Entrevista de IHU (01/09/06) al P
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Entrevista de IHU (01/09/06) al P
Entrevista de IHU (01/09/06) al P. Pedro Miguel Lamet Padre Arrupe. Um novo Inácio de Loyola. O jesuíta espanhol Pedro Miguel Lamet é autor de uma biografia sobre o P. Pedro Arrupe, intitulada Arrupe, una explosión en la Iglesia (Madri: Editora Temas de Hoy, 1989). A obra já está na nona edição, sendo que a última foi publicada com o título Arrupe, un profeta para el siglo XXI, em 2001, pela mesma editora. Pedro Arrupe foi Superior Geral da Companhia de Jesus de 1965 a 1983. Nasceu na Espanha, em 1907, e faleceu em Roma, em 1991. IHU On-Line entrevistou Pedro Lamet, por e-mail, sobre a vida, a trajetória e a contribuição de Pedro Arrupe para a Igreja e para a fé cristã. Pedro Miguel Lamet, poeta, escritor e jornalista, ingressou na Companhia de Jesus, em 1958. É licenciado em Filosofia, Teologia e Ciências da Informação e formado em Cinematografia. Posteriormente, foi professor de Estética e Teoria do Cinema nas Universidades de Valladolid, Deusto e Caracas. A entrevista que segue, bem como outra que Lamet nos concedeu sobre Francisco Xavier publicada nas Notícias Diárias do dia 18-8-2006, foram feitas em preparação ao Seminário Internacional A globalização e os Jesuítas: origens, história e impactos, que acontecerá de 25 a 28 de setembro na Unisinos. No final do mês de julho foi lançado um opúsculo sobre a vida do P. Arrupe de autoria do P. Quirino Weber pela Editora Padre Reus, de Porto Alegre. IHU On-Line: O que caracteriza a famosa "sedução Arrupe" e o "otimismo Arrupe"? Como isso nos ajuda a transformar a vida? Pedro Lamet: Arrupe era um conjunto de qualidades que emanavam de uma personalidade extraordinariamente magnética, uma mescla de simplicidade, abertura e forte personalidade. Não é freqüente que os súditos de uma Ordem conservem fotos dedicadas de seu superior, mas os seus se sentiam queridos por ele. Esse "efeito Arrupe", que continuo experimentando inclusive através de pessoas que lêem a biografia que escrevi sobre ele, consiste em entender o Evangelho realmente como boa notícia. Quando os jornalistas lhe perguntavam por que era tão otimista, ele respondia: "Como não vou ser otimista se creio em Deus?". Isso muda a vida porque tira os medos. IHU On-Line: O que é mais surpreendente na trajetória humana e espiritual de P. Arrupe? Pedro Lamet: Sua iluminação interior. Eu creio que Arrupe teve fortes experiências místicas, a iluminação, ou o que Inácio de Loyola chama em sua autobiografia de "ilustração". Ele confessou para mim que via tudo claro. Mas tudo isso ele conduzia com uma enorme fragilidade, com espírito esportivo, com humor, como um amigo. Em Oña, como jovem estudante, escutou uma voz que lhe dizia: "Tu serás o primeiro". IHU On-Line: O que faz de Arrupe um profeta do século XXI? Pedro Lamet: Um profeta é aquele que adivinha o futuro e diz as verdades. Arrupe se adiantou ao seu tempo em temas de diálogo intercultural, defesa da justiça, solidariedade, inquietudes dos jovens, globalização. E não tinha medo de dizer as verdades a quem fosse, inclusive a ditadores como Franco ou Stroesnner. Mas tampouco era um "Pepito Grillo", nem muito menos um zombador moralista. IHU On-Line: Qual a importância de Arrupe como ponte entre Oriente e Ocidente, e entre a Igreja do Concílio e do pós-Concílio? Pedro Lamet: Arrupe viveu em plenos anos 1940 o interesse pela cultura japonesa. Aprendeu zen, a cerimônia do chá, o tiro do arco. Traduziu Santo Inácio, São Francisco Xavier e São João da Cruz ao japonês e embalou mais tarde o termo "inculturação", que supõe ler a Cristo não desde a cultura ocidental mas desde a cultura em que se evangeliza. Eu intitulo o capítulo em que falo de sua época conciliar como "Um general para o Concílio". Era o homem adequado no momento adequado, um renovador dentro da Companhia de Jesus, em uma situação de crise, que não tinha medo porque acreditava profundamente. Transformou uma Companhia elitista em uma Companhia mais próxima e serviçal. Houve muitas saídas de jesuítas, com certeza. Mas elas também aconteceram em outras ordens e congregações, como no próprio sacerdócio. Foi a explosão da liberdade, mas a Companhia é, graças a ele, muito mais humilde e evangélica. IHU On-Line: Como se manifesta em Arrupe a sensibilidade para a marginalização? Pedro Lamet: Desde muito jovem ele viveu em contato com a pobreza no subúrbio de Madrid, quando estudava medicina. Depois contatou com todo tipo de pobreza, desde os presos das penitenciárias de segurança máxima, dos Estados Unidos, até as vilas miseráveis do Brasil, onde experimentou uma das emoções mais fortes de sua vida. Arrupe se interessou pelo diálogo com o marxismo, mesmo achando graça quando lhe acusavam de comunista. Sua máxima condecoração, para ele, foi quando na Bolívia lhe deram o título de "engraxate de honra". Mas o grande passo arrupeano a favor da marginalização foi quando intuiu que a Congregação Geral (o parlamento jesuítico, para entendermos) devia pronunciar-se sobre o compromisso com a justiça que brota da fé. Foi criticado por isso. Mas a história tem lhe dado razão. Os abismos entre o Norte e o Sul, entre o neocapitalismo opulento e os povos em desenvolvimento são cada vez maiores. É inútil aconselhar sem dar pão ou ajudar a obtê-lo. IHU On-Line: Quais eram as principais características da pessoa de Arrupe? Como ele conseguia ser sensível e sóbrio, aberto e profundo, ao mesmo tempo? Pedro Lamet: Era um homem muito austero consigo mesmo. Quando, recém eleito superior geral, o irmão sacristão lhe perguntou se preparava a missa para as sete horas da manhã, ele lhe respondeu: "Irmão, não me divida a manhã". Apenas dormia e comia. Mas era esplêndido com os demais. Colocou um bar com refrescos em seu quarto. Era leve, se perdia no grupo, e ria com sua mandíbula batente. Se dava bem com os estrangeiros porque atraía as pessoas com seu senso de humor. Captava logo se alguém estava triste por algo, e então consolava, sem que fosse preciso dizer-lhe nada. Quando chegava a uma cidade não lhe importavam os monumentos. "Meu hobby é tratar com os homens", dizia. Era muito humano, mas ao mesmo tempo muito divino, muito unido com Deus, mas com uma espiritualidade nada tola, com senso prático para o apostolado, ainda que muito descuidado em temas de dinheiro. A economia lhe importava pouco, lhe interessavam as idéias com futuro. Essa mescla explosiva e encantadora era possível porque Ele havia visto a claridade. Amava a Igreja e a Companhia, mas estava por cima delas, em uma verdade mais profunda e mais além. Quando lhe falavam das muitas defecções, respondia: "O último que apague a luz". Como Inácio, que dizia que lhe bastava um quarto de hora de oração para estar em paz caso a Companhia se dissolvesse como sal na água. IHU On-Line: O senhor pode falar um pouco sobre a experiência mística de Arrupe? Pedro Lamet: Quando lhe perguntei como era sua oração, se mais ocidental ou oriental, ele me disse que era uma mistura de tudo. Quando estava muito doente e havia perdido a capacidade de recordar os nomes, ele, que havia falado sete línguas, me ensinava o rosário em suas mãos e me dizia: "Rezai muito, muito". Eram os