propostas - Eventos UAlg - Universidade do Algarve
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Prémio Melhor Trabalho do Congresso Índice Candidatura 1 Vulnerabilidades ao stresse em profissionais de emergência médica pré-hospitalar pág. 4 Candidatura 2 Trauma na infância e saúde (física e mental) do adulto – Resultados de um estudo pág. 27 Candidatura 3 Saúde feminina: considerações do psicodiagnóstico interventivo na obesidade pág. 50 Candidatura 4 Vitimologia e psicologia da saúde pág. 72 Candidatura 5 pág. 87 Resiliência: análise das estratégias de coping por pacientes em tratamento radioterápico Candidatura 6 pág. 109 Vivência materna em gestante de Alto Risco por Diabetes Mellitus Pré-Gestacional: um estudo de caso Candidatura 7 pág. 131 Preocupação Materna Primária em gestantes de Alto Risco por Diabetes Mellitus Pré-gestacional Candidatura 8 pág. 151 Do corpo atento ao corpo que pára quieto: novas proposições para se pensar a (des)atenção na contemporaneidade Candidatura 9 pág. 167 A personalidade paterna como fator prognóstico no tratamento da tendência anti-social Candidatura 10 pág. 191 A influência da personalidade materna e paterna na etiologia da tendência anti-social infantil Candidatura 11 pág. 213 Impacto da depressão pós-parto no casal.Esboço de uma teoria empiricamente derivada Candidatura 12 Incidentes Críticos na Profissão de Inspector de Investigação Criminal da PJ pág. 229 Candidatura 13 Os Profissionais de Saúde frente a violência no idoso pág. 254 Candidatura 14 estudo sobre o atendimento à paciente vítima de violência sexual pág. 275 Candidatura 15 A morte na formação médica: implicações para humanização do cuidado pág. 287 Candidatura 16 pág. 308 O grupo de apoio psicológico entendido pelos familiares de pessoas com transtornos alimentares Candidatura 17 pág. 331 O grupo de apoio psicológico entendido pelos familiares de pessoas com transtornos alimentares Candidatura 18 Programa de Alimentação Saudável em Saúde Escolar PASSE pág. 355 Candidatura 19 A Entrevista Devolutiva Infantil: Utilização de Recursos na Áera da Transicionalidade pág. 370 2 Candidatura 20 pág. 391 Funcionamento defensivo em mulheres acometidas por câncer de mama: especificidades de pacientes em remissão e pacientes em recidiva Candidatura 21 A vivência da endometriose no contexto conjugal: um estudo de caso pág. 412 Candidatura 22 pág. 434 Apresentação do setor de triagem e atendimento infantil e familiar (staif) do centro de pesquisa e psicologia aplicada (usp): uma experiência em formação Candidatura 23 pág. 449 Cultura, Iniquidade Social e Género: Contributos Para um Programa de Educação Sexual Candidatura 24 Aferição portuguesa de uma escala de preocupações parentais: dados preliminaes pág. 477 Candidatura 25 Intervenção em Comportamentos de risco na Universidade pág. 495 Candidatura 26 LUA na Second life ou apoio psicológico virtual: resultados da fase experimental pág. 514 Candidatura 27 A Psicologia Positiva no contexto brasileiro: história, presente e perspectivas futuras pág. 529 Candidatura 28 pág. 552 Na saúde e na doença, felizes para sempre”: a satisfação conjugal na promoção do bem-estar psicológico, na perspectiva da Psicologia Positiva Candidatura 29 pág. 575 Qualidade de vida de adultos maduros e idosos brasileiros, com deficiências visuais e residentes em instituição de longa permanência 3 Candidatura 1 Autores: Hugo Amaro & Saul Neves de Jesus Título: Vulnerabilidade ao stresse em profissionais de emergência médica pré-hospitalar 4 “VULNERABILIDADE AO STRESSE EM PROFISSIONAIS DE EMERGÊNCIA MÉDICA PRÉHOSPITALAR” Hugo João Fernandes Amaro [email protected] U. Algarve Saul Neves de Jesus [email protected] U. Algarve RESUMO O stresse tem sido uma problemática amplamente estudada pela comunidade científica em geral nas mais diversas áreas do saber, em que os profissionais de saúde têm sido um grupo alvo preferencial desses mesmos estudos. Todavia, os estudos efectuados com os profissionais de emergência médica pré-hospitalar em Portugal são ainda extremamente reduzidos, embora a problemática se encontre mais desenvolvida em países como os EUA, Canadá e Japão. Neste sentido, pelas características próprias desta profissão interessa compreender de forma mais aprofundada em que medida se encontram estes profissionais vulneráveis ao stresse, sendo este o objectivo principal deste estudo. A amostra foi constituída por 161 profissionais de emergência médica distribuídos pelo território nacional dos quais 42,2% possuem a categoria profissional de TAE/TAS, 31,7% são Enfermeiros e 26,1% são médicos, tendo sido utilizada uma amostragem por clusters, seguida da técnica de amostragem aleatória. Os resultados indicam a existência de médias globais baixas de vulnerabilidade ao stresse. Todavia existem diferenças estatisticamente significativas entre a vulnerabilidade ao stresse e a categoria profissional, sendo os TAE/TAS aqueles que apresentam valores médios mais elevados, bem como relativamente à deprivação de afectos e rejeição, subjugação e condições 5 de vida adversas. No que diz respeito às alterações do sono, verificou-se a existência de diferenças estatisticamente significativas nas dimensões “Perfeccionismo e intolerância à frustração”, “Condições de vida adversas”, “Dramatização da existência”, “Subjugação”, e “Deprivação de afectos e rejeição”, assim como para a totalidade do instrumento de medida do stresse. Os sujeitos de estudo que não praticam exercício físico apresentam valores médios de vulnerabilidade ao stresse mais elevados. 1 - EMERGÊNCIA MÉDICA Desde os tempos primórdios que o Homem tem procurado prestar cuidados de saúde a vítimas dos mais variados tipos em situação de emergência. É difícil efectuar uma descrição precisa relativamente à evolução histórica da emergência pré-hospitalar na medida em que se acredita que em todas as civilizações ela tenha estado presente. Todavia os registos históricos de um sistema de emergência médica propriamente dito, remontam às grandes guerras e batalhas vividas na Europa, altura em que, embora ainda de uma forma arcaica e desorganizada, começavam já a surgir as primeiras tentativas de prestação de cuidados de saúde na área da emergência médica pré-hospitalar. Em Portugal, a assistência médica pré-hospitalar propriamente dita iniciou-se em 1965, altura em que foi criado em Lisboa um serviço de prestação de primeiros socorros a vítimas de acidentes na via pública. Este serviço era activado através de um número de socorro, o 115, que ligava directamente à PSP. A PSP era a entidade responsável pela triagem das chamadas e posterior encaminhamento dos meios de socorro para o local do sinistro. Os primórdios do socorro pré-hospitalar, baseava-se unicamente numa ambulância tripulada por elementos da PSP, sem formação específica na área da emergência médica e que tinham como principal intuito efectuar o transporte das vítimas até ao hospital mais próximo (Costa, 1990; Silva et al, 1987). 6 Cientes da necessidade urgente de melhorar a assistência pré-hospitalar, uma vez que esta se resumia basicamente à recolha e transporte das vítimas até à unidade hospitalar mais próxima e face ao facto da rede de cobertura de socorro ser ainda muito reduzida, decide o executivo criar em 1971 o SNA (Serviço Nacional de Ambulâncias), que tinha como principal objectivo “assegurar a orientação, a coordenação e a eficiência das actividades respeitantes à prestação de primeiros socorros a sinistrados e doentes e ao respectivo transporte” (INEM, 2000, 20). A rede de emergência tinha de facto conhecido avanços significativos, tinham sido implementados meios técnicos, materiais e tecnológicos avançados, assim como meios humanos cada vez mais capacitados e com formação específica e adequada para a tarefa a desenvolver. Contudo, a elevada sinistralidade existente, consciencializou as autoridades para a necessidade emergente de desenvolver e capacitar a rede de emergência médica com meios mais sofisticados que permitissem dar uma resposta mais célere às ocorrências e sobretudo, facilitar a articulação entre as diferentes entidades envolvidas na rede. Desta forma, em 1980 foi nomeada uma comissão designada por Comissão de Estudos de Emergência Médica, cujo objectivo era apresentar uma proposta devidamente adaptada à realidade portuguesa quer a nível de sinistralidade, quer a nível de recursos humanos, materiais e financeiros, no sentido de proceder à reformulação do SNA. Do estudo efectuado e do relatório apresentado pela Comissão Interministerial de Estudos de Emergência Médica, bem como através das conclusões retiradas das Jornadas de Emergência Médica realizadas em Lisboa em 1980, propõe-se a criação do SIEM (Sistema Integrado de Emergência Médica) (INEM, 2000; Costa, 1990; Silva et al., 1987). 2 – STRESSE O conceito de stresse tem sido alvo de um processo evolutivo complexo e multidimensional em que diversos investigadores, no domínio da sua especialidade, têm procurado compreender de forma mais profunda os fenómenos intrínsecos a este conceito. 7 Analisando a origem do vocábulo stresse, verificamos que o mesmo tem a sua origem no verbo latino stringo, stringere, strinxi, strictum, que significa literalmente apertar, comprimir, restringir. Ao investigar a resistência aos elementos naturais de algumas estruturas construídas pelo Homem, pontes e edifícios, Robert Hooke evidenciou uma questão de ordem prática de grande importância. Referia o investigador que as estruturas deveriam ser edificadas, tendo em conta três aspectos fundamentais, a carga (load), a pressão (stress) e a tensão (strain). A carga é relativa às forças externas que actuam sobre a estrutura, tais como o vento e o peso. A pressão ou stress é relativa à força que a carga exerce sobre o ponto onde incide na estrutura, e, por último, a tensão, representa a resposta da estrutura, ou seja, o processo deformativo verificado após a acção conjunta da carga e do stress. Em termos práticos, se o material for maleável, a pressão exercida fará com que ele se dobre, porém, se o material em causa for rígido ele tenderá a quebrar-se (Lazarus, 1999; 1993). O fenómeno exposto anteriormente e descrito por Robert Hooke no séc. XVII, traduz a aplicabilidade mais comum do conceito de stresse e que se enquadra no mundo da física, servindo o conceito para traduzir dificuldade, exigência, adversidade, aflição. A passagem do conceito de stresse da física para a biologia foi feita de uma forma progressiva, na medida em que foram desenvolvidas e testadas teorias inerentes ao conceito de stresse, embora numa vertente predominantemente biológica, procurando compreender os possíveis efeitos do conceito no ser humano. Os estudos efectuados pelo fisiologista francês Claude Bernard no século XIX que correlacionam os conceitos propostos por Robert Hooke no século XVII inerentes ao mundo da física, com as pressões exercidas sobre a mente e órgãos humanos. Refere-se Bernard à importância de preservar e manter o equilíbrio interno do indivíduo, face aos acontecimentos do dia-a-dia. Os construtos referidos pelo investigador relativamente à fisiologia do stresse, relacionam os conceitos de carga, stresse e tensão com o organismo humano, assumindo que 8 num processo homólogo à física, o mesmo acontece no ser humano. Nos estudos efectuados com organismos vivos unicelulares, e, posteriormente, com mamíferos, Bernard verificou que a manutenção da vida era directamente dependente de respostas internas que contribuíssem para manter o ambiente interno do organismo constante, em relação às permanentes alterações do ambiente externo. Hans Selye era um jovem estudante de medicina na Universidade de Praga nos anos 20, quando após ter observado alguns indivíduos vítimas de diversas doenças infecciosas, verificou que todos apresentavam uma sintomatologia muito semelhante entre si, embora sem sinais específicos. Seguindo o trabalho efectuado por Cannon, Selye (1935) interessou-se pelas respostas adaptativas do organismo aos diferentes estímulos externos. Este investigador focalizou o seu interesse investigativo na resposta dada pelos animais às mudanças ocorridas na sua homeostasia, incluindo quando estes eram sujeitos a situações extremas tais como calor, frio e substâncias tóxicas. Selye verificou que ao sujeitar os animais a estes estímulos externos, o seu organismo reagia procurando adaptar-se às alterações sofridas, chegando mesmo alguns órgãos a sofreram alterações significativas principalmente no que concerne ao seu sistema imunitário. Por esta razão, Selye (1979) definiu o stresse como a resposta não específica do corpo a qualquer exigência, propondo mais tarde o Síndrome Geral de Adaptação (Vaz Serra, 1999). Posteriormente nos anos 70, os estudos efectuados por Lazarus e colaboradores relativamente ao fenómeno do stresse despertaram a comunidade científica para a importância que a resposta individual ao stresse assume. Verificando os investigadores que o stresse era interpretado como sendo um conceito que pretendia explicar um conjunto de fenómenos relativos ao ser vivo (quer humano quer animal), definiram que o stresse não seria uma variável mas sim um conjunto de variáveis e processos complexos que interagem entre si, em que o indivíduo necessita de efectuar uma avaliação dos recursos disponíveis e do significado 9 do meio, de forma a poder lidar com os acontecimentos stressantes com que se depara no seu quotidiano (Ogden, 2004; Paul & Fonseca, 2001). 3 - STRESSE NOS PROFISSIONAIS DE EMERGÊNCIA MÉDICA PRÉ-HOSPITALAR As profissões relacionadas com a saúde foram durante alguns anos esquecidas ou desvalorizadas relativamente à problemática do stresse, muito devido a estereótipos existentes na altura, em que os profissionais de saúde por serem o grupo profissional cuja competência seria tratar/curar as diferentes patologias, estariam por si só imunes a esta problemática. Todavia, a realidade actual da investigação científica revela-nos que os profissionais de saúde em geral, e os profissionais de emergência médica pré-hospitalar em particular são um grupo privilegiado no que diz respeito à investigação científica relativa ao stresse e factores associados. A difícil realidade vivida por estes profissionais, que se traduz em consequências físicas, psicológicas e organizacionais dos fenómenos de stresse, e, em casos extremos, de burnout e turnover, despertaram a atenção da comunidade científica para estes sujeitos de estudo em particular. No caso particular dos profissionais de emergência médica, as características inerentes a este tipo de profissionais, faz com que se tratem de indivíduos sujeitos a níveis de stresse mais elevados comparativamente a outros profissionais de saúde, e, à população em geral. Alguns investigadores que têm utilizado estes profissionais de saúde como sujeitos de estudo referem o stresse ocupacional como fenómeno inerente à profissão, em que o trabalho sob pressão de tempo, as frequentes decisões que envolvem a vida ou a morte, os problemas com os colegas e a necessidade de elevado conhecimento técnico e cientifico são factores de stresse a considerar (Christie, 1997; Linton et al.; 1993). Na tentativa de sistematizar os factores de stresse mais frequentes para os profissionais de emergência médica pré-hospitalar, Bledsoe et al. (1997) referem que aspectos como a 10 multiplicidade de responsabilidades (a necessidade de prestar socorro às vitimas, lidar com os agentes da autoridade, bombeiros e família), as tarefas inacabadas, trabalhar sob permanente pressão, a ausência de deslocações consideradas como sendo profissionalmente estimulantes, o elevado esforço físico e emocional a que estão sujeitos, a falta de reconhecimento profissional e o facto de terem de lidar frequentemente com a morte e sofrimento são primordiais na compreensão da problemática em estudo neste tipo de profissionais de saúde. A este nível O’Keefe et al. (1998) salientam que os profissionais de emergência médica préhospitalar lidam diariamente com situações altamente stressantes, entre as quais se salientam acidentes com múltiplas vítimas, saídas envolvendo crianças nas mais variadas vertentes, vítimas politraumatizadas graves, e, a morte de um colega de trabalho. Este facto foi posteriormente confirmado por Beaton (1998) que efectuou um estudo tendo como população alvo 173 paramédicos e bombeiros, em que o investigador verificou que os factores de stresse referidos com maior incidência pelos sujeitos de estudo eram a existência de catástrofes, vítimas politraumatizadas, vítimas críticas, sofrerem acidentes pessoais e terem de contactar diariamente com a morte e sofrimento. Um pertinente estudo efectuado a nível nacional por Cydulka et al. (1997) com profissionais de emergência pré-hospitalar norte americanos, perfazendo um total de 3000 sujeitos de estudo, indica-nos que os níveis de stresse variam conforme o género, o estado civil, idade, formação profissional, salário e tempo de serviço na emergência pré-hospitalar, acrescentando os investigadores que os níveis de stresse encontrados nos sujeitos de estudo foram muito elevados. Mizuno et al. (2005) e Naoki (2005) procuraram compreender de forma mais aprofundada os efeitos do stresse nos profissionais de emergência médica pré-hospitalar japoneses, tendo para isso utilizado uma amostra constituída por 1551 sujeitos de estudo. Relativamente a efeitos físicos foram referidos como frequentes cefaleias, lombalgias, dores no pescoço e ombros, enquanto que a nível psicológico, insónias e exaustão foram os aspectos referidos 11 com maior frequência. Ulrika (2005) utilizando uma amostra constituída por 1187 profissionais de emergência médica pré-hospitalar suecos apresenta resultados que confirmam os encontrados anteriormente, em que cefaleias, cervicalgias, lombalgias e epigastralgias eram queixas físicas frequentes entre o pessoal do género feminino, enquanto que os profissionais de emergência médica pré-hospitalar do género masculino referiam com maior frequência lombalgias, assim como limitações profissionais directamente resultantes do problema físico anteriormente referido. Em termos de sintomas psicológicos, as alterações do sono foram referidas com maior frequência não havendo todavia diferenças significativas entre géneros. Oliveira (2003) desenvolveu um estudo que pretendia determinar a influência de alguns factores de stresse em profissionais da VMER em Portugal, utilizando uma amostra constituída por 151 profissionais pertencentes ao CODU de Porto, Coimbra e Lisboa, perfazendo um total de 41.4% da população, com uma média de idades de 33.15 anos, em que 53% eram médicos, 34.4% enfermeiros e 12.6% TAE. De acordo com o estudo efectuado, existe uma correlação significativa entre percepção de stresse e a capacidade de resolução de problemas, sendo que os profissionais com maior capacidade para resolução de problemas apresentam uma percepção de stresse significativamente inferior. Da correlação efectuada entre tempo semanal de exercício na VMER e percepção de stresse, refere a investigadora a existência de uma correlação negativa, pelo que os profissionais que trabalham menos horas por semana apresentam maior percepção de stresse. Porém, salienta-se a existência de uma correlação negativa entre o facto de trabalhar noutro serviço que não a VMER e a sua percepção de stresse, referindo a investigadora que “os profissionais que trabalham mais tempo por semana em outro serviço além da VMER, tendem a evidenciar menor percepção de situações indutoras de stress” (11). 12 2. METODOLOGIA 2.1. OBJECTIVO O estudo que aqui se apresenta possui como objectivo central analisar de forma mais aprofundada a vulnerabilidade ao stresse dos profissionais de emergência médica préhospitalar. 2.2. AMOSTRA E PROCEDIMENTO A nossa amostra foi extraída de uma população constituída por profissionais de emergência médica pré-hospitalar com a categoria profissional TAS/TAE pertencentes aos 16 quartéis de bombeiros do Algarve e por profissionais de emergência pré-hospitalar com a categoria profissional de enfermeiro e médico, pertencentes aos 39 postos da VMER a nível nacional. Como método de amostragem, foi utilizada a técnica de amostragem por clusters, particularmente útil quando o Universo é grande e os casos se encontram agrupados em unidades ou clusters (Hill & Hill, 2002). Nesta medida, e, no que diz respeito aos TAS/TAE, começámos por determinada a fracção de amostragem, ou seja qual a percentagem de quartéis de bombeiros a seleccionar para o nosso estudo, tendo sido utilizada uma fracção de amostragem equivalente a 50% dos quartéis de bombeiros existentes no Algarve. Para seleccionar os quartéis de bombeiros onde iria ser aplicado o instrumento de colheita de dados, foi utilizada a técnica de amostragem aleatória, tendo sido seleccionados os quartéis de Tavira, Olhão, Faro, Loulé, Albufeira, Lagoa, Portimão, Monchique e Lagos, o que corresponde a 56% dos quartéis de bombeiros municipais existentes no Algarve. O instrumento de colheita de dados foi posteriormente aplicado a todos 13 os elementos com a categoria de TAS/TAE que se encontravam vinculados aos respectivos quartéis de bombeiros seleccionados. No que concerne às equipas da VMER, procedeu-se de forma idêntica à utilizada nos quartéis de bombeiros, em que foi seleccionada uma percentagem amostral de 20% das bases de VMER distribuídas pelo território nacional. Neste sentido, foi igualmente utilizada a técnica de amostragem aleatória, tendo sido seleccionados os postos da VMER pertencentes ao Hospital Dr. Sousa Martins na Guarda, Hospital Distrital de Santarém, EPE, Hospital Dr. José Maria Grande, EPE em Portalegre, Hospital de Santa Maria, EPE em Lisboa, Hospital Curry Cabral em Lisboa, Centro Hospitalar do Baixo Alentejo, EPE em Beja, Hospital Central de Faro e o Centro Hospitalar do Barlavento Algarvio, EPE em Portimão, perfazendo o total de 21% das bases de VMER existentes no território nacional. O instrumento de colheita de dados foi posteriormente aplicado a todos os elementos que desempenhavam funções nas bases de VMER referidas anteriormente e que possuíam a categoria profissional de enfermeiro e de médico. Dos 161 sujeitos de estudo pertencentes à nossa amostra, 76,4% (N= 123) são do género masculino, enquanto que 23,6% (N= 38) são do género feminino. Possuem idades compreendidas entre os 19 e os 69 anos de idade, com uma média de 34,39 anos. A grande maioria, 92,5% (N= 149), dos sujeitos de estudo é de nacionalidade portuguesa, 4,3% (N= 7) são de nacionalidade espanhola, enquanto que somente 3,1% (N= 5) possui outra nacionalidade. No que diz respeito ao estado civil, 23,6% (N= 38) dos sujeitos de estudo são solteiros, enquanto que a grande maioria 65,8% (N= 106) são casados/união de facto, em que 10,6% (N= 17) referem ser divorciados. No que concerne à categoria profissional, 42,2% (N= 68) dos sujeitos de estudo possuem a categoria profissional de TAS/TAE, 31,7% (N= 51) são enfermeiros e 26,1% (N= 42) são médicos. Quanto ao tempo de serviço na emergência médica pré-hospitalar, encontra-se compreendido entre os 1 e os 25 anos, tendo sido obtida uma média de 6,45 anos. 14 2.3. INSTRUMENTOS DE PESQUISA O instrumento de pesquisa utilizado neste estudo foi um questionário composto por duas partes, em que a primeira parte é constituída por oito questões fechadas de natureza sociodemográfica que pretendiam avaliar o género, nacionalidade, categoria profissional, estado civil, tempo de serviço na emergência médica pré-hospitalar, as alterações do sono, o facto de ser fumador e se pratica exercício físico, e, por uma questão aberta que pretendia avaliar a idade dos participantes no estudo. A segunda parte do questionário é constituído por uma escala de avaliação da vulnerabilidade ao stresse (23 QVS) elaborada por Vaz Serra (2000). Trata-se de uma escala do tipo Likert constituída por 23 itens com cinco opções de resposta, que variam entre 0 (concordo em absoluto) e 5 (Discordo em absoluto). Para a elaboração da escala de avaliação da vulnerabilidade ao stresse, Vaz Serra (2000a) efectuou um estudo, em que utilizou uma amostra constituída por 368 indivíduos da população em geral, em que a escala inicial era constituída por 64 itens, tendo ficado posteriormente reduzida a 23, tendo sido excluídos 41 itens. O autor continua referindo que para definir as sub-escalas constituintes do instrumento de avaliação, procedeu a uma análise factorial de componentes principais, seguida por uma rotação ortogonal do tipo varimax, tendo obtido uma solução de 7 factores que explicam 57,5% da variância total, a que o autor denominou de “perfeccionismo e intolerância à frustração” (10,7% da variância), “inibição e dependência funcional” (10,5% da variância), “carência de apoio social” (7,6% da variância), “condições de vida adversas” (7,6% da variância), “dramatização da existência” (7,2% da variância), “subjugação” (7,2% da variância), e, por último a “deprivação de afecto e rejeição” (6,6% da variância). No que concerne aos indivíduos vulneráveis ou não vulneráveis ao stresse, Vaz Serra (2000) acrescenta que “os indivíduos que ao preencherem uma escala 23 QVS obtenham um valor 15 igual ou superior a 43 devem ser considerados vulneráveis ao stresse” (303). Nesta linha de pensamento, sempre que a utilização do instrumento de avaliação referido anteriomente for efectuado em condições de prevalência de doença semelhantes àquelas descritas pelo autor no estudo original, pode-se esperar que os indivíduos que obtenham uma pontuação superior a 43 no instrumento de avaliação tenham 40,1% de hipóteses de ser doentes, enquanto que aqueles que obtenham um resultado inferior a 43 possuem 85,3% de hipóteses de efectivamente não serem doentes. 2.4. APRESENTAÇÃO DOS RESULTADOS Para se proceder à análise estatística dos dados recolhidos e mais concretamente no que se refere às técnicas inerentes à estatística descritiva, foram calculados os valores médios, os valores mínimos e máximos, bem como o desvio padrão, quer do instrumento de avaliação da vulnerabilidade ao stresse, quer de cada dimensão que o constitui, enquanto que no que se refere à análise estatística inferencial foram utilizados o teste de Kruskal Wallis e o teste de t de Student. A análise estatística descritiva efectuada permitiu verificar que relativamente às alterações do sono, a maioria dos sujeitos de estudo 75,2% (N= 121) refere não ter alterações do sono, enquanto que 24,8% (N= 40) refere ter alterações do sono, sendo que daqueles que referem ter alterações do sono, a insónia inicial é a alteração referida pela maioria dos sujeitos de estudo, como se pode observar no quadro 1. No que diz respeito ao consumo de tabaco, 36,6% (N= 59) dos sujeitos de estudo referem consumir tabaco, enquanto que 63,4% (N= 102) referem não consumir tabaco. Dos sujeitos de estudo que consomem tabaco, a maioria 46,9% consome entre 10 a 20 cigarros por dia, conforme se pode observar pelo quadro 2. Seguidamente, relativamente ao facto de praticarem exercício físico, a grande maioria 62,7% (N=101) refere não praticar qualquer tipo de exercício físico, enquanto que somente 37,3% 16 (N=60) refere reservar algum do seu tempo para praticar exercício físico, conforme se pode observar no quadro 3. No que diz respeito à análise descritiva do instrumento de avaliação da vulnerabilidade ao stresse, e, conforme se verifica pela análise do quadro 4, os valores médios encontrados foram baixos para todas as sub-escalas constituintes do instrumento de avaliação da vulnerabilidade ao stresse, enquanto que relativamente ao total do instrumento de avaliação, o valor médio encontrado foi inferior a 43, valor acima do qual segundo Vaz Serra (2000) um individuo se revela vulnerável ao stresse. Igualmente pertinente é o facto da grande maioria dos sujeitos de estudo não apresentarem vulnerabilidade ao stresse, sendo que entre aqueles que apresentam vulnerabilidade ao stresse, são os sujeitos de estudo com a categoria profissional de TAS/TAE os que apresentam valores percentuais mais elevados, e por outro lado, são os enfermeiros aqueles que apresentam os valores percentuais mais baixos (vide quadro 5). A análise estatística inferencial efectuada permitiu-nos verificar, através do teste T de diferença de médias, que relativamente ao género foram encontradas diferenças estatisticamente significativas (F= 2,726; Sig= ,046), entre esta variável e a sub-escala “Dramatização da existência” do instrumento de avaliação da vulnerabilidade ao stresse, sendo que são os sujeitos de estudo do género feminino aqueles que tendem a dramatizar com maior frequência a sua existência, uma vez que apresentam valores médios globais mais elevados (Mas= 1,739; Fem= 1,991). No que diz respeito à categoria profissional, através do teste de Kruskal Wallis, verificou-se a existência de diferenças estatisticamente significativas quer para a totalidade do instrumento de medida da vulnerabilidade ao stresse, quer para as dimensões “Condições de vida adversas”, “Subjugação” e “Deprivação de afectos e rejeição”, em que os sujeitos de estudo com a categoria profissional de TAE/TAS foram aqueles que apresentaram valores médios mais elevados, quer para a totalidade do instrumento de medida, quer para as diferenças 17 dimensões em causa, como se pode observar no quadro 6. Quanto à variável consumo de tabaco, verificou-se a existência de diferenças estatisticamente significativas entre a variável em estudo e as sub-escalas “Subjugação” e “Deprivação de afecto e rejeição” do instrumento de avaliação da vulnerabilidade ao stresse, em que pela análise das médias obtidas é possível verificar que são os sujeitos de estudo que consomem tabaco aqueles que apresentam diferenças estatísticas mais significativas (vide quadro 7), não tendo sido contudo, encontradas diferenças estatisticamente significativas para a totalidade do instrumento de avaliação da vulnerabilidade ao stresse. Relativamente à variável alterações do sono, verificou-se a existência de diferenças estatisticamente significativas nas dimensões “Perfeccionismo e intolerância à frustração”, “Condições de vida adversas”, “Dramatização da existência”, “Subjugação”, e “Deprivação de afectos e rejeição”, assim como para a totalidade do instrumento de medida do stresse, em que através da análise das médias podemos verificar que são os sujeitos de estudo que possuem alterações do sono aqueles que apresentam diferenças estatísticas mais significativas (vide quadro 8). Por outro lado, igualmente pertinente, foi o facto de se ter verificado a existência de diferenças estatisticamente significativas (F= ,792; Sig= ,011), entre o facto de praticar exercício físico e a totalidade do instrumento de avaliação da vulnerabilidade ao stresse, em que são os sujeitos de estudo que referem não praticar exercício físico aqueles que apresentam valores médios de vulnerabilidade ao stresse mais elevados (Sim= 33,800; Não= 37,841). 3. CONCLUSÕES O stresse é uma temática relevante e que tem vindo a ser progressivamente valorizado, principalmente nas sociedades desenvolvidas ou em vias de desenvolvimento. No caso particular dos profissionais de saúde, por se tratar de um conceito de importância nuclear na 18 saúde dos cuidadores, com importantes repercussões económicas nas entidades empregadoras, os estudos relativos à temática em questão têm-se multiplicado nos últimos anos. Não obstante, os estudos relativos aos profissionais de emergência médica préhospitalar são ainda diminutos, razão pela qual surge o nosso estudo, que pretende contribuir para a compreensão e posterior aprofundamento do estudo relativo ao stresse nestes sujeitos de estudo em particular, na medida em que pelas características inerentes à sua actividade profissional, revelam-se sujeitos de estudo particularmente pertinentes para a compreensão da vulnerabilidade ao stresse. Nesta medida, através do estudo por nós efectuado foi possível verificar a existência de valores médios de vulnerabilidade ao stresse baixos, inferiores a 43 para a totalidade dos sujeitos de estudo, o que segundo o autor do instrumento de medida, nos permite afirmar que de uma forma geral, os sujeitos de estudo não apresentam vulnerabilidade ao stresse. Todavia, se avaliarmos a vulnerabilidade ao stresse mediante a categoria profissional, podemos verificar que são os sujeitos de estudo com a categoria profissional de TAS/TAE aqueles que apresentam maior percentagem de sujeitos vulneráveis ao stresse, o que nos parece compreensível na medida em que são simultaneamente os sujeitos de estudo com a categoria de TAS/TAE aqueles que apresentam valores médios mais elevados quer para a totalidade do instrumento de medida da vulnerabilidade ao stresse, quer para as dimensões “Condições de vida adversas”, “Subjugação” e “Deprivação de afectos e rejeição”. Igualmente pertinente, é o facto de existirem diferenças estatisticamente significativas entre o facto de possuírem alterações do sono e as dimensões “Perfeccionismo e intolerância à frustração”, “Condições de vida adversas”, “Dramatização da existência”, “Subjugação”, e “Deprivação de afectos e rejeição”, assim como para a totalidade do instrumento de medida do stresse, na medida em que esta profissão é necessariamente desempenhada em regime de trabalhos por turnos, fazendo com que as alterações de sono nos sujeitos de estudo sejam 19 mais acentuadas, e, consequentemente os seus níveis de vulnerabilidade ao stresse. Este aspecto assume particular importância na medida em que os profissionais de emergência médica pré-hospitalar, conduzem viaturas a velocidades acima da média e necessitam de tomar decisões num curto espaço de tempo, decisões essas que frequentemente envolvem a vida e a morte das pessoas a quem prestam cuidados de saúde. Um aspecto interessante e que remete para futuras investigações, foi o facto de termos verificado a existência de diferenças estatisticamente significativas entre a prática de exercício físico e a totalidade do instrumento de avaliação da vulnerabilidade ao stresse, em que são os sujeitos de estudo que referem não praticar exercício físico aqueles que apresentam valores médios de vulnerabilidade ao stresse mais elevados. Consideramos que este aspecto é importante e que carece de futura investigação, nomeadamente no que às estratégias de coping utilizadas pelos profissionais de emergência médica diz respeito, na medida em que poderia possibilitar a construção de uma modelo de gestão de stresse adequado e adoptado a estes sujeitos de estudo em particular. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS Beaton, R. D. & Murphy, S. A. (1993). Sources of occupational stress among firefighter/EMTs and firefighter/paramedics and correlations with job-related outcomes. 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Psicologia Clínica, 21, (4), 279-308. 22 Quadro 1: Frequências e percentagens dos diferentes tipos de alterações do sono TIPO DE ALTERAÇÃO DE SONO FREQUÊNCIA PERCENTAGEM Insónia inicial 24 60% Insónia intermédia 13 32,5% Insónia terminal 3 7,5% Quadro 2: Frequências e percentagens obtidas para a variável quantidade de tabaco consumido QUANTIDADE DE CIGARROS CONSUMIDOS FREQUÊNCIA PERCENTAGEM 1-10 22 34,4% 10-20 30 46,9% >20 12 18,8% Quadro 3: Frequências e percentagens obtidas para a variável praticar exercício físico PRATICAR EXERCICIO FISICO FREQUÊNCIA PERCENTAGEM Sim 60 37,3% Não 101 62,7% 23 Quadro 4: Médias, desvios padrão e valores mínimos e máximos obtidos no instrumento utilizados para avaliar a vulnerabilidade ao stresse SUB-ESCALAS MÉDIA DESVIO PADRÃO MÍNIMO MÁXIMO Perfeccionismo e intolerância à frustração 11,83 4,304 2 23 Inibição e dependência funcional 7,36 2,212 3 13 Carência de apoio social 2,40 1,621 0,00 7 Condições de vida adversas 2,92 2,163 0,00 8 Dramatização da existência 5,39 2,044 0,00 10 Subjugação 10,96 2,523 5 18 Deprivação de afecto e rejeição 3,75 2,246 0,00 10 Vulnerabilidade ao stresse 36,33 9,820 12 62 24 Quadro 5: Percentagem de sujeitos de estudo vulneráveis e não vulneráveis ao stresse mediante a sua categoria profissional SUB-ESCALAS NÃO VULNERÁVEL AO STRESSE VULNERÁVEL AO STRESSE TAS/TAE 25,5% 16,8% Enfermeiro 28,6% 3,1% Médico 21,1% 5% Total 75,2% 24,8% Quadro 6: Resultados obtidos no teste de Kruskal Wallis entre a categoria profissional e o stresse Médias Chi-Square Sig. 14,409 ,001 20,967 ,001 11,814 ,003 13,840 ,001 TAE/TAS= 94,56 Condições de vida adversas E= 80,01 M= 60,25 TAE/TAS= 100,36 Subjugação E= 64,18 M= 70,08 TAE/TAS= 95,26 Deprivação de afectos e rejeição E= 67,22 M= 74,65 TAE/TAS= 96,93 Vulnerabilidade ao stresse E= 68,18 25 M= 70,77 Quadro 7: Resultados obtidos no teste t entre a variável consumo de tabaco e o stresse Médias F t df Sig. ,128 3,006 159 ,003 ,696 2,928 159 ,004 ,018 1,781 159 ,077 S= 1,779 Subjugação Deprivação de afectos e rejeição Vulnerabilidade ao stresse N= 1,446 S= 1,474 N= 1,124 S= 38,135 N= 35,294 Quadro 8: Resultados obtidos no teste t entre a variável alterações do sono e o stresse Médias Perfeccionismo e intolerância à frustração Condições de vida adversas Dramatização da existência F t df Sig. ,548 3,924 159 ,001 ,837 2,393 159 ,018 1,448 3,222 159 ,002 1,770 3,172 159 ,002 ,163 4,148 159 ,001 S= 2,341 N= 1,849 S= 1,812 N= 1,347 S= 2,091 N= 1,702 S= 1,862 Subjugação Deprivação de afectos e rejeição N= 1,471 S= 1,658 N= 1,118 26 Vulnerabilidade ao stresse S= 42,425 N= 34,322 ,002 4,829 159 ,001 Candidatura 2 Autores: Ana Paula Amaral & Adriano Vaz Serra Título: Trauma na infância e saúde (física e mental) do adulto – Resultados de um estudo 27 Trauma na infância e saúde (física e mental) do adulto - Resultados de um estudo - Ana Paula Amaral Escola Superior de Tecnologia da Saúde de Coimbra - Apartado 7006 3040-854 Coimbra - Portugal Fax: 239 802 430; E-mail: [email protected]; Tlm: 962 920 668 AP Amaral (1); A Vaz Serra (2) (1) Departamento de Ciências Médicas, Sociais e Humanas – Escola Superior de Tecnologia da Saúde de Coimbra – Coimbra - Portugal (2) Serviço de Psiquiatria – Hospitais da Universidade de Coimbra – Coimbra - Portugal Resumo Objectivos: 1) Investigar o impacto das experiências traumáticas precoces na saúde física e mental do indivíduo; 2) Analisar a relação entre a ocorrência de experiências traumáticas precoces e a vulnerabilidade ao stress, na idade adulta. Metodologia: A amostra foi constituida por 552 adultos e recolhida na população em geral. Foram utilizados instrumentos de auto-resposta com vista a avaliar a vulnerabilidade ao stress, a saúde física e mental, assim como a ocorrência de experiências traumáticas na infância. Resultados: Saúde mental - quanto maior for o impacto de um ambiente familiar agressivo, da existência de alcoolismo nos pais e da ocorrência de violação, durante a infância, maior a incidência de sintomas psicopatológicos, na idade adulta. Saúde física - a ocorrência de um ambiente familiar agressivo e o abuso sexual constituem as experiências que apresentam relações mais significativas com o estado de saúde actual e com a ocorrência de doença crónica. Os resultados sugerem, igualmente, que quanto maior o impacto de uma ambiente familiar agressivo durante a infância, maior será a vulnerabilidade ao stress, na idade adulta. 28 Conclusões: Os resultados permitem-nos concluir que, quanto maior o impacto das experiências traumáticas vividas na infância, pior o estado de saúde física e mental e maior a vulnerabilidade ao stress, na idade adulta. Introdução O estudo da influência das experiências precoces na saúde posterior do indivíduo tem sido alvo, nos últimos anos, de crescente investigação. A revisão da literatura efectuada, salienta a influência das experiências traumáticas precoces na responsividade ao stress (no eixo hipótalamo-hipófise-suprarrenal [HPA] e nos aspectos estruturais do cérebro) e consequentes efeitos na saúde. No entanto, a investigação nesta temática não tem ocorrido apenas nas últimas décadas, ela já existe há, aproximadamente, um século. O principal impulso decorreu da comunicação de Freud, “Luto e Melancolia”, que sugeriu que a perda prematura de um dos progenitores tornava o indivíduo mais vulnerável ao desenvolvimento da depressão em fase posterior da vida, especialmente depois de experiências de luto. Porém, a influência crítica do meio e dos comportamentos precoces foi, pela primeira vez, demonstrada claramente por Harlow, nos seus estudos sobre vinculação com macacos rhesus. Os primeiros estudos com primatas foram replicados com outras espécies nas décadas de 50 e 60. Mais tarde, teóricos da vinculação colocaram a hipótese de um padrão inato de comportamento de vinculação, cuja disrupção predisporia certas pessoas para a psicopatologia (Gutman & Nemeroff, 2003; Van Praag, Kloet & Van Os, 2005). Recentemente, a ênfase voltou a ser colocada no papel do comportamento social e da adversidade precoce. É claro, actualmente, que as experiências precoces influenciam o desenvolvimento a longo prazo dos sistemas cognitivos, comportamentais e neuroendócrinos 29 em várias espécies animais, incluindo a humana, o que vem a acentuar a importância de um meio estável nos anos formativos. De um modo geral, as experiências traumáticas precoces estão associadas a alterações a longo termo no estilo de coping, regulação comportamental e emocional, responsividade neuroendócrina ao stress, aptidão social, função cognitiva, neuroquímica e morfologia cerebral, assim como, com os níveis de expressão dos genes do Sistema Nervoso Central (SNC), referidos nas perturbações de ansiedade e humor (Sanchez, Ladd & Plotsky, 2001). Estudos epidemiológicos têm revelado que as crianças maltratadas apresentam uma maior incidência de depressão, distúrbio de stress pós-traumático, perturbação de hiperactividade com défice de atenção e outras perturbações de comportamento (Gutman & Nemeroff, 2003). A maior parte dos estudos desenvolvidos incide sobre o impacto da adversidade precoce na depressão, na idade adulta. Existe abundante investigação relativa ao impacto da perda parental (morte ou separação), continuando por determinar se o impacto da separação é directo, ou se é mediado através do conflito conjugal preexistente, que tantas vezes precede a separação, ou por um posterior mau desempenho educativo, por parte dos pais. Para além da perda parental, os maus tratos infantis (abuso físico, sexual, emocional e negligência) têm recebido uma atenção considerável, em particular o abuso sexual. Os estudos nesta área revelam que quanto mais grave for o abuso, mais longa a sua duração e maior a sua frequência, mais pronunciada é a relação com a depressão na idade adulta (Van Praag et al., 2005). As mulheres sujeitas a abuso físico ou sexual também mostram aumento das taxas de utilização de serviços médicos para problemas físicos, na idade adulta (Newman et al., 2000). A literatura tem demonstrado que o abuso sexual infantil aumenta o risco de uma variedade de estados psicopatológicos na idade adulta, independentemente de um ambiente familiar 30 desfavorável, que parece ser, por si mesmo, um factor de risco de psicopatologia posterior (Nelson et al., 2002). As experiências adversas na infância aumentam o risco de depressão tardia através de determinadas vias. Estas incluem mecanismos biológicos (desregulação a longo prazo do eixo HPA), vulnerabilidades individuais (baixa auto-estima, locus de controlo externo, sentimentos de abandono, estratégias de coping fracas), factores ambientais adversos (tais como, fraco apoio social, baixo estatuto social, gravidez não desejada) e ocorrência de episódio depressivo durante a adolescência (Piccinelli, 2000; Weiss, Longhurst & Mazure, 1999). No âmbito da esquizofrenia, Read et al. (2001) salientam que para alguns adultos com este diagnóstico, acontecimentos de vida adversos ou perdas e privações significativas podem, não só, desencadear os sintomas esquizofrénicos, como também, se ocorrerem suficientemente cedo ou forem suficientemente severos, originar alterações no neurodesenvolvimento subjacentes à elevada sensibilidade aos eventos indutores de stress, consistentemente encontrados em adultos com este diagnóstico. Para além das repercussões da adversidade precoce na saúde física e mental, alguns estudos em crianças também mostraram uma associação geral entre a desregulação do eixo HPA e afectos e comportamentos negativos (Essex et al., 2002; Gunnar & Donzella, 2002). Existe evidência de que as elevações do cortisol na infância podem ser acompanhadas por interiorização de problemas, comportamentos de inibição extremos, circunspecção social e isolamento (Ashman et al., 2002; Smider et al., 2002), que podem estar associados a um aumento de risco de perturbações de ansiedade (Biederman et al., 2001). Em síntese, diferentes linhas de investigação apoiam a ideia de que as experiências precoces e as diferenças individuais podem ter impacto na resposta do eixo HPA, que por sua vez terá efeitos no estado de saúde posterior (Turner-Cobb, 2005). A investigação sobre o neurodesenvolvimento tem sugerido que, devido à extrema maleabilidade e sensibilidade do 31 cérebro à experiência na primeira infância, os acontecimentos traumáticos nos primeiros anos de vida podem ter um impacto a longo termo no funcionamento emocional, comportamental, cognitivo, social e fisiológico (Heim et al., 2000). Este impacto é tanto mais provável, quanto mais severos, imprevisíveis ou persistentes forem os acontecimentos (Read et al., 2001). Objectivos O presente estudo tem dois objectivos principais: 1) Investigar o impacto das experiências traumáticas precoces na saúde física e mental do indivíduo; 2) Analisar a relação entre a ocorrência de experiências traumáticas precoces e a vulnerabilidade ao stress, na idade adulta. Metodologia Esta investigação enquadra-se nos estudos designados como “não experimentais”, dada a não manipulação de variáveis. Ainda a referir que é um estudo transversal e que os dados foram recolhidos na população em geral. Foi usado um método de amostragem probabilistico ou aleatório, uma vez que os elementos que constituem a amostra foram recolhidos ao acaso. 32 Quadro 1 – Características gerais da amostra (n=552) Sexo Homens Mulheres Estado Civil Solteiro Casado/união de facto Divorciado/separado Viúvo Grau de Instrução Básico Secundário Superior Profissão Elevada competência Competência média Operários especializados Operários não especializados Estudantes n % 153 399 27.7 72.3 314 213 22 3 56.9 38.6 4.0 .5 42 124 386 7.5 22.5 69.9 2 246 83 1 219 Média .4 44.6 15.1 .2 39.7 DP 31.592 12.817 Idade Conforme se pode verificar no Quadro 1, a amostra foi constituída por 552 indivíduos, maioritariamente do sexo feminino (72.3%) e casados ou em união de facto (38.6%). O grau de instrução mais frequente foi o superior (69.9%) e a actividade profissional dominante enquadra-se no grupo das profissões de competência média (44.6%). As idades estavam compreendidas entre 17 e 63 anos, com uma média de 31.592 e um desvio padrão de 12.817. Foram utilizados os seguintes instrumentos de avaliação: 1) Escala de Vulnerabilidade ao Stress (23 QVS); 2) Listagem de Circunstâncias de Vida; 3) Questionário de Saúde; 4) Inventário de Sintomas Psicopatológicos (BSI). O segundo e o terceiro foram elaborados por nós. A escala 23 QVS é uma escala para avaliar a vulnerabilidade ao stress e foi construída e aferida por Vaz Serra (2000). O autor começou por utilizar 64 questões das quais a análise estatística utilizada permitiu escolher apenas as 23 questões apresentadas. Daí a designação do instrumento pelo nome de 23 QVS (23 Questões para a avaliação da Vulnerabilidade ao 33 Stress). Nestas questões o indivíduo deverá classificar o seu grau de concordância, numa escala tipo Likert que vai desde “concordo em absoluto” a “discordo em absoluto”, num total de cinco categorias. Criada a partir de uma amostra de 368 elementos da população em geral, a correlação Par/Ímpar foi de .732 e o coeficiente de Spearman-Brown de .845, reveladores de uma boa consistência interna. O coeficiente de Cronbach para todos os itens apresentou um valor de .824. Este valor baixou sempre quando à escala foi retirado algum dos itens seleccionados, evidenciando este facto a importância que cada um deles tem como contributo para uma boa homogeneidade. A correlação de cada questão com a nota global foi positiva e altamente significativa, o que sugere que os itens, no seu conjunto, correspondem a uma escala unidimensional, capaz de definir um conceito. Os itens da escala revelaram ser sensíveis, individualmente, a variações de grupos extremos, facto que testemunha a sua capacidade discriminativa. A correlação teste-reteste foi realizada num mínimo de 30 e um máximo de 239 dias, com uma mediana de 49 dias. A correlação obtida foi de .816 (com n=105), valor altamente significativo (p<.000) e abonatório de uma boa estabilidade temporal. Uma análise factorial de componentes principais seguida de rotação varimax extraiu sete factores ortogonais que explicam 57,5% da variância total. De acordo com o autor, a composição de cada factor parece traduzir o seguinte significado: factor 1 – perfeccionismo e intolerância à frustração; factor 2 – inibição e dependência funcional; factor 3 – carência de apoio social; factor 4 – condições de vida adversas; factor 5 – dramatização da existência; factor 6 – subjugação e factor 7 – deprivação de afecto e rejeição. A escala está construída de modo a que, quanto mais elevada seja a pontuação obtida, maior é a vulnerabilidade ao stress de dado respondente. Por último, um valor de 43, obtido no preenchimento da 23 QVS, constitui o ponto de corte acima do qual uma pessoa se revela vulnerável ao stress. 34 Elaborámos a Listagem de Circunstâncias de Vida (LCV) com base na análise de vários instrumentos de avaliação de acontecimentos de vida. Destacamos dois dos intrumentos mais usados nesta área, o PERI (Psychiatric Epidemiology Research Interview Life Events Scale; Dohrenwend et al., 1978) e o LEDS (Life Events and Difficulties Schedule; Brown & Harris, 1989). O primeiro é um questionário de auto-resposta constituído por 102 questões, usado em múltiplos estudos, desde 1978. O segundo é uma entrevista semi-estruturada, baseada no investigador, uma das entrevistas mais usadas desde 1989. Na elaboração da LCV procurámos conjugar algumas vantagens das tradicionais listas de acontecimentos de vida, como por exemplo, a facilidade e rapidez de aplicação, com algumas vantagens das entrevistas semi-estruturadas, como por exemplo, a avaliação do impacto do acontecimento, embora neste caso a avaliação do impacto do acontecimento seja feita pelo próprio indivíduo e não por um painel de classificadores (como é o caso nas entrevistas). Revelou-se para nós importante avaliar a ocorrência, ou não, de circunstâncias potencialmente indutoras de stress, em diferentes áreas da vida dos indivíduos, assim como o seu impacto na vida do indivíduo. Com base na pesquisa bibliográfica efectuada e na nossa experiência clínica somos de opinião que, mais importante que a ocorrência do acontecimento, é o impacto que este tem na vida do indivíduo. A LCV está subdividida em 12 áreas: escolar, profissional, relações afectivas, funções parentais, família, residência, aspectos legais e criminais, aspectos económicos, actividade social, saúde, diversos e experiências traumáticas que ocorreram na infância, num total de 83 circunstâncias. Em cada uma existe uma questão em aberto (Outro:…) para que o indivíduo possa registar alguma ocorrência que não constasse da lista, o que perfaz um total de 95 questões. Para cada situação ou acontecimento é possível registar a sua ocorrência, ou não, numa resposta do tipo “Sim – Não” e o seu grau de impacto, numa escala de tipo Likert: 35 “nenhum”, “pouco”, “moderado”, “muito” e “muitíssimo”. A ocorrência dos acontecimentos, com excepção do último grupo, é relativa aos últimos três meses. No presente estudo só foram consideradas as questões relativas às experiências traumáticas que ocorreram na infância. O Questionário de Saúde foi elaborado com o intuito de identificar pequenas alterações na saúde física do indivíduo. Inicialmente, foi constituído por 18 questões que permitiram ao indivíduo: 1) Avaliar qualitativamente o seu estado de saúde; 2) Identificar os sintomas que mais o incomodaram e se esses sintomas o levaram a recorrer ao médico e a tomar medicação; 3) Assinalar a existência de doença crónica e sua identificação; 4) Identificar a ocorrência de alguma doença, no último ano; 5) Avaliar o seu estado de saúde no último ano e nos últimos cinco anos. Dado o tipo de informação a recolher, optámos por fazer algumas questões abertas (relativas ao tipo de sintomas e ao tipo de doença). A restante maioria pressupõe uma resposta dicotómica, o respondente tem de escolher entre duas respostas antagónicas, neste caso, do tipo “Sim – Não”. O Inventário de Sintomas Psicopatológicos foi traduzido e adaptado para a população portuguesa por Canavarro (1999), tendo sido a versão original construída por Derogatis (1982) e designada por Brief Symptom Inventory (BSI). É um inventário de auto-resposta com 53 itens, onde o indivíduo deverá classificar o grau em que cada problema o afectou durante a última semana, numa escala de tipo Likert que vai desde “Nunca” a “Muitíssimas vezes”. Avalia sintomas psicopatológicos em termos de nove dimensões de sintomatologia e três índices globais, o Índice Geral de Sintomas (IGS), o Total de Sintomas Positivos (TSP) e o Índice de Sintomas Positivos (ISP). A fórmula de cálculo do IGS tem simultaneamente em conta o número de sintomas psicopatológicos e a sua intensidade. O TSP reflecte o número de 36 sintomas assinalados e o ISP é uma medida que combina a intensidade da sintomatologia com o número de sintomas presentes. A simples leitura dos índices globais permite avaliar, de forma geral, o nível de psicossintomatologia apresentado. As nove dimensões descritas por Derogatis (1982) são: Somatização, ObsessõesCompulsões, Sensibilidade Interpessoal, Depressão, Ansiedade, Hostilidade, Ansiedade Fóbica, Ideação Paranóide e Psicoticismo. Os estudos psicométricos efectuados por Canavarro (1999) revelaram que a versão portuguesa deste inventário apresenta níveis adequados de consistência interna para as nove escalas, com valores de alfa entre .621 (Psicoticismo) e .797 (Somatização) e coeficientes testereteste entre .63 (Ideação paranóide) e .81 (Depressão). Foram igualmente encontrados dados abonatórios da validade do instrumento, através de correlações de Spearman entre as notas das nove dimensões de sintomatologia e das três notas globais, sendo todas as correlações significativas para p<.001. A validade discriminativa do BSI foi também confirmada através duma análise discriminante de função, a qual se revelou estatisticamente significativa na sua globalidade, sendo todos os F altamente significativos. Canavarro (1999) tendo verificado que todas as pontuações obtidas no BSI permitiam discriminar entre indivíduos perturbados emocionalmente e indivíduos pertencentes à população geral, estabeleceu um ponto de corte entre os dois grupos, utilizando o ISP e obedecendo à fórmula de Fisher para o ponto de corte. Com base nos resultados obtidos refere que, com uma nota no ISP do BSI superior ou igual a 1.7, é provável encontrar pessoas perturbadas emocionalmente e, abaixo desse valor, indivíduos da população geral. De um modo geral, o BSI é um bom indicador de sintomas do foro psicopatológico, assim como, um bom discriminador da saúde mental. 37 Resultados Passamos agora a apresentar os resultados obtidos. Foi considerado o grau de impacto com que as experiências traumáticas ocorreram, sempre que ocorreram, e a sua relação com a saúde física e mental. Utilizou-se o coeficiente de correlação de Spearman. No Quadro 2 pode analisar-se as relações existentes entre o grau de impacto das experiências traumáticas precoces e a saúde física (QS) e mental (IGS e ISP). Os resultados obtidos sugerem que quanto maior é o grau de impacto das experiências traumáticas precoces avaliadas (com excepção de ter pais alcoólicos) pior é a saúde física. No que diz respeito à saúde mental mantém-se a relação inversa e significativa com as experiências traumáticas precoces, com excepção para a ocorrência de maus tratos. Quadro 2: Experiências traumáticas precoces e estado de saúde global QS IGS ISP Maus tratos Abuso sexual Violação Ambiente agressivo Pais alcoólicos rho .191** .130** .122** .197** .081 p .000 .006 .009 .000 .087 rho .089 .071 .093* .194** .103* p .059 .135 .049 .000 .030 rho .072 .112* .097* .199** .128** p .131 .018 .040 .000 .007 * p<.05; ** p<.01 38 Relativamente aos índices do BSI (IGS e ISP), os resultados sugerem que existem relações significativas entre estes dois índices e o facto de os indivíduos terem sido violados1, terem vivido em ambiente familiar hostil ou terem tido pais alcoólicos. O ISP relaciona-se, também, com a situação de abuso sexual. Conforme se verifica no Quadro 3, existem algumas relações significativas entre as dimensões do BSI e as experiências traumáticas precoces. Destaca-se o impacto de viver num ambiente familiar agressivo, que apresenta relações significativas com todas as dimensões psicopatológicas avaliadas. Quadro 3: Experiências traumáticas precoces e saúde mental Maus tratos Abuso sexual Violação Ambiente agressivo Pais alcoólicos rho .123** .050 .070 .158** .040 P .009 .289 .141 .001 .399 Obsessões/ rho .067 .035 .078 .132** .088 compulsões P .156 .463 .099 .005 .065 Sensibilidade interpessoal rho .057 .047 .091 .178** .081 P .233 .326 .054 .000 .087 rho .095* .070 .111* .227** .137** P .044 .140 .019 .000 .004 rho .079 .084 .098* .187** .069 P .097 .076 .039 .000 .148 rho .063 .114* .107* .145** .130** P .187 .016 .024 .002 .006 Somatização Depressão Ansiedade Hostilidade 1 Distinguimos “abuso sexual” de “violação”, dado que outras formas de abuso sexual podem ocorrer na infância, para além da violação. 39 Ansiedade fóbica Ideação paranóide Psicose/psicoticismo rho .066 .037 .023 .106* .018 P .163 .430 .633 .025 .704 rho .042 .065 .044 .139** .046 P .380 .171 .354 .003 .334 rho .055 .021 .055 .178** .091 P .247 .666 .251 .000 .055 * p<.05; ** p<.01 No que diz respeito às dimensões psicopatológicas, a depressão e a hostilidade são as que apresentam relações significativas com um maior número de experiências traumáticas precoces (ocorrência de maus tratos, abuso sexual, violação, ambiente familiar agressivo e a presença de pais alcoólicos). A ansiedade apresenta relações significativas com a ocorrência de violação e ambiente familiar agressivo. A somatização relaciona-se com a ocorrência de maus tratos e ambiente familiar agressivo. Por último, a ansiedade fóbica, a ideação paranóide e o psicoticismo relacionam-se, apenas, com a existência de um ambiente familiar agressivo. Estas relações significam que, quanto maior o impacto destas experiências precoces, pior a saúde mental do indivíduo, na actualidade. Em resumo (Quadro 4), o grau de impacto de um ambiente familiar agressivo na infância/adolescência condiciona, de forma negativa, os vários estados de saúde mental avaliados, ou seja, quanto maior o impacto da sua ocorrência, pior o estado de saúde mental do indivíduo, na actualidade. 40 Quadro 4: Experiências traumáticas precoces e saúde mental (síntese) Maus tratos Somatização Abuso sexual Violação Ambiente agressivo Obsessões/compulsões Sensibilidade interpessoal Depressão Ansiedade Hostilidade Pais alcoólicos Ansiedade fóbica Ideação paranóide Psicose/psicoticismo Os resultados sugerem, também, que a depressão e a hostilidade são as dimensões associadas a mais experiências traumáticas precoces, ou seja, a ocorrência de variadas experiências traumáticas precoces facilitará o aparecimento de depressão e hostilidade, na idade adulta. No que diz respeito à percepção que o doente tem do seu estado de saúde, no último ano e nos últimos cinco anos, esta é tanto pior quanto maior o impacto dos traumas precoces, com excepção da presença de pais alcoólicos e da ocorrência de violação (apenas para a percepção de saúde nos últimos 5 anos). A existência de doença crónica está relacionada com o impacto de determinadas experiências precoces (abuso sexual, violação, ambiente familiar agressivo) (Quadro 5). 41 Quadro 5: Experiências traumáticas precoces e estado de saúde geral Doença Crónica Saúde – 5 anos Maus tratos Abuso sexual Violação Ambiente Agressivo Pais alcoólicos Rho .024 .114* .093* .097* .047 P .618 .015 .048 .040 .319 .123** .101* .082 .184** .039 .009 .033 .083 .000 .415 .189** .136** .125** .199** .081 .000 .004 .008 .000 .087 Rho P Saúde - último ano rho p * p<.05; ** p<.01 Os resultados sugerem (Quadro 6) que à existência de determinadas experiências traumáticas precoces está associada uma maior vulnerabilidade ao stress, ou seja, verifica-se que existe uma maior vulnerabilidade ao stress na idade adulta, quanto maior foi o impacto de viver num ambiente familiar agressivo na infância. No entanto, condições como o perfeccionismo e intolerância à frustração (F1), a inibição e dependência funcional (F2) e a dramatização da existência (F5) não dependem do grau de impacto sentido em experiências traumáticas precoces. De facto, a adversidade de viver em ambiente familiar agressivo é a circunstância de vida mais relacionada com os estados de vulnerabilidade ao stress, verificando-se que quanto maior o impacto que aquela circunstância teve, maior a vulnerabilidade ao stress, o factor 3 (carência de apoio social), o factor 4 (condições de vida adversas), o factor 6 (subjugação da existência) e o factor 7 (deprivação de afecto e rejeição). 42 Por outro lado, o impacto da ocorrência de maus tratos na infância/adolescência está associado à deprivação de afecto e rejeição (F7), enquanto o impacto de ter ocorrido violação aumenta o factor condições de vida adversas (F4) e, por último, um maior impacto sentido pelo facto de terem tido pais alcoólicos está relacionado com uma maior carência de apoio social (F3), no momento actual. Quadro 6: Experiências traumáticas precoces e vulnerabilidade ao stress Maus tratos Abuso sexual Violação Ambiente agressivo Pais alcoólicos rho .069 .040 .048 .151** .042 p .144 .404 .312 .001 .380 F1 - Perfeccionismo e intolerância à frustração rho .016 .043 .007 .052 -.002 p .738 .359 .878 .272 .969 F2 - Inibição e dependência funcional rho -.042 -.024 -.024 .018 -.046 p .381 .619 .616 .704 .334 rho .073 .056 .076 .105* .121 p .122 .238 .108 .026 .011* rho .063 .049 .101* .141** .089 p .183 .302 .032 .003 .060 rho .059 .000 .035 -.047 -.058 Vulnerabilidade ao stress F3 - Carência de apoio social F4 - Condições de vida adversas F5 - Dramatização da 43 existência F6 - Subjugação da existência F7 - Deprivação de afecto e rejeição p .214 .997 .463 .325 .225 rho .037 .033 .030 .101* -.007 p .430 .481 .522 .032 .889 rho .107* .085 .079 .189** .057 p .023 .074 .093 .000 .232 * p<.05; ** p<.01 Em síntese, da análise do Quadro 7 destaca-se que, quanto maior o impacto sentido por se ter vivido num ambiente familiar agressivo, na infância/adolescência, maior a vulnerabilidade ao stress, no momento actual. Quadro 7: Experiências traumáticas precoces e vulnerabilidade ao stress (síntese) Maus tratos Abuso sexual Violação Ambiente agressivo Pais alcoólicos Vulnerabilidade ao stress F1 - Perfeccionismo e intolerância à frustração F2 - Inibição e dependência funcional F3 - Carência de apoio social F4 - Condições de vida adversas 44 F5 - Dramatização da existência F6 - Subjugação da existência F7 - Deprivação de afecto e rejeição Discussão e conclusões Os resultados obtidos sugerem a existência de relações estatisticamente significativas entre as experiências traumáticas precoces e o estado de saúde do indivíduo na idade adulta. Em relação com a saúde mental, observámos que, quanto maior o impacto da situação de violação, ambiente familiar agressivo e a existência de alcoolismo nos pais, no decurso da infância/adolescência do indivíduo, pior é a sua saúde mental, na idade adulta. Na relação com as várias dimensões da saúde mental, o ambiente familiar agressivo destaca-se como a experiência mais relevante. No que diz respeito à saúde física, foi possível analisar a relação com o estado de saúde percepcionado nos últimos três meses, no último ano, nos últimos cinco anos e com a existência de doença crónica. Os resultados indicam que quanto maior é o grau de impacto das experiências traumáticas precoces, em concreto: abuso físico, sexual e ambiente familiar agressivo, pior é a saúde física, nos últimos três meses, ou seja, pior o estado de saúde actual. A percepção que o doente tem do seu estado de saúde, no último ano, é tanto pior quanto maior o impacto dos traumas precoces (abuso físico e sexual, e ambiente familiar agressivo). Relativamente à percepção do estado de saúde nos últimos cinco anos, as experiências traumáticas precoces que se revelaram significativas são: abuso físico, sexual e ambiente familiar agressivo. A existência de doença crónica está relacionada com o impacto de determinadas experiências precoces (abuso sexual e ambiente familiar agressivo). Em síntese, 45 o abuso sexual e o ambiente familiar agressivo são as experiências precoces mais relevantes, uma vez que se relacionam com o estado de saúde percepcionado actualmente, há 1 ano, há 5 anos e com a existência de doença crónica. Devemos ainda acrescentar que, quanto maior é o impacto de viver num ambiente familiar agressivo, na infância, maior é a vulnerabilidade de um indivíduo ao stress, no momento presente. A literatura é concordante com os resultados obtidos. Um estudo de McCauley et al. (1997), com aproximadamente 2000 mulheres, demonstrou que a história de abuso sexual ou físico na infância (sem violação ou violência física na idade adulta) está fortemente relacionada com um aumento de sintomatologia depressiva e ansiosa, incluindo suicídio, na idade adulta, quando comparadas com um grupo de controlo de mulheres sem história de abuso na infância. Hammen, Henry e Daley (2000) realizaram um estudo longitudinal de dois anos, procurando testar se as mulheres que tinham vivido uma ou mais adversidades significativas na infância (violência familiar, psicopatologia parental, alcoolismo, entre outras) desenvolveriam mais facilmente uma reacção depressiva, perante factores de stress. Os resultados confirmaram esta hipótese, sugerindo a existência de mecanismos de sensibilização biológica e psicológica aos factores de stress. Num estudo realizado por Newman et al. (2000), os autores concluíram que as mulheres sujeitas a abuso físico ou sexual, na infância, mostravam um aumento das taxas de utilização de serviços médicos para problemas físicos, na idade adulta. Os estudos têm revelado que quanto mais grave o abuso (físico, sexual, emocional, negligência), mais longa a sua duração e maior a sua frequência, mais pronunciada é a sua relação com a depressão na idade adulta (Van Praag et al., 2005). Na presente investigação verifica-se, também, que a um pior estado de saúde está associado um maior grau de impacto percebido, relativamente a estas experiências. 46 McLewin e Muller (2006) concluíram num estudo realizado com 956 indivíduos, que os diferentes subtipos de maus tratos avaliados (abuso psicológico, abuso físico, violência doméstica e abuso sexual) estão associados a níveis mais elevados de psicopatologia. Considerando o tipo de maus tratos, o abuso psicológico emerge como o preditor mais significativo de psicopatologia. Considerando os resultados obtidos neste estudo e os dados da literatura, não podemos deixar de salientar a importância da realização de intervenções clínicas atempadas, em indivíduos que viveram experiências traumáticas precoces, não só com vista à minimização do impacto emocional no momento, mas também, como medidas preventivas de doença mental posterior. Bibliografia Ashman, S. B.; Dawson, G.; Panagiotides, H.; Yamada, E.; Wilkinson, C. W. (2002). Stress hormone levels of children of depressed mothers. Development and Psychopathology, 14, 333-349. Biederman, J.; Hirshfeld-Becker, D. R.; Rosenbaum, J. F. et al. (2001). Further evidence of association between behavioral inhibition and social anxiety in children. American Journal Psychiatry, 158, 1673-1679. Brown, G. W. & Harris, T. (1989). Life events and ilness. New York: Guilford Press. Canavarro, M. C. (1999). Inventário de Sintomas Psicopatológicos – BSI. In M. R. Simões, M. Gonçalves e L. 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American Journal Psychiatry, 156, 816-828. 49 Candidatura 3 Autores: Fernanda Mishima & Valéria Barbieri Título: Saúde feminina: considerações do psicodiagnóstico interventivo na obesidade 50 SAÚDE FEMININA: CONSIDERAÇÕES DO PSICODIAGNÓSTICO INTERVENTIVO NA OBESIDADE Fernanda Kimie Tavares Mishima – [email protected] Valéria Barbieri – [email protected] Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto Universidade de São Paulo Brasil RESUMO Considerada de alta incidência e gravidade, especialmente por suas conseqüências físicas e psíquicas, a obesidade é mais estudada em sua vertente biológica e genética, apesar da comprovação do aspecto emocional envolvido. Somado aos riscos advindos de tal patologia, muitos obesos acabam por buscar a cirurgia bariátrica como alternativa, subjugando seus riscos e conseqüências. Diante do aumento crescente de tal conduta terapêutica, especialmente em relação às mulheres, é relevante destacar a necessidade de prevenção e outras possibilidades de tratamento, levando em consideração o aspecto emocional. Assim, este estudo objetiva apresentar uma forma de tratamento psicoterápico para mulheres obesas, por meio do Psicodiagnóstico Interventivo (PI), e averiguar suas possibilidades de auxílio, para que elas não atinjam o peso suficiente para se submeter à cirurgia bariátrica, no intuito de evitar o procedimento cirúrgico e possíveis conseqüências que possam advir de tal alternativa. O atual trabalho traz um estudo de caso realizado com uma mulher obesa grau I (IMC = 32 kg/m²), de 32 anos de idade, que já havia tentado emagrecer por meio de dietas e exercícios físicos. Foram realizados entrevista inicial e aplicação do Teste do Desenho da Figura Humana (DFH) e Teste de Apercepção Temática (TAT), com intervenções e interpretados de forma descritiva pelo método da livre inspeção, segundo um referencial psicanalítico winnicottiano. Durante o PI, notou-se que a paciente possuía uma auto-imagem negativa, com 51 sentimentos de desvalorização e inutilidade em sua função de mulher e mãe, além de dificuldade nas relações interpessoais e restrição na expressão do self. Ao final, a paciente foi capaz de conhecer aspectos do seu mundo interno, e, assim, integrar os afetos, especialmente os relativos à própria sexualidade, sentindo-se mais tranqüila e confiante. Além disso, houve perda de peso, comprovando a importância de se conhecer os aspectos emocionais relacionados à obesidade, e sugerindo uma nova forma de tratamento. Palavras-chave: obesidade; psicodiagnóstico interventivo; mulheres; técnicas projetivas. INTRODUÇÃO A obesidade é uma doença multifatorial crônica, gerada pelo acúmulo exagerado de gordura no organismo, acarretando prejuízos para a saúde física e mental (Coutinho, 1999). Atualmente, ela desponta como uma doença de alta prevalência no mundo todo. Em relação às suas causas, os estudos destacam especialmente os aspectos biológicos, genéticos e ambientais, incluindo, neste último, o modelo alimentar que a família transmite para a criança (Halpern, Rodrigues & Costa, 2004; Bernardi, Cichelero & Vitolo, 2005). Dessa forma, há pouca relevância aos aspectos psicológicos, mesmo sendo uma patologia multifatorial. Ao se considerar os fatores psicológicos no tratamento da obesidade, sugerem-se apenas alternativas comportamentais e mudança dos padrões alimentares, desconsiderando os psicodinamismos individuais e familiares dos indivíduos obesos (Nunes, Figueiroa & Alves, 2007; Duchesne, Appolinario & Range, 2007). No mundo contemporâneo, a obesidade atinge grande contingente populacional, superando diversas patologias. Grundy (1998) aponta para o fato de que tal doença será uma das principais causas de morte entre os indivíduos americanos, chegando a substituir o cigarro. A Organização Mundial de Saúde (2000 conforme citado por Busse, 2004) afirma que, atualmente, no mundo todo, existem aproximadamente 300 milhões de adultos e 18 milhões de crianças obesas ou acima do peso. 52 No Brasil, os índices de indivíduos obesos ou com sobrepeso atingem 38% da população adulta (Loli, 2000), sendo que a obesidade está em 8,9% dos homens e 13,1% das mulheres, segundo dados do IBGE (2005). Já nos Estados Unidos essa doença afeta um terço da população adulta e adolescente, despontando como o problema de saúde de maior prevalência no país. Nesse sentido, caso não haja nenhum tipo de intervenção, prevê-se que em 2035 90% da população americana estará com excesso de peso (Fisberg, 2005). Paralelo ao seu crescimento exagerado há o surgimento de graves conseqüências, tanto em seus aspectos físicos (como doenças cardiovasculares, hipertensão arterial, diabetes), psicológicos (isolamento, vergonha, insegurança) ou psicossociais (baixo desempenho escolar e social, baixa auto-estima, auto-imagem prejudicada). Por este motivo, vários países apresentam sua economia abalada por gastos excessivos no tratamento dessa doença (Monteiro & Victora, 2005). Para Ades e Kerbauy (2002), outras conseqüências graves e prejudiciais ao indivíduo obeso são depressão, comportamento de esquiva social, dificuldade em se inserir na cultura e ambientes sociais, preconceito nas escolas e dificuldades em relação à qualidade de vida, como baixa auto-estima. Logo, diante do aumento crescente da obesidade nos últimos anos, é importante considerar as conseqüências dessa situação na saúde pública. Uma das maneiras mais procuradas para a perda de peso, especialmente pelo nível de rapidez, é a realização da cirurgia bariátrica, desconsiderando as implicações resultantes de tal ato. Para que o paciente possa ser submetido a tal cirurgia ele precisa apresentar obesidade grau III ou mórbida. Para a população adulta, Nunes, Appolinario, Galvão e Coutinho (2006) apresentam as seguintes faixas de Índice de Massa Corporal (IMC) e sua significação: • IMC < 18,5: abaixo do peso normal • 18,5 < IMC < 24,9: peso normal 53 • 25 < IMC < 29,9: sobrepeso • 30 < IMC < 34,9: obesidade grau I • 35 < IMC < 39,9: obesidade grau II • 40 < IMC: obesidade grau III De acordo com dados de pesquisa científica, a obesidade grau III (mórbida) é uma das doenças que mais mata no mundo, pois sua taxa de mortalidade é 12 vezes maior em adultos entre 25 a 40 anos quando comparada com indivíduos de peso normal. Nesses pacientes geralmente a abordagem clínica é ineficaz, sendo a cirurgia bariátrica uma forte opção de tratamento (Coutinho & Benchimol, 2002). São candidatos ao tratamento cirúrgico os pacientes com Índice de Massa Corporal (IMC) > 40 kg/m² ou IMC > 35 kg/m² com a presença de co-morbidades (diabete tipo 2, hipertensão arterial, dislipidemia, artropatias, apnéia do sono). No entanto, Coutinho (1999) afirma que para que o paciente possa realizar a cirurgia é necessário um mínimo de cinco anos de evolução da obesidade, sem êxito em um tratamento convencional realizado com profissionais qualificados. Mesmo com as grandes vantagens trazidas pela cirurgia bariátrica, tais como perda de peso, redução das co-morbidades relacionadas à obesidade e melhoria da qualidade de vida, há também diversas complicações. Dentre as mais comuns é possível citar a ulceração gástrica, náuseas, vômitos, infecção da ferida operatória, pneumonia e deiscência de sutura, além da mais rara, a embolia pulmonar. Após o período pós-operatório, também é possível pensar na colelitíase, má absorção de vitaminas e sais minerais e diarréia (Nunes, Appolinario, Galvão & Coutinho, 2006). Apesar da intensa busca pela cirurgia como única saída para o tratamento da obesidade mórbida, é de suma importância considerar o tratamento convencional em primeiro lugar, especialmente nos casos de início recente e sem antecedentes de tratamentos adequados prévios. Mesmo assim, a taxa de insucesso do tratamento convencional para obesos mórbidos é muito elevada, chegando a atingir 90% dos casos. Atualmente, a cirurgia é 54 a alternativa que apresenta melhores resultados, mas, caso não haja um acompanhamento clínico, nutricional e psicológico rigorosos, há grandes riscos de complicações a curto, médio e longo prazo (Nunes, Appolinario, Galvão & Coutinho, 2006). O tratamento para a obesidade continua produzindo resultados insatisfatórios, especialmente pelo mau uso dos recursos terapêuticos e aplicação de estratégias equivocadas (CONSENSO LATINO AMERICANO, 1998). Ao lado do desenvolvimento de planos terapêuticos mais eficazes, também é preciso refletir sobre medidas de prevenção a fim de conter o surgimento de casos novos, além de evitar o aumento da incidência de tal doença. Quando se fala em tratamento da obesidade, há intenso foco em relação aos comportamentos dos indivíduos, geralmente subjugando seu contexto psicossocial e negligenciando sua compreensão psicológica profunda, como ocorre com tantas outras patologias. Essa compreensão parcial do problema pode responder pela constatação da pouca eficácia dos tratamentos. Presentemente, com o intuito de tratar a obesidade nos indivíduos adultos existem técnicas de intervenções médicas e comportamentais, usadas para que a pessoa possa perder peso em um tempo determinado, dentre elas a terapia familiar, para que haja uma modificação no estilo de vida e no comportamento alimentar dessas pessoas (Kiess et al., 2001). Nessa direção, muitos pesquisadores salientam que o tratamento multidisciplinar tem sido considerado o mais efetivo (Votruba, Horvitz & Shoeller, 2000; Sothern et al., 1999; Reiterer, SudI & Mayer, 1999), contudo, ele é o menos utilizado. Na tentativa de manter o peso perdido por mais tempo, muitos indivíduos fracassam. Nesse sentido, Ades e Kerbauy (2002) destacam que a perda de peso permanece quando acontece na infância e na adolescência. Epstein, Valoski, Wing e McCurley (1994) realizaram um estudo longitudinal investigando os tratamentos para a perda de peso. Eles observaram que, após 10 anos de tratamento, 34% dos participantes que iniciaram o estudo com as idades 55 de 6 a 12 anos diminuíram seu sobrepeso em 20% ou mais, e que 30% não estavam mais obesos. Loli (2000) afirma que no caso de indivíduos que fracassam na manutenção dos resultados a longo prazo do tratamento, a dimensão psíquica torna-se relevante, apesar de pouco explorada. De acordo com pesquisa realizada na base de dados Medline, Eric, Scielo e Lilacs, nos últimos 20 anos, com as palavras-chaves “obesity and treatment”, há muitas referências em relação às mudanças comportamentais nos padrões alimentares (dietas e tratamento comportamental) ou ainda, quando há excesso de peso (obesidade mórbida), alta procura pela cirurgia bariátrica. Não há estudos que tratam da dificuldade dos indivíduos obesos aderirem ao tratamento, muito menos quando este considera a vertente emocional da patologia. Diante dessas considerações, é importante destacar que, pela alta incidência e prevalência de tal epidemia no mundo todo, e pelas conseqüências que ela acarreta, é preciso reavaliar a qualidade e a natureza dos tratamentos atualmente disponíveis, e, assim, realizar estudos preventivos. Mishima (2007), em seu estudo com crianças obesas e suas famílias, denotou a relevância do papel da dinâmica familiar na manutenção da obesidade infantil. Dentre as principais características do contexto em que viviam, foi notada a presença de uma mãe que não foi capaz de oferecer um ambiente suficientemente bom para os filhos, bem como holding e cuidados afetivos, e uma figura paterna que exerce o controle pela autoridade, não permitindo que as crianças expressem sua impulsividade. Nesse sentido, as crianças sentiamse abandonadas, sozinhas e inseguras dentro do contexto familiar, buscando no alimento uma maneira de se relacionar com o mundo externo e uma forma de abrandar o vazio afetivo advindo das experiências iniciais da infância. Conseqüentemente, a terapia parece ser uma solução eficaz na compreensão da psicodinâmica familiar e como forma de prover um ambiente suficientemente bom para as crianças obesas. 56 Nessa mesma direção, uma possível forma de tratamento, coadjuvante ao médico e nutricional, capaz de complementá-los, e que considera as características emocionais que envolvem tal patologia, diz respeito à intervenção psicológica, seja por meio de terapia, individual ou não, ou ainda pelo processo do psicodiagnóstico interventivo. O Psicodiagnóstico Interventivo é uma prática da Psicologia Clínica, que faz uso integrado dos processos avaliativo e terapêutico. Neste processo, Vaisberg (1999) destaca que o caráter de investigação e intervenção relacionados ao diagnóstico devem ser vistos de maneira conjunta. Nesse sentido, desde há muito tempo, Winnicott (1961/1984) assinalava a importância de realizar um pequeno tratamento psicanalítico já nas primeiras entrevistas. Para Paulo (2004, conforme citado por Paulo, 2006, p. 156), denomina-se Psicodiagnóstico Interventivo: uma forma de avaliação psicológica, subordinada ao pensamento clínico, para apreensão da dinâmica intrapsíquica, compreensão da problemática do indivíduo e intervenção nos aspectos emergentes, relevantes e/ou determinantes dos desajustamentos responsáveis por seu sofrimento psíquico e que, ao mesmo tempo, e por isso, permite uma intervenção eficaz. Nesse contexto, Trinca (1984) afirmou que a avaliação psicológica tem o intuito de apreender a psicodinâmica do indivíduo e suas dificuldades, fazendo uso dos instrumentos psicológicos e das técnicas projetivas, processo em que há predomínio da compreensão da vida psíquica e não de padrões estabelecidos pelas teorias. No Psicodiagnóstico Interventivo, desde a primeira entrevista com o paciente, são realizados assinalamentos e interpretações, bem como durante a aplicação de técnicas 57 projetivas. Ele é fundamentado, em primeira instância, na constatação de pesquisadores e clínicos, usuários e estudiosos do Psicodiagnóstico Tradicional (Cunha e cols., 2000; Ocampo, Arzeno & Piccolo, 1987; Trinca, 1997) de que a situação de avaliação psicológica tem o potencial de fazer emergir aspectos centrais da personalidade do indivíduo, que permitem compreender seus conflitos e tensões, bem como a origem deles e as experiências necessárias para retomar o desenvolvimento e a saúde. Para Barbieri (2002), o surgimento desse material ocorre porque na situação avaliativa o paciente acaba por se defrontar com etapas variadas de seu desenvolvimento pessoal, em um período de tempo restrito. O fato de incluir testes psicológicos no Psicodiagnóstico Interventivo permite, segundo a autora, alcançar uma maior margem de segurança diagnóstica, com possibilidades de averiguar a natureza e profundidade das modificações que ele acarreta na personalidade, bem como determinar as características dos pacientes que podem ser beneficiados por sua utilização. As técnicas projetivas podem também ser usadas simplesmente como mediadoras do contato terapêutico (entre o terapeuta e o mundo interno dos examinandos) e como facilitadoras da comunicação, auxiliares para elaborar intervenções, conforme descrito por Paulo (2006). Esta autora também enfatiza que, na literatura, são escassos os trabalhos de Psicodiagnóstico Interventivo com adultos, limitação para a qual o presente estudo oferecerá uma contribuição, incluindo informações sobre suas potencialidades e limites no tratamento de mulheres obesas. OBJETIVOS Diante da busca crescente pela cirurgia bariátrica como conduta terapêutica, especialmente em relação às mulheres, é relevante destacar a necessidade de prevenção e outras possibilidades de tratamento, levando em consideração o aspecto emocional. Por este 58 motivo, o atual trabalho tem por principal objetivo apresentar uma forma de tratamento psicoterápico para mulheres obesas, por meio do Psicodiagnóstico Interventivo (PI), e averiguar suas possibilidades de auxílio, para que elas não atinjam o peso suficiente para se submeter à cirurgia bariátrica, no intuito de evitar o procedimento cirúrgico e possíveis conseqüências que possam advir de tal alternativa. Nesse contexto, tentar-se-á avaliar se e até que ponto, uma abordagem terapêutica de natureza breve poderia auxiliar na perda de peso em mulheres com dificuldade de adesão ao tratamento clínico de sua doença (mudanças no comportamento alimentar e seguimento de uma dieta). É importante destacar que no tratamento da obesidade deve-se levar em conta uma combinação dos tratamentos nutricionais, físicos, psicológicos e farmacológicos, visando atingir o sucesso MÉTODO O atual trabalho foi desenvolvido na perspectiva clínica de investigação, no contexto das abordagens metodológicas qualitativas, geralmente usadas nas Ciências Humanas. O estudo de caso foi realizado com Ana, uma paciente obesa grau I (IMC = 32 kg/m²), de 32 anos de idade, que já havia tentado emagrecer por meio de dietas e exercícios físicos. Sua doença foi avaliada por um médico para que não houvesse a presença de co-morbidades, bem como nenhum tipo de doença mental ou problemática neurológica. Após assinatura do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido, a paciente foi submetida a uma avaliação psicológica, realizada em três sessões. Foram aplicadas uma entrevista clínica semiestruturada e dois testes projetivos, a saber, o Teste do Desenho da Figura Humana (DFH) e o Teste de Apercepção Temática (TAT), todos como enfoque interventivo. As sessões foram realizadas no Centro de Pesquisa e Psicologia Aplicada (CPA) da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo – Brasil. 59 O processo de análise dos dados ocorreu durante as sessões com a participante do estudo e também após o seu término. O DFH foi interpretado segundo referencial proposto por Buck (2003), e o TAT segundo referencial de análise proposto por Morval (1982). Nesta última técnica, bem como na entrevista, houve a análise e interpretação dos dados segundo referencial psicanalítico já no momento de sua aplicação, devido ao enfoque interventivo. RESULTADOS: ESTUDO DE CASO Ana apresentou colaboração durante as sessões para realização das atividades, porém, no início do DFH ela reclamou um pouco, dizendo não conseguir fazer os desenhos, demonstrando certa resistência à sua concretização. Houve predomínio da identificação sexual com a figura feminina, desenhada em primeiro lugar. Contudo, essa figura foi vista como uma figura frustradora, cheia de complicações e permeada de reclamações, identificada com a figura materna. Os desenhos denotaram sinais de dificuldade no contato (mãos desproporcionais ou escondidas, pernas frágeis) e, de maneira geral, apresentaram indícios de sentimento de inferioridade, baixa autoestima (quando questionada acerca da melhor parte do corpo, Ana responde: “ai, nenhuma... a cabeça é complicada, sempre reclama; nenhuma, não tem utilidade”), sendo a figura feminina destituída de sexualidade (pouca diferenciação com a masculina) e de valor. Houve sinais intensos de dificuldades nas relações interpessoais e restrição na expressão do self, pois o desenho pareceu ser formado por partes sobrepostas, como se estas estivessem acopladas, o que pode indicar maior dificuldade de integração. A problemática pode ser considerada a dificuldade de dominar os próprios impulsos, tentando controlá-los de maneira rígida, com subestima do corpo e dos impulsos vitais. Em relação ao contato com os impulsos sexuais, foi possível perceber negligência, pois, embora a figura masculina tenha sido vista como opressora, desvitalizada, sem afeto, havia pouca diferenciação dela com a figura feminina, indicando dificuldade em ver o outro como diferente 60 de si. O outro foi visto como necessário para suprir a dependência (relação anaclítica), mas também havia oscilações nessa posição, com tentativas de mantê-lo dependente e por perto, às vezes até confundindo seu próprio desejo com o do outro: quando questionada sobre a melhor parte do corpo da figura masculina, Ana perguntou se a examinadora se referia à dela própria ou à da figura desenhada. Em relação às estórias contadas no TAT, Ana demonstrou uma atitude mais inibida, com baixo nível de autoconfiança, pouca autonomia ao reagir a uma situação nova e necessidade de encorajamento do outro para realizar a atividade proposta. Tais características podem ser demonstradas pela hesitação ou espanto diante do conteúdo de determinadas pranchas, como, por exemplo, na prancha 13 MF: “Nossa!!! O homem, aqui é o homem e a mulher, né?” e na prancha 12F: “Ai, que que é isso aqui? (risos) Tá parecendo uma bruxa”. Também houve indícios de prejuízo na adaptação aos estímulos e às instruções, às vezes fazendo com que Ana percebesse os personagens de uma forma desvitalizada, como demonstração de sua dinâmica interna, como na prancha 2: “Essa tá meio difícil, viu? Isso aqui é um deserto? Tá parecendo um deserto”. As estórias contadas, predominantemente, apresentaram pouca coerência, clareza e lógica, principalmente nas pranchas que evocavam conteúdo explicitamente sexual (13MF) e nas relações com as figuras paterna e materna (4, 6MF, 7MF, 12F), podendo indicar certa inibição intelectual. Como exemplos têm-se as estórias: • prancha 4: “Isso aqui é, esse casal aqui eles já se gostaram e acho que o homem tá tentando sair e a mulher quer conversar com ele e ele tá fugindo do assunto. Um casal sem diálogo (risos)... Ele tem um jeito de ser durão, ela tem um jeito de ser mais amorosa, ele é mais durão. Só”. • prancha 6MF: “Esse aqui o marido já parece que tá tentando falar alguma coisa pra ela e ela tá espantada, meio assustada, parece um pouquinho brava (risos), mas é de espanto. (...) Aqui os dois tão calados, ele deve ter falado alguma 61 coisa pra ela e ela ficou espantada. Tipo assim: “você vai fazer isto?” (...) Ai... pra mim aqui acho que termina elas por elas”. De maneira geral, houve indícios de perturbações frente a determinadas pranchas, principalmente devido à hesitação, dificuldade em iniciar as estórias, falas de interlocução com o aplicador e necessidade de apoio. As perturbações também se relacionaram principalmente às pranchas que evocam conteúdos sexuais e referentes ao relacionamento com as figuras paterna e materna. Ana teve dificuldade em contar estória na prancha 16 (branca), o que pode ser indício de dificuldade de abstração, de criar, imaginar e inventar uma estória, sem partir de uma representação concreta na figura. Por este motivo, ela inicia a estória dizendo que irá contar um fato de sua vida, que mexe muito com ela, e a faz chorar durante a sessão. A paciente se identificou com heróis femininos de idades semelhantes à sua. Contudo, ela atribuiu predominantemente características negativas às figuras, demonstrando baixa auto-estima, sentimento de insegurança, isolamento e rejeição, associados à crença de inutilidade e desvitalização perante o outro. Como na prancha 2: “A moça parece que não tem com quem conversar, o moço tá de costas, a mulher não conversa com ela, não olha pra ela” e na prancha 13HF: “a mulher tá esborrachada, sem ânimo”. Ana se envolveu tanto com algumas estórias que passou a contá-las na primeira pessoa, sugerindo uma falta de distanciamento em relação ao estímulo, uma certa indiferenciação entre o eu e o ‘não-eu’: (prancha 3MF) “Essa estória parece muito comigo (de repente começa a chorar), às vezes eu nem choro, por causa das crianças, eu guardo pra mim, fico angustiada”; (prancha 7MF) “eu fico muito em cima dos meninos, eu fico preocupada (...) minha mãe também não dava carinho pra nós... até hoje ela é assim”. Em relação às necessidades dos heróis, pode-se perceber que as mais predominantes foram as de afiliação emocional e proteção reclamada, indicando o quanto precisa da ligação com o outro e o quanto acaba por ser dependente dele. 62 Houve intenso predomínio de condutas de aprendizagem social em detrimento das instintivas, levando a supor um controle excessivo em demonstrar livremente suas emoções. De maneira geral, as estórias contadas apresentaram heróis com condutas afetivas e suspensivas, sendo, em sua maioria, consideradas condutas de passividade, fraqueza, descoordenação e rigidez. Quando conseguiam satisfazer suas necessidades (condutas consumativas) os heróis agiam de uma forma muito impulsiva, demonstrando insuficiência de recursos secundários. Com referência à relação que os heróis tinham com o ambiente, foi possível perceber que o conjunto social foi reconhecido com características negativas, indicando figuras que geralmente prejudicam a satisfação das necessidades dos heróis. De forma mais específica, a figura materna foi vista tanto como ambivalente, que ora apóia ora agride, como uma figura que não consegue desempenhar seu papel de mãe, não chegando a suprir a dependência, o que leva a uma lacuna no desenvolvimento emocional. Tais aspectos podem ser observados pela prancha 7MF: “ela sentou perto da mãe, ela tava lendo um livro e não deu muita confiança, ela tava lendo, a filha sentou do lado, mostra que ela não deu muita atenção”; e pela prancha 12F: “A mulher parece que tá pensando que que ela vai fazer, e a que tá atrás tá esperando para ver o que que ela vai fazer e aí pra falar: ‘ah, o que é que você vai fazer?’. E o nome que eu dou é Perseguição”. A figura paterna também foi vista como não suficientemente boa, e, quando surge, tem como função principal punir e castrar. A figura do sexo oposto foi vista com características ambivalentes, ora provendo as necessidades afetivas, ora ausentando-se de seu papel. Nesse mesmo sentido, o conjunto físico também foi considerado predominantemente com características negativas, denotando que Ana percebe o mundo exterior como muito ameaçador e cheio de obstáculos, prejudicando a satisfação de suas necessidades. Em relação aos desfechos das estórias, houve predomínio de sua ausência (em 7 das 10 estórias contadas), indicando relutância em falar do futuro e também aprisionamento no 63 conflito, sem conseguir resolvê-lo. Como na prancha 4: “Isso aqui é, esse casal aqui eles já se gostaram e acho que o homem tá tentando sair e a mulher quer conversar com ele e ele tá fugindo do assunto. Um casal sem diálogo (risos)... Ele tem um jeito de ser durão, ela tem um jeito de ser mais amorosa, ele é mais durão. Só.”. Contudo, nas outras três estórias com desfecho, este foi tido como um fracasso, como na prancha 1: “Acho que ela vai crescer assim, deprimida, com problemas. Só a feição já mostra, tipo assim: porque é assim, pelo jeito que eu vejo aqui... pela feição... Tá mais pra... um nome pra estória... é... deixa eu ver... o problema que não foi solucionado”. A partir destas considerações, é possível assinalar que a paciente apresentou boa participação e, na medida do possível, colaborou ao fazer a atividade. Contudo, demonstrou prejuízo em relação à manifestação de sua criatividade, expressão de suas idéias, criação de algo novo, bem como prejuízo quanto aos relacionamentos com as figuras parentais e com o sexo oposto. Além disso, houve indícios de dependência em relação ao outro e temor de se tornar independente, como se tal fato pudesse causar a perda do objeto amado. De forma geral, não conseguia solucionar seus conflitos, o que gerava maior angústia e baixa auto-estima. Durante as intervenções, estes aspectos foram apontados pela terapeuta, com conseqüente concordância da paciente e gerando um ambiente de conforto, apoio e sustentação para a demonstração das necessidades. A análise horizontal e vertical das estórias contadas no TAT permitiu verificar as funções do ego da paciente, de acordo com a proposta de Morval (1982). Ana apresentou comprometimento leve em perceber a realidade tal como ela é, sugerindo certa confusão entre estímulos internos e externos, chegando até a confundir sua própria estória com aquela que contava. 64 Houve sinais de funcionamento da defesa do falso self, devido à presença de sentimentos de inutilidade, futilidade e desvalorização, parecendo não se apropriar de seu verdadeiro self, distanciando-se de suas características reais e de sua espontaneidade. Ao mostrar dificuldade em dar desfecho às estórias, deixando um final ausente, Ana evidenciou certo comprometimento na capacidade de manejar o ambiente para satisfazer suas próprias necessidades, apresentando as funções de maestria e competência levemente comprometidas. Os processos de pensamento e a autonomia de funcionamento também se mostraram levemente comprometidos, fato demonstrado pela dificuldade em iniciar determinadas estórias e apresentar uma seqüência, decorrente de perturbações afetivas. A tolerância aos estímulos também se mostrou com leve comprometimento, principalmente quando os conteúdos das pranchas evocavam temáticas causadoras de certo desconforto e conflito. A regulação e o controle das pulsões, afetos e necessidades também se mostraram comprometidas, houve demonstração da necessidade do auxílio vindo do outro, precisando também da aprovação dele para se sentir feliz e realizada (relação de objeto anaclítica). Apesar da dependência em relação ao outro, o relacionamento interpessoal se mostrou apenas levemente comprometido. A dificuldade para criar, imaginar estórias parece advir de uma lacuna quanto à dependência não suprida pela figura materna de Ana, o que denota prejuízo em sua possibilidade de existir de forma verdadeira e pessoal no mundo. Ana demonstrou comprometimento na função de regressão a serviço do ego, ilustrado pela dificuldade em dar início às estórias, em manter a coerência e em abstrair, saindo do concreto e da simples descrição das figuras. Geralmente as estórias continham detalhes empobrecidos, eram rígidas demais e tendiam à descrição dos personagens, o que denota dificuldade em relaxar, em brincar, recorrendo ao plano racional, em detrimento dos sentimentos e conteúdos afetivos dos personagens. 65 Após a análise dos dados obtidos por meio das técnicas do Desenho da Figura Humana e do Teste de Apercepção Temática, foi possível considerar a estrutura de personalidade de Ana como organização borderline. Para Bergeret (1998), tal organização assinala a presença de um nível de desenvolvimento libidinal predominantemente na fase oral (o Édipo foi saltado), a relação com o objeto é de dependência anaclítica e a angústia se refere à perda desse objeto. O conflito predominante se localiza entre o ideal de ego e o id, e o ideal de ego e a realidade, sentindo-se incapazes de se expressar verdadeiramente, havendo incompatibilidade entre aquilo que acreditam que seria correto ser, com aquilo que são. As principais defesas apresentadas foram projeção, negação, repressão e isolamento. Foi possível notar funcionamento falso self, expresso no sentimento de desvitalização, futilidade e inutilidade em sua função de mulher e mãe. CONSIDERAÇÕES FINAIS Diante de tais considerações, durante o processo interventivo realizado com a paciente, foi possível assinalar que Ana não teve suas necessidades de dependência supridas pelas próprias figuras parentais, conseqüentemente, acarretando prejuízos no atendimento à dependência de seus filhos. Seus conflitos predominantes estavam relacionados à integração dos afetos, particularmente aqueles relativos à própria sexualidade e à relação com as figuras parentais. A terapeuta pôde enfatizar que a dificuldade em ser espontânea e criativa, manifestada na dificuldade para regredir e brincar, estava acarretando em uma falta de energia para realizar determinadas atividades e a um sentimento de estagnação perante o mundo. Com isso, a paciente passou a viver uma vida sem estilo pessoal, seguindo algumas regras e normas para se sentir mais aceita, porém sem incorporá-las e transformá-las conforme seus desejos e necessidades. Assim, não consegue se mostrar realmente como é, 66 sentindo-se inferior e pouco valorizada, ou ainda, sentindo-se sozinha e não compreendida em suas necessidades. Essa dificuldade em se ver e perceber como realmente é, em ser espontânea, acaba por prejudicar seus relacionamentos pessoais, particularmente os sexuais, já que o outro é visto predominantemente como necessário para satisfazer a dependência e suprir a carência demonstrada, e, se assim não o fizer, acaba sendo um grande frustrador. Em outras palavras, a figura masculina foi vista como necessária para a satisfação do desejo infantil, mas não dos desejos sexuais. Como Ana não consegue se ver de uma forma integrada e não tem suas necessidades supridas, também não consegue satisfazer as necessidades do outro, não suprindo sua dependência para que alcance autonomia, especialmente em relação aos filhos. Isso se deve ao fato de que a deficiência afetiva (de dependência) leva a um bloqueio da doação de si, procurando reter o outro para perto de si a qualquer custo, ao invés de permitir a expressão da continuidade de seu ser pessoal. Ao levar em consideração tais fatores e seus assinalamentos, após o atendimento por meio do Psicodiagnóstico Interventivo, Ana conseguiu perder peso, voltando ao IMC considerado saudável. Isso se deve ao trabalho terapêutico realizado, por meio do oferecimento de holding e de um ambiente suficientemente bom, visando a recuperação da capacidade criativa, vista como a possibilidade de estar no mundo. Isso se deve ao fato de que os indivíduos que não tiveram experiências que lhe dessem um sentido para o self, não sentem que podem ter produtividade no mundo, que podem ter uma ação no mundo e transformá-lo de forma pessoal (Mishima, 2007). Há um sentimento de solidão muito grande, um sentimento de que há uma ausência que não foi preenchida, de um vazio que a acompanha. Desta forma, ela acaba usando recursos para que esse vazio não a domine, como desenvolver um funcionamento falso self. Deste fato decorre a importância do trabalho terapêutico, do encontro possível entre analista e paciente, com a entrega de ambos na construção de uma relação que traga o 67 reconhecimento do outro, a possibilidade de brincar e criar, a crença de que se pode ter um estilo próprio. Finalmente, é possível considerar que a obesidade pode ter um tratamento diferenciado e um acompanhamento terapêutico que alcance a perda de peso, sem necessariamente fazer com que o paciente se submeta a uma cirurgia com possíveis riscos. Para tanto, o uso de técnicas projetivas, em um atendimento interventivo, possibilita aos obesos entrar em contato com aspectos afetivos relacionados à sua doença, fazendo com que a perda de peso seja uma conseqüência do tratamento. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS Ades, L., & Kerbauy, R. R. (2002). Obesidade: Realidades e Indagações. Psicologia USP, 13(1), 197-216. Barbieri, V. (2002). A família e o Psicodiagnóstico como recursos terapêuticos no tratamento dos transtornos de conduta infantis. Tese de Doutorado apresentada ao Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo. São Paulo: São Paulo. Bergeret, J. (1998). A personalidade normal e patológica. (M. E. V. Flores, Trad.). 3ª. ed. Porto Alegre: ArtMed. (Trabalho original publicado 1996). 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(Trabalho original 1961). 