propostas - Eventos UAlg - Universidade do Algarve

Transcrição

propostas - Eventos UAlg - Universidade do Algarve
Prémio Melhor Trabalho do Congresso
Índice
Candidatura 1
Vulnerabilidades ao stresse em profissionais de emergência médica pré-hospitalar
pág. 4
Candidatura 2
Trauma na infância e saúde (física e mental) do adulto – Resultados de um estudo
pág. 27
Candidatura 3
Saúde feminina: considerações do psicodiagnóstico interventivo na obesidade
pág. 50
Candidatura 4
Vitimologia e psicologia da saúde
pág. 72
Candidatura 5
pág. 87
Resiliência: análise das estratégias de coping por pacientes em tratamento radioterápico
Candidatura 6
pág. 109
Vivência materna em gestante de Alto Risco por Diabetes Mellitus Pré-Gestacional: um estudo de caso
Candidatura 7
pág. 131
Preocupação Materna Primária em gestantes de Alto Risco por Diabetes Mellitus Pré-gestacional
Candidatura 8
pág. 151
Do corpo atento ao corpo que pára quieto: novas proposições para se pensar a (des)atenção na
contemporaneidade
Candidatura 9
pág. 167
A personalidade paterna como fator prognóstico no tratamento da tendência anti-social
Candidatura 10
pág. 191
A influência da personalidade materna e paterna na etiologia da tendência anti-social infantil
Candidatura 11
pág. 213
Impacto da depressão pós-parto no casal.Esboço de uma teoria empiricamente derivada
Candidatura 12
Incidentes Críticos na Profissão de Inspector de Investigação Criminal da PJ
pág. 229
Candidatura 13
Os Profissionais de Saúde frente a violência no idoso
pág. 254
Candidatura 14
estudo sobre o atendimento à paciente vítima de violência sexual
pág. 275
Candidatura 15
A morte na formação médica: implicações para humanização do cuidado
pág. 287
Candidatura 16
pág. 308
O grupo de apoio psicológico entendido pelos familiares de pessoas com transtornos alimentares
Candidatura 17
pág. 331
O grupo de apoio psicológico entendido pelos familiares de pessoas com transtornos alimentares
Candidatura 18
Programa de Alimentação Saudável em Saúde Escolar PASSE
pág. 355
Candidatura 19
A Entrevista Devolutiva Infantil: Utilização de Recursos na Áera da Transicionalidade
pág. 370
2
Candidatura 20
pág. 391
Funcionamento defensivo em mulheres acometidas por câncer de mama: especificidades de pacientes
em remissão e pacientes em recidiva
Candidatura 21
A vivência da endometriose no contexto conjugal: um estudo de caso
pág. 412
Candidatura 22
pág. 434
Apresentação do setor de triagem e atendimento infantil e familiar (staif) do centro de pesquisa e
psicologia aplicada (usp): uma experiência em formação
Candidatura 23
pág. 449
Cultura, Iniquidade Social e Género: Contributos Para um Programa de Educação Sexual
Candidatura 24
Aferição portuguesa de uma escala de preocupações parentais: dados preliminaes
pág. 477
Candidatura 25
Intervenção em Comportamentos de risco na Universidade
pág. 495
Candidatura 26
LUA na Second life ou apoio psicológico virtual: resultados da fase experimental
pág. 514
Candidatura 27
A Psicologia Positiva no contexto brasileiro: história, presente e perspectivas futuras
pág. 529
Candidatura 28
pág. 552
Na saúde e na doença, felizes para sempre”: a satisfação conjugal na promoção do bem-estar
psicológico, na perspectiva da Psicologia Positiva
Candidatura 29
pág. 575
Qualidade de vida de adultos maduros e idosos brasileiros, com deficiências visuais e residentes em
instituição de longa permanência
3
Candidatura 1
Autores: Hugo Amaro & Saul Neves de Jesus
Título: Vulnerabilidade ao stresse em profissionais de emergência médica pré-hospitalar
4
“VULNERABILIDADE AO STRESSE EM PROFISSIONAIS DE EMERGÊNCIA MÉDICA PRÉHOSPITALAR”
Hugo João Fernandes Amaro
[email protected]
U. Algarve
Saul Neves de Jesus
[email protected]
U. Algarve
RESUMO
O stresse tem sido uma problemática amplamente estudada pela comunidade científica em
geral nas mais diversas áreas do saber, em que os profissionais de saúde têm sido um grupo
alvo preferencial desses mesmos estudos. Todavia, os estudos efectuados com os profissionais
de emergência médica pré-hospitalar em Portugal são ainda extremamente reduzidos, embora
a problemática se encontre mais desenvolvida em países como os EUA, Canadá e Japão. Neste
sentido, pelas características próprias desta profissão interessa compreender de forma mais
aprofundada em que medida se encontram estes profissionais vulneráveis ao stresse, sendo
este o objectivo principal deste estudo.
A amostra foi constituída por 161 profissionais de emergência médica distribuídos pelo
território nacional dos quais 42,2% possuem a categoria profissional de TAE/TAS, 31,7% são
Enfermeiros e 26,1% são médicos, tendo sido utilizada uma amostragem por clusters, seguida
da técnica de amostragem aleatória.
Os resultados indicam a existência de médias globais baixas de vulnerabilidade ao stresse.
Todavia existem diferenças estatisticamente significativas entre a vulnerabilidade ao stresse e
a categoria profissional, sendo os TAE/TAS aqueles que apresentam valores médios mais
elevados, bem como relativamente à deprivação de afectos e rejeição, subjugação e condições
5
de vida adversas. No que diz respeito às alterações do sono, verificou-se a existência de
diferenças estatisticamente significativas nas dimensões “Perfeccionismo e intolerância à
frustração”, “Condições de vida adversas”, “Dramatização da existência”, “Subjugação”, e
“Deprivação de afectos e rejeição”, assim como para a totalidade do instrumento de medida
do stresse. Os sujeitos de estudo que não praticam exercício físico apresentam valores médios
de vulnerabilidade ao stresse mais elevados.
1 - EMERGÊNCIA MÉDICA
Desde os tempos primórdios que o Homem tem procurado prestar cuidados de saúde a
vítimas dos mais variados tipos em situação de emergência. É difícil efectuar uma descrição
precisa relativamente à evolução histórica da emergência pré-hospitalar na medida em que se
acredita que em todas as civilizações ela tenha estado presente. Todavia os registos históricos
de um sistema de emergência médica propriamente dito, remontam às grandes guerras e
batalhas vividas na Europa, altura em que, embora ainda de uma forma arcaica e
desorganizada, começavam já a surgir as primeiras tentativas de prestação de cuidados de
saúde na área da emergência médica pré-hospitalar.
Em Portugal, a assistência médica pré-hospitalar propriamente dita iniciou-se em 1965, altura
em que foi criado em Lisboa um serviço de prestação de primeiros socorros a vítimas de
acidentes na via pública. Este serviço era activado através de um número de socorro, o 115,
que ligava directamente à PSP. A PSP era a entidade responsável pela triagem das chamadas e
posterior encaminhamento dos meios de socorro para o local do sinistro. Os primórdios do
socorro pré-hospitalar, baseava-se unicamente numa ambulância tripulada por elementos da
PSP, sem formação específica na área da emergência médica e que tinham como principal
intuito efectuar o transporte das vítimas até ao hospital mais próximo (Costa, 1990; Silva et al,
1987).
6
Cientes da necessidade urgente de melhorar a assistência pré-hospitalar, uma vez que esta se
resumia basicamente à recolha e transporte das vítimas até à unidade hospitalar mais próxima
e face ao facto da rede de cobertura de socorro ser ainda muito reduzida, decide o executivo
criar em 1971 o SNA (Serviço Nacional de Ambulâncias), que tinha como principal objectivo
“assegurar a orientação, a coordenação e a eficiência das actividades respeitantes à prestação
de primeiros socorros a sinistrados e doentes e ao respectivo transporte” (INEM, 2000, 20).
A rede de emergência tinha de facto conhecido avanços significativos, tinham sido
implementados meios técnicos, materiais e tecnológicos avançados, assim como meios
humanos cada vez mais capacitados e com formação específica e adequada para a tarefa a
desenvolver. Contudo, a elevada sinistralidade existente, consciencializou as autoridades para
a necessidade emergente de desenvolver e capacitar a rede de emergência médica com meios
mais sofisticados que permitissem dar uma resposta mais célere às ocorrências e sobretudo,
facilitar a articulação entre as diferentes entidades envolvidas na rede.
Desta forma, em 1980 foi nomeada uma comissão designada por Comissão de Estudos de
Emergência Médica, cujo objectivo era apresentar uma proposta devidamente adaptada à
realidade portuguesa quer a nível de sinistralidade, quer a nível de recursos humanos,
materiais e financeiros, no sentido de proceder à reformulação do SNA. Do estudo efectuado e
do relatório apresentado pela Comissão Interministerial de Estudos de Emergência Médica,
bem como através das conclusões retiradas das Jornadas de Emergência Médica realizadas em
Lisboa em 1980, propõe-se a criação do SIEM (Sistema Integrado de Emergência Médica)
(INEM, 2000; Costa, 1990; Silva et al., 1987).
2 – STRESSE
O conceito de stresse tem sido alvo de um processo evolutivo complexo e multidimensional
em que diversos investigadores, no domínio da sua especialidade, têm procurado
compreender de forma mais profunda os fenómenos intrínsecos a este conceito.
7
Analisando a origem do vocábulo stresse, verificamos que o mesmo tem a sua origem no verbo
latino stringo, stringere, strinxi, strictum, que significa literalmente apertar, comprimir,
restringir.
Ao investigar a resistência aos elementos naturais de algumas estruturas construídas pelo
Homem, pontes e edifícios, Robert Hooke evidenciou uma questão de ordem prática de
grande importância. Referia o investigador que as estruturas deveriam ser edificadas, tendo
em conta três aspectos fundamentais, a carga (load), a pressão (stress) e a tensão (strain). A
carga é relativa às forças externas que actuam sobre a estrutura, tais como o vento e o peso. A
pressão ou stress é relativa à força que a carga exerce sobre o ponto onde incide na estrutura,
e, por último, a tensão, representa a resposta da estrutura, ou seja, o processo deformativo
verificado após a acção conjunta da carga e do stress. Em termos práticos, se o material for
maleável, a pressão exercida fará com que ele se dobre, porém, se o material em causa for
rígido ele tenderá a quebrar-se (Lazarus, 1999; 1993).
O fenómeno exposto anteriormente e descrito por Robert Hooke no séc. XVII, traduz a
aplicabilidade mais comum do conceito de stresse e que se enquadra no mundo da física,
servindo o conceito para traduzir dificuldade, exigência, adversidade, aflição. A passagem do
conceito de stresse da física para a biologia foi feita de uma forma progressiva, na medida em
que foram desenvolvidas e testadas teorias inerentes ao conceito de stresse, embora numa
vertente predominantemente biológica, procurando compreender os possíveis efeitos do
conceito no ser humano.
Os estudos efectuados pelo fisiologista francês Claude Bernard no século XIX que
correlacionam os conceitos propostos por Robert Hooke no século XVII inerentes ao mundo da
física, com as pressões exercidas sobre a mente e órgãos humanos. Refere-se Bernard à
importância de preservar e manter o equilíbrio interno do indivíduo, face aos acontecimentos
do dia-a-dia. Os construtos referidos pelo investigador relativamente à fisiologia do stresse,
relacionam os conceitos de carga, stresse e tensão com o organismo humano, assumindo que
8
num processo homólogo à física, o mesmo acontece no ser humano. Nos estudos efectuados
com organismos vivos unicelulares, e, posteriormente, com mamíferos, Bernard verificou que
a manutenção da vida era directamente dependente de respostas internas que contribuíssem
para manter o ambiente interno do organismo constante, em relação às permanentes
alterações do ambiente externo.
Hans Selye era um jovem estudante de medicina na Universidade de Praga nos anos 20,
quando após ter observado alguns indivíduos vítimas de diversas doenças infecciosas, verificou
que todos apresentavam uma sintomatologia muito semelhante entre si, embora sem sinais
específicos. Seguindo o trabalho efectuado por Cannon, Selye (1935) interessou-se pelas
respostas adaptativas do organismo aos diferentes estímulos externos. Este investigador
focalizou o seu interesse investigativo na resposta dada pelos animais às mudanças ocorridas
na sua homeostasia, incluindo quando estes eram sujeitos a situações extremas tais como
calor, frio e substâncias tóxicas. Selye verificou que ao sujeitar os animais a estes estímulos
externos, o seu organismo reagia procurando adaptar-se às alterações sofridas, chegando
mesmo alguns órgãos a sofreram alterações significativas principalmente no que concerne ao
seu sistema imunitário. Por esta razão, Selye (1979) definiu o stresse como a resposta não
específica do corpo a qualquer exigência, propondo mais tarde o Síndrome Geral de Adaptação
(Vaz Serra, 1999).
Posteriormente nos anos 70, os estudos efectuados por Lazarus e colaboradores relativamente
ao fenómeno do stresse despertaram a comunidade científica para a importância que a
resposta individual ao stresse assume. Verificando os investigadores que o stresse era
interpretado como sendo um conceito que pretendia explicar um conjunto de fenómenos
relativos ao ser vivo (quer humano quer animal), definiram que o stresse não seria uma
variável mas sim um conjunto de variáveis e processos complexos que interagem entre si, em
que o indivíduo necessita de efectuar uma avaliação dos recursos disponíveis e do significado
9
do meio, de forma a poder lidar com os acontecimentos stressantes com que se depara no seu
quotidiano (Ogden, 2004; Paul & Fonseca, 2001).
3 - STRESSE NOS PROFISSIONAIS DE EMERGÊNCIA MÉDICA PRÉ-HOSPITALAR
As profissões relacionadas com a saúde foram durante alguns anos esquecidas ou
desvalorizadas relativamente à problemática do stresse, muito devido a estereótipos
existentes na altura, em que os profissionais de saúde por serem o grupo profissional cuja
competência seria tratar/curar as diferentes patologias, estariam por si só imunes a esta
problemática. Todavia, a realidade actual da investigação científica revela-nos que os
profissionais de saúde em geral, e os profissionais de emergência médica pré-hospitalar em
particular são um grupo privilegiado no que diz respeito à investigação científica relativa ao
stresse e factores associados. A difícil realidade vivida por estes profissionais, que se traduz em
consequências físicas, psicológicas e organizacionais dos fenómenos de stresse, e, em casos
extremos, de burnout e turnover, despertaram a atenção da comunidade científica para estes
sujeitos de estudo em particular.
No caso particular dos profissionais de emergência médica, as características inerentes a este
tipo de profissionais, faz com que se tratem de indivíduos sujeitos a níveis de stresse mais
elevados comparativamente a outros profissionais de saúde, e, à população em geral. Alguns
investigadores que têm utilizado estes profissionais de saúde como sujeitos de estudo referem
o stresse ocupacional como fenómeno inerente à profissão, em que o trabalho sob pressão de
tempo, as frequentes decisões que envolvem a vida ou a morte, os problemas com os colegas
e a necessidade de elevado conhecimento técnico e cientifico são factores de stresse a
considerar (Christie, 1997; Linton et al.; 1993).
Na tentativa de sistematizar os factores de stresse mais frequentes para os profissionais de
emergência médica pré-hospitalar, Bledsoe et al. (1997) referem que aspectos como a
10
multiplicidade de responsabilidades (a necessidade de prestar socorro às vitimas, lidar com os
agentes da autoridade, bombeiros e família), as tarefas inacabadas, trabalhar sob permanente
pressão, a ausência de deslocações consideradas como sendo profissionalmente estimulantes,
o elevado esforço físico e emocional a que estão sujeitos, a falta de reconhecimento
profissional e o facto de terem de lidar frequentemente com a morte e sofrimento são
primordiais na compreensão da problemática em estudo neste tipo de profissionais de saúde.
A este nível O’Keefe et al. (1998) salientam que os profissionais de emergência médica préhospitalar lidam diariamente com situações altamente stressantes, entre as quais se salientam
acidentes com múltiplas vítimas, saídas envolvendo crianças nas mais variadas vertentes,
vítimas politraumatizadas graves, e, a morte de um colega de trabalho. Este facto foi
posteriormente confirmado por Beaton (1998) que efectuou um estudo tendo como
população alvo 173 paramédicos e bombeiros, em que o investigador verificou que os factores
de stresse referidos com maior incidência pelos sujeitos de estudo eram a existência de
catástrofes, vítimas politraumatizadas, vítimas críticas, sofrerem acidentes pessoais e terem de
contactar diariamente com a morte e sofrimento.
Um pertinente estudo efectuado a nível nacional por Cydulka et al. (1997) com profissionais de
emergência pré-hospitalar norte americanos, perfazendo um total de 3000 sujeitos de estudo,
indica-nos que os níveis de stresse variam conforme o género, o estado civil, idade, formação
profissional, salário e tempo de serviço na emergência pré-hospitalar, acrescentando os
investigadores que os níveis de stresse encontrados nos sujeitos de estudo foram muito
elevados.
Mizuno et al. (2005) e Naoki (2005) procuraram compreender de forma mais aprofundada os
efeitos do stresse nos profissionais de emergência médica pré-hospitalar japoneses, tendo
para isso utilizado uma amostra constituída por 1551 sujeitos de estudo. Relativamente a
efeitos físicos foram referidos como frequentes cefaleias, lombalgias, dores no pescoço e
ombros, enquanto que a nível psicológico, insónias e exaustão foram os aspectos referidos
11
com maior frequência. Ulrika (2005) utilizando uma amostra constituída por 1187 profissionais
de emergência médica pré-hospitalar suecos apresenta resultados que confirmam os
encontrados anteriormente, em que cefaleias, cervicalgias, lombalgias e epigastralgias eram
queixas físicas frequentes entre o pessoal do género feminino, enquanto que os profissionais
de emergência médica pré-hospitalar do género masculino referiam com maior frequência
lombalgias, assim como limitações profissionais directamente resultantes do problema físico
anteriormente referido. Em termos de sintomas psicológicos, as alterações do sono foram
referidas com maior frequência não havendo todavia diferenças significativas entre géneros.
Oliveira (2003) desenvolveu um estudo que pretendia determinar a influência de alguns
factores de stresse em profissionais da VMER em Portugal, utilizando uma amostra constituída
por 151 profissionais pertencentes ao CODU de Porto, Coimbra e Lisboa, perfazendo um total
de 41.4% da população, com uma média de idades de 33.15 anos, em que 53% eram médicos,
34.4% enfermeiros e 12.6% TAE. De acordo com o estudo efectuado, existe uma correlação
significativa entre percepção de stresse e a capacidade de resolução de problemas, sendo que
os profissionais com maior capacidade para resolução de problemas apresentam uma
percepção de stresse significativamente inferior. Da correlação efectuada entre tempo
semanal de exercício na VMER e percepção de stresse, refere a investigadora a existência de
uma correlação negativa, pelo que os profissionais que trabalham menos horas por semana
apresentam maior percepção de stresse. Porém, salienta-se a existência de uma correlação
negativa entre o facto de trabalhar noutro serviço que não a VMER e a sua percepção de
stresse, referindo a investigadora que “os profissionais que trabalham mais tempo por semana
em outro serviço além da VMER, tendem a evidenciar menor percepção de situações indutoras
de stress” (11).
12
2. METODOLOGIA
2.1. OBJECTIVO
O estudo que aqui se apresenta possui como objectivo central analisar de forma mais
aprofundada a vulnerabilidade ao stresse dos profissionais de emergência médica préhospitalar.
2.2. AMOSTRA E PROCEDIMENTO
A nossa amostra foi extraída de uma população constituída por profissionais de emergência
médica pré-hospitalar com a categoria profissional TAS/TAE pertencentes aos 16 quartéis de
bombeiros do Algarve e por profissionais de emergência pré-hospitalar com a categoria
profissional de enfermeiro e médico, pertencentes aos 39 postos da VMER a nível nacional.
Como método de amostragem, foi utilizada a técnica de amostragem por clusters,
particularmente útil quando o Universo é grande e os casos se encontram agrupados em
unidades ou clusters (Hill & Hill, 2002).
Nesta medida, e, no que diz respeito aos TAS/TAE, começámos por determinada a fracção de
amostragem, ou seja qual a percentagem de quartéis de bombeiros a seleccionar para o nosso
estudo, tendo sido utilizada uma fracção de amostragem equivalente a 50% dos quartéis de
bombeiros existentes no Algarve. Para seleccionar os quartéis de bombeiros onde iria ser
aplicado o instrumento de colheita de dados, foi utilizada a técnica de amostragem aleatória,
tendo sido seleccionados os quartéis de Tavira, Olhão, Faro, Loulé, Albufeira, Lagoa, Portimão,
Monchique e Lagos, o que corresponde a 56% dos quartéis de bombeiros municipais
existentes no Algarve. O instrumento de colheita de dados foi posteriormente aplicado a todos
13
os elementos com a categoria de TAS/TAE que se encontravam vinculados aos respectivos
quartéis de bombeiros seleccionados.
No que concerne às equipas da VMER, procedeu-se de forma idêntica à utilizada nos quartéis
de bombeiros, em que foi seleccionada uma percentagem amostral de 20% das bases de VMER
distribuídas pelo território nacional. Neste sentido, foi igualmente utilizada a técnica de
amostragem aleatória, tendo sido seleccionados os postos da VMER pertencentes ao Hospital
Dr. Sousa Martins na Guarda, Hospital Distrital de Santarém, EPE, Hospital Dr. José Maria
Grande, EPE em Portalegre, Hospital de Santa Maria, EPE em Lisboa, Hospital Curry Cabral em
Lisboa, Centro Hospitalar do Baixo Alentejo, EPE em Beja, Hospital Central de Faro e o Centro
Hospitalar do Barlavento Algarvio, EPE em Portimão, perfazendo o total de 21% das bases de
VMER existentes no território nacional. O instrumento de colheita de dados foi posteriormente
aplicado a todos os elementos que desempenhavam funções nas bases de VMER referidas
anteriormente e que possuíam a categoria profissional de enfermeiro e de médico.
Dos 161 sujeitos de estudo pertencentes à nossa amostra, 76,4% (N= 123) são do género
masculino, enquanto que 23,6% (N= 38) são do género feminino. Possuem idades
compreendidas entre os 19 e os 69 anos de idade, com uma média de 34,39 anos.
A grande maioria, 92,5% (N= 149), dos sujeitos de estudo é de nacionalidade portuguesa, 4,3%
(N= 7) são de nacionalidade espanhola, enquanto que somente 3,1% (N= 5) possui outra
nacionalidade. No que diz respeito ao estado civil, 23,6% (N= 38) dos sujeitos de estudo são
solteiros, enquanto que a grande maioria 65,8% (N= 106) são casados/união de facto, em que
10,6% (N= 17) referem ser divorciados. No que concerne à categoria profissional, 42,2% (N=
68) dos sujeitos de estudo possuem a categoria profissional de TAS/TAE, 31,7% (N= 51) são
enfermeiros e 26,1% (N= 42) são médicos. Quanto ao tempo de serviço na emergência médica
pré-hospitalar, encontra-se compreendido entre os 1 e os 25 anos, tendo sido obtida uma
média de 6,45 anos.
14
2.3. INSTRUMENTOS DE PESQUISA
O instrumento de pesquisa utilizado neste estudo foi um questionário composto por duas
partes, em que a primeira parte é constituída por oito questões fechadas de natureza
sociodemográfica que pretendiam avaliar o género, nacionalidade, categoria profissional,
estado civil, tempo de serviço na emergência médica pré-hospitalar, as alterações do sono, o
facto de ser fumador e se pratica exercício físico, e, por uma questão aberta que pretendia
avaliar a idade dos participantes no estudo.
A segunda parte do questionário é constituído por uma escala de avaliação da vulnerabilidade
ao stresse (23 QVS) elaborada por Vaz Serra (2000). Trata-se de uma escala do tipo Likert
constituída por 23 itens com cinco opções de resposta, que variam entre 0 (concordo em
absoluto) e 5 (Discordo em absoluto).
Para a elaboração da escala de avaliação da vulnerabilidade ao stresse, Vaz Serra (2000a)
efectuou um estudo, em que utilizou uma amostra constituída por 368 indivíduos da
população em geral, em que a escala inicial era constituída por 64 itens, tendo ficado
posteriormente reduzida a 23, tendo sido excluídos 41 itens. O autor continua referindo que
para definir as sub-escalas constituintes do instrumento de avaliação, procedeu a uma análise
factorial de componentes principais, seguida por uma rotação ortogonal do tipo varimax,
tendo obtido uma solução de 7 factores que explicam 57,5% da variância total, a que o autor
denominou de “perfeccionismo e intolerância à frustração” (10,7% da variância), “inibição e
dependência funcional” (10,5% da variância), “carência de apoio social” (7,6% da variância),
“condições de vida adversas” (7,6% da variância), “dramatização da existência” (7,2% da
variância), “subjugação” (7,2% da variância), e, por último a “deprivação de afecto e rejeição”
(6,6% da variância).
No que concerne aos indivíduos vulneráveis ou não vulneráveis ao stresse, Vaz Serra (2000)
acrescenta que “os indivíduos que ao preencherem uma escala 23 QVS obtenham um valor
15
igual ou superior a 43 devem ser considerados vulneráveis ao stresse” (303). Nesta linha de
pensamento, sempre que a utilização do instrumento de avaliação referido anteriomente for
efectuado em condições de prevalência de doença semelhantes àquelas descritas pelo autor
no estudo original, pode-se esperar que os indivíduos que obtenham uma pontuação superior
a 43 no instrumento de avaliação tenham 40,1% de hipóteses de ser doentes, enquanto que
aqueles que obtenham um resultado inferior a 43 possuem 85,3% de hipóteses de
efectivamente não serem doentes.
2.4. APRESENTAÇÃO DOS RESULTADOS
Para se proceder à análise estatística dos dados recolhidos e mais concretamente no que se
refere às técnicas inerentes à estatística descritiva, foram calculados os valores médios, os
valores mínimos e máximos, bem como o desvio padrão, quer do instrumento de avaliação da
vulnerabilidade ao stresse, quer de cada dimensão que o constitui, enquanto que no que se
refere à análise estatística inferencial foram utilizados o teste de Kruskal Wallis e o teste de t
de Student.
A análise estatística descritiva efectuada permitiu verificar que relativamente às alterações do
sono, a maioria dos sujeitos de estudo 75,2% (N= 121) refere não ter alterações do sono,
enquanto que 24,8% (N= 40) refere ter alterações do sono, sendo que daqueles que referem
ter alterações do sono, a insónia inicial é a alteração referida pela maioria dos sujeitos de
estudo, como se pode observar no quadro 1. No que diz respeito ao consumo de tabaco,
36,6% (N= 59) dos sujeitos de estudo referem consumir tabaco, enquanto que 63,4% (N= 102)
referem não consumir tabaco. Dos sujeitos de estudo que consomem tabaco, a maioria 46,9%
consome entre 10 a 20 cigarros por dia, conforme se pode observar pelo quadro 2.
Seguidamente, relativamente ao facto de praticarem exercício físico, a grande maioria 62,7%
(N=101) refere não praticar qualquer tipo de exercício físico, enquanto que somente 37,3%
16
(N=60) refere reservar algum do seu tempo para praticar exercício físico, conforme se pode
observar no quadro 3.
No que diz respeito à análise descritiva do instrumento de avaliação da vulnerabilidade ao
stresse, e, conforme se verifica pela análise do quadro 4, os valores médios encontrados foram
baixos para todas as sub-escalas constituintes do instrumento de avaliação da vulnerabilidade
ao stresse, enquanto que relativamente ao total do instrumento de avaliação, o valor médio
encontrado foi inferior a 43, valor acima do qual segundo Vaz Serra (2000) um individuo se
revela vulnerável ao stresse. Igualmente pertinente é o facto da grande maioria dos sujeitos de
estudo não apresentarem vulnerabilidade ao stresse, sendo que entre aqueles que
apresentam vulnerabilidade ao stresse, são os sujeitos de estudo com a categoria profissional
de TAS/TAE os que apresentam valores percentuais mais elevados, e por outro lado, são os
enfermeiros aqueles que apresentam os valores percentuais mais baixos (vide quadro 5).
A análise estatística inferencial efectuada permitiu-nos verificar, através do teste T de
diferença de médias, que relativamente ao género foram encontradas diferenças
estatisticamente significativas (F= 2,726; Sig= ,046), entre esta variável e a sub-escala
“Dramatização da existência” do instrumento de avaliação da vulnerabilidade ao stresse,
sendo que são os sujeitos de estudo do género feminino aqueles que tendem a dramatizar
com maior frequência a sua existência, uma vez que apresentam valores médios globais mais
elevados (Mas= 1,739; Fem= 1,991).
No que diz respeito à categoria profissional, através do teste de Kruskal Wallis, verificou-se a
existência de diferenças estatisticamente significativas quer para a totalidade do instrumento
de medida da vulnerabilidade ao stresse, quer para as dimensões “Condições de vida
adversas”, “Subjugação” e “Deprivação de afectos e rejeição”, em que os sujeitos de estudo
com a categoria profissional de TAE/TAS foram aqueles que apresentaram valores médios mais
elevados, quer para a totalidade do instrumento de medida, quer para as diferenças
17
dimensões em causa, como se pode observar no quadro 6. Quanto à variável consumo de
tabaco, verificou-se a existência de diferenças estatisticamente significativas entre a variável
em estudo e as sub-escalas “Subjugação” e “Deprivação de afecto e rejeição” do instrumento
de avaliação da vulnerabilidade ao stresse, em que pela análise das médias obtidas é possível
verificar que são os sujeitos de estudo que consomem tabaco aqueles que apresentam
diferenças estatísticas mais significativas (vide quadro 7), não tendo sido contudo, encontradas
diferenças estatisticamente significativas para a totalidade do instrumento de avaliação da
vulnerabilidade ao stresse.
Relativamente à variável alterações do sono, verificou-se a existência de diferenças
estatisticamente significativas nas dimensões “Perfeccionismo e intolerância à frustração”,
“Condições de vida adversas”, “Dramatização da existência”, “Subjugação”, e “Deprivação de
afectos e rejeição”, assim como para a totalidade do instrumento de medida do stresse, em
que através da análise das médias podemos verificar que são os sujeitos de estudo que
possuem alterações do sono aqueles que apresentam diferenças estatísticas mais significativas
(vide quadro 8). Por outro lado, igualmente pertinente, foi o facto de se ter verificado a
existência de diferenças estatisticamente significativas (F= ,792; Sig= ,011), entre o facto de
praticar exercício físico e a totalidade do instrumento de avaliação da vulnerabilidade ao
stresse, em que são os sujeitos de estudo que referem não praticar exercício físico aqueles que
apresentam valores médios de vulnerabilidade ao stresse mais elevados (Sim= 33,800; Não=
37,841).
3. CONCLUSÕES
O stresse é uma temática relevante e que tem vindo a ser progressivamente valorizado,
principalmente nas sociedades desenvolvidas ou em vias de desenvolvimento. No caso
particular dos profissionais de saúde, por se tratar de um conceito de importância nuclear na
18
saúde dos cuidadores, com importantes repercussões económicas nas entidades
empregadoras, os estudos relativos à temática em questão têm-se multiplicado nos últimos
anos. Não obstante, os estudos relativos aos profissionais de emergência médica préhospitalar são ainda diminutos, razão pela qual surge o nosso estudo, que pretende contribuir
para a compreensão e posterior aprofundamento do estudo relativo ao stresse nestes sujeitos
de estudo em particular, na medida em que pelas características inerentes à sua actividade
profissional, revelam-se sujeitos de estudo particularmente pertinentes para a compreensão
da vulnerabilidade ao stresse.
Nesta medida, através do estudo por nós efectuado foi possível verificar a existência de
valores médios de vulnerabilidade ao stresse baixos, inferiores a 43 para a totalidade dos
sujeitos de estudo, o que segundo o autor do instrumento de medida, nos permite afirmar que
de uma forma geral, os sujeitos de estudo não apresentam vulnerabilidade ao stresse. Todavia,
se avaliarmos a vulnerabilidade ao stresse mediante a categoria profissional, podemos verificar
que são os sujeitos de estudo com a categoria profissional de TAS/TAE aqueles que
apresentam maior percentagem de sujeitos vulneráveis ao stresse, o que nos parece
compreensível na medida em que são simultaneamente os sujeitos de estudo com a categoria
de TAS/TAE aqueles que apresentam valores médios mais elevados quer para a totalidade do
instrumento de medida da vulnerabilidade ao stresse, quer para as dimensões “Condições de
vida adversas”, “Subjugação” e “Deprivação de afectos e rejeição”.
Igualmente pertinente, é o facto de existirem diferenças estatisticamente significativas entre o
facto de possuírem alterações do sono e as dimensões “Perfeccionismo e intolerância à
frustração”, “Condições de vida adversas”, “Dramatização da existência”, “Subjugação”, e
“Deprivação de afectos e rejeição”, assim como para a totalidade do instrumento de medida
do stresse, na medida em que esta profissão é necessariamente desempenhada em regime de
trabalhos por turnos, fazendo com que as alterações de sono nos sujeitos de estudo sejam
19
mais acentuadas, e, consequentemente os seus níveis de vulnerabilidade ao stresse. Este
aspecto assume particular importância na medida em que os profissionais de emergência
médica pré-hospitalar, conduzem viaturas a velocidades acima da média e necessitam de
tomar decisões num curto espaço de tempo, decisões essas que frequentemente envolvem a
vida e a morte das pessoas a quem prestam cuidados de saúde.
Um aspecto interessante e que remete para futuras investigações, foi o facto de termos
verificado a existência de diferenças estatisticamente significativas entre a prática de exercício
físico e a totalidade do instrumento de avaliação da vulnerabilidade ao stresse, em que são os
sujeitos de estudo que referem não praticar exercício físico aqueles que apresentam valores
médios de vulnerabilidade ao stresse mais elevados. Consideramos que este aspecto é
importante e que carece de futura investigação, nomeadamente no que às estratégias de
coping utilizadas pelos profissionais de emergência médica diz respeito, na medida em que
poderia possibilitar a construção de uma modelo de gestão de stresse adequado e adoptado a
estes sujeitos de estudo em particular.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
Beaton, R. D. & Murphy, S. A. (1993). Sources of occupational stress among firefighter/EMTs
and firefighter/paramedics and correlations with job-related outcomes. Department of
Psychosocial Nursing, University of Washington, Seattle. Retirado a 22/03/2006 de
http://www.ncbi.nlm.nih.gov/
Bledsoe, B. E. et al. (1997). Paramedic Emergency Care. New Jersey: Brady Prentice Hall.
Christie, A. M. (1997). Balancing stress in work and at home. Emergency Medical Services, 5255.
20
Costa, P. (1990). A História da Rede do SAMU-INEM Português. In: Documentação do INEM.
Lisboa: Ministério da Saúde, 39-53.
Cydulka, R. K. et al. (1997). Stress Levels in EMS Personnel: a national Survey. Prehospital and
Disaster Medicine,12, 136-140.
Hill, M. M. & Hill, A. (2002)- Investigação por Questionário. Lisboa: Edições Sílabo.
INEM (2000). Curso Básico de Socorrismo (TAT). Sintra: Escola Nacional de Bombeiros, 18-22.
Lazarus, R. S. (1993). Why we should think of stress as a subset of emotion. In C. D. Spielberg
(coord.). Anxiety and Behavior. New York: Academic Press, 242-283.
Lazarus, R. S. (1999). Stress and Emotion: new synthesis. Springer Publishing Company.
Linton, J. C. et al. (1993). Helpning the helpners: the development of a critical incident stress
management team throught university community cooperation. Charsleston: Annals of
Emergency Medicine
Mizuno, M. et al. (2005). A Human Resource Management Approach to Motivation and Job
Stress in Paramedics. Japan: International Congress Series.
Naoki, O. (2005). Occupational Stress Among Japanese Emergency Medical Technicians: Hyogo
prefecture. Prehospital and Disaster Medicine, 20, 115-121.
O’Keefe, M. F. et al. (1998). Emergency Care. New Jersey: Brady Prentice Hall.
Ogden, J. (2004). Psicologia da Saúde. Lisboa: Climepsi Editores, 119-155, 285-311.
21
Oliveira, A. (2003). Estudo da influência de alguns factores de stress em profissionais das
viaturas médicas de emergência e reanimação. Revista de Investigação em Enfermagem, 8, 816.
Paúl, C. & Fonseca, A. (2001). Psicosociologia da Saúde. Lisboa: Climepsi editores, 59-75.
Silva, R.; Costa, P.; Gonçalves, T. (1987). Emergência Médica em Portugal: um longo caminho
que conheceu já etapas decisivas. Revista do Instituto Nacional de Emergência Médica, Ano III
(4), 2-11.
Ulrika, A. (2005). Ambulance Work: relationships between occupational demands, individual
characteristics and health-related outcomes. Faculty of Medicine, Swedin. Retirado a
23/03/2008 de http://www.diva-portal.org/umu/abstract.xsql?dbid=478
Vaz Serra, A. (1999). O Stress na vida de todos os dias. Coimbra: Adriano Vaz Serra, 5-28, 117437, 473-738.
Vaz Serra, A. (2000)a. A vulnerabilidade ao stress. Psicologia Clínica, 21, (4), 261-278.
Vaz Serra, A. (2000)b. Construção de uma escala para avaliar a vulnerabilidade ao stress.
Psicologia Clínica, 21, (4), 279-308.
22
Quadro 1: Frequências e percentagens dos diferentes tipos de alterações do sono
TIPO DE ALTERAÇÃO DE
SONO
FREQUÊNCIA
PERCENTAGEM
Insónia inicial
24
60%
Insónia intermédia
13
32,5%
Insónia terminal
3
7,5%
Quadro 2: Frequências e percentagens obtidas para a variável quantidade de tabaco
consumido
QUANTIDADE DE
CIGARROS
CONSUMIDOS
FREQUÊNCIA
PERCENTAGEM
1-10
22
34,4%
10-20
30
46,9%
>20
12
18,8%
Quadro 3: Frequências e percentagens obtidas para a variável praticar exercício físico
PRATICAR EXERCICIO
FISICO
FREQUÊNCIA
PERCENTAGEM
Sim
60
37,3%
Não
101
62,7%
23
Quadro 4: Médias, desvios padrão e valores mínimos e máximos obtidos no instrumento
utilizados para avaliar a vulnerabilidade ao stresse
SUB-ESCALAS
MÉDIA
DESVIO
PADRÃO
MÍNIMO
MÁXIMO
Perfeccionismo e
intolerância à
frustração
11,83
4,304
2
23
Inibição e
dependência
funcional
7,36
2,212
3
13
Carência de apoio
social
2,40
1,621
0,00
7
Condições de vida
adversas
2,92
2,163
0,00
8
Dramatização da
existência
5,39
2,044
0,00
10
Subjugação
10,96
2,523
5
18
Deprivação de afecto
e rejeição
3,75
2,246
0,00
10
Vulnerabilidade ao
stresse
36,33
9,820
12
62
24
Quadro 5: Percentagem de sujeitos de estudo vulneráveis e não vulneráveis ao stresse
mediante a sua categoria profissional
SUB-ESCALAS
NÃO VULNERÁVEL
AO STRESSE
VULNERÁVEL AO
STRESSE
TAS/TAE
25,5%
16,8%
Enfermeiro
28,6%
3,1%
Médico
21,1%
5%
Total
75,2%
24,8%
Quadro 6: Resultados obtidos no teste de Kruskal Wallis entre a categoria profissional e o
stresse
Médias
Chi-Square
Sig.
14,409
,001
20,967
,001
11,814
,003
13,840
,001
TAE/TAS= 94,56
Condições de vida adversas
E= 80,01
M= 60,25
TAE/TAS= 100,36
Subjugação
E= 64,18
M= 70,08
TAE/TAS= 95,26
Deprivação de afectos e
rejeição
E= 67,22
M= 74,65
TAE/TAS= 96,93
Vulnerabilidade ao stresse
E= 68,18
25
M= 70,77
Quadro 7: Resultados obtidos no teste t entre a variável consumo de tabaco e o stresse
Médias
F
t
df
Sig.
,128
3,006
159
,003
,696
2,928
159
,004
,018
1,781
159
,077
S= 1,779
Subjugação
Deprivação de afectos e
rejeição
Vulnerabilidade ao
stresse
N= 1,446
S= 1,474
N= 1,124
S= 38,135
N= 35,294
Quadro 8: Resultados obtidos no teste t entre a variável alterações do sono e o stresse
Médias
Perfeccionismo e
intolerância à frustração
Condições de vida
adversas
Dramatização da
existência
F
t
df
Sig.
,548
3,924
159
,001
,837
2,393
159
,018
1,448
3,222
159
,002
1,770
3,172
159
,002
,163
4,148
159
,001
S= 2,341
N= 1,849
S= 1,812
N= 1,347
S= 2,091
N= 1,702
S= 1,862
Subjugação
Deprivação de afectos e
rejeição
N= 1,471
S= 1,658
N= 1,118
26
Vulnerabilidade ao
stresse
S= 42,425
N= 34,322
,002
4,829
159
,001
Candidatura 2
Autores: Ana Paula Amaral & Adriano Vaz Serra
Título: Trauma na infância e saúde (física e mental) do adulto – Resultados de um estudo
27
Trauma na infância e saúde (física e mental) do adulto
- Resultados de um estudo -
Ana Paula Amaral
Escola Superior de Tecnologia da Saúde de Coimbra - Apartado 7006
3040-854 Coimbra - Portugal
Fax: 239 802 430; E-mail: [email protected]; Tlm: 962 920 668
AP Amaral (1); A Vaz Serra (2)
(1) Departamento de Ciências Médicas, Sociais e Humanas – Escola Superior de
Tecnologia da Saúde de Coimbra – Coimbra - Portugal
(2) Serviço de Psiquiatria – Hospitais da Universidade de Coimbra – Coimbra - Portugal
Resumo
Objectivos: 1) Investigar o impacto das experiências traumáticas precoces na saúde física e
mental do indivíduo; 2) Analisar a relação entre a ocorrência de experiências traumáticas
precoces e a vulnerabilidade ao stress, na idade adulta.
Metodologia: A amostra foi constituida por 552 adultos e recolhida na população em geral.
Foram utilizados instrumentos de auto-resposta com vista a avaliar a vulnerabilidade ao stress,
a saúde física e mental, assim como a ocorrência de experiências traumáticas na infância.
Resultados: Saúde mental - quanto maior for o impacto de um ambiente familiar agressivo, da
existência de alcoolismo nos pais e da ocorrência de violação, durante a infância, maior a
incidência de sintomas psicopatológicos, na idade adulta. Saúde física - a ocorrência de um
ambiente familiar agressivo e o abuso sexual constituem as experiências que apresentam
relações mais significativas com o estado de saúde actual e com a ocorrência de doença
crónica. Os resultados sugerem, igualmente, que quanto maior o impacto de uma ambiente
familiar agressivo durante a infância, maior será a vulnerabilidade ao stress, na idade adulta.
28
Conclusões: Os resultados permitem-nos concluir que, quanto maior o impacto das
experiências traumáticas vividas na infância, pior o estado de saúde física e mental e maior a
vulnerabilidade ao stress, na idade adulta.
Introdução
O estudo da influência das experiências precoces na saúde posterior do indivíduo tem
sido alvo, nos últimos anos, de crescente investigação. A revisão da literatura efectuada,
salienta a influência das experiências traumáticas precoces na responsividade ao stress (no
eixo hipótalamo-hipófise-suprarrenal [HPA] e nos aspectos estruturais do cérebro) e
consequentes efeitos na saúde.
No entanto, a investigação nesta temática não tem ocorrido apenas nas últimas
décadas, ela já existe há, aproximadamente, um século. O principal impulso decorreu da
comunicação de Freud, “Luto e Melancolia”, que sugeriu que a perda prematura de um dos
progenitores tornava o indivíduo mais vulnerável ao desenvolvimento da depressão em fase
posterior da vida, especialmente depois de experiências de luto. Porém, a influência crítica do
meio e dos comportamentos precoces foi, pela primeira vez, demonstrada claramente por
Harlow, nos seus estudos sobre vinculação com macacos rhesus. Os primeiros estudos com
primatas foram replicados com outras espécies nas décadas de 50 e 60. Mais tarde, teóricos da
vinculação colocaram a hipótese de um padrão inato de comportamento de vinculação, cuja
disrupção predisporia certas pessoas para a psicopatologia (Gutman & Nemeroff, 2003; Van
Praag, Kloet & Van Os, 2005).
Recentemente, a ênfase voltou a ser colocada no papel do comportamento social e da
adversidade precoce. É claro, actualmente, que as experiências precoces influenciam o
desenvolvimento a longo prazo dos sistemas cognitivos, comportamentais e neuroendócrinos
29
em várias espécies animais, incluindo a humana, o que vem a acentuar a importância de um
meio estável nos anos formativos.
De um modo geral, as experiências traumáticas precoces estão associadas a alterações
a longo termo no estilo de coping, regulação comportamental e emocional, responsividade
neuroendócrina ao stress, aptidão social, função cognitiva, neuroquímica e morfologia
cerebral, assim como, com os níveis de expressão dos genes do Sistema Nervoso Central (SNC),
referidos nas perturbações de ansiedade e humor (Sanchez, Ladd & Plotsky, 2001).
Estudos epidemiológicos têm revelado que as crianças maltratadas apresentam uma
maior incidência de depressão, distúrbio de stress pós-traumático, perturbação de
hiperactividade com défice de atenção e outras perturbações de comportamento (Gutman &
Nemeroff, 2003).
A maior parte dos estudos desenvolvidos incide sobre o impacto da adversidade
precoce na depressão, na idade adulta. Existe abundante investigação relativa ao impacto da
perda parental (morte ou separação), continuando por determinar se o impacto da separação
é directo, ou se é mediado através do conflito conjugal preexistente, que tantas vezes precede
a separação, ou por um posterior mau desempenho educativo, por parte dos pais.
Para além da perda parental, os maus tratos infantis (abuso físico, sexual, emocional e
negligência) têm recebido uma atenção considerável, em particular o abuso sexual. Os estudos
nesta área revelam que quanto mais grave for o abuso, mais longa a sua duração e maior a sua
frequência, mais pronunciada é a relação com a depressão na idade adulta (Van Praag et al.,
2005). As mulheres sujeitas a abuso físico ou sexual também mostram aumento das taxas de
utilização de serviços médicos para problemas físicos, na idade adulta (Newman et al., 2000). A
literatura tem demonstrado que o abuso sexual infantil aumenta o risco de uma variedade de
estados psicopatológicos na idade adulta, independentemente de um ambiente familiar
30
desfavorável, que parece ser, por si mesmo, um factor de risco de psicopatologia posterior
(Nelson et al., 2002).
As experiências adversas na infância aumentam o risco de depressão tardia através de
determinadas vias. Estas incluem mecanismos biológicos (desregulação a longo prazo do eixo
HPA), vulnerabilidades individuais (baixa auto-estima, locus de controlo externo, sentimentos
de abandono, estratégias de coping fracas), factores ambientais adversos (tais como, fraco
apoio social, baixo estatuto social, gravidez não desejada) e ocorrência de episódio depressivo
durante a adolescência (Piccinelli, 2000; Weiss, Longhurst & Mazure, 1999).
No âmbito da esquizofrenia, Read et al. (2001) salientam que para alguns adultos com
este diagnóstico, acontecimentos de vida adversos ou perdas e privações significativas podem,
não só, desencadear os sintomas esquizofrénicos, como também, se ocorrerem
suficientemente
cedo
ou
forem
suficientemente
severos,
originar
alterações
no
neurodesenvolvimento subjacentes à elevada sensibilidade aos eventos indutores de stress,
consistentemente encontrados em adultos com este diagnóstico.
Para além das repercussões da adversidade precoce na saúde física e mental, alguns
estudos em crianças também mostraram uma associação geral entre a desregulação do eixo
HPA e afectos e comportamentos negativos (Essex et al., 2002; Gunnar & Donzella, 2002).
Existe evidência de que as elevações do cortisol na infância podem ser acompanhadas por
interiorização de problemas, comportamentos de inibição extremos, circunspecção social e
isolamento (Ashman et al., 2002; Smider et al., 2002), que podem estar associados a um
aumento de risco de perturbações de ansiedade (Biederman et al., 2001).
Em síntese, diferentes linhas de investigação apoiam a ideia de que as experiências
precoces e as diferenças individuais podem ter impacto na resposta do eixo HPA, que por sua
vez terá efeitos no estado de saúde posterior (Turner-Cobb, 2005). A investigação sobre o
neurodesenvolvimento tem sugerido que, devido à extrema maleabilidade e sensibilidade do
31
cérebro à experiência na primeira infância, os acontecimentos traumáticos nos primeiros anos
de vida podem ter um impacto a longo termo no funcionamento emocional, comportamental,
cognitivo, social e fisiológico (Heim et al., 2000). Este impacto é tanto mais provável, quanto
mais severos, imprevisíveis ou persistentes forem os acontecimentos (Read et al., 2001).
Objectivos
O presente estudo tem dois objectivos principais:
1) Investigar o impacto das experiências traumáticas precoces na saúde física e mental
do indivíduo;
2) Analisar a relação entre a ocorrência de experiências traumáticas precoces e a
vulnerabilidade ao stress, na idade adulta.
Metodologia
Esta investigação enquadra-se nos estudos designados como “não experimentais”,
dada a não manipulação de variáveis. Ainda a referir que é um estudo transversal e que os
dados foram recolhidos na população em geral. Foi usado um método de amostragem
probabilistico ou aleatório, uma vez que os elementos que constituem a amostra foram
recolhidos ao acaso.
32
Quadro 1 – Características gerais da amostra (n=552)
Sexo
Homens
Mulheres
Estado Civil
Solteiro
Casado/união de facto
Divorciado/separado
Viúvo
Grau de Instrução
Básico
Secundário
Superior
Profissão
Elevada competência
Competência média
Operários especializados
Operários não especializados
Estudantes
n
%
153
399
27.7
72.3
314
213
22
3
56.9
38.6
4.0
.5
42
124
386
7.5
22.5
69.9
2
246
83
1
219
Média
.4
44.6
15.1
.2
39.7
DP
31.592
12.817
Idade
Conforme se pode verificar no Quadro 1, a amostra foi constituída por 552 indivíduos,
maioritariamente do sexo feminino (72.3%) e casados ou em união de facto (38.6%). O grau de
instrução mais frequente foi o superior (69.9%) e a actividade profissional dominante
enquadra-se no grupo das profissões de competência média (44.6%). As idades estavam
compreendidas entre 17 e 63 anos, com uma média de 31.592 e um desvio padrão de 12.817.
Foram utilizados os seguintes instrumentos de avaliação: 1) Escala de Vulnerabilidade
ao Stress (23 QVS); 2) Listagem de Circunstâncias de Vida; 3) Questionário de Saúde; 4)
Inventário de Sintomas Psicopatológicos (BSI). O segundo e o terceiro foram elaborados por
nós.
A escala 23 QVS é uma escala para avaliar a vulnerabilidade ao stress e foi construída e
aferida por Vaz Serra (2000). O autor começou por utilizar 64 questões das quais a análise
estatística utilizada permitiu escolher apenas as 23 questões apresentadas. Daí a designação
do instrumento pelo nome de 23 QVS (23 Questões para a avaliação da Vulnerabilidade ao
33
Stress). Nestas questões o indivíduo deverá classificar o seu grau de concordância, numa
escala tipo Likert que vai desde “concordo em absoluto” a “discordo em absoluto”, num total
de cinco categorias.
