branco precisava
ser lavado. Era o terno da minha formatura no Ginásio, aquele mesmo terno que eu havia vestido
quando fui a Vera Cruz pela primeira vez, para me encontrar com a Doca.
- Você traz quando? Semana que vem?
Até hoje o meu terno não me foi devolvido, embora o tivesse procurado em todas as
lavanderias da região. Estava inaugurado o roubo em São Paulo, pelo menos contra mim.
Pois é, com a história da cozinheira e do tintureiro ladrão ia me esquecendo de dona
Argentina, a personagem central desta história. Não seria justo que a encerrasse sem dedicar a
dona Argentina os meus últimos pensamentos, que nada têm a ver com saudade. Depois que me
mudei de lá, nunca mais a vi, e espero sinceramente que Deus a tenha protegido, não só a ela, mas
também a todas as outras jararacas, jararacas propriamente ditas e jararacas-sogras, ou sograsjararacas.
PARA PREFEITO: JÂNIO
Tudo me parecia difícil durante os meus primeiros tempos, em São Paulo.
Eu morava numa pensão, na Rua Vergueiro. Pagá-la mensalmente era apenas uma entre
tantas dificuldades. Marília já ficara para trás. Os dez melhores anos da minha vida, lá vividos, já
faziam parte do meu passado. Os sonhos bons do adolescente davam lugar a uma luta pela vida,
que mal começava agora, em fevereiro de 1953. A imensa metrópole me assustava. A própria vida
também me assustava. Acanhado, tímido e inseguro, eu esperava que as aulas começassem
enquanto vasculhava daqui e dali para ver se descobria algum trabalho que eu pudesse fazer
depois das aulas de cada dia. Foi tudo muito difícil.
Segundo um anúncio que eu havia lido, uma empresa localizada na Vila Pompéia, na
Rua Barão do Bananal, precisava de uma pessoa para serviços gerais, mas que pudesse fazê-los
depois do expediente. Fui lá, sem saber que trabalho poderia ser aquele. Entrevistado, gostaram de
mim, mas, conversando um pouco mais, descobriram que eu era estudante, aluno já matriculado
no Colégio Bandeirantes. O cargo era de faxineiro. Alegando incompatibilidade do cargo com o
meu presente e com o meu futuro, não me admitiram. Falaram coisas bonitas sobre mim e sobre
esse futuro. Saí de lá fortalecido, mas sem o emprego.
Alguns dias depois, uma amiga de minha irmã Diva apresentou-me à Redação do jornal
O TEMPO, onde eu seria revisor, se me adptasse à função e ao horário. Fui lá. Não tinha a
mínima idéia de como se fazia aquilo. O trabalho começava por volta das oito da noite. Vários
revisores à volta de uma grande mesa, cada um ia recebendo trechos impressos do jornal, vindos
dos linotipistas. Claro, eu sabia identificar e apontar os erros, mas não sabia como fazê-lo, de
maneira que os linotipistas pudessem entender e fazer as correções. Havia algumas convenções
quanto aos sinais adotados, mas ninguém me ensinou nada. Fiquei até as três da madrugada,
quando voltei para casa. Deslocado, triste e derrotado, não voltei mais.
Tentei um emprego de datilógrafo, num grande escritório que ficava próximo ao Largo
da Concórdia, no Brás. Não fui considerado suficientemente hábil naquilo.
Alguém, cujo nome não me lembro e que morava na Liberdade, estava desenvolvendo
um trabalho sobre o 4º Centenário da cidade de São Paulo. Fui ver. Havia uma sala cheia com
pilhas e mais pilhas de papéis. O serviço seria de datilografia, mas eu não tinha a estrutura
necessária para um trabalho daquele vulto.
Certo dia, eu atravessava o Viaduto Santa Ifigênia, indo do Largo de São Bento em
direção à Igreja de Santa Ifigênia. Parei na metade dele, no lado direito, e olhei para baixo.
Veículos de todos os tipos deslizavam pelo asfalto. À minha esquerda, um circo, com os seus
mastros que sustentavam a lona enquanto apontavam para o infinito. Não tenho certeza, mas
parece que era do Arrelia. À minha direita, um pouco mais à frente, via-se o prédio onde
funcionava o jornal ÚLTIMA HORA. Mas o que despertou a minha atenção foi o que se podia
ler, lá embaixo, sobre o asfalto, em letras bem grandes: Para prefeito, vote em Jânio. Lembro-me
que, encostado ao gradil de ferro, voltei-me para o lado oposto e contemplei a grande cidade, que
se erguia à minha frente, em altos edifícios.
- O homem quer ser prefeito, pensei. Que coragem!
Providenciei depois o meu título de eleitor e, no mês seguinte, votei pela primeira vez,
mas não foi naquele tal de Jânio, de quem jamais ouvira falar. Não me pergunte por que uma
eleição no mês de março. Eu estava por demais ocupado, e ainda assustado, para me preocupar
com aquilo. Mas o Jânio foi eleito, arrastando com ele um general, Porfírio da Paz. Menos mal,
porque, segundo diziam, era um são-paulino de primeira.
Voltemos agora ao gradil do Viaduto Santa Ifigênia, onde eu me encostara. Eu tinha num
dos bolsos um anúncio de jornal. Precisavam de um “correspondente”. Mas o que seria aquilo? O
que seria um correspondente? O que faria ele? Eu nem imaginava, mas fui ver. Subi ao
apartamento do meu amigo Plank e me informei quanto à localização da rua, que ficava por ali. Na
próxima crônica vou falar um pouco sobre o Plank. Agora não posso, porque estou procurando
emprego.
Cheguei ao local. Tudo estranho. Um salão mais ou menos grande, com muitas caixas
empilhadas e com fardos que pareciam ser de algodão, cada um deles preso por duas cintas
metálicas.
- O que você deseja?, perguntaram-me.
- É sobre este anúncio.
- Um momento.
Alguns instantes depois chegou um senhor de meia idade, em mangas de camisa e de
gravata.
- Você é o correspondente?
- Sim, ousei responder, sem saber o que era um correspondente. Acho que jamais fiquei
sabendo, porque nunca mais vi nem ouvi aquele termo depois daquele dia, a não ser
correspondente de guerra, de jornais, televisão, etc.
Olhou-me de cima abaixo e de baixo até em cima, com certa desconfiança e boa dose de
menosprezo. Pensou durante alguns poucos segundos, se é que pensou.
- A vaga já foi preenchida, informou-me enquanto saia, virando-me as costas.
Uma única coisa ficou clara: o meu perfil físico não era de um correspondente. E o meu
perfil profissional, menos ainda, porque simplesmente não existia naquela época. Apesar dos meus
18 anos e da minha ingenuidade, deu bem pra perceber aquilo.
Voltei ao gradil de ferro do Viaduto Santa Ifigênia. E olhei lá embaixo: “Para prefeito,
vote em Jânio”. Eu sequer conseguira um emprego de correspondente, não sabendo o que seria
aquilo. Aquele tal de Jânio procurava um emprego de prefeito. Será que ele sabia do que se
tratava?, perguntei-me. A História mostrou, depois, que sabia. E como!
O APARTAMENTO 18
Chegando a São Paulo, fui morar numa pensão, na Rua Vergueiro, 1.024, como já disse
antes. Nada existe mais por lá. Com a chegada do metrô, tudo foi demolido. Construíram ali o
centro de operações e, mais acima, o Centro Cultural. Eu ia a pé até o Colégio Bandeirantes, onde
fiz o 2º e o 3º Científico. Sempre que podia, ou precisava, tomava o bonde no outro lado da rua e
descia até a cidade. Freqüentemente visitava dona Maria Luíza, aquela mesma que me ensinara
como se pega um beija-flor com a mão. Bem antes daquela época, a do beija-flor, ela já residia em
São Paulo, com o seu marido Plank e, mais tarde, sua filha Maria Paula.
Leopoldo Jorge Plank foi o meu segundo pai e um dos meus melhores amigos. Visitavao sempre, fosse para pegar uma assinatura em algum documento da escola (ele era responsável por
mim), como o Boletim, por exemplo, fosse para obter uma informação, uma orientação ou uma
ajuda. Como se fosse o meu verdadeiro pai, ele estava sempre livre para mim e me recebia
carinhosamente, apesar da fisionomia austera e do espesso bigode que sempre despertaram em
mim um certo temor e bastante respeito.
Era fácil chegar lá. Largo São Bento, Viaduto Santa Ifigênia e pronto, lá estava o prédio,
que ainda hoje lá se encontra. Porta ampla em forma de grade de ferro, parte superior em semi-lua
e, sobre ela, o número 259. Entrando, à direita, o elevador e uma mesinha com um funcionário,
uma espécie de porteiro, ou recepcionista. Em frente, mas com os primeiros degraus um pouco à
esquerda, uma escada em curva, acompanhando a parede. Subindo, à esquerda, o corredor do
primeiro andar. Nele, também à esquerda, uma primeira porta, e, nela, o número 18. Ali moravam
os meus amigos. Viaduto Santa Ifigênia, 259, apartamento 18. Além de um gostoso cafezinho,
nunca me faltaram atenção nem ajuda. Eu ia sempre lá.
Até que um dia, era uma tarde quente e de bastante sol, mesmo porque se chovia ou fazia
frio eu evitava sair, para fazer a minha habitual visita, cheguei ao prédio, subi pela escada, entrei à
esquerda e... surpresa, o apartamento 18 não estava lá. Sem entender, caminhei até o fim do
corredor onde havia uma porta com o número 21. Já sei, concluí: distraído, vim ao segundo andar.
Mas, surpresa ainda maior, ao chegar à escada vi, lá embaixo, a porta da rua, a porta do elevador e
a mesinha do recepcionista. Quanto a mim, eu estava realmente no primeiro andar, mas, quanto ao
apartamento 18, por onde andaria ele àquela hora? Voltei e examinei tudo de novo. Nada de
errado com o prédio, a não ser pelo desaparecimento do apartamento 18. Voltei ainda uma vez,
desci a escada e fui até a porta. Cabisbaixo e mãos nos bolsos, apoiei o ombro direito na porta,
enquanto olhava os automóveis e os ônibus que passavam à minha frente e enquanto pensava:
estou ficando louco. Não era possível que o apartamento 18 tivesse sumido junto com os meus
amigos que lá viviam e sem deixar marcas. Mais fácil seria crer que eu enlouquecera. Sem saber o
que pensar nem o que fazer, por mais alguns segundos fiquei pensativo, até que, quase sem querer,
olhei para cima e... a terceira surpresa: o número que lá estava não era o 259, mas sim o 269. Eu
entrara no prédio vizinho, em tudo igual ao outro, exceto pelo apartamento 18. Àquela época, os
dois prédios eram incrivelmente iguais. Já há alguns anos, foram feitas alterações na entrada de
ambos, que os diferenciam.
Aliviado, entrei no prédio certo, subi a escada, virei à esquerda e lá estava ele, o
apartamento 18, como por milagre ou encanto.
Naquela tarde, pareceu-me ter aprendido mais uma interessante lição. Se os amigos bons
e sinceros existem, eles na verdade não são muitos. E, indo a eles, é preciso que estejamos atentos
para que não se tome o caminho errado. Se é verdade que todos os caminhos levam a Roma, não
me parece verdade que muitos existam, no caso dos amigos, e que possam nos levar até eles.
Em primeiro lugar, é preciso ter esses amigos. E isto se consegue, às vezes, com nada
mais do que um sorriso. Depois, é preciso mantê-los e merecê-los. E isto se consegue com amor.
Impossível sem ele. Em terceiro lugar, é preciso ir até eles, sem esperar que venham a nós. No
meu caso, ainda um inexperiente jovenzinho de 18 anos, ia até eles porque sempre tinha algo a
pedir ou a receber. Mas, mais tarde, a vida haveria de me ensinar que muito mais importante do
que ir para receber é ir para doar. Sábias são todas as religiões porque, como a Contabilidade,
ensinam-nos que, recebendo, estaremos sempre em débito, enquanto que, dando, teremos sempre
crédito.
O meu amigo Plank morreu 10 ou 12 anos depois, sem conhecer esta história, e dona
Maria Luíza não a conhece ainda hoje. Não perderam grande coisa, é verdade. Eu era
exageradamente tímido para relatar esse pequeno fiasco, que se me afigurava como inconfessável.
Por isso, a exemplo do velho timbira coberto de glória, em I-Juca-Pirama, guardei na memória não
os feitos de um valoroso guerreiro como no relato de Gonçalves Dias, mas apenas mais uma
historinha que, não nas noites e nem nas tabas, e sim em outros lugares e em outras ocasiões,
relato a amigos, os quais, pacientes, me ouvem contar sobre as idas e vindas de uma vida
atribulada e difícil, porém assistida por Deus e por alguns dos seus anjos.
COMO TOMAR ÁGUA
Eu me encontrava comodamente instalado num dos grandes sofás da sala de espera do
Cine Leblon. A sessão começava às oito, mas eu chegava sempre 10 ou 15 minutos antes.
Invariavelmente, sentava-me ali, à espera que a sessão anterior terminasse.
Era uma sala retangular, eu diria com quatro metros de largura por seis ou sete de
comprimento. Atrás de mim, uma parede, na qual existiam duas grandes portas que davam para a
sala de projeções, isto é, para a platéia. Os sofás se encostavam nessa parede, que correspondia ao
comprimento da sala. À minha esquerda, as duas toaletes, para senhoras e para cavalheiros, ou
para rapazes inexperientes como eu. Correspondiam à largura da sala. No lado oposto às toaletes,
a entrada, com uma divisão em vidro, uma porta, uma catraca e uma urna de madeira envernizada,
na qual o porteiro depositava os ingressos, depois de recebê-los e rasgá-los ao meio. Além dessa
porta, as bilheterias, os dois ou três degraus de uma larga escada e a rua, de onde vinha o barulho
dos bondes que subiam e desciam, além dos ônibus e dos automóveis. A fachada do cinema era
bem ampla, ocupando toda a largura do prédio, bem iluminada e com os anúncios dos próximos
filmes.
Mas voltemos ao local onde eu me encontrava. À minha frente, na parede, os cartazes, as
fotos relativas aos próximos filmes e, bem na minha direção, junto àquela mesma parede, o pivô
desta história: uma máquina onde se tomava água.
Fique tranqüilo por alguns instantes. Volto já.
Eu morava a poucos metros dali, no número 1.024 da Rua Vergueiro e gostava daquele
cinema. Era simpático, confortável e bem freqüentado. Cada quinta-feira, um filme novo. Eu ia
sempre lá, ao menos a cada 15 dias. Os tempos eram difíceis, os desencontros eram tantos, as
dificuldades eram inúmeras. Por isso, eu o procurava, e, nele, mergulhava num outro mundo,
muitas vezes de sonhos ou fantasias, à procura de alguns momentos mais tranqüilos, ainda que
ilusórios. Terminada a sessão, acendiam-se as luzes, abriam-se as portas e se chegava à rua. Nela,
o ruído dos bondes indicava o meu reencontro com a vida e com a realidade. Andando
calmamente, mas pensativo, em poucos instantes eu chegava à pensão do número 1.024,
empurrava o portão de ferro, subia três degraus, percorria um estreito terraço com colunas de ferro
à antiga, entrava, atravessava a sala, a um só tempo de visitas e de jantar, um pequeno corredor, a
cozinha e, depois dela, o meu pequeno quarto. E dormia sonhador e pensativo. No dia seguinte,
tudo começava de novo.
Se você voltar agora à sala de espera do Cine Leblon, vai me encontrar ainda lá,
tranqüilamente sentado, com os pés sobre aquele carpete bem fofo e bem vistoso, olhando
atentamente para aquela máquina onde se tomava água.
Embora ainda não a tivesse usado, uma máquina daquelas não constituia novidade para
mim. Pouco tempo antes, ainda em Marília, haviam instalado uma delas, no cinema, mas eu não
chegara a tomar daquela água.
Enquanto eu esperava pela sessão das oito do Cine Leblon, via, a três ou quatro metros
de distância, bem à minha frente, que as pessoas se aproximavam da máquina, via que dela jorrava
água e que as pessoas tomavam, saindo enxugando a boca com um lenço. Senti sede, talvez
sugestionado pelo que via. E andei até a máquina, e nela me apoiei com as duas mãos, como
faziam todos, e esperei pela água. Mas nada. Não saiu água nenhuma, de lugar nenhum. Que
sacanagem!
Muito tímido como sempre, senti que o mundo inteiro ria do meu fracasso. E como o
mundo dava gargalhadas, era preciso disfarçar. Saí, como quem não queria nada, e fui para a
toalete. Mesmo lá, o mundo inteiro me via e ria de mim. Simulei um xixizinho rápido, lavei as
mãos, penteei os cabelos (pelo menos disfarçar eu sabia) e voltei para aquele mesmo lugar,
naquele mesmo sofá. E continuei olhando para a máquina. As pessoas chegavam, apoiavam-se
nela e a água jorrava, atraentemente.
- Tem que haver um botão. Já sei, há um botão que eles apertam, concluí.
Segunda tentativa. Apoiei-me na máquina com as duas mãos, como todos faziam, e a
examinei bem de perto. Nada. Não havia botão algum. Apenas um mistério: uma água que jorrava
para todos, menos para mim.
Por favor, acredite-me, nas duas ou três vezes seguintes em que fui àquele cinema, foram
mais três ou quatro tentativas. Nunca havia água para mim. E nada de desvendar aquele mistério.
A cada tentativa correspondia uma visita disfarçada à toalete.
Até que, enfim, numa daquelas noites, caminhei resoluto para a máquina, enquanto
pensava: agora ou nunca. Cheguei, mas, antes que apoiasse as mãos sobre ela, senti que havia
chutado algo estranho lá embaixo. Olhei e exclamei de mim para mim mesmo:
- Seu filho de uma p... de pedal, só agora você apareceu?
Em vez de chutá-lo novamente, como bem merecia, eu o acionei mansamente com a
ponta de um dos meus sapatos e... você seria capaz de adivinhar o que aconteceu? Fácil, não? A
água jorrou exuberante e não demonstrando ter qualquer preconceito contra mim.
Não me lembro de ter encontrado outra máquina daquela, cujo mecanismo funcionava à
base de um pedal. Mas a experiência com ela me mostrou, e me ensinou, que as belezas da vida
podem também ocorrer ocultas, como aquela água, sem, com isso, nos levarem à conclusão que
não existem. Basta procurá-las, e insistir, como eu havia insistido com a água, identificando e
localizando algum “pedal” que, acionado no momento exato, nos permite encontrá-las.
O NÚMERO, POR FAVOR
Naquelas primeiras semanas em São Paulo, as minhas necessidades eram muitas e a
minha experiência, pouca, ou nenhuma. Tudo me parecia difícil. Eu já estabelecera uma rotina
para atender às minhas necessidades mais imediatas e não via como sair dela, à procura, quem
sabe, de maior eficiência nas minhas idas e vindas. Para se ter uma idéia disso, basta citar a
“ginástica” que eu fazia quando precisava telefonar. Acredite se quiser, mas, morando no Paraíso,
deixava o telefonema para a próxima ida à cidade. Lá, atravessava todo o centro e me dirigia até as
proximidades da Estação da Luz, onde se localizava o hotelzinho em que fiquei no primeiro dia,
depois da minha chegada. Na pequena portaria havia um telefone para os hóspedes, mas eu o
usava sempre. Parecia-me que aquele era o único disponível na cidade, ao menos para mim. Não
se pagava pelo uso do telefone naquela época.
Algum tempo depois fiz uma descoberta “extraordinária”, bem próxima da genialidade.
Na Rua Vergueiro, pouco abaixo do número 1.024 onde eu morava, e alguns metros antes do Cine
Leblon, havia um bar. Aos domingos, início da noite, eu ia até lá para tomar o meu lanche. Numa
daquelas vezes fiz a descoberta. Sobre o balcão havia um telefone. Era diferente dos outros, mas
parecia ser um telefone. Daqueles que ficavam de pé, com o fone de ouvido dependurado num
gancho. Foi uma descoberta importante. A partir daquele dia, quando eu precisasse telefonar,
bastaria andar alguns metros, e pronto. Não precisaria mais tomar o bonde, que custava 50
centavos, ir até a Praça João Mendes, descendo na frente da Padaria e Confeitaria Santa Teresa,
que ainda existe, atravessar a cidade e chegar até as proximidades da Estação da Luz, no Hotel
Magalhães. Que alívio! Eu descobrira o segundo telefone em São Paulo. Pelo menos, que eu
pudesse usar. Lá estava ele, sobre o balcão, perto da caixa registradora, e talvez à minha espera.
- Deixa comigo, pensei. Na próxima vez, venho aqui. Estação da Luz? Só quando
precisar ir para Marília.
Aquela descoberta seria um avanço extraordinário rumo à minha eficiência.
Não sei dizer quantos dias se passaram até que eu precisasse de um telefone. Mas chegou
o dia. E lá fui eu. Entrei no bar, resoluto e confiante. Pedi permissão à mocinha que se encontrava
na caixa registradora e peguei o fone, que estava disciplinadamente no gancho. Enquanto o
coloquei no ouvido esquerdo, levei e dedo indicador da mão direita para a base do aparelho, a fim
de fazer a ligação. Mas uma terrível surpresa me aguardava: aquele telefone não tinha o disco de
números. Ora, como eu poderia fazer uma ligação naquelas condições? Que diabo de telefone
seria aquele? Desapontado e envergonhado, recoloquei o fone no gancho, agradeci à mocinha e saí
“de leve”. Afinal, segundo me parecia, o mundo inteiro ria de mim.
Lembro-me que, em seguida, retomei a rotina e fui usar aquele telefone, o único que
funcionava para mim, perto da Estação da Luz. Mas, dois ou três dias depois, voltei àquele bar.
Disfarçadamente, como quem não queria nada, examinei o telefone atentamente, a uma certa
distância. Ele tinha uma base, uma haste que sustentava o bocal onde se falava, o gancho com o
fone de ouvido nele dependurado e um fio que ia do fone à base. Mas nada de números.
- Não é possível, exclamei de mim para mim mesmo. Como funcionaria aquilo?
Eu havia descoberto um telefone. Faltava-me agora descobrir a maneira de usá-lo.
Informar-me era algo proibido. Iam ficar sabendo da minha ignorância. E a minha timidez também
contava, e bastante! Ele devia funcionar. Do contrário, o que fazia lá, em cima do balcão?
Passou algum tempo, não muito tempo, mas eu continuava usando o único telefone que
conhecia. E que funcionava! O do Hotel Magalhões, lá perto da Estação da Luz.
Voltei ao bar num domingo, à noite, para o meu lanche. Uma cena bem sugestiva me
esperava: alguém falava ao telefone. Agora eu tinha a prova. Aquilo funcionava mesmo. Os
números deviam estar escondidos em algum lugar.
No dia seguinte, depois das aulas, fui lá. Pedi permissão, levei o fone ao ouvido e
comecei a procurar os números. Nada na parte superior da base, redonda e de metal cromado.
Nada embaixo dela. De repente, um susto. Ouvi uma voz de mulher que vinha pelo fone, ouvido
adentro:
- O número, por favor.
Era apenas a voz de uma telefonista, operadora da Companhia Telefônica Brasileira, que,
se conhecesse a minha história, teria dito:
- Seu boboca, esse telefone não é automático; diga-me o número, que eu faço a ligação
para você.
Mas não informei número nenhum. Assustado e surpreso, coloquei o fone no gancho,
agradeci à mocinha e saí sem telefonar, mas feliz da vida. O mistério havia sido desfeito e agora
eu tinha um telefone, que também funcionava, bem perto da minha pensão. Uma “sorte” incrível,
não?
Só depois fui me lembrar que, anos antes, em Marília, eu já havia usado uma geringonça
daquela. Mas era daqueles quadrados e escuros que ficavam presos na parede. Imaginava que
aquilo seria coisa do passado e que não existisse mais.
Difícil era saber quem estaria mais “por fora”: aquele telefone, que ainda precisava de
uma telefonista, ou eu, que não conseguia me adaptar às coisas da Capital.
DE BRAÇOS DADOS
Passados os primeiros meses em São Paulo, que foram vividos na pensão da Rua
Vergueiro, 1.024, minha irmã Diva e eu decidimos morar juntos. Fomos para uma pensão, na Rua
Urano, cuja história será contada em seguida. Depois fomos morar com uma família, na Rua
Rodrigo Cláudio, com seu Antônio, dona Yolanda e seus dois filhos, o Walter e o Rubens. Depois,
já na companhia de minha irmã Elza, que chegara do Paraná, alugamos parte de uma casa, na Rua
Pires da Mota.
Foram três anos de vida em comum.
Mas é bom explicar algumas coisas sobre minha irmã Diva. Ela perdera a visão por volta
de 1932, quando tinha oito anos. Mais tarde, foi levada para o Instituto Padre Chico, no bairro do
Ipiranga, em São Paulo, onde foi alfabetizada no sistema Braille e onde fez o então chamado
Grupo Escolar, correspondente aos quatro primeiros anos do atual 1º Grau. O Curso Ginasial, que
correspondia aos últimos quatro anos do atual 1º Grau, foi feito em Belo Horizonte, no Instituto
São Rafael. Nessa escola fez vários amigos. Entre eles, seis moços, também deficientes visuais,
que decidiram fundar um conjunto vocal. Esse conjunto se profissionalizou e se tornou conhecido
nacionalmente com o nome de Titulares do Ritmo.
Portanto, na maior parte de sua vida, minha irmã Diva esteve longe dos pais e dos
irmãos. Apenas durante as férias estava em casa, e por algum tempo mais, depois de haver
terminado o curso em Belo Horizonte.
Desde pequeno, durante suas férias, eu aprendera a estar com ela e a atender às suas
necessidades mais imediatas, deficiente visual que era, e que é. Em troca, aprendi alguma coisa do
alfabeto Braille, chegando a ler as cartas que nos enviava. Mais tarde, essas cartas eram escritas à
máquina, com o alfabeto comum. Sempre me senti bem próximo dela, mas me lembro que quando
ela chegava, depois de bastante tempo fora, sentia-me envergonhado e sem jeito, só me
aproximando e dando-lhe a mão depois que ela me chamava e depois das primeiras palavras à
distância.
Mas, em 1953, isso tudo já pertencia ao passado. Enquanto eu estava na pensão da Rua
Vergueiro, e mesmo antes, a Diva morava na Rua 21 de Abril, no Brás, na casa de uma amiga.
Antes disso, morava na casa de nossa prima Jandira, que, depois, se mudou para Ferraz de
Vasconcelos. Fomos então, eu e a Diva, para a pensão da Rua Urano. Estávamos agora juntos e
deveríamos enfrentar a vida, juntos.
Eu estudava no Colégio Bandeirantes, enquanto ela, depois de bastante esforço, acabou
conseguindo um emprego nas Indústrias Dante Ramenzoni, que ficavam na Rua Lavapés, esquina
com a Rua Scuvero, não longe do Largo do Cambuci. Eu a levava, a pé, pela manhã e a buscava à
tarde, usando sempre o mesmo meio de transporte, isto é, os nossos pés. Se você olhar no mapa e
procurar as ruas Urano e Rodrigo Cláudio, onde morávamos, terá uma boa idéia das nossas duas
caminhadas diárias, (no meu caso, quatro) com calor ou com frio, com sol, com chuva ou com
garoa.
Nos fins de semana, nos feriados ou nos períodos de férias, mas principalmente no início
daquela fase, eu saia com ela, de braços dados, de bonde ou de ônibus, à procura dos seus amigos,
que viviam espalhados pela cidade. Cambuci, onde moravam três dos Titulares do Ritmo, Vila
Mariana, Lapa, Jardim São Paulo, Brás, entre outros, eram os lugares mais visitados.
Certo dia, fomos à Rua Faustolo, na Lapa, onde morava uma de suas amigas, cujo nome
não me lembro. Em dado momento, essa sua amiga, também cega, sentou-se ao piano e me
perguntou:
- O que você deseja ouvir?
- Sei lá; você escolhe.
Tocou então, para mim, a Serenata, de Schubert. Eu já gostava bastante daquela música,
mas, a partir daí, ficou ainda mais bem gravada no meu espírito, tocando profundamente a minha
sensibilidade. Durante vários e vários anos, fiz comparações entre ela e as outras músicas que
ouvia, tendo como parâmetro a maneira como cada uma delas atingia e provocava a minha
sensibilidade. A Serenata, de Schubert, acabou sendo eleita a minha música predileta, nada
existindo que a consiga superar. Só um gênio como Franz Schubert, num dia de rarissima
inspiração, poderia tê-la feito.
Certa ocasião, fomos informados de que um transplante de córnea poderia devolver a
visão à minha irmã. Fomos procurar o oculista que nos fora indicado, no Instituto Penido-Burnier,
em Campinas. Feitos todos os exames, o médico me fez um sinal, que não entendi bem, mas nos
pediu que voltássemos algum tempo depois. Voltamos e ela foi examinada novamente. Chamoume a sós e me informou que a cegueira dela era irreversível. As cicatrizes eram muito profundas e
muito antigas, inviabilizando qualquer transplante. Coube-me a difícil missão de informá-la sobre
aquilo.
Mais tarde, minha família chegou do Paraná e fomos viver todos juntos, trabalhar juntos,
lutar juntos, rir e chorar juntos. Os nossos bons tempos já haviam passado e agora tínhamos que
enfrentar o período das “vacas magras”, ao qual me refiro em outro lugar. Até que, em maio de
1958, nos casamos três. Minha irmã Hilde, no dia 3; eu, no dia 10; a Diva, no dia 31. Casou-se
com o Orlando, também deficiente visual, e me deu três sobrinhos: o Carlos Alberto, a Élide e o
Duílio.
Se é verdade que sempre me senti feliz por ter sido útil a essa minha irmã, também é
verdade que me recrimino, porque, reconheço, poderia ter feito bem mais. Passei a cuidar mais de
mim, a pensar mais em mim do que nela, a partir da época em que nos casamos.
Quando pequeno, ainda lá na Água da Panela, em Oscar Bressane, quando a conduzia
para qualquer lugar, lembro-me que constantemente me abaixava para retirar de seu caminho os
mais insignificantes objetos, como os sabugos de milho, por exemplo, por medo que neles
tropeçasse. Quando adulto, e por algum tempo, fui a luz dos seus olhos, trazendo até ela, em
palavras, tudo aquilo que ela não podia ver. E entendi que a vida nos ensina bastante, à luz do sol
ou à luz artificial, mas nos ensina também quando envoltos pelas trevas, uma vez que a mais
importante luz nos vem do coração e da alma, e nos ilumina através do amor.
RUA URANO, 157
Por volta de 1947, eu havia acompanhado uma novela pela Rádio Nacional do Rio de
Janeiro, cujo nome não me lembro, mas que tinha uma personagem chamada Emília, em cuja
pensão moravam quase todos os outros personagens da novela. Constituiam uma autêntica família
e, volta e meia, homenageavam a dona da pensão, cantando uma música na qual diziam:
Na casa de dona Emília,
a gente se sente em família.
Quem mora na sua pensão
mora também no seu coração.
Alguns anos mais tarde, fui viver uma experiência semelhante. Aliás, foram três as
experiências. Estivera na pensão da Rua Vergueiro, 1.024, no Paraíso, como já relatei, e estivemos
depois na casa de dona Yolanda, na Rua Rodrigo Cláudio, mas agora, já com a minha irmã Diva,
eu morava numa outra pensão, não distante dali. Ficava na Rua Urano, 157, na Aclimação, quase
na esquina com a Rua Castro Alves. Foi numa época, entre 1953 e 1954, em que as ruas da
Aclimação eram livres e desertas, podendo-se nelas passear a qualquer hora do dia ou da noite.
Aqueles que tinham automóvel - não eram tantos como hoje - tinham sempre o espaço livre tanto
para andar quanto para estacionar.
Se substituirmos “Emília” por “Carolina”, teremos conseguido uma primeira
aproximação entre a fantasia, na novela acima citada, e o real. Mas a história começara antes.
Decididos a morar juntos, eu e minha irmã, fui ter àquele endereço, não me lembro
como. Talvez uma placa junto à rua. Dona Pierina viera de Itapeva para tentar a vida em São
Paulo. Era viúva e trouxera um filho solteiro. Éramos meia dúzia de hóspedes: minha irmã, eu e
mais quatro ou cinco, professores e professoras primárias, vindos quase todos também de Itapeva.
Não constituíamos uma família propriamente, mas não aconteceram brigas sérias nem assassinatos
entre nós.
Pouco tempo depois, não me lembro quanto, decidiram voltar para Itapeva e deixaram os
hóspedes à vontade para que encontrassem outro lugar. Os professores saíram logo, mas eu e
minha irmã demoramos mais, uma vez que estávamos na dependência da escola onde eu estudava
e da fábrica onde a Diva trabalhava.
O nosso prazo estava vencendo, estávamos mesmo pelo “soar do gongo”, quando o
Dema, um dos meus amigos da Igreja de Santo Agostinho, me informou que sua família pretendia
morar na Aclimação, de preferência numa casa grande, para alugar alguns quartos. O negócio foi
feito. Em vez da troca dos hóspedes, houve a troca do senhorio. Eu e minha irmã fizemos o papel
do gato. Como você sabe, pelo menos nos tempos que já se foram o cachorro sempre
acompanhava o dono, na mudança, e o gato sempre ficava na casa. E continuamos na Rua Urano,
157, agora com dona Carolina, viúva e mãe de vários filhos: Reinhold, casado com dona Lúcia,
mas que continuou morando no Jabaquara; Walter; Waldemar (o Dema); Wladimir, que não foi
morar lá, e a Maria. Apareceram mais alguns hóspedes, inclusive o Teruel e o Dáfnis, meus
amigos de Marília, que ficaram lá por pouco tempo.
De ascendência alemã, dona Carolina era uma senhora já idosa, porém de boa saúde e
muito bem disposta. Apesar da origem, sabia preparar uma macarronada como poucas donas de
casa o sabiam, entre aquelas que já haviam cruzado ou cruzariam o meu caminho. Nesse
importante item, o item da macorronada, cumpre destacar a mulher com quem eu me casaria
alguns anos depois e uma das cozinheiras da Gessy-Lever, bem mais tarde. Ainda dentro desse
item, principalmente no caso do espaguete, uma das mais importantes criações da humanidade,
cumpre-me lamentar a atuação de minha própria mãe e de minha sogra. Evidentemente, sabiam
preparar outras comidas, e bem.
O sr. Reinhold Arnoldi está inserido no capítulo “Outros pais” e o Walter, no capítulo
dedicado aos meus bons e melhores amigos. O Dema (Waldemar Arnoldi) tinha um hábito curioso
às refeições. Pegava o prato, descascava uma banana nanica e a amassava calma e eficientemente
com o garfo, antes de colocar o arroz e o feijão sobre ela.
Por algum tempo, seu Reinhold (o Dinho, como era chamado), dona Lúcia e seus dois
filhos, a Cleide e o Cleomir, ficaram lá. A família aumentou, os diferentes comportamentos
levaram a rusgas um pouco mais sérias, mas nada que o tempo não conseguisse apagar de maneira
cristã e definitiva. O Cleomir, quase sempre amigão do peito, mas, por vezes, inimigo declarado,
morreu bem moço, antes dos 50, mas depois de ter se tornado avô.
Éramos uma família autêntica, inclusive com rusgas e desentendimentos, como eu disse,
encontradiços em qualquer lugar. Lembrava-me, bem de perto, a pensão de dona Emília, da
novela.
Aos sábados, havia feira naquela rua, mas isso não nos atrapalhava muito porque não
havia garagem naquela casa, não existiam automóveis e ninguém sabia dirigir. A não ser aqueles
que ficavam no quarto da frente, sempre incomodados pelo barulho na rua, a partir das duas da
madrugada, quando começavam a chegar os feirantes.
A Maria, feia e solteirona, pagava lá os seus tributos por essas duas condições que
ditavam a sua maneira de ser e de agir. Era realmente insuportável, rabugenta, mas já a perdoei faz
bastante tempo e haveria por certo de abraçá-la carinhosamente se a vida me fizesse a gentileza de
poder reencontrá-la. Acho que ela também me perdoou. Afinal, nunca lhe faltou o troco, em suas
grosserias. Ela foi a responsável pela nossa saída de lá, antes que quiséssemos.
Mas dona Carolina, também pelo seu espaguete mas principalmente considerada em seu
todo, como pessoa, conseguiu se inserir na minha história. Mereceria uma canção como aquela de
dona Emília, da novela.
Trinta anos mais tarde, recebi um telefonema dando-me conta de sua morte. Deixei o
trabalho e fui ao Hospital do Servidor Público, não para cantar todas as canções que ela merecia,
mas para lhe dar um “tchauzinho” e lhe dizer “obrigado por tudo, mas principalmente pelo
espaguete”.
OUTROS PAIS
Depois da minha primeira semana em São Paulo, fui morar na pensão da Rua Vergueiro,
1.024, como já escrevi inúmeras vezes. E tratei, desde logo, de me integrar à minha nova paróquia,
católico praticante que era, e com algum fervor.
Rapidamente fiz amigos. Muitos ou poucos é complicado dizer, como explico em outro
lugar. Mas se você fizer questão de um número, posso dizer que eram mais de duas dúzias, talvez
três.
Entre esses amigos, alguns dos mais chegados me levaram a seus pais - ou eles vieram a
mim - pais que, em pouco tempo, se transformaram em amigos também; mais que isso, passaram a
me tratar como se fossem os meus verdadeiros pais, os pais que eu não tinha em São Paulo,
naqueles idos de 1953, 1954 e boa parte de 1955.
Os primeiros desses novos pais foram dona Maria Emília e seu Carlos Alberto, os pais
do Antônio Carlos, do Adérito, do Carlinhos e da Nair, uma corinthiana de quem eu ainda não
havia falado. Esses meus “pais” eram portugueses de nascimento e portugueses bem típicos na
aparência e no sotaque. Bastava ver os brincos de dona Maria Emília para se saber onde ela havia
nascido. Bastava ver o rosto redondo e a barba cerrada do seu marido para saber de onde ele viera.
Dona Maria Emília se não estava na igreja estava sempre em casa. A exemplo da porta da frente, o
seu sorriso estava sempre aberto para me receber a qualquer dia, mas a sua “especialidade” parecia
ser aos domingos, depois da missa, quando me recebia com um café bem quente e forte, com bolo
ou com bolacha. Eles já se foram e estão com Deus, certamente ao lado do Antônio Carlos e do
Adérito, mas permanecem comigo, ao menos na minha lembrança e na minha gratidão.
Outros “pais” que tiveram a delicadeza e a grandeza de me adotar como filho, além dos
que já tinham, a Cleide e o Cleomir, foram seu Reinhold Arnoldi e dona Lúcia, sua gorduchinha,
baixinha e quase santa mulher. O Dinho, como era chamado, andava sempre ocupado, atarefado e
preocupado com o sustento do lar. Tratava-me como filho, mas principalmente como homem,
retribuindo a admiração e o respeito que eu tinha por ele. Bastante católica, fervorosa mesmo,
dona Lúcia parecia-me um poço de virtudes. Esposa dedicada, mãe amorosa e nora bastante atenta
na dedicação à família do marido, ainda tinha tempo para mim. Recebia-me freqüentemente em
sua casa, no Jabaquara, e me dispensava ternura e carinho. Foi um ombro amigo, tendo sempre
uma palavra de ânimo e conforto todas as vezes que eu lhe expunha os meus problemas ou
chorava as minhas mágoas. Fui vê-la, não faz muito tempo, depois de 40 anos. Viúva, recebeu-me
com alegria e com o mesmo carinho de antes. Junto à mesa da cozinha, recordamos alguns
momentos entre tantos que tivemos, enquanto uma vela ardia ao lado de um terço e de um livro
religioso, mostrando que a sua fé permanecia intacta. Eu nunca soube se dona Lúcia chorou por
mim algum dia, mas, com certeza, se preocupou bastante comigo, como se fosse a minha própria
mãe.
Com a Esmeralda conheci sua mãe, dona Maria, e seu pai, seu José. Daí, o nome de sua
irmã, Maria José. A familia se completava com o Bruno porque a Catarina já havia se casado.
Como digo na crônica dedicada à Esmeralda, dona Maria exigia a minha presença assídua em sua
casa, na Rua Pires da Mota. Os domingos estavam quase sempre reservados a dona Maria Emília,
mas pelo menos duas vezes por semana lá ia eu, para o café da tarde e para o aconchego de um lar
e de uma amizade que me fazia bem e que me dava alguma força naqueles dias difíceis. Até que
um dia, por motivo que a minha memória decidiu apagar de forma definitiva, decidi afastar-me de
lá. E o fiz de maneira segura e determinada. Mas uma verdade não pode ser escondida, agora e
nunca: a minha gratidão pelo bem que me fizeram e pelo bem que - nunca duvidei - quiseram para
mim. Se lhes fiz injustiça ao me afastar, espero que me tenham perdoado. Caso contrário, saibam
que o que sobrou foi gratidão, jamais mágoa.
Outros pais existiram, seu Plank e dona Maria Luíza, mas, como já falei deles antes, fica
aqui apenas mais essa referência a duas pessoas que, sem nenhuma outra intenção que não fosse
me fazer o bem e o melhor que podiam, “adotaram-me” como filho.