71 Candidatura 4 Autores: Stella Carneiro Título: Vitimologia e psicologia da saúde 72 VITIMOLOGIA E PSICOLOGIA DA SAÚDE – um estudo exploratório Prof. Dra. Stella Luiza Moura Aranha Carneiro2 Juíza Thelma Araujo Esteves Fraga3 Juíza Adriana Lopes Moutinho4 Estagiários de Psicologia do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro : Felipe Jasbick Tonack e Giselle Araujo Estagiário de Psicologia da UNESA – Campus Ilha do Governador - Franklin Torres Neto RESUMO Atribui-se à violência e a criminalidade um papel central na desarmonia social, tão claro e sintomático do nosso moderno modo de vida. Com a violência urbana a sensação de constante ameaça à vida, à integridade física e a decorrente resposta emocional a esse tipo de evento, começa a se tornar uma ocorrência freqüente na atual realidade social. A intensidade das emoções que emergem do fato gerador do ilícito penal muitas vezes culminam na vítima em sintomas psíquicos de todo tipo, tais como os transtornos de Ansiedade e Estresse Pós-Traumático, podendo ter conseqüências maiores como surgimento de psicopatologias, em muitos casos, incapacitantes. O trabalho com a vitima é demonstrar que ela não é agente passivo do processo criminal, mas sim parte ativa e importante para a efetiva aplicação da justiça. A população a ser pesquisada é a de vítimas de vários tipos de crimes , que tem processos criminais nas primeiras e segundas Varas Criminais do Fórum Regional de Jacarepaguá – Rio de Janeiro – Brasil. Este trabalho terá como método a aplicação de questionário psicossocial, composto de perguntas fechadas e semi-abertas em um primeiro momento e abertas em um segundo momento, para o mapeamento das causas particulares dos sintomas provocados pelo fato 2 Psicóloga do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro;Professora Adjunta da Universidade Estácio de Sá – Rio de Janeiro e-mail : [email protected] 3 4 Juíza Titular da Primeira Vara Criminal do Fórum Regional de Jacarepaguá – Rio de Janeiro – e-mail: [email protected] Juíza Titular da Segunda Vara Criminal do Fórum Regional de Jacarepaguá – Rio de Janeiro – e- mail: [email protected] 73 criminoso. O tratamento realizado com os dados levantados será estatístico , além de uma interpretação do discurso das vítimas nas entrevistas. A atenção à vítima, principalmente , na área da Psicologia da Saúde , é uma forma de dar voz à estas pessoas e resgatar , através de programas integrados , a sua condição de cidadão e sua reinserção social, através de um trabalho comprometido visando a saúde emocional. INTRODUÇÃO A vítima, historicamente, sempre representou o pólo sofredor, aquela que, diante de fatos humanos ou naturais, teve sua situação recrudescida e, se não representava um sacrifício moral ou religioso, demandaria um amparo a ser proporcionado pelo grupo social. Com o fortalecimento do Estado e do reclame por uma priorização dos interesses sociais, a vítima foi sendo, ao longo dos tempos, relegada a um segundo plano. Este distanciamento começou a ser notado ao final do século XIX, e em meados do século XX foi fortemente impulsionado. Com o objetivo de reconferir o status quo de honra antes dispensado, surgiu, com traços científicos, a Vitimologia, ramo de pesquisa voltado aos problemas, deficiências, comportamentos, patologias e garantias circundantes àquela pessoa de alguma forma atingida por um ilícito penal, e que sofre um fenômeno de vitimização alterador de suas condições normais de relacionamento social. A Vitimologia passou e ainda passa por mudanças. Ao ser iniciada, de forma autônoma, indicava apenas a necessidade de maior atenção àquele que fora lesionado por um delito, e a melhorar a sua situação conforme a magnitude de seu prejuízo. Com o evoluir das pesquisas, outros aspectos passaram a ser considerados, como a medida da participação da vítima na predisposição ou incitação ao delito, suas características biológicas e sociais que influenciam 74 no ato ou fato criminoso, e até mesmo o seu quinhão de culpa na responsabilização do criminoso. As conclusões alcançadas influenciaram os sistemas normativos, proporcionando mudanças no direito substantivo e adjetivo, oferecendo penas alternativas, procedimentos especiais, transações processuais, dentre outras medidas que sugerem a resolução dos conflitos apoiados em uma parceria entre o Estado e o interesse social de um lado, e a vítima do delito, de outro. A opção do presente trabalho foi a de apresentar, em breves linhas, o conceito e as principais linhas de estudo pertencentes à Vitimologia, as várias definições de vítima , as conseqüências emocionais de tal situação e um inicial e pequeno estudo exploratório sobre as vítimas das primeira e segunda Varas Criminais do Fórum Regional de Jacarepaguá , no Estado do Rio de Janeiro, Brasil. O CONCEITO DE VITIMOLOGIA Vitimologia é o estudo da vítima sob todos os aspectos, possuindo assim, um caráter multi e interdisciplinar. A Vitimologia , como toda ciência, apresenta vertentes próprias, consubstanciandas em ramos, que podem achar-se discriminados como assistência ou como comportamento. Segundo Brito (2008) , cada um deles passou a identificar seus elementos conceituais, expandindo ou restringindo sua matéria. Desta forma , serão apresentadas algumas das mais conhecidas conceituações. Segundo Nogueira (2004) Ellemberg considera que a Vitimologia é o ramo da Criminologia que se ocupa da vítima direta do crime e que compreende o conjunto de conhecimentos biológicos, sociológicos e criminológicos concernentes à vítima. Para 75 Cornil, citado pelo mesmo autor Nogueira (2004) é o estudo da personalidade da vítima, de seu comportamento, suas motivações e reações, em face de uma infração penal. O mais importante autor Italiano sobre a matéria, Guglielmo Gulotta, de acordo com Nogueira (2004), a conceitua como uma disciplina que tem por objeto o estudo da vítima, de sua personalidade, de suas características, de suas relações com o delinqüente e do papel que assumiu na gênese do delito. Manzanera , citado por Pellegrino (1987), autor mexicano de renome internacional, indica ser ela o estudo científico da vítima, que não deve esgotar-se com o estudo do sujeito passivo do crime, mas também ater-se às outras pessoas que são atingidas e a outros campos não delituosos, como pode ser o campo dos acidentes. Quanto aos objetivos finais da Vitimologia, Separovic , citado por Piedade Júnior (1993) , passariam pela análise da magnitude do problema da vítima, explicando as causas de sua vitimização, partindo para um desenvolvimento de um sistema de medidas minimizadoras deste fenômeno, culminando na adoção de atos concretos de assistência . Este autor brasileiro (Piedade Júnior , 1993) entende que a Vitimologia deve estudar apenas a vítima de outro homem, enquanto resultado de um ato ilícito. O processo vitimizador deve ser, essencialmente, originário de uma conduta ilícita, ou não deve ser considerado um processo de vitimização . Nesse sentido, conforme afirma Mayr,citado por Morais (2005), vitimologia constitui “... o estudo da vítima no que se refere à sua personalidade, quer do ponto de vista biológico, psicológico e social, quer o de sua proteção social e jurídica, bem como dos meios de vitimização, sua interrelação com o vitimizador e aspectos interdisciplinares e comparativos” (p.85) 76 Percebe-se , desta forma, que no estudo da vitimologia há dois pontos fundamentais: o estudo do comportamento da vítima de forma geral, sua personalidade, seu atuar na dinâmica do crime, sua etiologia e relações com o agente criminoso e a reparação do dano causado pelo delito. Mas, o que entendemos por vítima ? Isso será visto , a seguir . O CONCEITO DE VÍTIMA O redescobrimento da vítima é um fenômeno do pós 2a Guerra Mundial. É uma resposta ética e social ao fenômeno multitudinário da macrovitimização, que atingiu especialmente judeus, ciganos, homossexuais, e outros grupos vulneráveis. Esse redescobrimento não persegue nem retorno à vingança privada; nem quebra das garantias para os delinqüentes: a vítima quer justiça. Na prática jurídica entende-se por “vítima” a parte lesionada que sofre prejuízo ou dano por uma infração. Este é um critério objetivo que pretende determinar a qualidade de vitima ou de delinqüente. Aquele que comete a infração ou a omissão é o autor; aquele que sofre as conseqüências nocivas é a vitima. Diferente da concepção jurídica é a concepção criminológica. A lei penal interessa-se por uma infração enquanto violação de uma norma, de uma lei. A criminologia estuda o crime como fenômeno real, tendo em conta as condições psicológicas e outras peculiaridades tanto do criminoso quanto da vítima. Estes fatores são muitas vezes ignorados sob o ponto de vista jurídico. 77 De acordo com Brito (1993), a concepção criminológica da vítima está distante da jurídica, enquanto apreciação dos sujeitos que intervêm no fenômeno criminoso, seja nos elementos causais, seja nos resultados. No Direito Internacional, a declaração sobre os princípios fundamentais de Justiça para as vítimas de delitos e abuso de poder, formulada em Milão , no ano de 1985, definiu como “vítimas” as pessoas que, individual ou coletivamente, tenham sofrido danos, inclusive lesões físicas ou mentais, sofrimento emocional, perda financeira ou diminuição substancial de seus direitos fundamentais, como conseqüência de ações ou omissões que violem a legislação penal vigente nos Estados Membros, inclusive a que prevê o abuso de poder (Brito, 1993) Von Hentig, citado por Pellegrino (1987), classifica tipologicamente as vítimas em função dos fatores psicológicos, sociais e biológicos. Seus estudos direcionados, em uma listagem taxativa incluem: 1. os jovens 2. as mulheres 3. os anciãos 4. os deficientes mentais 5. os imigrantes 6. as minorias 7. as pessoas de pouca inteligência 8. os deprimidos 9. os ávidos 10. os irresponsáveis 11. os solitários e desolados 12. os atormentados 13. os desesperados. Outras classificações têm sido formuladas por respeitáveis autores, a maioria fundamentadas muito mais na teoria do que na prática. Elas são importantes para a prevenção e controle da criminalidade,no entanto, dada a exigüidade do trabalho não serão descritas. A seguir serão abordados os estudos sobre os aspectos psicológicos que são apresentados pelas vítimas de violência. VÍTIMAS – ASPECTOS PSICOLÓGICOS 78 No decorrer da vida, o homem atravessa diferentes mudanças, tanto biológicas quanto psicossociais, que poderão acarretar situações traumáticas. Entretanto, algumas situações são esperadas e , em razão disso, serão utilizados mecanismos familiares, sociais e institucionais que preparam e apóiam o sujeito. No entanto, o trauma da vivência de um delito está relacionado à uma causa não programada na vida da pessoa. Pode-se estar mais ou menos prevenido, melhor ou pior preparado, mas não se sabe em que momento poderá ocorrer tal situação. Segundo Nordenstahl (2008), um dos fenômenos freqüentes nas pessoas que são vítimas de delitos é o que os especialistas denominam de síndrome de estresse póstraumático. Esta síndrome apresenta um conjunto de sintomas e sinais que são vividos pela vítima durante certo tempo, que dependerá de suas características pessoais e os recursos utilizados para o seu tratamento. Durante este período crítico, a vítima estará incapacitada para reagir a estímulos comuns e gerais do cotidiano. De acordo com este autor (Nordenstahl, 2008), os principais sintomas são : - sensação de cansaço e esgotamento- as forças físicas parecem ter desaparecido. A vítima não tem vontade de fazer nada e vive em expectativa paralisante. O mínimo esforço é superdimensionado. Evitam sair e freqüentar espaços públicos; - sentimento de desamparo- a ausência de auxílio das autoridades competentes, assim como da comunidade ,no momento do fato, produz a sensação de solidão diante de adversidades. Esta situação vem acompanhada pelo fracasso das políticas públicas na promoção de segurança ; - sentimento de inadequação, confusão e ansiedade- estas são sensações que a vítima sofre e que estão relacionadas com a situação vivida: desconcerto, frustração, angústia, discriminação e falta de comunicação; 79 - desorganização nas suas relações familiares – o resultado de uma situação vitimizante repercute no núcleo familiar do indivíduo. Todos se vêem envolvidos. As conseqüências são compartilhadas. Haverá uma mudança na dinâmica familiar: desde a mudança de horários para ir ou regressar para casa, modificação de esquemas de rotina diária na casa, até tomadas de decisões como renúncia ao trabalho, abandono de carreira, mudança de bairro, etc. - desorganização das relações sociais – muito semelhante ao que ocorre com as relações familiares. Há um aumento de desconfiança nas instituições e políticas de segurança, além do abandono e/ou redução da vida social. Pode acontecer um sedentarismo excessivo e o abuso da tecnologia ,como forma de comunicação, evitando o contato físico. Essas modificações podem vir acompanhadas de novos dispositivos que interferiram na comunicação social. Um dos fenômenos que se iniciou na década de 70 e tomou maiores dimensões a partir da década de 90 foi a criação dos condomínios. Ou seja , segundo Nordenstahl (2008) , “guetos de bem estar”. Outro fenômeno que se desenvolveu junto a este primeiro, foram os serviços de segurança particular , tanto no aspecto empresarial-comercial quanto familiar; - desorganização das relações de trabalho – neste aspecto, a vítima se verá diretamente afetada se houver lesão física ou dano material, que a leve a uma perda permanente ou temporária da capacidade para o trabalho. Além disso, podem aparecer transtornos psíquicos e emocionais que podem afastar as pessoas de suas atividades profissionais. A partir destes determinantes , descritos acima , foi construído o trabalho de campo. O TRABALHO DE CAMPO – PRIMEIROS RESULTADOS A população a ser pesquisada é a de vítimas de vários tipos de crimes , que tem processos criminais nas primeiras e segundas Varas Criminais do Fórum Regional de Jacarepaguá – Rio de Janeiro – Brasil. 80 Este trabalho tem como método a aplicação de um questionário psicossocial , composto de perguntas fechadas e semi-abertas em um primeiro momento e abertas em um segundo momento, para o mapeamento das causas particulares dos sintomas provocados pelo fato criminoso. A seleção da amostra é realizada nas Varas Criminais, de acordo com o registro das audiências. Foi selecionada uma amostra de 20 pessoas , vítimas dos mais diferentes delitos criminais , nas primeira e segunda Varas Criminais, que compareceram à audiência, no período de agosto a outubro de 2008. Apenas cinco pessoas compareceram , neste primeiro momento. As pessoas foram contactadas e após a explicação sobre o objetivo do trabalho, era proposta a ida ao Fórum para a entrevista. O tratamento realizado com os dados levantados , neste primeiro momento, foi estatístico , apesar do tamanho reduzido da amostra , além da interpretação de algumas falas das vítimas nas entrevistas. Alguns dados estatísticos 1- Tipos de Violência Gráfico 1. Tipos de violências cometidas contra as cinco vítimas 81 2- Sentimentos no momento da ocorrência da violência Gráfico 2. Sentimentos das vítimas no momento da ocorrência da violência 3- Alterações no estado de saúde física Gráfico 3 . Alterações no estado de saúde física das vítimas 4- Modificações de humor 82 Gráfico 4 . Modificações no estado de humor das vítimas 5- Modificações de hábitos Gráfico 5 . Modificação de hábitos nas vítimas de violência Alguns dados qualitativos Apesar do tamanho diminuto da amostra , algumas expressões acerca da violência sofrida foram marcantes , e de certa forma, vem caracterizar a chamada Síndrome de estresse pós-traumático, citada por Nordenstahl (2008), neste trabalho em capítulo anterior. 83 No que diz respeito à sensação no momento em que a violência estava ocorrendo , uma das vítimas descreveu a situação da seguinte forma : “Fiquei muito surpresa, porque nunca se espera uma coisa destas, além disso , temi pela integridade de minha filha”. Uma percentagem considerável apresentou modificações no estado de saúde física. Estas alterações se caracterizaram pelos seguintes sintomas : gastrite , com uso contínuo de medicação; hérnias de disco , acarretadas por tensão ; tremores ; e dores de cabeça constantes. As modificações de humor tiveram como características o choro constante , sem razão aparente. No tocante às modificações de hábitos , uma das declarantes afirmou que parou de trabalhar , quer retornar , mas não consegue. Outras declarações importantes foram o estado de tensão em que andam na rua, além da dificuldade em sair de casa. Os relatos das vítimas entrevistadas , neste trabalho, apresentam concordância em muitos aspectos, com os sintomas identificados de Síndrome de estresse pós-traumático, já definidos anteriormente. CONSIDERAÇÕES FINAIS Toda a organização do Sistema Penal , no Brasil, começando com a polícia, passando pelo Ministério Público, a Defensoria Pública, o Judiciário e a própria execução da pena está fundamentado, em sua maior parte, na perseguição ao criminoso e na sua punição. O Estado não se preocupa com a vítima, o lesado, o agredido, aquele que sofreu a ofensa . Na verdade , este deveria ser o foco. 84 A atenção à vítima deve incluir , portanto, o estudo e a pesquisa, para dimensionar e conhecer melhor o objetivo, a adaptação da legislação a uma nova abordagem, e o apoio, assistência e proteção à vítima . A pesquisa enfocando o impacto do crime e da violência sobre as vítimas ajuda a detectar os fatores necessários para a criação de programas especiais, interdisciplinares, envolvendo principalmente a Psicologia, pela quantidade de questões emocionais acarretadas , como foi possível observar no decorrer deste trabalho. Algumas dessas ações devem incluir : o programa de intervenção em crises, a compensação, a restituição, o ressarcimento do dano e a assistência médica, psicológica e jurídica , prevendo o acompanhamento através da mediação, tanto no processo criminal como no cível , quando instaurado, possibilitando uma Justiça mais restaurativa. A história de vida das vítimas deve ser reconstruída, contextualizando a violência sofrida, a partir do campo individual e também, como um problema social. Promover o protagonismo da vítima enquanto sujeito de direitos, em contraponto às ações assistencialistas normalmente vinculadas ao tema da violência, levará à promoção da situação de vítima para a de sujeito de direitos e deveres, resgatando desta forma a sua dignidade e cidadania. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS - BRITO, Alexis Augusto Couto de . Um breve estudo sobre a vitimologia. Disponível em http://www.novacriminologia.com.br/artigos/leiamais/default.asp?id=1598 Acesso em 13/09/2008 - MORAIS, Marciana Érika Lacerda. Aspectos da Vitimologia. In: Âmbito Jurídico, Rio Grande, 22, 31/08/2005 Disponível em 85 http://www.ambitojuridico.com.br/site/index.php?n_link=revista_artigos_leitura&artigo_id=4 30. Acesso em 06/08/2008. - NOGUEIRA, Sandro D'Amato. Vitimologia:delineamentos à luz do art. 59, caput, do Código Penal brasileiro. Jus Navigandi, Teresina, ano 8, n. 275, 8 abr. 2004. Disponível em: http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=5061. Acesso em: 02 fev. 2008 - NORDENSTAHL, Ulf Christian Eiras. ? Donde está la victima? Apuntes sobre Victimologia. Buenos Aires: Libreria Histórica, 2008 - PIEDADE JÚNIOR, Heitor. Vitimologia – evolução no tempo e no espaço. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1993. - PELLEGRINO, Laércio. Vitimologia. Rio de Janeiro: Forense, 1987. 86 Candidatura 5 Autores: Wanderley de Paula Junior & Daniela Zanini Título: Resiliência: análise das estratégias de coping por pacientes em tratamento radioterápico 87 88 Resiliência: análise das estratégias de coping por pacientes em tratamento radioterápico Wanderley de Paula Junior Hospital Araújo Jorge (ACCG) e Daniela Zanini Universidade Católica de Goiás Universidade Estadual de Goiás. [email protected] [email protected] Resumo Esta pesquisa visa descrever e analisar as correlações entre as estratégias de coping, resiliência, bem-estar subjetivo e estresse. A amostra foi constituída por 60 pessoas, com idades entre 26 a 82 anos, sendo 40 (66,70%) do sexo feminino e 20 (33,3%) do sexo masculino, com câncer em radioterapia. Foram aplicadas as escalas de Bem-Estar Subjetivo, o Inventário de Resiliência e de Sintomatologia de Estresse e Coping Response Inventory – Adult Form (CRI-A). Os resultados apontam relações significativas entre as estratégias de coping, fatores de resiliência e bem-estar subjetivo. Percebe-se que as manifestações de sintomas de estresse psicológicos podem desencadear mais afetos negativos e insatisfação com a vida e podem ser explicados pelo uso de estratégias de evitação a problemas. Entretanto, os fatores de resiliência apontam para mais afeto positivo e denotam uso de estratégias de afrontamento. Palavras Chaves: Câncer, radioterapia, resiliência, coping, bem-estar subjetivo. O câncer, segundo Yamaguchi (1994), tem origem nos genes de uma célula e por processos de mutação se multiplica e forma massa tumoral maligna local e a distância. Atualmente discute-se a multiplicidade de fatores envolvidos na etiologia desta doença. 89 Dentre estes fatores destacam-se alguns de base comportamental, como uso de álcool e cigarro, o adiamento na busca de serviços de saúde, a não realização de exames preventivos, outros de base emocional, como a influência de estados depressivos sob o sistema imunológico e por fim, os aspectos biológicos tradicionalmente estudados, como a hereditariedade ou maior vulnerabilidade de alguns órgãos em função da vivência de determinados fatores de risco. Estima-se 351.720 casos novos de câncer para o Brasil no ano de 2008 (Instituto Nacional do Câncer – INCA, 2007). O tratamento desta doença depende de sua classificação em termos de estágio de desenvolvimento, do órgão afetado, do tecido de origem, dos aspectos morfológicos, estruturais e o grau de comprometimento em tecidos vizinhos e distantes. Os principais tratamentos se dividem em: cirurgia, quimioterapia, imunoterapia e radioterapia, sendo este último foco deste estudo (Yamaguchi, 1994). A radioterapia como tratamento do câncer começou a ser utilizada em 1899, e seu objetivo é aplicar uma dose de radiação, a maior possível, com finalidade ideal de controle do tumor e minimizar os prejuízos aos tecidos normais circunvizinhos. Isolada ou associada à cirurgia e/ou quimioterapia, é uma modalidade curativa efetiva para muitas neoplasias malignas com alta taxa de sobrevida nos estádios inicias da doença (Perez, 1999). Os efeitos colaterais da radioterapia iniciam na segunda ou terceira semana após o início do tratamento e variam de acordo com a área do corpo a ser tratada, uma vez que a radioterapia é localizada, e grau de sensibilidade da pessoa à irradiação. De forma geral paciente pode sentir náuseas, vômitos, tonturas, alopecia, inapetência, sensação de fraqueza, diarréia, cólicas e ardor ao urinar (Paula Junior, 1998; Garcia & Kosminsky, 1999).Os efeitos colaterais da radioterapia podem interferir no equilíbrio emocional do paciente e na credibilidade que o mesmo tem no tratamento. 90 Quanto à credibilidade na irradiação como tratamento, percebe-se que, historicamente a bomba atômica de Hiroshima, os acidentes radioativos de Chernobyl e do césio-137 em Goiânia se apresentam como destruição e catástrofe. Quando a utilização de fonte ionizante é reapresentada como tratamento, a mesma, pode ser percebida com descrédito, enquanto propriedade terapêutica contra o câncer (Paula Junior, 1998; Garcia & Kosminsky, 1999). Somados a esta representação e os efeitos colaterais, não é raro encontrar pacientes que questionam o efeito curativo da radioterapia. Para Garcia e Kosminsky (1999) podem aparecer emoções negativas em relação à radioterapia, tais como, medo do aparelho de radioterapia, insegurança, ansiedade, depressão reativa, sentimentos de impotência, culpa, raiva por estar doente, tristeza entre outros. A intensidade e duração destas emoções, segundo estes autores, podem estar relacionadas às variáveis: traços de personalidade; diagnóstico no momento de vida associado à idade, situação profissional e socioeconômica; posição familiar e religião; experiências passadas em relação ao câncer, aliados ao conhecimento dos efeitos colaterais e evolução da doença; preconceitos culturais – câncer como uma sentença de morte e informações leigas obtidas através dos meios de comunicação. Arraras et al. (2008) e Bergelt, Lehmann, Beierlein e Koch (2008) analisaram a qualidade de vida de pacientes com câncer em tratamento radioterápico, através da aplicação do questionário QL da EORTC. Os resultados apontaram limitações moderadas na qualidade de vida global quanto à perspectiva futura, funcionamento e prazer sexual e distúrbios do sono. Os pacientes com câncer de próstata reportaram médias superiores quanto aos sintomas físicos e funcionamento geral, porém sofreram menos com fadiga, dispnéia e perda do apetite do que as mulheres com câncer de mama. Pacientes com câncer de mama reportaram maior efeito colateral do que pacientes com câncer de próstata, provavelmente, devido ao 91 tratamento extensivo antes da radioterapia, como cirurgia e/ou quimioterapia. Durante o tratamento de radiação, os dois grupos relataram distresse e dor. Estes estudos demonstraram, de forma geral, que mesmo com os efeitos colaterais do tratamento, da dor e distresse relatados pelos pacientes, estes apresentaram qualidade de vida satisfatório. Este dado nos reporta a idéia de superação destes pacientes frente à adversidade – câncer e tratamento, portanto ao tema resiliência. Os estudos sobre resiliência iniciaram há mais de trinta anos atrás, quando estes eram compreendidos como características inatas para resistir e superar aos estressores, ter imunidade e não virar vítima (Grünspun, 2003). Assis, Pesce e Avanci (2006) apontam que o conceito de resiliência começou a ser estudado com mais afinco pela psicologia e psiquiatria designando a capacidade da pessoa de resistir às adversidades, considerando fatores intrínsecos e extrínsecos. Resiliência é a força necessária para a saúde mental estabelecer-se durante a vida, mesmo após a exposição a riscos. Tal exposição pode tornar a pessoa vulnerável no confronto com as adversidades. Assim, surgem os fatores de proteção que visam formar um anteparo e proteger a pessoa das situações de estresse. Para Rutter (1987), os fatores de risco são as situações estressantes da vida, entre elas a pobreza, as perdas afetivas, as enfermidades, o desemprego, as guerras, as calamidades, etc... Para este autor, os fatores de proteção são as influências que modificam, melhoram ou alteram a resposta a um resultado não adaptativo. Costa e Assis (2006) descrevem que os fatores protetivos são: fortalecimento de vínculos, relacionamentos emocionais positivos; autonomia que implica em autodeterminação, a auto-imagem positiva, comportamento pró-social e projeto de vida. Com isto, visa a 92 desenvolver a capacidade para resistir à destruição e se reconstruir perante as adversidades. Mota, Benevides-Pereira, Gomes e Araújo (2006) acrescentam ainda a crença ou religião, o favorecimento da comunicação e colaboração de problemas. Ter uma crença ou fazer parte de uma religião parece construir um anteparo que irá fortalecer a pessoa diante de situações de vulnerabilidade. Além disso, nos relacionamentos interpessoais o fato da pessoa estabelecer uma comunicação mais clara e pautada na assertividade pode desencadear numa melhor resolução dos problemas e maior busca de rede de suporte social. Pesce et al. (2005) relatam correlação significativa entre resiliência com constructos como: auto-estima, apoio social, satisfação na vida, saúde física e baixo nível de depressão, sensação de bem estar e habilidade de lidar com problemas. Estes autores, na revisão teórica, referem à Máster e Garmezy (1984) e apontam que os estudos com resiliência em crianças apresentam três variáveis como fatores de proteção: a. características de personalidade, como auto-estima, flexibilidade, habilidade para resolução de problemas; b. coesão e bom relacionamento com a família e c. disponibilidade de suporte externo como a escola, grupo de pares, comunidade, que reforce as estratégias de coping para lidar com eventos estressores. Segundo Lazarus e Folkman (1984), o coping resulta de esforços cognitivos e comportamentais da pessoa para lidar com exigências internas ou externas frente a situações de estresse e que são percebidas por esta pessoa como desafios diante dos próprios recursos. Para estes autores as situações de estresse são percebidas pelo indivíduo como uma ameaça ao seu equilíbrio e assim, para superar este perigo a pessoa utiliza-se do coping com vistas a reestabelecer seu bem-estar. Costa e Pereira (2007) apontam que bem-estar subjetivo ora é conceituado como felicidade, prazer ou satisfação com a vida, ora é compreendido como “qualidade de vida percebida” ou como afeto positivo e afeto negativo. Para estes autores há uma linha conceitual que considera bem-estar subjetivo como satisfação com a vida, afeto positivo e 93 afeto negativo, entretanto, para outros autores deve-se considerar a auto-aceitação, as relações positivas com os outros, autonomia, domínio do ambiente, razão de viver e crescimento pessoal. Entretanto, várias pesquisas sobre coping tem sido realizadas com intuito de compreender como as pessoas superam adversidades com a finalidade de manter ou recuperar seu bem-estar. Gimenez (1997), por exemplo, ao pesquisar 120 mulheres, submetidas à cirurgia de mastectomia, aponta segundo os resultados obtidos em sua pesquisa que o bem-estar psicológico foi predito pelas seguintes variáveis: focalizar nos aspectos positivos da situação, coesão familiar, autoculpa, redução de tensão e complicações de saúde. Os resultados demonstram que mulheres com altos níveis de bem-estar psicológico tinham famílias coesas e focalizavam nos aspectos mais positivos da sua vida e da cirurgia de mastectomia. Entretanto, complicações de saúde e o uso de coping como a autoculpa e redução de tensão para lidar com a doença indicaram baixos níveis de bem-estar psicológico. Este estudo denota uma interação entre aspectos intrínsecos, focar nas positividades, traço de personalidade e aspectos extrínsecos como o suporte social, resultam em melhor bem-estar. Ao contrário quando a pessoa centra em si mesma e se responsabiliza pelo evento estressor há uma tendência à redução do bem-estar psicológico. Heim, Valach e Schaffner (1997), em outro estudo, ao analisar 74 pacientes com câncer de mama, observadas num período de 3 a 5 anos com 3 a 6 meses de intervalo, descrevem que o relacionamento interpessoal positivo e as forma de enfrentamento de aproximação, voltadas para o problema, auxiliam na adaptação psicossocial através do suporte social e auto-controle. Enquanto, o coping de evitação (negação e fuga) interfere negativamente nesta adaptação. Este estudo assemelha-se à pesquisa de Gimenez (1997) quanto à importância da combinação de fatores internos e externos para promoção do bem-estar. Entretanto, esta 94 pesquisa aponta para o uso de estratégias de aproximação, voltadas para o problema como melhor forma de adaptação. Pesquisas, com populações diferentes parecem apontar nesta mesma direção como as de Zanini e Kirchner (2005) que descrevem que estratégias de coping de aproximação ou que focalizam o problema estão positivamente relacionadas com o estado de saúde e o bem-estar, em oposição às estratégias evitativas ou focadas na emoção relacionadas a condutas psicopatológicas ou ao aumento de relatos de mal-estar psicológico em adolescentes. Assim como a pesquisa de Lisboa et al. (2002), com 87 crianças divididas em dois grupos vítimas e não vítimas de violência observam que as estratégias evitativas tendem a dificultar o desenvolvimento saudável. As estratégias que visam enfrentar e solucionar os problemas são mais adaptativas e funcionais. Para os participantes desta pesquisa que utilizaram estas estratégias de enfrentar e solucionar o problema observou-se a presença de sentimentos positivos, bem-estar, alívio e felicidade após a resolução do problema. Desta forma, com a finalidade de investigar as formas de enfrentamento do paciente com câncer em tratamento radioterápico, o presente estudo pretende analisar a relação entre o uso de estratégias de coping, resiliência e auto-relato de bem-estar subjetivo na adaptação e superação das adversidades nestes pacientes. Para esta pesquisa foram utilizados instrumentos com a finalidade de atingir o objetivo acima proposto. Entretanto, entendemos que as teorias que abordam o coping, a resiliencia e o bem-estar subjetivo são complexas e envolvem a relação de fatores internos, próprios do sujeito, assim como, fatores externos, relativos ao ambiente. Método Participantes 95 Participaram deste estudo 60 pessoas, sendo 40 (66,70%) do sexo feminino e 20 (33,3%) do sexo masculino, com diagnóstico de câncer e em tratamento radioterápico em um hospital especializado no tratamento de câncer. As idades variaram entre 26 a 82 anos de idade (M = 52, DP = 13,25). Quanto ao número de aplicações de radioterapia os participantes estavam entre a quarta e a trigésima quinta aplicação. Instrumentos Para este estudo foram utilizados o Coping Response Inventory – Adult Form (CRI - A), em fase de validação para a população brasileira, pelo Grupo de Estudos em Psicologia Organizacional, do Trabalho e da Saúde – GEPOTS - da Universidade Católica de Goiás, o Inventário de Resiliência, de Benevides-Pereira e Moreno-Jiménez (2008), a Escala Bem-Estar Subjetivo, de Albuquerque e Tróccoli (2004), o Inventário de Sintomatologia de Estresse, de Benevides-Pereira e Moreno-Jiménez (2002). O CRI – A de Moos (1993) mede oito tipos de estratégias de coping, que se agrupam em três partes: 1ª) o participante da pesquisa descreve uma situação estressante que vivenciou nos últimos 12 meses; 2ª) o sujeito avalia 10 perguntas sobre os seguintes temas experiência prévia, prejuízos, responsabilidade do evento estressante; 3ª) e por fim, responde a 48 perguntas sobre comportamentos que utiliza ao enfrentar um problema. Estas perguntas são respondidas de acordo com quatro alternativas de tipo likert, e as respostas se agrupam posteriormente, por meio da adição direta dos itens nas oito escalas de estratégias de coping. O CRI – A possibilita classificar o conjunto de estratégias de coping segundo o foco em estratégias de aproximação e de evitação a situações estressantes. Assim, o CRI-A mede os esforços cognitivos e comportamentais dos indivíduos ao enfrentarem um problema de forma direta (coping de aproximação) medidos por quatro fatores: análise lógica, reavaliação positiva, busca de apoio e resolução de problemas; ou indireta (coping de evitação) também 96 medidos em quatro fatores: evitação cognitiva, aceitação/resignação, busca de gratificação alternativa e descarga emocional (Moos, 1993). O Inventário de Resiliência de Benevides-Pereira e Moreno-Jiménez (2008), se constitui de 40 itens que expressam ações ou atitudes afirmativas e os participantes assinalam numa escala de 1 a 5, se estão totalmente em desacordo (1), em desacordo (2), nem de acordo, nem em desacordo (3), de acordo (4), e totalmente de acordo (5). Estes itens foram reduzidos a 24 itens para análise, sendo que 16 itens foram excluídos uma vez que repetem as afirmações já feitas para confirmação dos dados e agrupados em 6 fatores: fator 1 (F1) inovação e tenacidade, fator 2 (F2) hiperemotividade, fator 3 (F3) assertividade, fator 4 (F4) empatia, fator 5 (F5) satisfação no trabalho e fator 6 (F6) competência emocional. A Escala de Bem-Estar Subjetivo de Albuquerque e Tróccoli (2004) compõe-se de 62 itens. Na primeira parte da escala, os itens vão do número 1 ao 47 e descrevem afetos positivos e negativos, devendo o sujeito responder como tem se sentido ultimamente numa escala em que 1 significa nem um pouco e 5 significa extremamente. Na segunda parte da escala, os itens vão do número 1 ao 15 e descrevem julgamentos relativos à avaliação de satisfação ou insatisfação com a vida, devendo ser respondidos numa escala onde 1 significa discordo plenamente e 5 significa concordo plenamente. O Inventário de Sintomatologia de Estresse (ISE), de Benevides-Pereira e Moreno-Jiménez (2002) apresenta 30 itens afirmativos, numa freqüência do tipo Likert, de 0 para “nunca”, 1 “raras vezes”, 2 “moderadamente”, 3 “freqüentemente” até o 4 “assiduamente”, relativos aos sintomas referenciados na literatura como freqüentes ou característicos de estresse no dia a dia. Estes itens agrupam-se formando as escalas: sintomas físicos (SF); sintomas psicológicos (SP). 97 Procedimento Após ter sido avaliado e aprovado o projeto de pesquisa pelo comitê de ética em pesquisa, protocolo No. 039/07, os participantes da pesquisa foram abordados pelo pesquisador responsável ou auxiliar de pesquisa, orientados sobre os objetivos e convidados a participar da mesma. Após aceitação foram convidados a assinar o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido. Os participantes foram selecionados aleatoriamente num grupo de pacientes em tratamento radioterápico e aplicados os instrumentos na seguinte ordem: Coping Response Inventory – Adult Form (CRI - A); Inventário de Resiliência; Escala Bem-Estar Subjetivo; Inventário de Sintomatologia de Estresse. O tempo de aplicação dos instrumentos variou segundo condições médicas dos participantes. Em geral o tempo médio de aplicação foi de 2 horas. Resultados A análise desta pesquisa foi realizada através do pacote estatístico para Windows SPSS versão 14.0. Para avaliar o uso diferencial de estratégias de coping, os fatores da escala de resiliência, da escala de bem-estar subjetivo e da escala de sintomatologia de estresse entre a amostra quanto ao sexo, utilizou-se à técnica de Kruskal-Wallis, devido a número reduzido da amostra (N = 60). Os dados são apresentados na tabela 1. Segundo se observa na tabela 1, as mulheres relataram um uso superior das estratégias de análise lógica (Z = -2,36 e p = 0,02), resolução de problemas (Z = -3,08 e p = 0,02) e descarga emocional (Z = -2,96 e p = 0,00). 98 No Inventario de Resiliência observa-se que os fatores da escala que apresentaram resultados significativos foram hiperemotividade (Z = -3,49 e p = 0,00) e empatia (Z = -2,30 e p = 0,02) (ver tabela 1). Na Escala de Bem-Estar Subjetivo o afeto negativo (Z = -2,24 e p = 0,02), satisfação com a vida (Z = -2,21 e p = 0,03) e insatisfação com a vida (Z = -2,24 e p = 0,02) foram os resultados mais significativos, sendo que as mulheres apresentam escores maiores para o afeto negativo e a insatisfação com a vida, enquanto os homens denotam nos resultados maior satisfação com a vida. Em relação ao Inventário de Sintomatologia do Estresse, o estudo de comparação de médias, segundo o sexo (tabela 1), revelou que são as mulheres que relatam mais sintomas psicológicos em comparação aos homens (Z = -2,98 e p = 0,00). Tabela 1. Descritivos de coping, resiliência, bem-estar subjetivo e sintomas de estresse. Variável Sexo Masculino Feminino Z P< m (DP) m (DP) Análise lógica 7,10 (3,42) 9,35 (3,63) -2,36 0,02** Resolução de problemas 7,30 (2,96) 10,05 (3,22) -3,08 0,02** Descarga emocional 3,05 (2,05) 5,25 (2,74) -2,96 0,00** 33,85(10,46) 41,10 (8,35) -2,56 0,01** 9,60 (2,19) 11,70 (1,71) -3,49 0,00** Estratégias de coping Cri-Afrontamento Fatores de Resiliência Hiperemotividade 99 Empatia 9,85 (2,03) 11,15 (1,44) -2,30 0,02** Fatores de Bem-Estar Subjetivo Afeto negativo 43,05 (16,07) 56,48 (21,52) -2,24 0,02** Satisfação com a vida 31,85 (4,23) 28,25 (6,40) -2,21 0,03** Insatisfação com a vida 17,60 (4,17) 20,35 (4,81) -2,24 0,02** 18,97 (11,22) -2,98 0,00** Fator de Sintomatologia de Estresse Sintomas Psicológicos 10,11 (8,41) Para avaliar a relação entre as variáveis analisadas procedeu-se um estudo correlacional de Pearson. Os dados são apresentados na tabela 2. Tabela 2. Análise de correlação de Pearson: coping, resiliência, bem-estar subjetivo e sintomatologia de estresse. Coping Resiliência Bem-Estar Subjetivo Sintomatologia de estresse IT He As E ST CE AP AL SCV .390** RP .311* .467** BA .381** .350** PS ICV SF .348** SP .449** .291* .492** EC .329* AR -.307* BGA .371** DE AN .327* .271* .281* -.272* .421** .367* -.266** .404** -.261* .407** .387** *Correlação significativa a 0.05 (2-tailed). 100 **Correlação significativa a 0.01 (2-tailed). AL = Análise lógica; RP = Reavaliação positiva; BA = Busca de apoio; PS = Resolução de problemas; EC = Evitação Cognitiva; AR = Aceitação Resignação; BGA = Busca de gratificação alternativa; DE = Descarga emocional.IT = Inovação e Tenacidade; He = Hiperemotividade; As = Assertividade; E = Empatia; ST = Satisfação no Trabalho; CE = Competência Emocional. AP = Afeto Positivo; AN = Afeto Negativo; SCV = Satisfação com a Vida; ICV = Insatisfação com a Vida. SF = Sintomas Físicos; SP = Sintomas Psicológicos. De acordo com a análise de correlação de Pearson podemos observar que quanto mais o participante da pesquisa utiliza estratégia de coping análise lógica, mais afeto negativo (r = 0,390; p = 0,002), insatisfação com a vida (r = 0,348; p = 0,006) foram relatados, assim como, mais sintomas psicológicos (r = 0,449; p = 0,001). Portanto, o uso de estratégias de enfrentamento do tipo análise lógica parecem desencadear maior desconforto quanto ao bem-estar subjetivo e maior sintomas de estresse com características psicológicas. Pode-se notar que a reavaliação positiva se relaciona com satisfação no trabalho (r = 0,311; p = 0,016), com afeto positivo (r = 0,467; p = 0,000) e com satisfação com a vida (r = 0,291; p = 0,024). Enquanto a estratégia análise lógica parece resultar em maior desconforto psicológico, as estratégias que envolvem reavaliação positiva apresentam resultados mais positivos quanto ao bem-estar subjetivo e satisfação no trabalho. O uso de estratégia de busca de apoio parece denotar maior satisfação no trabalho (r = 0,381; p = 0,003) e afeto positivo (r = 0,350; p = 0,007). A estratégia de coping resolução de problema pode se correlacionar com afeto positivo (r = 0,492; p = 0,000); enquanto evitação cognitiva parece se correlacionar com afeto negativo (r = 0,329; p = 0,010) e com sintomas psicológicos (r = 0,281; p = 0,036). Enquanto que a busca de apoio e a resolução de problema se relacionam com melhor qualidade do bem-estar subjetivo, a evitação cognitiva parece desenvolver mal estar subjetivo com conseqüências psicológicas para os sintomas de estresse. 101 Quanto mais os sujeitos utilizaram estratégia de aceitação/resignação, menos se pode observar o afeto positivo (r = -0,307; p = 0,019) e menos satisfação com a vida (r = -0,272; p = 0,039), porém, mais se pode notar o afeto negativo (r = 0,271; p = 0,040), a insatisfação com a vida (r = 0,421; p = 0,001) e os sintomas psicológicos (r = 0,367, p = 0,006). A estratégia de coping busca de gratificação alternativa se relaciona positivamente com afeto positivo (r = 0,371; p = 0,003) e inversamente com sintomas físicos (r = -0,266; p = 0,043). Descarga emocional parece relacionar com o aumento dos fatores hiperemotividade (r = 0,327, p = 0,011), afeto negativo (r = 0,404; p = 0,01), insatisfação com a vida (r = 0,407; p = 0,001) e sintomas psicológicos (r = 0,387; p = 0,003), e diminuir o fator satisfação com a vida (r = -0,261; p = 0,044). Aceitação/resignação e descarga emocional também são estratégias de enfrentamento que podem resultar em afetos negativos e menor satisfação com a vida, resultando em aparecimento de sintomas de estresse psicológicos. Veja dados na tabela 2. Discussão As médias consideradas com graus de significâncias apresentadas para as freqüências das estratégias de coping, entre os grupos do sexo masculino e feminino, foram similares aos dados apresentados na pesquisa por Moos (1993). Estes dados, além de serem concordantes com os dados apresentados por este autor, denota que as mulheres apresentam médias maiores do que os homens nas estratégias de análise lógica, resolução de problemas e descarga emocional. O fato do número de mulheres pesquisadas serem superior ao dos homens, parece não ter interferido nestes resultados, uma vez que os estudos sobre coping têm reforçado estes dados, assim como na pesquisa de Moos (1993). Quanto ao instrumento de sintomatologia de estresse, os sintomas psicológicos apresentam serem significativos entre grupos. A amostra do sexo feminino aponta média bem maior de sintomas psicológicos do que a amostra masculina, o que indica que as mulheres, 102 neste grupo analisado, podem apresentar maior grau de vulnerabilidade ao estresse em detrimento do sofrimento psicológico do que o grupo de homens. Mota et al., (2006), Bergelt et al., (2008), Sehgal et al., (2008) apresentam resultados similares em suas pesquisas quanto o predomínio de sintomas psicológicos de estresse nas mulheres. Nestes estudos as pacientes com câncer de mama reportam maior efeito colateral, fadiga e problemas de sono do que os pacientes com câncer de próstata. Entretanto, durante o tratamento de radiação, os dois grupos apontam distresse e dor. Porém, as pacientes com câncer de mama parecem recuperar mais lentamente quando consideramos o funcionamento geral e emocional relativos à qualidade de vida, segundo Bergelt et al., (2008). Em nosso estudo os dados também apontam para o aparecimento maior de sintomas psicológicos de estresse nas mulheres pesquisadas, porém percebe-se que as mesmas também buscam mais estratégias de coping para superar os problemas, principalmente as estratégias de aproximação. Heim, Valach e Schaffner (1997) apontam que o relacionamento interpessoal positivo e as formas de enfrentamento de aproximação, voltadas para o problema, auxiliam na adaptação psicossocial através do suporte social e auto controle. Enquanto, o coping de evitação (negação e fuga) interfere negativamente nesta adaptação. Este estudo assemelha-se à pesquisa de Gimenez (1997) quanto à importância da combinação de fatores internos e externos para promoção do bem-estar. Algumas pesquisas descrevem também que estratégias de coping de aproximação ou que focalizam o problema estão positivamente relacionados com o estado de saúde e o bemestar. Em oposição, as estratégias evitativas ou focadas na emoção dificultam o desenvolvimento saudável e pode desencadear condutas psicopatológicas ou aumento de relatos de mal-estar psicológico (Zanini e Kirchner, 2005; Lisboa et al., 2002). 103 Na nossa pesquisa, as estratégias de coping parecem influenciar nos afetos. Assim, podemos dizer que o uso de estratégias de evitação ao problema pode levar não só a maior relato de percepção de afetos negativos como também, a uma menor percepção de afetos positivos, enquanto que, os pacientes que enfrentam seus problemas por meio de estratégias de enfrentamento direto relatam mais afetos positivos. Por fim, as estratégias de evitação a problemas parecem também explicar a insatisfação com a vida e marginalmente a manifestação de sintomas psicológicos. Em relação ao estudo correlacional, observa-se que a Aceitação/resignação e descarga emocional também são estratégias de enfrentamento que estão associadas com afetos negativos e menor satisfação com a vida, resultando em aparecimento de sintomas de estresse psicológicos. Por outro lado, as formas de enfrentamento através da busca de gratificação alternativa parecem se associar com um maior auto-relato de afeto positivo e menor probabilidade de surgimento de sintomas físicos para sintomas de estresse. Inovação e tenacidade embora não relacionem com a forma de enfrentamento do problema, denotam maior assertividade e satisfação no trabalho e conseqüentemente, maior bem-estar subjetivo através do afeto positivo e menor aparecimento de sintomas psicológicos. Deste modo, podemos postular que, para o paciente com câncer, em tratamento radioterápico, o uso de estratégias de coping que buscam a solução direta do problema parecem estar associadas a índices mais elevados de resiliência em termos de inovação e tenacidade, assim como, relacionados a contextos de trabalho. Competência emocional que é um dos fatores da resiliência não se correlacionou com nenhum dos fatores de coping, bem-estar subjetivo, sintomatologia de estresse. É importante ressaltar que o fator competência emocional no instrumento utilizado de Benevides-Pereira e Moreno-Jiménez (2008) é composto somente por dois itens. Além disso, os dois itens referemse à expressão verbal dos sentimentos. O baixo número de itens e a direção da competência 104 emocional como capacidade de expressão verbal dos sentimentos podem interferir na qualidade da resposta. Estudos posteriores deveriam ser desenvolvidos a fim de verificar novas possibilidades de avaliação de competência emocional que não somente aquela associada à expressão verbal de sentimentos. Na escala de bem-estar subjetivo, os participantes da pesquisa, denotam utilizar mais de afeto positivo e, portanto, obter mais satisfação com a vida do que afeto negativo e conseqüentemente, menos insatisfação com a vida. Para Gimenez (1997) e Schroevers, Kraaij, Garnefski (2008), os altos níveis de bem-estar psicológico entre outros fatores, estavam relacionados com o foco nos aspectos positivos para lidar com os eventos. Arraras et al., (2008), Bergelt et al., (2008), também discutem que apesar do estresse e da dor durante o tratamento de radioterapia, o fato, dos pacientes analisados focarem nos afetos positivos proporcionaram melhor bem-estar subjetivo. Para Albuquerque e Tróccoli (2004), o bem-estar subjetivo tem três características fundamentais: a subjetividade, as medidas positivas e a avaliação global. Entretanto, quando fazemos referência aos estudos com pacientes oncológicos em radioterapia, aliado a nossa pesquisa, pode-se compreender que apesar do diagnóstico de câncer, dos efeitos colaterais e adversidades do tratamento entre outros, é possível afirmar que resiliência não implica simplesmente na cura do câncer, mas a forma como a pessoa lida com a doença e tratamento em diferentes momentos deste processo. Resiliência, neste contexto, pode ser compreendida como um fenômeno processual e complexo, que visa superar e ressignificar as situações adversas ao longo da própria vida de forma positiva. Por fim, conclui-se que os objetivos deste trabalho foram alcançados ao descrever as estratégias de coping e relacioná-las com o estresse, com o auto-relato de bem-estar subjetivo e a resiliência. Nota-se, porém, que apesar dos estudos transversais terem uma grande 105 contribuição para a pesquisa ao analisar um recorte na história da pessoa investigada, estes estudos perdem em termos de análise processual. Os estudos longitudinais, parafraseando Straub (2005), voltados para o estudo da perspectiva do curso de vida, eliminam fatores confusos, como por exemplo, a diferença na forma como a pessoa lida com estresse. Por outro lado são estudos demorados e caros. Porém, sugerimos que novos estudos devem ser realizados com a finalidade da aprofundar mais sobre este assunto e com isto ampliar ainda mais o conhecimento deste tema. Referências Bibliográficas Albuquerque, A., & Tróccoli, B. (2004, Maio-Agosto). Desenvolvimento de uma Escala de BemEstar Subjetivo. Psicologia: Teoria e Pesquisa, 20 (2), 153-164. Arraras, J., Manterola, A., Dominguez, M., Arias, F., Villafranca, E., Romero, P., et al. (2008, Agosto). Impact of Radiotherapy on the Quality of Life of Elderly Patients with Localized Breast Câncer. A Prospective Study. Clinical Transl. Oncology, 10(8), 498-505. Assis, S., Pesce, R., & Avanci, J. (2006). Resiliência: Enfatizando a proteção dos Adolescentes. Porto Alegre: Artmed. Benevides-Pereira, A.M., & Moreno-Jiménez, B. (2002). O Burnout em um grupo de psicólogos brasileiros. In: Burnout: Quando o Trabalho Ameaça o Bem-Estar do Trabalhador (pp. 157-185). São Paulo: Casa do Psicólogo. Benevides-Pereira, A.M., & Moreno-Jiménez, B. 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Recuperado em 20 agosto, 2008, do web site http://www.psiquiatria.com/interpsiquis2003/9908. 108 Candidatura 6 Autores: Ana Cecília Ferreira e Valéria Barbieri Título: Vivência materna em gestante de Alto Risco por Diabetes Mellitus Pré-Gestacional: um estudo de caso 109 VIVÊNCIA MATERNA EM GESTANTE DE ALTO RISCO POR DIABETES MELLITUS PRÉGESTACIONAL: UM ESTUDO DE CASO Ana Cecília Ferreira5 Valéria Barbieri6 Departamento de Psicologia e Educação Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto-Universidade de São Paulo INTRODUÇÃO A gestação é acompanhada por estados emocionais característicos, como acessos de ansiedade e de fantasias bem determinadas e específicas, alteração da auto-imagem, mudança de identidade, que se entrelaçam às complexas inter-relações entre fatores hormonais e psicológicos. Todo o funcionamento psíquico do bebê tem como pré-condição para um desenvolvimento saudável os cuidados maternos: “(...) pode-se dizer que, de início, a mãe deve adaptar-se de modo quase exato às necessidades de seu filho para que a personalidade infantil se desenvolva sem distorções”(Winnicott, 1997, p. 9). Em “Notas sobre o Relacionamento Mãe-filho”, Winnicott (1994) analisa que há muitas maneiras de abordar a relação de uma mãe com o seu bebê, no que se refere às fantasias 5 Mestranda do Departamento de Psicologia da Faculdade de Filosofia Ciência e Letras de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo –USP ([email protected]). 6 Professora Doutora do Departamento de Psicologia da Faculdade de Filosofia Ciência e Letras de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo –USP ([email protected]). 110 conscientes e inconscientes, aos problemas com o bebê, à amamentação, e aos cuidados em geral, uma vez que tudo isso propicia à mãe sentir o bebê como real. Neste sentido, parece importante analisar os aspectos da personalidade da gestante, suas necessidades, como está vivenciando os seus conflitos pessoais e relativos à maternidade.Uma vez que a origem da vida mental do bebê ocorre no ventre materno, o bebê sofre, por estar vinculado à mãe, as interferências das experiências dela. É interessante, ainda, ressaltar, que a construção dessa relação mãe – bebê se estabelece desde o projeto de ser mãe e se desenvolve na gestação. Winnicott (1990, considera tal relação como experiência essencial para o par, desde o período gestacional até o cuidado no puerpério. Fixa o tempo de gestação como uma preparação para o bebê iniciar o seu percurso de constituição de ser integral. O bebê, desde o seu nascimento, experimenta vivências afetivas relevantes para o seu desenvolvimento emocional. Os processos iniciais do desenvolvimento o direcionam para uma integração e personalização, cuja estruturação começa no início cronológico de vida: “(...) sugiro que ao final dos nove meses de gestação, o bebê torna-se maduro para o desenvolvimento emocional”(Winnicott, 1990, p. 273). Especificamente nos casos de grávidas diabéticas, Aquino et al (2003) atentam para a importância de avaliar o risco da gestante, uma vez que a influência do Diabetes na gravidez depende do controle glicêmico. A manutenção da euglicemia no período pré-concepcional e na gestação previne complicações para a mulher e para o bebê. Na gestação de alto risco por Diabetes Mellitus pode ocorrer má- formação congênita, mortalidade perinatal, prematuridade, hipoxemia crônica, asfixia e macrossomia no feto, bem como o abortamento e, como alterações maternas, a toxemia (alobuminúria, edeme e hipertensão arterial) e o polidrâmnios (aumento da quantidade de líquido amniótico) (Maganha et al, 2002; Jones, 2001; Montenegro et al, 2001) 111 Alguns estudos (Har-Even et al (2002); Hiluey (2000); Evans e O’Brien (2005)) acerca da vivência da gestação de alto risco revelam, cada vez mais, a necessidade não só de uma abordagem biológica do tema, como também psicológica, já que o indivíduo tem que ser compreendido dentro de suas várias redes de significações (Rosseti-Ferreira et al, 2000), que são muito mais amplas e complexas do que ainda se investiga. OBJETIVOS O presente estudo consiste na análise da vivência materna de uma gestante com Diabetes Mellitus Pré-Gestacional, com o objetivo de verificar as repercussões afetivas dessa patologia no período da gravidez, investigando se a situação de alto risco promove o surgimento de um estado psicológico particular, caracterizado pela presença de conflitos, tensões e angústias existenciais, que possa comprometer tanto a gestação como a experiência materna após o parto. MÉTODO Foi utilizado, como instrumento para avaliação psicológica, uma entrevista semiestruturada abordando os seguintes tópicos: dados de identificação, vivências durante a gravidez, vivências na gestação de alto risco, relação com o meio social imediato (pais, esposo, filhos) situação de saúde, histórico de Diabetes na família, surgimento e desenvolvimento do Diabetes. A avaliação psicológica foi feita em duas sessões, sendo inicialmente apresentado o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido, e, após sua assinatura, realizada a entrevista semi-estruturada e a aplicação do TAT segundo referencial de Morval (1982). A análise dos dados seguiu a metodologia “clínico-qualitativa”, em que são utilizados técnicas e procedimentos que permitem a compreensão das relações de sentidos e significados de determinados fenômenos humanos (Turato,2003). 112 RESUMO DA ENTREVISTA Dados de identificação Fernanda, 40 anos, do lar, primeiro grau de escolaridade e 37 semanas de gestação. Casada há 17 anos, seu marido trabalha como caminhoneiro. A família de origem composta por pai, pedreiro, mãe do lar, e mais quatro irmãos, dois deles ( irmã e irmão) mais velhos que ela e dois mais novos. História Pessoal De acordo com o relato de Fernanda, sua infância “foi normal” e feliz, “ a infância foi boa, meus pais criaram a gente com muito carinho, nunca tive problema, estudava, não faltava nada”. Menciona o ótimo relacionamento de seus pais e da situação financeira da família, que para ela era boa. Uma lembrança ótima que Fernanda tem da infância foi quando ganhou uma boneca de presente de Natal: “eu gostei muito quando eu ganhei uma boneca muito grande, era novidade, quase não tinha muitas bonecas grandes”. Outra lembrança: “quando eu estava na 4º. Série, eu fiz uma redação, acho que sobre a natureza, e eu ganhei a melhor redação da escola, foi uma coisa boa que aconteceu, fizeram uma homenagem, chamaram meus pais e eu gostei”! Na escola Fernanda era uma aluna tranqüila: “ eu era quieta, né, gostava muito de estudar, gostava das aulas tudo e tinha amizade, não era uma criança briguenta”. Menciona que não costumava brincar no recreio: “brincar mesmo de nada, gostava de ficar sentada na beira da quadra vendo a molecada atentada brinca”. Recorda que “tinha amigas, né ? Muitas que estudou comigo, que eram vizinhas, a gente ficava sempre junto, né?” 113 Fernanda gostava de brincar, mas segundo relata “ (...) chega uma certa idade que tem que ajudar em casa.”, algo que não lhe agradava. Conforme acentua: “ tinha que arear panela com cinza, tinha que ficar impecável, não gostava de arear panela e encerar o chão”. Uma grande tristeza: quando Fernanda tinha 9 anos, perdeu a avó, “ a sensação que dava era o medo de ver a mãe naquele desespero, a impressão que dava é que a gente ia perder a mãe também(...) engraçado que nessa época aí, eu não gostava de arear panela, mas eu fazia tudo para agradar. Então a gente ficava tudo em volta pra não deixar ela nervosa”. A adolescência de Fernanda foi um período de restrição e tranqüilidade. Fernanda conta que teve que esperar para namorar por causa da proibição de seu pai, o que não causou nenhuma revolta. Refere-se à fase de namoro como “normal, meu pai era muito bravo, não deixava eu namorar. Criado naquele ritmo que só vai namorar no dia em que tiver idade(...) meu pai nunca soltou nós para ir numa sorveteria sozinhos. Só ia deixar namorar quando tivesse dezoito anos”. Esse relato é permeado de prazer, Fernanda significa essa atitude paterna como cuidadosa. Conta que aos quinze anos um rapaz se interessou por ela e começou a freqüentar a sua casa, como amigo exclusivamente. Ele esperou até ela completar dezoito anos para namorarem. Após oito meses de namoro se separaram porque Fernanda percebeu que não gostava tanto dele assim. Contou também que não suporta traição, mentiras e que o seu segundo namorado, por quem era apaixonada, provavelmente a tinha traído e, por esta razão, ela terminou o namoro e não o perdoou: “na hora que fica sabendo disso, dá uma revolta muito grande, dá vontade mandar o moço sumir e não aparecer nunca mais”. Fernanda fala que seus pais foram coniventes com ela e os elogia no tocante aos valores que eles passaram aos seus filhos: “ minha mãe e meu pai com aquela mania de ser certinho, tudo bonitinho, tudo”. 114 Demonstra bastante satisfação com essa referência familiar “ então eu era uma moça muito certinha, então meu pai não aceitava, ele falava: você não aja com falta de respeito, ele não dá valor, você vai casar, então foi assim que a gente foi criada lé em casa”. Ao falar de seu casamento, Fernanda conta que quando ela e seu marido começaram a namorar, eles já se conheciam há quatro anos e se encontravam em situações semelhantes: os dois haviam terminado o noivado e estavam decepcionados com os ex-noivos. Essas circunstâncias, talvez, lhes tenha ajudado a construir o que é essencial num relacionamento, a confiança: “e aí, deu tudo certo, que ele já tava carimbado e eu também(...) ele via que eu era uma moça de família, uma moça de respeito, direita. Dou muito valor na educação que meu pai e minha mãe deu para nós. Hoje já não tem mais isso.” Alguns fatos que Fernanda relembra feliz foram os elogios das vizinhas para ela e as suas irmãs, “as vizinhas brincavam, quero que meus filhos casem com as meninas de Dona Maria”. Outra recordação que a deixava feliz eram as festas em sua casa todos os anos no dia 31 dezembro até o dia seguinte: “então era uma coisa muito boa. Ah, reunia os amigos, era uma data, tava todo mundo bem, todo mundo feliz. Era muito gostoso.” Aos quinze anos Fernanda descobriu que tinha ovário infantil. Até então sua saúde tinha sido boa. A partir daí teve que tomar remédios para menstruar e até os dezessete anos menstruava pouco. Nessa época ela ficou sabendo por um médico que não poderia ter filhos e ficou um pouco abatida: “no dia que o médico falou, fiquei um pouco abatida, triste né, mas já no outro já esqueci, eu achei que aquilo ali não era verdade, não acreditei não, parece que não acreditei muito não”. Antes de se casar contou ao noivo que não poderia ter filhos e ele foi muito compreensivo, dizendo que isso não era problema e que se, de fato, não tivessem filhos biológicos, poderiam optar pela adoção. 115 Relacionamento Interpessoal As considerações de Fernanda sobre o marido retratam a satisfação com o relacionamento e admiração por ele: “ah, ele é muito amoroso, muito, muito meigo, muito calmo, assim uma coisa que eu acho muito importante nele, ele é calmo demais, se ele fosse nervoso talvez a gente não combinava não, mas ele é bem calmo”. Seu relacionamento com os irmãos é amistoso e ela o define como bom, com a ressalva da irmã mais velha que, segundo Fernanda, possui um temperamento difícil: “ela é nervosa”. Sobre sua mãe, Fernanda se identifica com ela, afirma ter muito dela, porque sua mãe era uma pessoa certinha e muito exigente, que gostava de manter a casa em ordem, com horário para tudo. Além de mencionar que herdou essas características, mostra-se orgulhosa por ser admirada pelo marido por isso e por ter sido sempre ajuizada e certinha em tudo, apesar de, às vezes, ele reclamar um pouco pelas suas exigências no tocante ao funcionamento da casa, onde tudo tem que estar sempre nos seus devidos lugares. Em relação ao pai, fala que atualmente “ele está muito dengoso”, exigindo atenção dos filhos. Embora tenha outra esposa, ele reclama se ela não o visita ou não lhe telefona. Maternidade Em função da impossibilidade da gravidez, tentaram adotar uma criança, porém sem sucesso: “na hora assim dava tudo errado. Eu fiquei sabendo de um menino de um ano e meio de Colina que tava abandonado pela mãe, tava no Fórum”. O juiz decidiu que “eu, não podia jamais impedir o contato da mãe com a criança que ela era adotada e que quando ele crescesse, se ele quisesse viver com a mãe, eu ia ter que deixar”. Sendo assim, Fernanda desistiu de adotar a criança. Outras tentativas igualmente não foram bem sucedidas e nesse ínterim, Fernanda engravidou. Ficou tão surpresa, que só acreditou depois de fazer uma 116 ultrassonografia: “só vi o coraçãozinho piscando assim, aí na hora assim, ao mesmo tempo que fiquei feliz, eu fiquei preocupada porque falou assim: você vai fazer muito repouso, senão pode perder, aí fala tudo os riscos que pode acontecer”. A gestação transcorreu normal, com repouso absoluto durante os quatro primeiros meses, com controle do diabetes com regime e insulina. Não houve necessidade de internação. Diabetes: O sintoma que levou Fernanda a descobrir que tinha diabetes foi uma forte dor nas pernas, um peso nas pernas, o que levou o médico a pedir um exame, que mostrou que a taxa de açúcar era de 140 mg. O tratamento recomendado foi um regime: “nada de doce, nada de açúcar, de refrigerante, ela tirou tudo, massas, só regime assim, tirou tudo. Foi bom que emagreci, na época acho que emagreci uns oito quilos numa pancada só.” A reação de Fernanda a respeito da doença : “ah, achei que normal. Ah, achei que era uma doença que tinha tratamento, que dependesse de mim, né.” RESULTADOS Interpretação da entrevista e do TAT: Se por um lado Fernanda mostra sua infância como tendo sido suficientemente organizada, do ponto de vista afetivo, e sua história como estando tudo no lugar certo, e isso ela faz quando afirma que na época de criança “foi tudo normal”, por outro lado ela mostra um distanciamento emocional de suas vivências de perdas ao enfatizar que “tudo era muito bom”. 117 Recorrentes frustrações vividas por Fernanda foram por ela negligenciadas ou minimizadas, como por exemplo, a perda da avó, a morte da mãe, a austeridade do pai, a traição do namorado, as doenças (útero infantil e Diabetes) e a impossibilidade da gravidez, entre outros acontecimentos. Ela experimenta desde a infância uma relação afetiva marcada pela troca, a extrema adaptação e acomodação na sua vida tem como recompensa a experiência de segurança. Esse movimento parece claro quando, ao temer a depressão e possível morte da mãe tenta, juntamente com os irmãos, agradá-la e ser obediente, para impedi-la de se entregar à tristeza. Há uma necessidade de estar adequada, tanto que a sua escolha amorosa, o atual marido, teve a aprovação do pai, “(...) eu achava ele educadinho, bonzinho, arrumadinho, gostava muito de conversar como meu pai, dar atenção, pro meu pai aquilo era..., ficava todo..., achando bom moço”. A educação rígida de sua família é vista por Fernanda como um valor precioso e fica mais significativo ainda quando consegue cumprir o estabelecido, é somente dessa maneira que se sente valorizada e amada. Em se tratando da maternidade, havia indecisão sobre ser mãe ou não. Na impossibilidade de engravidar, Fernanda afirma que “queria ao mesmo tempo, vou falar assim, ai, não era uma coisa que ficava assim direto na cabeça”. Parece que no momento em que a gravidez não está no centro de seus investimentos afetivos, ela está proibida de acontecer. Não há somente uma interdição biológica, mas também psicológica. Tanto que mesmo com a possibilidade da adoção de crianças e de ter realizado várias tentativas, ela não se concretizava, “(...) ah, para falar a verdade pra você, ao mesmo tempo que eu tinha vontade, eu tinha medo”. 118 As duas primeiras tentativas mal sucedidas de adoção foram vividas por Fernanda com um certo alívio, não havia desejo de ser mãe. No entanto, quando da terceira vez, em que, à distância, acompanhou os nove meses de gestação do bebê que seria doado, a não concretização da maternidade foi sentida como algo frustrante. Pela primeira vez para Fernanda ser mãe virou uma possibilidade e começou a ser gestada naquele momento. Em seguida desse acontecimento Fernanda engravida. A notícia da gravidez, além de extrema surpresa e muito estranhamento, representou para Fernanda uma experiência ambivalente de desejo e medo: “aí eu falei eu grávida?, imagina eu grávida”, um filho que estava dentro e tão distante do ser mãe de Fernanda, naquele momento. Muitas emoções intensas marcaram a sua gestação, especialmente no seu início, em que houve o descrédito de Fernanda na sua capacidade de gerar uma criança, uma vez que não se via mãe. Após esse primeiro instante ela sentiu medo de planejar e de falar que estava grávida pelo próprio receio de, decepcionando as pessoas, se frustrar também: “ eu ficava quieta, ai eu não vou ficar falando vai que eu perco, aí fica aquela coisa ruim né”. Descreve com detalhes todo o processo dos primeiros três meses gestacionais, desde a preocupação dos médicos quanto a sua saúde, dos riscos envolvidos, do repouso de três meses e das dores de barriga. Nessa fase a sua luta foi não desenvolver expectativa para não sofrer, “(...) qualquer hora vai que eu levanto e desce tudo, então eu vou, não quero assustar, não quero chorar (...)”. Aparece nessa primeira vivência materna a incapacidade de ser mãe, de segurar e gestar o bebê e de oferecer o seu ser para um outro ser desconhecido. Ainda nesse período a sua preocupação era a de não ser peso ao outro, sofrendo pela possibilidade de frustrar o outro, uma vez que era muito importante estar adequada com a expectativa do outro. 119 Fernanda levou quatro meses para sentir-se grávida, para perceber que poderia gerar com mais segurança, “depois do quarto mês eu já sentia a barriga mais durinha, eu já sentia grávida”. A gestação de Fernanda foi controlada e ela se descreve uma paciente obediente, percebendo com satisfação todo o seu processo gravídico. Relata que estar grávida nesse momento significa algo especial, “uma coisa maravilhosa, é uma felicidade, é uma coisa, que de saber assim que tem uma criança na barriga, um filho é muito bom, e é uma responsabilidade muito grande também, saber que a vida da gente vai mudar, muda tudo.” Interpretação do TAT As histórias de Fernanda não tiveram um tema centralizador, os assuntos se diversificaram entre desenvolvimento pessoal por meio da realização profissional (Pr. I e II), relacionamento heterossexual nas suas diferenças e dificuldades na convivência (Pr.IV, VI, XIII) problemas de saúde e conseqüente delimitação da vida (Pr. III, XIV, XVIII), além de relacionamentos familiares inseguros e ciumentos (Pr.VII, XII).Esses temas mesmo que diferentes entre si, se inter-relacionam formando um todo cujo sentido tem uma mesma direção, com conteúdo de sentimentos ambivalentes de conotações tanto positivas quanto negativas, como tranqüilidade versus insegurança. Há insatisfação quanto ao lugar em que Fernanda ocupa na vida, expressada nas histórias que mostram a luta por uma nova posição na vida, que demanda trabalho e competência: “o sonho dela é ser professora, sair dali, ter outra vida, morar na cidade, dar aula. Aí ela foi atrás dos sonhos dela, ela conseguiu, ela se formou e ela venceu na vida e é uma excelente professora” ( Pr. II). Em seu sentir-se doente, aparecem posicionamentos diferentes. Em uma das histórias a mulher morre (Pr.III) e na outra duas irmãs doentes órfãs conseguem viver como pessoas 120 normais (Pr. XVIII). Pode-se inferir, portanto, que a doença é sentida como geradora de vida ou destruidora. O relacionamento interpessoal, tanto conjugal quanto familiar, se caracteriza por uma convivência difícil, uma vez que Fernanda se vincula de forma rígida, não conseguindo ceder em relação às suas convicções. Acrescidos a essa dificuldade estão o receio e a insegurança pela chegada de mais uma pessoa na casa: “(...) a mãe já com o nenezinho, entrega pra outra menina e aí, tentando assim que a menina aceita a irmãzinha e tenha amor(...) e a menina ainda está muito sentida, muito enciumada ainda, mas ela vai aceitar a irmãzinha”(Pr. VII). Tanto que na prancha (Pr. XII) aparece o medo do abandono por meio da projeção e identificação de ser o objeto abandonado; “(...) esqueceram esse quadro em algum lugar, esse quadro é muito velho, é muito antigo (...) não gostei não. Parece que trás uma sensação assim de medo”. Nas histórias, a dúvida e a curiosidade se mesclam na narrativa do presente, marcado pela incerteza, enquanto que no futuro está a expectativa de algo melhor ( Pr. I; II; IV; VII; XIV;XVIII ). Existe em Fernanda o desejo inconsciente de ter uma vida diferente, e a possibilidade de satisfação deste desejo está vinculada à esperança de futuros desfechos positivos: “ele tá sentindo assim muita esperança, e ele ta sentindo uma sensação assim que ele vai vencer, de vitória, de felicidade, que ele vai passar, que ele ta passando por essa fase e tá saindo dela, é o que ele ta vendo através dessa janela. Ele vê um novo caminho, uma nova vida espera ele”(XIV). Na Pr. III aparece um enredo da vida atacada pela doença emocional e física, em que esta mobiliza o desespero e a incapacidade de superá-la: “ela cresceu nesse ambiente ruim, se tornou uma pessoa triste (...) que vive assim só na solidão, não tem amizade, que não consegue conviver com ninguém e toma remédio forte, calmante forte, e não tem uma vida boa não, e não tem uma convivência boa não e tá lutando pra vencer tudo falta(...) Ela vai morrer”. 121 Para Fernanda o meio externo é significado como agressivo ( Pr. II, III, XII F, XIII HF) ameaçador (Pr.XII) e rejeitador (Pr.VII); na maioria das demais histórias, a realidade externa tem conotação neutra. Na experiência emocional de Fernanda, a realidade externa é sentida como restritiva das suas possibilidades o que exige, para consecução de um desejo, a luta do sujeito para superar a realidade adversa: “ quando ele era pequeno, ele morava numa favela, e era muito pobre, e devido a pobreza e a dificuldade das coisas ele se envolveu com drogas” (Pr.XIV). O conteúdo latente evidenciado na Pr. VII mostra, por um lado, o receio e o conseqüente medo de rejeição, além de ciúmes com a vinda de um bebê na casa e insegurança quanto à mudança que ocorrerá no relacionamento do casal. Por outro lado há a presença do cuidado materno e todo um movimento de acolhimento a esta criança e controle desses sentimentos: “ mãe já com o nenezinho(...) a menina ainda está muito sentida, muito enciumada ainda, mas ela vai aceitar a irmãzinha. Futuramente elas vão ser muito amigas as duas irmãs.” A auto-imagem está depreciada, atributos como deprimido, triste, enciumada, sentida, sistemático, nervosa, traumatizada, doente, atacada, sozinho e angustiada, prevalecem em relação aos positivos, como sonhadora, felizes, esperançoso, linda, lutadora, entre outros. Está latente essa auto-depreciação, que é negada em seu discurso, mas que corrobora o desejo, evidente nas histórias, de que haja mudança na sua vida. Tanto que as necessidades predominantes são de realização, sendo que nesta se incluem a busca por reconhecimento no seu fazer, a afiliação emocional e a proteção reclamada. Quanto ao desejo de sentir-se valorizada pelo outro, a aprovação externa propicia o sentimento de ser amada. Essa carência afetiva cria ainda o desejo de ser cuidada por esse outro, em sentido amplo, e, em particular, na relação conjugal. DISCUSSÃO 122 O tempo gestacional constitui, segundo Winnicott (1990), o período em que são gestados novos seres, mãe e bebê, um momento singular da vida afetiva de ambos. De acordo com Antônio Cândido7 tempo significa o “ tecido da nossa vida” e, em se tratando da gravidez, a integração do par ao longo do período gestacional é o que vai tecendo e preparando o nascimento do ser mãe e do ser filho. Apresentar a vivência gestacional de Fernanda implica resgatar o seu desenvolvimento afetivo processado ao longo da história de sua vida. Conforme acentua Winnicott (1990), ao buscar compreender a psicodinâmica do ser humano é necessário considerar que o desenvolvimento da psique está atrelado ao crescimento do corpo, desde a concepção e sem término definido. A gestante Fernanda se mostra muito adaptada em seu mundo tanto gravídico quanto da realidade externa. Apresenta a sua gestação como um processo de lutas diárias, bem como um tempo de expectativa de vitórias em relação ao parto e nascimento de seu bebê. Várias pesquisas sobre a vivência de grávidas diabéticas (Clauson, 1996; Hatmaker e Kemp, 1988; Heaman, Beaton, Gypton, 1992; Mccain e Deatrick, 1994 apud Evans e O’Brien, 2005), verificaram que a experiência do alto risco intensifica a condição de vulnerabilidade da mulher, o receio de perder o controle, incertezas de várias ordens e tensões, depressões, ansiedades, sentimentos de perda, aflição, tristeza, medo e raiva. Sentimentos de esvaziar-se, de não dar conta de cuidar, aparecem quando constata a gravidez como algo real. Fernanda narra os primeiros meses gestacionais como um período delicado, em que houve o receio de perder o controle, incertezas de várias ordens e tensões, ansiedades, sentimentos de perda, aflição, tristeza e medo. 7 In Palestra de Maria Rita Kehl no Círculo Psicanalítico do Rio de Janeiro-01/08/2008 123 Segundo Winnicott (1990, p. 80), “o adulto é capaz de satisfazer suas necessidades sem ser anti-social”. No caso de Fernanda, porém, se por um lado ela está adaptada ao universo adulto e exerce as suas funções como tal, por outro, é exatamente essa adequação que a impede de entrar em contato com as suas necessidades pessoais. Fernanda aparenta funcionar emocionalmente num modelo rígido que propicia a manutenção do controle sobre os mais variados aspectos de sua vida, favorecendo a negação e a conseqüente repressão de seu sentir. Essa dinâmica, em última instância, garante à Fernanda permanecer adaptada ao que acredita ser o desejo do outro a seu respeito. Mesmo sem conhecimento de como realmente foi a relação inicial de Fernanda com a sua mãe, é possível pensar na existência de falhas que a levaram a desenvolver esse modo rígido de funcionar, como defesa contra a angústia de aniquilamento. Essa hipótese se fundamenta no pressuposto de Winnicott (1990) de que o olhar da mãe constitui a subjetividade do bebê. Na troca de olhares o bebê pode tanto ver a si mesmo através do olhar da mãe quanto ver a própria mãe e o seu desejo. No segundo caso, diante da face rígida da mãe, o bebê não poderá reconhecer-se e sentir-se envolvido, ao contrário buscará atender a demanda da própria mãe. O resultado dessa interação é a falta de autonomia do bebê. No presente caso é visível a identificação de Fernanda com as figuras parentais. Nessa perspectiva das relações do seu self com as identificações, ao introjetar a figura materna e paterna, ela parece ter mantido como ideal de ego valores rígidos, havendo assim, negação tanto das fragilidades de seus pais, quanto da parte frágil de si mesma. Tal movimento parece expressar-se, por exemplo, na experiência que faz da proximidade do outro como algo perturbador, que dá trabalho e exige anulação de si mesma em função do desejo do outro. É precisamente nesse sentido que Winnicott (1993) afirma que os jovens precisam assassinar os pais para depois internalizá-los de outra forma. Fernanda não realizou em sua adolescência o processo de desidentificação para a construção da sua identidade, mas, ao 124 contrário, se utilizou da racionalização como defesa, aprovou todas as interdições dos pais, permanecendo, assim, muito próxima aos ideais deles, nesse período, e distante de si mesma. Consequentemente, desde muito cedo Fernanda fechou-se em um mundo onde ilusóriamente tudo se encontra no lugar. Porém, existe, de forma latente, um desconforto relativo a esse lugar, expresso no desejo inconsciente de mudança. Fernanda somente pôde sentir-se amada pela valoração do olhar do outro, o que faz com que seu valor seja determinado, desse modo, por seu comportamento que, na infância era elogiado seja na escola, com os prêmios, ou em casa “areando panela”; ou na adolescência, sendo obediente e dócil, não namorando ou desrespeitando as ordens do pai. Como adulta é a esposa que mantém a casa impecável e, agora, como gestante, é a paciente modelo. O externo continua determinando o seu interno, e a extrema preocupação com o ser correta impedindo-a de entrar em contato com o medo do abandono, com os temores de não ser aceita e amada. Tanto que nas pequenas e grandes frustrações de sua vida, há a negação da raiva e o sintoma dessa negação é o seu comportamento descrito como nervoso. Enfim, é valorizada pelo que faz. Winnicott (1990) ao desenvolver a teoria do amadurecimento e nomear momentos que se direcionam da dependência absoluta até a independência, analisa que a “vida é difícil em si mesma e a tarefa de viver, de continuar vivo e amadurecer é uma batalha que sempre permanece”. No caso de fernanda a batalha que ganha intensidade ao esbarrar com o fator doença não é propriamente em direção ao amadurecimento mas, ao contrário, funciona como uma exacerbação daquela que é a sua dinâmica: ser portadora de diabetes significa o controle obediente que visa uma recompensa maior. 125 essa relação entre restrição e falta, espera e futura recompensa, marca a dinâmica afetiva de fernanda, onde há uma relação entre prazer e sacrifício, uma visão religiosa de que o sofrimento tem uma premiação, como esta gravidez vivenciada como um prêmio obtido através da dor de se saber incapaz de ser mãe. Gestação sinônimo de luta e privação pessoal, vinculadas, por conseguinte, à esperança de que o nascimento será o prêmio que reestruturará a sua vida. A sua confiança, portanto, está embasada na sua capacidade de se adequar particularmente às exigências do tratamento, que segue à risca, ou à vida nos seus mais diferentes aspectos. Considerações finais Foi possível constatar que a gravidez de alto risco vivenciada por essa gestante portadora de diabetes, promoveu mudanças no seu estilo de vida, na administração da sua saúde e no controle glicêmico. Sua vivência tem sido permeada por sentimentos de vulnerabilidade, receio de perder o controle, incertezas de várias ordens e tensões, ansiedades, sentimentos de perda, aflição, tristeza, medo, raiva, confiança e expectativa diretamente relacionadas ao controle glicêmico. Todo o seu rigor no tratamento visa a sua atual preocupação central com o bebê e as possíveis complicações no parto. Contudo, o que se observa de modo particular é que a gestação, nas condições em que se apresenta, parece funcionar como uma metáfora daquela que é a dinâmica de fernanda: adequar-se às condições, por mais adversas que sejam, para merecer qualquer forma de reconhecimento. REFERÊNCIAS Abram J. (2000). A linguagem de Winnicott: dicionário das palavras e expressões utilizadas por Donald W. 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(Marcelo Brandão Cipolla, trad.) São Paulo: Martins Fontes. 130 Candidatura 7 Autores: Ana Cecília Ferreira e Valéria Barbieri Título: Preocupação Materna Primária em gestantes de Alto Risco por Diabetes Mellitus Prégestacional 131 PREOCUPAÇÃO MATERNA PRIMÁRIA EM GESTANTES DE ALTO RISCO POR DIABETES MELLITUS PRÉ-GESTACIONAL Ana Cecília Ferreira8 Valéria Barbieri9 Departamento de Psicologia e Educação Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto – Universidade de São Paulo Considerando a importância da relação mãe-bebê para o desenvolvimento afetivo saudável, sabe-se que na gravidez a mãe deve operar uma regressão psicológica a fim de que surja em seu psiquismo a Preocupação Materna Primária, imprescindível para que ela possa compreender as necessidades do filho. Por esta razão, merece atenção a vivência psíquica da gestante, especialmente quando a gravidez é de alto risco, uma vez que essa situação pode gerar uma série de dificuldades, exigindo novas organizações e readaptações afetivas. Diante disso, o presente estudo investigou se a situação de alto risco, pelos conflitos, tensões e angústias que acarreta, poderia comprometer o surgimento da Preocupação Materna Primária. Neste sentido, parece importante analisar os aspectos da personalidade da gestante, suas necessidades, como está vivenciando os seus conflitos pessoais e relativos à 8 Mestranda do Departamento de Psicologia da Faculdade de Filosofia Ciência e Letras de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo –USP ([email protected]). 9 Professora Doutora do Departamento de Psicologia da Faculdade de Filosofia Ciência e Letras de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo –USP ([email protected]). 132 maternidade.Uma vez que a origem da vida mental do bebê ocorre no ventre materno, o bebê sofre, por estar vinculado à mãe, as interferências das experiências dela. É interessante, ainda, ressaltar, que a construção dessa relação mãe – bebê se estabelece desde o projeto de ser mãe e se desenvolve na gestação. Winnicott (1990) considera tal relação como experiência essencial para o par, desde o período gestacional até o cuidado no puerpério. Fixa o tempo de gestação como uma preparação para o bebê iniciar o seu percurso de constituição de ser integral. O bebê, desde o seu nascimento, experimenta vivências afetivas relevantes para o seu desenvolvimento emocional. Os processos iniciais do desenvolvimento o direcionam para uma integração e personalização, cuja estruturação começa no início cronológico de vida: “(...) sugiro que ao final dos nove meses de gestação, o bebê torna-se maduro para o desenvolvimento emocional”(Winnicott, 1990, p. 273). Essas considerações justificam a preocupação e relevância de estudar como vai se formando e se organizando a função materna já no período gestacional e puerperal, nos seus aspectos psico-afetivos. Dentre os processos psicológicos que emergem na gravidez, merece uma análise mais cuidadosa o processo regressivo nomeado por Winnicott (1956) como Preocupação Materna Primária, uma situação psicológica caracterizada por um estado de retraimento, uma dissociação, fuga, semelhante mesmo a um episódio esquizóide. Mas, no contexto de uma gravidez, este estado não assume caráter patológico. Na visão de Winnicott (1956), a Preocupação Materna Primária constitui-se em um estado psicológico especial que se desenvolveria ao longo de toda a gestação, em especial no seu final e durante as primeiras semanas de vida do recém-nascido, caracterizado por uma sensibilidade aumentada que permitiria à mãe identificar-se com o filho, estando apta a compreender as necessidades desse novo ser, bem como a sua relação com ele e o seu mundo. Tal comunicação emocional, por conseguinte, seria alcançada pela situação regressiva da mãe. 133 Um ponto importante na obra de Winnicott (1956), portanto, é a sua ênfase na necessidade de a mulher ser saudável para poder atingir a Preocupação Materna Primária, já que muitas mães não conseguem se preocupar com o filho a ponto de excluir outros interesses, temporariamente, podendo ocorrer uma “fuga para a sanidade” (Winnicott,1956). Funcionando como barreiras para atingir tal estado estão a existência de grandes preocupações alternativas, uma forte identificação masculina e/ou inveja do pênis reprimida, bem como os estados patológicos relacionados ou não com a gestação. A Preocupação Materna Primária, portanto, consiste em uma regressão da mãe, nos casos em que ela tem tranqüilidade para regredir e fornecer um ambiente acolhedor e de identificação com o bebê. Essa regressão ocorre quando a mãe permite e nela, então, se desenvolve uma sensibilidade tal, a ponto de fornecer um setting no qual a constituição do bebê pode se mostrar, suas tendências de desenvolvimento se revelarem e lhe seja permitido experimentar um movimento espontâneo bem como dominar as sensações apropriadas a esta fase da vida. Winnicott (1956) salienta ainda que somente com essa sensibilidade regressiva é que a mãe poderia se sentir como se estivesse no lugar do bebê e, desse modo, responder às necessidades dele. Inicialmente corporais, essas necessidades evoluiriam para necessidades egóicas elaboradas a partir de uma experiência física e simbólica. Para Winnicott (1956) é a Preocupação Materna Primária que permite o estabelecimento de um ambiente adequado capaz de contribuir para a formação do verdadeiro self, inicialmente constituído a partir da soma das experiências sensíveis. Isso, entre outras coisas, é o que proporcionaria a construção do ego, porque possibilitaria a satisfação das necessidades do bebê. De acordo com Winnicott (1956), o alcance dessa preocupação pela mãe vincular-seia à sua condição de ser suficientemente boa, capaz de atender às necessidades do seu bebê, 134 de “devotar-se à identificação com ele”. O papel dessa mãe suficientemente boa variaria de acordo com o estágio evolutivo do filho. É no momento em que a gravidez está chegando ao fim e o parto se aproxima que as mães estão totalmente identificadas com o seu bebê. No entanto, para que tal proximidade se estabeleça, existiu todo um processo anterior. A mãe suficientemente boa é aquela que contribui para fornecer a segurança que a criança ainda não tem. Contudo, para isso, é preciso ela “se sentir segura, se sentir amada em sua relação com o pai da criança e com a própria família” (Winnicott, 1997, p. 3). Por outro lado, na relação mãe e filho, nos cuidados diários maternos, há espaço para as vivências ambivalentes do bebê, de amor e ódio, onde é possível fazer reparações, uma vez que nesse estágio do desenvolvimento o bebê não é capaz de tolerar a culpa. No entanto, cabe atentar para a limitação que existe, na infância, da capacidade de fazer tais reparações. Frente às considerações descritas, cabe atentar para a relação entre os conflitos existentes na gestante e a sua influência no desenvolvimento do feto, e investigar se tais conflitos adquiririam maiores dimensões naquelas que apresentam algum fator de risco como o Diabetes Mellitus. OBJETIVOS O presente estudo investigou se a situação de alto risco, pelos conflitos, tensões e angústias que acarreta, poderia comprometer o surgimento da Preocupação Materna Primária. MÉTODOS As participantes deste estudo foram 5 gestantes com Diabetes Mellitus PréGestacional (tipos I e II). Foi utilizado, como instrumento para avaliação psicológica, uma 135 entrevista semi-estruturada abordando os seguintes tópicos: dados de identificação, vivências durante a gravidez, vivências na gestação de alto risco, relação com o meio social imediato (pais, esposo, filhos) situação de saúde, histórico de Diabetes na família e o surgimento e desenvolvimento do Diabetes. A avaliação psicológica foi feita em uma ou duas sessões, sendo inicialmente apresentado o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido, e, após sua assinatura, realizada a entrevista semi-estruturada e a aplicação do TAT segundo referencial de Morval (1982). O TAT foi aplicado em uma forma reduzida, de 10 pranchas: 1, 2, 3MF, 4, 7MF, 12F, 13HF, 14, 18MF, 6MF. A análise dos dados seguiu a metodologia “clínico-qualitativa” (Turato,2003). RESULTADOS Para melhor compreensão da análise de conteúdo das entrevistas segue abaixo a identificação das gestantes analisadas. Apresentação dos Casos Caso 1. Cátia10 tem vinte anos, do lar, casada há um ano e meio, está na primeira gestação, com 32 semanas e vive com o marido, comerciante rural. Quando Cátia tinha cinco anos de idade, foi diagnosticada diabética e, a partir daí, foi feito um controle da doença; porém, ele não era estável. Sua gravidez foi planejada e, por causa do Diabetes, está seguindo a dieta recomendada. No entanto, por duas vezes precisou ficar internada durante quinze dias, ao três e aos oito meses de gestação.Ela relata o desconforto causado pela internação devido à ausência da família, especialmente do marido, mãe e irmão. Sua maior preocupação é com o bebê, tendo medo de perdê-lo. 10 Os nomes das pacientes foram alterados. 136 Caso 2. Renata tem 33 anos, trabalha como auxiliar de enfermagem em um hospital público, está casada há nove, tem um filho de seis anos e está com 10 semanas de gestação. Foi diagnosticada há um ano com Diabetes, em um evento em que trabalhava como técnica, quando foi medir voluntariamente a glicemia. Renata mora com o marido de 36 anos e o filho. O marido tem o segundo grau completo e é ferroviário. Ela cursa o segundo ano do curso de enfermagem, além de trabalhar como técnica de enfermagem. Relata que o período da infância foi difícil devido à dependência do álcool por parte da mãe e à dependência química de seu irmão, que foi assassinado quando tinha 19 anos.Na primeira gravidez não teve problemas de saúde. No entanto, há um ano atrás perdeu um bebê aos dois meses de gestação, um pouco antes de ser diagnosticado o Diabetes. Até o momento da entrevista não havia tido problemas na presente gestação. Caso 3. Tânia tem 38 anos, está casada há seis e tem o primeiro grau completo. Seu marido e ela são trabalhadores rurais. Sua família é constituída de dois filhos do sexo masculino com idades de 16 e 5 anos. Está na terceira gravidez e, no dia da entrevista, estava com 15 semanas de gestação. O diagnóstico de Diabetes ocorreu na primeira gravidez, quando foi preciso tomar medicamento somente durante a gestação Na segunda gravidez, tomava insulina. Não houve outros problemas de saúde nessas gestações anteriores. Nesta gravidez, sua preocupação é de morrer, de perder o bebê ou de ele nascer com problemas. Vem fazendo um controle estável, e os exames têm revelado algumas alterações na taxa de glicose, que ela controla com insulina. Caso 4. Rita tem 40 anos, está casada há 16 anos, tem uma filha de 16 anos e está na segunda gravidez, com 31 semanas. Possui 3º. grau completo de escolaridade, o marido trabalha como motorista e ela é do lar. Em 2005 foi diagnosticada com Diabetes Mellitus e começou o tratamento com comprimidos e atualmente, com a gravidez, está tomando insulina. A gravidez atual não foi planejada, não era o seu desejo e sim do seu marido, porém 137 no momento já está aceitando. A notícia da gravidez a assustou, teve medo em função do Diabetes e da condição financeira. Até a presente data não precisou ficar internada mas sentese bastante frustrada porque, mesmo seguindo a dieta, ainda assim ocorre alteração da taxa de glicemia. A sua preocupação hoje é de haver algum problema com o bebê, de não conseguir terminar a gestação e o medo do parto. Caso 5. Helena é uma jovem, 21 anos, noiva de João, 22 anos. Está na primeira gestação, grávida de sete meses. Atualmente mora na casa do noivo, com a sogra, o seu padrasto e duas irmãs do noivo. Ela cursou o segundo grau completo e trabalha como costureira em uma Indústria de Equipamentos de Proteção. O seu noivo trabalha em uma gráfica e possui o segundo grau incompleto. Na sua infância foi cuidada pela avó paterna. Viviam em sua casa além desta, seu pai e o seu irmão. A mãe ficou internada durante oito anos em um hospital psiquiátrico, o que impediu a sua convivência com ela. Menciona o período da adolescência como um tempo tranqüilo. Aos 20 anos descobriu que tinha Diabetes e iniciou o seu tratamento com a insulina. Não conseguia seguir a dieta conforme a prescrição. Atualmente, em função da gravidez está seguindo rigorosamente. Em relação à presente gestação, afirma que desejou estar grávida, mas não a imaginava tão rápido. Sofreu com o diagnóstico útero-infantil e com a sentença de que não poderia engravidar ou que seria muito difícil; por isso a surpresa da gravidez e o misto de felicidade e temor. Os seus medos nos primeiros meses de gestação eram do bebê não nascer ou, então, nascer deformado, sem algum membro. Atualmente teme o momento do parto, de sentir dor, de passar da hora e do bebê nascer com algum problema. O significado de ser mãe para Helena é resumido em dar carinho e sempre proteger a criança. DISCUSSÃO Algumas considerações: similaridades entre os casos Interpretação das entrevistas 138 Como ficou explicitado na apresentação da teoria winnicottiana, aspectos do ambiente estão intimamente relacionados à qualidade do desenvolvimento afetivo do indivíduo. Uma análise possível desse conteúdo narrativo inicia-se pelas lembranças das primeiras experiências de vida, relatadas pelas gestantes. Observa-se que há, em três casos expostos( Cátia, Tânia e Helena), um aparente receio da exposição da infância “Ah, eu não lembro da minha infância, só lembro de mais de 10 /11 anos para cima”(Cátia); “ quando lembro da minha infância, eu não tive infância”(Renata). Aparece o desejo de não entrar em contato com sentimentos negativos, como desamparo, falta de cuidados parentais, sentimentos de rejeição, que provocam angústia. Renata, ao ser questionada se tinha fatos da infância que a abalaram, respondeu “tem, mas não vale a pena contar”. De forma diferente, Tânia e Rita, utilizam, num primeiro momento, o pensamento lógico protegido pelo mecanismo de racionalização; “não tenho do que reclamar, tive uma infância boa. Brincava, estudava , minha infância era muito boa”(Tânia). Posteriormente, relata que desde os nove anos começou a trabalhar como doméstica e teve que se mudar da casa dos pais. Evidencia, assim, a contradição das lembranças da infância. Rita, por sua vez, descreve uma infância boa o suficiente para terminar antes da hora: “ vichi!!! Brincava de boneca, a partir dos onze anos me tornei adulta.” Helena relata o seu sofrimento pela ausência da mãe na infância “(...) a única coisa que eu sinto falta na minha infância foi que eu não fiquei com ela porque ela tem problemas psiquiátricos então ficou internada. Bem dizer eu fiquei com a minha avó.” Com relação ao passado, as gestantes demonstraram sentimentos de menos valia como filhas, sendo desde muito novas consideradas como adultas, tendo de cuidar de si mesmas. Winnicott (1994) não enfatiza a falta existencial porque, para ele, no princípio, esse espaço de falta é apenas potencial. Nesse momento, ele só se torna um espaço enquanto tal se houver falha do ambiente em promover uma continuidade de cuidados que permitiria ao 139 bebê o momento de ilusão. Além disso, no presente, em fase de gestação, o movimento interno de preparação para um futuro próximo que está sendo aguardado com conotações ansiogênicas, pode explicar um pouco os aspectos mais depressivos das gestantes. No entanto, aparece na maioria dos casos a vivência de desamparo que, conforme definido por André (2001, p. 25) “ indica que a vida psíquica continua a ser vivida fora de si, na desesperada abertura para um outro que não responde. Então, na análise, se uma mobiliza, o outro paralisa”. Renata, ao se referir ao período da infância diz : “(...) não tive infância, pra dizer assim, porque minha mãe trabalhava, desde os seis anos eu tomava conta de dois irmãos, a irmã era bebezinha mais nova que meu irmão, e cuidava da casa. Comecei a trabalhar fora com oito anos de idade, olhar os filhos dos outros, filhos dos vizinhos, muito pobre, não vivia com o pai, era muito aberto , minha mãe não ganhava muito, aquela coisas às vezes passava até fome, minha mãe não tinha muita cabeça, bebia, judiava da gente”. Com uma infância traumática, muito cedo teve que assumir responsabilidades. Trauma está sendo considerado aqui como “quebra de continuidade da existência” (Winnicott, 1994), e no caso, essa quebra na continuidade do desenvolvimento afetivo-emocional interrompe fases evolutivas infantis. Lembranças de maus tratos são pontuadas como sendo freqüentes na vida de Renata, algo vivenciado de forma ambivalente, ora justificando as atitudes da mãe: “ a minha mãe era muito nova, tinha 16 anos”, ora ressentida por suas atitudes de falta de cuidado. Já para Rita, o desamparo é vivido como um distanciamento da mãe: “não tinha mãe como amiga (...) sempre tive que me virar sozinha”. E para Helena, a ausência materna significou uma forma de desamparo. As vivências de privações, presentes nos cinco casos, mesclam posturas de resignação versus revolta. A presença do medo e de sentimentos de revolta e de agressividade parecem 140 constituir-se como forma de reagir ao desamparo sentido em relação aos pais, um desconforto inconsciente pela experiência da falta. Para Winnicott (1994), a constituição do si-mesmo não se inicia a partir da falta, mas, antes, a partir da identificação primária da mãe com o seu bebê, sem a qual a falta, capaz de ser experienciada e que consolida a constituição do si-mesmo e do outro, não acontecerá. Em função disso, nos relacionamentos interpessoais atuais, as gestantes apresentam uma grande satisfação com a família construída. Esta, por sua vez, aparece como sendo o lugar em que é agradável viver, semelhante ao que gostariam de ter tido com as suas famílias de origem. Seus parceiros são descritos como pessoas especiais, que sabem cuidar delas e dos filhos, com paciência, que têm diálogo. Alguns adjetivos lhes foram atribuídos, como: “calmo, dedicado, trabalhador, não bebe, vai à missa ”. A escolha e a valorização de um lar, em que os relacionamentos interpessoais possam se desenvolver com cuidado e segurança, parecem se constituir numa nova busca de um colo materno sentido, na infância, como distante. Buscar ser cuidada pelo marido e cuidar de seu bebê, consiste no movimento de sentir-se amada ao amar. Há uma regressão, com o desejo de ser cuidada e de cuidar, através do processo de identificação com o bebê imaginário (Cátia e Helena) e com os filhos (Tânia, Renata e Rita), o que na terminologia psicanalítica representa “ o processo de subjetivação”, que consiste em diversas fases (a narcísica e a projetiva, entre outras), em que “o movimento do sujeito advém à medida que se faz um com um outro, idêntico a ele” (Kristeva, 2002, p. 192). Com oito meses de gestação, Cátia e Helena apresentam uma fala no plural, nós (ela e o bebê), sendo uma espécie de eu (self) estendido. Aos cinco meses, Tânia, fala de uma gravidez que está sendo incorporada enquanto tal, por não ter sido planejada. Nessa mesma direção, Rita, aos 7 meses, diz que já está aceitando a nova gravidez. Enquanto isso, Renata, 141 devido à incerteza experimentada com a segunda gravidez, espera para poder ter expectativas. Winnicott (1990) define o momento da gestação como o tempo necessário de constituição do ser mãe, em que inicia o estabelecimento do espaço psíquico de autopercepção da gravidez, de estar fecundada e carregar um outro ser em si mesma. Também compreende um período de retorno regressivo em direção ao filho, ilustrado no seu conceito de “ Preocupação Materna Primária”, que ocorre nos últimos meses gestacionais. Winnicott (1994) fala dos aspectos concernentes ao ambiente, à formação do ego do bebê através do ego da mãe, e da função materna ser suficientemente boa para propiciar o desenvolvimento psíquico saudável. Nos cinco casos apresentados, é perceptível a presença de falhas nos cuidados afetivos recebidos, constatação que permite às gestantes tentar criar um papel de mãe diferenciado. Nesse processo de fazer-se mãe, acontece o movimento de buscar referências psíquicas, conforme salientado por Klein e analisado por Aragão (2004, p. 3): “tornar-se mãe é reencontrar sua própria mãe”. Nesse momento, a gestante, ao perceber a mãe internalizada, deseja poder ressignificá-la ao ser mãe, e validar esse lugar. Winnicott (1994, p. 193), explica que essa tentativa de, através da própria gestação, “consertar algo de errado na mãe”, consiste no mecanismo de atribuir ao bebê aspectos desejados de reparação da gestante e, por conseguinte, esta experiência materna pode ser vivida como uma realização ou não. Esta expectativa está presente nas gestantes analisadas, mesmo que de forma inconsciente. Nas gestantes diabéticas há peculiaridades no ser mãe. O fator alto risco mobiliza a insegurança no planejamento inicial da própria gravidez, e a pergunta: “será que vai chegar a termo?”, ganha intensidade na preocupação com o desenvolvimento do bebê. A doença na gestação tem conotação de ameaça, com características de imprevisibilidade e de falta de 142 controle, justamente pelo fato da alteração metabólica ser uma constante, e o fator controle uma presença o tempo todo. Há movimentos desde “se fizer tudo direitinho...”