Criada a partir de uma amostra de 368 elementos da população em geral, a correlação
Par/Ímpar foi de .732 e o coeficiente de Spearman-Brown de .845, reveladores de uma boa
consistência interna. O coeficiente de Cronbach para todos os itens apresentou um valor de
.824. Este valor baixou sempre quando à escala foi retirado algum dos itens seleccionados,
evidenciando este facto a importância que cada um deles tem como contributo para uma boa
homogeneidade. A correlação de cada questão com a nota global foi positiva e altamente
significativa, o que sugere que os itens, no seu conjunto, correspondem a uma escala
unidimensional, capaz de definir um conceito. Os itens da escala revelaram ser sensíveis,
individualmente, a variações de grupos extremos, facto que testemunha a sua capacidade
discriminativa. A correlação teste-reteste foi realizada num mínimo de 30 e um máximo de 239
dias, com uma mediana de 49 dias. A correlação obtida foi de .816 (com n=105), valor
altamente significativo (p<.000) e abonatório de uma boa estabilidade temporal.
Uma análise factorial de componentes principais seguida de rotação varimax extraiu
sete factores ortogonais que explicam 57,5% da variância total. De acordo com o autor, a
composição de cada factor parece traduzir o seguinte significado: factor 1 – perfeccionismo e
intolerância à frustração; factor 2 – inibição e dependência funcional; factor 3 – carência de
apoio social; factor 4 – condições de vida adversas; factor 5 – dramatização da existência;
factor 6 – subjugação e factor 7 – deprivação de afecto e rejeição.
A escala está construída de modo a que, quanto mais elevada seja a pontuação obtida,
maior é a vulnerabilidade ao stress de dado respondente. Por último, um valor de 43, obtido
no preenchimento da 23 QVS, constitui o ponto de corte acima do qual uma pessoa se revela
vulnerável ao stress.
34
Elaborámos a Listagem de Circunstâncias de Vida (LCV) com base na análise de vários
instrumentos de avaliação de acontecimentos de vida. Destacamos dois dos intrumentos mais
usados nesta área, o PERI (Psychiatric Epidemiology Research Interview Life Events Scale;
Dohrenwend et al., 1978) e o LEDS (Life Events and Difficulties Schedule; Brown & Harris,
1989). O primeiro é um questionário de auto-resposta constituído por 102 questões, usado em
múltiplos estudos, desde 1978. O segundo é uma entrevista semi-estruturada, baseada no
investigador, uma das entrevistas mais usadas desde 1989.
Na elaboração da LCV procurámos conjugar algumas vantagens das tradicionais listas
de acontecimentos de vida, como por exemplo, a facilidade e rapidez de aplicação, com
algumas vantagens das entrevistas semi-estruturadas, como por exemplo, a avaliação do
impacto do acontecimento, embora neste caso a avaliação do impacto do acontecimento seja
feita pelo próprio indivíduo e não por um painel de classificadores (como é o caso nas
entrevistas). Revelou-se para nós importante avaliar a ocorrência, ou não, de circunstâncias
potencialmente indutoras de stress, em diferentes áreas da vida dos indivíduos, assim como o
seu impacto na vida do indivíduo. Com base na pesquisa bibliográfica efectuada e na nossa
experiência clínica somos de opinião que, mais importante que a ocorrência do
acontecimento, é o impacto que este tem na vida do indivíduo.
A LCV está subdividida em 12 áreas: escolar, profissional, relações afectivas, funções
parentais, família, residência, aspectos legais e criminais, aspectos económicos, actividade
social, saúde, diversos e experiências traumáticas que ocorreram na infância, num total de 83
circunstâncias. Em cada uma existe uma questão em aberto (Outro:…) para que o indivíduo
possa registar alguma ocorrência que não constasse da lista, o que perfaz um total de 95
questões. Para cada situação ou acontecimento é possível registar a sua ocorrência, ou não,
numa resposta do tipo “Sim – Não” e o seu grau de impacto, numa escala de tipo Likert:
35
“nenhum”, “pouco”, “moderado”, “muito” e “muitíssimo”. A ocorrência dos acontecimentos,
com excepção do último grupo, é relativa aos últimos três meses.
No presente estudo só foram consideradas as questões relativas às experiências
traumáticas que ocorreram na infância.
O Questionário de Saúde foi elaborado com o intuito de identificar pequenas
alterações na saúde física do indivíduo. Inicialmente, foi constituído por 18 questões que
permitiram ao indivíduo: 1) Avaliar qualitativamente o seu estado de saúde; 2) Identificar os
sintomas que mais o incomodaram e se esses sintomas o levaram a recorrer ao médico e a
tomar medicação; 3) Assinalar a existência de doença crónica e sua identificação; 4) Identificar
a ocorrência de alguma doença, no último ano; 5) Avaliar o seu estado de saúde no último ano
e nos últimos cinco anos.
Dado o tipo de informação a recolher, optámos por fazer algumas questões abertas
(relativas ao tipo de sintomas e ao tipo de doença). A restante maioria pressupõe uma
resposta dicotómica, o respondente tem de escolher entre duas respostas antagónicas, neste
caso, do tipo “Sim – Não”.
O Inventário de Sintomas Psicopatológicos foi traduzido e adaptado para a população
portuguesa por Canavarro (1999), tendo sido a versão original construída por Derogatis (1982)
e designada por Brief Symptom Inventory (BSI). É um inventário de auto-resposta com 53 itens,
onde o indivíduo deverá classificar o grau em que cada problema o afectou durante a última
semana, numa escala de tipo Likert que vai desde “Nunca” a “Muitíssimas vezes”.
Avalia sintomas psicopatológicos em termos de nove dimensões de sintomatologia e
três índices globais, o Índice Geral de Sintomas (IGS), o Total de Sintomas Positivos (TSP) e o
Índice de Sintomas Positivos (ISP). A fórmula de cálculo do IGS tem simultaneamente em conta
o número de sintomas psicopatológicos e a sua intensidade. O TSP reflecte o número de
36
sintomas assinalados e o ISP é uma medida que combina a intensidade da sintomatologia com
o número de sintomas presentes. A simples leitura dos índices globais permite avaliar, de
forma geral, o nível de psicossintomatologia apresentado.
As nove dimensões descritas por Derogatis (1982) são: Somatização, ObsessõesCompulsões, Sensibilidade Interpessoal, Depressão, Ansiedade, Hostilidade, Ansiedade Fóbica,
Ideação Paranóide e Psicoticismo.
Os estudos psicométricos efectuados por Canavarro (1999) revelaram que a versão
portuguesa deste inventário apresenta níveis adequados de consistência interna para as nove
escalas, com valores de alfa entre .621 (Psicoticismo) e .797 (Somatização) e coeficientes testereteste entre .63 (Ideação paranóide) e .81 (Depressão). Foram igualmente encontrados dados
abonatórios da validade do instrumento, através de correlações de Spearman entre as notas
das nove dimensões de sintomatologia e das três notas globais, sendo todas as correlações
significativas para p<.001. A validade discriminativa do BSI foi também confirmada através
duma análise discriminante de função, a qual se revelou estatisticamente significativa na sua
globalidade, sendo todos os F altamente significativos.
Canavarro (1999) tendo verificado que todas as pontuações obtidas no BSI permitiam
discriminar entre indivíduos perturbados emocionalmente e indivíduos pertencentes à
população geral, estabeleceu um ponto de corte entre os dois grupos, utilizando o ISP e
obedecendo à fórmula de Fisher para o ponto de corte. Com base nos resultados obtidos
refere que, com uma nota no ISP do BSI superior ou igual a 1.7, é provável encontrar pessoas
perturbadas emocionalmente e, abaixo desse valor, indivíduos da população geral.
De um modo geral, o BSI é um bom indicador de sintomas do foro psicopatológico,
assim como, um bom discriminador da saúde mental.
37
Resultados
Passamos agora a apresentar os resultados obtidos. Foi considerado o grau de impacto
com que as experiências traumáticas ocorreram, sempre que ocorreram, e a sua relação com a
saúde física e mental. Utilizou-se o coeficiente de correlação de Spearman.
No Quadro 2 pode analisar-se as relações existentes entre o grau de impacto das
experiências traumáticas precoces e a saúde física (QS) e mental (IGS e ISP).
Os resultados obtidos sugerem que quanto maior é o grau de impacto das experiências
traumáticas precoces avaliadas (com excepção de ter pais alcoólicos) pior é a saúde física. No
que diz respeito à saúde mental mantém-se a relação inversa e significativa com as
experiências traumáticas precoces, com excepção para a ocorrência de maus tratos.
Quadro 2: Experiências traumáticas precoces e estado de saúde global
QS
IGS
ISP
Maus tratos
Abuso sexual
Violação
Ambiente
agressivo
Pais
alcoólicos
rho
.191**
.130**
.122**
.197**
.081
p
.000
.006
.009
.000
.087
rho
.089
.071
.093*
.194**
.103*
p
.059
.135
.049
.000
.030
rho
.072
.112*
.097*
.199**
.128**
p
.131
.018
.040
.000
.007
* p<.05; ** p<.01
38
Relativamente aos índices do BSI (IGS e ISP), os resultados sugerem que existem
relações significativas entre estes dois índices e o facto de os indivíduos terem sido violados1,
terem vivido em ambiente familiar hostil ou terem tido pais alcoólicos. O ISP relaciona-se,
também, com a situação de abuso sexual.
Conforme se verifica no Quadro 3, existem algumas relações significativas entre as
dimensões do BSI e as experiências traumáticas precoces. Destaca-se o impacto de viver num
ambiente familiar agressivo, que apresenta relações significativas com todas as dimensões
psicopatológicas avaliadas.
Quadro 3: Experiências traumáticas precoces e saúde mental
Maus tratos
Abuso sexual
Violação
Ambiente
agressivo
Pais
alcoólicos
rho
.123**
.050
.070
.158**
.040
P
.009
.289
.141
.001
.399
Obsessões/
rho
.067
.035
.078
.132**
.088
compulsões
P
.156
.463
.099
.005
.065
Sensibilidade
interpessoal
rho
.057
.047
.091
.178**
.081
P
.233
.326
.054
.000
.087
rho
.095*
.070
.111*
.227**
.137**
P
.044
.140
.019
.000
.004
rho
.079
.084
.098*
.187**
.069
P
.097
.076
.039
.000
.148
rho
.063
.114*
.107*
.145**
.130**
P
.187
.016
.024
.002
.006
Somatização
Depressão
Ansiedade
Hostilidade
1
Distinguimos “abuso sexual” de “violação”, dado que outras formas de abuso sexual podem ocorrer na infância, para além da
violação.
39
Ansiedade fóbica
Ideação paranóide
Psicose/psicoticismo
rho
.066
.037
.023
.106*
.018
P
.163
.430
.633
.025
.704
rho
.042
.065
.044
.139**
.046
P
.380
.171
.354
.003
.334
rho
.055
.021
.055
.178**
.091
P
.247
.666
.251
.000
.055
* p<.05; ** p<.01
No que diz respeito às dimensões psicopatológicas, a depressão e a hostilidade são as
que apresentam relações significativas com um maior número de experiências traumáticas
precoces (ocorrência de maus tratos, abuso sexual, violação, ambiente familiar agressivo e a
presença de pais alcoólicos).
A ansiedade apresenta relações significativas com a ocorrência de violação e ambiente
familiar agressivo. A somatização relaciona-se com a ocorrência de maus tratos e ambiente
familiar agressivo. Por último, a ansiedade fóbica, a ideação paranóide e o psicoticismo
relacionam-se, apenas, com a existência de um ambiente familiar agressivo.
Estas relações significam que, quanto maior o impacto destas experiências precoces,
pior a saúde mental do indivíduo, na actualidade.
Em resumo (Quadro 4), o grau de impacto de um ambiente familiar agressivo na
infância/adolescência condiciona, de forma negativa, os vários estados de saúde mental
avaliados, ou seja, quanto maior o impacto da sua ocorrência, pior o estado de saúde mental
do indivíduo, na actualidade.
40
Quadro 4: Experiências traumáticas precoces e saúde mental (síntese)
Maus tratos
Somatização
Abuso sexual
Violação
Ambiente
agressivo
Obsessões/compulsões
Sensibilidade interpessoal
Depressão
Ansiedade
Hostilidade
Pais alcoólicos
Ansiedade fóbica
Ideação paranóide
Psicose/psicoticismo
Os resultados sugerem, também, que a depressão e a hostilidade são as dimensões
associadas a mais experiências traumáticas precoces, ou seja, a ocorrência de variadas
experiências traumáticas precoces facilitará o aparecimento de depressão e hostilidade, na
idade adulta.
No que diz respeito à percepção que o doente tem do seu estado de saúde, no último
ano e nos últimos cinco anos, esta é tanto pior quanto maior o impacto dos traumas precoces,
com excepção da presença de pais alcoólicos e da ocorrência de violação (apenas para a
percepção de saúde nos últimos 5 anos). A existência de doença crónica está relacionada com
o impacto de determinadas experiências precoces (abuso sexual, violação, ambiente familiar
agressivo) (Quadro 5).
41
Quadro 5: Experiências traumáticas precoces e estado de saúde geral
Doença Crónica
Saúde – 5 anos
Maus tratos
Abuso sexual
Violação
Ambiente
Agressivo
Pais
alcoólicos
Rho
.024
.114*
.093*
.097*
.047
P
.618
.015
.048
.040
.319
.123**
.101*
.082
.184**
.039
.009
.033
.083
.000
.415
.189**
.136**
.125**
.199**
.081
.000
.004
.008
.000
.087
Rho
P
Saúde - último ano
rho
p
* p<.05; ** p<.01
Os resultados sugerem (Quadro 6) que à existência de determinadas experiências
traumáticas precoces está associada uma maior vulnerabilidade ao stress, ou seja, verifica-se
que existe uma maior vulnerabilidade ao stress na idade adulta, quanto maior foi o impacto de
viver num ambiente familiar agressivo na infância.
No entanto, condições como o perfeccionismo e intolerância à frustração (F1), a
inibição e dependência funcional (F2) e a dramatização da existência (F5) não dependem do
grau de impacto sentido em experiências traumáticas precoces.
De facto, a adversidade de viver em ambiente familiar agressivo é a circunstância de
vida mais relacionada com os estados de vulnerabilidade ao stress, verificando-se que quanto
maior o impacto que aquela circunstância teve, maior a vulnerabilidade ao stress, o factor 3
(carência de apoio social), o factor 4 (condições de vida adversas), o factor 6 (subjugação da
existência) e o factor 7 (deprivação de afecto e rejeição).
42
Por outro lado, o impacto da ocorrência de maus tratos na infância/adolescência está
associado à deprivação de afecto e rejeição (F7), enquanto o impacto de ter ocorrido violação
aumenta o factor condições de vida adversas (F4) e, por último, um maior impacto sentido
pelo facto de terem tido pais alcoólicos está relacionado com uma maior carência de apoio
social (F3), no momento actual.
Quadro 6: Experiências traumáticas precoces e vulnerabilidade ao stress
Maus tratos
Abuso sexual
Violação
Ambiente
agressivo
Pais alcoólicos
rho
.069
.040
.048
.151**
.042
p
.144
.404
.312
.001
.380
F1 - Perfeccionismo e
intolerância à
frustração
rho
.016
.043
.007
.052
-.002
p
.738
.359
.878
.272
.969
F2 - Inibição e
dependência funcional
rho
-.042
-.024
-.024
.018
-.046
p
.381
.619
.616
.704
.334
rho
.073
.056
.076
.105*
.121
p
.122
.238
.108
.026
.011*
rho
.063
.049
.101*
.141**
.089
p
.183
.302
.032
.003
.060
rho
.059
.000
.035
-.047
-.058
Vulnerabilidade ao
stress
F3 - Carência de apoio
social
F4 - Condições de vida
adversas
F5 - Dramatização da
43
existência
F6 - Subjugação da
existência
F7 - Deprivação de
afecto e rejeição
p
.214
.997
.463
.325
.225
rho
.037
.033
.030
.101*
-.007
p
.430
.481
.522
.032
.889
rho
.107*
.085
.079
.189**
.057
p
.023
.074
.093
.000
.232
* p<.05; ** p<.01
Em síntese, da análise do Quadro 7 destaca-se que, quanto maior o impacto sentido
por se ter vivido num ambiente familiar agressivo, na infância/adolescência, maior a
vulnerabilidade ao stress, no momento actual.
Quadro 7: Experiências traumáticas precoces e vulnerabilidade ao stress (síntese)
Maus tratos
Abuso
sexual
Violação
Ambiente
agressivo
Pais
alcoólicos
Vulnerabilidade ao stress
F1 - Perfeccionismo e intolerância à frustração
F2 - Inibição e dependência funcional
F3 - Carência de apoio social
F4 - Condições de vida adversas
44
F5 - Dramatização da existência
F6 - Subjugação da existência
F7 - Deprivação de afecto e rejeição
Discussão e conclusões
Os resultados obtidos sugerem a existência de relações estatisticamente significativas
entre as experiências traumáticas precoces e o estado de saúde do indivíduo na idade adulta.
Em relação com a saúde mental, observámos que, quanto maior o impacto da situação
de violação, ambiente familiar agressivo e a existência de alcoolismo nos pais, no decurso da
infância/adolescência do indivíduo, pior é a sua saúde mental, na idade adulta. Na relação com
as várias dimensões da saúde mental, o ambiente familiar agressivo destaca-se como a
experiência mais relevante.
No que diz respeito à saúde física, foi possível analisar a relação com o estado de
saúde percepcionado nos últimos três meses, no último ano, nos últimos cinco anos e com a
existência de doença crónica. Os resultados indicam que quanto maior é o grau de impacto das
experiências traumáticas precoces, em concreto: abuso físico, sexual e ambiente familiar
agressivo, pior é a saúde física, nos últimos três meses, ou seja, pior o estado de saúde actual.
A percepção que o doente tem do seu estado de saúde, no último ano, é tanto pior quanto
maior o impacto dos traumas precoces (abuso físico e sexual, e ambiente familiar agressivo).
Relativamente à percepção do estado de saúde nos últimos cinco anos, as experiências
traumáticas precoces que se revelaram significativas são: abuso físico, sexual e ambiente
familiar agressivo. A existência de doença crónica está relacionada com o impacto de
determinadas experiências precoces (abuso sexual e ambiente familiar agressivo). Em síntese,
45
o abuso sexual e o ambiente familiar agressivo são as experiências precoces mais relevantes,
uma vez que se relacionam com o estado de saúde percepcionado actualmente, há 1 ano, há 5
anos e com a existência de doença crónica.
Devemos ainda acrescentar que, quanto maior é o impacto de viver num ambiente
familiar agressivo, na infância, maior é a vulnerabilidade de um indivíduo ao stress, no
momento presente.
A literatura é concordante com os resultados obtidos.
Um estudo de McCauley et al. (1997), com aproximadamente 2000 mulheres,
demonstrou que a história de abuso sexual ou físico na infância (sem violação ou violência
física na idade adulta) está fortemente relacionada com um aumento de sintomatologia
depressiva e ansiosa, incluindo suicídio, na idade adulta, quando comparadas com um grupo
de controlo de mulheres sem história de abuso na infância.
Hammen, Henry e Daley (2000) realizaram um estudo longitudinal de dois anos,
procurando testar se as mulheres que tinham vivido uma ou mais adversidades significativas
na infância (violência familiar, psicopatologia parental, alcoolismo, entre outras)
desenvolveriam mais facilmente uma reacção depressiva, perante factores de stress. Os
resultados confirmaram esta hipótese, sugerindo a existência de mecanismos de sensibilização
biológica e psicológica aos factores de stress.
Num estudo realizado por Newman et al. (2000), os autores concluíram que as
mulheres sujeitas a abuso físico ou sexual, na infância, mostravam um aumento das taxas de
utilização de serviços médicos para problemas físicos, na idade adulta. Os estudos têm
revelado que quanto mais grave o abuso (físico, sexual, emocional, negligência), mais longa a
sua duração e maior a sua frequência, mais pronunciada é a sua relação com a depressão na
idade adulta (Van Praag et al., 2005). Na presente investigação verifica-se, também, que a um
pior estado de saúde está associado um maior grau de impacto percebido, relativamente a
estas experiências.
46
McLewin e Muller (2006) concluíram num estudo realizado com 956 indivíduos, que os
diferentes subtipos de maus tratos avaliados (abuso psicológico, abuso físico, violência
doméstica e abuso sexual) estão associados a níveis mais elevados de psicopatologia.
Considerando o tipo de maus tratos, o abuso psicológico emerge como o preditor mais
significativo de psicopatologia.
Considerando os resultados obtidos neste estudo e os dados da literatura, não
podemos deixar de salientar a importância da realização de intervenções clínicas atempadas,
em indivíduos que viveram experiências traumáticas precoces, não só com vista à minimização
do impacto emocional no momento, mas também, como medidas preventivas de doença
mental posterior.
Bibliografia
Ashman, S. B.; Dawson, G.; Panagiotides, H.; Yamada, E.; Wilkinson, C. W. (2002). Stress
hormone levels of children of depressed mothers. Development and Psychopathology,
14, 333-349.
Biederman, J.; Hirshfeld-Becker, D. R.; Rosenbaum, J. F. et al. (2001). Further evidence of
association between behavioral inhibition and social anxiety in children. American
Journal Psychiatry, 158, 1673-1679.
Brown, G. W. & Harris, T. (1989). Life events and ilness. New York: Guilford Press.
Canavarro, M. C. (1999). Inventário de Sintomas Psicopatológicos – BSI. In M. R. Simões, M.
Gonçalves e L. Almeida (Eds.), Testes e Provas Psicológicas em Portugal (Vol. II, pp. 95109). Braga: Sistemas Humanos e Organizacionais.
Derogatis, L. R. (1982). BSI: Brief Symptom Inventory. Minneapolis: National Computers
Systems.
Dohrenwend, B. S.; Krasnoff, L.; Askenasy, A. R.; Dohrenwend, B. P. (1978). Exemplification of a
method for scaling life events: The PERI life events scale. Journal of Health and Social
Behaviour, 19, 205-229.
47
Essex, M. J.; Klein, M. H.; Cho, E.; Kalin, N. H. (2002). Maternal stress beginning in infancy may
sensitize children to later stress exposure: effects on cortisol and behaviour. Biological
Psychiatry, 52, 776-784.
Gunnar, M. R. & Donzella, B. (2002). Social regulation of the cortisol levels in early human
development. Psychoneuroendocrinology, 27, 199-220.
Gutman, D. A & Nemeroff, C. B. (2003). Persistent central nervous system effects of an adverse
early environment: clinical and preclinical studies. Physiology & Behavior, 79, 471-478.
Hammen, C.; Henry, R.; Daley, S. E. (2000). Depression and sensitization to stressors among
young women as a function of childhood adversity. Journal of Consulting and Clinical
Psychology, 68 (5), 782-787.
Heim, C.; Newport, D. J.; Heit, S. et al. (2000). Pituitary-adrenal and autonomic responses to
stress in women after sexual and physical abuse in childhood. Journal of the American
Medical Association, 284, 592-597.
McCauley, J.; Kern, D. E.; Kolodner, K. et al. (1997). Clinical characteristics of women with a
history of childhood abuse: unhealed wounds. Journal of American Medical
Association, 277, 1362-1368.
McLewin, L. A. & Muller, R. T. (2006). Attachment and social support in the prediction of
psychopathology among young adults with and without a history of physical
maltreatment. Child Abuse & Neglect, 30, 171-191.
Nelson, E. C.; Heath, A. C.; Madden, P. A. F. et al. (2002). Association between sef-reported
childhood sexual abuse and adverse psychological outcomes. Archives of General
Psychiatry, 59, 139-145.
Newman, M. G.; Clayton, L.; Zuellig, A. et al. (2000). The relationship of childhood sexual abuse
and depression with somatic symptoms and medical utilization. Psychological
Medicine, 30, 1063-1077.
Piccinelli, M. (2000). Gender differences in depression. The British Journal of Psychiatry, 177,
486-492.
Read, B; Perry, B.D.; Moskowitz, A; Connolly, J. (2001). The contribution of early traumatic
events to schizophrenia in some patients: a traumagenic neurodevelopmental model.
Psychiatry, 64 (4), 319-345. Retrevied January 20, 2001, from ProQuest database.
Sanchez, M. M.; Lad, C. O.; Plotsky, P. M. (2001). Early Averse experience as a developmental
risk factor for later psychopathology: evidence from rodent and primate models.
Development and Psychopathology, 13 (3), 419-49.
Smider, N. A.; Essex, M. J.; Kalin, N. H.; Buss, K. A.; Klein, M. H.; Davidson, R. J.; Goldsmith, H. H.
(2002). Salivary cortisol as a predictor of socioemotional adjustment during
kindergarden: A prospective study. Child Development, 73, 75-92.
48
Turner-Cobb, J. M. (2005). Psychological and stress hormone correlates in early life: A key to
HPA-axis dysregulation and normalisation. Stress, 8 (1), 47-57.
Van Praag, H. M.; Kloet, R.; Van Os, J. (2005). Stress, o Cérebro e a Depressão. Lisboa: Climepsi
Editores.
Vaz Serra, A. (2000). Contribuição de uma escala para avaliar a vulnerabilidade ao stress: a 23
QVS. Psiquiatria Clínica, 21 (4), 279-308.
Weiss, E. L.; Longhurst, J. G.; Mazure, C. M. (1999). Childhood sexual abuse as a risk factor for
depression in women: psychosocial and neurobiological correlates. American Journal
Psychiatry, 156, 816-828.
49
Candidatura 3
Autores: Fernanda Mishima & Valéria Barbieri
Título: Saúde feminina: considerações do psicodiagnóstico interventivo na obesidade
50
SAÚDE FEMININA: CONSIDERAÇÕES DO PSICODIAGNÓSTICO INTERVENTIVO NA OBESIDADE
Fernanda Kimie Tavares Mishima – [email protected]
Valéria Barbieri – [email protected]
Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto
Universidade de São Paulo
Brasil
RESUMO
Considerada de alta incidência e gravidade, especialmente por suas conseqüências físicas e
psíquicas, a obesidade é mais estudada em sua vertente biológica e genética, apesar da
comprovação do aspecto emocional envolvido. Somado aos riscos advindos de tal patologia,
muitos obesos acabam por buscar a cirurgia bariátrica como alternativa, subjugando seus
riscos e conseqüências. Diante do aumento crescente de tal conduta terapêutica,
especialmente em relação às mulheres, é relevante destacar a necessidade de prevenção e
outras possibilidades de tratamento, levando em consideração o aspecto emocional. Assim,
este estudo objetiva apresentar uma forma de tratamento psicoterápico para mulheres
obesas, por meio do Psicodiagnóstico Interventivo (PI), e averiguar suas possibilidades de
auxílio, para que elas não atinjam o peso suficiente para se submeter à cirurgia bariátrica, no
intuito de evitar o procedimento cirúrgico e possíveis conseqüências que possam advir de tal
alternativa. O atual trabalho traz um estudo de caso realizado com uma mulher obesa grau I
(IMC = 32 kg/m²), de 32 anos de idade, que já havia tentado emagrecer por meio de dietas e
exercícios físicos. Foram realizados entrevista inicial e aplicação do Teste do Desenho da Figura
Humana (DFH) e Teste de Apercepção Temática (TAT), com intervenções e interpretados de
forma descritiva pelo método da livre inspeção, segundo um referencial psicanalítico
winnicottiano. Durante o PI, notou-se que a paciente possuía uma auto-imagem negativa, com
51
sentimentos de desvalorização e inutilidade em sua função de mulher e mãe, além de
dificuldade nas relações interpessoais e restrição na expressão do self. Ao final, a paciente foi
capaz de conhecer aspectos do seu mundo interno, e, assim, integrar os afetos, especialmente
os relativos à própria sexualidade, sentindo-se mais tranqüila e confiante. Além disso, houve
perda de peso, comprovando a importância de se conhecer os aspectos emocionais
relacionados à obesidade, e sugerindo uma nova forma de tratamento.
Palavras-chave: obesidade; psicodiagnóstico interventivo; mulheres; técnicas projetivas.
INTRODUÇÃO
A obesidade é uma doença multifatorial crônica, gerada pelo acúmulo exagerado de
gordura no organismo, acarretando prejuízos para a saúde física e mental (Coutinho, 1999).
Atualmente, ela desponta como uma doença de alta prevalência no mundo todo. Em relação
às suas causas, os estudos destacam especialmente os aspectos biológicos, genéticos e
ambientais, incluindo, neste último, o modelo alimentar que a família transmite para a criança
(Halpern, Rodrigues & Costa, 2004; Bernardi, Cichelero & Vitolo, 2005). Dessa forma, há pouca
relevância aos aspectos psicológicos, mesmo sendo uma patologia multifatorial.
Ao se considerar os fatores psicológicos no tratamento da obesidade, sugerem-se
apenas alternativas comportamentais e mudança dos padrões alimentares, desconsiderando
os psicodinamismos individuais e familiares dos indivíduos obesos (Nunes, Figueiroa & Alves,
2007; Duchesne, Appolinario & Range, 2007).
No mundo contemporâneo, a obesidade atinge grande contingente populacional,
superando diversas patologias. Grundy (1998) aponta para o fato de que tal doença será uma
das principais causas de morte entre os indivíduos americanos, chegando a substituir o cigarro.
A Organização Mundial de Saúde (2000 conforme citado por Busse, 2004) afirma que,
atualmente, no mundo todo, existem aproximadamente 300 milhões de adultos e 18 milhões
de crianças obesas ou acima do peso.
52
No Brasil, os índices de indivíduos obesos ou com sobrepeso atingem 38% da
população adulta (Loli, 2000), sendo que a obesidade está em 8,9% dos homens e 13,1% das
mulheres, segundo dados do IBGE (2005). Já nos Estados Unidos essa doença afeta um terço
da população adulta e adolescente, despontando como o problema de saúde de maior
prevalência no país. Nesse sentido, caso não haja nenhum tipo de intervenção, prevê-se que
em 2035 90% da população americana estará com excesso de peso (Fisberg, 2005).
Paralelo ao seu crescimento exagerado há o surgimento de graves conseqüências,
tanto em seus aspectos físicos (como doenças cardiovasculares, hipertensão arterial,
diabetes), psicológicos (isolamento, vergonha, insegurança) ou psicossociais (baixo
desempenho escolar e social, baixa auto-estima, auto-imagem prejudicada). Por este motivo,
vários países apresentam sua economia abalada por gastos excessivos no tratamento dessa
doença (Monteiro & Victora, 2005).
Para Ades e Kerbauy (2002), outras conseqüências graves e prejudiciais ao indivíduo
obeso são depressão, comportamento de esquiva social, dificuldade em se inserir na cultura e
ambientes sociais, preconceito nas escolas e dificuldades em relação à qualidade de vida,
como baixa auto-estima.
Logo, diante do aumento crescente da obesidade nos últimos anos, é importante
considerar as conseqüências dessa situação na saúde pública. Uma das maneiras mais
procuradas para a perda de peso, especialmente pelo nível de rapidez, é a realização da
cirurgia bariátrica, desconsiderando as implicações resultantes de tal ato. Para que o paciente
possa ser submetido a tal cirurgia ele precisa apresentar obesidade grau III ou mórbida.
Para a população adulta, Nunes, Appolinario, Galvão e Coutinho (2006) apresentam as
seguintes faixas de Índice de Massa Corporal (IMC) e sua significação:
•
IMC < 18,5: abaixo do peso normal
•
18,5 < IMC < 24,9: peso normal
53
•
25 < IMC < 29,9: sobrepeso
•
30 < IMC < 34,9: obesidade grau I
•
35 < IMC < 39,9: obesidade grau II
•
40 < IMC: obesidade grau III
De acordo com dados de pesquisa científica, a obesidade grau III (mórbida) é uma das
doenças que mais mata no mundo, pois sua taxa de mortalidade é 12 vezes maior em adultos
entre 25 a 40 anos quando comparada com indivíduos de peso normal. Nesses pacientes
geralmente a abordagem clínica é ineficaz, sendo a cirurgia bariátrica uma forte opção de
tratamento (Coutinho & Benchimol, 2002). São candidatos ao tratamento cirúrgico os
pacientes com Índice de Massa Corporal (IMC) > 40 kg/m² ou IMC > 35 kg/m² com a presença
de co-morbidades (diabete tipo 2, hipertensão arterial, dislipidemia, artropatias, apnéia do
sono). No entanto, Coutinho (1999) afirma que para que o paciente possa realizar a cirurgia é
necessário um mínimo de cinco anos de evolução da obesidade, sem êxito em um tratamento
convencional realizado com profissionais qualificados.
Mesmo com as grandes vantagens trazidas pela cirurgia bariátrica, tais como perda de
peso, redução das co-morbidades relacionadas à obesidade e melhoria da qualidade de vida,
há também diversas complicações. Dentre as mais comuns é possível citar a ulceração gástrica,
náuseas, vômitos, infecção da ferida operatória, pneumonia e deiscência de sutura, além da
mais rara, a embolia pulmonar. Após o período pós-operatório, também é possível pensar na
colelitíase, má absorção de vitaminas e sais minerais e diarréia (Nunes, Appolinario, Galvão &
Coutinho, 2006).
Apesar da intensa busca pela cirurgia como única saída para o tratamento da
obesidade mórbida, é de suma importância considerar o tratamento convencional em primeiro
lugar, especialmente nos casos de início recente e sem antecedentes de tratamentos
adequados prévios. Mesmo assim, a taxa de insucesso do tratamento convencional para
obesos mórbidos é muito elevada, chegando a atingir 90% dos casos. Atualmente, a cirurgia é
54
a alternativa que apresenta melhores resultados, mas, caso não haja um acompanhamento
clínico, nutricional e psicológico rigorosos, há grandes riscos de complicações a curto, médio e
longo prazo (Nunes, Appolinario, Galvão & Coutinho, 2006).
O tratamento para a obesidade continua produzindo resultados insatisfatórios,
especialmente pelo mau uso dos recursos terapêuticos e aplicação de estratégias equivocadas
(CONSENSO LATINO AMERICANO, 1998).
Ao lado do desenvolvimento de planos terapêuticos mais eficazes, também é preciso
refletir sobre medidas de prevenção a fim de conter o surgimento de casos novos, além de
evitar o aumento da incidência de tal doença.
Quando se fala em tratamento da obesidade, há intenso foco em relação aos
comportamentos dos indivíduos, geralmente subjugando seu contexto psicossocial e
negligenciando sua compreensão psicológica profunda, como ocorre com tantas outras
patologias. Essa compreensão parcial do problema pode responder pela constatação da pouca
eficácia dos tratamentos.
Presentemente, com o intuito de tratar a obesidade nos indivíduos adultos existem
técnicas de intervenções médicas e comportamentais, usadas para que a pessoa possa perder
peso em um tempo determinado, dentre elas a terapia familiar, para que haja uma
modificação no estilo de vida e no comportamento alimentar dessas pessoas (Kiess et al.,
2001). Nessa direção, muitos pesquisadores salientam que o tratamento multidisciplinar tem
sido considerado o mais efetivo (Votruba, Horvitz & Shoeller, 2000; Sothern et al., 1999;
Reiterer, SudI & Mayer, 1999), contudo, ele é o menos utilizado.
Na tentativa de manter o peso perdido por mais tempo, muitos indivíduos fracassam.
Nesse sentido, Ades e Kerbauy (2002) destacam que a perda de peso permanece quando
acontece na infância e na adolescência. Epstein, Valoski, Wing e McCurley (1994) realizaram
um estudo longitudinal investigando os tratamentos para a perda de peso. Eles observaram
que, após 10 anos de tratamento, 34% dos participantes que iniciaram o estudo com as idades
55
de 6 a 12 anos diminuíram seu sobrepeso em 20% ou mais, e que 30% não estavam mais
obesos. Loli (2000) afirma que no caso de indivíduos que fracassam na manutenção dos
resultados a longo prazo do tratamento, a dimensão psíquica torna-se relevante, apesar de
pouco explorada.
De acordo com pesquisa realizada na base de dados Medline, Eric, Scielo e Lilacs, nos
últimos 20 anos, com as palavras-chaves “obesity and treatment”, há muitas referências em
relação às mudanças comportamentais nos padrões alimentares (dietas e tratamento
comportamental) ou ainda, quando há excesso de peso (obesidade mórbida), alta procura pela
cirurgia bariátrica. Não há estudos que tratam da dificuldade dos indivíduos obesos aderirem
ao tratamento, muito menos quando este considera a vertente emocional da patologia.
Diante dessas considerações, é importante destacar que, pela alta incidência e
prevalência de tal epidemia no mundo todo, e pelas conseqüências que ela acarreta, é preciso
reavaliar a qualidade e a natureza dos tratamentos atualmente disponíveis, e, assim, realizar
estudos preventivos.
Mishima (2007), em seu estudo com crianças obesas e suas famílias, denotou a
relevância do papel da dinâmica familiar na manutenção da obesidade infantil. Dentre as
principais características do contexto em que viviam, foi notada a presença de uma mãe que
não foi capaz de oferecer um ambiente suficientemente bom para os filhos, bem como holding
e cuidados afetivos, e uma figura paterna que exerce o controle pela autoridade, não
permitindo que as crianças expressem sua impulsividade. Nesse sentido, as crianças sentiamse abandonadas, sozinhas e inseguras dentro do contexto familiar, buscando no alimento uma
maneira de se relacionar com o mundo externo e uma forma de abrandar o vazio afetivo
advindo das experiências iniciais da infância. Conseqüentemente, a terapia parece ser uma
solução eficaz na compreensão da psicodinâmica familiar e como forma de prover um
ambiente suficientemente bom para as crianças obesas.
56
Nessa mesma direção, uma possível forma de tratamento, coadjuvante ao médico e
nutricional, capaz de complementá-los, e que considera as características emocionais que
envolvem tal patologia, diz respeito à intervenção psicológica, seja por meio de terapia,
individual ou não, ou ainda pelo processo do psicodiagnóstico interventivo.
O Psicodiagnóstico Interventivo é uma prática da Psicologia Clínica, que faz uso
integrado dos processos avaliativo e terapêutico. Neste processo, Vaisberg (1999) destaca que
o caráter de investigação e intervenção relacionados ao diagnóstico devem ser vistos de
maneira conjunta. Nesse sentido, desde há muito tempo, Winnicott (1961/1984) assinalava a
importância de realizar um pequeno tratamento psicanalítico já nas primeiras entrevistas.
Para Paulo (2004, conforme citado por Paulo, 2006, p. 156), denomina-se
Psicodiagnóstico Interventivo:
uma forma de avaliação psicológica, subordinada ao pensamento clínico, para
apreensão da dinâmica intrapsíquica, compreensão da problemática do indivíduo e
intervenção nos aspectos emergentes, relevantes e/ou determinantes dos
desajustamentos responsáveis por seu sofrimento psíquico e que, ao mesmo
tempo, e por isso, permite uma intervenção eficaz.
Nesse contexto, Trinca (1984) afirmou que a avaliação psicológica tem o intuito de
apreender a psicodinâmica do indivíduo e suas dificuldades, fazendo uso dos instrumentos
psicológicos e das técnicas projetivas, processo em que há predomínio da compreensão da
vida psíquica e não de padrões estabelecidos pelas teorias.
No Psicodiagnóstico Interventivo, desde a primeira entrevista com o paciente, são
realizados assinalamentos e interpretações, bem como durante a aplicação de técnicas
57
projetivas. Ele é fundamentado, em primeira instância, na constatação de pesquisadores e
clínicos, usuários e estudiosos do Psicodiagnóstico Tradicional (Cunha e cols., 2000; Ocampo,
Arzeno & Piccolo, 1987; Trinca, 1997) de que a situação de avaliação psicológica tem o
potencial de fazer emergir aspectos centrais da personalidade do indivíduo, que permitem
compreender seus conflitos e tensões, bem como a origem deles e as experiências necessárias
para retomar o desenvolvimento e a saúde.
Para Barbieri (2002), o surgimento desse material ocorre porque na situação avaliativa
o paciente acaba por se defrontar com etapas variadas de seu desenvolvimento pessoal, em
um período de tempo restrito. O fato de incluir testes psicológicos no Psicodiagnóstico
Interventivo permite, segundo a autora, alcançar uma maior margem de segurança
diagnóstica, com possibilidades de averiguar a natureza e profundidade das modificações que
ele acarreta na personalidade, bem como determinar as características dos pacientes que
podem ser beneficiados por sua utilização.
As técnicas projetivas podem também ser usadas simplesmente como mediadoras do
contato terapêutico (entre o terapeuta e o mundo interno dos examinandos) e como
facilitadoras da comunicação, auxiliares para elaborar intervenções, conforme descrito por
Paulo (2006). Esta autora também enfatiza que, na literatura, são escassos os trabalhos de
Psicodiagnóstico Interventivo com adultos, limitação para a qual o presente estudo oferecerá
uma contribuição, incluindo informações sobre suas potencialidades e limites no tratamento
de mulheres obesas.
OBJETIVOS
Diante da busca crescente pela cirurgia bariátrica como conduta terapêutica,
especialmente em relação às mulheres, é relevante destacar a necessidade de prevenção e
outras possibilidades de tratamento, levando em consideração o aspecto emocional. Por este
58
motivo, o atual trabalho tem por principal objetivo apresentar uma forma de tratamento
psicoterápico para mulheres obesas, por meio do Psicodiagnóstico Interventivo (PI), e
averiguar suas possibilidades de auxílio, para que elas não atinjam o peso suficiente para se
submeter à cirurgia bariátrica, no intuito de evitar o procedimento cirúrgico e possíveis
conseqüências que possam advir de tal alternativa.
Nesse contexto, tentar-se-á avaliar se e até que ponto, uma abordagem terapêutica de
natureza breve poderia auxiliar na perda de peso em mulheres com dificuldade de adesão ao
tratamento clínico de sua doença (mudanças no comportamento alimentar e seguimento de
uma dieta). É importante destacar que no tratamento da obesidade deve-se levar em conta
uma combinação dos tratamentos nutricionais, físicos, psicológicos e farmacológicos, visando
atingir o sucesso
MÉTODO
O atual trabalho foi desenvolvido na perspectiva clínica de investigação, no contexto
das abordagens metodológicas qualitativas, geralmente usadas nas Ciências Humanas.
O estudo de caso foi realizado com Ana, uma paciente obesa grau I (IMC = 32 kg/m²),
de 32 anos de idade, que já havia tentado emagrecer por meio de dietas e exercícios físicos.
Sua doença foi avaliada por um médico para que não houvesse a presença de co-morbidades,
bem como nenhum tipo de doença mental ou problemática neurológica. Após assinatura do
Termo de Consentimento Livre e Esclarecido, a paciente foi submetida a uma avaliação
psicológica, realizada em três sessões. Foram aplicadas uma entrevista clínica semiestruturada e dois testes projetivos, a saber, o Teste do Desenho da Figura Humana (DFH) e o
Teste de Apercepção Temática (TAT), todos como enfoque interventivo. As sessões foram
realizadas no Centro de Pesquisa e Psicologia Aplicada (CPA) da Faculdade de Filosofia,
Ciências e Letras de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo – Brasil.
59
O processo de análise dos dados ocorreu durante as sessões com a participante do
estudo e também após o seu término. O DFH foi interpretado segundo referencial proposto
por Buck (2003), e o TAT segundo referencial de análise proposto por Morval (1982). Nesta
última técnica, bem como na entrevista, houve a análise e interpretação dos dados segundo
referencial psicanalítico já no momento de sua aplicação, devido ao enfoque interventivo.
RESULTADOS: ESTUDO DE CASO
Ana apresentou colaboração durante as sessões para realização das atividades, porém,
no início do DFH ela reclamou um pouco, dizendo não conseguir fazer os desenhos,
demonstrando certa resistência à sua concretização.
Houve predomínio da identificação sexual com a figura feminina, desenhada em
primeiro lugar. Contudo, essa figura foi vista como uma figura frustradora, cheia de
complicações e permeada de reclamações, identificada com a figura materna. Os desenhos
denotaram sinais de dificuldade no contato (mãos desproporcionais ou escondidas, pernas
frágeis) e, de maneira geral, apresentaram indícios de sentimento de inferioridade, baixa autoestima (quando questionada acerca da melhor parte do corpo, Ana responde: “ai, nenhuma...
a cabeça é complicada, sempre reclama; nenhuma, não tem utilidade”), sendo a figura
feminina destituída de sexualidade (pouca diferenciação com a masculina) e de valor.
Houve sinais intensos de dificuldades nas relações interpessoais e restrição na
expressão do self, pois o desenho pareceu ser formado por partes sobrepostas, como se estas
estivessem acopladas, o que pode indicar maior dificuldade de integração.
A problemática pode ser considerada a dificuldade de dominar os próprios impulsos,
tentando controlá-los de maneira rígida, com subestima do corpo e dos impulsos vitais. Em
relação ao contato com os impulsos sexuais, foi possível perceber negligência, pois, embora a
figura masculina tenha sido vista como opressora, desvitalizada, sem afeto, havia pouca
diferenciação dela com a figura feminina, indicando dificuldade em ver o outro como diferente
60
de si. O outro foi visto como necessário para suprir a dependência (relação anaclítica), mas
também havia oscilações nessa posição, com tentativas de mantê-lo dependente e por perto,
às vezes até confundindo seu próprio desejo com o do outro: quando questionada sobre a
melhor parte do corpo da figura masculina, Ana perguntou se a examinadora se referia à dela
própria ou à da figura desenhada.
Em relação às estórias contadas no TAT, Ana demonstrou uma atitude mais inibida,
com baixo nível de autoconfiança, pouca autonomia ao reagir a uma situação nova e
necessidade de encorajamento do outro para realizar a atividade proposta. Tais características
podem ser demonstradas pela hesitação ou espanto diante do conteúdo de determinadas
pranchas, como, por exemplo, na prancha 13 MF: “Nossa!!! O homem, aqui é o homem e a
mulher, né?” e na prancha 12F: “Ai, que que é isso aqui? (risos) Tá parecendo uma bruxa”.
Também houve indícios de prejuízo na adaptação aos estímulos e às instruções, às
vezes fazendo com que Ana percebesse os personagens de uma forma desvitalizada, como
demonstração de sua dinâmica interna, como na prancha 2: “Essa tá meio difícil, viu? Isso aqui
é um deserto? Tá parecendo um deserto”.
As estórias contadas, predominantemente, apresentaram pouca coerência, clareza e
lógica, principalmente nas pranchas que evocavam conteúdo explicitamente sexual (13MF) e
nas relações com as figuras paterna e materna (4, 6MF, 7MF, 12F), podendo indicar certa
inibição intelectual. Como exemplos têm-se as estórias:
•
prancha 4: “Isso aqui é, esse casal aqui eles já se gostaram e acho que o
homem tá tentando sair e a mulher quer conversar com ele e ele tá fugindo do
assunto. Um casal sem diálogo (risos)... Ele tem um jeito de ser durão, ela tem
um jeito de ser mais amorosa, ele é mais durão. Só”.
•
prancha 6MF: “Esse aqui o marido já parece que tá tentando falar alguma coisa
pra ela e ela tá espantada, meio assustada, parece um pouquinho brava (risos),
mas é de espanto. (...) Aqui os dois tão calados, ele deve ter falado alguma
61
coisa pra ela e ela ficou espantada. Tipo assim: “você vai fazer isto?” (...) Ai...
pra mim aqui acho que termina elas por elas”.
De maneira geral, houve indícios de perturbações frente a determinadas pranchas,
principalmente devido à hesitação, dificuldade em iniciar as estórias, falas de interlocução com
o aplicador e necessidade de apoio. As perturbações também se relacionaram principalmente
às pranchas que evocam conteúdos sexuais e referentes ao relacionamento com as figuras
paterna e materna.
Ana teve dificuldade em contar estória na prancha 16 (branca), o que pode ser indício
de dificuldade de abstração, de criar, imaginar e inventar uma estória, sem partir de uma
representação concreta na figura. Por este motivo, ela inicia a estória dizendo que irá contar
um fato de sua vida, que mexe muito com ela, e a faz chorar durante a sessão.
A paciente se identificou com heróis femininos de idades semelhantes à sua. Contudo,
ela atribuiu predominantemente características negativas às figuras, demonstrando baixa
auto-estima, sentimento de insegurança, isolamento e rejeição, associados à crença de
inutilidade e desvitalização perante o outro. Como na prancha 2: “A moça parece que não tem
com quem conversar, o moço tá de costas, a mulher não conversa com ela, não olha pra ela” e
na prancha 13HF: “a mulher tá esborrachada, sem ânimo”.
Ana se envolveu tanto com algumas estórias que passou a contá-las na primeira
pessoa, sugerindo uma falta de distanciamento em relação ao estímulo, uma certa
indiferenciação entre o eu e o ‘não-eu’: (prancha 3MF) “Essa estória parece muito comigo (de
repente começa a chorar), às vezes eu nem choro, por causa das crianças, eu guardo pra mim,
fico angustiada”; (prancha 7MF) “eu fico muito em cima dos meninos, eu fico preocupada (...)
minha mãe também não dava carinho pra nós... até hoje ela é assim”.
Em relação às necessidades dos heróis, pode-se perceber que as mais predominantes
foram as de afiliação emocional e proteção reclamada, indicando o quanto precisa da ligação
com o outro e o quanto acaba por ser dependente dele.
62
Houve intenso predomínio de condutas de aprendizagem social em detrimento das
instintivas, levando a supor um controle excessivo em demonstrar livremente suas emoções.
De maneira geral, as estórias contadas apresentaram heróis com condutas afetivas e
suspensivas, sendo, em sua maioria, consideradas condutas de passividade, fraqueza,
descoordenação e rigidez. Quando conseguiam satisfazer suas necessidades (condutas
consumativas) os heróis agiam de uma forma muito impulsiva, demonstrando insuficiência de
recursos secundários.
Com referência à relação que os heróis tinham com o ambiente, foi possível perceber
que o conjunto social foi reconhecido com características negativas, indicando figuras que
geralmente prejudicam a satisfação das necessidades dos heróis. De forma mais específica, a
figura materna foi vista tanto como ambivalente, que ora apóia ora agride, como uma figura
que não consegue desempenhar seu papel de mãe, não chegando a suprir a dependência, o
que leva a uma lacuna no desenvolvimento emocional. Tais aspectos podem ser observados
pela prancha 7MF: “ela sentou perto da mãe, ela tava lendo um livro e não deu muita
confiança, ela tava lendo, a filha sentou do lado, mostra que ela não deu muita atenção”; e
pela prancha 12F: “A mulher parece que tá pensando que que ela vai fazer, e a que tá atrás tá
esperando para ver o que que ela vai fazer e aí pra falar: ‘ah, o que é que você vai fazer?’. E o
nome que eu dou é Perseguição”.
A figura paterna também foi vista como não suficientemente boa, e, quando surge,
tem como função principal punir e castrar. A figura do sexo oposto foi vista com características
ambivalentes, ora provendo as necessidades afetivas, ora ausentando-se de seu papel.
Nesse mesmo sentido, o conjunto físico também foi considerado predominantemente
com características negativas, denotando que Ana percebe o mundo exterior como muito
ameaçador e cheio de obstáculos, prejudicando a satisfação de suas necessidades.
