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As imagens das figuras de Satanás na Bíblia
Hebraica como tipologia do mal
Marli Wandermurem
Doutora em Ciência da Religião. Professora de Teologia do Antigo Testamento e Ciências das Religiões na Faculdade Batista
Brasileira (FBB). Coordenadora do Centro de Extensão, Pós-Graduação e Pesquisa (CEPPES) da FBB. Coordenadora do
Núcleo de Estudos Interdisciplinar Sobre Gênero e Religião (NEIGER). Membro da Comissão Editorial da Maiêutica
Virtual. Revista de Filosofia. Coordenadora da Pós-Graduação em Teologia. Membro do Centro de Estudos Teológicos
Feministas do Norte Nordeste (CETEFEN). E-mail: [email protected]
Resumo
O mal representa um desafio para a humanidade. Está associado às desgraças que acontecem
com as pessoas e com o mundo. É visto como influência direta de seres celestiais que se
opõem. Deus que é o representante do bem. Neste jogo bipolar de imagens e símbolos do bem
e do mal a Bíblia Hebraica formou ao longo da história e de sua cultura social e ideológica a
concepção do que é o mal. Começa com uma concepção da idéia do mal na esfera terrena
mais vai dimensionado para a esfera celestial.
Palavras-chave: Mal. Demônio. Satanás. Bíblia Hebraica.
Images of satan in the hebrew Bible: a typology of evil
Abstract
Evil represents a challenge for humanity. It is associated with the misfortunes that befall
people and the world. It is seen as the direct influence of celestial beings in conflict with each
other, God being the representative of good. In this bipolar game of images and symbols of
good and evil, the Hebrew Bible in the course of history and of its own social and ideological
culture formed a conception of evil that began in the earthly sphere but went on to include the
celestial.
Key words: Evil. Devil. Satan. Hebrew Bible.
CONSIDERAÇÕES INICIAIS
Nos dias atuais, a produção de bens simbólicos sobre Satanás adquiriu diversos
contornos. E esse imaginário existente sobre o mal, na figura do Diabo vem sendo utilizado,
pela indústria do entretenimento e pela sociedade de consumo, como mercadoria capaz de
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satisfazer os gostos das sociedades e das culturas pós-modernas. Mas a história de Satanás
tem raízes profundas. O termo tem a ver com o conceito da confusão.
Sabe-se que o Ocidente foi formado por uma tradição oficial que pintou Satanás como o
opositor de Deus, concebendo-o como espírito sedutor, enganador e aniquilador de almas. São
esses atributos que fazem com que ele seja representante do mal, vivenciado pela sociedade.
O mal por representar um questionamento para a humanidade, várias respostas têm sido
dadas para tentar explicá-lo. Ele está relacionado ao destino, à má sorte, ao castigo, à
desgraça, à provação, etc. Mas no panorama de possíveis explicações se destaca quem vê o
mal como influência direta de seres celestes que são opostos a Deus. Estes seriam os
demônios, ou espíritos do mal. Porém, é o diabo que condensa em si as exigências mais
racionais do pensamento humano diante do problema do mal.
Mas o que seriam estes seres que se opõem a Deus? Mircea Eliade identifica o demônio
com o desconhecido, o estranho, o caos. Ele afirma que os demônios são entendidos como
inimigos por ameaçarem a ordem estabelecida de um grupo ou sociedade. Este autor diz o
seguinte: “As sociedades arcaicas e tradicionais concebem o mundo que as cerca como um
microcosmo.” (ELIADE, 1991, p. 1). Nos limites desse mundo fechado, começa o demônio
do desconhecido, do não formado. De um lado, existe o espaço cosmicizado, uma vez que
habitado e organizado. Do outro lado, fora desse espaço familiar, existe a região desconhecida
e temível dos demônios, das trevas, dos mortos, dos estranhos – ou seja: o caos, a morte, a
noite. Pelo fato de atacarem e colocarem em perigo o equilíbrio e a própria vida da cidade - ou
de qualquer outro território habitado e organizado -, os inimigos são identificados às forças
demoníacas, pois tentam reintegrar esse microcosmo ao estado caótico.
Não é nossa intenção elaborar um discurso sobre o Mal em si, mas abordar as diferentes
faces e fases destinadas à representação da figura de Satanás pelas imagens simbólicas,
através do devir sócio-histórico-cultural da sociedade ocidental que vem moldada pela cultura
religiosa judaica-cristã. A bibliografia sobre o Mal, personalizado na figura do diabo/Satanás,
é extensa, se fôssemos tentar focar, mesmo que superficialmente, a bibliografia trabalhada
sobre o tema ocuparia todo este artigo, portanto, concentrar-nos-emos em estudos que
dialogam diretamente com nossa temática que é a questão da representação e significado
estrutural do mal, na cultura religiosa judaica, nos textos da Bíblia Hebraica, e dá uma
pincelada em nossa cultura religiosa cristã atual, que lê e resignifica as imagens elaboradas na
Tanaka.