(já que tem que ter o controle e se controlar dá certo)(Cátia e Helena), até a espera de resposta do próprio corpo, como algo fora de controle (Tânia, Renata e, Rita). Em função do Diabetes carregar o significado de privação, “do não pode”, “do regime”, “da mudança de vida e de rotina,” essa ameaça é sentida com intensidade. Alterações orgânicas dessa natureza de controle glicêmico e a consciência dos riscos implicados associados às mudanças que o período gestacional apresenta, permitem compreender como essa gestação é vivenciada em seus aspectos afetivos (Maldonado, 2002; Langer, 1997; Dudley, 2007; Gable, Carpenter, Garrison, 2007; Reece e Homko, 2007; BarnesPowell, 2007). Também nas gestações sem o fator risco, os aspectos emocionais como ansiedade, medos e mudanças nos vínculos afetivos estão presentes, conforme pesquisa de Sarmento et al (2003). Nesse sentido, as gestantes diabéticas mencionam como preocupação: “ o bebê nascer com problemas”, “ perder o bebê”, “ ter parto difícil”. São encontradas na literatura pesquisas sobre a vivência de grávidas diabéticas (Clauson,1996; Hatmaker e Kemp, 1988; Heaman, Beaton, Gypton,1992; Mccain e Deatrick, 1994 apud Evans, M.K.e O’Brien, B. 2005), que verificam que a experiência do alto risco intensificava a vulnerabilidade, o receio de perder o controle, incertezas de várias ordens e tensões, depressões, ansiedades, sentimentos de perda, aflição, tristeza, medo e raiva, emoções semelhantes às vividas pelas gestantes diabéticas. No entanto, Daniells et al (2003), mesmo afirmando que no grupo de diabéticas gestacionais a ansiedade aparece mais elevada, explicam que esta é mais uma característica 143 da própria gestação do que influência do fator risco, evidenciada em todos os casos discutidos no presente trabalho. Também neste estudo, os temas identificados na pesquisa de Evans, M.K.e O’Brien, B. (2005), sobre o significado da gestação- o controle e o medo da perda do próprio controle pessoal - estão presentes como sendo um receio das gestantes Tânia, Renata, Rita e Helena; a responsabilidade materna aparece nos casos das gestantes Cátia e Renata; quanto às transformações envolvidas nesse período, a administração da saúde, os relacionamentos familiares e sociais, bem como as mudanças no estilo de vida, ficaram evidenciados nos cinco casos. Har-Even, Levy-Shiff, Hod e Lernan (2002) constataram que mulheres com Diabetes Mellitus Pré-Gestacional apresentaram mais emoções negativas em relação à gravidez do que gestantes não-diabéticas. Em se tratando especificamente dos receios e dos aspectos angustiantes com o tratamento, todas as gestantes apresentaram um quadro vivencial semelhante. A vivência do Diabetes, nos cinco casos, é descrita como algo que restringe a vida e que causa preocupação. Entretanto, os medos ressaltados na literatura, tanto referente à gestação sem risco quanto a de alto risco por Diabetes, correspondem às preocupações das cinco gestantes diabéticas estudadas. Compreende-se, portanto, que a experiência da maternidade para essas gestantes significa: algo desejado (Cátia, Helena), descuido(Tânia, Rita), substituição de uma perda (Renata). Atritutos semelhantes são encontrados na pesquisa de Raphael-Leff( 1997). Para as gestantes de alto risco a gravidez é um tempo de mudanças no estilo de vida, na administração da saúde e, atenção especial no controle glicêmico. Também um momento 144 em que está sendo desenvolvido o sentimento de responsabilidade materna, a descentralização do seu próprio self para um outro eu, o bebê. Nas grávidas de 8 meses (Cátia e Helena) houve o movimento regressivo descrito por Winnicott(1956) de Preocupação Materna Primária; “ (...) fico mais sensível, tudo me emociona (...) eu só penso no bebê” (Cátia);“a única coisa comigo que parte de mim, não quer nada, porque só penso nele, ambição voltada para ele” (Helena). Nas demais percebe-se também um processo de retorno afetivo ao próprio ventre, não com a mesma intensidade que as gestantes do último trimestre gestacional. Conforme Winnicott (1956) acentua, essa regressão começa nos úlitmos meses da gestação e permanece nas primeiras semanas após o parto. Porém, nas gestantes do primeiro e segundo trimestre gestacional é evidenciado o movimento de descentralização de si mesma e no TAT aparece de forma latente esse retorno emocional regressivo. Interpretação do TAT Pela análise das narrativas das histórias, percebe-se a recorrência de temas sobre realizações pessoais e profissionais, relacionamentos interpessoais, heterossexuais e familiares, doença, perdas, morte e solidão. Verifica-se, portanto, que a centralização do afeto reside no desejo do êxito tanto do projeto pessoal, a gravidez, quanto dos vínculos familiares e amorosos que, diante da problemática alto risco, remetem ao temor da ausência, seja de si mesma(morte), seja das pessoas importantes, acrescido à dor do desamparo sentido. Nos cinco casos analisados, a prevalência desses temas se encontra no tempo presente das histórias. Nas narrativas o passado não é destacado, aparece como um precursor do momento presente e este por sua vez, é retratado pelas grávidas, na maioria dos casos, 145 como um momento de luta, esforço, sofrimento, dificuldade e tristeza, de receios de não dar conta, contrastando com a expectativa de um futuro melhor, com desfechos predominantemente favoráveis. As necessidades predominantes nesse grupo de gestantes foram de afiliação emocional, familiar, associativa permitindo analisar o movimento regressivo de busca por pertencer aos grupos das pessoas mais significativas para elas. O anseio é de proteção através dos cuidados do outro e a necessidade de experimentar a sensação acolhedora do colo quando estão gestando a própria maternagem. A maior incidência de atributos negativos projetados no herói das histórias permite inferir que a auto-estima das gestantes está baixa, havendo uma desvalorização pessoal. Nessas características negativas pode-se notar muitos aspectos ora de vitimização, ora de indignação, permeando sentimentos de solidão, indecisão e falta de controle, o que mostra a ansiedade latente desse momento, na vida dessas grávidas de alto risco. Nessa mesma direção constatou-se que, na maioria dos protocolos, a ação do contexto social tem caráter negativo: insatisfatório, agressor, assustador, rejeitador. Parece que fatores como a doença, condição sócio-econômica e outras dificuldades são projetadas como algo externo que se contrapõe aos seus desejos, impedindo a sua realização. No TAT foi possível perceber a Preocupação Materna Primária (Winnicott, 1956) através da problemática central: projeto e realização pessoal, vínculos amorosos e o risco das possíveis perdas, de partos vazios. Tanto que essas fantasias transformam o tempo presente, a gestação, num momento muito angustiante. O mecanismo de defesa é a negação, através da qual se faz uma ruptura dessa narrativa do presente ansiogênico, transpondo-se, por meio do pensamento mágico, para um futuro muito bom. Parece que mesmo angustiadas elas precisam apostar em um futuro benevolente, conforme o próprio desejo, o parto com o bebê. 146 CONSIDERAÇÕES FINAIS A constatação da intensidade de emoções, receios e temores experienciados pelas grávidas diabéticas, revela cada vez mais a necessidade não só da abordagem biológica da problemática como também da psicológica. Essa abordagem psicológica faz-se necessária à medida em que todo um quadro traumático e de ansiedades, despertado por uma situação de alto risco, pode dificultar o alcance da Preocupação Materna Primária, acarretando efeitos relevantes para o psiquismo da mulher e, posteriormente, em sua relação com o bebê e no desenvolvimento saudável dele. Daí a proposta de estudos que abordem fundamentalmente as repercussões afetivas do Diabetes Mellitus nas gestantes, bem como a atenção para estudos que promovam o bem estar psíquico de mulheres diabéticas nesse período. Observou-se em todas as gestantes pesquisadas o conflito entre as exigências do mundo externo, os riscos das possíveis perdas e o desejo pessoal de corresponder com essas exigências. Há o deslocamento para o exterior dos medos e angústias vivenciadas. O conteúdo latente das pranchas do TAT geralmente estabelece níveis tensos de relacionamento interpessoal, envolvendo situações de perdas, frustrações e mágicas reconciliações. A gravidez para essas cinco gestantes representa, por um lado, um momento de expectativa positiva de reparação e projetos pessoais e, por outro, um tempo de angústia e medos de possíveis perdas. A doença, significada como um limite, não impediu o movimento regressivo e a identificação com o bebê, descrito como Preocupação Materna Primária. 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São Paulo: Martins Fontes. 150 Candidatura 8 Autores: Valéria Mayer Título: Do corpo atento ao corpo que pára quieto: novas proposições para se pensar a (des) atenção na contemporaneidade 151 DO CORPO ATENTO AO CORPO QUE PÁRA QUIETO: NOVAS PROPOSIÇÕES PARA SE PENSAR A (DES)ATENÇÃO NA CONTEMPORANEIDADE AUTORA: VALÉRIA NEVES KROEFF MAYER – [email protected] (UNISC) Resumo: Nos dias atuais, uma atenção que não seja seletiva, focal, sustentada e voluntária é tratada como desatenção. Neste contexto, a hipercinesia do corpo é entendida, muitas vezes, como um sintoma passível de medicalização. Mas existe uma relação direta entre a quietude do corpo e o estar atento do sujeito? Na busca por respostas para este e outros questionamentos, foi realizada uma pesquisa de campo onde se observou a dinâmica de um grupo de crianças no ambiente escolar. O material empírico compõe-se de registros realizados durante os anos de 2006 e 2007, através de caderno de campo, fotografias, filmagens, entrevistas com pais, educadores e crianças, bem como análise de documentos escolares, a fim de poder relacionar dinâmica corporal e o funcionamento da atenção deste grupo de crianças em diferentes atividades. A análise dos dados foi realizada apoiada na perspectiva teórico-metodológica proposta pela rede de significações - redsig (2004). A pesquisa apontou para o fato de que “atenção” é uma palavra com muitos significados e também que o que se entende por atenção pode ser diferente do que se percebe no estar atento dos sujeitos. Estas evidências oportunizam novas reflexões para se pensar sobre o que é, de fato, desatenção. Palavras-chaves: Atenção, Corpo Atento, TDA/H. Abstract : Nowadays, an attention which is not selective, focal, sustained and voluntary is deemed as inattention. In this context the body hyperkinesis is understood, many times, as a symptom susceptible to medicalization. Is there a direct connection between the body 152 quietude and the ‘be attentive’ state of the subject? In search for answers for this and other questions, a field survey was done where the corporal dynamics of a group of children in the school environment was observed. The empirical material is constituted of registrations done during the years of 2006 and 2007, through a field registration book, photos, video recordings, interview with parents, educators and children, as well as school documents analysis with the intention to be able to relate the corporal dynamics and the attention functioning of this group of children in different activities. The data analysis was done supported in the theorymethodology perspective proposed by the rede de significações – redsig (2004). The survey indicated the fact that “attention” is a word with many meanings and also what is understood as attention may be different from what is perceived in the ‘be attentive’ state of the subject. These evidences break new reflections to be thought over what is, in fact, inattention. Key-words: Attention, Attentive Body, ADHD PROPOSIÇÕES PARA UM OUTRO OLHAR SOBRE A (DES) ATENÇÃO: UM CONVITE A NOVAS REFLEXÕES O presente artigo busca apresentar discussões e proposições originais que instiguem novos olhares e reflexões sobre a atenção na contemporaneidade e suas múltiplas modalidades e manifestações. As proposições aqui apresentadas nasceram a partir de desacomodações sobre o entendimento do que é um sujeito (des) atento. É freqüente ainda, nas salas de aula ou nos lares, a expressão: pára quieto menino, presta atenção!! – mas será possível avaliar a atenção do outro a partir apenas da quietude ou inquietação motora de seu corpo? Crianças muito inquietas são, com freqüência, julgadas desatentas. Mas este julgamento apóia-se geralmente na sua motricidade excessiva, ou no que ela provoca sobre o adulto, o que não diz respeito, necessariamente, à desatenção da criança. 153 A discussão aqui proposta, no entanto, embora articule algumas reflexões acerca transtorno de déficit de atenção e hiperatividade (tda/h), não tem a intenção de promover um debate sobre o tda/h. Muito antes, a proposição é de se repensar o tda/h, a partir de um entendimento mais ampliado sobre o que é atenção (seus conceitos, mecanismos, funcionamento, modalidades) e sobre a fragilidade das concepções de (des) atenção na contemporaneidade, sobretudo na infância. Nesta perspectiva, as reflexões aqui propostas são um convite ao desafio que é falar do humano e nele descobrir-se, assim como a seu próprio corpo atento. É também um convite para pensar novas possibilidades e entendimentos sobre atenção e cognição, dentro e fora da escola. Será que o aluno que denota um linguajar corpóreo mais adequado à compreensão do estar atento pelo professor, é o que apresenta melhor rendimento escolar? Qual a concepção de atenção dos educadores e a apreensão que fazem do estar atento de seus alunos? Que relatos os pais trazem sobre o estar atento de seus filhos no cotidiano familiar? Estes foram questionamentos mobilizadores que, antes de pautar a discussão aqui proposta, nortearam um processo investigativo. Foi na busca por respostas para estes e outros questionamentos que, entre os anos de 2006 e 2007, foi realizada uma pesquisa11 de campo onde, vivenciando o cotidiano de uma turma nos dois primeiros anos do ensino fundamental de nove anos, foi possível observar através da dinâmica e das vivências de um grupo de crianças, as diferentes manifestações de um estar atento. Foram utilizados como material empírico o caderno de campo, fotografias e filmagens, análise documental e entrevistas semi-estruturadas com pais, educadores e crianças. Não foram 11 “Pára quieto menino, presta atenção!!- Proposições para um outro olhar sobre o corpo atento” é o nome da pesquisa que dá origem a este artigo. A pesquisa foi realizada em uma Escola Pública Municipal de Educação Infantil, na região central do estado do Rio Grande do Sul (Brasil) e apresentada ao Programa de Mestrado em Educação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, no ano de 2007. 154 utilizados testes de atenção, pois não houve, nesta pesquisa, a intenção de se avaliar os níveis de atenção, mas sim de verificar como as crianças expressavam seu estar atento e como os adultos o percebiam. A análise dos dados apoiou-se na perspectiva teórico-metodológica proposta pela Rede de Significações (RedSig). Segundo Rossetti-Ferreira; Amorim; Silva (2004, p. 31), a RedSig é uma apreensão da situação investigada pelo pesquisador e “uma interpretação de como os componentes apreendidos articulam-se e circunscrevem certas possibilidades de ação/ emoção/ cognição”. O referencial teórico da pesquisa apoiou-se nos escritos de Virgínia Kastrup, António Damásio, Humberto Maturana, Zygmunt Bauman, entre outros pesquisadores e pensadores que proporcionaram um entendimento e uma reflexão sobre a atenção e o estar atento na contemporaneidade. Buscou-se, neste diálogo com os autores, compreender os mecanismos neurobiológicos da atenção, as diferentes modalidades de atenção e a percepção contemporânea do que seria um sujeito atento. A pesquisa sinalizou alguns aspectos relevantes para se discutir a (des) atenção nos dias de hoje, entre eles o fato de não haver uma definição ainda suficientemente satisfatória para o termo atenção e a forte crença de que a atenção focalizada é condição fundamental para a aprendizagem. A pesquisa mostra ainda que crianças, pais e professoras têm diferentes concepções sobre o que é atenção e o estar atento e aponta para o fato de que um corpo atento, nem sempre é um corpo que pára quieto. ATENÇÃO NA CONTEMPORANEIDADE E O SURGIMENTO DO SUJEITO (DES) ATENTO Uma definição mais estreita para o significado de atenção vem sendo buscada há muito tempo por pesquisadores e pensadores das neurociências. Neurologistas, psicólogos, 155 psiquiatras, educadores, filósofos, entre outros neurocientistas, já ofereceram inúmeras definições para atenção. Mas, segundo Nahas e Xavier (2004), nenhuma delas ainda se faz suficientemente satisfatória. Em linguagem coloquial, o termo “atenção” denota percepção direcionada e seletiva a uma fonte particular de informação, incluindo um aspecto semiquantitativo (presente, por exemplo, na expressão “preste mais atenção”) e com duração definida. Esse uso coloquial do termo sugere ainda a ocorrência de esforço. Trata-se, portanto, de um processo multifacetado (NAHAS E XAVIER, 2004. p. 77) Embora entendam atenção como um processo multifacetado, estes autores apontam também para a conotação do termo nos dias atuais. Nos dias de hoje, ao se falar em atenção, o pensamento das pessoas, de um modo geral, evoca o entendimento de uma atenção focal e voluntária. Acaba-se, deste modo, por confundir atenção e concentração, tomando-as como sinônimos, embora não o sejam, pois nesta última está sempre implicada a intensidade da atenção durante o estar atento. Não é recente o interesse pelo tema da atenção. Segundo Caliman (2006), observa-se uma maior inclinação científica sobre o tema desde o século XVIII, bem como uma veemente necessidade, ao longo dos três últimos séculos, de controle e gestão da atenção, tornando-a objeto de “tecnologias morais, sociais, econômicas, médicas e psicológicas”. A construção conceitual do que entendemos hoje por um indivíduo atento ou desatento acontece no interior desse processo histórico. Foram nos anos 90, consagrados como a “década do cérebro”, no entanto, que os estudos sobre o mapeamento das (dis)funções cerebrais foram amplamente divulgados pelas mídias. Foi a partir desta década (a última do século XX) que, segundo Lima (2004), o 156 Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade (TDA/H) passou a fazer parte do vocabulário da população em geral, e principalmente de pais e professores. Acontece que, assim como as informações sobre a neuroanatomia funcional do cérebro, também as informações sobre o transtorno chegaram às mídias de forma simplificada e acabaram fazendo do TDA/H uma nova entidade. Mas é preciso lembrar que vivemos em tempos de grande aceleração, volatilidade e fluidez, características descritas por Bauman (2001), como as mais significativas da contemporaneidade e que repercutem diretamente no jeito de ser e estar de cada sujeito no mundo. A atenção e o estar atento, por sua vez, sofrem influências significativas destas características. Há na sociedade contemporânea “um excesso de informação e uma velocidade acelerada que convoca uma mudança constante do foco da atenção, em função dos apelos que se multiplicam sem cessar” (Kastrup, 2004, p.2). Basta entrar na página inicial de qualquer site da Internet para se ter uma idéia do excesso de informações por centímetro quadrado, que nos é ofertada. Por esta razão é que a autora alerta para o fato de que “a subjetividade contemporânea não sofre de falta de foco, mas antes de excesso de focalização” (p.15). As crianças de hoje, de um modo geral, estão acostumadas a essas dimensões, lembra Fiore (2005). Muitas delas conversam no messenger com vários amigos simultaneamente, jogam vídeo-game e fazem suas pesquisas escolares ao mesmo tempo e no mesmo computador. Nesta busca desenfreada por novidades a atenção é passageira, mudando de foco constantemente, estando sujeita ao esgotamento em frações de segundos. Segundo Kastrup (2002, p.2), “quando se busca descrever como a atenção funciona nos dias atuais, o primeiro 157 aspecto que sobressai é uma acentuada dispersão, que resulta da mudança constante do foco da atenção”. Com a explosão de informações ofertadas simultânea e ininterruptamente pelos meios de comunicação, têm-se observado um crescimento progressivo dos problemas de atenção, que comparecem com cada vez maior freqüência nas famílias, escolas, clínicas e consultórios. Mas há que se fazer uma crítica a este fato, uma vez que os sujeitos contemporâneos (sobretudo as crianças e jovens) ao mesmo tempo em que são inundados de informações e novas tecnologias, são também exigidos num estar atento que não vai de encontro a esta explosão de novidades. Acontece que a atenção exigida para o aprendizado escolar, com freqüência ainda é a atenção do tipo voluntária, seletiva e focal. Por esta razão julga-se, constantemente, especialmente no ambiente escolar, o sujeito contemporâneo como desatento e sem foco para as atividades propostas. Este pensamento tomou tal proporção que, segundo De-Nardin (2007), ao nos referirmos à atenção na escola, com freqüência o termo vem associado ao diagnóstico de déficit de atenção e hiperatividade. Atualmente, o TDA/H é tema freqüente nas mídias e “apesar de ser antes um transtorno de hiperatividade que um verdadeiro problema de atenção”, o chamado TDA/H “mostra quão críticos podem ser os mecanismos de atenção”, dizem Bear, Connors e Paradiso (2002, p. 660). As três características associadas com maior freqüência ao TDA/H são: a desatenção, a hiperatividade e a impulsividade. Acontece que, estes também são traços comumente exibidos pelas crianças. Bear, Connors e Paradiso (2002, p. 662), dizem que tem se observado 158 atualmente um excesso de prescrições de Ritalina12, “administrada praticamente a qualquer criança mais agitada ou menos ‘enquadrada’ nas regras do sistema”. Lima (2004, para.7), relata o fato de que nos EUA, à medida que as características do transtorno tornam “as pessoas elegíveis para receber medidas especiais de proteção”, tem se observado um progressivo aumento dos diagnósticos de TDA/H, bem como do recurso ao tratamento farmacológico. Este autor conta ainda que entre os anos de 1990 e 1998 houve, naquele país, um aumento de 700% na produção de Ritalina, e diz que o TDA/H, desde a década de 90, está tomando proporções epidêmicas, o que ele descreve como uma “epidemia contemporânea”. Se refletirmos um pouco, será possível lembrar, juntamente com Lima (2004), que há bem pouco tempo, crianças mais agitadas eram chamadas de “serelepes”, “indisciplinadas”, ou até mesmo de “mal educadas”. Hoje, muitas destas crianças, são descritas como portadoras de um distúrbio passível de diagnóstico e medicalização. O olhar julgador sobre essas crianças, se antes era carregado de um peso moral, hoje recebe também uma carga biológica. Moral e biológico, ao se sobreporem constituem o que Caliman (2006) chama de “biologia moral”. E é no processo histórico da biologização moral da atenção que, segundo esta autora, o sujeito (des)atento se constituiu. Precisamos questionar com maior freqüência, porque será que cada dia mais e mais pais, professores, terapeutas e outros adultos tem aceitado com tranqüilidade o diagnóstico de TDA/H, recebendo-o, por vezes, com alívio e entusiasmo. 12 Ritalina é o nome comercial do metilfenidato, um estimulante do grupo dos anfetamínicos. Suas principais indicações são para o tratamento do défict de atenção com hiperatividade em crianças e depressão no idoso. Disponível em: http://www.psicosite.com.br/far/out/ritalina.htm. 159 Ao provocar este questionamento, Rossano Cabral Lima (2004) diz que “uma das chaves para se entender a explosão de diagnósticos de TDA/H, e principalmente o sucesso comercial da Ritalina, reside na ênfase atual na performance”. À medida que seu padrão econômico se deteriora, a classe média precisa lutar com renovada dedicação para se afastar da linha da pobreza e manter seu nível de consumo. Nessa batalha, a existência de uma medicação que pode melhorar o desempenho (principalmente escolar), independente de um diagnóstico "real" de TDA/H, torna-se muito atraente. [...] Vendo a sombra da desatenção ameaçar sua eficácia ou a de seus filhos, resta ao indivíduo poucas saídas - e a identificação com o TDA/H tem sido uma delas (LIMA, 2004, para. 6). Por esta razão, tem se observado um uso excessivo de Ritalina, sendo esta prescrita também a sujeitos onde o transtorno não se apresenta de maneira definida. Ou seja, ela acaba sendo indicada e utilizada por pessoas que possuem apenas “traços” do transtorno, ou então por aquelas que apresentam alguma forma “subclínica” de TDA/H. Com isso, pesquisas mostram haver um uso indiscriminado da substância, já não havendo uma diferenciação entre seu uso terapêutico, daquele que Lima (2004) chama de uso “cosmético” da Ritalina. Vendo na identificação com o TDA/H uma saída para a sombra da atenção que ameaça a si e seus filhos, resta ao sujeito contemporâneo ingressar no universo do TDA/H. Pois fazendo parte do mundo dos que possuem o transtorno, ele passa a contar com auxílio medicamentoso, garantindo que o farol da atenção não se apague, ou então possa brilhar mais que o do seu vizinho, diz Rodrigues (2004). Devemos, no entanto, resistir e buscar saídas mais criativas para a tendência contemporânea de “reduzir tudo que é humano a concepções fisicalistas, biológicas”, diz Lima (2004, para.10). Pois, quando família, escola e sociedade avalizam o diagnóstico e pressionam pelo uso da medicação, é quase inevitável a inclusão da criança no "admirável mundo" do TDA/H. 160 DIFERENTES MANIFETAÇÕES, PERCEPÇÕES E CONCEPÇÕES DO ESTAR ATENTO Quando se fala em atenção, freqüentemente pensamos numa atenção voluntária e racionalmente direcionada. Este, no entanto, é apenas um dos modos de se estar atento, se pensarmos a atenção como um fenômeno que pode se apresentar em diferentes dinâmicas funcionais. Neste trabalho, entendemos atenção como um fenômeno múltiplo, que pode manifestar-se através de dinâmicas funcionais diversas. Entre as modalidades atencionais mais conhecidas se encontram os modos de atenção voluntária, sustentada, suplementar, flutuante, seletiva, automática e dividida. No entanto, lembramos que podem haver outras modalidades atencionais e também diversas possibilidades de interações entre elas. A pesquisa aqui apresentada aponta para o fato de que a palavra atenção pode ser entendida de muitas formas, e também que o que se entende por atenção, pode ser diferente do que se percebe no sujeito atento. Talvez por esta pluralidade de entendimentos é que Caliman (2006, p. 153) refira-se à atenção como uma “palavra mágica”, pois em seu “nomadismo ela já foi considerada um acontecimento, um incidente, um ato, uma disposição física e psíquica, uma decisão, uma habilidade, um dever, uma obrigação, um afeto e um presente”. Desta forma, através da aproximação e do convívio com os sujeitos que participaram da pesquisa e seus diferentes comportamentos atencionais, dentro e fora da escola, bem como da convivência com seus pais e suas professoras, foi possível verificar a existência de diferentes entendimentos sobre o que é atenção para estes sujeitos. 161 Na fala das educadoras observou-se um desencontro entre o que teoricamente entendiam por atenção e o que percebiam no estar atento de seus alunos em sala de aula. Embora teoricamente ainda fosse forte a idéia de que um aluno atento é um aluno tranqüilo, as professoras conseguiam se mostrar sensíveis aos diferentes modos de estar atento das crianças, o que lhes possibilitou uma ampliação de seus entendimentos sobre o que é atenção e o estar atento dos sujeitos. Para as crianças, no entanto, atenção era apenas uma interjeição. Segundo Nóbrega (2005), o corpo vem historicamente sofrendo um longo processo de disciplinamento dos gestos, e a trajetória pessoal desse processo aparece fortemente marcada nas falas das crianças. É provável que grande parte das vezes em que tenham ouvido a palavra “atenção”, ela tenha sido usada como interjeição, geralmente exprimindo um sentimento de descontentamento dos adultos com relação a seu comportamento. Usada deste modo, a mesma palavra servirá como advertência, assim como para recomendar cuidado, ou impor silêncio. Se a palavra “atenção” só lhes foi apresentada neste contexto, que outro entendimento as crianças poderiam ter sobre este tema? Os pais, por sua vez, em nenhum momento mostraram ter o mesmo entendimento das crianças, ou o tensionamento das professoras, no que diz respeito ao entendimento do estar atento de seus filhos. Para os pais, o estar atento de seus filhos estava relacionado à percepção que tinham das crianças, levando em consideração quatro aspectos: a detenção (permanência no foco), a duração (tempo que se mantém na tarefa), a imobilidade (manter-se quieto, imóvel, ou com movimentos tranqüilos) e o envolvimento afetivo (gostar da atividade e entregar-se à ela). Assim sendo, a pesquisa aponta para o fato de que atenção é uma palavra “mágica”, com muitos significados e com entendimentos diversos, podendo ser vivenciada em diferentes modalidades e expressada das maneiras mais diversas. 162 DO CORPO ATENTO AO CORPO QUE PÁRA QUIETO Será mesmo que um corpo atento é um corpo que pára quieto? Do ponto de vista da neurologia, um corpo sem movimento é um corpo que vegeta e vegetal é uma categoria não humana. Se falamos de corpos humanos, necessariamente precisamos pensá-los em movimento. A motricidade, assim como a atenção, fazem parte da aprendizagem. As informações são captadas, ordenadas e assimiladas neste imenso órgão que é o corpo humano. Por esta razão, movimento não deve sugerir apenas desatenção, uma vez que este pode ser a expressão do esforço do sujeito em manter-se atento. Agitado, mal comportado, desatento, podem até parecer sinônimos, mas não são. Ao falar da desatenção dos sujeitos, sobretudo nas atividades escolares, é freqüente que se fale de sua gestualidade, de uma motricidade que não corresponde à esperada pelo professor. Neste caso, o aluno atento seria o que se mostra mais tranqüilo (do ponto de vista da motricidade) e corporalmente disposto ao recebimento passivo de informações (uma vez que o aprendizado não pode ser passivo). Por outro lado, algumas atitudes inquietas das crianças em sala de aula, que são com freqüência julgadas como falta de atenção, podem indicar falta de interesse pela temática proposta, ou falta de adequação às regras, e não desatenção. Nesta mesma perspectiva, podemos pensar que o desassossego das crianças nos primeiros anos do Ensino Fundamental se dá, em parte, por uma inquietação própria da 163 infância, pois de um modo geral para a criança nos anos iniciais da escola tudo é novo e interessante. Esta inquietação, portanto, é muito mais constitutiva do que indisciplinar. A pesquisa aqui apresentada apontou ainda outros aspectos relevantes para se discutir a (des) atenção nos dias de hoje. Um deles, destacado por De-Nardin e Sordi (2007), é a forte crença de que a atenção focalizada é condição fundamental para a aprendizagem e quanto maior for o poder da criança de manter o foco em determinado objeto, maior será sua chance de sucesso. Nesta pesquisa constatou-se que a atenção exigida pela escola é do tipo focal, seletiva e voluntária e por esta razão a criança que denotar um melhor estar atento no modelo esperado pela escola, também apresentará um melhor desempenho neste modelo escolar. No ambiente escolar uma atenção distraída é, geralmente, entendida como desatenção. Outro aspecto relevante é o fato de muitos autores, entre eles Nahas e Xavier (2004), concordam que nenhuma definição para o termo “atenção” é ainda suficientemente satisfatória. Desta afirmativa surge uma nova inquietação, ou seja, se ainda não há uma definição suficientemente aceitável para o que é atenção, como ter uma definição suficientemente satisfatória para o que é desatenção? E mais, se existem diferentes modalidades atencionais (voluntária, sustentada, suplementar, flutuante, seletiva, automática, dividida, entre outras), poderíamos pensar que com elas devem co-existir também diferentes modos de se estar atento. Assim sendo, como classificar categórica e estereotipadamente o sujeito desatento, quando sabemos que existem muitas maneiras de se estar na atenção? Segundo Silva (2003), a desatenção, quando existe de fato, carece de um processo avaliativo multiprofissional criterioso e relativamente longo. 164 Finalmente, vale lembrar que esta pesquisa aponta para o fato de que o corpo que pára quieto, nem sempre é um corpo atento, do mesmo modo que um corpo atento, nem sempre pára quieto. REFERÊNCIAS AMORIM, K. S. e ROSSETTI-FERREIRA, M.C. (2004). A matriz sócio histórica. In: ROSSETTI-FERREIRA, M.C. et al. Rede de significações e o estudo do desenvolvimento humano. Porto Alegre: Artmed. BAUMAN, Zygmunt (2001). Modernidade líquida. Rio de Janeiro: Jorge Zahar. BEAR, M.; CONNORS, B. e PARADISO, M. (2002). Neurociências: desvendando o sistema nervoso. 2.ed. Porto Alegre: Artmed. CALIMAN, L.V. (2006). A biologia moral da atenção: a constituição do sujeito (des)atento. Tese (Curso de Pós Graduação em Saúde Coletiva - Doutorado) - Universidade do Estado do Rio de Janeiro/Instituto de Medicina Social, Rio de Janeiro, 173 f. CALIMAN, Luciana. 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Gente. 166 Candidatura 9 Autores: Valéria Barbieri Título: A personalidade paterna como fator prognóstico no tratamento da tendência antisocial 167 168 A PERSONALIDADE PATERNA COMO FATOR PROGNÓSTICO NO TRATAMENTO DA TENDÊNCIA ANTI-SOCIAL. Prof.ª Drª. Valéria Barbieri Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto Universidade de São Paulo, Brasil. [email protected] RESUMO A importância da família no desenvolvimento infantil é reconhecida pelos clínicos, a ponto de ser incluída em processos avaliativos e terapêuticos de crianças. Contudo, esse ambiente é avaliado principalmente com referência às características da mãe, havendo pouca literatura sobre o papel do pai. O Psicodiagnóstico Interventivo é uma prática clínica que combina atividades de avaliação e intervenção. Aplicado à população infantil, seus resultados dependem da qualidade do meio familiar. Diante da escassez de dados sobre o papel paterno no prognóstico terapêutico da criança, esta pesquisa investigou as características de personalidade dos pais de crianças com tendência anti-social submetidas ao Psicodiagnóstico Interventivo passíveis de associar-se aos resultados terapêuticos. Sete crianças compuseram a amostra, com seus pais sendo avaliados no início do processo pelo Teste de Rorschach. O follow-up dos casos indicou a ocorrência de cinco sucessos e dois fracassos. As características de personalidade dos pais associadas ao sucesso foram ausência de comprometimentos severos no Teste da Realidade, Controle Pulsional e Relacionamentos Interpessoais, além da apresentação de organização neurótica de personalidade. Portanto, os resultados mostram que a prática clínica avaliativa e terapêutica não pode negligenciar as características de personalidade paterna na indicação terapêutica de crianças e na definição de seus prognósticos. Palavras-chave: Psicodiagnóstico Interventivo; tendência anti-social; família; pai; Teste de Rorschach. 169 INTRODUÇÃO A literatura psicológica e psiquiátrica é unânime em reconhecer a influência da família no desenvolvimento emocional infantil. Nesse contexto, Soifer (1992), esmiuçando o conceito freudiano de série complementar (Freud, 1917/1976), defende que, apesar de a etiologia dos transtornos mentais repousar na atuação de uma série de fatores como a determinação genética, a qualidade das experiências intra-uterinas, o trauma do nascimento e a vida afetiva infantil, é esta última que se constitui no fator relevante do devir ulterior do indivíduo. Ela explica sua posição afirmando que mesmo quando os demais elementos são de ordem adversa, eles podem ser atenuados por cuidados promotores de um desenvolvimento harmonioso ou exacerbados por experiências dolorosas e carências marcadas. Em direção semelhante, Winnicott (1952/1993), ao postular o estágio de dependência absoluta do desenvolvimento emocional, afirmou que um bebê sozinho não existe, já que ele sempre é apresentado junto a um cuidador; portanto seria necessário considerá-lo em conjunto com sua mãe. Em acordo com esse pensamento, vários estudos científicos debateram a relação entre as características da personalidade materna e os distúrbios psicológicos infantis (Soifer, 1983; Webster-Stratton, 1993; Vostanis e Nicholls, 1995; Davies e Windle, 1997; Nigg e Hinshaw, 1998; entre outros). O papel do pai, por sua vez, teve consideração menos freqüente, sendo abordado principalmente no caso dos transtornos anti-sociais infantis (Frick e cols.; 1992; Rey, 1993). Embora esses estudos sejam relativamente comuns, pouca atenção tem sido devotada ao pólo “negativo” da mesma questão, ou seja, às características parentais promotoras do desenvolvimento harmonioso. Em razão da existência de práticas 170 terapêuticas voltadas à população infantil em que a boa qualidade do ambiente familiar é primordial para a obtenção e a manutenção dos benefícios alcançados, conhecimentos dessa natureza são tão fundamentais como aqueles referentes aos efeitos adversos das influências do meio. Winnicott (1958/1993), ao desenvolver sua teoria do amadurecimento emocional dedicou especial atenção ao conceito de mãe suficientemente boa e, em alguns momentos também à função do pai. Os atributos desse ambiente desejável variariam em função do estágio evolutivo da criança. De acordo com ele, no primeiro estágio, dependência absoluta, caracterizado pela não integração do bebê, predomínio dos processos primários de pensamento, narcisismo e auto-erotismo, seria função da mãe o fornecimento do holding, compreendido como o sustentar físico e emocional do bebê, vivido como a continuidade da provisão fisiológica intra-uterina que ele dispunha. Também faz parte da função materna nesse momento estabelecer uma rotina de cuidados, que produza na criança a sensação de continuidade de existência. Essa sensação também se desenvolve a partir das experiências de ilusão quando a mãe, ajustando-se aos objetos que o bebê cria, vai ao encontro de sua onipotência, proporcionando-lhe a sensação de que a realidade é gerada por ele. Paralelamente, ela introduz em pequenas doses o mundo externo ao filho, de acordo com suas condições de assimilá-lo, auxiliando-o a iniciar as tarefas de integração, personalização e realização. O papel do pai nesse momento evolutivo seria o de proteger a díade mãebebê (Outeiral, 1997), para que a esposa tenha a tranqüilidade necessária para dedicar-se integralmente a seu filho, efetuando a regressão necessária para compreender as necessidades dele, mediante o desenvolvimento da preocupação materna primária (Winnicott, 1956/1993). No final do estágio é tarefa da mãe se 171 desadaptar gradualmente às demandas do bebê, de acordo com a capacidade dele para suportar esses fracassos, processo conhecido como desilusão, base para a realização do desmame (Barbieri, Jacquemin e Biasoli-Alves, 2005). No estágio seguinte, de dependência relativa, a mãe deve ser capaz de tolerar, ela própria, as desilusões instituídas em sua relação com o bebê, de modo a permitir-lhe desenvolver a capacidade de preencher o espaço vazio entre o próprio corpo e o dela por meio da fantasia, do pensamento incipiente e dos fenômenos e objetos transicionais. O desempenho suficientemente bom dessas funções depende da própria condição materna para viver experiências de transicionalidade; caso contrário, ela fomenta a dependência do filho e o impede de crescer. Também nesse momento a mãe suficientemente ser capaz de tolerar as agressões do bebê sem sentir-se demasiado ferida ou desejosa de vingança, de modo que ele, percebendo que sua agressividade não é suficiente a ponto de destruir o objeto, prossiga no desenvolvimento da fusão pulsional, e alcance a capacidade de reparação e simbolização. É também nesse estágio que o pai será apresentado à criança, mas de maneira mediada pela mãe e, portanto, dependente da qualidade da figura paterna dela (Barbieri, Jacquemin e Biasoli-Alves, 2005). No estágio de rumo à independência, com a maior integração obtida pelo bebê e a aquisição da habilidade para triangulação e relacionamento edípico, é tarefa de ambos os pais auxiliar a criança no manejo da angústia de castração, da ambivalência e dos sentimentos de exclusão. Nesse contexto, a ajuda proporcionada por eles depende fundamentalmente de suas próprias condições defensivas, da aceitação de sua 172 identidade sexual e da transformação de seus sentimentos de rivalidade em solidariedade (Barbieri, Jacquemin e Biasoli-Alves, 2005). A qualidade das figuras materna e paterna presentes na realidade psíquica de ambos os pais é relevante para o bom desempenho de suas funções, porque a do próprio sexo consiste em seu modelo de identificação, e a do sexo oposto, além de determinar a forma como ele apresentará o cônjuge à criança, funciona como exemplo do modo de elaboração dos afetos edípicos (Furman, 2000; Geissman, 2000). Em acordo com esses pressupostos, os pais e mães suficientemente bons seriam aqueles que apresentariam objetos internos preservados e com características predominantemente positivas, um ego suficientemente forte e flexível e um superego desenvolvido em bases realistas. Em decorrência disso, eles pais teriam melhores condições de auxiliar seus filhos em tratamentos psicológicos em que a qualidade do ambiente interfere nos resultados como as Consultas Terapêuticas (Winnicott, 1971/1984) e o Psicodiagnóstico Interventivo (Barbieri, 2002). Com base nessas considerações, em trabalho anterior investigamos, por meio do Teste de Rorschach, as características de personalidade de mães de crianças antisociais que estavam vinculadas ao sucesso terapêutico do filho no Psicodiagnóstico Interventivo (Barbieri, Jacquemin e Biasoli-Alves, 2005). Os resultados indicaram que a ausência de prejuízos severos no Controle Pulsional e nos Relacionamentos Pessoais das mães associaram-se ao bom prognóstico da criança. Uma vez que foi possível alcançar resultados positivos mesmo em casos em que havia algum prejuízo psicológico (leve ou moderado) por parte da mãe, consideramos que a maneira como as dificuldades dela são absorvidas e manejadas pelo restante da família eram 173 decisivas para a eficácia terapêutica. Desse modo, seria fundamental investigar também as relações entre as características de personalidade paternas e os resultados terapêuticos dos filhos, com vistas a obter uma compreensão mais precisa das indicações e contra-indicações do Psicodiagnóstico Interventivo. Diante dessas considerações, o presente estudo teve como objetivo averiguar as características de personalidade de pais (masculinos) de crianças com tendência anti-social submetidas ao Psicodiagnóstico Interventivo, relacionando-as com o sucesso ou fracasso no tratamento do filho. MÉTODO Participantes Seis pais de sete crianças entre 5 e 10 anos (seis meninos e uma menina) submetidas ao Psicodiagnóstico Interventivo por comportamentos anti-sociais (mentiras, furtos, agressividade física ou verbal e comportamento desafiador). Em todas as famílias o pai e a mãe viviam sob o mesmo teto; o nível sócio-econômico variou entre médio e baixo. A faixa etária dos pais se estendeu de 26 a 56 anos e o grau de instrução de 4ª série do ensino fundamental a ensino médio completo. Foram excluídos da amostra pais com história de comportamentos agressivos, internação psiquiátrica ou uso de drogas. Material O instrumento utilizado para a avaliação dos pais foi o Teste de Rorschach, com exceção de um caso em que essa técnica foi substituída pelo Teste do Desenho da Figura Humana _ DAP (Hammer, 1926/1991) em razão de daltonismo do sujeito. Os 174 resultados do Teste de Rorschach foram apurados segundo o referencial da escola francesa (Traubenberg, 1998) e interpretados de acordo com as normas brasileiras estabelecidas por Pasian (2000). Para o atendimento específico da criança fez-se uso, além do Teste de Rorschach, da entrevista de anamnese, da entrevista familiar diagnóstica, de sessões lúdicas, da Bateria Gráfica de Hammer e do Teste de Apercepção Temática para Crianças – Forma Animal (CAT-A). Também foram realizadas entrevistas de follow-up com ambos os pais para determinar o resultado de sucesso ou malogro terapêutico da criança. Procedimento Após a realização de uma entrevista de anamnese sobre o filho, os pais foram, em sessão ulterior, submetidos à aplicação individual do Teste de Rorschach (ou DAP), após o que iniciou-se o atendimento do filho. Após a conclusão do Psicodiagnóstico Interventivo da criança houve a convocação de ambos os pais para a entrevista devolutiva seguida de orientação, e a família era dispensada. O período de follow-up variou entre 3 e 8 meses sendo que em um caso, quando não foi possível aos pais comparecerem pessoalmente, o seguimento foi realizado por telefone. Análise dos Resultados Os dados foram analisados descritivamente, contrapondo-se os resultados dos pais no Teste de Rorschach com o sucesso ou fracasso terapêutico dos filhos. Uma vez que as características dos pais suficientemente bons poderiam ser investigadas em termos da natureza do seu ego e superego e da qualidade das figuras materna e 175 paterna, os indicadores do Psicograma do Teste de Rorschach foram apreciados de modo integrado, conforme os grupos representativos das funções egóicas sistematizados por Loureiro e Romaro (1985): Produção, Ritmo, Pensamento, Teste da Realidade, Controle Pulsional, Funcionamento Defensivo e Relacionamentos Interpessoais. O nível de integridade dessas funções foi aferido como preservado ou comprometido em grau leve, moderado ou severo, complementando-se a análise pelo indicador Natureza da Relação de Objeto e pelo diagnóstico da Estrutura de Personalidade. Como as condições do ego dependem de suas relações com o superego, e como a organização da personalidade é determinada pelas fantasias que o ego tem sobre si mesmo e seus objetos (Segal, 1963/1975), a análise dessas funções foi considerada suficiente, sem necessidade de avaliações específicas das figuras materna e paterna e do superego dos pais. Quanto aos resultados terapêuticos, foram considerados bem sucedidos os casos em que foi relatado, no follow-up, melhora acentuada dos sintomas, mesmo que houvesse necessidade de encaminhamento posterior à ludoterapia. Esse critério fundamentou-se nos objetivos do Psicodiagnóstico Interventivo que, similarmente à Consulta Terapêutica, não visa substituir uma análise quando ela é necessária, mas quando ela não é (Barbieri, Jacquemin e Biasoli-Alves, 2005). Os casos em não houve melhora da criança ao final da intervenção foram considerados mal sucedidos. RESULTADOS E DISCUSSÃO Breve apresentação dos casos 176 1- Beatriz13: 10 anos de idade, nível sócio-econômico médio, residia com o pai, a madrasta e um irmão de 13 anos. A mãe biológica faleceu quando ela tinha 4 anos. Foi encaminhada por uma neurologista devido a furtos de dinheiro dos familiares, que deixaram de acontecer após o término do atendimento. O follow-up se estendeu por 6 meses. Sucesso terapêutico. 2- Leonardo: 10 anos, nível sócio econômico baixo. Foi encaminhado pela diretora de sua escola por agitação, brigas com os colegas e insubordinação aos professores, comportamentos que não aconteciam em casa. O período de seguimento do caso foi de 3 meses, com a mãe relatando melhora acentuada dos sintomas, não tendo mais recebido reclamações da escola. Sucesso terapêutico. 3- Tiago: 8 anos, nível sócio-econômico baixo, tinha um irmão de 5 anos e uma irmã de 3. Foi encaminhado pela orientadora educacional, amiga da família, que descreveu a ele e ao irmão como crianças más, agressivas e desobedientes. Os pais, no entanto, o apresentaram como um menino doce, tranqüilo e inteligente, e se preocupavam com o fato de ele não expressar seus sentimentos. Ao final do trabalho relataram melhoras, afirmando que o filho estava mais ‘chato’, exigente e capaz de expressar o que desejava. O follow-up se estendeu por 8 meses. Sucesso terapêutico. 4- Rafael: 5 anos, irmão de Tiago. Foi descrito pelos pais como desobediente, teimoso, rebelde e muito ciumento em relação à irmã. Um ano antes do atendimento maltratava seu cachorro e arrancava as folhas de uma planta, de que agora cuidava. Após o término da intervenção, embora os pais relatassem sua 13 Todos os nomes utilizados neste trabalho são fictícios, de modo a preservar a identidade dos participantes. 177 melhora significativa, ele solicitou continuidade do atendimento. Foi iniciada ludoterapia que durou apenas 3 meses, porque a família se mudou para outra cidade. Sucesso terapêutico. 5- Paulinho: 8 anos, nível sócio-econômico médio, tinha uma irmã de 13 anos e outra de 1 mês. Foi encaminhado pela diretora da escola devido a brigas com os colegas, mentiras, uma fuga e um episódio de furto. Foi descrito pelos pais como um menino que irritava e atormentava os demais, embora cuidasse de crianças pequenas. No decorrer do atendimento, o pai demonstrou que não concordava com as queixas, argumentando que havia exagero quanto a elas. No final do trabalho o casal relatou melhora dos sintomas, mas, 5 meses depois, a mãe contatou a psicóloga dizendo que eles haviam retornado e solicitando continuidade do tratamento. Sucesso terapêutico parcial. 6- Daniel: 8 anos, filho único, adotado com 1 dia de vida. Foi encaminhado pela diretora da escola por ser desobediente e agitado, tendo já recebido diagnóstico de hiperatividade. Os pais contaram que ele destruía brinquedos e tinha alucinações visuais e auditivas. Recusava a alimentação, a menos que a mãe lhe desse a comida na boca. Também não aceitava dormir em seu quarto, que passou a ser ocupado pelo pai, enquanto ele dormia com a mãe. Ao longo do Psicodiagnóstico Interventivo apresentou melhoras e passou a dormir sozinho em seu quarto, mas na última sessão estava angustiado e exigiu a presença da mãe na sala de atendimento. A psicóloga ofereceu-se para iniciar tratamento ludoterápico, mas ele recusou. O follow-up se estendeu por 4 meses, havendo retorno dos sintomas. Fracasso terapêutico. 7- Michael: 10 anos, filho único, nível sócio-econômico médio. Foi encaminhado pela 178 diretora da escola por desatenção, recusa a cumprir as atividades e agressividade com os colegas. Os pais apresentavam sérios conflitos conjugais, tendo sido cogitada a possibilidade de separação. O seguimento do caso se estendeu por 3 meses, sem melhora. Embora a psicóloga se dispusesse a prosseguir o atendimento do menino, não foi mais procurada pela família. Fracasso terapêutico. Resultados do Teste de Rorschach O pai de Michael foi o único a responder o Teste do Desenho da Figura Humana (DAP) ao invés do Rorschach. Com isso, optamos por incluir seus resultados apenas na análise da relação entre a estrutura de personalidade paterna e o resultado terapêutico do filho, pois embora Loureiro e Romaro (1985) organizassem a avaliação das funções psicológicas por indicadores de testes gráficos, seu intento referiu-se ao HTP como um todo e não especificamente ao DAP. Portanto, na análise das funções egóicas, somente o protocolo do pai de Daniel foi incluído na categoria de malogro terapêutico. A tabela 1 mostra que as variáveis de personalidade paternas que discriminaram entre os sucessos e os fracassos terapêuticos das crianças foram a Estrutura de personalidade, a qualidade dos Relacionamentos Interpessoais, do Controle Pulsional (incluindo o Funcionamento Defensivo) e do Teste da Realidade. [INSERIR AQUI TABELA 1] Nesse sentido, em todas as situações de êxito (total ou parcial) os pais apresentavam organização neurótica de personalidade; já nos dois casos de malogro, o ordenamento foi de natureza psicótica ou limítrofe. Essa verificação, aliada à informação de que nos dois casos mal sucedidos as crianças dispunham de estrutura 179 psicótica, e às afirmações de Rosenfeld (2000) de que o papel do pai é preenchido quando as angústias primitivas da criança são contidas, conduz a hipóteses sobre dificuldades para indivíduos psicóticos e borderline cumprirem a função paterna. Nesse sentido, se o papel do pai no estágio de dependência absoluta consiste em proteger a dupla mãe-bebê, liberando a primeira para a fruição da preocupação materna primária (Outeiral, 1997), a primeira questão que surge é a da viabilidade de um pai com ordenamento limítrofe ou psicótico desempenhar essa função a contento, já que seu relacionamento com o ambiente é permeado pelo narcisismo e autoreferência. Dessa maneira, se a mãe precisa preocupar-se com exigências externas ao seu relacionamento com o bebê, pode ficar sobrecarregada e ter maiores dificuldades em sua tarefa de contenção das angústias primitivas do filho. De qualquer modo, não parece ser essa a única dificuldade encontrada por pais com tais disposições de personalidade no cumprimento de seu papel no primeiro estágio de vida do filho. Rosenfeld (2000) sustenta que uma parte das atribuições paternas nesse momento evolutivo consiste em dar coerência afetiva às sensações e percepções do mundo dos objetos vivos que cercam a criança, função essa indissociável da materna. Segundo ele, a mãe apresenta os primeiros sinais da presença ou ausência do pai, sendo que a natureza deles dependerá de sua relação com o marido. Em um tempo ulterior, a criança poderá recusar esses indicadores iniciais, construindo uma concepção própria em acordo ou desacordo com eles. Parece plausível supor que, nessa etapa do desenvolvimento, a função paterna seria introduzida ao bebê por meio do elemento masculino materno que, embora construído na realidade psíquica da mãe com base em fatores hereditários e em sua experiência com os próprios genitores, 180 sofre acréscimos, subtrações e alterações a partir da relação estabelecida com o pai do bebê. De acordo com Winnicott (1971/1975), (...) a relação de objeto do elemento masculino (...) pressupõe uma separação. Assim que se acha disponível a organização do ego, o bebê concede ao objeto a qualidade de ser não-eu (...) Daí por diante, tratando-se do elemento masculino, a identificação necessita basear-se em mecanismos mentais complexos, aos quais se tem de conceder tempo para surgirem, se desenvolverem e se estabelecerem como parte da aparelhagem do novo bebê. Tratando-se do elemento feminino, contudo, a identidade exige tão pouca estrutura mental, que essa identidade primária pode constituir uma característica desde muito cedo (...) (p.115). O que se pretende dizer é que no início da vida não basta à mãe espelhar a singularidade do filho, mas também organizar o conteúdo dela, colocando-lhe limites, contendo-o, separando os dados da realidade que podem ou não ser apresentados a ele, devolvendo as projeções de um modo organizado, o que, segundo nossa hipótese, somente é possível devido à integração entre os seus elementos masculino e feminino. Em termos semelhantes, Winnicott (1945/1993) discorre sobre as vantagens e o alívio proporcionados pela realidade externa, argumentando que ela possui freios e pode ser estudada e conhecida. Segundo ele, somente é possível tolerar a fantasia total quando o mundo exterior é bem apreciado. 181 Nesse contexto o papel do pai consistiria em ser o portador da realidade externa para a mãe (envolvida na preocupação materna primária) e para o bebê. Portanto, a qualidade do cumprimento de sua função vincular-se-ia às condições do seu Teste de Realidade. Indo ao encontro dessas suposições, a tabela 1 mostra que os genitores das crianças bem sucedidas apresentaram no máximo comprometimentos moderados nesta função, enquanto o pai de Daniel exibiu severo prejuízo, principalmente em razão do emprego dos mecanismos de negação (F+%=0) e forclusão. Dessa maneira tornava-se difícil para ele, nos dizeres de Winnicott (1945/1993), colocar freios nas fantasias do filho (de forma direta ou mediada pela mãe), liberando-o da necessidade de empregar defesas primitivas e violentas para controlar a angústia. Ainda, não fornecendo apoio real ao elemento masculino da mãe, contribuía para que ela mantivesse com o filho uma relação baseada na identidade entre ambos (elemento feminino), não havendo espaço para a separação (elemento masculino). Desse modo, não cumpria as tarefas de desbravar, desembaraçar e liberar o filho das mensagens ambíguas do vínculo simbiótico mãe-bebê, que lhe caberia interromper gradualmente (Rosenfeld, 2000). As dificuldades em trazer o mundo externo para o filho ocorreriam paralelamente a uma incapacidade do pai para perceber a si mesmo como pessoa singular e independente, aspecto próprio das organizações psicóticas e borderline. Essa impossibilidade prejudicaria seus vínculos diretos com a criança, que surgem a partir do segundo semestre de vida, quando ele começa a despontar para o filho como pessoa distinta e separada da mãe. Nessa direção Abram (1996/2000) afirma que o pai é usado pela criança como modelo para a própria integração, constituindo-se no primeiro vislumbre em direção à totalidade pessoal. Portanto, um pai sem condições 182 de perceber a si mesmo como independente e separado do outro seria incapaz de se apresentar ao filho dessa maneira e, assim, não contribuiria para a consumação de suas tarefas de integração, personalização e realização (Winnicott, 1945/1993). Nesse contexto, a tabela 1 revela a presença de prejuízos severos nos Relacionamentos Interpessoais por parte do pai de Daniel, com o H%=0 indicando a perda do contato humano em nível profundo e incapacidade para se identificar com o outro (Anzieu, 1961/1988). A habilidade em estabelecer uma relação empática genuína com o filho seria substituída pela concepção dele como um ‘duplo de si mesmo’, em um vínculo de natureza narcísica. Misès (2000), narrando o caso de uma criança com patologia limítrofe, afirma que foi o próprio narcisismo que possibilitou ao pai (também apresentando essa organização de personalidade) reencontrar sua capacidade de se interessar pelo filho. Embora a empatia pressuponha certo grau de narcisismo, os dados deste trabalho mostram que quando este se converte em pólo organizador da personalidade do pai surgem sérias dificuldades, uma vez que isso compromete a capacidade de ele se mostrar ao filho como pessoa real e objetiva. Portanto, certo grau de narcisismo aliado a uma percepção de si mesmo como totalmente separado do outro parecem se constituir como características importantes para o pai ‘suficientemente bom’, capaz de auxiliar o filho em um processo terapêutico. É fundamental considerar que, a despeito de dispor de organização neurótica de personalidade e de um Teste da Realidade intacto, o pai de Paulinho também apresentou sérias dificuldades nos Relacionamentos Interpessoais, incluindo H%=0. Esses resultados podem ser compreendidos considerando-se que a adaptação dele ao mundo externo era conseguida ao custo de um acentuado controle restritivo-inibidor das pulsões, que empobrecia sua ressonância afetiva (coartada) e as chances de 183 contato com os elementos infantis da personalidade (tendências latentes coartativas), comprometendo sua capacidade de compreender a criança. Dessa maneira, o grau de adaptação do pai à realidade externa deve ser avaliado em conjunto com o seu Controle Pulsional, sob o risco de a melhora obtida pela criança no Psicodiagnóstico Interventivo ser apenas parcial ou temporária. Nesse sentido, a tabela 1 mostra a presença de severos comprometimentos defensivos por parte do pai de Daniel, no contexto de um controle insuficiente das pulsões, ao passo que os demais genitores exibiram, no máximo, prejuízos moderados nessa função. No outro caso de fracasso terapêutico, o do pai de Michael, o inquérito do DAP revelou a existência de condutas de acting-out, algumas delas anti-sociais, o que permite concebê-lo como apresentando também um Controle Pulsional escasso e bastante comprometido. O significado desses resultados no conjunto de uma organização limítrofe de personalidade pode ser compreendido com base nas afirmações de Bergeret (1998) sobre o ordenamento perverso. Segundo ele, nesses casos o indivíduo, por não ter reparado convenientemente seu narcisismo, não ter encontrado um objeto total, nem elaborado processos secundários eficazes, encontrase na obrigação de buscar satisfações incompletas e urgentes, com objetos parciais e zonas erógenas parciais. Embora essa busca por satisfação seja verificada no DAP do pai de Michael, no de Daniel existem pouquíssimos elementos no Teste de Rorschach sinalizadores de uma tendência ao acting-out (há apenas a indicação de uma resposta CF). No entanto, a observação de sua ressonância afetiva coartativa e do potencial latente introversivo 184 revela uma tendência a voltar os afetos (inclusive os hostis) para si mesmo, o que o exporia a uma série de riscos, já que permanece auto-dirigida uma energia violenta que não dispõe de um caminho socializado para se expressar (presença de respostas kob). Em suma, os resultados encontrados apresentam evidências de que para o pai auxiliar a criança em um trabalho como o Psicodiagnóstico Interventivo, precisaria ser capaz de empregar os elementos advindos de seu contato com a realidade externa para coibir, graduar e organizar as próprias pulsões e as angústias delas decorrentes. Somente dessa maneira contribuiria para ajudar o filho a emergir da onipotência afetiva, permitindo-lhe integrar as próprias pulsões e passar da relação de objeto para o ‘uso do objeto’ (Abram, 1996/2000). Se os pais não logram oferecer aos filhos um meio favorável à assimilação das pulsões, permanece na criança um sentimento constante de ameaça por parte delas, passível de conduzir ora à atuação, ora à inibição. Nesse sentido, os dados deste estudo sugerem que se os comprometimentos do Teste de Realidade e do Controle Pulsional (incluindo o Funcionamento Defensivo) são de natureza estrutural, é muito difícil contar com a ajuda desses genitores no tratamento da criança pelo Psicodiagnóstico Interventivo, uma vez que só lhes restaria se identificar de maneira narcísica com a angústia dela, sem conseguir conferir-lhe forma ou limites. Quanto às funções egóicas da produtividade e do pensamento paternos, os dados deste estudo revelam que certa rigidez associativa não restringe necessariamente as chances de êxito do filho no Psicodiagnóstico Interventivo, nem a 185 presença de inibição ou empobrecimento do pensamento, embora haja indícios de que a ausência de respostas de cinestesia humana pareça dificultá-lo um pouco. Com relação à análise dinâmica do Teste de Rorschach dos pais, ela não permitiu discriminar entre os casos bem e mal sucedidos, devendo ser considerada sempre em conjunto com a interpretação do psicograma. CONCLUSÃO De acordo com o Teste de Rorschach, as informações que identificaram os pais (masculinos) com condições de colaborar no atendimento do filho foram: a) Apresentar estrutura neurótica de personalidade; b) Emitir pelo menos uma resposta K e poucas, ou nenhuma, kob; c) Dispor de um Controle Pulsional preservado ou, no máximo, moderadamente comprometido; d) Ausência de prejuízos severos no Teste da Realidade; e) Capacidade para empatia; f) Dispor de uma figura materna sólida, boa e que lhe permita o alcance de uma genitalidade genuína. Embora a qualidade da figura paterna não tenha se destacado neste estudo (conforme informado pela análise dinâmica do Teste de Rorschach), é importante recordar que o alcance da genitalidade também depende dela e, por isso, seu papel não deve ser negligenciado. Nos dois casos de fracasso terapêutico, o pouco destaque dessa figura no psiquismo dos pais não parece se dever à sua irrelevância, mas ao fato de existirem dificuldades referentes a períodos anteriores de desenvolvimento, em que o pai ainda não surgia como uma figura importante por si mesmo. 186 Esses resultados reiteram a importância do pai na gênese e manutenção dos Transtornos de Conduta Infantis, seja por meio do seu relacionamento direto com o filho ou mediado pela mãe, bem como sua função capital no processo de recuperação da saúde dele. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS Abram, J. (2000). A linguagem de Winnicott: dicionário de palavras e expressões utilizadas por Donald W. Winnicott. (J. Outeiral, trad.) 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Rio de Janeiro: Imago (original publicado em 1971). 189 Tabela 1 - Variáveis de personalidade dos pais (funções egóicas e estrutura de personalidade) e resultados dos filhos no Psicodiagnóstico Interventivo Funções egóicas e estrutura dos pais Resultados terapêuticos das crianças Beatriz/ Sucesso Leonardo / Sucesso Tiago e Rafael/ Sucesso Paulinho Daniel/ / Fracasso Sucesso Parcial Michael/ Fracasso Estrutura de Neurótica Neurótica Neurótica Neurótica Psicótica Personalidade Borderline Produção Baixa Baixa Baixa Baixa Baixa ___ Ritmo Lento Lento Lento Lento Lento ___ Pensamento Inibido Imatur o Inibido Imatur o Inibido ___ Teste da Realidade MC MC MC SC Controle Pulsional P MC (RI) MC (I) MC (RI) MC (I) ___ Funcionamento Defensivo LC MC MC MC SC ___ Relacionamentos Interpessoais MC MC MC SC SC ___ Entre total e parcial Total Não há como afirmar (H% = 0) Não há como afirmar (H% = 0) ___ Vínculo com o Entre objeto total e parcial P ___ P = Preservado LC = Levemente Comprometido MC = Moderadamente Comprometido SC = Severamente Comprometido I = Insuficiente RI = Restritivo-Inibidor 190 Candidatura 10 Autores: Valéria Barbieri Título: A influência da personalidade materna e paterna na etiologia da tendência anti-social infantil 191 192 A INFLUÊNCIA DA PERSONALIDADE MATERNA E PATERNA NA ETIOLOGIA DA TENDÊNCIA ANTI-SOCIAL INFANTIL Prof.ª Drª. Valéria Barbieri Departamento de Psicologia e Educação Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo (FFCLRP-USP), Brasil. [email protected] RESUMO O termo anti-social refere-se a distúrbios como o Transtorno Desafiador Opositivo, de Conduta e de Personalidade Anti-Social. Dentre seus fatores etiológicos, o ambiente familiar é considerado o mais importante: conflitos entre os pais, desafeto materno e desconsideração das necessidades da criança têm presença reconhecida neles. Apesar disso, há pouca literatura relativa à personalidade dos pais da criança anti-social. Assim, este trabalho apresenta a avaliação, pelo Teste de Rorschach, de um menino anti-social e de seus pais, visando averiguar de que modo as limitações destes últimos promoveriam as dificuldades do filho. Os resultados da criança indicaram comprometimentos na integração da personalidade e na capacidade criativa, e dificuldades no relacionamento com a mãe. A avaliação da mãe também revelou um relacionamento insatisfatório com a figura materna, permeado por sentimentos de rejeição e abandono, com escasso controle dos afetos. O pai apresentou pouca solidez egóica e precário controle pulsional, além de indícios de falso self. Essas limitações materna e paterna explicam as dificuldades parentais em atender às necessidades de ilusão e desilusão da criança, gerando as falhas ambientais responsáveis pela tendência anti-social. Desse modo, os pais devem ser incluídos na intervenção destinada à criança, de modo a possibilitar algum benefício terapêutico para ela. Palavras-chave: tendência anti-social; Teste de Rorschach; família; Psicodiagnóstico INTRODUÇÃO O termo anti-social designa o Transtorno Desafiador Opositivo (ODD), de Conduta (CD) e de Personalidade Anti-Social (ASPD); as duas primeiras categorias são pertinentes à infância 193 e adolescência, pois a permanência dos sintomas na vida adulta altera o diagnóstico para ASPD (Bueno, 2008). De acordo com a Classificação dos Transtornos Mentais e de Comportamento da CID10 (O.M.S., 1993), o CD é um padrão repetitivo e persistente de comportamento anti-social ou desafiador que, em seu extremo, conduz a rompimentos com as expectativas que a sociedade apresenta para a criança. Os sintomas consistem em níveis excessivos de brigas ou intimidações, crueldade com animais e pessoas, destruição de propriedade, roubo, mentiras, cabular aulas, fugir de casa, ataques de birra freqüentes, comportamento desafiador, desobediência grave e contínua. Tais transtornos podem ser subdivididos em restrito ao contexto familiar; não socializado; socializado; desafiador de oposição; outros e não especificados. Por sua vez, o Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais - DSM-IV (A.P.A., 1995) classifica os Distúrbios de Conduta nas categorias leve, moderado e severo. De acordo com o DSM-IV, esses indivíduos apresentam pouca empatia e preocupação com os sentimentos, desejos e bem-estar dos demais. Tendem a perceber mal as intenções alheias, interpretando-as como hostis e ameaçadoras e, assim, justificam as próprias reações agressivas. Podem não apresentar sentimentos de culpa e remorso, que simulam para evitar punições. A auto-estima é baixa e há reduzida tolerância à frustração; ocorrem ainda acessos de raiva, irritabilidade e imprudência. Uma diferença entre as duas classificações é que o DSM-IV (A.P.A., 1995) considera o Transtorno Desafiador de Oposição como uma categoria à parte do Distúrbio de Conduta, caracterizada por uma atitude negativista, desobediente e hostil para com as autoridades. Seus comportamentos característicos consistem em perder a paciência, discutir, desafiar ativamente ou recusar-se obedecer a demandas e regras, mostrar-se ressentido ou enraivecido, ser rancoroso e vingativo, importunar deliberadamente os demais e 194 responsabilizá-los por seus erros e má conduta. Também é marcado por relutância em comprometer-se, ceder ou negociar com adultos ou com os pares, testagem deliberada ou persistente dos limites, além de agressões verbais. A divergência entre a CID-10 (O.M.S., 1993) e o DSM-IV (A.P.A., 1995) espelha a controvérsia existente na literatura sobre distinguir esses dois quadros, em razão do seu nível de co-morbidade e da possível continuidade de seu desenvolvimento. No que se refere à co-morbidade, Hinshaw, Lahey e Art (conforme citados por Flanagan & Flanagan, 1998) afirmam que a porcentagem de jovens diagnosticados como apresentando CD e que atendem também aos critérios para ODD é de 84 a 96%. Revisando a literatura sobre o mesmo tema, Rey (1993) relata índices de 77 e 84%. Quanto à continuidade de desenvolvimento, a literatura afirma que o ODD seria uma forma branda do CD. Haveria uma trilha hipotética que começaria com os transtornos opositivos nos primeiros anos escolares e pré-escolares, progredindo para os sintomas agressivos e não agressivos (mentira e roubo) dos transtornos de conduta da infância posterior, e daí para os sintomas mais sérios da adolescência, como a violência interpessoal e as violações de propriedade (Webster-Stratton, 1993). Contudo, nem toda criança ODD torna-se CD e nem toda criança CD se transforma em um adulto anti-social. Para que essa continuidade se estabeleça, é necessário, segundo Webster-Stratton (1993) a consideração de fatores como: início precoce dos comportamentos próprios ao ODD (anos pré-escolares); extensão do contexto de sua ocorrência (casa, escola); freqüência, intensidade e cronicidade do comportamento anti-social; a diversidade de condutas associadas ao ODD; características parentais e familiares. Quanto à etiologia dos transtornos anti-sociais, Silberg (1996), em seu estudo com gêmeos homo e dizigotos, concluiu que embora o componente genético desempenhe um papel importante, as influências ambientais são fundamentais. Nesse sentido, Capaldi e Patterson (1991), Patterson, DeBaryche e Capaldi (1993) e Patterson, DeBaryshe e Ramsey 195 (1989) afirmam o papel da interação da criança com a família e os pares na gênese do comportamento anti-social. Eles consideram a ineficiência parental, o fracasso acadêmico e a rejeição pelos pares como fatores de risco para esses distúrbios. No caso do ambiente familiar destacam as práticas de socialização violentas e coercitivas, exposição a modelos de adultos violentos, conflitos entre os pais e desafeto por parte da mãe. Nessa mesma direção, Janson e Stattin (2003) afirmam que a falta de calor parental, problemas psicossociais dos pais, disciplina inconsistente, negligência nos cuidados da criança e discórdia nos relacionamentos estão associados ao desenvolvimento da delinqüência. Eles afirmam que a existência desse distúrbio na infância, somada à vida familiar desorganizada e problemas parentais são os principais fatores prognósticos para a continuidade do problema na vida adulta. Também em uma perspectiva interacionista, o DSM-IV (A.P.A., 1995) sinaliza que o risco para o surgimento dos transtornos anti-sociais é maior em crianças cujos pais biológicos ou adotivos apresentem esses quadros, ou ainda distúrbios de personalidade anti-social, de humor, de déficit de atenção/hiperatividade, esquizofrenia e dependência de álcool. A depressão materna e a discórdia conjugal também poderiam predispor os filhos a tal patologia, bem como a rejeição e negligência parental, práticas inconsistentes de educação com disciplina rígida, abuso físico ou sexual, falta de supervisão, institucionalização nos primeiros dias de vida e mudanças freqüentes dos responsáveis pela criança. As hipóteses relativas ao abuso de substâncias (principalmente por parte do pai) são sustentadas por Frick e cols. (1992), Webster-Stratton (1993) e Rey (1993), e as referentes à depressão materna também por Webster-Stratton (1993) e por Davies e Windle (1997). Frick e cols. (1992), ao compararem o ajustamento de cada genitor de crianças anti-sociais com um grupo controle, concluíram pela inexistência de associação entre o distúrbio infantil e qualquer patologia materna, mas encontraram diferenças em função dos transtornos paternos. Por outro lado, Vostanis e Nicholls (1995) ao compararem mães de um grupo de crianças CD com as de uma amostra diagnosticada como apresentando Transtorno Emocional, concluíram que 196 as primeiras eram menos calorosas, mais críticas e faziam poucos comentários positivos sobre os filhos. Essas considerações indicam que a literatura é unânime quanto à atribuição de um vínculo entre as características parentais e os transtornos anti-sociais. Nesse contexto, um trabalho diagnóstico e terapêutico competente e abrangente deve incluir tanto a avaliação/tratamento da criança quanto o de seus pais. A concepção psicanalítica da tendência anti-social A tendência anti-social sempre foi um tema de interesse para a Psicanálise; nela, a influência dos pais no desenvolvimento dessa disposição na criança também é considerada, variando na ênfase que recebe dependendo da vertente teórica assumida. De acordo com Freud (1928/1976) em grande parte dos casos o sentimento de culpa não só se encontra presente na mente do criminoso, como preexiste ao ato anti-social. Assim, o crime acontece em função da culpa inconsciente e é usado para racionalizá-la. A psicodinâmica do criminoso remontaria à situação edípica, vivida por uma personalidade com forte disposição bissexual. No desfecho do Complexo de Édipo o menino, identificando-se com o pai, constitui o próprio superego, que tem como tarefa o exercício das funções parentais mais importantes. Nesse processo, Freud afirma que caso o pai tenha sido duro e cruel na realidade, o superego assume dele esses atributos, tornando-se sádico, enquanto o ego se converte em masoquista. Dessa maneira este último desenvolve uma intensa necessidade de ser punido (castração), permitindo dessa maneira a realização da atitude passiva para com o pai. A necessidade masoquista do ego poderia ser satisfeita por um castigo infligido por um agente externo ou pelo superego. Em termos da etiologia do comportamento criminoso, Freud assinala como fator principal a intensidade da disposição bissexual inata e, secundariamente, a severidade e rigidez paterna, argumentando que as reações edípicas dessa natureza podem desaparecer se não forem sustentadas pela realidade. 197 Klein (1927/1981) também aponta como ponto estratégico do desenvolvimento das condutas criminais o Complexo de Édipo, mas refere-se ao precoce. A dinâmica que conduz à situação edípica tal como descrita por Freud (1928/1976) permanece aceita, mas com duas diferenças importantes: a coexistência entre as fantasias genitais e pré-genitais (sádico-orais e sádico-anais) e a presença de um superego primitivo. As fantasias em relação ao pai incluem sujá-lo com fezes, arrancar com dentadas, cozinhar e comer seu pênis, se apropriar dos conteúdos do corpo da mãe e destruir sua beleza (pólo negativo do complexo). Quanto às fantasias sobre o coito, referem-se às ações de comer, cozinhar, trocar fezes e atos sádicos como morder, cortar, arranhar. O superego primitivo é em parte formado por essas fantasias sádicas, sendo que a criança acredita que os pais farão a ela a mesma coisa que ela quer fazer a eles. A angústia decorrente do castigo imaginado obriga o ego a aplicar um poderoso recalque a toda a situação, que permanece ativa na mente inconsciente. A intensidade da defesa comprometeria a capacidade simbólica da criança, impedindo-a de brincar e obstruindo os canais para a sublimação; a atuação passa então a ser o principal meio de expressão. Essas fantasias genitais e pré-genitais, o medo do superego e o emprego do recalque não estão presentes apenas na criança anti-social, mas também na neurótica. Segundo Klein (1927/1981), os atributos da criança anti-social que a distinguem da neurótica seriam: obstrução da capacidade de sublimação; um superego cruel e primitivo funcionando em dois níveis, um deles vinculado ao estágio de desenvolvimento realmente alcançado, e o outro aos atos anti-sociais efetivamente realizados; presença de experiências reais conduzindo ao desenvolvimento de um superego opressivo. De acordo com Klein (1927/1981), o superego do delinqüente tem um funcionamento distinto: ele permite que se conserve uma parte das tendências proibidas para se livrar de outras que considera mais condenáveis, vinculadas ao Complexo de Édipo. Assim, cada vez que a criança, devido à ansiedade e sentimento de culpa, é levada a praticar atos delituosos, está 198 buscando escapar da situação edípica. A preocupação com a existência, constituição e funcionamento do superego e suas relações com a personalidade anti-social não é assumida por Winnicott (1956/1999) como relevante para a compreensão do comportamento criminoso. De acordo com ele, a origem da tendência anti-social repousaria em um ‘complexo de privação’, vinculando-se a uma falha do ambiente em proporcionar à criança certas características essenciais da vida familiar, em um estágio de desenvolvimento que lhe permita compreender que a causa do desastre é externa. Essa privação seria responsável pela distorção da personalidade e pelo impulso para buscar a cura por meio de novos suprimentos ambientais. No momento anterior à privação, o meio proporcionou ao bebê o atendimento às suas necessidades, capacitando-o a iniciar bem o desenvolvimento emocional. Portanto, houve a perda, a supressão de algo que vinha sendo bom em sua experiência; essa retirada se manteve por um período maior do que aquele que a criança pode manter viva a sua lembrança, ocasionando uma quebra da continuidade de existência. Winnicott postula a existência de duas vertentes na tendência anti-social: o roubo e a destrutividade. No roubo, a criança procura algo em algum lugar e, não o encontrando, busca em outro. O que a criança procura e deseja não é o objeto roubado, mas a mãe, a experiência perdida, sobre a qual ela tem direito. Na destrutividade, a busca é por uma estabilidade ambiental que tolere a tensão originada do comportamento impulsivo que, por ser confiável, permite à criança mover-se e exercitar-se. Segundo a teoria winnicottiana, o “potencial agressivo” de um indivíduo não depende de fatores biológicos, mas da quantidade e consistência das invasões ambientais sofridas no início da vida. A agressão inata do bebê é decorrente da motilidade e é parte do apetite e do amor, e o modo como ele irá manejá-la depende da forma como o ambiente lida com suas manifestações. Assim, num bom ambiente a agressão se integra à personalidade com uma energia proveitosa ao brincar e ao 199 trabalho, ao passo que num ambiente de privação ela se torna carregada de violência (Abram, 2000). A agressão primária da criança manifesta-se nas relações externas principalmente com a mãe, e pode ser compreendida sob o nome de avidez. Nesses termos, o bebê lança-se em direção ao seio materno com sofreguidão, o que pode gerar, na mãe, em função das fantasias inconscientes dela, o sentimento de estar sendo atacada. Contudo, para o bebê, não existe intenção agressiva, sendo a mãe que significa o seu ato como tendo essa qualidade. A mãe suficientemente boa é capaz de tolerar essa relação de objeto cruel; caso ela não consiga suportá-la sem se sentir demasiado destruída ou sem revidar, o risco é de um ocultamento pelo bebê de seu self cruel, gerando um estado de dissociação (Winnicott, 1945/1993), com a perda da fusão entre as pulsões amorosas e agressivas que estava sendo alcançada. Com isso a agressividade passa a se expressar de forma crua, não matizada pelo amor. Se há sobrevivência do objeto e tolerância dele à crueldade do bebê, este se torna capaz de tolerar a culpa, efetuar reparações e proporcionar cuidado e proteção ao objeto. Desse modo, as condições da mãe para aceitar e conter os arroubos cruéis do filho, e posteriormente as condições do pai para impor limites a ele (oposição) e oferecer-se como modelo de integração da personalidade são fundamentais para o modo como a agressão primária será agregada à personalidade e manejada ao longo da vida. A teoria winnicottiana da agressão e da tendência anti-social permite compreender os achados da psicopatologia descritiva sobre a educação demasiado permissiva, rígida ou inconsistente, e a indicação de pais apresentando diagnóstico de Personalidade Anti-Social como fatores de risco para a presença dos Transtornos de Conduta: em nenhum dos casos há segurança quanto à contenção da impulsividade, nem um nível razoável e seguro de fornecimento da oposição. 200 No que se refere à conduta terapêutica, Winnicott (1971/1984) afirma que o tratamento da tendência anti-social não é a psicanálise, mas a provisão de cuidados estáveis por parte do ambiente, que permitam à criança novamente experimentar os impulsos do id. O papel do meio deve ser o de dar apoio ao ego, promovendo oportunidades para sua gradual integração. Diante dessas considerações e do fato de serem ainda incipientes os trabalhos envolvendo a família no diagnóstico e tratamento da tendência anti-social infantil, o presente trabalho visa apresentar o estudo de caso de um menino de 8 anos de idade (Daniel14) apresentando queixas compatíveis com esse quadro, e de seus pais (Olívia e Alexandre), que foram avaliados por meio de três entrevistas psicológicas e do Teste de Rorschach. Nesse contexto, o estudo buscou avaliar de que maneira as características dos pais estavam vinculadas aos sintomas do filho, e se eles apresentavam recursos que poderiam ser aproveitados no tratamento do menino. RESULTADOS Queixa e história pessoal da criança: síntese das entrevistas Daniel era filho adotivo de um casal que não podia engravidar em razão de problemas cardíacos da mãe e urológicos do pai. Contudo, o desejo de ter filhos era intenso, a ponto de Olívia ter desenvolvido uma gravidez psicológica antes de o menino vir a fazer parte da família. Daniel foi adotado com um dia de vida, por intermédio de uma conhecida da mãe. O casal afirmou que, apesar de não ser seu filho biológico, o menino apresentava semelhanças físicas com eles próprios. 14 Todos os nomes utilizados nesse estudo são fictícios de modo a preservar sigilosa a identidade dos participantes. 201 As queixas apresentadas foram de desobediência em casa e na escola e mau rendimento escolar, com o menino já tendo sido diagnosticado anteriormente como hiperativo. Os pais também contaram que ele tinha brincadeiras perigosas (jogava pano molhado no chuveiro, rasgava o banco do carro com estilete), dizia ver pessoas passando nos lugares e relatava ouvir vozes dentro da sua cabeça. Os pais contaram também que, um dia, quando assistia ao programa ‘Aqui e Agora’15, Daniel começou a gritar que queria morrer. Nos dias atuais, costuma repetir a frase ‘Você não me ama’. Os pais disseram ter dificuldades para explicar à criança porque não deve fazer certas coisas. Afirmaram que nesses momentos Daniel sabe argumentar e tem um raciocínio lógico que permite dizer que, do seu ponto de vista, ele está correto. O garoto soube da realidade adoção há pouco tempo, acidentalmente, ao ouvir uma conversa de sua tia com seu primo, quando ela dizia que a mãe de Daniel dava comida em sua boca porque ele era adotivo. A criança voltou para casa e, no quarto, perguntou à Olívia o que era ‘filho de criação’. Alexandre saiu do quarto e Olívia começou a esclarecer o menino. Alexandre disse não se conformar com a forma como a criança ficou sabendo do fato. Olívia disse não ter medo de que Daniel um dia resolva ir embora, mas tinha dúvidas se as dificuldades da criança não queriam dizer que ela não o amava o suficiente. Com relação à alimentação, Daniel toma mamadeira até hoje e, segundo os pais, se o leite é colocado no copo, fica com nojo e não bebe. É muito sensível ao sabor do leite e só toma o achocolatado Nescau; percebe se a mãe muda de marca. O leite com chocolate tem que estar no ponto certo, caso contrário, ele não o bebe. Segundo Olívia, o menino gosta de sal puro e come muito, a ponto de ela precisar colocar o pote de sal fora do seu alcance. Os pais relataram que, uma vez, quando Daniel foi ao médico e lhe foi receitado um remédio homeopático para acalmá-lo, a criança pegou o vidro e tomou-o todo de uma só vez. 15 Programa brasileiro de televisão caracterizado por reportagens policiais em que há exibição de violência explícita. 202 Quanto ao sono, ele não consegue dormir no próprio quarto, sendo que permanece à noite na cama com Olívia enquanto Alexandre retira-se para o quarto dele. Os pais também contaram um episódio em que, após ter sido agredido por uma criança na escola, Daniel pediu a um menino maior que batesse em seu agressor em troca de um pastel. O menino concordou, cumpriu a sua parte no acordo e começou a cobrar o pastel. Daniel então passou a pedir dinheiro à Olívia para levar à escola e ela, não sabendo do que se tratava e pensando que era para seu próprio lanche, negava, dizendo que ia estragar o seu almoço (a mãe manda lanche de casa para a criança). Um dia, quando Daniel pediu para faltar à aula, Olívia perguntou o que estava acontecendo, se alguém estava querendo bater nele. O garoto confirmou e os pais foram à escola, onde ficaram sabendo da história verdadeira. Olívia disse ao menino credor para não fazer mais isso e que, se Daniel pedisse novamente algo parecido, era para contar para ela, porque bateria no filho. Contou ter dito essas coisas na frente de Daniel. Contudo, os pais ficaram na dúvida se deviam ou não pagar o pastel para o menino e, com medo de o filho sofrer alguma represália, optaram por fazê-lo. Os pais também relataram dois episódios de furto do menino, um deles referente às bolinhas de gude de um amigo e outro dirigido à tia, incluindo o alho que ela vendia, que o menino pegou e ofereceu à mãe. Interpretação das entrevistas Os dados revelam a presença, na criança, de sintomas anti-sociais e psicóticos, denunciando a existência de um self pouco consistente e com dificuldades para diferenciar entre realidade interna e externa, com o ego se valendo da utilização de mecanismos como a dissociação e a projeção. Tais dificuldades parecem advir da intolerância do casal, principalmente da mãe, sobre sua impossibilidade de ter um filho biológico (ferida narcísica), e de dúvidas quanto à sua 203 capacidade de amar uma criança adotada. Há tentativas de ambos os pais de negar a realidade da adoção, que se manifesta pela manutenção, por parte da mãe, de um relacionamento simbiótico com o menino, comprometendo o seu desenvolvimento emocional. A relação dos pais com a criança é marcada por forte ambivalência, havendo por um lado conduta superprotetora e, por outro, a exposição do menino a situações de risco à sua integridade física e mental. Com isso, os limites são impostos de modo inconsistente, deixando a criança insegura quanto à própria percepção da realidade externa. A ambivalência da mãe para com Daniel parece ter resultado em deficiências na sua capacidade de holding no início da vida do menino; quanto à do pai, ela o impede de desempenhar a contento a função paterna de romper a simbiose do garoto com a mãe, e de fornecer-lhe um modelo de integração da personalidade. Interpretação do Teste de Rorschach de Daniel A análise do psicograma sugere que Daniel apresenta uma série de recursos intelectuais e de adaptação, mas escassamente aproveitados devido a proeminentes transtornos afetivos que afetam a constituição de sua personalidade. Em termos estruturais o teste indica uma organização psicótica de personalidade, com prejuízos importantes nas capacidades de integração, personalização e realização. As noções de dentro e fora, de interno e externo, aparecem misturadas, demonstrando a insuficiência de uma delimitação do self pela pele (na prancha III, o detalhe central preto, de cabeça para baixo, é visto como um ET por causa dos olhos e dos ossos). O corpo é vivido de modo fragmentado, composto de partes não vinculadas entre si (na prancha II, nos detalhes vermelhos superior e inferior, vê, de cabeça para baixo, um cavalo, cuja cabeça localiza-se num detalhe e as patas em outro, partes essas não ligadas por um corpo). A capacidade simbólica é incipiente, imprecisa e instável, ora presente, ora ausente (consegue enunciar respostas 204 vinculadas a objetos reais, mas sempre seguidas por “mancha de tinta” em todas as pranchas), resultando numa expressão criativa empobrecida. A figura materna é vista de modo indiferenciado, com dificuldades próprias, sendo pouco capaz de auxiliar a criança no controle da angústia: tenta ver um animal na prancha VII, mas não consegue localizar uma cabeça nele; quando logra esse intento, o restante do corpo se perde e a figura materna é apresentada com características fálicas (cabeça de elefante). Há choque na prancha sexual (VI: uma aranha que levou um tiro) denotando aportes incipientes à problemática edípica, mas vivida de modo psicótico, sendo a angústia de castração substituída pela de aniquilação. O teste revela a presença de uma condição básica para a abordagem do real, do prático, mas que não se atualiza em função de comprometimentos nas capacidades de integração, de controle dos afetos, e pela escassez de mecanismos automatizados de pensamento. Com isso, são efetuadas generalizações irreais, com o pensamento assumindo características autistas e anti-sociais. Eventualmente, quando o domínio emocional se apresenta, a qualidade da percepção é boa. Contudo, o funcionamento do pensamento é marcado por freqüentes transbordamentos emocionais que o comprometem. As relações afetivas são caracterizadas pela impulsividade, imaturidade, labilidade e narcisismo. Existem traços maníacos ou hiperativos, conduzindo à hipótese de que a pouca solidez egóica ocasiona o emprego de mecanismos de externalização com a finalidade de livrar-se da angústia. Interpretação do Teste de Rorschach de Olívia O protocolo de prova revela tratar-se de uma pessoa apresentando organização borderline de personalidade, estruturada nas bases de um relacionamento insatisfatório com a figura materna, permeado por sentimentos de rejeição, frieza e abandono, evidenciados nas respostas à prancha VII (dois animais de costas um para o outro, mas com a cabeça virada para si) e IX (uma pedra de gelo no meio de duas partes, que as separa e impede ativamente sua 205 comunicação). Enquanto a resposta fornecida à prancha VII indica a possibilidade de uma relação de duplo vínculo estabelecida com a mãe, a da prancha IX revela dificuldades no alcance da capacidade para a transicionalidade, com Olívia não apresentando uma evolução afetiva suficiente para poder preencher o espaço vazio entre o seu corpo e o de sua mãe por meio do sonho e do símbolo. Nesse contexto, tudo indica Olívia não teve suas necessidades de ilusão satisfatoriamente atendidas e, com isso, permanece em busca de relacionamentos simbióticos com outras pessoas, visando reparar as próprias dificuldades psicológicas. Essa busca parece se atualizar no relacionamento com seu filho, sendo que a realidade da adoção ameaça a indiferenciação eu - não eu que ela procura (resposta à prancha I: duas almas gêmeas que se tocam em todas as partes do corpo, menos na barriga; resposta à prancha III: duas pessoas transmitindo sentimentos uma para a outra sem expressar, sem palavras). A frieza da figura materna não é compensada pela relação com o próprio pai; antes a figura paterna aparece como demasiado rígida, inacessível e afetivamente distante. Com referência ao ego, há pouca solidez e desempenho precário de suas funções. O pensamento é reiteradamente invadido pela angústia, ocasionando um quadro de inibição intelectual. Há prejuízos na capacidade de apreensão do real e percepção objetiva do mesmo, sendo a desadaptação mitigada pelo recurso a mecanismos automatizados de pensamento. Com isso, a adaptação ao real não se realiza em termos de continuidade entre o sujeito e o mundo, mas como um ajustamento que não lhe faz muito sentido (submissão). Em termos da afetividade, o controle é escasso, com o ego sendo subjugado pelas emoções. A afetividade é experimentada de modo imaturo, egocêntrico, havendo irritabilidade, labilidade e impulsividade. Há emprego, como defesa, da idealização e negação. O relacionamento interpessoal, embora não tenha características de parcialidade, é buscado em bases irreais, havendo procura de um contato em que o vínculo se estabeleça na base de identificações projetivas. 206 Interpretação do Teste de Rorschach de Alexandre O protocolo aponta para uma estrutura psicótica de personalidade, apresentando severos prejuízos do ponto de vista adaptativo, afetivo e cognitivo. No que se refere ao funcionamento intelectual, a realidade é apreendida de forma predominantemente intuitiva e não analítica, superficial e panorâmica. Há pouco senso prático e preocupação com os aspectos concretos da vida. Existem também comprometimentos severos na capacidade de atenção, concentração e memória, que dificultam as habilidades de planejamento. Do ponto de vista do desenvolvimento emocional, encontram-se fixações orais importantes, com marcantes traços de sadismo, indicando sérias dificuldades no relacionamento inicial e posterior com a mãe. Há fantasias de comer, sugar de modo vampiresco, rasgar e mutilar o objeto, com o temor de um castigo igualmente aterrador como punição (na prancha VII o sujeito associa o percepto de um cão com uma história em que esse animal segurou pela boca um delinqüente que tentava fugir da cadeia). As pulsões não são integradas ao ego, que é incapaz de matizá-las e dominá-las (K=0), sentindo-se o paciente ameaçado por sua emergência, vivida como descontrolada (resposta mancha de sangue e avião explodindo na prancha II; vulcão na prancha IX). Há intensa tensão interna, com o sentimento de que o arroubo pulsional levará à desintegração do ego (recusa a prancha X). As recusas nas pranchas III e VI revelam o não alcance do estágio edípico de desenvolvimento, com a ausência de respostas de conteúdo humano (H%=0) sinalizando a incapacidade de ver o outro como uma pessoa (parcial ou total), devido à não completude do próprio processo de humanização. A identidade, mesmo no âmbito superficial, é mantida com muita dificuldade (somente na pesquisa dos limites vê um animal alado na prancha V). Dada à escassez de recursos e ao parco desenvolvimento dos mecanismos de defesa, as situações em que há necessidade de integração dos afetos são vividas como ansiogênicas, desequilibrando o 207 sujeito, que busca defender-se novamente por meio de uma restrição da vida emocional no intuito de parecer mais ajustado. Nesses termos, a adaptação que Alexandre consegue lograr deve-se a um intenso recurso aos mecanismos automatizados de pensamento, que o mantêm vinculado à realidade. Assim, ela é obtida em termos não criativos e de submissão ao meio, resultando em um conformismo excessivo e em um pensamento pouco individualizado. DISCUSSÃO A tendência anti-social de Daniel encontra-se presente no interior de uma préestrutura psicótica de personalidade. Nesse contexto, a despeito de Winnicott (1956/1999) referir que a tendência anti-social se origina em um momento evolutivo em que a criança alcançou uma diferenciação eu - não eu suficiente para perceber que houve uma falha ambiental com relação ao suprimento de suas necessidades, no mesmo artigo ele afirma que, não sendo um diagnóstico, esse quadro pode surgir em qualquer estrutura de personalidade. Assim, embora o funcionamento mental de Daniel configure-se como bastante primitivo, os aportes edípicos da criança, sua incipiente e transitória capacidade simbólica, bem como suas tentativas de independer-se da mãe sugerem que ao menos um nível mínimo de diferenciação foi obtido. As dificuldades apresentadas por Daniel têm claras origens em sua vida familiar, particularmente no relacionamento com seus pais adotivos, que apresentam, eles próprios, sérios comprometimentos em sua personalidade, revelados pelo Teste de Rorschach. Os dados oriundos dessa técnica projetiva permitiram compreender em maior profundidade uma série de associações entre variáveis reportadas na literatura, envolvidas na caracterização e na etiologia do comportamento anti-social, esclarecendo os seus mecanismos de ação. 208 A hiperatividade diagnosticada no menino, e reportada na literatura como uma categoria diagnóstica frequentemente sobreposta aos transtornos anti-sociais (A.P.A., 1995) constitui-se, na verdade na expressão de defesas maníacas utilizadas pela criança para o controle da angústia, vinculada especialmente à depressão materna e ao terror de destruir seu objeto de amor (e ele próprio sucumbir em razão disso) ou de um ataque descontrolado por parte do pai. O relato da associação entre a disciplina inconsistente e os comportamentos antisociais (Janson e Stattin, 2003; A.P.A., 1995) que se apresenta nesse caso, tem bases psicodinâmicas profundas na personalidade parental. Do ponto de vista da mãe, a ambivalência afetiva para com a criança a conduz a apresentar-se ora demasiado permissiva, ora demasiado rígida, impondo regras definidas para desrespeitá-las, ela própria, logo em seguida. As origens dessa ambivalência quanto a amar um filho que não é biológico, assentamse, por sua vez, na busca de suprir suas necessidades de ilusão, não atendidas por sua própria mãe. Quanto ao pai, a tensão psíquica intensa frente à irrupção pulsional, que o leva a um hipercontrole afetivo, impede-o de utilizar seu ódio para combater a relação simbiótica do menino com a mãe. Nesse contexto, a possibilidade de expressão do ódio é vivida como aterradora, capaz de efetivamente destruir a criança. A angústia que essa vivência promove leva o pai a tornar-se demasiado permissivo, ao mesmo tempo em que transmite a mensagem de ser uma pessoa potencialmente aniquiladora, configurando-se também uma ambivalência em sua relação com o menino. Ainda, diante da parca integração de sua personalidade, não consegue oferecer-se para o filho como um modelo de consistência afetiva. A negligência parental, considerada como um dos fatores de risco para o desenvolvimento da tendência anti-social, nesse caso revelada por meio da exposição da criança a situações de risco físico e psicológico, também pode ser compreendida como repousando na ambivalência de ambos os pais para com o menino. 209 A organização borderline apresentada pela mãe, com sua característica depressão, leva-a a tolerar muito mal a agressividade do filho. O temor de não se tornar mais necessária faz com que ela se sinta terrivelmente machucada diante das tentativas de Daniel independerse. Assim, diante do estrago potencial ou ‘consumado’ feito em própria mãe, o menino enchese de culpa intolerável, não tendo alternativa senão partir para a dissociação como defesa, comprometendo sua capacidade simbólica e reparatória e perdendo a fusão pulsional adquirida (Klein, 1927/1981; Abram, 2000). Embora Frick e cols. (1992) tenham associado o comportamento anti-social apenas à presença de transtornos paternos e Vostanis e Nicholls (1995) às características maternas, no presente caso a patologia da criança fundamentou-se em comprometimentos presentes nos dois genitores, o que piora o prognóstico. Nesse sentido, Janson e Stattin (2003) também afirmam que o início do transtorno anti-social na infância acrescido à presença de problemas parentais são fatores indicativos do prosseguimento do problema na vida adulta. Essas considerações implicam em que um diagnóstico psicológico da criança anti-social desvinculado da avaliação psicológica dos pais é necessariamente incompleto e pode acarretar indicações terapêuticas equívocas. Nesse sentido, num caso com o de Daniel, a indicação de orientação de pais focada na questão da imposição de limites (aliada à psicoterapia da criança) ou mesmo a psicoterapia familiar seriam de pouca valia, dada a profundidade do comprometimento da personalidade de ambos os membros do casal. Enfim, o tratamento do sério problema da psicopatologia anti-social infantil exige uma abordagem diagnóstica e terapêutica mais profunda e integral por parte do psicólogo, considerando que o desenvolvimento ocorre em um contexto mais amplo que o meramente intrasubjetivo. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 210 Abram, J. (2000). A linguagem de Winnicott: dicionário de palavras e expressões utilizadas por Donald W. Winnicott. (J. Outeiral, trad.) 