Em relação aos desfechos das estórias, houve predomínio de sua ausência (em 7 das
10 estórias contadas), indicando relutância em falar do futuro e também aprisionamento no
63
conflito, sem conseguir resolvê-lo. Como na prancha 4: “Isso aqui é, esse casal aqui eles já se
gostaram e acho que o homem tá tentando sair e a mulher quer conversar com ele e ele tá
fugindo do assunto. Um casal sem diálogo (risos)... Ele tem um jeito de ser durão, ela tem um
jeito de ser mais amorosa, ele é mais durão. Só.”. Contudo, nas outras três estórias com
desfecho, este foi tido como um fracasso, como na prancha 1: “Acho que ela vai crescer assim,
deprimida, com problemas. Só a feição já mostra, tipo assim: porque é assim, pelo jeito que eu
vejo aqui... pela feição... Tá mais pra... um nome pra estória... é... deixa eu ver... o problema
que não foi solucionado”.
A partir destas considerações, é possível assinalar que a paciente apresentou boa
participação e, na medida do possível, colaborou ao fazer a atividade. Contudo, demonstrou
prejuízo em relação à manifestação de sua criatividade, expressão de suas idéias, criação de
algo novo, bem como prejuízo quanto aos relacionamentos com as figuras parentais e com o
sexo oposto.
Além disso, houve indícios de dependência em relação ao outro e temor de se tornar
independente, como se tal fato pudesse causar a perda do objeto amado. De forma geral, não
conseguia solucionar seus conflitos, o que gerava maior angústia e baixa auto-estima. Durante
as intervenções, estes aspectos foram apontados pela terapeuta, com conseqüente
concordância da paciente e gerando um ambiente de conforto, apoio e sustentação para a
demonstração das necessidades.
A análise horizontal e vertical das estórias contadas no TAT permitiu verificar as
funções do ego da paciente, de acordo com a proposta de Morval (1982). Ana apresentou
comprometimento leve em perceber a realidade tal como ela é, sugerindo certa confusão
entre estímulos internos e externos, chegando até a confundir sua própria estória com aquela
que contava.
64
Houve sinais de funcionamento da defesa do falso self, devido à presença de
sentimentos de inutilidade, futilidade e desvalorização, parecendo não se apropriar de seu
verdadeiro self, distanciando-se de suas características reais e de sua espontaneidade.
Ao mostrar dificuldade em dar desfecho às estórias, deixando um final ausente, Ana
evidenciou certo comprometimento na capacidade de manejar o ambiente para satisfazer suas
próprias necessidades, apresentando as funções de maestria e competência levemente
comprometidas.
Os processos de pensamento e a autonomia de funcionamento também se mostraram
levemente comprometidos, fato demonstrado pela dificuldade em iniciar determinadas
estórias e apresentar uma seqüência, decorrente de perturbações afetivas.
A tolerância aos estímulos também se mostrou com leve comprometimento,
principalmente quando os conteúdos das pranchas evocavam temáticas causadoras de certo
desconforto e conflito. A regulação e o controle das pulsões, afetos e necessidades também se
mostraram comprometidas, houve demonstração da necessidade do auxílio vindo do outro,
precisando também da aprovação dele para se sentir feliz e realizada (relação de objeto
anaclítica). Apesar da dependência em relação ao outro, o relacionamento interpessoal se
mostrou apenas levemente comprometido.
A dificuldade para criar, imaginar estórias parece advir de uma lacuna quanto à
dependência não suprida pela figura materna de Ana, o que denota prejuízo em sua
possibilidade de existir de forma verdadeira e pessoal no mundo. Ana demonstrou
comprometimento na função de regressão a serviço do ego, ilustrado pela dificuldade em dar
início às estórias, em manter a coerência e em abstrair, saindo do concreto e da simples
descrição das figuras. Geralmente as estórias continham detalhes empobrecidos, eram rígidas
demais e tendiam à descrição dos personagens, o que denota dificuldade em relaxar, em
brincar, recorrendo ao plano racional, em detrimento dos sentimentos e conteúdos afetivos
dos personagens.
65
Após a análise dos dados obtidos por meio das técnicas do Desenho da Figura Humana
e do Teste de Apercepção Temática, foi possível considerar a estrutura de personalidade de
Ana como organização borderline. Para Bergeret (1998), tal organização assinala a presença de
um nível de desenvolvimento libidinal predominantemente na fase oral (o Édipo foi saltado), a
relação com o objeto é de dependência anaclítica e a angústia se refere à perda desse objeto.
O conflito predominante se localiza entre o ideal de ego e o id, e o ideal de ego e a realidade,
sentindo-se incapazes de se expressar verdadeiramente, havendo incompatibilidade entre
aquilo que acreditam que seria correto ser, com aquilo que são.
As principais defesas apresentadas foram projeção, negação, repressão e isolamento.
Foi possível notar funcionamento falso self, expresso no sentimento de desvitalização,
futilidade e inutilidade em sua função de mulher e mãe.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Diante de tais considerações, durante o processo interventivo realizado com a
paciente, foi possível assinalar que Ana não teve suas necessidades de dependência supridas
pelas próprias figuras parentais, conseqüentemente, acarretando prejuízos no atendimento à
dependência de seus filhos. Seus conflitos predominantes estavam relacionados à integração
dos afetos, particularmente aqueles relativos à própria sexualidade e à relação com as figuras
parentais.
A terapeuta pôde enfatizar que a dificuldade em ser espontânea e criativa,
manifestada na dificuldade para regredir e brincar, estava acarretando em uma falta de
energia para realizar determinadas atividades e a um sentimento de estagnação perante o
mundo. Com isso, a paciente passou a viver uma vida sem estilo pessoal, seguindo algumas
regras e normas para se sentir mais aceita, porém sem incorporá-las e transformá-las
conforme seus desejos e necessidades. Assim, não consegue se mostrar realmente como é,
66
sentindo-se inferior e pouco valorizada, ou ainda, sentindo-se sozinha e não compreendida em
suas necessidades.
Essa dificuldade em se ver e perceber como realmente é, em ser espontânea, acaba
por prejudicar seus relacionamentos pessoais, particularmente os sexuais, já que o outro é
visto predominantemente como necessário para satisfazer a dependência e suprir a carência
demonstrada, e, se assim não o fizer, acaba sendo um grande frustrador.
Em outras palavras, a figura masculina foi vista como necessária para a satisfação do
desejo infantil, mas não dos desejos sexuais. Como Ana não consegue se ver de uma forma
integrada e não tem suas necessidades supridas, também não consegue satisfazer as
necessidades do outro, não suprindo sua dependência para que alcance autonomia,
especialmente em relação aos filhos. Isso se deve ao fato de que a deficiência afetiva (de
dependência) leva a um bloqueio da doação de si, procurando reter o outro para perto de si a
qualquer custo, ao invés de permitir a expressão da continuidade de seu ser pessoal.
Ao levar em consideração tais fatores e seus assinalamentos, após o atendimento por
meio do Psicodiagnóstico Interventivo, Ana conseguiu perder peso, voltando ao IMC
considerado saudável. Isso se deve ao trabalho terapêutico realizado, por meio do
oferecimento de holding e de um ambiente suficientemente bom, visando a recuperação da
capacidade criativa, vista como a possibilidade de estar no mundo.
Isso se deve ao fato de que os indivíduos que não tiveram experiências que lhe dessem
um sentido para o self, não sentem que podem ter produtividade no mundo, que podem ter
uma ação no mundo e transformá-lo de forma pessoal (Mishima, 2007). Há um sentimento de
solidão muito grande, um sentimento de que há uma ausência que não foi preenchida, de um
vazio que a acompanha. Desta forma, ela acaba usando recursos para que esse vazio não a
domine, como desenvolver um funcionamento falso self.
Deste fato decorre a importância do trabalho terapêutico, do encontro possível entre
analista e paciente, com a entrega de ambos na construção de uma relação que traga o
67
reconhecimento do outro, a possibilidade de brincar e criar, a crença de que se pode ter um
estilo próprio.
Finalmente, é possível considerar que a obesidade pode ter um tratamento
diferenciado e um acompanhamento terapêutico que alcance a perda de peso, sem
necessariamente fazer com que o paciente se submeta a uma cirurgia com possíveis riscos.
Para tanto, o uso de técnicas projetivas, em um atendimento interventivo, possibilita aos
obesos entrar em contato com aspectos afetivos relacionados à sua doença, fazendo com que
a perda de peso seja uma conseqüência do tratamento.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
Ades, L., & Kerbauy, R. R. (2002). Obesidade: Realidades e Indagações. Psicologia USP, 13(1),
197-216.
Barbieri, V. (2002). A família e o Psicodiagnóstico como recursos terapêuticos no tratamento
dos transtornos de conduta infantis. Tese de Doutorado apresentada ao Instituto de
Psicologia da Universidade de São Paulo. São Paulo: São Paulo.
Bergeret, J. (1998). A personalidade normal e patológica. (M. E. V. Flores, Trad.). 3ª. ed. Porto
Alegre: ArtMed. (Trabalho original publicado 1996).
Bernardi, F., Cichelero, C., & Vitolo, M. R. (2005). Comportamento de restrição alimentar e
obesidade. Revista de Nutrição, 18(1), 85-93.
Buck, J. N. (2003). H-T-P: manual e guia de interpretação. (R. C. Tardivo, Trad.). São Paulo:
Vetor.
Busse, S. R. (2004). Anorexia, bulimia e obesidade. São Paulo: Manole.
68
CONSENSO LATINO AMERICANO. (1998). Rio de Janeiro. Acesso 14 abr 2004. De
http://www.abeso.com.br.htm.
Coutinho, W. (1999). Consenso Latino-Americano de obesidade. Arquivos Brasileiros de
Endocrinologia e Metabologia, 43(1), 21-67.
Coutinho, W. F., & Benchimol, A. K. (2002). Obesidade mórbida e afecções associadas. In A. B.
GARRIDO JÚNIOR, A. B. (Org.). Cirurgia da obesidade. (pp. 13-17). Rio de Janeiro: Atheneu.
Cunha, J. A. e cols. (2000). Psicodiagnóstico V. Porto Alegre: ArtMed.
Duchesne, M., Appolinario, J, C., & Range, B. P. (2007). Evidências sobre a terapia cognitivocomportamental no tratamento de obesos com transtorno da compulsão alimentar
periódica. Revista de Psiquiatria do Rio Grande do Sul, 29(1), 80-92.
Epstein, L. H., Valoski, A., Wing, R. R., & McCurley, J. (1994). Ten-year outcomes of behavioral
family-based treatment of childhood obesity. Health Psychology, 13, 373-383.
Fisberg, M. (2005). Primeiras palavras: uma introdução ao problema do peso excessivo. In M.
FISBERG (Org.). Atualização em obesidade na infância e adolescência. (pp. 1-10). São
Paulo: Editora Atheneu.
Grundy, S. M. (1998). Multifactorial causation of obesity: implications for prevention. American
Journal Clinical Nutrition, 67(Suppl), 563S-572S.
Halpern, Z. S. C., Rodrigues, M. B., & Costa, R. F. da. (2004). Determinantes fisiológicos do
controle do peso e apetite. Revista de Psiquiatria Clínica, 31(4), 150-153.
INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA (IBGE). (2005). Pesquisa de Orçamentos
Familiares (POF) 2002-2003. Análise da Disponibilidade Domiciliar de Alimentos e Estado
Nutricional no Brasil. Rio de Janeiro: IBGE.
69
Kiess, W., Galler, A., Reich, A., Müller, G., Kapellen, T., Deutscher, J., Raile, K., & Kratzsch, J.
(2001). Clinical aspects of obesity in childhood and adolescence. Obesity Reviews, 2, 2936.
Loli, M. S. A. (2000). Obesidade como sintoma: uma leitura psicanalítica. São Paulo: Vetor.
Mishima, F. K. T. (2007). Investigação das características psicodinâmicas de crianças obesas e
de seus pais. Dissertação (Mestrado em Psicologia) – Faculdade de Filosofia, Ciências e
Letras de Ribeirão Preto, Universidade de São Paulo. Ribeirão Preto: São Paulo.
Monteiro, P. O. A., & Victora, C. G. (2005). Rapid growth in infancy and childhood and obesity
in later life – a systematic review. Obesity Reviews, 6, 143-154.
Morval, M. V. G. (1982). Le TAT et les fonctions du moi – propêdeutique à l’usage du
psychologue clinicien. 2ª. ed. Canadá: Les presses de l’Université de Montréal.
Nunes, M. A., Appolinario, J. C., Galvão, A. L., & Coutinho, W. (2006). Transtornos Alimentares
e Obesidade. 2ª ed. Porto Alegre: Artmed.
Nunes, M. M. A., Figueiroa, J. N., & Alves, J. G. B. (2007). Excesso de peso, atividade física e
hábitos alimentares entre adolescentes de diferentes classes econômicas em Campina
Grande (PB). Revista da Associação Médica Brasileira, 53(2), 130-134.
Ocampo, M. L. S., Arzeno, M. E. G., & Piccolo, E. G. (2001). O processo Psicodiagnóstico e as
técnicas projetivas. (M. Felzenswalb, Trad.). 10ª. ed. São Paulo: Martins Fontes.
Paulo, M. S. L. L. de. (2006). Psicodiagnóstico Interventivo em pacientes adultos com
depressão. Boletim de Psicologia, LVI(125), 153-170.
70
Reiterer, E. E., Sudi, K. M., & Mayer, A. (1999). Changes in leptin, insulin and body composition
in obese children during a weight reduction program. Journal Pediatric Endocrinology
Metabolism, 12, 853-862.
Sothern, M. S., Loftin, J. M., Udall, J. N., Suskind, R. M., Ewing, T. L., Tang, S. C., & Blcker, U.
(1999). Inclusion of resistance exercise in a multidisciplinary outpatient treatment
program for preadolescent obese children. Southern Medical Journal, 92, 585-592.
Trinca, W. (1984). Diagnóstico psicológico: a prática clínica. São Paulo: EPU.
Trinca, W. (1997). Formas de investigação clínica em Psicologia: Procedimento de DesenhosEstórias e Procedimentos de Desenhos de família com Estórias. São Paulo: Vetor.
Vaisberg, T. M. J. A. (1999). Encontro com a loucura: transicionalidade e ensino de
psicopatologia. Tese de Livre Docência. Instituto de Psicologia da Universidade de São
Paulo. São Paulo: São Paulo.
Votruba, S. B., Horvitz, M. A., & Shoeller, D. A. (2000). The role of exercise in the treatment of
obesity. Nutrition, 16, 179-188.
Winnicott, D. W. (1984). Consultas Terapêuticas em Psiquiatria Infantil. (J. M. X. Cunha, Trad.).
Rio de Janeiro: Imago. (Trabalho original 1961).
71
Candidatura 4
Autores: Stella Carneiro
Título: Vitimologia e psicologia da saúde
72
VITIMOLOGIA E PSICOLOGIA DA SAÚDE – um estudo exploratório
Prof. Dra. Stella Luiza Moura Aranha Carneiro2
Juíza Thelma Araujo Esteves Fraga3
Juíza Adriana Lopes Moutinho4
Estagiários de Psicologia do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro
: Felipe Jasbick Tonack e Giselle Araujo
Estagiário de Psicologia da UNESA – Campus Ilha do Governador - Franklin
Torres Neto
RESUMO
Atribui-se à violência e a criminalidade um papel central na desarmonia social, tão
claro e sintomático do nosso moderno modo de vida. Com a violência urbana a sensação de
constante ameaça à vida, à integridade física e a decorrente resposta emocional a esse tipo de
evento, começa a se tornar uma ocorrência freqüente na atual realidade social.
A intensidade das emoções que emergem do fato gerador do ilícito penal muitas vezes
culminam na vítima em sintomas psíquicos de todo tipo, tais como os transtornos de
Ansiedade e Estresse Pós-Traumático, podendo ter conseqüências maiores como surgimento
de psicopatologias, em muitos casos, incapacitantes.
O trabalho com a vitima é demonstrar que ela não é agente passivo do processo
criminal, mas sim parte ativa e importante para a efetiva aplicação da justiça. A população a
ser pesquisada é a de vítimas de vários tipos de crimes , que tem processos criminais nas
primeiras e segundas Varas Criminais do Fórum Regional de Jacarepaguá – Rio de Janeiro –
Brasil. Este trabalho terá como método a aplicação de questionário psicossocial, composto de
perguntas fechadas e semi-abertas em um primeiro momento e abertas em um segundo
momento, para o mapeamento das causas particulares dos sintomas provocados pelo fato
2
Psicóloga do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro;Professora Adjunta da Universidade Estácio de Sá – Rio de Janeiro
e-mail : [email protected]
3
4
Juíza Titular da Primeira Vara Criminal do Fórum Regional de Jacarepaguá – Rio de Janeiro – e-mail: [email protected]
Juíza Titular da Segunda Vara Criminal do Fórum Regional de Jacarepaguá – Rio de Janeiro – e- mail: [email protected]
73
criminoso. O tratamento realizado com os dados levantados será estatístico , além de uma
interpretação do discurso das vítimas nas entrevistas.
A atenção à vítima, principalmente , na área da Psicologia da Saúde , é uma forma de
dar voz à estas pessoas e resgatar , através de programas integrados , a sua condição de
cidadão e sua reinserção social, através de um trabalho comprometido visando a saúde
emocional.
INTRODUÇÃO
A vítima, historicamente, sempre representou o pólo sofredor, aquela que, diante de
fatos humanos ou naturais, teve sua situação recrudescida e, se não representava um sacrifício
moral ou religioso, demandaria um amparo a ser proporcionado pelo grupo social.
Com o fortalecimento do Estado e do reclame por uma priorização dos interesses
sociais, a vítima foi sendo, ao longo dos tempos, relegada a um segundo plano. Este
distanciamento começou a ser notado ao final do século XIX, e em meados do século XX foi
fortemente impulsionado.
Com o objetivo de reconferir o status quo de honra antes dispensado, surgiu, com
traços científicos, a Vitimologia, ramo de pesquisa voltado aos problemas, deficiências,
comportamentos, patologias e garantias circundantes àquela pessoa de alguma forma atingida
por um ilícito penal, e que sofre um fenômeno de vitimização alterador de suas condições
normais de relacionamento social.
A Vitimologia passou e ainda passa por mudanças. Ao ser iniciada, de forma autônoma,
indicava apenas a necessidade de maior atenção àquele que fora lesionado por um delito, e a
melhorar a sua situação conforme a magnitude de seu prejuízo. Com o evoluir das pesquisas,
outros aspectos passaram a ser considerados, como a medida da participação da vítima na
predisposição ou incitação ao delito, suas características biológicas e sociais que influenciam
74
no ato ou fato criminoso, e até mesmo o seu quinhão de culpa na responsabilização do
criminoso.
As conclusões alcançadas influenciaram os sistemas normativos, proporcionando
mudanças no direito substantivo e adjetivo, oferecendo penas alternativas, procedimentos
especiais, transações processuais, dentre outras medidas que sugerem a resolução dos
conflitos apoiados em uma parceria entre o Estado e o interesse social de um lado, e a vítima
do delito, de outro.
A opção do presente trabalho foi a de apresentar, em breves linhas, o conceito e as
principais linhas de estudo pertencentes à Vitimologia, as várias definições de vítima , as
conseqüências emocionais de tal situação e um inicial e pequeno estudo exploratório sobre as
vítimas das primeira e segunda Varas Criminais do Fórum Regional de Jacarepaguá , no Estado
do Rio de Janeiro, Brasil.
O CONCEITO DE VITIMOLOGIA
Vitimologia é o estudo da vítima sob todos os aspectos, possuindo assim, um
caráter multi e interdisciplinar. A Vitimologia , como toda ciência, apresenta vertentes
próprias, consubstanciandas em ramos, que podem achar-se discriminados como
assistência ou como comportamento. Segundo Brito (2008) , cada um deles passou a
identificar seus elementos conceituais, expandindo ou restringindo sua matéria. Desta
forma , serão apresentadas algumas das mais conhecidas conceituações.
Segundo Nogueira (2004) Ellemberg considera que a Vitimologia é o ramo da
Criminologia que se ocupa da vítima direta do crime e que compreende o conjunto de
conhecimentos biológicos, sociológicos e criminológicos concernentes à vítima. Para
75
Cornil, citado pelo mesmo autor Nogueira (2004) é o estudo da personalidade da
vítima, de seu comportamento, suas motivações e reações, em face de uma infração
penal.
O mais importante autor Italiano sobre a matéria, Guglielmo Gulotta, de acordo com
Nogueira (2004), a conceitua como uma disciplina que tem por objeto o estudo da vítima, de
sua personalidade, de suas características, de suas relações com o delinqüente e do papel que
assumiu na gênese do delito. Manzanera , citado por Pellegrino (1987), autor mexicano de
renome internacional, indica ser ela o estudo científico da vítima, que não deve esgotar-se
com o estudo do sujeito passivo do crime, mas também ater-se às outras pessoas que são
atingidas e a outros campos não delituosos, como pode ser o campo dos acidentes.
Quanto aos objetivos finais da Vitimologia, Separovic , citado por Piedade Júnior (1993)
, passariam pela análise da magnitude do problema da vítima, explicando as causas de sua
vitimização, partindo para um desenvolvimento de um sistema de medidas minimizadoras
deste fenômeno, culminando na adoção de atos concretos de assistência . Este autor brasileiro
(Piedade Júnior , 1993) entende que a Vitimologia deve estudar apenas a vítima de outro
homem, enquanto resultado de um ato ilícito. O processo vitimizador deve ser,
essencialmente, originário de uma conduta ilícita, ou não deve ser considerado um processo
de vitimização .
Nesse sentido, conforme afirma Mayr,citado por Morais (2005), vitimologia
constitui
“... o estudo da vítima no que se refere à sua
personalidade, quer do ponto de vista biológico,
psicológico e social, quer o de sua proteção social e
jurídica, bem como dos meios de vitimização, sua interrelação com o vitimizador e aspectos interdisciplinares e
comparativos” (p.85)
76
Percebe-se , desta forma,
que no estudo da vitimologia há dois pontos
fundamentais: o estudo do comportamento da vítima de forma geral, sua
personalidade, seu atuar na dinâmica do crime, sua etiologia e relações com o agente
criminoso e a reparação do dano causado pelo delito.
Mas, o que entendemos por vítima ? Isso será visto , a seguir .
O CONCEITO DE VÍTIMA
O redescobrimento da vítima é um fenômeno do pós 2a Guerra Mundial. É
uma resposta ética e social ao fenômeno multitudinário da macrovitimização, que atingiu
especialmente judeus, ciganos, homossexuais, e outros grupos vulneráveis. Esse
redescobrimento não persegue nem retorno à vingança privada; nem quebra das garantias
para os delinqüentes: a vítima quer justiça.
Na prática jurídica entende-se por “vítima” a parte lesionada que sofre prejuízo ou
dano por uma infração. Este é um critério objetivo que pretende determinar a qualidade de
vitima ou de delinqüente. Aquele que comete a infração ou a omissão é o autor; aquele que
sofre as conseqüências nocivas é a vitima.
Diferente da concepção jurídica é a concepção criminológica. A lei penal interessa-se
por uma infração enquanto violação de uma norma, de uma lei. A criminologia estuda o crime
como fenômeno real, tendo em conta as condições psicológicas e outras peculiaridades tanto
do criminoso quanto da vítima. Estes fatores são muitas vezes ignorados sob o ponto de vista
jurídico.
77
De acordo com Brito (1993), a concepção criminológica da vítima está distante da
jurídica, enquanto apreciação dos sujeitos que intervêm no fenômeno criminoso, seja nos
elementos causais, seja nos resultados. No Direito Internacional, a declaração sobre os
princípios fundamentais de Justiça para as vítimas de delitos e abuso de poder, formulada em
Milão , no ano de 1985, definiu como “vítimas”
as pessoas que, individual ou coletivamente,
tenham sofrido danos, inclusive lesões físicas
ou mentais, sofrimento emocional, perda
financeira ou diminuição substancial de seus
direitos fundamentais, como conseqüência de
ações ou omissões que violem a legislação
penal vigente nos Estados Membros, inclusive
a que prevê o abuso de poder (Brito, 1993)
Von Hentig, citado por Pellegrino (1987), classifica tipologicamente as vítimas em
função dos fatores psicológicos, sociais e biológicos. Seus estudos direcionados, em uma
listagem taxativa incluem: 1. os jovens 2. as mulheres 3. os anciãos 4. os deficientes mentais 5.
os imigrantes 6. as minorias 7. as pessoas de pouca inteligência 8. os deprimidos 9. os ávidos
10. os irresponsáveis 11. os solitários e desolados 12. os atormentados 13. os desesperados.
Outras classificações têm sido formuladas por respeitáveis autores, a maioria
fundamentadas muito mais na teoria do que na prática. Elas são
importantes para a
prevenção e controle da criminalidade,no entanto, dada a exigüidade do trabalho não serão
descritas. A seguir serão abordados os estudos sobre os aspectos psicológicos que são
apresentados pelas vítimas de violência.
VÍTIMAS – ASPECTOS PSICOLÓGICOS
78
No decorrer da vida, o homem atravessa diferentes mudanças, tanto biológicas quanto
psicossociais, que poderão acarretar situações traumáticas. Entretanto, algumas situações são
esperadas e , em razão disso, serão utilizados mecanismos familiares, sociais e institucionais
que preparam e apóiam o sujeito.
No entanto, o trauma da vivência de um delito está relacionado à uma causa não
programada na vida da pessoa. Pode-se estar mais ou menos prevenido, melhor ou pior
preparado, mas não se sabe em que momento poderá ocorrer tal situação.
Segundo Nordenstahl (2008), um dos fenômenos freqüentes nas pessoas que são
vítimas de delitos é o que os especialistas denominam de síndrome de estresse póstraumático. Esta síndrome apresenta um conjunto de sintomas e sinais que são vividos pela
vítima durante certo tempo, que dependerá de suas características pessoais e os recursos
utilizados para o seu tratamento. Durante este período crítico, a vítima estará incapacitada
para reagir a estímulos comuns e gerais do cotidiano.
De acordo com este autor (Nordenstahl, 2008), os principais sintomas são :
- sensação de cansaço e esgotamento- as forças físicas parecem ter desaparecido. A vítima não
tem vontade de fazer nada e vive em expectativa paralisante. O mínimo esforço é
superdimensionado. Evitam sair e freqüentar espaços públicos;
- sentimento de desamparo- a ausência de auxílio das autoridades competentes, assim como
da comunidade ,no momento do fato, produz a sensação de solidão diante de adversidades.
Esta situação vem acompanhada pelo fracasso das políticas públicas na promoção de
segurança ;
- sentimento de inadequação, confusão e ansiedade- estas são sensações que a vítima sofre e
que estão relacionadas com a situação vivida: desconcerto, frustração, angústia, discriminação
e falta de comunicação;
79
- desorganização nas suas relações familiares – o resultado de uma situação vitimizante
repercute no núcleo familiar do indivíduo. Todos se vêem envolvidos. As conseqüências são
compartilhadas. Haverá uma mudança na dinâmica familiar: desde a mudança de horários
para ir ou regressar para casa, modificação de esquemas de rotina diária na casa, até tomadas
de decisões como renúncia ao trabalho, abandono de carreira, mudança de bairro, etc.
- desorganização das relações sociais – muito semelhante ao que ocorre com as relações
familiares. Há um aumento de desconfiança nas instituições e políticas de segurança, além do
abandono e/ou redução da vida social. Pode acontecer um sedentarismo excessivo e o abuso
da tecnologia ,como forma de comunicação, evitando o contato físico. Essas modificações
podem vir acompanhadas de novos dispositivos que interferiram na comunicação social. Um
dos fenômenos que se iniciou na década de 70 e tomou maiores dimensões a partir da década
de 90 foi a criação dos condomínios. Ou seja , segundo Nordenstahl (2008) , “guetos de bem
estar”. Outro fenômeno que se desenvolveu junto a este primeiro, foram os serviços de
segurança particular , tanto no aspecto empresarial-comercial quanto familiar;
- desorganização das relações de trabalho – neste aspecto, a vítima se verá diretamente
afetada se houver lesão física ou dano material, que a leve a uma perda permanente ou
temporária da capacidade para o trabalho. Além disso, podem aparecer transtornos psíquicos
e emocionais que podem afastar as pessoas de suas atividades profissionais.
A partir destes determinantes , descritos acima , foi construído o trabalho de campo.
O TRABALHO DE CAMPO – PRIMEIROS RESULTADOS
A população a ser pesquisada é a de vítimas de vários tipos de crimes , que tem
processos criminais nas primeiras e segundas Varas Criminais do Fórum Regional de
Jacarepaguá – Rio de Janeiro – Brasil.
80
Este trabalho tem como método a aplicação de um questionário psicossocial
,
composto de perguntas fechadas e semi-abertas em um primeiro momento e abertas em um
segundo momento, para o mapeamento das causas particulares dos sintomas provocados pelo
fato criminoso.
A seleção da amostra é realizada nas Varas Criminais, de acordo com o registro das
audiências. Foi selecionada uma amostra de 20 pessoas , vítimas dos mais diferentes delitos
criminais , nas primeira e segunda Varas Criminais, que compareceram à audiência, no período
de agosto a outubro de 2008.
Apenas cinco pessoas compareceram , neste primeiro
momento. As pessoas foram contactadas e após a explicação sobre o objetivo do trabalho,
era proposta a ida ao Fórum para a entrevista.
O tratamento realizado com os dados levantados , neste primeiro momento, foi
estatístico , apesar do tamanho reduzido da amostra , além da interpretação de algumas falas
das vítimas nas entrevistas.
Alguns dados estatísticos
1- Tipos de Violência
Gráfico 1. Tipos de violências cometidas contra as cinco vítimas
81
2- Sentimentos no momento da ocorrência da violência
Gráfico 2. Sentimentos das vítimas no momento da ocorrência da violência
3- Alterações no estado de saúde física
Gráfico 3 . Alterações no estado de saúde física das vítimas
4- Modificações de humor
82
Gráfico 4 . Modificações no estado de humor das vítimas
5- Modificações de hábitos
Gráfico 5 . Modificação de hábitos nas vítimas de violência
Alguns dados qualitativos
Apesar do tamanho diminuto da amostra , algumas expressões acerca da violência
sofrida foram marcantes , e de certa forma, vem caracterizar a chamada Síndrome de estresse
pós-traumático, citada por Nordenstahl (2008), neste trabalho em capítulo anterior.
83
No que diz respeito à sensação no momento em que a violência estava ocorrendo ,
uma das vítimas descreveu a situação da seguinte forma :
“Fiquei muito surpresa, porque nunca se espera uma coisa destas, além disso , temi pela
integridade de minha filha”.
Uma percentagem considerável apresentou modificações no estado de saúde física.
Estas alterações se caracterizaram pelos seguintes sintomas : gastrite , com uso contínuo de
medicação; hérnias de disco , acarretadas por tensão ; tremores ; e dores de cabeça
constantes.
As modificações de humor tiveram como características o choro constante , sem razão
aparente. No tocante às modificações de hábitos , uma das declarantes afirmou que parou de
trabalhar , quer retornar , mas não consegue. Outras declarações importantes foram o estado
de tensão em que andam na rua, além da dificuldade em sair de casa.
Os relatos das vítimas entrevistadas , neste trabalho, apresentam concordância em
muitos aspectos, com os sintomas identificados de Síndrome de estresse pós-traumático, já
definidos anteriormente.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Toda a organização do Sistema Penal , no Brasil, começando com a polícia, passando
pelo Ministério Público, a Defensoria Pública, o Judiciário e a própria execução da pena está
fundamentado, em sua maior parte, na perseguição ao criminoso e na sua punição. O Estado
não se preocupa com a vítima, o lesado, o agredido, aquele que sofreu a ofensa . Na verdade ,
este deveria ser o foco.
84
A atenção à vítima deve incluir , portanto, o estudo e a pesquisa, para dimensionar e
conhecer melhor o objetivo, a adaptação da legislação a uma nova abordagem, e o apoio,
assistência e proteção à vítima . A pesquisa enfocando o impacto do crime e da violência sobre
as vítimas ajuda a detectar os fatores necessários para a criação de programas especiais,
interdisciplinares, envolvendo principalmente a Psicologia, pela quantidade de questões
emocionais acarretadas , como foi possível observar no decorrer deste trabalho.
Algumas dessas ações devem incluir : o programa de intervenção em crises, a
compensação, a restituição, o ressarcimento do dano e a assistência médica, psicológica e
jurídica , prevendo o acompanhamento através da mediação, tanto no processo criminal
como no cível , quando instaurado, possibilitando uma Justiça mais restaurativa.
A história de vida das vítimas deve ser reconstruída, contextualizando a violência
sofrida, a partir do campo individual e também, como um problema social. Promover o
protagonismo da vítima enquanto sujeito de direitos, em contraponto às ações
assistencialistas normalmente vinculadas ao tema da violência, levará à promoção da situação
de vítima para a de sujeito de direitos e deveres, resgatando desta forma a sua dignidade e
cidadania.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
- BRITO, Alexis Augusto Couto de . Um breve estudo sobre a vitimologia.
Disponível em http://www.novacriminologia.com.br/artigos/leiamais/default.asp?id=1598
Acesso em 13/09/2008
- MORAIS, Marciana Érika Lacerda. Aspectos da Vitimologia. In: Âmbito Jurídico, Rio Grande,
22, 31/08/2005
Disponível em
85
http://www.ambitojuridico.com.br/site/index.php?n_link=revista_artigos_leitura&artigo_id=4
30.
Acesso em 06/08/2008.
- NOGUEIRA, Sandro D'Amato. Vitimologia:delineamentos à luz do art. 59, caput, do Código
Penal brasileiro. Jus Navigandi, Teresina, ano 8, n. 275, 8 abr. 2004.
Disponível em: http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=5061.
Acesso em: 02 fev. 2008
- NORDENSTAHL, Ulf Christian Eiras. ? Donde está la victima? Apuntes sobre Victimologia.
Buenos Aires: Libreria Histórica, 2008
- PIEDADE JÚNIOR, Heitor. Vitimologia – evolução no tempo e no espaço. Rio de Janeiro:
Freitas Bastos, 1993.
- PELLEGRINO, Laércio. Vitimologia. Rio de Janeiro: Forense, 1987.
86
Candidatura 5
Autores: Wanderley de Paula Junior & Daniela Zanini
Título: Resiliência: análise das estratégias de coping por pacientes em tratamento
radioterápico
87
88
Resiliência: análise das estratégias de coping por pacientes em tratamento
radioterápico
Wanderley de Paula Junior
Hospital Araújo Jorge (ACCG) e
Daniela Zanini
Universidade Católica de Goiás
Universidade Estadual de Goiás.
[email protected]
[email protected]
Resumo
Esta pesquisa visa descrever e analisar as correlações entre as estratégias de coping,
resiliência, bem-estar subjetivo e estresse. A amostra foi constituída por 60 pessoas, com
idades entre 26 a 82 anos, sendo 40 (66,70%) do sexo feminino e 20 (33,3%) do sexo
masculino, com câncer em radioterapia. Foram aplicadas as escalas de Bem-Estar Subjetivo, o
Inventário de Resiliência e de Sintomatologia de Estresse e Coping Response Inventory – Adult
Form (CRI-A). Os resultados apontam relações significativas entre as estratégias de coping,
fatores de resiliência e bem-estar subjetivo. Percebe-se que as manifestações de sintomas de
estresse psicológicos podem desencadear mais afetos negativos e insatisfação com a vida e
podem ser explicados pelo uso de estratégias de evitação a problemas. Entretanto, os fatores
de resiliência apontam para mais afeto positivo e denotam uso de estratégias de
afrontamento.
Palavras Chaves: Câncer, radioterapia, resiliência, coping, bem-estar subjetivo.
O câncer, segundo Yamaguchi (1994), tem origem nos genes de uma célula e por
processos de mutação se multiplica e forma massa tumoral maligna local e a distância.
Atualmente discute-se a multiplicidade de fatores envolvidos na etiologia desta doença.
89
Dentre estes fatores destacam-se alguns de base comportamental, como uso de álcool e
cigarro, o adiamento na busca de serviços de saúde, a não realização de exames preventivos,
outros de base emocional, como a influência de estados depressivos sob o sistema
imunológico e por fim, os aspectos biológicos tradicionalmente estudados, como a
hereditariedade ou maior vulnerabilidade de alguns órgãos em função da vivência de
determinados fatores de risco. Estima-se 351.720 casos novos de câncer para o Brasil no ano
de 2008 (Instituto Nacional do Câncer – INCA, 2007).
O tratamento desta doença depende de sua classificação em termos de estágio de
desenvolvimento, do órgão afetado, do tecido de origem, dos aspectos morfológicos,
estruturais e o grau de comprometimento em tecidos vizinhos e distantes. Os principais
tratamentos se dividem em: cirurgia, quimioterapia, imunoterapia e radioterapia, sendo este
último foco deste estudo (Yamaguchi, 1994).
A radioterapia como tratamento do câncer começou a ser utilizada em 1899, e seu
objetivo é aplicar uma dose de radiação, a maior possível, com finalidade ideal de controle do
tumor e minimizar os prejuízos aos tecidos normais circunvizinhos. Isolada ou associada à
cirurgia e/ou quimioterapia, é uma modalidade curativa efetiva para muitas neoplasias
malignas com alta taxa de sobrevida nos estádios inicias da doença (Perez, 1999).
Os efeitos colaterais da radioterapia iniciam na segunda ou terceira semana após o início
do tratamento e variam de acordo com a área do corpo a ser tratada, uma vez que a
radioterapia é localizada, e grau de sensibilidade da pessoa à irradiação. De forma geral
paciente pode sentir náuseas, vômitos, tonturas, alopecia, inapetência, sensação de fraqueza,
diarréia, cólicas e ardor ao urinar (Paula Junior, 1998; Garcia & Kosminsky, 1999).Os efeitos
colaterais da radioterapia podem interferir no equilíbrio emocional do paciente e na
credibilidade que o mesmo tem no tratamento.
90
Quanto à credibilidade na irradiação como tratamento, percebe-se que, historicamente
a bomba atômica de Hiroshima, os acidentes radioativos de Chernobyl e do césio-137 em
Goiânia se apresentam como destruição e catástrofe. Quando a utilização de fonte ionizante é
reapresentada como tratamento, a mesma, pode ser percebida com descrédito, enquanto
propriedade terapêutica contra o câncer (Paula Junior, 1998; Garcia & Kosminsky, 1999).
Somados a esta representação e os efeitos colaterais, não é raro encontrar pacientes que
questionam o efeito curativo da radioterapia.
Para Garcia e Kosminsky (1999) podem aparecer emoções negativas em relação à
radioterapia, tais como, medo do aparelho de radioterapia, insegurança, ansiedade, depressão
reativa, sentimentos de impotência, culpa, raiva por estar doente, tristeza entre outros. A
intensidade e duração destas emoções, segundo estes autores, podem estar relacionadas às
variáveis: traços de personalidade; diagnóstico no momento de vida associado à idade,
situação profissional e socioeconômica; posição familiar e religião; experiências passadas em
relação ao câncer, aliados ao conhecimento dos efeitos colaterais e evolução da doença;
preconceitos culturais – câncer como uma sentença de morte e informações leigas obtidas
através dos meios de comunicação.
Arraras et al. (2008) e Bergelt, Lehmann, Beierlein e Koch (2008) analisaram a qualidade
de vida de pacientes com câncer em tratamento radioterápico, através da aplicação do
questionário QL da EORTC. Os resultados apontaram limitações moderadas na qualidade de
vida global quanto à perspectiva futura, funcionamento e prazer sexual e distúrbios do sono.
Os pacientes com câncer de próstata reportaram médias superiores quanto aos sintomas
físicos e funcionamento geral, porém sofreram menos com fadiga, dispnéia e perda do apetite
do que as mulheres com câncer de mama. Pacientes com câncer de mama reportaram maior
efeito colateral do que pacientes com câncer de próstata, provavelmente, devido ao
91
tratamento extensivo antes da radioterapia, como cirurgia e/ou quimioterapia. Durante o
tratamento de radiação, os dois grupos relataram distresse e dor.
Estes estudos demonstraram, de forma geral, que mesmo com os efeitos colaterais do
tratamento, da dor e distresse relatados pelos pacientes, estes apresentaram qualidade de
vida satisfatório. Este dado nos reporta a idéia de superação destes pacientes frente à
adversidade – câncer e tratamento, portanto ao tema resiliência.
Os estudos sobre resiliência iniciaram há mais de trinta anos atrás, quando estes eram
compreendidos como características inatas para resistir e superar aos estressores, ter
imunidade e não virar vítima (Grünspun, 2003).
Assis, Pesce e Avanci (2006) apontam que o conceito de resiliência começou a ser
estudado com mais afinco pela psicologia e psiquiatria designando a capacidade da pessoa de
resistir às adversidades, considerando fatores intrínsecos e extrínsecos. Resiliência é a força
necessária para a saúde mental estabelecer-se durante a vida, mesmo após a exposição a
riscos. Tal exposição pode tornar a pessoa vulnerável no confronto com as adversidades.
Assim, surgem os fatores de proteção que visam formar um anteparo e proteger a pessoa das
situações de estresse.
Para Rutter (1987), os fatores de risco são as situações estressantes da vida, entre elas a
pobreza, as perdas afetivas, as enfermidades, o desemprego, as guerras, as calamidades, etc...
Para este autor, os fatores de proteção são as influências que modificam, melhoram ou
alteram a resposta a um resultado não adaptativo.
Costa e Assis (2006) descrevem que os fatores protetivos são: fortalecimento de
vínculos, relacionamentos emocionais positivos; autonomia que implica em autodeterminação,
a auto-imagem positiva, comportamento pró-social e projeto de vida. Com isto, visa a
92
desenvolver a capacidade para resistir à destruição e se reconstruir perante as adversidades.
Mota, Benevides-Pereira, Gomes e Araújo (2006) acrescentam ainda a crença ou religião, o
favorecimento da comunicação e colaboração de problemas. Ter uma crença ou fazer parte de
uma religião parece construir um anteparo que irá fortalecer a pessoa diante de situações de
vulnerabilidade. Além disso, nos relacionamentos interpessoais o fato da pessoa estabelecer
uma comunicação mais clara e pautada na assertividade pode desencadear numa melhor
resolução dos problemas e maior busca de rede de suporte social.
Pesce et al. (2005) relatam correlação significativa entre resiliência com constructos
como: auto-estima, apoio social, satisfação na vida, saúde física e baixo nível de depressão,
sensação de bem estar e habilidade de lidar com problemas. Estes autores, na revisão teórica,
referem à Máster e Garmezy (1984) e apontam que os estudos com resiliência em crianças
apresentam três variáveis como fatores de proteção: a. características de personalidade, como
auto-estima, flexibilidade, habilidade para resolução de problemas; b. coesão e bom
relacionamento com a família e c. disponibilidade de suporte externo como a escola, grupo de
pares, comunidade, que reforce as estratégias de coping para lidar com eventos estressores.
Segundo Lazarus e Folkman (1984), o coping resulta de esforços cognitivos e
comportamentais da pessoa para lidar com exigências internas ou externas frente a situações
de estresse e que são percebidas por esta pessoa como desafios diante dos próprios recursos.
Para estes autores as situações de estresse são percebidas pelo indivíduo como uma ameaça
ao seu equilíbrio e assim, para superar este perigo a pessoa utiliza-se do coping com vistas a
reestabelecer seu bem-estar.
Costa e Pereira (2007) apontam que bem-estar subjetivo ora é conceituado como
felicidade, prazer ou satisfação com a vida, ora é compreendido como “qualidade de vida
percebida” ou como afeto positivo e afeto negativo. Para estes autores há uma linha
conceitual que considera bem-estar subjetivo como satisfação com a vida, afeto positivo e
93
afeto negativo, entretanto, para outros autores deve-se considerar a auto-aceitação, as
relações positivas com os outros, autonomia, domínio do ambiente, razão de viver e
crescimento pessoal. Entretanto, várias pesquisas sobre coping tem sido realizadas com intuito
de compreender como as pessoas superam adversidades com a finalidade de manter ou
recuperar seu bem-estar.
Gimenez (1997), por exemplo, ao pesquisar 120 mulheres, submetidas à cirurgia de
mastectomia, aponta segundo os resultados obtidos em sua pesquisa que o bem-estar
psicológico foi predito pelas seguintes variáveis: focalizar nos aspectos positivos da situação,
coesão familiar, autoculpa, redução de tensão e complicações de saúde. Os resultados
demonstram que mulheres com altos níveis de bem-estar psicológico tinham famílias coesas e
focalizavam nos aspectos mais positivos da sua vida e da cirurgia de mastectomia. Entretanto,
complicações de saúde e o uso de coping como a autoculpa e redução de tensão para lidar
com a doença indicaram baixos níveis de bem-estar psicológico. Este estudo denota uma
interação entre aspectos intrínsecos, focar nas positividades, traço de personalidade e
aspectos extrínsecos como o suporte social, resultam em melhor bem-estar. Ao contrário
quando a pessoa centra em si mesma e se responsabiliza pelo evento estressor há uma
tendência à redução do bem-estar psicológico.
Heim, Valach e Schaffner (1997), em outro estudo, ao analisar 74 pacientes com câncer
de mama, observadas num período de 3 a 5 anos com 3 a 6 meses de intervalo, descrevem
que o relacionamento interpessoal positivo e as forma de enfrentamento de aproximação,
voltadas para o problema, auxiliam na adaptação psicossocial através do suporte social e
auto-controle. Enquanto, o coping de evitação (negação e fuga) interfere negativamente nesta
adaptação. Este estudo assemelha-se à pesquisa de Gimenez (1997) quanto à importância da
combinação de fatores internos e externos para promoção do bem-estar. Entretanto, esta
94
pesquisa aponta para o uso de estratégias de aproximação, voltadas para o problema como
melhor forma de adaptação.
Pesquisas, com populações diferentes parecem apontar nesta mesma direção como as
de Zanini e Kirchner (2005) que descrevem que estratégias de coping de aproximação ou que
focalizam o problema estão positivamente relacionadas com o estado de saúde e o bem-estar,
em oposição às estratégias evitativas ou focadas na emoção relacionadas a condutas
psicopatológicas ou ao aumento de relatos de mal-estar psicológico em adolescentes.
Assim como a pesquisa de Lisboa et al. (2002), com 87 crianças divididas em dois grupos
vítimas e não vítimas de violência observam que as estratégias evitativas tendem a dificultar o
desenvolvimento saudável. As estratégias que visam enfrentar e solucionar os problemas são
mais adaptativas e funcionais. Para os participantes desta pesquisa que utilizaram estas
estratégias de enfrentar e solucionar o problema observou-se a presença de sentimentos
positivos, bem-estar, alívio e felicidade após a resolução do problema.
Desta forma, com a finalidade de investigar as formas de enfrentamento do paciente
com câncer em tratamento radioterápico, o presente estudo pretende analisar a relação entre
o uso de estratégias de coping, resiliência e auto-relato de bem-estar subjetivo na adaptação e
superação das adversidades nestes pacientes. Para esta pesquisa foram utilizados
instrumentos com a finalidade de atingir o objetivo acima proposto. Entretanto, entendemos
que as teorias que abordam o coping, a resiliencia e o bem-estar subjetivo são complexas e
envolvem a relação de fatores internos, próprios do sujeito, assim como, fatores externos,
relativos ao ambiente.
Método
Participantes
95
Participaram deste estudo 60 pessoas, sendo 40 (66,70%) do sexo feminino e 20 (33,3%)
do sexo masculino, com diagnóstico de câncer e em tratamento radioterápico em um hospital
especializado no tratamento de câncer. As idades variaram entre 26 a 82 anos de idade (M =
52, DP = 13,25). Quanto ao número de aplicações de radioterapia os participantes estavam
entre a quarta e a trigésima quinta aplicação.
Instrumentos
Para este estudo foram utilizados o Coping Response Inventory – Adult Form (CRI - A),
em fase de validação para a população brasileira, pelo Grupo de Estudos em Psicologia
Organizacional, do Trabalho e da Saúde – GEPOTS - da Universidade Católica de Goiás, o
Inventário de Resiliência, de Benevides-Pereira e Moreno-Jiménez (2008), a Escala Bem-Estar
Subjetivo, de Albuquerque e Tróccoli (2004), o Inventário de Sintomatologia de Estresse, de
Benevides-Pereira e Moreno-Jiménez (2002).
O CRI – A de Moos (1993) mede oito tipos de estratégias de coping, que se agrupam em
três partes: 1ª) o participante da pesquisa descreve uma situação estressante que vivenciou
nos últimos 12 meses; 2ª) o sujeito avalia 10 perguntas sobre os seguintes temas experiência
prévia, prejuízos, responsabilidade do evento estressante; 3ª) e por fim, responde a 48
perguntas sobre comportamentos que utiliza ao enfrentar um problema. Estas perguntas são
respondidas de acordo com quatro alternativas de tipo likert, e as respostas se agrupam
posteriormente, por meio da adição direta dos itens nas oito escalas de estratégias de coping.
O CRI – A possibilita classificar o conjunto de estratégias de coping segundo o foco em
estratégias de aproximação e de evitação a situações estressantes. Assim, o CRI-A mede os
esforços cognitivos e comportamentais dos indivíduos ao enfrentarem um problema de forma
direta (coping de aproximação) medidos por quatro fatores: análise lógica, reavaliação
positiva, busca de apoio e resolução de problemas; ou indireta (coping de evitação) também
96
medidos em quatro fatores: evitação cognitiva, aceitação/resignação, busca de gratificação
alternativa e descarga emocional (Moos, 1993).
O Inventário de Resiliência de Benevides-Pereira e Moreno-Jiménez (2008), se constitui
de 40 itens que expressam ações ou atitudes afirmativas e os participantes assinalam numa
escala de 1 a 5, se estão totalmente em desacordo (1), em desacordo (2), nem de acordo, nem
em desacordo (3), de acordo (4), e totalmente de acordo (5). Estes itens foram reduzidos a 24
itens para análise, sendo que 16 itens foram excluídos uma vez que repetem as afirmações já
feitas para confirmação dos dados e agrupados em 6 fatores: fator 1 (F1) inovação e
tenacidade, fator 2 (F2) hiperemotividade, fator 3 (F3) assertividade, fator 4 (F4) empatia, fator
5 (F5) satisfação no trabalho e fator 6 (F6) competência emocional.
A Escala de Bem-Estar Subjetivo de Albuquerque e Tróccoli (2004) compõe-se de
62 itens. Na primeira parte da escala, os itens vão do número 1 ao 47 e descrevem
afetos positivos e negativos, devendo o sujeito responder como tem se sentido
ultimamente numa escala em que 1 significa nem um pouco e 5 significa
extremamente. Na segunda parte da escala, os itens vão do número 1 ao 15 e
descrevem julgamentos relativos à avaliação de satisfação ou insatisfação com a vida,
devendo ser respondidos numa escala onde 1 significa discordo plenamente e 5
significa concordo plenamente.
O Inventário de Sintomatologia de Estresse (ISE), de Benevides-Pereira e
Moreno-Jiménez (2002) apresenta 30 itens afirmativos, numa freqüência do tipo
Likert, de 0 para “nunca”, 1 “raras vezes”, 2 “moderadamente”, 3 “freqüentemente”
até o 4 “assiduamente”, relativos aos sintomas referenciados na literatura como
freqüentes ou característicos de estresse no dia a dia. Estes itens agrupam-se
formando as escalas: sintomas físicos (SF); sintomas psicológicos (SP).