Como digo em outro lugar, eu poderia me considerar uma pessoa feliz naquela época,
apesar das dificuldades, porque, tendo onde pretendia chegar na vida, nunca me faltou (a bem da
verdade, nunca me faltou) alguém que me amasse, alguém que se preocupasse comigo, alguém
que estivesse sempre disposto a rir comigo ou a chorar comigo, a me dar a mão acolhedora e a me
oferecer um sorriso de amizade e de ternura.
Com relação a esses outros pais, o tempo haveria de me mostrar que aplicaram a mim
pelo menos uma parte da oração de São Francisco, na medida em que procuraram me
compreender bem mais do que serem compreendidos por mim. Mas, como sou brasileiro, acredito
que possa dar um jeitinho nisso. Como o santo de Assis não fez nenhuma referência ao tempo,
penso que, mesmo depois de tantos anos, eu também os tenha compreendido, o mínimo que lhes
posso oferecer agora, além das lágrimas que o seu amor justifica e que os meus olhos não
conseguem segurar.
AMIGOS
Se não existe uma linha divisória entre o amigo e o inimigo, também não deve existir
qualquer limite entre as diversas categorias de amigos. Desde o “amigão do peito”, aquele amigo
para todas as ocasiões, aquele que está presente sempre que dele precisamos, até o simples
conhecido, vai uma gradação bem grande, ficando bastante difícil a classificação de cada um
deles, se isso fosse necessário. Em consequência, fica também bastante difícil dizer quantos
amigos se tem ou quantos se teve, também se tal contagem fosse necessária.
Seja como for, entendo que não tive muitos amigos. No ambiente de trabalho, por
exemplo, sempre tive amigos de verdade, em profusão, mas quase todos se restringiam ao
ambiente de trabalho, fato que os desqualifica como “amigos do peito”.
É importante também observar que, segundo me parece, os meus amigos sempre foram
mais amigos meus do que eu, amigo deles. Não me pergunte por que, porque não sei. Talvez
porque eu tenha uma dificuldade maior em me doar, um traço de personalidade que recebeu o
nome de egoísmo.
Acredito que, considerando todos os fatores, feito o somatório de prós e contras e
analisadas as diferentes épocas e circunstâncias, acredito que o meu melhor amigo tenha sido o
Teruel. Apareceu-me à frente pela primeira vez a 11 de março de 1948, um pouco antes da nossa
aula inaugural, no Colégio Estadual e Escola Normal de Marília. Ele estava “na estica”, muito
bem vestido, alinhado, penteado, “englostorado” e perfumado. Aliás, o Teruel sempre andou bem
arrumadinho. Juntos, vivemos os nossos doces anos de Marília, na escola, na Igreja e nas nossas
aventuras por ruas, praças e avenidas. Estivemos juntos por algum tempo em São Paulo. Estudou
Medicina em Ribeirão Preto, mas fez quase toda a sua carreira médica nos Estados Unidos,
trabalhando na Organização Mundial da Saúde. Casou-se com a Sônia Leda, a sua namoradinha lá
de Marília, a primeira e única, mas, para que a coisa começasse, precisaram de um empurrãozinho
meu.
O Paulo César foi também um amigo e tanto, mas restrito à escola. Lá, fomos bem mais
amigos ele e eu do que eu e o Teruel. Conhecemo-nos no curso de admissão. Fazíamos juntos a
nossa caminhada de ida para a escola e voltávamos também juntos. Muito raramente nos
separávamos durante as aulas ou durante o intervalo para o recreio. Foi o meu maior concorrente
nas aulas de redação, sempre ele em primeiro lugar. Aposentado já há algum tempo, vive hoje
tranqüilo em São João da Boa Vista.
O Dáfnis foi um bom amigo, prestativo, leal, mas foi menos amigo que o Teruel.
O João Lunardelli, um vizinho lá de Marília, não pode ser esquecido. Foi o meu melhor
amigo de bairro. Íamos juntos à Igreja, ao cinema e “passear na avenida”, tarefa que nos estava
reservada para os sábados e domingos, à noite.
Em São Paulo, o Antônio Carlos foi o meu melhor amigo. Conhecemo-nos na Igreja e
vivíamos no mesmo bairro. Ele morava na Rua Apeninos e eu, em diversos lugares, mas sempre
“por ali”. Companheiro no nosso grupo de teatro e no nosso time de futebol, mas principalmente
companhia certa em festinhas e bailinhos. Ele, eu, a Rose e a Neide formávamos um quadrado “de
peso”. Seus dois irmãos, o Adérito e o Carlinhos, também não podem ser esquecidos nesta lista. O
Antônio Carlos já está com Deus. O Adérito também, já faz bastante tempo.
No ambiente de bairro e de Igreja, um bom amigo foi o Walter, companheiro de várias
jornadas no nosso grupo de teatro. Certa vez, num sábado, fomos ao circo do Radamés, que estava
em Santo Amaro. Esperava-nos aflito. A peça era “A Escrava Isaura” e haviam faltado dois atores.
Sem ensaio algum, apenas com algumas lidas no texto, “quebramos o galho” para o Radamés.
Seu irmão Dema, irmão do Walter, aquele que gostava de banana no fundo do prato,
antes do arroz e do feijão, também foi um bom amigo.
O Chiquinho, Francisco Giantaglia, casado com a Dalce, apesar de algumas encrencas
conseguiu ser o meu padrinho de casamento. Foi o meu fiador na compra do meu primeiro
aparelho de televisão. Pudera, ele era o chefe do crediário onde eu havia feito a compra, numa das
lojas Isnard, que ficava na Rua 24 de Maio. Paguei tudo direitinho, até a última prestação.
Oriundos do ambiente de trabalho, poucos se consagraram como amigos, que aqui cito
como muito boas exceções. O Talal, com quem trabalhei na Walita e na Willys Overland do
Brasil, foi um deles. “Amigo do peito”, ofereceu-me a sua própria casa como local mais adequado
para que eu pudesse estudar, quando decidi voltar aos vestibulares. E ainda com direito a uma
xícara de café sírio, gentilmente preparado e servido por sua mãe. O Talal ainda pode ser
encontrado na Rua Afonso Celso, 727, na lanchonete do “Tigrão”.
Nessa mesma categoria está o João Roberto, uma das pessoas mais puras que conheci.
Doava-se como poucos. Tivera uma infância pobre e difícil, mas trabalhou e venceu. Pode ser
encontrado entre os conselheiros do Palmeiras.
Como o João Roberto, também o Fausi foi um colega de trabalho que se transformou em
amigo. Não tão puro quanto o João Roberto, porque pensava muito em dinheiro, mas com
extraordinária vocação para a amizade sincera e despretensiosa. Doava-se ao extremo.
Não podem ser esquecidos o Brambilla, a Dalva e o Reinaldo, o nosso “chuchu”.
Por fim, um amigo bastante especial, especialíssimo mesmo. Fui apresentado a ele
quando eu ainda era uma criança. Durante muitos anos não o entendia bem. Todos falavam dele e
quase todos o respeitavam. Com o passar do tempo, fui aprendendo bastante sobre ele e fui
admirando-o cada vez mais. Jamais mentiu. Desde logo, começou a me ensinar coisas
extraordinárias. Ensinou-me que eu devia amar a Deus sobre todas as coisas e ao próximo como a
mim mesmo. Sempre procurou me mostrar o valor do perdão, da fé, da esperança e, sobretudo, da
caridade. Tudo o que ele me ensinava eram verdades indiscutíveis, muito fáceis de entender,
quando comparadas com as dificuldades imensas em praticar. Acompanhou-me, e continua me
acompanhando em cada instante da minha vida, guiando os meus passos, dando-me a mão nas
horas mais difíceis e mesmo carregando-me ao colo sempre que necessário. Como nos outros
casos, que citei acima, é infinitamente mais meu amigo do que eu, dele. Quando me foi ensinado o
pai-nosso, disseram-me que era uma oração ensinada por ele mesmo. Dizem que ele morreu há
2.000 anos, mas eu não acredito, porque ele continua comigo. Dizem que foi porque ele me ama,
coisa na qual eu realmente creio.
IVETE
Fazia quase um ano que eu estava em São Paulo. A minha vida religiosa, estendendo-se
também à social, havia se transferido da Igreja de Santo Antônio, em Marília, para a Igreja de
Santo Agostinho, na Liberdade. Eu já me sentia em casa. Participava do grupo de teatro e
integrava o time de futebol. Arrumava encrencas nos dois lados. No teatro, só quando ensaiava; no
futebol, só quando jogava. Mas acho que quase sempre eu tinha razão porque, no fundo, gostavam
de mim e me respeitavam, como eu a eles. Éramos uma verdadeira família, desde os mais
chegados, não mais do que uma dúzia, até a “gang” completa, talvez mais de 40.
Programamos um piquenique para o domingo, 17 de janeiro de 1954. Seria no Pico do
Jaraguá. Iria bastante gente, inclusive pessoas das famílias de vários de nós. Acho que uns 30.
No meio da semana, a Esmeralda me informou:
- Convidei minha prima Ivete. Ela disse que vai. Vamos nos encontrar na Estação da
Luz.
A propósito, a Esmeralda era muito minha amiga. Mas, com certeza, queria ser algo
mais. Sua história também é muito bonita. Acho que vou contá-la mais tarde. Sabe, faz muitos
anos que não a vejo. Mais de 40. Ela tinha os olhos verdes... como as esmeraldas.
Mochilas prontas, comida dentro delas, e lá fomos nós. A maioria tomou o ônibus 10,
Norte-Sul, na Rua Vergueiro, no outro lado do número 1.024, mas eu não morava mais lá. Outros
foram direto para a Estação da Luz.
Antes das oito, fui apresentado à Ivete. Morena, cabelos e olhos bem pretos, bonita, mas
muito magra para o meu gosto. Ela trabalhava numa butique, em algum lugar da cidade, e parece
que morava em Santana.
Sentamo-nos no mesmo banco. Ela parecia ser um “bom papo”. Eu não era, pelo menos
naquela época.
Não me lembro quanto tempo demoramos até a Estação do Jaraguá. Mas foi rápido,
mesmo porque a conversa estava boa. Depois, uma longa caminhada até a encosta do morro.
Fomos juntos, a Ivete e eu. Falávamos pouco, mas nos olhávamos bastante. Descansamos à
sombra, mesmo porque o sol já se fazia quente. Sempre juntos. As palavras haviam ficado no
trem, mas os olhos estavam atentos. Foi uma longa caminhada, contornando o morro, até
chegarmos lá em cima. Nem todos foram até lá. Foi bastante cansativo. Ela precisou de ajuda
algumas vezes, o que não lhe faltou. O sol, o morro e os ventos, que não eram uivantes. Uma vista
atraente, não apenas da cidade, ao longe, mas também da Ivete, bem perto. Depois, a volta. Como
sempre, por ser descida, todos os santos ajudaram.
É bom lembrar que, naquela época, não havia infra-estrutura alguma no Pico do Jaraguá.
Tudo o que havia e que estava na encosta do morro, onde alguns ficaram com as mochilas e
sacolas, eram algumas mesas de concreto, por entre as árvores. Não me lembro bem, mas parece
que havia um pequeno lago. Além disso, uma clareira bem ampla, com bastante grama. A subida
até o pico do morro, bastante íngreme, fora feita sobre pedras e capim. Nada de estrada.
Próximo do meio-dia, estávamos todos ali, junto às mesas, para o lanche. Talvez eu
tenha levado pão com mortadela. Mas todos experimentavam a comida de todos.
Para mim, agora o grupo se resumia a duas pessoas: eu e ela. Para ela, ela e eu.
Conversas e brincadeiras. Enfim, passamos algumas horas em perfeita harmonia. Todos
conversavam com todos, menos aqueles dois.
Alguns resolveram descansar à sombra, deitados na grama. E lá estávamos nós, bem
próximos um do outro, olhando-nos emudecidos. Uma relva um pouco mais alta se interpunha
aos nossos olhos. Ela a alcançou com a mão e, tombando-a, segurou-a, a fim de que pudéssemos
nos fitar melhor. Silêncio entre nós. Somente os olhares falavam.
Iniciamos a caminhada de volta. Nós dois à frente, agora de mãos dadas. O cortejo ia
atrás, sabe-se lá pensando o quê.
Às seis horas chegou o trem. A turma toda dentro dele, acho que todos no mesmo vagão.
E, juntos e de mãos dadas, a Ivete e eu. Nas poucas palavras ditas no trem ficara certo que o
namoro havia começado. Depois das despedidas na Estação da Luz, o caminho de casa. A Ivete e
eu iríamos nos encontrar não sei onde, não me lembro o dia e nem a hora.
Mas fui lá. Esperei bastante, e nada. A Ivete não foi. Voltei outra vez, mas não a
encontrei. Essa história de telefone viria só depois; não era típica daquela época.
Falei com a Esmeralda:
- Sua prima “me deu o cano”.
- Não é possível! Vocês estão namorando?
- Não sei. Pelo menos no domingo, estávamos, mas agora ela sumiu!
- Vou falar com ela.
Alguns dias depois, encontrei a Esmeralda.
- E então?
- Ela disse que não foi possível naquele dia. Sabe, ela trabalha bastante na butique da
mãe dela.
Vamos encurtar a história?
Depois daquele domingo, 17 de janeiro de 1954, nunca mais vi a Ivete. Até hoje! E olhe
que já se foram 44 anos! Se foi namoro o que aconteceu naquele único dia em que a vi, com
certeza merece, pelo menos hoje, ir para o Livro Guinness dos Recordes, como o namoro mais
curto da história da humanidade.
Nota: Não estou seguro quanto ao nome dela; talvez fosse Arlete.
EU NÃO SABIA POR QUÊ
Dizem os historiadores que um dos nossos bandeirantes dedicou toda a sua vida,
enquanto desbravador deste país, à procura das pedras dos seus sonhos: as esmeraldas. Contudo,
não foi uma história com um final feliz, porque, segundo nos contam, teria ele morrido antes de
ver as suas esmeraldas, embora tivesse nas mãos, na hora suprema da agonia, algumas pedras
verdes que, apesar de verdes, não eram as suas sonhadas esmeraldas.
Fernão Dias Paes sonhou com as esmeraldas, mas jamais as teve. Enquanto isso, eu, que
nunca sonhei com elas e nem as procurei, convivi com duas, embora não fossem pedras; eram
gente.
A primeira das esmeraldas, que Deus permitiu fosse colocada à minha frente, foi a minha
inesquecível professora de Português, no Colégio Estadual e Escola Normal de Marília. Figura
ainda mais rara do que a própria pedra, jamais esteve longe do meu alcance, do meu
reconhecimento e da minha saudade, ao contrário das outras esmeraldas, que estiveram longe das
mãos do nosso bandeirante.
Mas eu teria ainda uma segunda esmeralda. De olhos verdes e verdes, como as sonhadas
esmeraldas do bandeirante, essa Esmeralda não foi um amor frustrado de adolescente, não foi uma
amizade profunda e definitiva, não foi uma afeição limpa e duradoura, não foi um bem-querer
sincero e consciente, não foi uma doação instintiva de quem deseja se doar ou de quem espera que
essa doação ocorra. Essa Esmeralda foi um momento fortuito, um momento expandido para uma
época, para um período breve de uma juventude, período que correu tão rápido que sequer foi
visto acontecer. Talvez tenha sido nada mais do que um equívoco.
Tendo chegado a São Paulo em fevereiro daqueles idos de 1953, de imediato fiz
inúmeros amigos, graças à minha prática religiosa, em Santo Agostinho, como digo também em
outros lugares. A Esmeralda, pele clara, cabelos castanhos e olhos verdes, fazia parte daquele
mundo. Eu ia freqüentemente à sua casa, na Rua Pires da Mota. Pode-se dizer que a minha
presença lá era exigida. Sua mãe não me dava o direito de me ausentar de sua casa por mais de
dois ou três dias. Recebia-me sempre com café e bolo, no mínimo, e sempre fui tratado com amor
e carinho, como se fosse um filho. Aliás, eu já escrevi isso antes, na crônica “Outros pais”.
Por algum tempo, talvez um ano ou mais, a Esmeralda e eu vivemos uma juventude
aparentemente tranqüila. Cada um se preocupava em preencher o tempo e a imaginação do outro,
principalmente ela.
- Vamos ao cinema?, convidou-me certo dia.
- Não tenho dinheiro. Você paga?
- Pago. Você já conhece o Marrocos? É o cinema mais moderno e mais chique da cidade.
Levou-me para uma das laterais do cinema, eu não sabia por quê. (Em qualquer cinema,
eu nunca me sentava em outro lugar que não fosse no centro). Escolheu um lugar isolado, quase
sem ninguém, eu não sabia por quê. Segurou-me pela mão, eu não sabia por quê. E começou uma
efervescente sessão de “amasso”, eu não sabia por que, mas participei, eu não sabia por quê.
Numa outra ocasião, antes ou depois do Marrocos, numa sexta ou num sábado - se não
foi na manhã do sábado foi na manhã da sexta, ou foi na tarde da sexta, ou foi na noite da sexta,
mas foi - ela me convidou:
- A simpatia tem alguma coisa a fazer à noite (no sábado)?
- Não, nada.
- Vamos passear de bonde? Pegamos o Angélica aqui no Paraíso e vamos até a Praça do
Correio, pela Paulista, Angélica e São João. Depois a gente volta pelo mesmo caminho. Você
conhece o bonde Angélica? É uma delícia! Macio! Com aqueles bancos de palhinha, desliza suave
e gostoso. Topa?
Sete horas do sábado, já escuro, pegamos o Angélica no último ponto da Rua Vergueiro,
antes que ele entrasse à direita, na Rua do Paraíso. Alguns minutos depois, de repente, puxou-me
pelo braço:
- Vamos descer aqui.
Descemos, eu não sabia por quê. A Av. Angélica, a Av. São João e a Praça do Correio
tinham ido “para o espaço”, eu não sabia por quê.
- Aqui é o Trianon, sabia? Muita gente vem namorar aqui. Mas é preciso tomar cuidado!
Qualquer coisa, sempre tem um guarda para dar uma dura na turma.
Levara-me para um lugar romântico, naquela época, eu não sabia por quê. Era um lugar
seguro naquele tempo, iluminação bem típica e mais ou menos escassa. Sentamo-nos bem
próximos um do outro, eu não sabia por quê. Antes, eu estendera o meu lenço sobre o banco,
conforme exigia o hábito naquele 1953. Conversamos bastante sobre várias coisas. Eu permanecia
“na minha”, mas não sabia por quê. Ela estava bem próxima a mim, mas eu não sabia por quê.
Perguntou-me o que eu achava do beijo (em 1953), mas eu não sabia por quê. Disse-lhe que era
bom, mas eu não sabia por quê.
Conversamos por mais algum tempo e depois saímos de lá, pegamos o bonde Angélica e
voltamos para casa, esquecendo-nos da Av. Angélica, da Av. São João, da Praça do Correio e do
deslizar suave, tranqüilo e gostoso daquele bonde, eu não sabia por quê.
Numa outra ocasião...
- Rubens, pelo amor de Deus, você precisa me ajudar. Tem um cara lá do Brás que está
de olho em mim, mas eu não quero saber dele. À noite, ele vai falar com o sr. Reinhold, na sua
pensão, e é preciso que eu vá, por causa do assunto que vai ser tratado. “Se manca, ein”, mas hoje
você vai ser o meu noivo, para ver se ele desgruda.
Talvez tenha sido a minha melhor interpretação, entre todas as minhas “investidas” no
teatro, desta vez no papel de noivo. Braços dados, meu bem de cá, amorzinho de lá, e assim foi,
até que, terminada a reunião, o infeliz (ou feliz) pretendente pegou um ônibus na Rua Vergueiro,
para não mais aparecer.
Até que um dia, como consta nos registros da minha memória, mas eu juro que não me
lembro por que, decidi que eu precisava me afastar da Esmeralda e de toda a sua família. E o fiz
com segurança e determinação.
Quarenta e dois anos mais tarde procurei o seu nome na lista telefônica. Eu queria falar
com ela, talvez para lhe pedir desculpas, ou para, esquecidos os possíveis desatinos, recordar um
pouco daqueles bons tempos. Mas ela não quis falar comigo, dizendo-se ainda ressentida pelo meu
afastamento, mesmo depois de tanto tempo. Eu não entendia por que aquela mágoa havia durado
tantos anos. Talvez porque, como no caso do bandeirante, também essa Esmeralda não fosse
verdadeira.
O BONDE “ANGÉLICA”
Um fato curioso da minha vida é que quatro veículos conseguiram se inserir na minha
história. Eram de tipos, categorias, ou espécies, não sei como dizer, diferentes. Uma carroça
(tração animal), um caminhão (motor à explosão), uma bicicleta (energia humana) e um bonde
(energia elétrica).
A carroça pertenceu ao meu pai, como várias outras que ele teve antes que eu nascesse.
Mas essa era uma carroça especial, puxada pela Bolívia e pelo Ferreiro, como escrevi antes.
Ligou-se tão poeticamente à minha infância que jamais deixou de existir na minha lembrança.
Fazia barulho e dava solavancos, não por sua culpa mas por causa do caminho. Foi uma carroça
diferente. Nenhuma outra conseguiu substituí-la, nem nas funções que desempenhava e nem nas
marcas que conseguiu imprimir nos meus sentimentos. É, fui apaixonado por uma carroça!
O caminhão não passava de um “chevrolezinho”, não me lembro de que ano. Pertencera
ao meu avô, ou ao meu tio Horácio, não sei bem. Quando o conheci, ainda andava por aquelas
bandas, dirigido pelo meu primo Orlando, seu motorista oficial e dedicado. Mais tarde, aposentouse, falo do caminhão, indo parar numa garagem junto à máquina de beneficiar arroz, também dos
meus parentes. Eu ia lá com frequência, admirá-lo, para ver e sentir de perto aquele belo
representante, agora mudo, de uma época que talvez possa ser chamada de ouro. Como a carroça,
eu nunca soube como foi consumido pelo tempo. É, também fui apaixonado por um caminhão!
A bicicleta, que não sei como era porque jamais a tive, não passou de um sonho que
nunca se realizou. Já escrevi sobre isso antes e acredito que você tenha lido a crônica em que falo
sobre ela, lá atrás. Não tive a bicicleta, mas é uma linda história, não? É, fui apaixonado por uma
bicicleta, qualquer uma, mas fui!
O bonde “Angélica”, a última dessas minhas quatro paixões, não se incluiu apenas na
minha história, mas na de muita gente, uma vez que ele pertence à história de São Paulo.
Claro que “Angélica” não era o bonde, mas a linha. A minha paixão era o bonde, mas
incluia a linha. Existiam outros do mesmo tipo, em outras linhas, mas nenhum deles tinha a magia,
o encanto, o romantismo e o charme do “Angélica”.
Aquele bonde, associado à sua linha, era algo parecido com Deus, porque não tinha
início e não tinha fim. Saindo da Praça João Mendes, que nunca se soube se era o início ou o fim
da linha, subia a Av. da Liberdade e, depois, a Rua Vergueiro. Entrava à direita na Rua do Paraíso
até ganhar a romântica e quase deserta Av. Paulista. Descia um pedacinho da Consolação e depois
virava à esquerda, até a simpática e já movimentada Av. Angélica. Lá embaixo, seguia pela Av.
São João, a mais famosa de São Paulo, naquela época. Ao passar pelo Largo do Paissandu, entrava
à esquerda, contornava o quarteirão e parava à frente do Correio. Tudo isso por 50 centavos. Sem
definir se aquele ponto era o início ou o fim, voltava pelo mesmo caminho.
Como não ia para nenhum bairro e como não vinha de nenhum deles, aquele bonde
raramente estava muito cheio. Quase sempre, só pessoas sentadas, conversando, olhando a
paisagem ou lendo algum jornal ou alguma revista.
Era confortável, com poltronas almofadadas e revestidas por “palhinha”. Alguns até o
chamavam de “o bonde de palhinha”. Era silencioso e macio, bem a caráter para aqueles tempos,
que a história consagrou como os nossos anos dourados. Poder-se-ia dizer que era um meio de
transporte sofisticado e compatível com uma época na qual ainda se viam senhoras de chapéu
andando pelas ruas. Seria lícito também dizer que se tratava de um bonde tipicamente burguês,
uma vez que, trafegando por áreas nobres da cidade, tinha uma “clientela” mais ou menos
selecionada. Parecia não levar ninguém, de nenhum lugar para parte alguma. Os seus passageiros eu os observava - na maioria se restringiam a uma viagem bem curta.
Talvez por isso tudo eu conseguia me identificar com ele, porque, ainda assustado e
perdido na cidade grande, nem sempre eu tinha um lugar definido para onde ir nem alguma coisa
muito importante para tratar. O bonde “Angélica” parecia estar sempre “descompromissado”,
como eu, parecendo que estava transportando pessoas sem pressa, sem compromisso com
ninguém, nem com o horário e nem mesmo com as compras.
Enfim, o bonde “Angélica”, bonito, confortável e macio, parece ter existido bem mais
para ficar na história do que para transportar pessoas, pelo menos como um transporte de massa, a
finalidade teórica que ele tinha. E conseguiu passar para a história, ao menos para a minha, talvez
porque eu sempre o tivesse visto de uma maneira especial, como via a carroça do meu pai, ou o
caminhão do meu avô ou do meu tio, ou ainda como sonhava ver a minha bicicleta, que ainda não
chegou.
Não consigo ver o “Angélica” num dia de chuva nem num dia triste, como não consigo
imaginá-lo num dia de frio ou de muito calor. Aquele era um bonde bastante especial, que se
identificava apenas com o sol ameno e gostoso de abril, que parecia não gostar da chuva nem da
garoa, ainda bastante comum naquele tempo. O “Angélica” era alegria, era sorriso, era confiança e
era otimismo. “Viveu” numa época em que o assalto ainda não tinha sido inventado, pelo menos
em São Paulo. Certamente, não teria jeito algum para servir de palco para roubos ou assaltos,
típicos de hoje. Ele parecia ser muito puro e muito nobre para se expor a esses espetáculos torpes,
que, curiosamente, começamos a assistir só mais tarde, depois que os bondes desapareceram de
São Paulo.
Acabaram com eles e também o “Angélica” desapareceu, sendo obrigado a fazer o seu
último trajeto até a garagem. Se acabar com os bondes por si só já foi um crime hediondo e
inafiançável, fazer desaparecer o “Angélica” foi um pecado mortal inconcebível.
Mesmo assim e mesmo que fosse possível, eu não gostaria que ele voltasse. O que ele
iria encontrar hoje seria altamente incompatível com o seu estilo, com a sua elegância e com a sua
grandeza.
Como se vê, como se não bastassem a carroça, o caminhão e a bicicleta, apaixonei-me
também por um bonde. Pode?!
ALUNO DO BANDEIRANTES
A fama do Colégio Bandeirantes chegara a Marília nos idos de 1952. Diziam ser o
melhor de São Paulo. Decidida a minha vinda, lá estive, em janeiro de 1953, reservando a minha
vaga.
Tendo chegado definitivamente a São Paulo no primeiro dia de fevereiro, confirmei
minha matrícula logo em seguida, apesar do alto custo e apesar das minhas dificuldades
financeiras. Essa questão, contudo, já relatada em outros lugares, fica aqui posta de lado.
Como decorrência da opção pelo Colégio Bandeirantes, fui morar na pensão de seu
Daniel, o infeliz genro de dona Argentina, na Rua Vergueiro, 1.024, local que hoje é ocupado pelo
Centro Cultural de São Paulo. De lá até a escola era um pulinho. Eu ia a pé. Cruzava a Rua do
Paraíso, chegando logo depois ao Largo Guanabara, tendo, à esquerda, a Catedral Ortodoxa, que
ainda lá se encontra, e, à direita, a Igreja de Santa Generosa, num imponente estilo, mas que
depois foi demolida para dar passagem à Av. 23 de Maio e sendo reconstruída mais tarde, bem
próximo dali. Em seguida, eu passava em frente ao Colégio Ipiranga, cruzava a Rua Correia Dias e
chegava à Rua Stela. Entrava à direita e, logo depois da Rua Cubatão, lá estava ela, a minha nova
escola.
Minha turma era o 2º CM, onde o C significava Científico e o M referia-se à Medicina.
Embora os tempos do Bandeirantes estejam mais próximos de hoje do que os tempos do
Colégio Estadual e Escola Normal de Marília, as lembranças são bem mais vagas e as emoções,
bem mais amenas. Talvez porque na época do Bandeirantes eu já mergulhara firme no meu
período das “vacas magras”, não havendo tempo e nem lugar para sentimentos nem
sentimentalismos. Eu tinha uma dura realidade pela frente, e era preciso vivê-la e enfrentá-la.
Embora viesse de um colégio estadual, naquela época de bom nível, agora, freqüentando
uma escola de nível excelente, era natural que eu sentisse um pouco a mudança, embora isso não
me tivesse causado transtornos muito sérios. Adaptei-me à escola e creio que me saí bem.
O que fazia o nome do Colégio Bandeirantes era o nível do ensino, mas é bom ressaltar
que lá encontrei algo mais, talvez tão importante quanto esse nível: a disciplina. Nível de ensino e
disciplina são fatores fundamentais para quem se orienta para a vida. O Colégio Bandeirantes
colocava ambos à disposição de seus alunos. Era só saber aproveitar. Acredito que consegui fazêlo.
Além do currículo normal do Curso Científico, complementava-se o curso com algumas
disciplinas das outras séries, à tarde, visando o exame vestibular. Alguns dos meus colegas
lograram ser aprovados no vestibular, sem o chamado cursinho.
Vários dos meus colegas de turma têm os seus nomes gravados na minha memória.
Porém, como não me lembro de todos, melhor será não citá-los. O mesmo ocorre com os
professores. Mas seria impossível, e mesmo injusto, deixar de citar alguns. Em primeiríssimo
lugar, o prof. Rosemberg, a maior capacidade didática que já tive à minha frente. Embora fosse
engenheiro químico, era o meu professor de Física. Dedico uma de minhas crônicas a ele; chamase TIMIDEZ. Quase como um deus, o prof. Isaac Mario Rosemberg ocupa lugar de destaque na
minha vida. Seria também impossível esquecer o prof. Silvio Dias da Silveira, o homem que
encerrava as suas aulas de Química pontualmente no horário, apenas alguns segundos antes do
soar da campainha, embora não usasse relógio. O prof. Moreira (Matemática), o prof. Neme
(Trigonometria), o prof. Geraldo Camargo de Carvalho (Química), o prof. Marcelo (Zoologia), o
prof. Alencar Barros (Botânica), o prof. Ariosto Giaquinto (História) e outros, cujos nomes me
fogem, mas cujas fisionomias retenho gravadas na minha memória, são alguns daqueles que
contribuíram para a minha formação e de quem jamais vou me esquecer.
Fora da sala de aula, sempre é bom recordar a mercearia próxima à esquina, onde às
vezes se comia um lanche gostoso de pão com presuntada, bem como o veículo de um padeiro
que, estacionado nas proximidades, nos vendia uma deliciosa broa de fubá.
É interessante relatar um fato, a fim de ilustrar a importância que se dava à disciplina.
Certa vez, um dos alunos da minha turma, de família tradicional em São Paulo, quebrou
propositadamente uma das vidraças da nossa sala. Foi chamado à Diretoria. Alguns instantes
depois, pelo serviço de som, o prof. Aguiar, que era o diretor, nos comunicou que, além de ter que
pagar o conserto da vidraça, tinha sido expulso do colégio. Consternação no primeiro instante e
revolta no segundo, foi a reação da minha turma, que, no dia seguinte, numa manifestação típica
de estudantes irresponsáveis, decidiu “peitar” a Diretoria da escola, fazendo ver ao diretor que,
confirmada a expulsão, todos deixariam o colégio, em sinal de solidariedade. Opuz-me àquilo e
não aderi, uma vez que, responsável como eu já era, devia explicações aos meus pais e a mim
mesmo, além do meu amigo Plank, responsável por mim na escola. Além disso, eu não aceitava e jamais aceitei - que deveria sair da escola porque um irresponsável havia quebrado uma vidraça.
Absurdo!
A notícia da disposição de quase todos os alunos da minha turma de abandonar a escola
chegou aos ouvidos do prof. Aguiar, cuja figura jamais vi pessoalmente. Pouco depois, o prof.
Barifaldi entrou na sala e, com a permissão do professor que lá estava, disse-nos:
- Tenho um recado do dr. Aguiar. As portas do Colégio Bandeirantes estão abertas para
todos aqueles que quiserem sair. Ele abre mão, inclusive, do compromisso assumido por vocês na
matrícula e acaba com o 2º CM se necessário, mas a expulsão do colega de vocês está mantida.
Tenham um bom dia.
E deixou a sala. (Na matrícula, cada aluno assumia o compromisso de pagar a escola até
o fim do ano, mesmo que abandonasse o curso. O prof. Aguiar abria mão daquele compromisso
para todos aqueles que, em solidariedade ao expulso, quisessem deixar o colégio).
O que eu assisti então foi a vitória da firmeza, do pulso e da disciplina. Vi os “valentes”
revoltosos, com a “cauda entre as pernas”, se acomodarem em suas carteiras, com a disposição de
continuarem como alunos do Bandeirantes. E continuaram.
Foram apenas dois anos de Colégio Bandeirantes. Difíceis, porque os tempos me eram
difíceis, mas profundamente enriquecedores e dos quais me orgulho. Ponto alto do meu currículo e
da minha história.
CINQÜENTA CRUZEIROS
Este foi um dos episódios mais marcantes em minha vida. Aconteceu em abril de 1955.
Dois anos antes, minha família havia se mudado de Marília para Nova Esperança, no
norte do Paraná. Aquela região havia se transformado no novo centro da agricultura cafeeira. As
terras eram de excelente qualidade e a produtividade agrícola, principalmente no caso do café, era
inigualável. Natural e lógico, portanto, que o meu pai transferisse os seus interesses para lá. Em
1951, vendera tudo o que tinha em Oscar Bressane e aplicara em terras, no Paraná. Naquele início
de 1953, os meus irmãos já se encontravam lá, preparando o terreno e fazendo o plantio dos novos
cafeeiros. Mas as previsões apontavam para dias difíceis. Sem os cafezais de Oscar Bressane não
teríamos renda, da mesma maneira que não a teríamos em Nova Esperança, uma vez que os novos
cafeeiros só começam a produzir após três anos. Foi um risco calculado.
Enquanto o meu pai, a minha mãe e as minhas irmãs menores foram para o Paraná, eu fui
para São Paulo, cuidar da minha vida, que, em tudo, seria diferente da deles. Foi um período
financeiramente difícil para mim e para eles, como relato também em outro local.
Na metade daquele ano de 1953, uma forte geada marcaria o início do fim de uma era
que eu poderia chamar de ouro, na vida do meu pai. Os horizontes quanto à produção de café, com
a renda subseqüente, foram dilatados e, além disso, com o agravante da incerteza. Os sonhos
acabariam por completo em agosto de 1955, quando uma segunda e definitiva geada iria arruinar
por completo os negócios do meu pai. E lançar sombras sobre o resto de sua vida.
Daí se infere que os meus dois primeiros anos em São Paulo foram extremamente
difíceis. Se no Paraná, sobreviviam, porque, afinal, plantavam, colhiam e tinham pelo menos a
comida, em São Paulo tudo era diferente. Despesas com a pensão, com a escola (eu insistira em ir
para um dos colégios mais caros) e ainda as minhas despesas pessoais. Só Deus sabe os sacrifícios
que os meus pais fizeram para, heroicamente, me sustentar.
Longe do Paraná e vivendo irresponsavelmente a minha vida, eu não tinha idéia, nem
mesmo aproximada, da extensão do drama terrível que lá viviam. Era certo que os dias de fastígio
haviam ficado para trás. Eu vivera um período de ouro, financeiramente sem preocupações.
Costumo relatar um dado interessante para ilustrar esse período da minha vida, que terminou no
início de 1953. Nos últimos anos de Marília, entre aqueles a quem eu poderia chamar de amigos e
com quem eu convivia, vários deles tinham apenas um terno; alguns, nem mesmo um. Eu tinha
cinco. Ilustrei bem? Portanto, era-me difícil entender que os tempos haviam mudado e que
vivíamos agora o período das “vacas magras”. Para tudo era preciso dinheiro. Eu o procurava, mas
não o encontrava.
Chegou o mês de março de 1955.
Feitos os meus primeiros exames vestibulares para Medicina, nos quais não obtive
secesso, chegara o momento de conhecer o Paraná e sentir de perto a situação difícil em que
viviam meus pais, meus irmãos e minhas irmãs.
Reunidos os meus últimos trocados e pedido emprestado o que me faltava, para a minha
irmã Diva, sem saber quando e como iria pagar, tomei um trem para Marília e, de lá, três ônibus
para Nova Esperança. Essa viagem, tanto a ida como a volta, merece ser contada em capítulo
especial, que será o próximo.
Cheguei pela manhã. Receberam-me com alegria. Deixei-me ficar entre eles e, por
quatro semanas, convivi com eles. Tentei participar do trabalho deles, mas para mim tudo era
pesado e difícil. O meu irmão Álvaro iria se casar no dia 16 de abril, Sábado de Aleluia, e eu
deveria ficar para o casamento. Eu não conseguia perceber ou visualizar qualquer problema.
Trabalhavam felizes, sol a sol, trabalho duro e difícil, mãos grossas e calejadas, à espera da
primeira colheita do café, colheita que jamais viria, em virtude das duas geadas que arrasaram os
cafezais e mutilaram os sonhos e as esperanças.
Alguns dias antes do casamento, fiz os cálculos para a minha volta. Faltava algum
dinheiro. Procurei meu pai e lhe disse que voltaria no domingo, depois do casamento.
- Faltam-me 50 cruzeiros para a volta, informei a ele.
Não era muito. Equivalia a seis ou sete quilos de alcatra, ou a cinco ingressos de cinema,
em São Paulo.
Passados dois dias, voltei a ele e insisti quanto ao dinheiro. Vi quando seu Gentil, meu
pai, procurou um vizinho, seu compadre, e pediu 50 cruzeiros emprestados. Senti que o mundo
desabava sob meus pés. Eu recebera a informação que me faltava. Agora eu entendia a extensão
do drama imenso que vivíamos todos. Meu pai, que sempre me oferecera de tudo, em abundância,
agora não tinha aqueles míseros 50 cruzeiros. Chorei amargamente. E entendi, por fim, a
gravidade dos meus desmandos em São Paulo, exigindo um colégio caro, morando numa pensão
que poderia ter sido mais modesta, recusando viver num quarto compartilhado com amigos e não
transferindo o meu curso para a noite, a fim de deixar o dia para o trabalho que me sustentasse e
que aliviasse os sacrifícios que faziam por mim. Eu havia conseguido uma vaga no Colégio
Estadual Presidente Roosevelt, na Rua São Joaquim, mas, comparando-o com o Bandeirantes, tive
a coragem e a ousadia de rejeitá-lo.
Agora, na ocasião dos 50 cruzeiros que meu pai não tinha, quanto àquilo tudo, “Inês era
morta” e nada mais se poderia fazer. A dor pelo arrependimento, imposta pela consciência, foi
tremenda.
Tendo me arrependido bastante e tendo chorado também bastante, só me restava um
caminho decente: trabalhar de verdade e construir a minha própria vida, com o meu próprio
esforço e dependendo apenas dele. Deus foi suficientemente bom para me conceder saúde,
determinação e discernimento para seguir por esse único caminho. Eu tinha então pouco mais de
20 anos.
Até agora já se foram 43 anos. E estou aqui.
À LA INDIANA JONES
Tendo o dinheiro suficiente, com os 50 cruzeiros que o meu pai me dera, emprestados
pelo seu compadre, eu estava pronto para a volta. O meu irmão se casara no Sábado de Aleluia, 16
de abril de 1955. Não havia dinheiro para festa, mas houve um almoço especial naquele sábado,
com direito a carne de porco. Desabituado com aquela comida, ela me causou um desarranjo
intestinal durante a noite. Mas aquilo seria apenas o início da minha aventura. Aliás, a ida já fora
uma aventura.
Na ida, um mês antes, eu havia tomado o primeiro ônibus em Marília, de onde saí às seis
da manhã, para chegar a Londrina depois do meio-dia. Foram mais de seis horas, para uma
distância aproximada de 200 quilômetros. Às três da tarde saí para Maringá, já com um rombo na
mala. Acidentalmente, tinha sido rasgada. Não era minha. Eu havia deixado a mala em Marília e
levado a da minha irmã Ada. Não mais do que 100 quilômetros até Maringá, mas foram quase
quatro horas. Com a cidade às escuras, passei a noite num hotelzinho chamado “Bom descanso”,
construído de madeira e iluminado por lamparinas. Apesar do nome sugestivo, não foi um bom
descanso. No dia seguinte, o terceiro ônibus e cheguei a Nova Esperança.
Agora, a viagem de volta.
Chovera bastante durante a noite e chovia ainda na manhã daquele domingo. Além da
chuva, uma outra “chuva”, nos meus intestinos. Meu pai me avisou que voltar por Maringá e
Londrina seria impossível. Nenhuma estrada era asfaltada e a lama tornaria a viagem impraticável,
fato comum nas terras vermelhas do Paraná. Aconselhou-me uma outra rota, por onde as estradas
eram melhores. Minha mãe preparou uma batida de clara de ovo com limão e açúcar. Um santo
remédio para o mal que me acometera, aquela dor de barriga que me estragara a noite anterior.