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A mãe apresenta dificuldades relacionadas consigo mesma, isto é, sente-se sozinha, incapaz de cuidar do filho ou de socializar, bastante cansaço e desânimo, comportamentos estes que acabam por deixá-la insegura e incompreendida, especialmente pelo companheiro. No caso do pai da criança as preocupações são mais viradas para o bem estar da criança e da mulher, embora predomine um sentimento de injustiça e incompreensão mas que, contrariamente à mãe, não os demonstra na tentativa de diminuir os conflitos existentes no casal. Este estudo representa então a primeira investigação empírica sobre como os homens abordam uma depressão pós-parto nas suas companheiras, onde se concluiu que eles tendem a adoptar uma atitude pacífica e submissa face à situação, comportamento este que pode ser verificado mesmo antes do nascimento da criança, isto é, representa uma caracteristica da personalidade e não apenas uma estratégia de adaptação face à depressão. Palavras-chave: Depressão pós-parto, Gravidez, Período pós-natal, Características parentais, Relações de família 215 Abstract The goal of this study was to develop a model about the impact of postpartum depression in a couple. The participants were four men between 31 and 51 years old and their respective wives, between 29 and 53 years old. There were also two single mothers with ages between 27 and 32 years old. Semi-structured interviews were recorded, transcribed and analyzed in accordance with the "Grounded Theory" method. It was clearly understood that exists large differences in the many ways to approach this disease. The mother senses a lot of frustration and self-anger: she feels lonely, incapable of taking proper care of her child and even being with other people. She also feels really tired and all of these symptoms let her insecure and misunderstood, mainly by her husband. Regarding the father, his preoccupations are more related with the health of both the sun and his wife although it prevail some feelings of unfairness and understanding. But he tends not to show it, contrarily to the mother, in a tentative to decrease the conflicts between the couple. This study represents the first empirical investigation about how these men live this postpartum depression. It was concluded that they adopt a pacific and submissive attitude in this situation and can be checked even before the birth of the child, because it represents a characteristic of them personality and not just a strategy of adaptation face to the depression. Key words: Postpartum characteristics, Family relations depression, Pregnancy, Postnatal period, Parental Depressão pós-parto (DPP) entende-se como um disturbio depressivo, não psicótico, que tem inicio no periodo após o parto. Apresenta uma leve ou moderada gravidade, caracterizada de uma sintomatologia sobreposta à de um quadro depressivo, que se pode manisfestar noutros períodos da vida. No geral, os sintomas devem ter uma duração minima de uma semana e determinar um certo grau de compromisso do funcionamento da mulher (Monti e Agostini, 2006). A DPP é uma das diferentes configurações que assume o sofrimento psicológico de uma mulher após um parto, sendo que se pode ainda verificar a presença de outros distúrbios como Maternity blues (distúrbio de leve compromisso para a mulher que tende a desaparecer duas semanas após o parto), Psicose puerpural (distúrbio psicológico grave que requer intervenção psiquiátrica) ou ainda Stress traumático pós-parto (distúrbio psicológico 216 como consequência da percepção do parto como traumático). A incidência da depressão pósparto na sociedade ocidental é estimada entre 10-20%. O seu aparecimento será entre os primeiros seis meses após o parto e pode durar entre semanas a meses, daí a elevada importância de uma intervenção de profissionais (Cox, Murray & Chapman, 1993). Os sinais precoces de uma DPP são normalmente representados por cansaço, falta de energia, que podem ser confundidos com o normal ajustamento do pós-parto e, por isso, não serem percebidos como sinais de alarme. A mãe depressiva tem tendência a viver de um modo isolado com o seu filho e, por norma, apresenta dificuldade em reconhecer e admitir o seu próprio estado de sofrimento. É habitual que a mãe sinta que não tem o direito de sentir-se triste, infeliz ou depressiva num momento que deveria ser caracterizado, segundo a sociedade, de grande felicidade e realização pessoal e familiar. Se é capaz de reconhecer a própria depressão tende a julgar-se como uma mãe incapaz e inadequada para o próprio filho (Guedeney, 1989). Esta atitude pode apresentar bastante perigo na medida em que a mãe não procura ajuda de um profissional por ter problemas em admitir o que sente. Segundo Monti e Agostini (2006), nesta patologia observa-se uma discreta variabilidade na apresentação dos sintomas. Em cada mãe pode-se manifestar um conjunto diverso, que varia em função das caracteristicas individuais, psicosociais e ambientais. Por este motivo, algumas depressões pósparto podem-se caracterizar principalmente por ansiedade e excessivos sentimentos de culpa, enquanto que, noutros casos, se pode assistir a uma polarização de pensamentos obssessivos, sentimentos de raiva e de solidão. No entanto existem alguns sintomas mais recorrentes neste tipo de mães, como o humor depressivo, tristeza, ansiedade, tensão, choro, baixos niveis de energia, perda de interesse, cansaço, disturbios do sono e do apetite, excessivos sentimentos de culpa, autodesvalorização ou mesmo ideias suicidas. O conceito de depressão pós-parto é referido nos dias de hoje, através de vários estudos efectuados, sendo responsável pelo desenvolvimento das crianças (Beck, 1995). Filhos 217 de pais depressivos apresentam mais sintomas emotivos, assim como comportamentos problemáticos, dificuldades escolares e impedimentos sociais, em relação a crianças cujos pais não passaram por este tipo de patologia (Graensbauer, Harmon, Cytryn, & McKnem, 1984). Tal como afirmava Winnicott (1960), as primeiras interacções de uma criança com a sua mãe representam o modelo que irão, mais tarde, definir as suas relações com outros indivíduos. É a partir destas mesmas que a criança adquire o exemplo de como se estabelece uma relação. No caso de uma mãe deprimida, a interacção mãe-filho será caracterizada pela presença constante de momentos não coordenados. Isto é, há uma reduzida sensibilidade aos sinais do filho da parte da mãe, que se caracteriza por comportamentos intrusivos e hostis ou ainda de retiro e evitamento. Em qualquer um dos casos, a criança aprende que as interacções são discontínuas, com rupturas, inconstantes. Assim, no que diz respeito ao desenvolvimento da criança, esta situação pode fazer com que se torne triste, stressada e isolada, com difiuldades em regolar os próprios estados afectivos negativos. Com o evoluir do tempo a criança adopta uma conduta passiva, expressa por tristeza e isolamento, como forma de imitação do afecto negativo materno (Monti e Agostini, 2006). Após uma revisão de literatura sobre este tema é notório que o conhecimento sobre a depressão pós-parto se apresenta já bastante desenvolvido, mas há ainda lacunas no que diz respeito a estudos que se centrem sobre o papel do pai nestas circunstâncias. Por outro lado, a maioria dos estudos efectuados nesta área têm sido de natureza quantitativa, com a aplicação de questionários. Assim, por estas razões, parece-me pertinente uma investigação ainda na área da depressão pós-parto, mas virada para a intervenção do pai. O objectivo será então desenvolver um estudo que permita compreender um pouco mais sobre quais as implicações e papel do companheiro de uma mulher que sofreu desta patologia. Para tal, utilizar-se-á a Grounded Theory. Trata-se de um método qualitativo que, através da utlização de entrevistas semi-estruturadas de respostas abertas, pretende investigar aprofundadamente o tema em 218 causa. Pretende-se assim compreender, através de uma pequena amostra, o funcionamento e o modo de agir de um homem que acompanhou de perto uma depressão pós-parto. MÉTODO Para a realização do presente estudo recorreu-se à “Grounded Theory” com o intuito de no final ser apresentado um modelo teórico sobre a influência da depressão-pós-parto num casal. O método referido implica a análise de entrevistas, o desenvolvimento de códigos e categorias relacionadas com o tema em causa, a criação de hipóteses a partir dos dados recolhidos e o surgimento de uma categoria central que explicite todo o processo. Participantes A recolha da amostra é feita através de um processo de conveniência no qual se procurou, junto de pessoas conhecidas e de um médico de clínica geral, casais que estivessem disponíveis para expor a sua experiência. É então constituída por quatro casais e ainda duas mulheres a quem foi diagnosticada uma depressão pós-parto. Os respectivos companheiros destas duas últimas não participaram no estudo por vontade própria, admitindo que não se sentiam confortáveis para abordar tal assunto. As seis mulheres têm idades compreendidas entre os 27 e os 53 anos, e os respectivos companheiros entre 31 e 51 anos. De todos os entrevistados, só num dos casos é que a depressão pós-parto não surgiu com o nascimento do primeiro filho, mas sim com o quarto. Metade das mães passaram por esta fase há mais de 10 219 anos, mas, a outra metade, foi durante o ano passado. No que diz respeito ao estado civil, apenas um casal não se encontra casado, mas todos habitam juntos. Procedimento As entrevistas foram todas efectuadas em casa dos próprios entrevistados, após o devido consentimento informado. Foram contactados previamente, através de conhecimentos em comum, onde foi dada a autorização para o fazer. Num primeiro contacto quem os abordou explicou o propósito do estudo e reforçou a importância da sua participação na compreensão da problemática em causa. Foram de igual forma garantidos o anonimato e a confidencialidade da informação recolhida e obtido o consentimento para as entrevistas serem gravadas. Pretendeu-se colocar questões abertas, sempre relacionadas com o tema em causa, de modo a que fossem os entrevistados a fornecer informação que considerassem pertinente, como por exemplo “o que aconteceu após o nascimento do seu filho?”. Deste modo, a entrevista possibilitou uma maior colaboração e relação entre os entrevistados e o entrevistador, permitindo assim explorar mais profundamente aspectos tão delicados. As entrevistas tiveram uma duração média de 50 minutos. Para a construção da teoria, o objectivo das entrevistas foi então compreender como é que as mães que apresentaram a patologia se sentiram face ao nascimento do filho e, ainda, como é que isso se reflectiu no companheiro. Isto é, o processo pelo qual cada membro do casal atravessou, que sentimentos estiveram associados à mudança. Após a recolha dos dados inicia-se a análise dos mesmos. Nesta fase o investigador compara todos os incidentes observados e escutados nas diferentes entrevistas de modo a integrar o conceito numa nova teoria. 220 Análise dos Dados Inicialmente foi transcrita cada entrevista com o objectivo de ser cuidadosamente analisada e codificada de uma forma sistemática. Este processo foi efectuado através do método “Grounded Theory” (Glaser & Srauss, 1967). Esta análise baseou-se numa leitura pormenorizada linha a linha, com o objectivo de se atribuir códigos aos diversos incidentes e proceder à sua conceptualização. Uma vez identificados, os incidentes foram comparados entre si e, cada vez que se encontraram códigos, foram generalizados numa categoria. Estas categorias emergentes foram comparadas entre si, produzindo-se assim outras categorias, mais complexas e inclusivas. Ao mesmo tempo que se analisavam os dados foram-se escrevendo memorandos relativos a cada uma das categorias. Cada um deles pretende descrever uma categoria, isto é, suas propriedades e possíveis relações com outras categorias. À medida que se foi aprofundando a análise foi identificada uma possível categoria central, seguindo-se posteriormente à sua confrontação com os dados e relacionando-a com outras categorias através dos memorandos. Durante esse processo, foram recolhidos mais dados na tentativa de saturar as diferentes categorias. Atendendo às questões primordiais a que este método se propõem responder, procedeu-se à construção da teoria, onde foi construído um modelo teórico, baseando-se nos memorandos já elaborados, que parte de uma categoria central que estabelece relações também com as outras categorias. A análise dos dados pressupõe então a construção de um modelo teórico que identifique diversos conceitos estabelecendo relações entre eles. Resultados 221 Os primeiros sentimentos e atitudes das mães durante uma depressão pós-parto vão facilitar consideravelmente a aparição de inseguranças e angústias nos seus companheiros. Se também eles teriam razões para desenvolver por si só conflitos, relacionados com a drástica mudança, a mulher irá aumentá-los e fazer surgir outros novos com a sua atitude deprimida e afastada. Uma das principais críticas atribuída indirectamente à mulher pelo seu companheiro é o seu afastamento deste último. Pois uma mãe que se encontra deprimida apresenta uma grande tendência para se isolar, retraindo primeiramente o pai da criança. Assim sendo, para além de se sentir também desorientado com o bebé e com os cuidados que ele exige, acrescenta ainda uma angústia por ser abandonado pela companheira. Uma outra característica destas mães é a ambivalência de emoções, isto é, durante este período o companheiro presencia uma inconstância do humor da mulher, pois há uma alternância entre a calma e tranquilidade com a angústia e a ansiedade ao longo do dia, e muitas das vezes sem razão aparente, pelo menos para ele. Assim, se já era complicado lidar com os comportamentos deprimidos, torna-se ainda mais difícil para o companheiro saber responder adequadamente aos comportamentos da mãe. Tomando contacto com esta realidade o pai da criança desenvolve determinados sentimentos, todos eles ignorados pela sua mulher. O companheiro adquire um grande sentimento de injustiça, na medida em que se sente também ele cansado e esgotado com a adaptação à nova rotina, ou seja, ele teria também razões para se deprimir mas não o faz porque não há espaço na relação para o seu sofrimento. Apesar da mãe não ter consciência disso, o homem refere que, tal como ela, apresenta também bastante dificuldade em conciliar o trabalho fora de casa com os cuidados do bebé. Para além disso, sente que a mãe apresenta uma grande tendência para lhe atribuir a culpa do seu mal-estar, facto este que ele não consegue compreender ou justificar. 222 Uma outra característica, e relacionada com a anterior, apresentada no companheiro é um enorme sentimento de incompreensão. Embora possa afirmar que conhecia já a doença (conhecimento prévio), assume que se sente confuso com as atitudes da sua mulher, na medida em que não estaria à espera de tal reacção tendo em conta que se trata de uma gravidez desejada (desejado), e desorientado com as funções que deve desempenhar junto do seu filho ou nas responsabilidades da própria casa, visto que a mulher se encontra debilitada para o fazer como faria habitualmente. O companheiro assume que não entende a alteração da sua mulher e que isso o deixa ainda mais inseguro e angustiado, embora ela não tenha consciência disso, ou pelo menos não o demonstra. Apesar disto, alguns dos entrevistados revelaram que esta atitude da mulher não foi totalmente surpresa porque ela desde sempre apresenta uma certa predisposição para se deprimir. Pois a mãe esteve anteriormente envolvida noutros episódios depressivos associados a outros acontecimentos distintos (repetição de sintomas). Isto é, já aconteceu anteriormente a mulher adoptar comportamentos deprimidos quando se deparou com situações inesperadas, ou que requeriam o seu envolvimento. É ainda possível observar nestes casos um companheiro com alguma raiva, embora nunca seja admitida. Inicialmente refere com algum desânimo que o nascimento do filho implica uma drástica alteração dos seus hábitos, pois passa a ter que abdicar de determinadas condutas a que estava habituado. Neste momento o bebé é quem tem a prioridade, isto é, os pais devem agir de acordo com as suas necessidades. Este facto gera bastante desconforto, tanto para o pai como para a mãe, pois passam a ter alguém completamente dependente deles. Ao constatar este facto o companheiro fá-lo com algum desânimo, transmite a ideia de que sente prisioneiro do filho. Por fim, este sentimento agressivo passivo verifica-se também na desilusão que o companheiro sente em relação á sua mulher. Após o nascimento ela revelase numa pessoa diferente da qual ele tinha antes idealizado. Não corresponde com as suas expectativas de mãe nem como sua companheira. 223 Contudo, o companheiro adopta uma atitude diferente da que seria esperada. Em vez de se revoltar e de confrontar a sua mulher ele acaba por adoptar estratégias que minimizam os seus sentimentos agressivos, mantendo a estabilidade na sua relação amorosa. Durante a entrevista apresenta uma vasta lista de desculpas plausíveis (desculpabilização) que expliquem o comportamento inadequado da mulher, como o cansaço ou a inexperiência, embora o faça de um modo pouco natural e verdadeiro. Isto é, apesar de fazerem sentido, revela algum descontentamento com isso. Uma outra característica verificada é o sentimento de obrigação do companheiro de aceitar a sua mulher e acarretar com as responsabilidades que deveriam ser suas. Apesar de desempenhar o papel que seria da mãe e de não se revoltar com ela, transmite algum descontentamento com a situação. Por fim, e como consequência das anteriores, o companheiro apresenta ainda uma outra característica que ameniza a situação em que se encontra. Ele adopta uma posição de submissão em relação à sua mulher, ou seja, aceita as condições impostas por ela e não a confronta. Em qualquer um dos exemplos apresentados é possível verificar uma forte tentativa, mesmo que inconsciente, da parte do companheiro em atenuar os conflitos existentes entre o casal. Assim, adoptando uma postura mais pacífica, contribui significativamente para a diminuição das discussões e, consequentemente, do comportamento inseguro e deprimido da sua mulher. É possível então entender que existe uma grande dificuldade no casal em lidar com esta doença. Porque ambos passam por um período controverso e ambíguo, mas que apresenta inúmeras falhas e dificuldades na compreensão de cada um. [Inserir figura 1 aqui] Discussão 224 Ficou então por compreender se as estratégias adoptadas pelo companheiro são apenas temporárias, revelando uma tentativa de adaptação, ou, por outro lado, se reflectem uma característica permanente da personalidade destes homens. Embora esta dúvida permaneça, são alguns os indícios que levam a suspeitar de uma personalidade passiva e talvez submissa presente nestes companheiros. Em primeiro lugar a própria experiência após o parto revela alguma ausência de atitude para enfrentar a situação, pois eles preferiram estratégias demasiado pacíficas e compreensivas. Por outro lado, apresentaram ainda ao longo das entrevistas alguma dificuldade em relatar o sucedido, afirmando esquecimento ou tentando desviar o assunto, provando assim a dificuldade existente nestes homens em partilhar o sucedido, provavelmente devido à presença de um sentimento de desconforto, de inferioridade. Finalmente, estudos assumem a existência de uma ligação entre uma personalidade retirada do companheiro com episódios depressivos na respectiva mulher (Scott and Cordova, 2002; Marchand, 2004). Um homem que apresente uma personalidade insegura caracteriza-se por uma menor capacidade de resolução de problemas quando surgem conflitos entre o casal, e ainda uma maior tendência para agressões verbais ou atitudes retiradas, de evitamento. Pode ainda ser acrescentado que relações conjugais pobres, conflituosas, apresentam-se como um forte desencadeador de depressões, nomeadamente de depressões pós-parto (O’Hara et al, 1984). Burke (2003) afirma que mulheres com tendência para desenvolver depressões escolhem, normalmente, para seus parceiros homens também com características depressivas, ou com histórias familiares psicopatológicas. Assim, tanto uma depressão pode desencadear problemas conjugais como estes últimos podem ser encarados como activadores de disfunções que facilitam o surgimento da depressão. Nos vários estudos existentes verificou-se uma lacuna relativamente à atenção prestada ao impacto que uma depressão pós-parto adquire na vida de um casal. Neste sentido, 225 a presente investigação distingue-se de outros estudos já elaborados na medida em que representa um contributo para o aumento do conhecimento nesta área, uma vez que clarifica tanto o que sente a mãe como o pai que vivem uma situação destas, isto é, como a encaram e contornam. Por outro lado, distingue-se ainda pela análise sistemática que empreendeu dos dados, tendo sempre como prioridade a construção de um modelo teórico sobre o impacto e a problemática de uma depressão pós-parto num casal. O modelo teórico construído baseia-se então na análise de dez entrevistas de sujeitos que presenciaram uma depressão pós-parto. Assim, a sua elaboração obedeceu ao objectivo de aprofundar as vivências e os sentimentos experienciados por estes pais, bem como indagar sobre os seus comportamentos adaptativos induzidos pela nova situação com que se confrontam. Apesar de cada casal vivenciar e lidar com esta problemática de modo individual e diferente, foi possível identificar um denominador comum que se traduziu num conjunto semelhante de sentimentos e comportamentos manifestados, aspecto que possibilitou a formulação da teoria defendida. Tanto quanto é do nosso conhecimento, não existem estudos que se debrucem sobre a perspectiva do companheiro. Neste contexto, justificar-se-ia certamente prosseguir esta pesquisa através de um estudo comparativo, utilizando uma escala de personalidade, como por exemplo o Neo Pi-R, que clarificasse esta questão, isto é, o que leva os homens a perfilhar uma atitude passiva que, de alguma forma, iliba as mulheres do comportamento desviante que regra geral manifestam posteriormente ao parto e que os homens, de forma demasiado compreensiva, procuram não agravar, camuflando-a. Referências Bibliográficas Beck, C. T. (1995). The effects of postpartum depression on maternal-infant interaction: a meta-analysis. 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International Journal of Psychoanalysis. 41 (6), 585-595. 227 Figura 1: Possível modelo explicativo do comportamento de um casal face a uma depressão pós-parto Mãe com depressão pós-parto Abandono/Afastamento do companheiro Injustiça Incompreensão Raiva Disfarçada Desculpabilização Obrigação Submissão 228 Candidatura 12 Autores: Guida Manuel & Cristina Soeiro Título: Incidentes Críticos na Profissão de Inspector de Investigação Criminal da PJ 229 Incidentes Críticos na Profissão de Inspector de Investigação Criminal Guida Manuel, [email protected], Instituto Superior de Polícia Judiciária e Ciências Criminais Cristina Soeiro, [email protected], Instituto Superior de Polícia Judiciária e Ciências Criminais, Instituto Superior de Ciências da Saúde Egas Moniz Resumo A profissão de Inspector da Polícia Judiciária é caracterizada por situações que são propensas a constituírem incidentes críticos que podem interferir com a saúde do indivíduo e capacidade de desempenho. Este artigo descreve os resultados preliminares de um estudo, actualmente com 148 participantes, concebido com o objectivo de efectuar um levantamento de incidentes críticos e sintomas experienciados por estes profissionais e, posteriormente, delinear uma intervenção concertada. Dos resultados salienta-se a descrição de dois incidentes críticos pela maioria, ocorridos na maior parte durante diligências operacionais e envolvendo armas de fogo. Palavras-chave: Stress, Incidentes Críticos e Trabalho de Polícia Abstract The criminal investigator police officer can be exposed to several situations of their work that can be potential critical incidents with impact in their health, well-being and work capacity. This article describes the preliminary results from a research to identify the principal critical incidents experienced by this police officers and related stress 230 reactions. The participants (N = 148) described two critical incidents, this situations occurred in the practical police work and are related with the use of fire arms. Key-Words: Stress Reactions, Critical Incidents and Police Work Incidentes Críticos na Profissão de Inspector de Investigação Criminal Incidentes Críticos e Contexto de Trabalho de Polícia Vários são os contextos ocupacionais que se apresentam como potencialmente indutores de stress, no entanto a profissão de polícia inclui stressores específicos, integra situações especiais onde o stress surge com frequência, tendo consequências negativas para a saúde do profissional (Patten & Burke, 2001; Soeiro & Bettencourt 2003; Cunha, 2004; Soeiro 2004), sendo considerada uma profissão de alto risco (Santos & Soeiro, 2004). A actividade policial e os contextos onde é exercida constituem fontes de formas continuadas e específicas de stress profissional, que exigem recursos individuais e suporte externo também específico de modo a lidar com as diversas situações de risco, sendo considerado que os profissionais de polícia ao fracassarem na forma como lidam com as situações de stress correm o risco de adoecerem e colocarem em causa a sua qualidade de vida, quer a nível físico, mental, relacional e profissional, afectando quer o grupo de trabalho quer a família do profissional (Gabinete de Psicologia, 2004). Numa perspectiva que concebe o stress como um processo interactivo ou transaccional entre estímulos ambientais e as respostas individuais, relevam-se as diferenças individuais, a especificidade dos mecanismos psicológicos, nomeadamente os processos de avaliação cognitiva de cada indivíduo, bem como a importância do 231 modo como estes lidam com o stress, i.e., os processos de confronto utilizados (Lazarus & Folkman, 1984; Cruz, Gomes & Melo, 2000; Vaz-Serra, 2005). Face à realidade portuguesa não é possível generalizar quando falamos da profissão de polícia, devendo ser estudada a especificidade de cada instituição, pois diferem a vários níveis, quer histórico e organizacional, quer na competência e missão atribuídas. Nos últimos anos, o interesse pelas questões que envolvem o stress na profissão de polícia têm sido transversal à Guarda Nacional Republicana, Polícia de Segurança Pública e Polícia Judiciária (PJ). Os estudos têm focado as fontes de stress em contexto profissional (Magalhães, 1999; Soeiro & Bettencourt, 2003; Soeiro, Bettencourt & Samagaio 2003), as fontes, estratégias de coping e implicação organizacional (Gonçalves & Neves 2004), o burnout (Passos & Antunes 2004), a vulnerabilidade ao stress (Costa & Luz 2004), os incidentes críticos (Sousa, 2004). A expressão incidentes críticos numa primeira abordagem parece remeter para acontecimentos traumáticos ou altamente indutores de stress. O estudo do stress dos incidentes críticos é relativamente recente, enraizando na investigação do trauma em situações de crise, do burnout e do Distúrbio de Stress Pós-Traumático (DSPT). Pode dizer-se que nas últimas duas décadas têm havido desenvolvimentos substanciais no reconhecimento dos efeitos do stress dos incidentes críticos entre as forças policiais. Vários autores (e.g. Patten & Burke, 2001; Santos & Soeiro, 2004; Soeiro, 2004; Soeiro & Bettencourt, 2003; Soeiro, Bettencourt & Samagaio, 2003), reconhecem que o pessoal de investigação criminal pode experienciar stressores equivalentes aos agentes da patrulha e ainda enfrentar stressores específicos e incidentes críticos. 232 Em termos introdutórios pode designar-se crise quando um acontecimento externo ou uma mudança interna afectam de modo significativo o equilíbrio do indivíduo, sendo tal acompanhado de activação acentuada e níveis emocionais elevados podendo coexistir um estado de desorganização em termos funcionais do indivíduo. Considera-se que um acontecimento é traumático quando existe a percepção de que o acontecimento crítico constitui uma ameaça à vida ou à integridade física do próprio ou de outrém. É natural que após um acontecimento traumático, considerando que se trata de uma ocorrência que extrapola a experiência quotidiana, surjam uma série de reacções emocionais que podem vir a constituir uma reacção traumática ao serem sentidas como demasiado perturbadoras ou persistirem durante um tempo excessivo. Tratam-se de pesadelos, imagens e pensamentos intrusivos, frieza afectiva, reacções emocionais intensas, irritabilidade, desinteresse, insónia, dificuldades de concentração, não querer falar ou pensar sobre o sucedido. Podendo vir a evoluir para uma Perturbação Pós-Stress Traumático (Hospital Júlio de Matos) ou DSPT. Segundo Flannery (s.d.), trauma psicológico designa o impacto de um incidente crítico altamente stressor no funcionamento psicológico e biológico de um indivíduo, podendo surgir quando o indivíduo é confrontado ou testemunha a ocorrência, a outras pessoas, de morte, lesões graves, ameaça de morte ou ameaça à integridade física. Vaz-Serra (2003) releva que certas ocorrências possam constituir acontecimentos traumáticos, pela gravidade das suas características, pois sob o ponto 233 de vista psicológico induzem um stress intenso, sendo acontecimentos extremos sobre os quais o indivíduo não tem qualquer meio de evitamento ou controlo e cujas consequências se podem considerar graves, tendo tendência a subsistirem no tempo mesmo depois do desaparecimento da causa original. O autor releva ainda que “a gravidade de um acontecimento traumático está associada ao grau de predictibilidade, controlabilidade e intensidade que possa ter.” (Vaz-Serra, 2003, p. 27). Acrescenta-se que a ocorrência de um trauma modifica a concepção que o indivíduo tem do mundo, “destrói a compreensibilidade que a pessoa tem do mundo à sua volta, fá-la sentir-se mais vulnerável, retira-lhe o sentido de predictabilidade e de controlabilidade das ocorrências e empobrece-lhe a auto-estima.” (Vaz-Serra, 2003, p. 19). Segundo Soeiro (2004) pode ser considerado um incidente crítico “qualquer evento que tem um impacto significativo onde os indivíduos percepcionam que as suas competências e eficácia são ameaçadas” (p.1), ou como afirma Kucreczka (1996), referindo-se especificamente aos polícias, qualquer situação que afecte as expectativas pessoais de infalibilidade de modo repentino. Salientando-se que tais incidentes ocorrem de forma inesperada, abrupta e repentina, fugindo ao que é usual, para além das experiências humanas habituais, podendo provocar efeitos nefastos como o abandono prematuro da profissão e o desenvolvimento de problemas do foro psicológico. A definição mais simples de stress a incidente crítico, de acordo com Goldfarb e Aumiler (s.d.) é a que o refere como uma reacção normal a um acontecimento anormal, sendo que, segundo a mesma fonte, os incidentes críticos são repentinos e 234 inesperados, desfazendo o sentido de controlo, abalando crenças, valores e suposições básicas sobre o mundo, as pessoas e o trabalho que fazem. Podem ainda envolver uma percepção de ameaça prejudicial à vida e perda emocional ou física, podendo observar-se sintomas a nível físico, cognitivo, emocional e comportamental. Como incidentes críticos típicos são descritos os que envolvem morte, tiroteio, danos/ferimentos, suicídio de parceiro, morte de criança, tentativa de salvamento prolongada falhada, incidentes casuais em massa e situações em que a segurança do polícia é colocada em risco de modo invulgar ou quando o profissional percebe que a vítima é sua conhecida. Goldfarb e Aumiler (s.d.) chamam ainda a atenção para as diferenças individuais, sendo que nem todas as pessoas expostas a incidentes críticos apresentam reacções de stress. Não significando que essas pessoas sejam imunes às pressões do trabalho de polícia, podendo considerar-se que o efeito de qualquer acontecimento resulta de uma mistura das características específicas do acontecimento propriamente dito, a personalidade de cada profissional e factores que envolvem a sua vida. Assim, salienta-se que o impacto de um acontecimento traumático pode ser muito variável de indivíduo para indivíduo, podendo não apresentar quaisquer sintomas de natureza psicopatológica ou, inversamente, apresentar os mais diversos transtornos de relativa gravidade. Segundo Vaz-Serra (2003) “o que determina o aparecimento de uma doença psiquiátrica pós-traumática é o tipo de interacção que se estabelece entre o meio ambiente e as condições biológicas e mentais do indivíduo.” (p. 57). 235 Parece estar em jogo, mais do que o próprio acontecimento em si, a avaliação que a pessoa faz do sucedido, sendo que desta “surge o significado que lhe é atribuído, a importância que lhe é conferida e a percepção de ter ou não controlo sobre a circunstância.” (Vaz-Serra, 2003, p. 97), sendo importante não o que acontece mas a avaliação do fenómeno que a pessoa leva a cabo, ou seja, como o percepciona ou sente. Por outro lado, pode não ser só o inspector o elemento afectado pela ocorrência de um incidente crítico, a sua família e os seus pares (colegas e amigos) ou mesmo toda a sua rede social podem tornar-se em vítimas indirectas ou secundárias, vendo a sua vida afectada, as suas relações alteradas e perturbadas. Realçando-se no contexto do trabalho de polícia a importância de como os pares e a família podem orientar a sua acção face a um colega que acabou por passar por uma situação crítica. Patten e Burke (2001) referem que os crimes que envolvem crianças são os mais difíceis para os investigadores trabalharem e manterem o seu equilíbrio emocional e psicológico. Estes autores, num estudo sobre o stress de um incidente crítico e os investigadores de homicídios de crianças observaram, que os investigadores experienciam níveis de stress significativamente mais altos do que os adultos vulgares. Salientam ainda que a exposição a estímulos traumáticos numa cena de crime envolvendo a morte de uma criança era a variável predictora de stress mais significativa. Segundo Patten e Burke (2001), apesar das limitações do estudo, parece claro que os investigadores de homicídios sofrem de efeitos advindos do stress proveniente do seu trabalho e embora o stress não se poder considerar debilitante foi de modo significativo superior ao que esperavam encontrar, o que vai, na opinião dos autores, de encontro à 236 concepção de Henry (1995, citado por Patten & Burke, 2001) em que o polícia é visto como um sobrevivente psicológico. Sheehan, Everly e Langlieb (2004), referindo a realidade norte-americana, salientam o facto da intervenção em termos de gestão do stress de incidentes críticos ter as suas origens na vida militar, sobretudo nos conflitos armados e guerras, tendo posteriormente sido alargada a outros contextos profissionais, nomeadamente o das forças de segurança. Os autores realçam que a intervenção assenta nos três princípios basilares que formam a fundação histórica da intervenção na crise: proximidade, urgência e expectativa. Correspondendo o primeiro à capacidade de providenciar suporte psicológico onde quer que seja necessário no campo; o segundo à capacidade de providenciar apoio rápido; e o terceiro ao facto das reacções adversas a um incidente crítico serem vistas como reacções normais a stress extremo e não como reacções patológicas (Sheehan, Everly & Langlieb, 2004). A preocupação com a gestão de stress, incluindo a intervenção precoce, de modo a suavizar sintomas e reduzir o impacto negativo dos incidentes críticos, tem sido a base do desenvolvimento de alguns modelos, embora não se aprofundem aqui, refere-se o apresentado pela International Critical Incident Stress Foundation (ICISF), salientando Everly e Mitchell (s.d) que se trata de um sistema multifacetado, compreensivo e integrativo de intervenção na crise designado Critical Incident Stress Management (CISM). Segundo a mesma fonte os programas do CISM foram empiricamente validados através de análises qualitativas e investigações actuais têm 237 claramente demonstrado o seu valor como ferramenta na diminuição do sofrimento humano. Desde os anos 70 que CISM tem sido aplicado e adaptado a diversos contextos profissionais, tanto nos serviços de emergência como noutras organizações, passando pela aviação, polícia, bombeiros, etc., podendo considerar-se em expansão pelo interesse que tem despertado, emergindo como um sistema internacional standard de cuidado de vítimas primárias, secundárias e terciárias (Flannery, s.d.; Mitchell & Everly, 2003) Incidentes Críticos e Inspectores de Investigação Criminal da Polícia Judiciária Em Portugal, o início do estudo dos incidentes críticos no âmbito da carreira de investigação criminal da Polícia Judiciária remonta a 2003 e a sua importância tem vindo, de certo modo, a ser salientada pela abertura destes profissionais face a esta temática. Segundo Soeiro, Bettencourt e Samagaio (2003) podem considerar-se exemplos de situações propensas a ser geradoras de incidentes críticos para os inspectores: detenções, buscas e rusgas, tomada de decisão sobre a realização de uma determinada operação, ser alvo de ameaças, confrontos com arguidos que podem estar armados, ser ferido durante uma operação e planeamento das actividades operacionais. Soeiro (2004) chamou a atenção para o facto dos incidentes críticos provocarem efeitos de grande significado, salientando a necessidade de intervir, mas sobretudo de prevenir. Esta autora apresentou um programa de intervenção cujos objectivos visavam “estabelecer intervenções pró-activas com o intuito de minimizar/evitar consequências negativas de eventos resultantes da actuação em 238 situações de crise” (Soeiro, 2004, p. 5), relevando a necessidade da criação de um mecanismo organizacional que permitisse providenciar aos profissionais um serviço de apoio específico para incidentes críticos, bem como orientar os profissionais necessitados para tratamento e reabilitação. É precisamente no seguimento destes trabalhos que surge este estudo, tentando perceber se os polícias da carreira de investigação criminal da Polícia Judiciária ao longo do desempenho das suas funções estão sujeitos a situações que se podem considerar incidentes críticos, qual a incidência dos incidentes críticos neste contexto profissional e que tipo de acontecimentos constituíram incidentes críticos. Interessa também averiguar qual o tipo de impacto dos acontecimentos relatados como incidentes críticos na saúde dos profissionais da carreira da investigação criminal e que tipo de intervenção faz sentido a estes profissionais. Método Participantes Os participantes deste estudo (N = 148) integram a carreira de investigação criminal da Polícia Judiciária, salientando-se que 137 pertencem à categoria de inspector (92.6%), 9 de inspector-chefe (6.1%) e 2 de inspector-estagiário (1.4%). A maioria exerce funções numa Direcção Central (48.6%), 35.1% numa Directoria, 11.5% num Departamento de Investigação Criminal e 4.7% no Instituto Superior de Polícia Judiciária e Ciências Criminais. Quanto ao tempo de serviço verificase uma amplitude dos 3 meses aos 31 anos (M=11.29; DP=7.5). 239 Apresentam idades compreendidas entre os 28 e os 56 anos (M=38.28; DP=6.84), sendo a maioria dos participantes do sexo masculino (84.5%), o que representa uma percentagem próxima da apresentada no total de Inspectores da Polícia Judiciária em 2005 (84% do sexo masculino e 16% do sexo feminino) (Almeida, 2006). A maior percentagem dos participantes possui o ensino secundário (36.5%), 29.1% possuem licenciatura, 22.3% frequência universitária e 12.2% possuem ensino básico. No que respeita ao estado civil, evidencia-se que 72.3% dos participantes são casados, 15.5% solteiros e 12.2% divorciados. Relativamente ao tipo de crime investigado, durante mais tempo e na actualidade, evidencia-se uma distribuição dos participantes pelos diversos tipos de crime (Tabela 1), no entanto, relevam-se os crimes contra o património, a investigação do tráfico de estupefacientes e os crimes contra as pessoas como os investigados por uma maior percentagem de participantes. Tabela 1 – Percentagem de participantes por tipo de crime investigado durante mais tempo e na actualidade Tipo de Crime Investigado mais tempo % Actual % Crimes contra o património 28.4 29.1 Tráfico de estupefacientes 25.7 18.9 Crimes contra as pessoas 24.3 20.9 240 Crimes contra a vida em sociedade e contra o Estado 12.8 12.2 Vigilâncias e polícia técnica 4.7 0.7 Recursos estratégicos 2 17.6 Outro 2 0.7 No que respeita a duração do tipo de crime investigado durante mais tempo verifica-se uma amplitude de três meses a 25 anos (M=8.1; DP=5.9), já o crime investigado actualmente apresenta uma amplitude de um mês a 25 anos (M=5.56; DP=5.96). Instrumento Tendo em vista os objectivos deste estudo foi utilizado para a recolha de dados um instrumento, elaborado no âmbito do Projecto de Intervenção em Incidentes Críticos no Contexto de Trabalho de Polícia, composto por três partes, denominado por Questionário de Incidentes Críticos para a Polícia de Investigação Criminal (Soeiro & Bettencourt, 2003; Soeiro, Bettencourt & Samagaio, 2003). O questionário integra uma folha de rosto onde se enunciam os objectivos gerais e uma segunda folha destinada à recolha de informação sobre dados pessoais e profissionais. Na segunda parte do instrumento é pedido ao participante que descreva os três incidentes críticos mais marcantes que já vivenciou no desempenho do seu trabalho, por ordem de importância, sendo ainda pedida a especificação de há quanto tempo ocorreu o incidente e em que tipo de crime se inseria. Posteriormente é apresentado um conjunto de 241 sintomas em forma de lista de reacções sintomatológicas ao stress, englobando reacções físicas (9 itens), cognitivas/pensamento (7 itens), emocionais (11 itens) e comportamentais (10 itens), pedindo-se ao indivíduo que indique os que foram por si experienciados nos seis meses após o incidente mais crítico, bem como os que vivenciou nos últimos seis meses da sua vida profissional. A terceira parte do questionário é composta por apenas uma questão aberta em que é pedida a opinião do participante sobre o que se poderia fazer para evitar o impacto negativo dos incidentes críticos no seu desempenho. Procedimento Os participantes foram contactados pelas respectivas chefias e convidados para uma entrevista e questionário, após efectuada uma breve apresentação do estudo e seus objectivos de modo coincidente com o redigido na folha de rosto, garantindo-se o anonimato e confidencialidade da informação, procedeu-se à entrevista seguindo os itens pela ordem apresentada no questionário. Resultados Dos dados recolhidos salienta-se que a maioria dos participantes (85.8 %) assinalaram a presença de incidentes críticos. Dos participantes que assinalaram esta presença 67% descreveram a ocorrência de dois incidentes críticos ao longo do desempenho da sua profissão, 30% descreveram três incidentes críticos e 3% dos participantes descreveram somente um incidente crítico. 242 Os diversos incidentes críticos relatados ocorreram no âmbito da investigação de diferentes tipos de crime (Tabela 2). No que respeita ao posicionamento dos participantes em relação aos incidentes críticos relatados releva-se que a maioria se encontrava presente no momento do primeiro incidente, mas sem influência directa no mesmo (43.2%), 37.8% se encontravam presentes tendo tido influência no incidente e uma minoria (4.7%) se encontrava ausente tendo conhecimento da ocorrência por terceiros, o mesmo tipo de tendência foi observado para o segundo e terceiro incidentes. O primeiro incidente crítico ocorreu numa amplitude de tempo de um mês a 30 anos (M=7.58; DP=6.51), o segundo incidente ocorreu com uma amplitude de um mês a 26 anos (M=6.66; DP=5.75) e o terceiro incidente crítico com uma amplitude dos 4 meses aos 29 anos (M=8.02; DP=7.28). Tabela 2 – Percentagem de participantes por tipo de crime e por IC Tipo de Crime Primeiro IC % Segundo IC % Terceiro IC % Crimes contra o património 26.4 20.9 6.8 Tráfico de estupefacientes 25.0 15.5 7.4 Crimes contra as pessoas 22.3 14.9 8.8 sociedade e contra o Estado 6.1 3.4 1.4 Vigilâncias e polícia técnica 4.1 2.7 1.4 Recursos estratégicos 1.4 - - Outro 0.7 - - Crimes contra a vida em 243 Face à descrição dos incidentes críticos foi efectuada uma análise de conteúdo de modo a extrair as principais características de cada incidente, culminando numa série de variáveis que caracterizam cada ocorrência e que podem surgir sobrepostas, salientando a complexidade das situações descritas. Confinamos a nossa descrição apenas ao incidente descrito como mais importante, assim, em termos gerais, o primeiro incidente crítico descrito remete para situações que envolveram na sua maioria (64.9%) diligências operacionais (e.g. buscas, vigilâncias, identificações, notificações e abordagens a sujeitos, detenções, flagrantes, bairros problemáticos e perseguições), 48% envolveram as armas de fogo (e.g. ser ameaçado com arma de fogo, tiroteio, tiroteio com polícias feridos/mortos, tiroteio com suspeitos feridos/mortos), seguindo-se situações em que o factor humano foi o mais marcante (27%) onde se incluem crimes sexuais, homicídios, suicídios, decomposição de cadáveres, autópsias, situações de pobreza extrema e sofrimento das vítimas e, por fim, 14.2% relataram situações de acidentes de automóvel. Em relação às reacções sintomatológicas apresentadas, verifica-se que a sintomatologia assinalada como tendo surgido durante os seis meses após o primeiro incidente crítico apresenta uma maior percentagem, para todos os conjuntos de sintomas, do que a assinalada como tendo surgido nos últimos seis meses (Tabela 3). Tabela 3 – Percentagem de participantes por conjunto de sintomas Sintomas de Stress Após o IC % Agora % Reacções Físicas 39.2 32.4 Reacções Cognitivas/Pensamento 44.6 26.4 244 Reacções Emocionais 41.2 25.7 Reacções Comportamentais 13.5 11.5 Continuando a análise descritiva, salienta-se que a maior parte dos participantes avançou com sugestões sobre o que poderia ser feito para evitar o impacto negativo dos incidentes críticos (89.2%). A sugestão dada pela maioria dos participantes remete para a alteração nas políticas organizacionais (43.2%), seguindo-se o apoio especializado da Psicologia (42.6%), a intervenção da Psicologia num âmbito mais alargado (investigação, programa e formação em IC’s) (38.5%), o apoio dos pares (34.5%), o melhor planeamento operacional e treino de competências profissionais (29.1%), debriefing’s, discussão, reunião (23.6%) e, por último, apoio das hierarquias/institucional (25.7%). Da análise multivariada de dados qualitativos incidindo nas características descritas para o primeiro incidente crítico surgem duas dimensões, a Dimensão 1 agrupa variáveis que podem ser definidas como diligências operacionais e a Dimensão 2 refere acidentes de automóvel. Efectuando correlações entre estas duas dimensões e as variáveis sóciodemográficas, surgiram como significativas com a Dimensão 1 correlações positivas com a duração do tipo de crime investigado, quer com o tipo de crime investigado durante mais tempo (r=.175; p≤0.05) quer com o tipo de crime investigado actualmente (r=.225; p≤0.01). Resultou ainda uma correlação positiva desta dimensão com a quantidade de Reacções Emocionais à época da entrevista (r=.181; p≤0.05) e 245 correlação negativa com a quantidade de Reacções Comportamentais assinaladas logo após o IC (r=-.173; p≤0.05). Quanto à Dimensão 2, acidentes de automóvel, apresentou apenas uma correlação positiva com a quantidade de Reacções Físicas assinaladas logo após o acontecimento (r=.175; p≤0.05). Discussão Como se vislumbrou ao longo deste trabalho, em termos gerais, os problemas associados ao stress no contexto da profissão de Polícia podem, por um lado, colocar em risco o investimento que envolve a integração de um profissional operacional, incluindo a selecção, formação, estágio, adaptação a local de trabalho específico, manutenção do seu estado de saúde e desempenho. Por outro lado, os profissionais afectados no seu desempenho, saúde e qualidade de vida, por factores de stress inerentes à profissão podem vir a representar uma sobrecarga em termos financeiros. O mesmo parece acontecer quando os profissionais vêem a sua vida alterada e o seu desempenho colocado em causa pela ocorrência de uma situação inesperada e altamente stressante, um incidente crítico, cujo controlo lhes escapa. Tais suposições, mesmo que se concorde que “um acontecimento traumático pode representar uma ocasião única que contribui para o amadurecimento psicológico da pessoa” (Vaz-Serra, 2003, p. 55), parecem indicar como linha orientadora a seguir o investimento na prevenção, não só pela redução dos factores de stress mas também por uma melhor preparação dos profissionais, fomentando recursos e estratégias de 246 confronto adequadas, passando por uma maior sensibilização e responsabilização dos profissionais e das entidades empregadoras face a esta problemática. Soeiro e Bettencourt (2003) chamam ainda atenção para o facto de uma intervenção a nível do stress no contexto de trabalho de polícia poder englobar, para além da identificação dos factores de stress e estratégias de coping adequadas, o desenvolvimento de programas de prevenção/tratamento do stress onde se incluam a “definição de critérios de recrutamento e selecção, pelo processo formativo e por estratégias de apoio psicológico ao sujeito que podem alargar-se à sua própria família” (p. 157). O presente estudo, como foi referido, integra uma pesquisa mais alargada, no entanto, apesar das inerentes limitações, apresentam-se os resultados preliminares que apontam para a descrição de dois incidentes críticos pela maioria dos participantes, a maior parte das situações referidas ocorreram durante diligências operacionais e envolveram armas de fogo. Os participantes reconheceram diversos sintomas dos diferentes tipos de reacções apresentadas e na sua maioria apresentaram sugestões de modo a minimizar os efeitos dos incidentes críticos no desempenho profissional. Os resultados mais salientes vão de encontro à literatura que prevê que certas actividades operacionais que caracterizam o trabalho de polícia se podem tornar propensas a consistir incidentes críticos (e.g. detenções, buscas, etc.) (Patten & Burke, 2001; Santos & Soeiro, 2004). O facto de não se evidenciarem diferenças entre sexos pode remeter para a adequação/uniformização da selecção/formação/preparação profissional. 247 Os resultados apontam para a adaptação do profissional, desenvolvendo este, estratégias de coping adequadas ao desempenho da profissão, tal pode ser inferido pela percentagem de reacções sintomatológicas referida logo após o acontecimento. No entanto, a sintomatologia sinalizada na altura da entrevista, sem ligação ao incidente crítico relatado, antevê que existem aspectos inerentes à função de polícia que se podem encontrar associados ao desgaste ao longo do tempo (burnout). Fica a sugestão de um estudo mais aprofundado sobre o burnout na carreira de investigação criminal, assim como o interesse em incrementar a pesquisa sobre coping, factores protectores e de risco, de preferência utilizando grupos de controlo tal como sugerem Malloy e May (1984). Salienta-se que com base na pesquisa efectuada no âmbito deste estudo e nos seus resultados preliminares foi já elaborado e ministrado um módulo de formação específica sobre incidentes críticos integrado na formação inicial dos inspectores estagiários de investigação criminal e procede-se à actualização do Manual de Aconselhamento e Intervenção em Situações de Stress (Santos & Soeiro, 2000). Com a continuação do presente estudo espera-se vir a compreender qual o caminho a seguir no sentido de uma intervenção concertada, visando a saúde e qualidade de vida, que sirva os inspectores de investigação criminal, pessoal e profissionalmente. Referências Almeida, I. (2006). A dimensão de género na investigação criminal: Um estudo na Polícia Judiciária. Dissertação de Mestrado em Psicologia Social e 248 Organizacional. Manuscrito não publicado, Instituto Superior de Ciências do Trabalho e da Empresa, Lisboa. Hospital Júlio de Matos. Consultas de intervenção na crise e de stress traumático: Áreas de intervenção. Retirado em 06/03/2008 de http://www.hjmatos.minsaude.pt. Costa, R., & Luz, P. (2004). Vulnerabilidade ao stress e estrutura organizacional: Estudo numa amostra de agentes das forças especiais e de patrulheiros da Polícia de Segurança Pública Portuguesa. In A. Carvalho, J. Monteiro, E. Baptista, M. Covelinhas & R. Cruz (Orgs). 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Psiquiatria Clínica, 26 (3), 213-226. 252 253 Candidatura 13 Autores: Maria Adriana Coler & Manuel Lopes Título: Os Profissionais de Saúde frente a violência no idoso 254 OS PROFISSIONAIS DE SAÚDE FRENTE A VIOLÊNCIA NO IDOSO* *Maria Adriana Coler, Mestre em Psicologia Social, Doutoranda em Psicologia – Universidade de Évora, Portugal.E-mail: [email protected] *Dr. Manuel Lopes, Profº Coordenador da Escola Superior de Enfermagem São João de Deus, Vice-Reitor da Universidade de Évora, Portugal.E-mail: [email protected] *Drª Antonia Moreira, Profª Coordenadora do Departamento de Enfermagem da Universidade Federal da Paraíba, Brasil. Email: [email protected] Resumo Os profissionais da área de saúde que se colocam no papel de cuidadores têm a oportunidade de tratar o problema da violência no idoso que chega às diversas Instituições considerando especialmente, a pessoa que o traz. Mas será assim que a dinâmica ocorre? O paciente que apresenta sinais de abuso ou mesmo os que comunicam maus-tratos são assistidos considerando suas individualidades ou se perdem na burocracia do atendimento técnicoprofissional? Será que o modo como os profissionais de saúde percebem a violência afectaria a assistência prestada? Levando-se em consideração que esses podem ser os primeiros indivíduos em contacto com possíveis vítimas, a preocupação sobre o que os profissionais de saúde pensam sobre esse tipo de violência parece por si só, justificável. Se a preocupação da existência de equipas multi-profissionais não garante que o profissional se sinta capacitado a abordar o tema, resta a reflexão sobre as maneiras de se promover a comunicação da violência como acção de combate à mesma. 255 O conhecimento sobre o conjunto das representações sociais dos profissionais de saúde em relação a violência no idoso pode fornecer informações singulares para a capacitação profissional e melhoria da prestação de serviços comunitários e de saúde especialmente, em relação as atitudes que podem motivar ou não a expressão verbal da violência. Palavras Chaves: Violência, Violência no Idoso, Envelhecimento, Profissionais de Saúde, Representações Sociais. Introdução Apesar da preparação pessoal ou profissional que estamos acostumados a dizer que temos, muitas vezes a incerteza de como tratar a pessoa idosa faz-se presente no nosso discurso. Se se é condescendente, corre-se o risco de lhes faltar com respeito. Se esperamos o exercício da tão falada independência nas actividades rotineiras, pode-se ignorar as suas necessidades. São inúmeras as queixas e demandas. Os profissionais por um lado, estão a trabalhar com boas intenções, mas a reclamar da “falta de tudo”: de recursos materiais, financeiros, educacionais, da falta de tempo. O trabalho pode até ser suficiente mas não é, na grande maioria das vezes eficiente, provocando frustrações para ambos, o paciente idoso e o profissional que lhe assiste. Sem contar mais com o tempo como aliado, estes são forçados a adaptarem-se a uma nova identidade com aspectos únicos de uma idade peculiar às outras: a terceira idade. O ser humano deve ser mesmo o animal mais difícil de se entender. Fala-se sobre o velho, o envelhecido, o caduco ou qualquer outro termo para representar o que é 256 ultrapassado, utilizando-se quase sempre uma conotação pejorativa da palavra. Por outro lado, apreciamos um bom vinho ou Scotch (de preferência velho), o juízo (que muitos de nós nunca teremos não importa quão velhos nos tornemos), o clássico em todas as suas formas (e como é chique essa palavra), as fotos antigas, o valor da história e, portanto do que é velho, histórico, arcaico. Estamos todos a viver esse paradoxo da sociedade ocidental moderna numa constante luta pelo equilíbrio entre as perdas e ganhos que acompanham o processo de nossa existência. Culturalmente, ignoramos os nove meses precedentes ao nascimento mesmo sabendo que lá já acontece muito de nosso desenvolvimento. Passamos apenas a medir nossa idade a partir do nosso primeiro ano de vida, ganhando dessa forma, pelo menos uns 180 dias. Para aproveitar ou não todo esse tempo e mais o que se adiciona ao longo das nossas vidas há várias maneiras de se ficar velho. Pode-se envelhecer vendo o tempo passar, pois, como dizia John Lennon* “a vida é o que acontece enquanto ocupados, fazemos outros planos16” (Lennon, 1980) ou se pode escolher uma maneira mais participativa nessa etapa do ciclo humano. Mas como podemos definir que ciclo é esse? Algumas Considerações sobre o Envelhecimento e a Violência no Idoso Se é para se escolher uma definição, será eleita uma pela abrangência de seu significado. Toma-se então o conceito de senescência, baseado na ciência da biologia que é entendida como o processo natural de envelhecimento ou o conjunto de fenómenos associados a estes processos (Iaria-Timo, 2003). 16 Tradução livre de: “life is what happens to you while you’re busy making other plans” (Beautiful Boy, Lennon, 1980). 257 Com esse conceito em mente fica mesmo difícil se pensar numa idade cronológica do envelhecimento. Por essa mesma razão nos agrada. Afinal de contas, com que idade se começa a envelhecer? Para o poeta brasileiro Carlos Drummond de Andrade que viveu até os 87 anos, mas cuja obra não se mede cronologicamente, "Só o velho saberia contar o que é a velhice, se ele soubesse!" (Drummond, 1987). Por mais que se encontrem definições e conceitos sobre o envelhecimento, há de se respeitar as diferenças sociais, culturais, biológicas ou, simplesmente psicológicas já que sentir-se velho acontece independente de ser caracterizado como tal, pois repetindo-se as palavras de Simone de Beauvoir, o inconsciente não tem idade (Beauvoir, 1968). As populações de praticamente todos os países em desenvolvimento estão em processo de envelhecimento. Apenas em Portugal, já se ultrapassa a casa dos 1,849.831 milhões de indivíduos nessa faixa etária (INE, 2007). Ser idoso significa para alguns, poder finalmente aproveitar a vida, viajar, não se preocupar com as responsabilidades domésticas ou financeiras mas, também é para outros, sinónimos de ser frágil, vulnerável, dependente, temeroso diante da mudança de seus papéis seja em família e/ou sociais. O processo de viver mais tem implicações importantes nos conflitos exacerbados pelo stress da convivência intensiva. Esses conflitos de identidade podem significar para muitos a exposição a situações de negação da própria autonomia e agressão a sua integridade materializando-se em forma de violência. Esse é, segundo Silva et al (2008) 258 um dos aspectos da vida moderna que causa medo ao idoso suscitando portanto, nosso interesse para reflexão nesse estudo. Só nos últimos cinco anos seus registos triplicaram de oito para vinte e cinco mil casos aonde as vítimas têm mais de 64 anos. Embora alarmante, essa quantidade apenas reflectem parte do problema da violência nos idosos que em suas variadas formas emudece muitos outros. Sua definição provavelmente mais conhecida é a da Organização Mundial de Saúde (OMS) que a explica como sendo “o uso intencional de força física ou do poder, real ou em ameaça contra si próprio, contra outra pessoa, ou contra um grupo ou uma comunidade, que resulte ou tenha possibilidade de resultar em lesão, morte, dano psicológico, deficiência de desenvolvimento ou privação” (WHO, 2002, p.30). Quando envolve a população idosa, a definição da violência usada popularmente é a fornecida pela Rede Internacional de Prevenção ao Abuso de Idosos (INPEA) e aceita pela OMS que a conceitua como “ato único ou repetido, ou falta de acção apropriada ocorrendo entre qualquer relacionamento aonde exista a expectativa de confiança que cause dano ou sofrimento ao idoso” (WHO/INPEA, 2002, p. 9). Remetendo-se a experiência profissional que tive como membro de uma equipe multidisciplinar que atendia vítimas, a expressão comum entre muitos com histórico familiar de violência em relação a questão de discutir ou não o abuso sofrido, era de vergonha pelo acontecido. A tristeza por se identificarem como vítimas era motivo de intensa discussão, já que pertencer aos grupos de apoio facilitava falar sobre o tema mas, nem sempre, implicava em registar oficialmente o ocorrido. 259 Sabe-se que mesmo as que procuram serviços de assistência de saúde em consequência de maus-tratos podem justificar suas presenças com outras razões que não sejam as envolvidas com a violência, pois, como se deve imaginar, a discussão de experiências abusivas não se caracteriza como situação de aprazimento. Apesar dos muitos que enunciam o problema, há ainda a desconhecida população dos demais que estão a se calar. As estatísticas do primeiro semestre de 2008 fornecidas pela Associação Portuguesa de Apoio a Vítima – APAV, mostram um aumento de 20,4% do total de pessoas idosas vítimas de crime entre 2006 e 2007. A Associação Cívica Vidas Alternativas publicou que nos últimos cinco anos, os registos deste tipo de violência triplicaram dos mais de oito mil casos para os quase 25 mil em que a vítima do crime tem mais de 64 anos. Publicou ainda que das 2911 queixas recebidas na PSP em 2006, apenas 139 são respeitantes a violência contra idosos. Entender para Intervir Por se constituir um dos mais preocupantes problemas da vida actual já pois, considerado de Saúde Pública, existe a necessidade de compreendê-lo não só do ponto de vista epidemiológico, mas, sobretudo conhecer seu significado e suas significações, expressos pelo conjunto de pessoas envolvidas directa ou indirectamente com a questão da violência. Se pode afirmar que em geral, as pessoas estão sempre a desenvolver opiniões a respeito dos acontecimentos ao seu redor. Com o tema da violência não é diferente. Obviamente que existem conceitos e até informações acerca de como e porquê 260 acontece. Entretanto, a riqueza de muitas explicações sobre o que é violência, bem como as diversas maneiras que se tem de entendê-la, pode tornar confusa a clareza indiciadora de seus fatos. Por ouro lado, essa aparente desvantagem do saber popular pode ser transformada em conhecimento científico preservando-se o conjunto de pensamentos sociais e mantendo-se em mente a importância da relação de reciprocidade entre o indivíduo e o meio social em que vive. Considerando essa reflexão, lembro-me aqui do livro “O Pequeno Príncipe”, de Antonie de Saint-Exupéry. Permitam-me que repita uma passagem específica que muito se associa com o pensamento que em seguida, gostaria de expor. Logo no início do livro, o protagonista da história ainda quando criança faz um desenho, fruto de sua imaginação, envolvendo animais selvagens. O esboço que muito orgulhoso mostrava aos adultos é imediatamente seguido pela pergunta se o desenho lhes meteria medo. Elas indagavam porquê ter medo de um chapéu?! (fig. 1). O autor muito desapontado concluiu que as pessoas não entendiam as coisas sozinhas e explicava que seu desenho “não representava um chapéu. Representava uma jibóia digerindo um elefante” (fig. 2) (Exupéry, Capítulo I). fig. 1 fig. 2 Uso desse clássico então, para ilustrar quão interessante se faz as diversas maneiras de se ver e explicar os fenómenos ao nosso redor. Parece-me oportuno aqui lembrar que 261 a maneira como as pessoas expressam seus sentimentos, ideias e representações a respeito de algo é o que nos faz entender sobre eles. Uma teoria em especial, a Teoria das Representações Sociais é mesmo como Moscovici (2007) afirma “uma teoria da crença e do conhecimento, de seus respectivos conteúdos”(Moscovici, p.38). Por isso, a escolhemos para subsidiar a discussão baseada no conjunto de representações que os profissionais de saúde constroem acerca da violência no idoso. Aguiar e Nascimento (2005) explicam como esta teoria é percebida pela sociedade auxiliando-nos assim, a entender sua utilização para uma compreensão mais ampla do fenómeno da violência. Afirmam então os autores que a teoria da representação social é parte de um sistema simbólico que provê significados à realidade manifestadas através de palavras, sentimentos, gestos e condutas. (Aguiar e Nascimento, 2005). Quanto a sua utilidade para a saúde especialmente no tocante a mudanças de comportamento, Marques (2008) fala sobre a importância de se reconhecer o dinamismo e a reciclagem dos sistemas de interpretação dos indivíduos. Mais precisamente no que diz respeito ao assunto que aqui se aborda, se pode assumir que ao se explorar o que as pessoas têm a dizer e como expressam suas opiniões e perspectivas acerca da violência no idoso, se poderia contribuir mais efectivamente para o aprimoramento de políticas de assistência e prevenção primária dos diferentes tipos de abuso que são vítimas em particular essa população. Ocasionais queixas de maus-tratos podem ser “justificadas” apenas como consequências da dificuldade de locomoção ou necessidade de ajuste diante de novas 262 demandas provocadas pela idade, disfarçadas para evitar o confronto entre o agressor e a possível vítima numa conveniente e ilusória compreensão do ocorrido. No artigo de Ferreira (2006) encontra-se a afirmação de que “a maioria das pessoas idosas vítimas da violência, sentem-se permanentemente ameaçadas, são incapazes de se defender e de assegurar a sua própria segurança” denotando uma fragilidade espantosa sobre a capacidade da pessoa idosa em lidar com esse tipo de problema (Ferreira et al, 2006, p 17). A violência poderia ser pois, mais uma patologia incurável que atinge parte dessa população em particular. Para os que concordem com esse pensamento, lembro alegremente de todas as outras pessoas na faixa etária em questão que convivem com outros problemas de igual, menor ou maior gravidade de uma maneira reactiva, digna e dinâmica sem uma conotação tão ressaltada de fraqueza. Pois, se temos que aceitar a velhice como sinónimo de fragilidade e delicadeza, há também de se permitir que se explore o pensamento dos que não se identifiquem como tais. Nessa mesma linha de raciocínio, a tarefa de compreender como a violência acontece, é, pois um desafio que deve ser respeitado pela sua complexidade embora passível de ser feito. O artigo que aqui se desenvolve é parte de uma investigação de doutoramento a respeito das Representações Sociais sobre a violência no idoso utilizando como referencial teórico a Teoria das Representações Sociais que identificam as concepções partilhadas socialmente correlacionando-as com os indivíduos que as produzem. Envolve três perspectivas distintas quais sejam, a perspectiva do próprio idoso, o ponto de vista de famílias que tenham como integrantes pessoas maiores de 65 anos e finalmente, profissionais da área de saúde que prestam assistência a população nessa faixa etária. 263 Nesse momento, se tecerá apenas algumas considerações envolvendo a dinâmica do relacionamento entre a população de idosos vítimas de violência e os profissionais de saúde que lhe prestam algum tipo de assistência com o objectivo de facilitar o entendimento sobre a influência das atitudes desses profissionais na comunicação do abuso. Se agrupou portanto as três formas de violência de que podem ser vítimas os idosos, exploradas pelos autores Silva et al (2008), quais sejam: a violência intrafamiliar, a estrutural e a violência institucional. 1. Violência Intrafamiliar: De acordo com o Ministério da Saúde (2001) esse tipo de violência é caracterizado como toda acção ou omissão que prejudique o bem-estar, a integridade física, psicológica ou a liberdade e o direito ao pleno desenvolvimento de um membro da família. Estão incluídos aqui não só integrantes ligados por descendência mas todos àqueles que exercem a função de guarda ou poder. Por envolver na grande maioria, pessoas emocionalmente próximas às vítimas, essa forma de violência suscita reacções claras de desgosto pela população em geral devido a conotação afectiva que existe entre vítimas e agressores. 2. Violência Estrutural: Esse termo foi introduzido pelo sociólogo Johan Galtung há mais de vinte anos atrás e seu conceito utilizado largamente desde então, não só nas ciências políticas e sociais mas também nas ciências médicas (Evangelista, 2005). Referimo-nos a Minayo (1994) para entender sua definição. A violência estrutural segundo a autora é uma “violência gerada por estruturas organizadas e institucionalizadas, naturalizada e oculta em estruturas sociais, que se expressa na injustiça e na exploração e que conduz à pressão dos indivíduos” (Minayo, 1994, p.8). Silva (2008), fala sobre uma vulnerabilidade em particular dos idosos que 264 sofrem essa forma de violência pois não a compreendem como violência “aceitando apenas como incompetência dos governantes e responsáveis”(Silva et al, 2008, p.125). 3. Violência Institucional: Volta e meia, esse tipo de violência chega aos canais de TV expondo a negligência da assistência ao idoso nas instituições. Existem poucas opções de lares para quem deles precisa e é verdadeiramente angustiante discutir o problema com pessoas que planejam lá viver ou com familiares que necessitam dos serviços para cuidar de seus idosos. O Conselho Nacional de Saúde ao se referir sobre a taxa de morbi-mortalidade por acidentes e violência, traz a preocupante mas já ultrapassada incidência de um terço do grupo (de idosos) que vive em casa e a metade dos que vivem em instituições sofrem pelo menos uma queda anual (CNS, 2002). Em Portugal, o Procurador-geral da República, ao discutir publicamente o problema da violência, afirmou que apesar de ter dados sobre a doméstica e a que acontece em escolas, não possui os elementos necessários para avaliar a que é praticada em instituições. O papel dos profissionais de saúde e o problema dos registos de casos Os profissionais da área de saúde que se colocam no papel de cuidadores têm a oportunidade de tratar o problema da violência no idoso que chega às diversas Instituições considerando especialmente, a pessoa que o traz. Levando-se em consideração que esses podem ser os primeiros indivíduos a terem acesso a sinais de abuso e tendo como referência seu dever em realizar notificação compulsória, a preocupação sobre o que os profissionais de saúde pensam sobre a violência no idoso parece por si só, justificável. 265 Em relação a notificação de casos, a dificuldade dos profissionais de saúde em realizá-la é discutida por Gonçalves e Ferreira ressaltando-se como se valoriza a privacidade da vida familiar na sociedade brasileira e como é intrusiva e ofensiva qualquer intervenção que confronte a autoridade paterna (Gonçalves e Ferreira, 2002). O artigo de Jogerst chama a atenção para o fato do registo de apenas 21% dos 550.000 casos de abuso ocorridos há doze anos, devido a falta de conhecimento público sobre o assunto e políticas confusas de saúde públicas ou normas referentes a práticas profissionais (Jogerst et al, 2003). De acordo com D’Oliveira e Schraiber (1999), os profissionais tendem a compreender a violência como problemática que diz respeito à esfera da Segurança Pública e à Justiça, e não à assistência médica. Dessa forma há o “desligamento” do dever de notificar, e a equação correspondente ao fato dela existir independente de sua notificação, é evidentemente comprometida. A falha nas notificações de violência é provocada, segundo Deslandes (2000) pela “falta de adequação técnica e material para a realização da tarefa, ou seja, falta de pessoal, rotinas de registro não adequadas à dinâmica do trabalho, ausência de informatização e pouca valorização da prática de registro”(Deslandes, 2000, p.146). O estudo de Craig (2003) ilustra casos de dificuldades dos profissionais de saúde, e menciona razões encontradas pela Associação Médica Britânica dos médicos não identificarem mulheres vítimas da violência doméstica como sendo: medo em discutir as experiências de abuso, falta de conhecimento sobre violência doméstica, além de serviços de ajuda e suporte, falta de tempo, falta de treino no assunto, visitas médicas irregulares por parte das vítimas, irregularidade ou mesmo falta de 266 respostas/explicações pelas vítimas, sentimentos de impotência para ajudar e negação do abuso. Já a violência envolvendo a população masculina é no mínimo intrigante. Apesar das estatísticas de violência fornecidas pela Secretaria Nacional de Segurança Pública destacarem que os homens de uma forma geral são “suas maiores vítimas”, pouco se sabe sobre o número de casos de violência intrafamiliar, estrutural ou institucional aonde ele aparece como tal. Este tipo de violência, afirma Dantas-Berger & Giffin (2005), é pouco investigada pelos profissionais de saúde, o que colabora para que seja subestimado suas ocorrências em dados oficiais. Existe porém, indicativos de alguns estudos internacionais sobre o tema, apontando para um número significativo de casos. Estatísticas americanas publicadas sobre violência doméstica como as encontradas no estudo de Corry et al (2001) por exemplo, apontou que as mulheres são tão violentas quanto os homens. Essa afirmação foi reiterada por 206 investigações feita por Fieberg (2007) acerca de estudos comprovativos de que as mulheres são fisicamente agressivas ou mais agressivas do que os homens em seus relacionamentos. Um estudo sobre o relato de profissionais que trabalhavam na área de Violência Doméstica, mostrou que 80% desses profissionais identificaram casos em que as mulheres iniciaram algum tipo de violência física contra seus parceiros; 69% o fizeram sem aparente história de abuso por seus companheiros (Adams, 2002). Murray Straus, famoso sociólogo americano especialista em estudos envolvendo o tema da família, é citado por muitos por suas pesquisas demonstrando dados sobre mulheres agressoras. Ele é um dos principais defensores de pesquisas sobre gender symmetry ou 267 simetria dos sexos apontando a necessidade das análises incluírem dados sobre homens e mulheres, pois como ele mesmo menciona: “ ao menos que existam resultados de pesquisa para ambos (os sexos), embora se possa obter resultados importantes, não haverá resultados empíricos ou simetria per se” (Straus, 2006 - tradução nossa). Embora já preocupantes, os números relacionados a realidade da violência acometida contra os idosos são no mínimo, furtivos. Há uma tremenda dificuldade em saber sobre sua epidemiologia por se tratar de uma população particularmente fragilizada no que diz respeito a estereótipos. As atitudes influenciando o tratamento Diante desse “retrato mal revelado da violência”, pode-se supor que suas estatísticas possuem ainda características bastante duvidosas quanto a sua fidedignidade. Mas anterior à questão da notificação existe evidentemente, a necessidade de falar sobre o ocorrido. A opinião das vítimas sobre serem ou não abordadas sobre o tema, foi explorada em pesquisa realizada por Bradly, Smith, Long e O`Dowd (2002) demonstrando que entre 651 mulheres com história de abuso, 77% afirmaram ser certo a iniciativa do médico em questionar sobre o assunto. Podemos assumir que se o profissional escolhe uma atitude de distanciamento ou mesmo de negação diante dos sintomas da violência, provavelmente irá comprometer de forma negativa alguma intenção da vítima em discutir o assunto. Por outro lado, uma atitude de interesse por suas histórias pode trazer benefícios terapêutico-clínicos importantes, já que de nenhum modo contribuem para ignorar a tentativa das vítimas em procurar ajuda apesar de aterrorizadas por suas experiências de abuso. 268 Trata-se portanto, da escolha entre silenciar a intenção da fala ou de permitir que se escute o que nem sempre está presente no discurso. Esse aspecto é extremamente relevante no campo da saúde por não se restringir apenas ao carácter educativo da expansão do conhecimento mas, principalmente no possível trabalho preventivo ao se constatar a eficácia de uma intervenção individual contextualizada no social, capaz de minimizar uma situação de abuso ou mesmo contribuir na diminuição dos níveis de violência na comunidade. Infelizmente, a preocupação da criação de equipas multi-profissionais assegurando a cobertura bio-sócio-cultural para vítimas e agressores, não parece ser suficiente para garantir que o profissional se sinta capacitado a abordar o tema. Aí também se perde a oportunidade de realizar prevenção primária, devendo-se pois, adquirir o hábito de abordar o assunto como parte da rotina de consulta não só para educar, mas sobretudo oferecer apoio e suporte aumentando a possibilidade de discussões futuras sobre a violência no idoso. Steven Pinker, controverso psicólogo evolucionista que actua na área de linguística, posiciona seus trabalhos rastreando fatos históricos para comprovar que “o declínio dos comportamentos de violência tem acontecido paralelamente ao declínio de atitudes de tolerância e glorificação por ela1’’(Pinker, 2007). Adaptando essa afirmação ao papel da assistência profissional às vítimas, pode-se concluir que promover a comunicação da violência é também uma acção de combate à mesma, já que o contrário desse comportamento, ou seja, dificultar a discussão do assunto pode ser percebida como uma forma de tolerá-la, permiti-la e glorificá-la. Entender como a violência nos idosos acontece é obviamente um desafio que envolve um trabalho multidisciplinar exigindo a conexão de todos os sectores da sociedade. Conhecer as 269 representações sociais que orientem as atitudes desses profissionais em relação as vítimas de violência é reconhecê-la como parte da assistência que se presta. Se espera que a expectativa por respostas diante das considerações aqui expostas sirva mais precisamente, de motivação para a contínua tarefa de reflexão sobre o tema. Fica aqui a inquietude da pluralidade da existência de muitas acompanhadas pela incerteza de suas eficácias. Resta-nos pois a suscitação pelo respeito a singularidade das situações e de suas demandas considerando sempre a relação de reciprocidade entre a pessoa idosa e o profissional que lhe atende aonde o único aspecto inquestionável da assistência é o reconhecimento da existência do outro. REFERÊNCIAS . ADAMS, S.R., 2002. Women who are violent: Attitudes and beliefs of professionals working in the field of domestic violence. Military Medicine. http://findarticles.com/p/articles/mi_qa3912/is_200206/ai_n9105012. Acesso 19 Jun 2008. . AGUIAR, M.G. & NASCIMENTO, M.A.A., 2005. Saúde, doença e envelhecimento: Representações Sociais de um Grupo de Idosos da Universidade Aberta à Terceira Idade (UATI) – Feira de Santana - BA. 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Violência contra idosos em Portugal. 2008. http://va.vidasalternativas.eu/?p=641 Acesso em 22 Ago 2008. 274 Candidatura 14 Autores: Silvana Bueno Título: Estudo sobre o atendimento à paciente vítima de violência sexual 275 ESTUDO SOBRE O ATENDIMENTO À PACIENTE VÍTIMA DE VIOLÊNCIA SEXUAL Silvana Bueno Email: [email protected] Fundação Hospitalar do Estado de Minas Gerais/Maternidade Odete Valadares Resumo O estudo apresenta percepções sobre a saúde mental dos profissionais no atendimento às vítimas de violência sexual e traz a necessidade do contínuo processo de formação para a assistência. A finalidade é contribuir para a prevenção do sofrimento psíquico do profissional, promovendo espaços reflexivos e incluir na formação, diretrizes de saúde pública, aspectos clínicos, jurídicos, psicológicos e sociais, relevantes na assistência. Considerando o número de 263 profissionais envolvidos, organizou-se uma amostra representativa para a composição dos grupos focais. Percebeu-se entraves na construção do atendimento não previstos na formação: desconhecimento da legislação existente e dos procedimentos clínicos definidos no protocolo do Ministério da Saúde; pré-conceitos em relação à violência sexual; sofrimento de profissionais mulheres que muitas vezes são vítimas de violência sexual; angústia gerada quando há identificação com a vítima; impotência dos profissionais diante de questões sociais, políticas e na continuidade do tratamento; e o limite como cidadão em intervir no contexto para não ocorrer mais casos. A construção da formação do profissional deve considerar essas questões, pensando na violência, nos seus efeitos nas relações interpessoais, na saúde mental, nas instituições sociais que vão interferir na conduta do profissional no atendimento à vítima de violência e conseqüentemente na adesão e continuidade do tratamento. 276 Introdução A violência de gênero, a violência sexual é considerada pela Organização Mundial de Saúde (OMS) uma questão de saúde pública. A instituição pública que atende às mulheres, desde 1990, vem atendendo casos de abortamento a pacientes vítimas de violência sexual. Entretanto, foi a partir de 1999 com a definição da Norma Técnica para o atendimento às mulheres vítimas de violência sexual que o serviço vem buscando encontrar uma metodologia de trabalho que permita um atendimento mais qualificado a estas mulheres. Neste percurso tornou-se uma das referências no atendimento às vítimas de violência sexual. O reconhecimento do trabalho desenvolvido dentro e fora da rede de serviços traz como conseqüência o crescimento da demanda para a Instituição e a necessidade do contínuo processo de formação dos profissionais que lidam diretamente com estas mulheres para o aprimoramento da assistência. Não obstante, ao longo do período, percebe-se diversos entraves na construção do atendimento às mulheres vítimas de violência sexual, não previstos na formação do profissional de saúde, dentre eles: a falta de conhecimento da legislação existente e dos procedimentos clínicos definidos no protocolo do Ministério da Saúde; a falta de novos conceitos e teorias no campo da saúde; pré-conceitos e tabus envolvidos no episódio da violência de gênero pelos profissionais que atendem à vítima; ou mesmo, o sofrimento de profissionais mulheres que muitas vezes são vítimas de violência de gênero e sexual e a angústia que é gerada da atuação direta em que há uma identificação com a vítima; a impotência dos profissionais diante de questões sociais e políticas nas quais eles não podem intervir na resolução dos casos e também na continuidade deste tratamento; e por último, outra questão, é o limite como cidadão e profissional de intervir no contexto maior para que não ocorram mais casos. 277 A partir do levantamento e análise dos dados a finalidade é incluir na formação do profissional de saúde diretrizes de saúde pública, os objetivos institucionais, o protocolo de atendimento, os aspectos jurídicos, clínicos e sociais, abrangendo todos os aspectos relevantes que envolvam a assistência à vítima de violência sexual. Métodos O grupo focal foi escolhido por ser o mais adequado para a temática a ser investigada, pois dá margem a uma discussão grupal aberta na qual os profissionais sentem mais livres para abordar temas de alta sensibilidade implícitos na violência de gênero. Os grupos focais foram organizados de forma a incluir os profissionais das diversas áreas: grupo com profissionais da área administrativa, grupo com profissionais de apoio assistencial, grupo com profissionais de assistência direta, grupo com multi profissionais, que atendam à vítima de violência sexual. Perguntas orientadoras do grupo focal: Como os profissionais conceituam violência de gênero e violência sexual? Violência de gênero e agressão sexual – estão ligados a que? Em que circunstâncias isto ocorre? Como é utilizado o poder, o domínio nas relações de gênero? O que dá ao outro o direito de agir, de agredir desta forma? Como os profissionais vivenciam a violência de gênero e agressão sexual? Como ocorre a identificação com as vítimas e quais as possíveis conseqüências para os profissionais? Diante dos casos que ocorrem na Instituição: 278 Como é feito o acolhimento à vítima de violência sexual? As pacientes devem comprovar que sofreram agressão sexual? Como lidam e atendem as pacientes vítimas de violência sexual? Para complementar o estudo utiliza-se a metodologia de entrevista em profundidade, permitindo aprofundar e obter informações para a compreensão do atendimento à vítima de violência sexual. O contato entre o entrevistador e o entrevistado, permite ao entrevistar esclarecer pontos que foram abordados nos grupos focais e analisar se a percepção individual confirma o que foi dito nos grupos focais em relação ao atendimento à paciente vítima de violência sexual. Orientação para a entrevista em profundidade A primeira parte da entrevista permite a composição do perfil do profissional. Contém idade, sexo, tempo de atuação no serviço, profissão. A segunda parte abrange questões relativas à percepção do profissional sobre o atendimento à paciente vítima de violência sexual. Como você entende violência sexual e violência de gênero? São a mesma coisa? Você costuma atender vítimas de violência sexual com freqüência? Conte como é o atendimento à paciente vítima de violência sexual. Como você percebe o atendimento prestado à paciente vítima de violência sexual? Para esse tipo de atendimento faz diferença ser homem ou ser mulher? Por quê? Como você considera que deveria ser feito esse atendimento? Você acha que deveria mudar? 279 Você acha que o profissional de saúde tem formação para esse atendimento? O que falta para capacitar o profissional de saúde? O que você acha que falta para a melhoria no atendimento? Delimitação do universo Segundo Minayo (1999) a pesquisa qualitativa não se baseia no critério numérico para garantir sua representatividade. Ela baseia-se em uma amostra com a escolha de indivíduos sociais que têm vinculação mais significativa para o problema a ser investigado. Amostra Considerando o levantamento realizado do número total de 263 profissionais envolvidos com o serviço, foi realizado um estudo para organização de uma amostra aleatória e representativa desse universo, para a composição dos grupos focais. As informações foram gravadas e transcritas, resguardando o sigilo das informações dadas pelos participantes durante o processo. Os convidados a participar dos grupos assinaram um termo de consentimento livre e esclarecido, e os dados coletados ficaram sob guarda do pesquisador. As observações e as filmagens foram feitas de maneira a interferir o mínimo possível nos relatos e não representam risco significativo conhecido e sim benefício, visto contribuírem para a auto observação, auto conhecimento e empoderamento do conteúdo. Resultados Análise a partir das especificações: Conceituação – caracterização de violência: Conceito e caracterização sobre violência de gênero e violência sexual – pré-conceitos 280 Identificação dos profissionais: Identificação dos profissionais de saúde e sentimentos em relação à vítima de violência sexual. Vivência dos profissionais, como o profissional vivencia. Assistência à vítima de violência sexual: Como é feito a assistência à vítima- procedimentos internos. Necessidade de capacitação: Sugestões que os profissionais apresentam para a capacitação. Conceituação – caracterização de violência: Conceito e caracterização sobre violência de gênero e violência sexual – pré-conceitos A partir da apresentação de uma figura de mulher com o rosto tampado pelas mãos, os profissionais conceituam a violência como momento de silêncio, de dor, vergonha, repressão. Conceituam também como violência doméstica, agressão física. Em um determinado momento o grupo banaliza e coloca a definição na área médica com se a figura representada estivesse com dor craniana. A pessoa é vista como vítima e isso transparece quando ficam penalizados enquanto atendem a pessoa. Alguns têm dúvida em relação à veracidade do fato e sentem-se mais seguros quando é feita uma ocorrência policial. A princípio fazem o atendimento pela informação, dizem que não é papel dos profissionais de saúde fazer algum tipo de julgamento, porém têm receio da paciente não estar falando a verdade e necessitam de um aval da polícia e de outros órgãos para validar a palavra da pessoa. Na ficha da paciente está escrito vítima de violência sexual e é como se ficasse esta marca na testa da paciente na hora do atendimento. 281 Alguns têm dúvida se a Instituição atenderia um travesti. Os risos aparecem quando é citado que se aparecesse um caso de um travesti, de que forma seria feito este atendimento. Alguns preocupam-se em atender a paciente sem repassar o que estão pensando em relação ao comportamento do paciente. Identificação dos profissionais: Identificação dos profissionais de saúde e sentimentos em relação à vítima de violência sexual. Vivência dos profissionais, como o profissional vivencia. Em relação à identificação, alguns têm sentimento de revolta, principalmente quando identificam que poderia ter sido com ele ou com alguém próximo do profissional. Sentem-se fragilizados diante da impotência em relação à violência. Apresentam sentimentos ambíguos em relação ao atendimento. A penalização diante da vítima e a dúvida em relação à veracidade dos fatos. O pensamento no primeiro momento de dúvida e o sentimento de que não devem julgar a paciente. Sentem-se inseguros. O sentimento religioso transparece na negação da realização do aborto. Sentimento de estar sendo violentado por ter que realizar um ato que é contra seus princípios religiosos. O medo de estar realizando um ato em cima de uma fala que não sabe se é verídica ou não. Sentimento de estar realizando um ato ilícito de acordo com a filosofia médica de preservar a vida. Sentem que as leis são feitas distante da realidade do que convivem no dia-a-dia e que a responsabilidade fica com quem lida direto com a paciente. Sentem-se isolados diante disto, sendo obrigados a cumprir uma lei que não ajudaram a construir. A identificação com a situação da paciente é mais forte quando se sentem mais próximos da vítima, numa relação de empatia. Alguns profissionais parecem utilizar como mecanismo de 282 defesa o distanciamento da vítima, evitando um maior envolvimento emocional com a paciente. Assistência à vítima de violência sexual: Como é feito a assistência à vítima-procedimentos internos A partir da entrada da paciente, o primeiro passo é o atendimento medicamentoso. Percebem como principal função na Admissão o cuidado com a prevenção de doenças sexualmente transmissíveis. Primeiramente colhem a história da paciente para atender às necessidades físicas desta e relatam que o atendimento é demorado, exigindo maior disponibilidade de tempo, que muitas vezes não tem porque precisam atender as urgências que chegam na Admissão. Os atendimentos às pacientes vítimas de violência vão ficando para depois porque as outras pacientes consideradas como maior urgência médica são consideradas prioritárias. O suporte psicológico e social não é feito na Admissão. Informam que as pacientes muitas vezes chegam de madrugada e depois é que fazem o encaminhamento para o atendimento no Ambulatório. Os profissionais não têm tempo para o atendimento individualizado, repassando a orientação necessária e muitas vezes as pacientes não assimilam o que foi dito. Sugerem que fosse realizado um atendimento psicossocial primeiro e depois o atendimento médico. Existe um questionário que a paciente precisa responder que demora em torno de uma hora para ser respondido. E este procedimento é realizado pelo médico. Percebem uma certa rigidez no protocolo que é utilizado, e uma necessidade de melhor qualificação na assistência à vítima de violência sexual, apesar de ser um hospital de referência a este tipo de atendimento. 283 Demonstra a fragmentação do processo, e como a relação médico-paciente perpassa pela intersubjetividade na comunicação. Necessidade de Capacitação: Sugestões que os profissionais apresentam para a capacitação Sugerem que as informações e que as orientações sejam ampliadas nos lugares de referência desse tipo de atendimento. Os profissionais buscam melhor qualificação, de forma a utilizar o protocolo de forma menos rígida e percebem que deve ser revisto. Sentem a necessidade de maior aproximação entre a equipe multidisciplinar. Discussão A construção da formação do profissional de saúde deve considerar essas questões, envolvendo a conceituação e análise da assistência às vítimas de violência sexual, pensando na violência e em seus efeitos nas relações interpessoais, nas instituições sociais que vão interferir na conduta do profissional de saúde no atendimento à vítima de violência e conseqüentemente na adesão e continuidade do tratamento. Conhecer as limitações na eficácia do atendimento contribui na formação adequada e qualificada dos profissionais de saúde que atendem às pacientes vítimas de violência. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS Barbosa, R. M.; et al (2002).Interfaces: gênero, sexualidade, e saúde reprodutiva. Campinas: Editora da UNICAMP. 284 Berer, M. (1997). Mulheres e HIV/AIDS. São Paulo: Brasiliense. Brasil. Ministério da Saúde.(1995). Coletânea de textos de Apoio para o curso “Direitos Sexuais e Reprodutivos e Atenção à Crianças e Adolescentes Vítimas de Violência Intrafamiliar e Sexual. Brasília:MS. 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Foi realizada uma pesquisa qualitativa com estudantes de medicina da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, escolhidos entre todos os períodos de formação. A Fenomenologia Existencial, a Hermenêutica Gadameriana e a Teoria da Ação Comunicativa, de Habermas, constituem a base filosófica do trabalho de produção e interpretação das narrativas. Foram combinadas duas estratégias tecno-metodológicas: entrevistas em profundidade com roteiro e oficinas com utilização de “cenas” projetivas. Os estudantes e residentes transitam entre escassos modelos, poucas experiências para nominar e lidar com a morte, e muitos paradoxos. No seu encontro com o paciente à morte, esse cuidador se depara com as dificuldades para não promover a distância entre intenção e gesto em suas interações e recuperar a humanização do cuidado em sua prática. Palavras–chaves: educação médica, estudantes de medicina, morte, humanização, cuidado. ABSTRACT We have sought the understanding of the process for building a “doctor being” and its relation to the phenomenon of death, based on the narratives of students in the process of becoming doctors, with the objective of investigating how this relation with death helps to promote the detachment among the medical scientific technologies and the dialogical processes of caring in the daily medical practice. A qualitative research took place with the medical school students from the Federal University of Rio Grande do Norte, chosen from all levels of the undergraduation (from the first year to medical residency). The existential phenomenology, Gadamer´s Hermeneutics and the theory of communicative action, of Habermas, constitute the philosophical basis of the narratives production and interpretation work. To produce the narratives two techno-methodological strategies were combined: In depth interviews with scripts and workshops using projective role-play activities, seeking for a deeper and sufer in the interpretative analysis. The students move between these two scenarios, with rare role288 models, few experiences to name and deal with death, and many paradoxes. In their meeting with the patient to die, the caretaker faces the difficulties of not promoting the distance between intention and gesture in their interaction and to re-humanize itself and recover the dimension of care in its practice. Descriptors: 1-Medical education 2-Medical students 3-Death 4-Humanization of assistance “Como é possível que nos aproximemos com a distância do simples olhar, de coisas que na prática, nos queimam os dedos, por exemplo, a doença e a morte?” Gadamer INTRODUÇÃO Este trabalho aborda de forma panorâmica reflexões provocadas pela tese de doutorado da autora: “A construção do “ser médico” e a morte: significados e implicações da humanização do cuidado” (2007). Procurou compreender em que medida as conseqüências da construção do “ser médico” e sua relação com a morte, desenvolvidas na formação médica, interferem na prática médica, em seu distanciamento da dimensão do cuidado? É conhecido o fato de que a formação médica tem-se preocupado ativamente com os novos, eficazes e elaborados procedimentos técnicos de manutenção da vida humana. Contudo, no que diz respeito ao enfrentamento da situação de sofrimento existencial do paciente que se encontra nos limites entre a vida e a morte, parece faltar à devida orientação ao estudante de medicina e ao médico. Muitas vezes, este se afasta, se sente falho, e frustrado diante da sua ocorrência. Tal reação é compreensível, tendo em vista que, dentro da ênfase tecnocientificista, volta-se o foco para o estudo do agente/doença, remédio/cura, e a morte simboliza apenas o fracasso. (Falcão & Lino, 2004). 289 Ayres (2002), por sua vez, adverte para a necessidade de se examinar o significado do lugar destacado e determinante que a tecnociência passou a ocupar na prática médica. Lugar esse que evidencia um progressivo distanciamento da dimensão do cuidar no saber-fazer médico. Cuidado, no âmbito deste trabalho, é tratado como designação de uma atenção à saúde imediatamente interessada no sentido existencial da experiência do adoecimento, físico ou mental, e, por conseguinte, também das práticas de promoção, proteção ou recuperação da saúde (Ayres, 2004). Bem como, dirigido à atenção existencial, as práticas relacionadas ao acompanhamento do processo de morte de pacientes. Por sua vez, humanizar é entendido como “garantir à palavra sua dignidade ética”, ou seja, possibilitar que o sofrimento a dor e o prazer possam ser expressos pelos sujeitos em palavras e reconhecidos pelo outro (Deslandes, 2004). Ocorre que temos assistido os inegáveis benefícios da medicina tecnocientífica, mas, unilateralizada como recurso diagnóstico e terapêutico, ela pode ficar mutilada da dimensão humana. A evitação do contato humano elimina o reconhecimento do sofrer do outro através da palavra. A dor é medida, medicada, mas não reconhecida em seu significado, pois a palavra fica reduzida a meras informações na anamnese. Diante de um cenário assim, radicaliza-se o distanciamento e a desumanização da prática médica; nega-se a possibilidade de uma atenção integral no processo saúde-doença e morte. É oportuno ressaltar que as Diretrizes Curriculares do Curso de Graduação em Medicina no Brasil, homologadas pelo Conselho Nacional de Educação / Câmara de Educação Superior / Resolução CNE/CES nº4, de 7 de novembro de 2001; oficializaram o acompanhamento do processo de morte como uma habilidade a ser desenvolvida no ensino médico. 290 De acordo com o artigo 5, que trata das competências e habilidades específicas, temos o destaque no Item XIII: “atuar na proteção e na promoção da saúde e na prevenção de doenças, bem como no tratamento e reabilitação dos problemas de saúde e acompanhamento do processo de morte”. É notório que os diferentes aspectos envolvidos no ensino da morte na formação médica e de outros profissionais de saúde têm sido estimulados por alguns autores, como Howells (1986), Boemer (1989), Klafke (1991), Rappaport (1993), Zaidhaft (1990), Viana e Piccelli (1998), Rosa (1999); Lino (2003); Kovács (1992 2003); Falcão e Lino (2004). Contudo, os mesmos autores também concordam que é inegável que as escolas médicas ainda enfrentam dificuldades para assumirem o compromisso educacional com essa temática. Partimos do pressuposto de que compreender a relação do estudante de medicina com a morte em sua formação pode nos ensinar sobre a relação médicopaciente, para além das relações com pacientes terminais, e poderá fornecer pistas para resgatar a humanização do cuidado na prática médica. METODOLOGIA Foi realizada uma pesquisa qualitativa com estudantes de medicina da Universidade Federal do Rio Grande do Norte - UFRN, escolhidos entre todos os períodos de formação (do primeiro ano à residência médica). No total foram 19 entrevistados (8 homens e 11 mulheres), dos quais dez participaram das oficinas. Para a produção das narrativas foram combinadas duas estratégias metodológicas: entrevistas em profundidade com roteiro e oficinas com utilização de “cenas”, tendo por objetivo alcançar maior profundidade e segurança na análise interpretativa (Kvale, 1996; Minayo, 2002, Paiva, 2005). 291 A pesquisa atendeu os princípios de eticidade preconizados pelas Diretrizes e Normas Regulamentadoras de pesquisa envolvendo seres humanos do Conselho Nacional de Saúde (BRASIL. MINISTÉRIO DA SAÚDE. CONSELHO NACIONAL DE SAÚDE: 1997). A base filosófica do trabalho de análise das narrativas foi constituída pela Ontologia Existencial, a Hermenêutica Filosófica e a Teoria da Ação Comunicativa. A compreensão assumiu, aqui, centralidade na atitude de investigação. O processo interpretativo, por sua vez, obedeceu à regra hermenêutica, segundo a qual devemos compreender o todo a partir da parte e a parte com base no todo. Foram realizadas leituras exaustivas e repetidas, que visava ampliar a unidade do sentido pela concordância de todas as partes singulares com a totalidade compreensiva (Gadamer, 2002). Para Habermas a dimensão da linguagem privilegiada é a das relações comunicativas entre os sujeitos, que usam a linguagem para se referirem ao mundo e tomar parte dele – ou seja, a dimensão pragmática da linguagem, não o uso das sentenças como uma representação da realidade na nomeação dos objetos e estado de coisas. (Aragão, 2002). Portanto buscávamos em nossa pesquisa identificar e interpretar as pretensões e condições de validade dos discursos que permeiam os valores, as concepções (esfera normativa – o que é correto), as suas verdades acerca do ensino médico (verdades aceitas – o que é entendido como verdade) e o plano de autenticidade das interações estabelecidas, a sua subjetividade (as expressões subjetivas). DISCUSSÃO DOS RESULTADOS A BUSCA DA HUMANIZAÇÃO 292 No primeiro momento dessa discussão teremos acesso ao horizonte normativo dos estudantes e residentes de medicina – os interesses, as auto-exigências, consistem em ser um bom médico, significando ser um bom técnico e humano na doença e na morte. O médico desejado ou idealizado pelos estudantes /residentes desta pesquisa apresenta os seguintes atributos: conhecimento técnico e conhecimento humanístico, que por sua vez implica desenvolver disposições ou habilidades humanísticas, competências comunicativas, e uma boa relação médico-paciente. A fala a seguir é ilustrativa: “Não é todo mundo que pensa nesse lado humano, a maioria ta preocupada em ensinar e os alunos em aprender as técnicas, e é importante mesmo é o que cura, né? Claro que é preciso os dois, mas tem que saber o mundo da técnica. Ideal é juntar a medicina com esse lado humano, o currículo novo ta tentando. Mas ainda é muito pregação e pouca prática.” [Fragmento de entrevista – Carmen, 5ºano/ 9º período]. Ser um bom médico compreendido como bom técnico e humano é a expectativa de todos os alunos investigados, independentemente do período. No entanto, percebe-se que a idealização quanto à realização desses desejos encontra suas tensões ao se deparar com as incompatibilidades do modelo de ensino em que estão inseridos, tornando sua visão mais realista. A partir do terceiro e quarto anos, apesar de manterem a imagem de uma prática humanizada, eles passam a questionar a dinâmica do processo de formação, evidenciando, a cada ano que passa um desencanto com o processo vivenciado, em relação ao alcance global de suas metas. Embora inseridos num contexto cultural que interdita o tema da morte e do morrer, os estudantes e residentes demonstram sensibilidade e desejo de participarem de uma possível rehumanização³ do processo de morte nas instituições de saúde. 293 Ao abordarem sobre as concepções dos estudantes/residentes sobre o enfrentamento do processo de morte de um paciente, citam vários papéis. Evitar a chegada da morte (1) foi o papel citado por quase todos os estudantes de todos os períodos. Apenas os alunos do internato (5º e 6º anos) não se referiram a 3________________________________ A “rehumanização” do processo de morrer é definida por Kovács (2003, p. 102) como “uma possibilidade de reaproximação da morte pelas pessoas, que voltam a se tornar o centro da ação no momento mais significativo da vida – o da própria morte. morte do paciente. Talvez isso se deva ao fato de eles acompanharem com mais freqüência a morte de pacientes. Apesar de a maioria se considerar responsável pela cura do paciente, de assumir o papel de evitar a chegada da morte, os estudantes/residentes também reconhecem, como parte do seu ofício, oferecer cuidados físicos e emocionais ao paciente diante da morte. A procura por uma abordagem integral do paciente fica explicitada através dos outros papéis citados. São eles: Promover qualidade de morte (2), Estabelecer comunicação qualificada com o paciente e a família (3), Ficar até o fim (4) – conseguir acompanhar o paciente até sua morte, e Seguir a rotina (5). - ter equilíbrio emocional para continuar a rotina de trabalho após a morte de um paciente. São papéis que demandam cuidados com pessoas e não apenas com corpos ou órgãos doentes. Demanda o exercício de uma medicina humana que seja capaz de relacionar tais cuidados não só em situações de morte, e entender a morte não como um fracasso das instituições e dos médicos, como comumente é considerado pela medicina biomédica. Implica construir meios para ampliar os horizontes dessa racionalidade instrumental. 294 Vários autores (Kafkle, 1991; Kovács, 1991, 1996; Boemer, 1991, 1996), afirmam que, diante de um paciente “terminal”, ocorre um aumento de cuidados técnicos e diminuição de contatos humanos, inclusive visitas médicas. Fato bastante citado também pelos entrevistados deste estudo. Esse é o locus em que estão inseridos nossos entrevistados, transitando entre a firmeza de um horizonte normativo que expressa na primeira pessoa: “eu quero continuar com o modelo que eu acho certo e estar junto do meu paciente para curar ou para ajudá-lo a morrer com qualidade” (Fragmento de entrevista – Felipe, 4ºano/8º período), e a relativização desse mesmo horizonte, fabricada no dia-a-dia de sua formação e relatada esquivadamente em terceira pessoa: “não é culpa do médico se ele não tem condições de estar perto de um paciente terminal”. (Fragmento de entrevista – Carmem, 5º ano/9º período). A INICIAÇÃO MÉDICA NA DISTÂNCIA DO SIMPLES OLHAR No segundo momento da discussão abordaremos o plano da pretensão da verdade dos discursos – a aceitação ou não de proposições, das orientações recebidas, nos indicará o ritual de iniciação da racionalidade médica Fato é que, em nossa cultura ocidental contemporânea, a morte e o falar sobre ela, de indesejados e temidos, são também banalizados e interditados. E na medicina, se a morte é uma constante no trabalho médico, se eles são obrigados ao seu convívio (ou optam por ele), como os cursos de graduação preparam seus alunos para lidar com a questão da morte? Os estudantes e residentes entrevistados evidenciam os poucos e pontuais espaços para o ensino da morte em sua formação. Despreparo constatado em estudos tanto no Brasil (Vianna & Piccelli, 1988; Zaidafht, 1990; Falcão & Lino, 1990, 2004), como no exterior (Buss et 295 al., 1998), demonstrando que os estudantes de medicina percebem a carência de oportunidades no curso médico para o preparo e o treinamento em lidar com a morte. A fala de uma estudante nos demonstra a necessidade de operacionalização dessa demanda: “Como é que você vai aprender a lidar com o paciente que vai morrer? Já quando ele está em estado terminal? Só lidando, no dia-a-dia, errando, chorando quando ele morre, se descabelando nas primeiras vezes, mas infelizmente é assim. É muito solitário, não é pra ser assim. Se tiver sorte de acompanhar algum professor que saiba lidar (pequena pausa), mas a gente nem tem com quem conversar sobre tudo isso Tem que falar na morte, tem que ensinar a gente a lidar. Não sei se você já notou, mas a gente nem diz essa palavra, diz óbito, alta celestial êxito letal.” [Fragmento de entrevista – Simone, 6ºano/12º período] Se, por um lado, constatamos um quase silêncio em torno do lidar com a morte e o morrer ao longo da formação médica, por outro é possível identificar as disciplinas de caráter humanista sendo eleitas como responsáveis para promover o ensino do tema, para promover as mudanças atitudinais nesse processo, já tão impregnado por uma visão biológica e tecnicista do adoecimento. Disciplinas que segundo Souza (2001) convivem com o permanente desafio de manter em tensão o saber sobre a doença e o saber sobre a relação com o doente. Entretanto, se todo comportamento é uma comunicação (Watzslawick, 1967) as atitudes, os valores, as formas de lidar com a morte no dia-a-dia da prática médica serão sempre ensinadas mesmo no silêncio de um saber-fazer, dentro de uma concepção desejada ou não. A morte não nominada (“óbito”, “alta celestial”) já comunica por si só uma recusa em lidar com ela, a tentativa de esquecer que ela existe, representando uma recusa da dimensão intersubjetiva no cotidiano do “ser médico” que desponta em idiossincrasias da linguagem. 