97
Procedimento
Após ter sido avaliado e aprovado o projeto de pesquisa pelo comitê de ética em
pesquisa, protocolo No. 039/07, os participantes da pesquisa foram abordados pelo
pesquisador responsável ou auxiliar de pesquisa, orientados sobre os objetivos e convidados a
participar da mesma. Após aceitação foram convidados a assinar o Termo de Consentimento
Livre e Esclarecido.
Os participantes foram selecionados aleatoriamente num grupo de pacientes em
tratamento radioterápico e aplicados os instrumentos na seguinte ordem: Coping Response
Inventory – Adult Form (CRI - A); Inventário de Resiliência; Escala Bem-Estar Subjetivo;
Inventário de Sintomatologia de Estresse. O tempo de aplicação dos instrumentos variou
segundo condições médicas dos participantes. Em geral o tempo médio de aplicação foi de 2
horas.
Resultados
A análise desta pesquisa foi realizada através do pacote estatístico para Windows SPSS
versão 14.0.
Para avaliar o uso diferencial de estratégias de coping, os fatores da escala de resiliência,
da escala de bem-estar subjetivo e da escala de sintomatologia de estresse entre a amostra
quanto ao sexo, utilizou-se à técnica de Kruskal-Wallis, devido a número reduzido da amostra
(N = 60). Os dados são apresentados na tabela 1.
Segundo se observa na tabela 1, as mulheres relataram um uso superior das estratégias
de análise lógica (Z = -2,36 e p = 0,02), resolução de problemas (Z = -3,08 e p = 0,02) e descarga
emocional (Z = -2,96 e p = 0,00).
98
No Inventario de Resiliência observa-se que os fatores da escala que apresentaram
resultados significativos foram hiperemotividade (Z = -3,49 e p = 0,00) e empatia (Z = -2,30 e p
= 0,02) (ver tabela 1).
Na Escala de Bem-Estar Subjetivo o afeto negativo (Z = -2,24 e p = 0,02), satisfação
com a vida (Z = -2,21 e p = 0,03) e insatisfação com a vida (Z = -2,24 e p = 0,02) foram os
resultados mais significativos, sendo que as mulheres apresentam escores maiores para o
afeto negativo e a insatisfação com a vida, enquanto os homens denotam nos resultados maior
satisfação com a vida.
Em relação ao Inventário de Sintomatologia do Estresse, o estudo de comparação de
médias, segundo o sexo (tabela 1), revelou que são as mulheres que relatam mais sintomas
psicológicos em comparação aos homens (Z = -2,98 e p = 0,00).
Tabela 1. Descritivos de coping, resiliência, bem-estar subjetivo e sintomas de estresse.
Variável
Sexo
Masculino
Feminino
Z
P<
m (DP)
m (DP)
Análise lógica
7,10 (3,42)
9,35 (3,63)
-2,36
0,02**
Resolução de
problemas
7,30 (2,96)
10,05 (3,22)
-3,08
0,02**
Descarga emocional
3,05 (2,05)
5,25 (2,74)
-2,96
0,00**
33,85(10,46)
41,10 (8,35)
-2,56
0,01**
9,60 (2,19)
11,70 (1,71)
-3,49
0,00**
Estratégias de coping
Cri-Afrontamento
Fatores de Resiliência
Hiperemotividade
99
Empatia
9,85 (2,03)
11,15 (1,44)
-2,30
0,02**
Fatores de Bem-Estar Subjetivo
Afeto negativo
43,05 (16,07)
56,48 (21,52)
-2,24
0,02**
Satisfação com a
vida
31,85 (4,23)
28,25 (6,40)
-2,21
0,03**
Insatisfação com a
vida
17,60 (4,17)
20,35 (4,81)
-2,24
0,02**
18,97 (11,22)
-2,98
0,00**
Fator de Sintomatologia de Estresse
Sintomas
Psicológicos
10,11 (8,41)
Para avaliar a relação entre as variáveis analisadas procedeu-se um estudo correlacional
de Pearson. Os dados são apresentados na tabela 2.
Tabela 2. Análise de correlação de Pearson: coping, resiliência, bem-estar subjetivo e
sintomatologia de estresse.
Coping
Resiliência
Bem-Estar Subjetivo
Sintomatologia de
estresse
IT
He
As
E
ST
CE
AP
AL
SCV
.390**
RP
.311*
.467**
BA
.381**
.350**
PS
ICV
SF
.348**
SP
.449**
.291*
.492**
EC
.329*
AR
-.307*
BGA
.371**
DE
AN
.327*
.271*
.281*
-.272*
.421**
.367*
-.266**
.404**
-.261*
.407**
.387**
*Correlação significativa a 0.05 (2-tailed).
100
**Correlação significativa a 0.01 (2-tailed).
AL = Análise lógica; RP = Reavaliação positiva; BA = Busca de apoio; PS = Resolução de problemas; EC =
Evitação Cognitiva; AR = Aceitação Resignação; BGA = Busca de gratificação alternativa; DE = Descarga
emocional.IT = Inovação e Tenacidade; He = Hiperemotividade; As = Assertividade; E = Empatia; ST =
Satisfação no Trabalho; CE = Competência Emocional.
AP = Afeto Positivo; AN = Afeto Negativo; SCV = Satisfação com a Vida; ICV = Insatisfação com a Vida. SF
= Sintomas Físicos; SP = Sintomas Psicológicos.
De acordo com a análise de correlação de Pearson podemos observar que quanto mais o
participante da pesquisa utiliza estratégia de coping análise lógica, mais afeto negativo (r =
0,390; p = 0,002), insatisfação com a vida (r = 0,348; p = 0,006) foram relatados, assim como,
mais sintomas psicológicos (r = 0,449; p = 0,001). Portanto, o uso de estratégias de
enfrentamento do tipo análise lógica parecem desencadear maior desconforto quanto ao
bem-estar subjetivo e maior sintomas de estresse com características psicológicas.
Pode-se notar que a reavaliação positiva se relaciona com satisfação no trabalho (r =
0,311; p = 0,016), com afeto positivo (r = 0,467; p = 0,000) e com satisfação com a vida (r =
0,291; p = 0,024). Enquanto a estratégia análise lógica parece resultar em maior desconforto
psicológico, as estratégias que envolvem reavaliação positiva apresentam resultados mais
positivos quanto ao bem-estar subjetivo e satisfação no trabalho.
O uso de estratégia de busca de apoio parece denotar maior satisfação no trabalho (r =
0,381; p = 0,003) e afeto positivo (r = 0,350; p = 0,007). A estratégia de coping resolução de
problema pode se correlacionar com afeto positivo (r = 0,492; p = 0,000); enquanto evitação
cognitiva parece se correlacionar com afeto negativo (r = 0,329; p = 0,010) e com sintomas
psicológicos (r = 0,281; p = 0,036). Enquanto que a busca de apoio e a resolução de problema
se relacionam com melhor qualidade do bem-estar subjetivo, a evitação cognitiva parece
desenvolver mal estar subjetivo com conseqüências psicológicas para os sintomas de estresse.
101
Quanto mais os sujeitos utilizaram estratégia de aceitação/resignação, menos se pode
observar o afeto positivo (r = -0,307; p = 0,019) e menos satisfação com a vida (r = -0,272; p =
0,039), porém, mais se pode notar o afeto negativo (r = 0,271; p = 0,040), a insatisfação com a
vida (r = 0,421; p = 0,001) e os sintomas psicológicos (r = 0,367, p = 0,006). A estratégia de
coping busca de gratificação alternativa se relaciona positivamente com afeto positivo (r =
0,371; p = 0,003) e inversamente com sintomas físicos (r = -0,266; p = 0,043). Descarga
emocional parece relacionar com o aumento dos fatores hiperemotividade (r = 0,327, p =
0,011), afeto negativo (r = 0,404; p = 0,01), insatisfação com a vida (r = 0,407; p = 0,001) e
sintomas psicológicos (r = 0,387; p = 0,003), e diminuir o fator satisfação com a vida (r = -0,261;
p = 0,044).
Aceitação/resignação e descarga emocional também são estratégias de
enfrentamento que podem resultar em afetos negativos e menor satisfação com a vida,
resultando em aparecimento de sintomas de estresse psicológicos. Veja dados na tabela 2.
Discussão
As médias consideradas com graus de significâncias apresentadas para as freqüências
das estratégias de coping, entre os grupos do sexo masculino e feminino, foram similares aos
dados apresentados na pesquisa por Moos (1993). Estes dados, além de serem concordantes
com os dados apresentados por este autor, denota que as mulheres apresentam médias
maiores do que os homens nas estratégias de análise lógica, resolução de problemas e
descarga emocional. O fato do número de mulheres pesquisadas serem superior ao dos
homens, parece não ter interferido nestes resultados, uma vez que os estudos sobre coping
têm reforçado estes dados, assim como na pesquisa de Moos (1993).
Quanto ao instrumento de sintomatologia de estresse, os sintomas psicológicos
apresentam serem significativos entre grupos. A amostra do sexo feminino aponta média bem
maior de sintomas psicológicos do que a amostra masculina, o que indica que as mulheres,
102
neste grupo analisado, podem apresentar maior grau de vulnerabilidade ao estresse em
detrimento do sofrimento psicológico do que o grupo de homens.
Mota et al., (2006), Bergelt et al., (2008), Sehgal et al., (2008) apresentam resultados
similares em suas pesquisas quanto o predomínio de sintomas psicológicos de estresse nas
mulheres. Nestes estudos as pacientes com câncer de mama reportam maior efeito colateral,
fadiga e problemas de sono do que os pacientes com câncer de próstata. Entretanto, durante
o tratamento de radiação, os dois grupos apontam distresse e dor. Porém, as pacientes com
câncer de mama parecem recuperar mais lentamente quando consideramos o funcionamento
geral e emocional relativos à qualidade de vida, segundo Bergelt et al., (2008).
Em nosso estudo os dados também apontam para o aparecimento maior de sintomas
psicológicos de estresse nas mulheres pesquisadas, porém percebe-se que as mesmas também
buscam mais estratégias de coping para superar os problemas, principalmente as estratégias
de aproximação.
Heim, Valach e Schaffner (1997) apontam que o relacionamento interpessoal positivo e
as formas de enfrentamento de aproximação, voltadas para o problema, auxiliam na
adaptação psicossocial através do suporte social e auto controle. Enquanto, o coping de
evitação (negação e fuga) interfere negativamente nesta adaptação. Este estudo assemelha-se
à pesquisa de Gimenez (1997) quanto à importância da combinação de fatores internos e
externos para promoção do bem-estar.
Algumas pesquisas descrevem também que estratégias de coping de aproximação ou
que focalizam o problema estão positivamente relacionados com o estado de saúde e o bemestar. Em oposição, as estratégias evitativas ou focadas na emoção dificultam o
desenvolvimento saudável e pode desencadear condutas psicopatológicas ou aumento de
relatos de mal-estar psicológico (Zanini e Kirchner, 2005; Lisboa et al., 2002).
103
Na nossa pesquisa, as estratégias de coping parecem influenciar nos afetos. Assim,
podemos dizer que o uso de estratégias de evitação ao problema pode levar não só a maior
relato de percepção de afetos negativos como também, a uma menor percepção de afetos
positivos, enquanto que, os pacientes que enfrentam seus problemas por meio de estratégias
de enfrentamento direto relatam mais afetos positivos. Por fim, as estratégias de evitação a
problemas parecem também explicar a insatisfação com a vida e marginalmente a
manifestação de sintomas psicológicos.
Em relação ao estudo correlacional, observa-se que a Aceitação/resignação e descarga
emocional também são estratégias de enfrentamento que estão associadas com afetos
negativos e menor satisfação com a vida, resultando em aparecimento de sintomas de
estresse psicológicos. Por outro lado, as formas de enfrentamento através da busca de
gratificação alternativa parecem se associar com um maior auto-relato de afeto positivo e
menor probabilidade de surgimento de sintomas físicos para sintomas de estresse.
Inovação e tenacidade embora não relacionem com a forma de enfrentamento do
problema, denotam maior assertividade e satisfação no trabalho e conseqüentemente, maior
bem-estar subjetivo através do afeto positivo e menor aparecimento de sintomas psicológicos.
Deste modo, podemos postular que, para o paciente com câncer, em tratamento
radioterápico, o uso de estratégias de coping que buscam a solução direta do problema
parecem estar associadas a índices mais elevados de resiliência em termos de inovação e
tenacidade, assim como, relacionados a contextos de trabalho.
Competência emocional que é um dos fatores da resiliência não se correlacionou com
nenhum dos fatores de coping, bem-estar subjetivo, sintomatologia de estresse. É importante
ressaltar que o fator competência emocional no instrumento utilizado de Benevides-Pereira e
Moreno-Jiménez (2008) é composto somente por dois itens. Além disso, os dois itens referemse à expressão verbal dos sentimentos. O baixo número de itens e a direção da competência
104
emocional como capacidade de expressão verbal dos sentimentos podem interferir na
qualidade da resposta. Estudos posteriores deveriam ser desenvolvidos a fim de verificar novas
possibilidades de avaliação de competência emocional que não somente aquela associada à
expressão verbal de sentimentos.
Na escala de bem-estar subjetivo, os participantes da pesquisa, denotam utilizar mais de
afeto positivo e, portanto, obter mais satisfação com a vida do que afeto negativo e
conseqüentemente, menos insatisfação com a vida. Para Gimenez (1997) e Schroevers, Kraaij,
Garnefski (2008), os altos níveis de bem-estar psicológico entre outros fatores, estavam
relacionados com o foco nos aspectos positivos para lidar com os eventos.
Arraras et al., (2008), Bergelt et al., (2008), também discutem que apesar do estresse e
da dor durante o tratamento de radioterapia, o fato, dos pacientes analisados focarem nos
afetos positivos proporcionaram melhor bem-estar subjetivo.
Para Albuquerque e Tróccoli (2004), o bem-estar subjetivo tem três características
fundamentais: a subjetividade, as medidas positivas e a avaliação global. Entretanto, quando
fazemos referência aos estudos com pacientes oncológicos em radioterapia, aliado a nossa
pesquisa, pode-se compreender que apesar do diagnóstico de câncer, dos efeitos colaterais e
adversidades do tratamento entre outros, é possível afirmar que resiliência não implica
simplesmente na cura do câncer, mas a forma como a pessoa lida com a doença e tratamento
em diferentes momentos deste processo. Resiliência, neste contexto, pode ser compreendida
como um fenômeno processual e complexo, que visa superar e ressignificar as situações
adversas ao longo da própria vida de forma positiva.
Por fim, conclui-se que os objetivos deste trabalho foram alcançados ao descrever as
estratégias de coping e relacioná-las com o estresse, com o auto-relato de bem-estar subjetivo
e a resiliência. Nota-se, porém, que apesar dos estudos transversais terem uma grande
105
contribuição para a pesquisa ao analisar um recorte na história da pessoa investigada, estes
estudos perdem em termos de análise processual. Os estudos longitudinais, parafraseando
Straub (2005), voltados para o estudo da perspectiva do curso de vida, eliminam fatores
confusos, como por exemplo, a diferença na forma como a pessoa lida com estresse. Por outro
lado são estudos demorados e caros. Porém, sugerimos que novos estudos devem ser
realizados com a finalidade da aprofundar mais sobre este assunto e com isto ampliar ainda
mais o conhecimento deste tema.
Referências Bibliográficas
Albuquerque, A., & Tróccoli, B. (2004, Maio-Agosto). Desenvolvimento de uma Escala de BemEstar Subjetivo. Psicologia: Teoria e Pesquisa, 20 (2), 153-164.
Arraras, J., Manterola, A., Dominguez, M., Arias, F., Villafranca, E., Romero, P., et al. (2008,
Agosto). Impact of Radiotherapy on the Quality of Life of Elderly Patients with Localized Breast
Câncer. A Prospective Study. Clinical Transl. Oncology, 10(8), 498-505.
Assis, S., Pesce, R., & Avanci, J. (2006). Resiliência: Enfatizando a proteção dos Adolescentes.
Porto Alegre: Artmed.
Benevides-Pereira, A.M., & Moreno-Jiménez, B. (2002). O Burnout em um grupo de psicólogos
brasileiros. In: Burnout: Quando o Trabalho Ameaça o Bem-Estar do Trabalhador (pp. 157-185).
São Paulo: Casa do Psicólogo.
Benevides-Pereira, A.M., & Moreno-Jiménez, B. (2008). Inventário de Resiliência. Maringá, SP,
dados inéditos não publicados.
Bergelt, C., Lehmann, C., Beierlein, V., Koch, U. (2008). Quality of life and treatement side
effects before and after radiation therapy. Psycho-Oncology 17(SI-S348), pp. S288. Publicado
online do Wiley Interscience web site: www.interscience.wiley.com.
Costa, C., & Assis, S. (2006, setembro - dezembro). Fatores Protetivos a Adolescência Em
Conflito Com a Lei No Contexto Socioeducativo. Psicologia e Sociedade, 18(3), 74-81.
Costa, L., & Pereira, C. (2007). Bem-Estar Subjetivo: aspectos conceituais. Arquivos Brasileiros
de Psicologia, 59(1).
Garcia, I., & Kosminsky, F. (1999). Aspectos Psicossociais do Paciente em Radioterapia. In
Salvajoli, J., Souhami, L., & Faria, S.L. Radioterapia em Oncologia (pp. 267-273). Rio de Janeiro:
Medsi.
106
Gimenez, M.G. (1997). A Mulher e o Câncer. São Paulo: Editorial Psy.
Grünspun, H. (2003). Conceitos sobre resiliência. Revista Bioética, 10(1). Recuperado em 12 de
outubro, 2007, do Web site: http://www.portalmedico.org.br/revista/bio10v1/seccao4.1.htm.
Heim, E., Valach, L., & Schaffner, L. (1997). Coping and Psychosocial Adaptation: Longitudinal
Effects Over Time and Stages in Breast Cancer. Pscychosomatic Medicine, 59, 408-418.
Instituto Nacional do Câncer – INCA (2007). Incidência de Câncer no Brasil. Recuperado em 22
agosto, 2008 de http://www.inca.gov.br.
Lazarus, R., & Folkman, S. (1984). Stress, Appraisal and Coping. New York: Springer.
Lisboa, C., Koller, S., Ribas, F., Bitencourt, K., Oliveira, L., Porciúncula, L., & De Marchi, R.
(2002). Estratégias de Coping de Crianças Vítimas e Não Vítimas de Violência Doméstica.
Psicologia. Reflexão e Crítica, 15(2), 345-362.
Moos, R. (1993). CRI-Adult Form Professional Manual. Psychological Assessment Resources.
Flórida, USA.
Mota, D., Benevides-Pereira, A.M., Gomes, M., & Araújo, S. (2006, Julho - Dezembro). Estresse
e resiliência em doença de Chagas. Aletheia, 24, 37-68.
Paula Junior, W. (1998). A Intervenção Psicológica no Tratamento Radioterápico. In Carvalho,
M.M. (org.). Psico-Oncologia no Brasil: Resgatando o Viver (pp. 110-116). São Paulo: Summus.
Perez, C. (1999). Perspectivas Futuras em Radioterapia (Para o Século XXI). In Salvajoli, J.,
Souhami, L., & Faria, S. Radioterapia em Oncologia (pp. 19-34). Rio de Janeiro: Medsi.
Peres, J., Mercante, J., & Nasello, A. (2005, Maio - Agosto). Promovendo Resiliência em Vítimas
de Trauma Psicológico. Rev. Psiquiatria, 27(2), 131-138.
Pesce, R., Assis, S., Avanci, J., Santos, N., Malaquias, J., & Carvalhães, R. (2005, Março - Abril).
Adaptação Transcultural, Confiabilidade e Validade da Escala de Resiliência. Cad. Saúde
Pública, 21(2), 436-448.
Rutter, M. (1987, Julho). Psychosocial resilience and protective mechanisms. American Journal
of Orthopsychiatry. 57(3), 316-331.
Schroevers, M., Kraaij, V., & Garnefski, N. (2008). The Role of Cognitive Coping and SelfRegulatory Process in Cancer Patients Report of Negative and Positive Affect. Psycho-Oncology,
17(SI-S348), pp. S95. Publicado online do Wiley Interscience, web site,
www.interscience.wiley.com.
107
Sehgal, S., Hickman, S., Casden, D., Clark, K., Loscalzo, M., & Bardwell, W. (2008). Gendar
Differences of Psychosocial Distress in Cancer Patients. Psycho-Oncology, 17(SI-S348), pp.
S108. Publicado online in Wiley Interscience, web site, www.interscience.wiley.com.
Straub, R. (2005). Psicologia da Saúde. Porto Alegre: Artmed.
Zanini, D., Forns, M., & Kirchner, T. (2005). Estratégias de Afrontamento: Implicación en la
salud mental de los adolescents catalanes. Recuperado em 20 agosto, 2008, do web site
http://www.psiquiatria.com/interpsiquis2003/9908.
108
Candidatura 6
Autores: Ana Cecília Ferreira e Valéria Barbieri
Título: Vivência materna em gestante de Alto Risco por Diabetes Mellitus Pré-Gestacional: um
estudo de caso
109
VIVÊNCIA MATERNA EM GESTANTE DE ALTO RISCO POR DIABETES MELLITUS PRÉGESTACIONAL: UM ESTUDO DE CASO
Ana Cecília Ferreira5
Valéria Barbieri6
Departamento de Psicologia e Educação
Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto-Universidade de São Paulo
INTRODUÇÃO
A gestação é acompanhada por estados emocionais característicos, como acessos de
ansiedade e de fantasias bem determinadas e específicas, alteração da auto-imagem,
mudança de identidade, que se entrelaçam às complexas inter-relações entre fatores
hormonais e psicológicos. Todo o funcionamento psíquico do bebê tem como pré-condição
para um desenvolvimento saudável os cuidados maternos: “(...) pode-se dizer que, de início, a
mãe deve adaptar-se de modo quase exato às necessidades de seu filho para que a
personalidade infantil se desenvolva sem distorções”(Winnicott, 1997, p. 9).
Em “Notas sobre o Relacionamento Mãe-filho”, Winnicott (1994) analisa que há muitas
maneiras de abordar a relação de uma mãe com o seu bebê, no que se refere às fantasias
5
Mestranda do Departamento de Psicologia da Faculdade de Filosofia Ciência e Letras de Ribeirão Preto
da Universidade de São Paulo –USP ([email protected]).
6
Professora Doutora do Departamento de Psicologia da Faculdade de Filosofia Ciência e Letras de
Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo –USP ([email protected]).
110
conscientes e inconscientes, aos problemas com o bebê, à amamentação, e aos cuidados em
geral, uma vez que tudo isso propicia à mãe sentir o bebê como real.
Neste sentido, parece importante analisar os aspectos da personalidade da gestante,
suas necessidades, como está vivenciando os seus conflitos pessoais e relativos à
maternidade.Uma vez que a origem da vida mental do bebê ocorre no ventre materno, o
bebê sofre, por estar vinculado à mãe, as interferências das experiências dela.
É interessante, ainda, ressaltar, que a construção dessa relação mãe – bebê se
estabelece desde o projeto de ser mãe e se desenvolve na gestação. Winnicott (1990,
considera tal relação como experiência essencial para o par, desde o período gestacional até
o cuidado no puerpério. Fixa o tempo de gestação como uma preparação para o bebê iniciar
o seu percurso de constituição de ser integral. O bebê, desde o seu nascimento, experimenta
vivências afetivas relevantes para o seu desenvolvimento emocional. Os processos iniciais do
desenvolvimento o direcionam para uma integração e personalização, cuja estruturação
começa no início cronológico de vida: “(...) sugiro que ao final dos nove meses de gestação, o
bebê torna-se maduro para o desenvolvimento emocional”(Winnicott, 1990, p. 273).
Especificamente nos casos de grávidas diabéticas, Aquino et al (2003) atentam para a
importância de avaliar o risco da gestante, uma vez que a influência do Diabetes na gravidez
depende do controle glicêmico. A manutenção da euglicemia no período pré-concepcional e
na gestação previne complicações para a mulher e para o bebê.
Na gestação de alto risco por Diabetes Mellitus pode ocorrer má- formação congênita,
mortalidade perinatal, prematuridade, hipoxemia crônica, asfixia e macrossomia no feto, bem
como o abortamento e, como alterações maternas, a toxemia (alobuminúria, edeme e
hipertensão arterial) e o polidrâmnios (aumento da quantidade de líquido amniótico)
(Maganha et al, 2002; Jones, 2001; Montenegro et al, 2001)
111
Alguns estudos (Har-Even et al (2002); Hiluey (2000); Evans e O’Brien (2005)) acerca da
vivência da gestação de alto risco revelam, cada vez mais, a necessidade não só de uma
abordagem biológica do tema, como também psicológica, já que o indivíduo tem que ser
compreendido dentro de suas várias redes de significações (Rosseti-Ferreira et al, 2000), que
são muito mais amplas e complexas do que ainda se investiga.
OBJETIVOS
O presente estudo consiste na análise da vivência materna de uma gestante com
Diabetes Mellitus Pré-Gestacional, com o objetivo de verificar as repercussões afetivas dessa
patologia no período da gravidez, investigando se a situação de alto risco promove o
surgimento de um estado psicológico particular, caracterizado pela presença de conflitos,
tensões e angústias existenciais, que possa comprometer tanto a gestação como a experiência
materna após o parto.
MÉTODO
Foi utilizado, como instrumento para avaliação psicológica, uma entrevista semiestruturada abordando os seguintes tópicos: dados de identificação, vivências durante a
gravidez, vivências na gestação de alto risco, relação com o meio social imediato (pais, esposo,
filhos) situação de saúde, histórico de Diabetes na família, surgimento e desenvolvimento do
Diabetes. A avaliação psicológica foi feita em duas sessões, sendo inicialmente apresentado o
Termo de Consentimento Livre e Esclarecido, e, após sua assinatura, realizada a entrevista
semi-estruturada e a aplicação do TAT segundo referencial de Morval (1982).
A análise dos dados seguiu a metodologia “clínico-qualitativa”, em que são utilizados
técnicas e procedimentos que permitem a compreensão das relações de sentidos e
significados de determinados fenômenos humanos (Turato,2003).
112
RESUMO DA ENTREVISTA
Dados de identificação
Fernanda, 40 anos, do lar, primeiro grau de escolaridade e 37 semanas de gestação.
Casada há 17 anos, seu marido trabalha como caminhoneiro. A família de origem composta
por pai, pedreiro, mãe do lar, e mais quatro irmãos, dois deles ( irmã e irmão) mais velhos que
ela e dois mais novos.
História Pessoal
De acordo com o relato de Fernanda, sua infância “foi normal” e feliz, “ a infância foi
boa, meus pais criaram a gente com muito carinho, nunca tive problema, estudava, não faltava
nada”. Menciona o ótimo relacionamento de seus pais e da situação financeira da família, que
para ela era boa.
Uma lembrança ótima que Fernanda tem da infância foi quando ganhou uma boneca
de presente de Natal: “eu gostei muito quando eu ganhei uma boneca muito grande, era
novidade, quase não tinha muitas bonecas grandes”.
Outra lembrança: “quando eu estava na 4º. Série, eu fiz uma redação, acho que sobre a
natureza, e eu ganhei a melhor redação da escola, foi uma coisa boa que aconteceu, fizeram
uma homenagem, chamaram meus pais e eu gostei”!
Na escola Fernanda era uma aluna tranqüila: “ eu era quieta, né, gostava muito de
estudar, gostava das aulas tudo e tinha amizade, não era uma criança briguenta”. Menciona
que não costumava brincar no recreio: “brincar mesmo de nada, gostava de ficar sentada na
beira da quadra vendo a molecada atentada brinca”.
Recorda que “tinha amigas, né ? Muitas que estudou comigo, que eram vizinhas, a
gente ficava sempre junto, né?”
113
Fernanda gostava de brincar, mas segundo relata “ (...) chega uma certa idade que tem
que ajudar em casa.”, algo que não lhe agradava. Conforme acentua: “ tinha que arear panela
com cinza, tinha que ficar impecável, não gostava de arear panela e encerar o chão”.
Uma grande tristeza: quando Fernanda tinha 9 anos, perdeu a avó, “ a sensação que
dava era o medo de ver a mãe naquele desespero, a impressão que dava é que a gente ia
perder a mãe também(...) engraçado que nessa época aí, eu não gostava de arear panela, mas
eu fazia tudo para agradar. Então a gente ficava tudo em volta pra não deixar ela nervosa”.
A adolescência de Fernanda foi um período de restrição e tranqüilidade. Fernanda
conta que teve que esperar para namorar por causa da proibição de seu pai, o que não causou
nenhuma revolta. Refere-se à fase de namoro como “normal, meu pai era muito bravo, não
deixava eu namorar. Criado naquele ritmo que só vai namorar no dia em que tiver idade(...)
meu pai nunca soltou nós para ir numa sorveteria sozinhos. Só ia deixar namorar quando
tivesse dezoito anos”. Esse relato é permeado de prazer, Fernanda significa essa atitude
paterna como cuidadosa. Conta que aos quinze anos um rapaz se interessou por ela e
começou a freqüentar a sua casa, como amigo exclusivamente. Ele esperou até ela completar
dezoito anos para namorarem. Após oito meses de namoro se separaram porque Fernanda
percebeu que não gostava tanto dele assim. Contou também que não suporta traição,
mentiras e que o seu segundo namorado, por quem era apaixonada, provavelmente a tinha
traído e, por esta razão, ela terminou o namoro e não o perdoou: “na hora que fica sabendo
disso, dá uma revolta muito grande, dá vontade mandar o moço sumir e não aparecer nunca
mais”. Fernanda fala que seus pais foram coniventes com ela e os elogia no tocante aos
valores que eles passaram aos seus filhos: “ minha mãe e meu pai com aquela mania de ser
certinho, tudo bonitinho, tudo”.
114
Demonstra bastante satisfação com essa referência familiar “ então eu era uma moça
muito certinha, então meu pai não aceitava, ele falava: você não aja com falta de respeito, ele
não dá valor, você vai casar, então foi assim que a gente foi criada lé em casa”.
Ao falar de seu casamento, Fernanda conta que quando ela e seu marido começaram a
namorar, eles já se conheciam há quatro anos e se encontravam em situações semelhantes: os
dois haviam terminado o noivado e estavam decepcionados com os ex-noivos. Essas
circunstâncias, talvez, lhes tenha ajudado a construir o que é essencial num relacionamento, a
confiança: “e aí, deu tudo certo, que ele já tava carimbado e eu também(...) ele via que eu era
uma moça de família, uma moça de respeito, direita. Dou muito valor na educação que meu
pai e minha mãe deu para nós. Hoje já não tem mais isso.”
Alguns fatos que Fernanda relembra feliz foram os elogios das vizinhas para ela e as
suas irmãs, “as vizinhas brincavam, quero que meus filhos casem com as meninas de Dona
Maria”. Outra recordação que a deixava feliz eram as festas em sua casa todos os anos no dia
31 dezembro até o dia seguinte: “então era uma coisa muito boa. Ah, reunia os amigos, era
uma data, tava todo mundo bem, todo mundo feliz. Era muito gostoso.”
Aos quinze anos Fernanda descobriu que tinha ovário infantil. Até então sua saúde
tinha sido boa. A partir daí teve que tomar remédios para menstruar e até os dezessete anos
menstruava pouco. Nessa época ela ficou sabendo por um médico que não poderia ter filhos e
ficou um pouco abatida: “no dia que o médico falou, fiquei um pouco abatida, triste né, mas já
no outro já esqueci, eu achei que aquilo ali não era verdade, não acreditei não, parece que não
acreditei muito não”.
Antes de se casar contou ao noivo que não poderia ter filhos e ele foi muito
compreensivo, dizendo que isso não era problema e que se, de fato, não tivessem filhos
biológicos, poderiam optar pela adoção.
115
Relacionamento Interpessoal
As considerações de Fernanda sobre o marido retratam a satisfação com o
relacionamento e admiração por ele: “ah, ele é muito amoroso, muito, muito meigo, muito
calmo, assim uma coisa que eu acho muito importante nele, ele é calmo demais, se ele fosse
nervoso talvez a gente não combinava não, mas ele é bem calmo”.
Seu relacionamento com os irmãos é amistoso e ela o define como bom, com a
ressalva da irmã mais velha que, segundo Fernanda, possui um temperamento difícil:
“ela é
nervosa”.
Sobre sua mãe, Fernanda se identifica com ela, afirma ter muito dela, porque sua mãe
era uma pessoa certinha e muito exigente, que gostava de manter a casa em ordem, com
horário para tudo. Além de mencionar que herdou essas características, mostra-se orgulhosa
por ser admirada pelo marido por isso e por ter sido sempre ajuizada e certinha em tudo,
apesar de, às vezes, ele
reclamar um pouco pelas suas exigências no tocante ao
funcionamento da casa, onde tudo tem que estar sempre nos seus devidos lugares.
Em relação ao pai, fala que atualmente “ele está muito dengoso”, exigindo atenção dos
filhos. Embora tenha outra esposa, ele reclama se ela não o visita ou não lhe telefona.
Maternidade
Em função da impossibilidade da gravidez, tentaram adotar uma criança, porém sem
sucesso: “na hora assim dava tudo errado. Eu fiquei sabendo de um menino de um ano e meio
de Colina que tava abandonado pela mãe, tava no Fórum”. O juiz decidiu que “eu, não podia
jamais impedir o contato da mãe com a criança que ela era adotada e que quando ele
crescesse, se ele quisesse viver com a mãe, eu ia ter que deixar”. Sendo assim, Fernanda
desistiu de adotar a criança. Outras tentativas igualmente não foram bem sucedidas e nesse
ínterim, Fernanda engravidou. Ficou tão surpresa, que só acreditou depois de fazer uma
116
ultrassonografia: “só vi o coraçãozinho piscando assim, aí na hora assim, ao mesmo tempo que
fiquei feliz, eu fiquei preocupada porque falou assim: você vai fazer muito repouso, senão pode
perder, aí fala tudo os riscos que pode acontecer”.
A gestação transcorreu normal, com repouso absoluto durante os quatro primeiros
meses, com controle do diabetes com regime e insulina. Não houve necessidade de
internação.
Diabetes:
O sintoma que levou Fernanda a descobrir que tinha diabetes foi uma forte dor nas
pernas, um peso nas pernas, o que levou o médico a pedir um exame, que mostrou que a taxa
de açúcar era de 140 mg.
O tratamento recomendado foi um regime: “nada de doce, nada de açúcar, de
refrigerante, ela tirou tudo, massas, só regime assim, tirou tudo. Foi bom que emagreci, na
época acho que emagreci uns oito quilos numa pancada só.”
A reação de Fernanda a respeito da doença : “ah, achei que normal. Ah, achei que era
uma doença que tinha tratamento, que dependesse de mim, né.”
RESULTADOS
Interpretação da entrevista e do TAT:
Se por um lado Fernanda mostra sua infância como tendo sido suficientemente
organizada, do ponto de vista afetivo, e sua história como estando tudo no lugar certo, e isso
ela faz quando afirma que na época de criança “foi tudo normal”, por outro lado ela mostra
um distanciamento emocional de suas vivências de perdas ao enfatizar que “tudo era muito
bom”.
117
Recorrentes frustrações vividas por Fernanda foram por ela negligenciadas ou
minimizadas, como por exemplo, a perda da avó, a morte da mãe, a austeridade do pai, a
traição do namorado, as doenças (útero infantil e Diabetes) e a impossibilidade da gravidez,
entre outros acontecimentos.
Ela experimenta desde a infância uma relação afetiva marcada pela troca, a extrema
adaptação e acomodação na sua vida tem como recompensa a experiência de segurança. Esse
movimento parece claro quando, ao temer a depressão e possível morte da mãe tenta,
juntamente com os irmãos, agradá-la e ser obediente, para impedi-la de se entregar à tristeza.
Há uma necessidade de estar adequada, tanto que a sua escolha amorosa, o atual
marido, teve a aprovação do pai, “(...) eu achava ele educadinho, bonzinho, arrumadinho,
gostava muito de conversar como meu pai, dar atenção, pro meu pai aquilo era..., ficava
todo..., achando bom moço”.
A educação rígida de sua família é vista por Fernanda como um valor precioso e fica
mais significativo ainda quando consegue cumprir o estabelecido, é somente dessa maneira
que se sente valorizada e amada.
Em se tratando da maternidade, havia indecisão sobre ser mãe ou não. Na
impossibilidade de engravidar, Fernanda afirma que “queria ao mesmo tempo, vou falar assim,
ai, não era uma coisa que ficava assim direto na cabeça”. Parece que no momento em que a
gravidez não está no centro de seus investimentos afetivos, ela está proibida de acontecer.
Não há somente uma interdição biológica, mas também psicológica.
Tanto que mesmo com a possibilidade da adoção de crianças e de ter realizado várias
tentativas, ela não se concretizava, “(...) ah, para falar a verdade pra você, ao mesmo tempo
que eu tinha vontade, eu tinha medo”.
118
As duas primeiras tentativas mal sucedidas de adoção foram vividas por Fernanda com
um certo alívio, não havia desejo de ser mãe. No entanto, quando da terceira vez, em que, à
distância, acompanhou os nove meses de gestação do bebê que seria doado, a não
concretização da maternidade foi sentida como algo frustrante. Pela primeira vez para
Fernanda ser mãe virou uma possibilidade e começou a ser gestada naquele momento. Em
seguida desse acontecimento Fernanda engravida.
A notícia da gravidez, além de extrema surpresa e muito estranhamento, representou
para Fernanda uma experiência ambivalente de desejo e medo: “aí eu falei eu grávida?,
imagina eu grávida”, um filho que estava dentro e tão distante do ser mãe de Fernanda,
naquele momento.
Muitas emoções intensas marcaram a sua gestação, especialmente no seu início, em
que houve o descrédito de Fernanda na sua capacidade de gerar uma criança, uma vez que
não se via mãe. Após esse primeiro instante ela sentiu medo de planejar e de falar que estava
grávida pelo próprio receio de, decepcionando as pessoas, se frustrar também: “ eu ficava
quieta, ai eu não vou ficar falando vai que eu perco, aí fica aquela coisa ruim né”.
Descreve com detalhes todo o processo dos primeiros três meses gestacionais, desde a
preocupação dos médicos quanto a sua saúde, dos riscos envolvidos, do repouso de três
meses e das dores de barriga. Nessa fase a sua luta foi não desenvolver expectativa para não
sofrer, “(...) qualquer hora vai que eu levanto e desce tudo, então eu vou, não quero assustar,
não quero chorar (...)”. Aparece nessa primeira vivência materna a incapacidade de ser mãe,
de segurar e gestar o bebê e de oferecer o seu ser para um outro ser desconhecido. Ainda
nesse período a sua preocupação era a de não ser peso ao outro, sofrendo pela possibilidade
de frustrar o outro, uma vez que era muito importante estar adequada com a expectativa do
outro.
119
Fernanda levou quatro meses para sentir-se grávida, para perceber que poderia gerar
com mais segurança, “depois do quarto mês eu já sentia a barriga mais durinha, eu já sentia
grávida”.
A gestação de Fernanda foi controlada e ela se descreve uma paciente obediente,
percebendo com satisfação todo o seu processo gravídico. Relata que estar grávida nesse
momento significa algo especial, “uma coisa maravilhosa, é uma felicidade, é uma coisa, que
de saber assim que tem uma criança na barriga, um filho é muito bom, e é uma
responsabilidade muito grande também, saber que a vida da gente vai mudar, muda tudo.”
Interpretação do TAT
As histórias de Fernanda não tiveram um tema centralizador, os assuntos se
diversificaram entre desenvolvimento pessoal por meio da realização profissional (Pr. I e II),
relacionamento heterossexual nas suas diferenças e dificuldades na convivência (Pr.IV, VI, XIII)
problemas de saúde e conseqüente delimitação da vida (Pr. III, XIV, XVIII), além de
relacionamentos familiares inseguros e ciumentos (Pr.VII, XII).Esses temas mesmo que
diferentes entre si, se inter-relacionam formando um todo cujo sentido tem uma mesma
direção, com conteúdo de sentimentos ambivalentes de conotações tanto positivas quanto
negativas, como tranqüilidade versus insegurança.
Há insatisfação quanto ao lugar em que Fernanda ocupa na vida, expressada nas
histórias que mostram a luta por uma nova posição na vida, que demanda trabalho e
competência: “o sonho dela é ser professora, sair dali, ter outra vida, morar na cidade, dar
aula. Aí ela foi atrás dos sonhos dela, ela conseguiu, ela se formou e ela venceu na vida e é uma
excelente professora” ( Pr. II).
Em seu sentir-se doente, aparecem posicionamentos diferentes. Em uma das histórias
a mulher morre (Pr.III) e na outra duas irmãs doentes órfãs conseguem viver como pessoas
120
normais (Pr. XVIII). Pode-se inferir, portanto, que a doença é sentida como geradora de vida ou
destruidora.
O relacionamento interpessoal, tanto conjugal quanto familiar, se caracteriza por uma
convivência difícil, uma vez que Fernanda se vincula de forma rígida, não conseguindo ceder
em relação às suas convicções. Acrescidos a essa dificuldade estão o receio e a insegurança
pela chegada de mais uma pessoa na casa: “(...) a mãe já com o nenezinho, entrega pra outra
menina e aí, tentando assim que a menina aceita a irmãzinha e tenha amor(...) e a menina
ainda está muito sentida, muito enciumada ainda, mas ela vai aceitar a irmãzinha”(Pr. VII).
Tanto que na prancha (Pr. XII) aparece o medo do abandono por meio da projeção e
identificação de ser o objeto abandonado; “(...) esqueceram esse quadro em algum lugar, esse
quadro é muito velho, é muito antigo (...) não gostei não. Parece que trás uma sensação assim
de medo”.
Nas histórias, a dúvida e a curiosidade se mesclam na narrativa do presente, marcado
pela incerteza, enquanto que no futuro está a expectativa de algo melhor ( Pr. I; II; IV; VII;
XIV;XVIII ). Existe em Fernanda o desejo inconsciente de ter uma vida diferente, e a
possibilidade de satisfação deste desejo está vinculada à esperança de futuros desfechos
positivos: “ele tá sentindo assim muita esperança, e ele ta sentindo uma sensação assim que
ele vai vencer, de vitória, de felicidade, que ele vai passar, que ele ta passando por essa fase e
tá saindo dela, é o que ele ta vendo através dessa janela. Ele vê um novo caminho, uma nova
vida espera ele”(XIV).
Na Pr. III aparece um enredo da vida atacada pela doença emocional e física, em que
esta mobiliza o desespero e a incapacidade de superá-la: “ela cresceu nesse ambiente ruim, se
tornou uma pessoa triste (...) que vive assim só na solidão, não tem amizade, que não consegue
conviver com ninguém e toma remédio forte, calmante forte, e não tem uma vida boa não, e
não tem uma convivência boa não e tá lutando pra vencer tudo falta(...) Ela vai morrer”.
121
Para Fernanda o meio externo é significado como agressivo ( Pr. II, III, XII F, XIII HF)
ameaçador (Pr.XII) e rejeitador (Pr.VII); na maioria das demais histórias, a realidade externa
tem conotação neutra. Na experiência emocional de Fernanda, a realidade externa é sentida
como restritiva das suas possibilidades o que exige, para consecução de um desejo, a luta do
sujeito para superar a realidade adversa: “ quando ele era pequeno, ele morava numa favela, e
era muito pobre, e devido a pobreza e a dificuldade das coisas ele se envolveu com drogas”
(Pr.XIV).
O conteúdo latente evidenciado na Pr. VII mostra, por um lado, o receio e o
conseqüente medo de rejeição, além de ciúmes com a vinda de um bebê na casa e
insegurança quanto à mudança que ocorrerá no relacionamento do casal. Por outro lado há a
presença do cuidado materno e todo um movimento de acolhimento a esta criança e controle
desses sentimentos: “ mãe já com o nenezinho(...) a menina ainda está muito sentida, muito
enciumada ainda, mas ela vai aceitar a irmãzinha. Futuramente elas vão ser muito amigas as
duas irmãs.”
A auto-imagem está depreciada, atributos como deprimido, triste, enciumada, sentida,
sistemático, nervosa, traumatizada, doente, atacada, sozinho e angustiada, prevalecem em
relação aos positivos, como sonhadora, felizes, esperançoso, linda, lutadora, entre outros. Está
latente essa auto-depreciação, que é negada em seu discurso, mas que corrobora o desejo,
evidente nas histórias, de que haja mudança na sua vida. Tanto que as necessidades
predominantes são de realização, sendo que nesta se incluem a busca por reconhecimento no
seu fazer, a afiliação emocional e a proteção reclamada. Quanto ao desejo de sentir-se
valorizada pelo outro, a aprovação externa propicia o sentimento de ser amada. Essa carência
afetiva cria ainda o desejo de ser cuidada por esse outro, em sentido amplo, e, em particular,
na relação conjugal.
DISCUSSÃO
122
O tempo gestacional constitui, segundo Winnicott (1990), o período em que são
gestados novos seres, mãe e bebê, um momento singular da vida afetiva de ambos. De acordo
com Antônio Cândido7 tempo significa o “ tecido da nossa vida” e, em se tratando da gravidez,
a integração do par ao longo do período gestacional é o que vai tecendo e preparando o
nascimento do ser mãe e do ser filho.
Apresentar a vivência gestacional de Fernanda implica resgatar o seu desenvolvimento
afetivo processado ao longo da história de sua vida. Conforme acentua Winnicott (1990), ao
buscar compreender a psicodinâmica do ser humano é necessário considerar que o
desenvolvimento da psique está atrelado ao crescimento do corpo, desde a concepção e sem
término definido.
A gestante Fernanda se mostra muito adaptada em seu mundo tanto gravídico quanto
da realidade externa. Apresenta a sua gestação como um processo de lutas diárias, bem como
um tempo de expectativa de vitórias em relação ao parto e nascimento de seu bebê.
Várias pesquisas sobre a vivência de grávidas diabéticas (Clauson, 1996; Hatmaker e
Kemp, 1988; Heaman, Beaton, Gypton, 1992; Mccain e Deatrick, 1994 apud Evans e O’Brien,
2005), verificaram que a experiência do alto risco intensifica a condição de vulnerabilidade da
mulher, o receio de perder o controle, incertezas de várias ordens e tensões, depressões,
ansiedades, sentimentos de perda, aflição, tristeza, medo e raiva. Sentimentos de esvaziar-se,
de não dar conta de cuidar, aparecem quando constata a gravidez como algo real.
Fernanda narra os primeiros meses gestacionais como um período delicado, em que
houve o receio de perder o controle, incertezas de várias ordens e tensões, ansiedades,
sentimentos de perda, aflição, tristeza e medo.
7
In Palestra de Maria Rita Kehl no Círculo Psicanalítico do Rio de Janeiro-01/08/2008
123
Segundo Winnicott (1990, p. 80), “o adulto é capaz de satisfazer suas necessidades
sem ser anti-social”. No caso de Fernanda, porém, se por um lado ela está adaptada ao
universo adulto e exerce as suas funções como tal, por outro, é exatamente essa adequação
que a impede de entrar em contato com as suas necessidades pessoais. Fernanda aparenta
funcionar emocionalmente num modelo rígido que propicia a manutenção do controle sobre
os mais variados aspectos de sua vida, favorecendo a negação e a conseqüente repressão de
seu sentir. Essa dinâmica, em última instância, garante à Fernanda permanecer adaptada ao
que acredita ser o desejo do outro a seu respeito.
Mesmo sem conhecimento de como realmente foi a relação inicial de Fernanda com a
sua mãe, é possível pensar na existência de falhas que a levaram a desenvolver esse modo
rígido de funcionar, como defesa contra a angústia de aniquilamento. Essa hipótese se
fundamenta no pressuposto de Winnicott (1990) de que o olhar da mãe constitui a
subjetividade do bebê. Na troca de olhares o bebê pode tanto ver a si mesmo através do olhar
da mãe quanto ver a própria mãe e o seu desejo. No segundo caso, diante da face rígida da
mãe, o bebê não poderá reconhecer-se e sentir-se envolvido, ao contrário buscará atender a
demanda da própria mãe. O resultado dessa interação é a falta de autonomia do bebê.
No presente caso é visível a identificação de Fernanda com as figuras parentais. Nessa
perspectiva das relações do seu self com as identificações, ao introjetar a figura materna e
paterna, ela parece ter mantido como ideal de ego valores rígidos, havendo assim, negação
tanto das fragilidades de seus pais, quanto da parte frágil de si mesma. Tal movimento parece
expressar-se, por exemplo, na experiência que faz da proximidade do outro como algo
perturbador, que dá trabalho e exige anulação de si mesma em função do desejo do outro.
É precisamente nesse sentido que Winnicott (1993) afirma que os jovens precisam
assassinar os pais para depois internalizá-los de outra forma. Fernanda não realizou em sua
adolescência o processo de desidentificação para a construção da sua identidade, mas, ao
124
contrário, se utilizou da racionalização como defesa, aprovou todas as interdições dos pais,
permanecendo, assim, muito próxima aos ideais deles, nesse período, e distante de si mesma.
Consequentemente, desde muito cedo Fernanda fechou-se em um mundo onde ilusóriamente
tudo se encontra no lugar. Porém, existe, de forma latente, um desconforto relativo a esse
lugar, expresso no desejo inconsciente de mudança.
Fernanda somente pôde sentir-se amada pela valoração do olhar do outro, o
que faz com que seu valor seja determinado, desse modo, por seu comportamento
que, na infância era elogiado seja na escola, com os prêmios, ou em casa “areando
panela”; ou na adolescência, sendo obediente e dócil, não namorando ou
desrespeitando as ordens do pai. Como adulta é a esposa que mantém a casa
impecável e, agora, como gestante, é
a paciente modelo. O externo continua
determinando o seu interno, e a extrema preocupação com o ser correta impedindo-a
de entrar em contato com o medo do abandono, com os temores de não ser aceita e
amada. Tanto que nas pequenas e grandes frustrações de sua vida, há a negação da
raiva e o sintoma dessa negação é o seu comportamento descrito como nervoso.
Enfim, é valorizada pelo que faz.
Winnicott (1990) ao desenvolver a teoria do amadurecimento e nomear
momentos que se direcionam da dependência absoluta até a independência, analisa
que a “vida é difícil em si mesma e a tarefa de viver, de continuar vivo e amadurecer é
uma batalha que sempre permanece”. No caso de fernanda a batalha que ganha
intensidade ao esbarrar com o fator doença não é propriamente em direção ao
amadurecimento mas, ao contrário, funciona como uma exacerbação daquela que é a
sua dinâmica: ser portadora de diabetes significa o controle obediente que visa uma
recompensa maior.
125
essa relação entre restrição e falta, espera e futura recompensa, marca a
dinâmica afetiva de fernanda, onde há uma relação entre prazer e sacrifício, uma visão
religiosa de que o sofrimento tem uma premiação, como esta gravidez vivenciada
como um prêmio obtido através da dor de se saber incapaz de ser mãe. Gestação
sinônimo de luta e privação pessoal, vinculadas, por conseguinte, à esperança de que o
nascimento será o prêmio que reestruturará a sua vida. A sua confiança, portanto, está
embasada na sua capacidade de se adequar particularmente às exigências do
tratamento, que segue à risca, ou à vida nos seus mais diferentes aspectos.