tempos da noite escura, quando não entendia o que lhe havia feito o Papa. No entanto, na sua poltrona de doente, seguia sorrindo com seu meio corpo paralisado. Era uma tocha de fé, amor e esperança. "Não o entendo - me dizia - mas faça-se a vontade de Deus". IHU On-Line: O que fazia de Arrupe um homem universal, um universalista sem fronteiras, um cidadão do mundo? Pedro Lamet: Seu grande coração, o fato de ter saído jovem da Espanha, seu contato com o Oriente, suas muitas viagens e, sobretudo, sua abertura de espírito. Há também o fato de ter sido Provincial do Japão, onde havia jesuítas de muitas procedências. Além disso, até o final, Arrupe foi um homem jovem. IHU On-Line: Qual a importância da missão de Arrupe no Japão? O que mais marcou nessa experiência? Pedro Lamet: Arrupe chegou a um Japão pobre, em plena guerra. Foi injustamente acusado de ser espião, porque encontraram com ele cartas de missioneiros. Mas seu carcereiro acabou perguntando-lhe se lhe convinha casar-se com uma moça. A cultura japonesa, sua experiência como Mestre de Noviços e como Vice-Provincial (Japão era uma vice-província da Companhia) além de seus anos de pároco em Yamaguchi influenciaram decididamente em sua abertura. IHU On-Line: Como Arrupe viveu a bomba atômica, em 6 de agosto de 1945, em Hiroshima, onde era mestre de noviços? Pedro Lamet: Assim como a experiência de um relógio parado às 8h15min na capela, naquele dia fatídico, Arrupe era um homem com conhecimentos médicos, que superalimentou os flagelados para que se curassem de suas horríveis queimaduras. Mas, sobretudo, era como uma explosão de uma energia incrível que, em vez de ser usada para o extermínio, foi usada para a libertação, como energia criativa. Há um antes e um depois. Por isso, Arrupe se converteu em uma explosão na Igreja. IHU On-Line: Como foi Arrupe na condição de superior geral dos jesuítas? Pedro Lamet: Ao mesmo tempo um fiel seguidor do espírito de Santo Inácio e um geral para nosso tempo. Se lermos os documentos de P. Arrupe, percebemos que era firme em temas de disciplina religiosa. Mas ele se perguntava: o que faria Inácio hoje? E era isso o que fazia. Alguns pensam que ele foi pouco exigente na obediência religiosa. O que acontece é que ele olhava a pessoa, seu caminho espiritual e humano, e a pessoa para ele estava por cima da instituição, e isso me parece enormemente cristão. IHU On-Line: O que Arrupe pensava de Teilhard de Chardin? Pedro Lamet: Quando lhe entrevistei, já doente, em Roma, e ele quase não podia ler, me impressionou que tinha a seu lado um livro com a vida de Teilhard em imagens. Recém eleito, defendeu o grande trabalho de Teilhard. Eu acredito que Arrupe tinha um espírito moderno, era um homem de diálogo e apreciava muito as intuições de Teilhard, que a si mesmo se chamava "filho de Deus" e "filho da Terra". IHU On-Line: O senhor afirma que Arrupe era um novo Inácio de Loyola. Quais são as semelhanças entre os dois? Pedro Lamet: Primeiro, físicas. É incrível a semelhança de ambos os perfis. Mas, além disso, porque era santo, homem de oração, com uma iluminação interior, místico, criativo, atrevido, obediente à Igreja e alegre. Tudo isso, vinte séculos depois, com os abismos de cultura e mentalidade que há entre o Renascimento e a era da globalização. Sem dúvida, Inácio era mais genial, fundou uma ordem. Mas em minha modesta opinião creio que Arrupe era mais simpático. IHU On-Line: Como foram as relações entre João Paulo II e Arrupe? Pedro Lamet: Difíceis. Talvez para explicá-las teria que contar aqui as biografias de ambos. Eram homens muito diferentes por sua educação e experiência. Wojtyla