296 É fato que o início da construção da racionalidade médica tecno-científica, ocorre nas aulas de Anatomia. A morte biológica abre-lhes as portas à investigação científica, revela que a verdade da doença deve ser buscada na intimidade dos tecidos mortos (Foucault, 1987), sem voz, identidade, sem contato humano, ou melhor, buscando despir-se deste por meio da evitação de qualquer sinal de humanidade do cadáver, ou do próprio estudante (ao insinuar revelar seus sentimentos). Começa nesse momento o processo de expropriação dos sentimentos, de negação de aspectos existenciais e simbólicos da morte. O distanciamento da subjetividade é a estratégia adotada para se obter o conhecimento objetivo, claro, exato, apregoado por um tipo de saber científico que construiu seus pilares em cima da cisão sujeitoobjeto. O vínculo com a humanidade deve ser rompido, sob o argumento de evitar identificações e possíveis sofrimentos. Aqui também começa a invisibilidade em relação a um possível sofrimento existencial do estudante. Vejamos alguns depoimentos: “Ninguém tem a reação na hora, pelo menos tenta disfarçar, não pega bem porque você é aluno de medicina, tem que agüentar. Mas aí além desse momento, quando você disseca o dorso, passou o estresse... Até que você tem que virar o cadáver [...] Aí é outro estresse, cadê que eu conseguia dissecar o cadáver olhando pra cara dele? Uma angústia... eu não consigo... Eu passei uma semana eu acho, botando um pano no rosto do cadáver, pra conseguir dissecar o abdômen. Até que você com o tempo vai se adaptando... não pode ficar a vida inteira cobrindo o cadáver.” [Fragmento de entrevista – Cecília, 5º ano/10º período] É possível inferir que o processo de dissociação corpo-mente e a dessubjetivação dos pacientes no exercício da biomedicina têm seu primeiro modelo no treinamento obtido com os cadáveres, conforme afirmou um aluno: 297 “No primeiro momento você reflete um pouquinho, você olha assim, ali é um braço, é uma perna, uma cabeça que foi de alguém, quem deveria ser essa pessoa, daí agente entra olha o rosto que lembra mais, não pode se envolver com isso, ai com o tempo a gente se acostuma mais sabe, que tem o lado bom e o lado ruim, o lado bom é você se acostumar um pouco porque você precisa trabalhar com aquilo, mas o lado ruim é que você vai se tornando mais frio pra lidar com as coisas, né, pra lidar com essas questões difíceis aí, vai ficando mais frio e começa a ver o ser humano não como ser humano, mas como uma máquina. Depois você vê o paciente também como um objeto de estudo, uma máquina que tem o coração batendo. Aí o médico precisa rever essa postura, senão ele vai ficar desumano.” [Fragmento de entrevista – Felipe, 4ºano /8º período] O aluno argumenta que é preciso desmitificar a morte, é preciso esquecer o morto, para se acostumar e trabalhar com “aquilo”, mas teme chegar pelo hábito, à mesma frieza necessária com o cadáver. Finaliza refletindo sobre a necessidade de rever a postura mecanicista, sob o risco de se desumanizar. Nessa direção, Martins (2004, p. 27) afirma que “nosso corpo não se encaixa na abstração da máquina, senão ao preço de grandes perdas”. O argumento utilizado para o não envolvimento é a evitação do sofrimento do estudante, desde o cadáver ao primeiro paciente à morte. “Condição” para que ele consiga tornar-se médico, mediante discursos coercitivos Zaidafth (1990) e Quintana et al. (2002) defendem que há uma exclusão intencional da temática da morte nos estudos médicos que se funda fundamenta na idéia explicitada por alunos e profissionais da área de saúde, por eles observada: “estamos numa profissão na qual convivemos com a doença e a morte e, se permitimos que aquilo (grifo nosso) que acontece nos pacientes nos “toque”, acabaríamos loucos e na conseguiriam exercer nossas funções” (Quintana et al,2002 p. 26). 298 Porém alguns alunos, não por acaso – um próximo ao final do curso e outro residente – nos dão pistas de que, diante do despreparo para enfrentar com o equilíbrio desejado nas situações de acompanhamento de morte de um paciente, a aceitação do distanciamento como estratégia eficaz de enfrentamento (usada antes na anatomia) é reiterada. “Então você notou que tem alguma coisa ali, chama o psicólogo ele vai lá conversar, é uma forma de poder ajudá-lo. O médico poder ajudar chamando o psicólogo que vai poder ajudar muito mais, entendeu? E aí você desliga a partir daí. Eu não acho certo a pessoa ficar carregando não. Mas se a pessoa consegue.Tem médico lá na Liga contra o Câncer que é bonito de ver, mas eu tenho dificuldade, eu queria aprender como fazer, entende?” [Fragmento da entrevista – Clara, 5º ano/10º período] “Não deve se envolver. Acho que o ideal seria o relacionamento ser apenas profissional mesmo, que a partir do momento que criar amizade, acho que isso aí não é bom não, apesar de às vezes acontecer, mesmo sem querer, acontece.” [Fragmento da entrevista – Rodrigo, residente 2] Os estudantes e residentes relatam os escassos modelos, as poucas experiências para nominar e lidar com a morte, e os inúmeros paradoxos. A prescrição do não envolvimento é adotada, e convive com sinais de relativização (não se envolver muito), quando o horizonte almejado é a humanização da prática médica, que, por sua vez, prescreve uma boa comunicação com o paciente à morte. No entanto eles não aprendem como se envolver com equilíbrio, como vão conseguir conversar com seu paciente sobre sofrimento e morte? Eles sabem que não ser tocado pelo outro e sua dor não será possível o tempo todo, descobrem isso nas interações com os pacientes (“mesmo sem querer, acontece”), e reclamam por práticas, professores e uma política de educação que os preparem; que auxiliem a eles e seus educadores a se envolverem e saberem comunicar sobre a morte, pois é fato, seus pacientes também morrem. 299 Em outras palavras, é ao desenvolvimento do domínio emocional e a aquisição de uma competência comunicativa que eles se remetem, domínios estes de incorporação prevista nas reformas curriculares e pedagógicas em desenvolvimento no país, embora com uma evidente distância entre intenção e gesto. As verdades dos discursos se deparam quase inevitavelmente com paradoxos na prática. Suas narrativas ilustram uma vivência em que a ambigüidade é a tônica - precisam e querem ser “suficientemente frios” e “suficientemente humanos” no seu saber-fazer. QUANDO A PRÁTICA QUEIMA OS DEDOS O outro momento de discussão se dá no terreno em que se expressa à subjetividade nas interações propriamente ditas: o contato dos estudantes com o paciente em situação de doença e diante da morte. Quando “a prática queima os dedos”, as dores dos cuidadores se revelam nas dificuldades em lidar com a morte de seu paciente e realizar as atitudes desejadas para o enfrentamento desse processo (citadas no início do texto). A falta de acolhimento e continência aos aspectos emocionais dos próprios estudantes, desde as aulas de Anatomia, podem se reproduzir mais tarde em semelhante falta com seus pacientes. A cena a seguir ilustra um pouco da relação entre as concepções desejadas/idealizadas e as dificuldades enfrentadas pelos nossos estudantes. “Já passava das 7 horas da manhã e eu chegava ao hospital. Sendo próximo ao dia das mães, estava todo enfeitado com flores, como uma homenagem especial, lindo, com o sol entrando pelas vidraças, fazendo esquecer, por um momento, que me encontrava em um hospital. Mas eu não podia esquecer. [não podia esquecer o sofrimento a ser encontrado]. Antônio era um senhor de 67 anos, de cabelos grisalhos, rugas leves no rosto, 300 pele rosada, sempre sorrindo. Seu Antônio, como era sempre chamado, recebeu o diagnóstico de câncer de pulmão há cerca de 6 meses, de maneira inesperada, após apresentar tosse com sangue e ir ao hospital para tratar-se. Era fumante desde a juventude e nunca se preocupou em parar de fumar. Morava com a esposa numa casa confortável, e tinha duas filhas, ambas casadas, e um neto. Estava internado há duas semanas pois houve piora do seu estado geral, mostrando um agravamento do seu câncer já intratável. Durante a noite recebi a ligação de que Antônio tinha sofrido uma piora considerável neste dia, indo para a UTI. Já não estava mais sempre consciente, não falava, estava pálido, com os olhos sem brilho. Era o primeiro paciente que eu deveria visitar naquela manhã, o que me fez lembrar de toda sua história. Aquela visita provavelmente seria a última. À porta da UTI estavam a esposa e uma das filhas, com os olhos ansiosos direcionados para mim. “O que faço agora?” (dúvidas na condução) Cheguei próximo às duas, olhei em seus olhos, apertei suas mãos e dei um sorriso acolhedor. [comunicação não verbal qualificada] Foi o suficiente para aliviá-las um pouco. Disse que logo que saísse da UTI falaria com as duas. Fui chegando próxima ao seu Antônio e ele estava acordado, olhando imóvel para o teto logo acima de sua maca. Cumprimentei-o e vi uma pessoa diferente, que eu não conhecia. Ele já estava ciente da gravidade de sua doença, das metástases, da falência de órgãos que já apresentava e da irreversibilidade cruel das transformações que se passavam com ele nos últimos dias. O seu olhar foi profundo. Parece que por um segundo eu pude ver sua alma. Não gostei. Foi desolador. Pelo instante de um suspiro, sem uma palavra, senti toda a sua frustração e derrota, me fazendo sentir incapaz. “Não cumpri meu dever”. [evitar a chegada da morte -1] A partir daí ele já sabia o que eu tinha a lhe dizer. [dar a notícia ruim -2]. Sentei numa cadeira ao lado de sua maca e perguntei se tinha algo que ele quisesse fazer, alguma comida que estivesse desejando, algum filme que quisesse assistir. Disse que tudo que acontece tem um sentido, por mais que não sejamos capazes de entender. Se fazemos tudo que está ao nosso alcance, devemos ficar tranqüilos e ter fé. Mas, nem tudo sai como planejamos, infelizmente. Disse ainda que chamasse sua 301 família e amigos para quem quisesse dizer algo especial, pois eles ficariam muito mais tranqüilos assim. As coisas não acabam aqui, isso seria uma mudança dolorosa em sua existência, mas algo melhor estava por vir. [comunicação qualificada sobre o fim - 2/ realização de desejos - 3] Fui vendo sua expressão mudar um pouco, o que me deixou bastante aliviada. Ele então me deu um sorriso, bem discreto, apesar da tristeza em seu olhar. Pediu então que eu chamasse sua esposa, pois ele mesmo queria conversar com ela, e me agradeceu. [estar junto/ ficar até o fim - 4]. Saí, talvez até mais triste do que entrei, e chamei sua esposa (sentimentos do médico) Ela rapidamente entrou, dando um abraço e beijos em sua filha, apressada por ver seu Antônio. E eu? Como fico a partir daí? [sentimentos do médico/ acostumar-se ou aprender] Paro um pouco e sento no banco para pensar, vou fazer um lanche, ou simplesmente vou ao próximo paciente? Acho que a cada dia vou ter que aprender um pouquinho mais, até saber bem o que fazer. Bem, e a vida continua...” [seguir a rotina - 5] [Fernanda, 4º ano/ 8º período] As “cenas” foram ricas em exemplos das possibilidades de encontro com o o outro familiares ou pacientes. As comunicações silenciosas e o confortar aconteceram também por meio de olhares. E, nesse encontro autêntico de seres humanos que se olham, tem-se a apreensão da responsabilidade ética. Dizia Clara: “Eu me sentiria preocupada, com uma responsabilidade maior do que eu posso arcar...” Ou Fernanda: “Fui vendo sua expressão mudar um pouco, o que me deixou bastante aliviada. Ele então me deu um sorriso, bem discreto, apesar da tristeza em seu olhar...”. E Sofia, conclui: “Ele olha para mim, segura minha mão e pela primeira vez, em meio a tanta dor, ele me dá um sorriso. Nessa hora eu percebi que estava fazendo a coisa certa. Sorri para ele e dessa forma ele também entendeu que eu fiz a minha parte”. As estudantes em questão ensaiaram situações em que foi possível realizar a singularidade de um encontro humano. Apesar de seus conflitos elas conseguem realizar 302 relações que desejariam para elas próprias enquanto pacientes. Seus relatos nos remetem aos vários papéis citados como representativos do “ser médico” diante da morte. Cabe ressaltar, portanto, que o uso das cenas pode consistir em um instrumento facilitador do processo ensino-aprendizagem de novas atitudes. Além de promover encontros e reflexões sobre sentimentos e dificuldades em torno do saber e práticas vivenciados, pode possibilitar ensaiar saídas na construção desse mesmo saber-fazer. Portanto, o contato com o paciente quase-morto, ainda sob cuidados médicos; ou até mesmo com os pacientes em seus vários sofrimentos (que não seja a iminência da morte); impele ou poderá impelir o estudante a enxergar a incompletude de seu saber, a reclamar a compreensão do processo existencial de atitudes que dêem conta de ressignificar o sentimento de impotência e fracasso diante da morte, pelo reconhecimento da dimensão da potência presente no papel de cuidar. Situações de ensino-aprendizagem que podem ser cada vez mais facilitadas à medida que os alunos começam mais cedo a lidarem com pacientes e possam encontrar professores preparados para tal processo. CONCLUSÃO Foi possível observar a presença dos discursos herdeiros da racionalidade biomédica, cuja normatividade tecnocientífica, ao tentar eliminar as emoções, termina por distanciar-se do outro; convivendo com as dificuldades de estudantes/residentes de medicina que defendem uma racionalidade, sem prescindir da tecnociência, seja capaz de aliar sua atenção ao sentido existencial da experiência do adoecimento, seja na recuperação da saúde ou no acompanhamento do processo de morte. É fato, que a solidão diante das dificuldades vivenciadas por estudantes e residentes para enfrentar a dor de não salvar; de não saber dar a notícia ruim; de não saber confortar, 303 nem ficar ao lado do paciente à morte, são etapas vivenciadas que, se não forem acolhidas, enfrentam um percurso de grande vulnerabilidade ao desenvolvimento de mecanismos rígidos de defesa e de distanciamento do outro e de si mesmos. Depois de visitar alguns pontos de parada para as discussões realizadas no percurso deste trabalho, é hora de apontar um lugar de chegada: a constatação de que a negação da morte na formação médica, o apartar-se de seus conteúdos simbólicos e existenciais no processo de construção do “ser médico” contribui para um distanciamento entre as tecnociências médicas e a dimensão do cuidado no cotidiano das interações médico-paciente. Se as tecnociências biomédicas interferem sistematicamente nas possibilidades de expressão subjetiva e de regulação das interações nos processos de atenção à saúde, torna-se necessário, como afirma Ayres (2005), admitir que mesmo as problematizações voltadas aos campos expressivos e normativos desses processos; e especialmente nas interações com pacientes à morte, dependerão de um esforço reconstrutivo dirigidos à esfera proposicional. Na procura pelo ideal de objetificação na ciência médica, tomamos a doença enquanto uma abstração, como a verdade do sofrimento do paciente, enquanto este é silenciado em sua alma, em seu ser total, e os médicos passam a descrer de sua própria habilidade simbólica, por não ser considerada cientifica. A distância é legitimada; o paciente é apagado, enquanto indivíduo, e os estudantes podem apagar-se enquanto pessoa, diante das exigências do seu saber. A dificuldade de inclusão do preparo para lidar com a morte na formação acadêmica não é, portanto, apenas um efeito acidental do ensino médico, mas implica questões epistemológicas que estão na base da própria racionalidade da biomedicina, que, no dizer de Canguilhem (1977) é a dificuldade de apreender a lidar com a dor, o sofrimento e a morte. 304 Este estudo pontua a urgência de um processo de ressignificação na construção do “ser médico” que inclua acolher na prática médica conteúdos subjetivos e simbólicos ao longo da formação acadêmica e profissional, como a morte, que poderá contribuir para a formação de médicos capazes de aliar a tecnociência as dimensões do cuidado na prática médica. Sugere caminhos para um aprofundamento e adensamento conceitual capaz de contribuir para o percurso que pretende sair de um olhar que distancia; para um olhar que, ao se aproximar existencialmente da morte, aprenda a se aproximar do outro. É no terreno da intersubjetividade, no poder falar algo com alguém, que acontecem os encontros ou desencontros da relação do médico com seu paciente à morte implicando, em práticas desumanas, por serem meramente técnicas, ou no aprendizado na direção da humanização do cuidado, da re-situação do paciente como sujeito de seu processo de vida, adoecimento e morte. Tal proposição encontra sustentação em Habermas (1996), cuja concepção de racionalidade assume um caráter eminentemente ético, interessada na produção de diálogos acerca do sentido interacional e emancipatório e não somente instrumental e técnico das formas de vida. Nesse sentido seu pensamento é bastante próximo da Hermenêutica Filosófica e da Ontologia Existencial (Heidegger, 1995), recuperando a dimensão do humano como ser de cuidado, possibilitando o aprendizado para transitar nas sombras - morte, dúvidas e dores do ser médico e do ser humano. A perspectiva existencial não concebe a existência impessoal como único modo previsível e possível de ser, direção à qual nos impulsiona o paroxismo tecnológico da modernidade. Não, ela defende que a possibilidade de resgate do ser está sempre em jogo, é sempre um poder-ser. Sendo assim é possível desumanizar, mas também rehumanizar. 305 Para tal, é preciso olhar para a morte e o sofrimento e poder falar sobre eles, ou seja, é preciso construir espaços para cuidar da dor do cuidador, a fim de que ele possa cuidar de forma humana das dores de seus pacientes, e possa enfrentar o medo da intimidade que esse tipo de encontro desperta. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS: Aragão, L. (2002). Habermas: filósofo e sociólogo do nosso tempo. Rio de Janeiro, RJ: Tempo Brasileiro. Ayres, J. R. C. M. (2002) Tão longe, tão perto: o cuidado como desafio para o pensar e o fazer nas práticas de saúde. 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Zaidhaft, S. (1990). Morte e formação médica. Rio de Janeiro, RJ: Francisco Alves. 307 Candidatura 16 Autores: Railda Alves, Maria Eulálio, María León & Sylvia Brobeil Título: La psicología en la salud pública: discursos, dificultades y límites de la formación de psicólogos en Brasil y Portugal 308 La psicología en la salud pública: discursos, dificultades y límites de la formación de psicólogos en Brasil y Portugal Railda F. Alves. Profesora Doctora de la Universidade Estadual da Paraíba – Brasil [email protected]; [email protected] Maria do C. Eulálio. Profesora Doctora de la Universidade Estadual da Paraíba – Brasil [email protected] María T. M. León. Profesora Doctora de la Universidad de Granada – España [email protected] Sylvia A. J. Brobeil. Profesora Doctora de la Universidad de Granada – España [email protected] Resumen Este trabajo presenta parte de los resultados obtenidos en una investigación realizada junto a los psicólogos actuantes en salud pública de la ciudad de Campina Grande, Brasil y del Concelho de Coimbra, Portugal. Los objetivos fueron: conocer las intervenciones llevadas a cabo en la sanidad pública; valorar la adecuación de estas prácticas a cada nivel de atención de salud; conocer los discursos sobre las intervenciones en Atención Primaria de Salud (APS)17. El estudio fue viabilizado mediante la triangulación metodológica y tuvo como instrumentos de toma de datos un cuestionario, una entrevista en profundidad y un diario de campo. Para deslindar los resultados se utilizó el análisis de contenido. Para demostrarlos, el árbol de asociación de sentidos. Las informaciones cuantitativas fueron obtenidas mediante la estadística descriptiva. Los resultados destacaron las dificultades de los psicólogos en identificar las intervenciones más apropiadas a APS y mostraron que el modelo clínico es, todavía su sustentáculo para el ejercicio de la profesión en salud pública. Palabras clave: Psicología de la salud, intervenciones en la sanidad pública, primaria de salud Atención 1 - Introducción Las últimas décadas atestiguaron la incorporación gradual de psicólogos a los servicios de salud pública. Tal incorporación estuvo anclada al modelo de intervención clínico. Hecho que privilegió la naturalización y circulación del aporte clínico como prácticas “standard” para todas las demás intervenciones de psicología en el campo de la salud pública y pone de 17 En Portugal este término equivale a “Cuidados de Saúde Primários” (Trindade, 2007). En el ámbito de este trabajo elegimos mantener el uso del término Atención Primaria de Salud, por querer mantener la fieldád a forma utilizada en el idioma español. 309 manifiesto una inadecuación entre lo que es realizado y lo que deberían ser. Actualmente, los avances y reformas observadas en el campo conceptual y práctico de la salud impulsaron el surgimiento de nuevas demandas para la actuación de los psicólogos, esta vez en APS (Alves, 2008). Los factores más importantes ligados a ello, son: 1- la evolución del concepto de salud-enfermedad-vida-muerte; 2 – la maduración de la Psicología de la Salud; 3 - las reformas sucedidas en los planeamientos institucionales de salud observadas en varios países que pasaron a enfatizar la APS como intervenciones propias a los psicólogos; 4 - la Reforma Psiquiátrica que apunta hacia el cierre de los manicomios y la implantación de los servicios sustitutivos (Brasil, 2005a). De ese contexto resulta la necesidad de una nueva organización y elaboración de los programas de salud y el desarrollo de acciones de corto, medio y largo plazo, que aporten la preparación a los profesionales de salud para la intervención en ese nuevo modelo. De cara a contribuir a la solución de esta problemática realizamos el presente estudio cuyos objetivos fueron: 1 - conocer las prácticas de salud llevadas a cabo por psicólogos actuantes en la sanidad pública de la ciudad de Campina Grande, Brasil y del Concelho de Coimbra, Portugal; 2 - a partir de ese conocimiento valorar y criticar la adecuación de estas prácticas a cada nivel de atención de salud destacando las prácticas de APS. El estudio fue viabilizado mediante la triangulación metodológica y tuvo como instrumentos de toma de datos un cuestionario (Escala Whoqol-100, 2008), una entrevista en profundidad (Alves, 2002) y un diario de campo (Alves, 2001). Para llegar a los resultados utilizamos el análisis del contenido (Bardin, 1977). Y para demostrarlos, el árbol de asociación de sentidos (Spink y Lima, 1999). 2 - Resultados y discusión 2.1. Parámetros socio demográficos de las muestras 310 La tabla 2.1.1., (Test exacto de Fisher: P = 0,025) nos muestra que los psicólogos que están en la sanidad pública son mayoritariamente mujeres (89,3%). Dimenstein (1998) hace referencia al predominio de mujeres en la profesión de psicólogos. Afirma que la Psicología fue quedándose marcada como una profesión de mujeres hecho que influye sobre la repercusión de su valor social y de los espacios ocupados en el mercado de trabajo. La edad media es 42,31 años y el estado civil predominante es casada/o (44,6 %). Es en Portugal donde se encuentra las mayores tasas de viudas/os (28,1%), solteras/os (28,1%) y separadas/os (18,8%). Mediante aplicación del test de Chi-Cuadrado (Chi2=15,970; P=0,001) verificamos que en Portugal (Coimbra) hay menos casados y muchos más viudos de lo que es de esperar (hay 9 viudos frente a 1 en Brasil). Tabla 2.1.1. Perfil socio demográfico de las muestras – julio a diciembre de 2007 311 SEXO Brasil Portugal Total N % EDAD MEDIA ESTADO CIVIL N % Total FEMEN MASC AÑOS CASADO VIUDO SOLTERO SEPARADO 49 96,1% 2 3,9 % 39,23 29 56,9% 1 2,0 % 14 7,5% 7 13,7% 51 100 % 26 78,8% 7 21,2% 43,54 8 25,0 % 9 28,1% 9 28,1% 6 18,8 % 33 100% 75 89,3% 9 10,7% 42,31 37 44,6% 10 12% 23 27,7% 13 15,7% N=84 En la tabla 2.1.2. cruzamos las informaciones sobre la realización de PostGrado. El resultado del test Chi-Cuadrado no llega a dar significativo (Chi=1,834; P= 0,176) a pesar de que según nuestra muestra los psicólogos de Brasil han realizado más cursos de Post-Grado (82,4%), respecto a Portugal (69,7%). Hay una concentración en la realización de Expertos, seguido por los masteres y por último, con poquísimos casos, doctorados. Tabla 2.1.2. Lugar y Realización de Post-Grado Realización de Postgrado Total Brasil Lugar Sí No Recuento 42 9 51 Frecuencia esperada 39,5 11,5 51,0 % de Lugar 82,4% 17,6% 100,0% % de Realización de Postgrado 64,6% 47,4% 60,7% Residuos corregidos 1,4 -1,4 Recuento 23 10 33 Frecuencia esperada 25,5 7,5 33,0 % de Lugar 69,7% 30,3% 100,0% % de Realización de Postgrado 35,4% 52,6% 39,3% Portugal 312 Residuos corregidos -1,4 1,4 Recuento 65 19 84 Frecuencia esperada 65,0 19,0 84,0 % de Lugar 77,4% 22,6% 100,0% 100,0% 100,0% Total % de Realización de Postgrado 100,0% La tabla 2.1.3. nos habla sobre el área en la cual se realizó la formación. En este caso, Portugal presentó mayor concentración de cursos en Psicología (91,3%), respecto a Brasil (68,3%), (Chi cuadrado=3,160; P= 0,075) aunque el resultado no llega a la significación. La alta frecuencia de profesionales interesados en la adquisición de nuevos conocimientos nos puede indicar una preocupación por el avance hacia nuevos aportes teóricos y técnicos de la psicología. Lo malo está en que los cursos realizados están concentrados en el área de la psicología clínica. Sobre todo en la muestra de Portugal. En Brasil hemos detectado una mayor preocupación con la realización de cursos en el área de la Salud Pública/Comunitaria. Tabla 2.1.3. Lugar y Área de Realización de Post Grado Área Total Psicología clínica Salud pública Recuento 28 13 41 Frecuencia esperada 31,4 9,6 41,0 % de Lugar 68,3% 31,7% 100,0% % de Área 57,1% 86,7% 64,1% Lugar Brasil 313 Residuos corregidos -2,1 2,1 Recuento 2 23 5,4 23,0 91,3% 8,7% 100,0% 42,9% 13,3% 35,9% 21 Frecuencia esperada 17,6 Portugal % de Lugar % de Área Residuos corregidos 2,1 -2,1 Recuento 15 64 Frecuencia esperada 49,0 15,0 64,0 % de Lugar 76,6% 23,4% 100,0% % de Área 100,0% 100,0% 100,0% 49 Total 314 A continuación pasamos a comentar los resultados en cuanto a las medias de sueldos cobrados mensualmente en las dos muestras. Los portugueses ganan 1.452,75€/mes, de media, mientras los brasileños, para desempeñar lo mismo ganan en media 1.021,10 reales/mes18. Para tener un parámetro más concreto buscamos el valor de cada hora trabajada en euros, que figuran en la Tabla 2.1.4., en las dos muestras. Los resultados nos dicen que los psicólogos de Portugal ganan tres veces más que los de Brasil. Ahora bien, el conocimiento obtenido de las realidades de cada país investigado, nos permite afirmar que la calidad de vida de los psicólogos brasileños no está muy por debajo de la de los portugueses. Hecho explicado porque en Brasil los psicólogos tienen entre 1 y hasta 3 empleos más de lo oficial lo que les garantiza un incremento en sus sueldos. Tabla 2.1.4. Valor de la hora trabajada en Euros en Brasil y Portugal Lugar N Media Desviación típ. Error típ. de la media Brasil 50 3,4913 1,31514 ,18599 Portugal 28 10,2213 2,25906 ,42692 Hora trabajada en euros Pasamos a hablar de la satisfacción de los profesionales en relación a los sueldos cobrados. Los resultados demostrados en la tabla 2.1.5. reflejan la relación entre sueldos cobrados y calidad de vida personal y familiar. Esta tabla nos confirma los datos descritos en la categoría anterior que enseña que los portugueses se dicen más satisfechos con lo que ganan (30,3%) que los brasileños (13,7%), sin embargo, ninguno de los psicólogos en las dos muestras ha marcado la opción muy satisfecho. 18 Para comparar las ganancias medias (en euros) entre Brasil y Portugal el factor de corrección utilizado en el momento de la toma de datos fue 0,3856 céntimos de euro. 315 (Estadístico exacto de Fisher= 9,935; P= 0,025). Se observa en la tabla como hay en Brasil menor grado de satisfacción y más en Coimbra. TABLA 2.1.5. Lugar * Calidad de vida Calidad de vida Brasil Total Sin opinión Nada satisfecho Poco satisfecho Regular Satisfecho Recuento 5 15 24 0 7 51 Frecuencia esperada 3,0 12,1 24,3 1,2 10,3 51,0 % de Lugar 9,8% 29,4% 47,1% ,0% 13,7% 100,0% % de Calidad de 100,0% vida 75,0% 60,0% ,0% 41,2% 60,7% Residuos corregidos 1,9 1,5 -,1 -1,8 -1,8 Recuento 0 5 16 2 10 33 Frecuencia esperada 2,0 7,9 15,7 ,8 6,7 33,0 % de Lugar ,0% 15,2% 48,5% 6,1% 30,3% 100,0% % de Calidad de ,0% vida 25,0% 40,0% 100,0% 58,8% Residuos corregidos -1,9 -1,5 ,1 1,8 1,8 Recuento 5 20 40 2 17 84 Frecuencia esperada 5,0 20,0 40,0 2,0 17,0 84,0 % de Lugar 6,0% 23,8% 47,6% 2,4% 20,2% 100,0% Lugar Portugal Total 39,3% 316 % de Calidad de 100,0% vida 100,0% 100,0% 100,0% 100,0% 100,0% En la tabla 2.1.6. acerca de la relación satisfacción con el que hace en su trabajo las respuestas son homogéneas (Test de Fisher = 4,321; P= 0,354)( NO significativo). La mayoría de respuestas están concentradas sobre la categoría “estoy satisfecho con lo que hago”, respectivamente tenemos: Brasil 62,0%, Portugal 54,5%. Si sumamos los ítems satisfecho con muy satisfecho tendremos para Brasil un percentil de 94% de satisfacción con el trabajo y un 84,8% para Portugal. O sea, hay un buen nivel de satisfacción de los profesionales con lo que hacen. Tabla 2.1.6. Lugar * Satisfacción con el trabajo Satisfacción con el trabajo Brasil Lugar Portugal Total Sin opinión Nada satisfecho Poco satisfecho Satisfecho Muy satisfecho Recuento 1 0 2 31 16 50 Frecuencia esperada ,6 1,2 3,0 29,5 15,7 50,0 % de Lugar 2,0% ,0% 4,0% 62,0% 32,0% 100,0% % de Satisfacción 100,0% con el trabajo ,0% 40,0% 63,3% 61,5% 60,2% Residuos corregidos ,8 -1,8 -1,0 ,7 ,2 Recuento 0 2 3 18 10 33 Frecuencia esperada ,4 ,8 2,0 19,5 10,3 33,0 % de Lugar ,0% 6,1% 9,1% 54,5% 30,3% 100,0% ,0% 100,0% 60,0% 36,7% 38,5% 39,8% % de Satisfacción 317 con el trabajo Residuos corregidos -,8 1,8 1,0 -,7 -,2 Recuento 1 2 5 49 26 83 Frecuencia esperada 1,0 2,0 5,0 49,0 26,0 83,0 % de Lugar 1,2% 2,4% 6,0% 59,0% 31,3% 100,0% 100,0% 100,0% 100,0% 100,0% 100,0% Total % de Satisfacción 100,0% con el trabajo Por otra parte, son los brasileños los menos satisfechos con sus sueldos, al mismo tiempo, los más satisfechos con sus haceres cotidianos. Quizás se pueda explicarlo por las muchas y recientes contrataciones de psicólogos, incluso sin oposición. Hecho que, puede ser interpretado como la necesidad de enseñar la pericia y la idoneidad respecto al desempeño de su labor, una vez que muchos no tienen segura su plaza. Tal inferencia resulta de la lectura de las informaciones registradas en el diario de campo que nos ha permitido ver que las condiciones generales para el buen desempeño de las actividades de estos profesionales no son nada apropiadas. Desde las condiciones físicas de las consultas y ambiente de trabajo hasta la falta de comunicación entre los profesionales de salud. 2. 2. Análisis cualitativo de los discursos de psicólogos actuantes en Atención Primaria de Salud Este apartado está dedicado a mostrar y discutir los resultados de las entrevistas en profundidad. Es oportuno aclarar que aunque desde el punto de vista político-geográfico Campina Grande y Concelho de Coimbra estén muy lejos la una del otro, los resultados son 318 muy similares, lo que nos ha permitido proceder a su agrupación en las mismas categorías de análisis. 2. 2. 1. Auto-relatos de los psicólogos sobre las intervenciones realizadas en Atención Primaria de Salud (APS) En esta categoría, tal como demostramos en el árbol 2.2.1 (p.10), los actores de la investigación centraron sus discursos sobre lo que hacen actualmente en APS. La idea matriz radica en la creencia de que lo que hacen es adecuado a la APS, y sus intervenciones son descritas como compatibles a este campo. Así, tal como la describen, la APS es una asistencia inicial definida como una primera atención a los problemas más sencillos, algo cercano a los primeros auxilios brindados a alguien que llega por primera vez al servicio. Esta intervención, tal como la vemos, podría encontrar amparo teórico-práctico en lo que es el ‘Pantão Psicológico’19, actualmente muy utilizado en Brasil (Tassinari, 1999; Mafhou, 1999; Tassinari, 2003). 19 Se trata de una escucha clínica, no caracterizada como psicoterapia, frente a una necesidad de acogimiento urgente, de cualquier persona que acuda al servicio. Tal como lo ven los autores, el “plantão” remite a una técnica de deconstrucción de la clínica tradicional porque al contrario de la vertiente curativa, busca situar la demanda psicológica del individuo, en su contexto social, de modo que evite el aumento de su sufrimiento psíquico. 319 320 La actividad central a través de la cual son desarrolladas las intervenciones en este nivel es la psicoterapia. Así, los psicólogos relatan que sus jornadas de trabajo son dedicadas casi exclusivamente a la referida actividad, no restando tiempo para otras actividades distintas. Todo es hecho en los moldes tradicionales incluso con los pacientes previamente citados. En la mayoría de las respuestas de los entrevistados queda claro una vaga comprensión del que hacer en APS. Todas las ideas concernientes al tema demuestran la fuerte influencia de la formación universitaria anclada al modelo clínico y la consecuente actuación en el referido modelo. Aunque algunos de ellos, en diversos momentos de la entrevista, demostraron hacer una reflexión sobre la (in) adecuación de sus asistencias al campo de la APS, hay una evidente comprensión de que la psicoterapia es parte no solamente integrante del campo, sino que la consideran una práctica normal de hacer en APS. Otra equivocación que nos parece evidente es creer que su tarea está involucrada primariamente en el ámbito de la salud mental, cuando debería estar volcada a la salud general, la cual tiene en la promoción de salud y en la prevención de enfermedades, sus objetivos más grandes. En la misma línea, el árbol 2.2.1. (p.10) señala la narrativa discursiva del argumento psicoterapéutico: sesiones de 30’, labor en ambulatorio, seguimiento a pacientes desde hace dos años etc., y la falta de permanencia de los pacientes a consecuencia de la falta de adhesión a las asistencias; como algo que dificulta su trabajo. Todo ello sedimenta aún más el uso del paradigma clínico utilizado en sus prácticas. 321 2.2.2. Las Intervenciones que deberían ser realizadas por psicólogos en Atención Primaria de Salud (APS) Esta categoría captó los discursos sobre lo que debería ser realizado en APS. Conforme muestra el árbol 2.2.2. (p.13), las respuestas están planteadas sobre tres premisas: dar prioridad a la psicoterapia, no priorizar la psicoterapia y actuar con grupos. Respeto a la premisa (la prioridad de la psicoterapia en APS), no nos vamos a detener puesto que viene comentada en la categoría anterior. Respecto a la segunda, no ofrecer la psicoterapia en APS, quedó claro que hay una preocupación en relación a que la psicoterapia no debe componer el rol de actividades en APS. Tal preocupación no es suficiente para eliminar la psicoterapia del rol de sus tareas. Utilizan la reciente implantación del servicio y la falta de capacitación para ello como justificantes de sus desconocimientos sobre lo que hacer en el lugar de la psicoterapia. Los brasileños recurren al término Equipo Matricial como un desconocido. O sea, como a algo que se sabe que existe, del que se habla mucho, pero no se comprende qué es. Aún en esta línea de justificación, señalan la resistencia por parte de los profesionales a cambiarse al nuevo. Lo explican como una dificultad de dejar lo conocido para arriesgarse a lo novedoso. De un modo general la construcción del argumento gira en el entorno de la psicoterapia. Ya que cuando se remite a la realización de grupos (tercera premisa), se está pensando en una psicoterapia de grupo como una manera de hacer lo mismo como si fuese el nuevo y, también de asistir a más gente a la vez. Insistimos en afirmar que es una idea equivocada porque los psicólogos no se están dando cuenta de que la formación de grupos que proponen está mediada por la psicoterapia. Y no podría tener tal carácter, ya que la referida intervención no deberá componer la labor del psicólogo a este nivel de atención. 322 323 Tal como la entendemos, el único problema de la propuesta de los psicólogos para su labor en APS es que todo el planteamiento se guía por la realización de la psicoterapia en vez de ser guiado por la promoción y educación para la salud y la prevención de las enfermedades. La prevención también aparece como una actividad pertinente en APS, pero su comprensión se vuelca hacia una clínica cuyo objetivo es evitar la cronificación de problemas neuróticos o prevenir una psicosis en el futuro. La forma en la que los actores de la investigación miran la prevención resulta algo limitada una vez que está demarcada por el criterio de tiempo. O bien por intervención en edad temprana o por intervención en un problema neurótico, como medida de evitar que se vuelva psicótico. Las equivocaciones contenidas en estos discursos habrán de ser relativizadas frente a realidad encontrada en Campina Grande en aquel momento histórico. Es decir, el servicio estaba en fase de implantación y resultan comprensibles las dificultades allí encontradas en cuanto a la adecuación de las prácticas a la propuesta de trabajo en APS. Pero está igualmente claro que no hubo una preparación de los profesionales antes de sus traslados a los Centros de Salud, hecho que podría crear una gran diferencia en las respuestas de salud, brindadas a la comunidad. Los psicólogos de Portugal afirman que los que están en APS son los que deberían ocuparse de los niños maltratados. Idea que está también vinculada a la disminución de la carga sobre el servicio especializado y a la prevención precoz. Compararon la labor del psicólogo en APS como semejante a la del médico generalista. Afirmaron que la inserción de psicólogos en APS, igualmente que en Brasil, es también muy reciente. 324 2.2.3. Objetivos de las prácticas psicológicas en APS En esta categoría captamos los discursos sobre la adecuación y la importancia de la presencia del psicólogo en APS. El árbol 2.2.3 (p.16) muestra que ésta está organizada a partir de cuatro ideas centrales. La que viene en el medio, dar a conocer la psicoterapia, ratifica lo ya dicho y repetido: la psicoterapia es el eje de todas las prácticas en APS. La segunda, que está también en el medio, remite al conocimiento, aunque superficial, de que deberían hacer otras cosas. Como muestra el árbol, hicimos diversas intervenciones en la búsqueda de una respuesta más coherente. Pero está claro que en aquel momento no tenían claridad sobre el asunto. El tema gira alrededor de actuar con las UBS20 y PSFs21, pero el qué y el cómo hacer, no lo tienen claro. Alegan la falta de conocimiento de las leyes y la novedad de la intervención. La tercera idea, y la más extremada, muestra que el término primario es inadecuado al uso de las actuaciones del psicólogo en APS porque remite a una asistencia superficial, puntual sobre una primera queja y quedan los verdaderos motivos de la búsqueda del servicio encubiertas, con lo cual vendrían a explotar en otro momento, implicando un descuido en las quejas principales del paciente. Tal equivocación es la más grave entre las demás. Muestra un alto nivel de desconocimiento de lo que es el trabajo en salud pública, precisamente en APS. Ratifica la dificultad, ya señalada, del psicólogo de pensar su práctica desde un paradigma distinto del clínico. La cuarta idea, desahogar los servicios especializados, tiene mayor valor de coherencia con la APS. 20 21 UBS: Unidade Básica de Saúde (Brasil, 2005b). PSF: Programa de Saúde da Família (Brasil, 2007). 325 326 2.2.4. La formación universitaria para la actuación a nivel de APS El árbol 2.2.4 (p. 18) muestra que todas las dificultades señaladas por los actores son dirigidas a la formación universitaria. O, mejor dicho, a la falta de una formación adecuada. Las quejas son las mismas: han sido preparados para la actuación en la clínica privada, les falta el conocimiento de lo que son los Programas institucionales de salud, les falta la preparación para enfrentarse a la realidad de las comunidades usuarias del servicio público de salud. Todo ello recarga la dificultad de dejar la psicoterapia para cambiarse a lo nuevo y desconocido. Vemos pertinente la crítica respecto a la formación poco adecuada a las necesidades reales del campo, sobre todo, cuando solicitan una reforma en el currículum cuyo objetivo es garantizar una formación volcada a la realidad que el profesional encontrará en el mundo laboral de la salud pública. 327 328 3 – Conclusiones La presente investigación nos mostró la serie de equívocos en las intervenciones de los psicólogos que actúan en el campo de la salud pública. La formación académica inapropiada y disociada de las políticas de salud pública es lo más grave. La adecuada actuación de psicólogos en salud pública debe tener en cuenta las posibilidades de intervención en los diversos niveles de atención de salud. Sopesando la adecuación de cada acción en su nivel apropiado. Teniendo claro que las intervenciones de salud primaria objetivan la salud general en la búsqueda de la promoción de salud y la prevención de enfermedades; que las intervenciones de salud secundaria deben volcarse hacia las asistencias especializadas de seguimiento, donde la salud mental tiene su mayor expresión. Y las asistencias de tercer nivel se relacionan con las intervenciones de alta complejidad y las investigaciones científicas. La promoción de salud y la prevención de enfermedades son actividades propias a la labor del psicólogo, debiendo ser ejecutadas en conjunto con los demás profesionales del equipo de salud. Cada cual aportando su conocimiento especializado al equipo multidisciplinar de cara a comprensión del perfil epidemiológico del colectivo social a ser asistido y a la elaboración de los planes de intervención. En definitiva, la intervención de psicólogos se amplia hacia nuevos campos de salud, como en el caso de la APS. De igual manera se exige una mirada y una preparación de estos profesionales más compatibles con los procederes psicológicos exigidos para su intervención en salud pública. Referencias ALVES, R. F. (2001): O olhar de agricultores do Cariri Paraibano sobre a loucura. Dissertação de mestrado. Mestrado Interdisciplinar em saúde Coletiva. Universidade Estadual da Paraíba. Campina Grande, Brasil. ALVES, R. F. (2002): Entrevista não-diretiva: aplicações e limites.. Revista do UNIPÊ. Série Ciencias biológicas e da saúde. João Pessoa. V6(3), p. 46-50. 329 ALVES, R. F. (2008). Tesis de Doctorado. Intervenciones de profesionales en el campo de la salud: estudio antropológico comparativo en Brasil, España y Portugal. Universidad de Granada, España. BARDIN, L. (1977): Análise de conteúdo. Edições 70, Lisboa. BRASIL (2005a): Ministério da Saúde. Secretaria de Atenção à Saúde. DAPE. Coordenação Geral de Saúde Mental. Reforma psiquiátrica e política de saúde mental no Brasil. 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Lisboa: Climepsi Editores. 330 Candidatura 17 Autores: Laura Vilela e Sousa, Manoel Antônio Santos, Fernanda Mishima & Fábio ScorsoliniComin Título: Vulnerabilidade ao stresse em profissionais de emergência médica pré-hospitalar 331 O grupo de apoio psicológico entendido pelos familiares de pessoas com transtornos alimentares Souza, Laura Vilela – [email protected] Santos, Manoel Antônio – [email protected] Mishima, Fernanda Kimie Tavares – [email protected] Scorsolini-Comin, Fábio – [email protected] Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto Universidade de São Paulo (FFCLRP-USP) Brasil RESUMO O grupo multifamiliar tem tido bons resultados pela troca de experiência entre famílias favorecendo uma coesão grupal e atmosfera de apoio. Buscamos compreender como as famílias de pessoas com Anorexia e Bulimia Nervosa significam a sua participação em um grupo multifamiliar de apoio psicológico. Participaram nesse estudo 37 familiares. Foram audiogravadas 10 sessões grupais, posteriormente transcritas na íntegra e submetidas à análise de conteúdo temática. Essa análise permitiu identificar “tópicos/temas” que emergiram espontaneamente e que estão relacionados aos objetivos do estudo, a saber: quem deveria participar do grupo, por que e como participar, o que mudou após a participação e para que serve esse espaço. Os diversos sentidos sobre qual é a função do grupo geram diferentes construções sobre quem deve e as razões 332 participar dele. Assim, a participação vista em função do familiar adoecido constrói o grupo como um lugar para se falar da doença. Aqui o grupo seria apenas para familiares iniciantes, com os filhos ainda adoecidos. Já o sentido do grupo como um compromisso de ofertar ajuda aos demais participantes, ou o grupo como espaço de dar e receber ajuda faz com que famílias já com seus filhos melhores possam sentir-se legitimadas no grupo favorecendo a troca. (Capes). INTRODUÇÃO A partir da perspectiva epistemológica do pós-modernismo, que não considera a existência da dualidade sujeito-objeto, mas sim o sujeito e o objeto como construções sócio-históricas, a abordagem Construcionista Social convida-nos a ver a pesquisa como uma prática social, considerando que o critério de cientificidade e suas estratégias de validação estão ligados às definições do que é ciência ao longo da história. A pesquisa científica é compreendida como um discurso institucionalizado, com normas validadas por uma comunidade lingüística. Gergen (1994) afirma que a investigação construcionista preocupa-se principalmente com os processos por meio dos quais as pessoas explicam e descrevem o mundo e a si mesmas. Segundo Spink e Frezza (2000) a investigação proposta dessa maneira transfere “o locus da explicação dos processos de conhecimento internos à mente para a exterioridade dos processos e estruturas da interação humana” (p. 26). 333 Dentro da perspectiva moderna do fazer ciência tem-se um esforço de evitar, e ficar atento, a influência da subjetividade do pesquisador na sua produção, como se essa subjetividade pudesse distorcer a realidade, que poderia ser objetivamente percebida. Spink e Menegon (2000) definem como infeliz a distinção entre métodos qualitativos e quantitativos, que associaria a mensuração do método quantitativo com rigor e objetividade, e a abordagem qualitativa com subjetividade e uma menor precisão no espelhamento da realidade. A crítica se faz pertinente com o entendimento de que o conhecimento científico não é o retrato da realidade, mas uma construção possível sobre essa realidade, negociada e contextualizada em seu meio de produção. Portanto, ambas abordagens produzirão diferentes metáforas sobre essa realidade, e a escolha por uma ou outra dependerá não do fato de ser mais ou menos precisa na sua descrição do real, mas dos objetivos do pesquisador. A responsabilidade pela escolha dos passos metodológicos a serem adotados, em uma pesquisa, aumenta dentro dessa perspectiva, e deve ser justificada de acordo com os fundamentos epistemológicos que embasam o olhar do pesquisador. É uma mudança epistemológica dentro da abordagem qualitativa utilizada na Psicologia, assim como vem acontecendo nas demais ciências humanas (Spink & Menegon, 2000). A postura ética e crítica que essa compreensão implica repercute na postura do pesquisador, que vai ser assimilado no processo da produção de sentido, e que entende que não existe uma verdade única e irrefutável a ser descoberta; ou um ponto de vista privilegiado para o entendimento do objeto escolhido. Ou seja, segundo Ibánez (1994) as verdades são pautadas em critérios de coerência, utilidade, intelegibilidade e moralidade. 334 O construcionismo social considera a pesquisa como uma constante abertura ao novo, às construções alternativas da realidade, às renegociações de sentidos, buscando manter a conversação sempre em aberto. Assim, dentro dessa perspectiva, o estudo das interações grupais torna-se um objeto valioso para a compreensão da maneira que os sentidos podem ser construídos e negociados nas relações, pois favorece variadas conversações, trocas e multiplicidade de vozes (Souza & Santos, 2007). A negociação de sentidos no espaço grupal contextualiza-se sempre de acordo com os limites construídos entre seus participantes, através do contrato grupal, do objetivo do grupo, das pessoas que estão ali presentes e dos repertórios interpretativos que elas trazem de sua vivência cultural, histórica e social (Japur, 2004). Ou seja, o grupo não é uma entidade que existe independentemente de seu contexto, como muitas vezes é defendido na literatura psicológica moderna, mas um artefato social produzido a cada momento no calor da interação. Dessa forma, o grupo pode ficar preso a repetição de discursos institucionalizados em nossa sociedade ou pode ser um espaço promotor de novos sentidos e discursos que podem ser mais significativos e úteis para os seus participantes (Rasera & Japur, 2001). O alcance desses sentidos alternativos relacionase, segundo Japur (2004), “ao conjunto de relacionamentos em que as pessoas estão inseridas e das condições relacionais da sociedade como um todo” (p. 165). Portanto, uma vez que o potencial terapêutico de um grupo não pode ser garantido, dentro dessa perspectiva, apenas com o uso de técnicas específicas ou abordagens utilizadas pelos seus coordenadores, pois a consideração do que é 335 terapêutico dependerá sempre das negociações feitas pelas pessoas a cada momento da interação, torna-se fundamental compreendermos de que maneira essas relações se estabelecem e que sentidos são produzidos para percebermos as conseqüências dessas construções para as pessoas Especialmente na área da saúde, que utiliza essa estratégia de atendimento amplamente, o estudo das intervenções grupais busca garantir: o conhecimento da maneira que esses grupos são construídos; quais os discursos e repertórios sociais que neles se presentificam; quais as conseqüências das descrições de mundo e de simesmo produzidas nas conversações e qual a vivência de cada participante sobre as possibilidades e limites de cada grupo. A compreensão desses aspectos visa trazer subsídios para a elaboração de estratégias de cuidado mais condizentes com as necessidades dos usuários dos diferentes serviços de saúde. Objetivo Buscou-se nesse trabalho compreender de que maneira os diversos sentidos construídos em um grupo de apoio a familiares de pessoas diagnosticadas com anorexia nervosa e bulimia nervosa, constroem diferentes possibilidades de se estar no grupo (através de movimentos de afastamento e aproximação entre os participantes) e viver a sua potencialidade terapêutica. Método O grupo de apoio estudado O grupo de apoio psicológico aos familiares de pessoas com anorexia e bulimia 336 nervosa é oferecido como uma das modalidades de atendimento à família pelo Grupo de Assistência em Transtornos Alimentares (GRATA) do Ambulatório de Nutrologia do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo. Acontece semanalmente, tem uma hora de duração e é coordenado por dois psicólogos (em esquema de co-coordenação) e tem como objetivo principal ser um espaço de troca de experiências entre os participantes (Santos, Oliveira, Moscheta, Ribeiro & Santos, 2004). Tem cerca de três anos de funcionamento e desde o início, é um grupo de “portas abertas”, isto é, aberto aos parentes e acompanhantes dos pacientes atendidos. Não tem número definido de vagas e todos os familiares dos pacientes, atualmente atendidos, estão convidados a participar dos encontros. O convite para a participação no grupo acontece em todo início de tratamento e é reforçado ao longo do mesmo, sempre que a equipe percebe que a família está ausente. A aderência tem sido significativa, ainda que em algumas famílias apenas um membro participe do grupo. A assiduidade tem sido diferente em cada família, sendo que, na época da coleta de dados, a média de participantes nas reuniões foi de 6 a 8 integrantes. Apesar do contínuo estímulo à presença sistemática, alguns familiares participam apenas nas datas de retorno ambulatorial dos pacientes. Aspectos Éticos O projeto de pesquisa conta com a anuência do médico responsável pelo Ambulatório de Nutrologia do HC-FMRP-USP e foi submetido e aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da referida instituição em 25 de outubro de 2004, de acordo com o processo número 10823/2004. A participação dos familiares no estudo foi voluntária, 337 de modo que, antes do início da coleta dos dados, e antes do início de cada grupo, todas as pessoas formalizaram sua anuência mediante a assinatura do termo do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido. Participantes Participaram da sessão analisada a psicóloga Luma, 34 anos e o psicólogo Felipe, 26 anos e 10 familiares: Helena, 44 anos, mãe de uma jovem com bulimia nervosa, comerciante; Valéria, 62 anos, mãe de uma jovem com anorexia nervosa, aposentada; Otávio, 65 anos, pai de uma adolescente com anorexia nervosa, professor; Magali, 46 anos, mãe de uma jovem com bulimia nervosa, dona de casa; Marcos, 44 anos, irmão de uma senhora com anorexia nervosa, pecuarista; Guilhermina, 54 anos, mãe de uma jovem com bulimia nervosa, dona de casa; Nilma, 77 anos, mãe de uma senhora com anorexia nervosa, dona de casa; Camilo, 21 anos, namorado de uma jovem com bulimia nervosa, estudante; Milton, 46 anos, padrasto de uma jovem com bulimia nervosa, comerciante; Ronaldo, 44 anos, pai de uma jovem com anorexia nervosa, profissional autônomo. Materiais e procedimentos de coleta de dados Fontes complementares A) Diário de Campo: Utilizou-se do Diário de Campo como recurso complementar para que a pesquisadora, enquanto observadora do grupo, pudesse registrar as conversas informais (antes e ao término do grupo), os comportamentos, gestos e expressões dos participantes, assim como a tonalidade afetiva dos diferentes momentos da sessão. B) Consulta aos prontuários: Os prontuários do serviço foram consultados para a obtenção das descrições dos profissionais quanto aos chamados "pacientes". Essas 338 informações colaboraram na compreensão das narrativas dos participantes com relação à seu familiar atendido no serviço. Observação e registro do grupo As sessões grupais foram áudio-gravadas na íntegra por meio de um gravador K-7 colocado no centro do círculo de cadeiras. A coleta foi interrompida quando se completou um conjunto de 10 sessões consecutivas do grupo. Assegurou-se que o tema relacionado ao nosso objetivo nesse estudo estivesse presente nesse intervalo temporal. Análise dos dados Inicialmente realizou-se a transcrição integral e literal das 10 sessões. Após o primeiro contato com o conteúdo das sessões, através de sua transcrição, foram realizadas releituras desse material, buscando aprofundar o reconhecimento de seus conteúdos, temas, processos de produção e negociação de sentidos e formas de interação engendradas. Uma vez que o objetivo desse estudo foi o estudo da produção e negociação de sentidos dos familiares para a sua participação no grupo, o passo seguinte, dentro desse momento de pré-análise dos dados, foi o realce das falas nas quais essa temática estivesse presente. Considerando-se a natureza qualitativa desse estudo, um recorte desse material tornou-se necessário para o aprofundamento da análise. Dessa forma, foi selecionada para a análise uma sessão, na qual estavam presentes variadas negociações, construções e posicionamentos com relação aos diferentes sentidos construídos para a participação grupal, evidenciando, assim, sua riqueza polissêmica. 339 Para a análise das sessões utilizamos o recurso metodológico das delimitações temáticos-seqüenciais empregada por Rasera e Japur (2001). Através desse recurso são recortados, ao longo da seqüência da sessão, as diferentes temáticas que vão delimitar diferentes momentos da interação grupal. A abordagem teórico- metodológica utilizada foi a da "teoria relacional do significado" (McNamee, 2004; Gergen, 1994), cujo foco é o estudo da maneira através da qual as pessoas se engajam umas com as outras na construção de sentidos - objeto de estudo do construcionismo social - em um constante diálogo com o mundo (McNamee, 2004). Resultados O contexto da sessão: O grupo nesse dia estava bastante lotado. Fernando e Helena entraram atrasados. Havia 3 pessoas novas no grupo: Guilhermina, Camilo e Nilma. Marcos trouxe sua mãe Nilma hoje pela primeira vez. Os casos graves e não graves: a possibilidade de um novo sentido para a diferença O grupo inicia com a apresentação dos participantes, que falam seu nome e o parentesco com a pessoa atendida no serviço. Logo após a apresentação, o coordenador Felipe pergunta a Marcos se é a sua primeira vez no grupo. Marcos afirma que já veio uma vez na semana anterior, na qual Felipe estava de férias. Após essa conversa introdutória, Marcos afirma ter ficado preocupado desde o último grupo, pois ele havia falado da gravidade da doença da irmã e acabou percebendo que a filha de Valéria estava em uma situação "mais grave". Ele se dirige à Valéria desculpando-se: 340 Marcos: É minha preocupação que eu tava falando, eu tava conversando... Como que é o nome? Esqueci o seu nome. Valéria: Valéria. Marcos: Valéria! Dona Valéria, né? Eu até pedi desculpa pra você, né? Porque o caso da filha dela é... É mais pela minha mãe, né? Porque eu via que minha irmã tomava laxante, toma diurético e a filha dela nem isso tá comendo. Aí ela (Dona Valéria) precisa levantar pra dar água pra filha, minha mãe não faz isso! Então queria trazer minha mãe para ela estar vendo que... Que tem um que tá pior que minha irmã. Parece, né? A senhora desculpa mais uma vez a senhora (fala para Valéria). Valéria: Não! O caso dela é grave mesmo (fala com voz de riso para amenizar). Marcos: Precisa estar auxiliando pra estar andando, isso e aquilo. E a minha irmã ainda tá aí, mais ou menos, né? Cada caso é um caso, mas pra ela (mãe dele) tá vendo aí. Porque a gente fica meio... Valéria: Perturbado. Marcos: É! Aí fica preocupado com ela, fica preocupado. Eu aqui eu to bem, né? Na terça- feira (dia do último grupo) eu fiquei meio assim. Mas, hoje eu tô bem. Tão tratando (os profissionais), né? Se vai fazer o que? Temos a construção da diferença entre a gravidade da doença para cada uma das famílias. Valéria nomeia seu "caso" como sendo "grave". Ao contar como se sentiu frente à gravidade do caso de Antônia (filha de Valéria), Marcos faz uma pausa ao dizer: "a gente fica meio...", e Valéria parece completar a frase com a palavra "perturbado". Marcos, por sua vez, completa dizendo sentir-se "meio preocupado". Têm-se duas descrições de como é possível se sentir ao perceber casos graves de doença no grupo: o ficar "perturbado" e o ficar "preocupado". 341 A partir desse momento, o grupo continua discorrendo sobre as diferenças entre os "quadros sintomatológicos" dos filhos, filhas, namorada, e irmã. Os familiares falam dessas diferenças enfatizando a dificuldade de comunicação entre as pessoas, seja na família ou no próprio grupo. Na família, essa dificuldade se concretizaria através das brigas com o familiar "adoecido", e no grupo seria, segundo a compreensão de Felipe, a impossibilidade de, muitas vezes, ser entendido e aceito pelo outro. Felipe retoma o conteúdo da sessão até esse momento, e faz um paralelo com a busca de entendimento entre os participantes no grupo, como uma tentativa de aproximação entre eles: Felipe: É, eu quero agora fazer uma observação. Assim... Eu tava aqui perguntando mesmo pra vocês que eu ainda não conheço, eu tava aí querendo saber um pouco de vocês como é que é participar do grupo? Eu acho que desde o começo a gente ficou falando de algo muito importante, né? Que é de comunicação, né? Ah, desde a comunicação que a gente faz aqui, né? Mas aí vocês foram falando de que a comunicação é algo muito difícil né? Assim, chegar perto da outra pessoa, conseguir fazer com que ela entenda o que a gente tá pensando e, por outro lado, assim, entender o que ela tá pensando, o que ela tá vivendo. É sempre um desafio, né? É sempre muito difícil. (alguém concorda) E eu acho que é isso que a gente acaba vivendo aqui no grupo, né? Num grupo desse, né? Com tanta gente. E que a gente fica aí perguntando, querendo saber como é que é, quem é você, né? O que você tá esperando. É na tentativa de chegar perto, né? De se aproximar daquilo que vocês tão vivendo e daquilo que vocês tão precisando. Como ele tava dizendo, às vezes 342 ficar sozinho é muito difícil, né? Ficar sozinho é muito ruim, né? E aí eu queria saber agora de quem ficou escutando o que pensou enquanto tava escutando a história dessas pessoas que tão chegando agora. Nessa fala, Felipe traz a aproximação entre as pessoas no grupo como uma possibilidade de entendimento da vivência alheia, de não ficar solitário na sua experiência. Para Felipe, nesse momento de produção de sentidos, o grupo é visto como oportunidade de as pessoas se aproximarem. A aproximação entre os participantes parece ter um significado de igualdade entre os participantes, como se, para chegar próximo do outro, tivesse que ser reconhecido nesse outro algo que os iguale. Essa compreensão leva em conta a interação que se estabelecesse no grupo após a fala de Felipe. Valéria posiciona-se como alguém diferente dos outros participantes, parecendo difícil se aproximar, nesse momento, das vivências alheias: Valéria: Eu tava pensando o seguinte, que eles estão... Acho que não tem doença! Felipe: Como assim? Valéria: Tanto tempo e eu tô sempre assim, vivendo o dia. Felipe: Hum, hum. Valéria: Mas em matéria de... Eu com a minha filha... Não tem assim... A gente se comunica, conversa e tudo. Num tem esse problema, mas tem o dia que ela não quer saber de nada. O caso dela é grave, ainda hoje ainda é. São muitos anos de luta. Felipe: E o que a senhora tava falando é que perto dessa sua situação, a situação deles? Valéria: Ah! elas são curadas! São curáveis! Porque eu não... Que eu venho, acompanho, não deixo ela, fico lado a lado. Ela não vem no grupo, eu venho. Não tem essa, eu procuro dar, quer dizer que não tive a minha vida própria, fiquei em função dela, né? Agora nessa semana tá difícil. 343 Em sua fala, nesse trecho, Valéria afirma que as outras pessoas no grupo não teriam "doença", e que seus familiares seriam "curáveis". Em contraposição ao seu caso que seria "grave" e "não curável". Valéria coloca-se, nesse momento, como diferente dos demais participantes, sendo difícil sentir-se próxima deles. Dessa maneira, o grupo não poderia ser sentido como espaço de união e aproximação entre as pessoas. Fica solitária na especialidade de sua "situação". Na seqüência desse grupo, Magali questiona sobre a influência negativa que os pacientes poderiam ter uns sobre os outros, ao participarem do grupo de apoio a eles destinado e ouvirem os relatos de exemplos negativos dos outros pacientes, como o relato de alguém que esteve bastante emagrecida e não morreu. Segue-se o diálogo entre Magali e Valéria sobre esse aspecto: Magali: Não, assim, porque a semana retrasada que eu vim, tinha duas meninas junto com a Tatiana (filha de Magali) e aí elas esperam ali embaixo até a hora delas entrarem no atendimetno. E elas estavam conversando, né? E aí a Tatiana... Não sei o que ela perguntou pra menina e ela falou: “Ah... eu cheguei a pesar vinte e sete quilos... fui internada e eu tava que nem morta e o médico deu lá uma injeção de ânimo. Ele falou: “Ou tudo ou nada”, né? Cheguei nos vinte e sete quilos e não morri, tô aqui”. E ela falou ainda: “Engordar pra que?” isso e aquilo outro. Quer dizer, é uma coisa que a gente vê que é uma pessoa que tá doente, (referindo-se a menina que falou com sua filha) não tá normal, não tá boa. Então, o que eu quis dizer foi o seguinte: a Tatiana, depois disso, ela deu uma piorada. Então, em vez dela pegar o exemplo bom, ela pegou aquele ruim, porque uma pessoa chegar a 344 beira da morte, isso não é uma coisa boa! Valéria: Ô Magali, desculpe eu estar interrompendo, mas a coisa funciona assim, está dentro do doente. Ele... Num é que a Tatiana pegou o que a outra falou, ela que não se aceita gorda. Magali: É. É. Não, eu concordo, só que... Valéria: É esse o problema, é aquela agressão com ela mesma. Magali: Eu tô dizendo, assim, porque ela comia demais e provocava o vômito (fala mais baixo). Agora isso... Não tô falando que é culpa da menina, porque ela... Todas ali se enquadram num caso muito sério, muito difícil, né? Eu assim, nem levei assim em consideração. Procurei conversar com ela de outra maneira, né? Porque a gente tá vendo uma pessoa doente, uma pessoa que eu creio que não tá nem normal. Elas não tão nem normal. Pra mim eu acho assim, porque uma pessoa assim em sã consciência mesmo, uma cabeça firme mesmo, ela vai querer levar uma vida regrada, ela vai querer comer certinho direitinho. Não vai querer ficar doente, não vão querer fazer isso, quer dizer, a partir do momento que elas fazem é porque elas estão doente. Apesar de demorar muito também pra mim se conscientizar que isso era uma doença. Então, um caso assim de informação da gente ter, da gente saber da doença certinho eu só fui parar de brigar com a Tatiana depois que eu entendi isso. Magali inicia falando que a filha Tatiana, ao ouvir o relato de outra menina no grupo, havia piorado, pois começou a seguir o exemplo dado por essa pessoa. O relato teria sido de ter chegado aos "27 quilos" e não ter morrido, ao que a filha de Magali haveria entendido que então poderia emagrecer mais e que também não morreria. Para Magali, essa conversa fez a filha comer menos na mesma semana e piorar. Segundo sua compreensão, a filha teria "pego o exemplo ruim" no relato no grupo, ao 345 invés de pegar exemplos "bons". Magali afirma que esse foi um exemplo ruim, pois alguém que chega a "beira da morte" não é "coisa boa". Sabe-se, através da leitura dos prontuários do serviço e pelos relatos dos profissionais em outros contextos, que a filha de Valéria é um "dos casos da doença" que chegou a um nível bastante crítico de emagrecimento, "beirando a morte". Assim, pode-se hipotetizar que Valéria assumiu o relato de Magali como uma referência à situação de sua filha Antônia. Essa hipótese é enfatizada pela explicação de Valéria de que tal atitude da "paciente" teria sido em função da "doença" que está "dentro da pessoa" e que a faz não querer ganhar peso. Felipe traz a sua compreensão para a narrativa de Magali: Felipe: Mas isso que se tá contando, né? Eu vou aproveitar pra fazer assim um registro pra quem tá vindo aqui. É de que você tá contando que esse grupo te ajudou a entender algumas coisas. Magali: Exatamente Felipe: Mas também te ajudou a mudar o seu jeito de se relacionar com ela. Magali: Certo. Felipe: Hoje você já se relaciona de um jeito diferente... Magali: Certo. Felipe: E eu fiquei pensando: mas como é que ela conseguiu isso? Eu acho que você conseguiu isso porque você teve contato com outras pessoas que tinham experiências diferentes da tua. Luma: E se dispôs a pensar. O coordenador Felipe parece entender que a pergunta de Magali, referente ao grupo das pacientes, pode ser utilizada para a compreensão da diferença (heterogeneidade) também presente no grupo de familiares. 346 Ele afirma que a experiência de ter o contato com pessoas diferentes pode provocar impacto e questionamentos, como a angústia de não saber se seus familiares vão melhorar ou não, mas que esse contato com a diferença também pode "ajudar a entender algumas coisas", como aconteceu com Magali que pôde, após a sua participação no grupo, melhorar o seu relacionamento com a filha: Felipe: O que a gente escuta de um paciente que sente que ficou muito mal, de uma paciente que não tá comendo há muito tempo, de que isso vai fazer com que a filha de vocês piore, né? O medo de que elas fiquem aprendendo a piorar, a fazer coisas cada vez piores, que eu acho que tem tudo a ver com o que a gente vive nesse grupo aqui, né? Quando vocês chegam e escutam histórias, por exemplo, quando a Dona Valéria conta a história dela, né? De como a filha dela tá, dos muitos anos da luta dela, eu acho que isso tem um impacto em vocês, né? Eu acho que vocês estão se perguntando assim: “Poxa... mas e eu?”, né? “Quanto tempo eu vou ter que enfrentar essa doença?”, né? “Quanto tempo vai levar pra que ela melhore?”, né? “E será que eu vou conseguir? Será que eu não vou conseguir?”. Ah, vocês também tão escutando histórias que mexem com vocês, né? Mas eu acho que esse grupo é pra isso mesmo, é pra que a gente conte as nossas histórias e que a gente pense sobre elas, né? Porque também nessas histórias pode ter alívio, né? Vocês podem se sentir mais aliviados. Podem pensar: não é verdade, acho que não tá tão ruim”. Acho que nessas histórias tem muito aprendizado, né? Quando você fala que você mudou o seu jeito e que a Valéria também tem mudado o jeito dela ao longo desse tempo. 347 Felipe parece acreditar que a participação no grupo é para que os participantes possam "contar suas histórias" e que essas histórias podem "mexer" com eles, mas que são importantes, pois nessas histórias podem ser encontrados alívio e aprendizado. Valéria parece concordar com esse sentido: Valéria: Porque não adianta você vir no grupo pra encontrar tranqüilidade, uma luz lá no fundo do poço e chegar aqui ficar sentada e não falar nada. Aí, num resolve. Então tem que por pra fora aquilo que você tá sentindo, porque tem que ser na prática. Teórico não funciona! Valéria parece encontrar na fala de Felipe uma oportunidade para complementar seu sentido do grupo como espaço para todos poderem contar suas histórias, mesmo que sejam histórias tristes. Ao valorizar os diferentes relatos no grupo, o coordenador abre a oportunidade para Valéria defender o seu direito de "por na prática" a sua experiência, ou seja, poder contar a sua história. Valéria entende que se ficasse calada não poderia encontrar "tranqüilidade" e uma "luz no fundo do poço" com relação ao seu problema. Então, parece fazer uso da posição de autoridade do coordenador no grupo para validar seu lugar no grupo, não tendo que se sentir discriminada ou um mau exemplo. Magali, logo na seqüência, questiona Ronaldo sobre o que ajudou na melhora de sua filha: Magali: Então, que nem ele falou que a filha dele melhorou, né? Então eu queria que ele falasse um pouco, né? Sobre como que agiu, como que foi, desde o começo, 348 porque eu acho que isso daí também é importante pra gente, né? Porque quando cada um dá o depoimento, quando eu chego em casa eu vou parar e pensar: “Ai, vou fazer isso, assim assim, assim” Então eu vou tirar, assim, um pouquinho do que cada um falou e vou ver como é que eu vou fazer. Que nem ela falou que quando ela vem se anima, as vezes eu tô em casa desanimada, aí eu paro pra pensar, nossa a Dona Valéria, todos esses anos e tá firme e tá lutando, não desanimô, então eu também não posso desanimar, eu tenho que ir em frente também, entendeu como que é? Então eu procuro tirar um pouco. Você houve que muitas tenta, tenta e não tá conseguindo, mas tem aqueles também que tentam e tá dando certo, né? Então eu acho que tudo é importante pra gente poder conseguir ter um bom resultado, né? A pergunta de Magali dirigida a Ronaldo pode ser entendida como uma ação complementar ao sentido dado pelo coordenador de poder significar o grupo como espaço de aprendizagem. Esse sentido, além de ampliar as possibilidades da participação grupal, propõe uma maneira alternativa dos participantes se posicionarem no grupo e não apenas ficarem impactados com a diferença presente entre os participantes. Essa ampliação parece mudar a tonalidade da interação, saindo de movimentos de culpabilização e segregação dos participantes para uma postura mais ativa de engajar-se com o outro na busca de sentidos mais criativos e possibilitadores de mudança. Discussão Nesse fragmento de sessão podemos perceber a diferença construída marcando o distanciamento entre as pessoas. A distinção entre os casos "graves" e 349 não "graves", com relação aos sintomas dos transtornos alimentares, implica em diferenciações entre os relatos dos participantes no grupo. Os relatos da gravidade da doença são "perturbadores" e, portanto, provocam a estigmatização das pessoas que trazem tais relatos. Segundo Andersen (1998): nós necessitamos ser 'perturbados' desde que as perturbações nos mantenham vivos e nos tornem capazes de mudar de acordo com a transformação do mundo que nos rodeia. Mas se as perturbações são muito diferentes do que nosso repertório é capaz de integrar, nós nos desintegramos se as absorvermos. (p. 75). O autor entende que a perturbação que a diferença promove é positiva no sentido da promoção de transformação nas pessoas, mas se demasiada, poderia provocar 'desintegração'. Nesse grupo acontece a negociação sobre o valor das narrativas "dos casos graves da doença" e do "mau exemplo" que elas poderiam ser para os participantes. Os familiares e os coordenadores parecem debater a dupla função que essas narrativas podem ter: como provocadoras ou generativas de mudança. Os distintos relatos no grupo representam a multiplicidade de moralidades e crenças possíveis nesse contexto, e esse momento da sessão denuncia a dificuldade das pessoas de serem sensíveis a essa multiplicidade (Gergen & McNamee, 2000). A resistência em significar positivamente a diferença no grupo permeia o diálogo entre Valéria e Magali sobre o "exemplo ruim" no grupo de apoio aos pacientes. A construção do sentido de Valéria para a explicação do que acontece com 350 a "menina" que traz o "exemplo ruim" às demais pacientes traz o discurso da psicopatogênese do transtorno alimentar, muito comum no discurso psicológico e suas teorias de entendimento desse fenômeno. Ao afirmar que essa pessoa agiu em função da "doença" que está dentro dela, Valéria legitima esse discurso e se defende da acusação (indireta) sobre sua filha. Nessa situação, a construção da doença aparece como uma entidade que reside no paciente e tem o controle sobre suas ações. Percebe-se que o uso dos sentidos nas relações dentro do grupo não é fortuito, e é sempre endereçado a alguém na interação. Quando o direcionamento dos sentidos pode ser revelado na conversa, pode-se reconhecer a quais diferentes audiências as pessoas se dirigem nos diversos momentos do grupo, e o reconhecimento dessas audiências pode promover a reflexão sobre quais construções de mundo estão sendo feitas a partir desse endereçamento (Gergen & McNamee, 2000). Para Gergen e McNamee (2000) toda ação que traga uma voz alternativa aumenta o potencial dialógico, aumentando as chances de transformação dos sentidos. Seria a atitude de sair do monólogo com o mundo e incluir novas vozes que possam integrar o repertório de construções dialógicas entre as pessoas. Em suas intervenções, Felipe parece buscar uma maneira alternativa das pessoas significarem a diferença no grupo, que não apenas como algo ruim e "perturbador". Ao fazer isso, ele pode construir outras formas de compreensão dessas diferenças promovendo o movimento de reaproximação entre as pessoas, como acontece na interação entre Magali e Ronaldo no final do recorte da sessão. 351 Segundo Rasera e Japur (2006), o grupo ao colocar as pessoas em conversação possibilita que elas possam perceber que os significados que dão para suas experiências são muito semelhantes, ainda que possuam histórias e vivências distintas. Esse sentido para o grupo como local de aparecimento de diferentes tipos de vida, ainda que existam semelhanças e diferenças entre seus membros, parece ser consoante com o sentido proposto por Felipe, do grupo como espaço de aproximação entre as pessoas para a obtenção de aprendizagem e alívio. Uma vez que as formas utilizadas pelas pessoas para se descreverem limitam suas ações, a mudança de posicionamento pode favorecer o aparecimento de novas interações (Lax, 1998). No grupo essa mudança acontece com a postura ativa tomada por Magali ao buscar no grupo relatos de obtenção de melhoras da doença. Conversar com os outros é, segundo Andersen (1998), uma maneira de se definir e a conversa terapêutica é a busca de novas descrições, entendimentos e sentidos. Essa busca parece ter sido empreendida nesse fragmento da sessão grupal. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS Andersen, T. (1998). Reflexões sobre a reflexão com as famílias (C. O. Dornelles, Trad.). In S. McNamee & K. J. Gergen (Eds.), A terapia como construção social (pp. 6985). Porto Alegre, RS: Artes Médicas. Gergen, K. J. (1994). Realities and relationships: Soundings in social construction. London: Harvard University Press. Gergen, K., & McNamee, S. (2000). From disordering discourse to transformative 352 dialogue. In R. Neimeyer & J. D. Raskin (Eds.), The construction of disorder (pp. 333-349). Washington: American Psychological Association Press. Ibáñez, T. (1994). 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V. & Santos, M. A. (2007). Grupo de familiares de pessoas com transtornos alimentares: um espaço co-construído. Vínculo, 4, 38-47. 354 Candidatura 18 Autores: Ângela Menezes, Débora Cláudio, Nuno Sousa, Rui Tinoco, Margarida Azevedo, Maria Neto & Delfina Nunes Título: Programa de Alimentação Saudável em Saúde Escolar PASSE 355 Ministério da Saúde Departamento de Saúde Pública Dr.ª Ângela Menezes – coordenadora do programa Departamento de Saúde Pública da Administração Regional de Saúde do Norte, I.P. [email protected] Drª Débora Cláudio Departamento de Saúde Pública da Administração Regional de Saúde do Norte, I.P. [email protected] Dr Nuno Sousa Departamento de Saúde Pública da Administração Regional de Saúde do Norte, I.P. [email protected] Dr. Rui Tinoco Departamento de Saúde Pública da Administração Regional de Saúde do Norte, I.P. [email protected] Eng.ª Margarida Azevedo Departamento de Saúde Pública da Administração Regional de Saúde do Norte, I.P. [email protected] Dr.ª Maria Neto Departamento de Saúde Pública da Administração Regional de Saúde do Norte, I.P. [email protected] Dr.ª Delfina Antunes 356 Departamento de Saúde Pública da Administração Regional de Saúde do Norte, I.P. [email protected] Resumo: O PASSE é um programa que operacionaliza o desenvolvimento de projectos no que respeita ao determinante da saúde, alimentação saudável, de acordo com os objectivos do Programa Nacional de Saúde Escolar (PNSE) integrando as dimensões organizacionais, ecológicas, curriculares e comunitárias. As actividades são abordadas de forma integrada, intersectorial e multidisciplinar, sendo a articulação entre a escola e a equipa de saúde escolar indispensável. Após validação das dinâmicas durante o ano lectivo 2007/2008 conta neste ano lectivo com 30 escolas aderentes, 45 Turmas PASSE e 26 equipas de profissionais de saúde PASSE na Região Norte. Introdução: A Organização Mundial de Saúde, no seu documento “Health for all”1, prevê que em 2015, 95% das crianças que frequentam a escola integrem estabelecimentos de ensino promotores de saúde e define que a Escola Promotora de Saúde é aquela que inclui a educação para a saúde no seu curriculum e possui actividades de saúde escolar, assumindo as três vertentes – currículo, ambiente e interacção escola/família/meio. A par do trabalho de transmissão de conhecimentos organizados em disciplinas, a escola deve educar para os valores, promover a saúde, a formação e a participação cívica dos alunos, num processo de aquisição de competências que sustentem as aprendizagens ao longo da vida e promovam a autonomia. 357 Neste âmbito foi assinado em Portugal a 7 Fevereiro de 2006 um protocolo entre os Ministérios da Educação e da Saúde, em que ambas as partes assumem responsabilidades conjuntas no desenvolvimento de projectos de promoção da saúde em meio escolar. O PASSE é um programa específico que pretende operacionalizar, de forma pragmática, o desenvolvimento de projectos no que respeita ao determinante da saúde, alimentação saudável, de acordo com os objectivos do Programa Nacional de Saúde Escolar (PNSE), com actividades abordadas de forma integrada, intersectorial e multidisciplinar. Fundamentação do Programa de Alimentação Saudável em Saúde Escolar - PASSE: Fruta e vegetais Segundo o estudo da OMS “Health Behaviour in School-Aged Children”2 e no qual Portugal participou, as crianças e jovens escolarizados consomem diariamente pouca fruta e vegetais (18 a 36%), havendo uma percentagem significativa que consome diariamente doces (20 a 28%) e refrigerantes (mais de um terço). Também se revelaram percentagens consideráveis relativamente à obesidade e excesso de peso, tendo tais variáveis aumentado mais de 10 % nos últimos 10 anos em Portugal. De acordo com dados da Organização Mundial da Saúde (OMS), o baixo consumo de hortofrutícolas é responsável por cerca de 19% dos cancros gastrointestinais, 31% da doença cardiovascular isquémica e por 11% dos enfartes3. Alimentos ricos em açúcar, gordura e sal As crianças e os jovens encontram-se rodeados de alimentos de elevada densidade energética, ricos em açúcar, sal, gordura, atractivos, apaladados e de longa duração, mas em muitos casos com fraca densidade nutricional. Em muitos países estes produtos são mais baratos e estão 358 disponíveis mais rapidamente do que as opções mais saudáveis, uma realidade que é determinada predominantemente pelas políticas agrícolas, comerciais e alimentares4. O papel da escola O contexto da escola parece ser em simultâneo um factor de risco e um instrumento de apoio para o bem-estar físico, emocional e social. O grupo de pares é visto como um dos mecanismos pelos quais os comportamentos relacionados com a saúde de jovens podem ser influenciados, e é particularmente responsável pelo início e continuação do comportamento de risco. Os adolescentes podem adquirir as competências sociais e de resolução de problemas através da interacção com o grupo de pares. Estas competências têm efeitos na tomada de decisão, no estabelecimento de prioridades, na resistência à pressão do grupo e na liderança. É neste contexto que surge o Programa de Alimentação Saudável em Saúde Escolar (PASSE). Este programa regional tem como base de trabalho as teorias ecológica e da aprendizagem social e pretende: - que a escola ofereça uma alimentação promotora de saúde; -que o curriculum seja adequado à promoção da Alimentação Saudável; - que o curriculum oculto (oferta no bar, cantina, máquinas de venda) seja coerente com o explícito (aulas); -que a comunidade escolar se envolva na melhoria das ofertas alimentares nos espaços periescolares; -que os alunos adquiram competências pessoais de auto-conceito e auto-estima 359 -que os alunos adquiram competências de tomada de decisão, nomeadamente alimentares; - que os alunos desenvolvam atitudes e crenças tendentes a escolhas responsáveis e conscientes; As principais potencialidades do programa são: - constituir-se um modelo estruturado pronto a ser implementado e disponibilizar materiais já preparados e prontos a serem utilizados (evita duplicação de trabalho dos profissionais de saúde); - normalizar procedimentos das equipas dos centros de saúde; - envolver equipas multiprofissionais - permitindo a real participação de diferentes áreas do saber, nos Centros de Saúde; - envolver toda a comunidade escolar (órgão de gestão, professores, professores parceiros, alunos, pais, manipuladores de alimentos ); - aplicar metodologias adaptadas a cada parceiro da comunidade escolar; - possibilitar a adaptação a diferentes níveis de ensino; -constituir um estímulo recíproco (saúde/educação) para a implementação e avaliação contínua do projecto; - permitir agilizar a implementação de programas de promoção da saúde em alimentação; Finalmente, a equipa regional do PASSE pretende contribuir para o desenvolvimento do programa nacional de saúde escolar na região norte, no que concerne ao programa de alimentação saudável através da consultoria na implementação dos modelos do PASSE e da harmonização de procedimentos e boas práticas 360 Dada a sua especificidade, o PASSE inclui documentos para cada uma das áreas, níveis de ensino e dimensões de intervenção na comunidade escolar para a promoção de estilos de vida saudáveis e prevenção de determinados comportamentos de risco nos determinantes da saúde alimentação/actividade física, saúde mental e consumerismo. A dimensão e complexidade deste programa obrigam a que se inicie primeiramente por um dos níveis de ensino. Considerando que o Ministério da Educação está a trabalhar a oferta alimentar nas escolas, o PASSE decidiu conceber em primeiro lugar um programa que promova competências informativas, de atitudes e de tomadas de decisão nos alunos de 1º ciclo do Ensino Básico. Nível do 1º Ciclo - Alunos No que diz respeito ao 1º ciclo, escolheu-se o 3º Ano como “ano motor” que terá como um dos objectivos, que os alunos promovam a disseminação das suas aprendizagens aos restantes anos. Os 1º, 2º e 4º anos verão o seu currículo normal a integrar actividades que amplificam as mensagens do PASSE. O programa de 2º ano contempla as recomendações para uma alimentação saudável, pelo que a oportunidade de consolidar conhecimentos surge no 3º ano, que sendo o ano “motor”, permite a avaliação 12 meses após intervenção, no 4º ano. Objectivos Gerais: Relativos a alunos: • Aquisição de competências pessoais de auto-conceito, auto-estima e de tomada de decisão. 361 • Aumento de intenção de escolhas de consumo de alimentos de acordo com as recomendações alimentares para a população portuguesa, nomeadamente as veiculadas pela Roda dos Alimentos. • Diminuição de intenção de escolhas do consumo de alimentos ricos em açúcar, sal e gorduras, particularmente guloseimas, refrigerantes e salgadinhos. Relativos à oferta alimentar: • Colaborar no aumento de disponibilidade de alimentos e refeições saudáveis em cantinas, bares e máquinas de venda escolares; • Contribuir para o aumento da percentagem de pais/encarregados de educação que preparam merendas saudáveis para os alunos. Actividades: 1ª Fase: Concepção do programa por níveis de ensino e actores: a) Programa para alunos do 1º ciclo - intervenção directa no 3º ano b) Intervenção indirecta, no currículo dos restantes anos c) Manipuladores de alimentos e Serviço de Alimentação Validação interna: a) Discussão crítica com professor do 3º ano do 1º CEB – Setembro de 2007; 362 b) Discussão crítica com psicólogos, nutricionistas e coordenadores de Saúde Escolar de 3 Centros de Saúde + equipa coordenadora do PASSE – DSP – Dezembro / Janeiro de 2008; c) Validação das sessões e materiais a usar com os alunos– Fevereiro a Junho de 2008, incluindo reuniões com os Agrupamentos de Escolas seleccionados, reuniões com os professores das turmas em questão, agendamento das sessões e da aplicação dos questionários para validação. Para a validação interna do nível alunos com as 15 sessões: a) Aplicaram-se os questionários em 11 turmas em 3 momentos diferentes: 1º: pré-teste em Janeiro/Fevereiro de 2008 ( 3 turmas do concelho do Porto) 2º: 4 turmas intervencionadas (teste piloto) e 4 turmas controlo piloto- Fevereiro de 2008 e Junho de 2008 3º : 4 turmas intervencionadas (teste piloto) e 4 turmas controlo – Novembro de 2008 b) Intervenção em sala de aula utilizando o manual com as 15 sessões do PASSE alunos, dinamizadas por equipas de psicólogos e nutricionistas e com a presença crítica do professor da turma teste. 2ª Fase: Reformulação das sessões do programa ao nível de alunos de 1º CEB, de acordo com as conclusões da validação interna. 3ª Fase: Formação das equipas de Saúde Escolar aderentes ao Programa PASSE (nutricionistas, psicólogos e coordenadores de equipas de saúde escolar – de Julho a Novembro de 2008) 4ª Fase: 363 Implementação do PASSE no 1º Ciclo do Ensino Básico no ano lectivo 2008/09 pelas equipas de Saúde Escolar PASSE dos Centros de Saúde aderentes (26 equipas até Dezembro de 2008 que incluem 30 escolas e 45 turmas PASSE). Linhas condutoras da implementação do PASSE: 1- Organizacionais a) criação da equipa local do programa: Equipa de Saúde Escolar, turmas, Professores parceiros, Interlocutores do órgão de gestão e da Associação de Pais; b) integração das actividades do PASSE no projecto educativo da escola para o ano lectivo; c) definição das fases de intervenção do PASSE (implementação, avaliação) e dos papéis e tarefas de cada parceiro; d) definição de um orçamento específico para implementação local do PASSE. 2- Curriculares a) Conteúdos curriculares para cada nível de ensino– áreas em que se inserem, possibilidade do seu desenvolvimento na Formação Cívica, Área Projecto ou Estudo Acompanhado; b) Articulação coerente das actividades entre os diferentes níveis de ensino; c) Articulação das actividades curriculares com actividades extra-curriculares. 3- Ecológicas a) Apoio na oferta de refeições escolares equilibradas e saudáveis ao almoço e lanches; b) Consultoria no cumprimento das regras básicas de confecção e manipulação de alimentos ; 364 c) Consultoria nos objectivos PASSE para gestão, rentabilização e decoração dos espaços de alimentação colectiva . 4- Psicossociais a) Sugestões para envolvimento da comunidade educativa nas actividades do programa; b) Utilização de metodologias activas-participativas; c) Incentivo para o desenvolvimento de um bom relacionamento intra e inter-pessoal; 5- Comunitárias a) Apoio e incentivo ao envolvimento extra-escolar da comunidade educativa 6- Indicadores de saúde positivas a) Avaliação de conhecimentos, atitudes e intenções de comportamento. I. Acções a desenvolver com profissionais de saúde 1. Formação das equipas de profissionais de saúde no Programa PASSE ; 2. Reuniões com Agrupamentos de Centros de Saúde no sentido de se articularem os Técnicos Superiores de Saúde (nutricionistas e psicólogos clínicos) nas Unidades de Recursos Assistenciais Partilhados (URAP) e Unidades de Saúde Pública (USP) dos Agrupamentos de Centros de Saúde. II. Acções a desenvolver com o Órgão de Gestão da Escola: 1. Marketing adequado do PASSE; 2. Avaliar condições higiénicas, estruturais e de funcionamento das áreas de alimentação colectiva; 3. Parecer técnico sobre as ementas e refeições oferecidas na escola; 4. Promoção da venda de alimentos saudáveis a preços reduzidos; 5. Apoio técnico sob forma de parecer, sobre o caderno de encargos de fornecedores alimentares da escola/agrupamento 365 III. Acções a desenvolver com professores parceiros Sugestão de material de apoio para promoção do PASSE integrado no curriculum, aprofundamento de conceitos, quer em alimentação/nutrição, actividade física, quer em psicologia da saúde; IV. Acções a desenvolver com manipuladores de alimentos Sugestão de material de apoio para promoção do PASSE integrado na formação profissional contínua anual e/ou formação específica para aquisição de competências de auto-eficácia na influência positiva aos alunos, de comportamentos responsáveis na área alimentar. V. Acções a desenvolver com pais e encarregados de educação Sugestão de material de apoio para promoção do PASSE para reuniões com pais, associação de pais e encarregados de educação. VI. Acções a desenvolver com comunidade peri-escolar Sugestão de material de apoio para promoção do PASSE na comunidade que envolve a escola e com os seus principais parceiros, nomeadamente autarquia ou Junta de freguesia, fornecedores, empresas privadas incluindo as de transportes e comerciantes. Articulações O PASSE procura articular com parceiros com protocolos com a ARS Norte, IP, como o Ministério da Educação com a DREN, Universidades e outros organismos públicos e privados. Bibliografia: 366 1 World Health Organization Regional Office for Europe. The Health for All policy framework for the WHO European Region: 2005 update. Regional Committee for Europe. Fifty-fifth session (http://www.euro.who.int/Document/RC55/edoc08.pdf, accessed 1 Nov. 2005). 2 Currie C et al., eds. Inequalities in young people's health: HBSC international report from the 2005/2006 Survey. Copenhagen, WHO Regional Office for Europe, 2008 (Health Policy for Children and Adolescents, No. 5) 3.Preventing chronic diseases: a vital investment. Geneva, World Health Organization, 2005. 4. Story, M., Neumark-Sztainer, D., French, AS., Individual and environmental influences on adolescent eating behaviors. Journal of the American Dietetic Association, 2002,102,40-51. ANEXO – índice do Manual PASSE nível alunos 3º ANO: Nível Alunos – 3º Ano 1º CEB Índice Introdução ______________________________________________ 1. - Modelos de Promoção da Saúde ________________________ 2. - Competências básicas do dinamizador __________________ 2.1. – Competências pessoais ____________________________ 2.2. - Trabalho em pequeno e grande grupo ________________ 3. - Contexto de aplicação __________________________________ 367 4. - Estratégias de disseminação ____________________________ 5. – Sinergias curriculares ________________________________ Módulo I Apresentação, constituição do grupo e variáveis genéricas _ Sessão 1 – Jogamos com regras! _________________________ Sessão 2 – Juntos conseguimos! __________________________ Sessão 3 – Somos únicos e insubstituíveis __________________ Sessão 4 – Aprender a admirar ____________________________ Módulo II Jogos de Aprender ________________________________ Sessão 5 - Os alimentos e os cinco sentidos _________________ Sessão 6 – As famílias dos alimentos ______________________ Sessão 7 – Um passeio pelo País dos Alimentos ______________ Sessão 8 – Correntes de energia ____________________ Sessão 9 – Sei fazer substituições! _________________________ Sessão 10 – Tenho olhos mas não consigo ver _______________ Módulo III As escolhas certas _______________________________ Sessão 11 – Decidimos o que comemos? ____________________ Sessão 12 – Os alimentos que vêm ter connosco _____________ Sessão 13 – Às vezes, faço o que não quero ________________ Módulo IV Dinâmicas de finalização e Avaliação do Programa ____ 368 Sessão 14 – Os grupos também têm um fim ________________ Sessão 15 – Agora é comigo _____________________________ 369 Candidatura 19 Autores: José Canesim, Áurea Reis, Fernanda Mishima & Valéria Barbieri Título: A Entrevista Devolutiva Infantil: Utilização de Recursos na Áera da Transicionalidade 370 A Entrevista Devolutiva Infantil: Utilização de Recursos na Área da Transicionalidade José Danilo Chiaratti Canesin – [email protected] Áurea Nascente Junqueira Reis – [email protected] Fernanda Kimie Tavares Mishima – [email protected] Valéria Barbieri – [email protected] Faculdade de Filosofia Ciências e Letras de Ribeirão Preto Universidade de São Paulo Brasil INTRODUÇÃO O atendimento psicoterápico infantil teve início ainda em Freud (1909/1976) com a análise do caso do pequeno Hans, em que ele atuava como supervisor do pai da criança, orientando sua conduta e sua escuta de forma psicanalítica. Segundo o próprio Freud (1909/1976), a psicanálise não seria possível em crianças devido à dificuldade de comunicação verbal no atendimento para a criança e às resistências dos pais. Ocorre que, a partir do caso Hans, outros psicanalistas começaram a trabalhar técnicas para acolhimento deste novo público. O diagnóstico e atendimento psicoterápico infantil devem muito de sua especificidade aos trabalhos de Klein (1932/1997), destacando-se, entre suas contribuições, a indicação da primazia da expressão pré-verbal por parte desta população. A proposta técnica de Klein foi sustentada em desenvolvimentos teóricos relevantes acerca do predomínio do processo primário de funcionamento mental na criança, caracterizado principalmente pelo pensamento por imagens (e conseqüente uso da metáfora), temporalidade, deslocamento e condensação. 371 Klein (1932/1997) entendeu que a criança expressa suas fantasias e desejos, bem como suas experiências reais, por meio de brincadeiras e jogos. A criança usa o pensamento metafórico e simbólico como representação de uma idéia, devido a sua falta de recursos para expressar verbalmente o que é sentido. Este conceito se assemelha à linguagem dos sonhos, sendo que, para analisar estes conteúdos, deve-se usar os mesmos procedimentos da análise dos sonhos propostos por Freud (1899/1976). Além disso, Klein (1932/1997) considerou as fantasias como forma de expressão mental dos instintos, relacionando-os com a realidade externa e vice-versa, que levam a entender o ambiente, e a forma pela qual a criança o internaliza, como fatores importantes no desenvolvimento infantil. A manifestação da fantasia pela compulsão à repetição seria uma condutora da expressão da angústia infantil, mostrada de forma direta ou permeada por mecanismos de defesa a serem nomeados e interpretados. Para Klein (1932/1997), caberia ao analista de crianças, por meio da técnica do brincar, transformar em palavras aquilo que a criança demonstra em gestos, conseqüentemente, isso a ajudaria no processo de simbolização. Dessa forma, com raras exceções, na prática kleiniana tradicional, o emprego de formas consideradas como mais arcaicas de expressão por parte da criança não é acompanhada por interpretações do profissional neste mesmo nível, que permanece predominantemente verbal e mais sofisticado em termos da evolução afetiva. Assim, o psicólogo acaba se distanciando de seu paciente. Nesse sentido, estudos posteriores de winnicott (1971/1975) ampliaram a compreensão das funções do brincar, que, além de forma de expressão, adquiriu também o sentido de atividade fundamental, promotora do desenvolvimento afetivo. A brincadeira infantil passou a ser considerada uma expressão de impulsos agressivos 372 em um ambiente protegido, sem a possibilidade de retaliação, sendo o meio ambiente favorável aquele que acolhe este brincar e o aceita. Também em winnicott (1971/1995), o brincar assume a forma de objeto de estudo, e não apenas uma forma de comunicação. Para atingir a experiência da brincadeira é preciso que a criança tenha passado pela experiência da ilusão/desilusão, que só é possível com a participação da mãe (winnicott, 1971/1975). Esta participação advém da identificação da mãe com seu bebê, ao acolher as necessidades deste e possibilitar que ele tenha a idéia de que pode criar e controlar o meio (em um estágio denominado de dependência absoluta). Esta adaptação da mãe às necessidades do bebê torna-se cada vez menos precisa com o passar do tempo, ou seja, a mãe comete falhas graduais que permitem ao bebê ter frustrações e, assim, lidar com elas, em um processo conhecido por desilusão. Posteriormente, o bebê percebe que nem tudo aquilo que ele deseja ele pode ter, havendo uma diferenciação entre seu mundo interno e o mundo externo, fazendo com que o bebê passe de criador do espaço a usuário deste. O processo de desilusão proporciona ao bebê reconhecer o elemento ilusório, e, diferenciá-lo dos objetos reais. Durante a diferenciação entre o eu e o não-eu, em que a criança começa a discriminar a realidade interna da realidade externa, cria-se um estado de tensão, que é aliviado pelo surgimento de um espaço transicional que permite o trânsito entre eles. É neste espaço que se inserem o brincar da criança, a arte, a religião e a imaginação. Na vivência da transicionalidade, há o uso do objeto transicional, que representa tanto o mundo interno quanto o mundo externo para o bebê, ou seja, é representante do mundo conhecido (fusão com a mãe) com o desconhecido (mundo separado). É este objeto o responsável pela integração sujeito-objeto e promotor do aparecimento dos símbolos. O 373 objeto transicional é assumido pelo bebê como algo que pode ser amado, acariciado e também odiado, mutilado, e que sobrevive a todo tipo de sentimento, é parte de si e, ao mesmo tempo, é do mundo exterior (Winnicott, 1971/1975). Nesta fronteira entre a fantasia e a realidade situa-se o brincar, localizado em um espaço entre o não-eu e a subjetividade que Winnicott (1971/1975) chamou de espaço potencial. A partir desta experiência o bebê tolera a ausência da mãe, substituindo-a por algo da realidade. Esta experiência não desaparece por completo na idade adulta. Diferentemente da proposta kleiniana, em que o psicólogo interpretava o brincar da criança de forma verbal, a proposta winnicottiana das consultas terapêuticas com o uso do jogo dos rabiscos estabelece um nível mais simétrico de comunicação entre o psicólogo e o paciente, uma vez que sua ênfase não é tanto tornar consciente o inconsciente, mas sim promover uma movimentação psíquica, capaz de proporcionar ao indivíduo a retomada de seu desenvolvimento (Winnicott, 1971/1984). Além do jogo dos rabiscos, outros procedimentos são capazes de promover o surgimento do espaço e dos fenômenos transicionais, sendo o uso de estórias um dos mais conhecidos. Para Safra (1984), o processo de identificação materna primária é necessário à relação mãe – bebê, para que possa ocorrer a incorporação do id pelo ego, integrando-o ao processo secundário. Por meio do processo de introjeção a criança chega à independência, após passar pelo estágio de dependência absoluta e relativa em relação à mãe. Há a idéia da tendência natural da criança ao desenvolvimento, sendo que as dificuldades de elaboração de conflitos psíquicos acarretariam a formação do sintoma. A representação do sintoma, na criança, se dá por vias lingüísticas ou plásticas, e a transformação da angústia em pensamento é mais eficiente quando realizada em um espaço transicional. Dentro do ambiente terapêutico há um período de hesitação, em que a criança 374 experimenta o ambiente, e é neste ponto que se insere a estória. Com ela, apresenta-se à criança algumas idéias sobre o seu conflito e a resolução deles, causando uma identificação e, ao mesmo tempo, dando a ela recursos para expressão de suas angústias, sem que haja a invasão da interpretação, que poderia resultar em uma reação improdutiva. O uso da estória produz um vínculo com o psicólogo que segue por muito tempo, fenômeno que Safra considera possível graças ao fato de a estória atuar no espaço transicional. São experiências que enriquecem o self, pois proporcionam a criança a se conhecer e elaborar suas angustias de forma criativa. Nessa mesma direção, Hisada (1998) faz uso das estórias também com adultos. Segundo ela, quando o conteúdo é muito intenso as angústias ficam mais próximas do préverbal, por pertencerem a um nível mais inconsciente e primitivo, o que impossibilita o paciente de representar o sintoma através de códigos lingüísticos. Hisada considera o uso e a elaboração da estória um processo criativo, como o que é usado por poetas, pintores e no teatro, capaz de liberar conteúdos internos e de ajudar a promover a integração do self possibilitando ao paciente expressar-se. Embora seja bastante difundido o uso que o profissional pode fazer das estórias elaboradas por seu paciente como um método que informa sobre os processos inconscientes deste último (fantasias, angústias e defesas), há raros estudos científicos sistematizados referentes ao uso que o psicólogo pode fazer desses instrumentos mediadores de sua comunicação com o paciente. Nesse contexto, fazer uso das estórias como um meio de transmissão de seus assinalamentos e interpretações do material produzido pela criança, pode possibilitar a inserção da sua comunicação no âmbito do espaço transicional, tornando-a mais compatível com as capacidades de apreensão do seu pequeno paciente, ou seja, próxima do processo primário de pensamento. 