Considerações finais
Foi possível constatar que a gravidez de alto risco vivenciada por essa gestante
portadora de diabetes, promoveu mudanças no seu estilo de vida, na administração da
sua saúde e no controle glicêmico. Sua vivência tem sido permeada por sentimentos
de vulnerabilidade, receio de perder o controle, incertezas de várias ordens e tensões,
ansiedades, sentimentos de perda, aflição, tristeza, medo, raiva, confiança e
expectativa diretamente relacionadas ao controle glicêmico. Todo o seu rigor no
tratamento visa a sua atual preocupação central
com o bebê e as possíveis
complicações no parto. Contudo, o que se observa de modo particular é que a
gestação, nas condições em que se apresenta, parece funcionar como uma metáfora
daquela que é a dinâmica de fernanda: adequar-se às condições, por mais adversas
que sejam, para merecer qualquer forma de reconhecimento.
REFERÊNCIAS
Abram J. (2000). A linguagem de Winnicott: dicionário das palavras e expressões utilizadas por
Donald W. Winnicott. (Marcelo Del Grande da Silva, trad.). Rio de Janeiro: Revinter, 305p.
126
Alves, I.C.B. (2006). Considerações sobre a Validade e Precisão nas Técnicas Projetivas. In: A. P.
P. Noronha (Org.), Facetas do Fazer em Avaliação Psicológica. São Paulo: Vetor.
Anastasi, A. e Urbina, S. Testagem Psicológica. (2000). (Maria Adriana Veríssimo Veronese,
trad.). Porto Alegre: Artes Médicas Sul.
Anzieu, D. (1981). Os Métodos Projetivos. Rio de Janeiro: Campus.
Aragão, R.O. (2004). De mães e de filhos.
Rede estados gerais da psicanálise,
www.estadosgerais.org.
Bandeira, D. R. et al. (2006). Considerações sobre as Técnicas Projetivas no Contexto Atual In:
A. P. P. Noronha (Org.) Facetas do Fazer em Avaliação Psicológica, São Paulo: Vetor.
Bucher, R.; Romankiewicz, E. e Targino, P. F. (1981). Psychological and psychodynamic aspects
of the diabetic patient. Acta psiquiátrica e psicológica da América Latina, 27(2), 117-123.
Chan, B.W. et al. (2002). Maternal diabetes increases the risk caudal regression caused by
retinoic acid. Diabetes, 51, 2811-2816.
Daniells, S. et al. (2003). Gestacional Diabetes Mellitus: is a diagnosis associated with an
increase in maternal anxiety and stress in the short and intermediate term? Diabetes
Care, 26(2).
Evans, M. K. e O’Brien, B. (2005). Gestational Diabetes: The Meaning of an At-Risk Pregnancy.
Qualitative Helath Research, 15(1), 66-81.
Ewald, M.R. (2005). Psicose puerperal: a intolerável dor de uma separação. Cadernos de
psicanálise, 21(24).
França e Silva, E. (1984). O teste de apercepção temática de Murray (TAT) na cultura brasileira:
manual de aplicação. F.G.V/ISOP. Rio de Janeiro.
127
Freud, S. (1988). Edição standard brasileira das obras completas de Sigmund Freud. Rio de
Janeiro: Imago.
Har-Even, D.; Hod, M.; Lerman, M.; Levy-Shiff, R. (2002). Materbal adjustment and infant
outcome in medically defined high-risk pregnancy. Developmental Psychology, 38(1), 93103.
Hilluey, A. (2000). Gravidez de alto risco: expectativas dos pais durante a gestação, uma análise
fenomenológica. Folha Médica, 4, 29-42.
Holling, E.V. et al. (1998). Why don’t women with diabetes plan their pregnancies? Diabetes
Care, 21(6), 887-8.
Langer, M. (1981). Maternidade e sexo. (Maria Nestrovsky Folberg, trad.). Porto Alegre: Artes
Médicas.
Maldonado, M. T. P.(2002). Psicologia da gravidez, parto e puerpério. 16.ed. São Paulo: Editora
Saraiva.
Montenegro, Jr. et al. (2001). Evolução materno fetal de gestantes diabéticas seguidas no HCFMRP-USP no período de 1992-1999. Arq. Bras. Endocrinol. Metabol, 45(5), São Paulo,
oct..
Morval, M. V. G. (1982). Le TAT et les fonctions du moi – propêdeutique à l’usage du
psychologue clinicien. 2ª. ed. Canadá: Les presses de l’Université de Montréal.
Pasquali, L. (2001). Técnicas de exame psicológico – TEP, manual; vol. I: Fundamentos das
técnicas psicológicas. São Paulo: Casa do Psicólogo / CFP.
Raphael-Leff, (1997). Gravidez: a história interior . (Rui Dias Pereira, trad.). Porto Alegre: Artes
Médicas.
128
Riesenberg-Malcom, R. (2004). Suportando estados mentais insuportáveis. (Tânia M. Zalcberg,
trad.). Rio de Janeiro: Imago.
Rosseti-Ferreira, M. C. et al. (2000). Uma perspectiva teórico-metodológica para análise do
desenvolvimento humano e do processo de investigação. Psicologia: Reflexão e Crítica,
13(2), 281-293.
Soifer, R. (1992). Psicologia da gravidez, parto e puerpério. (Ilka Valle de Carvalho, trad.). 6.ed.
Porto Alegre: Artes Médicas.
Stake, R. E. (2000). Case studies. In: Denzin, N. K.; Lincoln, Y. S. (Ed.). Handbook of
Qualitative Research Thousand Oaks. 2. ed. London: Sage Publications, p. 435 –
454.
Trinca, W. (2003). Investigação clínica da personalidade; o desenho livre como estímulo de
apercepção temática. 3ª. ed. São Paulo: E.P.U.
Turato, E.R. (2003). Tratado de metodologia da pesquisa clínico-qualitativa. 2ª. ed., São Paulo:
Vozes.
UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO, Bancos de Dados Bibliográficos da USP – DEDALUS e MEDLINE.
[On line]. São Paulo, Sistema Integrado de Bibliotecas da USP/Centro de Computação
Eletrônica da USP.
Vaisberg-Aielo, T. (2004). Ser e fazer, enquadres diferenciados na clínica winnicotiana.
Aparecida/SP: Idéias e Letras.
Villemor-Amaral, A.E. (2006). Desafios para a Cientificidade das Técnicas Projetivas in: Facetas
do Fazer em Avaliação Psicológica, org. Ana Paula Porto Noronha, São Paulo: Vetor.
Winnicott, D. W. (1990). O ambiente e os processos de maturação. (Irineo C. Schuch Ortiz,
trad.). 3.ed. Porto Alegre: Artes Médicas.
129
_________________(1993). Da pediatria à psicanálise. (Jane Russo, trad.) 4.ed. Rio de Janeiro:
Francisco Alves. (Trabalho original publicado em 1956)
_________________. Notas sobre o Relacionamento mãe-feto (s/d/1994) In: Explorações
Psicanalíticas. (José Otávio de Aguiar Abreu, trad.) Porto Alegre: Artes Médicas.
_________________( 1997) O primeiro ano de vida. (Marcelo Brandão Cipolla, trad.) São
Paulo: Martins Fontes.
130
Candidatura 7
Autores: Ana Cecília Ferreira e Valéria Barbieri
Título: Preocupação Materna Primária em gestantes de Alto Risco por Diabetes Mellitus Prégestacional
131
PREOCUPAÇÃO MATERNA PRIMÁRIA EM GESTANTES DE ALTO RISCO POR DIABETES
MELLITUS PRÉ-GESTACIONAL
Ana Cecília Ferreira8
Valéria Barbieri9
Departamento de Psicologia e Educação
Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto – Universidade de São Paulo
Considerando a importância da relação mãe-bebê para o desenvolvimento afetivo
saudável, sabe-se que na gravidez a mãe deve operar uma regressão psicológica a fim de que
surja em seu psiquismo a Preocupação Materna Primária, imprescindível para que ela possa
compreender as necessidades do filho. Por esta razão, merece atenção a vivência psíquica da
gestante, especialmente quando a gravidez é de alto risco, uma vez que essa situação pode
gerar uma série de dificuldades, exigindo novas organizações e readaptações afetivas. Diante
disso, o presente estudo investigou se a situação de alto risco, pelos conflitos, tensões e
angústias que acarreta, poderia comprometer o surgimento da Preocupação Materna
Primária.
Neste sentido, parece importante analisar os aspectos da personalidade da gestante,
suas necessidades, como está vivenciando os seus conflitos pessoais e relativos à
8
Mestranda do Departamento de Psicologia da Faculdade de Filosofia Ciência e Letras de Ribeirão Preto
da Universidade de São Paulo –USP ([email protected]).
9
Professora Doutora do Departamento de Psicologia da Faculdade de Filosofia Ciência e Letras de
Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo –USP ([email protected]).
132
maternidade.Uma vez que a origem da vida mental do bebê ocorre no ventre materno, o
bebê sofre, por estar vinculado à mãe, as interferências das experiências dela.
É interessante, ainda, ressaltar, que a construção dessa relação mãe – bebê se
estabelece desde o projeto de ser mãe e se desenvolve na gestação. Winnicott (1990)
considera tal relação como experiência essencial para o par, desde o período gestacional até
o cuidado no puerpério. Fixa o tempo de gestação como uma preparação para o bebê iniciar
o seu percurso de constituição de ser integral. O bebê, desde o seu nascimento, experimenta
vivências afetivas relevantes para o seu desenvolvimento emocional. Os processos iniciais do
desenvolvimento o direcionam para uma integração e personalização, cuja estruturação
começa no início cronológico de vida: “(...) sugiro que ao final dos nove meses de gestação, o
bebê torna-se maduro para o desenvolvimento emocional”(Winnicott, 1990, p. 273).
Essas considerações justificam a preocupação e relevância de estudar como vai se
formando e se organizando a função materna já no período gestacional e puerperal, nos seus
aspectos psico-afetivos. Dentre os processos psicológicos que emergem na gravidez, merece
uma análise mais cuidadosa o processo regressivo nomeado por Winnicott (1956) como
Preocupação Materna Primária, uma situação psicológica caracterizada por um estado de
retraimento, uma dissociação, fuga, semelhante mesmo a um episódio esquizóide. Mas, no
contexto de uma gravidez, este estado não assume caráter patológico. Na visão de Winnicott
(1956), a Preocupação Materna Primária constitui-se em um estado psicológico especial que
se desenvolveria ao longo de toda a gestação, em especial no seu final e durante as primeiras
semanas de vida do recém-nascido, caracterizado por uma sensibilidade aumentada que
permitiria à mãe identificar-se com o filho, estando apta a compreender as necessidades
desse novo ser, bem como a sua relação com ele e o seu mundo. Tal comunicação emocional,
por conseguinte, seria alcançada pela situação regressiva da mãe.
133
Um ponto importante na obra de Winnicott (1956), portanto, é a sua ênfase na
necessidade de a mulher ser saudável para poder atingir a Preocupação Materna Primária, já
que muitas mães não conseguem se preocupar com o filho a ponto de excluir outros
interesses, temporariamente, podendo ocorrer uma “fuga para a sanidade” (Winnicott,1956).
Funcionando como barreiras para atingir tal estado estão a existência de grandes
preocupações alternativas, uma forte identificação masculina e/ou inveja do pênis reprimida,
bem como os estados patológicos relacionados ou não com a gestação.
A Preocupação Materna Primária, portanto, consiste em uma regressão da mãe, nos
casos em que ela tem tranqüilidade para regredir e fornecer um ambiente acolhedor e de
identificação com o bebê. Essa regressão ocorre quando a mãe permite e nela, então, se
desenvolve uma sensibilidade tal, a ponto de fornecer um setting no qual a constituição do
bebê pode se mostrar, suas tendências de desenvolvimento se revelarem e lhe seja permitido
experimentar um movimento espontâneo bem como dominar as sensações apropriadas a
esta fase da vida.
Winnicott (1956) salienta ainda que somente com essa sensibilidade regressiva é que
a mãe poderia se sentir como se estivesse no lugar do bebê e, desse modo, responder às
necessidades dele. Inicialmente corporais, essas necessidades evoluiriam para necessidades
egóicas elaboradas a partir de uma experiência física e simbólica. Para Winnicott (1956) é a
Preocupação Materna Primária que permite o estabelecimento de um ambiente adequado
capaz de contribuir para a formação do verdadeiro self, inicialmente constituído a partir da
soma das experiências sensíveis. Isso, entre outras coisas, é o que proporcionaria a
construção do ego, porque possibilitaria a satisfação das necessidades do bebê.
De acordo com Winnicott (1956), o alcance dessa preocupação pela mãe vincular-seia à sua condição de ser suficientemente boa, capaz de atender às necessidades do seu bebê,
134
de “devotar-se à identificação com ele”. O papel dessa mãe suficientemente boa variaria de
acordo com o estágio evolutivo do filho.
É no momento em que a gravidez está chegando ao fim e o parto se aproxima que as
mães estão totalmente identificadas com o seu bebê. No entanto, para que tal proximidade
se estabeleça, existiu todo um processo anterior.
A mãe suficientemente boa é aquela que contribui para fornecer a segurança que a
criança ainda não tem. Contudo, para isso, é preciso ela “se sentir segura, se sentir amada em
sua relação com o pai da criança e com a própria família” (Winnicott, 1997, p. 3).
Por outro lado, na relação mãe e filho, nos cuidados diários maternos, há espaço para
as vivências ambivalentes do bebê, de amor e ódio, onde é possível fazer reparações, uma vez
que nesse estágio do desenvolvimento o bebê não é capaz de tolerar a culpa. No entanto, cabe
atentar para a limitação que existe, na infância, da capacidade de fazer tais reparações.
Frente às considerações descritas, cabe atentar para a relação entre os
conflitos existentes na gestante e a sua influência no desenvolvimento do feto, e
investigar se tais conflitos adquiririam maiores dimensões naquelas que apresentam
algum fator de risco como o Diabetes Mellitus.
OBJETIVOS
O presente estudo investigou se a situação de alto risco, pelos conflitos, tensões e
angústias que acarreta, poderia comprometer o surgimento da Preocupação Materna
Primária.
MÉTODOS
As participantes deste estudo foram 5 gestantes com Diabetes Mellitus PréGestacional (tipos I e II). Foi utilizado, como instrumento para avaliação psicológica, uma
135
entrevista semi-estruturada abordando os seguintes tópicos: dados de identificação, vivências
durante a gravidez, vivências na gestação de alto risco, relação com o meio social imediato
(pais, esposo, filhos) situação de saúde, histórico de Diabetes na família e o surgimento e
desenvolvimento do Diabetes. A avaliação psicológica foi feita em uma ou duas sessões, sendo
inicialmente apresentado o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido, e, após sua
assinatura, realizada a entrevista semi-estruturada e a aplicação do TAT segundo referencial de
Morval (1982). O TAT foi aplicado em uma forma reduzida, de 10 pranchas: 1, 2, 3MF, 4, 7MF,
12F, 13HF, 14, 18MF, 6MF. A análise dos dados seguiu a metodologia “clínico-qualitativa”
(Turato,2003).
RESULTADOS
Para melhor compreensão da análise de conteúdo das entrevistas segue abaixo a
identificação das gestantes analisadas.
Apresentação dos Casos
Caso 1. Cátia10 tem vinte anos, do lar, casada há um ano e meio, está na primeira
gestação, com 32 semanas e vive com o marido, comerciante rural. Quando Cátia tinha cinco
anos de idade, foi diagnosticada diabética e, a partir daí, foi feito um controle da doença;
porém, ele não era estável. Sua gravidez foi planejada e, por causa do Diabetes, está seguindo
a dieta recomendada. No entanto, por duas vezes precisou ficar internada durante quinze dias,
ao três e aos oito meses de gestação.Ela relata o desconforto causado pela internação devido à
ausência da família, especialmente do marido, mãe e irmão. Sua maior preocupação é com o
bebê, tendo medo de perdê-lo.
10
Os nomes das pacientes foram alterados.
136
Caso 2. Renata tem 33 anos, trabalha como auxiliar de enfermagem em um hospital
público, está casada há nove, tem um filho de seis anos e está com 10 semanas de gestação.
Foi diagnosticada há um ano com Diabetes, em um evento em que trabalhava como técnica,
quando foi medir voluntariamente a glicemia. Renata mora com o marido de 36 anos e o filho.
O marido tem o segundo grau completo e é ferroviário. Ela cursa o segundo ano do curso de
enfermagem, além de trabalhar como técnica de enfermagem. Relata que o período da
infância foi difícil devido à dependência do álcool por parte da mãe e à dependência química
de seu irmão, que foi assassinado quando tinha 19 anos.Na primeira gravidez não teve
problemas de saúde. No entanto, há um ano atrás perdeu um bebê aos dois meses de
gestação, um pouco antes de ser diagnosticado o Diabetes. Até o momento da entrevista não
havia tido problemas na presente gestação.
Caso 3. Tânia tem 38 anos, está casada há seis e tem o primeiro grau completo. Seu
marido e ela são trabalhadores rurais. Sua família é constituída de dois filhos do sexo
masculino com idades de 16 e 5 anos. Está na terceira gravidez e, no dia da entrevista, estava
com 15 semanas de gestação. O diagnóstico de Diabetes ocorreu na primeira gravidez, quando
foi preciso tomar medicamento somente durante a gestação Na segunda gravidez, tomava
insulina. Não houve outros problemas de saúde nessas gestações anteriores. Nesta gravidez,
sua preocupação é de morrer, de perder o bebê ou de ele nascer com problemas. Vem
fazendo um controle estável, e os exames têm revelado algumas alterações na taxa de glicose,
que ela controla com insulina.
Caso 4. Rita tem 40 anos, está casada há 16 anos, tem uma filha de 16 anos e está na
segunda gravidez, com 31 semanas. Possui 3º. grau completo de escolaridade, o marido
trabalha como motorista e ela é do lar. Em 2005 foi diagnosticada com Diabetes Mellitus e
começou o tratamento com comprimidos e atualmente, com a gravidez, está tomando
insulina. A gravidez atual não foi planejada, não era o seu desejo e sim do seu marido, porém
137
no momento já está aceitando. A notícia da gravidez a assustou, teve medo em função do
Diabetes e da condição financeira. Até a presente data não precisou ficar internada mas sentese bastante frustrada porque, mesmo seguindo a dieta, ainda assim ocorre alteração da taxa
de glicemia. A sua preocupação hoje é de haver algum problema com o bebê, de não conseguir
terminar a gestação e o medo do parto.
Caso 5. Helena é uma jovem, 21 anos, noiva de João, 22 anos. Está na primeira
gestação, grávida de sete meses. Atualmente mora na casa do noivo, com a sogra, o seu
padrasto e duas irmãs do noivo. Ela cursou o segundo grau completo e trabalha como
costureira em uma Indústria de Equipamentos de Proteção. O seu noivo trabalha em uma
gráfica e possui o segundo grau incompleto. Na sua infância foi cuidada pela avó paterna.
Viviam em sua casa além desta, seu pai e o seu irmão. A mãe ficou internada durante oito anos
em um hospital psiquiátrico, o que impediu a sua convivência com ela. Menciona o período da
adolescência como um tempo tranqüilo. Aos 20 anos descobriu que tinha Diabetes e iniciou o
seu tratamento com a insulina. Não conseguia seguir a dieta conforme a prescrição.
Atualmente, em função da gravidez está seguindo rigorosamente. Em relação à presente
gestação, afirma que desejou estar grávida, mas não a imaginava tão rápido. Sofreu com o
diagnóstico útero-infantil e com a sentença de que não poderia engravidar ou que seria muito
difícil; por isso a surpresa da gravidez e o misto de felicidade e temor. Os seus medos nos
primeiros meses de gestação eram do bebê não nascer ou, então, nascer deformado, sem
algum membro. Atualmente teme o momento do parto, de sentir dor, de passar da hora e do
bebê nascer com algum problema. O significado de ser mãe para Helena é resumido em dar
carinho e sempre proteger a criança.
DISCUSSÃO
Algumas considerações: similaridades entre os casos
Interpretação das entrevistas
138
Como ficou explicitado na apresentação da teoria winnicottiana, aspectos do ambiente
estão intimamente relacionados à qualidade do desenvolvimento afetivo do indivíduo.
Uma análise possível desse conteúdo narrativo inicia-se pelas lembranças das
primeiras experiências de vida, relatadas pelas gestantes. Observa-se que há, em três casos
expostos( Cátia, Tânia e Helena), um aparente receio da exposição da infância “Ah, eu não
lembro da minha infância, só lembro de mais de 10 /11 anos para cima”(Cátia); “ quando
lembro da minha infância, eu não tive infância”(Renata). Aparece o desejo de não entrar em
contato com sentimentos negativos, como desamparo, falta de cuidados parentais,
sentimentos de rejeição, que provocam angústia. Renata, ao ser questionada se tinha fatos da
infância que a abalaram, respondeu “tem, mas não vale a pena contar”.
De forma diferente, Tânia e Rita, utilizam, num primeiro momento, o pensamento
lógico protegido pelo mecanismo de racionalização; “não tenho do que reclamar, tive uma
infância boa. Brincava, estudava , minha infância era muito boa”(Tânia). Posteriormente,
relata que desde os nove anos começou a trabalhar como doméstica e teve que se mudar da
casa dos pais. Evidencia, assim, a contradição das lembranças da infância. Rita, por sua vez,
descreve uma infância boa o suficiente para terminar antes da hora: “ vichi!!! Brincava de
boneca, a partir dos onze anos me tornei adulta.”
Helena relata o seu sofrimento pela ausência da mãe na infância “(...) a única coisa que
eu sinto falta na minha infância foi que eu não fiquei com ela porque ela tem problemas
psiquiátricos então ficou internada. Bem dizer eu fiquei com a minha avó.”
Com relação ao passado, as gestantes demonstraram sentimentos de menos valia
como filhas, sendo desde muito novas consideradas como adultas, tendo de cuidar de si
mesmas. Winnicott (1994) não enfatiza a falta existencial porque, para ele, no princípio, esse
espaço de falta é apenas potencial. Nesse momento, ele só se torna um espaço enquanto tal
se houver falha do ambiente em promover uma continuidade de cuidados que permitiria ao
139
bebê o momento de ilusão. Além disso, no presente, em fase de gestação, o movimento
interno de preparação para um futuro próximo que está sendo aguardado com conotações
ansiogênicas, pode explicar um pouco os aspectos mais depressivos das gestantes.
No entanto, aparece na maioria dos casos a vivência de desamparo que, conforme
definido por André (2001, p. 25) “ indica que a vida psíquica continua a ser vivida fora de si,
na desesperada abertura para um outro que não responde. Então, na análise, se uma
mobiliza, o outro paralisa”.
Renata, ao se referir ao período da infância diz : “(...) não tive infância, pra dizer
assim, porque minha mãe trabalhava, desde os seis anos eu tomava conta de dois irmãos, a
irmã era bebezinha mais nova que meu irmão, e cuidava da casa. Comecei a trabalhar fora
com oito anos de idade, olhar os filhos dos outros, filhos dos vizinhos, muito pobre, não vivia
com o pai, era muito aberto , minha mãe não ganhava muito, aquela coisas às vezes passava
até fome, minha mãe não tinha muita cabeça, bebia, judiava da gente”. Com uma infância
traumática, muito cedo teve que assumir responsabilidades. Trauma está sendo considerado
aqui como “quebra de continuidade da existência” (Winnicott, 1994), e no caso, essa quebra
na continuidade do desenvolvimento afetivo-emocional interrompe fases evolutivas infantis.
Lembranças de maus tratos são pontuadas como sendo freqüentes na vida de Renata,
algo vivenciado de forma ambivalente, ora justificando as atitudes da mãe: “ a minha mãe era
muito nova, tinha 16 anos”, ora ressentida por suas atitudes de falta de cuidado.
Já para Rita, o desamparo é vivido como um distanciamento da mãe: “não tinha mãe
como amiga (...) sempre tive que me virar sozinha”. E para Helena, a ausência materna
significou uma forma de desamparo.
As vivências de privações, presentes nos cinco casos, mesclam posturas de resignação
versus revolta. A presença do medo e de sentimentos de revolta e de agressividade parecem
140
constituir-se como forma de reagir ao desamparo sentido em relação aos pais, um desconforto
inconsciente pela experiência da falta. Para Winnicott (1994), a constituição do si-mesmo não
se inicia a partir da falta, mas, antes, a partir da identificação primária da mãe com o seu bebê,
sem a qual a falta, capaz de ser experienciada e que consolida a constituição do si-mesmo e do
outro, não acontecerá.
Em função disso, nos relacionamentos interpessoais atuais, as gestantes apresentam
uma grande satisfação com a família construída. Esta, por sua vez, aparece como sendo o
lugar em que é agradável viver, semelhante ao que gostariam de ter tido com as suas famílias
de origem. Seus parceiros são descritos como pessoas especiais, que sabem cuidar delas e
dos filhos, com paciência, que têm diálogo. Alguns adjetivos lhes foram atribuídos, como:
“calmo, dedicado, trabalhador, não bebe, vai à missa ”. A escolha e a valorização de um lar,
em que os relacionamentos interpessoais possam se desenvolver com cuidado e segurança,
parecem se constituir numa nova busca de um colo materno sentido, na infância, como
distante.
Buscar ser cuidada pelo marido e cuidar de seu bebê, consiste no movimento de
sentir-se amada ao amar. Há uma regressão, com o desejo de ser cuidada e de cuidar, através
do processo de identificação com o bebê imaginário (Cátia e Helena) e com os filhos (Tânia,
Renata e Rita), o que na terminologia psicanalítica representa “ o processo de subjetivação”,
que consiste em diversas fases (a narcísica e a projetiva, entre outras), em que “o movimento
do sujeito advém à medida que se faz um com um outro, idêntico a ele” (Kristeva, 2002, p.
192).
Com oito meses de gestação, Cátia e Helena apresentam uma fala no plural, nós (ela e
o bebê), sendo uma espécie de eu (self) estendido. Aos cinco meses, Tânia, fala de uma
gravidez que está sendo incorporada enquanto tal, por não ter sido planejada. Nessa mesma
direção, Rita, aos 7 meses, diz que já está aceitando a nova gravidez. Enquanto isso, Renata,
141
devido à incerteza experimentada com a segunda gravidez, espera para poder ter
expectativas. Winnicott (1990) define o momento da gestação como o tempo necessário de
constituição do ser mãe, em que inicia o estabelecimento do espaço psíquico de autopercepção da gravidez, de estar fecundada e carregar um outro ser em si mesma. Também
compreende um período de retorno regressivo em direção ao filho, ilustrado no seu conceito
de “ Preocupação Materna Primária”, que ocorre nos últimos meses gestacionais.
Winnicott (1994) fala dos aspectos concernentes ao ambiente, à formação do ego do
bebê através do ego da mãe, e da função materna ser suficientemente boa para propiciar o
desenvolvimento psíquico saudável. Nos cinco casos apresentados, é perceptível a presença de
falhas nos cuidados afetivos recebidos, constatação que permite às gestantes tentar criar um
papel de mãe diferenciado.
Nesse processo de fazer-se mãe, acontece o movimento de buscar referências
psíquicas, conforme salientado por Klein e analisado por Aragão (2004, p. 3): “tornar-se mãe é
reencontrar sua própria mãe”. Nesse momento, a gestante, ao perceber a mãe internalizada,
deseja poder ressignificá-la ao ser mãe, e validar esse lugar.
Winnicott (1994, p. 193), explica que essa tentativa de, através da própria gestação,
“consertar algo de errado na mãe”, consiste no mecanismo de atribuir ao bebê aspectos
desejados de reparação da gestante e, por conseguinte, esta experiência materna pode ser
vivida como uma realização ou não. Esta expectativa está presente nas gestantes analisadas,
mesmo que de forma inconsciente.
Nas gestantes diabéticas há peculiaridades no ser mãe. O fator alto risco mobiliza a
insegurança no planejamento inicial da própria gravidez, e a pergunta: “será que vai chegar a
termo?”, ganha intensidade na preocupação com o desenvolvimento do bebê. A doença na
gestação tem conotação de ameaça, com características de imprevisibilidade e de falta de
142
controle, justamente pelo fato da alteração metabólica ser uma constante, e o fator controle
uma presença o tempo todo.
Há movimentos desde “se fizer tudo direitinho...”(já que tem que ter o controle e se
controlar dá certo)(Cátia e Helena), até a espera de resposta do próprio corpo, como algo fora
de controle (Tânia, Renata e, Rita). Em função do Diabetes carregar o significado de privação,
“do não pode”, “do regime”, “da mudança de vida e de rotina,” essa ameaça é sentida com
intensidade.
Alterações orgânicas dessa natureza de controle glicêmico e a consciência dos riscos
implicados associados às mudanças que o período gestacional apresenta, permitem
compreender como essa gestação é vivenciada em seus aspectos afetivos (Maldonado, 2002;
Langer, 1997; Dudley, 2007; Gable, Carpenter, Garrison, 2007; Reece e Homko, 2007; BarnesPowell, 2007). Também nas gestações sem o fator risco, os aspectos emocionais como
ansiedade, medos e mudanças nos vínculos afetivos estão presentes, conforme pesquisa de
Sarmento et al (2003).
Nesse sentido, as gestantes diabéticas mencionam como preocupação: “ o bebê nascer
com problemas”, “ perder o bebê”, “ ter parto difícil”. São encontradas na literatura pesquisas
sobre a vivência de grávidas diabéticas (Clauson,1996; Hatmaker e Kemp, 1988; Heaman,
Beaton, Gypton,1992; Mccain e Deatrick, 1994 apud Evans, M.K.e O’Brien, B. 2005), que
verificam que a experiência do alto risco intensificava a vulnerabilidade, o receio de perder o
controle, incertezas de várias ordens e tensões, depressões, ansiedades, sentimentos de
perda, aflição, tristeza, medo e raiva, emoções semelhantes às vividas pelas gestantes
diabéticas.
No entanto, Daniells et al (2003), mesmo afirmando que no grupo de diabéticas
gestacionais a ansiedade aparece mais elevada, explicam que esta é mais uma característica
143
da própria gestação do que influência do fator risco, evidenciada em todos os casos discutidos
no presente trabalho.
Também neste estudo, os temas identificados na pesquisa de Evans, M.K.e O’Brien, B.
(2005), sobre o significado da gestação- o controle e o medo da perda do próprio controle
pessoal - estão presentes como sendo um receio das gestantes Tânia, Renata, Rita e Helena; a
responsabilidade materna aparece nos casos das gestantes Cátia e Renata; quanto às
transformações envolvidas nesse período, a administração da saúde, os relacionamentos
familiares e sociais, bem como as mudanças no estilo de vida, ficaram evidenciados nos cinco
casos.
Har-Even, Levy-Shiff, Hod e Lernan (2002) constataram que mulheres com Diabetes
Mellitus Pré-Gestacional apresentaram mais emoções negativas em relação à gravidez do que
gestantes não-diabéticas. Em se tratando especificamente dos receios e dos aspectos
angustiantes com o tratamento, todas as gestantes apresentaram um quadro vivencial
semelhante.
A vivência do Diabetes, nos cinco casos, é descrita como algo que restringe a vida e
que causa preocupação. Entretanto, os medos ressaltados na literatura, tanto referente à
gestação sem risco quanto a de alto risco por Diabetes, correspondem às preocupações das
cinco gestantes diabéticas estudadas.
Compreende-se, portanto, que a experiência da maternidade para essas gestantes
significa: algo desejado (Cátia, Helena), descuido(Tânia, Rita), substituição de uma perda
(Renata). Atritutos semelhantes são encontrados na pesquisa de Raphael-Leff( 1997).
Para as gestantes de alto risco a gravidez é um tempo de mudanças no estilo de vida,
na administração da saúde e, atenção especial no controle glicêmico. Também um momento
144
em que está sendo desenvolvido o sentimento de responsabilidade materna, a
descentralização do seu próprio self para um outro eu, o bebê.
Nas grávidas de 8 meses (Cátia e Helena) houve o movimento regressivo descrito por
Winnicott(1956) de Preocupação Materna Primária; “ (...) fico mais sensível, tudo me
emociona (...) eu só penso no bebê” (Cátia);“a única coisa comigo que parte de mim, não quer
nada, porque só penso nele, ambição voltada para ele” (Helena). Nas demais percebe-se
também um processo de retorno afetivo ao próprio ventre, não com a mesma intensidade
que as gestantes do último trimestre gestacional. Conforme Winnicott (1956) acentua, essa
regressão começa nos úlitmos meses da gestação e permanece nas primeiras semanas após o
parto.
Porém, nas gestantes do primeiro e segundo trimestre gestacional é evidenciado o
movimento de descentralização de si mesma e no TAT aparece de forma latente esse retorno
emocional regressivo.
Interpretação do TAT
Pela análise das narrativas das histórias, percebe-se a recorrência de temas sobre
realizações pessoais e profissionais, relacionamentos interpessoais, heterossexuais e
familiares, doença, perdas, morte e solidão. Verifica-se, portanto, que a centralização do
afeto reside no desejo do êxito tanto do projeto pessoal, a gravidez, quanto dos vínculos
familiares e amorosos que, diante da problemática alto risco, remetem ao temor da ausência,
seja de si mesma(morte), seja das pessoas importantes, acrescido à dor do desamparo
sentido.
Nos cinco casos analisados, a prevalência desses temas se encontra no tempo
presente das histórias. Nas narrativas o passado não é destacado, aparece como um precursor
do momento presente e este por sua vez, é retratado pelas grávidas, na maioria dos casos,
145
como um momento de luta, esforço, sofrimento, dificuldade e tristeza, de receios de não dar
conta, contrastando com a expectativa de um futuro melhor, com desfechos
predominantemente favoráveis.
As necessidades predominantes nesse grupo de gestantes foram de afiliação
emocional, familiar, associativa permitindo analisar o movimento regressivo de busca por
pertencer aos grupos das pessoas mais significativas para elas. O anseio é de proteção através
dos cuidados do outro e a necessidade de experimentar a sensação acolhedora do colo
quando estão gestando a própria maternagem.
A maior incidência de atributos negativos projetados no herói das histórias permite
inferir que a auto-estima das gestantes está baixa, havendo uma desvalorização pessoal.
Nessas características negativas pode-se notar muitos aspectos ora de vitimização, ora de
indignação, permeando sentimentos de solidão, indecisão e falta de controle, o que mostra a
ansiedade latente desse momento, na vida dessas grávidas de alto risco.
Nessa mesma direção constatou-se que, na maioria dos protocolos, a ação do
contexto social tem caráter negativo: insatisfatório, agressor, assustador, rejeitador. Parece
que fatores como a doença, condição sócio-econômica e outras dificuldades são projetadas
como algo externo que se contrapõe aos seus desejos, impedindo a sua realização.
No TAT foi possível perceber a Preocupação Materna Primária (Winnicott, 1956)
através da problemática central: projeto e realização pessoal, vínculos amorosos e o risco das
possíveis perdas, de partos vazios. Tanto que essas fantasias transformam o tempo presente,
a gestação, num momento muito angustiante. O mecanismo de defesa é a negação, através
da qual se faz uma ruptura dessa narrativa do presente ansiogênico, transpondo-se, por meio
do pensamento mágico, para um futuro muito bom. Parece que mesmo angustiadas elas
precisam apostar em um futuro benevolente, conforme o próprio desejo, o parto com o bebê.
146
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A constatação da intensidade de emoções, receios e temores experienciados pelas
grávidas diabéticas, revela cada vez mais a necessidade não só da abordagem biológica da
problemática como também da psicológica. Essa abordagem psicológica faz-se necessária à
medida em que todo um quadro traumático e de ansiedades, despertado por uma situação de
alto risco, pode dificultar o alcance da Preocupação Materna Primária, acarretando efeitos
relevantes para o psiquismo da mulher e, posteriormente, em sua relação com o bebê e no
desenvolvimento saudável dele. Daí a proposta de estudos que abordem fundamentalmente
as repercussões afetivas do Diabetes Mellitus nas gestantes, bem como a atenção para
estudos que promovam o bem estar psíquico de mulheres diabéticas nesse período.
Observou-se em todas as gestantes pesquisadas o conflito entre as exigências do
mundo externo, os riscos das possíveis perdas e o desejo pessoal de corresponder com essas
exigências. Há o deslocamento para o exterior dos medos e angústias vivenciadas. O conteúdo
latente das pranchas do TAT geralmente estabelece níveis tensos de relacionamento
interpessoal, envolvendo situações de perdas, frustrações e mágicas reconciliações.
A gravidez para essas cinco gestantes representa, por um lado, um momento de
expectativa positiva de reparação e projetos pessoais e, por outro, um tempo de angústia e
medos de possíveis perdas. A doença, significada como um limite, não impediu o movimento
regressivo e a identificação com o bebê, descrito como Preocupação Materna Primária.
REFERÊNCIAS
Abram J. (2000). A linguagem de Winnicott: dicionário das palavras e expressões utilizadas por
Donald W. Winnicott. (Marcelo Del Grande da Silva, trad.). Rio de Janeiro: Revinter, 305p.
André, J. (2001) Entre a angústia e desamparo. Ágora v. IV n. 2 jul/dez 2001 95-109.
147
Aragão, R.O. (2004). De mães e de filhos.
Rede estados gerais da psicanálise,
www.estadosgerais.org.
Bennett, P.H. et al. (2000) Secular trends in birth weight, BMI, and diabetes in the offspring of
diabetic mothers. Diabetes Care, v. 23, p.1249-1254.
Berger, E. (2003) Gerenciar diabetes, por quê? Informe Méd-Lar, n.3, jun. 2001. Artigo
disponível na Internet: http://www.medlar.com.br/informes/06-2001/diabetes.asp [18
mai 2003].
Chan, B.W. et al. (2002). Maternal diabetes increases the risk caudal regression caused by
retinoic acid. Diabetes, 51, 2811-2816.
Daniells, S. et al. (2003). Gestacional Diabetes Mellitus: is a diagnosis associated with an
increase in maternal anxiety and stress in the short and intermediate term? Diabetes
Care, 26(2).
Dudley, D. (2007) Diabetic-Associated Stillbirth: Incidence, Pathophysiology, and Prevention.
Clinics in Perinatology, Volume 34, Issue 4, Pages 611 – 626. Pub Med - indexed fir Medline.
Evans, M. K. e O’Brien, B. (2005). Gestational Diabetes: The Meaning of an At-Risk Pregnancy.
Qualitative Helath Research, 15(1), 66-81.
Ewald, M.R. (2005). Psicose puerperal: a intolerável dor de uma separação. Cadernos de
psicanálise, 21(24).
França e Silva, E. (1984). O teste de apercepção temática de Murray (TAT) na cultura brasileira:
manual de aplicação. F.G.V/ISOP. Rio de Janeiro.
Freud, S. (1988). Edição standard brasileira das obras completas de Sigmund Freud. Rio de
Janeiro: Imago.
148
Gable, SG; Carpenter, L.B; Garrison, E.A (2007) New strategies for glucose control in patients
with type 1 and type 2 Diabetes Mellitus in pregnancy. Cin. Obstet. Gynecol. Dec. 50(4): 101424
Har-Even, D.; Hod, M.; Lerman, M.; Levy-Shiff, R. (2002). Materbal adjustment and infant
outcome in medically defined high-risk pregnancy. Developmental Psychology, 38(1), 93103.
Hilluey, A. (2000). Gravidez de alto risco: expectativas dos pais durante a gestação, uma análise
fenomenológica. Folha Médica, 4, 29-42.
Holling, E.V. et al. (1998). Why don’t women with diabetes plan their pregnancies? Diabetes
Care, 21(6), 887-8.
Kristeva, J.(2002) As novas doenças da alma. (Joana A. D´avila Melo, trad.) Rio de Janeiro:
Rocco.
Langer, M. (1981). Maternidade e sexo. (Maria Nestrovsky Folberg, trad.). Porto Alegre: Artes
Médicas.
Maldonado, M. T. P.(2002). Psicologia da gravidez, parto e puerpério. 16.ed. São Paulo: Editora
Saraiva.
Montenegro, Jr. et al. (2001). Evolução materno fetal de gestantes diabéticas seguidas no HCFMRP-USP no período de 1992-1999. Arq. Bras. Endocrinol. Metabol, 45(5), São Paulo,
oct..
Morval, M. V. G. (1982). Le TAT et les fonctions du moi – propêdeutique à l’usage du
psychologue clinicien. 2ª. ed. Canadá: Les presses de l’Université de Montréal.
Raphael-Leff, (1997). Gravidez: a história interior . (Rui Dias Pereira, trad.). Porto Alegre: Artes
Médicas.
149
Reece, E.A.; Homko, C.J. (2007) Prepregnancy care and the prevention of fetal malformations
in the pregnancy complicated by Diabetes. Cin. Obstet. Gynecol. Dec 50(4): 990-7.
Riesenberg-Malcom, R. (2004). Suportando estados mentais insuportáveis. (Tânia M. Zalcberg,
trad.). Rio de Janeiro: Imago.
Rosseti-Ferreira, M. C. et al. (2000). Uma perspectiva teórico-metodológica para análise do
desenvolvimento humano e do processo de investigação. Psicologia: Reflexão e Crítica,
13(2), 281-293.
Soifer, R. (1992). Psicologia da gravidez, parto e puerpério. (Ilka Valle de Carvalho, trad.). 6.ed.
Porto Alegre: Artes Médicas.
Stake, R. E. (2000). Case studies. In: Denzin, N. K.; Lincoln, Y. S. (Ed.). Handbook of
Qualitative Research Thousand Oaks. 2. ed. London: Sage Publications, p. 435 –
454.
Turato, E.R. (2003). Tratado de metodologia da pesquisa clínico-qualitativa. 2ª. ed., São Paulo:
Vozes.
Winnicott, D. W. (1993). Da pediatria à psicanálise. (Jane Russo, trad.) 4.ed. Rio de Janeiro:
Francisco Alves. (Trabalho original publicado em 1956) _________________(1990) O ambiente
e os processos de maturação. (Irineo C. Schuch Ortiz, trad.) 3.ed. Porto Alegre: Artes Médicas
_________________.(1994) Explorações Psicanalíticas. ( José Otávio de Aguiar Abreu) Porto
Alegre: Artes Médicas.
__________________(1997) A família e o desenvolvimento individual. (Marcelo Brandão
Cipolla, trad.) São Paulo: Martins Fontes.
150
Candidatura 8
Autores: Valéria Mayer
Título: Do corpo atento ao corpo que pára quieto: novas proposições para se pensar a (des)
atenção na contemporaneidade
151
DO CORPO ATENTO AO CORPO QUE PÁRA QUIETO: NOVAS PROPOSIÇÕES PARA SE PENSAR
A (DES)ATENÇÃO NA CONTEMPORANEIDADE
AUTORA: VALÉRIA NEVES KROEFF MAYER – [email protected] (UNISC)
Resumo: Nos dias atuais, uma atenção que não seja seletiva, focal, sustentada e voluntária é
tratada como desatenção. Neste contexto, a hipercinesia do corpo é entendida, muitas vezes,
como um sintoma passível de medicalização. Mas existe uma relação direta entre a quietude
do corpo e o estar atento do sujeito? Na busca por respostas para este e outros
questionamentos, foi realizada uma pesquisa de campo onde se observou a dinâmica de um
grupo de crianças no ambiente escolar. O material empírico compõe-se de registros realizados
durante os anos de 2006 e 2007, através de caderno de campo, fotografias, filmagens,
entrevistas com pais, educadores e crianças, bem como análise de documentos escolares, a
fim de poder relacionar dinâmica corporal e o funcionamento da atenção deste grupo de
crianças em diferentes atividades. A análise dos dados foi realizada apoiada na perspectiva
teórico-metodológica proposta pela rede de significações - redsig (2004). A pesquisa apontou
para o fato de que “atenção” é uma palavra com muitos significados e também que o que se
entende por atenção pode ser diferente do que se percebe no estar atento dos sujeitos. Estas
evidências oportunizam novas reflexões para se pensar sobre o que é, de fato, desatenção.
Palavras-chaves: Atenção, Corpo Atento, TDA/H.
Abstract : Nowadays, an attention which is not selective, focal, sustained and voluntary is
deemed as inattention. In this context the body hyperkinesis is understood, many times, as a
symptom susceptible to medicalization. Is there a direct connection between the body
152
quietude and the ‘be attentive’ state of the subject? In search for answers for this and other
questions, a field survey was done where the corporal dynamics of a group of children in the
school environment was observed. The empirical material is constituted of registrations done
during the years of 2006 and 2007, through a field registration book, photos, video recordings,
interview with parents, educators and children, as well as school documents analysis with the
intention to be able to relate the corporal dynamics and the attention functioning of this group
of children in different activities. The data analysis was done supported in the theorymethodology perspective proposed by the rede de significações – redsig (2004). The survey
indicated the fact that “attention” is a word with many meanings and also what is understood
as attention may be different from what is perceived in the ‘be attentive’ state of the subject.
These evidences break new reflections to be thought over what is, in fact, inattention.
Key-words: Attention, Attentive Body, ADHD
PROPOSIÇÕES PARA UM OUTRO OLHAR SOBRE A (DES) ATENÇÃO: UM CONVITE A NOVAS
REFLEXÕES
O presente artigo busca apresentar discussões e proposições originais que instiguem novos
olhares e reflexões sobre a atenção na contemporaneidade e suas múltiplas modalidades e
manifestações. As proposições aqui apresentadas nasceram a partir de desacomodações sobre
o entendimento do que é um sujeito (des) atento.
É freqüente ainda, nas salas de aula ou nos lares, a expressão: pára quieto menino, presta
atenção!! – mas será possível avaliar a atenção do outro a partir apenas da quietude ou
inquietação motora de seu corpo?
Crianças muito inquietas são, com freqüência, julgadas desatentas. Mas este julgamento
apóia-se geralmente na sua motricidade excessiva, ou no que ela provoca sobre o adulto, o
que não diz respeito, necessariamente, à desatenção da criança.
153
A discussão aqui proposta, no entanto, embora articule algumas reflexões acerca transtorno
de déficit de atenção e hiperatividade (tda/h), não tem a intenção de promover um debate
sobre o tda/h. Muito antes, a proposição é de se repensar o tda/h, a partir de um
entendimento mais ampliado sobre o que é atenção (seus conceitos, mecanismos,
funcionamento, modalidades) e sobre a fragilidade das concepções de (des) atenção na
contemporaneidade, sobretudo na infância.
Nesta perspectiva, as reflexões aqui propostas são um convite ao desafio que é falar do
humano e nele descobrir-se, assim como a seu próprio corpo atento. É também um convite
para pensar novas possibilidades e entendimentos sobre atenção e cognição, dentro e fora da
escola.
Será que o aluno que denota um linguajar corpóreo mais adequado à compreensão do estar
atento pelo professor, é o que apresenta melhor rendimento escolar? Qual a concepção de
atenção dos educadores e a apreensão que fazem do estar atento de seus alunos? Que relatos
os pais trazem sobre o estar atento de seus filhos no cotidiano familiar?
Estes foram questionamentos mobilizadores que, antes de pautar a discussão aqui proposta,
nortearam um processo investigativo. Foi na busca por respostas para estes e outros
questionamentos que, entre os anos de 2006 e 2007, foi realizada uma pesquisa11 de campo
onde, vivenciando o cotidiano de uma turma nos dois primeiros anos do ensino fundamental
de nove anos, foi possível observar através da dinâmica e das vivências de um grupo de
crianças, as diferentes manifestações de um estar atento.
Foram utilizados como material empírico o caderno de campo, fotografias e filmagens, análise
documental e entrevistas semi-estruturadas com pais, educadores e crianças. Não foram
11
“Pára quieto menino, presta atenção!!- Proposições para um outro olhar sobre o corpo atento” é o
nome da pesquisa que dá origem a este artigo. A pesquisa foi realizada em uma Escola Pública Municipal
de Educação Infantil, na região central do estado do Rio Grande do Sul (Brasil) e apresentada ao
Programa de Mestrado em Educação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, no ano de 2007.
154
utilizados testes de atenção, pois não houve, nesta pesquisa, a intenção de se avaliar os níveis
de atenção, mas sim de verificar como as crianças expressavam seu estar atento e como os
adultos o percebiam.
A análise dos dados apoiou-se na perspectiva teórico-metodológica proposta pela Rede de
Significações (RedSig). Segundo Rossetti-Ferreira; Amorim; Silva (2004, p. 31), a RedSig é uma
apreensão da situação investigada pelo pesquisador e “uma interpretação de como os
componentes apreendidos articulam-se e circunscrevem certas possibilidades de ação/
emoção/ cognição”.
O referencial teórico da pesquisa apoiou-se nos escritos de Virgínia Kastrup, António Damásio,
Humberto Maturana, Zygmunt Bauman, entre outros pesquisadores e pensadores que
proporcionaram um entendimento e uma reflexão sobre a atenção e o estar atento na
contemporaneidade. Buscou-se, neste diálogo com os autores, compreender os mecanismos
neurobiológicos da atenção, as diferentes modalidades de atenção e a percepção
contemporânea do que seria um sujeito atento.
A pesquisa sinalizou alguns aspectos relevantes para se discutir a (des) atenção nos dias de
hoje, entre eles o fato de não haver uma definição ainda suficientemente satisfatória para o
termo atenção e a forte crença de que a atenção focalizada é condição fundamental para a
aprendizagem. A pesquisa mostra ainda que crianças, pais e professoras têm diferentes
concepções sobre o que é atenção e o estar atento e aponta para o fato de que um corpo
atento, nem sempre é um corpo que pára quieto.
ATENÇÃO NA CONTEMPORANEIDADE E O SURGIMENTO DO SUJEITO (DES) ATENTO
Uma definição mais estreita para o significado de atenção vem sendo buscada há muito
tempo por pesquisadores e pensadores das neurociências. Neurologistas, psicólogos,
155
psiquiatras, educadores, filósofos, entre outros neurocientistas, já ofereceram inúmeras
definições para atenção. Mas, segundo Nahas e Xavier (2004), nenhuma delas ainda se faz
suficientemente satisfatória.
Em linguagem coloquial, o termo “atenção” denota percepção direcionada e
seletiva a uma fonte particular de informação, incluindo um aspecto semiquantitativo (presente, por exemplo, na expressão “preste mais atenção”) e
com duração definida. Esse uso coloquial do termo sugere ainda a
ocorrência de esforço. Trata-se, portanto, de um processo multifacetado
(NAHAS E XAVIER, 2004. p. 77)
Embora entendam atenção como um processo multifacetado, estes autores apontam
também para a conotação do termo nos dias atuais. Nos dias de hoje, ao se falar em atenção,
o pensamento das pessoas, de um modo geral, evoca o entendimento de uma atenção focal e
voluntária. Acaba-se, deste modo, por confundir atenção e concentração, tomando-as como
sinônimos, embora não o sejam, pois nesta última está sempre implicada a intensidade da
atenção durante o estar atento.
Não é recente o interesse pelo tema da atenção. Segundo Caliman (2006), observa-se
uma maior inclinação científica sobre o tema desde o século XVIII, bem como uma veemente
necessidade, ao longo dos três últimos séculos, de controle e gestão da atenção, tornando-a
objeto de “tecnologias morais, sociais, econômicas, médicas e psicológicas”. A construção
conceitual do que entendemos hoje por um indivíduo atento ou desatento acontece no
interior desse processo histórico.
Foram nos anos 90, consagrados como a “década do cérebro”, no entanto, que os
estudos sobre o mapeamento das (dis)funções cerebrais foram amplamente divulgados pelas
mídias. Foi a partir desta década (a última do século XX) que, segundo Lima (2004), o
156
Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade (TDA/H) passou a fazer parte do vocabulário
da população em geral, e principalmente de pais e professores.
