O gaúcho François-Paul Groussac Tradução: Franklin Cunha

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O gaúcho François-Paul Groussac Tradução: Franklin Cunha
François-Paul Groussac
O Gaúcho
O gaúcho
François-Paul Groussac
Tradução:
Franklin Cunha
GROUSSAC, François-Paul, O gaúcho. In: El viaje intelectual. Buenos Aires: Editorial América Unida,
1928.
Comentário: Franklin Cunha (médico e escritor)
O GAÚCHO
Conferência pronunciada Congresso Mundial de Folclore de Chicago em 14 de julho de 1893.
SENHORAS E CAVALHEIROS
Tanto ponderei vossa indulgência para com os estrangeiros que procuram expressar-se em
vossa língua concisa e forte, que senti certa curiosidade de discorrer ao azar. Talvez a tentativa seja
um tanto atrevida; mas, entre as muitas coisas que desejo apreender entre vós, creio que a timidez
não figura no programa. Em suma, a aventura não é muito perigosa para ninguém, nem mesmo para
mim, posto que não coloco amor próprio nela; e, uns e outros, devermos nos dizer que um mau
momento logo passa...
Contudo, uma experiência recente deveria deixar-me alguma in quietude. Visitava há pouco um
distrito mineiro do extremo Oeste, em companhia de um vosso compatriota que se ofereceu
gentilmente para "pilotar-me". Este excelente coronel - pois sem dúvida o era ! -, não menos instruído
que solícito, explicava-me tudo com uma complacência inesgotável. Durante não sei que
permanência na Europa havia apreendido o francês; mas já fazia algum tempo, creio que nas
vésperas da guerra da Criméia. Como falasse o inglês muito depressa, eu não alcançava sempre o
sentido de certas frases recalcitrantes; imediatamente ele as traduzia para a minha língua. Oh!, então
era coisa muito diferente: quando me falava em francês, já não entendia uma palavra sequer ! Sem
dúvida era culpa de meu ouvido neófito; e estou seguro de que ireis entender quase tão bem como se
eu falara em inglês. Esforçar-me-ei por ser claro, se não correto: vossa bene volência superará
minhas deficiências.
Apesar da carência de notas auxiliares, logo aceitei o convite que me foi dirigido, faz alguns
dias, para dissertar neste Congresso sobre um tema familiar. Elegi o presente, por parecer-me que
vem preencher uma lacuna de vosso interessante e variado programa. Trata-se da vida rústica e
aventureira, dos costumes e crenças de nosso gaúcho argentino.
O nome não é novo, nem tampouco a variedade étnica que este designa, para o público
instruído que se digna escutar-me. Fora os relatos dos viajantes, creio que Walter Scott foi o primeiro
a lançar a palavra à ampla circulação literária; mas costumava escrever guacho, americanismo que
agora tem significado diferente. O grande Carlyle, em um admirável ensaio sobre o doutor Francia,
ditador do Paraguai - em que prodiga um pouco de humor às expensas de nossos heróis sulamericanos -, desenhou a fisionomia real do gaúcho, insolente, estóico, desalinhado: em suma,
pitoresco, por mais que "careça amiúde de sabão", como disse o ensaísta inglês. Este pintou como
ele sabe pintar, com essa intuição aguda do visionário, esse arrojo de pincel e exuberância de cor
que mesmo nosso Michelet nunca sobrepujou. O tema é vasto e difuso; sobretudo para os que o
estudam muito de perto, e o conhecemos por todos seus aspetos variados e múltiplos. Trata-se de
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um grupo que chega quase a ser um povo. E pelo fato de se apresentar espalhado e, por assim dizer,
indefinido como o imenso teatro que este nômade atravessa sem ocupá-lo jamais, devo limitar-me
desflorar o tema demasiado vasto, sem tentar sequer aprofundá-lo, deixando a vosso conhecimento
das evoluções e analogias etnográficas o cuidado de preencher os vazios que encontrareis entre
alguns poucos rasgos significativos. Por outra parte, os limites forçosos desta conferência, assim
como a composição deste distinto público, tão variado em sua língua e procedência, proíbem
embrenhar-me pelos amplos desenvolvimentos e peculiaridades assaz locais do tema; muito mais as
datas repetidas em um dialeto que, mesmo para os espanhóis ou os habitantes de outras regiões
hispano-americanas, requer amiúde uma interpretação.
Apesar de ser antigo "educacionista", tenho tendência ao ensino pelo seu aspecto. Assim, quero
mostrar-vos a cena antes de bosquejar o ator. Tereis dela uma idéia vagamente aproximada
comparando nosso território argentino aos Estados Unidos de há meio século, limitados a oeste,
desde o norte até o sul, por uma altíssima cordilheira de "Montes Rochosos"; mas de cujo conjunto,
por uma desgraça que haveis conseguido evitar, alguns dos ricos e populosos Estados do leste
deixaram de segregar-se. Na embocadura de um rio muito mais longo que vosso Mississipi, às
margens do Rio da Prata, Buenos Aires de esparrama sem elevações, com o dobro da população de
Nova Orleans, em uma incomensurável planície verde, onde, além da Luisiana, caberiam
folgadamente o Texas, Kansas e o Missouri reunidos: aquela é a savana pampeana que desce dos
contrafortes dos Andes e se estende para o sul, até os desertos da Patagônia. Ali era, e ainda é, o
habitáculo próprio do gaúcho pampeiro, o qual foi tantas vezes descrito e a quem se conhece melhor.