está atrás da cortina de ferro. Arrupe no Oriente. Wojtyla luta contra o comunismo. Arrupe estava em diálogo com o marxismo e com a Teologia da Libertação. Ainda que ambos ficaram prematuramente órfãos, entregados desde sua juventude, João Paulo II nunca entendeu Dom Pedro Casaldáliga. Tampouco entendia a renovação da vida religiosa. Preferia os movimentos neoconservadores, como a Opus Dei ou a Comunhão e Libertação, pois lhe recordavam melhor seus ambientes pastorais do nacional-catolicismo polaco. Por isso, submeteu a Companhia à grande prova. No entanto, foi visitar Arrupe três vezes em seu leito de doença, porque no fundo sabia a categoria espiritual de Arrupe. Viviam dois universos diferentes, ainda que ambos fossem santos cada um a sua maneira. IHU On-Line: O que o senhor recorda de mais importante em suas conversas com P. Arrupe? Pedro Lamet: Que ele não entendia o que estava acontecendo com a Companhia, mas que aceitava a vontade de Deus. A alegria que sentiu quando repassávamos juntos a sua vida. Que ele havia visto com claridade, diante de Deus, os passos que havia que dar na Companhia. Como superava, à base de fé, sua lógica depressão de doente. O momento em que, chorando, me despedi dele, e quando fui beijar-lhe a mão ele pegou lentamente a minha e a beijou. IHU On-Line: O que significa a frase de Arrupe: "Para o presente, Amém...; para o futuro, Aleluia!"? Pedro Lamet: Amém quer dizer: aceito o agora, vivo no agora, não me preocupa o passado, não me sinto culpado. Faça-se Tua vontade. Aleluia quer dizer: sou otimista a cerca do futuro porque estou nas mãos de Deus, meu Pai me cuida, creio em Cristo ressuscitado. IHU On-Line: O senhor pode falar um pouco sobre o P. Díez-Alegría? Qual é sua maior contribuição para a Companhia de Jesus, para a Igreja e para a sociedade? Como ele está hoje? Pedro Lamet: Eu também escrevi uma biografia sobre Díez-Alegría. Precisaria mais espaço para responder a essa pergunta. Em apenas uma frase direi que ele é um homem de fronteira, muito necessário para os que não entendem a Igreja de hoje em dia: um homem de fé, cuja fé levada a suas últimas conseqüências lhe tem conduzido a criticar a Igreja sem abandoná-la, e um homem preocupado com os últimos, os pobres, os operários e os marginalizados. IHU: O senhor afirma que Arrupe trocou o "ordeno e mando" da férrea ordem inaciana por um sorriso de amor evangélico. Então, porque ele expulsou Díez-Alegría da Companhia de Jesus? Pedro Lamet: Foi um caso limite. Alegría, professor de ética na Universidade Gregoriana de Roma, fez objeção de consciência, se negou a apresentar a censura de seu livro Eu creio na esperança, porque era uma confissão íntima do santuário de sua consciência. Arrupe estava em um momento muito difícil em suas relações com a Santa Sé e Paulo VI, com desafios por todos os lados, perigos de incisão na Espanha, acusado de comunista na América Latina. Alegría é uma grande pessoa, mas um pouco cabeça-dura. Eu acredito que estava tão metido em seus problemas que não via o contexto em que Arrupe se encontrava. Arrupe não queria expulsá-lo. O fez por pressões da Santa Sé. Creio que o Papa lhe ordenou a fazer isso. Mas a prova do quanto lhe apreciava é que lhe permitiu viver na perpetuidade em casas da Companhia, um caso único, por isso em meu livro lhe chamo "um jesuíta sem papéis". No final, Alegría converteu-se em benefício de todos, porque ele continua vivendo como jesuíta nos seus 95 anos de idade e ao mesmo tempo se sente livre para exercer sua atividade profética que ajuda a muitos. Um caso também curioso da história de salvação de um homem de fé.