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A CISÃO DUALISTA MAL/BEM NA CONCEPÇÃO CRISTÃ
A conhecida teoria do Inconsciente Coletivo apresenta explicação de fenômenos
irracionais na Cultura, e temos muitas imagens que personifica o mal nesta figura criada para
o Satanás. Sabemos que nem todos os povos possuem figuras equivalentes, ou mesmo
analogicamente próximas do diabo e do inferno como concebidos dentro do cristianismo. A
concepção religiosa cristã cria uma cisão na dualidade Mal/Bem fazendo com que o
representante do Mal, na sua mais perfeita encarnação, o diabo, seja, ao mesmo tempo, um
agente de Deus. A ele é atribuído um papel duplo, por um lado o Satã é o grande tentador,
aquele que através de ilusões coloca a humanidade próxima da perdição; por outro, também é
um agente de Deus, aquele que aplica as penas do inferno. Essa dupla função do diabo é
crucial para o entendimento dos vários desenvolvimentos das figuras malignas no
desenvolvimento das sociedades.
Mas um olhar comparativo esquemático informa que essas imagens não são usuais nas
crenças que estavam próximas ao cristianismo, em seus primórdios. Focando o paganismo
greco-romano que era o esquema religioso que, no início, concorria com o cristianismo,
veremos que ele não possuía a figura do diabo, nem tão pouco o inferno que em conjunto
forma o complemento da figura. Outra religião anterior que influenciou o cristianismo foi a
doutrina persa de Zoroastro; ela apregoa uma dualidade que supõem certa igualdade de forças,
embora o lado de Ormuz, que era a divindade positiva e eufórica, esteja com a vitória mais ou
menos garantida sobre o lado de Arimã, que é a divindade negativa e disfórica, mas não deixa
de ser uma luta de iguais.
Por certo, essas duas concepções religiosas, anteriores e paralelas, tiveram influência na
constituição do cristianismo, mas quem deu a base para a construção da figura do mal na
concepção cristã foi o judaísmo. Essa religião foi à fonte direta do cristianismo, fornecendo a
ele metade de seu livro sagrado, a idéia do monoteísmo e uma série de concepções de mundo
essenciais.
Mas a imagem do diabo, no Antigo Testamento, não o apresenta como personagem
importante. Aliás, no cânone do Antigo Testamento, raramente encontramos o Satan; sua
aparição mais evidente está no livro de Jó. Portanto, ele está ausente, e quando o encontramos,
não é importante. Por isso, pode dizer que havia a crença de que Satan não era, em princípio,
um ser de pura maldade. Mas são as construções em torno do Mal que veio elaborando, ao
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longo da história das sociedades, as imagens que vão culminar na personificação do Mal na
figura de Satan. E ele faz, então, sua grande entrada na civilização ocidental. Anteriormente,
abstrato e teológico, mas se concretiza e reveste o consciente coletivo com toda espécie de
formas humanas e animais. E, em sua maior aparição foi sistematizado e codificado na
imagem que o apresenta com olhos vermelhos, pele estriada, cabelos em fogo, corpo peludo
chifres, língua grande, etc.
Enfim, a história da arte é riquíssima de imagens com as quais o demônio foi descrito e
pintado. A iconografia já foi objeto de estudos específicos, que mostram como a imagem
popular condensa na figura do demônio, ou do diabo, tudo o que para ele está na origem do
caos, da desordem, da desgraça, do mal, da doença e da morte. E, quanto menos explicações
se têm, tanto mais a fantasia voa e cria um imaginário rico de figuras, cores, símbolos, numa
tentativa de dominar o inexplicável.
No entanto, o imaginário popular representa o quadro simbólico de uma determinada
época e grupo social, onde está condensada sua visão da realidade, da vida, dos problemas do
bem e do mal. É só neste contexto de cada sociedade que se pode encontrar o que pensava da
vida, dos sonhos e das esperanças; dos medos e das ameaças; das conquistas e dos tropeços.
Essas situações é que dão identidade do grupo. Voltando nosso olhar para as sociedades
israelenses podemos visualizar os complicados e distintos períodos de organização social
vivido por meio de complexos políticos difíceis, o que determinou muito a sua construção do
que apreenderam como o mal.
Vejamos essa construção a partir dos textos da Bíblia Hebraica.
AS IMAGENS DE SATAN NA BÍBLIA HEBRAICA
A Bíblia Hebraica apresenta algumas dificuldades para identificar Satanás como o Mal.
Uma delas, é o monoteísmo judaico que é intolerante diante da emergência de outras figuras
divinas. A outra está no fato de não existir uma única e mesma palavra no Antigo Testamento
para identificar o Mal e, tão pouco, Satanás.
Seguindo a literatura produzida nos textos do Antigo Testamento, podemos notar que a
idéia de demônio como personificação do mal, evoluiu, com o passar do tempo, tornando-se
sempre mais complexa, negativa e ligada à origem do mal. “Suas imagens e identificação são
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fruto de uma grande mistura cultural, com influências da magia, da religiosidade popular, do
ritualismo mágico oficial, do simbolismo poético e da psicologia”. (SHIAVO, 1999, p. 67).