Acontece que, assim como as informações sobre a neuroanatomia funcional do cérebro,
também as informações sobre o transtorno chegaram às mídias de forma simplificada e
acabaram fazendo do TDA/H uma nova entidade.
Mas é preciso lembrar que vivemos em tempos de grande aceleração, volatilidade e
fluidez, características descritas por Bauman (2001), como as mais significativas da
contemporaneidade e que repercutem diretamente no jeito de ser e estar de cada sujeito no
mundo. A atenção e o estar atento, por sua vez, sofrem influências significativas destas
características.
Há na sociedade contemporânea “um excesso de informação e uma velocidade
acelerada que convoca uma mudança constante do foco da atenção, em função dos apelos
que se multiplicam sem cessar” (Kastrup, 2004, p.2). Basta entrar na página inicial de qualquer
site da Internet para se ter uma idéia do excesso de informações por centímetro quadrado,
que nos é ofertada. Por esta razão é que a autora alerta para o fato de que “a subjetividade
contemporânea não sofre de falta de foco, mas antes de excesso de focalização” (p.15).
As crianças de hoje, de um modo geral, estão acostumadas a essas dimensões, lembra
Fiore (2005). Muitas delas conversam no messenger com vários amigos simultaneamente,
jogam vídeo-game e fazem suas pesquisas escolares ao mesmo tempo e no mesmo
computador.
Nesta busca desenfreada por novidades a atenção é passageira, mudando de foco
constantemente, estando sujeita ao esgotamento em frações de segundos. Segundo Kastrup
(2002, p.2), “quando se busca descrever como a atenção funciona nos dias atuais, o primeiro
157
aspecto que sobressai é uma acentuada dispersão, que resulta da mudança constante do foco
da atenção”.
Com a explosão de informações ofertadas simultânea e ininterruptamente pelos meios
de comunicação, têm-se observado um crescimento progressivo dos problemas de atenção,
que comparecem com cada vez maior freqüência nas famílias, escolas, clínicas e consultórios.
Mas há que se fazer uma crítica a este fato, uma vez que os sujeitos contemporâneos
(sobretudo as crianças e jovens) ao mesmo tempo em que são inundados de informações e
novas tecnologias, são também exigidos num estar atento que não vai de encontro a esta
explosão de novidades.
Acontece que a atenção exigida para o aprendizado escolar, com freqüência ainda é a
atenção do tipo voluntária, seletiva e focal. Por esta razão julga-se, constantemente,
especialmente no ambiente escolar, o sujeito contemporâneo como desatento e sem foco
para as atividades propostas.
Este pensamento tomou tal proporção que, segundo De-Nardin (2007), ao nos
referirmos à atenção na escola, com freqüência o termo vem associado ao diagnóstico de
déficit de atenção e hiperatividade.
Atualmente, o TDA/H é tema freqüente nas mídias e “apesar de ser antes um transtorno
de hiperatividade que um verdadeiro problema de atenção”, o chamado TDA/H “mostra quão
críticos podem ser os mecanismos de atenção”, dizem Bear, Connors e Paradiso (2002, p. 660).
As três características associadas com maior freqüência ao TDA/H são: a desatenção, a
hiperatividade e a impulsividade. Acontece que, estes também são traços comumente exibidos
pelas crianças. Bear, Connors e Paradiso (2002, p. 662), dizem que tem se observado
158
atualmente um excesso de prescrições de Ritalina12, “administrada praticamente a qualquer
criança mais agitada ou menos ‘enquadrada’ nas regras do sistema”.
Lima (2004, para.7), relata o fato de que nos EUA, à medida que as características do
transtorno tornam “as pessoas elegíveis para receber medidas especiais de proteção”, tem se
observado um progressivo aumento dos diagnósticos de TDA/H, bem como do recurso ao
tratamento farmacológico. Este autor conta ainda que entre os anos de 1990 e 1998 houve,
naquele país, um aumento de 700% na produção de Ritalina, e diz que o TDA/H, desde a
década de 90, está tomando proporções epidêmicas, o que ele descreve como uma “epidemia
contemporânea”.
Se refletirmos um pouco, será possível lembrar, juntamente com Lima (2004), que há
bem pouco tempo, crianças mais agitadas eram chamadas de “serelepes”, “indisciplinadas”, ou
até mesmo de “mal educadas”. Hoje, muitas destas crianças, são descritas como portadoras de
um distúrbio passível de diagnóstico e medicalização.
O olhar julgador sobre essas crianças, se antes era carregado de um peso moral, hoje
recebe também uma carga biológica. Moral e biológico, ao se sobreporem constituem o que
Caliman (2006) chama de “biologia moral”. E é no processo histórico da biologização moral da
atenção que, segundo esta autora, o sujeito (des)atento se constituiu.
Precisamos questionar com maior freqüência, porque será que cada dia mais e mais
pais, professores, terapeutas e outros adultos tem aceitado com tranqüilidade o diagnóstico
de TDA/H, recebendo-o, por vezes, com alívio e entusiasmo.
12
Ritalina é o nome comercial do metilfenidato, um estimulante do grupo dos anfetamínicos. Suas
principais indicações são para o tratamento do défict de atenção com hiperatividade em crianças e
depressão no idoso. Disponível em: http://www.psicosite.com.br/far/out/ritalina.htm.
159
Ao provocar este questionamento, Rossano Cabral Lima (2004) diz que “uma das chaves
para se entender a explosão de diagnósticos de TDA/H, e principalmente o sucesso comercial
da Ritalina, reside na ênfase atual na performance”.
À medida que seu padrão econômico se deteriora, a classe média precisa
lutar com renovada dedicação para se afastar da linha da pobreza e manter
seu nível de consumo. Nessa batalha, a existência de uma medicação que
pode melhorar o desempenho (principalmente escolar), independente de
um diagnóstico "real" de TDA/H, torna-se muito atraente. [...] Vendo a
sombra da desatenção ameaçar sua eficácia ou a de seus filhos, resta ao
indivíduo poucas saídas - e a identificação com o TDA/H tem sido uma delas
(LIMA, 2004, para. 6).
Por esta razão, tem se observado um uso excessivo de Ritalina, sendo esta prescrita
também a sujeitos onde o transtorno não se apresenta de maneira definida. Ou seja, ela acaba
sendo indicada e utilizada por pessoas que possuem apenas “traços” do transtorno, ou então
por aquelas que apresentam alguma forma “subclínica” de TDA/H. Com isso, pesquisas
mostram haver um uso indiscriminado da substância, já não havendo uma diferenciação entre
seu uso terapêutico, daquele que Lima (2004) chama de uso “cosmético” da Ritalina.
Vendo na identificação com o TDA/H uma saída para a sombra da atenção que
ameaça a si e seus filhos, resta ao sujeito contemporâneo ingressar no universo do
TDA/H. Pois fazendo parte do mundo dos que possuem o transtorno, ele passa a
contar com auxílio medicamentoso, garantindo que o farol da atenção não se apague,
ou então possa brilhar mais que o do seu vizinho, diz Rodrigues (2004).
Devemos, no entanto, resistir e buscar saídas mais criativas para a tendência
contemporânea de “reduzir tudo que é humano a concepções fisicalistas, biológicas”,
diz Lima (2004, para.10). Pois, quando família, escola e sociedade avalizam o
diagnóstico e pressionam pelo uso da medicação, é quase inevitável a inclusão da
criança no "admirável mundo" do TDA/H.
160
DIFERENTES MANIFETAÇÕES, PERCEPÇÕES E CONCEPÇÕES DO ESTAR ATENTO
Quando se fala em atenção, freqüentemente pensamos numa atenção voluntária e
racionalmente direcionada. Este, no entanto, é apenas um dos modos de se estar atento, se
pensarmos a atenção como um fenômeno que pode se apresentar em diferentes dinâmicas
funcionais. Neste trabalho, entendemos atenção como um fenômeno múltiplo, que pode
manifestar-se através de dinâmicas funcionais diversas.
Entre as modalidades atencionais mais conhecidas se encontram os modos de atenção
voluntária, sustentada, suplementar, flutuante, seletiva, automática e dividida. No entanto,
lembramos que podem haver outras modalidades atencionais e também diversas
possibilidades de interações entre elas.
A pesquisa aqui apresentada aponta para o fato de que a palavra atenção pode ser
entendida de muitas formas, e também que o que se entende por atenção, pode ser diferente
do que se percebe no sujeito atento. Talvez por esta pluralidade de entendimentos é que
Caliman (2006, p. 153)
refira-se à atenção como uma “palavra mágica”, pois em seu
“nomadismo ela já foi considerada um acontecimento, um incidente, um ato, uma disposição
física e psíquica, uma decisão, uma habilidade, um dever, uma obrigação, um afeto e um
presente”.
Desta forma, através da aproximação e do convívio com os sujeitos que participaram da
pesquisa e seus diferentes comportamentos atencionais, dentro e fora da escola, bem como
da convivência com seus pais e suas professoras, foi possível verificar a existência de
diferentes entendimentos sobre o que é atenção para estes sujeitos.
161
Na fala das educadoras observou-se um desencontro entre o que teoricamente
entendiam por atenção e o que percebiam no estar atento de seus alunos em sala de aula.
Embora teoricamente ainda fosse forte a idéia de que um aluno atento é um aluno tranqüilo,
as professoras conseguiam se mostrar sensíveis aos diferentes modos de estar atento das
crianças, o que lhes possibilitou uma ampliação de seus entendimentos sobre o que é atenção
e o estar atento dos sujeitos.
Para as crianças, no entanto, atenção era apenas uma interjeição. Segundo Nóbrega
(2005), o corpo vem historicamente sofrendo um longo processo de disciplinamento dos
gestos, e a trajetória pessoal desse processo aparece fortemente marcada nas falas das
crianças. É provável que grande parte das vezes em que tenham ouvido a palavra “atenção”,
ela tenha sido usada como interjeição, geralmente exprimindo um sentimento de
descontentamento dos adultos com relação a seu comportamento. Usada deste modo, a
mesma palavra servirá como advertência, assim como para recomendar cuidado, ou impor
silêncio. Se
a palavra “atenção” só lhes foi apresentada neste contexto, que outro
entendimento as crianças poderiam ter sobre este tema?
Os pais, por sua vez, em nenhum momento mostraram ter o mesmo entendimento das
crianças, ou o tensionamento das professoras, no que diz respeito ao entendimento do estar
atento de seus filhos. Para os pais, o estar atento de seus filhos estava relacionado à
percepção que tinham das crianças, levando em consideração quatro aspectos: a detenção
(permanência no foco), a duração (tempo que se mantém na tarefa), a imobilidade (manter-se
quieto, imóvel, ou com movimentos tranqüilos) e o envolvimento afetivo (gostar da atividade
e entregar-se à ela).
Assim sendo, a pesquisa aponta para o fato de que atenção é uma palavra “mágica”,
com muitos significados e com entendimentos diversos, podendo ser vivenciada em diferentes
modalidades e expressada das maneiras mais diversas.
162
DO CORPO ATENTO AO CORPO QUE PÁRA QUIETO
Será mesmo que um corpo atento é um corpo que pára quieto? Do ponto de vista da
neurologia, um corpo sem movimento é um corpo que vegeta e vegetal é uma categoria não
humana. Se falamos de corpos humanos, necessariamente precisamos pensá-los em
movimento.
A motricidade, assim como a atenção, fazem parte da aprendizagem. As informações
são captadas, ordenadas e assimiladas neste imenso órgão que é o corpo humano. Por esta
razão, movimento não deve sugerir apenas desatenção, uma vez que este pode ser a
expressão do esforço do sujeito em manter-se atento.
Agitado, mal comportado, desatento, podem até parecer sinônimos, mas não são. Ao
falar da desatenção dos sujeitos, sobretudo nas atividades escolares, é freqüente que se fale
de sua gestualidade, de uma motricidade que não corresponde à esperada pelo professor.
Neste caso, o aluno atento seria o que se mostra mais tranqüilo (do ponto de vista da
motricidade) e corporalmente disposto ao recebimento passivo de informações (uma vez que
o aprendizado não pode ser passivo).
Por outro lado, algumas atitudes inquietas das crianças em sala de aula, que são com
freqüência julgadas como falta de atenção, podem indicar falta de interesse pela temática
proposta, ou falta de adequação às regras, e não desatenção.
Nesta mesma perspectiva, podemos pensar que o desassossego das crianças nos
primeiros anos do Ensino Fundamental se dá, em parte, por uma inquietação própria da
163
infância, pois de um modo geral para a criança nos anos iniciais da escola tudo é novo e
interessante. Esta inquietação, portanto, é muito mais constitutiva do que indisciplinar.
A pesquisa aqui apresentada apontou ainda outros aspectos relevantes para se discutir a
(des) atenção nos dias de hoje. Um deles, destacado por De-Nardin e Sordi (2007), é a forte
crença de que a atenção focalizada é condição fundamental para a aprendizagem e quanto
maior for o poder da criança de manter o foco em determinado objeto, maior será sua chance
de sucesso.
Nesta pesquisa constatou-se que a atenção exigida pela escola é do tipo focal, seletiva e
voluntária e por esta razão a criança que denotar um melhor estar atento no modelo esperado
pela escola, também apresentará um melhor desempenho neste modelo escolar. No ambiente
escolar uma atenção distraída é, geralmente, entendida como desatenção.
Outro aspecto relevante é o fato de muitos autores, entre eles Nahas e Xavier (2004),
concordam que nenhuma definição para o termo “atenção” é ainda suficientemente
satisfatória. Desta afirmativa surge uma nova inquietação, ou seja, se ainda não há uma
definição suficientemente aceitável para o que é atenção, como ter uma definição
suficientemente satisfatória para o que é desatenção?
E mais, se existem diferentes modalidades atencionais (voluntária, sustentada,
suplementar, flutuante, seletiva, automática, dividida, entre outras), poderíamos pensar que
com elas devem co-existir também diferentes modos de se estar atento.
Assim sendo, como classificar categórica e estereotipadamente o sujeito desatento,
quando sabemos que existem muitas maneiras de se estar na atenção? Segundo Silva (2003),
a desatenção, quando existe de fato, carece de um processo avaliativo multiprofissional
criterioso e relativamente longo.
164
Finalmente, vale lembrar que esta pesquisa aponta para o fato de que o corpo que pára
quieto, nem sempre é um corpo atento, do mesmo modo que um corpo atento, nem sempre
pára quieto.
REFERÊNCIAS
AMORIM, K. S. e ROSSETTI-FERREIRA, M.C. (2004). A matriz sócio histórica. In: ROSSETTI-FERREIRA, M.C.
et al. Rede de significações e o estudo do desenvolvimento humano. Porto Alegre: Artmed.
BAUMAN, Zygmunt (2001). Modernidade líquida. Rio de Janeiro: Jorge Zahar.
BEAR, M.; CONNORS, B. e PARADISO, M. (2002). Neurociências: desvendando o sistema nervoso. 2.ed.
Porto Alegre: Artmed.
CALIMAN, L.V. (2006). A biologia moral da atenção: a constituição do sujeito (des)atento. Tese (Curso
de Pós Graduação em Saúde Coletiva - Doutorado) - Universidade do Estado do Rio de Janeiro/Instituto
de Medicina Social, Rio de Janeiro, 173 f.
CALIMAN, Luciana. Dominando corpos, conduzindo ações: genealogias do biopoder em Foucault.
Disponível
em
:http://64.233.169.104/search?q=cache:X_z15oUt_ZwJ:www.
cliopsyche.uerj.br/livros/anaisv. doc+%22Luciana+vieira+caliman%22&hl=pt-BR&ct= clnk&cd=11&gl=Br
Acesso em: 07 Ago 2007.
DE-NARDIN, Maria Helena. (2007). Um estudo sobre as formas de atenção na sala de aula e suas
relações com a aprendizagem. Dissertação (Programa de Pós Graduação em Psicologia Social e
Institucional) - Universidade Federal do Rio Grande do Sul/ Instituto de Psicologia, Porto Alegre, 123 f.
Acesso em: 15 Jul 2007
DE-NARDIN, Maria Helena; SORDI, Regina Orgler. (2007). Um estudo sobre as formas de atenção na sala
de aula e suas implicações para a aprendizagem. Psicologia e Sociedade., Porto Alegre, v. 19, n. 1.
Disponível
em:
<http://www.scielo.br/
scielo.php?script=sci_arttext&pid=S010271822007000100014&lng=pt&nrm=iso>. Acesso em: 29 Jul 2007.
FIORE,M. A. (2005). Medicalização do corpo na infância: considerações acerca do Transtorno do Déficit
de Atenção e Hiperatividade. Disponível em: <http://www.cliopsyche.cjb. net/mnemosine/index.php.
Acesso em: 07 Set 2007.
KASTRUP, Virgínia (2004). A apredizagem da atenção na cognição inventiva. Psicologia e Sociedade.,
Porto
Alegre,
v.
16,
n.
3.
Disponível
em:
<http://www.scielo.br/
scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102-71822004000300002&lng=pt&nrm=iso>.Acesso em: 25 Set
2006.
KASTRUP, Virgínia (2007). O funcionamento da atenção no trabalho do cartógrafo. Psicologia e
Sociedade, Porto Alegre,
v. 19,
n. 1,
Disponível em: <http://www.scielo.br/
scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102-71822007000100003&lng=pt&nrm=iso>.Acesso em: 04 Ago
2007.
LIMA, R. C. (2004). TDA/H: uma “epidemia” em curso? Disponível em: http://www.tekoaaprendizagem.com.br/artigos.htm. Acesso em: 29 Jul 2007.
165
NAHAS, T. e XAVIER, G. (2004). Atenção. In: ANDRADE, V.; SANTOS, F. E BUENO, O. Neuropsicologia
hoje. São Paulo: Artes Médicas.
NAHAS, T. e XAVIER, G. (2004). Neurobiologia da atenção visual. In: Andrade, V.; Santos, F. e Bueno, O.
Neuropsicologia hoje. São Paulo: Artes Médicas.
NÓBREGA, Terezinha P. (2005). Qual o lugar do corpo na educação?- Notas sobre conhecimento,
processos cognitivos e currículo. Educação e Sociedade, Campinas, vol. 26, n. 91, p. 599-615, Maio/Ago
de 2005.
RODRIGUES, Carla. (2004). Somos todos hiperativos.
aprendizagem.com.br/artigos.htm. Acesso em: 29 Jul 2007.
Disponível
em:
<http://www.tekoa-
ROSSETTI-FERREIRA, M.C; AMORIM, K.S.; SILVA, A.P. (2004). Rede de Significações: alguns conceitos
básicos. In: ROSSETTI-FERREIRA, M.C. et al. Rede de significações e o estudo do desenvolvimento
humano. Porto Alegre: Artmed.
SILVA, A. (2003). Mentes Inquietas: entendendo melhor o mundo das pessoas distraídas, impulsivas e
hiperativas. 34.ed. São Paulo: Ed. Gente.
166
Candidatura 9
Autores: Valéria Barbieri
Título: A personalidade paterna como fator prognóstico no tratamento da tendência antisocial
167
168
A PERSONALIDADE PATERNA COMO FATOR PROGNÓSTICO NO TRATAMENTO DA
TENDÊNCIA ANTI-SOCIAL.
Prof.ª Drª. Valéria Barbieri
Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto
Universidade de São Paulo, Brasil.
[email protected]
RESUMO
A importância da família no desenvolvimento infantil é reconhecida pelos clínicos, a
ponto de ser incluída em processos avaliativos e terapêuticos de crianças. Contudo,
esse ambiente é avaliado principalmente com referência às características da mãe,
havendo pouca literatura sobre o papel do pai. O Psicodiagnóstico Interventivo é uma
prática clínica que combina atividades de avaliação e intervenção. Aplicado à
população infantil, seus resultados dependem da qualidade do meio familiar. Diante
da escassez de dados sobre o papel paterno no prognóstico terapêutico da criança,
esta pesquisa investigou as características de personalidade dos pais de crianças com
tendência anti-social submetidas ao Psicodiagnóstico Interventivo passíveis de
associar-se aos resultados terapêuticos. Sete crianças compuseram a amostra, com
seus pais sendo avaliados no início do processo pelo Teste de Rorschach. O follow-up
dos casos indicou a ocorrência de cinco sucessos e dois fracassos. As características de
personalidade dos pais associadas ao sucesso foram ausência de comprometimentos
severos no Teste da Realidade, Controle Pulsional e Relacionamentos Interpessoais,
além da apresentação de organização neurótica de personalidade. Portanto, os
resultados mostram que a prática clínica avaliativa e terapêutica não pode negligenciar
as características de personalidade paterna na indicação terapêutica de crianças e na
definição de seus prognósticos.
Palavras-chave: Psicodiagnóstico Interventivo; tendência anti-social; família; pai; Teste
de Rorschach.
169
INTRODUÇÃO
A literatura psicológica e psiquiátrica é unânime em reconhecer a influência da
família no desenvolvimento emocional infantil. Nesse contexto, Soifer (1992),
esmiuçando o conceito freudiano de série complementar (Freud, 1917/1976), defende
que, apesar de a etiologia dos transtornos mentais repousar na atuação de uma série
de fatores como a determinação genética, a qualidade das experiências intra-uterinas,
o trauma do nascimento e a vida afetiva infantil, é esta última que se constitui no fator
relevante do devir ulterior do indivíduo. Ela explica sua posição afirmando que mesmo
quando os demais elementos são de ordem adversa, eles podem ser atenuados por
cuidados promotores de um desenvolvimento harmonioso ou exacerbados por
experiências dolorosas e carências marcadas. Em direção semelhante, Winnicott
(1952/1993), ao postular o estágio de dependência absoluta do desenvolvimento
emocional, afirmou que um bebê sozinho não existe, já que ele sempre é apresentado
junto a um cuidador; portanto seria necessário considerá-lo em conjunto com sua
mãe. Em acordo com esse pensamento, vários estudos científicos debateram a relação
entre as características da personalidade materna e os distúrbios psicológicos infantis
(Soifer, 1983; Webster-Stratton, 1993; Vostanis e Nicholls, 1995; Davies e Windle,
1997; Nigg e Hinshaw, 1998; entre outros).
O papel do pai, por sua vez, teve
consideração menos freqüente, sendo abordado principalmente no caso dos
transtornos anti-sociais infantis (Frick e cols.; 1992; Rey, 1993).
Embora esses estudos sejam relativamente comuns, pouca atenção tem sido
devotada ao pólo “negativo” da mesma questão, ou seja, às características parentais
promotoras do desenvolvimento harmonioso. Em razão da existência de práticas
170
terapêuticas voltadas à população infantil em que a boa qualidade do ambiente
familiar é primordial para a obtenção e a manutenção dos benefícios alcançados,
conhecimentos dessa natureza são tão fundamentais como aqueles referentes aos
efeitos adversos das influências do meio.
Winnicott (1958/1993), ao desenvolver sua teoria do amadurecimento
emocional dedicou especial atenção ao conceito de mãe suficientemente boa e, em
alguns momentos também à função do pai. Os atributos desse ambiente desejável
variariam em função do estágio evolutivo da criança. De acordo com ele, no primeiro
estágio, dependência absoluta, caracterizado pela não integração do bebê, predomínio
dos processos primários de pensamento, narcisismo e auto-erotismo, seria função da
mãe o fornecimento do holding, compreendido como o sustentar físico e emocional do
bebê, vivido como a continuidade da provisão fisiológica intra-uterina que ele
dispunha. Também faz parte da função materna nesse momento estabelecer uma
rotina de cuidados, que produza na criança a sensação de continuidade de existência.
Essa sensação também se desenvolve a partir das experiências de ilusão quando a
mãe, ajustando-se aos objetos que o bebê cria, vai ao encontro de sua onipotência,
proporcionando-lhe a sensação de que a realidade é gerada por ele. Paralelamente,
ela introduz em pequenas doses o mundo externo ao filho, de acordo com suas
condições de assimilá-lo, auxiliando-o a iniciar as tarefas de integração, personalização
e realização. O papel do pai nesse momento evolutivo seria o de proteger a díade mãebebê (Outeiral, 1997), para que a esposa tenha a tranqüilidade necessária para
dedicar-se integralmente a seu filho, efetuando a regressão necessária para
compreender as necessidades dele, mediante o desenvolvimento da preocupação
materna primária (Winnicott, 1956/1993). No final do estágio é tarefa da mãe se
171
desadaptar gradualmente às demandas do bebê, de acordo com a capacidade dele
para suportar esses fracassos, processo conhecido como desilusão, base para a
realização do desmame (Barbieri, Jacquemin e Biasoli-Alves, 2005).
No estágio seguinte, de dependência relativa, a mãe deve ser capaz de tolerar, ela
própria, as desilusões instituídas em sua relação com o bebê, de modo a permitir-lhe
desenvolver a capacidade de preencher o espaço vazio entre o próprio corpo e o dela
por meio da fantasia, do pensamento incipiente e dos fenômenos e objetos
transicionais. O desempenho suficientemente bom dessas funções depende da própria
condição materna para viver experiências de transicionalidade; caso contrário, ela
fomenta a dependência do filho e o impede de crescer. Também nesse momento a
mãe suficientemente ser capaz de tolerar as agressões do bebê sem sentir-se
demasiado ferida ou desejosa de vingança, de modo que ele, percebendo que sua
agressividade não é suficiente a ponto de destruir o objeto, prossiga no
desenvolvimento da fusão pulsional, e alcance a capacidade de reparação e
simbolização. É também nesse estágio que o pai será apresentado à criança, mas de
maneira mediada pela mãe e, portanto, dependente da qualidade da figura paterna
dela (Barbieri, Jacquemin e Biasoli-Alves, 2005).
No estágio de rumo à independência, com a maior integração obtida pelo bebê
e a aquisição da habilidade para triangulação e relacionamento edípico, é tarefa de
ambos os pais auxiliar a criança no manejo da angústia de castração, da ambivalência e
dos sentimentos de exclusão. Nesse contexto, a ajuda proporcionada por eles depende
fundamentalmente de suas próprias condições defensivas, da aceitação de sua
172
identidade sexual e da transformação de seus sentimentos de rivalidade em
solidariedade (Barbieri, Jacquemin e Biasoli-Alves, 2005).
A qualidade das figuras materna e paterna presentes na realidade psíquica de
ambos os pais é relevante para o bom desempenho de suas funções, porque a do
próprio sexo consiste em seu modelo de identificação, e a do sexo oposto, além de
determinar a forma como ele apresentará o cônjuge à criança, funciona como exemplo
do modo de elaboração dos afetos edípicos (Furman, 2000; Geissman, 2000).
Em acordo com esses pressupostos, os pais e mães suficientemente bons
seriam aqueles que apresentariam objetos internos preservados e com características
predominantemente positivas, um ego suficientemente forte e flexível e um superego
desenvolvido em bases realistas. Em decorrência disso, eles pais teriam melhores
condições de auxiliar seus filhos em tratamentos psicológicos em que a qualidade do
ambiente interfere nos resultados como as Consultas Terapêuticas (Winnicott,
1971/1984) e o Psicodiagnóstico Interventivo (Barbieri, 2002).
Com base nessas considerações, em trabalho anterior investigamos, por meio
do Teste de Rorschach, as características de personalidade de mães de crianças antisociais que estavam vinculadas ao sucesso terapêutico do filho no Psicodiagnóstico
Interventivo (Barbieri, Jacquemin e Biasoli-Alves, 2005). Os resultados indicaram que a
ausência de prejuízos severos no Controle Pulsional e nos Relacionamentos Pessoais
das mães associaram-se ao bom prognóstico da criança. Uma vez que foi possível
alcançar resultados positivos mesmo em casos em que havia algum prejuízo
psicológico (leve ou moderado) por parte da mãe, consideramos que a maneira como
as dificuldades dela são absorvidas e manejadas pelo restante da família eram
173
decisivas para a eficácia terapêutica. Desse modo, seria fundamental investigar
também as relações entre as características de personalidade paternas e os resultados
terapêuticos dos filhos, com vistas a obter uma compreensão mais precisa das
indicações e contra-indicações do Psicodiagnóstico Interventivo.
Diante dessas considerações, o presente estudo teve como objetivo averiguar
as características de personalidade de pais (masculinos) de crianças com tendência
anti-social submetidas ao Psicodiagnóstico Interventivo, relacionando-as com o
sucesso ou fracasso no tratamento do filho.
MÉTODO
Participantes
Seis pais de sete crianças entre 5 e 10 anos (seis meninos e uma menina)
submetidas ao Psicodiagnóstico Interventivo por comportamentos anti-sociais
(mentiras, furtos, agressividade física ou verbal e comportamento desafiador). Em
todas as famílias o pai e a mãe viviam sob o mesmo teto; o nível sócio-econômico
variou entre médio e baixo. A faixa etária dos pais se estendeu de 26 a 56 anos e o
grau de instrução de 4ª série do ensino fundamental a ensino médio completo. Foram
excluídos da amostra pais com história de comportamentos agressivos, internação
psiquiátrica ou uso de drogas.
Material
O instrumento utilizado para a avaliação dos pais foi o Teste de Rorschach, com
exceção de um caso em que essa técnica foi substituída pelo Teste do Desenho da
Figura Humana _ DAP (Hammer, 1926/1991) em razão de daltonismo do sujeito. Os
174
resultados do Teste de Rorschach foram apurados segundo o referencial da escola
francesa (Traubenberg, 1998) e interpretados de acordo com as normas brasileiras
estabelecidas por Pasian (2000). Para o atendimento específico da criança fez-se uso,
além do Teste de Rorschach, da entrevista de anamnese, da entrevista familiar
diagnóstica, de sessões lúdicas, da Bateria Gráfica de Hammer e do Teste de
Apercepção Temática para Crianças – Forma Animal (CAT-A). Também foram
realizadas entrevistas de follow-up com ambos os pais para determinar o resultado de
sucesso ou malogro terapêutico da criança.
Procedimento
Após a realização de uma entrevista de anamnese sobre o filho, os pais foram,
em sessão ulterior, submetidos à aplicação individual do Teste de Rorschach (ou DAP),
após o que iniciou-se o atendimento do filho. Após a conclusão do Psicodiagnóstico
Interventivo da criança houve a convocação de ambos os pais para a entrevista
devolutiva seguida de orientação, e a família era dispensada.
O período de follow-up variou entre 3 e 8 meses sendo que em um caso, quando não
foi possível aos pais comparecerem pessoalmente, o seguimento foi realizado por
telefone.
Análise dos Resultados
Os dados foram analisados descritivamente, contrapondo-se os resultados dos
pais no Teste de Rorschach com o sucesso ou fracasso terapêutico dos filhos.
Uma
vez que as características dos pais suficientemente bons poderiam ser investigadas em
termos da natureza do seu ego e superego e da qualidade das figuras materna e
175
paterna, os indicadores do Psicograma do Teste de Rorschach foram apreciados de
modo integrado, conforme os grupos representativos das funções egóicas
sistematizados por Loureiro e Romaro (1985): Produção, Ritmo, Pensamento, Teste da
Realidade, Controle Pulsional, Funcionamento Defensivo e Relacionamentos
Interpessoais. O nível de integridade dessas funções foi aferido como preservado ou
comprometido em grau leve, moderado ou severo, complementando-se a análise pelo
indicador Natureza da Relação de Objeto e pelo diagnóstico da Estrutura de
Personalidade. Como as condições do ego dependem de suas relações com o
superego, e como a organização da personalidade é determinada pelas fantasias que o
ego tem sobre si mesmo e seus objetos (Segal, 1963/1975), a análise dessas funções
foi considerada suficiente, sem necessidade de avaliações específicas das figuras
materna e paterna e do superego dos pais.
Quanto aos resultados terapêuticos, foram considerados bem sucedidos os
casos em que foi relatado, no follow-up, melhora acentuada dos sintomas, mesmo que
houvesse necessidade de encaminhamento posterior à ludoterapia. Esse critério
fundamentou-se nos objetivos do Psicodiagnóstico Interventivo que, similarmente à
Consulta Terapêutica, não visa substituir uma análise quando ela é necessária, mas
quando ela não é (Barbieri, Jacquemin e Biasoli-Alves, 2005). Os casos em não houve
melhora da criança ao final da intervenção foram considerados mal sucedidos.
RESULTADOS E DISCUSSÃO
Breve apresentação dos casos
176
1- Beatriz13: 10 anos de idade, nível sócio-econômico médio, residia com o pai, a
madrasta e um irmão de 13 anos. A mãe biológica faleceu quando ela tinha 4 anos. Foi
encaminhada por uma neurologista devido a furtos de dinheiro dos familiares, que
deixaram de acontecer após o término do atendimento. O follow-up se estendeu por 6
meses. Sucesso terapêutico.
2- Leonardo: 10 anos, nível sócio econômico baixo. Foi encaminhado pela diretora de
sua escola por agitação, brigas com os colegas e insubordinação aos professores,
comportamentos que não aconteciam em casa. O período de seguimento do caso foi
de 3 meses, com a mãe relatando melhora acentuada dos sintomas, não tendo mais
recebido reclamações da escola. Sucesso terapêutico.
3- Tiago: 8 anos, nível sócio-econômico baixo, tinha um irmão de 5 anos e uma irmã
de 3. Foi encaminhado pela orientadora educacional, amiga da família, que
descreveu a ele e ao irmão como crianças más, agressivas e desobedientes. Os
pais, no entanto, o apresentaram como um menino doce, tranqüilo e inteligente, e
se preocupavam com o fato de ele não expressar seus sentimentos. Ao final do
trabalho relataram melhoras, afirmando que o filho estava mais ‘chato’, exigente e
capaz de expressar o que desejava. O follow-up se estendeu por 8 meses. Sucesso
terapêutico.
4- Rafael: 5 anos, irmão de Tiago. Foi descrito pelos pais como desobediente,
teimoso, rebelde e muito ciumento em relação à irmã. Um ano antes do
atendimento maltratava seu cachorro e arrancava as folhas de uma planta, de que
agora cuidava. Após o término da intervenção, embora os pais relatassem sua
13
Todos os nomes utilizados neste trabalho são fictícios, de modo a preservar a identidade dos
participantes.
177
melhora significativa, ele solicitou continuidade do atendimento. Foi iniciada
ludoterapia que durou apenas 3 meses, porque a família se mudou para outra
cidade. Sucesso terapêutico.
5- Paulinho: 8 anos, nível sócio-econômico médio, tinha uma irmã de 13 anos e outra
de 1 mês. Foi encaminhado pela diretora da escola devido a brigas com os colegas,
mentiras, uma fuga e um episódio de furto. Foi descrito pelos pais como um
menino que irritava e atormentava os demais, embora cuidasse de crianças
pequenas. No decorrer do atendimento, o pai demonstrou que não concordava
com as queixas, argumentando que havia exagero quanto a elas. No final do
trabalho o casal relatou melhora dos sintomas, mas, 5 meses depois, a mãe
contatou a psicóloga dizendo que eles haviam retornado e solicitando
continuidade do tratamento. Sucesso terapêutico parcial.
6- Daniel: 8 anos, filho único, adotado com 1 dia de vida. Foi encaminhado pela
diretora da escola por ser desobediente e agitado, tendo já recebido diagnóstico
de hiperatividade. Os pais contaram que ele destruía brinquedos e tinha
alucinações visuais e auditivas. Recusava a alimentação, a menos que a mãe lhe
desse a comida na boca. Também não aceitava dormir em seu quarto, que passou
a ser ocupado pelo pai, enquanto ele dormia com a mãe. Ao longo do
Psicodiagnóstico Interventivo apresentou melhoras e passou a dormir sozinho em
seu quarto, mas na última sessão estava angustiado e exigiu a presença da mãe na
sala de atendimento. A psicóloga ofereceu-se para iniciar tratamento ludoterápico,
mas ele recusou. O follow-up se estendeu por 4 meses, havendo retorno dos
sintomas. Fracasso terapêutico.
7- Michael: 10 anos, filho único, nível sócio-econômico médio. Foi encaminhado pela
178
diretora da escola por desatenção, recusa a cumprir as atividades e agressividade
com os colegas. Os pais apresentavam sérios conflitos conjugais, tendo sido
cogitada a possibilidade de separação. O seguimento do caso se estendeu por 3
meses, sem melhora. Embora a psicóloga se dispusesse a prosseguir o atendimento
do menino, não foi mais procurada pela família. Fracasso terapêutico.
Resultados do Teste de Rorschach
O pai de Michael foi o único a responder o Teste do Desenho da Figura Humana
(DAP) ao invés do Rorschach. Com isso, optamos por incluir seus resultados apenas na
análise da relação entre a estrutura de personalidade paterna e o resultado
terapêutico do filho, pois embora Loureiro e Romaro (1985) organizassem a avaliação
das funções psicológicas por indicadores de testes gráficos, seu intento referiu-se ao
HTP como um todo e não especificamente ao DAP. Portanto, na análise das funções
egóicas, somente o protocolo do pai de Daniel foi incluído na categoria de malogro
terapêutico.
A tabela 1 mostra que as variáveis de personalidade paternas que
discriminaram entre os sucessos e os fracassos terapêuticos das crianças foram a
Estrutura de personalidade, a qualidade dos Relacionamentos Interpessoais, do
Controle Pulsional (incluindo o Funcionamento Defensivo) e do Teste da Realidade.
[INSERIR AQUI TABELA 1]
Nesse sentido, em todas as situações de êxito (total ou parcial) os pais
apresentavam organização neurótica de personalidade; já nos dois casos de malogro, o
ordenamento foi de natureza psicótica ou limítrofe. Essa verificação, aliada à
informação de que nos dois casos mal sucedidos as crianças dispunham de estrutura
179
psicótica, e às afirmações de Rosenfeld (2000) de que o papel do pai é preenchido
quando as angústias primitivas da criança são contidas, conduz a hipóteses sobre
dificuldades para indivíduos psicóticos e borderline cumprirem a função paterna.
Nesse sentido, se o papel do pai no estágio de dependência absoluta consiste
em proteger a dupla mãe-bebê, liberando a primeira para a fruição da preocupação
materna primária (Outeiral, 1997), a primeira questão que surge é a da viabilidade de
um pai com ordenamento limítrofe ou psicótico desempenhar essa função a contento,
já que seu relacionamento com o ambiente é permeado pelo narcisismo e autoreferência. Dessa maneira, se a mãe precisa preocupar-se com exigências externas ao
seu relacionamento com o bebê, pode ficar sobrecarregada e ter maiores dificuldades
em sua tarefa de contenção das angústias primitivas do filho. De qualquer modo, não
parece ser essa a única dificuldade encontrada por pais com tais disposições de
personalidade no cumprimento de seu papel no primeiro estágio de vida do filho.
Rosenfeld (2000) sustenta que uma parte das atribuições paternas nesse
momento evolutivo consiste em dar coerência afetiva às sensações e percepções do
mundo dos objetos vivos que cercam a criança, função essa indissociável da materna.
Segundo ele, a mãe apresenta os primeiros sinais da presença ou ausência do pai,
sendo que a natureza deles dependerá de sua relação com o marido. Em um tempo
ulterior, a criança poderá recusar esses indicadores iniciais, construindo uma
concepção própria em acordo ou desacordo com eles. Parece plausível supor que,
nessa etapa do desenvolvimento, a função paterna seria introduzida ao bebê por meio
do elemento masculino materno que, embora construído na realidade psíquica da mãe
com base em fatores hereditários e em sua experiência com os próprios genitores,
180
sofre acréscimos, subtrações e alterações a partir da relação estabelecida com o pai do
bebê. De acordo com Winnicott (1971/1975),
(...) a relação de objeto do elemento masculino (...) pressupõe uma
separação. Assim que se acha disponível a organização do ego, o bebê
concede ao objeto a qualidade de ser não-eu (...) Daí por diante,
tratando-se do elemento masculino, a identificação necessita basear-se
em mecanismos mentais complexos, aos quais se tem de conceder
tempo para surgirem, se desenvolverem e se estabelecerem como
parte da aparelhagem do novo bebê. Tratando-se do elemento
feminino, contudo, a identidade exige tão pouca estrutura mental, que
essa identidade primária pode constituir uma característica desde
muito cedo (...) (p.115).
O que se pretende dizer é que no início da vida não basta à mãe espelhar a
singularidade do filho, mas também organizar o conteúdo dela, colocando-lhe limites,
contendo-o, separando os dados da realidade que podem ou não ser apresentados a
ele, devolvendo as projeções de um modo organizado, o que, segundo nossa hipótese,
somente é possível devido à integração entre os seus elementos masculino e feminino.
Em termos semelhantes, Winnicott (1945/1993) discorre sobre as vantagens e o alívio
proporcionados pela realidade externa, argumentando que ela possui freios e pode ser
estudada e conhecida. Segundo ele, somente é possível tolerar a fantasia total quando
o mundo exterior é bem apreciado.
181
Nesse contexto o papel do pai consistiria em ser o portador da realidade
externa para a mãe (envolvida na preocupação materna primária) e para o bebê.
Portanto, a qualidade do cumprimento de sua função vincular-se-ia às condições do
seu Teste de Realidade. Indo ao encontro dessas suposições, a tabela 1 mostra que os
genitores das crianças bem sucedidas apresentaram no máximo comprometimentos
moderados nesta função, enquanto o pai de Daniel exibiu severo prejuízo,
principalmente em razão do emprego dos mecanismos de negação (F+%=0) e
forclusão. Dessa maneira tornava-se difícil para ele, nos dizeres de Winnicott
(1945/1993), colocar freios nas fantasias do filho (de forma direta ou mediada pela
mãe), liberando-o da necessidade de empregar defesas primitivas e violentas para
controlar a angústia. Ainda, não fornecendo apoio real ao elemento masculino da mãe,
contribuía para que ela mantivesse com o filho uma relação baseada na identidade
entre ambos (elemento feminino), não havendo espaço para a separação (elemento
masculino). Desse modo, não cumpria as tarefas de desbravar, desembaraçar e liberar
o filho das mensagens ambíguas do vínculo simbiótico mãe-bebê, que lhe caberia
interromper gradualmente (Rosenfeld, 2000).
As dificuldades em trazer o mundo externo para o filho ocorreriam
paralelamente a uma incapacidade do pai para perceber a si mesmo como pessoa
singular e independente, aspecto próprio das organizações psicóticas e borderline. Essa
impossibilidade prejudicaria seus vínculos diretos com a criança, que surgem a partir
do segundo semestre de vida, quando ele começa a despontar para o filho como
pessoa distinta e separada da mãe. Nessa direção Abram (1996/2000) afirma que o
pai é usado pela criança como modelo para a própria integração, constituindo-se no
primeiro vislumbre em direção à totalidade pessoal. Portanto, um pai sem condições
182
de perceber a si mesmo como independente e separado do outro seria incapaz de se
apresentar ao filho dessa maneira e, assim, não contribuiria para a consumação de
suas tarefas de integração, personalização e realização (Winnicott, 1945/1993). Nesse
contexto, a tabela 1 revela a presença de prejuízos severos nos Relacionamentos
Interpessoais por parte do pai de Daniel, com o H%=0 indicando a perda do contato
humano em nível profundo e incapacidade para se identificar com o outro (Anzieu,
1961/1988). A habilidade em estabelecer uma relação empática genuína com o filho
seria substituída pela concepção dele como um ‘duplo de si mesmo’, em um vínculo de
natureza narcísica. Misès (2000), narrando o caso de uma criança com patologia
limítrofe, afirma que foi o próprio narcisismo que possibilitou ao pai (também
apresentando essa organização de personalidade) reencontrar sua capacidade de se
interessar pelo filho. Embora a empatia pressuponha certo grau de narcisismo, os
dados deste trabalho mostram que quando este se converte em pólo organizador da
personalidade do pai surgem sérias dificuldades, uma vez que isso compromete a
capacidade de ele se mostrar ao filho como pessoa real e objetiva. Portanto, certo grau
de narcisismo aliado a uma percepção de si mesmo como totalmente separado do
outro parecem se constituir como características importantes para o pai
‘suficientemente bom’, capaz de auxiliar o filho em um processo terapêutico.
É fundamental considerar que, a despeito de dispor de organização neurótica
de personalidade e de um Teste da Realidade intacto, o pai de Paulinho também
apresentou sérias dificuldades nos Relacionamentos Interpessoais, incluindo H%=0.
Esses resultados podem ser compreendidos considerando-se que a adaptação dele ao
mundo externo era conseguida ao custo de um acentuado controle restritivo-inibidor
das pulsões, que empobrecia sua ressonância afetiva (coartada) e as chances de
183
contato com os elementos infantis da personalidade (tendências latentes coartativas),
comprometendo sua capacidade de compreender a criança. Dessa maneira, o grau de
adaptação do pai à realidade externa deve ser avaliado em conjunto com o seu
Controle Pulsional, sob o risco de a melhora obtida pela criança no Psicodiagnóstico
Interventivo ser apenas parcial ou temporária.
Nesse sentido, a tabela 1 mostra a presença de severos comprometimentos
defensivos por parte do pai de Daniel, no contexto de um controle insuficiente das
pulsões, ao passo que os demais genitores exibiram, no máximo, prejuízos moderados
nessa função.
No outro caso de fracasso terapêutico, o do pai de Michael, o inquérito do DAP
revelou a existência de condutas de acting-out, algumas delas anti-sociais, o que
permite concebê-lo como apresentando também um Controle Pulsional escasso e
bastante comprometido. O significado desses resultados no conjunto de uma
organização limítrofe de personalidade pode ser compreendido com base nas
afirmações de Bergeret (1998) sobre o ordenamento perverso. Segundo ele, nesses
casos o indivíduo, por não ter reparado convenientemente seu narcisismo, não ter
encontrado um objeto total, nem elaborado processos secundários eficazes, encontrase na obrigação de buscar satisfações incompletas e urgentes, com objetos parciais e
zonas erógenas parciais.
Embora essa busca por satisfação seja verificada no DAP do pai de Michael, no
de Daniel existem pouquíssimos elementos no Teste de Rorschach sinalizadores de
uma tendência ao acting-out (há apenas a indicação de uma resposta CF). No entanto,
a observação de sua ressonância afetiva coartativa e do potencial latente introversivo
184
revela uma tendência a voltar os afetos (inclusive os hostis) para si mesmo, o que o
exporia a uma série de riscos, já que permanece auto-dirigida uma energia violenta
que não dispõe de um caminho socializado para se expressar (presença de respostas
kob).
Em suma, os resultados encontrados apresentam evidências de que para o pai
auxiliar a criança em um trabalho como o Psicodiagnóstico Interventivo, precisaria ser
capaz de empregar os elementos advindos de seu contato com a realidade externa
para coibir, graduar e organizar as próprias pulsões e as angústias delas decorrentes.
Somente dessa maneira contribuiria para ajudar o filho a emergir da onipotência
afetiva, permitindo-lhe integrar as próprias pulsões e passar da relação de objeto para
o ‘uso do objeto’ (Abram, 1996/2000). Se os pais não logram oferecer aos filhos um
meio favorável à assimilação das pulsões, permanece na criança um sentimento
constante de ameaça por parte delas, passível de conduzir ora à atuação, ora à
inibição.
Nesse sentido, os dados deste estudo sugerem que se os comprometimentos
do Teste de Realidade e do Controle Pulsional (incluindo o Funcionamento Defensivo)
são de natureza estrutural, é muito difícil contar com a ajuda desses genitores no
tratamento da criança pelo Psicodiagnóstico Interventivo, uma vez que só lhes restaria
se identificar de maneira narcísica com a angústia dela, sem conseguir conferir-lhe
forma ou limites.
Quanto às funções egóicas da produtividade e do pensamento paternos, os
dados deste estudo revelam que certa rigidez associativa não restringe
necessariamente as chances de êxito do filho no Psicodiagnóstico Interventivo, nem a
185
presença de inibição ou empobrecimento do pensamento, embora haja indícios de que
a ausência de respostas de cinestesia humana pareça dificultá-lo um pouco.
Com relação à análise dinâmica do Teste de Rorschach dos pais, ela não
permitiu discriminar entre os casos bem e mal sucedidos, devendo ser considerada
sempre em conjunto com a interpretação do psicograma.
CONCLUSÃO
De acordo com o Teste de Rorschach, as informações que identificaram os pais
(masculinos) com condições de colaborar no atendimento do filho foram:
a) Apresentar estrutura neurótica de personalidade;
b) Emitir pelo menos uma resposta K e poucas, ou nenhuma, kob;
c) Dispor
de
um
Controle
Pulsional
preservado
ou,
no
máximo,
moderadamente comprometido;
d) Ausência de prejuízos severos no Teste da Realidade;
e) Capacidade para empatia;
f) Dispor de uma figura materna sólida, boa e que lhe permita o alcance de
uma genitalidade genuína.
Embora a qualidade da figura paterna não tenha se destacado neste estudo
(conforme informado pela análise dinâmica do Teste de Rorschach), é importante
recordar que o alcance da genitalidade também depende dela e, por isso, seu papel
não deve ser negligenciado. Nos dois casos de fracasso terapêutico, o pouco destaque
dessa figura no psiquismo dos pais não parece se dever à sua irrelevância, mas ao fato
de existirem dificuldades referentes a períodos anteriores de desenvolvimento, em
que o pai ainda não surgia como uma figura importante por si mesmo.
186
Esses resultados reiteram a importância do pai na gênese e manutenção dos
Transtornos de Conduta Infantis, seja por meio do seu relacionamento direto com o
filho ou mediado pela mãe, bem como sua função capital no processo de recuperação
da saúde dele.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
Abram, J. (2000). A linguagem de Winnicott: dicionário de palavras e expressões
utilizadas por Donald W. Winnicott. (J. Outeiral, trad.) Rio de Janeiro: RevinteR (original
publicado em 1996).
Anzieu, D. (1988). Os métodos projetivos. (M.L.E. Silva, trad.) Rio de Janeiro: Campus
(original publicado em1961).
Barbieri, V. (2002). A família e o psicodiagnóstico como recursos terapêutico no
tratamento dos transtornos de conduta infantis. Tese de Doutorado Não Publicada,
Curso de Pós-Graduação em Psicologia Clínica, Instituto de Psicologia da Universidade
de São Paulo. São Paulo, SP.
Barbieri, V., Jacquemin, A. & Biasoli-Alves, Z.MM. (2005). Personalidade materna e
resultados de crianças no Psicodiagnóstico Interventivo: o que significa ‘mãe
suficientemente boa’?. Psico (PUCRS). vol. 1, p. 9-19.
Bergeret, J. (1998). Personalidade normal e patológica. (M.E.V. Flores, trad.) Porto
Alegre: Artes Médicas.
Davies, P.T. & Windle, M. (1997). Gender-specific pathways
between maternal
depressive symptons, family discord and adolescent adjustment. Developmental
Psychology. vol.33, n.º4, p. 657-668.
Freud, S. (1976). Algumas idéias sobre desenvolvimento e regressão _ etiologia. In:
Edição standard das obras psicológicas completas de Sigmund Freud v. XI (pp.397-417).
Rio de Janeiro: Imago (original publicado em 1917).
Frick, P.J., Lahey, B. B., Loeber, R., Loeber, M. S., Christ, M.A. & Hanson, K. (1992).
Familial risk factors to Oppositional Defiant Disorder and Conduct Disorder: parental
187
psychopathology and maternal parenting. Journal of consulting and clinical Psychology.
vol. 60, n. º 1, p. 49-55.