Desde o nordeste, sobre o rio Paraná, em uma orientação semelhante a de Illinois, outro grupo
étnico, indígena em sua maioria, ocupa Corrientes, não sendo mais do que um ramo dos guaranis
que povoavam o vizinho Paraguai. Ao noroeste, por fim, em uma região que corresponde a pouco
mais ou menos Nebraska e Dakota, um terceiro grupo povoa o antigo Tucumán dos anais espanhóis,
cujo nome se conservou numa pequena província muito rica, mas cuja língua e tradições primitivas,
apenas "mordidas" pela civilização européia, perpetuou-se nas selvas de Santiago. Por outra parte,
peço-vos que não concedais valor científico e preciso a estas vagas analogias geográficas, que me
aventuro com o único objetivo de uma orientação provisória.
Destas três variedades étnicas, que a nacionalidade e a vida moderna vêm confundindo cada
vez mais, pode-se dizer que o indígena quase puro de Corrientes e Misiones, que ainda fala o
guarani e pouco tem se modificado desde a era colonial, se encontra sufi cientemente descrito nos
relatos jesuíticos do último século. Deve-se acrescentar, também, que seus costumes gauchescos
não são inatos, senão adquiridos por contato e infiltração. As duas variedades reais, propriamente
falando, são formadas pelo gaúcho de Buenos Aires e províncias limítrofes, e o das selvas de
Tucumán, cujo verdadeiro tipo vive em Santiago. Este, sobretudo, além de ter sido muito menos
estudado que o primeiro, apresenta um problema etnográfico muito especial: um caso de enxerto
lingüístico cuja analogia creio que se buscará em vão no resto da América espanhola, e que,
filologicamente, lembra o fenômeno da Romênia latina, encravada durante séculos, como uma
concreção parasita, no âmago do corpo eslavo. Quanto ao habitante dos vales vizinhos do Chile,
penso que se deveria, em uma descrição étnica, vincular ambas vertentes contíguas, tanto por causa
de um provável parentesco, quanto em razão do contato incessante que as mantém semelhantes há
muito tempo A primitiva forma de ocupação do pampa, ou do campo de Buenos Aires, é muito
conhecida: além do mais, tendes nela uma reprodução bastante fiel de vossos ranchos do oeste. A
própria palavra rancho é genuinamente espanhola; mas, no sentido californiano que a haveis tomado,
provém sem dúvida do México. No Peru, um rancho é em geral uma casa de campo e de recreio; na
república Argentina é propriamente a habitação do gaúcho. Vosso ranch do Far West corresponde à
nossa estância, e também em outros casos a nosso puesto, que corresponde, para se dizer assim, a
uma sucursal daquela.
Antes que as ferrovias aproximassem as distâncias, multiplicando os centros populacionais e a
subdivisão das propriedades territoriais, o mar imenso de pradarias cobertas de gado solto, em parte
alçado e sem dono, estendia-se num raio de vinte a trinta léguas ao redor da capital. Depois
começava o deserto, somente ocupado pelas tolderias dos indígenas. No centro daqueles
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estabelecimentos rurais, vagamente medidos e nunca cercados, a casa-estância com seus alpendres
cobertos por “açotéias” ou por duas águas, levantava sua paredes de adobe pintadas com cal; quase
sempre um umbu enorme ou pomarzinho de pêssegos dava sua nota alegre sobre o lar campeiro. A
curta distância da casa senhorial, alguns ranchos de peões e pastores se antecipavam com seus
tetos de palha aos currais das ovelhas.
O gado de maior porte, vacas e cavalos, pastava em liberdade. Os rebanhos, manadas e
pastagens dos vizinhos, se confundiam sem grandes prejuízos para ninguém; nos dias de rodeio se
marcava a fogo o animal ao lado da mãe, e se encerravam no curral as reses destinadas à próxima
venda. Durante o rodeio, cada proprietário reconhecia e apartava o que lhe pertencia patriarcalmente,
como nos tempos bíblicos. E aí se davam as grandes festas do ano pastoril ! Muito bem: todos os que
aí trabalhavam com afã, peões permanentes ou contratados, compadres e transeuntes atraídos pelo
acontecimento e pelo amor de carnes assadas nas brasas: cada qual montado em seu cavalo
ajaezado com o vistoso arreio chapeado de prata; vestindo o poncho rajado atirado nos ombros, e
com a língua tão afiada como a faca enfiada no cinto, todos eles eram gaúchos das planícies, o que
simplesmente significa: homens adestrados no manejo do laço e do cavalo.