Para entender como se deu a evolução dessa idéia é necessário fazer um passeio pelos
textos e verificar em que contexto sócio-ideológico se definiu tais pensamentos. Assim, ao
analisar as várias figuras e imagens do mal e de Satanás, na Bíblia Hebraica, procuraremos
destacar, na medida do possível, os movimentos simbólico-mágicos e a realidade social das
quais são expressões, na tentativa de reconstruir a evolução deste conceito, e sua relação e
relevância para o cotidiano das pessoas.
Satanás como um inimigo terreno
Nas primeiras aparições de Satanás, nos textos bíblicos, ele não é um inimigo de Deus.
A palavra Satanás, que remete ao papel de adversário, vem da raiz – stn que significa um que
é contra, obstrui ou age como adversário. O termo foi traduzido para o grego como diabolos, e
tomou mais tarde a conotação de diabo ou demônio. Significa, literalmente, alguém que atira
alguma coisa no caminho de alguém. O que implica entender, que no início de toda
construção tipológica de Satanás ele é originalmente um ser humano. O próprio Davi é
considerado um satanás, isto é: um adversário, pelos generais filisteus que se preparavam para
a guerra contra Israel, conforme registra o texto:
Porém os príncipes dos filisteus muito se indignaram contra ele, e lhe
disseram: Faze voltar este homem, para que torne ao lugar que lhe designaste
e não desça conosco a batalha, para que não aconteça que no combate seja
um satanás para nós. (2Sm 29,4).
Em outra passagem registrada no livro de Samuel, Davi reprova Abisai, membro de sua
corte, como Satanás, por querer ele matar Semei, um membro da família de Saul, que proferiu
maldição contra o rei Davi: “Respondeu o rei: ‘que tenho eu convosco filhos de Sárvia
[satan]? Ora deixa-o amaldiçoar, pois se ele amaldiçoa e se Javé lhe ordenou: amaldiçoa a
Davi, quem poderia dizer-lhe: por que fazes isso?” (2Sm 16,10).
Nesse texto, não aparece a palavra Satanás, mas está presente o conceito “desviar do
caminho”, aplicado a Abisai e de ofendedor [qalal], trata-se do oponente que se põe no meio
do caminho e se põe a amaldiçoar; isso está aplicado a Simei. Em outro texto, Satanás é
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também Razan, um homem que se tornou adversário de Salomão e de Israel, segundo o
registro no texto 1Reis: “Também Deus levantou a Salomão outro adversário [satan], Razan,
filho de Eliada, que havia fugido de seu senhor, Hadadezer, rei de Zobá.” (1Rs 11, 23).
Portanto, nesses textos mais antigos, vê-se claramente que, em sua origem, a palavra
Satanás era somente um apelido comum para as pessoas. Satanás é o inimigo terreno, o
adversário que ameaça. Não era uma palavra tão associada a um ser celeste ou do âmbito
divino. Então, a quem é atribuído o mal neste período histórico social?
O Mal/Bem atribuídos ao próprio Javé
Passeando um pouco mais pelos textos, podemos observar que na mentalidade dos
hebreus, em tempos mais antigos, espacialmente na sua origem, o mal é atribuído a Javé,
assim como o bem, é Ele que manda o inimigo, o Satanás. A teologia javista1, com sua forte
tendência exclusivista e monoteísta, criou obstáculos, pelo menos no começo, para a formação
de um conceito transcendente de mal e sua personificação num ser divino e celeste, quase
como um deus oposto a Javé. Javé é tudo, nele está à vida; rejeitá-lo significa optar pela
morte, conforme o texto de Deuteronômio:
Se ouves os mandamentos de Javé teu Deus que hoje te ordeno – amando a
Javé teu Deus, andando em seus caminhos e observando seus mandamentos,
seus estatutos e suas normas – viverás e te multiplicarás. Javé teu Deus te
abençoará na terra em que estás entrando a fim de tomares posse dela.
(Dt 30.26).
O mal está, portanto, associado à idéia de pecado, e de infidelidade a Javé. A religião
bíblica é incapaz de conciliar a si mesma com a idéia que existia um poder no universo que
desafia a autoridade de Deus e que poderia servir de anti-deus.
Na Bíblia Hebraica, em tempos posteriores, vamos ver a ascensão da figura de Satan. É
onde Satanás se transfere para o céu e se torna um ser celestial. O povo está vivendo uma
época de transição de pensamento sobre a imagem do mal. Este não é mais atribuído somente
à pessoa humana e à sua conduta. Começa a aparecer uma influência externa, embora ainda
ligada a Javé. A pergunta de fundo pode ter sido esta: se Javé é bom pode fazer o mal ao ser
humano?
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A ÉPOCA PÓS-EXÍLICA E A INFLUÊNCIA NA FORMAÇÃO DA IMAGEM DE
SATAN CELESTIAL
A época pós-exílixa vivencia a imagem do império persa com poder dominante. Com o
pós-exílico, muda, também, a imagem de Deus. Javé é agora concebido e imaginado como um
rei poderoso, cercado por uma numerosa corte de ministros (anjos) que executam suas ordens.