Minha bagagem constituía-se de uma mala velha e rasgada, de papelão, que era da minha
irmã de Marília, e de uma enorme sacola com não sei quantas dúzias de ovos, devidamente
empalhados (acondicionados um a um em palha seca de milho, como era hábito) e que eu levava
para a minha irmã. Eu mancava bastante com o pé esquerdo porque, nos últimos dias, havia usado
umas botas um pouco grandes, que me esfolaram o calcanhar. Portanto, qualquer um que me
visse, me acharia uma droga. Isto, sem falar na “parte interna”, por conta dos intestinos, em briga
com a carne de porco.
Às nove horas, chovendo lá fora e barriga roncando lá dentro, tomei um ônibus da
Viação Andorinha, que havia saído de Mandaguari e que ia a Presidente Prudente. Observação
importante para aquele caso, isto é, o meu desarranjo intestinal: não havia toalete a bordo, nem
naquele ônibus e nem em qualquer outro daquela época.
Duas horas depois, a primeira parada. Não me lembro do nome da cidade, mas fui ao
banheiro. Tudo em ordem. O remédio da minha mãe havia funcionado bem.
Viajei o dia inteiro naquele domingo, com muita chuva e muita lama.
Em Pirapozinho, uma hora antes de Presidente Prudente, subiu uma jovenzinha e sentouse ao meu lado. Morava naquela cidade, mas trabalhava em Presidente Prudente, como secretária
de uma advogada, que era nissei. Passava os fins de semana em casa e voltava para o trabalho no
fim do domingo. Fizemos boa amizade. Chegando a Presidente Prudente, ela foi comigo até a
estação, onde guardei a minha linda bagagem e verifiquei o horário do trem para São Paulo. Mas
eu iria só até Paraguaçu Paulista, de onde seguiria para Marília, a fim de levar os ovos e devolver a
mala rasgada, além de pegar a minha, que lá estava. Trem, só as dez e meia, e ainda não eram sete.
Eu havia recebido um convite dela para um lanche na casa da japonesa, para quem a minha nova
amiga trabalhava, e para uma sessão de cinema, se desse tempo. Fomos pra lá. Fui recebido como
se fosse um velho amigo. Fiz um reconfortante xixi e me lavei como me foi possível, sem poder
mudar de roupa, porque não tinha a mala comigo. De volta à sala de jantar, a mesa estava posta.
Parecia um banquete. Deixaram-me à vontade e comi feito um doido, ou como aquele frade dos
filmes de Robin Hood. Agradecimentos e um até logo, ou um adeus.
Como ela havia previsto, o cinema já estava lotado e, por isso, já tinham fechado as
portas. Como não chovia mais, passeamos um pouco pela cidade. Depois, uma despedida bem
simples.
Incrível essa história, não? O nome dela? Pois não: Elvides Rocha.
Comprei uma passagem até Paraguaçu Paulista, peguei a mala rasgada e a sacola com os
ovos e entrei. Esperei um pouco e lá veio o trem. Mas, surpresa, ele veio do lado errado. Talvez
não fosse aquele. Perguntei ao chefe da estação, que estava por ali, para onde ia aquele trem.
- Para São Paulo, respondeu-me.
Eu havia viajado tanto e dado tantas voltas em Presidente Prudente, que me achava
desorientado. Subi no trem. Ou entrei, se você achar melhor. Sentei-me ao lado de um senhor que
dormia, mas que bocejou naquele momento. Ainda incrédulo quanto ao destino do trem, mudei a
pergunta:
- Para onde o senhor vai?
- Para São Paulo, respondeu-me e voltou a dormir.
Parecia mentira, mas o trem estava indo para o lado certo. Eram dez e meia da noite de
um Domingo de Páscoa, 17 de abril de 1955.
Eu tinha medo de dormir e passar do ponto da minha descida. Não havia dinheiro para
qualquer outra improvisação. Era uma e meia da manhã quando desci na estação de Paraguaçu
Paulista. Mancando, carregando tudo com dificuldade e com sono, cheguei a um pequeno hotel
que o meu pai havia recomendado. O ônibus para Marília sairia às seis e seria um desperdício
gastar dinheiro com hotel, por poucas horas. Lá na frente, na esquina, viam-se luzes que pareciam
vir de um estabelecimento comercial, ainda aberto. Fui ver. Era um bar com duas mesas de
“snooker”, mas, se você preferir, leia “sinuca”. Três pessoas jogavam numa daquelas mesas, duas
entre si e a terceira esperava para jogar depois, com quem ganhava ou com quem perdia, não me
lembro. Olhei para o quadro onde se marca a hora e se assinalam os pontos. Estava escrito: 19.20.
Portanto, jogavam havia mais de seis horas. Interessante a maneira de aqueles três terminarem o
domingo e a Semana Santa, você não acha? Encostei-me na outra mesa e fiquei assistindo. Um
deles estava um tanto embriagado. Enquanto um ia ao quadro assinalar os pontos feitos, o outro
alterava a posição das bolas. Mas nunca os pontos eram marcados corretamente; sempre a mais.
Enfim, uma roubalheira danada. Tomei um “toddy” bem quente e comi um belo pedaço de bolo,
usando parte do dinheiro que havia economizado com o hotel. Às cinco e meia o jogo continuava
empatado.
Cansado e com sono, tomei o ônibus para Marília às seis horas. Imaginava que daí a
pouco estaria devolvendo a mala para a minha irmã, pedindo-lhe desculpas pelo rasgo. Seriam não
mais do que 80 quilômetros até lá.
Porém, uma hora depois, o ônibus parou. Era impossível continuar porque as chuvas do
domingo haviam feito um barranco deslizar. Voltamos um monte de quilômetros e seguimos por
outra estrada. E toca pra frente. Ao meio-dia ainda faltavam 12 quilômetros. Fazia sol. Pouco
depois, um problema com o ônibus obrigou-nos a parar. Havia cafezal nos dois lados da estrada,
mas no mato, parecendo sítio de viúva, como dizia meu pai. Para mim foi ótimo porque iria me
servir de cama. Deitei-me sobre o capim, embaixo de um pé de café e dormi como um padre,
talvez como aquele mesmo dos filmes de Robin Hood. Duas horas depois, ou quase isso, acordei
com os gritos do motorista, que chamava por todos. Finalmente, às três da tarde, minha chegada
triunfante a Marília.
Tomei um ônibus, urbano, para chegar à casa da minha irmã. De repente, descobri que
havia tomado um ônibus errado. Desci e, a pé, mancando, cansado, sujo, com fome, com sede,
ainda com sono, nervoso e sei lá mais o que, cheguei à casa da Ada, depois de uma aventura de 30
horas, percorrendo uma distância que, pela rota normal, teria sido de 340 quilômetros, com
duração aproximada de quatro horas, nos dias atuais.
Agora, uma perguntinha: teria eu algum motivo para invejar Indiana Jones?
OUTRA FASE DIFÍCIL
A História parece ter reservado suas melhores referências para os anos 50. Parece ter
sido realmente um período esplendoroso. O Cinema, por exemplo, atingiu um estágio bem
marcante, com as superproduções. Tal fato refletiu-se sobre as casas de projeção, que se
desenvolveram bastante, tanto em número quanto em luxo e sofisticação. Isso se deveu também à
disposição do público que, quase sem alternativa, via no cinema a sua principal distração até a
chegada e a consolidação da Televisão, que chegou ao Brasil em 1950. São Paulo deixou
definitivamente de ser uma cidade provinciana para se firmar como uma metrópole moderna. Para
trás ficariam os seus traços mais bucólicos e tradicionais. Para o futuro, as grandes
transformações, incluindo-se aí, infelizmente, as dificuldades com o trânsito, a criminalidade, a
violência. A década marcou também o fim de uma era bem típica quanto ao comportamento dos
jovens, até então bastante presos à família tradicional, herdando e assumindo toda uma cultura que
lhes era transmitida pelas gerações anteriores. Nesse aspecto, os anos 50 parecem ter atingido o
seu ponto culminante, preparando talvez o terreno para a década seguinte, quando a “revolução
jovem” se fez eclodir.
Mas, particularmente para mim, aqueles anos não foram dourados. Os meus anos
dourados vieram antes, em Marília, dos 8 aos 18 anos. Financeiramente, os tempos das “vacas
gordas” tinham se exaurido. Com a transferência dos seus interesses de Marília para o Paraná,
minha família teve necessariamente de enfrentar um período de turbulências financeiras, de um
vácuo, praticamente sem rendimentos, plantando e colhendo a própria subsistência, até que os
cafezais, recentemente plantados, crescessem e produzissem. As geadas de 1953 e 1955, contudo,
encarregaram-se de projetar ainda mais sombras sobre as nossas já sombrias perspectivas de curto
e médio prazos. E o futuro, tendo chegado logo, mostrou-se bem mais incerto e difícil do que se
poderia esperar.
Já vivendo em São Paulo, a partir de fevereiro de 1953, e sem conseguir entender o que
acontecia conosco, pelo menos não conseguindo avaliar nem a extensão e nem a profundidade do
nosso drama, tentei me sustentar às custas da minha irresponsabilidade e recebendo uma ajuda
financeira que me vinha de casa, mas sabe Deus com que esforço e com quais sacrifícios.
Passados os dois primeiros anos, e vivendo às custas de sonhos e ilusões, consegui,
finalmente, tomar consciência da situação. (Veja-se a crônica CINQÜENTA CRUZEIROS).
Tendo a minha e a nossa realidade desnuda e fria à minha frente, o que me restava era
enfrentá-la com as minhas próprias forças e com a minha vontade. Os anos dourados seguiram o
seu curso, enquanto eu, ao largo, fazia o que me era possível fazer. Claro que o esplendor dos anos
50 só se tornou nítido depois deles. Se tivéssemos tal consciência naquela época, por certo eu teria
me sentido exatamente como o miserável pedinte que, sujo, maltrapilho, com fome e com sede,
passa tímido e vacilante por uma rua qualquer, enquanto ouve o murmúrio e o vozerio de uma
grande festa, numa rica e luxuosa mansão. Dessa mesma maneira, atravessei as luzes
esplendorosas dos anos 50, sem ter havido tempo para lhes sentir a beleza e o calor, sem ter tido
qualquer possibilidade de participação efetiva na sua grandeza. Estive com os anos 50, vivi com os
anos 50, mas eles não me pertenceram, eles não me viram e não me reconheceram. Eu os perdi,
embora nunca os tivesse ganho.
Embora eu tivesse vários amigos, sentia-me só, fraco, desorientado e vacilante. Trabalhei
quanto pude, ganhei o que me foi possível, estudei o que deu. Vivi mais e sonhei menos. Trabalhei
mais e me diverti menos. Foi inevitável um descompasso entre mim e o mundo; ele caminhou bem
mais do que eu. Sequer tive tempo para chorar, embora não me tivesse faltado motivo nem
vontade. Sorri pouco, bem menos do que a vida me prometera antes.
Mas Deus estava lá, em algum lugar, ou em todos os lugares, de onde me via e me
assistia, sem nunca ter me faltado, segundo creio, entendo e aceito hoje.
Sentia-me só, como ser humano e como homem. Parecia ser o momento certo para que
eu caminhasse rumo a um sonho que acalentava desde criança: a minha família. Casei-me no
início de uma noite de sábado, 10 de maio de 1958. Primeiro chegou a Rosângela, depois o
Reinaldo e a Regina Maria; por fim, o Rogério. Mas, nessa altura, os anos 50 já faziam parte da
História. O mundo vivia uma nova década, totalmente diferente da anterior. Tudo havia mudado.
O comportamento das pessoas, especialmente dos jovens; a Moral, que passou a eliminar mitos e
preconceitos, embora tenha causado sérios arranhões à sociedade; a família, que passou a viver
novas perspectivas; a Música e o Cinema, que ganharam novas e diferentes dimensões; a
Informática, que deu início à sua impressionante caminhada. Se a característica mais marcante dos
anos 50 foi o esplendor, a dos anos 60 foram as transformações.
Para mim, no entanto, quase nada mudaria. Mas isso já é uma nova história, história que,
cansativa e repetitiva, não precisa ser contada. Basta tê-la vivido.
Passados 40 anos e reconhecendo a beleza e o esplendor daquela época, resta-me um
bem modesto prêmio de consolação: o de tê-la vivido e o de tê-la sentido bem de perto, ainda que
não tivesse podido absorvê-la por inteiro, deixando-a escapar por entre os dedos, como o mel,
quando se aperta fortemente o favo.
NO QUARTEL
Tendo sido aprovados nos exames médicos e tendo sido distribuídos entre os diversos
quartéis da Capital - fato que acontecera no dia 26 de dezembro de 1955 - dirigiram-se todos aos
locais indicados, no dia 07/01/56, um sábado. Fui designado para a Companhia do Quartel
General da 2ª Região Militar, que ficava na Rua Abilio Soares, entre a Rua Tutoia e o Quartel da
PE (Polícia do Exército). Nos fundos, já de frente para a Rua Manuel da Nóbrega, mais dois
quartéis.
Eu havia tentado o CPOR, mas fui desqualificado no exame médico porque havia uma
inaceitável desproporção entre o meu peso e a minha altura. Por causa da escola, por duas vezes eu
havia pedido adiamento de incorporação, mas agora, aos 21 anos de idade, não tinha mais jeito, “a
pátria me chamava”. Era assim que diziam.
Naquele sábado, eu ainda não tinha idéia do que estava acontecendo. Perfilados,
recebemos de um oficial a informação de que, a partir daquele instante, éramos todos soldados do
exército brasileiro. Quem falava era o Comandante do Quartel, o cap. Maurício de Assunção
Cardoso, que, nas horas vagas e nas não vagas também, era o técnico da equipe de futebol
profissional da Associação Portuguesa de Desportos.
- Este ano vocês dedicarão à pátria, disse-nos ele. Não tem papai, não tem mamãe, não
tem namorada, não tem sol e nem chuva, não tem frio e nem calor. Nada poderá lhes impedir de
servirem à pátria. Aqui ninguém chega atrasado. A disciplina está acima de tudo. Para as falhas
não há explicações nem desculpas; há punição. Aqui, vocês aprenderão a ser homens.
Fomos dispensados até segunda-feira às sete da manhã, quando a sirene tocou e a turma
entrou em forma.
Foram 11 meses e uma semana, até o dia em que o Ministro da Guerra assinou a nossa
baixa. Já à paisana, deixei o quartel pela última vez, levando comigo o meu certificado de
reservista de 1ª categoria. O Ministro da Guerra era o general Teixeira Lott.
Segundo um artigo que escrevi naquela época, publicado no jornalzinho do quartel,
jornalzinho que se chamava O MOCORONGO, “o Exército é, antes de tudo, uma escola. Eu
nunca pensara antes em freqüentar tal escola. Por quê? Talvez nem eu mesmo soubesse responder
se não tivesse tido o cuidado de analisar com cautela os anos que precederam à minha entrada na
vida militar. Eu era ainda um garoto de 16 anos e mal despontara para a vida. Aqueles sonhos que
povoam a alma de todo adolescente já haviam começado a redemoinhar em turbilhões em meu
cérebro e eu era tomado por um desejo indefinível, inefável, de ser um homem senhor do mundo,
de transformar a sua marcha natural, de adaptá-lo a mim, ao meu modo de pensar” E, mais
adiante: “Aqui não aprendemos somente a defender a pátria com as armas metálicas; aprendemos
também a ser homens, a formar a nossa mentalidade com as armas da Moral, em defesa dos
interesses comuns da sociedade. A destreza nos movimentos, o desembaraço no falar, a cortesia na
arte de bem falar aos superiores, a pontualidade e, sobretudo, a obediência incondicional são o
resultado da opressão que sofremos por parte do regime militar. O senso de responsabilidade que
adquire o soldado, a abnegação e a compreensão de que lá fora, na sociedade, um depende do
outro e onde o elo a unir os povos é a cordialidade, a compreensão, a fraternidade, são jóias que
todos recebemos de presente, são medalhas, são condecorações que recebemos e que ostentamos
no peito, às vezes sem o sabermos...”
Mas isso foi escrito em 1956. Na verdade, entendo hoje que, nos termos em que se deu o
meu serviço militar, ele me foi útil apenas na medida em que ajudou na minha formação e
principalmente porque me mostrou a importância da hierarquia e da disciplina. Quanto à formação
militar propriamente dita, foi deficiente e não passou de uma piada. Tive apenas um treinamento
de tiro real, com mosquetão .30, que era novo, porque essa arma fora introduzida naquele ano.
Nesse único exercício, usei um pente com seis balas, errei todos os tiros e ainda não consegui
segurar os cartuchos vazios (ou cápsulas), que saltaram para o capim, onde tive de procurá-los
para devolvê-los todos.
Tivemos também momentos alegres e curiosos, mas seria cansativo relatá-los um
a um. O plantão da árvore, o plantão da porca, o medo - na verdade, pavor - de um soldado
chamado David (o “cobre-mira”) quando era escalado para o paiol das munições, o temido e
terrível trabalho na horta, a invasão do quartel por uma vaca, em plena madrugada, são algumas
das coisas pitorescas que ainda hoje, por vezes, voltam à minha lembrança. O subtenente Novais,
com as suas estrepolias, aqueles que não tomavam banho, os “bocas-de-rancho”, como eram
chamados aqueles que comiam demais, e o “Marta Rocha”, um soldado de bum-bum grande (que
dera origem ao apelido), eram algumas das peças folclóricas do quartel. Teve o dia em que
encheram de xixi a garrafa vazia do sargento Rank, que a usava todas as tardes quando ia ao bar
da esquina para comprar café com leite. E teve também aquela madrugada em que lambuzaram,
com “aquilo”, o cadeado da Reserva do subtenente Novais. (Reserva é o depósito de armas e
uniformes). Ainda estava escuro quando ele chegou ao quartel, como sempre fazia. Disseram que,
ao levar a chave ao cadeado, sentiu um cheiro conhecido, examinou, tateou e não teve nenhuma
dúvida sobre o que era. O autor da proeza permanece incógnito até hoje. Teve também a terrível
injeção contra o tétano, em três doses, e a noite de guarda (dia 8 de julho, com bastante frio) no
Quartel General da Zona Centro, na Rua Cons. Crispiniano, um tributo a um general já morto e
que participara da Revolução de 1932. Tivemos também as paradas militares, as marchas, longas e
sansativas, o juramento à bandeira e o meu trabalho na Tesouraria do quartel, além do campeonato
de futebol entre os quartéis e o trabalho dos pombos-correios. Fiz um curso e fui promovido a
cabo. Fui um dos redatores do jornal O MOCORONGO, do qual mantenho comigo um exemplar,
até hoje. Mocorongo era o nome que se dava ao soldado desajeitado, que não aprendia nada direito
e que, inclusive, não se cuidava quanto à aparência ou à farda. Talvez a coisa mais engraçada
tenha sido o sargento Conde tentando nos ensinar o Hino Nacional. Era fora de dúvida que ele
jamais tivera conseguido aprendê-lo.
Apesar dos pesares, não foi um ano totalmente inútil. Afinal de contas, vivi e
acumulei ensinamentos e experiências que nem todos têm.
EXAME ORAL DE QUÍMICA
O meu nome - FERNEDA - é bastante raro, não encontradiço em qualquer esquina. Ao
longo desses 765 meses já vividos, tenho observado duas coisas interessantes, e importantes, em
relação a ele. A primeira é que, quando ouvem o meu nome pela primeira vez, todos sentem uma
certa dificuldade em entendê-lo. Em geral, confundem o “F” com “S” ou “C” , às vezes o “N” com
“M” e o “D” com “T”. Inclusive, costumam achar o meu nome diferente e até mesmo esquisito. A
segunda observação é que, uma vez que ele tenha se esclarecido para as pessoas, que consigam
pronunciá-lo ou escrevê-lo corretamente, fixam-no na memória, eu diria, para sempre. Há
inúmeros exemplos, curiosos ou não, a respeito dessa facilidade que as pessoas têm em guardar o
meu nome. A vida ainda não me permitiu que eu me aproveitasse disso, tirando alguma vantagem
desse fato. Guardam o meu nome da mesma maneira que guardamos os nomes de determinadas
pessoas, geralmente famosas, ou de determinados produtos, quase sempre por insistência de algum
tipo de publicidade.
Faça um teste consigo mesmo e verá que já guardou o meu nome, embora talvez o tenha
visto ou ouvido bem poucas vezes. Daqui a 40 copas do mundo, mais ou menos, repita o teste e
verá que ainda não o esqueceu.
O meu objetivo, hoje, é contar uma historinha para ilustrar isso. Espero que a leia.
No início de 1956, eu decidira fazer exames vestibulares para História Natural, na USP.
Se você não sabe, informo que também existiam provas orais.
Numa daquelas tardes, em fevereiro, eu me encontrava no Salão Nobre da Faculdade de
Filosofia, Ciências e Letras para fazer o meu exame oral de Química.
Antes, contudo, que eu me levante para fazer aquela prova oral, duas informações mais.
Eu me encontrava no prédio daquela Faculdade, exatamente onde funcionou depois a Associação
Comercial de São Paulo, na Rua Maria Antônia. A segunda informação é bem mais importante.
Estudava-se Química Geral e Química Orgânica, dividida esta em 12 grupos de produtos:
Hidrocarbonetos, Álcoois, Fenóis, etc. Lá no fim vinham as Aminas e as Amidas. Eu estudava
bastante Química Orgânica, e gostava. Mas quando chegava lá no fim, na hora das Aminas e das
Amidas, o gosto cessava, o tempo escasseava, o desinteresse me invadia, e lá se iam Aminas e
Amidas para o espaço. Aprendi pouco sobre elas.
Dadas essas duas informações, agora estou pronto para me apresentar ao examinador e
fazer o meu exame oral de Química, candidato que sou a uma vaga no Curso de História Natural
da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras, da USP.
- Boa tarde (ele).
- Boa tarde (eu).
- Por favor, sente-se.
Sentei-me, calmo.
- Seu nome, por favor.
- Rubens Ferneda.
- Como?
- Rubens Ferneda, com “F” de “felicidade” e “n” de “navio”.
E, caprichando na pronúncia, repeti pausadamente: FER-NE-DA.
Procurou na lista, fez um “tic” no meu nome e começou.
Fiz um bom exame até o momento em que, levantando-se, me convidou para ir ao
quadro negro e, lá, me disse:
- Agora, vamos ver o que você sabe sobre as Amidas.
- Seu filho de uma p..., pensei, mas não falei, é claro.
Naquela parte do exame, fui mal. Não sei se foi por causa daquilo, mas consegui apenas
o 37º lugar naqueles vestibulares. Havia 30 vagas. Fomos ao Jânio (o governador), pedimos que
admitissem todos os aprovados, levantamos todas as necessidades da Faculdade para que pudesse
nos atender, voltamos ao Jânio, mas, nada. Se ele tivesse nos atendido, esta história não estaria
sendo contada, mesmo porque não teria acontecido o que aconteceu depois, e que relato a seguir.
Um ano depois, eu estava lá. No mesmo local, o Salão Nobre da Faculdade de Filosofia,
Ciências e Letras, da USP, eu iria prestar novamente o meu exame oral de Química e, acredite, o
examinador era o mesmo. Que ele me perdoe, mas não guardei o seu nome.
- Boa tarde (ele).
- Boa tarde (eu).
- Por favor, sente-se.
Sentei-me, calmo.
- Seu nome, por favor.
- Rubens Ferneda.
Olhou-me e, apontando-me com o dedo indicador da mão direita, afirmou:
- Você esteve aqui no ano passado.
- Sim, estive.
- Não me lembro da cara, mas me lembro muito bem do seu nome.
- Que bom!
Sorri e me mantive calmo.
O exame começou às mil maravilhas. Acho que respondi tudo certinho, até o momento
em que ele se levantou e me convidou para ir ao quadro negro, onde me disse:
- Agora, vamos ver o que você sabe sobre as Amidas.
Por pouco não respondi:
- O mesmo que no ano passado, isto é, quase nada.
Depois, desci as escadas (o Salão Nobre ficava no primeiro andar, junto à rua) com um
pensamento:
- Vá gostar de Amidas no inferno. (Para não dizer, na p.q.p.)
Não sei se foi por causa das Amidas, mas, também naquele ano, 1957, não consegui
minha aprovação nos vestibulares. Mas me restou uma desvairada satisfação ao ver, mais uma vez,
a facilidade com que as pessoas guardam o meu nome.
Quanto às Amidas, acredite quem quiser e explique quem puder.
TIMIDEZ
Há um traço curioso, aparentemente paradoxal, na minha personalidade. Nasci tímido,
cresci tímido e permaneci tímido durante boa parte da minha vida; pelo menos até os 25 ou 30
anos, ou ainda mais. Apesar disso, participei de dois grupos de teatro amador e desenvolvi um
pouco da arte de falar em público. Consegui algum destaque em ambos.
A timidez sempre me criou situações no mínimo embaraçosas. Já relatei a história da
máquina de tomar água, a do telefone que não tinha o disco de números, além de ter feito várias
outras referências a ela, como no caso da Clarice Sanches, para dar mais um exemplo.
Fato curioso relativo a essa timidez é que jamais me permiti me encontrar com qualquer
dos meus professores fora da sala de aula, ou, pelo menos, fora do ambiente escolar. Talvez
porque os tivesse sempre colocado numa categoria superior àquela dos simples mortais. O prof.
Miguel, por exemplo, que me ensinava Desenho no Colégio Estadual e Escola Normal de Marília,
costumava ir à missa todos os domingos. Como eu também ia, era importante me desviar dele,
usando outra porta e me colocando do lado em que ele, habitualmente, não estava. O prof. Tristão
e dona Norma estavam sempre no cinema, mas eu sequer os cumprimentava. Não me lembro por
que, mas certa vez tive que ir à casa de dona Rosinha, a minha professora de Francês. Foi terrível.
Uma das histórias mais interessantes sobre a minha timidez, e também relacionada com a
minha fobia por professores, quando deslocados do seu ambiente, talvez tenha sido aquela que
envolveu o prof. Rosemberg, do Colégio Bandeirantes.
Como digo em outro lugar, o prof. Isaac Mário Rosemberg foi um dos meus três maiores
ídolos, entre os meus professores. Fui seu aluno em 1953 e 1954.
Terminado o Curso Colegial e experimentado o meu primeiro fracasso quanto aos
vestibulares, a vida me obrigou a trabalhar para sobreviver, antes que eu pudesse estudar até onde
pretendia ou conseguisse e depois das duas tentativas para História Natural, como relatei antes.
No início de 1962 achei que poderia voltar a estudar, ainda que fosse à noite e desde que
conseguisse uma bolsa. Fiz minha inscrição para um concurso a algumas vagas-premios, no Curso
9 de Julho (preparatório para os vestibulares), cujos diretores eram o prof. Rosemberg e o prof.
Marcelo, também meu professor no Colégio Bandeirantes.
A prova seria em forma de teste e eu poderia “chutar” à vontade, coisa nada
surpreendente para quem estivera mais de sete anos sem estudar com bastante seriedade.
Durante a prova, como se não bastassem as dificuldades que eu enfrentava, eis que o
prof. Rosemberg entrou na sala. Baixei a cabeça, escondendo-me e procurando deslizar pelo
banco, à procura de algum espaço sob a carteira e, quem sabe, cair no andar de baixo. Foi uma
reação ditada exclusivamente pela timidez, uma vez que, objetivamente, eu não imaginava que ele
pudesse me reconhecer. Estávamos numa sala de aula, é verdade, mas num contexto todo especial.
No dia marcado, telefonei para o cursinho, sem qualquer esperança de que pudesse ter
sido selecionado para as vagas-premios.
- Seu nome?
- Rubens Ferneda.
- Um momento, por favor.
Uma enorme surpresa me aguardava, mas não era bem uma vaga-premio.
- Você não foi selecionado, disseram-me, mas tem um recado aqui, do prof. Rosemberg.
Ele deseja falar com você.
Estremeci, mas no dia seguinte, depois do trabalho, reuni toda a coragem do mundo e fui
lá. Seria necessário enfrentar um professor em ambiente “hostil”, isto é, fora da minha própria sala
de aula.
Poucos instantes depois de eu ter me anunciado, o prof. Rosemberg apareceu, com a
minha prova na mão.
- Lembra-se de mim?, perguntou-me humildemente enquanto me estendia a mão.
- Claro, professor, o senhor foi meu professor de Física, no Bandeirantes, respondi
trêmulo, tímido e emocionado.
- Vamos conversar.
E fomos para a mesma sala onde eu havia feito a prova. Ocupamos duas carteiras, frente
à frente. Antes de comentar as bobagens que eu havia feito na prova, disse-me ele que se lembrava
muito bem de mim, especialmente do meu nome, mesmo depois daqueles anos. Conversamos um
pouco sobre várias coisas. Quis saber por que eu ainda não fora para alguma Faculdade. Disse-me
que me sentia agora bem mais desenvolto, bem diferente daquele rapazinho bastante tímido que
conhecera no Colégio Bandeirantes. Eu tinha então 27 anos.
- Você quer realmente estudar?
- Sim, quero.
- Tem alguma dificuldade em pagar?
Por timidez e vergonha, disse a ele que não era bem assim, mas ele entendeu que era.
- Volte amanhã e faça a sua oferta. Você tem carta branca. Qualquer que seja ela, será
aceita
Saímos juntos. Deu-me carona até o Paraíso, na esquina das ruas Apeninos e do Paraíso.
No dia seguinte apresentei-lhe a minha proposta. Embora tivesse recebido carta branca e
sabendo que aquilo poderia até significar curso gratuito, ofereci 50% do valor à vista, para serem
divididos em dez parcelas mensais, numa época em que a inflação já era bem expressiva.
- Como eu disse ontem, a sua proposta está aceita, disse-me com um olhar de amigo e de
pai.
Se oito ou nove anos antes ele já havia conquistado a condição de ídolo, agora, com
aquele gesto, escrevia definitivamente o seu nome na minha história.
O SABOR DA FOME
Sou grato ao meu bom Deus porque Ele quase não permitiu que eu passasse fome. Digo
“quase” e reconheço que nesse “quase” também está clara e manifesta a bondade de Deus,
permitindo-me que, ao sentir o sabor da fome, tenha uma noção mais próxima do real sentido da
vida, não da minha vida, mas da imensa maioria das pessoas, onde a fome não é a exceção de
alguns dias ou algum tempo, como foi no meu caso, mas uma regra dura e até incompreensível,
que persegue a muitos, e, em muitos casos, desde o berço até a sepultura.
Senti também eu o sabor da fome, mas quisemos, Deus e eu, que fosse nada mais do que
uma pequena amostra. Observe que eu também decidi quanto a isso, uma vez que a própria vida,
embora nem sempre, nos proporciona meios para lutar e para sobreviver bem.
Quando eu nasci, a pior fase na minha casa já havia passado. O que os meus pais e os
meus primeiros irmãos construíram produziu frutos abundantes, frutos que eu só tive o trabalho de
colher. Nas minhas histórias, sempre digo que eu não tinha dinheiro. É verdade. O dinheiro não
existia no meu bolso, à minha disposição, mas a situação da minha família era boa, e assim foi por
20 anos. Nunca houve dinheiro para coisas tidas como supérfluas: o cinema, o circo, o sorvete, o
quebra-queixo, as balas, os doces e os chocolates. Essas coisas, exceto o cinema, eram raríssimas,
quase proibidas. Mas, nos meus primeiros 18 anos, não houve fome. Até que houve abundância.
Em seguida, veio o período difícil, como já relatei antes, período que se estendeu de
1953 a 1957, mais ou menos. Na primeira metade desse tempo, é bem provável que os meus pais e
os meus irmãos tenham passado alguma fome, embora trabalhassem, plantando e colhendo ao
menos para o sustento de cada um deles. Mas conseguiram me manter em São Paulo e eu não vi a
fome, embora o aperto tivesse sido considerável.
Casei-me em 1958 e trabalhei quanto me foi possível. Os tempos continuavam difíceis,
mas consegui me manter razoavelmente bem, apesar do “aperta aqui, economiza ali”. Tínhamos o
essencial, mas, por vezes, faltava o supérfluo ou o dispensável. Lembro-me, por exemplo, que,
num Domingo de Páscoa, a minha filha Regina Maria procurou um ovo de chocolate por todos os
lados e não o encontrou. Naquele ano, parece-me que só naquele, os ovos de Páscoa foram
incluídos na relação dos supérfluos. Doeu-me vê-la procurando um ovo que não existia, mas já
senti dores piores.
Naquela mesma época, década dos 60, eu ainda ganhava pouco e tinha de pagar as
prestações de um apartamento que havia comprado, na planta, no Conjunto Residencial Castro
Alves, no início dessa rua. Em 1967 fui aprovado para o curso de Economia, curso noturno. A
escola, da USP, ficava na cidade, na Rua Dr. Vila Nova. Do trabalho, ia direto para lá. Seria
necessário que eu jantasse ou tomasse um lanche, mas não havia dinheiro; quase todos os dias não
havia dinheiro para essa “frivolidade”. Passei fome naquela época. Foi durante todo o ano de
1967. À espera do início da primeira aula, eu ficava vendo televisão, no Diretório Acadêmico,
onde havia também um restaurante. Às vezes me perguntavam se eu não ia jantar. Existiam duas
respostas, ambas mentirosas: já jantei, ou então, não tenho fome.
Por vezes, eu tinha alguns trocados, que mal davam para comprar uma maçã numa
quitanda que ficava no meu caminho, próxima ao Largo do Arouche. De vez em quando, por
ocasião do meu pagamento, atrevia-me um pouco mais e ia até uma rua que passava atrás do Cine
República, onde eu comprava pão de queijo, o primeiro lugar onde se vendeu pão de queijo em
São Paulo.
De qualquer maneira, sempre assistia às aulas, com fome, às vezes com o estômago
roncando, até quase meia-noite, quando, já em casa e depois do banho, ia jantar, para depois
dormir, saindo às seis e meia da manhã sem ter visto os meus filhos, que já eram quatro.
Injustiça da vida? Castigo de Deus? Nada disso. Simplesmente, eu não fizera o meu
curso antes e precisava fazê-lo agora. Simplesmente, eu não trabalhara tanto e não me
desenvolvera o suficiente, do ponto de vista profissional, para viver melhor, comer bem e não
passar fome. Culpa de Deus? Jamais. Culpa da própria vida? Claro que não. Responsabilidade
minha e de mais ninguém. Aquele ano, 1967, foi o ano da minha fome. Senti o sabor amargo que
ela tem.
No ano seguinte, como a situação não mudou, mudei eu. Depois do trabalho, eu ia até em
casa, na Rua Artur Sabóia, uma das travessas da Rua do Paraíso, onde chegava por volta das seis,
jantava e saia às seis e meia, quase sem ver ninguém. Como o dinheiro continuava curto e o
trânsito ruim, ia a pé até a Faculdade. Acompanhe o meu trajeto: Rua do Paraíso, Praça Oswaldo
Cruz, Rua 13 de Maio, cruzava a Rua Santo Antônio e descia por umas “bibocas” para chegar à
Av. 9 de Julho. Não me lembro como a atravessava, mas, chegando ao outro lado, pegava a Rua
Caio Prado, que me levava à Rua Dr. Vila Nova, depois de cruzar a Rua da Consolação. Sugiro
que não olhe no mapa porque, se olhar, vai dizer que estou mentindo. Foi o meu caminho durante
dois anos. Eu chegava cansado à escola, mas não sentia fome. Voltava de ônibus.
Em 1970, já morando na Vila Leopoldina, tudo ficou mais fácil. Eu trabalhava no início
da Via Anhanguera e chegava cedo em casa. Havia tempo para o banho e para o jantar. E havia
ônibus fácil para a cidade e para a volta. Mas, em 1971, a Faculdade foi para a Cidade
Universitária e eu, ainda sem automóvel, fiquei na “rua da amargura”. Seriam necessários três
ônibus para que eu chegasse à Cidade Universitária, embora não fosse longe, mas tinha que passar
pela Lapa e por Pinheiros. Tentei, mas desisti logo. Bem mais fácil seria ir a pé. E assim foi
durante um ano. Agora pegue o seu mapa: Rua Guaipá, Av. Imperatriz Leopoldina, Av. Queiroz
Filho, Marginal do Pinheiros e chegada a um dos cantos da Cidade Universitária, para depois
andar até a minha escola, próxima à Reitoria, no lado oposto. Para a volta, carona até Pinheiros,
um ônibus até a Lapa e outro até em casa. Mas eu chegava.
Castigo de Deus? Injustiça da vida? Nada disso! Contingências, circunstâncias, nada
mais do que isso.
UMA NOITE DE ANGÚSTIA
Em janeiro de 1972, o meu filho Reinaldo tinha 10 anos. Vínhamos observando visível
alteração no seu aspecto físico. Como estivéramos alguns dias na praia, admitimos a hipótese de
ter sido atacado por alguma bactéria típica do litoral. Fomos ao médico, mas nada foi constatado.
Passados alguns dias, e como observamos que ele perdia peso, voltamos ao médico, e
depois procuramos outro e mais outro. Nessa altura, ele tomava muita água e urinava bastante.
Voltamos ao médico, que o examinou e marcou novos exames para o dia seguinte, inclusive uma
radiografia.
À noite daquele mesmo dia, o quadro se agravou. Ele tomava muita água, agora com
açúcar, expelindo-a logo em seguida. Junto à cabeceira, mantinha uma jarra com água açucarada.
Ele sentia os lábios arderem, como se fossem atacados por espinhos. Às dez e meia reclamou que
se sentia muito mal. Decidi não esperar pelo dia seguinte, como estava determinado, e o levei para
o hospital.
Que eu não conhecesse aqueles sintomas era algo perfeitamente normal, mas que os
médicos até então consultados sequer tivessem pensado em diabete, era algo inconcebível. Mas foi
o que aconteceu.
Naquela noite, o médico de plantão no Hospital Santa Paula era o dr. José Petnys. Tendo
examinado o meu filho e tendo tomado conhecimento, através de nós, do que acontecia, pensou
logo em diabete. De imediato, fez um teste de glicofita, que confirmou a sua suspeita. Pediu um
exame de sangue em caráter de urgência, urgentíssima. O médico responsável pelo laboratório,
laboratório que ficava no outro lado da rua, chegou por volta da meia-noite. Enquanto isso, o
Reinaldo já havia sido internado e repousava, sentindo-se muito mal. O exame de glicemia era
assustador: 530. O médico diagnosticou a situação como bastante séria e grave. E tomou as
providências que o caso exigia.
Não se tinha telefone naquela época, mas consegui avisar algumas pessoas da família.
Ele fora internado numa enfermaria, onde eu não poderia ficar. Iniciava-se então a
madrugada mais angustiante de toda a minha vida, antes e depois daquela noite. Eu andava por
largo trecho da Av. Santo Amaro, então deserta. A cada 30 ou 40 minutos ia vê-lo, esperando pela
melhora, mas esta era muito lenta, se é que existia.
Enquanto caminhava solitário pela madrugada, repensei toda a minha vida. Eu sabia que
poderia perder o meu filho naquela mesma noite. Lembrei-me de tantas e tantas vezes nas quais eu
havia me desesperado, perdido a calma e a razão por motivos que, agora, eu reconhecia como
tolos. Tudo aquilo que, por incontáveis vezes, havia me irritado e angustiado profundamente,
agora me parecia coisas frívolas e passageiras. Pela primeira vez em minha história, eu tinha
diante de mim uma situação realmente séria, que independia de mim e que nada tinha a ver com o
meu estado de espírito ou com os meus nervos. Fiquei conhecendo melhor a mim e à própria vida.
A madrugada terminou e a angústia foi diminuindo. Antes de sair, o médico me disse que
a situação estava sob controle e que o caso estava agora entregue ao novo plantonista, que, em
poucas horas, demonstrou entender bem mais de carroças do que de Medicina, ou, pelo menos, de
relacionamento com os pacientes. Procurei então o dr. Rubem Rino, amigo de escola lá de Marília
e que trabalhava naquele hospital. Sugeriu-me ele, bem a portas fechadas, que procurasse o diretor
clínico do hospital e exigisse a presença de um especialista, isto é, de um endocrinologista. Fui
atendido prontamente e o caso foi entregue ao dr. Galvão.
Três ou quatro dias depois voltamos para casa, onde iniciamos ambos uma nova vida.
Eu, com uma outra visão de mundo, que no entanto durou bem pouco, uma vez que as tribulações
da própria existência acabaram por me reconduzir às mesmas e injustificáveis aflições de sempre.
Meu filho, com algo mais - ainda que importante - com o que se preocupar, pelo resto de sua vida.
Esteve sob os cuidados do dr. Galvão até os primeiros anos do seu curso de Medicina, quando
passou a cuidar de si próprio, com a ajuda de outros médicos, especialistas em áreas correlatas ou
afetadas pelo diabete. Uma vez formado, tornou-se endocrinologista.
Antes disso, contudo, antes que ele pudesse se soltar, foram mais de dez anos de
preocupações e cuidados. Visitas constantes ao médico, freqüentes exames de sangue, controle
com a glicofita, preocupações com a alimentação e com o peso, exercícios físicos, procura de
produtos dietéticos que pudessem compensar a ausência de doces e refrigerantes.