Tenho falado de tempos passados, pensando sobretudo na antiga província de Buenos Aires,
cuja extensão habitada, repito, não excedia, há vinte anos, esse semi-círculo de umas trinta léguas
de raio, ao redor da grande cidade, até a fronteira dos índios. Hoje em dia, estes têm sido
rechaçados, dispersados no deserto, onde, a semelhança dos vossos, estão se extinguindo
lentamente; e os gaúchos, que tomaram seu lugar, vão retrocedendo por sua vez diante da imigração
européia ou se transformando com seu contato e miscigenação O encarecimento rápido da
propriedade rural tem tido por conseqüência sua divisão e medição exata. A criação científica de
gado de raça fina e o cultivo do solo, cuidadosamente cercado, têm criado a verdadeira indústria
pastoril. Cavalariças e estábulos substituíram o antigo curral. Da vizinha estação de trens, o proprie
etário enriquecido chega em carruagem à sua estância: a antiga moradia rústica converte-se em
verdadeira casa de campo, algumas vezes em um castelo com parques e jardins. Há estâncias, a
umas cem léguas de Buenos Aires, que conhecemos como campos abertos às tribos indígenas, onde
hoje as carruagens com tiro inglês percorrem a planície, e em cujas mansões luxuosas se almoça em
trajes de etiqueta. Os criadores europeus relegaram o gaúcho às grandes propriedades de estilo
antigo. Cumpriu-se a lei fatal: De fora virá... E o filho do pampa se refugiou no que do pampa resta,
pelo distante sul. É ali onde ainda se o encontra, mas desorientado e empobrecido no contato da
civilização invasora, quando não consegue fundir-se ao grupo urbano. Esta última evolução, por outra
parte, costuma cumprir-se sem grande esforço: muitos filhos de gaú chos têm sido educados no
colégio e habitam a cidade. A transformação tem sido bem mais fácil, quanto as nossas instituições e
costumes democráticos , muito semelhantes aos vossos, se aplicam também entre nós a um
elemento popular que não difere essencialmente do elemento superior. Agregai a ele a pressão
crescente do advento europeu, sendo que as condições de clima benigno e da terra fértil designam a
República Argentina como o país de maior atração imigratória que existe no mundo, depois dos
Estados Unidos. Nos demais países hispano-americanos quase sempre a aluvião sobrevivente teve
que se refundir com a população indígena, muito numerosa, que ocupava o solo, e, algumas vezes,
como no México e no Peru, havia alcançado um grau notável de civilização. Esta superioridade inicial
foi um primeiro obstáculo para a transformação profunda, e aparece até agora como um fator
contrário ao progresso moderno. Fora algumas províncias de que logo falarei, a nação argentina
encontrou tábula rasa ou varreu para o deserto as tribos nômades que percorriam as planícies. Salvo
nas primeiras gerações, pela aliança com as índias convertidas, o povo argentino quase não
assimilou o indígena.
Este logo se tornou inimigo do cristão, refugiando-se na solidão das montanhas e do pampa. O
gaúcho, flexível e esbelto, com seu tipo semi-árabe, não tem nas veias senão uma parte diminuta de
sangue indígena, diluída depois de cada geração em uma mistura mais rica de sangue europeu. O
primeiro cruzamento com um imigrante completa a depuração. Os cabelos castanhos ou louros
abundam já no antigo campo pampeano; por seu aspeto e tendências, o argentino rural se con funde
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com o filho do italiano ou espanhol; e dentro de alguns anos, o gaúcho da planície não será senão
uma legenda e uma recordação.
Acerca deste, abundam estudos e bosquejos, como se o encontrava, por assim dizer, às portas
da cidade. Os jornais ilustrados, e até os dramas populares, espalharam pelo mundo sua silhueta
pitoresca e seu traje desalinhado, metade beduíno, metade inca; o chapéu mole enterrado na longa
cabeleira escura; o lenço de seda, cuja ponta cobre a boca do poncho, o qual é uma simplificação do
albornoz beduíno; o chiripá (cujo nome creio ser o mesmo que o zarapé mexicano) flutuando como
calça de suábio, preso na cintura pelo amplo tirador do couro adornado com moedas de prata, e
cruzado pela adaga para o trabalho e para as peleias; por fim, as largas calças bordadas que caem
sobre as botas de couro de potro: vede aí o gaúcho de Buenos Aires.
Por seu aspeto e vezos orientais, se explica a tendência persistente de alguns escritores
modernos em pedir ao vocabulário árabe a etimologia deste nome estranho, que não parece ser
castelhano nem derivado do francês, apesar de sua analogia. Mas este procedimento antiquado é
inadmissível: este século não criou a filologia comparada para continuar empregando as velhas
tentativas etimológicas anteriores à lei de Grimm. Tratando-se de uma única palavra isolada, de uma
concreção estrangeira e de origem desconhecida, que aparece no tecido da língua, não se podem
aplicar com eficácia as leis filológicas; mas é então o método histórico que deve nos guiar. Nunca se
apresentou o caso, nem poderia se apresentar, de um vocábulo arábico aparecendo bruscamente na
América sem haver antes permanecido e se aclimatado em solo espanhol. Muito bem, a palavra
gaúcho nunca foi escrita nem conhecida na Espanha senão por translado americano.
Não se deveria, pois, buscar em outra parte, senão aqui mesmo, sua etimologia, se o resultado
valesse o trabalho da investigação. Pelo o que a mim toca, acabei acreditando que o inocente lapso
de Walter Scott talvez encerre a verdadeira solução, e que o autor de Ivanhoe, como o galo da fábula,
tenha dado com a pérola buscando somente o grão de milho. A palavra "guacho" pertence à língua
incaica e ocorre ainda em nossos dialetos: significa órfão, abandonado, errante, com um sentido algo
depreciativo: se o aplica sobretudo aos animais criados longe da mãe. A inversão silábica, que os
gramáticos chamam metátase, é muito freqüente nos povos de fala castelhana; daí, guacho
transformado em gaúcho, pelo mais lógicos dos procedimentos, que consiste na precedência e
acentuação da vogal mais forte. Peço-vos perdão por estas nimiedades que exalam à explicação
escolar.