Está presente, nesta imagem, a impressão de grandeza, poder e magnitude que as monarquias
babilônicas e persas suscitaram nos judeus exilados. Javé deixa a terra e sobe para o céu. O
Deus que caminhava com seu povo, que lutava lado a lado, que se manifestava na história de
libertação e na eleição, é agora Deus dos céus, que, como o sol, a lua, os astros, governa o
mundo a partir de suas leis justas e imutáveis. E, quanto mais alto, mais distante e inacessível,
necessitando assim de intermediários: os anjos, que opõem sua corte, são seus mensageiros.
Entre eles, aparece também Satanás, membro da corte celestial, ainda que encarregado de
tarefas incomuns. Vejamos alguns textos desse período que poderá nos ajudar a entender
melhor o papel de Satanás, como membro da corte celestial.
A imagem no livro dos Números
O relato registrado no Livro dos Números nos informa que Satanás, em forma de anjo, é
enviado por Javé a Balaão, que tinha se desviado do caminho que Deus lhe tinha indicado. O
anjo é visto pela jumenta, mas não por Balaão. A jumenta tem a passagem barrada pelo anjo e
Balaão, que não vê o anjo, espanca a jumenta. Na terceira vez que a jumenta vê o anjo, se
deixou cair debaixo de Balaão, que a espancou de novo. Mas Javé abriu a boca da jumenta e
ela disse a Balaão, conforme o registro em Número:
Então, Balaão levantou-se pela manhã, albardou a sua jumenta e partiu com
os príncipes de Moabe. Acendeu a ira de Deus, porque ele se foi, e o Anjo do
Senhor (Satan) pôs-se-lhe no caminho por adversário. Ora Balaão ia
caminhandom montado na sua jumenta, e dois de seus servos, com ele. Viu,
pois, a jumenta o Anjo do Senhor parado no caminho, com a sua espada
desembainhada na mão, pelo que se desviou a jumenta do caminho, indo
pelo campo, então Balaão espancou a jumenta para faze-la voltar ao
caminho. Mas o Anjo do Senhor pôs-se numa vereda entre as vinhas,
havendo muro de um e outro lado. Vendo pois a jumenta o Anjo do Senhor,
coseu-se contra o muro e comprimiu contra este o pé de Balaão, por isso,
tornou a espanca-la. Então o Anjo do Senhor passou mais adiante e pôs-se
num lugar estreito, onde não havia caminho ara se desviar nem para a direita
e nem para a esquerda. Vendo pois a jumenta o Anjo do Senhor, deixou-se
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cair debaixo de Balaão. Por isso, acendeu-se a ira de Balaão e ele espancou a
jumenta com a vara. Então o Senhor fez falar a jumenta que disse a Balaão:
- que te fiz eu para me teres espancado por três vezes?’ Balaão respondeu:
Disse à jumenta: - É porque zombaste de mim! Se eu te tivesse uma espada
na mão te haveria matado. Disse a jumenta a Balaão: - Não sou eu a tua
jumenta que te serve de montaria toda a vida e até o dia de hoje? Tenho o
costume de agir assim contigo? Respondeu ele: - Não. Então o Senhor abriu
os olhos de Balaão e ele viu o Anjo do Senhor, que estava no caminho com a
espada desembainhada na mão, pelo que inclinou a cabeça e se prostrou com
o rosto em terra. (Nm 22, 21-31).
Finalmente, Deus abriu os olhos de Balaão que viu o anjo de Javé parado na estrada
com a espada na mão, e se prostrou com a face em terra. O Anjo do Senhor/Satanás o
repreendeu:
[...] porque espancaste assim a tua jumenta, por três vezes? Sou eu que vim
barrar-te a passagem, pois com a minha presença o caminho não pode
prosseguir. A jumenta me viu e, devido à minha presença, ela se desviou três
vezes. Foi bom para ti que ela se desviasse, pois senão já te haveria matado.
A ela, contudo, teria deixado com vida. (Nm 22, 32-33).
O Satanás aqui é enviado pelo Senhor para proteger de um mal maior, portanto, Satanás
é o protetor de Balaão! Ele próprio reconhece perante Satanás que pecou. E o próprio Satanás
quem determina o que ele deve falar em relação ao povo de Israel.
A imagem no livro de Jó
O livro foi escrito por volta de 550 a.C.; relata sobre Satanás que é também um anjo da
corte celeste. Ele é um ben-elohim que significa filho de Deus. O termo pode ser traduzido
com “um dos seres divino”. Satanás, aqui exerce o papel de antagonista, querendo testar a
fidelidade e a justiça de Jó, ele é autorizado por Deus a ferir Jó, com desgraças, conforme
atesta o texto registrado em Jó nos capítulos 1-2. No dia marcado para a audiência, veja que o
modelo é de monarca que em certos dias recebe seus servidores, os filhos de Deus [anjos] se
apresentam a Deus. Entre eles está também Satanás.
E Javé lhe pergunta:
- De onde vens?
E Satanás lhe respondeu:
- Venho de dar uma volta pela terra, andando a esmo. (Jó 1.6-7).