Foi uma experiência dura e marcante. Nesses 27 anos, aprendi alguma coisa sobre essa
doença. Sobre hiperglicemia, mas sobretudo sobre hipoglicemia, sobre os seus perigos e sobre a
sua forma traiçoeira de nos surpreender.
Foi uma nova forma de luta que a vida me apresentou, com características mais sérias e
mais dramáticas do que qualquer outra, antes ou depois vivida. Faltava-me entender - e agora eu
entendia - que nem tudo depende apenas de nós, da nossa vontade e dos nossos braços. Muitas
coisas poderão estar acima da nossa razão e do nosso entendimento porque se ligam ao
imponderável, ao abstrato, que só a crença ou a fé podem conceber e explicar.
CASOS E COISAS
O meu tio Manoel não era um homem muito comum. Quase não tinha cultura, com uma
inteligência nada acima da média, mas era um homem esperto. Foi um tio bastante simpático e um
dos pioneiros a ter um aparelho de rádio, uma novidade porque era o único entre toda aquela nossa
“italianada” e um dos poucos da cidade. Íamos em sua casa de vez em quando para ouvir a
Pimpinela, a mais famosa entre os personagens do Silvino Neto, o humorista mais importante da
época. Lembro-me que minha tia Teresa, certa noite, enquanto ouvíamos a Pimpinela, nos serviu
um delicioso chá de casca de abacaxi. Isso tudo em Oscar Bressane, nos idos de 1941 e 1942.
Irmão de minha mãe, trocavam visitas constantemente. Mesmo depois, já em Marília,
visitava-nos sempre, apesar de continuar morando em Oscar Bressane. Era freqüente que ele
dormisse em minha casa. Depois do jantar, invariavelmente, ele gostava de pegar alguns grãos de
arroz cozido e, amassando-os com a ponta do polegar e do indicador de uma das mãos, fazia uma
bolinha, com a qual se distraia, sempre entre aqueles dois dedos e cada vez mais escura, à medida
em que o tempo passava. Enquanto isso, mantinha o cigarro na outra mão, segurando-o com
aqueles dedos já amarelados pelo fumo. Fumava Adelph ou Fulgor, duas marcas “da pesada”.
Enquanto fumava e enquanto se divertia com a bolinha de arroz cozido, contava-nos histórias.
Fictícias, reais ou improvisadas, sempre tinha histórias para nos contar. Ficávamos à volta da
mesa, ouvindo-o atentamente. Só não gostávamos de quando ele ia ao banheiro, que ficava no
fundo do quintal. Demorava muito lá.
Se foi Deus quem me outorgou o gosto por histórias - reais ou fictícias - e um grande
prazer tanto em ouvi-las como em contá-las, tanto oralmente como por escrito, certamente foi o
meu tio Manoel quem desenvolveu em mim esse gosto, e mesmo essa arte, ousaria eu dizer.
A seguir, quatro historinhas bem rápidas, em homenagem àquele bom contador de
“causos”, àquele mestre, que foi o meu tio Manoel.
Claro que você se lembra da copa do mundo de 1950 e do nosso jogo contra a
Iugoslávia, 2 a 0, numa tarde de sábado. Naquele dia, e na hora do jogo, eu e o meu irmão Olívio
estávamos na casa do sr. Ryotaro Osaki, um japonês que comprava e exportava café. Todos os
anos, o nosso café era vendido para ele. No ano anterior, em má situação financeira, comprara o
nosso café, mas não pagara, a não ser uma pequena parte, aos poucos.
Naquela metade de 1950 ele ainda nos devia bastante – dívida que já completara um ano
- e, no dia daquele jogo, meu irmão e eu estávamos lá, como já tínhamos ido diversas vezes, à
procura de algum dinheiro. Ouvimos o jogo do Brasil, enquanto esperávamos que ele nos
atendesse em seu escritório.
Serviram-nos café. Como não éramos pessoas muito simpáticas no local, por motivo
mais do que óbvio, o meu irmão decidiu (em silêncio) que eu tomasse o café primeiro, pois
suspeitava que estivesse envenenado. Mas saímos de lá os dois vivos, com três cheques prédatados. (Essa história de pré-datados já é antiga). Depositados nos dias certos, voltaram os três,
por falta de fundos, é claro.
Não me lembro como terminou a história daquela dívida, mas aquele ano foi um sufoco
danado.
Mais ou menos na mesma época, eu passava alguns dias das minhas férias na casa da
minha irmã Zelinda, numa fazenda, lá pelas bandas de Dracena.
Sol terrível. Duas horas da tarde.
- Vamos fazer melado de cana?, sugeri.
- Vamos, mas é muito demorado. Começamos hoje, mas só acendemos o fogo amanhã,
porque não dá mais tempo, disse-me ela.
Cortamos a cana, moemos, coamos, tudo direitinho. Lavamos o tacho e preparamos a
madeira e os tijolos para o fogo.
No dia seguinte, sete da manhã, fogo aceso no quintal, entre três pequenas pilhas de
tijolos, o caldo da cana no tacho e o tacho no fogo. E “mexe que te mexe”. Ajeita o fogo, mexe,
mais fogo, mexe, e vai mexendo, uma hora, duas, três, e mais fogo, e a coisa ferve, e vai fervendo,
e mexe, e mais fogo, e o tempo passa, e o saco se enche de tanto mexer. O sol esquenta e continua
o mexe-mexe.
Três da tarde. A Zelinda, que também ajudou a mexer, chega para examinar a
“paparoca”. Dá mais uma mexida, examina o “ponto” e diz que está ótimo. Afasta o fogo e a
fervura cessa.
- Agora, deixa esfriar e pronto.
Esfregamos as mãos e lambemos os lábios.
- Oba! Vamos ter melado no pão, já, já.
Mais alguns minutos se passam. Está quase na hora de saborear o nosso melado, que
custou quase nada, mas muito trabalho, muita espera e muito mexe-mexe.
De repente, um simpático porquinho, que não tinha nada com a história e que não fora
chamado lá, apareceu curioso e decidido. Meteu o focinho no tacho, virou-o de b... pra cima e lá
se foi todo o nosso melado misturar-se com a terra.
Você já viu tão grande irresponsabilidade num porco?
Anos antes, essa mesma irmã, ainda solteira e em Marília, estudava corte e costura com a
Adelaide, aquela mulata simpática que dividia a sala com a banda do Jorge Galatti, lembra-se?
Como trabalhava até a noite, a Adelaide me “contratou” para ir buscar a sua marmita,
todos os dias, na hora do almoço (quando eu saia da escola) e depois das seis.
E lá ia eu, no início de cada noite, pela Rua Santo Antônio, até sua casa, que ficava lá em
cima, tendo que atravessar um riacho. Uma grande ponte de madeira só seria construída bem
depois. Eu tinha, portanto, que descer barranco abaixo, atravessar uma pinguela e depois subir o
barranco oposto, para continuar na rua, logo acima.
No meu primeiro dia de trabalho, já noite, eu estava sobre a pinguela quando a minha
atenção se voltou para a areia, junto à água, como se fosse uma pequena praia, areia que se tornava
especialmente branca à luz da lua, que já aparecia no céu. De repente, lembrei-me que, segundo
diziam, exatamente naquela areia havia sido assassinado um japonês, não fazia muito tempo.
Arrepio geral, tremedeira, cabelos lá no alto e, num piscar de olhos, voei barranco acima.
Mudei o itinerário, mas o meu compromisso com a Adelaide foi mantido e a marmita
continuou a ser transportada, por um bom tempo. E rendeu alguns trocados.
Penso que devo explicar o que é uma pinguela: ponte rudimentar, feita com alguns
troncos sobre a água, ou apenas um, apoiando-se nos dois lados, tendo, às vezes, alguma coisa na
horizontal, tipo corre-mão, para dar apoio a quem passa.
Metade da década dos anos 50. Eu prestava vestibular para História Natural. Numa
daquelas tardes, prova oral de Botânica.
- Que fruta você comeu hoje?, perguntava o examinador para cada candidato que se
sentava à sua frente, para a prova. Era sempre a última pergunta, para cada um deles.
- Banana.
Então ele fazia algumas perguntas sobre a banana.
Mas o diabo é que, naquele dia, parecia que todos haviam comido banana. Então, para o
candidato que se apresentou imediatamente antes de mim, ele perguntou:
- Que fruta você comeu hoje?
Mas acrescentou: banana não vale mais!
Não sei como se arranjaram os comedores de banana.
Chamou-me. Eu também havia comido banana, mas sabia pouco sobre banana. Havia me
lembrado, minutos antes, que, no dia anterior, havia comido figo. Eu sabia alguma coisa sobre o
figo.
- Que fruta você comeu hoje?
- Hoje, eu comi banana. Serve, ontem?
- O que você comeu ontem?
- Figo.
E respondi tudo, inclusive que figo não é uma fruta, mas uma inflorescência, em
capítulo.
Tio Manoel, onde quer que o senhor esteja, esqueça o cigarro e as bolinhas de arroz
cozido. Dê uma olhadinha nas minhas histórias e, por favor, diga que gostou.
QUADRA 7, SEPULTURA 4
Os cafezais plantados na região de Ribeirão Preto, Jabuticabal e em outros lugares
ajudaram a atrair uma penca de italianos. Na última década do século passado, o XIX, quatro deles
iriam se tornar especialmente importantes para mim.
O sr. Antônio Ferneda e dona Virginia Imperatore foram dois deles. Os anais que já se
foram da minha memória não têm como me dizer se eles se casaram aqui ou se já vieram casados
da Itália. O que importa é que, entre quase incontáveis filhos, um deles iria ser meu pai e meu
ídolo maior: Gentil Ferneda.
Mais ou menos na mesma época, e também por aquelas bandas, um outro casal, este com
certeza já constituído antes da vinda para o Brasil, também se encarregou de espalhar filhos entre
aqueles e outros cafezais. Minha mãe, dona Amedea Bocchi, nasceu por obra e arte de Ferdinando
Bocchi e Theodolinda Tedeschi.
Pelo que ele mesmo contava, meu pai era uma criança bastante travessa, irreverente e
bem pouco disposta a aceitar ordens ou regras de comportamento. Não aceitou a liderança da
professora e fugiu definitivamente da escola mesmo antes de lhe esquentar ou alisar os bancos, o
que lhe valeu o título de analfabeto, que o acompanhou até a morte. Não é de estranhar que, além
da escola, tenha saído também de casa, levando nada mais do que o chapéu e a roupa que vestia,
quando tinha menos de 15 anos de idade. Mas tinha boa índole e entendia perfeitamente bem que
apenas o trabalho poderia ajudá-lo a construir o seu futuro. E ele o construiu com as suas próprias
mãos, guiado pela sua própria cabeça e, no início e por vários e vários anos, sem a ajuda de
ninguém mais.
Enquanto isso, minha mãe crescia e era educada segundo os moldes italianos,
inteiramente na dependência do pai e da mãe. Ela sempre falou pouco sobre a sua infância e
juventude, a não ser para fazer intermináveis referências aos ensinamentos de vida que recebera
dia após dia.
Até que um dia eles se encontraram. É fácil entender que o meu avô Ferdinando não
quisesse saber do meu pai, pois via nele o que realmente ele era: um moço sem família e, por
causa disso, provavelmente sem muitos compromissos com o futuro. Mas eles se casaram e meu
pai continuou fazendo a sua vida, com o seu trabalho e o seu esforço. Não foi necessário muito
tempo para que se tornasse o genro predileto do meu avô. E se encarregaram de seguir a tradição,
gerando filhos nos vários cantos deste estado. Nasceram 13, dos quais 11 sobreviveram. Entre
estes, sou o oitavo.
Fisicamente, meu pai sempre foi um homem bonito. Alto, pele clara, cabelos lisos e
pretos, olhos escuros, barba cerrada. Volta e meia pegava-me ao colo e esfregava aquela barba
espessa no meu rosto, até que, vermelho ao extremo, chorando bastante e irritado, soltava-me
satisfeito; às vezes, por insistência de minha mãe. Ele sabia como me deixar irritado. Para
qualquer pessoa que aparecesse, dizia que eu iria ser padre, coisa que me deixava p... da vida. A
cada sete ou oito sábados, reunia os filhos homens à frente da casa, onde, um a um, sentados numa
cadeira e envoltos por um lençol, exercia a sua “habilidade” de barbeiro, cortando o cabelo de
todos, careca. Usava uma máquina manual que muito mais arrancava os cabelos do que cortava. E
ninguém tinha o direito de fazer cara feia. Falei sobre isso lá atrás, no início.
Meu pai me legou duas jóias preciosíssimas, as mais precisosas que poderia ter me
deixado: os exemplos da honestidade e do trabalho. Ele era um homem alegre, brincalhão, que
gostava de contar “causos” e de fazer um sem número de remédios, usando ervas; quase
pajelanças. Certamente era, e é, uma alma dourada e radiosa. Mesmo que não tivessem existido
muitas coisas mais, a honestidade e o trabalho já teriam sido suficientes para tê-lo amado e
respeitado como pai e como ídolo. Eu o perdi em novembro de 1985.
Fisicamente, minha mãe não era uma mulher bonita. Loira, de estatura mediana e um
tanto gorducha, era uma mulher enérgica e sisuda. Sempre foi o contraponto perfeito do meu pai.
Não permitia brincadeiras, opunha-se a qualquer tipo de palavrão (imagine-se quais poderiam ser
naquela época) e dosava muito bem a educação dos filhos. Sua filosofia básica era falar uma vez
só, pra valer. Se fosse necessária uma segunda vez, esta já não vinha só. O chinelo também falava.
E como! Hoje não acreditam no poder do chinelo, mas, naquela época, ele também ensinava, e
bastante.
A grande preocupação de minha mãe era com os princípios que deveriam orientar a vida
dos seus filhos. Interessante é que tais princípios, como de resto a base da orientação de vida que
procurava nos proporcionar, não pareciam vir de si mesma, da sua experiência e da sua maneira
pessoal de encarar a vida. Tais ensinamentos vinham do meu avô Ferdinando, sendo ela nada mais
do que uma intermediária. Seu avô dizia assim, seu avô queria assim, seu avô ensinava assim,
eram as frases que ela mais usava, em toda a sua vida de mãe. Evidentemente, ela não usava a
palavra “avô”, mas sim “nono”. Mais tarde, a vida me ensinou, e provou, que, na imensa maioria
dos casos, meu avô Ferdinando estava certo. Ele era quase um sábio!
Foram poucos os gestos de amor, carinho ou ternura que recebi de minha mãe. Ela tinha
muitos filhos e não havia tempo para essas “banalidades”. Mas ela me proporcionou o que tinha
de melhor, ensinando-me as verdades básicas da existência humana e tentando me colocar
corretamente diante da vida. O único beijo que me lembro haver dela recebido me foi dado
algumas horas antes da sua morte, em julho de 1971.
Em resumo, minha mãe me transmitiu a teoria, e meu pai, o exemplo e a prática.
Essas duas pessoas, que me proporcionaram mutíssimo além do que se poderia esperar
da parca cultura que tinham, estão sepultadas em Marília. Se alguém quiser conferir, é fácil:
quadra 7, sepultura 4.
SOMOS ONZE
e mais dois que nasceram e morreram antes que eu nascesse. Portanto, nasceram 13, mas
jamais fomos 13.
O primeiro de nós nasceu a 4 de agosto de 1923 e o último, a 12 de novembro de 1940.
Embora nascidos do mesmo pai e da mesma mãe, somos 11 indivíduos física, mental e
espiritualmente diferentes.
No dia 25 de janeiro de 1997, encontramo-nos todos no meu Recanto Ana Maria, em
Sorocaba. O encontro anterior acontecera a 2 de setembro de 1947, bodas de prata de nossos pais.
Éramos então 16. Agora, somávamos 135, parte dos quais não pôde comparecer.
Depois do encontro, enviei-lhes uma carta, que aqui transcrevo como uma maneira de
falar sobre eles, mostrando o traço mais marcante de cada um, pelo menos do meu ângulo de
visão.
“Depois de muitos e muitos anos, foi bom, bastante bom mesmo, termos tido a
oportunidade de nos encontrar e de nos abraçar, como talvez nunca o tenhamos feito antes.
Não sabemos se foi a luta pela vida ou se fomos nós mesmos, talvez exageradamente
entregues a ela, os responsáveis por essa demora. Mas isso, agora, não importa muito; é um
passado que se extinguiu sábado, dia 25 de janeiro.
Penso que o passado, além de provocar tanto risos como lágrimas, é bastante útil para
nos fazer entender o presente e nos permitir apostar no futuro. Se isto parecer um tanto
complicado, pode ficar mais claro com o exemplo do Onésio. Hoje, vemos nele um senhor de
cabelos brancos, rodeado pelo amor e pelo carinho da família inteira. Isso ficou bem visível e bem
sensível no nosso encontro do dia 25. Mas nada foi surpresa, principalmente para quem conheceu
a sua maneira de ser, de pensar, de sentir e agir, primeiro na pessoa daquele menino que vivia
segurando o “pipi” e depois na daquele jovem quieto e introspectivo, que falava pouco, mas que
sempre deixava transparecer um coração de ouro. E então, dá ou não dá para se apostar no
presente e no futuro de uma família que demonstra tanto amor?
A Odete, a “menininha robusta” de antigamente, que agora é um pouco mais robusta
ainda, precisa considerar que o que importa é a robustez que Deus deve ter confiado à sua alma,
para que pudesse suportar os maus momentos, inclusive e principalmente a sua grande perda do
dia 21 de dezembro. É preciso que ela entenda, mesmo com as lágrimas derramadas, inclusive
durante o nosso encontro, que os seus dez irmãos a estimam exatamente como sempre a estimaram
antes.
Que a Hilde não se esqueça de que a jovenzinha, a nossa eterna e mimada criança, apesar
de esposa, mãe e avó, apesar das dificuldades de uma vida que, em vários momentos, não lhe tem
sido fácil, aquela jovenzinha ainda vive na mulher de hoje, talvez para ajudá-la, com o espírito de
sempre, a amenizar ou a vencer tais dificuldades.
Duílio, o entusiasmo e o empenho com que você se dedicou à realização do nosso
encontro, a vibração com que você participou dele e, mais do que isso, a “argamassa” de amor que
você representa, constantemente unindo os diversos compartimentos destes e de outros Ferneda’s,
fazem de você alguém bastante especial.
Zelinda, raramente consigo ver os cabelos brancos e sem ondas da avó de hoje. No lugar
deles, vejo os lindos e ondulados cabelos negros que, descendo sobre os ombros, eram acariciados
e penteados por um menininho a quem você, só você, chamava de “nêne” (que não se leia “nenê”).
Não sei quantos já choraram por você, mas, entre eles, estou eu, que o fiz pelo menos duas vezes:
nos tempos de Adamantina e agora, ao lhe escrever essas coisas.
Olívio, você que ajudou tanto ao papai e que, talvez sem pensar, me ensinou muito mais
do que pode imaginar, conseguiu constituir uma linda família, baseada tanto no amor como nos
princípios de caráter e retidão moral que sempre foram a sua marca registrada. Como recompensa,
Deus o ajudou no seu invejável desabrochamento espiritual. O meu desejo é que essa vivência
espiritual possa ser altamente benéfica a você, à sua família e a tantos quantos de você se
aproximarem.
Ada, você foi uma das primeiras pessoas que choraram por mim, talvez em
agradecimento por ter sido eu o seu “secretário” na limpeza da nossa casa e o seu companheiro e
fiel guardião, pra não dizer escudeiro, quando precisava sair às ruas, nas tardes ensolaradas de
Marília. Talvez você não encontre mais tempo para me fazer saquinhos cheios de arroz ou feijão,
mas, se puder, continue a me ajudar a brincar, porque, na verdade - e na alma - penso não ter
mudado muito.
À Diva, a quem tantas e tantas vezes tive a oportunidade de guiar, mas que, em tantas e
em tantas outras, tendo sido chamado a fazê-lo novamente e de outra maneira, não o fiz, sabe-se lá
por quais razões ou circunstâncias, só me resta pedir desculpas. Apesar de mim, apesar da minha
ausência em muitos momentos, você venceu, Diva. O Bruno, seu neto, parece ser o ponto alto
dessa vitória.
Álvaro e Elza, aqui juntos, como juntos de mim quase sempre estiveram, em todos os
momentos que foram possíveis, em todas as brigas (meu Deus do céu, quantas foram elas?!), nas
minhas implicâncias com a Elza, sem saber, é claro, dos laços espirituais que, segundo sua crença,
sempre nos aproximaram de uma maneira bem especial. As nossas horas de lazer, Elza,
principalmente na areia fria em frente da nossa casa, parecem ecoar ainda hoje sobre os meus
ouvidos e parecem desfilar ainda diante dos meus olhos. Pois é, Álvaro, não se vende mais pipoca
no circo nem vela no cemitério, não se tem mais abacaxi para se “pedir emprestado” do japonês,
não se tem mais motivos e nem meios para se entrar no Cine Marília ou no Cine São Luis, sem
pagar, mas, parece-me certo, continuamos com as mesmas possibilidades de estar juntos, até a
última lâmpada a ser quebrada, até o último abacaxi a ser roubado, até a última pipoca a ser
vendida, até a última vela a ser vendida, a ser apagada... ou a ser acesa.
O dia 25 de janeiro já chegou e já passou.
Para mim, muito mais importante do que as marcas que o tempo gravou nos cabelos ou
na fisionomia de cada um de nós, muito mais importante é que as marcas que o papai e a mamãe
fizeram imprimir em nossas mentes e em nossos corações permanecem intactas, intocáveis e
sempre prontas para se perpetuarem através de nossos filhos e de nossos netos”.
REGINA MARIA
Entre todas as minhas histórias, acredito que esta seja a mais doce. Está dividida em dois
capítulos.
Em 1947, com os meus 12 anos já bem vividos, eu estava de volta a Marília, depois de
uma enriquecedora experiência como “babá” e depois de haver me tornado um “bem sucedido
homem de negócios” no armazém do meu cunhado Deolindo, em Adamantina.
“Experiente” e com a moral “lá em cima”, decidi arrumar um emprego num armazém de
secos e molhados. Afinal, aquele era o “meu ramo”.
Fui trabalhar na Casa Dalva, um armazém de porte médio que ficava na Rua Cel.
Galdino de Almeida, lado ímpar, a primeira casa depois da esquina com a Rua 15 de Novembro.
Até alguns anos atrás o local permanecia inalterado, inclusive com a Indústria de Rádios
Memphis, que ficava, e parece que ainda fica, bem na esquina.
Os proprietários da Casa Dalva eram três: o Joaquim, que, para justificar o nome, exibia
um espesso e pontiagudo bigode; o Domingos Coimbra, que se dedicava a outra atividade; o
Romeu, que havia chegado de Jaú fazia pouco tempo. Este último era quem dirigia efetivamente o
negócio. Havia um parentesco entre eles, mas não me lembro qual era. O Romeu morava nos
fundos, com a sua esposa, que se chamava Deolinda (ou Lucinda, ou Arminda, não me lembro).
Havia uma porta no centro da parede do fundo da loja, que levava à residência. O casal, ainda
jovem, tinha uma filha bem pequena. Com menos de um ano, apenas ficava sentada.
Era hábito de dona Deolinda, ou Lucinda, ou Arminda, todas as tardes, por volta das
cinco, levar sua filha para o armazém, onde a colocava sentada sobre o balcão. A mãe, no lado de
dentro, cuidava para que a criança não caisse. Sentia-se o delicado perfume do talco e do sabonete.
Do lado de fora, uma outra criança, esta de 12 anos, apaixonada pela menininha, brincava com ela
invariavelmente, usando todo o tempo que lhe era possível. A criança de 12 anos era eu.
De pele morena clara, olhos bem pretinhos parecendo duas pequenas jabuticabas, cabelos
pretos, lisos e com franjas. Usava dois brinquinhos de ouro, de bolinha, e se chamava Regina
Maria.
Era a minha paixão. Divertia-me sempre com ela, enquanto trabalhei lá.
Certa vez, prometi a mim mesmo que quando tivesse uma filha, ela iria se chamar
Regina Maria.
...
O segundo capítulo seria vivido 16 anos depois.
Já casado e com dois filhos, eu iria ser pai pela terceira vez. Parecia ter me esquecido
daquela menininha que tanto me encantara, e que jamais voltaria a ver, porque a minha primeira
filha recebera o nome de Rosângela. Depois veio o Reinaldo. Agora, se fosse uma mulher, iria se
chamar Roseli, nome pelo qual eu havia me apaixonado e que contava com a aprovação da mãe
dos meus filhos. Nasceu, e era mulher.
- Vou ao cartório fazer o registro, disse eu à minha esposa, ainda na Maternidade Santa
Joana, no Paraíso.
- Qual vai ser o nome?
- Roseli, como ficou combinado. Por quê?
- Por nada.
- Por nada, não. Se você perguntou, tem algum motivo.
- Minha mãe deu um palpite.
- Qual?
- Regina Maria. (Estremeci). Ela acha um nome bonito. E, você sabe, ela é muito
católica, e esse nome lembra Nossa Senhora.
Estremeci e quase chorei de emoção. Aquela menininha da Casa Dalva, lá de Marília,
voltou-me à lembrança. Uma lembrança bem viva, como se ela estivesse ali naquele momento,
estendendo as mãos para alcançar as minhas. O mesmo sorriso, o mesmo olhar de anjo, os
mesmos cabelos e os mesmos brincos. Talvez até o perfume do talco e do sabonete. Ela estava ali
e parecia reclamar o cumprimento de uma promessa que não fora feita a ela, mas a mim mesmo.
- Vou pensar, disse eu, enquanto abria a porta.
- Qualquer um dos dois nomes que você escolher, para mim está bem. Gosto dos dois,
disse-me ela. Mas não diga nada à minha mãe.
Não era grande a distância até o cartório. Ficava na Domingos de Moraes, antes do Largo
Ana Rosa. Fui andando. Se quisesse fazer o registro naquele dia, tinha pouco tempo para a
decisão.
No início, a minha dúvida parecia cruel. De um lado, a lembrança do nome de alguém
que havia me encantado por algum tempo, além de um desejo de 16 anos para repetir aquele nome
numa das minhas filhas. Do outro, o palpite de uma sogra, a coisa mais detestável para qualquer
genro, nos quatro cantos do mundo. Aos poucos, contudo, fui reavendo a razão e o equilíbrio
emocional também. Seria eu suficientemente imbecil para recusar um nome que me dizia tanto,
que falava tão de perto aos meus sentimentos, que provocava tantas e tão boas lembranças, e até
lágrimas, só porque fora sugerido pela minha sogra? Não teria eu personalidade suficiente para
aceitar um palpite, sem sucumbir à figura da mãe de minha esposa?
Cheguei ao local. Subi as escadas e me sentei à frente de uma mesa, enquanto colocava
sobre ela os papéis que trouxera do hospital.
- É um nascimento?
- Sim. Aqui está tudo o que o hospital me entregou.
- Qual é o nome da criança?
- Regina Maria.
Fui para casa.
- Registrou a menina?, perguntou-me minha sogra.
- Sim, registrei.
- Com que nome?
- Regina Maria. Era para ser outro, mas mudamos na última hora.
- Bom, eu não digo nada. Ainda bem que foram vocês dois que escolheram. Nessas
coisas, não se deve dar palpite, disse minha sogra, proferindo talvez a sua maior mentira.
Passados mais de 35 anos, minha sogra, que ainda vive, ainda não sabe que eu sei sobre
o palpite que ela deu. Um santo palpite, apesar de ter vindo de uma sogra!
NOTA: Minha sogra, dona Carmen Catarina, morreu em 31/07/2003, com mais de 94 anos, sem
conhecer esta história.
MEIA DÚZIA DE “R”
Sei que o meu nome foi escolhido por minha mãe, como todos os outros, entre irmãos e
irmãs, mas não consta dos anais da minha história onde ela teria ido buscar esse nome. Gosto dele,
acho que me identifico bem com ele, embora jamais tenha gostado de pronunciá-lo, talvez por
razões psicológicas que desconheço. Mesmo o seu significado em Latim (rubro) parece se
encaixar com o meu gosto, com o meu aspecto e com a minha personalidade.
Tendo conhecido a pessoa com quem eu iria me casar (Rosette, nome encontrado por seu
pai, numa ópera) e havendo coincidência da letra inicial, ficou decidido desde logo que os nossos
filhos, poucos ou muitos, teriam os seus nomes iniciados por um “R”.
Antes mesmo do nosso casamento, ela me falou do seu gosto por Rosângela, nome que
passou a ser uma espécie de símbolo para nós e que foi guardado carinhosamente por longo
tempo, até que, a 15 de março de 1959, num domingo, às 23.30h, na Pró-Matre Paulista, nasceu a
nossa primeira filha. E ali estava a nossa Rosângela, o terceiro “R”. Curioso é que, numa época em
que o ultra-som parece que ainda não existia, não tínhamos qualquer dúvida de que era a
Rosângela quem estava por chegar, tamanha era a força do simbolismo que cercava aquele nome.
Quase dois anos depois, com o início de uma segunda gravidez, veio-nos a certeza de
que precisaríamos encontrar um nome masculino que se iniciasse por “R”. Depois de uma longa e
exaustiva “fase classificatória”, chegamos a cinco nomes: Roberto, Ricardo, Renato, Rogério e
Reinaldo, uma vez que ficara excluído, sem qualquer discussão, o meu próprio nome. Entendo que
se trataria de uma homenagem que eu me recusava a prestar a mim mesmo. Por razões diversas,
pelo menos uma em cada caso, os três primeiros nomes finalistas foram eliminados. Ficamos com
Rogério e Reinaldo, optando-se por este último quase na última hora, a 20 de outubro de 1961,
uma sexta-feira, quando, sem qualquer surpresa ou expectativa quanto ao sexo, o Reinaldo chegou
à Maternidade Santa Joana, então com a sua entrada pela Rua Tupinambás, elevando para quatro
os nossos “R”.
Depois de pouco mais de um ano, a terceira gravidez, ainda sem os recursos do
ultra-som, gerou em nós - agora sim - aquela expectativa tão comum entre os casais que esperam
por um filho. Como não dispúnhamos de nenhuma indicação quanto ao sexo, nem mesmo
qualquer manifestação ou presságio do subconsciente, providenciamos a escolha de dois nomes
com “R”, um masculino (Rogério) e outro feminino (Roseli). A 20 de fevereiro de 1963, uma
quarta-feira, na Maternidade Santa Joana, não chegou o Rogério, como também não chegou a
Roseli. Na crônica anterior expliquei por que, no último instante, a Roseli cedeu seu lugar para a
Regina Maria, o nosso quinto “R”.
Dois anos mais, e acontece a quarta e última gravidez, que iria se encerrar no dia
26 de agosto de 1965, uma quinta-feira, também na Maternidade Santa Joana, com o nascimento
do Rogério, nome que ficara guardado desde o nascimento do Reinaldo. Mas a escolha definitiva
passou antes por uma seleção. A meu pedido, mais de 20 das minhas colegas de trabalho votaram
para a escolha do nome do meu filho, chegando o Rogério “disparado” em primeiro lugar,
confirmando a nossa escolha prévia e completando o nosso time de seis “R”.
Quanto aos nomes, foi apenas uma questão de seleção e escolha. Mas uma
interessante curiosidade precisa ser observada. Nasceram todos os quatro em anos ímpares e
consecutivos, alternando-se com relação aos sexos. Talvez fosse ousadia dizer que foi um
planejamento bem sucedido, mas foi, sem dúvida, um prêmio a alguém como eu, que sempre
gostou das coisas bem arrumadinhas, bem certinhas e talvez até quadradinhas e “embrulhadinhas
uma a uma”, para lembrar uma antiga propaganda do “drops” Dulcora.
Escolhidos os nomes, definidas as datas de nascimento, por Deus ou pela
natureza, e, sobretudo, determinados os sexos por mecanismos que não compete a mim discutir,
resta procurar entender, sem jamais questionar, o perfil psicológico de cada um, a personalidade
que caracteriza cada um deles.
São quatro indivíduos absolutamente distintos, que certamente apresentam alguns
traços-de-união, algumas características genéticas que os identificam como provenientes dos
mesmos pais. Porém, são quatro personalidades diferentes que não autorizam ninguém a
classificá-los como irmãos. Aliás, não me parece muito fácil encontrar irmãos com personalidades
semelhantes.
Entre as duas meninas de antes, ou entre as duas moças que as sucederam, ou
ainda entre as duas senhoras casadas e mães de hoje, há uma diferença singular. A Rosângela,
extrovertida, consumidora por excelência, ágil, versátil, com espírito de liderança e dinâmica.
Uma mulher sob medida para o mundo moderno. A Regina Maria, meiga, carinhosa, pacata,
introvertida, recatada e observadora. Uma mulher ao estilo antigo, mas mulher por excelência.
Quanto aos rapazes de ontem e pais de hoje, existe algo em comum quanto ao
temperamento explosivo. Contudo, há diferenças acentuadas quanto ao entendimento das ciências
e quanto à apreciação das artes. O Reinaldo, mais frio, mais objetivo e mais calculista. O Rogério,
mais sentimental, mais amoroso, menos prático, parecendo mais esperar por aquilo que a vida
pode naturalmente lhe oferecer do que ter uma flagrante disposição de arrancar da vida o que dela
deseja.
Observam-se diferenças físicas enormes entre a Rosângela e o Rogério, mas
poucas entre o Reinaldo e a Regina Maria. Nenhum deles, a cara do pai; nenhum deles, a cara da
mãe. Nenhum deles, o “jeitão” do pai; nenhum deles, o comportamento da mãe. Nem as meninas
desenvolveram os mesmos e pronunciados pendores domésticos da mãe, nem os meninos
seguiram as trilhas do pai, a não ser pelo nó da gravata que o Rogério usa (tipo americano,
ensinado por mim).
Profissões diferentes, por faculdades diferentes.
Graças te dou, meu Deus, por eles, por todas as suas diferenças e pela maior
semelhança que existe entre eles: são todos meus filhos.
UM TESOURO PERDIDO
Com certeza, esta é uma história que eu não gostaria de estar escrevendo.
É a história de um tesouro. Tesouro que não foi buscado a partir de um mapa nem a
partir de uma lenda. Tesouro que não foi necessariamente sonhado e que não foi pretendido, como
tantos outros tesouros, reais ou fictícios. A minha história, ou melhor, a história do meu tesouro,
não inclui viagens pelos mares do sul, nem por outros mares, como não fala em ilhas desertas,
nem em naufrágios, trilhas ou cavernas. Não considera momentos mirabolantes ou mágicos, bem
como nada parecido com As Mil e Uma Noites, com Ali Babá, com Indiana Jones ou com
qualquer outra história que, no cinema ou nos livros, tenha conseguido povoar a nossa mente de
sonhos e fantasias.
O meu tesouro foi mais real do que todas essas histórias. Foi mais brilhante, mais
reluzente e mais valoroso do que todos os tesouros de todas essas histórias juntas, de todos os
piratas, de todos os caçadores - de arcas ou não, perdidas ou não. Foi mais importante do que tudo
isso, embora não fosse citado em nenhum mapa, embora não tivesse estado em nenhuma caverna,
no pé de uma montanha ou no fundo de um lago, embora não tivesse sido retirado das ruínas de
uma embarcação, no fundo do mar.
O meu tesouro me foi dado por Deus e, como presente de Deus, veio do céu, quase
diretamente do céu para os meus braços. Veio embrulhadinho, bem acomodado no seu ninho de
placenta.
Diziam as indicações e os prognósticos que não seria necessário ir buscá-lo tão longe.
Pode-se dizer que ele viria até nós, bastando para isso que esperássemos pela sua chegada. Ao
contrário dos tesouros dos corsários, ele estava bem próximo de nós. O único mapa que nos
guiava, se é que precisássemos de um, apontava para a Gota de Leite, uma conhecida maternidade
lá de Marília, local onde vários outros tesouros apareciam, diariamente.
Chegado o dia 4 de janeiro de 1989, eis que o meu tesouro abandona o seu ninho, sai da
sua pequenina caverna e chora feliz ao sentir os ares de Marília e ao perceber a luz intensa e
quente da minha linda e ensolarada Marília. Ele chegou chorando, como chorando chegam todos
os tesouros iguais a ele. O meu tesouro veio nu, como nus vêm todos os tesourinhos enviados por
Deus, não iguais a Deus, porque Deus não chora (ou será que chora?), mas semelhantes a Deus,
bem parecidos com Deus porque, afinal, Deus é pai e criador de todos eles. Toma o seu primeiro
banho, é pesado, é medido e é vestido. Não pesa como o ouro nem como a prata, não brilha como
o diamante, mas é um tesouro e, apesar de tesouro, recebeu um nome: Rafael Henrique.
Pois é, o meu pequenino grande tesouro havia chegado. Produzida e conduzida até nós
por Deus, não de uma forma direta, é claro, mas através das suas leis sábias e mágicas, aquela
criaturinha chegou, acomodou-se e foi ficando entre nós, sem no entanto nos dizer até quando.
Mas ao contrário dos tesouros dos piratas, aquele tesouro, embora tivesse surgido no seio
de Deus, embora tivesse sido concebido à sua imagem e semelhança, veio até nós com a aparência
de Deus e como uma mensagem de Deus, mas sem a perfeição de Deus.
Pouco mais de 30 dias depois da sua chegada, o pequenino Rafael Henrique já
significava para nós mais uma confirmação de um dos grandes mistérios para a humanidade: como
poderia Deus, perfeito por definição e por crença, ter permitido a concepção de um ser que não
fosse igualmente perfeito? Pelo menos naquele caso havia uma resposta compreensível: os pais do
Rafael Henrique, primos consanguíneos, haviam infringido algum dispositivo da lei, fosse ela de
Deus ou da natureza (o que é a mesma coisa), mas da lei. A imperfeição do Rafael Henrique,
conhecida por megacolon congênito e que impedia a total absorção dos alimentos pelo organismo,
levou-o a duas cirurgias. A primeira foi uma colostomia, realizada no seu segundo mês de vida,
em Marília, e a segunda, aos 15 meses, para a reversão da colostomia, realizada em São Paulo, no
Hospital da Cruz Azul.
Durante o pouco tempo em que o Rafael Henrique esteve entre nós, exigiu cuidados
bastante especiais, tanto de médicos como do pai e da mãe. Como se sabe, um paciente nessas
condições fica desprovido de uma parte dos intestinos, exigindo muitos cuidados com o aparelho
digestivo, em toda a sua extensão, além de uma atenção especialíssima quanto à alimentação,
sempre absorvida apenas parcialmente. Além disso, existia a possibilidade de outras anomalias,
que, contudo, não chegaram a ser comprovadas.
Aparentemente, o Rafael Henrique era uma criança saudável e parecia se desenvolver em
condições satisfatórias.
A segunda cirurgia, para a reversão da colostomia, realizada numa segunda-feira, 9 de
abril de 1990, se deu em condições normais e satisfatórias. Porém, na noite de quinta-feira,
Quinta-feira Santa, um coágulo se desprendeu da região afetada pela cirurgia e levou o Rafael
Henrique a uma morte totalmente inesperada. E eu fiquei sem o meu neto e sem o meu tesouro,
naquela madrugada de Sexta-feira Santa, 13 de abril de 1990. Ele tinha 15 meses!
No meu espírito, apenas uma pergunta que se repetia constantemente, mas que, apesar de
repetida, continuava sem resposta: por quê?
Claro que, tempos depois, o mesmo Deus que me trouxe e que logo em seguida levou de
mim o Rafael Henrique, aquele mesmo Deus me concedeu alguns outros tesouros semelhantes.
Porém, ao contrário dos tesouros perdidos entre tantas histórias também perdidas no tempo ou na
memória, onde novos achados compensavam antigas perdas, o meu tesouro, o meu especialíssimo
tesouro não era um objeto que pudesse ser substituído. Era um tesouro vivo, que chorava e que
brincava, ao qual poderiam ser juntados outros, sem nunca contudo tomarem-lhe o lugar e o posto.
E eu fiquei sem ele! E sem entender por quê.
Não sei bem por qual motivo, mas, neste momento, vem à minha mente a triste mas
interessante imagem final de um filme qualquer, de pirata, daqueles piratas que consagravam a
vida inteira à procura de tesouros perdidos. Depois de muitas lutas e de tremendos esforços e
sacrifícios, muitas vezes os tesouros acabam por escapar de suas mãos, de maneira irreparável.
Com a dor e a decepção pela perda ainda chocando os corações de quem vê a fita, o veleiro se
distancia sobre o mar, enquanto a cena se escurece lentamente e as palavras THE END ocupam o
centro da tela.
A história do filme termina aí, mas volta depois, numa outra circunstância e em outro
filme, talvez com um final feliz. Mas e a minha história, que é real, como fica?
OS QUE VIERAM DEPOIS
Enquanto os anos passam, as tristezas se renovam, as alegrias se refazem, as esperanças
se transformam e as saudades machucam e doem. Enquanto os anos passam, a vida continua
porque, independendo do tempo, esteve no passado, como está no presente e estará no futuro. A
vida é eterna porque se transmite de geração a geração, por obra e graça de um sopro divino, a
mais transcendental de todas as obras de Deus. Enquanto os anos passam, os sonhos trazem a
realidade, tanto mais dura e triste quanto mais se tenha vivido em função de sonhos apenas
sonhados, e tanto mais agradável e bela quanto mais se tenha trabalhado a partir de sonhos
realisticamente sonhados.