Em todo caso, senta-lhe o epíteto. É sem dúvida um "errante", um filho pródigo do grupo social,
um outlaw, como o Robin Hood das velhas lendas saxãs, esse gaúcho tradicional e nômade cuja
grande aventura começa no seu nascimento e não termina senão em sua morte. Brotado em algum
rancho do pampa argentino, desprendido muito cedo do tronco nutrício e criado sobre o cavalo, vem
apreendendo desde a infância a luta e o sofrimento: suas primeiras e indeléveis impressões se
resumem em um sentimento de abandono ao lado de uma self-reliance. Faz-se homem frente a uma
natureza impassível, com esta noção sempre presente, se bem que nunca formulada: que não deve e
que não pode contar senão consigo mesmo. O pampa imenso, sem árvores, sem caminhos trilhados,
para ele mais estéril que o oceano do velho Homero, se estende ante seus olhos, misterioso, infinito:
é aí onde deve viver, lutar, amar, morrer. O deserto o rodeia como ao pescador insular o mar sem
limites. Para vencer a distância e procurar seu alimento tem seu laço e seu cavalo; para se dirigir
para qualquer ponto desse horizonte invariavelmente circular, tem o matiz das pastagens, alguma
capoeira ou tufo de arbustos que vislumbrou uma vez e que não esquecerá jamais. De noite, a
cinqüenta léguas de seu pago, depois de dez anos de ausência, saberá encontrar seu caminho pelo
perfume e o gosto dos pastos palmilhados: dizem que assim costumava fazer o tirano Rosas. Ponto
perdido nesse vazio que para ele é todo o universo, a semelhança do moicano, tem seus sentidos
aguçados como outras tantas armas necessárias: adquiriu o ouvido e o olfato de uma fera, a vista
aguda de um falcão; e possui, por outra parte, a insensibilidade exterior, a resistência ao frio e à
fome, a faculdade de suportar a dor e curar suas feridas, próprias dos organismos inferiores. Em um
rumor de tempestade, discerne se os rebanhos fogem espavoridos do âmago da tormenta ou diante
de um ataque dos índios. Num tropel invisível, consegue contar os cavalos; distingue se vêm
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montados e se os ginetes são soldados, selvagens ou companheiros de correrias. Um grito de
pássaro, a fuga de uma avestruz, as orelhas imóveis de um cavalo, são tantos outros indícios
preciosos. Na areia fofa ou nas pegadas do capim, seu olhar fixo de vidente segue o rastro recente
até dar com o cavalo perdido; a pegada familiar não lhe escapa no confuso pisoteio de uma tropa
numerosa. Reconhece a meia légua, o potro disparado com as crinas ao vento, marcado no ano
anterior, entre centenas de outros. Individualiza cada animal da manada, igual ao que fazemos com
as pessoas; e conhece o forte e o débil, as qualidades e os defeitos "morais" do cavalo que escolheu,
como conhecemos a psicologia de um amigo.
Sua existência é incerta e dura, mas não propriamente triste, graças a sua fácil resignação, a
seu inato e estóico fatalismo. Desde a infância tem seus músculos endurecidos e disciplinado o seu
estômago. Criou-se ao redor de seu rancho, entre as aspas dos touros, ágil e forte, ginete como um
centauro; tendo por primeiros jogos infantis o manejo do laço e as boleadeiras e a esgrima da faca,
que serão muito cedo seus únicos meios de existência ou defesa.
Agrega-se mais tarde em alguma estância, quase nunca por muito tempo; pois prefere vagar
aqui e ali, em busca de festas, farras e carreiras, impelido pelo desejo incurável da aventura e da
nostalgia do deserto. Indolente e pródigo, o dinheiro ganho escorre entre seus dedos.
Galopa até a próxima bodega, a qual é um rancho algo mais espaçoso que os demais e
representa a loja, a taberna e o bazar do pampa: se a conhece à distância pela bandeira hasteada
em seu telhado de palha, e sobretudo pela fileira de cavalos maneados ou atados no palanque. Ali é
onde se bebe cachaça e genebra, onde se joga o monte e a taba, onde se dança o gato e o cielito ao
som da guitarra. Ali também o trovador agreste ou "payador" improvisa suas lentas melopéias, no
metro cantante dos antigos romances castelhanos. Faz-se a roda em seu redor; homens e mulheres,
acocorados, com o cigarro nos lábios, escutam atentamente as toadas e estrofes em modo menor,
heróicas e sentimentais, quase sempre tristes, em que se fala de guerras distantes, de expedições ao
deserto, de misérias e amores interrompidos pelo olvido ou traição. E as chinas jovens com suas
tranças flutuando às costas, elevam seus olhos de azeviche, de grandes pestanas e pesadas
pálpebras, para o cantor que escolheram: pois não há deserto árido que não tenha a sua florescência
na primavera; e, aos vinte anos, a mesma paixão, a mesma força do sangue ardente faz bater o
coração, agitando com o mesmo sonho de felicidade impossível, tanto o aldeão como o patrício. E
muitas vezes também, incitados pelo amor ou pelo orgulho, dois "payadores" rivais se desafiam e
iniciam um torneio de poesia: com a guitarra apoiada no joelho, se põem a improvisar alterna
tivamente rodeados pelo silêncio geral. O certame começa bem, no estilo "amebeo" dos pastores de
Virgílio; mas costuma terminar mais tragicamente. A alusão irônica e o sarcasmo agressivo logo se
introduzem na cantilena. Aquele que se vê perdido no jogo de consoantes procura sua desforra em
jogo menos inocente. Por entre as formas dialetais e as metáforas tiradas da vida rústica, que me
seria impossível traduzi-las literalmente, o eterno alardear do guapo abre lugar, o mesmo que entre
os heróis de Homero:
Alguien que la echa de guapo
Y en lo fiero se echa atrás,
Es poncho de poco trapo,
Purito fleco no más.
E o adversário replica, no mesmo estilo, com a seguinte ou parecida flor:
Naides com la vaina sola
Al buen gaucho ha de correr,
Lacito de tanta armada
No ha de voltear la res...