Neste ponto, o redator explora a similaridade entre o som das palavras hebraicas satan e
shût que significa “rodear”, sugerindo que o papel especial de Satanás, na corte celestial, é o
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de uma espécie de um agente ambulante de espionagem, tais como aqueles que muitos judeus
da época teriam conhecido – e detestado – como membros do refinado sistema de polícia
secreta e espiões do Rei da Pérsia. Tido como ‘o olho do rei’ ou ‘o ouvido do rei’. Esses
agentes vagueavam pelo império à procura de sinais de deslealdade entre o povo.
Satanás, portanto, desafia Deus a pôr à prova Jó, para medir a sua fidelidade. O que se
segue é de uma dramaticidade única, e nos faz lembrar a triste situação dos judeus nas guerras
do império persa: Jó perde de uma só vez filhos e filhas, bois, mulas, ovelhas, pastores,
camelos e todas as suas propriedades e riquezas, mas sua fé permanece íntegra e inabalável.
Por fim, Satanás feriu Jó “[...] com chagas malignas desde a planta dos pés até o cume da
cabeça” (Jó 2,7), mas ele suporta a prova e Satanás se retira dele.
Satanás aparece, neste texto, como uma figura que prejudica a pessoa humana. Igual a
um anjo da morte, mas ele continua a ser um anjo, membro da corte celeste.
A idéia no Salmo 109
O lamento do Salmo 109 é bem parecido com o relato de Jó que é uma imprecação
contra os inimigos típica do pós-exílico. A experiência que deu origem a este conto é
dramática: acusação, ódio, morte, fome, destruição, dívidas. Nessa situação, o fiel apela para
Deus e sua justiça, para que se faça justiça e seja condenado o inimigo: “Designa um ímpio
contra ele, que um acusador [Satanás] se poste a sua direita! saia condenado do julgamento, e
sua prece seja tida por pecado.” (Sl 109, 6-7). Neste texto, Satanás aparece na corte divina
com o papel de acusador dos malvados.
A idéia no livro das Crônicas
Contemporâneo de Jó é o livro das Crônicas. O livro relata um episódio estranho que
aconteceu com o rei Davi que teria introduzido um censo para tributar o povo. Essa iniciativa
de Davi causou conflitos, resistências e oposição do povo, manifestada pela boca do
comandante Joabe: “Que Javé multiplique por cem o número de seu povo! Senhor meu rei,
acaso não são todos eles servos do meu senhor? Por que, então, meu senhor faz esta pesquisa?
Por que ele quer ser causa de pecado para Israel?” (1Cr. 21,3). E o texto prossegue, afirmando
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que: “[...] tanto havia repugnado a Joabe a ordem do rei, que ele não tinha recenseado nem
Levi nem Benjamim.” (1Cr.21,6).
Por que Davi, considerando um rei justo e fiel a Javé, faria isso? para o cronista, que
não quer atingir diretamente a pessoa do rei, trata-se sim, de um ato mau e pecaminoso do rei,
mas que ele atribui a um misterioso adversário que, infiltrado na casa real, teria levado Davi
ao pecado: “Satanás levantou-se contra Israel e induziu Davi a fazer o recenseamento de
Israel.” (1Cr 21,1)2
Então, o mal e o pecado começam a ser atribuídos a Satanás. Infelizmente, o pecado de
Davi trouxe a ira divina: Javé mandou o anjo vingador e setenta mil homens de Israel
pereceram de peste. Nesse caso, Satanás aparece para explicar a dissensão entre o povo, a
divisão e a destruição provocados pelo pecado de Davi.
Em Zacarias, 3,1-3 que é também um escrito do século VI, encontramos, na visão do
profeta, um quadro típico de Satanás como acusador, contraposto a Deus. O papel de Satanás
começa a mudar, de agente e mensageiro de Deus evidenciado nos textos anteriores,
transforma-se em adversário de Deus. O Adversário humano vai se transformando em inimigo
de Deus. O mal transcende o humano, para se propor como uma entidade autônoma,
contraposta a Deus.
Assim, notamos uma mudança no conceito do mal, na época pós-exílica. O contato com
os grandes impérios mesopotâmicos, a organização piramidal de sua corte, sua religião
cósmico-astral, seus mitos, etc., impressionaram bastante os olhos dos judeus que para lá
foram deportados. Deus é imaginado dentro de um panteão em companhia de muitos seres
divinos e jogado sempre para cima, para o céu, longe da humanidade. E, quanto mais distante,
mais poderoso. O ser humano torna-se pequeno diante de tanta magnitude, não é mais livre,
responsável de seus atos, mas dependente de uma lei de seres superiores. Tudo está
determinado – e também o mal – personificado num ser divino – Satanás – que desenvolve
papel de acusador e espião das pessoas, chegando a induzi-los ao pecado, até ser considerado
o adversário e o inimigo de Deus. Os destinos da humanidade sempre mais dependem do céu.
DEUS X SATANÁS: DOIS REINOS EM CONFRONTO
A época da dominação grega [a partir de 323 a.C.] se caracteriza pela forte pressão
cultural, cujo objetivo era a globalização social e econômica, “formar um só povo” segundo o
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que se registra no texto de 1Mac 1,41, que seria através da imposição dos mesmos costumes.