Ainda ontem, em Marília ou antes dela, como eu disse em outros momentos, eu me
sentia longe do mundo e ansiava por conhecer o que se escondia por trás e além daquelas luzes
amarelas que mal conseguiam iluminar a cidade. A vida, embora a tivesse em toda a sua plenitude
naquela época, parecia-me distante, como um longo caminho, quase interminável, todo ele ainda a
ser percorrido. Lutas, vitórias, derrotas, sacrifícios, tentativas, acertos, erros, alegrias, tristezas,
coisas que compõem a vida, mas que eu não imaginava existirem, estavam reservadas para o
futuro, futuro que eu não esperava pudesse chegar tão depressa. Foi quase um piscar de olhos
entre as minhas últimas traquinagens de infância na minha idolatrada Marília e aquele inefável
deslumbramento diante da expectativa pela chegada dos netos.
Plantadas as minhas sementes, que vieram de outras sementes, somamos mais quatro.
Tendo estes quatro se casado, chegamos a dez, os quais, graças às novas sementes, geraram outros
cinco, além de mais uma, especialíssima, que se juntou a nós para que fôssemos 16.
A primeira que chegou, entre os que vieram depois, foi a Danielle. Aportou por aqui, na
Maternidade São Luis, no dia 10 de abril de 1986. Loirinha como a mãe, desde logo ocupou o seu
espaço na família. Durante três anos reinou impoluta, sem concorrência, atraindo todas as atenções
nas suas festinhas de aniversário e fora delas também. Copiou o viver moderno do pai e da mãe.
Depois dela veio o Rafael, para cuja história dedico um capítulo especial “Um Tesouro
Perdido”. (É a crônica anterior). Como um presente do céu, chegou a 4 de janeiro de 1989 e, por
exigência de Deus, deixou-nos a 13 de abril de 1990.
Irmão dele, o Bruno Henrique apareceu por aqui, ou melhor, por lá, uma vez que ele
nasceu em Marília, no primeiro dia de julho de 1991. Com os mesmos problemas do Rafael,
também por ser filho de primos consanguíneos, o megacolon congênito o levou igualmente a duas
cirurgias, sendo a primeira no oitavo dia de vida (colostomia) e a segunda, com oito meses, para a
reversão da colostomia. Com os mesmos cuidados bastante especiais que foram dedicados ao
Rafael, o Bruno reagiu satisfatoriamente, lutando com bravura, tanto ele como os pais, por uma
vida o mais próxima possível do normal. Ele ainda tem um bom caminho a percorrer nessa
direção. É hoje um tesourinho não muito responsável, desobediente, aparentemente com alguma
revolta pela sua condição, e que parece experimentar uma boa dose de satisfação sempre que
consegue deixar tudo fora do lugar e, quando possível, quebrado. Mas não deixa de ser um
tesourinho especial.
A Andressa chegou a 23 de setembro de 1994. De pais desconhecidos, integrou-se à
família no seu terceiro dia de vida, para ser a irmãzinha saudável que o Bruno nunca poderia ter, a
mais provável hipótese depois do caso do Rafael Henrique e dele próprio. A nossa “pimentinha”,
doce nas horas vagas, mas desordeira e desobediente no resto do tempo, veio para “equilibrar” o
ambiente, misturando ternura e encanto com travessuras de todos os tipos.
Um mês depois, eis que chega o André, a 23 de outubro de 1994. Seria muito fácil dizer
quem é o André se você conhecesse o Bruno e a Andressa, seus primos, porque ele é exatamente o
oposto. É a criança mais ordeira e obediente entre todas as crianças que já vi. É curioso, como
qualquer outra criança. Diante de um objeto que o atraia, pára, pega, examina e o devolve intacto
exatamente no lugar onde estava. Se chuta o canto de um tapete, volta e o recoloca no lugar, antes
de prosseguir. Não tem, entretanto, os mesmos cuidados com os brinquedos. Em geral, não os
quebra, mas é comum vê-los espalhados pelo quarto. O André fala baixo, observa as coisas e, em
geral, pede o que quer com delicadeza e com uma certa dose de timidez. O André não tem similar.
Finalmente, o Gabriel. Ele está conosco desde o dia 9 de setembro de 1998. É a cara da
mãe. Leva uma desvantagem em relação aos meus outros tesourinhos. Como é ainda muito
pequeno, não pode nos proporcionar as mesmas emoções e as mesmas travessuras nas quais os
seus primos e primas são especialistas. Mas ele chega lá; é só uma questão de tempo.
São, portanto, seis os que vieram depois: Danielle, Rafael Henrique (que já se foi, mas
que continua conosco), Bruno Henrique, Andressa Caroline, André e Gabriel. São a nossa alegria
nas horas tristes ou difíceis, são os nossos contratempos nas horas de trabalho, são os reflexos do
que fomos e do que somos, mas são, sobretudo, a garantia e a certeza de que estaremos presentes
no futuro, além da nossa vida, que não termina, e além da nossa morte, onde nada acaba.
NÃO CONSEGUI FUMAR
Sempre me pareceu que o cigarro, bem mais do que causar prazer, na opinião dos
fumantes, serve à ostentação. Os fumantes sempre me pareceram achar que o cigarro dá status, dá
charme. Quando vejo alguém fumar, não vejo o vício, vejo a ostentação. A meu ver, fumam não
só porque o vício os obriga, mas porque lhes parece socialmente útil. Claro, é uma maneira
bastante pessoal de ver o ato de fumar e talvez eu até esteja equivocado quanto a isso. Se depois
de algum tempo é o vício que realimenta o uso do cigarro, parece-me inquestionável que o
primeiro deles, quando ainda não havia o vício, foi experimentado em virtude de algo relacionado
com a imitação, com a suposição de que fumar é bonito, é gostoso, é elegante. Ao experimentar o
primeiro cigarro, é impossível, absolutamente impossível, que se goste dele, porque não é
objetivamente bom. Mas se, apesar disso, se insiste em consumi-lo, é porque os aspectos acima
relacionados, puramente subjetivos e claramente falsos, falam muito mais alto. O uso do charuto
ou do cachimbo parece-me algo que claramente denota a procura por status. Nem todos fumam
charuto; poucos usam cachimbo. Conferem, portanto, a quem os usa, um “charme” especial, de
vez que, pensam, personificam, personalizam o fumante.
Mas eu não consegui fugir a essa tentação. Ao ver os outros fumarem, parecia-me
gostoso, atraente, convidativo. Por que não experimentar e fazer como todos, soltando baforadas
pela boca e pelo nariz e deliciando-se com a fumaça a formar aquelas figuras estranhas e
movediças no espaço?
Certa vez, ainda em Oscar Bressane, na oficina mecânica do meu primo Albino, achei
um maço de cigarros, quase cheio. Convidei os meus irmãos e, por duas ou três vezes, tentamos
fumar. Gosto horrível, mal-estar, tonturas e vômitos. E lá se foram os cigarros restantes para o
lixo.
Algum tempo depois, em Marília, fui trabalhar numa loja que vendia móveis. Certo dia,
alguém me deu um cigarro já aceso. Coloquei-me diante do enorme espelho de um daqueles
guarda-roupas e comecei a soltar grandes baforadas. Tentava engolir a fumaça para vê-la sair pelas
narinas, como via os outros fazerem, mas me engasgava. Jogava a fumaça contra o espelho,
vendo desaparecer a minha imagem por causa daquelas nuvens. Deliciava-me com as curiosas
figuras que a fumaça formava e as acompanhava no espaço até vê-las desaparecer. Mas, mesmo
antes que o cigarro tivesse sido consumido por inteiro, náuseas, tontura, mal-estar e vômito. Se
não tivesse sido esperto, correndo para o banheiro, eu teria emporcalhado a loja do seu Hermínio
e, quem sabe, os seus móveis também.
Mais algum tempo, e pela terceira vez, um cigarro veio às minhas mãos, não me lembro
por obra de quem. Eu andava pela Rua Cel. Galdino, no sentido centro-bairro, lado esquerdo. Ao
dobrar a esquina com a Rua Santo Antônio, encontrei uma pessoa desconhecida, que estava
fumando. Fiz o que via os outros fazerem:
- O sr. me dá fogo?
- Não, respondeu-me secamente. Não dou fogo para crianças, acrescentou de modo
áspero.
Se eu tivesse cauda, teria continuado o meu caminho com ela entre as pernas. Como não
tinha, e continuo não tendo, saí terrivelmente envergonhado e humilhado, bastante ferido em meu
amor próprio. Mais uma vez, como antes e como depois, em outras circunstâncias e por outros
motivos, o mundo decidira rir-se de mim e do meu fiasco. Amassei o cigarro tão fortemente
quanto os meus dedos permitiram e joguei-o junto à sarjeta. Foi a minha última tentativa. Recebi
um “tranco” muito mais terrível e importante do que os físicos que já experimentara, com os
cigarros anteriores. Aquele “tranco” fora moral, íntimo, e, portanto, profundo e definitivo.
O meu organismo não aceitava o fumo, mas eu insistia, porque me parecia bonito,
gostoso e atraente. Mas o meu ser, o meu mundo psíquico, o meu amor próprio, tudo isso
seriamente arranhado e machucado por aquele “não” inesperado e violento, impediram-me de
pagar tão alto preço pelo vício, que não veio naquela ocasião, como não viria nunca mais.
Não creio que existam histórias muito diferentes entre todos os fumantes que vivem
sobre a face da terra, ou entre aqueles que já morreram, pelo fumo ou por outras razões. Recusome a acreditar que tenha havido alguém tão exageradamente sádico a ponto de ter gostado do
cigarro na primeira vez que o experimentou. O vício não pode ter sido criado a partir do “prazer”
de fumar, de vez que tal “prazer” só surge mais tarde, com o próprio vício. Este, uma distorção
orgânica, surge, neste caso, de uma distorção psíquico-social.
Fumar não é bonito, não é elegante, não dá charme e nem melhora o status. Mais que
isso, fumar deseduca. É muito raro que se encontrem fumantes educados. Quase todos eles se
julgam no direito de infestar qualquer ambiente, e o fazem sem contemplação, sem pedir
permissão aos demais, sem se importar com o mal que causam aos outros. Isso não é apenas vício;
é falta de educação, de civilidade. É de admirar como muitos deles lutam por um direito que não
têm, como insistem em ocupar todos os espaços que jamais foram seus, a ponto de, quando
surgem reclamações, quase sempre não as considerarem e, não raras vezes, se insurgirem contra
elas. Pior que tudo isso é que, pelo menos em suas casas, muitos deles usam de violência, uma vez
que esposa e filhos, muitas vezes indefesos bebês, vêem-se obrigados a suportar, porque são mais
fracos, o vício de quem pode mais. Existiria uma violência mais sórdida do que essa?
ÍDOLOS
A humanidade não caminha sem líderes. São eles que a conduzem. Entre os líderes e os
indivíduos comuns existem os ídolos, aqueles poucos que, embora não condutores dos demais, por
serem alvo do respeito ou afeto excessivo acabam por influenciar a muitos, determinando
comportamentos em alguns casos, sectarismos em outros, admiração em todos eles.
Já falei antes dos meus dois ídolos maiores: o meu pai, Gentil, e o meu avô, Ferdinando.
Agora vou falar dos outros.
Existem duas categorias de ídolos: os fictícios e os reais. Os primeiros, em geral mais
grandiosos e mais próximos da perfeição, nos levam muitas vezes ao sonho ou à fantasia,
enquanto os reais desenvolvem em nós sentimentos mais modestos, começando pela admiração,
passando pelo afeto e chegando até o amor. Não conduzem ninguém, como os líderes, mas afetam
a muitos.
Tive inúmeros ídolos fictícios. O primeiro deles foi o Durango Kid, um personagem
criado por Charles Starret, nos filmes “western”, lá pela metade dos anos 40. Na mesma época,
tivemos Arsène Lupin, uma espécie de detetive em estilo bem dele mesmo, e o próprio Charlie
Chan, um detetive chinês tão ou mais eficiente do que o Sherlock Holmes. Não podem ser
esquecidos nem o Super-homem e nem o Capitão Marvel. Para muitos, Tarzan foi inigualável,
colocando a força e a ingenuidade sempre a serviço do bem. Foi meu ídolo, sem dúvida, mas, para
mim, o Zorro foi o maior de todos. O jovem, astuto e destemido herói da Califórnia, com a ajuda
de um cavalo e fazendo uso de uma capa, de uma espada e de um chicote, defendia a lei e a
ordem, protegendo os mais fracos e os miseráveis.
Através do rádio, o Homem-pássaro, o Sombra e o Anjo encarregaram-se de encher a
minha imaginação e o meu espírito de sonhos e de fantasias, além do grandioso e do belo.
Entre os meus ídolos reais, tenho que me lembrar do circo, do cinema e do futebol, mas
também tive ídolos na escola, nas artes e nas ciências, isto é, entre aqueles que contribuíram para
um mundo melhor. E ainda devo falar dos ídolos anônimos.
No circo, ninguém conseguiu superar os irmãos Jaime e Jair Temperani, com o Globo da
Morte, em companhia do Ícaro François. No mais das vezes, apresentavam-se os três. Enquanto
um deles percorria a parte média do globo, correspondente à linha do equador, mantendo o corpo e
a motocicleta paralelos ao solo, os outros dois percorriam o globo na posição rigorosamente
vertical, formando um ângulo de 90 graus entre as duas trajetórias. O sincronismo entre os três
artistas era algo deslumbrante, uma vez que passavam pelos mesmos pontos, mas em direções
diferentes, com uma diferença de décimos ou mesmo centésimos de segundo. Certa noite, os
irmãos Temperani fizeram um número chamado “os vagalumes da noite”. Com o circo às escuras
e os faróis das motocicletas acesos, giravam no globo com uma grande variação em suas
trajetórias, enquanto o facho de luz de cada uma das duas motocicletas riscava a lona do circo e o
próprio globo. Espetáculo deslumbrante.
No cinema, Maureen O’Hara sempre foi a minha predileta, nada devendo aos grandes
mitos que a história do cinema consagrou. A relação dos ídolos é quase interminável, mas é
preciso que sejam destacados alguns gênios: Charles Chaplin, o Gordo e o Magro, os Irmãos
Marx, os Três Patetas e Cantinflas.
No futebol, a relação dos meus ídolos é bastante extensa. O maior de todos foi o
Leônidas, o criador da “bicicleta”. Chamado de “Diamante negro”, inspirou depois a criação de
um chocolate. Eu vibrava com ele, torcia por ele e me empolgava com os seus gols. Tive ídolos
não apenas no meu clube favorito, por onde passaram Sastre, Bauer, Rui, Noronha, De Sordi,
Mauro, Luizinho, Canhoteiro, Zé Sérgio, Benê, Dino, Dias e tantos outros. Um dos meus maiores
ídolos jogava no Palmeiras e se chamava Oberdan. Era um “monstro” no gol. Para mim, o maior
nome naquela posição, em todos os tempos. Era alto, forte, impunha respeito e confiança. As
crianças o idolatravam. Também do Palmeiras, é bom lembrar Lima e Canhotinho, além do
Ademir da Guia. No Corinthians, o maior de todos foi o Domingos, mas não se pode esquecer do
Cláudio e do Baltazar. No sul, tivemos o Tesourinha e em Minas, o Murilo, que, depois, foi para o
Corinthians. Entre os cariocas, o Ademir, o Zizinho, o Jair, o Lelé, o Danilo e o Didi.
Na escola, alguns foram muito mais do que simples professores. Dona Stela, dona
Esmeralda e o prof. Rosemberg, a maior capacidade didática que tive à minha frente, foram mais
do que ídolos. Para mim, elevaram-se à categoria dos imortais.
Entre os benfeitores da humanidade, nos mais diversos setores, colecionei inúmeros
ídolos que conseguiram ocupar a minha mente e o meu coração. Na Música, embora Beethoven
tenha sido o expoente máximo, o meu preferido sempre foi Schubert, enquanto que, na Pintura,
Velasquez me parece insuperável. Nas ciências talvez exista o maior número de benfeitores da
humanidade, todos meus ídolos, porém quase sempre esquecidos por essa mesma humanidade.
Mais do que ídolos, foram heróis e mesmo mártires, em muitos casos, quase sempre consagrando
uma vida inteira por uma descoberta, ou um invento, que pudesse fazer a humanidade viver
melhor.
No mundo do pensamento, uma série bastante longa de filósofos e pensadores, os
criadores da Filosofia, mãe e mestra de todas as ciências, com exceção da Matemática. São todos
meus ídolos porque determinaram, e continuam determinando, os caminhos para a humanidade. A
própria Matemática e a própria Filosofia podem ser consideradas ídolos porque, independentes de
tudo o mais, bastam-se a si próprias e condicionam todas as outras ciências. A Política vem a
seguir.
Contudo, entre os meus maiores e mais importantes ídolos, muitos são anônimos, embora
nem todos e nem sempre. É o atleta que ganha uma medalha de ouro, é o empresário que mantém
e dirige uma grande empresa, é o operário que ganha pouco, mas que dirige a família com retidão
de caráter e com firmeza de sentimentos, é o lixeiro humilde que varre a minha rua e recolhe o
meu lixo, é o médico que cuida da minha saúde, é o palhaço que me faz rir, é o artista que me faz
chorar, é o orientador espiritual, ainda que não seja da minha religião, que cuida da minha fé e da
minha alma. São todos meus ídolos, seja porque vencedores, seja porque lutadores, seja porque
grandes, seja porque pequenos, porém úteis a si mesmos e aos demais. São, enfim, todos meus
ídolos, porque são todos maiores do que eu e melhores do que eu.
FORMAÇÃO RELIGIOSA
A minha formação religiosa não foi regular. Foi algo amorfo, desconexo, sem qualquer
curso específico ou preparação adequada. Foi feita aos poucos, “aos trancos e barrancos”,
seguindo muito mais os acontecimentos da época, algumas orientações na escola ou as
informações e avisos (sobre catecismo, por exemplo) dados, às vezes, pela meninada da rua.
Em casa, ensinaram-me que éramos católicos, mas foram necessários alguns anos para
que eu começasse a entender o que era aquilo e para que descobrisse que existiam outras religiões.
Ensinaram-me também que existia um Deus, um só, que estava em todos os lugares, que via tudo,
que premiava os bons e castigava os maus, muito embora nem prêmios e nem castigos se
tornassem claros e convincentes para mim. Deram-me também as primeiras noções sobre os
mandamentos.
O meu padrinho de crisma, que era meu primo e que se chamava Aurélio, ensinou-me
mais algumas coisas, ao longo de alguns anos, coisas mais complicadas e difíceis de assimilar. Eu
ainda era bem pequeno quando, estando certa vez em sua casa, levou-me à missa. Tendo saído de
casa com um grande pedaço de pão, eu ainda o tinha pela metade quando chegamos à igreja. Antes
de entrar, disse-me que lá não se podia comer pão. Eu tinha que ficar do lado de fora até que
acabasse de comê-lo, para depois entrar e encontrá-lo lá dentro. Depois do pão, entrei. Homens de
um lado e mulheres do outro. Procurei o meu padrinho, e nada. Só estranhos. Desandei a chorar,
até que alguém se aproximou de mim e me acalmou, pegando-me pela mão. Era a minha prima
Ancila, irmã do Aurélio, que me levou até o seu lugar. Não gostei daquela história porque fiquei
entre as mulheres, sem ser o bendito fruto, como dizemos na Ave-Maria. Foi a minha primeira
missa, sem muito fervor, diga-se.
Alguns anos depois, já em Marília, seguindo a meninada, comecei a freqüentar as aulas
de catecismo de pe. João Tóffolli, então seminarista. Eram dadas à tarde, no salão paroquial
daquela época, que ficava nos baixos de uma das naves da nova Igreja de Santo Antônio, que seria
construída depois. Nas horas vagas era teatro, sala de reuniões ou local para os jogos de Pinguepongue. Muitos anos depois, com a construção do salão paroquial definitivo, transformou-se em
velório. Mas eu não estava mais lá.
- Quem já sabe rezar o pai-nosso vai ganhar uma jabuticaba, prometeu o seminarista.
Levantei a mão, mas quando fui começar deu-me um “branco” e esqueci o começo. Puxa
vida, logo o começo! E, por falta do começo, não saiu nada e não ganhei jabuticaba nenhuma.
Com um curso de catecismo nada estruturado, inclusive com algumas aulas na Igreja de
São Bento, sem orientação em casa e, pior, sem a orientação do pessoal da Igreja, fui para a minha
primeira comunhão de forma totalmente irregular, sem pertencer a qualquer grupo específico.
Afastei-me da Igreja. Alguns anos depois, por influência do meu amigo João Lunardelli
(que, no futebol, era o “João-paredão”), passei a freqüentar as missas do domingo, já na época em
que o vigário era pe. Luciano Orlando Giovani, que havia sucedido pe. Augusto Casagrande, que,
por sua vez, havia sucedido pe. José Fortunato, o vigário na época das minhas aulas de catecismo.
Só então consegui aprender melhor o significado da comunhão e passei a me confessar com
regularidade - às vezes, aos sábados - e a comungar todos os domingos. Aquilo me fazia bem,
sentindo-me confortado e confiante. Recebia a comunhão com fé. A missa, além de tudo, tinha um
significado bastante especial para mim. Era um bonito encontro dominical para um considerável
grupo de pessoas. Geralmente bem vestidas, de aparência agradável, demonstravam ser pessoas de
boa formação e que, depois de uma semana de trabalho, inclusive aos sábados, iniciava o domingo
voltando-se para Deus.
Eu observava um grupo de homens com uma fita azul no pescoço, eram mais de 50, que
assistiam à missa num lugar especial, junto ao altar. Não sabia quem eram eles, mas senti vontade
de experimentar, eu também, aquele privilégio.
Certo dia, na escola, o Teruel me perguntou:
- Você é católico?
- Claro que sou.
- Costuma ir à missa?
- Todos os domingos.
- Quero levar você para assistir à missa numa situação toda especial.
Fomos, e ele me convidou a entrar para a Congregação Mariana, exatamente aqueles
homens e rapazes que, de fita azul, participavam da missa junto ao altar. Fiquei contente. Estava
onde queria.
Durante 20 anos, ou mais, fui congregado mariano, condição que me deu maiores
possibilidades de conhecer melhor a doutrina que professava. Li bastante sobre o catolicismo e o
pratiquei intensamente, pelo menos nos moldes da época, quando se vivia esse catolicismo quase
só das portas da igreja pra dentro. A única exceção de que me lembro eram os vicentinos. Travei
contacto com algumas encíclicas e estudei um pouco da doutrina social da Igreja. Fiz diversos
retiros espirituais durante o carnaval, todos eles de grande valor para mim, tanto no sentido
espiritual como no humano.
Embora desestruturada, foi uma formação religiosa bastante rígida. Castradora em alguns
pontos, equivocada ou distorcida em vários outros, foi, mesmo assim, bastante útil para a minha
formação geral. Acredito que o saldo tenha sido bastante positivo.
Caracterizada pela pompa de seus rituais, num ambiente de grande valor material, pela
arte sacra, acredito ter a Igreja Católica o ponto máximo do seu esplendor na incomparável beleza
da sua música, em todos os tempos e em todos os estilos. É empolgante ouvi-la, sendo contagiado
pela fé que expressa e pela emoção que transmite.
Capítulo importante da minha vida, essa formação continuou bem mais tarde, por novos
caminhos e para novas descobertas. No catolicismo, acabei me tornando um estudioso da sua
doutrina social, tanto ela em si mesma como o contexto em que está inserida, socialmente,
filosoficamente, mas, sobretudo, politicamente.
VIRTUDES E ESCALA DE VALORES
Os meus valores, morais ou não, acredito que, como para qualquer pessoa, foram o
resultado de um trabalho de muitos anos. Foi um construir esmerado e lento, do dia-a-dia, mas
sem ser rotineiro. Acredito que teve início comigo mesmo, a partir dos primeiros ensinamentos
recebidos de minha mãe.
A arte de saber calar-se, embora não seja um valor, mas uma virtude, foi bastante
importante para mim, na cristalização de alguns deles. Minha mãe tentou me ensinar essa
dificílima arte, embora jamais tivesse se preocupado em me dizer que, muitas vezes, embora
sabendo calar-se, é preciso saber encontrar o momento certo de falar. Eis aí o segredo do sucesso
no relacionamento entre as pessoas: o saber calar-se e, além disso, a arte de encontrar o momento
exato de falar, e falar exatamente o que deve ser dito, sem uma só palavra a mais, sem uma só
palavra a menos. Difícil isso, não? Imensamente difícil! Muitas vezes não dizemos o que precisa
ser dito, mas o que queremos dizer, e, como contrapartida, é comum ouvir-se o que não se deseja
ouvir.
Devo, portanto, à minha mãe, pelo menos a tentativa de me ensinar essas coisas, ainda
que pela metade, porque ela não me ensinou a arte de falar no momento certo. Reconheço hoje que
se eu tivesse aprendido a metade dessa metade, eu seria um homem bem mais feliz, vivendo
melhor comigo mesmo e com os demais.
Enquanto essas aulas iam sendo dadas, sempre baseadas nos fatos do dia-a-dia,
começaram a se formar em meu espírito os primeiros conceitos dos meus valores, se bem que de
uma maneira um tanto difusa, sem enxergar diferenças bem claras entre valores e virtudes: a
amizade, o amor, a obediência, a humildade, o perdão, a indulgência, a paciência, a resignação.
Mais tarde, bem mais tarde, surgiram as primeiras percepções sobre a fé, a esperança, a caridade e
a justiça. Mas tudo isso, infelizmente, bem mais na teoria do que na prática.
Se você consultar São Paulo – falo do apóstolo - verá que ele enaltece a fé, a esperança e
a caridade, mas considera esta última a maior de todas. Eu escrevi “todas”, no feminino, porque
São Paulo falava em virtudes, enquanto eu falo em valores. Parece-me que as virtudes podem,
todas elas, ser contadas entre os valores morais. Nesse caso, é mais fácil ficar com São Paulo,
porque, segundo consta, ele entendia dessas coisas. Observe-se que quase todas essas virtudes,
como a fé e a esperança, por exemplos, referem-se ao próprio indivíduo. A minha fé - se é verdade
que a tenho - é minha e de mais ninguém e afeta somente a mim. A caridade, contudo, não está
voltada para mim, embora eu possa fazê-la voltar-se para mim, mas está voltada preferencialmente
para o próximo. Daí, a sua importância e a sua grandeza. Eu não disse que São Paulo sabia das
coisas?
Nunca assisti a uma corrida de cavalos, ao vivo, mas sei que, de vez em quando, surge
um animal - que chamam de azarão - correndo por fora, atropelando “gregos e troianos”,
encostando daqui, avançando dali, e pronto, cruza o disco na frente de todo mundo. (É assim que
se fala?). E paga um prêmio enorme!
Um dos meus valores surgiu exatamente assim. Começou a aparecer na minha mente
como quem não queria nada, foi avançando, avançando, atropelando e... espera aí, não cruzou o
disco final. A imagem seria perfeita se o tivesse cruzado. Durante longos anos, esteve sempre na
dianteira, na minha escala de valores. Estou falando da justiça.
Desde os primeiros anos da minha juventude, a idéia de justiça foi ganhando vulto e
largo destaque no meu espírito e no meu entendimento. Durante longos anos, para mim tudo se
resumia à justiça. Ela teria de ser praticada sempre, em qualquer circunstância, não importando a
dor que causasse nem os sacrifícios que exigisse. Era incompatível, portanto, com o perdão, a
mais difícil e controvertida entre as virtudes pregadas pelo cristianismo. E olhe que o perdão é
fundamental! Não houve tempo, contudo, para que eu me detivesse a fazer conjecturas e chegar a
conclusões a respeito desse dualismo - antagonismo, para dizer melhor - entre a justiça e o perdão,
mesmo porque certamente eu não teria condições teológicas e filosóficas de fazê-lo a contento.
Ainda não as tenho, infelizmente. Não tive esse tempo porque lá atrás na minha vida, há 20 anos
ou mais, surgiu uma perguntinha danada, que parecia vir do nada, mas que viera para perturbar e
para ficar:
- E o amor, onde ele fica nessa história?
Foi então que a justiça, até aí no topo da minha escala de valores, teve a sua posição
seriamente ameaçada. E a coisa balançou. Entendeu por que, lá atrás, eu disse que a justiça, por
longo tempo na dianteira, não havia cruzado o disco final?
E a disputa foi dura, árdua e difícil. Ora o amor falava mais alto; ora era a justiça que
recuperava a dianteira.
Até que um dia descobri, entendi e aceitei que o amor não é uma questão de justiça, mas
que a justiça, também esta, é uma questão de amor. Foi então que o amor assumiu o seu posto, no
alto da minha escala de valores. Para se amar, não se depende de nada, absolutamente de nada;
basta querer. Mas para fazer justiça, na sua essência e na sua plenitude, é importante e necessário
que se considere o amor, porque, entre o amor e a justiça, o amor vem sempre primeiro. A justiça
também é uma questão de amor. Na justiça está sempre implícita a idéia do amor, da mesma
maneira que a injustiça está sempre associada ao desamor, para não dizer ao ódio ou à vingança.
Sugiro que você reflita um pouco mais sobre o que afirmei acima: O amor não é uma
questão de justiça. E completo agora: está acima dela. Filosoficamente, isto me parece bastante
profundo.
A justiça pode impedir o perdão, mas, estando abaixo do amor, pode este concedê-lo,
sem que a idéia de justiça se esfacele. Se o amor conceder o perdão, pode-se, por assim dizer,
afirmar que a justiça já foi feita. O amor rege a justiça, como rege o perdão, a fé, a esperança e,
sobretudo, a caridade.
Na verdade, ao tentar me transmitir a arte de se calar, minha mãe me ensinou (pelo
menos, tentou) a arte de amar, porque, calando-me, no mínimo evito ofender.
E então, São Paulo, que pregava idéias como essas, sabia ou não sabia das coisas? E se
sabia, imagine Aquele de quem as aprendeu!
CARA SUJA
É bem verdade que Deus dotou o homem de uma singular capacidade para o belo. E ele
jamais fugiu a esse dote, realizando o belo através da Pintura, da Literatura, da Música, da
Escultura e da Arquitetura. O homem esteve sempre tão afinado com o belo que extrapolou as
cinco Belas Artes, indo buscar - ou realizar - a beleza em inúmeras outras manifestações: na
dança, no cinema, no teatro, na fotografia (que é também uma arte), na jardinagem, no paisagismo,
na decoração, etc. A rigor, o cinema nem deveria ser lembrado, uma vez que, na verdade, não
passa de uma reunião de outras artes. No cinema encontramos literatura, teatro, dança, música,
fotografia, etc.
Em se tratando de arte, muito mais do que no caso das ciências, o homem consegue
atingir a perfeição. Observe-se que essa perfeição sempre existiu, sendo, portanto, independente
do tempo. No caso das ciências, ao contrário, a perfeição, que ainda não foi atingida em nenhum
dos setores da atividade humana, depende bastante do tempo e, portanto, de conhecimentos
preexistentes.
Mas se Deus permitiu ao homem atingir a perfeição através das artes, reservou para Si as
mais importantes manifestações da beleza. Uma dessas manifestações, por exemplo, é o
desabrochar de uma flor. Esse processo, como milhares de outros na natureza, é algo que não se
consegue - ao menos a olho nu - acompanhar de perto, ver, sentir, palpar, absorver; enfim,
“curtir”.
Esse mesmo Deus, contudo, não produziu e não produz apenas belezas inacessíveis, se
bem que todas reais. Uma das belezas que Deus colocou diante de nós, ao alcance dos nossos
olhos e do nosso entendimento, a cada dia, a cada hora, a cada instante e em qualquer lugar, é uma
criança de cara suja.
Se olharmos simplesmente para uma criança, estaremos identificando, sem dúvida, uma
dessas belezas que Deus realiza, mas, que Ele mesmo me perdoe, não se trata de uma beleza plena,
uma vez que lhe falta um componente essencial: a sujeira. Uma criança representa o belo, mas
uma criança de cara suja representa o divino.
Sei que não é fácil entender, tanto quanto é difícil explicar. Mas não custa insistir.
O rosto de uma criança, que representa o belo, que é o belo, representa também a
presença do próprio Deus. No momento em que a criança se suja no rosto, ela o faz
instintivamente; portanto, inconscientemente, movida apenas pela força da natureza; vale dizer,
pela presença de Deus. Se o belo estampado no rosto de uma criança vem de Deus, o belo
estampado na cara suja de uma criança vem de Deus + Deus, isto é, encontramos aí uma dupla
presença de Deus. Não, impossível, dirá você. Sim, possível, digo eu, porque para Deus tudo é
possível, inclusive essa dupla presença.
Sejamos agora mais materialistas do que espiritualistas e façamos abstração de Deus.
Agora, Deus não existe, mas a criança de cara suja existe e está bem ali, à nossa frente. Olhemos
para ela atentamente. A beleza continua a mesma.
É possível, contudo, que alguém não consiga identificar tal beleza. Nesse caso, não se
pode afirmar que o belo não existe, mas, antes, é permitido duvidar das qualidades da
identificação.
Seja como for, sabe-se que o conceito de beleza é bastante subjetivo, embora subsista a
lei dos grandes números, isto é, se uma grande quantidade de pessoas considera algo bom ou
bonito é porque esse algo é realmente bom ou bonito. Mas não estou me propondo a dissertar
sobre a objetividade ou a subjetividade da beleza. Estou apenas fazendo considerações sobre algo
que, para mim, é especialmente belo: uma criança de cara suja.
Gosto de todas as crianças. Considero-as todas lindas. Mas fico embevecido diante de
uma criança de cara suja. Nesta, consigo ver, além da dupla presença de Deus, (a primeira, quando
produziu aquele rosto, e a segunda, quando providenciou para que ele se sujasse), consigo ver a
irreverência, consigo identificar uma irresponsabilidade magistralmente infantil, consigo perceber
a traquinagem pura e genuína do ser humano e consigo visualizar uma angelical disfunção que
impede a criança de distinguir entre o limpo e o sujo, tornando ambos igualmente puros.
Uma criança de cara suja é o somatório do belo e do divino, da pureza e da
irresponsabilidade, do homem e do anjo.
No mundo moderno, procura-se evitar a sujeira, especialmente entre as crianças. Nada
contra os médicos e nada contra os infectologistas. Que elas sejam mantidas limpas, bem vestidas
e calçadas, se acharem melhor. Eu não teria condições técnicas para defender uma posição
segundo a qual as crianças que vivem sujas, ou na sujeira, poderiam ser mais saudáveis por se
tornarem mais resistentes às doenças. Se não tenho como sustentar essa tese, não há por que
levantá-la.
Resta-me, contudo, a satisfação - ou a vingança, se preferirem - de ver que qualquer
criança, sem exceção, uma vez livre dos apartamentos ou dos olhares vigilantes dos pais, procura a
terra, e nela brinca, e nela se suja, e nela se realiza, produzindo talvez a mais bela de todas as
belezas e a mais pura de todas as sujeiras. Via de regra, tira o calçado, qualquer que seja ele, para
que os pés também se deliciem com a terra ou para que se delicie também através deles. Por que
tal comportamento, infalível em qualquer criança? Se a natureza é sábia, como ninguém discute,
estaria essa mesma natureza induzindo a criança à doença? Impossível! Se a criança, essência da
natureza, busca a terra é porque essa terra lhe é necessária e benéfica.
Independente disso, e independente de qualquer tese relacionada a isso, a criança, que é
bela em si mesma, a mim me parece ainda mais bela quando brinca na terra, quando se apresenta
suja e, especialmente, quando me exibe a cara suja. E ponto final.
CONTRASTES E CONFRONTOS
Depois de tantos anos já vividos, olhando para trás e procurando entender os caminhos
procurados e os caminhos seguidos, nem sempre coincidentes, entre erros – muitos – e acertos –
poucos -, entre algumas dores e minguadas lágrimas, mas sobretudo vivendo o presente de cada
dia e confiando no futuro, uma coisa interessante que se pode observar é a seqüência de contrastes
e a sucessão de confrontos.
O primeiro dos confrontos, já relatado em outro lugar, foi o choque de culturas
experimentado em Oscar Bressane e nos primeiros anos de Marília. A minha rígida educação
européia, associada ao sotaque do Italiano e de italiano, bateu de frente com o que já existia por lá,
como as ondas encrespadas quando se chocam com o rochedo firme e aparentemente indestrutível.
Só o tempo conseguiu me acomodar, permitindo-me sobreviver naqueles dois mundos tão
diferentes.
Na mesma época, o primeiro contraste, quando descobri que nem todos eram católicos
como eu. Era estranho ouvir falarem de um líder religioso que não fosse o padre e de uma igreja
que não tivesse naves nem torres, como a católica tem, já que a Igreja, como instituição, era bem
mais difícil de ser entendida ou comparada.
Pouco depois, na escola, um grupo de alunos ganhava destaque por ocasião do desfile do
7 de Setembro. Eram os escoteiros que, com o seu uniforme, formavam um pelotão especial. Eu
também queria pertencer àquela elite, mas, sem apoio em casa e sem qualquer orientação fora
dela, não descobri os caminhos para me associar àquele grupo. O que me encantava era o
uniforme. Curiosamente, anos mais tarde, no Exército, tive que usar farda, o que me distinguia dos
demais, mas não a recebi muito bem, talvez porque ela havia me tirado do trabalho, que era ainda
mais importante naqueles tempos difíceis.
Na mesma época do escoteiro que não consegui ser, a meninada – classe média para
cima – usava meias, geralmente brancas, que chamavam de ¾ mas que chegavam aos joelhos, e
capacetes cinza-claro, fabricados pelo Ramenzoni, mais ou menos como aqueles que apareciam
nos filmes do Tarzan, usados pelos exploradores ingleses. Nunca consegui ganhar um capacete
daqueles, e as meias, quando consegui tê-las já era tarde; ninguém mais as usava e foram motivo
de deboche. Naquele caso, eu não queria ser melhor nem diferente; eu queria ser igual, mas não
deu certo.
Mais tarde, também como já relatei, eu iria encontrar brasileiros com mentalidade
comparável à européia e que eram, portanto, gente, como se dizia, da mesma maneira que
encontrei europeus, geralmente italianos ou seus descendentes, que não justificavam o juízo que
deles eu fazia, a priori. Esses confrontos, agora com resultados às avessas, sempre me
confundiram.
A bicicleta, que tanto desejei e que nuca tive, talvez não tenha sido um contraste nem um
confronto em relação a tantos que a possuíam, mas foi certamente uma grande decepção.
Particularmente para mim, na década dos 50, aqueles anos dourados contrastaram com a
minha angústia e com as minhas maiores dificuldades. Foi um confronto terrível entre a opulência
e a grandeza daqueles anos maravilhosos e a minha luta imensa para sobreviver com dignidade e
conseguir caminhar por mim mesmo, para solidificar a minha vida presente e garantir os meus
sonhos, no futuro. Em cada esquina, em cada acontecimento e em cada realização do mundo
daquela época, um contraste imenso e um confronto inevitável entre o que eu via e o que eu não
conseguia ter.
Porém, os maiores contrastes e os maiores confrontos não se referiam e continuam não se
referindo a mim, mas à sociedade em que vivo. Dois deles me ferem particularmente, até o fundo
da alma, desde há muitos anos, mas a cada dia, mais.
Se você observar as ambulâncias ou os carros dos bombeiros, especialmente os de
resgate, se você entrar na UTI de um hospital ou se for ver como funcionam as estufas que se
destinam aos bebês problemáticos ou prematuros, verá quantos sacrifícios e quantos esforços são
feitos para se salvar uma vida. Além de dinheiro, uma vida, nessas condições, custa abnegação,
suor e lágrimas. Além de conhecimentos técnicos e científicos, salvar uma vida, muitas vezes,
pode custar sangue e até mesmo heroísmo. Pois bem, enquanto isso acontece à nossa frente,
enquanto milhares de nós se ocupam heroicamente em salvar vidas, também à nossa frente
marginais a roubam de maneira fria e covarde, em segundos, sempre por motivos fúteis e
injustificáveis, acobertados continuamente por uma cegueira social e política que impressiona e
por uma impunidade sem tamanho. Contraste? Confronto? Ou um paradoxo imenso de uma
sociedade besta que não consegue enxergar essas coisas?
O outro contraste, socialmente inaceitável e humanamente inadmissível, nos mostra, por
um lado, a luta imensa e interminável de milhões de brasileiros tentando sobreviver e procurando
garantir o mínimo compatível com a dignidade e com a decência, para não morrerem de fome ou
de frio, pelo menos hoje, abrindo mão não apenas do supérfluo, mas muitas vezes até do
necessário, mas se agarrando firmemente à retidão do seu caráter e à firmeza da sua honestidade.
Por outro lado, e ao mesmo tempo, vemos milhares de brasileiros, no governo e fora dele,
ganhando milhões de maneira espúria e pelo menos socialmente criminosa, dentro da podre lei ou
ao cochilo da insensata lei, mas, muitas vezes, fora dela. Assistimos indiferentes a tantas
desigualdades, provocadas não pelas naturais diferenças entre os indivíduos, mas pela nossa
teimosia e acomodação, deixando tudo como está. Contraste? Confronto? Ou um paradoxo imenso
de uma sociedade besta que não consegue enxergar essas coisas e nem reagir a elas?