375 Diante dessas considerações, o presente estudo tem como objetivo apresentar as possibilidades do uso de estórias na realização de entrevistas devolutivas com crianças submetidas a um processo de triagem para atendimento psicológico. Para tanto, é apresentado o estudo de caso de uma criança adotada de seis anos de idade, do sexo feminino, que foi atendida no Setor de Triagem e Atendimento Infantil e Familiar (STAIF) do Centro de Pesquisa e Psicologia Aplicada – CPA, da Faculdade de Filosofia Ciências e Letras de Ribeirão Preto (FFCLRP-USP). No momento da devolutiva o procedimento usado foi a intermediação por meio de estórias, debatendo-se ao final suas contribuições e limites. DESCRIÇÃO DO CASO Entrevista inicial com a mãe A mãe, Eunice22, tem 53 anos, está divorciada a um ano, e mora sozinha com seus dois filhos adotivos, um menino, que será chamado de Júlio, adotado recém nascido, e uma menina que será chamada de Mariana, adotada com um ano e nove meses, ambos com 6 anos de idade. Eunice é a segunda filha de três irmãos, e diz que em sua família de origem havia muitos conflitos entre os membros, o que a fez pensar que não iria constituir uma família própria para não repetir a mesma história. Casou-se e não quis ter filhos. Ela contou que quando estava com 45 anos de idade, e sete anos de casada, assistiu a uma cerimônia de casamento e sentiu que a maternidade havia “amadurecido” nela (sic). Então, foi procurar, na Medicina Reprodutiva, uma maneira de ter filhos, devido à sua idade já avançada para uma gravidez natural. Ela expressou este desejo a seu marido, mas ele não esboçou nenhuma reação, segundo seu relato. Mesmo assim, ela fez os exames médicos e, no mês em que 22 Estes nomes são fictícios, a fim de preservar a identidade dos participantes. 376 começaria um tratamento hormonal, o marido disse-lhe que não queria filhos. Ela então resolveu adiar o tratamento, mas não desistiu dele. Alguns dias depois, ficou sabendo de uma jovem, grávida de sete meses e que não queria o filho. Conseguiu contato com ela e resolveu adotar esta criança, porém, não avisou ninguém desse projeto. Quando Júlio nasceu, ela o levou para casa e disse para o marido: “agora você escolhe se vai ser papai ou titio” (sic). Depois de um ano e nove meses com o menino, ela sentiu vontade de adotar outra criança. Quando o juiz determinou a disponibilidade de Mariana para adoção, Eunice, na fila de espera, era a quinta interessada, mas como nenhum dos outros quatro casais foi encontrado, ela conseguiu adotar a menina. Eunice disse o que a assistente social sabia sobre os primeiros meses de vida de Mariana. Contou que a mãe biológica não a queria e deixou o bebê no asfalto para morrer. Depois, o Conselho Tutelar determinou que a guarda da menina ficaria para o avô materno, que neste momento estava casado com uma mulher de 20 anos de idade, com três filhos pequenos e grávida do quarto filho. Mariana vivia abandonada, sendo que a sua avó/madrasta cuidava somente dos próprios filhos. E. disse que Mariana comia só o que sobrava das outras crianças, acostumando-se a pegar o que caía no chão, hábito que até hoje a menina tem, e que a mãe adotiva tenta eliminar. Mariana ficou com o avô até o processo de adoção ser concluído. A mãe adotiva disse que se apaixonou pela menina quando a viu. Com 1 ano e 9 meses de idade, ela media 75 centímetros e pesava 7 quilos. Estava subnutrida e suja. Somente a vacinação estava correta, pois a cada vacina, a família ganhava um litro de leite do Centro de Saúde. Mariana já andava e falava algumas coisas como “mamã” e “papá”. A chegada na nova casa foi de difícil adaptação. A menina só parava de chorar se estivesse no colo da mãe adotiva e se esta ficasse de pé. A criança estava acostumada a dormir no chão, por isso não conseguia dormir na cama. A mãe 377 adotiva pegou um colchão fino e dormia com a menina para ela ir aos poucos se acostumando à nova situação. Até os cinco anos, as duas crianças dormiam com a mãe. Foram para um quarto separado no ano do divórcio dos pais adotivos. Segundo o relato da mãe, Júlio é maior que as crianças de sua idade, tem alergia e é muito dependente para tudo. Eunice acha que ele sente medo de perdê-la. A menina já é muito independente. Faz tudo sozinha, se veste e tem opiniões próprias. É muito exigente e insatisfeita. A mãe disse que achava isso normal, porém a pediatra das crianças disse que não era o caso. O relacionamento entre os irmãos foi referido como bom, embora eles não brinquem juntos, principalmente se há outra criança envolvida. Nestes casos, Mariana não deixa seu irmão participar da brincadeira, ou não brinca. Na escola acontece o mesmo. Mariana quer tudo o que o irmão tem, tudo que ele vai fazer ela também quer para si. A queixa de Eunice é referente à exigência da filha. Diz que a menina tudo quer, e se não tem tudo que deseja na hora, chora. Seu choro dura muito tempo, em torno de uma hora. A mãe vai conversar com ela e a menina diz que não consegue parar de chorar. Durante seu choro, fala que a mãe não a ama. A mãe, ao revelar sua vida infantil, mostra um ambiente falho em termos de sua família de origem, que deixou marcas no modo como ocorreu seu desenvolvimento psíquico, mostrado de forma clara por sua necessidade de manipulação do meio. Busca reparar suas feridas narcisícas advindas da pouca continência afetiva que recebeu dos próprios pais e do atendimento insuficiente das necessidades infantis adotando uma postura de “salvadora”, o que reflete um ideal de ego bastante exigente com o qual tenta se identificar, o que leva a instauração de uma personalidade do tipo falso-self ou “como se”. Deste modo, a maternidade chega para esta mãe como uma possibilidade de salvamento, sendo a filha adotiva um meio para satisfazer sua necessidade de assegurar-se da 378 própria bondade e atingir assim as demandas do ideal de ego. Dentre estas, encontra-se a de que ser uma boa mãe implica em tudo fazer pelo filho, o que leva a manter com eles um relacionamento fusional que, embora adequado no inicio de suas vidas, permanece ao longo do desenvolvimento deles, comprometendo o alcance da independência. Deste modo, a mãe encontra-se paralisada e sem recursos para sair deste processo, impedindo seus filhos de diferenciar-se dela. Descrição da Sessão Lúdica Inicialmente, Mariana estava tímida. Logo que viu a caixa lúdica, perguntou o que era. O psicólogo explicou que era uma caixa de brinquedos e que ela poderia ver as coisas que tinham lá dentro. Então, ela abriu a caixa e começou a explorar os brinquedos. A caixa foi colocada no chão pelo psicólogo, pois assim ficava mais fácil para ela ver. Então foi tirando uns brinquedos. Viu o quebra-cabeça e disse que iria brincar com ele depois. Achou o telefone celular e ficou bastante tempo apertando os números e ouvindo os barulhos, enquanto olhava a caixa. Pegou a família e olhou. Perguntou-me quem era uma das figuras, e o psicólogo disse que achava que era a bisavó. Ela então pôs em cima da mesa e voltou para a caixa. Continuou a mexer na caixa e achou a espada. Ao pegar a espada, esticou-a até o limite, forçando um pouco. Levantou com a espada na mão e pôs na mesa. Voltou para a caixa. Pegou o revolver e apontou para o psicólogo. Disse: “mãos ao alto”. Ele levantou as mãos. Então ela pôs o revólver de volta na caixa e pegou a espada. Esticou-a de novo e apontou para rosto do psicólogo, com um sorriso, e então deu uma espadada no braço dele, que logo respondeu: “Você me bateu. Mas eu ainda estou aqui”. Pegou o jogo de palitos e disse que queria jogar. Soltava muito forte, as peças, sendo que elas ficavam espalhadas pela mesa. Disse que era ela quem começaria. Explicou ao psicólogo que não podia mexer os outros palitos. Jogaram duas partidas em que ela disse que começaria e que ela ganhou, mostrando muito prazer com isso. Ela mexia alguns palitos e 379 quando era questionada, mentiu que não mexeu. Então, voltou para a caixa. Separou o quebra cabeça e disse que jogaria depois. Levantou-se e foi para a lousa, e escreveu o nome do psicólogo. Depois apagou e escreveu o nome da escola. Ela se sentou e pegou o quebra cabeça, começou a montar com ajuda do psicólogo. Ela pediu para ele separar as peças que estavam coladas. Enquanto ele fazia isso, ela foi virando as peças. Quando o psicólogo terminou, começaram a montar. Ela juntou duas peças e continuava procurando quando o psicólogo perguntou se ela sabia o porquê de estar ali. Ela disse que não sabia. Desistiu do quebra-cabeça e voltou para a caixa. Interessou-se pela tesoura e pela cola. Então disse que queria desenhar. Pegou o papel e o lápis de cor. Pegou o guache também. O psicólogo foi até a pia com a vasilha e pôs água. Ela se sentou e começou a desenhar com a tinta, perguntando se ele sabia o que ela estava fazendo. Ele disse que não sabia. Ela pediu que ele esperasse ficar pronto. Ela desenhou uma flor. Depois pegou outra folha e começou a desenhar com o lápis de cor. Fez uma cabeça e depois o corpo de uma menina. Começou a fazer os braços. Quando chegava à mão, rabiscava uma bola olhando para o psicólogo. Fez isso nos dois braços e então disse que não queria mais desenhar. Voltou para a caixa e pegou o jogo “Resta Um”. Colocando o mico na mesa dizendo que era para depois. O psicólogo pegou o jogo que estava em um saco plástico e ia tentando tirar o nó quando ela disse que o tiraria e arrancou o saco da mão dele, como não conseguiu desatar o nó, devolveu o saco plástico para o psicólogo. Quando ele estava quase desamarrando, ela quis tomar dele novamente, mas ele disse que já havia soltado. O psicólogo colocou o jogo na mesa e perguntou se ela sabia jogar. Não teve resposta. A menina pôs uma peça no tabuleiro e disse que era vez dele. Ele colocou uma peça e então ela separou algumas peças e pegou as outras. Quando as dele acabaram, ela o deu um pouco das suas até que completaram o tabuleiro. 380 Disse que não queira mais brincar disso e o mandou guardar as peças. Depois de guardadas, falou que queria brincar de mico. O psicólogo pegou o baralho e disse que ia ver as regras, mas ela quis ver também. Pegou o baralho e distribuiu na mesa. Jogaram o jogo da memória. Quando estava no fim, restando somente um par e o mico e era a vez dela, ela virou uma carta, era o mico, desvirou em seguida e pegou o par. Aí contou quantos tinha. O psicólogo perguntou quem ganhou, e ela contou os dele e disse que ele tinha ganhado, mas mais do que depressa pôs as cartas novamente na mesa e disse para ele começar. Desta vez, ela ganhou. Durante este jogo o psicólogo assinalou o fim da sessão. Ela disse, então, que queria fazer outra coisa. Pegou um papel, a cola e a tesoura. Começou a jogar cola no papel, e espalhar com o pincel. Jogou cola em toda folha. O psicólogo disse que havia terminado o tempo, mas ela fez que nem ouviu. Continuou a jogar cola. Ele disse novamente que havia acabado o tempo e ela perguntou por que. Ele disse que era este o tempo que a eles tinham para brincar e falou que da próxima vez iria chamar o seu irmão e a mãe para brincar também. Ela se levantou e eles saíram da sala. Análise Geral do Caso A sessão lúdica indicou um desenvolvimento motor e intelectual normal, de acordo com a idade. Porém, suas escolhas de brinquedos sugeriram uma ansiedade quanto à família atual e a de origem. Como já estudado, na primeira infância, o bebe precisa se sentir cuidado, isto vai determinar o processo de ilusão de onipotência, desilusão e criação do principio de realidade. O estudo do caso mostra uma falha desse processo, que pode ter impedido a essa criança a 381 diferenciação entre necessidade e desejo. Esta indiferenciação faz com que tudo o que não é satisfeito se torne ameaçador ocasionando uma intolerância à frustração. Diante da dificuldade da mãe de suportar os gritos e exigências da filha, os desejos são totalmente satisfeitos, e o ambiente fica altamente sedutor, o que não permite a filha lidar de modo criativo com suas frustrações, buscando saciar-se de forma imediata e concreta. O pensamento mágico, segundo Winnicott (1979/1983), faz com que o objeto se comporte segundo leis mágicas, existindo quando é pensado, aproximando quando aproximado, machucando quando é machucado e desaparecendo quando não é mais desejado. Esta situação acarretava grande sofrimento, pois a mãe, ao realizar todos os desejos da filha, assumia uma postura de sedução, satisfazendo o id, mas comprometendo o desenvolvimento do self. Ainda tentando proporcionar satisfação completa, incrementava a angústia da criança, já que a gratificação total gerava um sentimento de não mais necessitar do objeto, e, portanto, aniquilá-lo. A dificuldade da mãe de passar do processo fusional, conferindo a filha uma personalidade própria, faz com ela busque na figura do analista alguém que consiga fazer o papel de figura paterna, e a ajude a sair de um vinculo simbiótico com a mãe. . Assim, a estória composta para a entrevista devolutiva com a criança levou estes pontos em consideração. Descrição da estória Catarina e o Rouxinol Era uma vez uma linda princesa chamada Catarina. Ela morava em um lindo castelo cor de rosa cheio de torres e bandeirinhas, que tinha um grande e bonito jardim com as mais diversas flores e arbustos. O castelo ficava perto de um bosque e de um lago azul. Neste 382 castelo moravam, além da princesa Catarina, a rainha e o príncipe-irmão. O rei também morava no castelo, mas como o reino era muito grande, ele tinha que viajar muito a negócios, então ficava pouco tempo no castelo. Embora brincasse com o príncipe-irmão e passasse muito tempo com a rainha, a princesa Catarina se sentia sozinha. Por isso, a rainha resolveu dar um pássaro para ela. Era um lindo rouxinol, com penas verdes muito brilhantes e um bico amarelo. Ele tinha um canto maravilhoso, sabia muitas músicas. Ele sabia muitas histórias também, pois havia vindo de terras muito distantes. A princesa ficou emocionada com o presente. Comprou para ele uma gaiola de ouro, com um bebedouro de cristal e um prato de ouro branco onde era servido o melhor alpiste. Todos os dias a princesa conversava com seu rouxinol, passando horas ouvindo suas histórias e suas músicas alegres. O tempo foi passando e eles foram ficando cada vez mais amigos. Um dia, a princesa começou a notar que o rouxinol estava triste. Ele ficou cada vez menos falante e as músicas que cantava não era mais tão alegre. As penas foram perdendo o brilho pouco a pouco, até que um dia ele ficou muito doente. A princesa ficou muito preocupada e chamou o veterinário do reino. Após examinar o rouxinol, ele se aproximou da princesa e disse: -Seu rouxinol está muito doente, e comprimidos e injeções não vão ajudá-lo. O que ele precisa é de ar fresco e liberdade para voar para o mundo, sem ter hora para voltar. Somente assim ele ficará curado. A princesa ouviu atentamente o veterinário e falou inconformada: 383 - Como assim, doutor? Eu dei tudo o que ele precisava, a comida mais cara, a gaiola mais bonita e ele fica doente?! Precisa ir embora? De jeito nenhum! Doutor dê outro jeito! - Esse é o único remédio que adiantaria. Se ele não tiver liberdade, vai piorar e morrer. – respondeu o veterinário. A princesa, ainda inconformada, mandou o veterinário embora. Pegou o rouxinol e o levou para seu quarto. Quando lá chegou, pediu para o pássaro contar uma história e ele estava tão fraco que não conseguiu. Sentindo tristeza e raiva, a princesa disse: - Você não gosta mais de mim! - Eu gosto muito de você – respondeu o rouxinol - mas estou triste e fraco e não consigo mais contar histórias. Já contei todas que sabia e que aprendi na minha vida. O resto da minha vida passei aqui com você, dentro desta gaiola. A princesa ouviu o pássaro e ficou muito triste. Passaram-se três dias e o rouxinol piorou. No quarto dia, a princesa percebeu que o veterinário tinha razão. Foi até o rouxinol e disse: - Eu não queria que você fosse embora, porque eu gosto muito de você, mas se for para você ser mais feliz, pode ir. O pássaro olhou para ela agradecido e lhe disse: - Eu também gosto muito de você! Você é a melhor dona que já tive. Vou sentir muito a sua falta. Mas prometo que voltarei sempre para a visitar. A princesa pegou o rouxinol e deu-lhe um beijo afetuoso. Levou-o até os jardins do castelo e o libertou. 384 O rouxinol levantou vôo, olhou para trás e depois seguiu em frente. A princesa caiu em prantos. Ficou muito triste e chorou muito por vários dias. Um dia, caminhando pelo belíssimo jardim do castelo, a princesa Catarina encontrou um pequeno pardal caído no chão, com sua asa quebrada. Ela pegou o pássaro e o levou para o castelo. Lá ela cuidou do pássaro até que ele pode voltar a voar. Em outro dia, encontrou outro pássaro machucado, um bonito bem-te-vi. Ela cuidou dele também. Então, enquanto cuidava do bem-te-vi, percebeu que havia vários pássaros que precisavam de ajuda. Pensou em uma maneira de ajudá-los. Pediu para a rainha montar um grande criadouro, e chamou de volta o veterinário, que ficou muito feliz em poder voltar a trabalhar. Neste criadouro, a porta ficava aberta. Os pássaros vinham quando precisavam e iam embora quando estavam fortes. A princesa ficou muito ocupada com este novo trabalho e, embora ainda triste por causa da partida de seu rouxinol, ela se consolava cuidando de outros pássaros. Um belo dia, quando estava no criadouro fazendo curativos em um beija-flor, ela ouviu um canto muito bonito e diferente. Sabia quem era. Era seu rouxinol. - Ele voltou! – exclamou ela muito feliz e emocionada. O rouxinol voou em sua direção, pousou em seu ombro e disse: - Olá princesa Catarina. Estou de passagem pelo reino e vim vê-la. Estava com muita saudade de você. Tenho lindas histórias para contar, sobre os lugares que visitei. Mas vi que as coisas aqui estão diferentes. - Também tenho histórias para contar. Por sua causa, agora cuido de outros pássaros que precisam. - disse a princesa. E então contou a história de seu trabalho e do criadouro, 385 contou sobre todos os pássaros que ela havia ajudado e como estes ficavam agradecidos pela ajuda. O rouxinol ouviu emocionado e disse: - Estou vendo que fará muito pelo seu povo! Naquela noite, o rouxinol contou várias histórias e músicas novas para a princesa Catarina e os pássaros que lá estavam. Todos se divertiram muito. Três dias depois, ele disse que tinha que partir, mas voltaria a vê-la com mais histórias para contar. A princesa e o rouxinol perceberam que apesar de estarem afastados, gostavam ainda mais um do outro. Perceberam assim, que não precisavam ter tudo o que queriam na hora que queriam, mas que o mais importante era o afeto que tinham um pelo outro. Eles se despediram e o rouxinol voltou várias vezes. A princesa cresceu e fez um lindo trabalho pelo seu povo, cuidando daqueles que precisavam dela e ensinando tudo que aprendera com o rouxinol. E, por onde passava, o rouxinol contava a história de um reino em que havia uma linda e generosa princesa que ele conhecia, chamada Catarina. Fim. SESSÃO DEVOLUTIVA A mãe adotiva, Eunice, procurou o serviço por indicação de um pediatra. O processo de triagem constou de uma entrevista inicial com a mãe (anamnese), uma sessão com a técnica projetiva da hora de jogo com a criança (sessão lúdica) e uma entrevista familiar, em que compareceram, a mãe, a criança e seu irmão, também de 6 anos de idade, adotivo (as 386 duas crianças não tinham os mesmos pais biológicos). Após as três sessões, foi agendada a entrevista devolutiva com a mãe e com a criança. Como forma de comunicar, na entrevista devolutiva, os conflitos latentes da criança, expressos durante a triagem recorreu-se ao uso de uma estória. Nesse trabalho serão descritas somente a entrevista com a mãe, a sessão lúdica e a entrevista devolutiva realizada com a criança. A sessão devolutiva começou com o conto da estória. Mariana prestou atenção à estória toda. Após o termino da mesma, foi à caixa lúdica e começou a tirar os brinquedos de dentro, avisando para o psicólogo que ele teria que arrumar tudo. Pegou o revolver e em seguida a espada, ameaçando-o. Depois foi à mesa com trabalhos feitos na sessão familiar que estavam na caixa. Sua brincadeira era com fita adesiva, estava tentando colar a folha na mesa. Enquanto isso, ela foi avisada que ao termino da sessão, o psicólogo falaria com sua mãe. A menina disse que não deixaria os dois conversarem sozinhos. Disse que estaria junto. Ao ser perguntada pelo psicólogo se ela estava com medo de que a sua mãe fosse tirada dela, ela disse que sim. Ao final, brincava com uma cola, tentando colar um círculo recortado de papel em cima de um desenho de um quadrado que havia feito. Estava usando mais cola do que o necessário. Ela abriu o pote de cola, pois disse que queria mais, e pegou a tesoura para ajudála. Ao sair, havia concordado em esperar na sala de espera a conversa do psicólogo com sua mãe. Porém, no decorrer da devolutiva com a mãe, Mariana interrompe, entrando na sala e entregando para a mãe a estória que havia ganhado do psicólogo. Entrega para a mãe e sai. CONCLUSÃO Para que haja um desenvolvimento saudável da criança, é necessário que, ao lado dela, esteja uma mãe que se identifique com ela e faça com que ela se sinta onipotente. A mãe 387 deverá ser capaz de regredir a estágios muito primários de sua evolução afetiva para que seu ego já estruturado seja um complemento do ego infantil, ainda muito precário. A partir daí a mãe começa um processo de retorno ao real, que induzirá o bebe, a partir de falhas maternas, a ter uma compreensão de meio interno diferente um meio externo, promovendo uma integração. Este processo dá a criança, ainda muito pequena, capacidade de tolerar suas pulsões e ter uma personalidade própria. A introjeção da figura materna, como ser que apóia o ego, torna possível o desenvolvimento harmonioso da criança, e dá a ela suas primeiras noções de independência. Começa aí a diferenciação entre o que é necessidade do que é desejo. Qualquer ruptura neste processo de diferenciação mãe/filho pode trazer conseqüências ao desenvolvimento emocional infantil, impedindo o amadurecimento emocional e a total integração da criança, caracterizando o surgimento de um sintoma. Como a criança ainda não possui recursos psíquicos para falar de suas angustias, cabe ao analista entrar no universo infantil, e trabalhar com os recursos apresentados por seu pequeno paciente, e promover uma elaboração das angustias presentes no contexto da análise. Esta entrada se dá pelo espaço transicional, um lugar entre a fantasia e realidade, e tem como função reestruturar a aptidão criativa da criança, recuperando sua capacidade natural para o desenvolvimento. A estória usada foi baseada em um livro do escritor e psicanalista Rubem Alves, e foi escolhida por ilustrar bem as angustias apresentadas pela criança durante a sessão lúdica. Segundo Safra (1984), há, no contato psicoterápico com crianças, um período de adaptação da criança ao meio terapêutico. É um tempo, que vem antes da comunicação, de observação do meio, em que ela passa por um período de hesitação até se sentir segura para 388 se aproximar da figura do psicólogo. É neste período que emerge a ilusão e a possibilidade do espaço transicional. É onde as estórias atuam, respeitando o tempo e o espaço da criança, além de recriar o espaço transicional a cada vez que a estória é recontada pelos seus pais. O uso das estórias com papel terapêutico foi pensado a fim de apresentar a criança os seus conflitos, trabalhando no campo da ilusão, permitindo à criança aceitar a estória, ou partes dela, como pertencente a sua realidade psíquica sem que haja necessidade de interpretação o que, por inflar o ego, poderia prejudicar sua espontaneidade, e colocar em risco a possibilidade de integração dos seus processos primários e secundários. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS Freud, S. (1976). O Pequeno Hans. In Obras psicológicas completas de Sigmund Freud. Edição standard brasileira. (vol. 10). Rio de Janeiro: Imago. (Trabalho original publicado em 1909). HISADA, S. A Utilização de Histórias no Processo Psicoterápico Uma Proposta Winnicottiana. Rio de Janeiro: Ed. Revinter, 1998. KLEIN, M. Psicanálise da criança. Rio de Janeiro: Imago, 1997. SAFRA, G. Um método de consulta terapêutica através do uso de estórias infantis. Dissertação de mestrado, USP, 1984 WINNICOTT, D. W. O brincar e a realidade. Rio de Janeiro: Imago, 1975. WINNICOTT, D. W. O ambiente e os processos de maturação. Porto Alegre: Ed. Artes Médicas, 1982. 389 WINNICOTT, D. W. Consultas terapêuticas em Psiquiatria Infantil. Rio de Janeiro: Imago, 1984. 390 Candidatura 20 Autores: Rodrigo Peres & Manoel Santos Título: Funcionamento defensivo em mulheres acometidas por câncer de mama: especificidades de pacientes em remissão e pacientes em recidiva 391 FUNCIONAMENTO DEFENSIVO EM MULHERES ACOMETIDAS POR CÂNCER DE MAMA: ESPECIFICIDADES DE PACIENTES EM REMISSÃO E PACIENTES EM RECIDIVA23 Rodrigo S. Peres e Manoel A. Santos [email protected] e [email protected] Universidade Federal de Uberlândia e Universidade de São Paulo Resumo: Diversos autores sugerem que a personalidade de mulheres acometidas por câncer de mama é capaz de influenciar o curso da doença, mas poucos contemplam diretamente essa questão. Dessa maneira, uma pesquisa foi realizada visando a comparar aspectos dinâmicos e estruturais de personalidade em pacientes com evolução clínica distinta. O presente estudo é um recorte da referida pesquisa e aborda especificamente a identificação dos mecanismos de defesa prevalentes em mulheres em remissão e mulheres em recaída. Tal recorte justifica-se porque o funcionamento defensivo se destaca como uma das principais facetas da personalidade. O instrumento utilizado na coleta de dados foi o Teste de Apercepção Temática. A avaliação dos resultados foi realizada por juízes especializados, os quais utilizaram um protocolo constituído por diversos indicadores. Observou-se que as pacientes em remissão tendem a um funcionamento defensivo mais apropriado do que as pacientes em recidiva. Afinal, as primeiras se caracterizaram pela utilização contextualizada da intelectualização e da racionalização, ao passo que as segundas demonstraram uma marcante propensão à negação, à denegação e à anulação retroativa. Tais resultados fornecem elementos para uma compreensão inicial de certos processos por meio dos quais a personalidade das pacientes pode influenciar o curso do câncer de mama. 23 O presente estudo contou com subsídios da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES). 392 393 Introdução O câncer de mama incide sobre o principal símbolo corpóreo da feminilidade, da sensualidade e da maternidade, de modo que compromete não apenas a condição física da paciente, mas também sua saúde mental (Venâncio, 2004). Assim sendo, seu diagnóstico e tratamento representam um importante trauma psíquico na maioria dos casos e, conseqüentemente, implicam na elaboração da perda da vida “normal” anterior à enfermidade e na redefinição de metas, sonhos e projetos. Por essa razão, o câncer de mama se destaca como a doença mais temida pela população feminina (Massie & Holland, 1991). Além disso, trata-se, nos dias de hoje, do tipo de neoplasia maligna mais comum na população feminina de dezenas de países, constituindo, portanto, um importante problema de saúde pública no mundo todo (Brasil, 2007). Nas duas últimas décadas, inúmeras pesquisas voltadas aos aspectos psicológicos do câncer de mama têm sido desenvolvidas. A maior parte delas contempla o impacto emocional do diagnóstico e do tratamento. A assistência psicológica a mulheres acometidas pela doença igualmente se destaca como um assunto recorrente na literatura especializada. Ademais, os fatores emocionais associados à gênese da enfermidade em questão também foram explorados por diversos estudos. Todavia, novas pesquisas se fazem necessárias para que venham a ser esclarecidas certas questões para as quais, no atual estágio do conhecimento, ainda não existem respostas satisfatórias. Como mencionam Peres e Santos (2008), pouco se sabe, por exemplo, sobre a influência de variáveis psicológicas no curso do câncer de mama. Tjemsland et al (1997) reportaram que pacientes que demonstram sintomas clinicamente significativos de distress, referem pensamentos intrusivos relacionados à doença e utilizam estratégias de enfrentamento centradas na emoção quando do diagnóstico freqüentemente apresentam níveis reduzidos de linfócitos B e células T4 após terem sido submetidas à cirurgia. Já Walker et al (1999) verificaram que pacientes que preenchem os 394 critérios para transtornos do humor após receberem a confirmação do câncer de mama tendem a responder de forma desfavorável à quimioterapia em termos anatômicos e histológicos, apresentando manutenção do tamanho do tumor e mudanças inexpressivas na distribuição das células carcinomatosas. Além disso, Lilja et al (2003) observaram que pacientes que, a despeito de inicialmente reagirem com desesperança ao diagnóstico, adotam, ao longo do tratamento, estratégias de enfrentamento centradas no problema e se mostram capazes de manejar satisfatoriamente a ansiedade provocada por estímulos agressivos tendem a apresentar tumores com indicadores prognósticos anatômicos, histológicos e endócrinos favoráveis. Dentre esses indicadores, destacam-se os seguintes: extensão tumoral inferior a 3 cm, baixo índice proliferativo, linfonodos axilares preservados e receptor hormonal positivo. Ambos contribuem para um maior período de sobrevida e um menor risco de recorrência da doença, assim como justificam procedimentos cirúrgicos conservadores e contra-indicam terapêuticas adjuvantes. Não obstante, os achados oriundos das pesquisas mencionadas não podem ser considerados conclusivos, de modo que novos estudos são necessários para o avanço do conhecimento no campo da Psico-Oncologia. A exploração de características de personalidade associadas à recidiva do câncer de mama se apresenta como um tema particularmente promissor. Afinal, diferenças em termos da estrutura e dinâmica psíquica entre mulheres que conseguem recobrar a saúde e pacientes que são acometidas novamente pela enfermidade ainda são praticamente desconhecidas. Partindo desse princípio, o primeiro autor do presente estudo, contando com a orientação do segundo autor, desenvolveu sua tese de doutoramento – atualmente em andamento – no sentido de fornecer subsídios iniciais para o preenchimento dessa lacuna. O presente estudo é um recorte desse trabalho mais amplo e tem como objetivo a identificação dos mecanismos de defesa prevalentes em dois grupos distintos, em termos do curso da doença, de mulheres acometidas por câncer de mama, a saber: mulheres em 395 remissão e mulheres em recidiva. Tal recorte justifica-se porque o funcionamento defensivo se destaca como uma das principais facetas da personalidade, sendo definido, do ponto de vista psicanalítico, como o conjunto de operações mentais das quais um sujeito lança mão para se proteger das tensões – sejam elas internas ou externas – às quais é submetido (Kusnetzoff, 1982). Portanto, essas operações mentais, denominadas mecanismos de defesa, visam a garantir a manutenção da constância psíquica. De acordo com a segunda tópica freudiana, o ego pode ser considerado tanto um aparelho adaptativo quanto uma instância resultante de identificações que tomam o lugar de energias psíquicas abandonadas pelo id. Sua autonomia em relação aos demais sistemas psíquicos é relativa, pois atua como intermediário entre as reivindicações do id, as limitações do mundo externo e os imperativos do superego. Ademais, o ego constitui o pólo defensivo da personalidade (Freud, 1917/1996). Logo, é o responsável pela mobilização de mecanismos de defesa perante estímulos potencialmente desestruturantes. Mas vale destacar que esse processo geralmente ocorre de maneira inconsciente, sendo agenciado pela porção do ego que não se encontra totalmente diferenciada do id. Justamente por esse motivo muitas vezes o funcionamento defensivo de um sujeito não se mostra apropriado ao contexto situacional no qual o mesmo se inscreve. De qualquer forma, vale salientar que o emprego de operações defensivas não deve ser considerado um processo psicopatológico a priori, pois a sobrevivência do aparelho psíquico se encontra intimamente relacionada à sua capacidade de se proteger. Para Freud (1895/1996), uma defesa pode ser considerada desadaptativa apenas quando remete à revivescência de sentimentos penosos associados a acontecimentos prévios dos quais o ego, quando da experiência original, não foi capaz de se defender mediante a execução de investimentos laterais. Tal revivescência, além de gerar excitações internas que provocam desprazer, 396 fomenta uma intensa regressão egóica, influenciando negativamente o equilíbrio da personalidade e o ajustamento do sujeito ao meio. Método Desenho metodológico A abordagem qualitativa foi privilegiada no presente estudo, de modo que os dados coletados foram submetidos a análises majoritariamente descritivas e exploratórias, as quais buscavam a interpretação da significação simbólica dos mesmos a partir de uma atitude compreensivista embasada pelo referencial teórico psicanalítico. Vale destacar também que se considerou pertinente adotar o recorte transversal e o método clínico de pesquisa, de modo que se optou por avaliar exaustivamente, em um momento circunscrito, um grupo relativamente reduzido de sujeitos mediante o emprego de um conjunto de técnicas. Tal delineamento metodológico se mostrou proveitoso em um estudo anterior, conduzido com pacientes onco-hematológicos (Peres & Santos, 2006). Participantes As participantes do presente estudo foram selecionadas e contatadas a partir o cadastro de uma entidade assistencial voltada a pacientes oncológicos por atenderem a critérios de inclusão previamente definidos, a saber: não apresentar antecedentes psiquiátricos, suspeita de déficit intelectual, quadros demenciais ou distúrbios da comunicação capazes de comprometer a interação com o pesquisador. As mulheres em remissão (n=8) constituíram o denominado Grupo 1, ao passo que as mulheres em recidiva (n=8) constituíram o denominado Grupo 2. Em sua maioria, ambas eram donas-de-casa casadas na faixa dos 50 397 anos de idade que não chegaram a completar o ensino fundamental, como se vê na Tabela 1 e na Tabela 2. Ou seja: possuíam um perfil semelhante em termos da ocupação atual, do estado marital, da idade e do nível educacional. Participantes Idade Escolaridade Ocupação atual Estado civil Cecília 65 anos Ensino superior completo Professora Casada Ângela 58 anos Ensino fundamental incompleto Dona-de-casa Casada Paula 66 anos Ensino fundamental incompleto Dona-de-casa Casada Mônica 62 anos Ensino fundamental incompleto Dona-de-casa Viúva Ester 52 anos Ensino fundamental incompleto Artesã Amaziada Joana 53 anos Ensino fundamental incompleto Cozinheira Solteira Quitéria 60 anos Ensino fundamental incompleto Dona-de-casa Amaziada Ifigênia 55 anos Ensino fundamental incompleto Dona-de-casa Casada 24 Tabela 1 - Dados de identificação das participantes (Grupo 1) Participantes Idade Escolaridade Ocupação atual Estado civil Anastácia 42 anos Ensino superior completo Professora Casada Catarina 58 anos Ensino fundamental completo Dona-de-casa Casada Luzia 62 anos Ensino fundamental incompleto Dona-de-casa Casada Isabel 55 anos Ensino fundamental incompleto Empregada doméstica Casada Bárbara 50 anos Ensino médio incompleto Dona-de-casa Casada Úrsula 56 anos Ensino médio completo Comerciante Casada 24 Os nomes verdadeiros das participantes do presente estudo foram substituídos por nomes fictícios com o intuito de preservar-lhes o anonimato. 398 Emília 65 anos Ensino fundamental incompleto Empregada doméstica Casada Madalena 41 anos Ensino fundamental incompleto Costureira Divorciada 2 Tabela 2 - Dados de identificação das participantes (Grupo 2) INSTRUMENTOS A coleta de dados do trabalho mais amplo do qual o presente estudo decorre envolveu a realização de uma entrevista psicológica semi-estruturada e a aplicação do Teste de Apercepção Temática (TAT). Por fundamentar-se no processo de apercepção, ou seja, no processo que promove a “integração de uma percepção com a experiência passada e com o estado psicológico atual do sujeito” (Lourenção van Kolck, 1981, p. 284), o TAT possibilita a exteriorização tanto de aspectos dinâmicos quanto de elementos estruturais da personalidade. Trata-se, portanto, de um instrumento considerado dos mais profícuos para o exame da personalidade (Jacquemin, 1981; Silva, 1989). Justamente por esse motivo optou-se, no presente estudo, por contemplar especificamente os dados oriundos da aplicação do TAT. Coleta e análise de dados As participantes do presente estudo foram avaliadas individualmente em uma sala reservada e com condições apropriadas de acomodação, iluminação e ventilação na sede da entidade assistencial na qual se encontravam cadastradas. As despesas relativas ao transporte das mesmas foram de responsabilidade dos pesquisadores. Ademais, vale destacar que as participantes foram conscientizadas que, a despeito de terem concordado previamente – por meio de um contato telefônico executado pelo primeiro autor do presente estudo – em se submeter à coleta de dados, poderiam mudar de idéia a qualquer momento e que, se o fizessem, não teriam nenhuma espécie de prejuízo no atendimento oferecido pela instituição. 399 As recomendações técnicas propostas por Morval (1982) nortearam a aplicação do TAT. Desse modo, as participantes foram solicitadas a elaborar uma estória25 com começo, meio e fim a partir da observação de cada uma das 20 pranchas que compõem a série completa do instrumento26 e a criar um título para a mesma após tê-la concluído. A coleta de dados foi dividida em duas sessões para cada caso e gravada em áudio com o consentimento prévio das participantes. Os pontos principais das estórias coligidas foram anotados com o intuito de direcionar as questões a serem apresentadas durante o inquérito. Tomou-se ainda o cuidado de, imediatamente após a conclusão de cada uma das estórias, retirar as pranchas do alcance visual das participantes, visando a evitar que o estímulo anterior influenciasse a elaboração da estória referente à prancha subseqüente. As estórias coligidas foram avaliadas independentemente por dois juízes especializados27 mediante o emprego de um protocolo baseado nas categorias de análise sistematizadas por Morval (1982), as quais, por seu turno, representam um desenvolvimento daquelas definidas por Murray (1973). Assim, foram consideradas 7 categorias de análise básicas, a saber: 1) análise formal; 2) identificação do herói; 3) necessidades do herói; 4) relações interpessoais do herói; 5) condutas do herói; 6) pressões do ambiente e 7) desfecho da estória. A análise formal focaliza basicamente os aspectos relacionados ao modo particular do sujeito reagir à tarefa proposta e divide-se em 5 sub-categorias distintas, a saber: 1) atitude do sujeito; 2) adaptação ao estímulo; 3) adaptação às instruções; 4) elaboração e estruturação da estória e 5) mecanismos de defesa. Desse modo, para os fins do presente estudo apenas serão reportados, para maior aprofundamento, os resultados decorrentes da avaliação de 1 das 5 sub-categorias que 25 O verbete “estória” será privilegiado em detrimento do verbete “história” para enfatizar o aspecto ficcional das produções. 26 Vale destacar que a aplicação do TAT envolveu a utilização das seguintes pranchas: 1, 2, 3RH, 4, 5, 6MF, 7MF, 8RH, 9MF, 10, 11, 12F, 13HF, 14, 15, 16, 17MF, 18MF, 19 e 20. Considerou-se pertinente adotar as pranchas 3RH e 8RH tendo em vista que, conforme Silva (1989), a despeito de originalmente destinadas apenas a sujeitos do sexo masculino, as pranchas em questão podem ser aplicadas em mulheres por se mostrarem mais produtivas do que suas equivalentes femininas. 27 Psicólogos pós-graduados especializados no TAT. 400 compõem 1 das 7 categorias básicas do protocolo adotado pelos juízes. Vale destacar também que, na composição do protocolo, foram considerados como alternativas da sub-categoria em questão todos os mecanismos de defesa cuja utilização, conforme Laplanche e Pontalis (2000), é consagrada pela literatura psicanalítica, a saber: 1) recalque, 2) regressão, 3) formação reativa, 4) isolamento, 5) anulação retroativa, 6) projeção, 7) introjeção, 8) retorno sobre si, 9) inversão de uma pulsão em seu contrário, 10) sublimação, 11) denegação, 12) negação da realidade, 13) racionalização e 14) intelectualização. Ademais, foi considerada também a alternativa “não-classificável”. Deve-se esclarecer ainda que, após a conclusão do trabalho dos juízes, foram determinados os índices de concordância mediante o cálculo da subtração da concordância possível pela discordância real e da posterior divisão do produto dessa operação pelo número de alternativas do protocolo. A média dos índices de concordância como um todo foi igual a 0,74. De acordo com os parâmetros estabelecidos por Fachel e Camey (2000), essa média pode ser considerada satisfatória. Por fim, cumpre assinalar que, constatada a validade do trabalho dos juízes, o primeiro autor do presente estudo apreciou o conjunto dos resultados obtidos utilizando para tanto essencialmente as proposições teóricas de Kusnetzoff (1982), Morval (1982), Marty (1993), Marty (1998) e Laplanche e Pontalis (2000). Aspectos éticos Todas as participantes concordaram espontaneamente em colaborar com o presente estudo e formalizaram sua anuência mediante a assinatura de um termo de consentimento. Escrito em linguagem simples, objetiva e compreensível, tal documento, além de descrever sucintamente a coleta de dados, assegurava às participantes a preservação de seus direitos. As participantes foram informadas ainda que contariam, caso os procedimentos relativos à coleta dos dados lhes acarretasse qualquer espécie de desconforto emocional, com um atendimento 401 psicológico focal a ser prestado pelo primeiro autor do presente estudo, em um horário de comum acordo, com a finalidade específica de promover a ventilação dos sentimentos suscitados28. Apresentação e discussão de resultados A avaliação do conjunto do material obtido mediante a aplicação do TAT no Grupo 1 revela que a alternativa “não-classificável” foi a mais freqüente na sub-categoria de análise “mecanismos de defesa”, ou seja, predominou nas estórias elaboradas pela maioria das mulheres em remissão (n=5). Entretanto, seria ingenuidade afirmar que as mesmas prescindiram de operações psíquicas capazes de contribuir para a redução das tensões ao longo da coleta de dados. Houve, na verdade, uma dificuldade por parte dos juízes na classificação de tais operações. É possível associar esse fenômeno à aparente justaposição de certas estratégias que denotam uma consistente estruturação egóica e outras que sugerem o oposto. Ou seja, observou-se a coexistência de recursos evoluídos com elementos mais imaturos, não-desenvolvidos, da personalidade. Vale ressaltar também que, reforçando a hipótese precedente, uma significativa diversificação de mecanismos de defesa caracterizou o Grupo 1, o que, a propósito, inviabilizou o delineamento de convergências mais expressivas do ponto de vista quantitativo no que se refere a esse aspecto. Tal diversificação não gera estranhamento considerando-se que, como já mencionado, a sub-categoria de análise “mecanismo de defesa” contou, no protocolo de avaliação adotado pelos juízes, com 15 alternativas. A despeito disso, a anulação retroativa e a negação despontaram em segundo lugar em termos de prevalência no Grupo 1, dado que parte das mulheres que o constituíram as utilizaram recorrentemente (n=3). 28 Recorreram a esse atendimento 2 participantes, sendo 1 do Grupo 1 e 1 do Grupo 2. 402 No Grupo 2, o isolamento se afigurou como a principal operação psíquica mobilizada a partir da veiculação das pranchas do TAT (n=6). Ademais, o recalque, a denegação e a intelectualização também foram empregados majoritariamente com regularidade considerável (n=3). Pode-se deduzir, portanto, que, entre as participantes do presente estudo em recidiva, houve uma menor variação de mecanismos de defesa, ensejando, conseqüentemente, uma maior saturação de determinadas alternativas do protocolo de avaliação para essa subcategoria de análise. A restrição do repertório protetor pode, inclusive, ser relacionada à inadequação do funcionamento defensivo de parte delas, pois conduz ao uso excessivo de automatismos e estereotipias. Se tomados de forma geral, estes resultados confirmam parcialmente as conclusões procedentes de duas pesquisas brasileiras semelhantes no que tange às características básicas da amostra. Em uma delas, Barbosa (1991) observou que a negação, a intelectualização e a formação reativa foram, nessa ordem, os mecanismos de defesa mais atuantes em um grupo de mastectomizadas submetidas a uma bateria de testes psicológicos. Vale destacar que, embora tenha privilegiado técnicas projetivas na coleta de dados, a autora investigou o funcionamento defensivo de suas participantes exclusivamente mediante o emprego de um instrumento psicométrico: o Inventário de Estilos de Vida (IEV). Ou seja, lançou mão de um procedimento metodológico distinto daquele adotado no presente estudo. Já em uma pesquisa mais recente, Bandeira e Barbieri (2007) buscaram a identificação de similaridades e especificidades em termos de características de personalidade em mulheres portadoras de dois tipos diferentes de neoplasia. Para tanto, recorreram à realização de entrevistas psicológicas e à aplicação de uma versão reduzida do TAT. Os resultados revelam que pacientes acometidas por câncer de mama tendem à projeção e à negação, ao passo que pacientes acometidas por câncer do aparelho digestório são mais propensas ao isolamento e à racionalização. Ademais, apontam a prevalência da repressão em ambos os grupos. Diante 403 desse cenário, tais autoras caracterizaram o funcionamento defensivo das primeiras como psicótico e o das segundas como neurótico. Ao longo da obra freudiana é possível observar tentativas de identificação de mecanismos de defesa típicos de certas psicopatologias, até porque os mesmos claramente variam de estratégias de natureza essencialmente instintual a recursos que envolvem atividades intelectuais sofisticadas. Porém, Kusnetzoff (1982) alerta que as contribuições de diversos psicanalistas contemporâneos sustentam que, em última instância, qualquer operação voltada ao resgate da homeostase psíquica, em que pese sua associação com o ego, pode ser apresentada por qualquer sujeito, dependendo da situação. Seguindo esse raciocínio, o referido autor defende que há, na base dos processos psicopatológicos, não apenas o emprego de uma ou outra defesa especificamente, mas sim sua adoção compulsiva e descontextualizada. É justamente a partir desse critério que se torna possível o mapeamento de diferenças no que tange ao sistema defensivo entre as mulheres em remissão e as mulheres em recidiva avaliadas no presente estudo. Por utilizarem de modo ponderado a intelectualização, a repressão, a regressão e o isolamento, 2 participantes do Grupo 1 se caracterizaram pela adequação dessa função. O oposto pode-se afirmar sobre 1 delas devido a seu apelo constante à negação e à anulação retroativa. As demais mulheres em remissão apresentaram um funcionamento defensivo cuja adequação se mostrou parcial, sobretudo por conta do emprego apropriado da intelectualização e racionalização e inapropriado da negação, anulação retroativa, introjeção e formação reativa. Considerando-se as participantes que constituíram o Grupo 2, têm-se uma situação distinta. Somente 1 delas se mostrou capaz de se proteger com êxito das tensões que ameaçam abalar o equilíbrio de seu aparelho psíquico, recorrendo, para tanto, à intelectualização e à racionalização de maneira pertinente. A compulsão de 3 pacientes em 404 recidiva à negação, ao isolamento, à denegação e à anulação retroativa reflete a inadequação do funcionamento defensivo das mesmas. As demais participantes do Grupo 2 adotaram contextualizadamente a intelectualização e o isolamento, bem como descontextualizadamente a repressão, a formação reativa, sublimação e denegação. Diante do exposto, conclui-se que a intelectualização se mostrou associada a um funcionamento defensivo mais apropriado. Tal resultado não provoca surpresa, pois, como destacam Laplanche e Pontalis (2000), a intelectualização, ao promover o controle dos afetos e das fantasias intoleráveis mediante a utilização em larga escala do pensamento abstrato, pressupõe a existência de um ego organizado que lhe sirva de suporte. Por se afigurar essencialmente como a exacerbação de uma função normal adquirida em uma etapa tardia da infância, a operação psíquica em questão pode até ensejar a revivescência de experiências anteriores, mas esse processo tende a se limitar às experiências das quais, quando da situação inicial, o ego encontrou meios de se proteger. Isso contribui de forma substancial para a preservação do processo secundário. Em contrapartida, a negação, a denegação e a anulação retroativa conduziram a um funcionamento defensivo pouco adequado. Para Morval (1982), a negação envolve, por parte do sujeito, a recusa de pertencimento de representações que inconscientemente são reproduzidas na atividade do pensamento a partir de estímulos que se originam do exterior, ao passo que a denegação consiste na contestação de conteúdos recalcados que conseguem retornar – mas não de modo pleno – para a consciência à custa de imperativos internos. A anulação retroativa, conforme a mesma autora, envolve a utilização de certas representações com o intuito de retratar os desdobramentos de representações anteriores, de sentido oposto, que foram capazes de contornar as barreiras a elas impostas inconscientemente. Ou seja: a negação, a denegação e a anulação retroativa possuem uma natureza arcaica, em contraste com a intelectualização. Por conta desta ter sido mais freqüente no 405 Grupo 1 e aquelas no Grupo 2, deduz-se, à luz da teorização de Marty (1993), uma maior insuficiência funcional do aparelho psíquico entre as mulheres em recidiva do que entre as mulheres em remissão. Além disso, cumpre assinalar que o referido autor sustenta que, quanto mais acentuada for tal insuficiência, maior a vulnerabilidade à somatização, principalmente após a ocorrência de eventos traumáticos. Essa associação conduz diretamente ao conceito de mentalização, definido como o conjunto de representações que determina a dinâmica mental integralmente, desde a formação de vínculos à manutenção do funcionamento do sistema defensivo. Portanto, pode-se afirmar que, excetuando-se 1 delas, o pré-consciente das participantes do Grupo 2 é povoado sobretudo por “más mentalizações”. Aprofundando esse raciocínio, torna-se incoerente qualquer tentativa de compreensão do funcionamento psíquico das mesmas sob a ótica das neuroses clássicas e se impõe o recurso a uma categoria nosológica descrita originalmente por Marty, a saber: neurose mal mentalizada. Afinal, tratase de uma modalidade particular de psicopatologia em cuja essência se identificam fenômenos “de ausência, de limitação e de superficialidade das representações, desprovidas dos valores afetivos e simbólicos que se encontravam relacionados a elas, anteriormente” (1998, p.44). Tomando como base seus movimentos defensivos, as participantes do Grupo 1 apresentaram, em sua maioria, uma dinâmica psíquica com aspectos relativamente mais favoráveis, análoga à dinâmica psíquica típica da chamada neurose de mentalização incerta. Conforme Marty (1998), nessa condição há uma variação expressiva no funcionamento do préconsciente, de modo que representações altamente associativas e representações marcadamente insípidas se alternam. Assim, a capacidade de simbolização se mantém operante graças a um equilíbrio ameaçado por fragmentações psicóticas e resguardado por entrelaçamentos sofisticados de afetos e idéias, sendo, portanto, ora desoladora, ora promissora. 406 Não obstante, exceções a essas formulações gerais devem ser admitidas: 1 participante do Grupo 1 e 1 participante do Grupo 2 podem ser consideradas neuróticas bem mentalizadas, dado que aparentemente são dotadas de representações enriquecidas por valores simbólicos, o que garante maior fluidez ao pré-consciente. Além disso, 1 participante do Grupo 1 e 2 participantes do Grupo 2 apresentaram características que remetem à neurose de comportamento. Nessa condição, uma falha básica no desenvolvimento do pré-consciente potencializa a substituição de representações por traços mnésicos puros e inviabiliza a estruturação de um sistema defensivo consistente, já que conduz a expressões diretas, traduzidas na atualidade, do inconsciente por meio do aparelho sensório-motor (Marty, 1993). Considerações finais Faz-se necessário esclarecer que a recidiva das participantes do Grupo 2 não está sendo entendida como uma doença psicossomática, ou seja, decorrente majoritariamente de fatores psíquicos. Uma conclusão dessa natureza seria incoerente não apenas com o modelo biopsicossocial, mas também com a postura monista preconizada pela psicossomática psicanalítica, pois, como sustenta Marty (1993), a indissociabilidade que caracteriza o funcionamento mental e o funcionamento orgânico faz do homem um ser psicossomático por definição. Portanto, a utilização do termo “psicossomática” como adjetivo encerra uma falácia na medida em que remete ao antigo dualismo cartesiano. Na verdade, o presente estudo reitera que o corpo é dotado de uma dimensão metapsicológica, a qual faz dele uma testemunha viva de um passado que permanentemente se reatualiza sob a forma de vestígios ainda não elaborados e, dessa maneira, veicula as inscrições da história do sujeito. Tal dimensão foi estabelecida definitivamente por Freud antes mesmo da virada do século XIX ao demonstrar o papel do recalque na etiologia da histeria. Porém, cumpre assinalar que sua genialidade o levou a apontar a incoerência de se estabelecer qualquer relação de exterioridade entre o indivíduo e seu corpo, bem como, ao 407 mesmo tempo, evitar o ingênuo desmerecimento do inegável sustentamento do psiquismo no corporal. Mas cabe aqui uma ressalva: os resultados ora reportados não subsidiam a obtenção de “leis universais” sobre a personalidade de mulheres acometidas por câncer de mama ou sobre os fatores psicológicos relacionados ao curso da doença. As hipóteses apresentadas possuem um alcance – determinado, sobretudo, pelo número relativamente reduzido de participantes – que não deve ser extrapolado. Entretanto, vale enfatizar que essas hipóteses fornecem elementos para generalizações naturalísticas, de modo que instrumentalizam outros autores a aprofundar o conhecimento estabelecido até o momento sobre o assunto em pauta. Em última instância, o que se propõe com o presente estudo é que a relação dialética existente entre mente e corpo não deve ser desconsiderada caso se pretenda apreender a complexidade inerente ao processo saúde-doença. Essa proposição sugere um resgate do pensamento hipocrático, considerando-se que o mesmo tem sido negligenciado na atualidade diante dos avanços no campo da biologia molecular que permitiram o seqüenciamento do genoma humano. Volich (2000), inclusive, salienta que esses avanços provocaram um deslumbramento capaz de conduzir a uma frustração semelhante àquela resultante das expectativas engendradas pela sistematização do conhecimento anatômico no século XIV, as quais levavam a humanidade erroneamente a crer que nas entranhas do corpo se encontrariam as respostas para todos os enigmas da vida. Referências Bandeira, M.F. & Barbieri, V. (2007). Personalidade e câncer de mama e do aparelho digestório. Psicologia: Teoria e Pesquisa, 23 (3), 295-304. 408 Barbosa, A.M.S. (1991). Viagem ao vale da morte: estudo psicológico sobre mulheres mastectomizadas por câncer de mama. Em R.M.S. Cassorla (Org.). Da morte: estudos brasileiros (pp.159-180). Campinas: Papirus. Brasil. Ministério da Saúde. 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European Journal of Cancer 35 (13), 1783-1788. 411 Candidatura 21 Autores: Ana Paula Parada Título: A vivência da endometriose no contexto conjugal: um estudo de caso 412 A VIVÊNCIA DA ENDOMETRIOSE NO CONTEXTO CONJUGAL: UM ESTUDO DE CASO Ana Paula Parada – [email protected] Valéria Barbieri – [email protected] Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto Universidade de São Paulo - Brasil Este trabalho tem como finalidade principal a apresentação de um estudo de caso de um casal infértil devido ao diagnóstico de endometriose. O estudo visou a compreenssão das características psicodinâmicas do casal envolvidas nesta patologia por meio do conhecimento de sua história de vida, seu desenvolvimento psicossexual e relacionamento conjugal. Assim, o presente trabalho estrutura-se de modo a apresentar inicialmente alguns recortes teóricos sobre a infertilidade, características gerais da endometriose e seus aspectos psicológicos. Em seguida, há apresentação e discussão do estudo de caso e da contribuição dos resultados encontrados para compreensão da problemática da infertilidade. 1. Introdução: A infertilidade ou esterilidade é definida como a inabilidade de conceber após um ano de intercurso sexual regular sem uso de métodos contraceptivos, ou de levar a gestação até o nascimento (Word Health Organization, 2002). Há estudos diferenciando os termos infertilidade e esterilidade, mas, neste trabalho, o termo “infertilidade” será utilizado como sinônimo de “esterilidade”, seguindo o seu emprego na literatura latino-americana. Sua 413 prevalência varia entre 5 e 30% dos casais em idade fértil, concentrando a maioria em países em desenvolvimento (Ferrari, 1991; Di Paola e Procaccini, 1991; Word Health Organization, 2002). Quanto à etiologia, Di Paola e Procaccini (1991) afirmam que a reprodução humana é uma problemática psico-sócio-biológica, em que uma falha no tripé determinará a infertilidade. Esta pode ser primária, quando não houve gravidez anterior, ou secundária, quando ela aconteceu, mas com abortamento e/ou gravidez ectópica. Os fatores biológicos determinantes da infertilidade podem ser divididos em masculinos e femininos. Os fatores femininos representam 40 a 70% dos casos, os masculinos 30 a 50%, e 10 a 20% dos casos apresentam-se pela combinação de ambos os fatores. Estudos indicaram que homens com problemas de infertilidade têm maior probabilidade de escolherem parceiras também com tais problemas (Brandi, Pina e Lopes, 1997; Petracco e Badalotti, 1997; Ferrari, 1991). O diagnóstico de Endometriose, por sua vez, é geralmente concebido como um fator determinante da infertilidade, principalmente em seus estágios mais severos, devido suas conseqüências como distorções anatômicas causadas pelas lesões, implantes e/ou aderências características desse quadro. Entretanto, ainda não há um claro conhecimento sobre o papel da endometriose na infertilidade, especialmente nos estágios mais leves da doença (Abrão et al, 1998). Segundo Abrão et al (1998), a endometriose é uma das doenças ginecológicas mais estudadas nos últimos anos, devido à dificuldade de estabelecer sua etiopatogenia, diagnóstico, tratamento e, principalmente, a melhor forma de classificação. Em geral admitese a incidência de 10 a 15% na população, e de 20 a 40% em mulheres inférteis (Urbanetz; Andrauz, 1999; Matta e Muller, Geber et al. 2004). Urbanetz e Andrauz, (1999), bem como Matta, Muller e Geber et al (2004), afirmam que o diagnóstico tende a ser atribuído às 414 mulheres que apresentam queixas de dor pélvica, dismenorréia, dispareunia, irregularidade menstrual e, algumas vezes, esterilidade. Encontram-se na literatura diversas teorias que visam estabelecer sua definição e etiologia, como a Teoria do Transplante, da Metaplasia Celômica e da Indução. Dentre elas destaca-se a primeira, descrita em 1920 por Sampson e ainda aceita atualmente, que postula: “Células endometriais e fragmentos descamados durante o período menstrual são transportados através de tubas uterinas para a cavidade peritonial, onde se implantam, proliferam e se desenvolvem em lesões endometrióticas” (Urbanetz e Andrauz, 1999; Viscomi, 1995). A despeito da clara definição postulada, os fatores que permitem e/ou aumentam a probabilidade de células endometriais implantarem-se em locais ectópicos são indeterminados. Explicações contemporâneas indicam como possíveis fatores alterações na auto-imunidade, além da participação de fatores genéticos e ambientais ligados à poluição (Urbanetz e Andrauz, 1999; Viscomi, 1995). Quanto às classificações da doença, esta pode variar conforme seu local de acometimento, a histologia do tecido endometrial e o grau de severidade da doença (Abrão et al, 1998). Acosta (1990) e a American Society for Reproductive Medicine (1995) propuseram a classificação da doença em formas leve, moderada e grave, conforme as conseqüências causadas pelas lesões, implantes e/ ou aderências periovarianas, já citadas anteriormente. Geber et al (2004) afirmam que a maioria das mulheres apresenta endometriose mínima ou moderada sem evidência física de problema na liberação de oócitos e sem disfunção anatômica tubária. Desse modo, levanta-se a questão de como a endometriose leve/moderada poderia interferir na fertilidade da mulher, discutindo a existência ou não de um mecanismo de causa/efeito entre endometriose leve e infertilidade. Em relação aos exames específicos destaca-se a laparoscopia, por sua ampla utilização e eficácia. Este é um procedimento que, apesar de invasivo, permite confirmar o 415 diagnóstico e representa uma excelente opção terapêutica em muitas patologias pélvicas. A laparoscopia é o único método que permite diagnosticar e classificar com precisão a endometriose, porém nem sempre as lesões de endometriose se apresentam típicas. Diante desses quadros duvidosos, deve-se colher material para a comprovação histopatológica (American Society for Reproductive Medicine, 1995) Em relação aos tratamentos, mulheres com endometriose podem atualmente receber tratamento clínico hormonal como, por exemplo, a administração contínua de anticoncepcionais orais; cirurgias reconstrutivas ou até mesmo técnicas de reprodução assistida como Inseminação Intra-Uterina (IUI) ou Fertilização in vitro (FIV) (Geber et al, 2004). Entretanto, segundo dados da American Society for Reproductive Medicine (1995), não existe consenso na literatura acerca do tratamento da endometriose em pacientes inférteis, sendo imprescindível a laparoscopia. Nesse contexto, questiona-se se lesões mínimas e leves devem ser tratadas, mas defende-se que em suas formas moderadas e graves, o tratamento deve ser feito no ato do diagnóstico laparoscópico. Assim, os focos são cauterizados, coagulados ou vaporizados quando o laser é disponível, e as aderências são desfeitas na tentativa de restabelecer a anatomia pélvica. Esse tratamento é normalmente complementado com drogas que suprimem a produção estrogênica ou que antagonizam seus efeitos. 2. Os fatores psicológicos envolvidos na Endometriose: Diante da falta de uniformidade das informações relativas à etiologia desta patologia, é razoável considerar a influência de fatores psicológicos. Esta influência não deve ser considerada apenas neste diagnóstico, e este, por sua vez, também não deve ser compreendido como expressão exclusiva de problemas psicológicos. Deve-se então, considerar a relação “recíproca” entre mente e corpo em todas as categorias diagnósticas, como citado por McDougall (1991). Esta autora afirma que diante da dor psíquica, das divisões 416 internas, dos traumatismos universais e pessoais que a vida inevitavelmente provoca, o homem pode criar uma neurose, psicose, escudo caracterial, perversão sexual, sonhos, obras de artes e doenças psicossomáticas. Essas seriam as possibilidades do homem manter o equilíbrio da economia pulsional e, especialmente, o sentimento de ter uma identidade. Entre todas essas expressões da psique em conflito, destacam-se as últimas: as doenças psicossomáticas. Segundo McDougall (1991) a doença psicossomática é uma explosão no corpo, não é uma comunicação neurótica e nem psicótica, mas tem uma função de ato, de descarga. Nesses casos, há uma carência na elaboração psíquica e uma falha na simbolização, as quais são compensadas por um agir, que busca a redução da dor psíquica pelo caminho mais curto. Assim, o soma declara-se doente quando as defesas neuróticas e psicóticas ou as organizações “perversionantes” falham ou tropeçam em seu funcionamento, porém, as doenças psicossomáticas não exercem as mesmas funções protetoras. Assim, as manifestações psicossomáticas são atribuídas a uma carência da capacidade de representar o conflito, de onde há impossibilidade de recalcamento. Para a compreensão do desenvolvimento da endometriose, e demais quadros relacionados à infertilidade, os estudos fundamentam-se principalmente na abordagem psicanalítica à luz das idéias psicossomáticas, que consideram a possibilidade de complexos emocionais estarem envolvidos em sua etiologia ou manutenção, como apontam Langer (1986), Perseval (1986) e outros. A maioria dos estudos psicanalíticos dos transtornos psicogênicos da fecundação aborda esse distúrbio somente nas mulheres, sugerindo explicações relacionadas à aceitação ou não da feminilidade como possível fator etiológico. A compreensão desse transtorno da vida adulta é possível somente se consideradas as etapas da evolução psicossexual do indivíduo, propostas inicialmente por Freud (1905). Ele defendeu a existência de uma vida 417 sexual desde o nascimento, cujo desenvolvimento é marcado pela vivência do Complexo de Édipo, que culmina na chamada sexualidade genitalizada. Para a compreensão da infertilidade, autores como Langer (1986), Perseval (1986), Levy Jr. (1980), Maldonado (1992) e Tubert (1996) destacam justamente a importância do desenvolvimento psicossexual e do Complexo de Édipo, por seus desdobramentos fundamentais na construção da identidade sexual. Nessas mulheres há uma constelação familiar comum (mãe como figura central e o pai como secundária) e fatores que contribuem para a constituição de duas principais situações psicodinâmicas: relações com a figura materna permeada por sentimentos de hostilidade, inveja e ciúme, e/ou intensa rivalidade com o pai. A atitude de rejeição de uma mãe fria provoca hostilidade na menina que, se sentindo seduzida pelo pai, passa a temer uma atitude vingativa da mãe. Como a gravidez implica justamente numa identificação da mulher com sua mãe grávida, a hostilidade dirigida inicialmente contra esta figura é vivenciada, nesse momento, como passível de voltar contra a própria mulher. Assim, a impossibilidade de identificação com a mãe grávida aliada à dificuldade de vivenciar de modo completo a etapa edípica, seja porque o pai não se apresenta como suficientemente amoroso ou devido à rivalidade com a mãe, podem levar a mulher ao desenvolvimento de uma atitude viril ou infantil. Assim, ligada à mãe num Édipo negativo, a mulher fica impossibilitada de vivenciar plenamente sua feminilidade, o que a conduz à esterilidade (Langer, 1986). Assim, Langer (1986) afirma que as mulheres estéreis apresentam uma posição ambivalente frente à maternidade e um desejo por um filho que, por algum motivo, não se sentem no direito de ter. Estes conflitos podem ser expressos através de sintomas como atraso menstrual ou pseudociese, em que a mulher está certa de ter conseguido o desejado, a gravidez. Porém, esta é uma tentativa de negar tal incapacidade. Em relação à endometriose, Maldonado (2002) defende que existem características psicológicas comuns entre mulheres com endometriose, ainda que não exista 418 um número significativo de pesquisas científicas que comprove tal fato. De acordo com eles, alguns traços de personalidade podem ser observados com freqüência, como perfeccionismo, auto-exigência e capacidade de controle e comando. Eles também afirmam que os resultados apontam para uma imaturidade emocional e o precário desenvolvimento psicossexual. Nota-se que os diferentes estudos psicanalíticos apresentados buscam fatores comuns que possam auxiliar na compreensão da problemática da infertilidade. Contudo, vale ressaltar que a contribuição desses fatores é efetiva somente quando respeitada a singularidade dos casos. Poucos autores como Perseval (1986) se concentraram no estudo da paternidade e/ou infertilidade masculina. Segundo ele, a sua única diferença com relação à psicogênese da infertilidade feminina é sua organização, pois os conteúdos são os mesmos. Para compreendê-la é essencial reportar aos conflitos do homem com seus próprios pais, em seu relacionamento real ou fantasmático, pois a paternidade coloca o homem diante da transgressão da proibição edipiana e de um remanejamento profundo da libido. Nota-se então a necessidade de estudos específicos para a melhor caracterização dos casais inférteis devido à endometriose, que possibilite a verificação de diferenças e similaridades entre esta e outras categorias diagnósticas da infertilidade, bem como a compreensão mais profunda dos psicodinamismos e da organização da personalidade dessas pessoas. 3. Objetivo: Investigar, por meio de entrevistas e testes psicológicos projetivos, as características psicodinâmicas de um casal infértil cuja mulher foi diagnosticada com quadro de endometriose. Buscou-se também, como objetivos específicos, conhecer a história de vida do casal, o modo como decorreu o seu desenvolvimento psicossexual, o relacionamento com 419 as figuras maternas e paternas, a assunção de sua identidade sexual e a qualidade do relacionamento conjugal. 4. Método: Este trabalho foi desenvolvido com base em abordagens metodológicas qualitativas, típicas de estudos relativos às Ciências Humanas. Dentre as abordagens, foi escolhida a perspectiva clínica de investigação seguindo o referencial teórico psicanalítico. Para sua operacionalização, optou-se pela metodologia do estudo de caso, em que foram utilizados os seguintes instrumentos: 1. Roteiro de Triagem, elaborado pela pesquisadora com base nos critérios de inclusão/exclusão da amostra; 2. Entrevista semi-estruturada, com suporte de um roteiro, contendo tópicos relativos à história pessoal, desenvolvimento psicossexual, relacionamentos interpessoais, sexualidade e saúde reprodutiva; 3. TAT (Teste de Apercepção Temática), em forma reduzida, que busca investigar elementos fundamentais do funcionamento psíquico e assim, identificar complexos e conflitos inconscientes, tendências recalcadas patológicas ou não. A avaliação foi realizada segundo o referencial de Shentoub (1970), conforme atualizado por Brelet-Foulard e Chabert (2005). Segundo este referencial, a forma reduzida do TAT é composta por 15 cartões, a saber: 1, 2, 3BM, 4, 5, 6GF, 7GF, 9GF, 10, 11, 12BG, 13B, 19, 16 e 13 MF (Brelet-Foulard e Chabert, 2005). 5. Estudo de caso: 5.1. Apresentação: 420 Os membros do casal participante serão denominados de Helena e Afonso. Eles foram selecionados no Ambulatório de Infertilidade do Departamento de Ginecologia e Obstetrícia da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo, onde se encontram em acompanhamento há mais de 1 ano. Helena e Afonso possuem 32 anos de idade, estão juntos há 16 anos e casados há 5 anos. Eles trabalham o dia todo, ela como secretária e ele como vendedor de produtos infantis. Desde o início do casamento apresentavam o plano de ter filhos, momento em que descobriram a dificuldade de engravidar. Há 3 anos Helena recebeu o diagnóstico de endometriose leve, passou por duas tentativas mal sucedidas de tratamentos de fertilização (laparoscopia e complemento hormonal), sendo a última realizada 6 meses antes de sua participação neste estudo. 5.2. Resultados e discussão: Esta síntese dos dados obtidos com Helena e Antônio constitui uma tentativa de compreender a interação do casal, os resultados produzidos quando essas personalidades, com seus psicodinamismos próprios, entram em interação. Dessa forma, buscou-se compreender a influência desta interação na vivência da maternidade/ paternidade e, conseqüentemente, da infertilidade. Os dados iniciais obtidos dizem respeito ao primeiro encontro entre os entrevistadores e o casal, em que foram feitas as apresentações e explicação detalhada da pesquisa. As primeiras impressões dos entrevistadores foram positivas, pois comportamentos não-verbais, como aproximação e troca de olhares, transmitiam um sentimento de cumplicidade por parte do casal. Os dados obtidos indicam que há semelhanças relevantes da 421 história de vida de Helena e Afonso, especialmente quanto ao desenvolvimento emocional e da sexualidade. Entretanto, o período de infância foi vivenciado de forma muita distinta entre eles. Helena estabeleceu fortes vínculos com as figuras parentais, e a chegada de irmãos mais novos era vista de forma negativa, uma vez que estes se tornavam rivais pela disputa do amor dos pais. Já Afonso esforçou-se por uma aproximação física e efetiva com os pais, que se mantiveram bastante ausentes nessa fase de seu desenvolvimento. Nesse contexto, os irmãos mais velhos, especialmente do sexo feminino, eram concebidos de forma positiva, uma vez que assumiam o papel da figura materna, provendo-lhe afeto e cuidados necessários. Entretanto, neste caso, a ausência dos pais e a carência afetiva conseqüente não foram satisfeitas e o sentimento de privação mostra-se presente, especialmente em relação ao pai. Entre as principais lembranças sobre infância, Afonso ressalta a diversão e o apreço pelas brincadeiras, enquanto Helena afirma nunca ter se interessado por elas. Esse desinteresse pelas brincadeiras pode sinalizar uma identificação precoce com as figuras mais velhas, os pais. Apesar das diferenças na história, ambos afirmam possuir a sensação de que a infância foi roubada ou finalizada precocemente, uma vez que, por diferentes motivos, não foi possível gozar plenamente desse período como sinalizado nos trechos abaixo: “(...) Oh, para falar a verdade eu para brincadeira sou uma negação. (...) Se você fizer uma gracinha para mim você desanima, tudo para mim tem que ter uma coerência, uma explicação (...). Nunca fui de brincar. Minha mãe fala que na infância eu brincava de boneca, mas eu não lembro não (...). Eu sempre gostei de ler... acho que porque eu comecei a trabalhar mais cedo, então eu acho que mudou, é diferente... então eu cuidava mais dos meus irmãos, meus pais saíam para trabalhar então (...). Até hoje eu não sei andar de bicicleta (...)”. (Helena) “(...) Eu comecei a trabalhar mesmo... registrado... com uns quinze anos... já ia pro... vendia naquela época bijuteria e tudo... desde uns onze anos mais ou menos já trabalhava... já tinha aquela... conseguir seu próprio dinheirinho.” (Afonso) 422 Quanto ao relacionamento com a mãe, ambos o conotaram positivamente, porém também destacaram o afastamento afetivo existente, especialmente no caso de Helena. “Isso, e eu nunca fui muito apegada com a minha mãe, nunca fui tão apegada a ela quanto eu era com o meu pai. Parece que a gente passou a ter uma relação melhor depois que eu tive endometriose.” (Helena) “Boa, muito boa... brincava... era muito carinhosa... muito boa (...) Quer dizer, era minha mãe lavar roupa, fazer almoço, pensar em deixar a janta pro outro que ia chegar já do trabalho, e casa pra limpar e minhas irmã ajudava tudo, mas era muita coisa, né? Não tinha aquele tempo já de sentar e ficar ou vamos conversar (...)” (Afonso) Já a descrição do relacionamento com o pai dispara uma mobilização emocional em ambos. Para Helena, este relacionamento é marcado por desejos incestuosos e, para Afonso, por necessidades afetivas não satisfeitas. A morte dos pais constitui um marco em suas histórias de vida e provocou, inicialmente, um distanciamento entre os membros das famílias de ambos. A identificação com a figura paterna é nítida no caso de Helena, enquanto que para Afonso ela surge de forma muito fragilizada, especialmente pela dificuldade em contatar e elaborar as pulsões agressivas dirigidas ao pai, devido ao seu afastamento físico e afetivo. “(...) E quando eu tava na adolescência aí mais ainda sabe, meu pai era maravilhoso, meu pai era tudo, sinto muita falta dele (...) Na fase de adolescência eu convivi muito com ele, minha mãe trabalhava à noite e meu pai sempre foi muito boêmio, eu saia muito com ele, eu tinha um pai... meu pai não era o meu pai, ele era pai das minhas irmãs e meus irmãos, para mim acho que... eu tenho ele mais como um amigo sabe, ele foi muito presente para mim como um amigo, um amigo assim que não tem igual(...) Com a minha mãe eu sempre tive menos intimidade com a minha mãe, eu sempre tive intimidade com... meu pai sempre foi amigo. Meu pai era e minha mãe é. Lá em casa a gente teve uma relação muito diferente do normal. Além do meu pai ser enfermeiro ele era filho de índio, tinha uma cabeça toda diferente” (Helena) 423 “Ele era guarda noturno... via mais de manhã só, e quando eu via ele, ele já chegava numa fase já de... de ter... o contato já não dava mais porque ele chegava de manhã e eu já ia pra escola, e aí a tarde não via que ele tinha ido trabalhar de novo e acho que foi até... uma coisa assim que... superou um pouco a perda dele também quando faleceu porque não tinha tanto... pra mim, até hoje assim, se for ver ele tá trabalhando, tá no emprego dele, tá lá... não tem contato.” (Afonso) A puberdade, com suas modificações corporais e surgimento dos interesses sexuais, foi pouco descrita e constitui um tema de difícil acesso, por acionar fortes movimentos defensivos. Helena e Afonso não tiveram muitas experiências de relacionamentos amorosos, considerando apenas o namoro entre eles como a relação mais significativa. Ambos relataram com riqueza de detalhes o período do namoro e o casamento, enfatizando o companheirismo estabelecido. A iniciação sexual, vivenciada conjuntamente, foi contada positivamente por Afonso, mas com descrição de sentimentos negativos vindos de um despreparo emocional. Este também foi sentido por Helena que, por sua vez, fez conotações ambivalentes sobre essa experiência. Seguem alguns trechos ilustrativos: “(...) Não foi aquilo que o pessoal fala não. O povo fala ‘ai é lindo, maravilhoso’. Não tem nada de lindo ou maravilhoso não. Mas eu acho que foi normal, foi prazeroso e tal, mas nada do que a gente imagina não, ‘nossa é lindo, é prazeroso, é isso e aquilo’. Não, dói, é chato, é incômodo” (Helena) “(...) Foi... é... um jeito estranho... assim, do jeito que foi, né? (...)É, foi estranho por causa da conseqüência, né? (...) Na maneira, nada planejado, vamos colocar assim...” (Afonso) Helena e Afonso concebem o casamento como uma união que não provocou mudanças relevantes em suas vidas, principalmente no que diz respeito à aquisição de novas responsabilidades, comportamentos ou papéis. Nessa relação, destacam-se sentimentos de companheirismo, amizade e diversão, em que o papel de objeto de apoio é assumido por ambos. Porém, interesses e atividades sexuais não foram mencionados ou enfatizados. Dessa 424 forma, as pulsões e comportamentos sexuais são evitados e combatidos pela repressão, indicando a dificuldade de ambos em vivenciar uma relação genitalizada, uma sexualidade madura e adulta. A paternidade e a maternidade estão atreladas a conteúdos ambivalentes por parte de ambos os cônjuges, marcados pelo desejo e receio de ter filhos, justificado no relato manifesto pela impaciência no contato com crianças. “(...) Olha... um sonho, aquela coisa de ser mãe, de dar vida, isso é mais um sonho. Sabe... hoje, eu tenho sobrinhos pequenos e eu fico com eles meia hora eu tenho vontade de matar eles sabe, esses dias eu falei: Deus faz as coisas certas por linhas tortas, você já imaginou eu com um desse aqui? Mas... eu sempre quis, sempre... e de repente não poder é complicado” (Helena) “(...) Às vezes, eu sou meio... um pouco impaciente com criança, mas eu como pai eu... não sei (...). Vamos levar pra mim fazer aquele papel de pai também, né? Que eu não tive por não ter... tempo, por meu pai não ter tempo, né? Igual eu penso em levar ele numa pescaria, um companheiro de pesca, né? Pai e filho... de sentar ali e ensinar ele...” (Afonso) Entretanto, ambos compreendem a chegada de um filho como uma forma de crescimento pessoal e estabelecimento de uma verdadeira família. Dessa forma, ter filhos constitui a única maneira de alcançar um desenvolvimento sexual pleno. Porém, a possibilidade de assumir o papel de pai e de mãe aparece limitada por implicações físicas, devido à infertilidade, bem como psicológicas, em que se destacam conflitos relativos à assunção da identidade feminina e masculina. No caso de Helena, ressaltam-se os conflitos edipianos não elaborados, a intensa rivalidade feminina, bem como a rejeição de uma maternidade e sexualidade em que o espaço para o prazer não é possível. Esta rejeição pode ser relacionada a uma barreira entre afeto (prazer) e representação (idéia de maternidade), formada pelo forte mecanismo de repressão, e fortalecida pelo comprometimento de sua capacidade criativa, presente desde a infância. A 425 dificuldade de aceitação e vivência da feminilidade pode ser ilustrada nas falas de Helena em que relata sua rejeição à menstruação, insatisfação com o corpo, principalmente com o volume dos seios, e relacionamento com outras mulheres. “(...) Uh! Só de falá, ah! Eu falo que eu não tenho tanta TPM, eu tenho DPM, durante a menstruação, é terrível nossa! (...) Não, até hoje, ninguém merece, aí eu sou muito nojenta para essas coisas, ninguém merece, mas não tem jeito (...). Mas não me adaptei até hoje.” “(...) Isso aqui é hormônio puro (Helena aponta para os seios), lá em casa ninguém tem, ninguém merece!” “Sempre me dei melhor com homem do que com mulheres, sempre me dei muito melhor com o meu pai do que com a minha mãe, e me dava melhor com o meu irmão do que com as minhas irmãs. (...) Eu acho homem mais sincero apesar de tudo, eu acho mulher muito traiçoeira (...). Minha relação com o meu pai não tem igual, a imagem que eu tenho do meu irmão não é igual para as minhas irmãs, sabe.” Para Afonso, os conflitos relativos à assunção da identidade masculina dizem respeito especialmente aos problemas de relacionamento com a figura paterna e sua dificuldade de identificação com ela. Nesse contexto, os conflitos emocionais de Helena e Afonso favorecem uma vivência mais infantil da sexualidade, em que a idéia de ter filhos surge como uma forma de desenvolvimento pessoal, mas, ao mesmo tempo, implica no enfrentamento desses conflitos que são, por sua vez, constantemente evitados. Em relação ao enfrentamento da infertilidade, Helena forneceu dados importantes relacionados ao seu prejuízo emocional e ao surgimento de sintomas depressivos como a culpa por ser a “portadora” do problema. Apesar do esforço de ambos, Helena afirma que a problemática da infertilidade e o sentimento de culpa interferem no relacionamento conjugal. “(...) Hoje assim... apesar que eu tento controlar o máximo, mas no início era pior porque elas (crises de choro) eram uma vez a cada 15 dias, e eu chorava demais, eu não me controlava mesmo, então por mais que ele fizesse de tudo para me apoiar, para mim não tava 426 de bom tamanho, porque querendo ou não querendo por mais que ele participe, é um problema meu, não é dele; ao ponto de quando ele foi fazer o espermograma eu rezar para dá alguma coisa no exame dele, para tirar um pouco esse peso das minhas costas sabe. Então hoje, gravidez me tira muito do sério; qualquer coisa relacionada à gravidez eu fico me cercando sabe, para eu não me magoar (...) Acho que a princípio foi para não ter que sentenciar ele a ficar do lado de uma pessoa que não pode ter um filho. Porque todo mundo, no fundo, no fundo quer ter um filho, entendeu? Então eu acho que foi mais isso.” (Helena) Já Afonso apresentou dificuldades para entrar em contato com este tema, mostrando o uso de intensos mecanismos de defesa. Assim, ele limitou-se a mencionar sua preocupação com o sofrimento da esposa diante dessa problemática. Nesse contexto, nota-se que apesar do apoio mútuo manifesto no enfrentamento da infertilidade, há um distanciamento e evitação por parte do marido, devido à sua dinâmica interna e formas de manejar o sofrimento, que favorecem a culpabilização de Helena pela dificuldade em ter filhos. “(...) Não foi... normal... aí... ela julgou a culpa de até ser minha... aí eu fui fazer o teste, aí viu que não era, aí foi ver, conversamos, aí... dei o apoio pra ela, aí ela... aí acho que não ter jeito, aquela... parcela de culpa, né? De, às vezes, também o medo, né? De ela não poder me dar um filho, aí eu falar assim: Puta, mas por que que eu vou ficar ela também?. (...) Não é assim, só ter filho só... casamento, qualidade também não é só... constituir uma família, né?(...)” (Afonso) Por meio de uma análise geral das produções de Helena e Afonso diante das pranchas do TAT, pode-se perceber que os conflitos emergentes se baseiam na oposição entre desejos e proibições, assumindo um caráter neurótico. Destaca-se em ambos o uso predominante de procedimentos de registro da labilidade e de registro rígido. No registro lábil, é dominante a expressão de afetos, geralmente vinculadas ao acento dado às relações interpessoais; já no registro rígido, destaca-se o apego à realidade com descrição de detalhes objetivos dos cartões. A problemática edipiana ocupou o eixo central das produções, marcadas 427 também pelos conflitos interpessoais, em que surgem conteúdos relativos à infertilidade e proeminência da angústia de perda do objeto e/ou de seu amor. Para exemplificar, seguem abaixo trechos das produções de Helena diante dos cartões 7BM e 13B, cujos conteúdos latentes referem-se, respectivamente, a relação mãe e filha e ao medo de abandono dos pais. “(...) Ah, não sei, não gostei não, é estranho eu vejo dois olhos assim, mas não é pessoa. Animal, aí! Ou alguma coisa da história, sabe? Eu que tô viajando na história dela, deixa quieto isso aí (...). Mas isso aqui me dá a sensação de alguma coisa ruim.” “(...) Me dá a sensação de... me dá a sensação de tristeza, é... assim quando a gente vê imagem na televisão de lugares simples sabe, apesar que essa criança está bem vestida, me dá a sensação que é uma criança que precisava de mais colo, que passa fome, sabe, ela está esperando alguém chegar com alguma coisa, ou o pai ou a mãe com alguma coisa para ela comer. Eu espero que cheguem logo com a comida para passar isso.” Em relação à estrutura de personalidade, Bergeret (1998) propõe critérios de classificação que se apóiam em dados metapsicológicos e genéticos das organizações psíquicas. Esses critérios baseiam-se em quatro fatores principais: natureza da angústia latente, modo de relação do objeto, principais mecanismos de defesa e modo de expressão habitual do sintoma. Desse modo, Bergeret (1998) acentua as condições de ligação das diferentes organizações psíquicas entre si, seu estatuto do modo de funcionamento mental latente e não apenas os aspectos aparentes dos comportamentos observados. Em relação à linhagem estrutural neurótica, Bergeret (1998) afirma que estas organizações têm acesso à triangulação genital sem frustrações precoces ou fixações prégenitais demasiadamente severas. Assim, a linhagem estrutural neurótica é caracterizada pela 428 organização da personalidade sob o primado do genital. O conflito central situa-se entre o superego e as pulsões e desenrola-se no interior do ego. A angústia específica das organizações neuróticas diz respeito à ameaça de castração, e sua defesa característica é o recalque. Há outros mecanismos acessórios, mas não há recusa da realidade, uma vez que as exigências do princípio do prazer ficam submetidas ao controle do princípio da realidade. A relação de objeto neurótica realiza-se de modo genital e objetal, em que o objeto conserva uma posição proximal e é buscado nesse sentido. Com base nos critérios propostos por Bergeret (1998), a análise geral dos dados sinaliza que os conflitos vivenciados por ambos os cônjuges são de ordem neurótica, por se constituírem pela oposição entre proibições e desejos, especialmente vinculados ao recalque das pulsões agressivas e sexuais. Desse modo, evidenciam-se aspectos da estrutura de personalidade de Helena e Afonso, como o primado do genital e a angústia de castração. Porém, elementos como o ponto de vista tópico, a gênese da relação parental e a representação fantasmática diferenciam-se, indicando que Helena possui uma subestrutura histérica de conversão, enquanto que Afonso apresenta uma subestrutura obsessiva. 6. Considerações Finais: De acordo com essas características psicológicas observadas no casal, torna-se possível assumir um determinado posicionamento em relação às postulações teóricas citadas no início do trabalho. Helena indica prejuízos em relação ao brincar e, conseqüentemente, na expressão livre de sua criatividade. Esse resultado merece destaque, ao considerar os estudos feitos por McDougall (1991), em que estes prejuízos interferem na formação da unidade psicossomática. Para McDougal (1991), nas manifestações psicossomáticas há uma carência na elaboração 429 psíquica e uma falha na simbolização, as quais são compensadas por um agir, que busca a redução da dor psíquica pelo caminho mais curto. Assim, as manifestações psicossomáticas são atribuídas a uma carência da capacidade de representar o conflito, e a impossibilidade de haver recalcamento. Nesse contexto, as características de Helena corroboram com a teoria de McDougal (1991) em que a blocagem na capacidade de representar ou de elaborar as demandas instintivas que corpo dirige à psique constitui um fator psicológico importante na etiologia e manutenção da endometriose. Helena também apresentou peculiaridades na passagem pelo Complexo de Édipo, que pode ter prejudicado o alcance de uma sexualidade genitalizada, fator comum entre as mulheres inférteis conforme Langer (1986), Perseval (1986), Levy Jr. (1980), Maldonado (1992) e Tubert (1996). Assim, é possível inferir que a baixa capacidade de fantasiar e a vivência precária da sexualidade auxiliaram na formação de uma conversão somática simbolizada, uma vez que o corpo converte-se em uma via possível de expressão dos conflitos psíquicos. Os sintomas depressivos atrelados à infertilidade, como a expressão de tristeza, baixa auto-estima e, especialmente, culpa por ser a portadora do diagnóstico de endometriose são resultados que correspondem àqueles presentes na literatura, em estudos feitos por autores como Mamede (2000), Moreira, Tomaz e Azevedo (2001), sobre as dificuldades emocionais enfrentadas pelas mulheres inférteis. Neste contexto, pode-se inferir que os fatores psicológicos de Afonso, como suas características obsessivas, a constante evitação e repressão de conteúdos negativos podem ter contribuído para que Helena se tornasse portavoz da dor /sofrimento diante da infertilidade. As peculiaridades da passagem pelo Complexo de Édipo e do desenvolvimento psicossexual de Afonso e Helena podem ter como resultantes os prejuízos na capacidade de assunção da paternidade e maternidade, marcada por sentimentos ambivalentes. Assim, as 430 características psicodinâmicas de cada membro sinalizam as dificuldades de enfrentamento e elaboração de conflitos, mas a união entre os membros constitui uma forma apoio frente a essas dificuldades. 7. Referências Bibliográficas: Abrão et al. (1998). Classificações da endometriose: é tempo de reavaliar. Femina, v. 26, n. 8, p. 677-680. Acosta, A. (1990). Endometriose. In: Ferrari, A.N. (1990). Esterilidade Conjugal. São Paulo: Roca, 1991. American Society for Reproductive Medicine. (1995). Infertily: coping and decision making – a guide for patients. Birmingham: Alabama. Bergeret, J. (1998). A personalidade normal e patológica. (M. E. V. Flores, Trad.). 3ª ed. Porto Alegre: ArtMed. (Trabalho original publicado 1996). Brandi, M.C.A.C.; Pina, H.; Lopes, J.R.C. (1997). Epidemiologia da infertilidade. In: Donadio, N.; Lopes, J.R.C.; Melo, N.R. (1997). Reprodução humana II: infertilidade, anticoncepção e reprodução assistida. São Paulo: Organon. 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New Delhi: Byword Editorial Consultants. 433 Candidatura 22 Autores: Fernanda Mishima, Valéria Barbieri & Ana Paula Parada Título: Apresentação do setor de triagem e atendimento infantil e familiar (staif) do centro de pesquisa e psicologia aplicada (usp): uma experiência em formação 434 APRESENTAÇÃO DO SETOR DE TRIAGEM E ATENDIMENTO INFANTIL E FAMILIAR (STAIF) DO CENTRO DE PESQUISA E PSICOLOGIA APLICADA (USP): UMA EXPERIÊNCIA EM FORMAÇÃO Fernanda Kimie Tavares Mishima – [email protected] Ana Paula Parada – [email protected] Valéria Barbieri – [email protected] Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto Universidade de São Paulo Brasil RESUMO Uma área complexa no trabalho do psicólogo se refere à psicopatologia infantil, pois os sintomas infantis podem ou não perdurar por um longo período de tempo, levando a patologias mais complexas na vida adulta. Por este motivo, uma abordagem precoce das dificuldades psicológicas infantis e sua intervenção se tornam fundamentais na Psicologia Clínica, além da inclusão da família no tratamento da patologia infantil. Na clínica-escola de Psicologia da Universidade de São Paulo, campus Ribeirão Preto, foi implantado um serviço de atendimento infantil, privilegiando o contato familiar e a conseqüente intervenção. Assim, foi criado o Setor de Triagem e Atendimento Infantil e Familiar (STAIF). A triagem consiste em quatro sessões: entrevista inicial com os pais da criança, sessão lúdica com a criança, entrevista familiar diagnóstica (EFD) e devolutiva (com os pais e a criança em separado). Com os dados advindos das triagens, pretende-se construir um programa informatizado para organização do serviço e armazenamento de informações, em conjunto com profissionais de outras áreas, como Ciências da Informação e Documentação e Informática Biomédica. 435 Finalmente, haverá maior rapidez do trabalho administrativo da clínica-escola, bem como possibilidade de pesquisas de caráter sócio-demográfico e estudo das psicopatologias infantis, além da eficácia da intervenção no atendimento infantil. INTRODUÇÃO Uma das áreas mais complexas para o psicólogo refere-se à psicopatologia infantil, já que os sintomas infantis podem ou não perdurar por um longo período de tempo, levando a patologias mais complexas na vida adulta. Somado a esse fato, os diversos sintomas apresentados por uma criança são passíveis de estarem vinculados às vicissitudes do desenvolvimento, quando o ego, ainda imaturo, recorre a variados mecanismos de defesa no intuito de dominar a ansiedade, resultando em aparentes sinais de perturbação. Mesmo que alguns desses sintomas possam desaparecer com o tempo, outros permanecem durante toda a infância e adolescência, desembocando em quadros mais graves na vida adulta, de difícil tratamento e, às vezes, irreversíveis. Nesse sentido, torna-se de importância fundamental para a Psicologia Clínica a realização de uma abordagem precoce das dificuldades psicológicas, bem como o estudo de tipos de intervenção mais eficazes para a população infantil. Logo, em relação ao diagnóstico psicológico, é possível assinalar que, para que o psicólogo o faça de maneira precisa e tranqüila, ele necessita reunir diversos conhecimentos presentes em sua formação. Por se tratar de um processo longo, e, por vezes, dispendioso financeiramente, o processo de triagem, que antecede a realização do diagnóstico psicológico, termina por adquirir grande importância. Apesar do elevado índice de prevalência de psicopatologia entre a população infantil, existem poucos serviços voltados para o atendimento dessa demanda. As clínicas-escolas de 436 determinadas instituições são consideradas as mais comuns no oferecimento de tal serviço, reunindo finalidades de extensão, pesquisa e ensino. Nesse sentido, a avaliação psicológica com objetivos de triagem exerce fundamental importância em clínicas-escola de Psicologia e em instituições de saúde (principalmente as públicas), no intuito de selecionar urgências, realizar encaminhamentos adequados e melhor organizar as listas de espera por atendimento. Por oferecer informações relativas à estrutura e funcionamento de um indivíduo por meio de uma avaliação rápida e com a utilização de poucas técnicas, o processo de triagem passa a ser considerado uma das tarefas mais complexas da área da avaliação psicológica, também por exigir do profissional amplo conhecimento científico e prático somados à sensibilidade clínica. Contudo, os estudos presentes na literatura científica acerca do tema da triagem psicológica são escassos, surgindo de maneira superficial e indiretamente relacionados a publicações que tratam de instrumentos psicológicos específicos, geralmente de natureza objetiva. Em tais estudos, denota-se que a indicação do uso do instrumento para finalidades de triagem é feita a partir da constatação de suas limitações, sugerindo que os possíveis erros decorrentes das técnicas passam a ser toleráveis nessa situação, pois há oportunidades de correção durante o processo psicodiagnóstico que necessariamente se seguirá. Diante de tal fato, é possível assinalar a presença de uma espécie de inversão de valores relativos ao trabalho de triagem que, de atividade altamente complexa, passa a ser considerada como secundária ao psicodiagnóstico, sem usufruir de seu status. Somado a essas dificuldades enfrentadas pela visão que se tem do processo de triagem, deve-se enfatizar que a maioria das clínicas-escola de Psicologia e instituições de 437 saúde que contam com procedimentos de triagem dedica-se à população de adultos. Geralmente tal procedimento é realizado por meio de uma única entrevista psicológica. Portanto, é mais raro encontrar instituições com setores específicos destinados à triagem de crianças e, nos locais onde eles existem, o processo é bastante semelhante àquele realizado com a população adulta, com a diferença de que a entrevista é realizada individualmente com os pais, ou em grupo. Dessa forma, a informação que se tem sobre a criança é indireta, permeada pela percepção que os pais têm dela. Pensando nesses dois tipos de entrevista, tem-se que a informação (compreendida não apenas pelo relato verbal manifesto, mas incluindo toda a atmosfera afetiva) obtida por meio da entrevista de triagem de um adulto que procura atendimento psicológico passa a ser considerada diferente daquela que se tem quando os pais se referem ao filho. Ao realizar a avaliação da personalidade infantil, surge um aspecto de suma importância cada vez mais estudado e considerado na literatura, que diz respeito às influências do meio familiar na saúde ou patologia da criança. Em relação a essas considerações, o papel da mãe na construção da saúde mental do filho já é reconhecido há tempos, e apenas há bem pouco surgiu o interesse pelo papel do pai (Barbieri, 2002; Mishima, 2007). Quanto à relevância do contexto familiar no desenvolvimento emocional das crianças, as idéias de Winnicott foram bastante difundidas, especialmente a presença de uma mãe suficientemente boa, que é capaz de atender as necessidades da criança e realizar as funções de holding, handling e apresentação de objetos. Dessa forma, a mãe exerce papel fundamental na sustentação do ego incipiente do bebê, e, o pai, deve apoiá-la em sua função, além de que, em estágios mais tardios do desenvolvimento, ele passa a agir como pessoa separada da criança e da mãe e como ser sexuado (Winnicott, 1979/1990). Dentre os critérios para o diagnóstico estrutural da personalidade, Bergeret (1996/1998), por sua vez, destaca a gênese da relação parental do indivíduo, que é específica 438 ao registro neurótico, psicótico ou limítrofe. Para este autor, a estrutura da personalidade se desenvolve a partir desses relacionamentos familiares. De acordo com estudos mais clássicos, várias contribuições a respeito da influência do ambiente familiar (em sua estrutura e dinâmica) proliferaram e, com elas, novas propostas de psicoterapia familiar, diádica e conjugal. Apesar do reconhecimento tardio, esses desenvolvimentos alcançaram o âmbito do diagnóstico psicológico, tanto que, atualmente, a avaliação infantil realizada de maneira desvinculada do ambiente familiar passa a ser considerada incompleta. No entanto, mesmo quando o ambiente familiar é levado em consideração, novas questões surgem, especialmente relacionadas ao manejo prático da situação de avaliação (ou de intervenção). Somado a esse fato, a literatura não oferece respaldo para fundamentar as ações do profissional. Nesse sentido, Siskind (1997) é uma das poucas estudiosas a oferecer uma contribuição importante referente a alguns impasses comumente encontrados na psicoterapia infantil. Dentre eles, é possível destacar: • O terapeuta da criança deve ser ou não o mesmo dos pais? Caso seja diferente, os pais devem ser atendidos como um casal ou individualmente? • Quando os pais de uma criança em tratamento são vistos pelo terapeuta do filho, eles devem ser compreendidos também como pacientes ou não? • Os pais devem ser orientados diretamente com relação ao filho, ou isso significa desrespeitar um direito deles? • Em que idade considera-se a criança já crescida para continuar a manter contato regular com seus pais? • Até onde vai o direito da criança à confidencialidade e até onde vai o direito dos pais de saberem o que está acontecendo no tratamento do filho? • A participação dos pais no tratamento da criança deve ser voluntária ou compulsória? 439 • No caso de pais separados, o que acontece em relação à confidencialidade, ao contato com ambos os genitores, com padrastos e madrastas, o papel do psicólogo em disputas de custódia e assim por diante? Assim, é possível enfatizar que, embora relacionado principalmente ao trabalho terapêutico, esses questionamentos de Siskind (1997) aplicam-se igualmente ao trabalho de avaliação psicológica, incluindo a triagem, fato esse que confirma a complexidade dessa atividade. Portanto, após a exposição acima, é possível concluir que um trabalho de triagem psicológica da população infantil deve, necessariamente, ser realizado de modo a proporcionar uma compreensão global e integrada da família e, nesse contexto, não pode prescindir do uso de instrumentos projetivos de diagnóstico. Essa compreensão global, que inclui a determinação das tramas relacionais e sociais que resultam em psicodinamismos idiossincráticos, implica a utilização de um modelo compreensivo de avaliação psicológica em acordo com o modelo proposto por Trinca (1984). Em relação à população que procura atendimento psicológico para as crianças nas clínicas-escola e instituições de saúde é grandemente extensa e variada. Somado a esse fato, tem-se a existência de um longo tempo de duração dos atendimentos psicológicos em nosso país, tanto em função de necessidades específicas dos pacientes, mas também em relação às preferências da maioria dos nossos profissionais. Logo, tal combinação faz com que haja um aumento das filas de espera para atendimento. Conseqüentemente, até o paciente ser convocado para o atendimento terapêutico propriamente dito, há um grande espaço de tempo contado a partir do momento em que solicitou auxílio e foi feita a triagem. Tal situação é passível, a nosso ver, de adulterar os processos transferenciais (e contratransferenciais) na relação com o profissional, por ser capaz de gerar no usuário a sensação de que a instituição negligencia o seu sofrimento, mesmo sabendo da dimensão dele. Portanto, a relação 440 estabelecida pelo paciente com o profissional pode aparecer permeada e entremeada pelos sentimentos de impotência, desprezo e inferioridade. Diante dessa situação, torna-se de suma relevância que a entrevista de triagem possa, portanto, ser explorada em todos os seus recursos, o que significa incluir em seu processo uma característica não somente diagnóstica, mas também interventiva. Situação semelhante também se aplica ao contato com os pais, e mesmo nos casos em que se detecta que um deles, ou ambos, necessitam de atendimento psicológico (em conjunto com a criança ou não) as intervenções nessa etapa podem auxiliá-los na assimilação dos encaminhamentos. Essas funções seriam acrescidas àquelas já cumpridas pelas triagens tradicionais, de detecção de urgências, organização de filas de espera e realização de encaminhamentos, trazendo como vantagem o aumento da precisão diagnóstica, dada a sua maior compatibilidade com os desenvolvimentos teóricos e técnicos da área clínica de atuação. Outro aspecto que merece destaque em relação ao processo de triagem realizado pelas clínicas-escola diz respeito ao seu funcionamento e organização do trabalho, particularmente relacionado ao percurso do paciente, pois este ainda vem sendo realizado por meio da consulta a prontuários e fichas impressas de seguimento, guardadas em arquivos convencionais. Tal processo faz com que os profissionais gastem muito tempo para a consulta e acompanhamento dos pacientes, além de ocupar muitos espaços e inutilizar salas das clínicas. Somado a esse fato, esse tipo de armazenamento faz com que haja uma dispersão de informações que dificulta ou mesmo impossibilita a sua utilização para finalidade de pesquisa, comprometendo o avanço científico a partir dessa rica fonte de dados. Uma maneira possível de substituir os arquivos convencionais seriam os sistemas informatizados de gerenciamento de dados. A utilização de tais sistemas no campo da Psicologia Clínica já pode ser observada, segundo Prado (2005), com o desenvolvimento e comercialização de softwares de testes psicológicos, bem como de correções dos mesmos. 