Compreende-se como, uma vez tomado este rumo, não se prolongue muito a justa poética: os
punhais saltam sozinhos das bainhas, como os "chassepots" de Mac-Mahon, e, em dois tempos cai
por terra um dos trovadores. Entre a gritaria das mulheres e o silêncio dos homens que recolhem o
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ferido, o outro desatrela seu cavalo sem que ninguém pense em perturbá-lo, monta num pulo em sua
sela e se afasta passo a passo. Terá agora que se internar no pampa familiar, escapar da patrulha, a
qual por outra parte, não o perseguirá por muito tempo: vagará de pago em pago, contando sua
desgraça com mais satisfação que arrependimento, ficando onde tenha boa acolhida, pois não feriu à
traição nem peleou contra inimigo sem armas. E o peão submisso de ontem, muitas vezes
transformado em "gaúcho malvado" pela fatalidade, emigra para as províncias vizinhas se não
prefere buscar refúgio entre os índios.
Além do mais, esta desproporção entre o delito e o que poderíamos chamar sua repercussão
moral, não é peculiar a tempo nem a país algum: sempre e em todas as partes, a relatividade do ato
criminoso tem dependido mais do estado da civilização ambiente do que a natureza daquele. E isto é
a revelação mais evidente de que, em nossas leis sociais, cabe uma grande parte de
convencionalismo estranho aos rígidos ditames da moral absoluta. Algumas vezes, por grande
casualidade, o gaúcho era convocado e enviado à fronteira. A vida do fortim não alterava muito seus
costumes, pois seus atuais camaradas pouco diferiam de seus companheiros de ontem; em pouco
tempo tornava-se um excelente soldado da cavalaria, sobretudo se a guerra o arrancava a tempo dos
ócios e vícios da guarnição. Com estes soldados fez-se a guerra da Independência; com eles San
Martin atravessou os Andes e empurrou para o mar as tropas espanholas que haviam enfrentado a
Napoleão; com estes mesmos gaúchos sofridos e aguerridos nossos liberais acossaram a Rosas; e
com eles, por fim, a República Argentina desalojou de sua guarida do Paraguai o ditador espesso e
vulgar que aplastava a esse pobre povo, historicamente preparado para tão diversas tiranias !
Tal é - ou era - em grandes rasgos bosquejada, a fisionomia pitoresca e, em traços resumidos,
simpática de nosso filho do pampa. Com todos os seus vício e pecadilhos acaba-se sempre por
querê-lo, porque é franco, valente, hospitaleiro, mui leal e até ingênuo sob suas aparências hirsutas.
Nenhum de nós desdenha a sua companhia. E no tempo das grandes jornadas a cavalo, no momento
do fogo noturno, o viajante gostava de atiçar a conversa despretensiosa e com grande prazer
costumava retardar-se com ele. E é precisamente o que acaba de acontecer comigo: e somente me
restam alguns minutos para esboçar a outra variedade do gaúcho, que devia ser o objeto principal
desta dissertação.
A nação argentina, como sabeis, constitui uma república federativa, formada de quatorze
estados autônomos, fora o distrito federal e nove territórios que dependem diretamente do poder
central: teoricamente, nossa organização política é semelhante a dos Estados Unidos. Em todas as
partes a língua comum , tanto oficial como popular, é o castelhano. Um só estado faz exceção à
regra: é a província de Santiago, parte integrante do antigo Tucumán. É claro que mesmo ali o
castelhano predomina nos centros urbanos; mas quase toda a população camponesa fala o quíchua,
a língua dos Incas do Peru. Até a bem pouco tempo era este o idioma corrente mesmo na classe
superior, que o entende e ainda o fala. Muito bem: ao redor de Santiago, no resto de Tucumán
colonial até os territórios adjacentes do Alto Peru (fora algum rincão dos vales Calchaquíes), não se
encontra rastro da língua adventícia: nunca foi falada ali. Estudei em uma obra oficial, que circula
impressa em castelhano, este fenômeno lingüístico e posso resumir brevemente os resultados a que
cheguei.
Desde tempos muito antigos, esse território de selvas e savanas, compreendido entre os rios
Salgado e Doce, foi habitado por uma numerosa tribo indígena que para alguns se denomina Furi e
para outros Lule. Procurei demonstrar que é a mesma palavra, ora pronunciada em índio, ora em
castelhano. Aquele era um povo industrioso e de índole mansa, caracteres que ressaltam ainda em
seus representantes atuais. Mas em fins do século quatorze, quando o poder dos incas chegava a
seu apogeu e Cuzco era a capital de um imenso império, aconteceu uma singular aventura histórica,
consignada nos clássicos Comentários reais de Garcilaso, de cuja obra somente possuís fragmentos
esparsos em vossa Public Library.
Parece, pois, que esses bons Lules tucumanos despertaram com o rumor da glória peruana:
sem se aconselhar com seus vizinhos do norte ou do sul, enviaram uma embaixada - a pé,
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naturalmente - ao inca Huiracocha, que então reinava. São quatrocentas léguas de áridos desertos e
serranias com neves eternas em seus cumes, onde por longos trechos tudo escasseia, até o ar
respirável: eu as cruzei várias vezes em lombo de mula, e posso vos assegurar que, ainda hoje, a
viagem é laboriosa. Deve ter sido terrível para os homens-embaixadores, habituados à blandícia
tropical do solo nativo.
Admitidos à contemplação dos incas, em meio de sua corte deslumbrante de ouro e tapeçarias
preciosas, os enviados depositaram ao pé do trono as humildes primícias de sua terra longínqua. Em
troca de sua sacrificada independência somente pediam a civilização. E para mim, esta homenagem
espontânea, este impulso instintivo de uma obscura tribo em direção à luz, é um dos aspectos co
movedores da história sul-americana. Foram ouvidos com benevolência e, sem dúvida, servidos
segundo seu desejo Sem se demorar na conquista do imenso território intermediário, o Inca
despachou os tucumanos, cujo nome acabava de lhe ser revelado, com um príncipe de sua família e
com uma numerosa escolta de oficiais, curacas e artífices, encarregados de iniciar os Lules nos
benefícios e malefícios da vida civilizada. Estes assimilaram rapidamente os conhecimentos, as
indústrias e sobretudo a língua de seus pacíficos amos, com tanta eficácia, no que respeita ao
idioma, que o antigo lule não tardou em desaparecer, e que o espanhol, depois de três séculos de
dominação política e social, não logrou desarraigar ao "cuzco", como todavia chamam o suave e
melodioso idioma que seus pais apreenderam com amor. E é assim como, na mais européia das
repúblicas sul-americanas, há uma província inteira onde ainda se fala a língua do antigo Peru, ali
trazida em época muito anterior à primeira viagem de Colombo.