OS CAMPEÕES MUNDIAIS DA BELEZA
São quatro. Uma tarde de chuva; uma noite de luar; um rio, mas não qualquer rio; uma
estradinha, mas não qualquer estradinha.
Observe que falo de uma “tarde” de “chuva”. Não se trata de uma manhã, nem de uma
noite. É necessário que seja uma tarde. Falo em chuva, não falo em garoa, chuvisco nem
tempestade. Falo especificamente de “tarde” e de “chuva”, porque uma manhã de chuva nunca é
tão bonita quanto uma tarde de chuva, da mesma maneira que uma noite de chuva não tem a
mesma beleza de uma tarde de chuva. Pode até ser gostosa para ouvir e para dormir, mas,
certamente, não tem beleza.
Observe uma tarde de chuva. Pare com o que você está fazendo, seja o que for, e observe
a chuva. Veja como a água cai, pela força da natureza, mas como uma dádiva de Deus, como uma
bênção dos céus. Procure observar as plantas, especialmente a grama. Se observar bem, verá que
elas sorriem, felizes. Se pudessem cantar, cantariam. Mas, apesar de felizes, “choram”,
transformando em “lágrima” cada gota de chuva que desliza sobre cada folha e sobre cada pétala.
Sabemos que essa multidão de “lágrimas” alcança as suas raízes, alimentando-as e ajudando na
absorção dos alimentos, que estão na terra. Chuva, portanto, é vigor, é vida. A chuva é um
“milagre” da natureza, mas, se cai à tarde, será um milagre especialmente lindo, quase visível,
certamente sensível e indispensável.
Por quantas vezes você já viu uma chuva como essa, caindo em tantas e tantas tardes que
você já viveu? E quantas vezes, nessas ocasiões, você pensou nessas coisas? Se nenhuma, ainda é
tempo de começar e descobrir uma beleza que não é rara e que está bem próxima de você.
Uma noite de luar, especialmente longe da cidade e na companhia das estrelas, é um
outro espetáculo deslumbrante que a natureza nos oferece e pelo qual nada nos cobra.
Não é à-toa que a lua e o luar, ao menos nos velhos tempos, inspiraram poetas e
trovadores, além de incentivar palavras e gestos de tantos quantos têm os corações sensíveis e as
almas predispostas ao belo.
É verdade que também ilumina o caminho para os maus e para a maldade, como
iluminou os passos de Judas, para a traição a Cristo. Mas isso não é responsabilidade da lua, nem
do luar. Nem tira e nem nega a sua beleza ímpar.
Observe a lua e veja como ela caminha, soberana e impoluta, parecendo ciente da sua
importância e da sua grandeza. Olhe atentamente e procure vê-la não como aquela superfície plana
que ela aparenta, mas como a bola que realmente é e que se ocupa em nos transmitir a luz que
recebe do sol. Volte-se depois para o chão, à sua volta, e observe o verde, que, ao longe, se torna
prata. Ouça a voz do silêncio, perceba a magia da beleza que o envolve e procure falar com a lua,
e com o luar. Contemple, enfim, esse “milagre” extraordinário que o cerca.
Veja o solo e a sombra das árvores sobre ele. Observe a maravilha que é a silhueta das
árvores, que caminha vagarosamente, enquanto a lua se desloca sem pressa.
Ande calmamente. Olhe para a lua, admire-a, namore-a. Embora ela seja a namorada de
todos, imagine que ela seja sua, só sua. Beije-a à distância, sabendo que ela retribui esses beijos,
apesar da distância mas através do luar.
Você já olhou atentamente para um rio? Não para um rio muito grande, nem para um
muito pequeno. Para um rio, simplesmente?.
Suas águas devem ser verdes e devem acompanhar a curva que ele faz lá na frente, de
preferência à esquerda. Curvas à esquerda têm mais graça, são mais românticas do que as curvas à
direita. Você já observou isso? Ou será que sinto assim porque sou canhoto?
Continue observando esse rio. Ele está calmo e não tem pressa. Onde estamos não há
montanhas; apenas uma ou outra colina, aqui e ali. No lado esquerdo, mais vegetação do que no
lado direito. Observe a minha preferência pelo lado esquerdo, mas agora não se trata de esforço
nem de imaginação. Veja que a vegetação é realmente mais vigorosa do lado esquerdo. Se não for,
nenhum problema com a vegetação, mas certamente algo de errado com a sua imaginação, ou com
a minha capacidade de influenciá-lo.
Prossiga olhando para o nosso rio. Quase lá na curva, sempre à esquerda, veja que as
árvores parecem querer abraçá-lo com as suas folhas e com os seus galhos, que se curvam sobre a
água, beijando-a e se deixando beijar por ela. Mas, ficando as árvores, a água passa, num caminhar
constante e num beijo que jamais termina.
Nem precisa que você pense na vida que o rio nos mostra e nos proporciona. Basta que
enxergue a beleza que ele nos exibe.
Não abra os olhos ainda, se é que os fechou, porque é cedo. Continue vendo o nosso rio,
com os olhos da imaginação. Depois, ao abri-los, certamente não verá esse rio, mas saiba que ele
existe, como milhares de rios existem, iguais a esse ou parecidos com esse, mas ainda melhores e
mais lindos do que esse, porque são reais.
Se você só trabalhou e dormiu na vida, ainda é tempo de acordar, ainda há tempo de
procurar e ver os rios, e de sentir, também neles, a maravilhosa presença de Deus.
Agora, acompanhe o meu andar por uma estradinha, estradinha que está bem nítida na
minha memória porque teve existência real, há muitos anos; em torno de 60.
Se observar bem, verá que ainda é cedo. Como essa estradinha vai daqui pra lá, o sol se
levanta à nossa direita, no mesmo lado de onde ele surge todos os dias, desde que ele existe, bem
antes mesmo que essa estradinha existisse.
Caminhemos por ela e sintamos juntos o seu encanto e a sua beleza. Veja que o capimgordura segue a estrada, de ambos os lados, e que reflete os raios do sol como se no capim
existisse uma multidão de minúsculos cristais. Com a ajuda do orvalho, emite cores, pela
decomposição da luz. Você já viu beleza igual, sem falar, evidentemente, na tarde de chuva, na
noite de luar e no nosso rio? Veja aquele tronco de peroba, à esquerda, sem galhos, ainda negro
por causa do fogo que, há vários anos, aqui esteve. Está velho e corroído, mas sustenta
graciosamente a trepadeira que, jovem, viçosa e florida, o abraça com carinho, desde o chão até o
topo.
Por essa estradinha só passam pessoas e carroças, mas poucas pessoas - às vezes, a
cavalo - e não muitas carroças. Veja as marcas das rodas e o trilho, no meio, por onde passamos e
por onde andam os cavalos. Sinta o capim rente ao chão, formando o trilho e permitindo a marca
das rodas na terra ainda úmida de orvalho e junto ao capim-gordura. Ouça os pássaros e sinta o
cantar da natureza.
Lá na frente, uma curva, à esquerda é claro, mas uma curva real, que existiu enquanto
existiu a estrada. Curva enfeitada e enriquecida, na sua natural beleza, por uma bela mata, com
várias árvores, grandes e pequenas, alegres, verdes e bastante vivas.
Por essa estradinha passei inúmeras vezes e a contemplei, e a admirei na vida real, como
estou seguro de você a contemplar e a admirar agora, movido pela minha sugestão, mas
sucumbindo à sua capacidade de imaginar, de ver e de sentir o belo.
ILUSÕES PERDIDAS
Quem assistiu ao filme “O Doutor Jivago” deve se lembrar que, em dado momento, Yuri,
o personagem central, sai de casa para ir ao vilarejo mais próximo. Seria “um pé lá, outro cá”,
mas, no caminho, é cercado por um bando de guerrilheiros com quem passa a viver. A história
chega ao fim, e o filme também, sem que ele tivesse voltado para casa.
Não apenas a vida na ficção, mas também a vida real - e principalmente a vida real - está
cheia de mudanças de rumo, sempre bastante parecidas com aquela do nosso herói em “O Doutor
Jivago”.
Sem contar os fatos acidentais, como uma repentina amnésia ou um inesperado assalto, a
vida, pela sua própria natureza e essência, mesmo sem nos preparar armadilhas propriamente
ditas, quase sempre nos obriga a caminhar por caminhos nunca sonhados, seja pela vida inteira,
seja por um momento ou circunstância.
Quando se sonha, e principalmente quando se sonha muito ou demais, imagina-se uma
trajetória de vida, digamos retilínea, como se fosse uma sucessão de pontos em linha reta,
representando cada um deles uma vitória ou uma conquista. Parece que o nosso subconsciente,
quando nos faz sonhar, sabe que a menor distância entre dois pontos é uma linha reta, pelo menos
de acordo com a Geometria euclidiana. Por isso, alinha dessa forma cada um dos seus pontos,
imaginando que possamos atingi-los todos, sem desvios e sem tropeços, chegando-se ao fim pelo
caminho mais curto. Esses sonhos assim sonhados são também conhecidos por ilusões, ilusões que
se perdem a cada vitória procurada mas não encontrada.
Nesse ponto, é importante que se abram duas linhas de pensamento. Segundo a primeira,
uma sucessão de ilusões perdidas pode significar uma vida de fracassos e que talvez não tenha
valido a pena ser vivida. Mas de acordo com a segunda linha de pensamento, a mesma sucessão de
ilusões perdidas pode significar, na verdade, uma seqüência de batalhas empreendidas. Ao que me
parece, a glória de uma existência não precisa necessariamente residir num saldo positivo entre o
que se ganha e o que se perde, ou não se ganha, mas, bem mais do que isso, essa glória me parece
estar associada ao quanto se luta. O ganhar e o perder fazem parte dessa luta. Se conseguirmos
ganhar, ótimo, mas se perdermos com dignidade e bravura, mesmo assim se enriquece
interiormente, a única coisa que realmente importa no final da linha, tenha sido ela reta ou não.
Ao longo dos anos dourados da minha infância e da minha juventude, construi também
essa linha de sonhos ou fantasias, colocando uma ilusão em cada ponto dessa reta. A propósito,
quantos pontos tem uma reta? Infinitos, poderia responder o entendido em Geometria. Pois então,
infinitas eram as minhas ilusões, porque infinitos eram os meus sonhos.
Não demorou muito tempo, porém, para que eu, já colecionando alguns fracassos,
aprendesse uma interessante lição que me seria bastante útil daí pra frente. Chegara o momento da
largada para mais uma corrida de São Silvestre. A honra de dar o tiro de partida coubera a um
jovem político de São Paulo, Senador da República. Empunhando o revólver, antes de acioná-lo,
disse: “Felizes aqueles que, ao ouvirem um tiro de partida, saem para a luta, porque têm um alvo
onde pretendem chegar”.
Eu não participava daquela corrida, mas de outra muito mais importante, que era a minha
própria vida. Aprendi que, ao contrário da São Silvestre, o importante para mim seria chegar,
tendo lutado, é claro, mas o mais importante seria chegar. Eu também havia ouvido um tiro de
partida e também sabia exatamente onde pretendia chegar. Devia, portanto, me sentir feliz por
aquilo.
E a luta continuou.
Consegui algumas vitórias bastante significativas. Em primeiro lugar, consegui fazer de
mim um homem de bem. Consegui constituir uma família, com quatro filhos, todos eles pessoas
de bem. Foi a minha segunda vitória importante. Consegui construir o meu Recanto Ana Maria,
uma conquista material, mas importante para mim. E uma seqüência bastante grande de pequenas
vitórias e de grandes fracassos. Cada ilusão perdida não teve necessariamente o sabor amargo da
derrota, mas, antes, a beleza e os louros da luta que havia sido empreendida.
O curioso dessa história é que o nosso “estoque” de ilusões não se faz apenas nos nossos
primeiros anos de vida, para ir sendo “consumido” aos poucos e ao longo do tempo. É verdade
que, nesse período, sonhamos mais e acumulamos mais ilusões, que serão “consumidas” mais
tarde. Mas a nossa capacidade de produzir ilusões é quase inesgotável, acompanhando-nos talvez
até o fim, quem sabe até o último sopro de vida. Sonhamos e depois batalhamos. Ganhar ou perder
é apenas uma contingência, ou uma outra história. Não foi à-toa que alguém, cujo nome ainda não
me foi dado a conhecer, escreveu: “Se és incapaz de sonhar, nasceste velho. Se teu sonho te
impede de agir segundo as realidades, nasceste inútil. Porém, se sabes transformar sonhos em
realidades e tocar as realidades com a luz dos teus sonhos, és grande em tudo que fazes, és uma
pessoa especial para os que te cercam”.
Enfim, construi sonhos e colecionei ilusões, que, embora perdidas, como aliás deveriam
ser porque eram apenas ilusões, serviram não só para enfeitar ou alegrar a minha existência, mas
principalmente para me obrigar à luta, da qual não se pode e nem se deve fugir.
O RECANTO ANA MARIA
Acredito que esta crônica poderia ter um outro título: Como plantar uma alma.
Apesar de ter vivido na cidade sete oitavos da minha vida, até aqui, sempre continuou
pesando bastante aquela oitava parte inicial, dividida entre a fazenda de café onde nasci e Oscar
Bressane, onde comecei a perceber, e a desconfiar, que seria necessário viver em sociedade.
Logo depois de casado, em 1958, comecei a sonhar em ter alguma coisa fora da cidade,
uma casa, uma chácara, um sítio, uma fazenda, um latifúndio, qualquer coisa, enfim, que me
permitisse repousar tranqüilo nos fins de semana e, quem sabe, nos últimos dias da minha vida,
num ambiente com o qual me identificasse bastante e no qual pudesse sentir as minhas origens,
voltando a elas, ainda que fosse apenas de uma maneira parcial.
Dezenove anos de sonhos e de expectativas se passaram, até que, em 1977, cheguei à
conclusão que já dava pra começar. Vasculhei os arredores de São Paulo, andei por todos os lados,
estudei várias alternativas até que, em agosto daquele ano, encontrei um terreno que atendia, mais
ou menos de perto, àquilo que eu imaginava. Ficaria satisfeito com 5.000 metros quadrados, mas,
dada a facilidade quanto ao preço, comprei 12.000, próximos ao quilômetro 88 da Rod. Castelo
Branco, em Sorocaba-SP.
Em março do ano seguinte comecei a grande luta, isto é, comecei a plantar a minha alma
num pedaço de terra, terra que deveria ter a minha marca, que deveria ser moldada à minha
imagem e semelhança. Fizemos a cerca, de arame farpado, e o poço, a partir do qual foi possível a
construção da nossa primeira casa, bem simples e modesta nos seus 80m2. Levamos alguns meses
para que se escolhesse o nome a ser dado ao local. Seria Rancho Dengoso, uma homenagem
àquele que nos parecia ser o mais simpático dos Sete Anões, além do que, queríamos transformar
aqueles 12.000m2 de terreno num lugar “dengoso”, isto é, simples, simpático, gostoso e
acolhedor. Escolhido o nome e construída a casa, iríamos promover o nosso primeiro churrasco,
de inauguração, em setembro. Porém, uma das minhas cunhadas, esposa de um dos meus
cunhados, pessoa por quem nutríamos uma amizade e uma admiração incomuns, estava muito
doente. Estivera aqui para visitar o local, quando tudo ainda era mato, mas agora as perspectivas
quanto a ela eram bastante sombrias. A 12 de setembro de 1978, o câncer levou-a à morte, aos 34
anos de idade, adiando a nossa inauguração para 12 de novembro e alterando o nome já escolhido,
Rancho Dengoso, para que pudéssemos homenageá-la. Foi assim que, a 12 de novembro de 1978,
surgia oficialmente o nosso Recanto Ana Maria.
Seguiram-se 17 anos de bastante trabalho, determinação e mesmo teimosia para que o
nosso recanto atingisse os contornos e o visual que talvez pudessem ser definitivos.
Providenciamos a grama, mais de 5.000m2, evidentemente ao longo do tempo. Lá no fundo,
colocamos 60 mudas de árvores frutíferas, algumas delas, raras, árvores que cresceram,
frutificaram e foram, inclusive, renovadas mais tarde. Construímos uma boa casa para o caseiro (já
tivemos 11 deles, até aqui), construímos uma piscina, com vestiários confortáveis e com boa
aparência. Ao lado, um quiosque com churrasqueira, quiosque em duas versões; a mais antiga,
mais modesta, foi substituída depois pela versão que temos, já faz alguns anos. Abaixo da piscina,
um lugar suficientemente amplo para aves e coelhos. Mais à frente, abrigo para automóveis.
Construímos depois uma nova cerca lateral, uma cerca de tela galvanizada para a frente e
refizemos o portão de entrada. Ao longo do tempo, fomos plantando árvores, inclusive algumas
madeiras de lei, e fomos organizando canteiros de flores, além de um pequeno bosque, abaixo da
piscina, tudo isso obedecendo a um planejamento meticuloso. Por fim, a residência principal, sem
luxo mas bastante confortável nos seus 233m2. Providenciamos uma linha telefônica. Já em 1978
havíamos providenciado a rede elétrica para a nossa estradinha, com a ajuda de cinco vizinhos. A
rede elétrica interna é subterrânea, como também a linha telefônica; não existem fios visíveis por
aqui. Através de uma bomba automática, a água do poço é levada para duas caixas, na residência
principal, e, daí, é distribuída por gravidade para os outros setores.
Claro que cada etapa, nesse processo, tem a sua história. O poço, por exemplo, que
tivemos também em duas versões, o antigo e o atual, tem uma história curiosa, envolvendo
trabalho, dinheiro, obstinação e, evidentemente, a experiência que resultou disso tudo. A sucessão
de caseiros é uma experiência importante e uma história à parte. Enfim, os dramas e as
dificuldades de cada etapa, o dinheiro empregado, tudo isso representando sempre muito suor e
muito sacrifício.
Mas tivemos incontáveis exemplos de alegria e de prazer. Os fins de semana,
principalmente os prolongados, como o carnaval e a Semana Santa, as festas de aniversário, que
para cá se transferiram, as comemorações do Natal e do Ano Novo, além do casamento do
Reinaldo com a Irla e de dois encontros entre os membros de toda a minha família: irmãos,
cunhados, sobrinhos, netos, etc.
A partir de novembro de 1995, quando aqui viemos residir em definitivo, o trabalho se
resume a manter e a conservar o que existe.
Ia me esquecendo da história das formigas, bastante numerosas no início. Apesar de
interessante, seria uma história muito longa, ficando aqui apenas a referência a elas, as formigas.
Enfim, foi um trabalho imenso, lento mas determinado, sem esmorecimento, iniciado e
feito com a disposição firme de ser levado até o fim, mesmo porque foi feito com o coração. Aqui,
acredito haver plantado a minha própria alma, na certeza de que ela pudesse germinar, crescer e
florescer. E essa alma, que nasceu, cresceu e floresceu, é vista, já faz algum tempo, em cada
planta, em cada flor, em cada pássaro que chega, que fica ou que vai, em cada tarde de chuva que
Deus nos concede e em cada noite de luar que esse mesmo Deus nos proporciona.
Foi uma vitória, foi uma conquista, foi um sonho que se transformou numa realidade
bem viva. Mas este meu Recanto Ana Maria não pode ser o fim, não deverá ser o limite entre a
vida e a morte. Sempre existe algo mais a ser feito, desde a cerca lá no fundo até aquele portão que
está lá na frente. É preciso acreditar nisso, sonhar com isso e enfrentar novos desafios, para que
sejamos dignos de Deus, quando nos colocarmos à Sua frente.
19 DE NOVEMBRO DE 1995
Era um domingo de sol. Uma longa etapa da minha vida, que havia durado 42 anos, 9
meses e 18 dias, havia terminado na noite anterior, com o casamento do meu filho mais moço, o
Rogério.
Por volta das dez horas, depois de havermos colocado os nossos últimos pertences no
meu Monza cinza bem escuro, deixamos o apartamento da Rua Major Freire, próxima à Igreja de
São Judas Tadeu, e fomos para a casa da minha filha Rosângela, onde almoçamos na companhia
dos meus dois outros filhos e dos meus quatro netos.
Às duas da tarde, saímos para o meu Recanto Ana Maria, em Sorocaba.
Pouco depois das três, estacionei o automóvel no seu abrigo, junto à minha casa. Nele,
uma parte das minhas roupas, aquilo que eu não pudera trazer antes. Os meus ternos, as minhas
camisas e as minhas gravatas foram sendo colocados sobre a cama. Foi um trabalho lento e triste.
Sol e calor lá fora. A cada terno, uma lembrança; a cada camisa, uma dor e uma saudade; a cada
gravata, um nó, mas não nela, na garganta. Aqueles ternos, aquelas camisas, mas especialmente
aquelas gravatas, eram os símbolos de uma era, eram os representantes mudos de uma etapa que,
se não fora brilhante, pelo menos fora bonita e enriquecedora. Representavam o meu trabalho,
representavam os anos difíceis de uma luta imensa e constante, rumo àquele dia e àquele
momento. Agora, aquelas roupas que haviam me servido tanto poderiam descansar tranqüilas, ao
menos por algum tempo, no silêncio e no sossego do meu guarda-roupa.
Por quase 43 anos, já excluídos os 18 iniciais, estes totalmente entregues aos meus
sonhos e às minhas fantasias, eu havia trabalhado pensando naquele momento, pensando naquele
instante em que, desfeito o nó da última gravata, eu pudesse, enfim, instalado sobre um dos meus
sonhos, agora corporificado no Recanto Ana Maria, eu pudesse dar início à realização do meu
último e mais importante desejo: o meu projeto político.
Foram momentos de muita emoção. A cada terno que ia para o guarda-roupa, a cada
camisa que era colocada num cabide e a cada gravata que era guardada, uma sensação de
despedida e de agradecimento. Era como se eu dissesse a cada uma daquelas peças de roupa:
“fique aí por enquanto, mas, em breve, se o meu próximo trabalho for bom e eficiente, estaremos
juntos de novo, no mesmo corpo e na mesma alma, não mais para pensar em mim ou na minha
família, mas para me ocupar dos outros, a grande família que Deus colocou à minha frente e ao
meu redor”.
Depois, atravessei a longa sala e a cozinha, indo ficar imóvel junto à porta que dá para os
fundos do meu Recanto Ana Maria. A 50 metros dali, o canil, as casinhas dos coelhos e o
galinheiro.
- Será que as galinhas estão botando bem?, perguntei-me em silêncio.
Em seguida, um pensamento curioso:
- Eis tudo o que me resta: as galinhas e a preocupação quanto às suas posturas.
Fui até lá, recolhi os ovos e voltei. Seriam eles o produto final de quase toda uma vida?
Claro que não! Eu havia semeado muito mais do que galinhas e seria justo que colhesse bem mais
do que ovos. Havia plantado uma família e havia colhido uma família. Havia semeado trabalho e
agora colhia o direito de correr menos e pensar mais. Havia disseminado talvez muitas discórdias,
mas com certeza algum amor, colhendo agora o que me competia por direito e por justiça, fosse o
bem ou fosse o mal.
Portanto, não havia qualquer motivo para arrependimentos ou frustrações. Eu fizera o
que me fora possível fazer. Não fizera tudo e talvez nem fizera o melhor, segundo enxergava
agora, mas seguramente o melhor, de acordo com o que me parecera ser o melhor, em cada
momento entre todos os já vividos.
Lembrei-me daquele primeiro dia de fevereiro de 1953, quando subia as escadas da
Estação da Luz, vindo de Marília, somente eu, minha mala e os meus grandes e pequenos desejos.
Lembrei-me dos sonhos até então sonhados e tentei compará-los com as realidades vividas.
Coloquei as conquistas como numerador de uma equação matemática qualquer, deixando os
sonhos desempenharem o papel de denominador. Como resultado, obtive a justa medida do meu
esforço e do meu valor, não como o quociente inexpressivo e frio de uma divisão qualquer, mas
como o julgamento corajoso, firme e imparcial de uma vida. Multipliquei aquilo por 100 e cheguei
a um percentual, que consegui encarar com dignidade e até com frieza:
- Talvez tenha sido pouco, mas o que importa é que foi realizado por mim.
E continuei pensando:
- Hoje é o primeiro dos meus últimos dias. É o dia mais distante que tenho até a minha
morte (Sei que outros pensaram assim). Mas nada termina aqui; tudo recomeça aqui.
Portanto, era preciso que fosse iniciada a construção de uma nova e definitiva equação.
No denominador, as necessidades do meu país e da sociedade em que sempre vivi. No numerador,
nada mais do que uma interrogação, representando a mim mesmo. De um lado, o que sei, o que
penso, o que quero, o que posso. Do outro, como dizer o que sei e o que penso e como fazer o que
quero e o que posso.
Amanhã, pensei eu, chegará o momento em que se deverá resolver essa última equação.
E se haverá de chegar a um número, número que seja meu, que se refira a mim e que represente o
meu julgamento definitivo. Quero que ele seja bom, expressivo, porque se for muito pequeno terei
passado despercebido e anônimo, mas se for alto e reluzente terei escrito o meu nome na História.
.
HISTÓRIAS QUE EU NÃO CONTO
Quero pedir licença ao meu poeta preferido, Giuseppe Ghiaroni, para transcrever aqui
uma de suas belas poesias.
AS MISÉRIAS QUE EU NÃO CONTO
As misérias que eu conto eu te contei.
De início olhaste-me aturdido, tonto.
Depois choraste mais do que eu chorei
ao passá-las, na vida em que as passei.
Choraste apenas porque te contei
as misérias que eu conto.
Então imaginei até que ponto
tu chorarias, ficarias tonto,
se eu te contasse com palavras sérias
as misérias
que eu não conto.
Pois é, magnífico poeta, até aqui, embora não as classifique como misérias, contei as
minhas histórias. Algumas, tristes e amargas; outras, alegres; outras ainda, frias; mas, a maioria,
acredito que quentes e emocionantes. Contei-as todas, ou quase todas, usando as palavras que me
pareciam adequadas, sempre sérias, apesar de, algumas, significarem riso ou alegria.
Contei as minhas histórias, o que vale dizer, contei a minha vida, pelo menos aquilo que
ela teve - até aqui - de mais interessante, seja triste ou pungente, seja alegre, seja curioso ou
emocionante. Boas ou más, bonitas ou não, o que importa é que são minhas, porque Deus me as
deu e permitiu que as vivesse e contasse. Enfim, contei as histórias que podem e devem ser
contadas. Contei as histórias que conto por aí, que contei ao longo da vida sempre que encontrei
uma alma bondosa que as quisesse ouvir. Contei aqui as histórias que tenho contado por aí, como
se fossem contos e sem aumentar um só ponto.
Mas existem histórias que eu não conto.
Existiram passagens, existiram momentos que, consciente ou mesmo inconscientemente,
decidi sepultar em algum ponto do meu caminho. Foram vergonhosas? Não, mil vezes não.
Roubei? Não. Matei? Não. Mas, mesmo sem matar e mesmo sem roubar, nem sempre se consegue
caminhar bem, para a frente e para o alto. Nem sempre se consegue acumular grandezas, como
muitas vezes não se consegue adquirir virtudes que nos possam tornar melhores, não
necessariamente bons e puros - prontos para Deus - mas pelo menos melhores hoje do que fomos
ontem. Caminha-se, muitas vezes, para os lados, uma vez que, dizem, não nos é possível regredir.
Algumas das histórias que eu não conto acabaram sendo, inadvertidamente, lembradas
aqui ou ali. Quando cheguei a São Paulo, por exemplo, deveria ter trabalhado, e não apenas
estudado, porque o momento exigia. Acredito que falhei com os meus pais, com os meus irmãos e
até comigo mesmo, transferindo-lhes um fardo que talvez fosse só meu. Fui pequeno e, sem
dúvida, não progredi nem moral nem espiritualmente, embora não tenha matado e não tenha
roubado. Lembro-me que, numa manhã de domingo, por volta de 1955, minha mãe teve um
problema sério, um derrame, perdendo a fala e alguns movimentos. Por conta de um compromisso
na Igreja, missa e reunião, deixei a responsabilidade de socorrê-la para o meu pai, que chamou um
médico. Depois me arrependi amargamente, embora não tenha matado e não tenha roubado. A
minha consciência de hoje me acusa de ter sido ainda pequeno, bem menor do que a minha cultura
e a minha inteligência me autorizavam. Se não regredi naquele episódio, é certo que não progredi,
nem mesmo diante de mim, para não dizer diante de Deus. Estou convencido de que fui egoísta
em 1958, casando-me, embora soubesse que a minha família ainda precisava de mim, porque os
tempos continuavam difíceis. Pensei mais em mim do que neles, o que não constitui nenhuma
grandeza. Deus viu e, felizmente, eu também, porque, embora não tenha havido tempo para a
reparação, sempre há tempo para o arrependimento. Naqueles dias difíceis, os meus irmãos, já
casados, lutavam pela vida e, filhos de Deus, por vezes lutavam entre si, desentendendo-se.
Embora distante, a verdade é que me faltou a liderança que eles, inconscientemente, reclamavam e
que eu poderia lhes ter oferecido, levando-lhes amor e orientação no lugar do silêncio ou da
crítica. Faltou-me grandeza e, embora não tenha roubado nem matado, o certo é que deixei escapar
uma boa oportunidade de ser útil e de progredir como gente e como espírito.
Foram apenas alguns exemplos que eu, mil vezes, preferia não tê-los para exibir nem
para esconder.
Mas existem histórias de outra natureza, entre aquelas que eu não conto. Vou descrever
rapidamente uma delas, na esperança de que você não a leia e que pule este pedaço.
Eu voltava da escola, lá pelos idos de 1943 ou 1944. Durante a aula, a minha barriga
havia me dado alguns sinais preocupantes, mas eu achava que poderia chegar a tempo. No
caminho, enquanto encontrava as meninas da escola, que iam pra lá (as meninas estudavam à tarde
e os meninos, de manhã), passei por alguns sufocos, achando que não daria tempo de chegar. E
toquei pra frente. Cheguei à esquina da Rua Lima e Costa com a Rio Branco. Era um terreno
baldio naquele tempo, por onde se passava e, atravessando fundos de quintais e cercas
semidestruídas, chegava-se à esquina diametralmente oposta, onde eu morava. A casa ainda está
lá; é o 578 da Rua Cel. José Brás; naquele tempo, Rua Dirceu. Decidi ir por aquele atalho, o
caminho mais curto. Algumas meninas, que iam para a escola, apareceram lá na frente. Em alguns
segundos iríamos nos encontrar. Uma cólica terrível. Vai dar tempo pra chegar? Não vai dar
tempo? E não deu! Foi uma “festa”. Até os sapatos e as meias participaram dela. Uma “festa” que
as meninas quase não viram, mas que perceberam e sentiram, obrigando-as a se desviarem de
mim. Que vexame! Foi difícil chegar em casa naquelas condições. Que situação estranha e
incômoda. Mas aconteceu, e é impossível eliminá-la da minha história.
Agora que sei que você não a leu, estou mais tranqüilo. Afinal, foi uma das histórias que
eu não conto, ou melhor, que quase não conto. Depende sempre do momento ou do conteúdo das
outras histórias que estão sendo contadas.
Pensa que eu não fazia xixi na cama? Claro que fazia, como você ou qualquer outra
pessoa. Chato, não? Depois daquela sensação de quente e da tranqüilidade de um xixi gostoso e
despreocupado, o despertar decepcionante, molhado e sem saber como se levantar e explicar para
a minha mãe, que certamente me esperaria com o já bem conhecido: outra vez?! Eis aí um outro
exemplo de histórias que eu não conto, embora naturais e inocentes.
Enfim, meu caro poeta Ghiaroni e meu não menos caro amigo, ou amiga, que me lê,
tendo procurado contar as minhas histórias, que talvez não apresentem grandezas, mas que, pelo
menos, não sugerem “pequenezas”, procurei não me lembrar daquelas menos edificantes, que não
me ajudaram a construir nada e que, com certeza, contribuíram para que eu fosse menor do que
gostaria. Mas é forçoso reconhecer que, mesmo procurando esquecê-las, é impossível suprimi-las,
desde que continuam compondo a minha vida, certamente não pela vontade de Deus, mas pelo
meu livre-arbítrio, que pode me fazer bom, mas que me permite não o ser. Isso depende, e
bastante, de mim, embora Deus sempre “torça” pelo melhor.
COISAS DO ENTARDECER
Entre as histórias que eu conto e as que eu não conto existem muitas coisas mais e que
não constituem histórias propriamente ditas. Se a minha vida fosse vista como uma parede, as
histórias que eu conto e as histórias que eu não conto poderiam ser identificadas como os tijolos,
isto é, poderiam ser vistas como algo bem definido e que, no conjunto, formam uma vida, da
mesma maneira que os tijolos formam uma parede. Mas existe algo na parede, além dos tijolos: a
argamassa, com uma função tão importante quanto a dos tijolos; talvez até mais importante do que
eles. Eu tive também a minha “argamassa”.
Não posso fazer afirmações sobre a vida das outras pessoas. Antes, procuro entender a
minha. Se eu conseguir isso, já me darei por satisfeito. Como considero difícil essa tarefa, não
ouso fazer afirmações, mesmo sobre a forma pela qual empreendi o meu viver. Faço apenas
reflexões e, a partir delas, posso chegar a algumas conclusões que costumam ser úteis a mim.
Embora seja habitual começar pelo começo, como todos sugerem, sinto-me propenso a
começar pelo fim, fim aqui entendido como os dias que estou vivendo agora.
Vivi. Penso que vivi intensamente. Não me vanglorio das vitórias que consegui. Mas me
ufano das lutas que empreendi, quer tenham sido seguidas por sucessos, quer tenham me levado a
fracassos. Estou convencido, como sempre estive, de ter feito invariavelmente o melhor que me
foi possível fazer, em cada uma das diferentes jornadas da vida. Não me preocupo hoje, mas não
me preocupo mesmo, com o meu saldo. Sinto-me satisfeito com o que consegui, embora deseje
muito mais, coisa que não poderia ser diferente.
Porém, existe algo bastante curioso na minha mente e na minha consciência, algo que
não tenho conseguido entender, e nem explicar: não sinto dor alguma por aqueles que classifico
como os meus grandes erros, (falo dos erros que afetaram exclusivamente a mim) mas sinto uma
dor enorme, um arrependimento gigantesco pelos erros de menor monta, quer tenham afetado
somente a mim, quer tenham afetado a terceiros, tanto maior a dor e tanto maior o arrependimento
quanto mais insignificante tenha sido o erro. São esses pequenos e incontáveis erros que afloram,
cada dia mais, à minha lembrança, fazendo-me sofrer bastante, uma vez que são eles, e não os
erros importantes, que doem na minha consciência. A única hipótese a que chego, sobre esse
curioso paradoxo, é que os erros, quanto menores e menos importantes foram eles, mais
facilmente poderiam ter sido evitados.
Uma outra questão que ocupa a minha mente nos dias atuais é que me parece haver
passado pela vida, até aqui, sem ter me preocupado muito com ela. No início, é certo que os meus
pais se ocuparam disso. E o meu “nono” Ferdinando também, como, de resto, vários outros, que,
direta ou indiretamente e de diversas maneiras, me ajudaram a crescer, a desenvolver a minha
personalidade e a me posicionar diante da vida, que me esperava – parecia-me claro – muito além
das poucas e pouco expressivas ruas da minúscula Oscar Bressane e além das ruas, das praças e
das avenidas da minha encantadora Marília. A partir dessa fase, tudo me parecia mais ou menos
automático. Eu estava cursando a primeira série do Curso Ginasial, por exemplo, e, no ano
seguinte, estaria cursando a segunda, com certeza e sem qualquer discussão ou temor. A seqüência
dos estudos me levaria a uma profissão, na qual eu seria certamente bem-sucedido, levando-me
esta ao casamento e aos filhos, de maneira certa, tranqüila e “automática”. Não me parecia, ao
longo da vida, ter necessidade de lutar por ela. Tudo me parecia bastante simples. Essa luta, que
certamente existiu, e quanto, só se tornou clara, só aflorou ao meu entendimento bem mais tarde,
de maneira bem mais nítida e bem mais contundente à medida em que os dias de ontem se
transformavam nos dias de hoje. Enfim, eu só percebi as minhas lutas muito tempo depois de têlas travado, seja com ganhos, seja com perdas.
A que devo isso? A que devo essa “tranqüilidade” em relação à vida?
Irresponsabilidade? Estou seguro que não. Não tenho a menor dúvida de que ser responsável tenha
sido sempre a minha melhor marca, a minha mais importante virtude. Muito mais provável é que
eu tenha caminhado pela vida, sempre confiante em mim e nela, talvez até absurdamente
confiante, por obra e arte da formação que tive, enquanto vivia os primeiros anos de minha vida.
(Sugiro que releia a sétima crônica, lá atrás, “Uma educação européia”). O peso e a profundidade
dos ensinamentos do meu avô, Ferdinando Bocchi, por meio de minha mãe, Amedea Bocchi, a
importância dos exemplos do meu pai, Gentil Ferneda, aos quais se juntavam as vozes, os
exemplos e a postura daquela minha “italianada”, o peso dessa formação teria necessariamente
que afetar a minha vida de maneira altamente positiva, dando-me a tranqüilidade e a confiança que
me eram indispensáveis. Mas isso foi um processo inconsciente, ou próximo disso, que me
acompanhou durante quase toda a vida. Claro que, como lembro em outras passagens, tive por
vezes de enfrentar “chuvas e trovoadas”, por conta dos choques verificados entre a formação que
recebi e aquela dos demais, entre os quais, muitas vezes, se encontravam aqueles que não haviam
recebido formação nenhuma.
Vivi, portanto, movido por um processo cuja força e cuja importância eu desconhecia,
mas que me conduzia para a frente com inegável eficiência. Enquanto isso, os “tijolos da minha
parede”, isto é, as histórias vividas, tanto as que conto como aquelas que não gosto de contar, que
tiveram existência real e consciente, serviram, todas elas, para dar à minha vida um toque de
magia e de encantamento. Tudo, portanto, foi conduzido, através dos anos, com eficiência e vigor,
pela educação que tive, à base de ensinamentos incansavelmente repetidos e renovados, à luz de
exemplos, de recomendações e de comparações, mas, por inúmeras vezes, com a indispensável
“assessoria” dos chinelos de minha mãe. Bendigo a tudo isso, inclusive a estes últimos.
Talvez você possa dizer, a esta altura, que haja um certo exagero em tudo isso, quando
falo da importância do berço que tive e da educação que recebi. Mas essa, digo eu, é exatamente a
função do berço que se tem e da educação que se recebe. Penso, e estou seguro, que uma educação
que não tenha tal firmeza será inquestionavelmente falha. Quanto a isso, não discuto, não estudo e
não aceito contra-oferta. É sempre muito bom andar pela vida e agir sem necessidade de recorrer
a normas de bom caráter e de boa conduta, normas escritas ou decoradas. Muito mais prático e
muito mais eficiente e tranqüilo é se deixar conduzir por aquelas normas que estão indelevelmente
consignadas na mente e no espírito. Foi o que me ensinaram. Foi o que aprendi. É o que uso e, na
medida do possível, ensino.
E é assim que vou vivendo o meu entardecer. Imagino e espero que ele seja longo, rico
em todos os sentidos, feliz e tranqüilo, em termos de consciência. Até que chegue a noite, embora
eu não creia nela, mas sim no dia eterno, criado por Deus e predestinado a mim, bem como a todo
aquele que crê no criador do universo e de tudo o que ele contém.
NOTA: Esta crônica foi escrita nove anos depois das demais, quando os pensamentos aqui
comentados se tornaram claros.
OS MEUS OLHOS
(Esta crônica foi escrita em novembro de 2007, em outro contexto)
Tenho pouca coisa – ou mesmo nada – a dizer sobre os meus olhos, do ponto de vista
anatômico ou mesmo fisiológico. Seria totalmente desnecessário, para não dizer ridículo. Aqueles
que conhecem bem os olhos, não apenas os meus mas também os de qualquer outra pessoa, não
precisam de tais informações porque já as têm. As outras pessoas não têm essas informações, mas
não precisam delas.
Muito mais importante que isso é considerar o que os meus olhos já significaram para
mim, o que estão representando agora e o que poderão fazer no futuro, futuro que, segundo espero,
será longo e cheio de realizações. Disseram-me – não faz muito tempo – que Moisés iniciou a sua
“obra” aos 80. Se me basear nele, é certo que não posso, e nem devo, me considerar atrasado.
Continuo achando que a ninguém deve ser dado o direito de passar pela vida sem ver o
que ela tem para nos mostrar. Mas ver, embora importantíssimo, é apenas o começo. A visão, ou
mesmo a sua falta, nos leva a sentir, a discernir e, se possível e se necessário, a julgar.
Como no caso da anatomia ou da fisiologia ocular, seria bem pouco grandioso me deixar
levar por citações a respeito de tudo o que se costuma ver ao longo da vida. O que eu vejo é
comum que todos vejam, em quase todos os casos. Mas existem algumas coisas que, embora os
demais também vejam, é certo que eu vejo de uma maneira bastante singular. Posso dar alguns
exemplos.
Ah...os meus olhos! Atrelados, e muito bem atrelados à minha alma (disseram-me que eu
não tenho uma alma; disseram-me que eu sou uma alma), esses meus olhos já me proporcionaram
enxergar coisas extraordinárias.