441 Porém, poucos registros podem ser encontrados acerca de softwares voltados para a informatização de serviços de Psicologia, visando à questão administrativa e a facilitação de pesquisas na área. Dentre os estudos disponíveis na literatura nacional, encontra-se o de Herzberg (2007), sobre a informatização da clínica-escola “Dr. Durval Marcondes” do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo. Nesta, um sistema foi elaborado para o registro das informações referentes, principalmente, a cadastro de pacientes, incluindo seus dados pessoais, histórico, atendimento, o que possibilitava o melhor acompanhamento do percurso destes na clínicaescola, assim como o andamento dos atendimentos e os profissionais responsáveis pelos mesmos. O programa também abarcava o cadastro de profissionais da própria instituição (docentes, estagiários, pós-graduandos) e vinculados, contendo, entre outros dados, sua especialidade e as modalidades de atendimentos realizados. Assim, com a possibilidade de inserção dos dados em um sistema e sua posterior filtragem dos dados, tornou-se viável a realização de pesquisas qualitativas, como levantamento do número de pacientes que procuraram a clínica, faixa etária da demanda, sexo e escolaridade predominantes, no período de 1999 a 2006 (Herzberg, 2007). Esses estudos, que possibilitam avaliar a triagem em clínicas-escola, denotam relevância em relação à melhor reformulação e adequação dos atendimentos prestados às necessidades específicas da população que busca seus serviços Prado (2005). Assim, o armazenamento dos registros de triagem em formato digital facilitaria o manuseio dos dados e também o número das pesquisas na área. Além dos estudos sócio-demográficos já citados, também seria possível a realização de outros, relacionados a áreas mais específicas da Psicologia, como a psicopatologia infantil, caso fosse possível o cruzamento da variedade de dados obtidos com as entrevistas psicológicas e métodos projetivos realizados no processo de triagem. 442 OBJETIVOS Diante de todas essas ponderações acerca da importância do processo de triagem em relação à população infantil, e da relevância em se ter um sistema digital para armazenamento de dados, o presente trabalho tem como objetivo realizar algumas considerações sobre a natureza e a complexidade do trabalho de triagem e apresentar, ao final, um modelo de processo dessa natureza dedicado à população infantil, que vem sendo implantado no Centro de Pesquisa e Psicologia Aplicada da FFCLRP-USP. A PROPOSTA DO SERVIÇO DE TRIAGEM E ATENDIMENTO INFANTIL E FAMILIAR (STAIF) No presente momento, o STAIF é composto por uma docente da área de avaliação psicológica infantil e quatro psicólogos (um contratado e três voluntários). Esses profissionais realizam o atendimento das crianças e suas famílias que procuram a clínica, seja de forma voluntário ou por meio de encaminhamentos. No funcionamento anterior do Centro de Pesquisa e Psicologia Aplicada (CPA), os pais ou responsáveis pela criança vinham pessoalmente ao local preencher uma ficha de inscrição e aguardavam a chamada para a atenção psicológica. O trabalho de triagem propriamente dito encontrava-se extinto há vários anos, em razão da aposentadoria da psicóloga por ele responsável, sem que houvesse sua substituição. No início deste ano, com o apoio do Departamento de Psicologia e Educação da FFCLRP e dos psicólogos voluntários, a docente em questão encampou essa atividade. Dessa forma, passou a ser instituído um modelo-padrão de atendimento em triagem, composto por uma entrevista de anamnese realizada preferencialmente com ambos os pais, 443 que é seguida por uma sessão lúdica com a criança. Posteriormente é realizada uma entrevista familiar diagnóstica (EFD) e entrevistas devolutivas com os pais e a criança. Esse modelo é suficientemente maleável, de forma a permitir a inclusão de outras técnicas de avaliação direcionadas tanto à criança quanto aos pais, quando se julga necessário. Portanto, trata-se de uma forma estendida de triagem, que prioriza o uso de instrumentos abertos e não diretivos, possibilitando a expressão das fantasias inconscientes de enfermidade e cura da criança e uma avaliação mais acurada dos recursos e limitações dos pais, tanto isoladamente, mas também, e principalmente, quando reunidos no grupo familiar, influenciando e influenciado pelos dinamismos que ali se desenrolam. Assim, a “sintomatologia da criança” é avaliada no contexto dos relacionamentos familiares, com a captura dos mecanismos projetivos e introjetivos neles presentes, o que é fundamental para a identificação de quem é o paciente real, independente da presença manifesta dos sintomas; nessa conjuntura é possível realizar encaminhamentos apropriados. Como houve a escolha pelo uso de métodos de avaliação fundamentados na associação livre, axioma do psicodiagnóstico compreensivo de Trinca (1984), tem-se por conseqüência o acatamento de outro de seus eixos estruturantes: a avaliação do material por meio da livre inspeção, com predomínio do julgamento clínico para, a partir daí, ser possível elucidar a significação inconsciente do sintoma, selecionar os seus aspectos centrais distinguindo-os dos acidentais, e assim por diante. O caráter interventivo que esse modelo de atendimento assume aparece em dois contextos. O primeiro deles, mais bem conhecido, refere-se ao emprego de assinalamentos, interpretações, holding e manejo por parte do profissional, fundamentado na hipótese winnicottiana de que o pouco conhecimento que o profissional tem sobre seu paciente é contrabalançado pelo profundo insight que ele consegue alcançar nesses contatos iniciais (Winnicott, 1957/1993). Com referência ao segundo contexto interventivo, ele surge no 444 momento em que se propicia à criança na sessão lúdica (e ao adulto na Entrevista Familiar) a possibilidade de expressão por meio do brinquedo, que permite, muitas vezes, restabelecer a conexão entre os processos primário e secundário de pensamento, dado o acesso que a atividade lúdica permite aos elementos mais primitivos da personalidade. Tal efeito, também observado por Winnicott (1971/1975), é responsável por sua assertiva de que o brincar é uma terapia universal. De acordo com estudos realizados, foi possível notar a existência de divergências teóricas entre autores e desses com os objetivos do trabalho de triagem da clínica-escola. Dentre elas, encontram-se as diferenças entre conceito de hora de jogo diagnóstica e hora de jogo terapêutica. Para Ocampo, Arzeno e Piccolo (2001), a hora de jogo diagnóstica é diferente da terapêutica, pois só a segunda é capaz de proporcionar mudanças estruturais por meio da intervenção do psicólogo. Contudo, na prática de triagem realizada na clínica-escola do CPA, a hora do jogo diagnóstica já funciona como hora de jogo terapêutica, já que a intervenção do psicólogo pode provocar essas mudanças, sendo que o processo de triagem não visa só a uma coleta de dados para futuro encaminhamento, mas, também, a ação do terapeuta sobre a problemática envolvida. CONSIDERAÇÕES FINAIS De acordo com essas características diagnósticas e interventivas do trabalho realizado no STAIF, torna-se possível assumir um determinado posicionamento em relação a algumas das questões levantadas por Siskind (1997). A principal delas é a de que nessa proposta, tanto a criança quanto os seus pais são vistos desde o início como pacientes, já que se parte do pressuposto de que não há patologia infantil que não esteja, pelo menos de certa forma, vinculada ao ambiente familiar. Nesse sentido, há concordância com o pensamento de Soifer (1992) de que mesmo nos casos em que a disfunção da criança seja de ordem claramente 445 orgânica, a forma como o ambiente a abordará tem efeitos importantíssimos no desenvolvimento posterior. Com relação ao caráter voluntário ou compulsório da participação dos pais no atendimento da criança, a despeito do relato de sua importância, optou-se pela voluntariedade, já que as imposições são contraproducentes em qualquer tipo de atendimento psicológico; neste caso específico, considera-se que elas podem contribuir para enrijecer defesas do tipo falso self, extremamente prejudiciais ao desenvolvimento próprio e do filho. Outras considerações de ordem ética como o respeito à liberdade individual e a consideração de que são de fato os pais os principais responsáveis pelo filho, também sustentam tal decisão, exceto em casos extremos. Com relação à questão sobre até que ponto uma orientação do profissional implica violar os direitos dos pais, nos momentos em que elas são feitas, não assumem jamais um caráter diretivo, mas são efetuadas no contexto da área da transicionalidade dos pais, permitindo-lhes uma apropriação pessoal e significativa delas, pois eles próprios também são considerados pacientes. Somado a esse fato, a equipe do STAIF tem mobilizado esforços para a construção de um programa informatizado no intuito de facilitar a organização do serviço e armazenamento de informações no Centro de Pesquisa e Psicologia Aplicada (CPA) da FFCLRP – USP. Tal programa está sendo construído em sistema de colaboração entre profissionais e dos cursos de Psicologia, Ciências da Informação e Documentação e Informática Biomédica. A informatização desse serviço deverá abranger tanto os dados relativos à identificação dos pacientes e seu percurso no CPA, como aqueles procedentes da entrevista de anamnese realizada com os pais, da sessão lúdica e da entrevista familiar. Nesse contexto, busca-se a congregação das atividades de extensão com as de pesquisa, bem como uma avaliação futura dos resultados que permita examinar as contribuições e restrições desse modelo de trabalho em triagem infantil, tanto no que se 446 refere às crianças e seus pais, mas também à sua adequação em relação aos objetivos gerais e específicos de instituições que oferecem atendimento psicológico à população. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS Barbieri, V. (2002). A família e o Psicodiagnóstico como recursos terapêuticos no tratamento dos transtornos de conduta infantis. Tese de Doutorado apresentada ao Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo. São Paulo: São Paulo. Bergeret, J. (1998). A personalidade normal e patológica. (M. E. V. Flores, Trad.). 3ª. ed. Porto Alegre: ArtMed. (Trabalho original publicado 1996). Herzberg, E. (2005). Gerenciamento informatizado de uma clínica-escola de psicologia. Tese de Livre-Docência, Instituto de Psicologia, Universidade de São Paulo, São Paulo. Recuperado em 8 de julho, 2008, de http://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/livredocencia/47/tde12032008-101133/ Mishima, F. K. T. (2007). Investigação das características psicodinâmicas de crianças obesas e de seus pais. Dissertação (Mestrado em Psicologia) – Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto, Universidade de São Paulo. Ribeirão Preto: São Paulo. Ocampo, M. L. S., Arzeno, M. E. G., & Piccolo, E. G. (2001). O processo Psicodiagnóstico e as técnicas projetivas. (M. Felzenswalb, Trad.). 10ª. ed. São Paulo: Martins Fontes. Prado, O. Z. (2005). Softwares para psicologia: regulamentação, produção nacional e pesquisas em Psicologia Clínica. Boletim de Psicologia, LV, 189-204. Recuperado em 8 de julho, 2008, de http://pepsic.bvs-psi.org.br/pdf/bolpsi/v55n123/v55n123a06.pdf Siskind, D. (1997). Working with parents. London: Jason Aronson Inc. 447 Soifer, R. (1992). Psiquiatria infantil operativa: psicologia evolutiva e psicopatológica. Porto Alegre: Artes Médicas. Trinca, W. (1984). Diagnóstico psicológico: a prática clínica. São Paulo: EPU. Winnicott, D. W. (1975). O brincar e a realidade. (J. O. A. Abreu; V. Abreu, Trad.). Rio de Janeiro: Imago. (Trabalho original publicado em 1971). Winnicott, D. W. (1990). O ambiente e os processos de maturação. (I. C. S. Ortiz, Trad.). Porto Alegre: Artes Médicas. (Trabalho original publicado em 1979). Winnicott, D. W. (1993). A família e o desenvolvimento individual. (M. B. Cipolla, Trad.). São Paulo: Martins Fontes. (Trabalho original 1957). 448 Candidatura 23 Autores: Sónia Pereira, Margarida Gaspar Ramos e Isabel Leal Título: Cultura, Iniquidade Social e Género: Contributos Para um Programa de Educação Sexual 449 450 CULTURA, INIQUIDADE SOCIAL E GÉNERO: CONTRIBUTOS PARA UM PROGRAMA DE EDUCAÇÃO SEXUAL Sónia Pereira*29, Margarida Gaspar de Matos** & Isabel Leal*** RESUMO: Nos últimos anos as investigações sobre a sexualidade na adolescência têm proliferado um pouco por todo o mundo. No entanto, os estudos qualitativos são ainda escassos, especialmente no que diz respeito ao estudo dos factores que devem ser trabalhados em contexto interventivo e em populações específicas. Objectivos: O presente estudo procura caracterizar os factores de risco/protecção associados à sexualidade dos adolescentes migrantes, com o intuito de delinear um programa de intervenção adaptado a esta população. Método: É utilizada uma metodologia qualitativa, através da utilização da técnica do grupo focal, onde são analisados relatos de 72 adolescentes distribuídos por 6 grupos focais (provenientes de duas escolas inseridas em ambientes socioculturais distintos). Resultados: São identificadas diferenças na forma como os jovens dos diferentes grupos vivem a sexualidade. Os jovens que vivem em meios mais carenciados destacam-se por terem menos informação, por comunicarem menos com os pais e por terem maior tendência para comportamentos de risco. Discussão: Verificou-se que os jovens são diferentes, no que diz respeito ao género, cultura e condições económicas, sendo fundamental que se desenvolvam programas de educação sexual que tenham em conta as especificidades de cada grupo-alvo. Palavras-chave: cultura, iniquidade, género, adolescência, prevenção, sexualidade, grupos focais, crenças, informação, factores protectores, factores de risco, gravidez, VIH/SIDA, infecções sexualmente transmissíveis, educação sexual. 29 * Projecto Aventura Social, Faculdade de Motricidade Humana/UTL ** Projecto Aventura Social, Faculdade de Motricidade Humana/UTL, Centro da Malária e Outras Doenças Tropicais/IHMT/UNL *** Instituto Superior de Psicologia Aplicada Toda a correspondência deve ser enviada para: [email protected] 451 CULTURE, SOCIAL INIQUITY AND GENDER: CONTRIBUTES FOR A SEXUAL EDUCATION PROGRAM ABSTRACT: In the past few years, studies about sexuality in adolescence had proliferated all over the world. Currently, there are few qualitative studies about sex behaviour in early adolescence and there is little practice-based information concerning interventions designed to reduce risk-taking sexual behaviours, especially in adolescents of specific social background. Objectives: The main objectives of this investigation are to understand and characterize risk and protective factors associated to sexuality of adolescents, seeking also a comparison of culture, economic status and gender. Method: Various aspects of sexuality in early adolescence are explored by qualitative analysis via focus groups. The participants of this study are 72 students from 8th grade. They come from different social background. Results: This study identified differences in how young people from different groups live sexuality. Adolescents from migrant communities and from families with low socioeconomic status tend to have less information, less communication with parents and more risky sexual behaviour. Discussion: Gender, culture and socioeconomic status are associated to differences in sex behaviour among adolescents. The development of programs about sexual education that have in account the specificities of each group is a very important issue. Key words: culture, iniquity, gender, adolescence, prevention, sexuality, focus groups, beliefs, information, protective factors, risk factors, pregnancy, HIV/AIDS, sexually transmitted infections, sexual education. A adolescência é uma etapa exploratória, onde se colocam em cena acontecimentos e comportamentos que podem influenciar a saúde dos indivíduos. A sexualidade é uma área de grande importância no desenvolvimento do adolescente e, apesar de existir cada vez mais informação e de proliferarem métodos que garantem uma sexualidade segura, as infecções sexualmente transmissíveis (IST’s) e a gravidez não planeada continuam a ser realidades difíceis de combater. As populações carenciadas continuam a apresentar mais fragilidades no 452 que diz respeito à vivência de uma sexualidade saudável e as condições económicas afectam em grande medida o bem-estar, a saúde e o desenvolvimento dos jovens que vivem em situação de iniquidade social. A pobreza e o desenraizamento cultural estão habitualmente associados a condutas problemáticas e adopção de comportamentos de risco em diversas áreas, nomeadamente na sexualidade. Por esta razão, são os adolescentes mais carenciados que mais necessitam de uma intervenção urgente, efectiva e eficaz no que diz respeito à promoção da saúde e da sexualidade saudável. A sexualidade na adolescência é um tema que tem merecido a atenção dos investigadores nos últimos anos um pouco por todo o mundo. No entanto, nem sempre os estudos efectuados valorizam a vertente qualitativa, o que permitiria a obtenção de informações que de outra forma não seriam identificadas. Também são escassos os estudos destinados a populações específicas, com o intuito de identificar pistas para a construção de acções interventivas e de trabalho com a comunidade, especificamente adaptadas às necessidades e especificidades da população-alvo. O objectivo deste trabalho é o de aprofundar a compreensão dos aspectos que influenciam a sexualidade dos adolescentes e determinam as suas decisões, nomeadamente no que diz respeito a crenças, atitudes e comportamentos de risco. Pretende-se também enfatizar a importância da educação sexual nas escolas, apurando quais são os factores que devem ser trabalhados ao nível da intervenção e personalizar os seus conteúdos, para que esta seja adaptada a populações específicas e de diferentes condições sociais. Adolescência, comportamentos de risco e sexualidade 453 A adolescência representa um período pleno de comportamentos, sentimentos e experiências intensas, que nem sempre surgem de forma tranquila. O impacto negativo dos comportamentos de risco e o perigo que implicam para o adolescente justifica a criação de inúmeras estratégias de promoção da saúde nesta faixa etária (Malik, Oandasan, & Yang, 2002). A sociedade assistiu a mudanças profundas na sexualidade. Actualmente a gravidez não desejada permanece um problema difícil de resolver, mas o aparecimento do VIH/SIDA e a proliferação das IST’s são fenómenos que se têm dispersado um pouco por todo o mundo, incluindo Portugal. A antecipação das primeiras experiências sexuais, associada à idade cada vez mais tardia do primeiro relacionamento longo e estável alargou o período de relações sexuais instáveis. Este fenómeno aumentou a vulnerabilidade dos adolescentes a IST’s (Charlotte, Fitzjohn, Herbison, & Dickson, 2000). A informação é considerada um factor importante, pois está habitualmente associada à adopção de comportamentos protectores. Embora há algumas décadas atrás fosse difícil encontrar informação sobre sexualidade, actualmente é fácil obter conhecimentos sobre esta temática. Mas para que esta informação se traduza em comportamentos protectores, é fundamental que a informação transmitida esteja correcta. Por outro lado, a relação entre informação e comportamento nem sempre é linear (Camargo & Botelho, 2007; Martins, Nunes, Muñoz-Silva; Sanchez-Garcia, 2008). O comportamento sexual é influenciado por diversas situações, crenças, atitudes e comportamentos. Kirby (2001a) identificou mais de cem razões que levam um adolescente a adoptar comportamentos de risco face à sexualidade, tais como (a) factores económicos, (b) características da comunidade, (c) estrutura familiar, (d) influência dos pares, (e) características biológicas, (f) relação com a escola, (g) perturbações emocionais, (h) crenças e atitudes sobre sexualidade, entre outros. Estes factores devem ser trabalhados no âmbito da promoção da saúde sexual e reprodutiva. Existem outros factores, 454 para além da informação, que podem afectar as decisões relativas ao comportamento sexual dos adolescentes. O comportamento sexual depende fortemente do contexto social, da cultura, da forma como somos educados e das crenças. Estes factores podem gerar comportamentos de risco, que constituem ameaças reais à saúde do adolescente (Muluka, & Slonim-Nevo, 2007; Parker & Camargo, 2000; Pontes et al, 2004). Muitos dos comportamentos relacionados com a promoção da própria saúde são aprendidos no contexto familiar durante os primeiros anos de vida, onde os pais e os familiares mais próximos funcionam como modelos (WHO, 2000). O surgimento da adolescência implica paralelamente um certo afastamento da segurança do meio familiar, associado a uma progressiva aproximação do grupo de pares. A busca da identidade, a procura de autonomia e a necessidade de pertencer ao grupo leva por vezes o adolescente a adoptar comportamentos de risco e a deixar que as decisões dos seus pares determinem as suas escolhas (Albino, Vitalle, Schussel, Batista, 2005; Arilha e Calazans, 1998, cit. por Vieira, 2008; Borges, Latorre, & Schor, 2007; Martins, Nunes, Muñoz-Silva; & Sanchez-Garcia, 2008). A relação entre o adolescente e o seu grupo de pares é marcada pela intensidade. Esta intensidade pode ser perigosa ou protectora, exigindo que sejam delineados programas de promoção da saúde que tenham em conta as especificidades desta faixa etária, evitando ser demasiado simplistas. Actualmente o adolescente passa a maior parte do seu tempo na escola, sendo este um ambiente privilegiado para a realização de aprendizagens que promovam a saúde. Uma escola promotora de saúde deve ser considerada como fonte de desenvolvimento de atitudes e comportamentos orientados para a promoção da saúde e bem-estar (WHO, 2000). Pobreza, etnicidade e iniquidade 455 Os factores socioculturais podem influenciar a sexualidade e o planeamento familiar dos indivíduos (Kirby, 2001; Singh, Darroch, & Frost, 2001). A gravidez não desejada afecta maioritariamente as classes mais desfavorecidas, o mesmo acontece em relação ao início precoce da vida sexual (Singh, Darroch, & Frost, 2001). Esta é uma das razões que justifica a importância do investimento em programas de educação sexual que se destinem especialmente a estas populações. O VIH/SIDA, a gravidez e as IST’s afectam frequentemente jovens pertencentes estes grupos populacionais socialmente e economicamente desfavorecidos, nomeadamente indivíduos pertencentes a minorias étnicas (Aronowitz, 2005; Aronowitz, Todd, Agbeshie, & Rennells, 2007; Nagel, 2000; Ogungbade, & James, 2005; Parker, 1997; Parker, 2001; Parker & Camargo, 2000; Rumbaut, 2005; Sikkema et al, 2005). Estes jovens podem apresentar uma tendência para a prevalência de condutas problemáticas, como início precoce da vida sexual (Carvajal, 1999; Larkins, 2007; Matos et al, 2006; O'Donnell, Dash, JeanBaptiste, Stueve, & Wilson, 2002), menor utilização de contraceptivos (Brückner, Martin, & Bearman, 2004; Matos et al, 2006), menor utilização do preservativo (Larkins, 2007; Ogungbade, & James, 2005), consumo de substâncias (Matos et al, 2006; Parker & Camargo, 2000; Pontes et al, 2004), relações sexuais associadas à violência e relações sexuais casuais (Parker & Camargo, 2000; Pontes et al, 2004), relações sexuais associadas ao consumo de substâncias (Larkins, 2007; Rashad & Kaestner, 2004). Blum et al (2000) consideram que estes resultados podem dever-se à etnicidade, mas existe também um peso importante de outros factores, nomeadamente a pobreza e o padrão de comportamento familiar. Estes autores consideram que a etnicidade não é o único preditor de uma sexualidade pouco segura, existindo a necessidade de desenvolver perspectivas mais abrangentes que englobem também conceitos como a pobreza ou a iniquidade. Estes autores 456 sugerem o desenvolvimento de estudos qualitativos que explorem os factores que determinam o comportamento sexual destes adolescentes, uma vez que os resultados obtidos através de estudos quantitativos apresentam grandes variações individuais e resultados bastante heterogéneos. Nestas populações existem diferenças de género, que mostram como a forma implícita como a educação influencia as crenças dos adolescentes. As raparigas recebem da família mensagens negativas acerca da sexualidade, que é vista como algo associado à culpa e vergonha (Ndinda, Chiweni, Uzodike, & Okeke, 2007; Pacheco-Sánchez, 2007). Os rapazes recebem frequentemente mensagens que associam a sexualidade à virilidade, sendo aceitável ter várias parceiras e esperado que sejam os homens a decidir se querem ou não usar preservativo (Ferguson, Sandelowski, Quinn, & Crouse, 2006; Pacheco-Sánchez, 2007). Alguns investigadores exploraram as crenças que os indivíduos migrantes e de baixo estatuto socio-económico têm acerca do VIH/SIDA, o que influencia a adopção de comportamentos sexuais seguros ou de risco (a pessoa infectada tem mau aspecto, o tempo de transmissão é limitado, os problemas só acontecem aos outros, o preservativo é demasiado caro, usar preservativo é sinónimo de desconfiança e promiscuidade) (Aarons & Jenkins, 2002; Connell, McKevitt, & Low, 2004; Ekere, Ogungbade, Gbadebo, Osemene, Meshack, & Peters, 2005; Juarez, & Martin, 2006; Manuel, 2005; Merchán-Hamann, 1995; Moore, 2006; Ogungbade, & James, 2005; Parker & Camargo, 2000). No que diz respeito à prevenção da gravidez, os contraceptivos orais nem sempre são aceites pelas adolescentes carenciadas ou desenraizadas em termos culturais. A falta de informação sobre os efeitos secundários e a ausência de locais onde possam esclarecer as suas dúvidas fazem prevalecer crenças (gravidez como um mal necessário, como sinónimo de feminilidade) e são os principais factores que determinam a não aderência a estes fármacos (Clark, Barnes-Harper, Ginsburg, Holmes, & Schwarz, 2006; Mushi, Mpembeni, & Rose, 2007). 457 Outro aspecto que influencia fortemente os comportamentos sexuais dos adolescentes migrantes é a pressão dos pares (Aarons & Jenkins, 2002), que influencia geralmente decisões relativas ao início da vida sexual e à utilização de preservativos (Camargo & Botelho, 2007; Stanton et al, 2002; Whitaker & Milleer, 2000). Entre os adolescentes mais carenciados existem alguns factores protectores que estão correlacionados com maior adopção de comportamentos sexuais saudáveis, nomeadamente a detenção de informação correcta acerca de VIH e prevenção de IST (Juarez, & Martin, 2006), comunicação com os pais, onde é permitida a discussão aberta de temas relacionados com a sexualidade (Aronowitz, 2005; Stanton et al, 2002; Whitaker & Milleer, 2000). No entanto, nem todos os pais se mostram à vontade para abordar estas temáticas e os progenitores com menor nível socio-económico e menor nível de escolaridade apresentam mais dificuldade em falar sobre sexualidade, por não terem conhecimentos suficientes sobre prevenção do VIH/SIDA e IST´s (Lefkowitz, Boone, Kit-fong, & Sigman, 2003). A informação transmitida pelos pais exige um complemento facultado pela escola, pelo centro de saúde e pela comunidade. A aprendizagem sobre a escolha de uma sexualidade saudável e sem comportamentos de risco requer uma intervenção efectiva e precoce (Cláudio, & Sousa, 2003). Para que se obtenham bons resultados são necessários investimentos sociais estruturais, especialmente no que diz respeito ao acesso universal à Educação e à Saúde (Taquette et al., 2005). MÉTODO Participantes Os jovens que participaram no estudo frequentam num externato (classe média, média-alta) e uma escola pública (inserida numa zona onde vivem maioritariamente jovens migrantes e/ou carenciados). Foram organizados 6 grupos 458 focais, três em cada escola (rapazes, raparigas e misto), cada um com 12 alunos (total: 72 alunos). A idade dos alunos varia entre os 13 e 15 anos (8º ano de escolaridade). Os grupos são homogéneos e representativos da população que se pretende investigar, em relação à idade, nível educacional e nível socioeconómico. Procedimento No presente estudo é utilizada uma metodologia qualitativa, através da utilização da técnica do grupo focal. Este método de investigação permite a obtenção de informações sobre determinado assunto (foco), onde todas as opiniões proferidas pelos participantes são consideradas válidas. A técnica do grupo focal procura obter um conhecimento mais vasto da perspectiva de cada grupo, explorando as suas ideias e pontos de vista, opiniões, crenças, valores, discurso, compreensão dos participantes sobre a investigação (Edmunds, 1999; Matos, Gaspar, Vitória, & Clemente, 2003; Matos, Gonçalves, & Gaspar, 2005; Morgan, King, & Krueger, 1998; Vogt, King, & King, 2004; Westphal, Bógus, & Faria, 1996; Vogt, King, & King, 2004). Este método de avaliação é indicado para vários tipos de investigações, nomeadamente exploração de crenças e atitudes sobre os mais variados temas e observação de diferenças culturais entre grupos (Kitzinger, 1995). Os materiais utilizados foram: um gravador áudio e um bloco de notas, onde foram sendo registadas as intervenções dos participantes. Os grupos têm como foco principal o tema “Sexualidade: informação, crenças, atitudes e comportamentos” e pretende-se clarificar diversas questões relacionadas com os comportamentos sexuais dos adolescentes. As questões lançadas são as seguintes: 1) 459 diferenças de género e diferenças culturais; construção de papéis associados à sexualidade; afectos e emoções; 2) pressões dos pares ; 3) sexo seguro; 4) educação sexual. RESULTADOS As categorias mais frequentes, ou seja, que estiveram presentes em quase todos os grupos, foram as seguintes: Diferenças de género: De um modo geral, os alunos consideram que existem claras diferenças entre rapazes e raparigas, relativamente à forma como vivem a sexualidade “somos diferentes” (rapaz). Factores socioeconómicos e culturais: Nesta categoria são referidos alguns aspectos associados às diferenças entre adolescentes que vivem em situação de iniquidade social e adolescentes provenientes de outros países. De um modo geral, tanto os jovens do externato como os jovens da escola consideram que existem diferenças. No entanto, as respostas dos alunos do externato mostram maior distanciação/discriminação face aos jovens mais pobres e/ou de outras raças, assim como em relação aos jovens que frequentam as escolas públicas: “os adolescentes de outras escolas são diferentes” (rapariga). As respostas dos alunos da escola apresentam exemplos concretos e casos que conhecem de perto, do bairro social onde muitos vivem. Não são identificadas diferenças entre as opiniões das raparigas e dos rapazes. Fontes de informação: Apesar de referirem diversas fontes de informação, as conversas sobre os pais e professores são as que geram mais polémica e intervenções entre os alunos de todos os grupos. São identificadas algumas diferenças entre escola e externato, especialmente ao nível das conversas sobre sexualidade com os pais (os pais dos jovens que frequentam a escola reagem com mais agressividade). No que diz respeito às opiniões emitidas, não são encontradas diferenças entre rapazes e raparigas. No entanto, é de salientar que as raparigas 460 são mais participativas que os rapazes. Estes mostram-se sempre mais inibidos, tanto nos grupos da escola como nos grupos do externato. Pressão dos pares: A maior parte dos jovens refere que a pressão dos pares para iniciar a vida sexual mais cedo é uma realidade e afecta essencialmente rapazes e alunos do externato. Idade de início das relações sexuais: Os jovens do externato referem mais vezes o adiamento do início da vida sexual, enquanto que os jovens da escola referem mais a antecipação. No entanto, a grande maioria refere que não existe uma idade ideal, sendo mais importante o grau de maturidade do jovem e o facto de se sentir preparado ou não. Métodos contraceptivos: A maior parte dos jovens faz referência a poucos métodos contraceptivos. No entanto, desenvolvem-se em todos os grupos questões relacionadas com o preservativo. Infecções Sexualmente Transmissíveis: Discutem-se crenças acerca das IST’s e comportamentos de discriminação/aceitação dos doentes com SIDA, sendo notória uma maior discriminação nos grupos do externato e nos grupos dos rapazes. Gravidez na adolescência: Relativamente a este tema são identificadas diferenças entre os jovens do externato e os jovens da escola. Enquanto que os jovens do externato não desenvolvem muito o tema, os jovens da escola descrevem alguns casos que conhecem bem, relativos a colegas que engravidaram recentemente. Interrupção voluntária da gravidez: Relativamente às opiniões acerca do aborto, as opiniões dividem-se. Verifica-se que é nos grupos da escola que são referidos mais exemplos de casos concretos, nomeadamente amigas e colegas. Verifica-se que é no externato que existem mais jovens a não concordar com o aborto. 461 Boas práticas associadas à intervenção na sexualidade: Na generalidade, os jovens fazem referência a consultas de planeamento familiar, com alguma ambivalência entre a curiosidade e o medo do desconhecido. São referidos exemplos de boas práticas, nomeadamente na abordagem dos pais e na educação sexual nas escolas (periodicidade das sessões, conteúdos e técnicos mais indicados). DISCUSSÃO Pretendeu-se com este trabalho aprofundar a compreensão dos aspectos que determinam a sexualidade dos adolescentes, nomeadamente crenças, atitudes e comportamentos de risco. Vários autores têm investigado ao longo dos últimos anos quais os factores que mais influenciam o comportamento sexual dos jovens (Kirby, 2001 a; Muluka, & Slonim-Nevo, 2007; Parker & Camargo, 2000; Pontes et al, 2004). Os resultados do presente estudo corroboram os resultados encontrados por estes autores e sugerem que os factores que mais influenciam os seus comportamentos sexuais são os seguintes: factores económicos, características da comunidade, cultura, nível de informação, factores associados às diferenças de género, estrutura familiar, influência dos pares, crenças/atitudes sobre sexualidade e relação com a escola. Tal como refere Kirby (2001 a) os adolescentes estudados também consideram que estes factores podem ser trabalhados no âmbito da promoção da saúde sexual e reprodutiva. Os factores económicos e o ambiente vivido na comunidade, em especial nos bairros sociais, encontram-se associados a um maior número de comportamentos de risco. Nos bairros sociais, a presença de pessoas pertencentes a comunidades 462 carenciadas e migrantes não permite, através de uma avaliação quantitativa, que se consiga perceber se são os factores económicos ou a etnicidade que se relacionam mais directamente com os comportamentos de risco. A utilização de uma metodologia mais qualitativa permitiu-nos perguntar directamente aos jovens qual a sua opinião relativamente a esta questão. Em todos os grupos os jovens referem que os factores económicos, e não tanto a etnicidade, influenciam em grande medida os comportamentos sexuais dos jovens. Estes resultados confirmam dados obtidos por alguns autores, ou seja, os factores socioculturais podem influenciar a sexualidade e o planeamento familiar dos indivíduos (Kirby, 2001; Singh, Darroch, & Frost, 2001). Além de estarem menos informados, estes jovens têm também menos condições económicas para comprar preservativos e menos acesso às consultas de planeamento familiar. As famílias mais carenciadas apresentam também características específicas, nomeadamente maior insegurança relativamente à qualidade da informação que podem transmitir, dificuldade em conversar sobre sexualidade com os filhos e tendência para abordar o assunto com agressividade, tal como se verifica nos temas desenvolvidos em grupo focal pelos alunos mais carenciados. Esta atitude agressiva associada aos comportamentos sexuais dos filhos pode ter repercussões negativas. Os comportamentos repressivos, punitivos ou contraditórios por parte dos pais podem ter o efeito oposto ao pretendido (Deering, 1993; Taquette et al., 2005; Weiss, 2007). Apesar de maioritariamente os jovens que participaram no estudo considerarem que são os factores económicos e não a etnicidade que influenciam os comportamentos sexuais dos jovens, alguns dos participantes no estudo referem que os jovens africanos e brasileiros têm comportamentos diferentes, comparados 463 com os jovens portugueses. Atribuem estas diferenças à cultura, que se traduzem em comportamentos mais desinibidos, menos conhecimentos e menos investimento no planeamento familiar. Estes resultados confirmam as diferenças identificadas no estudo quantitativo HBSC 2006, que apontavam para uma discrepância entre os jovens da CPLP e os jovens de nacionalidade portuguesa, sendo os primeiros aqueles que iniciavam a vida sexual mais cedo e aqueles que se protegiam menos. Actualmente a sexualidade já não é encarada como um tabu. Os jovens conseguem facilmente obter informações sobre os mais variados assuntos e encontram rapidamente respostas para as suas dúvidas. No que diz respeito às fontes de informação, assiste-se actualmente a mudanças significativas a este nível. Verificase que os jovens dão grande importância a meios que há alguns anos atrás não existiam, como é o caso da Internet (Borzekowski, & Rickert, 2001; Hansen, Holly, Resnick, e Richardson, 2003; Matos et al, 2006). Uma análise mais qualitativa através dos grupos focais permite-nos observar que esta fonte nem sempre transmite informação correcta e, por vezes, culmina no visionamento de sites com pouca qualidade técnica e/ou no acesso a conteúdos pornográficos e desadequados à idade, que transmitem muitas vezes aos jovens informações contraditórias e erradas. A atenção dada aos programas de televisão, especialmente séries televisivas (por exemplo, “Morangos com Açúcar”) também é comum no discurso de muitos jovens. Alguns autores defendem que a informação passada através dos media nem sempre é credível e que os jovens nem sempre confirmam a credibilidade das informações que recebem. Relativamente à televisão, alguns estudos sugerem que os jovens que se baseiam essencialmente nas informações 464 transmitidas por este meio têm mais probabilidade de antecipar o início da vida sexual, em comparação com os jovens que optam por escolher os pais como fontes de informação preferenciais (Bleakley, Hennessy, Fishbein, & Jordan, 2008). A informação obtida nem sempre está correcta e prova disso é o facto de grande parte dos jovens entrevistados, especialmente os mais carenciados, não saberem o que significa “consulta de planeamento familiar”, terem dificuldade em caracterizar as principais IST´s e não saberem como se pode proteger. Estes resultados são independentes do ESE e do género, tal como é sugerido pelos grupos focais. Considera-se que estes dados são extremamente preocupantes, tendo em conta que as IST’s aumentam cada vez mais (Charlotte, Fitzjohn, Herbison, & Dickson, 2000). Portugal tem dos piores índices da Europa no que diz respeito às ISTs e é fundamental que os jovens recebam informação correcta sobre os seus riscos (Caetano, 2006). É fundamental que se tenha em conta a crescente importância dada a estas fontes de informação e que se procure compreender que podem levar a comportamentos de risco, especialmente se os jovens se mantiverem sozinhos enquanto recebem informações provenientes da Internet, da televisão e dos amigos. Alguns alunos referem que as séries televisivas influenciam as decisões que tomam em relação às suas próprias relações amorosas e que agem muitas vezes em conformidade com os comportamentos das personagens. Por outro lado, quando estes programas transmitem informações sobre comportamentos protectores (e.g. contracepção), também se verifica que os jovens adquirem e retêm mais facilmente os conhecimentos, pois identificam-se com as personagens que os transmitem. Para que se obtenham vantagens associadas a estas novas preferências dos jovens deve existir um maior controlo da qualidade da informação transmitida através destes meios, assim como uma sensibilização dos pais para poderem pesquisar informação na Internet juntamente com 465 os jovens e assistir em conjunto a séries televisivas. Estas actividades realizadas em conjunto podem ser um bom ponto de partida para conversas entre pais e filhos sobre sexualidade. Enquanto que as opiniões acerca dos professores são unânimes (quase todos os jovens referem que nunca iriam recorrer ao professor para conversar sobre sexualidade), as opiniões acerca dos pais dividem-se. Apesar de todos referirem que existe uma barreira clara na comunicação (falta de à vontade de pais e filhos), os alunos do externato mostram confiar mais nos pais e sentem uma maior disponibilidade da parte destes. Existe também uma clara preferência em conversar com a mãe, por considerarem que as mulheres têm mais facilidade em falar sobre sexualidade, tanto com filhos como com filhas. A forma como são educados e o tipo de mensagens implícitas enviadas pelos pais determina claras diferenças de género na forma como os adolescentes vivem a sexualidade. Independentemente dos factores económicos, os rapazes e as raparigas referem que a família transmite a informação de forma muito diferente. Assim, e tal como referem os jovens dos grupos focais, os rapazes parecem ter sido educados para serem mais atrevidos, para terem muitas namoradas e para terem uma vida sexual muito activa. As raparigas, por outro lado, devem pensar mais no amor e nos sentimentos. Quando admitem falar de sexo ou tomar a iniciativa numa relação, são conotadas (pela família e pelos rapazes) como muito “oferecidas”. As raparigas consideram injusto o facto de não aceitarem que uma rapariga adolescente tenha uma vida sexual activa, assim como a superprotecção dos pais, que geralmente não se estende ao género masculino. Muitos dos comportamentos relacionados com a promoção da própria saúde são aprendidos no contexto familiar durante os primeiros anos de vida, onde os pais e os familiares mais próximos funcionam como modelos (WHO, 2000). No presente 466 estudo, verifica-se que os jovens filhos de pais adolescentes sentem que as suas atitudes perante uma gravidez não planeada na adolescência são mais tolerantes. Estes jovens referem também uma ausência de comunicação sobre sexualidade com os seus pais. Alguns autores (Deering, 1993; Taquette et al., 2005; Weiss, 2007) defendem que a tolerância excessiva, associada à ausência de comunicação, aumentam os comportamentos de risco entre os jovens. A influência dos pares exerce uma importância significativa nas decisões dos jovens (Albino, Vitalle, Schussel, Batista, 2005; Borges, Latorre, & Schor, 2007; Martins, Nunes, Muñoz-Silva; & Sanchez-Garcia, 2008). No presente estudo, verifica-se a existência de um desfasamento entre a idade estimada e a idade real do início da vida sexual dos jovens. Num estudo sobre a idade de início das relações sexuais verifica-se que os jovens entre os 16 e os 20 anos referem ter iniciado a sua vida sexual aos 16,3 anos (Durex, 2005). Quando questionados sobre a idade de início das relações sexuais dos seus pares, apenas os jovens do externato mostram uma aproximação à realidade (16,2 anos). Os jovens da escola consideram que os seus pares iniciam a vida sexual antes dos 15 anos (14,8 anos). Tendo em conta a existência de uma influência dos comportamentos dos pares, é importante salientar que as estimativas que os jovens fazem acerca da vida sexual dos seus pares pode ter consequências nos seus comportamentos e, em especial no caso dos alunos da escola, estas estimativas podem levar os jovens a antecipar o início da sua vida sexual por pensarem que os seus colegas/amigos já são sexualmente activos. No presente estudo foram encontradas diferenças claras entre escolas, relativamente ao início da vida sexual. No externato os jovens pensam em adiar as 467 primeiras experiências sexuais por acharem que ainda não estão preparados emocionalmente para perder a virgindade, preferindo centrar-se nos estudos e nos namoros que não incluam relações sexuais. Estes jovens consideram que a maior parte dos seus pares ainda não teve relações sexuais e falam sobre sexualidade como uma experiência associada ao futuro. Na escola, os jovens referem que a maior parte dos seus pares já iniciou a vida sexual. Nos grupos focais verifica-se que estes jovens colocam a questão do início da vida sexual no presente. No que diz respeito à pressão dos pares, verifica-se que são os rapazes quem exerce mais pressão para que os outros tenham uma vida sexual activa. Tal como se pode verificar no estudo qualitativo, os rapazes referem que essa pressão existe essencialmente entre os grupos de rapazes. Estes resultados vão de encontro aos de Arilha e Calazans (1998, cit. por Vieira, 2008) e são mais comuns entre os rapazes de classe média-alta (grupos focais do externato). Nos grupos focais são exploradas algumas crenças e atitudes relacionadas com o VIH/SIDA. Relativamente aos conhecimentos sobre a doença, a maior parte dos jovens mostra ter conhecimentos correctos, sendo as raparigas e os jovens provenientes de meios mais diferenciados aqueles que têm mais conhecimentos correctos acerca dos modos de transmissão. No entanto, a atitude perante os doentes é geralmente discriminatória, apesar de reconhecerem que se trata de um contra-senso (a proximidade física e a amizade não constituem risco de contágio) muitos jovens admitem que não seriam capazes de se sentar a lado de um doente com VIH/Sida nem de manter uma amizade. São os rapazes do externato quem apresenta uma atitude mais discriminatória e a principal causa referida prende-se com o medo, admitido como irracional. Por outro lado, as raparigas (independentemente do ESE) apresentam uma atitude mais tolerante perante os doentes com VIH/SIDA, justificando esta 468 atitude com um sentimento de segurança relativamente à qualidade dos conhecimentos que têm sobre os modos de transmissão. São também referidos valores como a amizade e o interesse em ajudar o outro para justificar esta atitude. A melhor forma de combater os inúmeros problemas associados a uma sexualidade pouco responsável passa pela prevenção e mudança de comportamentos (Dias, Matos, & Gonçalves, 2002; Matos et al, 2003), sendo fundamental que a escola reuna esforços para a organização de uma intervenção a este nível. Tal como defendem alguns autores (Malik, Oandasan, & Yang, 2002) é fundamental a criação de inúmeras estratégias de promoção da saúde nesta faixa etária. No entanto, esta realidade ainda é rara em Portugal. Tal como se verificou neste estudo, a intervenção na área da educação sexual ainda não existe em muitas escolas, apesar de se tratar de um país onde existem elevados índices de gravidez na adolescência e IST’s (Caetano, 2006). Os alunos, independentemente do género, cultura ou condição social, consideram fundamental a existência de educação sexual nas escolas, referindo que existem alguns aspectos importantes a ter em conta. Na generalidade, os jovens referem que a educação sexual deve começar na infância e em casa. Os pais devem ter uma atitude de naturalidade, manter um ambiente descontraído, não fazer juízos de valor e não agir com comportamentos repressivos. Para os jovens que fizeram parte do estudo, a educação sexual deve iniciar-se no 1º Ciclo do Ensino Básico e prolongar-se até ao final da adolescência. Os grupos devem ser pequenos e as sessões devem ser dinamizadas por técnicos com formação específica na área, de preferência do sexo feminino. Os técnicos não devem fazer parte do corpo docente da escola e a confidencialidade deve ser garantida com todo o rigor. Quanto aos 469 temas focados nestas sessões, os jovens consideraram menos importantes as matérias relacionadas com o sistema reprodutor (pois trata-se de uma matéria que está incluída no programa de uma das disciplinas), mostrando preferência pelos temas relacionados com os diferentes tipos de contraceptivos, as infecções sexualmente transmissíveis, os afectos, as relações amorosas, as diferenças de género e as mudanças associadas à adolescência. Quase todos os jovens referiram a importância de um momento para responder a dúvidas. Paralelamente a estas sessões, os alunos sugerem a organização de sessões de sensibilização dinamizadas por adolescentes mais velhos, com quem os mais jovens se conseguem identificar mais facilmente, e a existência de um gabinete de atendimento individual, onde os jovens podem ter um acompanhamento mais personalizado. Verificou-se com este estudo que os jovens são diferentes, no que diz respeito ao género, cultura e condições económicas. No entanto, considera-se que esta conclusão tem as suas limitações, dada a dimensão reduzida da amostra. Ainda que se trate de uma avaliação qualitativa, seria benéfico se fossem realizados mais grupos focais noutras escolas, o que permitiria entrevistar um maior número de alunos. O delineamento de um estudo longitudinal, que permitisse acompanhar os alunos ao longo de vários anos também permitiria uma investigação da sua evolução, assim como uma acção interventiva mais sólida. A elaboração de um programa de educação sexual mais desenvolvido e pormenorizado (com mais horas de duração e ao longo ao ano lectivo) permitiria não só aumentar a quantidade de informações transmitidas, como também a realização de actividades mais interactivas, dinâmicas de grupo, debates, role-play, visionamento de vídeos e utilização de recursos técnico-pedagógicos mais diversificados. Tal como sugerem os resultados deste trabalho, estas sessões devem ser cuidadosamente adaptadas à população alvo, tendo em conta as suas características e 470 necessidades específicas, especialmente no que diz respeito ao género, cultura e condições económicas. Uma escola promotora de saúde deve ser considerada como fonte de desenvolvimento de atitudes e comportamentos orientados para a promoção da saúde e bem-estar (WHO, 2000). Por esta razão, é fundamental que se reúnam esforços para que se desenvolvam programas que permitam aos jovens viver a sexualidade de uma forma saudável. REFERÊNCIAS Aarons, S., & Jenkins, R. (2002). Sex, Pregnancy, and Contraception-related Motivators and Barriers among Latino and African-American Youth in Washington, DC, Sex Education, 2, 1, 5-30. Albino, G., Vitalle, M., Schussel, E., & Batista, N. (2005). A sexualidade pelo olhar das jovens: contribuições para a prática do médico de adolescentes. Revista Paulista de Pediatria, 23, 3, 124-129. Aronowitz, T. 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A Escala de Preocupações Parentais é constituída por 24 itens divididos por 5 sub-escalas: Problemas Familiares e Preocupações Escolares, Desenvolvimento Infantil, Preparação, Medos e Comportamentos Negativos, em formato de escala de Likert, com 5 possibilidades de resposta, não me preocupo nada, pouco, razoavelmente, bastante e muitíssimo. Neste grupo de pais verificámos que a Escala apresenta níveis de consistência interna elevados e capacidade discriminativa face à população normativa. Introdução Pretendemos, com este trabalho, apresentar os resultados obtidos à data de um estudo que está a decorrer a nível nacional sobre preocupações parentais. Em estudos anteriores (Algarvio & Leal, 2002; 2004; Algarvio, Leal & Marôco, 2008) desenvolvemos uma 478 escala de preocupações parentais assente em questões normativas do desenvolvimento infantil e das relações familiares. A necessidade de desenvolver um instrumento de avaliação das preocupações parentais resultou da prática clínica, reforçada pelos estudos realizados sobre esta temática que consideram de uma forma genérica a importância de avaliar as preocupações dos pais a par da avaliação dos sintomas apresentados pelas crianças. A maioria dos estudos encontrados centra-se nas preocupações dos pais relativamente aos sintomas apresentados pelas crianças em problemáticas específicas, não abordando o desenvolvimento normal ou a definição do conceito. Embora fundamental para a resolução de dificuldades encontradas na criança, consideramos esta forma de análise insuficiente porque, tal como refere Winnicott, «a normalidade ou saúde, está ligada à maturidade e não à inexistência de sintomas» (1993, p.147). Este autor acrescenta que uma criança pode apresentar vários sintomas próprios de um desenvolvimento saudável, enquanto outra criança onde os mesmos sintomas estejam ausentes pode, por seu lado, estar gravemente perturbada (Winnicott, 1979, 1993, 1995; Debray, 1988). Por outro lado, sabemos como o comportamento e atitudes parentais podem condicionar o desenvolvimento da criança, sendo que sintomas normativos do desenvolvimento podem ser reforçados por ansiedade dos pais dando origem a perturbações psicopatológicas. O nosso trabalho baseou-se num dos poucos estudos centrados no desenvolvimento normal, realizado por Mesibov, Shroeder e Wesson (1993) a partir das preocupações expressas pelos pais. Face à inexistência de uma conceptualização teórica das preocupações parentais baseámo-nos no conceito de preocupação definido por Winnicott (1979). Este autor considera que o sentimento de preocupação pressupõe que o indivíduo tenha atingido um nível de maturidade emocional em que se interessa, sente e aceita responsabilidade pelo outro. Relativamente ao conceito de parentalidade surge, segundo Houzel (1997) pela primeira vez 479 em 1985 num trabalho de Clément. Houzel (1997) considera a parentalidade como o processo através do qual um indivíduo se torna progenitor de modo psicológico. Bléandonu considerou a parentalidade etimologicamente enquanto a qualidade do progenitor. O processo de parentalidade implica mudanças biológicas e físicas profundas, especialmente para as mães, emocionais e psicológicas nas mães e nos pais, constituindo uma fase do desenvolvimento psicológico individual (Bléandonu, 2003, Houzel, 1997, Green, 1997). No entanto, estes processos individuais permitirão a construção de um aparelho psíquico do casal (Anzieu & Kaes, 1997, cit. Lejeune, 1997, Houzel, 1997; Green, 1997) reservado para a criança e que constitui a base para o nascimento da vida psíquica do bebé (Lejeune, 1997). O aparelho psíquico do casal permitirá o desenvolvimento de uma função de pensar parental, que terá em consideração as necessidades da criança que podem ser antagónicas das necessidades dos pais, enquanto pessoas ou mesmo enquanto casal (Guillaume, 1997; Rosenbaum, 1997). Winnicott reforçou esta ideia ao descrever a ambivalência muitas vezes observada no comportamento parental. Por um lado, os pais querem que a criança cresça e desenvolva capacidades de autonomia, por outro lado, de forma não totalmente consciente, não querem abdicar do funcionamento parental da primeira infância. É necessário para um desenvolvimento saudável da criança que os pais encontrem um equilíbrio satisfatório entre o investimento narcísico (o outro enquanto parte de si próprio) e o investimento objectal (o outro enquanto ele próprio) da criança (Bléandonu, 2003; Guillaume, 1997; Rosenbaum, 1997). Deste modo, o funcionamento parental poderá gerar diferentes tipos de ansiedade resultante de conflitos internos individuais e/ou do casal e de conflitos externos face a problemáticas específicas da criança e/ou de diferentes problemas psicossociais, que se manifestarão em diferentes tipos de preocupações dos pais. Surge, assim, a ideia de que a função parental deverá ser também um processo em desenvolvimento, ou seja, em função das necessidades decorrentes do desenvolvimento da criança. Por conseguinte, consideramos que 480 as preocupações dos pais serão vividas internamente por cada um e por ambos enquanto casal para além dos problemas reais experienciados e dependerá do desenvolvimento da sua função parental, individualmente e enquanto casal. A parentalidade implica organizar as emoções de uma forma empática relativamente às preocupações e aos resultados necessários ao bem-estar e ao desenvolvimento da criança (Dix, 1991, cit. Richter, 2003). Dix acrescenta que esta consciência emocional irá permitir a atenção dos pais às necessidades da criança, a vontade de ensinar, de encorajar e de confortar, ou seja, de colocar em acção a sua função parental. Método Participantes Tratando-se da apresentação de dados preliminares, a Escala de Preocupações Parentais foi preenchida por 1186 pais de crianças que frequentam o ensino público pré-escolar e 1º ciclo do Ensino Básico em 260 escolas distribuídas por 125 Concelhos de 17 Distritos de Portugal Continental. Nível escolaridade Frequência Percentagem Pré-escolar 252 21.2 1º Ciclo 934 78.8 Total 1186 100.0 Tabela 1. Número de crianças a frequentar o Ensino Pré-escolar e 1º Ciclo As crianças têm idades compreendidas entre os 2 e os 11 anos, com uma média de idades de 7.09, 46.7% do sexo masculino e 52.1% do sexo feminino. 481 As Escolas onde foi recolhido o grupo de pais distribuem-se, segundo o Distrito de Portugal Continental, do seguinte modo (tabela 2): Distrito Frequência Percentagem Percentagem acumulada Aveiro 136 11.5 11,5 Beja 28 2.4 13,8 Braga 185 15.6 29,5 Bragança 19 1.6 31,1 Castelo Branco 24 2.0 33,1 Coimbra 52 4.4 37,5 Évora 33 2.8 40,3 Faro 125 10.5 50,8 Guarda 59 5.0 55,8 Leiria 93 7.8 63,6 Portalegre 22 1.9 65,5 Lisboa 167 14.1 79,6 Viana do Castelo 52 4.4 84,0 Viseu 74 6.2 90,2 Vila Real 52 4.4 94,6 Porto 62 5.2 99,8 Setúbal 2 .2 100,0 Total 1185 99.9 Missing System 1 .1 Total 1196 100 Tabela 2. Distribuição de Escolas por Distrito de Portugal Continental 482 A maioria dos questionários, 64.7% foi preenchida por mães, 26.9% por ambos os pais e, unicamente 7.2% por pais. As mães têm idades compreendidas entre os 24 e os 53 anos, com uma média de idades de 36.35. Quanto aos pais têm idades compreendidas entre os 24 e os 69 anos, com uma média de idades de 39.02. A maioria dos pais são casados, 85.9%, 3.7% vivem em união de facto, 6.7% estão separados ou divorciados, 2.6% são solteiros e 0.5% viúvos. Quanto ao número de irmãos, 57% das crianças têm um irmão, 30.4% são filhos únicos, 10.1% têm dois irmãos e 2.4% têm 3 ou mais irmãos. Relativamente ao nível de escolaridade, como se pode verificar nas tabelas apresentadas abaixo (tabela 3 e 4), as mães têm em média um nível de escolaridade superior ao dos pais, 34.3% terminaram o ensino superior, enquanto os pais só 18.9% terminaram o ensino superior. Nível escolaridade das mães Frequência Percentagem 4º ano 42 3.5 6º ano 182 15.3 9º ano 259 21.8 12º ano 290 24.5 Ensino superior 407 34.3 Total 1180 99.5 Missing System 6 .5 Total 1186 100.0 Tabela 3. Nível de Escolaridade das Mães Nível escolaridade dos pais Frequência Percentagem 4º ano 97 8.2 483 6º ano 267 22.5 9º ano 295 24.8 12º ano 269 22.7 Ensino superior 225 18.9 Total 1153 97.2 Missing System 33 2.8 Total 1186 100 Tabela 4. Nível de Escolaridade dos Pais Material A Escala de Preocupações Parentais (Algarvio & Leal, 2002; 2004; Algarvio, Leal e Marôco, 2008) é constituída por 24 itens, com 5 possibilidades de resposta em formato de escala de Likert, preocupo-me muitíssimo, bastante, razoavelmente, pouco e nada. Os índices de ajustamento da análise factorial confirmatória efectuada revelaram validade de constructo para as 5 sub-escalas propostas (X2=420.067; g.I.=247; X2/gI=1.701; p=.000; NFI=.837; CFI=.924; RMSEA=.048; p=.634). A consistência interna da escala foi medida através do alfa de Cronbach, tendo-se obtido resultados elevados para a totalidade dos itens da escala, 0.93, assim como para a maioria das sub-escalas, 0.87 para a sub-escala I, Problemas familiares e preocupações escolares, 0.85 para a sub-escala II, Desenvolvimento infantil, 0.75 para a subescala III, Preparação, 0.84 para a sub-escala IV, Medos e 0.86 para a sub-escala V, Comportamentos Negativos (Algarvio, Leal & Marôco, 2008). ESCALA DE PREOCUPAÇÕES PARENTAIS I. SUB-ESCALA DE PROBLEMAS FAMILIARES E PREOCUPAÇÕES ESCOLARES 1. 2. 3. 4. OS PAIS NÃO ESTAREM DE ACORDO EM RELAÇÃO ÀS REGRAS E DISCIPLINA SE A CRIANÇA TEM O QUE PRECISA NA ESCOLA A PROFESSORA/EDUCADORA ENTENDER A CRIANÇA OS PAIS DISCUTIREM MUITO 484 5. 6. II. SUB-ESCALA DE DESENVOLVIMENTO INFANTIL 1. 2. 3. 4. 5. 6. III. 3. COMO PREPARAR A CRIANÇA PARA MUDAR DE CASA A CRIANÇA ENTENDER O QUE É A MORTE A CRIANÇA ENTENDER A MORTE DE ALGUÉM PRÓXIMO SUB-ESCALA DE MEDOS 1. 2. 3. V. O QUE A CRIANÇA DEVE COMER A CRIANÇA TER O SONO AGITADO A CRIANÇA TER DIFICULDADE EM ADORMECER A CRIANÇA TER PESADELOS A CRIANÇA QUEIXAR-SE DE DORES DE BARRIGA A CRIANÇA QUEIXAR-SE DE DORES DE CABEÇA SUB-ESCALA DE PREPARAÇÃO 1. 2. IV. A CRIANÇA SER SUJEITA A MAUS-TRATOS O QUE DEVE SER DITO À CRIANÇA EM CASO DE SEPARAÇÃO DOS PAIS A CRIANÇA TER MEDOS A CRIANÇA TER MEDO DO ESCURO A CRIANÇA TER MEDO DO PAPÃO OU DE MONSTROS SUB-ESCALA DE COMPORTAMENTOS NEGATIVOS 1. 2. 3. 4. 5. 6. A CRIANÇA CONTROLAR DIFICILMENTE OS COMPORTAMENTOS A CRIANÇA NÃO OBEDECER A CRIANÇA FAZER BIRRAS A CRIANÇA NÃO QUERER IR PARA A CAMA A CRIANÇA SER MANDONA E EXIGENTE A CRIANÇA QUEIXAR-SE MUITO Procedimento Num primeiro momento foi feito um levantamento de todas as escolas públicas de ensino pré-escolar e 1º ciclo existentes em Portugal Continental, através do roteiro de escolas disponível no site do Ministério da Educação. Com estes dados foi construída uma base de dados a partir da qual foi realizada uma amostragem estratificada no SPSS 16 com o objectivo de se obter uma amostra representativa desta população. A amostragem seguiu as seguintes condições: 10% das escolas de cada Concelho de cada Distrito de Portugal Continental. Das 8200 escolas existentes em Portugal Continental foram seleccionadas 820 escolas. Foi elaborada uma carta de apresentação do estudo que foi enviada às 820 escolas, seguida de um telefonema a averiguar da disponibilidade para participar no estudo. Às escolas que aceitaram participar, através dos seus Coordenadores ou Agrupamentos, foram então enviados 485 questionários em envelopes abertos com os portes pagos, para serem preenchidos por 10% dos pais das crianças que frequentam a escola. Os professores entregaram os envelopes com os questionários aos pais que manifestaram interesse em participar que, após o seu preenchimento, os fecharam e colocaram no correio. Resultados Foram calculadas as médias das respostas dadas pelos pais à totalidade da Escala e às diferentes sub-escalas, como se pode observar na N Escala Preocupações Parentais tabela abaixo (tabela 5). Média Desvio-Padrão 1180 3.589 .6722 Sub-Escala I. Preocupações Escolares e Probl. Familiares 1172 4.015 .7707 Sub-Escala II. Desenvolvimento Infantil 1172 3.653 .7727 Sub-Escala III. Preparação 1109 3.366 .9364 Sub-Escala IV. Medos 1083 3.247 .9179 Sub-Escala V. Comportamentos Negativos 1113 3.344 .8482 Tabela 5. Média e Desvio da Padrão dos resultados obtidos na Escala A média de preocupação situa-se entre o razoavelmente (3) e o bastante (4), para a totalidade da escala e para todas as sub-escalas. A maior média de preocupação encontra-se na sub-escala I, preocupações escolares e problemas familiares, onde a média de pais se preocupam bastante (4.015), seguida da sub-escala II, desenvolvimento infantil, itens que preocupam entre razoavelmente e bastante os pais (3.653). A sub-escala que, apesar de 486 apresentar resultados médios igualmente entre razoavelmente e bastante, preocupa menos os pais é a sub-escala IV, referente aos medos das crianças. A consistência interna dos resultados obtidos neste grupo de pais foi medida através do alfa de Cronbach (tabela 6), tendo-se obtido resultados semelhantes ao do estudo anterior (Algarvio, Leal & Marôco, 2008), para a totalidade dos itens da escala, 0.94, para a sub-escala I, Problemas familiares e preocupações escolares, 0.83, para a sub-escala II, Desenvolvimento infantil, 0.81, para a sub-escala III, Preparação, 0.75 e para a sub-escala V, Comportamentos Negativos, 0.87. Relativamente à sub-escala IV, Medos, obteve-se neste estudo um resultado inferior, 0.76, ao obtido no estudo anterior, 0.84. Alfa Cronbach Escala Preocupações Parentais 0.944 Sub-Escala I. Preocupações Escolares e Probl. Familiares 0.828 Sub-Escala II. Desenvolvimento Infantil 0.812 Sub-Escala III. Preparação 0.748 Sub-Escala IV. Medos 0.764 Sub-Escala V. Comportamentos Negativos 0.871 Tabela 6. Alfas de Cronbach da Escala e Sub-Escalas Os resultados obtidos pelos pais de crianças a frequentar o pré-escolar, ou seja, entre os 3 e os 5 anos, apresentaram médias de preocupação inferiores aos resultados obtidos pelos pais de crianças do 1º ciclo, ou seja, com idades compreendidas entre os 6 e os 10 anos, com excepção para a sub-escala V, comportamentos negativos (tabela 7). 487 Escala PP Sub-Escala I Sub-Escala II Sub-Escala III Sub-Escala IV Sub-Escala V Pré/Básico N Média Desvio-Padrão Média Desvio-Padrão Pré-Escolar 252 3.5607 .67676 .04263 1º Ciclo 928 3.5972 .67114 .02203 Pré-Escolar 251 3.9229 .86368 .05451 1º Ciclo 921 4.0398 .74196 .02445 Pré-Escolar 250 3.6330 .73590 .04654 1º Ciclo 922 3.6586 .78269 .02578 Pré-Escolar 230 3.3348 .96632 .06372 1º Ciclo 879 3.3747 .92885 .03133 Pré-Escolar 235 3.2121 .87547 .05711 1º Ciclo 848 3.2565 .92958 .03192 Pré-Escolar 243 3.3663 .76195 .04888 1º Ciclo 870 3.3382 .87109 .02953 Tabela 7. Média e Desvio da Padrão dos resultados obtidos no Pré-Escolar e 1º Ciclo Para comparar o grupo de pais de crianças do pré-escolar e do 1º ciclo escolhemos o teste t-Student com a correcção de Welch para a heterogeneidade de variâncias, analisado no SPSS 16. Foram encontradas diferenças significativas na sub-escala I, Preocupações escolares e problemas familiares (t (356.754) = - 1.956; p = 0.051), sendo que os pais de crianças do 1º ciclo se preocupam com maior intensidade do que os pais de crianças do pré-escolar. As mães preocupam-se com maior intensidade do que os pais em relação a todas as sub-escalas (tabela 8). Escala PP Quem responde N Média Desvio-Padrão Média Desvio-Padrão Pai 85 3.4253 .65192 .07071 488 Sub-Escala I Sub-Escala II Sub-Escala III Sub-Escala IV Sub-Escala V Mãe 765 3.6053 .66384 .02400 Pai 85 3.9163 .74141 .08042 Mãe 760 4.0308 .76067 .02759 Pai 85 3.5247 .69040 .07488 Mãe 759 3.6376 .79280 .02878 Pai 82 3.0650 .90561 .10001 Mãe 718 3.4452 .92464 .03451 Pai 79 2.9473 .95428 .10736 Mãe 704 3.2869 .88940 .03352 Pai 82 3.1764 .85933 .09490 Mãe 721 3.3534 .81997 .03054 Tabela 8. Média e Desvio-Padrão dos resultados dos Pais e das Mães Para comparar as preocupações dos pais e das mães escolhemos o teste t-Student com a correcção de Welch para a heterogeneidade de variâncias. Foram encontradas diferenças significativas na sub-escala III, Preparação (t (798) = -3.535; p = 0.000), na sub-escala IV, Medos (t (781) = -3.195; p = 0.001) e diferenças quasi-significativas na sub-escala V, Comportamentos negativos (t (801) = -1.843; p = 0.066). Relativamente ao sexo da criança, foram encontradas diferenças significativas apenas na sub-escala IV, Medos (t (1078) = -2.724; p = 0.007), onde os pais apresentaram uma preocupação mais intensa relativamente aos filhos do sexo feminino. Escala PP Sexo N Média Desvio-Padrão Média Desvio-Padrão Masculino 562 3,5777 ,64313 ,02713 489 Sub-escala I Sub-escala II Sub-escala III Sub-escala IV Sub-escala V Feminino 615 3,5986 ,69564 ,02805 Masculino 556 4,0182 ,75341 ,03195 Feminino 613 4,0105 ,78596 ,03174 Masculino 555 3,6509 ,76023 ,03227 Feminino 614 3,6551 ,78208 ,03156 Masculino 519 3,3314 ,95423 ,04189 Feminino 587 3,3938 ,91980 ,03796 Masculino 514 3,1654 ,90644 ,03998 Feminino 566 3,3168 ,91809 ,03859 Masculino 525 3,3438 ,83562 ,03647 Feminino 585 3,3428 ,85782 ,03547 Tabela 9. Média e Desvio-Padrão dos resultados por sexo da criança Discussão Tendo por objectivo a validação do instrumento de avaliação de preocupações parentais por nós desenvolvido em estudos anteriores, verificámos através da análise destes primeiros resultados obtidos no estudo nacional que estamos a desenvolver que a Escala apresenta níveis de consistência interna elevados e poder discriminativo. Os resultados obtidos nos estudos comparativos efectuados demonstram a capacidade discriminativa da escala face à população normativa, relativamente ao nível de escolaridade da criança, ao sexo da criança e às preocupações dos pais e das mães. Este resultado vem reforçar os resultados obtidos em estudos anteriores efectuados com diferentes populações com problemáticas específicas, na área da saúde com pais de crianças nascidas por fertilização in vitro (Serra & Algarvio, 2006; Algarvio, Leal, Marôco, & Serra, 2008)e com pais de crianças prematuras (Matono & 490 Algarvio, 2004; Algarvio, Leal, Marôco, & Matono, 2008), na área da psicopatologia, com pais de crianças autistas (Lucas & Algarvio, 2005), na área psicossocial com mulheres vítimas de maus-tratos (Ataíde & Algarvio, 2004) e para avaliar possíveis diferenças culturais com pais moçambicanos (Algarvio, Leal, Marôco & Moreno, 2008). Consideramos que esta escala poderá ser um instrumento útil de avaliação em contextos educativos, clínicos e de saúde. Apresentaremos brevemente os resultados finais da aferição nacional e a discussão teórica do conceito. Referências Algarvio, S.; Leal, I. & Marôco, J. (2008). Escala de Preocupações Parentais. In I. Leal e J. Marôco (Eds.), Instrumentos de avaliação em Psicologia e Saúde. (no prelo) Algarvio, S.; Leal, I. & Marôco, J. (2008). Parental concerns: Preliminary validation study of an instrument of evaluation. Psychology & Health, 23 (1), 53. Algarvio, S.; Leal, I.; Marôco, J. & Moreno, M. (2008). Parental Concerns: Comparative study between a group of Portuguese Parents and a group of Mozambican Parents. International Journal of Developmental and Educational Psychology, 1 (4), 199-208. Algarvio, S.; Leal, I; Marôco, J. & Matono, M. (2008). Preocupações Parentais: Estudo comparativo entre um grupo de pais normativo e um grupo de pais de crianças prematuras. In I. Leal, J. Ribeiro, I. Silva & S. Marques (Eds.), Actas do 7º Congresso Nacional de Psicologia da Saúde – Intervenção em Psicologia e Saúde. (pp. 639-642) Algarvio, S.; Leal, I; Marôco, J. & Serra, M. (2008). Preocupações Parentais: Estudo comparativo entre um grupo de pais normativo e um grupo de pais de crianças FIV. In I. 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Ribeiro (Eds.), Actas do 5º Congresso Nacional de Psicologia da Saúde – A Psicologia da Saúde num mundo em mudança. (pp. 279-284). Lisboa: ISPA. Mesibov, G., Schroeder, C. & Wesson, L. (1993). Parental concerns about their children. In M. Roberts, G. Koocher, D. Routh & D. Willis (Eds.), Readings in Pediatric Psychology. (pp. 307-316). New York: Plenum Press. Richter, L.M. (2003). Poverty, underdevelopment and infant mental health. Journal Paediatrics Child Health, 39, 243–248. Rosenbaum, A. (1997). L’évaluation du fonctionnement parental: un processus critique dans l’évaluation des enfants, pratiquée en vue d’une psychanalyse. Journal de la Psychanalyse de l’enfant, 21, 19-47. Serra, A. & Algarvio, S. (2006). Preocupações Parentais em pais de crianças FIV. Análise Psicológica, 24 (2), 149-154. Winnicott, D.W. (1979). The Maturational Processes and the Facilitating Environment. London: Tavistock. Winnicott, D.W. (1993). A família e o desenvolvimento individual. S.Paulo: Martins Fontes. Winnicott, D. W. (1995). Conversas com os Pais. Lisboa: Terramar. Nota : Este estudo faz parte de uma investigação para a obtenção do grau de Doutoramento e é co-financiado pelo Programa Operacional da Ciência e Inovação 2010 e pelo Fundo Social Europeu. 493 União Europeia – Fundos Estruturais 494 Candidatura 25 Autores: Anabela Pereira, Elisa Motta, Carolina Pinto, Olga Bernardino, Ana Melo, Joana Ferreira & Mª João Rodrigues Título: Intervenção em Comportamentos de risco na Universidade 495 496 INTERVENÇÃO EM COMPORTAMENTOS DE RISCO NA UNIVERSIDADE Anabela Pereira1, Elisa Motta2, Carolina Pinto2, Olga Bernardino2, Ana Melo2, Joana Ferreira2, Mª João Rodrigues2 1 DCE-Universidade de Aveiro. [email protected] 2 GAP-SASUC , Universidade de Coimbra, [email protected] A Educação para a Saúde na prevenção de comportamentos de risco A Organização Mundial de Saúde (WHO, 1985, 1986) define a saúde como “um estado de bem-estar físico, mental e social completo, e não a ausência da doença”. Tal definição enfatiza a perspectiva holística da saúde, actuando como farol orientador das políticas que são desenvolvidas a nível nacional, esta organização tem vindo a chamar a atenção para que sejam endereçados esforços conjuntos no sentido de se actuar na promoção da saúde (física e mental) e na prevenção da doença ao longo do ciclo de vida. Nesse sentido, as intervenções para a promoção da saúde têm enfatizado uma abordagem mais abrangente, a nível social e ambiental, no sentido da mudança para comportamentos e estilos de vida saudáveis. Neste contexto a educação para a saúde, entendida enquanto uma combinação de experiências de aprendizagem concebidas para facilitar acções voluntárias conducentes à saúde, assume-se como estratégia fundamental de promoção da saúde e de prevenção de comportamentos de risco. Por seu lado, consolidada nos pressupostos teóricos da participação de indivíduos e grupos, na mobilização da comunidade e no empowerment, a educação pelos pares vem responder às necessidades de responsabilização e partilha do processo de educação para a saúde (Rodrigues et. al., 2005), bem como de desenvolvimento pessoal dos indivíduos a nível das competências de decisão, dos sistemas de ajuda e de relacionamento pessoal (Egan, 1994), e das aptidões para lidar eficazmente com situações difíceis, indutoras de stresse 497 (Maslach, 1982; Ellis et al., 1997 ; Pereira, 1998), procurando influenciar positivamentea prevenção de comportamentos de risco e a adopção de comportamentos saudáveis. A educação pelos pares é um processo através do qual um grupo de pares (minoria) tenta informar e levar a que a maioria altere os seus comportamentos e atitudes, com o objectivo de incutir a mudança para estilos de vida saudável (Pereira, 2005; Dias, 2006). No âmbito da promoção da saúde diz respeito ao processo através do qual indivíduos bem treinados e motivados desenvolvem actividades educacionais informais ou organizadas, com o objectivo de desenvolver conhecimentos, atitudes, crenças e competências nos seus pares, de forma a capacitá-los para protegerem a sua saúde e a das comunidades onde estão inseridos. Este modelo vem, assim, colmatar a lacuna dos enquadramentos educativos apoiados em sistemas verticais descendentes de ensino/aprendizagem ou de aconselhamento, permitindo adaptar as intervenções aos grupos-alvo, bem como atribuir significado às mensagens que passam a circular em grupos socialmente congruentes. A aplicação dos modelos de educação para a saúde pelos pares tem ocorrido em diversos contextos, através de sistemas formais (como escolas, universidades ou espaços laborais), ou informais (associações, organizações não governamentais, movimentos sociais, entre outros). Em Portugal e em contexto académico, a educação para a saúde pelos pares tem merecido algum destaque, destacando-se alguns projectos de investigação e de intervenção neste domínio, quer em Universidades, quer em Politécnicos (Pereira, 2005). Estes modelos de intervenção na promoção da saúde apresentam bastantes vantagens, mas também algumas limitações. Como vantagens desta estratégia, as investigações na área identificam o facto de facilitarem o processo de transmissão e compreensão da informação (Green, 2001); o desenvolvimento de estratégias de motivação para a mudança comportamental (Turner & Shepherd, 1999); a promoção de aprendizagens mais sustentadas no tempo; o facto de os educadores de pares poderem ser modelos de 498 influência positiva e ajudar a criar e reforçar normas sociais que apoiam a mudança comportamental, ao mesmo tempo que podem oferecer apoio emocional e social (Pinto et al., 2005); o facto de serem menos dispendiosas por assentarem no voluntariado de pares (UNESCO, 2003), bem como promoverem o processo de empowerment de indivíduos e comunidades (Rodrigues, et al., 2005). Por seu lado, as limitações da estratégia prendem-se com a pouca clarificação dos conceitos que lhe subjazem, a par das dificuldades no desenvolvimento dos projectos de educação pelos pares, concretamente ao nível da sua avaliação e formação, treino e supervisão dos educadores. No sentido de colmatar essas limitações é necessário um bom planeamento dos projectos de educação para a saúde pelos pares, respeitando todas as fases indicadas como essenciais para o seu funcionamento eficaz, concretamente: a análise da situação e avaliação das necessidades; a definição de metas, objectivos e grupo-alvo; o desenvolvimento do plano e estratégias de acção; a implementação do projecto; a selecção e recrutamento dos educadores de pares; a sua formação e treino, supervisão e apoio; a permanência dos educadores de pares e a avaliação dos projectos, bem como a sua sustentabilidade (Dias, 2006). Atendendo às especificidades da educação para a saúde na prevenção de comportamentos de risco, o presente trabalho visa apresentar um programa de desenvolvimento de competências ao nível da prevenção de comportamentos sexuais de risco no âmbito da educação pelos pares implementado na Universidade de Coimbra, bem como os resultados da sua operacionalização e avaliação. Programa de Desenvolvimento de competências para a prevenção do VIH/SIDA e IST em contexto do Ensino Superior 499 O crescimento exponencial de pessoas infectadas por VIH/SIDA e IST a nível mundial tem gerado uma verdadeira crise global de saúde pública (Kalichman, 1998), alertando as estimativas para os próximos anos da ONUSIDA para a incidência de infecções em grupos sociais como as mulheres e jovens (UNAIDS, 2005). A luta contra a SIDA tem, assim, de passar necessariamente pela intensificação das medidas de prevenção, quer em termos de escala, quer em termos de grupos envolvidos, pois a epidemia não se centra exclusivamente nos tradicionais grupos de risco (homossexuais, toxicodependentes e prostitutas), alargando-se a outros grupos sociais. A prevenção do VIH/SIDA em contexto do Ensino Superior tem, assim, vindo a afirmarse como uma necessidade no âmbito da luta contra a SIDA. A nível internacional várias investigações e programas de intervenção têm procurado envolver as Instituições do Ensino Superior nesta luta, explicando a sua pertinência enquanto entidades directamente responsáveis pelo bem-estar físico e consciencialização de um conjunto considerável de jovens brilhantes com contributos importantes ao nível da formação de opiniões nos seus próprios contextos; instituições com capacidades de introduzir estratégias para conter o alastramento da doença no sector do ensino superior; bem como enquanto formadoras de futuros líderes de opinião, com possíveis responsabilidades ao nível da definição de políticas e influência de comportamentos na sua vida em sociedade, nas suas famílias, locais de trabalho, grupo de amigos (ACU, 2004). O Programa Nacional de Prevenção e Controlo da Infecção VIH/sida 2007-2010, da autoria da Coordenação Nacional para a Infecção VIH/sida (2007), contempla as estratégias de prevenção deste risco, que passam pela formação dos alunos num sistema de apoio entre pares, bem como pelo desenvolvimento de competências preventivas. Porque a epidemia do VIH é conduzida por comportamentos, existem várias teorias psicológicas e sociais que têm contribuído para a construção, desenvolvimento e avaliação das 500 intervenções de redução do risco do VIH. Destas, destacamos o modelo de crença na saúde (Rosenstock, Strecher & Becker, 1994), a teoria da acção racional (Fishbein & Ajzen, 1975), a teoria social cognitiva (Bandura, 1994) e o modelo trans-teórico (Prochaska, DiClemente & Norcross, 1992), que influenciaram modelos específicos para a redução do risco do VIH, nomeadamente o modelo de redução do risco da SIDA (Catania, Kegeles & Coates, 1990) e o modelo de competências informativo-motivacional-comportamental. Estas teorias têm algumas características comuns entre si, das quais destacamos, a percepção de ameaça e susceptibilidade, as atitudes para o desempenho de comportamentos de redução do risco, as crenças normativas acerca dos pares e membros da comunidade, as crenças e atitudes acerca da capacidade individual de desempenhar acções preventivas, a aquisição de competências sociais e comportamentais que resultem na redução do risco e os factores motivacionais que induzam um indivíduo ao estado de prontidão para agir. Assim, a concepção de um programa para intervir ao nível da prevenção de comportamentos de risco deverá apostar no desenvolvimento dos estudantes a nível das competências de decisão (Jacinto e Pereira, 2006), a nível dos sistemas de ajuda e de relacionamento pessoal, a lidar eficazmente com situações difíceis, indutoras de stresse (Pereira, 2005), devendo adequar as suas estratégias de forma a ter em consideração o contexto em que estes estudantes se inserem (Pereira et al., 2006, 2008). O “Programa de Desenvolvimento de Competências para a Prevenção do VIH/SIDA e IST” foi especialmente construído no âmbito de uma intervenção de Educação para a Saúde pelos pares dirigida a estudantes do Ensino Superior, tendo como objectivos desenvolver competências pessoais para a mudança de comportamentos de risco face ao VIH/SIDA; analisar e modificar crenças e cognições associadas a comportamentos-problema; dar a conhecer e treinar técnicas básicas de aconselhamento com base em problemas associados a comportamentos de risco; e fomentar valores como a tolerância e a não discriminação, bem 501 como uma melhor informação no âmbito das questões da sexualidade e IST (Motta et al., 2006). O principal impulso na origem da sua construção e implementação foi a aprovação de uma candidatura, promovida pelos Serviços de Acção Social da Universidade de Coimbra, em parceria com o Departamento de Ciências da Educação da Universidade de Aveiro e com o Instituto de Ciências Sociais da Universidade do Minho, apresentada ao Programa de financiamento de projectos de intervenção “ADIS/SIDA”, da Coordenação Nacional para a Infecção do VIH/SIDA (ADIS/0196/06). As actividades realizadas no âmbito do projecto de intervenção aprovado foram estruturadas tendo em consideração a sua aplicação em 3 pólos: Coimbra, Aveiro e Minho (Braga). Em Coimbra e no Minho foram implementados programas de desenvolvimento de competências para a prevenção do VIH/SIDA e IST, constituídos por 7 sessões de formação de presença obrigatória, alusivas às seguintes competências: Aptidão Social, Auto-eficácia, Autoestima, Tolerância e Responsabilidade Social, Assertividade, Crenças e Mitos e Sexualidade. No pólo de Aveiro, atendendo à especificidade do contexto de implementação, a formação foi organizada em módulos de formação independentes, embora tivessem sido abordadas as mesmas competências. Para os programas de desenvolvimento de competências foi ainda construído um manual de formação, com conteúdos elaborados pelos formadores responsáveis pelo desenvolvimento das competências em causa, que foi distribuído aos participantes em Coimbra e no Minho. As sessões dos programas desenvolveram-se de acordo com metodologias de formação menos directivas e mais interactivas, como a instrução, modelação, ensaio de comportamentos, role playing, focus group e dramatização de situações. Pese embora a estrutura global do projecto assentar em três pólos, neste artigo procurámos focalizar as actividades desenvolvidas no pólo da Universidade de Coimbra, 502 incidindo na apresentação e discussão dos resultados da avaliação do Programa de Desenvolvimento de Competências para a Prevenção do VIH/SIDA e IST. Metodologia da Intervenção e Avaliação do Programa Amostra O Programa de Desenvolvimento de Competências realizado na Universidade de Coimbra contou com a participação de 58 estudantes do Ensino Superior (M=16; F=42), com idades compreendidas entre os 17 e os 41 anos (M=22,43, dp=4,23). Estes alunos eram naturais de vários distritos portugueses, dos quais se destacam: Coimbra (6), Porto (6), Leiria (4) e Madeira (4); tendo contado igualmente com alunos oriundos da Guiné (3), Cabo Verde (2), Angola (1), Congo (1), Timor (1) e EUA (1). A maioria dos estudantes participantes no Programa pertenciam à Universidade de Coimbra, tendo ainda participado alguns pertencentes ao Instituto Politécnico de Coimbra. Em termos de distribuição por faculdades da Universidade de Coimbra, os alunos frequentavam cursos, na sua maioria, das faculdades de Medicina (12) e de Direito (12), embora quase todas as faculdades estivessem representadas, à excepção da Faculdade de Desporto e Educação Física da Universidade de Coimbra. Em termos de anos curriculares que frequentavam, os alunos distribuíam-se por todos os anos (do 1.º ao 5.º), contado ainda com a presença de um aluno do ensino pós-graduado. Instrumentos e Procedimentos de Avaliação do Programa Para a avaliação do programa foi concebido pelos autores um questionário, intitulado “Programa de Desenvolvimento de Competências para a Prevenção do VIH/SIDA e IST”, com base numa escala de tipo Likert, para averiguar os conhecimentos e comportamentos dos 503 estudantes relativamente a um conjunto de sete competências no âmbito da prevenção de comportamentos de risco do VIH/SIDA e IST. O referido instrumento foi aplicado no início e no final do Programa, a um grupo experimental (constituído pelos participantes do Programa) e a um grupo de controlo (estudantes do Ensino Superior escolhidos de forma aleatória), de forma a permitir comparações de resultados. A nível dos formadores, foi elaborado um instrumento de avaliação, que designamos de “Avaliação da sessão de formação: Perspectiva do formador”, envolvendo uma escala tipo Likert, de 1 a 5, em que 1 correspondia a Mau e 5 a Muito Bom, que permitiu obter dados relativos à percepção destes sobre as condições e organização da formação e sobre o grupo de participantes. Os dados recolhidos foram tratados com recurso ao programa estatístico SPSS. Resultados e Discussão Em termos de avaliação das competências antes do início do programa (Baseline do programa), quer do grupo experimental, quer do grupo de controlo, os resultados, além de permitirem a avaliação dos conhecimentos dos participantes, foram também indicadores de ambos os grupos se encontrarem ao mesmo nível. No que respeita ao Grupo Experimental, as percepções que os participantes tinham relativamente às suas competências no âmbito da prevenção do VIH/SIDA e IST (avaliadas numa escala de tipo Likert, de 1 a 5, em que 1 representa mau e 5 muito bom), foram classificadas com valores entre o suficiente e o bom (Quadro 1). N Média Mediana Desvio Padrão Aptidão Social 57 3,8246 3,8 ,63816 Auto-Estima 54 3,9889 4 ,60241 504 Assertividade 54 3,9556 4 ,62122 Auto-Eficácia 53 4,3321 4,4 ,53052 Crenças e Mitos 54 4,2741 4,4 ,68217 Sexualidade 55 3,7709 3,8 ,81597 Tolerância e Responsabilidade Social 58 4,2138 4,4 ,53227 Quadro 1 – Distribuição das percepções sobre as competências pelo grupo experimental Por sua vez, no que respeita ao Grupo de Controlo, este foi constituído por 45 alunos (M=17; F=28), com idades compreendidas entre os 16 e os 41 anos (M=22,95, DP=4,99), frequentando, na sua maioria cursos da Universidade de Coimbra, das Faculdades de Medicina (9), Ciências e Tecnologia (9), Letras (6), Economia (6), Direito (3), Psicologia (3), Farmácia (2) e Desporto (1), bem como por alunos do Instituto Politécnico de Coimbra e outros (4). As percepções deste grupo referentes às suas próprias competências para a prevenção do VIH/SIDA e IST, à semelhança do que aconteceu com o grupo experimental, foram, em geral, classificadas com valores entre o suficiente e o bom (Quadro 2). N Média Mediana Desvio Padrão Aptidão Social 43 3,8762 3,8 ,58427 Auto-Estima 44 4,1182 4,2 ,52175 Assertividade 44 3,8273 3,8 ,61846 Auto-Eficácia 40 4,3436 4,6 ,59107 Crenças e Mitos 44 4,2773 4,4 ,64731 Sexualidade 42 3,8714 4 ,69678 Tolerância e Responsabilidade Social 41 4,0683 4 ,74915 Quadro 2 - Distribuição das percepções sobre as competências pelo grupo de controlo 505 Comparando, em termos médios, as percepções sobre as competências dos dois grupos antes do início do programa verificamos não haver grandes diferenças (Gráfico 1), revelando-se ser adequada a amostra seleccionada, a nível da sua uniformização, sendo também tais características de grande utilidade para a posterior avaliação da eficácia do programa. 5 4 Grupo Experimental 3 Grupo de Controlo 2 Tolerância e Responsabilidade Social Sexualidade Crenças e Mitos Auto-eficácia Assertividade Auto-Estima Aptidão Social 1 Gráfico 1 – Comparação entre as percepções ao nível das competências entre grupo experimental e grupo de controlo antes do Programa Por sua vez, a avaliação das competências depois do Programa foi realizada, quer para o grupo experimental, quer para o grupo de controlo. Identificaram-se, por um lado, os resultados da comparação entre os valores médios obtidos antes e depois do programa para o grupo experimental, no sentido de se perceber se houve uma evolução dos valores atribuídos a cada competência, ou seja para avaliar o impacto do programa no grupo dos alunos que nele participaram. Por outro lado, os resultados da comparação entre o grupo experimental e o grupo de controlo no final do Programa foram apurados para averiguar da existência de diferenças entre o grupo que participou no programa e o que não participou. 506 Assim, da comparação entre o desenvolvimento das competências antes e depois do programa para o grupo experimental, verificamos que em todas as competências houve evoluções positivas (Gráfico 2). 5 4 Antes 3 Depois 2 Tolerância e Responsabilidade Social Sexualidade Crenças e Mitos Auto-eficácia Assertividade Auto-Estima Aptidão Social 1 Gráfico 2 – Comparação entre a classificação das competências antes e depois do programa para o Grupo Experimental – Pólo de Coimbra Através de testes emparelhados de comparação de valores médios verificamos existirem diferenças estatisticamente significativas nos valores obtidos antes e depois do programa nas competências: “Auto-Estima” (t=-2,515; gl=40; p=.016) e “Assertividade” (t=2,334; gl=40; p=.025). Foram ainda encontradas diferenças significativas nas competências: “Crenças e Mitos” (t=-2,983; gl=41; p=.005); “Auto-eficácia” (t=-3,183; gl=37; p=.003) e “Sexualidade” (t=-4,201; gl=42; p=.000). Nas competências “Aptidão Social” e “Tolerância e Responsabilidade Social” os valores médios foram mais elevados depois do programa (M=4,10 e M=4,36, respectivamente) do que antes (M=3,84 e M=4,29, respectivamente), contudo tais diferenças não foram estatisticamente significativas. Estes dados permitem-nos, assim, inferir a existência de alterações positivas ao nível do desenvolvimento de competências do grupo que participou no Programa de Desenvolvimento de Competências para a Prevenção do VIH/SIDA e IST no pólo de Coimbra. 507 Esta mudança positiva ao nível do desenvolvimento de competências para a prevenção do VIH veio realçar os modelos específicos que sustentaram esta intervenção, dos quais salientamos, a nível nacional, os trabalhos de Jacinto e Pereira (2006), e a nível internacional, os modelos de Catania, Kegeles e Coates (1990) e Kalichman (1998) para a redução do risco da SIDA. Por sua vez, da comparação entre os valores atribuídos às competências pelo grupo experimental e pelo grupo de controlo depois do programa, verificamos que os participantes do programa apresentam valores mais elevados quando comparados, no mesmo período, com os alunos que não participaram no programa (Gráfico 3). 5 4 Grupo Experimental 3 Grupo de Controlo 2 Tolerância e Responsabilidade Social Sexualidade Crenças e Mitos Auto-eficácia Assertividade Auto-Estima Aptidão Social 1 Gráfico 3 – Comparação dos valores médios das competências do grupo experimental e do grupo de controlo depois do programa Estes dados permitem, assim, verificar que a melhoria das competências do grupo que participou no programa (visível nos resultados da comparação do antes e depois do programa para o grupo experimental), não se verificou no grupo de controlo, já que inicialmente os dois grupos apresentavam resultados muito semelhantes (Gráfico 1). Tais resultados poderão estar relacionados com a aplicação do Programa de Desenvolvimento de Competências para a Prevenção do VIH/SIDA e IST ao grupo experimental. Contudo deverá ser tida em consideração 508 alguma precaução nesta análise e discussão dos dados visto que neste tipo de estudo é muito difícil controlar as variáveis parasitas. Por seu lado, a avaliação realizada pelos formadores sobre o envolvimento no Programa foi também avaliada de forma muito positiva, tendo estes atribuído “Muito Bom” ao apoio administrativo às sessões de formação (M=5), ao material das sessões (M=4,86) e à organização geral da formação (M=4,71). O feedback recebido posteriormente, traduzindo a satisfação dos formadores ao longo deste processo de desenvolvimento de competências, veio realçar as vantagens que a relação de ajuda tem para o desenvolvimento pessoal do próprio formador, tal com tem sido salientado nos estudos de Prochaska, DiClemente e Norcross (1992), Egan (1994) e Pereira (2005). Considerações Finais A avaliação da implementação do Programa de Desenvolvimento de Competências para a Prevenção do VIH/SIDA e IST na Universidade de Coimbra revelou-se bastante positiva, realçando-se o potencial de utilidade desta forma de intervenção para prevenção de comportamentos de risco em contexto académico. A par dos resultados objectivos obtidos através da análise dos questionários, salientamos igualmente, a nível qualitativo, os vários feedbacks francamente positivos que fomos tendo conhecimento ao longo das sessões pelos participantes, bem como o entusiasmo dos formadores confrontados com um grupo altamente motivado e interessado. Relevamos também as preocupações transmitidas pelos formadores face aos conhecimentos reduzidos ao nível de planeamento familiar, sexualidade e contracepção 509 demonstrados pelos dos estudantes do Ensino Superior que participaram nas diferentes sessões, levando-nos a reforçar a pertinência da Educação para a Saúde, e concretamente para a Saúde Sexual neste contexto. Consideramos igualmente importante a integração dos conteúdos de programas deste género na estrutura curricular dos vários cursos do Ensino Superior, que poderia ser, por exemplo, operacionalizada pela criação de uma disciplina aberta aos alunos de todos os cursos, intitulada “Desenvolvimento de Competências Pessoais e Prevenção de Comportamentos de Risco”, dada a sua pertinência para o desenvolvimento pessoal e social dos estudantes do Ensino Superior. Em termos de continuidade da investigação neste domínio, sugere-se ainda alargar este trabalho a outras instituições nacionais para que se possam comparar resultados obtidos, bem como envolver equipas multidisciplinares e internacionais. Referências Bibliográficas ACU (2004). HIV/AIDS: Towards a Strategy for Commonwealth Universities. Registered Charity No. 314137 (documento online em: www.acu.ac.uk/hiv-aids/hiv_aids.html). Bandura, A. (1994). Social cognitive theory and exercise of control over HIV infection. In R. DiClemente & J. Peterson (Eds.), Preventing AIDS: Theories, methods, and behavioural interventions (pp. 25-60). New York: Plenum. Catania, J.A.; Kegeles, S.M. & Coates, T.J. (1990). Towards an understanding of risk behavior: An AIDS risk reduction model (ARRM). Health Education Quaterly, 17, 53-72. 510 Coordenação Nacional para a Infecção VIH/sida (2007). Programa Nacional de Prevenção e Controlo da Infecção pelo VIH/sida 2007-2010. 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Geneva: WHO. 513 Candidatura 26 Autores: Anabela Pereira, José Tavares, Gustavo Vasconcelos, Paula Vagos, Luísa Santos, Sara Monteiro, Pedro Almeida, Luís Pedro, Carlos Santos, Cátia Figueiredo, Mariana Fortuna, Marília Moita, Rui Rodrigues & Helder Castanheira Título: LUA na Second life ou apoio psicológico virtual: resultados da fase experimental 514 LUA NA SECOND LIFE OU APOIO PSICOLÓGICO VIRTUAL: RESULTADOS DA FASE EXPERIMENTAL Anabela Pereira, José Tavares, Gustavo Vasconcelos, Paula Vagos, Luísa Santos, Sara Monteiro, Pedro Almeida, Luís Pedro, Carlos Santos, Cátia Figueiredo, Mariana Fortuna, Marília Moita, Rui Rodrigues & Helder Castanheira Anabela Pereira, [email protected], Universidade de Aveiro Introdução O Second Life (a seguir abreviado por SL) é um ambiente virtual, tridimensional, acessível pela internet, cuja subscrição-base é gratuita e que simula ou tenta simular o mundo real. Pode ser encarado por vários prismas, como um jogo, um centro de negócios virtual, uma rede social, ou quase uma vida paralela em que cada pessoa pode escolher uma personagem (avatar) e agir de forma diferente da sua conduta habitual. Foi desenvolvido em 2003 pela empresa Linden Lab e tem aumentado exponencialmente o número de utilizadores. Um levantamento demográfico, se assim se pode dizer, feito pela empresa comScore, especializada em estatísticas de internet e citado pelo blog mundolinden aponta para um crescimento de 5 vezes nos primeiros meses de 2007, chegando aos 6 milhões de utilizadores registados, dos quais 1,3 milhões são activos. Afirma ainda que, em 15 meses, a população do Second Life cresceu de 100.000 para 6 milhões em todo o planeta (blogue “mundo linden” em http://mundolinden.wordpress.com/category/estatísticas). 515 Este ambiente virtual consiste num conjunto de ilhas, habitadas por avatares (personagens virtuais), que são escolhidos pelos utilizadores, sendo totalmente personalizáveis. Todo esse “mundo” (edifícios, ruas, objectos, etc.) é construído pelos seus residentes. Para isso, o SL disponibiliza uma ferramenta de modulação 3D que permite que utilizadores mais avançados possam construir objectos, edifícios, veículos, entre outros. que depois ficam na sua posse, sendo mesmo possível vender ou negociar. A unidade monetária utilizada é o Linden Dollar e serve, por exemplo para adquirir porções de terreno ou mesmo ilhas (artigo wikipédia em http://pt.wikipedia.org/wiki/Second_Life). Sendo, como vimos, um veículo privilegiado de comunicação com os jovens, muitas empresas e outros organismos não quiseram desperdiçar mais este meio de cativar clientes e/ou membros. Também as instituições de ensino não poderiam deixar de estar associadas a este novo desafio. De facto, cada vez mais agentes educativos em todo o mundo começaram a comprar ilhas no Second Life (Kelton, 2007; Kirriemuir, 2007), tanto mais que em 2007 já lá estavam registadas mais de mil universidade ou instituições de ensino (De Lucia, Francese, Passero, & Tortora, 2008; Lagorio, 2007). Essencialmente, as instituições de ensino procuram no SL uma nova e mais atraente plataforma de e-learning. No fundo, um ensino à distância a 3 dimensões, com algumas semelhanças com o “ensino tradicional”. O Second Life permite o ensino síncrono, ou seja, aulas com hora marcada em que todos terão que estar online ao mesmo tempo e o ensino assíncrono, nomeadamente trabalhos, questões ou projectos em que o professor/tutor deixa as instruções para que os alunos executem determinada tarefa num período de tempo. Isto já era possível nas plataformas de e-learning mais tradicionais. A novidade é que no SL tudo parece mais real, envolvente e atractivo. Em vez de intermináveis páginas/ecrãs de texto existem salas de aula virtuais em que é possível realmente assistir a uma apresentação 516 (slideshow) comodamente instalado em casa e ao mesmo tempo comunicar com os outros alunos e professores em tempo real. Isto pode potenciar, por exemplo, o número de inscrições de alunos estrangeiros em cursos de uma Universidade. Deste modo, os ambientes 3D começaram a ser utilizados pelas instituições de ensino como suplemento das actividades realizadas na sala de aula (Barab et al., 2002; Delwiche, 2006; Dickey, 2003; 2004 Mayrath et al., 2007), oferecendo a possibilidade de realizar tarefas que seriam difíceis no mundo real, como dar a oportunidade a alunos de arquitectura de construir edifícios que seriam demasiado caros ou fisicamente impossíveis (Lamb, 2006) ou permitir que alunos de psiquiatria e o público em geral compreendessem melhor a visão do mundo de um esquizofrénico, levando os seus avatares a experimentarem uma alucinação, como fez o projecto Virtual Hallucination, pertencente ao UC Davis Medical Center (site oficial: http://www.ucdmc.ucdavis.edu/ais/virtualhallucinations/; The Economist, 2006). Apesar disso, as aplicações da Internet não se esgotam na aprendizagem de conteúdos académicos. Tendo em conta que a maior parte dos estudantes são utilizadores frequentes da Internet e das ferramentas associadas e que já as utilizam para pesquisar informação sobre saúde mental (Christensen & Griffiths, 2000; Escoffery et al., 2005), o desenvolvimento de serviços de educação para a saúde e promoção da saúde mental e bem-estar online seria naturalmente outro passo importante. Apesar de existirem já várias iniciativas online como serviços de aconselhamento, (Efstathiou & Kalantzi-Azizi, 2005), comunidades informais para aprendizagem sobre saúde mental (Richards & Tangney, 2008) e apoio de pares (peer counselling) (Drees, 2005; Freeman, Barker, Pistrang, Keane, & McAteer, 2005), a maioria destes projectos baseia-se em tecnologias de segunda geração, tal como os emails, fóruns, blogs ou as salas de conversação, 517 escasseando dados empíricos que comprovem a sua eficácia (Eysenbach, Powell, Englesakis, Rizo, & Stern, 2004). Neste sentido, as intervenções dirigidas à saúde mental que sejam aplicadas em ambientes virtuais, como o Second Life, são ainda mais recentes e inovadoras. Foram surgiram grupos de ajuda dirigidos a públicos com problemáticas específicas, como a depressão, perturbação bipolar ou o alcoolismo (Depression 24/7 Helpline, Second Life Bipolar Support Group ou Alcoholics Anonymous), apoio de pares para pessoas com dificuldades, incidindo nas competências de coping e promoção da saúde mental (Mental Health Network), aconselhamento aos residentes do Second Life (Wellness Island - site oficial http://www.slcounseling.org/nexus.htm) e apoio aos residentes que sofram na vida real de síndrome de Asperger ou autismo (Brigadoom - site oficial: http://braintalk.blogs.com/brigadoon/2005/02/online_social_n.html). Se é verdade que no estrangeiro se tem apostado ao longo dos últimos anos, na Internet e ferramentas associadas, sejam de 2ª ou 3a geração, para fins tão diversos como o ensino ou promoção da saúde, em Portugal, todavia, esse interesse pela tecnologia não foi tão precoce. De facto, foi apenas no ano lectivo de 2006/2007 que a Universidade de Aveiro (UA) adquiriu uma ilha, tornando-se assim na primeira instituição de ensino portuguesa a fazer-se representar no Second Life. O Departamento de Comunicação e Arte deu, então, início à construção do espaço virtual da UA, tendo, para esse efeito, envolvido alunos dos cursos de Novas Tecnologias da Comunicação e dinamizado projectos para que o desenvolvimento e actualização fossem suportados numa base regular. O facto de o SL ser integrado desde logo nos planos de estudo de algumas disciplinas contribuiu significativamente para a imagem de credibilidade e pragmatismo que por vezes falta nestes projectos de índole tecnológica. O envolvimento dos alunos neste tipo de projectos apresenta grandes vantagens pedagógicas e é 518 um elemento bastante motivador, porque se sentem parte activa do processo desde a sua génese. Aos visitantes da ilha da UA são já disponibilizados diversos serviços. Entre os quais, um dos mais recentes e inovadores é a LUA (Linha da Universidade de Aveiro) no Second.UA. A LUA foi, originariamente, um projecto de doutoramento da professora Anabela Pereira, implementado em 1994 e que constitui a primeira experiência a nível nacional, consistindo numa linha telefónica nocturna de apoio aos estudantes pelos próprios estudantes, tendo por base o modelo de peer counselling (Pereira, 1997,1998; Pereira e Williams, 2001). Partilhando os objectivos com o projecto inicial, surge agora a LUA em ambiente virtual tridimensional, que presta apoio através de avatares (peer counsellor). O upgrade da LUA para o SL não é apenas uma questão de acompanhar os tempos, mas também porque o Second Life oferece um ambiente imersivo em que as pessoas se sentem mais livres de poder exprimir todas as suas ideias, emoções ou frustrações, como que protegidas por um avatar. É uma plataforma extremamente interactiva que pede constantemente a intervenção do utilizador. É também um meio de comunicação muito abrangente, no sentido em que chega a um público massivo, multifacetado e em número crescente. Num tempo em que há cada vez menos tempo, o SL permite, em comparação com o atendimento tradicional, uma maior disponibilidade e acessibilidade, sem constrangimentos de horários apertados, transportes, esperas prolongadas, etc. A consulta é feita sem a deslocação do paciente ao consultório, o que por outro lado permite também o anonimato, quando pretendido O presente trabalho pretende apresentar os resultados obtidos com a activação dos serviços LUA no SL, tanto a nível de consultas e apoios prestados, como a nível da perspectiva dos utilizadores apoiantes. 