Isto, além do mais, não é senão a confirmação de uma lei geral e constante em filologia: um
povo absorvido ou dominado por outro não costuma assimilar mais do que o vocabulário da língua
conquistadora; o enxerto não penetra até a essência gramatical, que subsiste em seus rasgos mais
profundos. Os santiaguenhos, como se os chama, agora empalmaram em parte o dicionário quíchua
na gramática lule; e esta é a diferença fundamental entre seu dialeto e a língua peruana. Para dizer
de passagem, não têm outra origem as variedades mais notáveis que existem entre as línguas
neolatinas. As invasões violentas, as superposições de raças atacam o léxico dos aborígines, o qual
é um fa to social; mas quase nunca a estrutura íntima e a medula do discurso, que constitui a própria
índole do pensamento, vale dizer, um elemento antropológico e cerebral.
Nada isola mais do que uma língua diferente; o comprovamos hoje mesmo por árdua
experiência, os que ainda não falam o inglês com facilidade e correção. Entre os quíchuas argentinos,
ou seja, os gaúchos de Santiago, "embalsamaram-se", por assim dizer, as tradições, os costumes, as
crenças supersticiosas da raça.
Em vão veio a Independência depois da era colonial das reduções e da servidão; a vida
constitucional depois da anarquia: nada mordeu este bloco errático. E, graças à antiga língua
conservada, pode-se estudar, talvez melhor do que em qualquer outra parte, a formação frondosa
dos mitos e das lendas entre os povos primitivos.
Seu lugar de moradia intensa, sua "querência" preferida, é sempre aquela vasta zona coberta
de bosques, nas imediações dos rios que já nomeei. A vida rústica corre ali muito fácil e feliz. O clima,
cálido e seco, permite viver ao ar livre a maior parte do ano. Além do gado de maior porte das
estâncias, a ovelha e a cabra prosperam maravilhosamente: cada família de peões ou agregados ,
agrupada ao redor da habitação principal, possuem um rancho de postes e barro, com seu rebanho
particular e seu lavoura de milho, melões e melancias. Os ribeirinhos têm a seu alcance peixes
abundantes e saborosos, que se colhem, principalmente nas margens do Salgado, com um arpão
embutido numa taquara. Para todos, os bosques imensos brindam variados recursos alimentares. Em
primeiro lugar, as algarobeiras que cobrem todo o território; sua bainha açucarada produz um
alimento muito apetecido, e, depois de fermentada, um licor análogo á "chicha" da Bolívia e ao
"pulque" do México. O fruto maduro de princípio do verão , quando as enormes cigarras chamadas
"coyuyo", ocultas na folhagem, estremecem a selva com seu ruído metálico. Ya canta el coyuyo ! Ao
toque da chamada geral, os ranchos se esvaziam; homens, mulheres e crianças se perdem nas
François-Paul Groussac
O Gaúcho
virgens solidões, cheias de rumores e perfumes. Ali, durante semanas, vivem alegremente sua
colheita, que recolhem em seus ponchos e cestas. Têm, além disso, a caça, pois a lebre, o coelho, o
quirquincho e as aves abundam: por fim, há grande profusão de frutas do chañar, do mistol , das
tunas ou figos escuros do nopal, e o mel silvestre que extraem da terra ou do coração dos
quebrachos gigantes. Ao cair da noite, os grupos se encontram em uma clareira do monte; flutuam no
leve ambiente essências de verbenas, trepadeiras, lírios campestres, predominando a fragrância
perturbadora e balsâmica da sombra-de-touro, de folha romba eternamente verde. O violão marca o
ritmo das danças lentas, ou acompanha suavemente canções muito antigas e melancólicas, yaravís
elegíacos, trazidos alguns deles do Cuzco original no século anterior à conquista. E enquanto os
pares jovens desaparecem na sombra, velhos e crianças se juntam em círculo para enxertar no
incidente do dia ou à visão da véspera a misteriosa lenda que haverá de florescer como uma planta
de encantamento Assim acumularam e conservam, das relações fantásticas do núcleo real,
suficientes listas para encher um Flos Sanctorum. Recolho algumas todos os anos , durante os dois
meses que ali vivo, numa casa de família. Posso dizer que desfruto daquelas montanhas, na paz
d'alma e na alegria do lar campestre, no meio dessa população ingênua que viu nascer e crescer os
meus, e para quem os pais são sempre jovens e as crianças sempre pequenas, as horas mais doces
e descansadas da minha vida. Se a idade avançada me deixa espaço e força para isso, registrarei
algumas lendas do Salgado, folhas arrancadas de seus anais supersticiosos e simbólicos. Não falta
nenhuma para todos os seres da selva, todos os transes de sua vaga existência, todas as passagens
que vão do nascer ao morrer. As próprias crenças religiosas foram se enfeitando com emblemas
alegres ou melancólicos, como se estes povos recordassem sempre sua longínqua evangelização
pelo suave apóstolo São Francisco Solano - novo Francisco de Assis tão ingênuo como o outro mas
mais telúrico -.