Em Judá, o ápice deste projeto se deu com Antíoco IV Epifanes, que no ano de 168 a.C.
impôs à força, costumes pagãos; na Judéia e em Jerusalém, profanou o templo e obrigou o
povo aos sacrifícios pagãos. Ele era apoiado por um grupo de judeus, em especial entre as
classes altas, que favoreciam a assimilação, visando a participação dos privilégios da
sociedade helenista. Mas a maioria do povo, tanto das cidades como do campo, comerciantes,
lavradores, artesãos, não se conformaram com isso e deram origem à revolta armada, chefiada
pela família dos Macabeus, conseguindo expulsar os detestados estrangeiros. A partir deste
momento, a sociedade judaica fragmentou-se; brigas e intrigas pelo poder, pelo exercício do
sacerdócio e pela interpretação da lei estão na origem do surgimento das diferentes facções e
grupos: fariseus, asmoneus, saduceus, essênios, etc. Nesta conjuntura, extremamente
conflitiva, interpretou-se a realidade como uma grande batalha cósmica, onde estavam
contrapostas, de um lado as forças de Deus com seus anjos [a comunidade judaica que
permaneceu fiel]; e do outro, Satanás com seus exércitos [os estrangeiros helenistas e seus
aliados judeus]. A traição dos judeus que passaram para o lado dos gregos, provavelmente
está na origem do mito dos anjos decaídos. O primeiro Livro de Enoque, um apócrifo deste
período, conta que 200 anjos “vigilantes”, chefiados por Semihazah e nomeados por Deus
para supervisionar o universo, decaíram do céu, para casar com mulheres humanas. Esta união
produziu uma raça de bastardos, os gigantes [nephilim = os decaídos] dos quais surgiram os
espíritos demoníacos. A mesma história está relatada em Gênesis capítulo 6, texto que é
semelhante a 1Enoque 6-7. A caída dos anjos deu origem a todos os males da terra:
O anjo Azazel foi quem ensinou aos homens a confecção de espadas, facas, escudos e
armaduras, abrindo os seus olhos para os metais e para a maneira de trabalhá-los. Vieram
depois os braceletes, os adornos diversos, o uso de cosméticos, o embelezamento das
pálpebras, toda sorte de pedras preciosas e a arte das tintas. E, assim, propagava-se uma
grande impiedade; eles promoviam a prostituição, conduziam aos excessos e eram corruptos
em todos os sentidos. De acordo com 1Enoque 8: Semjaza, ensinava os esconjuros e as
porções de feitiços; Armaros, a disposição dos esconjuros; Barkijal, a astrologia; Kokabel a
ciência das constelações; Ezekeel, a observação das nuvens; Arakiel, os sinais da terra;
Samsiel, os sinais do sol; Siriel, as fases da lua.
Está clara, nesses textos, a influência e a interferência da mitologia grega, onde os
deuses e humanos se entrelaçavam em brigas, competições, rivalidades, etc., e da astronomia
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persa na cultura e religião judaica, interpretada e condenada pelos judeus tradicionais como
obras de Satanás. Segundo Pagels (1996, p. 39), o contexto histórico mais propício a esta
mistura cultural foram os acontecimentos do tempo dos Macabeus, quando os governantes
gregos se declaravam descendentes dos deuses – da união de um deus com mulheres humanas
– e as classes altas dos judeus – talvez os sacerdotes considerados filhos de Deus - se
deixaram corromper e foram atraídos pela luxúria, contraindo casamentos impuros com
mulheres estrangeiras.
A figura de Satanás, personificada, vem adquirindo sempre mais importância, e
multiplicam-se as versões sobre sua origem. Além da que o vê originado pela união dos anjos
com as filhas dos homens, outras versão aponta para um anjo expulso e rebaixado, Lúcifer
[=portador de luz]:
Como caíste do céu, ó estrala d’alva, filho da aurora! Como foste atirado à
terra, vencedor das nações! E, no entanto, dizias no teu coração: Hei de subir
até o céu, acima das estrelas de Deus colocarei o meu trono [...] Subirei
acima das nuvens [...] E, contudo, foste precipitado ao Xeol, nas profundezas
do abismo. (Is 14,12-15).
O nome da personagem interpelado Helel ben Sháhar, vem de uma raiz que significa
“ser, luminoso, brilhante”. Em árabe, o hilal é a lua nova. O autor do poema refere-se com
certeza a uma tradição mitológica nos textos de Ugarit o deus Attar (Venus?), concorrente de
Baal, sofreu uma queda semelhante à de Helel.
Segundo Luther Link (1988, p. 28), o mito dos seres celestes decaídos, parece ter sido
amplamente conhecido no mundo mediterrâneo antigo, e a literatura judeu-helenística lhe
dará novos desenvolvimentos. Lucifer é, portanto, a estrela da manhã, o planeta Venus, que
aparece antes do alvorecer.