Furman, E. (2000). Les mères doivent être là pour être quittées. In: Geissmann, C. &
Houzel, D. (orgs.). L’enfant, ses parents et le psychanalyste. (pp. 229-240). Paris:
Bayard Éditions.
Geissmann, C. (2000). La capacité à être mère. In: . In: Geissmann, C. & Houzel, D.
(orgs.). L’enfant, ses parents et le psychanalyste. (pp. 219-228). Paris: Bayard Éditions.
Hammer, E. F. (1991) Aplicações clínicas dos desenhos projetivos. (E. Nick,trad.) São
Paulo: Casa do Psicólogo (original publicado em 1926).
Loureiro, S.R. & Romaro, R.A. (1985). A utilização das técnicas projetivas, Bateria de
Grafismo de Hammer e Desiderativo como instrumentos de diagnóstico _ estudo
preliminar. Arquivos Brasileiros de Psicologia. vol. 37 (3), p. 132-141.
Misès, R. (2000). La fonction paternelle. In: Geissmann, C. & Houzel, D. (orgs.).
L’enfant, ses parents et le psychanalyste. (pp. 253-262). Paris: Bayard Éditions.
Nigg, J.T. & Hinshaw, S.P. (1998). Parent personality and psychopathology associated
with Antisocial behaviors in childhood Attention-Deficit Hyperactivity Disorder. Journal
of child Psychology and Psychiatry. vol. 39, n.º 2, p.145-159.
Outeiral, J. (1997). Sobre a concepção de pai na obra de D.W. Winnicott. In: Catafesta,
I.F.M. (org.). A Clínica e a Pesquisa no final do século: Winnicott e a Universidade. (pp.
91-104). São Paulo: Lemos.
Pasian, S.R. (2000). O Psicodiagnóstico de Rorschach em adultos: atlas, normas,
reflexões. São Paulo: Casa do Psicólogo.
Rey, J.M. (1993). Oppositional defiant disorder. American Journal of Psychiatry, 150:12,
December, p. 1769-1778.
Rosenfeld, D. (2000). Le rôle du père dans la psychose. In: Geissmann, C. & Houzel, D.
(orgs.). L’enfant, ses parents et le psychanalyste. (pp. 907-925). Paris: Bayard Éditions.
Segal, H. (1975). Introdução à obra de Melanie Klein. (J.C. Guimarães, trad.) Rio de
Janeiro: Imago (original publicado em 1963).
188
Soifer, R. (1983). Psicodinamismos da família com crianças: terapia familiar com
técnica de jogo. (E.F. Alves, trad.) Petrópolis: Vozes.
Soifer, R. (1992). Psiquiatria infantil operativa: psicologia evolutiva e psicopatologia.
(J.C.A. Abreu, trad.) Porto Alegre: Artes Médicas.
Traubenberg, N.R. (1998). A prática do Rorschach. (A.J. Lelé, trad.) São Paulo: Vetor.
Vostanis, P. & Nichols, J. (1995). Nine-month changes of maternal expressed emotion
in Conduct and Emotional Disorders of Childhood: a follow-up study. Journal of Child
Psychology and Psychiatry, vol. 36, n. º 5, p. 833-846.
Webster-Stratton, C. (1993). Strategies for helping early school-aged children with
Oppositional Defiant and Conduct Disorders: the importance of home-school
partnerships. School Psychology Review, vol. 22, n. º 3, p. 437-457.
Winnicott,
D.W.
(1993).
Desenvolvimento
emocional
primitivo.
In:
Textos
selecionados: da Pediatria à Psicanálise. (pp. 269-285) (J. Russo, trad.). Rio de Janeiro:
Francisco Alves (original publicado em 1945).
Winnicott, D.W. (1993). Ansiedade associada à insegurança. In: Textos selecionados:
da Pediatria à Psicanálise. (pp. 205-232) (J. Russo, trad.). Rio de Janeiro: Francisco Alves
(original publicado em1952).
Winnicott, D.W. (1993). Preocupação materna primária. In: Textos selecionados: da
Pediatria à Psicanálise. (pp. 491-498) (J. Russo, trad.). Rio de Janeiro: Francisco Alves
(original publicado em 1956).
Winnicott, D.W. (1975). O brincar e a realidade. (J.O.A. Abreu e V. Nobre, trad.). Rio de
Janeiro: Imago (original publicado em 1971).
Winnicott, D.W. (1993). Textos selecionados: da pediatria à psicanálise. (J. Russo,
trad.). Rio de Janeiro: Francisco Alves (original publicado em 1958).
Winnicott, D.W. (1984). Consultas terapêuticas em psiquiatria infantil. (J.M.X. Cunha,
trad.). Rio de Janeiro: Imago (original publicado em 1971).
189
Tabela 1 - Variáveis de personalidade dos pais (funções egóicas e estrutura de
personalidade) e resultados dos filhos no Psicodiagnóstico Interventivo
Funções
egóicas e
estrutura
dos pais
Resultados terapêuticos das crianças
Beatriz/
Sucesso
Leonardo
/
Sucesso
Tiago e
Rafael/
Sucesso
Paulinho Daniel/
/
Fracasso
Sucesso
Parcial
Michael/
Fracasso
Estrutura de Neurótica Neurótica Neurótica Neurótica Psicótica
Personalidade
Borderline
Produção
Baixa
Baixa
Baixa
Baixa
Baixa
___
Ritmo
Lento
Lento
Lento
Lento
Lento
___
Pensamento
Inibido Imatur
o
Inibido Imatur
o
Inibido ___
Teste da
Realidade
MC
MC
MC
SC
Controle
Pulsional
P
MC (RI) MC (I)
MC (RI) MC (I)
___
Funcionamento
Defensivo
LC
MC
MC
MC
SC
___
Relacionamentos
Interpessoais
MC
MC
MC
SC
SC
___
Entre
total e
parcial
Total
Não há
como
afirmar
(H% = 0)
Não há
como
afirmar
(H% = 0)
___
Vínculo com o Entre
objeto
total e
parcial
P
___
P = Preservado
LC = Levemente Comprometido
MC = Moderadamente Comprometido
SC = Severamente Comprometido
I = Insuficiente
RI = Restritivo-Inibidor
190
Candidatura 10
Autores: Valéria Barbieri
Título: A influência da personalidade materna e paterna na etiologia da tendência anti-social
infantil
191
192
A INFLUÊNCIA DA PERSONALIDADE MATERNA E PATERNA NA ETIOLOGIA DA TENDÊNCIA
ANTI-SOCIAL INFANTIL
Prof.ª Drª. Valéria Barbieri
Departamento de Psicologia e Educação
Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo
(FFCLRP-USP), Brasil.
[email protected]
RESUMO
O termo anti-social refere-se a distúrbios como o Transtorno Desafiador Opositivo, de Conduta
e de Personalidade Anti-Social. Dentre seus fatores etiológicos, o ambiente familiar é
considerado o mais importante: conflitos entre os pais, desafeto materno e desconsideração
das necessidades da criança têm presença reconhecida neles. Apesar disso, há pouca literatura
relativa à personalidade dos pais da criança anti-social. Assim, este trabalho apresenta a
avaliação, pelo Teste de Rorschach, de um menino anti-social e de seus pais, visando averiguar
de que modo as limitações destes últimos promoveriam as dificuldades do filho. Os resultados
da criança indicaram comprometimentos na integração da personalidade e na capacidade
criativa, e dificuldades no relacionamento com a mãe. A avaliação da mãe também revelou um
relacionamento insatisfatório com a figura materna, permeado por sentimentos de rejeição e
abandono, com escasso controle dos afetos. O pai apresentou pouca solidez egóica e precário
controle pulsional, além de indícios de falso self. Essas limitações materna e paterna explicam
as dificuldades parentais em atender às necessidades de ilusão e desilusão da criança, gerando
as falhas ambientais responsáveis pela tendência anti-social. Desse modo, os pais devem ser
incluídos na intervenção destinada à criança, de modo a possibilitar algum benefício
terapêutico para ela.
Palavras-chave: tendência anti-social; Teste de Rorschach; família; Psicodiagnóstico
INTRODUÇÃO
O termo anti-social designa o Transtorno Desafiador Opositivo (ODD), de Conduta (CD)
e de Personalidade Anti-Social (ASPD); as duas primeiras categorias são pertinentes à infância
193
e adolescência, pois a permanência dos sintomas na vida adulta altera o diagnóstico para ASPD
(Bueno, 2008).
De acordo com a Classificação dos Transtornos Mentais e de Comportamento da CID10 (O.M.S., 1993), o CD é um padrão repetitivo e persistente de comportamento anti-social ou
desafiador que, em seu extremo, conduz a rompimentos com as expectativas que a sociedade
apresenta para a criança. Os sintomas consistem em níveis excessivos de brigas ou
intimidações, crueldade com animais e pessoas, destruição de propriedade, roubo, mentiras,
cabular aulas, fugir de casa, ataques de birra freqüentes, comportamento desafiador,
desobediência grave e contínua. Tais transtornos podem ser subdivididos em restrito ao
contexto familiar; não socializado; socializado; desafiador de oposição; outros e não
especificados.
Por sua vez, o Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais - DSM-IV (A.P.A.,
1995) classifica os Distúrbios de Conduta nas categorias leve, moderado e severo. De
acordo com o DSM-IV, esses indivíduos apresentam pouca empatia e preocupação com os
sentimentos, desejos e bem-estar dos demais. Tendem a perceber mal as intenções alheias,
interpretando-as como hostis e ameaçadoras e, assim, justificam as próprias reações
agressivas. Podem não apresentar sentimentos de culpa e remorso, que simulam para
evitar punições. A auto-estima é baixa e há reduzida tolerância à frustração; ocorrem ainda
acessos de raiva, irritabilidade e imprudência.
Uma diferença entre as duas classificações é que o DSM-IV (A.P.A., 1995) considera o
Transtorno Desafiador de Oposição como uma categoria à parte do Distúrbio de Conduta,
caracterizada por uma atitude negativista, desobediente e hostil para com as autoridades.
Seus comportamentos característicos consistem em perder a paciência, discutir, desafiar
ativamente ou recusar-se obedecer a demandas e regras, mostrar-se ressentido ou
enraivecido, ser rancoroso e vingativo, importunar deliberadamente os demais e
194
responsabilizá-los por seus erros e má conduta. Também é marcado por relutância em
comprometer-se, ceder ou negociar com adultos ou com os pares, testagem deliberada ou
persistente dos limites, além de agressões verbais.
A divergência entre a CID-10 (O.M.S., 1993) e o DSM-IV (A.P.A., 1995) espelha a
controvérsia existente na literatura sobre distinguir esses dois quadros, em razão do seu nível
de co-morbidade e da possível continuidade de seu desenvolvimento.
No que se refere à co-morbidade, Hinshaw, Lahey e Art (conforme citados por
Flanagan & Flanagan, 1998) afirmam que a porcentagem de jovens diagnosticados como
apresentando CD e que atendem também aos critérios para ODD é de 84 a 96%. Revisando a
literatura sobre o mesmo tema, Rey (1993) relata índices de 77 e 84%. Quanto à continuidade
de desenvolvimento, a literatura afirma que o ODD seria uma forma branda do CD. Haveria
uma trilha hipotética que começaria com os transtornos opositivos nos primeiros anos
escolares e pré-escolares, progredindo para os sintomas agressivos e não agressivos (mentira e
roubo) dos transtornos de conduta da infância posterior, e daí para os sintomas mais sérios da
adolescência, como a violência interpessoal e as violações de propriedade (Webster-Stratton,
1993). Contudo, nem toda criança ODD torna-se CD e nem toda criança CD se transforma em
um adulto anti-social. Para que essa continuidade se estabeleça, é necessário, segundo
Webster-Stratton (1993) a consideração de fatores como: início precoce dos comportamentos
próprios ao ODD (anos pré-escolares); extensão do contexto de sua ocorrência (casa, escola);
freqüência, intensidade e cronicidade do comportamento anti-social; a diversidade de
condutas associadas ao ODD; características parentais e familiares.
Quanto à etiologia dos transtornos anti-sociais, Silberg (1996), em seu estudo com
gêmeos homo e dizigotos, concluiu que embora o componente genético desempenhe um
papel importante, as influências ambientais são fundamentais. Nesse sentido, Capaldi e
Patterson (1991), Patterson, DeBaryche e Capaldi (1993) e Patterson, DeBaryshe e Ramsey
195
(1989) afirmam o papel da interação da criança com a família e os pares na gênese do
comportamento anti-social. Eles consideram a ineficiência parental, o fracasso acadêmico e a
rejeição pelos pares como fatores de risco para esses distúrbios. No caso do ambiente familiar
destacam as práticas de socialização violentas e coercitivas, exposição a modelos de adultos
violentos, conflitos entre os pais e desafeto por parte da mãe. Nessa mesma direção, Janson e
Stattin (2003) afirmam que a falta de calor parental, problemas psicossociais dos pais,
disciplina inconsistente, negligência nos cuidados da criança e discórdia nos relacionamentos
estão associados ao desenvolvimento da delinqüência. Eles afirmam que a existência desse
distúrbio na infância, somada à vida familiar desorganizada e problemas parentais são os
principais fatores prognósticos para a continuidade do problema na vida adulta. Também em
uma perspectiva interacionista, o DSM-IV (A.P.A., 1995) sinaliza que o risco para o surgimento
dos transtornos anti-sociais é maior em crianças cujos pais biológicos ou adotivos apresentem
esses quadros, ou ainda distúrbios de personalidade anti-social, de humor, de déficit de
atenção/hiperatividade, esquizofrenia e dependência de álcool. A depressão materna e a
discórdia conjugal também poderiam predispor os filhos a tal patologia, bem como a rejeição e
negligência parental, práticas inconsistentes de educação com disciplina rígida, abuso físico ou
sexual, falta de supervisão, institucionalização nos primeiros dias de vida e mudanças
freqüentes dos responsáveis pela criança.
As hipóteses relativas ao abuso de substâncias (principalmente por parte do pai) são
sustentadas por Frick e cols. (1992), Webster-Stratton (1993) e Rey (1993), e as referentes à
depressão materna também por Webster-Stratton (1993) e por Davies e Windle (1997). Frick e
cols. (1992), ao compararem o ajustamento de cada genitor de crianças anti-sociais com um
grupo controle, concluíram pela inexistência de associação entre o distúrbio infantil e qualquer
patologia materna, mas encontraram diferenças em função dos transtornos paternos. Por
outro lado, Vostanis e Nicholls (1995) ao compararem mães de um grupo de crianças CD com
as de uma amostra diagnosticada como apresentando Transtorno Emocional, concluíram que
196
as primeiras eram menos calorosas, mais críticas e faziam poucos comentários positivos sobre
os filhos.
Essas considerações indicam que a literatura é unânime quanto à atribuição de um
vínculo entre as características parentais e os transtornos anti-sociais. Nesse contexto, um
trabalho diagnóstico e terapêutico competente e abrangente deve incluir tanto a
avaliação/tratamento da criança quanto o de seus pais.
A concepção psicanalítica da tendência anti-social
A tendência anti-social sempre foi um tema de interesse para a Psicanálise; nela, a
influência dos pais no desenvolvimento dessa disposição na criança também é considerada,
variando na ênfase que recebe dependendo da vertente teórica assumida.
De acordo com Freud (1928/1976) em grande parte dos casos o sentimento de culpa
não só se encontra presente na mente do criminoso, como preexiste ao ato anti-social. Assim,
o crime acontece em função da culpa inconsciente e é usado para racionalizá-la. A
psicodinâmica do criminoso remontaria à situação edípica, vivida por uma personalidade com
forte disposição bissexual. No desfecho do Complexo de Édipo o menino, identificando-se com
o pai, constitui o próprio superego, que tem como tarefa o exercício das funções parentais
mais importantes. Nesse processo, Freud afirma que caso o pai tenha sido duro e cruel na
realidade, o superego assume dele esses atributos, tornando-se sádico, enquanto o ego se
converte em masoquista. Dessa maneira este último desenvolve uma intensa necessidade de
ser punido (castração), permitindo dessa maneira a realização da atitude passiva para com o
pai. A necessidade masoquista do ego poderia ser satisfeita por um castigo infligido por um
agente externo ou pelo superego. Em termos da etiologia do comportamento criminoso, Freud
assinala como fator principal a intensidade da disposição bissexual inata e, secundariamente, a
severidade e rigidez paterna, argumentando que as reações edípicas dessa natureza podem
desaparecer se não forem sustentadas pela realidade.
197
Klein (1927/1981) também aponta como ponto estratégico do desenvolvimento das
condutas criminais o Complexo de Édipo, mas refere-se ao precoce. A dinâmica que conduz à
situação edípica tal como descrita por Freud (1928/1976) permanece aceita, mas com duas
diferenças importantes: a coexistência entre as fantasias genitais e pré-genitais (sádico-orais e
sádico-anais) e a presença de um superego primitivo. As fantasias em relação ao pai incluem
sujá-lo com fezes, arrancar com dentadas, cozinhar e comer seu pênis, se apropriar dos
conteúdos do corpo da mãe e destruir sua beleza (pólo negativo do complexo). Quanto às
fantasias sobre o coito, referem-se às ações de comer, cozinhar, trocar fezes e atos sádicos
como morder, cortar, arranhar. O superego primitivo é em parte formado por essas fantasias
sádicas, sendo que a criança acredita que os pais farão a ela a mesma coisa que ela quer fazer
a eles. A angústia decorrente do castigo imaginado obriga o ego a aplicar um poderoso
recalque a toda a situação, que permanece ativa na mente inconsciente. A intensidade da
defesa comprometeria a capacidade simbólica da criança, impedindo-a de brincar e obstruindo
os canais para a sublimação; a atuação passa então a ser o principal meio de expressão.
Essas fantasias genitais e pré-genitais, o medo do superego e o emprego do recalque
não estão presentes apenas na criança anti-social, mas também na neurótica. Segundo Klein
(1927/1981), os atributos da criança anti-social que a distinguem da neurótica seriam:
obstrução da capacidade de sublimação; um superego cruel e primitivo funcionando em dois
níveis, um deles vinculado ao estágio de desenvolvimento realmente alcançado, e o outro aos
atos anti-sociais efetivamente realizados; presença de experiências reais conduzindo ao
desenvolvimento de um superego opressivo.
De acordo com Klein (1927/1981), o superego do delinqüente tem um funcionamento
distinto: ele permite que se conserve uma parte das tendências proibidas para se livrar de
outras que considera mais condenáveis, vinculadas ao Complexo de Édipo. Assim, cada vez que
a criança, devido à ansiedade e sentimento de culpa, é levada a praticar atos delituosos, está
198
buscando escapar da situação edípica.
A preocupação com a existência, constituição e funcionamento do superego e suas
relações com a personalidade anti-social não é assumida por Winnicott (1956/1999) como
relevante para a compreensão do comportamento criminoso. De acordo com ele, a origem da
tendência anti-social repousaria em um ‘complexo de privação’, vinculando-se a uma falha do
ambiente em proporcionar à criança certas características essenciais da vida familiar, em um
estágio de desenvolvimento que lhe permita compreender que a causa do desastre é externa.
Essa privação seria responsável pela distorção da personalidade e pelo impulso para buscar a
cura por meio de novos suprimentos ambientais. No momento anterior à privação, o meio
proporcionou ao bebê o atendimento às suas necessidades, capacitando-o a iniciar bem o
desenvolvimento emocional. Portanto, houve a perda, a supressão de algo que vinha sendo
bom em sua experiência; essa retirada se manteve por um período maior do que aquele que a
criança pode manter viva a sua lembrança, ocasionando uma quebra da continuidade de
existência. Winnicott postula a existência de duas vertentes na tendência anti-social: o roubo e
a destrutividade. No roubo, a criança procura algo em algum lugar e, não o encontrando,
busca em outro. O que a criança procura e deseja não é o objeto roubado, mas a mãe, a
experiência perdida, sobre a qual ela tem direito. Na destrutividade, a busca é por uma
estabilidade ambiental que tolere a tensão originada do comportamento impulsivo que, por
ser confiável, permite à criança mover-se e exercitar-se.
Segundo a teoria winnicottiana, o “potencial agressivo” de um indivíduo não
depende de fatores biológicos, mas da quantidade e consistência das invasões
ambientais sofridas no início da vida. A agressão inata do bebê é decorrente da
motilidade e é parte do apetite e do amor, e o modo como ele irá manejá-la depende
da forma como o ambiente lida com suas manifestações. Assim, num bom ambiente a
agressão se integra à personalidade com uma energia proveitosa ao brincar e ao
199
trabalho, ao passo que num ambiente de privação ela se torna carregada de violência
(Abram, 2000).
A agressão primária da criança manifesta-se nas relações externas
principalmente com a mãe, e pode ser compreendida sob o nome de avidez. Nesses
termos, o bebê lança-se em direção ao seio materno com sofreguidão, o que pode
gerar, na mãe, em função das fantasias inconscientes dela, o sentimento de estar
sendo atacada. Contudo, para o bebê, não existe intenção agressiva, sendo a mãe que
significa o seu ato como tendo essa qualidade. A mãe suficientemente boa é capaz de
tolerar essa relação de objeto cruel; caso ela não consiga suportá-la sem se sentir
demasiado destruída ou sem revidar, o risco é de um ocultamento pelo bebê de seu
self cruel, gerando um estado de dissociação (Winnicott, 1945/1993), com a perda da
fusão entre as pulsões amorosas e agressivas que estava sendo alcançada. Com isso a
agressividade passa a se expressar de forma crua, não matizada pelo amor.
Se há sobrevivência do objeto e tolerância dele à crueldade do bebê, este se torna
capaz de tolerar a culpa, efetuar reparações e proporcionar cuidado e proteção ao objeto.
Desse modo, as condições da mãe para aceitar e conter os arroubos cruéis do filho, e
posteriormente as condições do pai para impor limites a ele (oposição) e oferecer-se como
modelo de integração da personalidade são fundamentais para o modo como a agressão
primária será agregada à personalidade e manejada ao longo da vida.
A teoria winnicottiana da agressão e da tendência anti-social permite compreender os
achados da psicopatologia descritiva sobre a educação demasiado permissiva, rígida ou
inconsistente, e a indicação de pais apresentando diagnóstico de Personalidade Anti-Social
como fatores de risco para a presença dos Transtornos de Conduta: em nenhum dos casos há
segurança quanto à contenção da impulsividade, nem um nível razoável e seguro de
fornecimento da oposição.
200
No que se refere à conduta terapêutica, Winnicott (1971/1984) afirma que o
tratamento da tendência anti-social não é a psicanálise, mas a provisão de cuidados estáveis
por parte do ambiente, que permitam à criança novamente experimentar os impulsos do id. O
papel do meio deve ser o de dar apoio ao ego, promovendo oportunidades para sua gradual
integração.
Diante dessas considerações e do fato de serem ainda incipientes os trabalhos
envolvendo a família no diagnóstico e tratamento da tendência anti-social infantil, o presente
trabalho visa apresentar o estudo de caso de um menino de 8 anos de idade (Daniel14)
apresentando queixas compatíveis com esse quadro, e de seus pais (Olívia e Alexandre), que
foram avaliados por meio de três entrevistas psicológicas e do Teste de Rorschach. Nesse
contexto, o estudo buscou avaliar de que maneira as características dos pais estavam
vinculadas aos sintomas do filho, e se eles apresentavam recursos que poderiam ser
aproveitados no tratamento do menino.
RESULTADOS
Queixa e história pessoal da criança: síntese das entrevistas
Daniel era filho adotivo de um casal que não podia engravidar em razão de problemas
cardíacos da mãe e urológicos do pai. Contudo, o desejo de ter filhos era intenso, a ponto de
Olívia ter desenvolvido uma gravidez psicológica antes de o menino vir a fazer parte da família.
Daniel foi adotado com um dia de vida, por intermédio de uma conhecida da mãe. O casal
afirmou que, apesar de não ser seu filho biológico, o menino apresentava semelhanças físicas
com eles próprios.
14
Todos os nomes utilizados nesse estudo são fictícios de modo a preservar sigilosa a identidade dos
participantes.
201
As queixas apresentadas foram de desobediência em casa e na escola e mau
rendimento escolar, com o menino já tendo sido diagnosticado anteriormente como
hiperativo. Os pais também contaram que ele tinha brincadeiras perigosas (jogava pano
molhado no chuveiro, rasgava o banco do carro com estilete), dizia ver pessoas passando nos
lugares e relatava ouvir vozes dentro da sua cabeça. Os pais contaram também que, um dia,
quando assistia ao programa ‘Aqui e Agora’15, Daniel começou a gritar que queria morrer. Nos
dias atuais, costuma repetir a frase ‘Você não me ama’. Os pais disseram ter dificuldades para
explicar à criança porque não deve fazer certas coisas. Afirmaram que nesses momentos
Daniel sabe argumentar e tem um raciocínio lógico que permite dizer que, do seu ponto de
vista, ele está correto.
O garoto soube da realidade adoção há pouco tempo, acidentalmente, ao ouvir uma
conversa de sua tia com seu primo, quando ela dizia que a mãe de Daniel dava comida em sua
boca porque ele era adotivo. A criança voltou para casa e, no quarto, perguntou à Olívia o que
era ‘filho de criação’. Alexandre saiu do quarto e Olívia começou a esclarecer o menino.
Alexandre disse não se conformar com a forma como a criança ficou sabendo do fato. Olívia
disse não ter medo de que Daniel um dia resolva ir embora, mas tinha dúvidas se as
dificuldades da criança não queriam dizer que ela não o amava o suficiente.
Com relação à alimentação, Daniel toma mamadeira até hoje e, segundo os pais, se o
leite é colocado no copo, fica com nojo e não bebe. É muito sensível ao sabor do leite e só
toma o achocolatado Nescau; percebe se a mãe muda de marca. O leite com chocolate tem
que estar no ponto certo, caso contrário, ele não o bebe. Segundo Olívia, o menino gosta de
sal puro e come muito, a ponto de ela precisar colocar o pote de sal fora do seu alcance. Os
pais relataram que, uma vez, quando Daniel foi ao médico e lhe foi receitado um remédio
homeopático para acalmá-lo, a criança pegou o vidro e tomou-o todo de uma só vez.
15
Programa brasileiro de televisão caracterizado por reportagens policiais em que há exibição de
violência explícita.
202
Quanto ao sono, ele não consegue dormir no próprio quarto, sendo que permanece à
noite na cama com Olívia enquanto Alexandre retira-se para o quarto dele.
Os pais também contaram um episódio em que, após ter sido agredido por uma
criança na escola, Daniel pediu a um menino maior que batesse em seu agressor em troca de
um pastel. O menino concordou, cumpriu a sua parte no acordo e começou a cobrar o pastel.
Daniel então passou a pedir dinheiro à Olívia para levar à escola e ela, não sabendo do que se
tratava e pensando que era para seu próprio lanche, negava, dizendo que ia estragar o seu
almoço (a mãe manda lanche de casa para a criança). Um dia, quando Daniel pediu para faltar
à aula, Olívia perguntou o que estava acontecendo, se alguém estava querendo bater nele. O
garoto confirmou e os pais foram à escola, onde ficaram sabendo da história verdadeira. Olívia
disse ao menino credor para não fazer mais isso e que, se Daniel pedisse novamente algo
parecido, era para contar para ela, porque bateria no filho. Contou ter dito essas coisas na
frente de Daniel. Contudo, os pais ficaram na dúvida se deviam ou não pagar o pastel para o
menino e, com medo de o filho sofrer alguma represália, optaram por fazê-lo.
Os pais também relataram dois episódios de furto do menino, um deles referente às
bolinhas de gude de um amigo e outro dirigido à tia, incluindo o alho que ela vendia, que o
menino pegou e ofereceu à mãe.
Interpretação das entrevistas
Os dados revelam a presença, na criança, de sintomas anti-sociais e psicóticos,
denunciando a existência de um self pouco consistente e com dificuldades para diferenciar
entre realidade interna e externa, com o ego se valendo da utilização de mecanismos como a
dissociação e a projeção.
Tais dificuldades parecem advir da intolerância do casal, principalmente da mãe, sobre
sua impossibilidade de ter um filho biológico (ferida narcísica), e de dúvidas quanto à sua
203
capacidade de amar uma criança adotada. Há tentativas de ambos os pais de negar a realidade
da adoção, que se manifesta pela manutenção, por parte da mãe, de um relacionamento
simbiótico com o menino, comprometendo o seu desenvolvimento emocional. A relação dos
pais com a criança é marcada por forte ambivalência, havendo por um lado conduta
superprotetora e, por outro, a exposição do menino a situações de risco à sua integridade
física e mental. Com isso, os limites são impostos de modo inconsistente, deixando a criança
insegura quanto à própria percepção da realidade externa. A ambivalência da mãe para com
Daniel parece ter resultado em deficiências na sua capacidade de holding no início da vida do
menino; quanto à do pai, ela o impede de desempenhar a contento a função paterna de
romper a simbiose do garoto com a mãe, e de fornecer-lhe um modelo de integração da
personalidade.
Interpretação do Teste de Rorschach de Daniel
A análise do psicograma sugere que Daniel apresenta uma série de recursos
intelectuais e de adaptação, mas escassamente aproveitados devido a proeminentes
transtornos afetivos que afetam a constituição de sua personalidade.
Em termos estruturais o teste indica uma organização psicótica de personalidade, com
prejuízos importantes nas capacidades de integração, personalização e realização. As noções
de dentro e fora, de interno e externo, aparecem misturadas, demonstrando a insuficiência de
uma delimitação do self pela pele (na prancha III, o detalhe central preto, de cabeça para
baixo, é visto como um ET por causa dos olhos e dos ossos). O corpo é vivido de modo
fragmentado, composto de partes não vinculadas entre si (na prancha II, nos detalhes
vermelhos superior e inferior, vê, de cabeça para baixo, um cavalo, cuja cabeça localiza-se num
detalhe e as patas em outro, partes essas não ligadas por um corpo). A capacidade simbólica é
incipiente, imprecisa e instável, ora presente, ora ausente (consegue enunciar respostas
204
vinculadas a objetos reais, mas sempre seguidas por “mancha de tinta” em todas as pranchas),
resultando numa expressão criativa empobrecida.
A figura materna é vista de modo indiferenciado, com dificuldades próprias, sendo
pouco capaz de auxiliar a criança no controle da angústia: tenta ver um animal na prancha VII,
mas não consegue localizar uma cabeça nele; quando logra esse intento, o restante do corpo
se perde e a figura materna é apresentada com características fálicas (cabeça de elefante). Há
choque na prancha sexual (VI: uma aranha que levou um tiro) denotando aportes incipientes à
problemática edípica, mas vivida de modo psicótico, sendo a angústia de castração substituída
pela de aniquilação.
O teste revela a presença de uma condição básica para a abordagem do real, do
prático, mas que não se atualiza em função de comprometimentos nas capacidades de
integração, de controle dos afetos, e pela escassez de mecanismos automatizados de
pensamento. Com isso, são efetuadas generalizações irreais, com o pensamento assumindo
características autistas e anti-sociais. Eventualmente, quando o domínio emocional se
apresenta, a qualidade da percepção é boa. Contudo, o funcionamento do pensamento é
marcado por freqüentes transbordamentos emocionais que o comprometem. As relações
afetivas são caracterizadas pela impulsividade, imaturidade, labilidade e narcisismo. Existem
traços maníacos ou hiperativos, conduzindo à hipótese de que a pouca solidez egóica ocasiona
o emprego de mecanismos de externalização com a finalidade de livrar-se da angústia.
Interpretação do Teste de Rorschach de Olívia
O protocolo de prova revela tratar-se de uma pessoa apresentando organização
borderline de personalidade, estruturada nas bases de um relacionamento insatisfatório com a
figura materna, permeado por sentimentos de rejeição, frieza e abandono, evidenciados nas
respostas à prancha VII (dois animais de costas um para o outro, mas com a cabeça virada para
si) e IX (uma pedra de gelo no meio de duas partes, que as separa e impede ativamente sua
205
comunicação). Enquanto a resposta fornecida à prancha VII indica a possibilidade de uma
relação de duplo vínculo estabelecida com a mãe, a da prancha IX revela dificuldades no
alcance da capacidade para a transicionalidade, com Olívia não apresentando uma evolução
afetiva suficiente para poder preencher o espaço vazio entre o seu corpo e o de sua mãe por
meio do sonho e do símbolo. Nesse contexto, tudo indica Olívia não teve suas necessidades de
ilusão satisfatoriamente atendidas e, com isso, permanece em busca de relacionamentos
simbióticos com outras pessoas, visando reparar as próprias dificuldades psicológicas. Essa
busca parece se atualizar no relacionamento com seu filho, sendo que a realidade da adoção
ameaça a indiferenciação eu - não eu que ela procura (resposta à prancha I: duas almas
gêmeas que se tocam em todas as partes do corpo, menos na barriga; resposta à prancha III:
duas pessoas transmitindo sentimentos uma para a outra sem expressar, sem palavras). A
frieza da figura materna não é compensada pela relação com o próprio pai; antes a figura
paterna aparece como demasiado rígida, inacessível e afetivamente distante.
Com referência ao ego, há pouca solidez e desempenho precário de suas funções. O
pensamento é reiteradamente invadido pela angústia, ocasionando um quadro de inibição
intelectual. Há prejuízos na capacidade de apreensão do real e percepção objetiva do mesmo,
sendo a desadaptação mitigada pelo recurso a mecanismos automatizados de pensamento.
Com isso, a adaptação ao real não se realiza em termos de continuidade entre o sujeito e o
mundo, mas como um ajustamento que não lhe faz muito sentido (submissão).
Em termos da afetividade, o controle é escasso, com o ego sendo subjugado pelas
emoções. A afetividade é experimentada de modo imaturo, egocêntrico, havendo
irritabilidade, labilidade e impulsividade. Há emprego, como defesa, da idealização e negação.
O relacionamento interpessoal, embora não tenha características de parcialidade, é
buscado em bases irreais, havendo procura de um contato em que o vínculo se estabeleça na
base de identificações projetivas.
206
Interpretação do Teste de Rorschach de Alexandre
O protocolo aponta para uma estrutura psicótica de personalidade, apresentando
severos prejuízos do ponto de vista adaptativo, afetivo e cognitivo.
No que se refere ao funcionamento intelectual, a realidade é apreendida de forma
predominantemente intuitiva e não analítica, superficial e panorâmica. Há pouco senso prático
e preocupação com os aspectos concretos da vida. Existem também comprometimentos
severos na capacidade de atenção, concentração e memória, que dificultam as habilidades de
planejamento.
Do ponto de vista do desenvolvimento emocional, encontram-se fixações orais
importantes, com marcantes traços de sadismo, indicando sérias dificuldades no
relacionamento inicial e posterior com a mãe. Há fantasias de comer, sugar de modo
vampiresco, rasgar e mutilar o objeto, com o temor de um castigo igualmente aterrador como
punição (na prancha VII o sujeito associa o percepto de um cão com uma história em que esse
animal segurou pela boca um delinqüente que tentava fugir da cadeia). As pulsões não são
integradas ao ego, que é incapaz de matizá-las e dominá-las (K=0), sentindo-se o paciente
ameaçado por sua emergência, vivida como descontrolada (resposta mancha de sangue e
avião explodindo na prancha II; vulcão na prancha IX). Há intensa tensão interna, com o
sentimento de que o arroubo pulsional levará à desintegração do ego (recusa a prancha X). As
recusas nas pranchas III e VI revelam o não alcance do estágio edípico de desenvolvimento,
com a ausência de respostas de conteúdo humano (H%=0) sinalizando a incapacidade de ver o
outro como uma pessoa (parcial ou total), devido à não completude do próprio processo de
humanização. A identidade, mesmo no âmbito superficial, é mantida com muita dificuldade
(somente na pesquisa dos limites vê um animal alado na prancha V). Dada à escassez de
recursos e ao parco desenvolvimento dos mecanismos de defesa, as situações em que há
necessidade de integração dos afetos são vividas como ansiogênicas, desequilibrando o
207
sujeito, que busca defender-se novamente por meio de uma restrição da vida emocional no
intuito de parecer mais ajustado.
Nesses termos, a adaptação que Alexandre consegue lograr deve-se a um intenso
recurso aos mecanismos automatizados de pensamento, que o mantêm vinculado à realidade.
Assim, ela é obtida em termos não criativos e de submissão ao meio, resultando em um
conformismo excessivo e em um pensamento pouco individualizado.
DISCUSSÃO
A tendência anti-social de Daniel encontra-se presente no interior de uma préestrutura psicótica de personalidade. Nesse contexto, a despeito de Winnicott (1956/1999)
referir que a tendência anti-social se origina em um momento evolutivo em que a criança
alcançou uma diferenciação eu - não eu suficiente para perceber que houve uma falha
ambiental com relação ao suprimento de suas necessidades, no mesmo artigo ele afirma que,
não sendo um diagnóstico, esse quadro pode surgir em qualquer estrutura de personalidade.
Assim, embora o funcionamento mental de Daniel configure-se como bastante primitivo, os
aportes edípicos da criança, sua incipiente e transitória capacidade simbólica, bem como suas
tentativas de independer-se da mãe sugerem que ao menos um nível mínimo de diferenciação
foi obtido.
As dificuldades apresentadas por Daniel têm claras origens em sua vida familiar,
particularmente no relacionamento com seus pais adotivos, que apresentam, eles próprios,
sérios comprometimentos em sua personalidade, revelados pelo Teste de Rorschach. Os dados
oriundos dessa técnica projetiva permitiram compreender em maior profundidade uma série
de associações entre variáveis reportadas na literatura, envolvidas na caracterização e na
etiologia do comportamento anti-social, esclarecendo os seus mecanismos de ação.
208
A hiperatividade diagnosticada no menino, e reportada na literatura como uma
categoria diagnóstica frequentemente sobreposta aos transtornos anti-sociais (A.P.A., 1995)
constitui-se, na verdade na expressão de defesas maníacas utilizadas pela criança para o
controle da angústia, vinculada especialmente à depressão materna e ao terror de destruir seu
objeto de amor (e ele próprio sucumbir em razão disso) ou de um ataque descontrolado por
parte do pai.
O relato da associação entre a disciplina inconsistente e os comportamentos antisociais (Janson e Stattin, 2003; A.P.A., 1995) que se apresenta nesse caso, tem bases
psicodinâmicas profundas na personalidade parental. Do ponto de vista da mãe, a
ambivalência afetiva para com a criança a conduz a apresentar-se ora demasiado permissiva,
ora demasiado rígida, impondo regras definidas para desrespeitá-las, ela própria, logo em
seguida. As origens dessa ambivalência quanto a amar um filho que não é biológico, assentamse, por sua vez, na busca de suprir suas necessidades de ilusão, não atendidas por sua própria
mãe. Quanto ao pai, a tensão psíquica intensa frente à irrupção pulsional, que o leva a um
hipercontrole afetivo, impede-o de utilizar seu ódio para combater a relação simbiótica do
menino com a mãe. Nesse contexto, a possibilidade de expressão do ódio é vivida como
aterradora, capaz de efetivamente destruir a criança. A angústia que essa vivência promove
leva o pai a tornar-se demasiado permissivo, ao mesmo tempo em que transmite a mensagem
de ser uma pessoa potencialmente aniquiladora, configurando-se também uma ambivalência
em sua relação com o menino. Ainda, diante da parca integração de sua personalidade, não
consegue oferecer-se para o filho como um modelo de consistência afetiva. A negligência
parental, considerada como um dos fatores de risco para o desenvolvimento da tendência
anti-social, nesse caso revelada por meio da exposição da criança a situações de risco físico e
psicológico, também pode ser compreendida como repousando na ambivalência de ambos os
pais para com o menino.
209
A organização borderline apresentada pela mãe, com sua característica depressão,
leva-a a tolerar muito mal a agressividade do filho. O temor de não se tornar mais necessária
faz com que ela se sinta terrivelmente machucada diante das tentativas de Daniel independerse. Assim, diante do estrago potencial ou ‘consumado’ feito em própria mãe, o menino enchese de culpa intolerável, não tendo alternativa senão partir para a dissociação como defesa,
comprometendo sua capacidade simbólica e reparatória e perdendo a fusão pulsional
adquirida (Klein, 1927/1981; Abram, 2000).
Embora Frick e cols. (1992) tenham associado o comportamento anti-social apenas à
presença de transtornos paternos e Vostanis e Nicholls (1995) às características maternas, no
presente caso a patologia da criança fundamentou-se em comprometimentos presentes nos
dois genitores, o que piora o prognóstico. Nesse sentido, Janson e Stattin (2003) também
afirmam que o início do transtorno anti-social na infância acrescido à presença de problemas
parentais são fatores indicativos do prosseguimento do problema na vida adulta.
Essas considerações implicam em que um diagnóstico psicológico da criança anti-social
desvinculado da avaliação psicológica dos pais é necessariamente incompleto e pode acarretar
indicações terapêuticas equívocas. Nesse sentido, num caso com o de Daniel, a indicação de
orientação de pais focada na questão da imposição de limites (aliada à psicoterapia da criança)
ou mesmo a psicoterapia familiar seriam de pouca valia, dada a profundidade do
comprometimento da personalidade de ambos os membros do casal.
Enfim, o tratamento do sério problema da psicopatologia anti-social infantil exige uma
abordagem diagnóstica e terapêutica mais profunda e integral por parte do psicólogo,
considerando que o desenvolvimento ocorre em um contexto mais amplo que o meramente
intrasubjetivo.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
210
Abram, J. (2000). A linguagem de Winnicott: dicionário de palavras e expressões utilizadas por
Donald W. Winnicott. (J. Outeiral, trad.) Rio de Janeiro: RevinteR (original publicado em 1996).
American Psychological Association - A.P.A. (1995). Manual diagnóstico e estatístico de
transtornos mentais DSM-IV. (D. Batista, trad.) Porto Alegre: Artes Médicas (original publicado
em 1994).
Bueno, L.M.A.C. (2008). Procedimento de Desenhos de Famílias com Estórias em crianças com
Tendência Anti-Social. Monografia de Iniciação Científica. Departamento de Psicologia e
Educação da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto da Universidade de São
Paulo, Ribeirão Preto.
Capaldi, D. & Patterson, G. (1991). Relation of parental transitions to boy’s adjustment
problems. I. Lienar hypothesis. II Mothers at risk for transitions and unskilled parenting.
Developmental Psychology, vol. 27, 489-504.
Davies, P.T. & Windle, M. (1997). Gender-specific pathways between maternal depressive
symptons, family discord and adolescent adjustment. Developmental Psychology. vol.33, n. º
4, p. 657-668.
Flanagan, J.S. & Flanagan, R. S. (1998). Assessment and diagnosis of Conduct Disorder. Journal
of Counseling and Development. Spring, vol. 76, p.189-197.
Freud, S. (1976). Dostoievski e o parricídio. In: Edição standard das obras psicológicas
completas de Sigmund Freud. (J. Salomão, trad.). Vol. XXI, pp. 203-223). Rio de Janeiro: Imago
(original publicado em1928).
Frick, P.J., Lahey, B. B., Loeber, R., Loeber, M. S., Christ, M.A. & Hanson, K. (1992). Familial risk
factors to Oppositional Defiant Disorder and Conduct Disorder: parental psychopathology and
maternal parenting. Journal of consulting and clinical Psychology. vol. 60, n. º 1, p. 49-55.
Jason, H. & Stattin, H. (2003). Prediction of adolescent and adult delinquency from childhood
Rorschach ratings. Journal of Personality Assessment, 81 (1), 51-63.
Klein, M. (1981). Tendências criminais em crianças normais. In: Contribuições à Psicanálise.
(pp. 233-252) (M. Maillet, trad.). São Paulo: Mestre Jou (original publicado em 1927).
Organização Mundial de Saúde – O.M.S. (1993). Classificação dos transtornos mentais e de
comportamento da CID-10: descrições clínicas e diretrizes diagnósticas. (D. Caetano, trad)
Porto Alegre: Artes Médicas (original publicado em 1992).
211
Patterson, G., Debaryshe, B. & Capaldi, G. (1993).
A performance model for academic
achievement in early adolescent boys. Developmental Psychology, 29, 795-804.
Patterson, G., Debaryshe, D. & Ramsey, E. (1989).A developmental perspective on antisocial
behavior. American Psychologist, 44, 329-335.
Rey, J.M. (1993). Oppositional defiant disorder. American Journal of Psychiatry, 150:12,
December, p. 1769-1778.
Silberg, J. (1996). Genetic and environmental influences on the covariation between
Hyperactivity and Conduct Disturbance in juvenile twins. Journal of Children Psychology and
Psychiatry, vol. 37, n. º 7, p. 803-816.
Vostanis, P. & Nichols, J. (1995). Nine-month changes of maternal expressed emotion in
Conduct and Emotional Disorders of Childhood: a follow-up study. Journal of Child Psychology
and Psychiatry, vol. 36, n. º 5, p. 833-846.
Webster-Stratton, C. (1993). Strategies for helping early school-aged children with
Oppositional Defiant and Conduct Disorders: the importance of home-school partnerships.
School Psychology Review, vol. 22, n. º 3, p. 437-457.
Winnicott, D.W. (1993). Desenvolvimento emocional primitivo. In: Textos selecionados: da
Pediatria à Psicanálise. (pp. 269-285) (J. Russo, trad.). Rio de Janeiro: Francisco Alves (original
publicado em 1945).
Winnicott, D.W. (1999). A tendência anti-social. In: Privação e delinqüência. (pp.135-147) (A.
Cabral, trad.). São Paulo: Martins Fontes (original publicado em 1956).
Winnicott, D.W. (1984). Consultas terapêuticas em psiquiatria infantil. (J.M.X. Cunha, trad.).
Rio de Janeiro: Imago (original publicado em 1971).
212
Candidatura 11
Autores: Mafalda Cruz e António Pires
Título: Impacto da depressão pós-parto no casal. Esboço de uma teoria empiricamente
derivada
213
214
Mafalda Moreira da Cruz ([email protected])
António Pazo Pires
Instituto Superior de Psicologia Aplicada
Impacto da depressão pós-parto no casal.
Esboço de uma teoria empiricamente derivada
Resumo
O objectivo deste estudo consistiu na construção de um modelo sobre o impacto da
depressão pós-parto num casal. Os participantes foram 4 homens, com idades
compreendidas entre os 31 e os 51 anos, as respectivas mulheres, com idades
compreendidas entre os 29 e os 53 anos, e ainda mais duas mães com 27 e 32 anos. As
entrevistas semi-estruturadas foram gravadas e posteriormente transcritas e analisadas de
acordo com o método “Grounded Theory”. Constatou-se que existe uma acentuada
diferença no modo de agir perante esta patologia. A mãe apresenta dificuldades
relacionadas consigo mesma, isto é, sente-se sozinha, incapaz de cuidar do filho ou de
socializar, bastante cansaço e desânimo, comportamentos estes que acabam por deixá-la
insegura e incompreendida, especialmente pelo companheiro. No caso do pai da criança as
preocupações são mais viradas para o bem estar da criança e da mulher, embora
predomine um sentimento de injustiça e incompreensão mas que, contrariamente à mãe,
não os demonstra na tentativa de diminuir os conflitos existentes no casal. Este estudo
representa então a primeira investigação empírica sobre como os homens abordam uma
depressão pós-parto nas suas companheiras, onde se concluiu que eles tendem a adoptar
uma atitude pacífica e submissa face à situação, comportamento este que pode ser
verificado mesmo antes do nascimento da criança, isto é, representa uma caracteristica da
personalidade e não apenas uma estratégia de adaptação face à depressão.
Palavras-chave: Depressão pós-parto, Gravidez, Período pós-natal, Características parentais,
Relações de família
215
Abstract
The goal of this study was to develop a model about the impact of postpartum
depression in a couple. The participants were four men between 31 and 51 years old and their
respective wives, between 29 and 53 years old. There were also two single mothers with ages
between 27 and 32 years old. Semi-structured interviews were recorded, transcribed and
analyzed in accordance with the "Grounded Theory" method. It was clearly understood that
exists large differences in the many ways to approach this disease. The mother senses a lot of
frustration and self-anger: she feels lonely, incapable of taking proper care of her child and
even being with other people. She also feels really tired and all of these symptoms let her
insecure and misunderstood, mainly by her husband. Regarding the father, his preoccupations
are more related with the health of both the sun and his wife although it prevail some feelings
of unfairness and understanding. But he tends not to show it, contrarily to the mother, in a
tentative to decrease the conflicts between the couple. This study represents the first
empirical investigation about how these men live this postpartum depression. It was
concluded that they adopt a pacific and submissive attitude in this situation and can be
checked even before the birth of the child, because it represents a characteristic of them
personality and not just a strategy of adaptation face to the depression.
Key words: Postpartum
characteristics, Family relations
depression,
Pregnancy,
Postnatal
period,
Parental
Depressão pós-parto (DPP) entende-se como um disturbio depressivo, não psicótico,
que tem inicio no periodo após o parto. Apresenta uma leve ou moderada gravidade,
caracterizada de uma sintomatologia sobreposta à de um quadro depressivo, que se pode
manisfestar noutros períodos da vida. No geral, os sintomas devem ter uma duração minima de
uma semana e determinar um certo grau de compromisso do funcionamento da mulher (Monti
e Agostini, 2006). A DPP é uma das diferentes configurações que assume o sofrimento
psicológico de uma mulher após um parto, sendo que se pode ainda verificar a presença de
outros distúrbios como Maternity blues (distúrbio de leve compromisso para a mulher que
tende a desaparecer duas semanas após o parto), Psicose puerpural (distúrbio psicológico grave
que requer intervenção psiquiátrica) ou ainda Stress traumático pós-parto (distúrbio psicológico
216
como consequência da percepção do parto como traumático). A incidência da depressão pósparto na sociedade ocidental é estimada entre 10-20%. O seu aparecimento será entre os
primeiros seis meses após o parto e pode durar entre semanas a meses, daí a elevada
importância de uma intervenção de profissionais (Cox, Murray & Chapman, 1993).
Os sinais precoces de uma DPP são normalmente representados por cansaço, falta de
energia, que podem ser confundidos com o normal ajustamento do pós-parto e, por isso, não
serem percebidos como sinais de alarme. A mãe depressiva tem tendência a viver de um modo
isolado com o seu filho e, por norma, apresenta dificuldade em reconhecer e admitir o seu
próprio estado de sofrimento. É habitual que a mãe sinta que não tem o direito de sentir-se
triste, infeliz ou depressiva num momento que deveria ser caracterizado, segundo a sociedade,
de grande felicidade e realização pessoal e familiar. Se é capaz de reconhecer a própria
depressão tende a julgar-se como uma mãe incapaz e inadequada para o próprio filho
(Guedeney, 1989). Esta atitude pode apresentar bastante perigo na medida em que a mãe não
procura ajuda de um profissional por ter problemas em admitir o que sente. Segundo Monti e
Agostini (2006), nesta patologia observa-se uma discreta variabilidade na apresentação dos
sintomas. Em cada mãe pode-se manifestar um conjunto diverso, que varia em função das
caracteristicas individuais, psicosociais e ambientais. Por este motivo, algumas depressões pósparto podem-se caracterizar principalmente por ansiedade e excessivos sentimentos de culpa,
enquanto que, noutros casos, se pode assistir a uma polarização de pensamentos obssessivos,
sentimentos de raiva e de solidão. No entanto existem alguns sintomas mais recorrentes neste
tipo de mães, como o humor depressivo, tristeza, ansiedade, tensão, choro, baixos niveis de
energia, perda de interesse, cansaço, disturbios do sono e do apetite, excessivos sentimentos
de culpa, autodesvalorização ou mesmo ideias suicidas.