Com esses olhos, eu já vi incontáveis tardes de chuva. Claro que todos, quase todos,
também as viram. Mas me parece certo que ninguém viu uma só tarde de chuva da maneira como
eu vi todas elas. Observe-se que falo de uma tarde; não falo de uma manhã nem de uma noite.
Observe-se também que falo de chuva; não falo de garoa nem de tempestade.
Com esses meus olhos, já vi noites de luar. Muitos outros também já viram,
especialmente poetas e trovadores. Não sou nem um e nem outro, mas tenho a minha maneira –
toda minha – de ver, sentir e interpretar uma noite de luar.
Já vi rios. Muitos! Grandes e pequenos! Mas o “meu” rio não é grande nem pequeno. Ele
caminha tranqüilo em meio a uma vegetação não muito exuberante. Faz uma curva, à esquerda,
não muito adiante. Se essa curva não fosse para a esquerda, esse não seria o “meu” rio. Galhos e
folhas se debruçam sobre suas águas, que se movimentam sem pressa, num beijo alucinante e
interminável.
Esses meus olhos, antes das primeiras e sérias dificuldades que me foram causadas pelo
tracoma, me permitiram ver uma estradinha bastante especial para mim. Sempre esteve na minha
lembrança e na minha saudade. Teve existência real. Capim-gordura à direita, que refletia a luz do
sol como se existissem naquele capim milhares e minúsculos cristaizinhos, graças ao orvalho
caído durante a noite. À esquerda, no meio de rara vegetação, um velho tronco de peroba, bem
alto, um herói que resistira ao fogo, que resistia ao tempo e que agora se via recoberto por
trepadeiras floridas. Mais à frente, de ambos os lados, uma respeitável mata, linda como nenhuma
outra. E uma curva à esquerda. Se essa curva, que era real, não fosse à esquerda, talvez essa
estradinha não tivesse ficado para sempre na minha memória. E aquele chão, pelo qual nunca
passou um só automóvel. Só pessoas a pé ou a cavalo. Ou a carroça do meu pai. Mas
principalmente eu, que não sei dizer bem para onde ia, mas sei que sempre voltava.
Essa estradinha existiu na mesma época em que recebíamos as constantes visitas do meu
avô materno. Esses meus olhos me permitiram vê-lo, e contemplá-lo, e aprender com ele, muito
embora eu não tivesse consciência disso naquela época. Nos meus primeiros quatro anos de vida,
por muitas vezes tive à minha frente a figura austera e impressionante de um homem fora do
comum, de chapéu, sempre muito bem vestido, em traje elegante e escuro, inclusive com colete e
com um relógio de bolso cuja corrente dele pendia. Aquele homem foi o meu maior ídolo. Foi
dele, mas através de minha mãe, que aprendi tudo o que sei de verdade sobre a vida. Estou seguro
de que o meu avô Ferdinando foi um sábio. E os meus olhos me permitiram vê-lo! Que felicidade
imensa!
Por isso a visão não pode ser entendida apenas como um fenômeno físico. Ela é muito
mais do que isso, como me parece haver mostrado com esses exemplos que apresentei. Claro que,
entre o físico e o emocional, há uma rápida passagem pelo biológico, principalmente no cérebro,
mas essa é uma questão técnica que não desperta o meu interesse. Não me interessa conhecer o
mecanismo pelo qual eu enxergo. Isso fica para os médicos que se especializaram nisso. Eles
sabem dizer, com bastante propriedade, como eu enxergo. Acredito que só Deus possa me explicar
por que eu enxergo. O resto fica comigo, com o meu raciocínio, com o meu discernimento e,
sobretudo, com o meu coração e com a minha alma. (Como eu disse antes, não sei se tenho uma
ou se sou uma).
Até aqui, consigo dizer, inclusive com minúcias, o que fiz da minha capacidade visual,
ainda que deficiente em alguma medida. Até aqui, posso relatar o que consegui colher da
faculdade que tenho de enxergar. Por exemplo, consegui montar o meu conceito do belo. E isso é
algo realmente grandioso.
Acontece que, de uma maneira mais ou menos esperada, e talvez até calculada, as
minhas limitações quanto à visão chegaram ao limite, a partir do qual alguma coisa externa
precisaria ser feita, desde que eu quisesse, por exemplo, continuar dirigindo automóveis. Os meus
olhos, ou mais precisamente, as minhas córneas estavam precisando de uma boa recauchutagem. E
tratei de encará-la com determinação e confiança.
Feita essa recauchutagem e passados vários meses, quase um ano, a questão que se me
apresenta como bastante séria nesta circunstância da vida não é simplesmente, por exemplo, poder
voltar a dirigir o meu automóvel. Essa é, sem dúvida, uma questão prática importante, mas não é
tudo. O que temo é que eu acabe por reduzir todo o universo que cerca e que inclui o meu campo
visual, naquilo que esse universo tem de mais extraordinário do ponto de vista da minha
sensibilidade, da minha percepção e da minha capacidade de entender o mundo que me rodeia,
seja por aquilo que vejo, seja por aquilo que está longe de mim, o que temo é que eu acabe por
reduzir todo esse universo à simples problemática de enxergar ou não enxergar bem, enquanto
fenômeno puramente físico ou mesmo biológico.
É preciso continuar enxergando, sem dúvida, e bem, se possível. Mas, como antes e
mesmo como agora, não posso me subtrair da faculdade que tenho – imagino que todos tenham –
de captar e interpretar a realidade que o mundo visível me apresenta. No conjunto dessa realidade,
parece que me especializei no bom e no belo, trazendo-os para bem dentro de mim.
A prioridade maior, desde o dia da primeira cirurgia, a 26-01-07, é eliminar o
desconforto que se implantou no meu olho esquerdo, fazendo-me lembrar constantemente que ele
existe e que está no seu lugar. Isto porque me parece ser esse desconforto o maior responsável
pelas limitações que me preocupam, quanto a “enxergar” tudo aquilo que está além das simples
imagens que, bem ou mal, se formam na minha retina.
(continua... quem sabe, não sei quando nem como)
GENROS & NORAS
A maioria de nós domina relativamente bem as quatro operações básicas da Matemática.
Em muitas ocasiões da vida, fora portanto dos exercícios teóricos ou mesmo práticos dessa
ciência, vemo-nos na contingência de ter que somar ou subtrair, quando não de multiplicar ou
dividir. A potenciação e a radiciação ficam basicamente para os matemáticos.
Esse contexto genérico de se ver na contingência de trabalhar com esses conceitos
matemáticos, aplicados à vida de cada um de nós, adquire uma conotação toda especial quando se
passa a ter um genro ou quando se ganha uma nora.
O curioso é que eu não havia pensado nisso antes, pelo menos de maneira séria e
objetiva. Mas agora me encontro diante dessa questão, por sugestão da Irla, uma de minhas duas
noras.
E isso me leva a uma primeira indagação: por que eu não havia pensado nisso antes?
Talvez a resposta seja a mesma, ou pelo menos parecida, estando ligada àquilo que se sente
quando começam a aparecer os netos: o tempo está passando e a juventude vai ficando para trás.
Antes dos netos, os genros e as noras são sinais bem claros dessa realidade.
Mas existe uma segunda indagação, ligada à própria vida, em todos os seus aspectos,
mas ligada também à Matemática: os genros e as noras, afinal de contas, aparecem para somar ou
para subtrair? Surgem para multiplicar ou para dividir?
Eis aí a questão que me cumpre analisar.
De saída, sei – e imagino que todos saibam – que cada caso é um caso. Mas sei também
que essa análise demanda tempo, papel, disposição, paciência e, sobretudo, conhecimento
sociológico. Entre esses fatores, disponho de quase todos, em maior ou em menor medida, mas é
certo que não disponho do último acima citado. Mas como neste país – e no mundo – não faltam
aqueles que se dispõem a escrever ou a falar sobre aquilo que não entendem, coloco-me entre eles
e vou tecer algumas considerações, mesmo sociológicas, sobre esse “amálgama social”
representado pelo marido, pela mulher, pelo genro e pela nora. Creio que posso fazer isso, mesmo
por que “de médico e louco, cada um tem um pouco”.
Uma vez enchida a lingüiça com esses prolegômenos (desculpe-me pelo palavrão),
vamos ao que mais interessa. Mas, antes disso, eu gostaria de dizer que, segundo afirmam os bementendidos nesse assunto, esses destacados e avantajados prolegômenos são especialmente úteis
quando, em verdade, precisamos retardar a entrada no assunto, seja por que não entendemos muito
bem desse assunto, seja por que não nos sentimos bem à vontade para enfrentar as sutilezas que o
tema pode encerrar. Neste caso, vejo-me diante de uma composição muito bem balanceada dessas
duas hipóteses.
Isto posto, vamos em frente... e seja o que Deus quiser!
Em pouco mais de 14 anos, conseguiram dois genros e duas noras para mim. Como esse
número (quatro) não é desprezível, tenho ainda uma oportunidade para “sair pela tangente”: falar
do conjunto, em bloco, evitando ter que enfrentar cada um, isoladamente. Mas acontece que o
conjunto tem pouco ou nada a ver com os seus componentes, de maneira pessoal e isolada.
Portanto, não tem jeito; se aceitei a incumbência, não posso e não devo fraquejar.
(Segundo os meus cálculos, já preenchi 70% do espaço que pretendia, com esse tema.
Portanto, 70% da missão “consumatus est”. Deus do céu, isso é o que se pode chamar, em “bom
Português”, de “encher lingüiça”.
Vamos lá, então.
Como você já deve ter lido o que escrevi sobre a minha filha Rosângela, fica mais fácil
dizer o que penso sobre o marido que ela escolheu. Moderno e consumista como ela, não parece
ter nascido para o simples e para o modesto, mas sim para o complicado, sempre com uma forte
tendência para o grande, embora nem sempre grandioso. Tentou somar enquanto genro e enquanto
pode. Mas, esbarrando em dificuldades íntimas e sociais, preferiu dividir. E não pertence mais à
família.
O segundo genro não veio de fora; foi encontrado dentro da própria família. Assim
sendo, tem os aspectos bons que a família tem e apresenta os traços ruins que a família também
tem. Eu diria que, em resumo, esse genro tem a hombridade, a seriedade e o caráter da família
onde nasceu, que também é minha, mas, como Ferneda que é, apresenta, de maneira facilmente
perceptível, as enormes rebarbas tão típicas de qualquer Ferneda, pelo menos daqueles que vieram
antes dele. Na média, consegue somar. E como sou muito exigente, posso afirmar que todos os
Ferneda’s, pelo menos até a minha geração, não são muito bem “acabados”.
A minha primeira nora, aquela que me impôs esta incumbência e que suscitou estas
considerações, aproximou-se da família de um modo bem mineiro, e nela se mantém de um modo
algo doce (sem ser açucarado), à mineira, mineira que é por nascimento e mineira que é pelo estilo
e pela graça. Mas não é uma mineira dos cafundó das Minas Gerais. É uma mineira de São Paulo,
que sabe o que é bom, o que é moderno e que aprecia vestir-se de preto, estendendo esse gosto, ou
esse hábito, para o André, ao mesmo tempo seu filho e meu neto. Soma. Soma a seu modo, à
mineira, de maneira matematicamente discreta, isto é, sem grandes saltos (nem assaltos), sem
grandes saliências e sem grandes reentrâncias. Soma de maneira discreta também socialmente. É a
sua maneira, muito própria, de somar, que entendo, respeito e aprecio.
E, para completar o time, vem a Andréa.
Loira e de cabelos por vezes algo como esvoaçantes, à pouca distância de serem ruivos, a
personalidade dessa minha nora parece refletir o que a sua aparência física me sugere, além da sua
postura comportamental: doce, eternamente apaixonada, especialmente pelo filho Gabriel, mas
realista, exigente, como me parece ser bom (embora nem sempre na medida do ideal, mas se
aproximando disso) e lutadora. O visual da Andréa nunca me enganou. Ela sempre se comportou
como o seu aspecto físico me sugere. Doa-se. A minha impressão é que se encaixa na família
quase como uma peça de quebra-cabeça. E o saldo tem me parecido positivo. Também a seu
modo, que também entendo e respeito, ela tem somado.
“Eco!”, como dizia minha “mama” e meu “nono” Ferdinando. Parece-me que dei o meu
recado.
(Esta crônica foi escrita em 2008, dez anos depois das primeiras 79)
TIBIDABO
Você pode se perguntar o que significa essa palavra, da mesma maneira que eu tenho me
perguntado, há mais de 13 anos. Parece que há um parque, na Espanha, e um restaurante, em São
Paulo, com esse nome. Fiz essa descoberta recentemente. Mas não se preocupe em saber o que
significa Tibidabo. A rigor, eu também não sei. Isso não é importante, ao menos para mim. O que
interessa, nessa altura do campeonato, ou da vida, é o que o Tibidabo significa para mim.
Fisicamente, é o edifício onde moro desde 13-09-08.
Algumas páginas atrás, você encontrou uma crônica intitulada “O Recanto Ana Maria”,
na qual leu que eu supunha ser lá o meu último endereço, enquanto ser vivente. Ocorre que, como
me dizia um amigo que tive muitos anos atrás, uma importante característica dos planos é
poderem ser modificados, alterados, de acordo com o passar do tempo e de acordo com as
circunstâncias. E essas circunstâncias, próprias da vida de qualquer um, costumam sugerir – ou
exigir – mudanças de lugar, de posição e, muitas vezes, de rumo. Acho que seria uma chatice,
mesmo para mim, relacionar e comentar os motivos que me levaram a vender o meu Recanto Ana
Maria e vir para cá. O que importa é que estou aqui, no Edifício Tibidabo.
Estou supondo que você tenha lido todas as crônicas que antecedem essa. Se não leu, é
certo que começou pelo lado errado, sugerindo eu que recomece pelo início. Lá, tendo lido antes
ou lendo agora, viu – ou verá – que tudo começou na Água da Panela.
Pois é, vai uma longa distância entre a Água da Panela e o Tibidabo. No tempo, são mais
de 73 anos. Na distância, são aproximadamente 480 quilômetros. Na vida, que é o que mais
importa, interpõe-se uma longa história, história que você deve ter acompanhado em pequenos
tópicos, revividos nessas crônicas. Se contei direito, mudei de endereço 16 vezes ao longo dessa
história, mas nenhuma mudança foi tão completa como essa. Antes, mudei de casa, de rua, de
cidade, mas a vida continuou sempre porque havia sempre um objetivo imediato a perseguir.
Desta vez mudei para um apartamento, mas, obrigatoriamente, tenho que mudar de vida.
Mas, antes de falar dessa mudança, que começa agora e que se projeta para a frente,
parece-me mais lógico, e habitual, falar do hoje, do agora, deste exato momento.
Olhando pela janela da sala, vejo uma pequenina parcela desta imensa São Paulo. Vejo
veículos que se dirigem para todos os lados, ao contrário da Água da Panela, lá em Oscar
Bressane, onde não havia nenhum como esses. Veículos de todas as cores, de todos os tamanhos,
de todas as marcas, de todos os tipos. Dentro de cada um, dirigindo ou não, pessoas que buscam
pela vida ou, pelo menos, que buscam ganhar a vida. No começo, lá na Água da Panela, eram
poucos os veículos. Já falei antes sobre um deles, o “pé-de-bode” do mascate. Mais adiante, falei
sobre o chevrolet-tigre do meu avô Ferdinando, ou de um dos meus tios, não me lembro bem. Mas
na Água da Panela, onde nasci e onde vivi por seis anos e meio, quase só a carroça do meu pai,
puxada pela Bolívia, pelo Ferreiro e, algumas poucas vezes, pelo Barão. Os carros de boi andavam
pouco por lá, mas apareciam de vez em quando. Era mais freqüente ouvi-los à distância, com o
seu chiado bem típico. Não sei ainda hoje, como não sabia naquela época, no que pensavam
aquelas pessoas que conduziam aqueles veículos. Não sei de onde vinham nem para onde iam, não
sei – e jamais saberei – como ganhavam a vida e nem imagino quais seriam os seus sonhos e quais
seriam as suas esperanças. Só sei que passavam. Nada mais. Só o meu pai e os meus irmãos, fosse
na roça, fosse conduzindo a carroça, pareciam ter um lugar para onde ir, no fim de cada dia.
No lugar dos carros de boi e da carroça do meu pai, e das outras também, vejo hoje, lá
embaixo, todos esses veículos dos quais falei antes. E, além deles, tenho o metrô, bem perto daqui.
Sabe, os trens do metrô são muito mais rápidos do que as carroças e do que os carros de boi dos
tempos longínquos da Água da Panela. Carregam muito mais gente, é verdade, mas sabe, não têm
– nem de longe – o mesmo charme e o mesmo encanto que as carroças tinham e que os carros de
boi também tinham. E, muito mais do que isso, não construíram ainda uma história como aquela
que eu, as carroças e os carros de boi construímos juntos.
.....(Intermezzo, isto é, pausa, intervalo... para as lágrimas).
Eis aí, ainda que rapidamente, a minha posição atual. Até aqui existiram vitórias, sem
dúvida, aconteceram conquistas, é claro, mas acumulei também fracassos e decepções, entre suor e
lágrimas.
Mas há que seguir em frente!
O que me representa, então, o Tibidabo, nesta circunstância da vida? A última etapa?
Seria muito difícil dizer. Seria ela longa? Seria curta? Só Deus sabe, mas Ele não costuma revelar
coisas desse tipo. Restam-me então, como antes e como em todas as outras etapas, desde a Água
da Panela, restam-me ainda três coisas, definidas por três verbos, todos os três da primeira
conjugação: desejar, acreditar e trabalhar.
Entendo que essas três palavras são fundamentais para qualquer um de nós. Talvez até
mágicas, eu diria, com um poder imenso. É sempre preciso desejar alguma coisa, mas desejar de
corpo e alma, a tal ponto de sacrificar tudo o mais, que costuma ser menos importante, no sentido
daquilo que realmente queremos.
Embebidos por esse enorme desejo, precisamos acreditar, mas acreditar de verdade que o
nosso desejo é possível. Ainda que a realização desse desejo não dependa apenas de nós, é
fundamental acreditar e saber que, sempre, podemos alterar o ambiente, influenciar outras pessoas
e, até, confiar que, quando queremos alguma coisa de fato e quando cremos ser essa alguma coisa
possível, confiar que as energias do universo se unem e se somam – sempre – para nos ajudar.
E, a esse ambiente de desejo e crença, precisamos acrescentar o trabalho, trabalho firme
e constante na direção do objetivo fixado. Sem esmorecimentos e sem retrocessos.
Se eu não desejar (ainda) algo, não valerá a pena viver. Se eu não acreditar, não há por
que desejar; seria inútil. E se não trabalhar, o desejo ficará apenas no desejo e a crença morrerá
por si mesma, um pouco a cada dia, a cada hora, a cada instante.
A receita é simples, bem sei, mas a sua consecução é difícil, também sei. É por isso que
nem todos vencem na vida, pelo menos de uma maneira completa e robusta. De minha parte, sei
que venci em algumas jornadas, mas o essencial parece-me que ainda está por vir... se houver
tempo. Quem sabe o Tibidabo poderá vir a testemunhar isso.
Como eu desejo e como eu creio, imagino que tenha muito trabalho pela frente, sem
lamentar os meios dos quais não disponho, mas festejando e dando graças a Deus pela força que
me deu até aqui, que continuará me dando, segundo espero, e pelas condições que haverá de me
proporcionar, não apenas físicas, mas principalmente aquelas do espírito e do intelecto.
(Esta crônica foi escrita em 2008, dez anos depois das primeiras 79)
FRANCISCO
Já escrevi sobre os meus avós, sobre os meus pais, sobre os meus irmãos, sobre os meus
filhos, sobre os meus netos, sobre os meus genros e minhas noras, e até sobre os meus amigos.
Só falta agora escrever sobre o Francisco.
Já escrevi sobre a carroça do meu pai, sobre o caminhão do meu avô, sobre a bicicleta
que nunca tive e sobre o bonde “Angélica”.
Só falta agora escrever sobre o Francisco.
Já escrevi sobre a Água da Panela, onde nasci, sobre Oscar Bressane, onde começou a
minha educação, sobre Marília, onde desenvolvi a minha personalidade, sobre Campinas, sobre
Vera Cruz e sobre Adamantina, três cidades onde passei momentos inesquecíveis de minha
juventude.
Só falta agora escrever sobre o Francisco.
Já escrevi sobre os bailinhos, sobre as festinhas, sobre as amiguinhas, sobre as
namoradas que tive, poucas, sobre aquelas que não tive porque não quiseram, muitas, e sobre
aquelas que quiseram, mas que eu não quis, não sei se muitas ou se poucas.
Só falta agora escrever sobre o Francisco.
Já escrevi sobre as minhas aventuras na Água da Panela, em Oscar Bressane, em Marília,
em Adamantina, em Campinas e em São Paulo.
Só falta agora escrever sobre o Francisco.
Já escrevi sobre as minhas tristezas e angústias, sobre as minhas alegrias, sobre as
minhas dificuldades, sobre a fome que já senti, sobre duas professoras, sobre um professor, sobre
as escolas que freqüentei, sobre o meu nome, sobre a minha timidez, sobre a minha formação
religiosa, sobre virtudes e escala de valores, sobre o vício que não consegui ter, sobre as belezas
da natureza, sobre uma criança qualquer, de cara suja, sobre os meus olhos, sobre o meu
“entardecer”, sobre o prédio onde moro, e já contei até as histórias que eu não gosto de contar.
Só falta agora escrever sobre o Francisco.
Mas chegou a hora de escrever sobre o Francisco.
Quem foi ele? Digo foi porque ele já se foi.
Teria ele ido muito cedo? Imagino que sim, mas só Deus sabe quanto a isso.
O que devo escrever sobre ele? Sobre os seus defeitos? Claro que não! Isso implicaria
em julgamento, coisa que, por mais que somos tentados a fazer, sempre acabamos entendendo que
Deus não quer que o façamos. Devo escrever sobre as suas fraquezas ou sobre os seus vícios?
Nem pensar! Fraquezas, temos todos. Quanto aos vícios, o fato de eventualmente não os termos
não nos torna, necessariamente, melhores do que se os tivéssemos.
Devo falar da sua inteligência? Acredito que não, porque ele não ultrapassou os limites
da normalidade. Devo falar da sua cultura? Também não, porque ele nunca se preocupou com
isso, nem mesmo para o “gasto”. Devo falar do seu porte físico? Muito menos, porque a natureza
entendeu que ele não iria precisar disso, como jamais precisou.
Vê-se, por aí, pelo perfil que dele tracei, ainda que de maneira bem rápida, que parecia
faltar bastante coisa ao Francisco. Mas como Deus, pelos caminhos da natureza, sempre pensa em
compensações, seria de esperar que alguma coisa existisse nele para compensar certas ausências,
ou certas deficiências. Durante o tempo em que o conheci, aproximadamente 20 anos, essa
compensação sempre existiu. E veio simbolizada por uma das partes mais importantes do corpo
humano. Apresentou-se sempre simbolizada pelo coração. O Francisco sempre teve coração, como
os brutos também têm, mas, dentro dele, bondade. É claro que também se observava a ira e o
desamor, em algumas passagens de sua vida, como se observa em qualquer outro ser humano, mas
o que sempre prevaleceu naquele coração foi a bondade, foi a alegria em servir e em ajudar.
Ajudar em todos os sentidos e em todos os momentos.
Portanto, para ser bom, humanamente bom, bom de uma maneira cristã, o Francisco não
precisou abdicar de seus defeitos, nem de suas fraquezas, nem de seus vícios, e nem precisou lutar
contra eles. Como não precisou ser o mais inteligente, nem o mais culto, e nem precisou de um
porte físico que o levasse, quem sabe, aos estúdios da televisão ou às telas do cinema. O Francisco
se contentou em ser bom. Isso sempre lhe bastou, embora eu imagine que ele não tivesse
consciência disso, coisa que aumenta o seu mérito.
O Francisco não viveu muito, segundo penso, mas viveu bem, segundo sempre observei,
nesses 20 anos de convivência. Poderia até ter vivido melhor do que viveu, tivesse ele pensado um
pouco mais em si mesmo. Nesses 20 anos, sempre observei, preferiu bem mais servir do que ser
servido, preferiu bem mais ajudar do que ser ajudado. Acredito que, antes desse seu invejável
comportamento, sequer tivesse lido a oração de São Francisco, bem mais completa do que as
poucas palavras que escrevi acima.
Em alguns momentos, e por vários motivos, o Francisco era chato. Mas, com as
qualidades que tinha, podia até se dar ao luxo de ser chato. Se assim não fosse, o meu
relacionamento com ele, pelo menos o meu, mas talvez o de outras pessoas também, é que seria
bastante chato. Eu me chateava com as suas momentâneas chatices, mas estou convencido de que
poderia tolerá-las por mais um bom tempo.
Diz-se de muitas coisas e de muitas pessoas que “valem quanto pesam”. Havia até um
sabonete com esse nome, no singular. Mas, contrariando isso, o Francisco valia bem mais do que
pesava, mesmo durante o período normal de sua vida. Fisicamente, ele nunca judiou muito das
balanças.
Os seus defeitos nunca me pareceram assim tão graves. Talvez o mais sério – falo dos
defeitos e não dos vícios – tenha sido o hábito de dormir com a luz acesa. E com o travesseiro
muito alto, que o fazia dormir quase sentado. Estranhos hábitos de dormir tinha ele! Mas ajudava
as pessoas, e pagava as suas contas, inclusive a da luz, e não reclamava da vida.
Nesses anos todos em que o conheci, o Francisco, como quase todas as pessoas, teve
altos e teve baixos. Mas os seus altos não foram muito altos, nem os seus baixos foram muito
baixos. Caminhou quase sempre em cima da média, no meio termo, vivendo uma vida pouco ou
nada fora do comum, sempre com dignidade, como imagino ser a vontade de Deus. Acredito que,
na média, Deus esteja contente com ele.
Ao longo da vida, fez as suas escolhas. Como qualquer outra pessoa, nem sempre essas
escolhas foram as melhores, mas exerceu o seu direito de fazê-las e de viver a sua vida como lhe
pareceu ser melhor. Como procurei mostrar acima, nessas escolhas e nessa maneira de viver,
talvez tenha mais acertado do que errado, não me preocupando, agora, com a importância relativa
dos erros e dos acertos. Escolhas, com erros ou com acertos, tudo isso é muito humano e muito
bonito!
Gostava do sogro, mas não gostava da sogra. Um direito dele, uma opinião dele. Não
creio, contudo, que esteja em maus lençóis hoje, por não gostar da sogra, nem no céu, por gostar
do sogro. A rigor, e pensando bem, não sei onde ele se encontra, mas estou certo de que Deus
haverá de julgá-lo bem, como faz com todos nós, como haverá de premiá-lo pelo bem que fez e de
perdoá-lo pelo bem que não conseguiu fazer.
12-01-2009
MARÍLIA, OS CIRCOS E EU
Na minha crônica sobre o Cine Marília, escrevi que eu o descobri em dezembro de 1942
e que “não foi fácil entender o inebriante mistério da técnica que tornava possível tudo aquilo”
que passei a ver logo depois dos meus irmãos. Um pouco mais abaixo, escrevi:
“Nos exatos dez anos que se seguiram, aquele cinema iria viver uma história
particularmente interessante para mim. Dos 8 aos 18 anos, eu estaria com ele, e ele comigo,
ajudando-me a projetar a minha vida, justamente ele, para quem a projeção era fundamental.
Com ele, construí um mundo de sonhos e fantasias, porque os sonhos e as fantasias são
indispensáveis quando se projeta uma vida. Com ele, obtive informações que me permitiriam
avaliar essas fantasias, distinguindo os sonhos da vida dura e real que estava lá fora, além suas
paredes. Com ele, pratiquei o rir e exercitei o chorar. Enfim, também com ele plasmei uma vida.
Se ele tinha a força da chamada “sétima arte”, que iria atingir o seu pico alguns anos mais tarde,
eu tinha a força da minha infância e da minha juventude. Juntando essas forças, eu deixaria rápido
para trás a criança e o adolescente, para me ver um homem, um homem de 18 anos. A viria iria me
obrigar a ser esse homem, bem cedo, infelizmente”.
Simultaneamente, reencontrei o circo, que eu já havia visto antes, ainda em Oscar
Bressane, a minha minúscula cidade natal. Mas fora apenas um, e dos menores. Agora, durante
aqueles mesmos dez anos nos quais estive em contato com o mundo do cinema, eu estaria também
em contato com o mundo dos circos, em tudo diferente do mundo do cinema. A primeira e
enorme diferença que havia entre esses dois mundos era que nos circos tudo era real; eu poderia
até tocar em tudo, se me deixassem. Uma outra diferença importante era que o circo significava
para mim apenas um entretenimento, enquanto o cinema ia bem além disso, como mostrei na
crônica sobre o Cine Marília.
Não consigo informar com precisão em quantos circos entrei. Calculo que, naqueles
meus dez anos vivendo em Marília, lá estiveram entre 12 e 15 deles. Aquele era um divertimento
do qual meu para também gostava e, graças a isso, sempre nos levava ao menos uma vez em cada
um deles que apareceram por lá. Nas outras vezes, eu sempre acabava descobrindo uma maneira,
sempre honesta, é claro, de conseguir aqueles poucos cruzeiros que me permitiam entrar. Uma
dessas maneiras foi vender pipoca no circo, como relato em
O primeiro circo que apareceu por lá foi montado num terreno na Rua 9 de Julho, entre a
Nelson Spilmann e a Pedro de Toledo. Mais tarde, aquela terra vermelha foi substituída pelo
Jardim São Bento, com aquele chafariz no centro, agora abandonado.
Um pouco mais tarde, chegou o Circo Garcia, que foi armado na Rua Santo Antônio,
entre a Paes Leme e a Campos Sales. De todos aqueles que vi, esse circo tinha a melhor estrutura
física. Além disso, os seus artistas eram de ótima qualidade. Os Irmãos Queirollo apresentavam
um número bem interessante, deitados. Faziam um autêntico malabarismo com os pés, começando
por abrir um guarda-chuva com os pés para depois fazer com os pés e com o guarda-chuva coisas
que poucas pessoas conseguem fazer com as mãos. Mais tarde, já aqui em São Paulo, vi os Irmãos
Queirollo na televisão, mas agora como os palhaços Fuzarca e Torresmo. Um pouco mais tarde, o
circo Garcia repetiu sua estada entre os marilienses.
Um dos circos, cujo nome não me lembro, foi instalado na Rua Cel. Galdino, na esquina
com a Rua Lima e Costa. A única coisa que me lembro dele foi uma curiosidade da criançada.
Durante aqueles dois ou três dias necessário para que o montassem, o mesmo tempo de qualquer
outro circo, uma só pergunta todos faziam: qual seria o nome do palhaço?
Mesmo depois de algumas funções, ninguém perguntava a quem já tinha ido se o circo era bom.
Só queriam saber, pelo menos a criançada, o nome do palhaço e se ele era bom.
AQUELA QUE DEIXOU DE SER SEM TER SIDO
Conto
O ano de 2011 caminhava lá pela sua metade, mais ou menos, quando esta história
começou. É uma história verdadeira, como verdadeiros são todos os fatos que conto nas minhas
crônicas. E também como tudo aquilo que relato nessas crônicas, esta história, se não for
extraordinariamente linda, como me parece ser, pelo menos é diferente, tem alguma coisa de
fantástico. Espero que você possa confirmar isso no final da sua leitura. Se você assistiu ao filme
“Em algum lugar do passado” (e talvez tenha o CD com as músicas, principalmente a músicatema), já sabe do que estou falando. Mas há uma diferença importante entre a minha história e o
filme. A história do filme deve ter sido criada pela imaginação de alguém, mas a minha história é
verdadeira e foi vivida por mim. Vamos lá?
Naquela metade de 2011, eu havia concluído o meu livro “Politicismo, uma doutrina
política”, como também havia concluído, no ano anterior, o meu livro “Aqueles de Brasília”, e
estava à procura de uma editora que os quisesse publicar. Eu havia enviado um resumo dos
originais a mais de 15 editoras. Havia recebido alguns pedidos de desculpas, até compreensíveis,
como também alguns elogios, mas a decisão de publicá-los não acontecera ainda. Fiz um
levantamento dos agentes literários, alguma coisa em torno de 20, consultei-os por e-mail, mas só
recebi pedidos de desculpas, também compreensíveis, como no caso das editoras. Alguns deles,
quatro ou cinco, ainda não me responderam. Até que, por fim, o último agente que eu havia
consultado me enviou um e-mail, manifestando interesse. Era uma senhora que residia e
trabalhava numa cidade do interior paulista, como agente literária e também como editora, ou,
para ser mais exato, como representante de uma editora, talvez mais de uma. Prefiro não informar
o nome daquela pessoa. Por isso, vou chamá-la de Senhora X. Ela estava com uma viagem
marcada para vir a São Paulo, uma coisa que costumava fazer frequentemente por motivos
profissionais. Convidou-me para uma pequena reunião, marcando o dia, a hora e o local. Seria daí
a dois dias, no Shopping Eldorado. Tudo isso por e-mail. Fui lá. Encontrei três pessoas que já
esperavam por ela, por um motivo semelhante ao meu. Logo em seguida, chegou uma mulher de
meia idade que, de início, pensei que fosse a Senhora X, mas quando se apresentou a mim vi que
não era. Essa pessoa que havia chegado viria a ser “aquela que deixou de ser sem ter sido”.
Portanto, viria a ser a personagem principal desta história, uma história que começava naquele
momento.
Disse-me ela que era escritora, que já tinha um livro publicado, que estava por terminar o
segundo volume daquele mesmo livro e que estava ali porque procurava uma alternativa para a
publicação dos seus livros.
Logo em seguida, eis que chegou a Senhora X. Fui o segundo a ser atendido, numa
conversa que não passou de 10 minutos. Entreguei a ela um resumo dos meus livros, despedi-me e
fui me despedir daquela escritora que havia chegado antes. E lá veio a sua primeira surpresa, uma
surpresa que seria apenas a inauguração de uma longa série de surpresas que viriam depois: pediu
o número do meu telefone. Não me lembro se ela só anotou o número ou se lhe entreguei um
cartão. E voltei pra casa.
Durante as três semanas seguintes, ou um pouco mais, mantive contatos com a Senhora
X, por e-mail. Aos poucos, fui perdendo a confiança nela. Essa desconfiança havia aumentado
graças a um excesso de elogios aos meus livros, feitos por um avaliador que trabalhava com ela, e
atingiu o seu ponto máximo quando me disse ela que tinha um amigo em Portugal, uma pessoa
que poderia traduzir os meus livros para o Espanhol e editá-los em Lisboa e em Madrid. Da
maneira mais educada e mais discreta que me foi possível, manifestei a ela o meu desinteresse
pelos seus serviços.
Dois meses depois, ou um pouco mais que isso, daquela minha reunião no Shopping
Eldorado, e numa noite de sábado, o meu telefone tocou. Era aquela escritora que eu havia
conhecido lá e que me causara a sua primeira surpresa ao me pedir o número do meu telefone.
Depois dos cumprimentos de praxe, perguntou-me como andavam os meus contatos com a
Senhora X. Disse-lhe o que havia acontecido, exatamente como acabo de relatar linhas acima.
Apresentou-me então a sua segunda surpresa, muitíssimo maior do que a primeira. Disse-me que
havia desenvolvido nela, a escritora que falava comigo, uma certa capacidade de premonição,
alguma coisa ligada a percepções extra-sensoriais. Com isso, havia captado da Senhora X uma
energia bastante negativa, vendo nela uma aura bastante ruim, o que a levou, de imediato, a uma
total rejeição pela Senhora X. E me apresentou a sua terceira surpresa, bem maior que as duas
anteriores, que foi logo seguida pela quarta, ainda maior que a terceira. Disse-me ela que também
havia captado a minha energia e a minha aura, dizendo que eram bastante fortes, chegando até a
impressioná-la de maneira extremamente positiva. A quarta surpresa, logo em seguida à terceira,
foi-me apresentada mais ou menos assim: “Se eu souber que aquela mulher agiu com você de
maneira nada ética e até mesmo desonesta, ela terá que se entender comigo”. Despedimo-nos
cordialmente, depois de ter pedido a ela o número do seu telefone e de ter anotado o número e o
seu nome na minha agenda. Minha esposa, sentada num sofá bem ali perto, ouvira toda a
conversa, mas eu, é claro, nada tinha a esconder.
E o tempo foi passando. E chegamos ao mês de dezembro de 2012. Os meus livros ainda
não haviam sido publicados, coisa que aconteceria só no ano seguinte, com a assinatura do
contrato em abril e o lançamento em outubro. No dia 21 de julho daquele ano, eu havia ficado
viúvo. Por volta da metade daquele dezembro de 2012, comecei a sentir, bem dentro de mim, algo
que eu nunca havia sentido antes. Comecei a sentir necessidade de fazer contatos com outros
escritores, uma grande necessidade, bem íntima e bem minha, de conversar com outras pessoas
que, como eu, também escreviam. Foi então que, no dia 4 de janeiro de 2013, me lembrei daquela
escritora que eu havia conhecido na reunião que tivera no Shopping Eldorado e que, dois ou três
meses depois, havia me telefonado e me apresentara aquelas surpresas, que eu havia considerado
até malucas. Aquilo seria fácil, pensei eu, porque havia anotado o seu telefone na minha agenda.
Mas desta vez a surpresa foi minha. Eu havia me esquecido do nome dela. A solução foi abrir a
minha agenda e procurar o nome, começando pela letra A. Não seria nada difícil identificá-la
porque eu também havia anotado o título do seu livro e o nome da editora. Até que enfim cheguei
à letra V, e lá estava anotado: Valéria. O nome verdadeiro dela não é esse, mas começa também
por V. Liguei pra ela, mas o que ouvi foi uma gravação informando que aquele telefone não
existia. Tentei outras vezes durante aquele 4 de janeiro de 2013, mas a informação continuava a
mesma. Na manhã da segunda-feira, 7 de janeiro, tive uma ideia que não tinha nada de
surpreendente, por ser óbvia. Localizei o site da editora e lá estava o número do telefone. Liguei
pra lá e pedi para que me informassem qual era o número dela. Disseram-me que não poderiam
me atender naquilo, diretamente, mas que poderiam anotar o meu nome, o meu telefone, o meu email e que iriam se comunicar com ela. Na tarde daquele mesmo dia, 7 de janeiro, recebi um
telefonema da Valéria. Ela se lembrara de mim bem mais claramente do que eu poderia imaginar.
Depois das nossas primeiras palavras, bem típicas de duas pessoas que não se falavam havia mais
de um ano, vieram as suas primeiras informações. Ela havia se mudado para Pedra Azul, uma
pequena cidade do interior paulista, não muito distante de Sorocaba. Com certeza, você nunca
ouviu ninguém falar numa cidade paulista chamada Pedra Azul. Nunca ouviu falar nesse nome
porque é um nome que imaginei agora, por preferir omitir o nome verdadeiro daquela cidade.
Estava explicado por que o número do seu telefone, em São Paulo, não existia mais. Informou-me
o novo número, em Pedra Azul, e também o número do celular, ambos anotados na minha agenda.
Explicou-me rapidamente por que havia se mudado para aquela cidade, para, em seguida, pedir as
minhas primeiras informações. Estava bem próxima dos meus ouvidos e bem próxima do meu
entendimento mais uma das suas surpresas, desta vez uma surpresa simplesmente inacreditável e
estonteante. Ao fazer pra ela uma síntese de tudo o que se passara comigo, desde a nossa última
conversa, por telefone, naquele período superior a um ano, disse a ela que os meus livros ainda
não haviam sido publicados e que eu ficara viúvo. Segure-se bem você aí, agora, e se prepare para
esta incrível surpresa. Ao falar a ela sobre a minha viuvez, captei, e de uma maneira claríssima, a
sua reação, e sem ver-lhe o rosto. Perguntou-me com voz trêmula e exclamando: “Então, você está
viúvo, está sozinho!?” Percebi, como se estivesse vendo, que os seus olhos brilharam, como talvez
nunca tivessem brilhado antes. Tive a sensação bem clara de que aquela minha informação havia
sido uma boa notícia pra ela. Depois de se recompor um pouco, disse-me que costumava vir para
São Paulo a cada 15 ou 20 dias para ver o seu filho e que a sua próxima vinda seria daí uns oito ou
dez dias. Despedimo-nos em seguida.
No dia seguinte, 8 de janeiro, telefonou-me. No meio da conversa, quis saber qual era o
meu signo. Informei: Capricórnio. Fez então uma síntese das características comportamentais das
pessoas nascidas em Capricórnio. Depois quis saber sobre o dia do meu aniversário. Lembro-me
muito bem de ter respondido assim: “Justo hoje você me pergunta isso? O meu aniversário será
amanhã”. É bem fácil você adivinhar que ela, no dia seguinte e logo pela manhã, me telefonou
para me cumprimentar.
Não me lembro de nada sobre o dia seguinte, uma quinta-feira, mas me lembro muito
bem da nossa conversa na sexta-feira, dia 11. Disse-me ela que viria para São Paulo no fim da
semana seguinte e, surpreendendo-me mais uma vez, disse que pretendia se encontrar comigo.