JESUS E SATANÁS: O ENFRENTAMENTO ESCATOLÓGICO
Na época de Jesus, o conflito entre Deus e Satanás torna-se mais acirrado, colocando
frente a frente anjos e justos versus espíritos maus e injustos. A visão da história é sempre
mais maniqueísta: Satanás pode ser adorado como um deus e as pessoas precisam optar, pois
o que vale é a própria conduta moral, pela qual se faz parte dos filhos da luz ou filhos das
trevas.
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O grupo sectário dos essênios, que surgiu e cresceu entre o século II a.C.
[desapareceram com a destruição de Jerusalém em 70 d.C.], mediante a ocupação estrangeira
da Palestina e a acomodação da maioria dos judeus à ocupação – como prova de que as forças
do mal haviam assumido o domínio do mundo, sob forma de Satanás. O príncipe das travas –
infiltrando-se e dominando o próprio povo de Deus, transformando quase todos em aliados do
diabo.
Para os essênios, Deus criou, no começo, dois espíritos, dois seres angelicais: um de luz,
outro das trevas. Um para amar, outro para odiar. Para eles, o mundo tinha se corrompido, por
isso, eles propunham uma nova congregação do povo: quem se candidatasse devia entrar na
comunidade que eles construíram no deserto e observar uma rígida regra de vida comunitária,
na espera da volta iminente do Messias, que iria restabelecer o poder e o reino de Deus. Nos
rolos do Mar Morto, a Regra da Comunidade (1QS), o Documento de Damasco (CD) e a
Regra da Congregação (1QM) têm como objetivo regulamentar a vida dessa comunidade
escatológica até a chegada do Messias.
Flávio Josefo, historiador galileu que relatou os acontecimentos da Grande Guerra
Judaica, testemunha o surgimento entre 04 a.C. e 70 d.C. de pelo menos cinco casos de
Messias, além de Jesus e João Batista: Judas, o Galileu em Séforis; Simão, escravo de
Herodes, na Peréia; Atronges, o pastor da Judéia; Manaém, neto de Judas, o Galileu; Simão
bar Gioras. Além disso, houve dez casos de profetas escatológicos, convocando o povo e
anunciando a próxima intervenção de Deus na história, repetindo as grandes gestas do êxodo.
Sempre Josefo afirma ter sido o clima anterior à guerra extremamente explosivo e marcado
por levantes populares. O clima de guerra estava no ar. Em Qumran, achou-se até uma Regra
de Guerra, onde se diz:
E no dia em que caírem os Kittin haverá um combate e destruição feroz
diante do Deus de Israel, pois será o dia fixado por ele desde antigamente
para a guerra de extermínio contra os filhos das trevas. Neste (dia) se
enfrentarão para grande destruição a congregação dos deuses e a assembléia
dos homens. Os filhos da luz e o lote das trevas guerrearão juntos pelo poder
de Deus. (1QM I,9-11).
E seguem, no texto, as instruções e as estratégias de como deve ser conduzida a batalha.
A idéia entre os Evangelhos
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Quem mais fala em Satanás é Marcos, provavelmente escrito bem próximo da grande
guerra judaica [70 d.C.]. Para o Evangelho, Jesus vive no confronto direto com Satanás,
simbolizado pela lei judaica (Mc 1,21-28), pelas legiões romanas da Decápole (Mc 5,1-20),
pelo preconceito (Mc 7,24-30), pela doença (Mc 9,14-29) ou pelo templo (Mc 11,15-18).
Jesus limpa o templo dominado por Satanás, para que o anúncio do reino chegue. Em
cada lugar por onde ela vai, Jesus começa primeiro com um exorcismo e só depois anuncia o
Evangelho de Deus, na sinagoga de Cafarnaum; na Galiléia inicia seu ministério expulsando
um demônio; chegando na Decápole, expulsa 2.000 espíritos impuros; indo para a Fenícia,
expulsa o demônio da filha da mulher siro-fenícia; chegando em Jerusalém, expulsa os
vendedores do templo como a verdadeiros demônios. Mateus e Lucas escreveram cerca de 20
anos mais tarde, em contextos diferentes: pelo que se refere a Satanás, embora a visão tenha
mudado bastante, eles dependem muito do relato de Marcos.
João não fala diretamente de exorcismos de Jesus, mas identifica “o mundo” e também
os judeus como os opositores de Jesus. O clima apocalíptico típico do começo do Século I
ainda está presente, embora se expresse em imagens diferentes.
Os termos no Novo Testamento para Satanás
No Novo Testamento, vários nomes são usados para identificar o fenômeno do mal que
ameaça o homem, cada qual expressando um conceito diferente: o termo Daimóm aparece 77
vezes no N. T. A etimologia incerta: pode vir da raiz “da”, que significa: atirar, distribuir,
espalhar conhecimento, sendo a partir da época persa, uma divindade menor no céu, com um
caráter divino, maravilhoso, extraordinário. Mas pode vir também do hebraico shed, que é a
raiz do verbo shud que significa fazer violência, dominar, possuir.
O termo Diabo tem, em sua origem, o verbo grego diabollo, cujo significado é: jogar no
meio, ou atravessar o caminho, e metaforicamente, separar, dividir, fazer tropeçar e cair. Na
Septuaginta (LXX) este termo normalmente traduz o hebraico Satan, que, como vimos, é o
adversário.