Em certa aldeia extraviada conservam uma imagem milagrosa, baixada expressamente do céu,
e bem esculpida em legítima madeira de quebracho; no dia da festa anual, de muito longe trazem
para ela bolsas de mel silvestre, cabritos e melancias; e o padre os retribue com uma oração para os
defuntos ou uma fita benta à guisa de recibo. Como quase todos os povos primitivos, eles espargem
sobre suas crianças mortas os cantos e as flores; mas interpretam, no entanto, como um benefício a
evolução geral da vida: até sobre o cadáver dos anciãos durante o velório, os sons alegres dos
instrumentos se misturam ao lamento salmodeado das carpideiras, igual à antiga Grécia. Tal
desprezo inconsciente do viver, entre as tribos ignorantes, não difere em essência do conceito
pessimista que se nos apresentava ontem como a última palavra da filosofia.
Há tesouros de histórias supersticiosas sobre todos os animais silvestres: as terríveis a respeito
do tigre e do puma; cômicas e satíricas sobre o atoj, a raposa, a quem chamam de "don Juan". Há
também as muito melancólicas, como a referente a uma espécie de coruja que chora de noite nas
árvores chamando sem trégua a seu irmão. Além de muito comovedora, lembra uma metamorfose de
Ovídio: trata-se de uma jovem que foi transformada em coruja ou cacuí, por haver negado um pouco
de mel a seu irmão, que regressava das montanhas, morto de fome e de cansaço; desde então está
condenada a atravessar a noite com esta queixa lamuriosa:
"Turay, meu irmão!. Para o caçador, o encontro de certos animais é presságio infalível de bredouille;
e em tais casos, o vaqueano que me acompanhava costumava aconselhar-me não prosseguir a
expedição. Sequer resta alguma esperança se a raposa cruzasse o caminho pela direita; mas quando
é a jibóia ou ampalagua, que deixa no solo seu longo rastro ondulante e liso, parece infrutífero
continuar a caça; e mais de uma vez eu vi o rústico cavaleiro atar nos tentos do cinto suas
boleadeiras, que julgava inúteis para o resto do dia.
Eles têm seus bruxos, que são também médicos e conhecem as ervas; principalmente as
bruxas velhas, as quais, conforme os casos, tornam-se maléficas ou benéficas. Uns e outras, tanto
curam uma punhalada ou consertam um membro deslocado, como vendem o segredo para encontrar
o amor correspondido ou para lançar um malefício a um inimigo.
François-Paul Groussac
O Gaúcho
Como sabeis, o costume de enfeitiçar um homem por meio de sua efígie tem atravessado os
tempos; e é muito curioso encontrar, em uma choupana de Santiago, o boneco de cera toda furada
com sangrentos alfinetaços, que já usavam a romana Canídia e Catarina de Médicis.
Igualmente, bruxos e bruxas se encontram no Sabat ou reunião noturna e semanal que aqui se
denomina "Salamanca". Outro caráter significativo é a preocupação universal que, desde a
antigüidade e a Idade Média até nossos dias, associava em todas as partes a magia e a ciência. Os
espanhóis de antanho chamavam "algebrista" ao consertador de ossos; para eles um sábio era antes
de tudo um homem que sabia latim; e encontrareis ainda o latino ou ladino, como guia e pessoa bemfalante , até nas tribos do Chaco. Nossa Salmanca indígena é sem dúvida uma lembrança da famosa
"cueva" salmantina, e por tanto um eco supersticioso da grande universalidade espanhola. O
conventículo se realiza no fundo dos bosques, em uma caverna subterrânea, assinalada por uma
estrada estreita e circular que talvez seria tomada por uma toca inofensiva. Pensando assim, vos
dareis mal, se entrasses nela de gatinhas sem contra-senha ! É ali onde o "Mal" celebra à meia-noite
sua missa negra, rodeado de animais fantásticos que são outros tanto bruxos, e com um luxo
decorativo que faz estremecer, de tão atraente e tentador...
Se a ignorância é a raiz da superstição, a poesia popular é a sua flor. Todos estes gaúchos de
Santiago têm o sentimento poético, embora sua expressão permaneça quase sempre incompleta e
pobre. Mas, sobretudo são músicos, apaixonados pelos cantos e melodias, dotados de uma memória
e de um ouvido realmente surpreen dentes. Se a República Argentina consegue algum dia artistas
inspirados, creio que daí sairão, continuando a tradição dos Alcorta, a cuja família pertence nosso
jovem compositor Alberto Williams. Falta-me tempo para citar os numerosos espécimes dessa poesia
cantada; por outra parte, estão em quíchua os melhores yaravís, e sua tradução, além de ser muito
laboriosa, resulta quase sempre pálida e inanimada.
Apresentei em verso espanhol alguns fragmentos de amostra, para o deleite dos ouvintes que
conhecem esta língua, procurando conservá-lo, já que é a parte essencial da composição. O que
neles domina não é o tom belicoso, ardente ou gracioso, como entre os gaúchos do pampa; senão a
tristeza, o amor, a saudade das raças oprimidas, o que em estilo romântico se chamaria a "nota
sentimental". Assim, esta estrofe de um apaixonado enganado ou despedido:
Su labio no se pintó
Con clavel, coral ni grana,
Sino com sangre que mana
Del corazón que partió...
Eis aqui, todavia, em tom algo diferente, o bonito início de um madrigal que é toda uma litania
amorosa, que finaliza com este suspiro de reprochee desalento: "Mas, tudo isso, porque me o
disseste: Ima pachta niaranki...? "
Cómo es, paloma mia,
Paloma blanca,
Que, para un pecho solo,
Tienes dos alas?