519 Método Amostra Envolveu uma equipa multidisciplinar: 11 peritos de tecnologias da informação (settlers); 5 psicólogos e 3 investigadores (terapeutas e formadores) e 15 estudantes de psicologia (peer counsellor). Para a análise da utilidade e actividades desenvolvidas no espaço virtual LUA durante este período experimental, recorremos ao registo automático de entrada de avatares no espaço e de pedidos de consulta e aos registos feitos por cada aluno conselheiro ou peer counsellor sobre cada consulta que efectuou. Instrumentos Para registar a entrada de avatares no espaço e pedidos de consulta, foi incorporado no funcionamento do próprio espaço um sistema de registo automático. A entrada de avatares foi realizada pelo reconhecimento de uma nova identidade de avatar e o pedido de consulta foi registado pelo clicar no local apropriado. Como forma de registo das consultas dadas, foi construída uma página online, de acesso restrito aos peritos, investigadores e alunos integrados no projecto, onde eles preenchiam dados relativos a características visíveis, aos problemas apresentados e às estratégias utilizadas. Procedimento Para a activação dos serviços, foi construído um espaço no ambiente virtual Second Life, constituído por uma sala de entrada, duas salas de consulta individual e uma sala de reuniões/ terapia de grupo. A confidencialidade das consultas individuais foi garantida pela 520 subida do espaço a uma altitude inacessível a outros avatares (400metros). Os serviços estiveram activos por um período de duas semanas a nível experimental, em horário nocturno (inicialmente previsto das 22h à 01h da manhã, mas que se prolongou por toda a noite e madrugada). Resultados O espaço online foi visitado por 178 avatares, de acordo com o registo automático de entrada no edifício. Destas visitas, 112 (62.92%) foram concretizados em pedidos de ajuda junto dos avatares peer counsellors, sendo 66 (37.08%) de visita e reconhecimento do espaço. Dos pedidos realizados, 54.5% (n = 61) ocorreram durante o período de activação experimental do serviço e 45.5 (n = 51) após a conclusão deste período. No que respeita ao dia da semana, 19.6% (n = 22) dos pedidos ocorreram ao fim de semana (sexta, sábado e domingo) e 80.4% (n = 90) durante a semana (segunda a quinta-feira). Relativamente à hora de ocorrência, 1.8% (n = 2) decorreu de madrugada (1h – 6h59), 29.5% (n = 33) aconteceu de manhã (7h – 12h59), 21.4% (n = 24) ainda de tarde (13h – 18h59) e 47.3% (n = 53) decorreu de noite (19h – 24h59). No que concerne ao prosseguimento do pedido, e considerando apenas os pedidos realizados durante o período de activação dos serviços, 34.4% (n = 21) foram consultados, tendo sido verificada a necessidade de continuação no apoio prestado, enquanto 65.6% (n = 4) foram encerrados, tendo sido dado término ao processo de apoio. De entre as consultas dadas, foram registadas 18.03% (n = 11). Relativamente ao género dos avatares com consultas registadas, 45.45% (n = 5) foram do sexo masculino, 45.45% (n = 5) foram do sexo feminino. Não foi possível identificar o sexo de um avatar consultado (9.1%). 521 As problemáticas abordadas e que os levaram ao pedido de ajuda variaram entre relações com amigos (n = 3; 27.3%), insatisfação com a imagem corporal (n = 1; 9.1%), relação com o namorado/a (n = 3; 27.3%), isolamento e solidão (n = 2; 18.2%) e sintomas depressivos (n = 2; 18.2%). 522 Discussão Apesar do curto espaço de tempo em que a LUA esteve activa no SL, podemos retirar desta experiência alguns dados que, de um modo global, nos permitem fazer uma apreciação bastante positiva. Em primeiro lugar, constatámos que este espaço teve uma grande afluência, não apenas de avatares movidos pela curiosidade, como também daqueles que pretendiam procurar ajuda. Este interesse demonstrado pelas pessoas, em conhecer e aderir ao apoio psicológico num mundo virtual, vem reforçar a pertinência da utilização da iniciativas online de promoção da saúde mental, dirigidas aos estudantes universitários (Richards & Tangney, 2008), que são, de um modo geral, utilizadores frequentes da Internet, recorrendo a ela para obter informação e educação no âmbito da saúde e da saúde mental (Christensen & Griffiths, 2000; Escoffery et al., 2005). Efectivamente, o aconselhamento no SL, quando comparado com o aconselhamento tradicional, tem a vantagem de possibilitar o total anonimato, já que cada pessoa não se expõe directamente, mas sim através de uma identidade fictícia que criou, o seu avatar. Ao levar as pessoas a sentirem-se mais confortáveis e à vontade na hora de expor os seus problemas, dúvidas, receios, este meio poderá atrair um grupo de indivíduos que, de outro modo, não procurariam apoio psicológico. Se atentarmos aos motivos que levaram os avatares a procurar ajuda na LUA, ou seja, dificuldades interpessoais (tanto no relacionamento com amigos como nos namoros), problemas com a imagem corporal, isolamento, solidão e sintomas depressivos, facilmente verificamos que estas problemáticas são essencialmente de natureza psico-social e encontram-se entre as mais comuns apresentadas pelos 523 estudantes nos serviços de aconselhamento no ensino superior em Portugal (RESAPES, 2002), bem como nalguns estudos anteriormente realizados ao nível do apoio psicoterapêutico (Pereira, Masson, Ataíde e Melo, 2004) Com base na distribuição das visitas ao longo do tempo, podemos fornecer algumas pistas quanto horário de funcionamento mais indicado para o apoio psicológico virtual dirigido à população estudantil do ensino superior (embora não exclusivamente), Com efeito, o melhor período parece ser durante os dias úteis, de segunda a quinta-feira, preferencialmente durante a noite (19h-24.59), seguida da manhã (7h-12:59), sendo tais períodos coincidentes com os estudos pioneiros de Pereira (1997). Apesar dos resultados promissores desta experiência, deverão ser tidas em considerações algumas limitações. Para compreendermos até que ponto esta iniciativa foi bem sucedida, seria importante ter a opinião dos alunos apoiados/avatares, pois apenas estes nos poderão indicar se as consultas contribuíram de alguma forma para ultrapassar as suas dificuldades ou problemas ou para melhorar o seu bem-estar e auto-estima. Esta informação é fundamental, até porque as informações existentes sobre a eficácia de iniciativas de peer counselling realizadas online, são algo complexas e dúbias (Eysenbach, Powell, Englesakis, Rizo, & Stern, 2004) e não temos conhecimento de dados sobre apoio de pares especificamente no Second Life ou outros ambientes virtuais. Neste sentido, acreditamos que, de futuro, possamos ultrapassar esta limitação, aplicando alguma medida de avaliação da eficácia das consultas aos alunos atendidos e eventualmente comparando com um grupo de controlo. Por outro lado, a formação dos alunos voluntários, tanto ao nível de competências de manuseamento do Second Life, como do próprio peer counselling poderá ter tido algumas lacunas, especialmente devido a constrangimentos de tempo, o poderá ter estado na origem da baixa percentagem de consultas registadas (18,07%), face ao total de consultas efectuadas, 524 bem como de registos reduzidos de informação e por vezes confusos. Para além disso, problemas técnicos impossibilitaram a consulta de alguns dos registos. A reactivação da LUA no Second Life, com a preocupação de ultrapassar as limitações desta primeira fase, está prevista para um futuro próximo. O sucesso desta experiência de elevada utilidade para os tempos vindouro só foi possível devido a um trabalho de uma equipa multidisciplinar e complementar Acreditamos que os resultados desta experiência pioneira em Portugal são indicadores da potencialidade desta ferramenta de apoio psicológico de pares em ambiente virtual, enquanto meio inovador e alternativo de promoção e educação para a saúde, abrindo portas para a procura de apoio psicológico em contexto real e assim promovendo por dois meios o bemestar e saúde mental do indivíduo. Referências Bibliográficas Barab, S. A., Hay, K. E., Squire, K., Barnett, M., Schmidt, R., Karrigan, K., et al. (2000). Virtual solar system project: Learning through a technology-rich, inquiry-based, participatory learning environment. Journal of Science Education and Technology, 9, 7 – 25. Christensen, H., & Griffiths, K. (2000). The Internet and mental health literacy. Australian and New Zealand Journal of Psychiatry, 34 (6), 975-979. 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Outras fontes: Site oficial do SL: http://secondlife.com/whatis/economy_stats.php Artigo Wikipedia online sobre o SL: http://en.wikipedia.org/wiki/Second_life 528 Candidatura 27 Autores: Fabio Scorsolini-Comin & Manoel dos Santos Título: A Psicologia Positiva no contexto brasileiro: história, presente e perspectivas futuras 529 A Psicologia Positiva no contexto brasileiro: história, presente e perspectivas futuras Fabio Scorsolini-Comin30 ([email protected]) Manoel Antônio dos Santos31 ([email protected]) Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto, Universidade de São Paulo - Brasil Agência de fomento: Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP) Resumo Dada a recorrência de estudos na perspectiva da Psicologia Positiva a partir da década de 90, o objetivo deste estudo é apresentar uma revisão integrativa da literatura produzida no contexto brasileiro, por meio da análise de artigos indexados nas bases LILACS e SciELO, publicados entre 1970 e 2008. Foram localizados 246 publicações. Entre as principais contribuições da Psicologia Positiva no Brasil destacam-se: a construção de instrumentos de avaliação e modelos de intervenção, com predominância de estudos de revisão teórica e de relação com outros conceitos, revelando que esse movimento ainda não recebeu a devida atenção do meio científico brasileiro. Por ser recente, tem mobilizado o desenvolvimento de estudos nacionais predominantemente de fundamentação teórica, uma vez que a maioria dos trabalhos nesta perspectiva foram desenvolvidos no cenário internacional. Examinando as 30 Psicólogo e mestrando em Psicologia e Educação pela Universidade de São Paulo, Brasil (FFCLRPUSP). Especialista em Gestão Educacional e graduando em Pedagogia pela Universidade de São Paulo. Pesquisador na área de conjugalidade e bem-estar subjetivo e bolsista da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP). 31 Psicólogo, mestre e doutor em Psicologia pela Universidade de São Paulo, Brasil (FFCLRP-USP). Professor do Departamento de Psicologia e Educação da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto, da Universidade de São Paulo, Brasil (FFCLRP-USP). Bosista de produtividade científica do CNPq. 530 perspectivas futuras para a área, cada vez mais as pesquisas devem se voltar para os aspectos positivos da personalidade e dos fatores que efetivamente promovem o desenvolvimento, em diferentes contextos de investigação. Pelos trabalhos selecionados, conclui-se que a comunidade acadêmica brasileira está despertando para acompanhar os relevantes avanços da área, o que pode favorecer uma rápida e complexa produção científica no mundo, que rompe com os ideais epistemológicos vigentes até o momento. (FAPESP) 1. Introdução A Psicologia, durante muito tempo, deu ênfase às questões relacionadas à doença, não se atendo às discussões sobre a saúde e o bem-estar (Diener, 1984). É nesta lacuna de investigações que se situa a Psicologia Positiva. Graziano (2005), ao discorrer sobre as origens da Psicologia e, especificamente, da Psicologia Positiva, afirma que a Psicologia enquanto ciência deve contemplar toda a complexidade e diversidade da mente humana e não apenas alguns de seus atributos, positivos ou negativos. Para esta autora, a Psicologia ainda está voltada para a doença, para os aspectos tidos como negativos ou desfavoráveis, uma vez que há intensa dificuldade de romper com este paradigma, que remonta à Segunda Guerra Mundial. Após este período histórico, os estudos em Psicologia se direcionaram para a recuperação e remediação de déficits e patologias. Na seqüência, surgiu uma concepção do ser humano baseada e influenciada pela doença mental e pelas disfuncionalidades dos sistemas e organizações, destacando as fragilidades e limitações das pessoas (Marujo, Neto, Caetano & Rivero, 2007). Naquela época, segundo Seligman (2004), a Psicologia era fortemente identificada como um tratamento de doenças mentais, a fim de curar desordens e não vinculada à promoção de saúde e qualidade de vida das pessoas. O foco na doença ajudou a construir uma Psicologia que negligenciou uma importante fatia do estudo dos seres humanos, ou seja, de 531 suas potencialidades e aspectos positivos de desenvolvimento. A partir disso, Marujo et al. (2007) destacam que surgiu um movimento interessado em discutir aspectos como felicidade, bem-estar, otimismo e longevidade, temas que simplesmente eram descartados pelos pesquisadores anteriormente devido ao foco na doença. Assim como apontado no trabalho de Marujo et al. (2007), a Psicologia Positiva surge na década de 1990 e se constitui como uma “área de estudo científica própria, vibrante e multifacetada que vai além de uma abordagem centrada nos problemas e nas patologias, para se endereçar teórica e empiricamente à construção das melhores qualidades de vida, nos âmbitos subjetivo, individual e grupal” (p. 117). Segundo Sheldon e King (2001), a Psicologia Positiva é o estudo científico das forças e virtudes próprias do indivíduo. Para Seligman (2004), trata-se do estudo de sentimentos, emoções, instituições e comportamentos positivos que têm como objetivo final a felicidade humana. Do ponto de vista de contextualização histórica, a Psicologia Positiva foi desenvolvida por Seligman (2004), que propôs, basicamente, a modificação do foco da Psicologia de uma reparação das “coisas ruins da vida” para a construção de qualidades positivas (Caprara & Steca, 2006). De acordo com Seligman (2004), a Psicologia Positiva se sustenta sobre três pilares principais, a saber: o estudo da emoção positiva; o estudo dos traços ou qualidades positivas, principalmente forças e virtudes, incluindo habilidades como inteligência e capacidade atlética; e, por fim, o estudo das chamadas instituições positivas, como a democracia, a família e a liberdade que dão suporte às virtudes que, por sua vez, apóiam as emoções positivas (Graziano, 2005, p.34). A Psicologia Positiva pretende debruçar-se sobre as experiências positivas (como emoções positivas, felicidade, esperança, alegria), características positivas individuais (como caráter, forças e virtudes), e instituições positivas (como organizações baseadas no sucesso e potencial humano, sejam locais de trabalho, escolas, famílias, hospitais, 532 comunidades, sociedades ou ambientes físicos a todos os títulos saudáveis) (Marujo et al., 2007; Larrauri, 2006; Park & Peterson, 2007; Peterson & Seligman, 2004; Seligman, 2002; Seligman & Csikszentmihalyi, 2000). No cenário global contemporâneo, temos observado uma série de mudanças e cada vez mais todos são expostos à complexidade crescente. Sendo assim, alguns teóricos revisitados por Graziano (2005), como Wright (2000) e Marsella (1998), destacam que quanto mais jogos de soma positiva houver em uma cultura, maiores serão as suas chances de sobrevivência e desenvolvimento. Esses e outros apontamentos justificam não apenas a necessidade de uma Psicologia Positiva, mas principalmente do desenvolvimento de pesquisas na área. De acordo com Graziano (2005), o desenvolvimento de pesquisas na área da Psicologia Positiva talvez se torne uma questão de sobrevivência, uma vez que é preciso que temas como virtude, caráter e felicidade humana sejam discutidos de forma secular, produzindo um conhecimento capaz de transpor os portais das igrejas e a superficialidade dos manuais de auto-ajuda, de forma que todos possam crer na sua existência. Feita essa breve apresentação e contextualização do quadro teórico conceitual, compreende-se que a Psicologia Positiva ainda é um campo científico recente e que deve ser mais explorado tanto por pesquisas empíricas que resgatem seus pressupostos, quanto por trabalhos que explorem o modo como este referencial vem sendo utilizado na ciência e de que modo ele tem contribuído para o desenvolvimento da Psicologia. Os estudos de revisão sistemática da literatura são escassos, resgatando os principais trabalhos produzidos sobre o tema na atualidade. 2. Objetivo 533 Apresentar uma revisão na literatura científica acerca da Psicologia Positiva, buscando evidenciar o perfil dos trabalhos publicados em fontes de pesquisa de impacto, de modo a possibilitar um maior direcionamento das pesquisas sobre este referencial teórico e discutir as tendências dessas publicações, bem como as perspectivas de produção na área, notadamente no contexto científico brasileiro. 3. Método De acordo com Beyea e Nicoll (1998), uma revisão integrativa sumariza pesquisas passadas e tira conclusões globais de um corpo de literatura de um tópico em particular. Segundo Fernandes (2000), a revisão integrativa permite a construção de uma análise ampla da literatura, contribuindo para discussões sobre métodos e resultados de pesquisa, assim como reflexões sobre a realização de futuras pesquisas. É necessário, portanto, seguir padrões de rigor e clareza na revisão e crítica, de forma que o leitor possa identificar as características reais dos estudos revisados. De acordo com os procedimentos de Ganong (1987) e ScorsoliniComin e Amorim (2008), embora os métodos para a condução de revisões integrativas variem, existem padrões a serem seguidos. Na operacionalização dessa revisão, utilizamos as seguintes etapas: seleção da questão temática, estabelecimento dos critérios para a seleção da amostra, análise e interpretação dos resultados e apresentação da revisão. 3.1. Procedimento As buscas nas bases foram realizadas em um único dia em uma rede de acesso público de uma universidade pública do Estado de São Paulo. Em todas as bases de dados foi utilizado o termo de busca Psicologia Positiva (Positive Psychology). Após o levantamento das publicações, os resumos foram lidos e analisados segundo os critérios de inclusão/exclusão 534 estabelecidos. Os trabalhos selecionados foram recuperados na íntegra e, posteriormente, analisados. 3.2. Bases consultadas Visando assegurar uma ampla abrangência desta revisão, foram consultadas as seguintes bases: LILACS e SciELO. A base PEPsic reúne uma coleção de revistas científicas em Psicologia e áreas afins. É fruto da parceria entre a Biblioteca Virtual em Saúde – Psicologia (BVS-Psi) e a Associação Brasileira de Editores Científicos de Psicologia – ABECiP. Esta base não foi utilizada neste estudo, uma vez que em revisões anteriores (Scorsolini-Comin & Amorim, 2008), a maioria dos trabalhos resgatados nesta fonte foram também encontrados nas bases LILACS e SciELO, que possuem maior abrangência. A LILACS é uma base de dados cooperativa da Rede BVS que compreende a literatura relativa às ciências da saúde, publicada nos países da América Latina e Caribe, a partir de 1982. A SciELO (Scientific Electronic Library On-line Brasil) é uma biblioteca eletrônica que abrange uma coleção selecionada de periódicos científicos brasileiros que tem por objetivo a preparação, armazenamento, disseminação e avaliação da produção científica em formato eletrônico. 3.3. Critérios de inclusão e exclusão dos trabalhos Para esta revisão, foram excluídos trabalhos como teses, dissertações, resenhas, entrevistas, livros e capítulos de livros. Foram selecionados apenas resumos de artigos indexados. Essa escolha se deve ao fato de que em uma das bases (LILACS) há alto registro de trabalhos deste tipo (não apenas artigos indexados) e que, muitas vezes, podem não passar por um processo de avaliação aos pares, o que garante a qualidade do trabalho e de apreciação científica. A fim de buscar apenas trabalhos que passaram por um processo rigoroso de avaliação, foram selecionados apenas artigos indexados (Scorsolini-Comin & Amorim, 2008). Foram excluídos, ainda, trabalhos distantes do tema, como trabalhos 535 relacionados à área médica e à Psicologia Experimental (descrição de experimentos não ligados à Psicologia Positiva). O levantamento compreendeu o período de 1970 a 2008. Tal abrangência objetivou traçar um perfil das publicações, ao longo dos últimos 38 anos, na tentativa de resgatar grande volume de trabalhos produzidos a respeito do tema ou utilizando-se dessa noção, a despeito da ressalva de que a Psicologia Positiva se desenvolveu, fundamentalmente, a partir da década de 90 (Marujo et al., 2007). Como critérios de inclusão, destacamos: artigos publicados apenas em periódicos indexados; trabalhos publicados nos idiomas português, inglês, espanhol e francês; e, ainda, trabalhos empíricos, teóricos e de revisão acerca do tema. Os resumos condizentes com os critérios adotados foram selecionados, partindo-se daí para a busca dos trabalhos completos, que foram posteriormente analisados, segundo categorias temáticas. 4. Resultados Nas bases selecionadas, foram encontrados 246 trabalhos pelos termos de busca. Entre os trabalhos excluídos, a grande maioria se refere à área médica, como estudos de caso de patologias específicas como câncer, diabetes e outros, além de investigações sobre prevalência e tratamentos de doenças (73 trabalhos); outra grande produção excluída está relacionada à Psicologia Experimental, dentro da perspectiva da Psicologia Comportamental (52 trabalhos). Esses estudos reportam resultados de experimentos realizados com ratos e outros modelos animais acerca de determinados aspectos do comportamento, sem relação direta ou indireta com a perspectiva da Psicologia Positiva. Outro eixo de destaque encontrado foi o de trabalhos que abordam o HIV, a vivência da soropositividade sem relação direta com a perspectiva da Psicologia Positiva (33 trabalhos). Outros eixos elencados foram: Psicologia Clínica (16 trabalhos); educação (11); antropologia/filosofia/religião (11); testes psicológicos (nove); habilidades sociais (nove); inclusão (quatro); Psicologia Ambiental (três); idosos (três); 536 saúde no trabalho (dois); arte (um); homossexualidade (um); cooperativismo (um); educação musical (um); violência (um); adolescência (um) e ecologia do desenvolvimento (um). A partir dos critérios de inclusão/exclusão, chegou-se a um total de 10 artigos selecionados, que constituíram o corpus da pesquisa. Esses artigos foram lidos na íntegra e analisados em profundidade. Deve-se destacar que a redução drástica do número de trabalhos - de 246 encontrados para apenas 10 selecionados e resgatados – deve-se à grande dispersão dos trabalhos. Assim, a maioria das publicações encontradas se referiam à Psicologia enquanto área mais ampla ou a aspectos positivos de determinada área, como a questão do reforçamento na terapia comportamental ou na Psicologia Experimental. Assim, apenas os trabalhos que efetivamente abordavam a Psicologia Positiva enquanto área de estudos foram selecionados para discussão. Atesta-se, ainda, que este campo de investigação, embora atual e discutido pela Psicologia de modo crescente, notadamente a partir de 1998, tem sido contemplado por poucos trabalhos de revisão ou empíricos que adotem tal referencial. Em alguns trabalhos, os autores apenas mencionam a assunção da Psicologia Positiva sem, no entanto, utilizá-la efetivamente. Como a maioria dos trabalhos localizados foi produzida no contexto brasileiro, deve-se considerar que a tímida produção nacional contrasta com a produção européia e norte-americana, uma vez que, em levantamentos anteriores, a partir de outras bases de dados, apontou-se grande volume de trabalhos nessas regiões (Marujo et al., 2007; Larrauri, 2006; Park & Peterson, 2007; Caprara & Steca, 2006; Peterson & Seligman, 2004; Seligman, 2002; Seligman & Csikszentmihalyi, 2000). Em relação ao ano de publicação dos trabalhos selecionados, observa-se que 57% se concentram nos anos de 2006 e 2007 (quatro trabalhos), o que revela se tratar de uma produção recente e em crescimento; 28% dos artigos selecionados são do ano de 2003 (dois trabalhos) e apenas 14% de 2002. Ou seja, todos os trabalhos selecionados são da década em curso, o que mostra que, embora as discussões relativas a esta perspectiva sejam anteriores, 537 como observado na introdução, o pico de produções científicas se deu na presente década, com acentuado crescimento nos dois últimos anos. Em relação ao idioma, a maioria dos trabalhos selecionados nessas bases encontra-se em português (86%), seguidos por dois trabalhos (14%) em língua espanhola. Nenhum trabalho em inglês foi selecionado, idioma no qual predominam as produções médicas e comportamentais indiretamente relacionadas à perspectiva investigada. No que se refere ao perfil dos trabalhos selecionados e resgatados, todos fazem uma breve contextualização da área da Psicologia Positiva. Este movimento é compreendido como uma aproximação das pesquisas à comunicação científica, uma vez que este campo de investigação é relativamente recente. Encontraram-se importantes artigos de revisão histórica, destacando a origem e o surgimento da Psicologia Positiva (Passareli & Silva, 2007; Ferraz, Tavares & Zilberman, 2007; Paludo & Koller, 2007), bem como as suas implicações para a ciência psicológica (Serbena & Raffaelli, 2003; Yunes, 2003; Paludo & Koller, 2007). Outros trabalhos destacaram os conceitos existentes dentro da Psicologia Positiva, como o bem-estar subjetivo (Guedea, Albuquerque, Tróccoli, Noriega, Seabra & Guedea, 2006; Passareli & Silva, 2007; Paludo & Koller, 2007), e flow (Paludo & Koller, 2007), bem como a sua correlação com as noções de resiliência (Yunes, 2003), self (Liberalesso, 2002), estratégias de enfrentamento, apoio social e variáveis sociodemográficas (Guedea et al., 2006). Em relação às populações estudadas nos trabalhos empíricos, destacam-se os idosos (Liberalesso, 2002; Guedea et al., 2006). Outro eixo de destaque são os trabalhos que abordam os instrumentos de mensuração existentes nesta perspectiva, geralmente em relação ao bemestar subjetivo e à satisfação (Paludo & Koller, 2007; Ferraz, Tavares & Zilberman, 2007). Por fim, destacam-se os trabalhos que abordam os campos de aplicação da Psicologia Positiva, bem como as suas perspectivas em termos de produção científica e intervenção (Paludo & Koller, 2007; Contreras & Esguerra, 2006). 538 5. Análise e discussão dos trabalhos 5.1. A Psicologia que estuda a felicidade: uma revisão histórica O estudo de Passareli e Silva (2007) apresenta o surgimento da Psicologia Positiva como um importante novo campo de estudos da Psicologia contemporânea, que emerge em um momento em que novos estudos têm focado a compreensão das forças e virtudes humanas. Segundo os autores, especial atenção é dada a um de seus principais componentes – o bem-estar subjetivo –, também conhecido como felicidade. Buscando elucidar os aspectos envolvidos no estudo do bem-estar subjetivo, o artigo aborda alguns de seus principais correlatos, afirmando que o melhor entendimento dos fatores envolvidos com o surgimento tanto de emoções positivas quanto de negativas permite uma maior compreensão da condição humana diante das adversidades. Como se trata de um artigo de revisão histórica, os autores destacam a publicação, em 2002, do livro Authentic happiness, traduzido para o português no ano de 2004 (Seligman, 2004), em que este autor relata suas reflexões sobre a Psicologia Positiva e sua relação com a felicidade. O artigo também apresenta uma perspectiva sobre os estudos realizados acerca do bem-estar subjetivo no âmbito internacional e, portanto, dentro da Psicologia Positiva. Segundo Passareli e Silva (2007), diferentes estudos que envolvem o bem-estar subjetivo já foram realizados, principalmente fora do Brasil. A maioria dos estudos relacionados por Passareli e Silva (2007) investigavam o bem-estar subjetivo em estudos transculturais, tentando apontar as diferenças culturais como uma variável relacionada à percepção de felicidade. A maioria dos participantes dessas pesquisas era constituída de estudantes. Apenas um trabalho, que utilizou escalas e questionários para mensurar o bemestar subjetivo, foi referido neste artigo resgatado. Passareli e Silva (2007) também apontaram que, no Brasil, poucos estudos sobre o bem-estar subjetivo foram realizados, destacando apenas dois, um com adolescentes e outro com policiais civis para a validação de um questionário de avaliação do bem-estar subjetivo em termos de afetos positivos, negativos e satisfação com a vida (Albuquerque & Tróccoli, 2004). 539 Passareli e Silva (2007) concluem afirmando a necessidade do “desenvolvimento de outros estudos que abordem a importância do bem-estar subjetivo tanto para conhecer mais profundamente o tema como para adequá-lo à realidade brasileira” (p.516). Em um outro artigo selecionado, Serbena e Raffaelli (2003) apresentam uma reflexão sobre a Psicologia enquanto ciência, afirmando que a mesma é definida habitualmente como ciência do comportamento, mas necessita uma revisão de seus pressupostos. Este artigo foi selecionado e resgatado justamente por fazer um levantamento no plano epistemológico e teórico, ao sustentar que a dificuldade em se definir o objeto de estudo da Psicologia gerou um projeto contraditório dentro da área, uma vez que esta ficou dividida entre uma ciência natural, segundo os moldes tradicionais e um saber sobre a subjetividade, mais afim com a filosofia, sendo dessa forma radicalmente diferentes. Entretanto, “esta contradição está presente no próprio projeto de constituição da Psicologia como ciência separada da filosofia e de outras ciências, como a sociologia e a medicina” (Serbena & Raffaelli, 2003, p.33). Os autores prosseguem destacando esta contradição entre a necessidade de uma epistemologia positiva, que dissolve o sujeito na universalidade e na impessoalidade, e um estudo da subjetividade que remete ao único e ao particular. Este embate provocaria dificuldades até mesmo na formação de novos psicólogos, uma vez que nasceria daí a clássica cisão entre a teoria e a prática. A Psicologia, na visão de Serbena e Raffaelli (2003), não pode se sujeitar a uma função ideológica, o que é exemplificado quando a complexidade do comportamento humano é negligenciada ao ser considerado apenas por meio de um modelo teórico linear e simples, oriundo de uma visão mecanicista da realidade. Este modelo aproxima-se de um novo paradigma científico que emerge em certas reflexões contemporâneas (Serbena & Raffaelli, 2003, p.36), paradigma dentro do qual nasce a Psicologia Positiva, ou seja, diferentemente do positivismo criticado no trabalho, esta nova corrente do pensamento psicológico seria uma resposta ao paradigma colocado, rompendo a dicotomia entre teoria e prática, saúde e doença, visão particular e visão universal. 540 Um outro trabalho selecionado apresenta também uma revisão na literatura científica, mas a respeito do conceito de felicidade. Ferraz, Tavares e Zilberman (2007) referem que a felicidade é uma emoção básica caracterizada por um estado emocional positivo, com sentimentos de bem-estar e de prazer, associados à percepção de sucesso e à compreensão coerente e lúcida do mundo. Destacam que, nos últimos anos, diversos pesquisadores têm se preocupado em desvendar as relações entre felicidade e saúde mental. A partir disso, os autores revisaram criticamente a literatura científica que aborda o tema da felicidade, assim como as suas contribuições para a saúde mental e a psiquiatria, especificamente. Segundo este trabalho, os estudos na perspectiva da Psicologia Positiva têm sido publicados notadamente por pesquisadores norte-americanos e europeus. Em outro artigo selecionado, Paludo e Koller (2007) descrevem que a Psicologia Positiva está em pleno processo de expansão dentro da ciência psicológica, a qual possibilita uma reavaliação das potencialidades e virtudes humanas por meio do estudo das condições e processos que contribuem para a prosperidade. De acordo com essa nova visão, o conhecimento das forças e virtudes poderia propiciar o “florescimento” (flourishing) das pessoas, comunidades e instituições. 5.2. De mãos dadas com outros conceitos Em outro trabalho selecionado, publicado em 2003, Yunes apresenta a Psicologia Positiva como movimento de investigação de aspectos potencialmente saudáveis dos seres humanos, em oposição à Psicologia tradicional e sua ênfase nos aspectos psicopatológicos. Dentre os fenômenos indicativos de vida saudável, a autora destaca a resiliência, por referir-se a processos que explicam a superação de adversidades, cujo discurso hegemônico foca o indivíduo. Yunes (2003) afirma que as pesquisas quantitativas colaboram para naturalizar a resiliência como capacidade humana, e os estudos em famílias trazem contribuições de 541 pesquisas qualitativas realizadas na visão sistêmica, ecológica e de desenvolvimento. Consideradas as dificuldades metodológicas e as controvérsias ideológicas do conceito, Yunes (2003) sugere uma cautelosa investigação de sentido antes da aplicação do termo. O conceito de resiliência, segundo o levantamento de Yunes (2003), ainda é bastante discutido na Psicologia, não havendo uma uniformidade e unidirecionalidade em seu uso. O foco das pesquisas pode recair tanto sobre o indivíduo quanto sobre a família. Em relação ao indivíduo, e é nesse ponto que a Psicologia Positiva, a partir do conceito de bem-estar subjetivo (percepção individual) se vincula de modo mais íntimo à resiliência, que passa a ser definida como uma capacidade universal que permite que uma pessoa, grupo ou comunidade previna, minimize ou supere os efeitos nocivos das adversidades (p.78). Alguns estudos, contrapondo-se a esta visão individualista de resiliência, concebem que o conceito não é uma característica ou traço individual, mas que processos psicológicos devem ser cuidadosamente examinados. Em outro estudo selecionado, de Guedea, Albuquerque, Tróccoli, Noriega, Seabra e Guedea (2006), foram analisadas as relações das estratégias de enfrentamento, apoio social e variáveis sociodemográficas com o bem-estar subjetivo de uma amostra de idosos. Participaram 123 idosos, revelando que a satisfação com a vida é maior em mulheres, em pessoas que recebem pensão, pessoas que estão satisfeitas com o apoio recebido, pessoas que dão apoio aos outros e pessoas que enfrentam os problemas de forma direta e mediante re-avaliação positiva. Neste artigo, é também abordada a noção de bem-estar subjetivo em comparação com outros conceitos como os de estratégias de enfrentamento e apoio social. Segundo os autores, essas variáveis estão diretamente relacionadas ao bem-estar subjetivo, assim como sustentado no estudo de Yunes (2003). Guedea et al. (2006), a partir de uma ampla revisão na literatura, destacam que o bem-estar subjetivo está associado ao processo de envelhecimento e constitui um indicador de saúde mental, também sinônimo de felicidade, ajuste e integração social. 542 Em outro trabalho selecionado, Liberalesso (2002) parte da perspectiva da Psicologia Positiva para analisar o bem-estar subjetivo durante a vida adulta e a velhice. A autora apresenta uma revisão de diversas concepções e indicadores, como os sociodemográficos, socioculturais e de bem-estar subjetivo, apresentando alternativas de avaliação do bem-estar nas literaturas nacional e internacional. 5.3. A procura que não cessa: perspectivas da Psicologia Positiva Após resgate histórico presente também em outros trabalhos, Contreras e Esguerra (2006) destacam que, nos últimos anos, as pesquisas em Psicologia evidenciam uma tendência a abordar as variáveis positivas e preventivas ao invés dos aspectos negativos e patológicos tradicionalmente estudados. Segundo levantamento feito por esses autores, essa tendência se apresenta como uma perspectiva para os próximos anos, ou seja, cada vez mais as pesquisas devem se voltar para os estudos dos aspectos positivos da personalidade e dos fatores que efetivamente promovem o desenvolvimento, compreendendo e fortalecendo os fatores que permitem os seres humanos prosperarem, de modo a melhor a qualidade de vida das comunidades e sociedades nas quais estão inseridos. De acordo com Contreras e Esguerras (2006), as emoções positivas possuem um objetivo fundamental na evolução da espécie, uma vez que ampliam os recursos intelectuais, físicos e sociais dos indivíduos, proporcionando longevidade e capacidade de adaptação. Ao experimentarem sentimentos positivos, as pessoas modificam suas formas de pensamento e ação, incrementando seus padrões para atuarem em certas situações mediante a otimização dos próprios recursos pessoais em diferentes níveis. No nível clínico, um dos objetivos da Psicologia Positiva tem sido o desenvolvimento de estratégias terapêuticas que favoreçam a experiência emocional positiva, o que se relaciona à prevenção e o tratamento de problemas derivados ou exacerbados pelas emoções negativas, tais como a ansiedade, a depressão, a agressão e outras. Essas últimas emoções, na visão dos 543 autores, restringem o repertório de pensamento e de ação dos indivíduos. Na área da educação, têm sido desenvolvidos trabalhos sobre motivação, desenvolvimento de jovens, orientação profissional e familiar, entre outros temas, que enfatizam a geração e otimização das forças existentes nas pessoas, suas emoções positivas. A Psicologia Positiva na educação centra sua atenção nas forças e atributos especificamente positivos das pessoas e dos grupos nos ambientes pedagógicos. Por fim, os autores revelam a necessidade premente de que mais estudos empíricos sejam realizados como forma de desenvolver as pesquisas interventivas em Psicologia Positiva, a fim de se criarem instrumentos válidos para a mensuração de características relacionadas ao bem-estar e à felicidade, além de propostas de atuação prática que enlevem as emoções positivas como promotoras de desenvolvimento, saúde e qualidade de vida. O movimento da Psicologia Positiva tem produzido importantes aplicações e avanços científicos. Constata-se a existência de uma tendência positiva devido ao crescente número de publicações no cenário científico internacional, o que evidencia o interesse dos pesquisadores nessas temáticas. Ainda entre as contribuições deste campo, Paludo e Koller (2007) destacam a terapia positiva, que é uma modalidade de tratamento que visa fortalecer os aspectos saudáveis e positivos dos indivíduos, (re)construir as virtudes e forças pessoais e ajudar os clientes a encontrarem recursos inexplorados para mudança positiva. Ainda de acordo com este estudo, outra importante contribuição da Psicologia Positiva envolve a possibilidade de abordar as questões envolvidas no desenvolvimento do indivíduo, reconhecendo que as pessoas e suas experiências estão inseridas em contextos sociais e culturais. Essa concepção não corresponde a um movimento inédito na Psicologia, mas produz uma mudança na teoria psicológica ao conceitualizá-lo como um organismo integrado. Por isso, dedica-se, também, ao estudo do funcionamento de grupos e instituições, por entender que esses ambientes são significativos na vida das pessoas (p.15). 544 No Brasil, Paludo e Koller (2007) revelam que o movimento da Psicologia Positiva ainda não recebeu a devida atenção, o que é corroborado pelos dados obtidos nesta revisão sistemática da literatura. Examinando as perspectivas futuras para a área, as autoras concluem o trabalho afirmando que a comunidade acadêmica brasileira está despertando para acompanhar os relevantes avanços da Psicologia Positiva. O movimento vem favorecendo, segundo as autoras, uma rápida e complexa produção científica no mundo, rompendo com os ideais epistemológicos vigentes até o momento. 6. Discussão A Psicologia Positiva, enquanto área do saber psicológico, não promove uma novidade, não cria uma nova realidade, mas é um exercício teórico e metodológico no sentido de mudar a visão tradicional que se lança aos fenômenos investigados pela Psicologia, em uma proposta perspectiva que evidencia os aspectos positivos e salutares do desenvolvimento, dentro de uma proposta de compreensão que prioriza a prevenção (Diener, 1984; Seligman, 2002, 2005, 2006; Albuquerque & Tróccoli, 2004; Csikszentmihalyi, 2006) e o florescimento de aspectos positivos que possam ser adaptativos (Graziano, 2005; Fiquer, 2006). No Brasil, Paludo e Koller (2007) revelam que o movimento da Psicologia Positiva ainda não recebeu a devida atenção, o que é corroborado pelos resultados sistematizados na presente revisão integrativa da literatura. Apesar disso, pode-se perceber que esses trabalhos estão aumentando, notadamente os de revisão, que se preocupam não apenas em apontar tendências, mas em resgatar o histórico desse movimento, a fim de entender seus pressupostos de base, bem como seus avanços, limites e possibilidades. Esse movimento crescente pode contribuir para a edificação de mais trabalhos empíricos nesta vertente, o que foi destacado como uma carência na presente revisão. Pensando ainda no contexto brasileiro e na produção científica dedicada à Psicologia Positiva, corroboramos os apontamentos de 545 Paludo e Koller (2007), que referem que ainda são escassas as informações sobre essa mudança expressiva que ocorre na Psicologia, embora seja possível constatar uma modificação gradual dos estudos brasileiros que enfocam essa abordagem sobre o desenvolvimento humano. Isto se deve ao caráter recente dos trabalhos produzidos na área, uma vez que este campo nasce oficialmente no final da década de 1990 e início dos anos 2000. Enquanto corrente surgida nos Estados Unidos, sua repercussão no cenário brasileiro ainda é tímida, quando comparada aos países europeus (Marujo et al., 2007; Delle Fave, 2006; Delle Fave & Massimini, 2006), mas tem encontrado no Brasil um campo fértil para a produção de saber científico de impacto (Paschoal & Tamayo, 2008; Paludo & Koller, 2007; Passareli & Silva, 2007; Fiquer, 2006; Graziano, 2005; Albuquerque & Tróccoli, 2004). Também em relação à mensuração na Psicologia Positiva, nos aspectos de bem-estar subjetivo e noções correlatas como flow, self, satisfação, locus de controle e outros, os estudos apontam a necessidade de firmar a produção de instrumentos adaptados e validados para nosso contexto (Albuquerque & Tróccoli, 2004; Paschoal & Tamayo, 2008; Scorsolini-Comin & Santos, 2008). Também é desejável a elaboração de novos instrumentos a serem construídos a partir de estudos nacionais, o que não impede que estudos nacionais investiguem também os clássicos instrumentos internacionais, seus pressupostos, sua validação e sua aplicação (Ferraz, Tavares & Zilberman, 2007) em diversas situações e populações, como é o caso de idosos, dos transtornos mentais e de comportamento (Fiquer, 2006). Quais as possibilidades de aplicação desses instrumentos? Quais as suas repercussões para a prática psicológica? Em que medida o estudo da felicidade e dos aspectos positivos do desenvolvimento pode favorecer o desenvolvimento de políticas públicas adequadas à população, que não negligenciem as capacidades de cada indivíduo e não proponham intervir com práticas remediadoras? Qual o real alcance da Psicologia Positiva? Questões como essas ainda estão em aberto e merecem consideração e investigação adequadas. Assim, cada vez 546 mais há necessidade de desenvolvimento e “florescimento” de novos estudos que investiguem a Psicologia Positiva em seu cerne, em seus limites e possibilidades, a fim de que este campo não possa apenas sobreviver, mas que possa contribuir para um repensar contínuo acerca do ser humano, promovendo mudanças e intervenções bem-sucedidas em seus contextos de atuação, sejam eles clínicos, educacionais ou organizacionais (Paschoal & Tamayo, 2008; Marujo et al., 2007; Fiquer, 2006; Scorsolini-Comin & Santos, 2008). Referências Albuquerque, A. S. (2004). Bem-estar subjetivo e sua relação com personalidade, coping, suporte social, satisfação conjugal e satisfação no trabalho. Tese de Doutorado, Instituto de Psicologia, Universidade de Brasília, Brasília. Albuquerque, A. S., & Tróccoli, B. T. (2004). Desenvolvimento de uma escala de bem-estar subjetivo. Psicologia: Teoria e Pesquisa, 20(2), 153-164. Beyea, S.C. & Nicoll, L.H. (1998). Writing in integrative review. 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O objetivo deste estudo é apresentar uma revisão integrativa da literatura científica acerca do tema, por meio de artigos indexados nas bases LILACS e SciELO (1970-2008), destacando sua investigação pela Psicologia Positiva. Dos 12 trabalhos selecionados, a maioria trata da definição de conceitos relacionados à satisfação conjugal, como ajustamento e qualidade, buscando maior coesão e consistência teórica, uma vez que, no cenário internacional, identifica-se um grande número de estudos que apontam 32 Psicólogo e mestrando em Psicologia e Educação pela Universidade de São Paulo, Brasil (FFCLRPUSP). Especialista em Gestão Educacional e graduando em Pedagogia pela Universidade de São Paulo. Pesquisador na área de conjugalidade e bem-estar subjetivo e bolsista da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP). 33 Psicólogo, mestre e doutor em Psicologia pela Universidade de São Paulo, Brasil (FFCLRP-USP). Professor do Departamento de Psicologia e Educação da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto, da Universidade de São Paulo – Brasil (FFCLRP-USP). Bolsista de produtividade científica do CNPq. 553 para um alto índice de fatores associados à satisfação no casamento. Encontram-se investigações nos contextos de casais de duplo trabalho, casamentos de longa duração, transição para a parentalidade, construção de instrumentos de mensuração e correlação com outras variáveis como quantidade de filhos, estado de saúde e histórico familiar. As pesquisas resgatadas apontam que o relacionamento conjugal está positivamente associado à saúde, ao bem-estar psicológico e à qualidade de vida, principalmente nos anos de maturidade e velhice, o que se vincula diretamente à perspectiva da Psicologia Positiva, embora aponte-se a necessidade de estudos sistemáticos de correlação em diferentes contextos, tais como o brasileiro. 1. Introdução Segundo Machado (2007), a necessidade de se estar com o outro é algo típico do ser humano, que começa no seu nascimento, em suas primeiras relações com as suas figuras de referência. Assim, somos constituídos pelos relacionamentos que estabelecemos, motivo pelo qual é muito importante investigarmos como se dão esses relacionamentos. De acordo com as reflexões de Lipovetsky (2007), a nova ordem cultural na contemporaneidade valoriza os laços emocionais e sentimentais, as trocas íntimas entre as pessoas e a proximidade comunicacional com o outro. Perlin (2006) afirma que, a despeito de, na modernidade, o casamento ter sido locus da vida comum e ponto de partida para a formação da família, atualmente se encontra em um estágio no qual as relações são marcadas por um aprofundamento do individualismo, que estimula a instabilidade do relacionamento íntimo e leva a constantes reformulações dos projetos conjugais; esses fenômenos contemporâneos evidenciam a necessidade de aceitação das heterogeneidades, das descontinuidades e efemeridades das relações. Féres-Carneiro (2003, 1998, 1997) considera o casamento contemporâneo representante de uma relação de intensa significação na vida das pessoas, envolvendo alto grau de intimidade e um grande 554 investimento afetivo. Encontrar alguém para compartilhar a vida e ter filhos parece ser um busca incansável, e o casamento ainda configura um rito de passagem muito significativo em várias sociedades (Scorsolini-Comin & Santos, 2008a). Segundo dados recentes do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE, 2007), em 2006 o total de casamentos no Brasil foi de 889.828, número 6,5% maior do que o apurado no ano anterior, confirmando a tendência de crescimento que vem sendo registrada no país desde 2002. Segundo o documento de divulgação da pesquisa, o aumento pode estar relacionado à legalização de uniões consensuais. Além disso, os pesquisadores atribuem a expansão também à realização de casamentos coletivos, que têm o atrativo da redução de custos. De acordo com os autores da pesquisa, a questão dos custos é responsável também pela realização do maior número de casamentos no mês de dezembro, quando o pagamento do 13º salário e outros benefícios aumentam a disponibilidade financeira. A pesquisa mostra que, em 2006, do total de casamentos realizados, 85,2% ocorreram entre solteiros. No entanto, houve declínio nesse tipo de casamento, que em 1996 representava 90,9% do total. Por outro lado, é crescente a proporção de casamentos entre indivíduos divorciados com cônjuges solteiros. O porcentual de homens divorciados que casaram com mulheres solteiras passou de 4,2% do total de casamentos realizados no país em 1996 para 6,5% em 2006. Também houve aumento do porcentual de casamentos entre cônjuges divorciados, de 0,9% em 1996 para 2,2% em 2006 (IBGE, 2007). Para Dessen e Braz (2005), o relacionamento marital tem sido apontado, recentemente, como um fator preponderante para a qualidade de vida das famílias, particularmente no que tange às relações que pais e mães mantêm com suas crianças. O relacionamento conjugal está associado à saúde e qualidade de vida, principalmente nos anos de maturidade e velhice, embora o fato de um casamento durar não necessariamente signifique que o mesmo seja satisfatório para os cônjuges. De qualquer modo, segundo Costa 555 (2005), a conjugalidade é fundamental para o bem-estar psicológico e social dos indivíduos. De acordo com Perlin (2006), casamento e satisfação se tornaram, ao longo da história do ocidente, estreitamente interdependentes. O casamento, dentro de nossa estrutura política e econômica, tem sido definido como uma resultante social que satisfaz necessidades básicas do indivíduo. Dias (2000) afirma que o casamento contemporâneo tem algumas características determinantes, entre as quais está a busca da felicidade, da satisfação e do amor. O desejo intenso de estar com o outro motiva o casamento e determina a escolha do parceiro, pois os indivíduos esperam encontrar nesses relacionamentos uma compatibilidade afetiva, sexual e intelectual (Perlin, 2006, p.66). Para Norgren, Souza, Kaslow, Hammerschmidt e Sharlin (2004), a satisfação conjugal é um fenômeno complexo, no qual interferem diversas variáveis. O casamento transforma-se ao longo do ciclo de vida familiar e, assim, o nível de satisfação também varia com o decorrer dos anos de convívio conjugal, sendo necessário que se discutam as contemporâneas formas com que vêm se desenhando os casamentos e as uniões estáveis. O ajustamento conjugal, as formas de comunicação e as estratégias de resolução de conflitos empregadas pelo casal influenciam o desenvolvimento de padrões de cuidado dos filhos e a qualidade das relações entre os genitores e suas crianças. Por exemplo, casamentos saudáveis proporcionam mais suporte aos cônjuges do que relações maritais insatisfatórias e o apoio emocional dos pais às mães favorece o desenvolvimento saudável dos filhos (Dessen & Braz, 2005). A literatura, ainda segundo as autoras mencionadas, aponta inúmeros prejuízos diretos e indiretos, tanto para os cônjuges, como para seus filhos, provocados por uma relação conjugal insatisfatória. As conseqüências negativas das relações maritais insatisfatórias e, possivelmente, do divórcio ou da separação do casal, incluem o aumento do risco de os cônjuges apresentarem psicopatologias, de estarem envolvidos em acidentes automobilísticos, 556 de exposição à incidência de doenças físicas, de cometerem suicídio, homicídio ou outros atos de violência, de mortalidade em função de doenças em geral, entre outras. Como destacado por Perlin (2006), a satisfação é um elemento fundamental em um relacionamento interpessoal. Segundo revisão realizada por esta autora, existe uma verdadeira diversidade de definições do que seja a satisfação no casamento. Evocando o trabalho de outros autores, diversos termos são utilizados na literatura científica, como satisfação conjugal, satisfação matrimonial, estabilidade matrimonial, qualidade matrimonial, ajuste matrimonial, felicidade matrimonial, sucesso matrimonial, consenso matrimonial, integração matrimonial (Diniz, 1993; Dela Coleta, 2006). Essa grande diversidade na terminologia gera dificuldades para comparar resultados de estudos distintos e impõe um desafio para os pesquisadores, que têm que investigar até que ponto esses termos são sinônimos ou representam modelos distintos de compreensão da relação conjugal. Esse questionamento inspira a realização de novas revisões na literatura, como a que será aqui apresentada, focalizando o construto satisfação conjugal, como definido nas pesquisas de Dela Coleta (1989; 1992; 2006), Diniz (1993) e Perlin (2006). O que já está bem consolidado é que a literatura é uníssona ao apontar a satisfação no casamento como um fator fundamental na vida de um casal (Scorsolini-Comin & Santos, 2008a). Entretanto, é necessário delinear qual é o estatuto desse construto na produção científica, as principais tendências que têm sido contempladas e as perspectivas de pesquisas futuras. 2. Objetivo Apresentar uma revisão integrativa da literatura científica acerca do tema satisfação conjugal, buscando evidenciar o perfil dos trabalhos publicados em fontes de pesquisa de impacto, de modo a possibilitar um maior direcionamento das pesquisas sobre o construto e discutir as tendências dessas publicações, bem como as perspectivas de produção na área. 557 3. Método De acordo com Beyea e Nicoll (1998), uma revisão integrativa sumariza pesquisas passadas e tira conclusões globais de um corpo de literatura de um tópico em particular. Segundo Fernandes (2000), a revisão integrativa permite a construção de uma análise ampla da literatura, contribuindo para discussões sobre métodos e resultados de pesquisa, assim como reflexões sobre a realização de futuras pesquisas. É necessário, portanto, seguir padrões de rigor e clareza na revisão e crítica, de forma que o leitor possa identificar as características reais dos estudos revisados. Seguindo os procedimentos de Ganong (1987), embora os métodos para a condução de revisões integrativas variem, existem padrões a serem seguidos. Na operacionalização dessa revisão, utilizamos as seguintes etapas: seleção da questão temática, estabelecimento dos critérios para a seleção da amostra, análise e interpretação dos resultados e apresentação da revisão. 3.1. Procedimento As buscas nas bases foram realizadas em um único dia, em uma rede de acesso público de uma universidade pública do Estado de São Paulo. Em todas as bases de dados foi utilizado o unitermo satisfação conjugal. Após o levantamento das publicações, os resumos foram lidos e analisados segundo os critérios de inclusão/exclusão estabelecidos. Os trabalhos selecionados foram recuperados na íntegra e, posteriormente, analisados. 3.2. Bases de dados consultadas Visando assegurar uma ampla abrangência desta revisão, foram consultadas as seguintes bases LILACS e SciELO. 3.3. Critérios de inclusão e exclusão dos trabalhos 558 Para esta revisão, foram excluídos trabalhos, tais como artigos não indexados, teses, dissertações, resenhas, livros e capítulos de livros. Foram selecionados apenas resumos de artigos indexados. Essa escolha se deve ao fato de que em uma das bases (LILACS) há alto registro de trabalhos deste tipo (não apenas artigos indexados) e que, muitas vezes, podem não passar por um processo de avaliação aos pares, o que garante a qualidade do trabalho e de apreciação científica. A fim de buscar apenas trabalhos que passaram por um processo rigoroso de avaliação, foram selecionados apenas artigos indexados (Scorsolini-Comin & Amorim, 2008). Foram excluídas, ainda, publicações distantes do tema, como trabalhos relacionados ao casamento entre pessoas soropositivas ou uniões homossexuais. Em relação aos idiomas, restringiu-se a busca aos trabalhos publicados nos idiomas português, inglês, espanhol e francês. O levantamento compreendeu o período de 1970 a 2008. Tal abrangência objetivou traçar um perfil das publicações, ao longo dos últimos 38 anos, na tentativa de resgatar grande volume de trabalhos produzidos a respeito do tema ou utilizando-se dessa noção. Como critérios de inclusão, destacam-se: artigos publicados apenas em periódicos indexados; trabalhos publicados nos idiomas inglês, espanhol e português; e, ainda, trabalhos empíricos, teóricos e de revisão acerca do tema. Os resumos condizentes com os critérios adotados foram selecionados, partindo-se daí para a busca dos trabalhos completos. 4. Resultados Na busca pela palavra satisfação conjugal, nas bases SciELO e LILACS, foram encontrados 19 trabalhos (quatro artigos na SciELO e 15 na LILACS). Destes, 12 foram selecionados a partir dos critérios de inclusão/exclusão e serão aqui analisados em profundidade. Dos sete trabalhos excluídos, um versava sobre suporte emocional em tratamentos de câncer de mama; dois abordavam o suporte social no contexto de 559 enfermagem; dois tematizavam a infertilidade; um se ocupava do sofrimento feminino em relação ao trabalho; e um dizia respeito à orientação para pais de crianças com transtornos de comportamento. Destaque-se que dois artigos selecionados foram registrados nas duas bases, ou seja, analisar-se-ão em profundidade 10 trabalhos, que constituíram o corpus da pesquisa. Em relação ao ano de publicação dos trabalhos selecionados, observa-se que 70% deles se concentram nos anos 2000, com 30% no ano de 2004. Apenas 30% dos trabalhos foram produzidos na década de 1990. O trabalho mais antigo a ser selecionado foi do ano de 1987, o que revela a atualidade do tema. Em relação ao idioma, a maioria dos trabalhos selecionados nessas bases encontra-se disponível em português. Como será apresentado na análise crítica dos trabalhos, Wagner e Falcke (2001) definem que a satisfação conjugal é um construto complexo a ser definido. Tal complexidade deve-se ao fato de que ela é composta por diferentes variáveis, desde as características de personalidade dos cônjuges e as experiências que eles trazem das suas famílias de origem até a maneira como eles constroem o relacionamento a dois. Esta complexidade motivou o desenvolvimento de trabalhos de revisão crítica da literatura científica (Mosmann, Wagner & Féres-Carneiro, 2006; Wagner & Falcke, 2001). Esta revisão, embora não seja o foco de outras pesquisas selecionadas, é trazida também por outros artigos selecionados (Miranda, 1987; Dela Coleta, 1992; Norgren et al., 2004), o que revela a necessidade de contextualização do tema investigado, uma vez que seu entendimento não é uníssono na literatura (Perlin, 2006). Outra frente de trabalhos selecionados está na investigação da satisfação conjugal em diferentes contextos, como em pesquisas com casais de duplo trabalho (Perlin & Diniz (2005), em casamentos de longa duração (Norgren et al., 2004), na transição da conjugalidade para a parentalidade (Magagnin, Kõrbes, Hernandez, Cafruni, Rodrigues & Zarpelon, 2003) e durante a gravidez (Oriá, Alves & Silva, 2004). Outro eixo destacado foram os trabalhos que correlacionavam as variáveis da satisfação conjugal a outras, tais como o locus de controle conjugal (Dela Coleta, 1992), a 560 comunicação, a semelhança de atitudes entre os cônjuges e a percepção interpessoal (Miranda, 1987), assim como a influência de outras variáveis (idade, tempo de casado, autoestima, renda, escolaridade e filhos) sobre a satisfação conjugal (Miranda, 1987) e a estrutura de poder nas famílias (Rodrigues, Bystronski & Jablonski, 1989). O último eixo de expressão se refere à mensuração da satisfação conjugal. Na presente revisão, abordou-se, especificamente, os instrumentos utilizados, a partir de estudos de validação, tanto quanto de aplicação de instrumentos internacionalmente reconheecidos (Perlin & Diniz, 2005; Norgren et al., 2004; Magagnin et al., 2003; Wachelke, Andrade, Cruz, Faggiani & Natividade, 2004). Entre os instrumentos utilizados, deve-se destacar a prevalência da Escala de Ajustamento Diádico DAS (Dyadic Adjustment Scale), desenvolvida por Graham Spanier em 1976. A escala foi traduzida e adaptada para a população brasileira e é referida em boa parte dos estudos desta revisão (Perlin & Diniz, 2005; Norgren et al, 2004; Magagnin et al., 2003). 5. Análise crítica dos trabalhos selecionados 5.1. A pluralidade das satisfações conjugais: revisão de conceitos No primeiro trabalho selecionado, Mosmann, Wagner e Féres-Carneiro (2006) apresentam uma revisão da literatura científica a respeito do termo qualidade conjugal. Essas autoras são consideradas grandes referências sobre o tema no Brasil e lideram a tradição de trabalhos publicados nesta temática. Segundo as pesquisadoras, na revisão produzida, apesar da ampla utilização do conceito de qualidade conjugal, identifica-se falta de clareza conceitual acerca das variáveis que o compõem. Nesse sentido, este artigo apresenta uma revisão da literatura na área com o objetivo de mapear o conceito de qualidade conjugal, a partir da análise de cinco principais teorias sobre o tema: Troca Social, Comportamental, Apego, Teoria da Crise, Interacionismo Simbólico. 561 No artigo em apreço, os autores destacam que a conceituação do que seria um casamento satisfatório é uma tarefa árdua no meio científico, uma vez que a análise das pesquisas internacionais da área, na última década, identifica um grande número de estudos que apontam para um alto índice de fatores que se associam à definição do conceito de satisfação conjugal. Alguns estudos mostram que a qualidade do relacionamento conjugal estaria relacionada ao bem-estar dos cônjuges e seus filhos, às respostas fisiológicas dos cônjuges, às variáveis sociodemográficas, à saúde física do casal, à depressão, à psicopatologia, às características de personalidade e a combinações entre estas variáveis (Mosmann, Wagner & Féres-Carneiro, 2006). As autoras destacam que essas variáveis estariam associadas à qualidade da relação conjugal, porém destacam a carência de estudos que investiguem, com profundidade, o que é a satisfação conjugal. Os trabalhos existentes não seriam orientados por uma teoria de sustentação adequada, nem possuiriam uma clara definição metodológica capaz de produzir reflexões e avanços nos estudos acerca dessa temática. Em outro trabalho selecionado e resgatado na revisão, Wagner e Falcke (2001) definem que a satisfação conjugal é um construto complexo a ser definido. Tal complexidade deve-se ao fato de que ela é composta por diferentes variáveis, desde as características de personalidade dos cônjuges e as experiências que eles trazem das suas famílias de origem até a maneira como eles constroem o relacionamento a dois. Segundo revisão das autoras, elencaram-se as variáveis que se relacionam à satisfação conjugal, tais como sexo, grau de escolaridade, número de filhos e presença deles em casa, nível socioeconômico e tempo de casamento. A análise destas pesquisas, de acordo com Wagner e Falcke (2001), leva a pensar que no conceito de satisfação conjugal estão implicadas tanto as experiências precoces do sujeito na sua família, como também os aspectos vivenciais da relação diádica atual, além das variáveis de personalidade e biodemográficas. A partir das questões de transgeracionalidade, as autoras destacam que a formação do casal e, conseqüentemente, de uma nova família, se dá por meio do encontro dos sistemas de 562 crenças das famílias de origem dos cônjuges. Assim, quando as pessoas se casam ou passam a viver em união conjugal, acontece o encaixe entre sistemas míticos de duas estruturas familiares diferentes, formando um novo sistema baseado nos sistemas familiares de cada cônjuge. Pensando especificamente na satisfação conjugal, as autoras destacam que dificilmente um casal poderá estabelecer uma relação afetiva e sexualmente feliz se não tiver conseguido uma boa independização dos pais, consolidada nos primeiros anos de relacionamento conjugal. Salientam, entretanto, que como ninguém se separa totalmente de sua família de origem, por mais independente que seja, tanto emocional como economicamente, a atitude madura é caracterizada pela capacidade de evitar que as famílias de ambos os cônjuges entrem em conflito, preservando o bom relacionamento entre ambas. Nesse sentido, referem que é fundamental a existência de tolerância e respeito pela família do outro. 5.2. A satisfação conjugal em diferentes contextos de investigação O estudo quantitativo de Perlin e Diniz (2005) avaliou a satisfação no casamento de homens e mulheres que optaram por relacionamentos de duplo trabalho, ou seja, casais que trabalham. Os resultados mostraram que a maioria dos participantes está satisfeita com seus relacionamentos, sendo que as mulheres apresentaram média de satisfação inferior à dos homens. Quanto à percepção do futuro do relacionamento, ficou evidente o comprometimento de homens e mulheres em investirem na manutenção do casamento. Os resultados questionam a idéia vigente de falência do casamento e da família e apontam para uma transformação das relações. Neste trabalho, as autoras destacam que a satisfação é um elemento fundamental em um relacionamento interpessoal. Mas a pergunta: “o que é satisfação?” pode ser muito mais complexa do que se imagina, corroborando apontamentos também lançados por Mosmann, Wagner e Féres-Carneiro (2006). Segundo revisão de Perlin e Diniz (2005), há uma diversidade de definições do que seja a satisfação no casamento. As 563 autoras retomam uma definição extraída de outro artigo selecionado e que será aqui analisado: a satisfação é uma reação subjetivamente experienciada no casamento; é uma atitude a respeito do próprio relacionamento conjugal; é o resultado da diferença entre a percepção da realidade do casamento e as aspirações que os cônjuges têm para a relação (Dela Coleta, 1989). Perlin e Diniz (2005) destacam que outros trabalhos afirmam que a satisfação conjugal é afetada por fatores conscientes e inconscientes, ou seja, aspectos internos da psique. Ela seria afetada também por fatores do meio ambiente, tais como: o sexo, o grau de escolaridade, o número de filhos e a presença, ou não, deles dentro de casa, o nível socioeconômico e o tempo de casamento. Outro trabalho, da autoria de Norgren, Souza, Kaslow, Hammerschmidt e Sharlin (2004), investiga os casamentos de longa duração. Segundo o artigo, o relacionamento conjugal está associado à saúde e qualidade de vida, principalmente nos anos de maturidade e velhice, embora o fato de um casamento durar não necessariamente signifique que o mesmo é satisfatório para os cônjuges. O estudo identifica os processos e variáveis associadas à satisfação conjugal em casamentos de longa duração, ou seja, com mais de 20 anos. Em cerca de metade dos casais estudados, ao menos um dos cônjuges estava satisfeito. Comparando-se casais satisfeitos e insatisfeitos foi possível identificar que a satisfação aumenta quando há proximidade, estratégias adequadas de resolução de problemas, coesão, boa habilidade de comunicação, se os cônjuges estiverem satisfeitos com seu status econômico e forem praticantes de sua crença religiosa. Para essas autoras, a satisfação conjugal é, sem dúvida, um conceito subjetivo, implicando em ter as próprias necessidades e desejos satisfeitos, assim como corresponder, em maior ou menor escala, ao que o outro espera, definindo um dar e receber recíproco e espontâneo. Relaciona-se com sensações e sentimentos de bem-estar, contentamento, companheirismo, afeição e segurança, fatores que propiciam intimidade no relacionamento, decorrendo da congruência entre as expectativas e aspirações que os cônjuges têm, em comparação à realidade vivenciada no casamento. 564 O estudo de Magagnin, Kõrbes, Hernandez, Cafruni, Rodrigues e Zarpelon (2003) investigou longitudinalmente a transição da conjugalidade para a parentalidade quanto ao ajustamento diádico e à satisfação conjugal de casais primíparos. A questão da transição para a parentalidade também é trazida em outros estudos, como os de Menezes e Lopes (2007), que trabalham no sentido de que, entre os processos críticos que determinam as principais transições desenvolvimentais que os casais costumam passar, a transição para a parentalidade é uma das maiores mudanças por que o sistema familiar pode passar. É o momento em que os cônjuges, que antes constituíam apenas um casal, tornam-se pais, progenitores de uma nova família. O nascimento do primogênito, em especial, é a primeira experiência de parentalidade vivida pelo casal (p.83). Ainda segundo Menezes e Lopes (2007), alguns estudos recentes também têm enfatizado que a transição para a parentalidade acarreta a diminuição na satisfação conjugal. O casamento, por sua vez, ao delimitar o início das famílias, também vem sendo abordado por alguns pesquisadores. Entretanto, a transição para o casamento e suas peculiaridades como fase inicial do desenvolvimento do casal têm sido relativamente pouco consideradas pelos teóricos que se ocupam em estudar os casais e as famílias. Oriá, Alves e Silva (2004), trabalhando com o contexto de gravidez e a sua repercussão nos aspectos social, econômico, emocional e sexual do casal, constataram que a sexualidade na gravidez ainda envolve tabus. No grupo de 35 gestantes estudadas, destacou-se que 71% relataram situações, as quais as autoras salientaram como repercussões positivas ou negativas da gravidez na sexualidade das mesmas. Quanto às primeiras, foram referidos a melhora do relacionamento conjugal, o sentimento de feminilidade aguçada e obtenção de maior prazer sexual. Sobre as segundas, o abandono do parceiro e diminuição da atividade sexual. Assim, a partir do estudo, a gravidez pôde ser identificada como uma variável relevante que influencia na melhoria desta qualidade percebida da relação conjugal, na visão da mulher. 5.3. Satisfação conjugal e outras variáveis 565 Dela Coleta (1992) apresenta um estudo quantitativo para mensurar a relação entre o locus de controle conjugal e a satisfação conjugal atual, passada e estimada para o futuro, a partir de instrumentos de avaliação desses construtos. No modelo de avaliação da satisfação conjugal em função do locus de controle referido por Dela Coleta (1992), a pessoa com predominância de locus de controle interno deverá se empenhar para resolver seus problemas conjugais e, como conseqüência, deverá sentir-se mais satisfeita no casamento. Esse modelo também propõe que, com o passar do tempo, as pessoas mais externas tenderiam a se tornar ainda mais externas e os mais internos tornar-se-iam mais internos, pelo fato de suas experiências de sucesso e fracasso serem reforçadas ao longo do relacionamento conjugal. Portanto, o casal, quando ambos são internos, na medida em que percebem sua capacidade de resolução de conflitos na relação conjugal, tenderiam, de modo geral, a estar mais satisfeitos com o casamento. Em outro trabalho, Miranda (1987) analisou empiricamente a inter-relação entre satisfação conjugal e três aspectos considerados relevantes em uma relação diádica: comunicação, semelhança de atitudes e percepção interpessoal. Examinou, também, a influência de outras variáveis (idade, tempo de casado, auto-estima, renda, escolaridade e filhos) sobre a satisfação conjugal. Os resultados alcançados pelo estudo apontaram percepção interpessoal e auto-estima como as variáveis de maior importância relativa. Teve-se, também, a oportunidade de inferir que a mulher, talvez por força de condicionantes sócio-culturais, coloca-se em uma posição de inferioridade na relação conjugal. De acordo com os resultados deste trabalho, pode-se identificar que a satisfação conjugal está associada ao ajustamento conjugal, à expressão de afeto, à coesão, à proximidade, capacidade de resolução de problemas e habilidade de comunicação. Rodrigues, Bystronski e Jablonski (1989) estudaram a estrutura de poder em famílias, baseando-se nas respostas fornecidas por duas amostras de casais residentes no Rio de 566 Janeiro. Esse trabalho constitui, essencialmente, uma réplica de um estudo conduzido com casais americanos residentes em Los Angeles, em 1971. Os resultados indicaram uma queda do poder decisório do marido, quando comparados com os obtidos mais de duas décadas atrás. A idade se correlacionou positivamente com o maior poder do marido. Satisfação conjugal e autoritarismo não mostraram associações com poder do marido, e as demais variáveis demográficas consideradas, além da idade, demonstraram associações ocasionais. Os autores notaram uma preferência por uma estrutura autonômica de poder conjugal. Estes resultados são discutidos à luz das transformações sociais decorrentes da revolução sexual, das mudanças dos papéis sexuais e da possível crise de identidade masculina. 5.4. Mensurando a satisfação conjugal Nos estudos de Perlin e Diniz (2005), Norgren et al. (2004) e Magagnin et al. (2003), entre os instrumentos utilizados está a Escala de Ajustamento Diádico - (DAS - Dyadic Adjustment Scale), desenvolvida por Graham Spanier em 1976. A escala foi traduzida e adaptada para a população brasileira. Segundo Perlin e Diniz (2005), a DAS é considerada uma das medidas mais sólidas e globais da qualidade das relações interpessoais pela coerência dos itens agrupados em quatro subescalas que abarcam áreas fundamentais dos relacionamentos: satisfação, coesão, consenso e expressão de afeto. No estudo de Norgren et al. (2004), foram utilizados: Lista de classificação de problemas, Questionário de avaliação de estratégias de resolução de conflitos e comunicação (HSP - Health and Stress Profile), Lista de motivos que levam o casal a permanecer junto; e Lista de componentes de satisfação conjugal. Outros os instrumentos foram ainda utilizados: no trabalho de Magagnin et al. (2003) foi aplicada a Escala de Avaliação da Relação de Hendrick, Dicke, Hendrick, de 1988 (Scorsolini-Comin & Santos, 2008a). Wachelke, Andrade, Cruz, Faggiani e Natividade (2004) realizaram um estudo para descrever a construção e validação de uma escala de satisfação em relacionamento de casal 567 (EFS-RC), composta por subescalas capazes de medir aspectos componentes da satisfação com relacionamento, no contexto brasileiro. Em estudo posterior de Wachelke, Andrade, Souza e Cruz (2007), sobre a validação fatorial desse mesmo instrumento, os resultados confirmaram sua estrutura fatorial, apontando para uma relativa robustez do instrumento e dos aspectos analisados ao tratar com populações de características demográficas distintas. No entanto, os autores destacaram que alguns itens podem apresentar flutuações na representatividade do construto de satisfação com o relacionamento. 6. Discussão Assim como destacado no estudo de Norgren et al. (2004), o casamento pode ser uma construção conjunta da realidade, uma opção viável de relacionamento que corresponda às expectativas de cada um dos parceiros, se cada um deles se comprometer com sua escolha e acreditar no que está fazendo. Para que um relacionamento conjugal continue satisfatório ao longo dos anos, há necessidade de se investir na relação, empenhando-se para que ela seja proveitosa para os dois, tentando encontrar equilíbrio entre conjugalidade e individualidade, além de partilhar interesses e relacionamento afetivo-sexual. Assim, a mudança de foco proposta pela perspectiva da Psicologia Positiva (Seligman & Csikszentmihalyi, 2000; Seligman, 2006; Scorsolini-Comin & Santos, 2008b) pode enriquecer a discussão e permitir que os aspectos adaptativos presentes no relacionamento conjugal sejam devidamente abarcados, a fim de que a satisfação seja realmente investigada, e não apenas os motivos que levam o casal a se separar ou a perder o interesse na relação com o passar do tempo e das diferentes experiências a que são expostos. A atualidade do tema satisfação é algo acentuado na literatura, assim como a sua complexidade, bem como a multiplicidade de vozes que são evocadas quando se discute ou se estuda a satisfação no relacionamento diádico, seja este conceito o trazido nesta revisão ou 568 outros apontados, como qualidade, ajustamento, sucesso ou outros. A possibilidade de operacionalizar uma revisão integrativa só foi possível, a nosso ver, pela definição e opção metodológica por um dos termos correntes, ou seja, da satisfação conjugal, conforme utilizado por pesquisadores de referência na área (Dela Coleta, 1989; 1992; Diniz; 1993; Norgren et al., 2004; Perlin; 2006). Corroboramos a percepção de Mosmann, Wagner e Féres-Carneiro (2006) e de Wagner e Falcke (2001) de que a conceituação do que seria um casamento satisfatório é uma tarefa árdua no meio científico, uma vez que a análise das pesquisas internacionais da área, na última década, identifica um grande número de estudos que apontam para um alto índice de fatores que se associam à definição deste conceito de satisfação conjugal. Esta multiplicidade também foi atestada no presente trabalho e pode ser justificada, segundo Wagner e Falcke (2001), pelo fato do casamento ser um momento em que se abre a porta da família para a entrada de um novo membro, oriundo de um outro sistema familiar, que possui a sua subjetividade, individualidade e heterogeneidade. Este apontamento leva à consideração da família de cada cônjuge ao se estudar a satisfação no casamento (Rodrigues, Bystronski & Jablonski, 1989), uma vez que a maioria dos estudos elege outras varáveis para os estudos de correlação, como idade, sexo, tempo e duração do casamento, aspectos socioeconômicos e outros (Norgren et al., 2004; Magagnin et al., 2003). A partir dos dados desta revisão, destaca-se a premência de desenvolvimento de outros trabalhos, não apenas investigando a satisfação conjugal em diferentes contextos (Perlin & Diniz, 2005; Norgren et al., 2004; Magagnin et al., 2003; Oriá, Alves & Silva, 2004) e na relação com outras variáveis (Dela Coleta, 1992; Miranda, 1987; Rodrigues, Bystronski & Jablonski, 1989), mas a partir de seus instrumentos de mensuração, pois a avaliação da dimensão de seu construto só é possível a partir de instrumentos cientificamente validados, com aplicação em contextos diferenciados, como apontado por Norgren et al. (2004), Perlin 569 (2006) e Scorsolini-Comin e Santos (2008a). Retomando as reflexões de Perlin (2006), os estudos sobre satisfação, ao contrário da busca pela mesma, devem estar pautados em critérios científicos rígidos, a fim de que possam agregar conhecimentos aos estudos já produzidos. A relevância deste trabalho, neste sentido, é a de permitir sistematizar as produções veiculadas na contemporaneidade, a fim de contribuir com o delineamento de novas investigações e novos saberes, na medida da urgência da demanda da ciência psicológica. Referências Beyea, S. C., & Nicoll, L.H. (1998). Writing in integrative review. AORN Journal, 67(4), 877-880. Costa, M. E. (2005). À procura da intimidade. Porto, Portugal: Edições Asa. Dela Coleta, M. F. (1989). A medida da satisfação conjugal: adaptação de uma escala. Psico, 18(2), 90-112. Dela Coleta, M. F. (1992). Locus de controle e satisfação conjugal. Psicologia Teoria e Pesquisa, 8(2), 243-252. Dela Coleta, M. F. (2006). Atribuição de causalidade, locus de controle e relações conjugais (pp. 199-244). In: J. A. Dela Coleta, & M. F. Dela Coleta. Atribuição de causalidade: teoria, pesquisa e aplicações. Taubaté: Cabral. Dessen, M. A., & Braz, M. P. (2005). 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Um mapeamento de suas condições de vida e saúde é necessário para o planejamento de intervenções multidisciplinares. Um programa de extensão de uma universidade pública desenvolveu esta pesquisa de levantamento junto a adultos maduros e idosos com deficiências visuais, residentes em uma instituição de longa permanência, na cidade de Taubaté, Estado de São Paulo, com o objetivo de avaliar sua qualidade de vida e a condição de saúde mental. Utilizou como instrumentos uma ficha para os dados sócio-demográficos, uma escala de depressão geriátrica (EDG-15) e os inventários de qualidade de vida da Organização Mundial de Saúde - WHOQOL-OLD e WHOQOL-bref. De um grupo de dezessete sujeitos, participaram onze, de ambos os sexos, entre 51 e 88 anos, com deficiência visual congênita ou adquirida. Os demais não foram elegíveis à pesquisa, por terem também, deficiência auditiva ou mental. Os resultados obtidos mostram que apenas dois idosos apresentam um quadro de depressão leve. Os aspectos de autonomia e participação social mostram-se comprometidos, embora haja evidências de a religiosidade ser um aspecto responsável pela manutenção da qualidade de vida de quase todos os pesquisados. A análise destes resultados subsidiará futuras intervenções nas áreas de Enfermagem e de Psicologia, 576 visando a promoção de melhores condições de envelhecimento a esse grupo e a qualidade do cuidado oferecido pela instituição. ABSTRACT The older population growing rate in Brazil and the heterogeneity of this aging process have demanded the investigation of several questions, one of them is the quality of life of elderly nursing home residents, especially those with sensory, physical or mental disability. It was needed a mapping of their health conditions, so it could be established a proper multidisciplinary intervention planning. A public university extension program has developed a research intended to evaluate the quality of life and mental health of elderly individuals, with visual deficiency, living in a long-term residence nursing home in the city of Taubaté, state of São Paulo, Brazil. It was used as research tools: a form to record the social-demographic data; a geriatric depression scale (GDS-15) and the quality of life inventory from WHO (World Health Organization) – WHOQOL-OLD and WHOQOL-bref. It was chosen a group of eleven persons out of seventeen, their ages varying from 51 to 88 years old and presenting visual deficiency, congenital or acquired. The other six ones were not selected because they also had hearing or mental disability. The results obtained indicated that only two of them had mild depression. The aspects of the autonomy and social participation shows committed, however has evidences of their religiosity as the most important characteristic to keep a good quality of life. The analysis of these results will be employed later in Nursing and Psychology projects, with the purpose of improving the aging conditions of this kind of patients and also the quality of life offered by elderly nursing homes. INTRODUÇÃO 577 A população brasileira atual com mais de 60 anos é de 15 milhões, sendo estimada para 2010, em 18 milhões de idosos, o que representará 10% população geral (Camarano, 2002). Uma realidade presente neste fenômeno de envelhecimento populacional, é a fragilidade do idoso e sua necessidade de viver em instituição, seja pela ausência ou dificuldades da família em cuidar, ou mesmo por desejo do próprio, como apontam estudos sobre a internação de idosos em hospitais gerais e instituições de longa permanência (Chaimowicz & Greco, 1999). Inúmeras pesquisas brasileiras têm analisado os desdobramentos da questão epidemiológica e social desse envelhecimento populacional, alertando para o expressivo desenvolvimento de doenças, incapacidades e dependência, mais freqüentes entre idosos de baixa renda, que a assistência social e de saúde públicas não têm conseguido garantir e que, ao acumularem seqüelas daquelas doenças, desenvolvem incapacidades e perdem autonomia e qualidade de vida (Chaimowicz, 1997; Ramos, 2002). No Brasil, o modelo de assistência à velhice, historicamente atrelado a práticas filantrópicas e caritativas e, ainda vigente, muito recentemente convive com práticas de geriatria e gerontologia, apoiadas no desenvolvimento científico (Born & Boechat, 2002), e respaldadas por documentos oficiais que instituem sua necessidade. Segundo Camarano (2005), que utiliza dados de 2004 do Instituto de Geografia e Estatística - IBGE, no Brasil vivem em domicílios coletivos – 127.885 idosos; em domicílios coletivos, na condição individual – 113.049. Não foram encontrados dados específicos de idosos residentes em Instituições de Longa Permanência para Idosos - ILPI, com deficiência sensorial. De acordo com o Censo 2000, aproximadamente 24,6 milhões de brasileiros, ou 14,5% da população total, apresentam algum tipo de incapacidade ou deficiência. São pessoas com ao menos alguma dificuldade de enxergar, ouvir, locomover-se ou alguma deficiência 578 física ou mental. Entre 16,6 milhões de pessoas com algum grau de deficiência visual, quase 150 mil se declararam cegos (IBGE, 2000). A questão que aqui se investiga, diz respeito a qualidade de vida do idoso residente em ILPI, como ele avalia os eventuais ônus decorrentes da idade e convive com a deficiência visual (compreendida como baixa visão e cegueira), seja ela congênita ou adquirida. Aspectos de qualidade de vida do idoso institucionalizado A velhice como uma experiência individual, portanto, vivenciada de forma heterogênea, até mesmo dentro de um mesmo grupo com características biológicas, sóciohistóricas e culturais semelhantes, determina que, para alguns idosos, essa fase seja avaliada positivamente, como etapa de desenvolvimento e bem-estar subjetivo. Para outros, contudo, pode ser uma fase negativa da vida. Esse pressuposto tem justificado os inúmeros estudos e pesquisas que avaliam a qualidade de vida da velhice, fundamentada em diferentes indicadores. (Baltes, 1987; Neri, 1993) Nos últimos trinta anos, os indicadores objetivos mostraram-se insuficientes na investigação clínica e epidemiológica para determinar a real condição dos indivíduos, senso incorporada a avaliação das variáveis subjetivas da qualidade de vida, embora se discuta a complexidade de seu caráter multidimensional e mutável (Paschoal, 2000). Outrossim, a avaliação da saúde, obtida por meio de instrumentos genéricos ou específicos, sob a ótica do indivíduo, nem sempre é sensível às suas necessidades, como exemplo, o caso do idoso frágil. Na última década, as pesquisas brasileiras tem analisado as dimensões biopsicossociais de qualidade de vida relacionadas ao processo de envelhecimento. Chaimowicz e Greco (1999), analisando essa questão, do ponto de vista epidemiológico e social, pesquisaram a dinâmica da institucionalização de idosos através da análise da oferta de leitos e 579 características demográficas dos residentes de 33 asilos. Concluíram que a baixa taxa de institucionalização se devia à escassez de vagas. A investigação de Telles Filho e Petrilli Filho (2002) sobre as causas da inserção de idosos em uma instituição asilar, destacaram como resultados, a falta de respaldo familiar em relação aos cuidados com o familiar idoso e suas dificuldades financeiras. Estes dados corroboram a crença de que, se faltam condições à família de ofertar qualidade de assistência a seu idoso, suas esperanças por melhor provisão nesse sentido, são depositadas na instituição. A pesquisa de Xavier, Ferraz, Norton, Escosteguy & Moriguchi (2003) com idosos de área rural, identifica uma definição de qualidade de vida. Ao avaliar aspectos de saúde geral e sintomas depressivos, sua conclusão aponta ser possível que, para esses idosos, qualidade negativa de vida seja equivalente a perda de saúde, enquanto a positiva envolve uma pluralidade aspectos como atividade, renda, vida social e relação com a família; categorias diferentes de sujeito para sujeito. O apoio social surgiu como indicador de qualidade de vida, no estudo de Mazo e Benedetti (1999) ao verificarem as condições de vida de idosos residentes em instituições geriátricas, concluindo que todos os pesquisados sofriam de doenças geralmente crônicas; dificuldade em dormir, não realizavam atividades ocupacionais durante o dia e consideraram que, além de seus filhos, os outros idosos da instituição eram sua família; percebendo a amizade como um fator importante em suas vidas. Savotini (2000) ao pesquisar as características sócio-demográficas e clínicas e o grau de dependência física de idosos em instituição asilar, correlaciona estas características com a qualidade de vida desse grupo, em relação aos domínios: capacidade funcional, aspectos físicos, dor, estado geral de saúde, vitalidade, aspectos sociais, aspectos emocionais e saúde mental. Chama a atenção em suas conclusões, o fator sócio-demográfico, situação conjugal, 580 apresentando influência estatisticamente significante sobre o Estado Geral da Saúde e de Saúde Mental. Analisando a percepção de saúde de idosos residentes em asilos, Freire Júnior, Renato e Tavares (2005) indicam que nos resultados aparece uma relação importante entre seus estados de saúde e felicidade com o trabalho, a rede social e a espiritualidade. Em uma pesquisa sobre a percepção auto-relatada de saúde, idosos de asilos avaliaram a própria saúde como satisfatória, estabelecendo relação com a ausência de dor, desconforto físico, sensação de segurança proporcionada pela vivência na instituição. Foi constatado que a qualidade objetiva dos cuidados oferecidos pelas instituições eram de importância incontestável, entretanto, insuficientes para a garantia do bem-estar subjetivo do idoso (Pestana & Espírito Santo, 2008). A Organização Mundial de Saúde, por meio do World Health Organization Quality of Life Group (WHOQOL, 1995; 1998; 2004) desenvolveu escalas de avaliação de qualidade de vida de adultos, considerando seu caráter subjetivo, nos aspectos negativos e positivos e sua natureza multidimensional. Entre essas escalas, o WHOQL-bref, avaliando quatro domínios da qualidade de vida: físico, psicológico, relações sociais e meio-ambiente e o WHOQOL-old, identificando a qualidade de vida de idosos e suas possíveis carências em seis facetas: funcionamento do sensório (FS), autonomia (AUT), atividades passadas, presentes e futuras (PPF), participação social (PSO), morte e morrer (MEM) e intimidade (INT). Como o processo de envelhecimento apresenta algumas características semelhantes aos sintomas depressivos, normalmente se apresentando no idoso de maneira atípica ou indireta, ou seja, encoberta por múltiplas e variadas queixas somáticas e associada a quadros de ansiedade (DSM-IV-TR, 1994), deve-se fazer o uso sistemático de escalas de depressão pelos profissionais que trabalham com esses indivíduos, para facilitar a detecção desses casos na prática clínica, conforme recomendam Almeida e Almeida (1999). 581 A Escala de Depressão Geriátrica (Geriatric Depression Scale - GDS) utilizada em diversos estudos, inclusive os brasileiros (Almeida & Almeida, 1999) demonstra que a GDS ser uma medida válida e confiável para o diagnóstico de episódio depressivo maior, de acordo com os critérios da CID-10 e DSM-IV. O fato de ter versão reduzida (GDS-15), em contraste com a versão original de 30 questões, tem tornado seu uso cada vez mais freqüente, que na prática clínica é importante pelo tempo reduzido para sua aplicação. Silva e Rezende (2006) ao compararem a qualidade de vida relacionada à saúde (QVRS) de idosos institucionalizados e de participantes de centros de convivência, utilizaram, entre outros instrumentos, a GDS e o WHOQOL-breaf, constatando que idosos institucionalizados tiveram escores mais baixos na pontuação total do WHOQOL-breaf e nos domínios: físico, psicológico e meio ambiente. Que a depressão, maior morbidade e dependência em atividades de vida diária, repercutiram negativamente sobre a qualidade de vida relativa à saúde. Para conhecer melhor a realidade de adultos maduros e idosos deficientes visuais, que vivem em uma ILPI, foi objetivo nesta pesquisa, avaliar sua qualidade de vida e condição de saúde mental. MÉTODO Trata-se de um estudo descritivo e exploratório, de abordagem quantitativa, realizado com idosos residentes em uma ILPI para deficientes visuais, em uma cidade do Vale do Paraíba paulista. Esta pesquisa obedeceu aos preceitos da Resolução 196/MS-Brasil, sendo protocolada e aprovada pelo Comitê em Ética e Pesquisa da Universidade de Taubaté, sob o no. 291/08, em 16 de junho de 2008. 582 Esta ILPI funciona em regime semi-aberto, é de natureza beneficiente, parcialmente mantida pelo poder público e apoio da comunidade, contando também com as aposentadorias dos internos. Apesar de sua infra-estrutura precária, atende às necessidades básicas de alimentação, repouso, higiene e administração de medicamentos. Não possui um quadro de profissionais de saúde permanentes, sustenta-se com a colaboração voluntária de médico e fisioterapeuta. Estagiários de áreas da saúde e social propiciam aos internos atividades físicas, recreativas, de lazer e atendimento psicossocial. Residem na instituição indivíduos com idades abaixo de 50 anos. Para efeito dessa pesquisa, selecionou-se 17 adultos maduros e idosos, na faixa etária entre 53 e 87 anos, de ambos os sexos, com deficiência visual congênita ou adquirida. Foram incluídos na pesquisa 11 deles, os demais não consentiram ou não foram elegíveis, pela associação de deficiência auditiva e/ou mental severas. Foi utilizado o inventário WHOQOL-Bref para identificar sua qualidade de vida e possíveis carências referentes aos domínios avaliados: físico (7 itens), psicológico (6 itens), relações sociais (3 itens) e meio ambiente (8 itens), conforme Fleck et al., (1999) e OMS (1998). Entretanto, os resultados desse inventário foram descartados, pela dificuldade que a amostra teve em dimensionar a valoração das perguntas, não refletindo uma avaliação fidedigna. O inventário WHOQOL-old é uma medida genérica para avaliar a qualidade de vida de adultos idosos, em que os escores das seis facetas são combinados para produzir um escore geral para a qualidade de vida em adultos idosos. Os valores obtidos nos escores das facetas individuais e no escore total do WHOQOL-old, representam uma avaliação empírica da qualidade de vida, a partir do ponto de vista do participante. Para avaliar o estado de saúde mental, foi utilizada a versão brasileira, proposta e validada por Almeida e Almeida (1999) do instrumento GDS-15 – Global Depression Scale. Este instrumento foi desenvolvido especificamente para idosos, com itens aplicáveis a indivíduos 583 hospitalizados ou institucionalizados, referentes a mudanças no humor e a alguns sentimentos específicos. A escala original contém 30 questões dicotômicas (sim X não) e quando o resultado é igual ou maior que 5, há suspeita de depressão. A pesquisa de campo aconteceu entre os meses de julho e agosto de 2008. A aplicação dos instrumentos foi em ambiente privativo, ocorrendo em mais de um encontro, quando se observava cansaço ou dificuldade por parte de algum participante. Para a tabulação dos dados, utilizou-se a orientação do manual dos inventários. RESULTADOS E DISCUSSÃO A análise dos dados bio-sociodemográficos justifica uma série de aspectos das condições gerais de vida, que concorrem para a qualidade de vida global do indivíduo, conforme alerta Paschoal (2000). Nos dados relativos à distribuição dos participantes por sexo nessa instituição, constata-se a predominância de homens deficientes visuais, 55% adultos maduros e 45% idosos. Em se tratando de idosos, contraria as pesquisas dessa população em ILPI (Jabur, Siqueira & Reis, 2007; Silva & Rezende, 2006) e as informações demográficas que apontam um maior número de mulheres idosas na sociedade, configurando o fenômeno da feminização da velhice (IBGE, 2000; Herédia et al., 2005) Na amostra, 55% são solteiros, confirmando achados de Herédia et al. (2005) e Jabur et al. (2007), o que pode constituir um fator de risco à qualidade de vida (Savotini, 2000). É possível que, na falta do cônjuge ou da família, as dificuldades no auto-cuidado e proteção sejam mais asseguradas pela instituição, justificando, inclusive, que 45% deles tenham decidido por si próprios, lá morarem. Todavia, se pudessem, 45% deles gostariam de morar em outro lugar, aparecendo aqui o desejo de autonomia e independência. Se em anos passados, a 584 condição da deficiência não assumia uma dimensão muito significativa, agora, associada à velhice, pode restringir mais o campo vivencial. A baixa escolaridade identificada nos dados, é consoante a vários resultados de pesquisa (IBGE, Herédia et al., 2004; Jabur, Siqueira & Reis, 2007; Silva & Rezende, 2006; Davim, Torres, Dantas & Lima, 2004), mostrando que na década de 1940, época de ingresso nas séries iniciais da escola da maioria desses participantes, o índice de analfabetismo era muito alto. Esse indicador dificulta o acesso do indivíduo a informações, a uma melhor qualificação ocupacional e a oportunidades sociais de um modo geral. Em se tratando de deficientes visuais, em termos de inserção social, os obstáculos podem ter sido ainda maiores. Possivelmente, como reflexo da baixa escolaridade, trabalharam em ocupações primárias (agricultores), secundárias (operário da construção civil, metalúrgico), em serviços (vendedor, encanador) ou ainda, como donas de casa, resultando ao final, uma aposentadoria irrisória, reservada à sua manutenção na instituição. Sobre o tempo de asilamento, metade referiu mais de 5 anos na instituição. Porém, a dificuldade dos participantes em dimensionar esse tempo e de não ter sido perguntado sobre a história de internação anterior, limita aqui essa análise. Relataram que tem contato regular com a família, 73% da amostra, fato facilitado pela procedência de 55% ser da mesma região onde agora vivem (São Paulo), denotando uma situação favorável à manutenção do núcleo familiar, dos laços afetivos e atenção para com eles. Apresentam deficiência visual adquirida, há mais de 16 anos, 91% da amostra podendo significar que, na idade adulta tiveram que se adaptar a essa condição. A perda parcial da acuidade visual após os 40 anos pode ser esperada no processo de envelhecimento, como mostra os resultados de Davim, Torres, Dantas e Lima (2004) em pesquisa em vários asilos. 585 Nesta pesquisa, no entanto, a ocorrência da perda total, presença de glaucoma em 9% e diabetes em 27%, indica condições de morbidade entre eles, podendo ser o motivo da institucionalização, associado à perda da autonomia e da independência (Chaimowicz & Greco, 1999). Pelos resultados da GDS, apenas 9% dos pesquisados apresentam suspeita de depressão (escore igual ou acima de 5 pontos), sugerindo que a institucionalização não é uma variável que afeta negativamente todos os domínios da vida desses participantes deficientes visuais. Diferentemente dos dados reportados por Silva & Rezende (2006) e da revisão de pesquisas nacionais e internacionais feita por Munk e Laks (2005) apontando a prevalência de episódio de depressão maior em idosos institucionalizados e o fato de as mulheres serem as mais acometidas por essa doença. Esse resultado, todavia, é discutível, quando cruzado com os do WHOQOL-old, onde prevalece uma baixa pontuação em quase todas as facetas de qualidade de vida avaliadas. Os resultados do WHOQOL-old, que constam na tabela 1, são esclarecedores sobre a situação da amostra pesquisada. Os escores das seis facetas foram combinados para produzir um escore geral para a qualidade de vida em adultos idosos. Os valores obtidos nos escores das facetas individuais e no escore total do WHOQOL-old, representam uma avaliação empírica da qualidade de vida, a partir do ponto de vista do participante. Tabela 2. Escores obtidos pelo WHOQOL-old na avaliação da amostra FS AUT PPF PSO MEM INT Facetas Funcionamento do sensório Autonomia Atividades passadas, presentes e futuras Participação social Morte e morrer Intimidade Média EBF 12,18 10,18 9,09 8,73 20,00 9,00 11,53 EPF 3,05 2,55 2,27 2,18 5,00 2,25 2,88 ETE 51,14 38,64 31,82 29,55 100,00 31,25 47,06 586 Observa-se que, com exceção da faceta MEM, todas as médias são preocupantes. A faceta FS, relativa ao funcionamento sensorial, impacto da perda de habilidades sensoriais na qualidade de vida dessa amostra é significativa, indica o quanto a deficiência visual está limitando o campo vivencial. A faceta autonomia (AUT) demonstra grande restrição em termos de independência nesta fase da vida, capacidade ou liberdade de viver de forma autônoma e tomar decisões, corroborando dados de Herédia et al.,(2004). Os níveis de satisfação sobre as conquistas na vida e coisas que se anseia (PPF), capacidade de ter relacionamentos pessoais e íntimos (INT) e participação nas atividades cotidianas, especialmente na comunidade (PSO), refletem a exclusão social deste indivíduo, confirmando as pesquisas sobre essa população (Freire Júnior, Renato & Tavares, 2005; Savotini, 2000; Mazo & Benedetti, 1999). Chama a atenção, o escore total atribuído à faceta MEM, de ausência de preocupações, inquietações e temores sobre a morte e o morrer. Pode refletir uma preparação, de fato, para a finitude da vida, apoiada na importância delegada ao aspecto religiosidade, muito presente no WHOQOL-breaf (embora tenha sido descartado), e também presente nos auto-relatos dos pesquisados. Aspecto esse confirmado por outras pesquisas (Freire Júnior, Renato & Tavares, 2005) que cita a prática da espiritualidade como um fator de proteção à saúde mental. Por outro lado, pode refletir, a expressão de um desejo genuíno de finitude, mediante a baixa qualidade de vida das outras dimensões existenciais. Em síntese, a média total do WHOQOL-old de 47,06 é um indicador da fragilidade dessa amostra, requerendo uma atenção por parte de intervenções geriátricas e gerontológicas, principalmente pelo fato de 55% dos participantes não ter 60 anos, 55% não ter referido doença crônica, mas o conjunto dos dados bio-sociodemográficos conter fatores de risco potenciais à sua qualidade de vida (Xavier, Ferraz, Norton, Escosteguy & Moriguchi, 587 2003). Entretanto, os fatores protetores podem ainda ser potencializados e retardar as futuras perdas nesses vários aspectos (Baltes, 1987; Neri, 1993). CONCLUSÃO Na fase da velhice, a qualidade de vida vêm sendo bastante discutida e avaliada por diferentes áreas do conhecimento e sob vários pontos de vista, prevalecendo as avaliações em termos saúde física, saúde psicológica e o ser social. Na população idosa residente em instituições de longa permanência, principalmente aquela com deficiência visual, no entanto, são escassos os resultados de pesquisas rastreando as dimensões que impactam essa qualidade de vida. Nesta pesquisa, constatou-se a presença maciça de deficientes visuais homens, mais da metade deles com menos que 60 anos, sem doenças crônicas e baixa prevalência de suspeita de depressão. Mostram-se ausentes as preocupações relativas à morte e ao morrer. Entretanto, a exclusão social é ressaltada pela menor pontuação do indicador de participação social, reforçada pelos baixos níveis de satisfação em termos de autonomia, capacidade de relacionamentos e realização pessoal. Considera-se importante em outras pesquisas com essa população, atrelar indicadores de capacidade funcional em termos de atividades diárias e instrumentais à avaliação de qualidade de vida, para dimensionar a capacidade funcional preservada e orientar projetos de intervenção interdisciplinares e multiprofissionais. Na medida em que o anacronismo de gestão dessas instituições ainda é uma realidade no Brasil, iniciativas de estudo, pesquisa e socialização de idosos institucionalizados, por meio da extensão universitária, constituem intervenções que viabilizam uma melhor qualidade de 588 vida dessa população, possibilitando, paralelamente, a capacitação de futuros profissionais para o enfrentamento dessa demanda crescente na sociedade. REFERÊNCIAS Almeida, O. P. , Almeida, S. A. (1999) . Confiabilidade da versão brasileira da escala de depressão em geriatria (GDS) versão reduzida. Arquivos de Neuropsiquiatria, 57, 421-426. Baltes, P. B. (1987) . 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