O termo Beelzubul é um dos nomes próprios com o qual o príncipe dos demônios era
designado. Era um termo usado mais no sentido popular. Tinha um significado pejorativo e
provavelmente estava ligado à superstição. No Antigo Testamento, aparece como o deus de
Eqron (2Rs 1,2). O nome era interpretado ironicamente como o senhor das moscas. O termo
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também significava senhor da celeste morada, embora os judeus o chamassem deus do
esterco, modo de desprezar os sacrifícios pagãos. Este nome foi aplicado a Jesus pelos
fariseus em Mc 3, 23.
O Espírito Imundo é o termo que em grego significa Pneuma akatarton. Era bastante
usado por Marcos para definir o demônio, mas com conotações próprias e que aparecem
somente nos sinóticos. O espírito – pneuma - é vento, sopro, força ou princípio ativo que vem
do exterior do ser humano, se este aceita a sua influência ele age no seu interior. O adjetivo
akartaton é usado para definir o caráter do espírito. No verbo katháiro o significado é
purificar. O termo árthos, por exemplo, indica o pão de puro trigo. Com “a” primitivo na
frente, passa a indicar o contrário, isto é, o impuro tendo uma conotação de impureza
religiosa, mas do que de mal, de pecado.
CONCLUINDO
O que se conclui de tudo isso, é que, para a concepção hebraica, o bem e o mal, a luz e a
treva, a virtude e o pecado, Deus e Lúcifer são, afinal, espaços da mesma realidade. Eles
representem os opostos. É essa a imagem que podemos extrair dos textos da Bíblia Hebraica.
Ela vai definindo a idéia do mal, de acordo com suas diversas fases sociais e culturais,
misturando as imagens simbólicas que, para a sua sociedade, vai definindo aquilo que designa
como representante do mal e do bem; assim, numa época, o próprio Deus pode ter as duas
fases, já em outras épocas, essa imagem de Deus já não comporta tais idéias, e por isso, um
outro ser celeste já vai assumindo tais tipologias do que representa o Mal.
Pode ser que o Diabo fosse uma deidade popular entre camponeses designado por vários
nomes e que poderia ser benfazeja ou malfazeja. O Mal, portanto, na concepção popular,
estaria excluído de sua essência, pois, tal figuração do Diabo se mostra próxima de diversos
mitos pagãos muito vivos até os dias de hoje. Ainda estamos longe dos autos-de-fé como
espetáculos aparatosos, a cuja freqüentação ocorriam multidões, dispostas a ver como
triunfava a fé cristã diante do Mal.
NOTAS
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1
A teologia javista é uma das quatro bases sobre a teoria literária da formação do AT. São os
documentos ou fontes. O javista seria um documento produzido no sul no século X a.C.,
vem do ambiente de Judá. Trata-se da redação das tradições do povo de Israel na visão do
grupo monárquico davídico-salomônico.
2
Em 2Sm 24,1-17 está uma outra versão da mesma história, na qual o próprio Deus e não
satanás incita Davi a realizar o censo. Com certeza, trata-se de um texto mais antigo pelo
qual o mal ainda é atribuído a Javé.
REFERÊNCIAS
BÍBLIA. Português. Bíblia de Tradição Ecumênica (TEB). São Paulo: Loyola, 1994. Edição
Ecumênica.
BÍBLIA. Hebraico.1987. Biblia Hebraica Stuttgartensia. Stuttgart: Deutsche
Bibelgesellschaft, 1987.
CHARLESWORTH, James. The Old Testament Pseudigraha. New York: Garden City,
1983-85, v. 1-2.
COHN, Normam. Cosmos, caos e o mundo que virá: as origens das crenças no Apocalipse.
São Paulo: Cia das Letras, 1996.
DETWEILER, Robert; DOTY, William (Ed). The daemonic imagination: biblical text and
seculary story. Atlanta: Scholars Press, 1990.
ELIADE, Mircea. Imagens, símbolos: ensaios sobre o simbolismo mágico-religioso. São
Paulo, Martins Fontes, 1991.
HINKELAMMERT, Franz J. Sacrifícios humanos e sociedade ocidental: Lucifer e a Besta,
São Paulo: Paulus, 1995.
JOSEFO, Flávio. Antichitá giudaiche. Torino: UTET, 1998.
______. Guerra judaica. Cles (TN): Mondatori, 1991. v. 1-2.
LINK, Luther. O diabo: a máscara sem rosto. São Paulo: Cia das Letras, 1988.
PAGELS, Ealine. As origens de Satanás: um estudo sobre o poder que as forças irracionais
exercem na sociedade moderna. Rio de Janeiro: Ediouro, 1996.
SCHIAVO, Luigi. 2000 demônios na Decápole: Exegese, história, conflitos e interpretações
de Mc. 5,1-20. 1999. 275 f. il. Dissertação (Mestrado em Ciências da Religião)-Universidade
Metodista de São Paulo, São Bernardo do Campo, 1999.
Artigo recebido em 03/12/2002 e aceito para publicação em 15/06/2003.
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