Es que el amor cobijo
Que me entregaras,
Y dos alas [preciso
Para dos almas
Vede aí o acento e o ritmo habituais. Mas algumas vezes o tom se eleva; uma imagem original e
bela, uma profunda reflexão filosófica brota do palpitante coração humano, em todas partes idêntico.
François-Paul Groussac
O Gaúcho
Escutei em um concerto campestre conceitos dignos da mais alta poesia; já vi florescer nesses lábios
rústicos imagens que, expressas em um estilo perfeito, podem enriquecer qualquer antologia. Sem
saber como, acontece que um "payador" volte a encontrar o verso lapidar de tal ou qual grande poeta
cujo nome jamais conheceu. Já escutei, por exemplo, à guitarra, uma reminiscência da famosa
décima do grande trágico Calderon, que alguns apelidam do Shakespeare espanhol, embora suas
características formem exata oposição com o gênio shakesperiano: “Cuentan de un sabio que un
dia... “ Por fim, até o clássico Feriunt summos fulgura montes, de Horacio, apresentou-se um dia ao
trovador do deserto sob esta antítrse agreste e local ( tranqüilizem-se, esta será minha última
citação):
Por ser más chico el pobre,
Es más seguro,
Hiere el rayo al quebracho
Y nunca al suncho...
Senhoras e cavalheiros: termino esta conferência, que sem dúvida a acháveis interminável, e na
qual, não obstante, não fiz senão bosquejar meu tema, plantando aqui e acolá alguns marcos para
assinalar o caminho que se seguiria num estudo mais aprofundado. Por incompleta e apressada que
tenha sido esta conversa familiar, vejo que haveis percebido a riqueza e o interesse da matéria, entre
as deficiências da exposição. Temo que seja esta a dissertação mais longa que até agoira haveis
sofrido, e seguramente houvera esgotado a paciência de um auditório menos benévolo. Para
desculpar esta verdadeira indiscrição, não podia, por certo, contar com a sedução da forma nem com
a atração de meu sotaque estrangeiro. Olvidei-me da máxima que Emerson, vosso pensador mais
profundo, emitiu em seu estilo lapidário, juntando o preceito e o exemplo: The man is only half
himself, the other half is his expression. Por isso é, o digo com toda a sinceridade, que fico ainda mais
agradecido por vossa atenção sustentada por vossos aplausos indulgentes. Já que me haveis
perdoado por esta vez minha má alocução, prometo-vos dissertar em inglês mais correto nos
congressos de vossa próxima Feira universal.
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O texto em inglês desta conferência circulou em folheto com este título: Popular customs and
belief of the Argentine Provinces, by P.G., Chicago, Donohueand Co., 1893. A presente versão
castelhana publicou-se em La Nation, de Buenos Aires, precedida de uma breve introdução cujos
parágrafos mais substanciais são os seguintes, que por acaso não perderam ainda toda sua
oportunidade:
Creio que é necessário e urgente, antes que a rápida evolução do país acabe por apagar
nossas características originais, reunir em coleção todos os elementos genuinamente argentinos da
antiga vida campestre, que logo se tornará legendária: costumes, estilo de vida, poesia, música,
alguns de um sabor incomparável. Tal obra realizou-se, total ou fragmentariamente em quase todas
as nações européias e americanas, e até no Brasil. Para nós a empresa seria relativamente fácil, se
fora coletiva. Uma comissão central em Buenos Aires - que poderia constituir-se na Biblioteca -,
distribuindo comissões locais em todas as províncias e territórios, realizaria completamente esta obra
patriótica. Em princípio, não se trataria de selecionar; haveria que pedir e agradecer a colaboração de
todos os homens de boa vontade que têm ou tiveram contato com a vida campestre (e quem de nós
não a teve?).
Os dados remetidos a cada seção provincial poderiam ali mesmo ser submetidos a um primeiro
exame, para eliminar as inumeráveis repetições.
Grão a grão, sem esforço e creio que com prazer de cada cooperador, se juntaria o trigo no paiol, até
formar um verdadeiro tesou ro de poesia nacional. Um programa ou questionário de quatro linhas
bastaria para dirigir a recoleção, que haveria de compreender todos os cantos com sua transcrição
musical, poesias, bailes, "tristes", yaravís, etc, além de contos, crenças, ditos metafóricos e refrães da
terra. A tarefa parece enorme; mas, repito, seria facilmente realizável por esse meio cooperativo, a
François-Paul Groussac
O Gaúcho
moda das catedrais medievais onde cada crente trazia sua pedra anônima. Reunidos os materiais em
poder da comissão central, chegaria a hora de classificá-los, resumi-los, conservar os
verdadeiramente crioulos e significativos, e publicá-los em um volume precedido de uma boa resenha
explicativa. Creio que nosso Folklore estaria entre os mais interessantes de seu gênero, e
representaria um precioso retrato da alma popular argentina.
pensamento não é frívolo, nem deve deixar indiferente a nenhum argentino. Desejo
verdadeiramente que a imprensa de Buenos Aires e da República preste seu indispensável apoio,
embora me ocorra o mesmo que com a Biblioteca científica internacional. Aconteceu, anos atrás, que
Sarmiento se dignou felicitar-me publicamente por haver iniciado com o publicitário Alglave gestões
tendentes a incluir a língua espanhola em dita coleção. Desde então, não há aniversário do ilustre
escritor sem a menção devida à sua "grande idéia" relativa à dita biblioteca. Pois bem, eu aceitaria
muito satisfeito e orgulhoso que a presente indicação fosse chamada também uma "idéia de
Sarmiento", como que em verdade ele a tem mais que formulada em seu inimitável Facundo.

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