Como eu não tinha nenhum motivo importante para me negar àquilo, pedi a ela para que,
chegando a São Paulo, me telefonasse a fim de marcarmos dia, hora e local para o nosso encontro.
Mas ela discordou de imediato desse meu pedido, dizendo taxativamente: “Não, eu prefiro deixar
isso combinado desde já”. Então, atendendo ao seu desejo, informei a ela que bem perto do prédio
onde eu morava havia um bar de nível médio, para onde poderíamos ir. Com isso, acertamos o
nosso encontro para o dia 22, uma terça-feira, às 13 horas, ficando combinado que iríamos nos
encontrar na Estação São Judas do Metrô, mesmo porque ela havia dito que viria de metrô. Eu a
esperaria junto à catraca de saída.
Imagino que você já tenha notado que a iniciativa era sempre da Valéria. Se continuar
observando isso, verá que a iniciativa continuará sendo dela, mas não por muito tempo, só até o
fim desta história, uma história que aconteceu de verdade, não se esqueça disso. É bom lembrar a
você que eu havia procurado a Valéria por motivos profissionais, por motivos ligados à arte de
escrever, nada mais do que isso. Eu havia procurado a escritora Valéria e não uma pessoa
chamada Valéria. Da mesma maneira, eu poderia ter procurado um escritor, no caso de ter me
lembrado dele antes de ter me lembrado da Valéria. Porém, ficava bastante claro que ela não
estava pensando no escritor Rubens, mas apenas no Rubens. Percebendo claramente aquilo,
comecei a mudar o meu foco e passei a caminhar na direção para a qual os fatos me indicavam.
E chegou o dia 22 de janeiro daquele 2013, mas não sem que antes tivessem havido mais
algumas outras conversas telefônicas entre nós. Fui para o local marcado e lá cheguei 10 minutos
antes da hora combinada. A Valéria tinha me dito que não iria se importar com o almoço e que iria
apenas tomar um rápido lanche antes de sair. Dissera-me também que tinha o hábito de ser pontual
aos seus compromissos. Dei uma olhada rápida pelo local, mas não a vi. Fui andando na direção
das catracas de saída para esperá-la por lá. Antes, porém, que eu chegasse às catracas, ouvi uma
voz que me chamava pelo nome. Era uma voz bem alta que até me assustou. Virei-me e vi a
Valéria a meia dúzia de metros dali, já me esperando, de pé. Andei até ela. Cumprimentei-a e,
civilizado que sou, curvei-me ligeiramente para beijar o lado esquerdo do seu rosto, quando notei
que ela, antes do meu beijo, desviou ligeiramente o rosto para o seu lado esquerdo, como se
estivesse esperando ser beijada nos lábios. Fingi não perceber aquilo e depositei um respeitoso
beijo na sua face direita. Enquanto trocávamos as nossas primeiras palavras, observei que ela
estava muito bem “produzida”, havia caprichado no penteado, com certeza com a ajuda de alguma
outra pessoa, e havia se maquiado com discrição. A Valéria era uma mulher fisicamente bem
“equilibrada”, com as diversas partes do corpo bem proporcionais umas às outras. Como tenho o
hábito de dizer, não era bonita de admirar nem feia de espantar. Como dizia sempre um dos meus
amigos, ela era uma mulher “copulável”.
Enquanto conversávamos, subimos a escada e saímos da estação. Chegando à rua,
mostrei-lhe as duas igrejas de São Judas Tadeu, a nova e a velha, que ficam no outro lado da Av.
Jabaquara. Em cinco minutos, se tanto, estávamos entrando no bar. E fomos nos acomodando na
única mesa vazia. Por ser uma coisa bastante batida, vou pular aquela história do “o que vamos
pedir, o que vamos tomar”. Mal ela se acomodou, de frente pra mim, percebi que estava bastante
disposta a falar, e que sentia uma grande necessidade de falar. E ela começou a falar. Neste
próximo parágrafo, quem vai falar é a Valéria, enquanto eu descanso da minha narrativa.
- O meu primeiro casamento durou bem pouco tempo. Divorciei-me. Desse casamento
tenho um filho, que é hoje advogado. Pouco tempo depois da minha separação, e com o processo
do divórcio já em andamento, tive um sonho aparentemente igual a tantos outros. Sonhei com um
homem que eu jamais havia visto antes e de quem fixei bem a fisionomia, como de resto todo o
corpo. Acordei pensando no sonho e nele, cuja imagem não me abandonaria por longo tempo.
Passadas várias semanas, mas não muitas, depois do sonho, fui a passeio ao Guarujá. E eis que
aquele homem me apareceu pela frente. Era exatamente o mesmo do sonho. Ele também estava lá
a passeio; também vivia em São Paulo. Tendo voltado ambos pra casa, em pouco tempo
estávamos namorando, seguido aquele namoro por uma espécie de noivado. Foi bem pequeno o
caminho e bem curto o tempo para que estivéssemos morando juntos, na minha casa. O nome dele
é Luca. E assim se passaram 15 anos, todos eles em completa harmonia, todos eles como se
estivéssemos vivendo uma vida de sonhos. Informo a você, Rubens, que aquele homem foi o
grande amor da minha vida. Vivíamos num idílio constante. Passados aqueles 15 anos de intensa
felicidade, ele ficou bastante doente. Esteve internado por longo tempo, dada a gravidade da
doença. Ficou paralítico e com sérios danos à sua saúde mental. Numa cadeira de rodas, era pior
do que qualquer criança, precisando de totais cuidados. Durante dois anos, incluindo-se aí o tempo
em que estivera hospitalizado, cuidei dele como se cuida de uma criança. Além de um dever
cristão, eu fiz aquilo por amor, em nome daquele imenso amor que eu sentia por ele. Até que,
passados dois anos desde a época em que havia ficado doente, os seus dois filhos, um filho e uma
filha, começaram a me pressionar para que eu deixasse de cuidar dele. Queriam levá-lo para o seu
apartamento. Começaram a me dizer que eu fazia aquilo por interesse no dinheiro dele, que era
uma pessoa “muito bem de vida”. Ofereceram-me até algum dinheiro, dizendo ser uma
recompensa pelo tempo em que eu havia cuidado dele. Juro pra você, Rubens, que eu havia feito
aquilo tudo apenas por amor, e não por qualquer interesse. A pressão foi imensa, foi tanta até
chegar a um ponto insuportável pra mim. Fui obrigada a ceder e a permitir que o tirassem da
minha casa, recebendo eu aquela “recompensa”. Passei a viver numa propriedade que viera da
minha família, numa cidade próxima a Pedra Azul. Em pouco tempo, vendi aquilo e, juntando
com aquele maldito dinheiro, comprei a casa na qual vivo, em Pedra Azul. Então, Rubens, depois
de 17 anos juntos, 15 dos quais na mais completa harmonia e na mais intensa felicidade, e depois
de dois anos cuidando dele com o maior amor que uma mulher pode sentir por um homem e com
o maior carinho que poderia devotar a ele, eis que ele é arrancado das minhas mãos pelos seus
filhos. Arrancaram-me do meu convívio e das minhas mãos o maior amor da minha vida. Assim,
ele saiu da minha casa e pouco tempo depois deixei de viver em São Paulo. E o filho e a filha dele
passaram a cuidar do pai, mas não sei como. Até que ontem à tarde recebi um telefonema do filho
dele, daquela mesma pessoa que o havia tirado da minha casa, onde eu e ele havíamos vivido por
17 anos, na mais completa felicidade. Disse-me ele que estava procurando por mim, havia alguns
dias, até que acabou se encontrando com um amigo comum, tanto do filho como do pai, que lhe
informou o número do meu telefone. Disse-me que estava falando comigo a pedido do pai, mas
não me explicou de que maneira o pai havia conseguido se comunicar com ele. O Luca, não sei
por que meios, pediu a ele para que falasse comigo e para que me pedisse para voltar a cuidar dele.
Aquilo, Rubens, me “desmontou”. Estava tudo certo, estava tudo pronto, você estava nos meus
planos, eu havia encaminhado tudo bem direitinho para vir falar com você, quando, de repente,
tudo parecia ter desmoronado. Pra mim, estava chegando o momento para que eu voltasse a viver
normalmente e para que voltasse a ser feliz. Ele também me disse que estava disposto a atender a
vontade do pai, mas a irmã dele não estava querendo a minha volta.
O nome Luca aparece aqui para substituir o nome verdadeiro dele.
Nem sempre sou tão ingênuo como pareço ser. Percebi claramente que eu estava nos
planos dela, mas não como uma parceria entre a escritora e o escritor. O que ela visava era um
encontro entre os caminhos da Valéria e os caminhos do Rubens, mas não apenas um encontro.
É importante que eu interrompa agora esta sequência, a fim de chamar sua atenção para
uma “coincidência” que será de enorme importância para a continuidade desta história. Ela havia
decidido vir falar comigo no dia 11 de janeiro, ou melhor, naquele dia havíamos decidido que
iríamos nos encontrar no dia 22 de janeiro, mas a decisão de vir falar comigo acontecera antes. A
Valéria havia sido localizada na véspera do nosso encontro, isto é, no dia 21 de janeiro. O rapaz
informou a ela que a estava procurando havia vários dias. Não é necessária muita vontade para
perceber que o pedido do pai possa ter acontecido no dia 11 de janeiro, ou bem pouco depois.
Quero dizer com isso que o pedido para que a procurassem, se não foi simultâneo, aconteceu
apenas um ou dois dias depois da Valéria e eu termos acertado o nosso encontro. Teria sido apenas
mais uma daquelas coisas que costumamos chamar de “coincidência”? Vá pensando você ai, até
que eu volte a falar nisso, mais adiante.
Passados alguns minutos depois das 14 horas, ela respirou um pouco mais fundo, sem
dúvida aliviada por ter me contado tudo aquilo. E me convidou para que saíssemos de lá e
fôssemos para o Shopping, que deveria ser o Santa Cruz, por ser o mais próximo, onde
poderíamos conversar mais um pouco. Juro que não sei por que e também juro que respondi sem
pensar. Foi sem pensar que perguntei a ela mais ou menos isto: “Por que não deixamos o
Shopping para outro dia e vamos ao meu apartamento? Lá estaremos bem à vontade e poderemos
conversar tranquilamente. Em cinco minutos estaremos lá”. E lá veio mais uma surpresa, quando
ela me respondeu: “Eu havia pensado exatamente nisso”.
Menos de dez minutos depois, eu estava abrindo a porta do meu pequeno apartamento.
Entramos. Mostrei-lhe algumas fotos que estavam numa parede e sobre um móvel, todas
colocadas em quadros. Eram fotos que haviam sido feitas no almoço comemorativo ao último
aniversário de minha esposa, nas quais apareciam os meus filhos e os meus netos, além de mim,
todos ao lado dela, mas em fotos diferentes. Numa outra parede, estava uma grande foto do meu
casamento, em 1958. Indiquei a ela a parte central de um sofá de três lugares, onde ela se sentou,
imaginando eu que fosse me sentar no outro sofá, que estava bem ali perto. Eu estava de pé junto à
foto do meu casamento, mostrando algumas coisas a ela. Então, a Valéria me disse que minha
esposa era bem bonita. Em seguida, indicando com a mão direita o lugar vazio do sofá, à sua
direita, convidou-me para que eu me sentasse ali. Aceitei o convite e me sentei, enquanto pensava
assim: “Seja o que Deus quiser! Qualquer coisa, eu grito!”.
E fomos conversando sobre várias coisas, mas não chegamos àquele bem conhecido
“jogar conversa fora”. Aproximei-me bem dela, o meu rosto bem próximo ao seu rosto. Mais uma
vez eu juro que desconheço o motivo, mas a verdade é que depositei um breve e delicado beijo em
seus lábios. Ela se desviou discretamente, dizendo-me que, depois do que havia conversado com o
filho do Luca, na tarde do dia anterior, não se sentia, psicológica e emocionalmente, em condições
de continuar com maiores intimidades. Nada mais lógico e aceitável do que aquilo. Percebi
claramente que a sua conversa telefônica com o filho do Luca havia apagado, pelo menos em
parte, o seu “fogo” comigo. Mas isso não impediu que eu observasse, e muito bem, o “clima” que
nos dominava a ambos naqueles momentos. E volto a jurar que desconheço o motivo, mas
apresentei à Valéria três perguntas, sem saber que seriam três. Perguntei: “Você gostaria de ser a
minha namorada?” Ela me respondeu de imediato, “na bucha” e sem pensar: “Gostaria.” Então
perguntei: “Você quer?” A resposta também foi imediata, “na bucha” e sem pensar: “Quero”. E
uma terceira pergunta se fez necessária: “A partir de quando? A partir de agora?” A resposta foi
quase imediata: “Bem, sobre isso, preciso pensar, preciso conversar com o filho do Luca, amanhã,
para ver como ficarão as coisas. Depois disso, eu e você voltaremos a conversar; é claro que
voltaremos”.
Passamos a conversar sobre algumas amenidades. Mostrei a ela o quarto onde está
instalado o meu “escritório”. Foi ali que ela me perguntou: “Rubens, por que você acha que eu sou
muito nova pra você?” Num tom de brincadeira, respondi: “Não é bem isso. O que eu acho é que
você está muito velha pra mim”. Disse-me em seguida que já estava passando da hora de voltar.
Ofereci-me para fazer um café, que estaria pronto em apenas cinco minutos. Ela não quis,
dizendo-me: “Hoje não dá, mas eu volto pra tomar o seu café”. E se preparou para sair. Disse a ela
que a acompanharia até a estação do metrô e saímos. Eu não poderia imaginar que mais uma de
suas surpresas estava à minha espera, lá embaixo. Mal chegamos à rua, sete andares abaixo do
meu apartamento, ela me deu o braço, como se fosse minha esposa, ou minha noiva ou minha
namorada. Assim, de braços dados, chegamos à catraca do metrô. Expliquei a ela como deveria
fazer para chegar à plataforma do trem, no piso de baixo. Despedimo-nos cordialmente. Três ou
quatro metros adiante, ela se virou para a direita e desapareceu do meu ângulo de visão. Será que
eu voltaria a vê-la? O que você acha? Voltaria ou não voltaria?
Dois dias depois, ela me ligou. Disse-me que continuava o impasse entre o filho e a filha
do Luca, ele querendo a sua volta, enquanto ela insistia em não permitir. Disse-me também que ela
mesma se sentia bastante confusa e que estaria voltando para Pedra Azul no dia seguinte.
Alguns dias depois, liguei pra ela. Disse-me que continuava aquele impasse e que ela
mesma continuava se sentindo confusa, não sabendo bem o que queria, ou o que deveria fazer.
Num outro telefonema, dela pra mim, disse-me que “é possível que eu tenha que terminar a minha
missão”. Não pedi explicações sobre aquilo por saber muito bem o que significava para ela e o que
poderia significar para mim.
Estávamos então nos primeiros dias de fevereiro daquele ano de 2013. Num daqueles
dias, eu e ela conversávamos pelo telefone. O assunto era um sonho que ela havia tido naquela
noite, ou na noite anterior. Foi assim que a Valéria me contou o sonho: “Eu estava deitada na
minha cama, quando o Luca entrou no quarto e se sentou junto aos meus pés. Olhou-me por algum
tempo e depois me disse: “Vim até aqui para olhar pra você, só pra você. E também pra você olhar
pra mim, só pra mim, e para mais ninguém”. Continuamos nos olhando, agora em silêncio.
Depois, ele se levantou e saiu do quarto”. Sem que a Valéria fizesse qualquer comentário sobre
aquele sonho, e muito menos eu, despedimo-nos. Ela continuava me devendo uma resposta, mas
aquela resposta, eu bem sabia, continuava na dependência daquela dúvida que ainda havia entre os
três, o filho e a filha do Luca e a própria Valéria, sobre voltar ou não para a sua casa antiga, a fim
de retomar os cuidados com ele, ou seja, com o objetivo de levar até o fim a sua “missão”, como
ela mesma havia definido num daqueles telefonemas anteriores, embora não tivesse sido bem clara
naquela ocasião. Eu sabia perfeitamente bem que, se ela optasse por cuidar do Luca, aquele
trabalho exigiria tempo integral da Valéria, 24 horas por dia, sete dias por semana. E não haveria
tempo algum para qualquer relacionamento comigo. E mais. Só Deus, ninguém mais além d’Dele,
poderia saber por quanto tempo se estenderia aquela “missão”. Por um mês? Por um ano? Por dez
anos? E ainda mais. Aquele seu trabalho com o Luca poderia comprometer seriamente a carreira
da Valéria, como escritora. Nunca cheguei a conversar com ela sobre isso, mas me parece ser
bastante óbvio que a Valéria tinha total consciência disso. Se a sua decisão, ou a decisão do filho e
da filha do Luca, fosse para que ela voltasse para a sua casa pra cuidar dele, em primeiro lugar,
apenas na ordem cronológica, ela estaria abrindo mão de mim, uma pessoa por quem havia se
interessado vivamente, e, em seguida, poderia estar abrindo mão da sua carreira, ficando apenas na
dependência do tempo de vida que ainda restasse ao Luca.
Chegamos ao dia 8, uma sexta-feira. Voltamos a conversar, mas não havia ainda
qualquer decisão. Informei a ela que eu estaria fora por uma semana, do sábado, dia 9, até o
sábado seguinte, dia 16, à tarde. Eu teria que ficar por aqueles dias no apartamento do meu filho,
que iria viajar com a minha nora e com o meu neto. Eu teria duas funções enquanto estivesse lá. A
menos importante seria “cuidar” do apartamento, enquanto a mais importante, disparada a mais
importante, seria fazer companhia para o Snow. Para nós, eu e aqueles que iriam viajar, o Snow
era o gato mais bonito e mais esperto do mundo. Se não fosse do mundo, pelo menos era o mais
bonito e o mais esperto daquele apartamento. Aproveitei o meu tempo livre para escrever mais um
dos capítulos do meu novo livro. A Valéria havia me garantido que até minha volta teria uma
decisão à minha espera. Iria me ligar no domingo, dia 17.
Enquanto estou fora, aproveito para apresentar a você mais uma “coincidência”, se é que
você ainda não a percebeu. Procure se lembrar da segunda, que mostrei antes. O Luca pedira ao
filho para que procurasse a Valéria, “coincidentemente” logo depois de termos, eu e ela,
combinado que iríamos nos encontrar no dia 22 de janeiro. Também de maneira “coincidente”, a
Valéria foi localizada no dia 21 de janeiro, véspera do nosso encontro. Mas digamos que a Valéria
“teimou” e o nosso encontro aconteceu. De maneira também “coincidente”, durante aquele nosso
encontrou a Valéria “decidiu puxar o feio de mão”, em relação a mim. E nada de mais arrojado
aconteceu entre nós, apesar de estarmos aqui, a sós no meu apartamento. Na verdade, foram várias
“coincidências” numa só, nesta que estou chamando de segunda. Você não deve também se
esquecer da primeira “coincidência”, envolvendo o sonho que a Valéria havia tido com o Luca,
mesmo antes de conhecê-lo, para depois encontrá-lo no Guarujá, ao vivo, local onde se
conheceram. Passada aproximadamente uma dúzia de dias, depois do nosso encontro, eis que o
Luca apareceu diante dela, por meio daquele outro sonho. E lhe disse: “Vim até aqui para olhar
pra você, só pra você, e para você olhar pra mim, só pra mim”. Sugiro a você para que continue
pensando nessas “coincidências”. Acontecera o nosso encontro no dia 22 de janeiro. Em virtude
dos acontecimentos do dia anterior, o nosso namoro não teve início por ocasião do encontro. Mas
deixamos assinado um “pré-contrato”, como sugeri eu e como concordou ela. Encontramo-nos,
assinamos aquele “pré-contrato” e continuamos conversando, com a perspectiva, tanto minha
como dela, de que o namoro pudesse começar alguns dias depois. E eis que, “coincidentemente”,
ela sonha com ele, que lhe transmite aquele estranho recado: “Estou aqui para olhar pra você, só
pra você. Também vim aqui para você olhar pra mim, só pra mim e pra mais ninguém".
E chegou o dia 16 de fevereiro daquele ano de 2013 e, com ele, chegaram dos Estados
Unidos o meu filho, a minha nora e o meu neto. Passava um pouco do meio-dia quando os vi do
14º andar. Tiravam as malas do taxi, lá embaixo, na frente do prédio. Não precisei mais do que
meia hora para lhes passar o “serviço”, pegar as minhas sacolas, chamar um taxi e, depois de um
rápido afago no Snow, rumar pra casa. Guardadas as minhas coisas, fui a um supermercado a fim
de me recompor quanto a verduras e frutas. Como a Valéria só iria me telefonar no dia seguinte,
eu teria uma tarde tranquila pela frente. Estávamos no último dia do Horário Brasileiro de Verão.
Por volta das três da tarde, comecei a acertar os meus relógios, pretendendo deixar para a noite só
aqueles de maior uso, como é meu hábito a cada ano. Mal começado, aquele meu trabalho foi
interrompido porque precisei atender ao telefone, que tocava. Pra minha surpresa, era a Valéria.
Fingiu não se lembrar se o dia marcado por ela era o domingo ou o sábado. E fomos quase direto
ao assunto, que foi apenas antecedido pelas habituais palavras de saudação, depois de uma semana
sem nos falarmos. E ela me disse mais ou menos isto: “O filho do Luca ainda não conseguiu
convencer totalmente a irmã a permitir que eu volte a cuidar dele, mas isso vai acabar
acontecendo. Decidi, Rubens, que devo terminar a minha “missão” com o Luca, cuidando dele
enquanto for necessário”. Tranquilamente, fiz a ela uma pergunta: “Isso quer dizer que você está
me trocando por um morto-vivo, ou por um quase-cadáver?” Ela discordou de mim. E tinha razão,
porque o Luca havia chegado bem antes de mim, na vida dela, estando agora apenas “reassumindo
o seu posto”, malgrado as suas condições, tanto físicas como mentais, estivessem bastante
precárias. Fiz à Valéria uma segunda e última pergunta, já preparada anteriormente por mim, pois
eu seria capaz de apostar naquele desfecho: “Digamos, perguntei eu, que, daqui uma semana, ou
duas, ou daqui um mês, ou dois, ou mesmo três, o Luca morra. Você deve concordar comigo que
isso será o que de melhor possa acontecer pra ele. Se isso realmente acontecer dentro desse prazo,
ou até num prazo bem maior, você me procura?” Ela me respondeu de pronto: “Com certeza.”
Não consigo me lembrar quais foram as nossas palavras de despedida. Desliguei o telefone e
voltei para os meus relógios, que precisavam ser atrasados em uma hora.
E não tive mais notícia alguma da Valéria, desde aquele dia até esta segunda quinzena de
maio de 2014, quanto estou em vias de concluir este trabalho. Teria ela voltado pra São Paulo, pra
cuidar do Luca? Teria ele sido levado pra Pedra Azul e, lá, sido entregue aos cuidados da Valéria?
Não sei. O meu palpite é que jamais saberei.
Tudo o que me resta agora são conjecturas. Aliás, estou seguro de que essas conjecturas
constituem uma parte importante desta história, pois estarei investigando este mistério. Toda
história tem a sua moral. Penso que a moral desta história e as conjecturas que posso fazer são
rigorosamente a mesma coisa.
Antes dessas conjecturas, tenho algumas perguntas pra você. Que força espiritual e
psicológica teria o Luca pra exercer tão grande fascínio na Valéria, pra exercer tão grande domínio
sobre ela? Atente você para aquelas “coincidências”. Apenas por ocasião daquele primeiro sonho
da Valéria, com ele, o Luca se encontrava nas suas condições mentais normais. Por ocasião desses
episódios que aqui narrei, o Luca estava bem longe disso. E, mesmo assim, ele teria sido capaz de:
1-perceber que, no início de janeiro de 2013, a Valéria, a sua Valéria, estava começando a pensar
em outra pessoa, em mim, tendo aquilo evoluído para conversas entre nós e para o acerto de um
encontro entre nós; 2-dar um jeito de se comunicar com o filho, pedindo a ele para que entrasse
em contato com ela e que pedisse a ela para voltar a cuidar dele; 3-dadas as dificuldades que o
filho estava enfrentando para falar com a Valéria e percebendo que as conversas entre ela e mim
estavam evoluindo, providenciar mais aquela “coincidência”, providenciar aquele “encontro
casual” do seu filho com um amigo comum, por meio do qual ele conseguiria o número do
telefone dela; 4-provocar uma conversa entre o filho dele e a Valéria, numa tentativa, talvez até
desesperada, para que ela não se encontrasse comigo; 5-tendo acontecido o nosso encontro e tendo
continuado as nossas conversas, mandar à Valéria um recado mais incisivo e direto, através do
sonho: “Vim até aqui pra olhar pra você, só pra você. Também vim até aqui pra você olhar pra
mim, só pra mim e pra mais ninguém”. Acredito que o Luca também tenha se preocupado com a
filha e, de alguma maneira, foi tentando convencê-la de que também ela deveria permitir a volta
da Valéria. De minha parte, entendi assim as palavras do Luca, sentado na cama da Valéria:
“Valéria, não quero que você se esqueça nunca daqueles anos de imenso amor e intensa felicidade
que vivemos juntos. Estou decididamente disposto a não permitir que você tenha outra pessoa na
vida”. Quanto a mim, estou convencido de que a Valéria também interpretou assim aquelas
palavras do Luca, e deu a elas essa mesma interpretação bem antes de mim. Agora, observe você
mais uma coisa interessantíssima. Entre a saída do Luca da casa da Valéria, uma exigência dos
seus filhos, e o início de janeiro de 2013, quando a Valéria começou a pensar em mim, passaramse três anos, durante os quais, além dos dois anos anteriores, enquanto cuidava dele, a Valéria
permaneceu absolutamente fiel ao Luca. Por isso, ele se manteve tranquilo durante aqueles
mesmos cinco anos. Contudo, tão logo a Valéria começou a caminhar na minha direção, pensando
seriamente em recomeçar a sua vida sentimental, eis que o Luca “desperta” e eis que ele começa a
agir, mesmo preso a uma cadeira de rodas e mesmo fora das suas melhores condições mentais.
Durante aqueles últimos três anos, ele não havia sentido a menor necessidade da presença da
Valéria e nem dos seus cuidados. Só começou a sentir tais necessidades quando eu apareci, ao
mesmo tempo em que a Valéria começou a se interessar por mim. Foi uma coisa incrível essa,
não?
Isso tudo aconteceu entre o início de janeiro e o dia 16 de fevereiro de 2013. Nesse dia,
aqueles acontecimentos simplesmente passaram para a minha história e estou eu aqui, longe deles.
Mas acontece que a história da Valéria deve ter seguido em frente, não sei se confundindo-se com
a história do Luca ou não. Ainda não senti a menor necessidade de saber alguma coisa sobre isso.
Portanto, só me resta fazer conjecturas. Afinal, pensar é comigo mesmo.
Com o desfecho do nosso caso, no dia 16 de fevereiro, teria o Luca se sentido “fora de
perigo”? Sentindo-se assim, teria ele deixado de sentir aquela “necessidade” quanto à presença da
Valéria e quanto aos seus cuidados com ele? Pelo outro lado, tendo a Valéria percebido a força da
vontade dele e a força do domínio que ele exercia sobre ela, e, por isso, tendo decidido “manter-se
na linha”, pelo menos enquanto ele vivesse, teria o Luca condições de dormir em paz, na certeza
de que jamais seria traído por ela? Imagino – até aqui só me resta imaginar – que ele, ciente da sua
força e do seu domínio sobre a Valéria, a tenha dispensado de voltar a cuidar dele, em São Paulo,
mantendo-a, contudo, sob constante vigilância. Esteja ela em São Paulo, cuidando dele, ou esteja
em sua casa, em Pedra Azul, imagino que ainda hoje o Luca e a Valéria estejam vivendo um
prolongamento dessa história de amor. Repito: A Valéria sob “rédeas curtas”, e repito também,
atrelada emocionalmente a um “quase-cadáver”, a um “morto-vivo”. Você consegue acreditar
nisso? Eu só posso acreditar, porque acompanhei isso.
O Luca teria essa imensa força e essa tremenda capacidade porque ainda está vivo. Este é
o meu primeiro pensamento. Mas, se já não morreu, é certo que vai morrer algum dia. E ai, o que
poderá acontecer?
Nesse caso, terei que enveredar por entre um dos maiores mistérios do ser humano: o que
acontece, afinal de contas, no outro lado da vida? É claro que não me proponho, nem aqui e nem
em qualquer outro momento, a investigar esse assunto, mesmo porque a própria humanidade o tem
investigado há milênios, sem que tivesse chegado a uma conclusão aceitável e definitiva, em
termos racionais. A única via para isso continua sendo aquela da fé. Então, só poderá ser pelos
caminhos da fé que poderei fazer as minhas conjecturas sobre o que poderá acontecer com o Luca
e com a Valéria, no futuro, ou poderá já estar acontecendo, se o Luca não estiver mais vivo.
A fé aponta para diversos caminhos. Seria muito difícil, se não impossível, investigar
todos eles. Pelas minhas limitações, a começar pela extensão que admito possa ter este conto, fico
com apenas três deles. Então, vamos ver como poderia acontecer o desdobramento desta história,
de acordo com o que pensam os incrédulos, os adventistas e os espíritas. Apesar da minha
formação católica, nunca entendi bem o caminho que é ensinado por essa doutrina, dentro da qual
nasci.
O caminho dos incrédulos. Este parece ser o caminho mais simples. Quando se morre, tudo acaba.
De acordo com os incrédulos, tudo o que restará do Luca, ou resta, se ele já se foi, será apenas
aquilo que for, ou já foi, colocado numa urna mortuária e levado para algum cemitério. Mesmo
neste caso, ainda poderão surgir algumas indagações, não ligadas à fé, mas ligadas a alguma teoria
que se relacione com energia. Mas aí, pelos caminhos da energia, será bem difícil que se chegue a
um fim. Por esse caminho, o caminho dos incrédulos, a Valéria estaria inteiramente livre depois da
morte do Luca.
A crença dos adventistas. Dizem os adventistas que Jesus voltará um dia, não sabemos quando, e
ressuscitará todos os justos mortos que, juntamente com os justos vivos, serão arrebatados para o
céu juntos com Jesus. Estes permanecerão lá por 1.000 anos, no fim dos quais todos voltarão para
a Terra, para o Juízo Final. Quando se morre, de acordo com o que me dizem os Adventistas do
Sétimo Dia, apenas se mergulha num sono bastante profundo, à espera da vinda de Jesus.
Garantem também os adventistas que não existe possibilidade alguma de comunicações entre
aqueles que já morreram e aqueles que ainda estão por aqui. O que importa, no caso da crença
adventista, é que o Luca está, ou estará, dormindo por longo tempo, deixando então a Valéria
inteiramente livre para fazer o que quiser. É claro que, neste caso, como no caso anterior, a Valéria
poderá me procurar, como havia dito. Mas garanto a você que não penso nisso, e não espero por
isso.
A doutrina espírita. Todo ser humano é, na verdade, um espirito. O corpo, base física do espírito,
tem duração passageira, mas o espírito vive eternamente, passando por um número variável de
reencarnações. A finalidade dessas reencarnações, ou seja, dessas sucessivas voltas ao corpo
físico, mas nunca ao mesmo, é o aprimoramento do espírito, visando a, algum dia, estar com Deus
e desfrutar de toda a sua grandeza e da sua glória. Num momento qualquer da história, como, por
exemplo, neste fim de maio de 2014, existem espíritos em todo o universo nas mais variadas
situações quanto ao seu grau de desenvolvimento. Estão por aí os chamados “espíritos
encarnados”, como sou eu e como é você, só pra citar dois exemplos entre os seis ou sete bilhões
de pessoas que habitam atualmente este planeta. Além destes, estão por aí os chamados “espíritos
desencarnados”, em muitíssimo maior número do que aqueles do outro grupo. Eis porque existem
os marginais, os assassinos, os estupradores, os viciados, os sequestradores e outros indivíduos
que se dedicam ao mal, como também existem aqueles a quem costumamos chamar de “santos”,
ao lado daqueles outros que identificamos apenas como pessoas “do bem”. Eis aí uma pequena
parcela da doutrina espírita, aquela pequena parte que interessa à história do Luca e da Valéria.
Considerando a filosofia espírita, o que poderia acontecer com aquela submissão da
Valéria à vontade do Luca, depois da morte dele? Já vimos acima, nos dois casos anteriores, que
essa submissão deixaria de existir e que a Valéria recuperaria a sua liberdade, podendo então fazer
o que desejasse, inclusive com a sua vida amorosa. Neste caso, contudo, à luz da fé espírita, a
minha resposta seria apenas um “depende”, seria apenas um velho, conhecido e tradicional
“depende”. Mas depende do quê? Esta é a pergunta que pode me levar à resposta que procuro.
Vamos então a ela. Depende do grau de desenvolvimento espiritual do Luca. Esse grau de
desenvolvimento espiritual do Luca, como em qualquer outro caso, pode se situar em qualquer
ponto de uma gama enorme de estágios, no momento da sua morte, ou no momento do seu
“desencarne”, pra usar um termo tipicamente espírita. E entramos então no terreno do “pode ser”.
Pode ser que o Luca ainda seja um espírito que esteja apenas nos primeiros degraus da sua
evolução. Pode ser que ele seja um espírito bastante elevado, pronto até para que seja dispensado
de uma nova encarnação. E pode ser também, como acontece na imensa maioria dos casos, que ele
esteja numa situação intermediária. Como é difícil analisar as posições intermediárias, pois nelas
tudo pode acontecer, por serem muitas, preciso ficar apenas com as duas posições extremas,
deixando as outras na dependência das deduções. Entramos, então, no terreno do “se”. Se o Luca
for um espírito altamente desenvolvido, ou, pelo menos, bastante desenvolvido, por si mesmo irá
libertar a Valéria para que ela viva a sua própria vida, em todos os seus aspectos, e talvez se
disponha até a esperá-la, para que possam continuar juntos por toda a eternidade. Se, antes disso, a
Valéria tiver que passar por outras encarnações antes de se encontrar com o Luca, isso vai ser um
problema dele, e não meu. Se, pelo contrário, o Luca for um espírito que ainda tem tudo pela
frente, que ainda tem todo o caminho a percorrer, visando a se desenvolver, então continuará
submetendo a Valéria à sua vontade, aos seus desejos, embora ele esteja lá e ela esteja aqui. E só
me resta agora um último “se”. Se a Valéria decidir lutar pela sua liberdade, fazendo então
prevalecer o seu livre-arbítrio, que é uma instituição do próprio Deus, haverá de se tornar livre,
com certeza.
Mas tenho mais uma hipótese. Esta não depende de qualquer religião. Pode ser que a
afinidade entre os dois seja de tal grandeza que transcenda aos limites da vida física. Pode ser
alguma coisa do tipo de afinidade que foi o tema do filme “Os Irmãos Corsos”. Nesse caso, a
Valéria não seria uma eterna dependente da vontade do Luca, pois que teria a sua própria vontade.
Ela seria, isto sim, dependente apenas dessa afinidade, dessa extraordinária, e por isso raríssima,
afinidade que pode existir entre duas pessoas.
Como no caso da grande maioria das histórias, o final desta vai depender apenas da
vontade dos seus construtores: Valéria e Luca.
VOCÊ CHORARIA TAMBÉM?
Como qualquer outra vida ou como em qualquer outra história, acredito que a minha,
pelo menos quando considerada no seu aspecto sentimental ou emotivo, não foi na verdade a
seqüência de uma história única, ainda que com nuanças variadas, mas foi uma seqüência de
histórias que me parecem isoladas, como se eu, o real protagonista ou o personagem principal de
todas elas, tivesse sido substituído por outros, um em cada uma das passagens que aqui foram
relatadas.
Eu não fui, portanto, uma história; fui e sou uma seqüência de diferentes histórias. Eu
não tenho uma história; eu tenho um conjunto de histórias que, somadas, definem a minha vida.
Nem ao menos posso afirmar que tenha sido eu mesmo em cada uma delas, embora o meu
comportamento tenha sido sempre igual, definindo sempre a mesma personalidade.
Sigo não entendendo por que Deus me reservou tantas histórias, que julgo bonitas ou
emocionantes; no mínimo, curiosas ou engraçadas. Além de me concedê-las aos montes, colocou
em mim o gosto e o prazer em narrá-las, além da faculdade de poder contá-las.
Ao escrevê-las, tive a oportunidade de experimentar de novo as mesmas sensações da
época em que ocorreram, acrescidas do fator saudade, fato que sempre elevou tais emoções ao
extremo. Em alguns casos, chorei quando as vivi e chorei ainda mais, talvez bem mais, quando as
escrevi. Em outros casos, ri bastante quando elas ocorreram, mas chorei agora, de emoção e de
saudade.
Ao longo dessas histórias, chorei por bastante gente, como choro ao repassá-las na
memória. Outras pessoas choraram por mim e, muitas vezes, por minha culpa. O fato é que eu e
alguns outros fizemos das lágrimas o nosso refúgio constante, tanto para tristezas como para
alegrias.
No centro dessas histórias, mostro ingenuidade em muitos casos, pura ignorância em
outros, timidez em diversas ocasiões. Revelo curiosidade e procura em muitos momentos. A
inexperiência e a vontade de viver são as tônicas encontradas em outros. A indagação e a procura
por respostas aparecem inúmeras vezes.
O certo é que amei e fui amado. Como no caso das amizades, acredito que fui amado
bem mais do que amei. Um saldo positivo, poder-se-ia imaginar à primeira vista. Mas, na verdade,
um saldo negativo, segundo as recomendações do Filho de Deus.
Acredito que eu seja uma mistura bem equilibrada de razão e de emoção, de lógica e de
crença, de raciocínio e de intuição, de calma e de explosão, de sonhos e de realidades, de trabalho
e de preguiça. Conheço a linguagem do amor, da ternura e do encantamento, mas, infelizmente,
conheço também as palavras do sarcasmo, as expressões da ironia e as manifestações da crítica
áspera e contundente. Sei que tenho virtudes, mas sou pecador. Considero-me reto de caráter, mas
preciso fazer um esforço imenso para não sucumbir às tentações do mal. Tenho fé, mas, em vários
momentos, sinto que a tenho porque é bom e vantajoso tê-la, o que equivale a não tê-la, consciente
e firme, em todos os momentos.
Sinto grande dificuldade em dizer “não”, mas entendo que não se trata de ser bonzinho
nem piedoso. Antes, de uma certa insegurança, considerando talvez que o “não” me traga mais
preocupações do que estou disposto a enfrentar. Por outro lado, sinto grande facilidade em dizer
“sim”, mas nem sempre se trata de benevolência ou bondade. Muitas vezes esse “sim” pode não
refletir a minha vontade íntima. Portanto, talvez eu venha a ser um santo, mas certamente não
estou sequer no ponto de ser beatificado.
Ao longo dessas histórias, procurei passar a você não apenas os fatos, em si mesmos e
com o respaldo da minha memória e da minha fidelidade a eles, mas também as minhas reações,
os meus sentimentos, as minhas emoções, porque estes, e não os fatos na maioria dos casos,
definem a minha maneira de ser e de pensar.
Pelo menos até aqui, reconheço que a seqüência dessas histórias não traz consigo
nenhum fato que possa ser identificado como um feito extraordinário ou incomum, mas são
certamente histórias bastante ricas de humanismo e cheias de vida.
Fui autêntico e fui sincero nessas narrativas. Não subestimei ninguém. Não elevei
indevidamente ninguém. Procurei dar a cada um dos meus personagens, todos reais e tratando
cada um pelo seu nome verdadeiro, procurei dar a eles, nessas minhas narrativas, a exata dimensão
com que participaram dos diferentes episódios aqui contados.
Foi uma alegria imensa tê-los tido comigo, ainda que, em alguns casos, por não mais do
que alguns poucos momentos. Se não os amei como devia, quando passaram por mim por
qualquer tempo e por qualquer motivo, sei que os amo agora e que os amarei sempre, no sentido
mais puro e cristão do termo.
Como o velho timbira, em Y-Juca-Pirama, mas não coberto de glória como ele, consegui
guardar muito bem na minha mente todos os fatos aqui narrados, bem como os nomes, as
fisionomias e, na maioria dos casos, a personalidade de cada um dos seus participantes. Sou-lhes
muito grato, porque, afinal, ajudaram-me a construir a minha história.
Você, que me leu até aqui, imagino que atenciosamente, talvez tenha conseguido se
integrar às minhas histórias, por sua sensibilidade ou por sua benevolência, vivendo-as na
imaginação como eu as vivi na vida real. É provável que, em alguns momentos, tenha conseguido
rir, como também é possível que, em outros, tenha se encantado ou tenha se emocionado,
chegando, quem sabe, até a chorar. Dar-me-ei por realizado se souber ter conseguido de você
alguma coisa dessas.
Agora você me conhece, acredito que bem, embora talvez jamais tenha me visto e
embora jamais venha a me ver. Acredito que, nas vezes em que me foi dado rir, você tenha
também conseguido rir. Mas eu haveria, por certo, de me sentir feliz se soubesse que você, se
tivesse vivido comigo todos os momentos que vivi, tivesse chorado quando chorei, quanto chorei,
como chorei e por que chorei. Você acredita que choraria também? Ou será que você não chora?