O conceito de depressão pós-parto é referido nos dias de hoje, através de vários
estudos efectuados, sendo responsável pelo desenvolvimento das crianças (Beck, 1995). Filhos
217
de pais depressivos apresentam mais sintomas emotivos, assim como comportamentos
problemáticos, dificuldades escolares e impedimentos sociais, em relação a crianças cujos pais
não passaram por este tipo de patologia (Graensbauer, Harmon, Cytryn, & McKnem, 1984). Tal
como afirmava Winnicott (1960), as primeiras interacções de uma criança com a sua mãe
representam o modelo que irão, mais tarde, definir as suas relações com outros indivíduos. É a
partir destas mesmas que a criança adquire o exemplo de como se estabelece uma relação. No
caso de uma mãe deprimida, a interacção mãe-filho será caracterizada pela presença constante
de momentos não coordenados. Isto é, há uma reduzida sensibilidade aos sinais do filho da
parte da mãe, que se caracteriza por comportamentos intrusivos e hostis ou ainda de retiro e
evitamento. Em qualquer um dos casos, a criança aprende que as interacções são discontínuas,
com rupturas, inconstantes. Assim, no que diz respeito ao desenvolvimento da criança, esta
situação pode fazer com que se torne triste, stressada e isolada, com difiuldades em regolar os
próprios estados afectivos negativos. Com o evoluir do tempo a criança adopta uma conduta
passiva, expressa por tristeza e isolamento, como forma de imitação do afecto negativo
materno (Monti e Agostini, 2006).
Após uma revisão de literatura sobre este tema é notório que o conhecimento sobre a
depressão pós-parto se apresenta já bastante desenvolvido, mas há ainda lacunas no que diz
respeito a estudos que se centrem sobre o papel do pai nestas circunstâncias. Por outro lado, a
maioria dos estudos efectuados nesta área têm sido de natureza quantitativa, com a aplicação
de questionários. Assim, por estas razões, parece-me pertinente uma investigação ainda na
área da depressão pós-parto, mas virada para a intervenção do pai. O objectivo será então
desenvolver um estudo que permita compreender um pouco mais sobre quais as implicações e
papel do companheiro de uma mulher que sofreu desta patologia. Para tal, utilizar-se-á a
Grounded Theory. Trata-se de um método qualitativo que, através da utlização de entrevistas
semi-estruturadas de respostas abertas, pretende investigar aprofundadamente o tema em
218
causa. Pretende-se assim compreender, através de uma pequena amostra, o funcionamento e
o modo de agir de um homem que acompanhou de perto uma depressão pós-parto.
MÉTODO
Para a realização do presente estudo recorreu-se à “Grounded Theory” com o intuito
de no final ser apresentado um modelo teórico sobre a influência da depressão-pós-parto num
casal. O método referido implica a análise de entrevistas, o desenvolvimento de códigos e
categorias relacionadas com o tema em causa, a criação de hipóteses a partir dos dados
recolhidos e o surgimento de uma categoria central que explicite todo o processo.
Participantes
A recolha da amostra é feita através de um processo de conveniência no qual se
procurou, junto de pessoas conhecidas e de um médico de clínica geral, casais que estivessem
disponíveis para expor a sua experiência. É então constituída por quatro casais e ainda duas
mulheres a quem foi diagnosticada uma depressão pós-parto. Os respectivos companheiros
destas duas últimas não participaram no estudo por vontade própria, admitindo que não se
sentiam confortáveis para abordar tal assunto. As seis mulheres têm idades compreendidas
entre os 27 e os 53 anos, e os respectivos companheiros entre 31 e 51 anos. De todos os
entrevistados, só num dos casos é que a depressão pós-parto não surgiu com o nascimento do
primeiro filho, mas sim com o quarto. Metade das mães passaram por esta fase há mais de 10
219
anos, mas, a outra metade, foi durante o ano passado. No que diz respeito ao estado civil,
apenas um casal não se encontra casado, mas todos habitam juntos.
Procedimento
As entrevistas foram todas efectuadas em casa dos próprios entrevistados, após o
devido consentimento informado. Foram contactados previamente, através de conhecimentos
em comum, onde foi dada a autorização para o fazer. Num primeiro contacto quem os abordou
explicou o propósito do estudo e reforçou a importância da sua participação na compreensão
da problemática em causa. Foram de igual forma garantidos o anonimato e a confidencialidade
da informação recolhida e obtido o consentimento para as entrevistas serem gravadas.
Pretendeu-se colocar questões abertas, sempre relacionadas com o tema em causa, de
modo a que fossem os entrevistados a fornecer informação que considerassem pertinente,
como por exemplo “o que aconteceu após o nascimento do seu filho?”. Deste modo, a
entrevista possibilitou uma maior colaboração e relação entre os entrevistados e o
entrevistador, permitindo assim explorar mais profundamente aspectos tão delicados. As
entrevistas tiveram uma duração média de 50 minutos.
Para a construção da teoria, o objectivo das entrevistas foi então compreender como é
que as mães que apresentaram a patologia se sentiram face ao nascimento do filho e, ainda,
como é que isso se reflectiu no companheiro. Isto é, o processo pelo qual cada membro do
casal atravessou, que sentimentos estiveram associados à mudança.
Após a recolha dos dados inicia-se a análise dos mesmos. Nesta fase o investigador
compara todos os incidentes observados e escutados nas diferentes entrevistas de modo a
integrar o conceito numa nova teoria.
220
Análise dos Dados
Inicialmente foi transcrita cada entrevista com o objectivo de ser cuidadosamente
analisada e codificada de uma forma sistemática. Este processo foi efectuado através do
método “Grounded Theory” (Glaser & Srauss, 1967). Esta análise baseou-se numa leitura
pormenorizada linha a linha, com o objectivo de se atribuir códigos aos diversos incidentes e
proceder à sua conceptualização. Uma vez identificados, os incidentes foram comparados entre
si e, cada vez que se encontraram códigos, foram generalizados numa categoria. Estas
categorias emergentes foram comparadas entre si, produzindo-se assim outras categorias, mais
complexas e inclusivas.
Ao mesmo tempo que se analisavam os dados foram-se escrevendo memorandos
relativos a cada uma das categorias. Cada um deles pretende descrever uma categoria, isto é,
suas propriedades e possíveis relações com outras categorias. À medida que se foi
aprofundando a análise foi identificada uma possível categoria central, seguindo-se
posteriormente à sua confrontação com os dados e relacionando-a com outras categorias
através dos memorandos. Durante esse processo, foram recolhidos mais dados na tentativa de
saturar as diferentes categorias.
Atendendo às questões primordiais a que este método se propõem responder,
procedeu-se à construção da teoria, onde foi construído um modelo teórico, baseando-se nos
memorandos já elaborados, que parte de uma categoria central que estabelece relações
também com as outras categorias. A análise dos dados pressupõe então a construção de um
modelo teórico que identifique diversos conceitos estabelecendo relações entre eles.
Resultados
221
Os primeiros sentimentos e atitudes das mães durante uma depressão pós-parto vão
facilitar consideravelmente a aparição de inseguranças e angústias nos seus companheiros. Se
também eles teriam razões para desenvolver por si só conflitos, relacionados com a drástica
mudança, a mulher irá aumentá-los e fazer surgir outros novos com a sua atitude deprimida e
afastada. Uma das principais críticas atribuída indirectamente à mulher pelo seu companheiro
é o seu afastamento deste último. Pois uma mãe que se encontra deprimida apresenta uma
grande tendência para se isolar, retraindo primeiramente o pai da criança. Assim sendo, para
além de se sentir também desorientado com o bebé e com os cuidados que ele exige,
acrescenta ainda uma angústia por ser abandonado pela companheira. Uma outra
característica destas mães é a ambivalência de emoções, isto é, durante este período o
companheiro presencia uma inconstância do humor da mulher, pois há uma alternância entre
a calma e tranquilidade com a angústia e a ansiedade ao longo do dia, e muitas das vezes sem
razão aparente, pelo menos para ele. Assim, se já era complicado lidar com os
comportamentos deprimidos, torna-se ainda mais difícil para o companheiro saber responder
adequadamente aos comportamentos da mãe.
Tomando contacto com esta realidade o pai da criança desenvolve determinados
sentimentos, todos eles ignorados pela sua mulher. O companheiro adquire um grande
sentimento de injustiça, na medida em que se sente também ele cansado e esgotado com a
adaptação à nova rotina, ou seja, ele teria também razões para se deprimir mas não o faz
porque não há espaço na relação para o seu sofrimento. Apesar da mãe não ter consciência
disso, o homem refere que, tal como ela, apresenta também bastante dificuldade em conciliar
o trabalho fora de casa com os cuidados do bebé. Para além disso, sente que a mãe apresenta
uma grande tendência para lhe atribuir a culpa do seu mal-estar, facto este que ele não
consegue compreender ou justificar.
222
Uma outra característica, e relacionada com a anterior, apresentada no companheiro é
um enorme sentimento de incompreensão. Embora possa afirmar que conhecia já a doença
(conhecimento prévio), assume que se sente confuso com as atitudes da sua mulher, na
medida em que não estaria à espera de tal reacção tendo em conta que se trata de uma
gravidez desejada (desejado), e desorientado com as funções que deve desempenhar junto do
seu filho ou nas responsabilidades da própria casa, visto que a mulher se encontra debilitada
para o fazer como faria habitualmente. O companheiro assume que não entende a alteração
da sua mulher e que isso o deixa ainda mais inseguro e angustiado, embora ela não tenha
consciência disso, ou pelo menos não o demonstra. Apesar disto, alguns dos entrevistados
revelaram que esta atitude da mulher não foi totalmente surpresa porque ela desde sempre
apresenta uma certa predisposição para se deprimir. Pois a mãe esteve anteriormente
envolvida noutros episódios depressivos associados a outros acontecimentos distintos
(repetição de sintomas). Isto é, já aconteceu anteriormente a mulher adoptar
comportamentos deprimidos quando se deparou com situações inesperadas, ou que
requeriam o seu envolvimento.
É ainda possível observar nestes casos um companheiro com alguma raiva, embora
nunca seja admitida. Inicialmente refere com algum desânimo que o nascimento do filho
implica uma drástica alteração dos seus hábitos, pois passa a ter que abdicar de determinadas
condutas a que estava habituado. Neste momento o bebé é quem tem a prioridade, isto é, os
pais devem agir de acordo com as suas necessidades. Este facto gera bastante desconforto,
tanto para o pai como para a mãe, pois passam a ter alguém completamente dependente
deles. Ao constatar este facto o companheiro fá-lo com algum desânimo, transmite a ideia de
que sente prisioneiro do filho. Por fim, este sentimento agressivo passivo verifica-se também
na desilusão que o companheiro sente em relação á sua mulher. Após o nascimento ela revelase numa pessoa diferente da qual ele tinha antes idealizado. Não corresponde com as suas
expectativas de mãe nem como sua companheira.
223
Contudo, o companheiro adopta uma atitude diferente da que seria esperada. Em vez
de se revoltar e de confrontar a sua mulher ele acaba por adoptar estratégias que minimizam
os seus sentimentos agressivos, mantendo a estabilidade na sua relação amorosa. Durante a
entrevista apresenta uma vasta lista de desculpas plausíveis (desculpabilização) que expliquem
o comportamento inadequado da mulher, como o cansaço ou a inexperiência, embora o faça
de um modo pouco natural e verdadeiro. Isto é, apesar de fazerem sentido, revela algum
descontentamento com isso. Uma outra característica verificada é o sentimento de obrigação
do companheiro de aceitar a sua mulher e acarretar com as responsabilidades que deveriam
ser suas. Apesar de desempenhar o papel que seria da mãe e de não se revoltar com ela,
transmite algum descontentamento com a situação. Por fim, e como consequência das
anteriores, o companheiro apresenta ainda uma outra característica que ameniza a situação
em que se encontra. Ele adopta uma posição de submissão em relação à sua mulher, ou seja,
aceita as condições impostas por ela e não a confronta. Em qualquer um dos exemplos
apresentados é possível verificar uma forte tentativa, mesmo que inconsciente, da parte do
companheiro em atenuar os conflitos existentes entre o casal. Assim, adoptando uma postura
mais
pacífica,
contribui significativamente
para a
diminuição
das
discussões
e,
consequentemente, do comportamento inseguro e deprimido da sua mulher.
É possível então entender que existe uma grande dificuldade no casal em lidar com
esta doença. Porque ambos passam por um período controverso e ambíguo, mas que
apresenta inúmeras falhas e dificuldades na compreensão de cada um.
[Inserir figura 1 aqui]
Discussão
224
Ficou então por compreender se as estratégias adoptadas pelo companheiro são
apenas temporárias, revelando uma tentativa de adaptação, ou, por outro lado, se reflectem
uma característica permanente da personalidade destes homens. Embora esta dúvida
permaneça, são alguns os indícios que levam a suspeitar de uma personalidade passiva e talvez
submissa presente nestes companheiros. Em primeiro lugar a própria experiência após o parto
revela alguma ausência de atitude para enfrentar a situação, pois eles preferiram estratégias
demasiado pacíficas e compreensivas. Por outro lado, apresentaram ainda ao longo das
entrevistas alguma dificuldade em relatar o sucedido, afirmando esquecimento ou tentando
desviar o assunto, provando assim a dificuldade existente nestes homens em partilhar o
sucedido, provavelmente devido à presença de um sentimento de desconforto, de
inferioridade. Finalmente, estudos assumem a existência de uma ligação entre uma
personalidade retirada do companheiro com episódios depressivos na respectiva mulher (Scott
and Cordova, 2002; Marchand, 2004). Um homem que apresente uma personalidade insegura
caracteriza-se por uma menor capacidade de resolução de problemas quando surgem conflitos
entre o casal, e ainda uma maior tendência para agressões verbais ou atitudes retiradas, de
evitamento. Pode ainda ser acrescentado que relações conjugais pobres, conflituosas,
apresentam-se como um forte desencadeador de depressões, nomeadamente de depressões
pós-parto (O’Hara et al, 1984). Burke (2003) afirma que mulheres com tendência para
desenvolver depressões escolhem, normalmente, para seus parceiros homens também com
características depressivas, ou com histórias familiares psicopatológicas. Assim, tanto uma
depressão pode desencadear problemas conjugais como estes últimos podem ser encarados
como activadores de disfunções que facilitam o surgimento da depressão.
Nos vários estudos existentes verificou-se uma lacuna relativamente à atenção
prestada ao impacto que uma depressão pós-parto adquire na vida de um casal. Neste sentido,
225
a presente investigação distingue-se de outros estudos já elaborados na medida em que
representa um contributo para o aumento do conhecimento nesta área, uma vez que clarifica
tanto o que sente a mãe como o pai que vivem uma situação destas, isto é, como a encaram e
contornam. Por outro lado, distingue-se ainda pela análise sistemática que empreendeu dos
dados, tendo sempre como prioridade a construção de um modelo teórico sobre o impacto e a
problemática de uma depressão pós-parto num casal. O modelo teórico construído baseia-se
então na análise de dez entrevistas de sujeitos que presenciaram uma depressão pós-parto.
Assim, a sua elaboração obedeceu ao objectivo de aprofundar as vivências e os sentimentos
experienciados por estes pais, bem como indagar sobre os seus comportamentos adaptativos
induzidos pela nova situação com que se confrontam. Apesar de cada casal vivenciar e lidar
com esta problemática de modo individual e diferente, foi possível identificar um
denominador comum que se traduziu num conjunto semelhante de sentimentos e
comportamentos manifestados, aspecto que possibilitou a formulação da teoria defendida.
Tanto quanto é do nosso conhecimento, não existem estudos que se debrucem sobre
a perspectiva do companheiro. Neste contexto, justificar-se-ia certamente prosseguir esta
pesquisa através de um estudo comparativo, utilizando uma escala de personalidade, como
por exemplo o Neo Pi-R, que clarificasse esta questão, isto é, o que leva os homens a perfilhar
uma atitude passiva que, de alguma forma, iliba as mulheres do comportamento desviante
que regra geral manifestam posteriormente ao parto e que os homens, de forma demasiado
compreensiva, procuram não agravar, camuflando-a.
Referências Bibliográficas
Beck, C. T. (1995). The effects of postpartum depression on maternal-infant interaction: a
meta-analysis. Nursing Research. 44, 298-304.
Burke, L. (2003). The impact of maternal depression of familial relationships. International Review of
Psychiatry, 15, 243-255.
226
Cox, J.L., Murray, D., & Chapman, G. (1993). A controlled study of the onset, duration and
prevalence of postnatal depression. British Journal of Psychiatry, 163, 27-31.
Gaensbauer, T.J., Harmon, R.J., Cytryn, L., & McKnew, D.H. (1984). Social and affective development
in infants with a maniac-depressive parent. American Journal of Psychiatry, 141 (2), 223-229.
Glaser, B. & Strauss, A. (1967). The discovery of grounded theory. Strategies for Qualitative
Research (4ª edição 1971). Chicago: Aldine.
Guedeney, N. (1989). Les enfants de parents déprimés. Psychiatrie de L’Enfant, 36 (1), 269-309.
Marchand, J. (2004). Husbands’ and wives’ marital quality: the role of adult attachment
orientations, depressive symptoms, and conflict resolution behaviours. Attachment &
Human Development, 6(1), 99-112.
Monti, F., & Agostini, F. (2006). La depressione postnatale. Carocci editore: Roma.
O’Hara, W., Neunaber, J. and Zezoski, M. (1984). Prospective study of postpartum depression:
prevalence, course and predictive factors. Journal of Abnormal Psychology, 93, 158-171.
Scott, R. and Cordova, J. (2002). The influence of adult attachment styles on the association
between marital adjustment and depressive symptoms. Journal of Family Psychology,
16(2), 199-208.
Winnicott, D. (1960). Theory of the parent-infant relationship. International Journal of Psychoanalysis. 41 (6), 585-595.
227
Figura 1: Possível modelo explicativo do comportamento de um casal face a uma depressão
pós-parto
Mãe com depressão pós-parto
Abandono/Afastamento do companheiro
Injustiça
Incompreensão
Raiva Disfarçada
Desculpabilização
Obrigação
Submissão
228
Candidatura 12
Autores: Guida Manuel & Cristina Soeiro
Título: Incidentes Críticos na Profissão de Inspector de Investigação Criminal da PJ
229
Incidentes Críticos na Profissão de Inspector de Investigação Criminal
Guida Manuel, [email protected], Instituto Superior de Polícia Judiciária e Ciências
Criminais
Cristina Soeiro, [email protected], Instituto Superior de Polícia Judiciária e Ciências
Criminais, Instituto Superior de Ciências da Saúde Egas Moniz
Resumo
A profissão de Inspector da Polícia Judiciária é caracterizada por situações que são
propensas a constituírem incidentes críticos que podem interferir com a saúde do
indivíduo e capacidade de desempenho. Este artigo descreve os resultados
preliminares de um estudo, actualmente com 148 participantes, concebido com o
objectivo de efectuar um levantamento de incidentes críticos e sintomas
experienciados por estes profissionais e, posteriormente, delinear uma intervenção
concertada. Dos resultados salienta-se a descrição de dois incidentes críticos pela
maioria, ocorridos na maior parte durante diligências operacionais e envolvendo armas
de fogo.
Palavras-chave: Stress, Incidentes Críticos e Trabalho de Polícia
Abstract
The criminal investigator police officer can be exposed to several situations of their
work that can be potential critical incidents with impact in their health, well-being and
work capacity. This article describes the preliminary results from a research to identify
the principal critical incidents experienced by this police officers and related stress
230
reactions. The participants (N = 148) described two critical incidents, this situations
occurred in the practical police work and are related with the use of fire arms.
Key-Words: Stress Reactions, Critical Incidents and Police Work
Incidentes Críticos na Profissão de Inspector de Investigação Criminal
Incidentes Críticos e Contexto de Trabalho de Polícia
Vários são os contextos ocupacionais que se apresentam como potencialmente
indutores de stress, no entanto a profissão de polícia inclui stressores específicos, integra
situações especiais onde o stress surge com frequência, tendo consequências negativas
para a saúde do profissional (Patten & Burke, 2001; Soeiro & Bettencourt 2003; Cunha,
2004; Soeiro 2004), sendo considerada uma profissão de alto risco (Santos & Soeiro, 2004).
A actividade policial e os contextos onde é exercida constituem fontes de formas
continuadas e específicas de stress profissional, que exigem recursos individuais e suporte
externo também específico de modo a lidar com as diversas situações de risco, sendo
considerado que os profissionais de polícia ao fracassarem na forma como lidam com as
situações de stress correm o risco de adoecerem e colocarem em causa a sua qualidade de
vida, quer a nível físico, mental, relacional e profissional, afectando quer o grupo de
trabalho quer a família do profissional (Gabinete de Psicologia, 2004).
Numa perspectiva que concebe o stress como um processo interactivo ou
transaccional entre estímulos ambientais e as respostas individuais, relevam-se as
diferenças individuais, a especificidade dos mecanismos psicológicos, nomeadamente
os processos de avaliação cognitiva de cada indivíduo, bem como a importância do
231
modo como estes lidam com o stress, i.e., os processos de confronto utilizados
(Lazarus & Folkman, 1984; Cruz, Gomes & Melo, 2000; Vaz-Serra, 2005).
Face à realidade portuguesa não é possível generalizar quando falamos da profissão
de polícia, devendo ser estudada a especificidade de cada instituição, pois diferem a vários
níveis, quer histórico e organizacional, quer na competência e missão atribuídas. Nos
últimos anos, o interesse pelas questões que envolvem o stress na profissão de polícia têm
sido transversal à Guarda Nacional Republicana, Polícia de Segurança Pública e Polícia
Judiciária (PJ). Os estudos têm focado as fontes de stress em contexto profissional
(Magalhães, 1999; Soeiro & Bettencourt, 2003; Soeiro, Bettencourt & Samagaio 2003), as
fontes, estratégias de coping e implicação organizacional (Gonçalves & Neves 2004), o
burnout (Passos & Antunes 2004), a vulnerabilidade ao stress (Costa & Luz 2004), os
incidentes críticos (Sousa, 2004).
A expressão incidentes críticos numa primeira abordagem parece remeter para
acontecimentos traumáticos ou altamente indutores de stress. O estudo do stress dos
incidentes críticos é relativamente recente, enraizando na investigação do trauma em
situações de crise, do burnout e do Distúrbio de Stress Pós-Traumático (DSPT).
Pode dizer-se que nas últimas duas décadas têm havido desenvolvimentos
substanciais no reconhecimento dos efeitos do stress dos incidentes críticos entre as
forças policiais. Vários autores (e.g. Patten & Burke, 2001; Santos & Soeiro, 2004;
Soeiro, 2004; Soeiro & Bettencourt, 2003; Soeiro, Bettencourt & Samagaio, 2003),
reconhecem que o pessoal de investigação criminal pode experienciar stressores
equivalentes aos agentes da patrulha e ainda enfrentar stressores específicos e
incidentes críticos.
232
Em termos introdutórios pode designar-se crise quando um acontecimento
externo ou uma mudança interna afectam de modo significativo o equilíbrio do
indivíduo, sendo tal acompanhado de activação acentuada e níveis emocionais
elevados podendo coexistir um estado de desorganização em termos funcionais do
indivíduo.
Considera-se que um acontecimento é traumático quando existe a percepção
de que o acontecimento crítico constitui uma ameaça à vida ou à integridade física do
próprio ou de outrém. É natural que após um acontecimento traumático,
considerando que se trata de uma ocorrência que extrapola a experiência quotidiana,
surjam uma série de reacções emocionais que podem vir a constituir uma reacção
traumática ao serem sentidas como demasiado perturbadoras ou persistirem durante
um tempo excessivo. Tratam-se de pesadelos, imagens e pensamentos intrusivos,
frieza afectiva, reacções emocionais intensas, irritabilidade, desinteresse, insónia,
dificuldades de concentração, não querer falar ou pensar sobre o sucedido. Podendo
vir a evoluir para uma Perturbação Pós-Stress Traumático (Hospital Júlio de Matos) ou
DSPT.
Segundo Flannery (s.d.), trauma psicológico designa o impacto de um incidente
crítico altamente stressor no funcionamento psicológico e biológico de um indivíduo,
podendo surgir quando o indivíduo é confrontado ou testemunha a ocorrência, a
outras pessoas, de morte, lesões graves, ameaça de morte ou ameaça à integridade
física.
Vaz-Serra
(2003)
releva
que
certas
ocorrências
possam
constituir
acontecimentos traumáticos, pela gravidade das suas características, pois sob o ponto
233
de vista psicológico induzem um stress intenso, sendo acontecimentos extremos sobre
os quais o indivíduo não tem qualquer meio de evitamento ou controlo e cujas
consequências se podem considerar graves, tendo tendência a subsistirem no tempo
mesmo depois do desaparecimento da causa original. O autor releva ainda que “a
gravidade de um acontecimento traumático está associada ao grau de predictibilidade,
controlabilidade e intensidade que possa ter.” (Vaz-Serra, 2003, p. 27).
Acrescenta-se que a ocorrência de um trauma modifica a concepção que o
indivíduo tem do mundo, “destrói a compreensibilidade que a pessoa tem do mundo à
sua volta, fá-la sentir-se mais vulnerável, retira-lhe o sentido de predictabilidade e de
controlabilidade das ocorrências e empobrece-lhe a auto-estima.” (Vaz-Serra, 2003, p.
19).
Segundo Soeiro (2004) pode ser considerado um incidente crítico “qualquer
evento que tem um impacto significativo onde os indivíduos percepcionam que as suas
competências e eficácia são ameaçadas” (p.1), ou como afirma Kucreczka (1996),
referindo-se especificamente aos polícias, qualquer situação que afecte as
expectativas pessoais de infalibilidade de modo repentino. Salientando-se que tais
incidentes ocorrem de forma inesperada, abrupta e repentina, fugindo ao que é usual,
para além das experiências humanas habituais, podendo provocar efeitos nefastos
como o abandono prematuro da profissão e o desenvolvimento de problemas do foro
psicológico.
A definição mais simples de stress a incidente crítico, de acordo com Goldfarb e
Aumiler (s.d.) é a que o refere como uma reacção normal a um acontecimento
anormal, sendo que, segundo a mesma fonte, os incidentes críticos são repentinos e
234
inesperados, desfazendo o sentido de controlo, abalando crenças, valores e suposições
básicas sobre o mundo, as pessoas e o trabalho que fazem. Podem ainda envolver uma
percepção de ameaça prejudicial à vida e perda emocional ou física, podendo
observar-se sintomas a nível físico, cognitivo, emocional e comportamental.
Como incidentes críticos típicos são descritos os que envolvem morte, tiroteio,
danos/ferimentos, suicídio de parceiro, morte de criança, tentativa de salvamento
prolongada falhada, incidentes casuais em massa e situações em que a segurança do
polícia é colocada em risco de modo invulgar ou quando o profissional percebe que a
vítima é sua conhecida.
Goldfarb e Aumiler (s.d.) chamam ainda a atenção para as diferenças
individuais, sendo que nem todas as pessoas expostas a incidentes críticos apresentam
reacções de stress. Não significando que essas pessoas sejam imunes às pressões do
trabalho de polícia, podendo considerar-se que o efeito de qualquer acontecimento
resulta de uma mistura das características específicas do acontecimento propriamente
dito, a personalidade de cada profissional e factores que envolvem a sua vida.
Assim, salienta-se que o impacto de um acontecimento traumático pode ser
muito variável de indivíduo para indivíduo, podendo não apresentar quaisquer
sintomas de natureza psicopatológica ou, inversamente, apresentar os mais diversos
transtornos de relativa gravidade. Segundo Vaz-Serra (2003) “o que determina o
aparecimento de uma doença psiquiátrica pós-traumática é o tipo de interacção que
se estabelece entre o meio ambiente e as condições biológicas e mentais do
indivíduo.” (p. 57).
235
Parece estar em jogo, mais do que o próprio acontecimento em si, a avaliação
que a pessoa faz do sucedido, sendo que desta “surge o significado que lhe é atribuído,
a importância que lhe é conferida e a percepção de ter ou não controlo sobre a
circunstância.” (Vaz-Serra, 2003, p. 97), sendo importante não o que acontece mas a
avaliação do fenómeno que a pessoa leva a cabo, ou seja, como o percepciona ou
sente.
Por outro lado, pode não ser só o inspector o elemento afectado pela
ocorrência de um incidente crítico, a sua família e os seus pares (colegas e amigos) ou
mesmo toda a sua rede social podem tornar-se em vítimas indirectas ou secundárias,
vendo a sua vida afectada, as suas relações alteradas e perturbadas. Realçando-se no
contexto do trabalho de polícia a importância de como os pares e a família podem
orientar a sua acção face a um colega que acabou por passar por uma situação crítica.
Patten e Burke (2001) referem que os crimes que envolvem crianças são os mais difíceis para
os investigadores trabalharem e manterem o seu equilíbrio emocional e psicológico. Estes
autores, num estudo sobre o stress de um incidente crítico e os investigadores de homicídios
de
crianças
observaram,
que
os
investigadores
experienciam
níveis
de
stress
significativamente mais altos do que os adultos vulgares. Salientam ainda que a exposição a
estímulos traumáticos numa cena de crime envolvendo a morte de uma criança era a variável
predictora de stress mais significativa.
Segundo Patten e Burke (2001), apesar das limitações do estudo, parece claro que
os investigadores de homicídios sofrem de efeitos advindos do stress proveniente do seu
trabalho e embora o stress não se poder considerar debilitante foi de modo significativo
superior ao que esperavam encontrar, o que vai, na opinião dos autores, de encontro à
236
concepção de Henry (1995, citado por Patten & Burke, 2001) em que o polícia é visto como
um sobrevivente psicológico.
Sheehan, Everly e Langlieb (2004), referindo a realidade norte-americana,
salientam o facto da intervenção em termos de gestão do stress de incidentes críticos
ter as suas origens na vida militar, sobretudo nos conflitos armados e guerras, tendo
posteriormente sido alargada a outros contextos profissionais, nomeadamente o das
forças de segurança.
Os autores realçam que a intervenção assenta nos três princípios basilares que
formam a fundação histórica da intervenção na crise: proximidade, urgência e
expectativa. Correspondendo o primeiro à capacidade de providenciar suporte
psicológico onde quer que seja necessário no campo; o segundo à capacidade de
providenciar apoio rápido; e o terceiro ao facto das reacções adversas a um incidente
crítico serem vistas como reacções normais a stress extremo e não como reacções
patológicas (Sheehan, Everly & Langlieb, 2004).
A preocupação com a gestão de stress, incluindo a intervenção precoce, de
modo a suavizar sintomas e reduzir o impacto negativo dos incidentes críticos, tem
sido a base do desenvolvimento de alguns modelos, embora não se aprofundem aqui,
refere-se o apresentado pela International Critical Incident Stress Foundation (ICISF),
salientando Everly e Mitchell (s.d) que se trata de um sistema multifacetado,
compreensivo e integrativo de intervenção na crise designado Critical Incident Stress
Management (CISM). Segundo a mesma fonte os programas do CISM foram
empiricamente validados através de análises qualitativas e investigações actuais têm
237
claramente demonstrado o seu valor como ferramenta na diminuição do sofrimento
humano.
Desde os anos 70 que CISM tem sido aplicado e adaptado a diversos contextos
profissionais, tanto nos serviços de emergência como noutras organizações, passando
pela aviação, polícia, bombeiros, etc., podendo considerar-se em expansão pelo
interesse que tem despertado, emergindo como um sistema internacional standard de
cuidado de vítimas primárias, secundárias e terciárias (Flannery, s.d.; Mitchell & Everly,
2003)
Incidentes Críticos e Inspectores de Investigação Criminal da Polícia Judiciária
Em Portugal, o início do estudo dos incidentes críticos no âmbito da carreira de
investigação criminal da Polícia Judiciária remonta a 2003 e a sua importância tem vindo, de
certo modo, a ser salientada pela abertura destes profissionais face a esta temática.
Segundo Soeiro, Bettencourt e Samagaio (2003) podem considerar-se exemplos
de situações propensas a ser geradoras de incidentes críticos para os inspectores:
detenções, buscas e rusgas, tomada de decisão sobre a realização de uma
determinada operação, ser alvo de ameaças, confrontos com arguidos que podem
estar armados, ser ferido durante uma operação e planeamento das actividades
operacionais.
Soeiro (2004) chamou a atenção para o facto dos incidentes críticos
provocarem efeitos de grande significado, salientando a necessidade de intervir, mas
sobretudo de prevenir. Esta autora apresentou um programa de intervenção cujos
objectivos visavam “estabelecer intervenções pró-activas com o intuito de
minimizar/evitar consequências negativas de eventos resultantes da actuação em
238
situações de crise” (Soeiro, 2004, p. 5), relevando a necessidade da criação de um
mecanismo organizacional que permitisse providenciar aos profissionais um serviço de
apoio específico para incidentes críticos, bem como orientar os profissionais
necessitados para tratamento e reabilitação.
É precisamente no seguimento destes trabalhos que surge este estudo,
tentando perceber se os polícias da carreira de investigação criminal da Polícia
Judiciária ao longo do desempenho das suas funções estão sujeitos a situações que se
podem considerar incidentes críticos, qual a incidência dos incidentes críticos neste
contexto profissional e que tipo de acontecimentos constituíram incidentes críticos.
Interessa também averiguar qual o tipo de impacto dos acontecimentos relatados
como incidentes críticos na saúde dos profissionais da carreira da investigação criminal
e que tipo de intervenção faz sentido a estes profissionais.
Método
Participantes
Os participantes deste estudo (N = 148) integram a carreira de investigação
criminal da Polícia Judiciária, salientando-se que 137 pertencem à categoria de
inspector (92.6%), 9 de inspector-chefe (6.1%) e 2 de inspector-estagiário (1.4%).
A maioria exerce funções numa Direcção Central (48.6%), 35.1% numa
Directoria, 11.5% num Departamento de Investigação Criminal e 4.7% no Instituto
Superior de Polícia Judiciária e Ciências Criminais. Quanto ao tempo de serviço verificase uma amplitude dos 3 meses aos 31 anos (M=11.29; DP=7.5).
239
Apresentam idades compreendidas entre os 28 e os 56 anos (M=38.28;
DP=6.84), sendo a maioria dos participantes do sexo masculino (84.5%), o que
representa uma percentagem próxima da apresentada no total de Inspectores da
Polícia Judiciária em 2005 (84% do sexo masculino e 16% do sexo feminino) (Almeida,
2006).
A maior percentagem dos participantes possui o ensino secundário (36.5%),
29.1% possuem licenciatura, 22.3% frequência universitária e 12.2% possuem ensino
básico.
No que respeita ao estado civil, evidencia-se que 72.3% dos participantes são
casados, 15.5% solteiros e 12.2% divorciados.
Relativamente ao tipo de crime investigado, durante mais tempo e na
actualidade, evidencia-se uma distribuição dos participantes pelos diversos tipos de
crime (Tabela 1), no entanto, relevam-se os crimes contra o património, a investigação
do tráfico de estupefacientes e os crimes contra as pessoas como os investigados por
uma maior percentagem de participantes.
Tabela 1 – Percentagem de participantes por tipo de crime investigado durante
mais tempo e na actualidade
Tipo de Crime
Investigado mais tempo %
Actual %
Crimes contra o património
28.4
29.1
Tráfico de estupefacientes
25.7
18.9
Crimes contra as pessoas
24.3
20.9
240
Crimes contra a vida em sociedade e
contra o Estado
12.8
12.2
Vigilâncias e polícia técnica
4.7
0.7
Recursos estratégicos
2
17.6
Outro
2
0.7
No que respeita a duração do tipo de crime investigado durante mais tempo
verifica-se uma amplitude de três meses a 25 anos (M=8.1; DP=5.9), já o crime
investigado actualmente apresenta uma amplitude de um mês a 25 anos (M=5.56;
DP=5.96).
Instrumento
Tendo em vista os objectivos deste estudo foi utilizado para a recolha de dados
um instrumento, elaborado no âmbito do Projecto de Intervenção em Incidentes
Críticos no Contexto de Trabalho de Polícia, composto por três partes, denominado
por Questionário de Incidentes Críticos para a Polícia de Investigação Criminal (Soeiro
& Bettencourt, 2003; Soeiro, Bettencourt & Samagaio, 2003).
O questionário integra uma folha de rosto onde se enunciam os objectivos
gerais e uma segunda folha destinada à recolha de informação sobre dados pessoais e
profissionais.
Na segunda parte do instrumento é pedido ao participante que descreva os três
incidentes críticos mais marcantes que já vivenciou no desempenho do seu trabalho, por
ordem de importância, sendo ainda pedida a especificação de há quanto tempo ocorreu o
incidente e em que tipo de crime se inseria. Posteriormente é apresentado um conjunto de
241
sintomas em forma de lista de reacções sintomatológicas ao stress, englobando reacções
físicas (9 itens), cognitivas/pensamento (7 itens), emocionais (11 itens) e comportamentais (10
itens), pedindo-se ao indivíduo que indique os que foram por si experienciados nos seis meses
após o incidente mais crítico, bem como os que vivenciou nos últimos seis meses da sua vida
profissional.
A terceira parte do questionário é composta por apenas uma questão aberta em que é
pedida a opinião do participante sobre o que se poderia fazer para evitar o impacto negativo
dos incidentes críticos no seu desempenho.
Procedimento
Os participantes foram contactados pelas respectivas chefias e convidados para
uma entrevista e questionário, após efectuada uma breve apresentação do estudo e
seus objectivos de modo coincidente com o redigido na folha de rosto, garantindo-se o
anonimato e confidencialidade da informação, procedeu-se à entrevista seguindo os
itens pela ordem apresentada no questionário.
Resultados
Dos dados recolhidos salienta-se que a maioria dos participantes (85.8 %)
assinalaram a presença de incidentes críticos. Dos participantes que assinalaram esta
presença 67% descreveram a ocorrência de dois incidentes críticos ao longo do
desempenho da sua profissão, 30% descreveram três incidentes críticos e 3% dos
participantes descreveram somente um incidente crítico.
242
Os diversos incidentes críticos relatados ocorreram no âmbito da investigação
de diferentes tipos de crime (Tabela 2). No que respeita ao posicionamento dos
participantes em relação aos incidentes críticos relatados releva-se que a maioria se
encontrava presente no momento do primeiro incidente, mas sem influência directa
no mesmo (43.2%), 37.8% se encontravam presentes tendo tido influência no
incidente e uma minoria (4.7%) se encontrava ausente tendo conhecimento da
ocorrência por terceiros, o mesmo tipo de tendência foi observado para o segundo e
terceiro incidentes.
O primeiro incidente crítico ocorreu numa amplitude de tempo de um mês a 30
anos (M=7.58; DP=6.51), o segundo incidente ocorreu com uma amplitude de um mês
a 26 anos (M=6.66; DP=5.75) e o terceiro incidente crítico com uma amplitude dos 4
meses aos 29 anos (M=8.02; DP=7.28).
Tabela 2 – Percentagem de participantes por tipo de crime e por IC
Tipo de Crime
Primeiro IC %
Segundo IC %
Terceiro IC %
Crimes contra o património
26.4
20.9
6.8
Tráfico de estupefacientes
25.0
15.5
7.4
Crimes contra as pessoas
22.3
14.9
8.8
sociedade e contra o Estado
6.1
3.4
1.4
Vigilâncias e polícia técnica
4.1
2.7
1.4
Recursos estratégicos
1.4
-
-
Outro
0.7
-
-
Crimes contra a vida em
243
Face à descrição dos incidentes críticos foi efectuada uma análise de conteúdo
de modo a extrair as principais características de cada incidente, culminando numa
série de variáveis que caracterizam cada ocorrência e que podem surgir sobrepostas,
salientando a complexidade das situações descritas.
Confinamos a nossa descrição apenas ao incidente descrito como mais
importante, assim, em termos gerais, o primeiro incidente crítico descrito remete para
situações que envolveram na sua maioria (64.9%) diligências operacionais (e.g. buscas,
vigilâncias, identificações, notificações e abordagens a sujeitos, detenções, flagrantes,
bairros problemáticos e perseguições), 48% envolveram as armas de fogo (e.g. ser
ameaçado com arma de fogo, tiroteio, tiroteio com polícias feridos/mortos, tiroteio
com suspeitos feridos/mortos), seguindo-se situações em que o factor humano foi o
mais marcante (27%) onde se incluem crimes sexuais, homicídios, suicídios,
decomposição de cadáveres, autópsias, situações de pobreza extrema e sofrimento
das vítimas e, por fim, 14.2% relataram situações de acidentes de automóvel.
Em relação às reacções sintomatológicas apresentadas, verifica-se que a
sintomatologia assinalada como tendo surgido durante os seis meses após o primeiro
incidente crítico apresenta uma maior percentagem, para todos os conjuntos de
sintomas, do que a assinalada como tendo surgido nos últimos seis meses (Tabela 3).
Tabela 3 – Percentagem de participantes por conjunto de sintomas
Sintomas de Stress
Após o IC %
Agora %
Reacções Físicas
39.2
32.4
Reacções Cognitivas/Pensamento
44.6
26.4
244
Reacções Emocionais
41.2
25.7
Reacções Comportamentais
13.5
11.5
Continuando a análise descritiva, salienta-se que a maior parte dos
participantes avançou com sugestões sobre o que poderia ser feito para evitar o
impacto negativo dos incidentes críticos (89.2%).
A sugestão dada pela maioria dos participantes remete para a alteração nas
políticas organizacionais (43.2%), seguindo-se o apoio especializado da Psicologia
(42.6%), a intervenção da Psicologia num âmbito mais alargado (investigação,
programa e formação em IC’s) (38.5%), o apoio dos pares (34.5%), o melhor
planeamento operacional e treino de competências profissionais (29.1%), debriefing’s,
discussão, reunião (23.6%) e, por último, apoio das hierarquias/institucional (25.7%).
Da análise multivariada de dados qualitativos incidindo nas características
descritas para o primeiro incidente crítico surgem duas dimensões, a Dimensão 1
agrupa variáveis que podem ser definidas como diligências operacionais e a Dimensão
2 refere acidentes de automóvel.
Efectuando correlações entre estas duas dimensões e as variáveis sóciodemográficas, surgiram como significativas com a Dimensão 1 correlações positivas
com a duração do tipo de crime investigado, quer com o tipo de crime investigado
durante mais tempo (r=.175; p≤0.05) quer com o tipo de crime investigado
actualmente (r=.225; p≤0.01). Resultou ainda uma correlação positiva desta dimensão
com a quantidade de Reacções Emocionais à época da entrevista (r=.181; p≤0.05) e
245
correlação negativa com a quantidade de Reacções Comportamentais assinaladas logo
após o IC (r=-.173; p≤0.05).
Quanto à Dimensão 2, acidentes de automóvel, apresentou apenas uma
correlação positiva com a quantidade de Reacções Físicas assinaladas logo após o
acontecimento (r=.175; p≤0.05).
Discussão
Como se vislumbrou ao longo deste trabalho, em termos gerais, os problemas
associados ao stress no contexto da profissão de Polícia podem, por um lado, colocar
em risco o investimento que envolve a integração de um profissional operacional,
incluindo a selecção, formação, estágio, adaptação a local de trabalho específico,
manutenção do seu estado de saúde e desempenho. Por outro lado, os profissionais
afectados no seu desempenho, saúde e qualidade de vida, por factores de stress
inerentes à profissão podem vir a representar uma sobrecarga em termos financeiros.
O mesmo parece acontecer quando os profissionais vêem a sua vida alterada e o seu
desempenho colocado em causa pela ocorrência de uma situação inesperada e
altamente stressante, um incidente crítico, cujo controlo lhes escapa.
Tais suposições, mesmo que se concorde que “um acontecimento traumático
pode representar uma ocasião única que contribui para o amadurecimento psicológico
da pessoa” (Vaz-Serra, 2003, p. 55), parecem indicar como linha orientadora a seguir o
investimento na prevenção, não só pela redução dos factores de stress mas também
por uma melhor preparação dos profissionais, fomentando recursos e estratégias de
246
confronto adequadas, passando por uma maior sensibilização e responsabilização dos
profissionais e das entidades empregadoras face a esta problemática.
Soeiro e Bettencourt (2003) chamam ainda atenção para o facto de uma
intervenção a nível do stress no contexto de trabalho de polícia poder englobar, para além
da identificação dos factores de stress e estratégias de coping adequadas, o
desenvolvimento de programas de prevenção/tratamento do stress onde se incluam a
“definição de critérios de recrutamento e selecção, pelo processo formativo e por
estratégias de apoio psicológico ao sujeito que podem alargar-se à sua própria família” (p.
157).
O presente estudo, como foi referido, integra uma pesquisa mais alargada, no
entanto, apesar das inerentes limitações, apresentam-se os resultados preliminares
que apontam para a descrição de dois incidentes críticos pela maioria dos
participantes, a maior parte das situações referidas ocorreram durante diligências
operacionais e envolveram armas de fogo. Os participantes reconheceram diversos
sintomas dos diferentes tipos de reacções apresentadas e na sua maioria
apresentaram sugestões de modo a minimizar os efeitos dos incidentes críticos no
desempenho profissional.
Os resultados mais salientes vão de encontro à literatura que prevê que certas
actividades operacionais que caracterizam o trabalho de polícia se podem tornar
propensas a consistir incidentes críticos (e.g. detenções, buscas, etc.) (Patten & Burke,
2001; Santos & Soeiro, 2004). O facto de não se evidenciarem diferenças entre sexos
pode remeter para a adequação/uniformização da selecção/formação/preparação
profissional.
247
Os resultados apontam para a adaptação do profissional, desenvolvendo este,
estratégias de coping adequadas ao desempenho da profissão, tal pode ser inferido
pela percentagem de reacções sintomatológicas referida logo após o acontecimento.
No entanto, a sintomatologia sinalizada na altura da entrevista, sem ligação ao
incidente crítico relatado, antevê que existem aspectos inerentes à função de polícia
que se podem encontrar associados ao desgaste ao longo do tempo (burnout).
Fica a sugestão de um estudo mais aprofundado sobre o burnout na carreira de
investigação criminal, assim como o interesse em incrementar a pesquisa sobre coping,
factores protectores e de risco, de preferência utilizando grupos de controlo tal como
sugerem Malloy e May (1984).
Salienta-se que com base na pesquisa efectuada no âmbito deste estudo e nos
seus resultados preliminares foi já elaborado e ministrado um módulo de formação
específica sobre incidentes críticos integrado na formação inicial dos inspectores
estagiários de investigação criminal e procede-se à actualização do Manual de
Aconselhamento e Intervenção em Situações de Stress (Santos & Soeiro, 2000). Com a
continuação do presente estudo espera-se vir a compreender qual o caminho a seguir
no sentido de uma intervenção concertada, visando a saúde e qualidade de vida, que
sirva os inspectores de investigação criminal, pessoal e profissionalmente.
Referências
Almeida, I. (2006). A dimensão de género na investigação criminal: Um estudo na
Polícia Judiciária. Dissertação de Mestrado em Psicologia Social e
248
Organizacional. Manuscrito não publicado, Instituto Superior de Ciências do
Trabalho e da Empresa, Lisboa.
Hospital Júlio de Matos. Consultas de intervenção na crise e de stress traumático:
Áreas de intervenção. Retirado em 06/03/2008 de http://www.hjmatos.minsaude.pt.
Costa, R., & Luz, P. (2004). Vulnerabilidade ao stress e estrutura organizacional: Estudo
numa amostra de agentes das forças especiais e de patrulheiros da Polícia de
Segurança Pública Portuguesa. In A. Carvalho, J. Monteiro, E. Baptista, M.
Covelinhas & R. Cruz (Orgs). Encontro Sobre Recrutamento e Selecção (pp. 244254), Lisboa: Repartição de Recrutamento e Selecção da Direcção do Serviço de
Pessoal na Academia de Marinha.
Cruz, J., Gomes A., & Melo, B. (2000). Stress e burnout nos psicólogos portugueses.
Braga: Sistemas Humanos e Organizacionais.
Cunha, P. (2004). Prevenção e gestão do stress na Polícia de Segurança Pública: A
função do suporte social interno. Dissertação Final da Licenciatura em Ciências
Policiais. 16º Estágio do Curso de Formação de Oficiais de Polícia. Manuscrito
não publicado, ISCPSI, Lisboa.
Everly, G. S., & Mitchell, J. T. (s.d). A primer on critical incident stress management
(CISM). Retirado em 01/08/2006 de http://www.ICISF.org.
249
Flannery, R. (s.d). Psychological trauma and posttraumatic stress disorder: A review,
[Versão electrónica], International Journal of Emergency Mental Health, 77-82.
Retirado em 01/08/2006 de http:/www.ICISF.org
Gabinete de Psicologia (2004). Contexto de trabalho e saúde na Polícia Judiciária.
Lisboa: Departamento de Recursos Humanos da Polícia Judiciária.
Golfdfarb, D. A., & Aumiller, G. S (s.d). Critical incident stress reactions: What it is, how
to recognize it, and what to do about it! Retirado em 01/08/2006 de
http:/www.heavybadge.com.
Gonçalves, S., & Neves, J. (2004). Stress ocupacional, estratégias de coping e
implicação organizacional em contexto policial. In A. Carvalho, J. Monteiro, E.
Baptista, M. Covelinhas & R. Cruz (Orgs). Encontro Sobre Recrutamento e
Selecção (pp. 165-173), Lisboa: Repartição de Recrutamento e Selecção da
Direcção do Serviço de Pessoal na Academia de Marinha.
Kureczka, A. (1996). Critical incident stress in law enforcement. FBI Law Enforcement
Bulletin, 65 (213), 10-16.
Lazarus, R., & Folkman, S. (1984). Stress, appraisal, and coping. New York: Springer.
Magalhães, D. (1999). Factores indutores de stress na actividade policial: estudo
exploratório com uma amostra de guardas da PSP de Lisboa. Tese de
Dissertação Final do Curso de Formação de Oficiais de Polícia. Manuscrito não
publicado, Instituto Superior de Ciências Policiais e Segurança Interna, Lisboa.
Malloy, T., & Mays, G. (1984). The police stress hypothesis: a critical evaluation.
Criminal Justice and Behavior, 11 (2), 197-224.
250
Matos, A., & Ferreira, A. (2000). Desenvolvimento duma escala de apoio social: alguns
dados sobre a sua fiabilidade. Psiquiatria Clínica, 21 (3), 243-253.
Mitchell, J., & Everly, G. (2003). Critical incident stress management (CISM): Group
crisis intervention (3rd Edition Revised). Ellicott City, MD: International Critical
Incident Stress Foundation.
Passos, A., & Antunes, J. (2004). Stresse ocupacional nas forças especiais da Polícia de
Segurança Pública. In A. Carvalho, J. Monteiro, E. Baptista, M. Covelinhas & R.
Cruz (Orgs). Encontro Sobre Recrutamento e Selecção (pp. 256-270), Lisboa:
Repartição de Recrutamento e Selecção da Direcção do Serviço de Pessoal na
Academia de Marinha.
Patten, I & Burke, T. (2001). Critical incident stress and the child homicide investigator.
Homicide Studies, 5 (2),131-152
Sheehan, D., Everly Jr., G., & Langlieb, A. (2004). Current best practices. Coping with
major critical incidents. FBI Law Enforcement Bulletin, 73 (9), 1-13.
Santos, S. & Soeiro, C. (2004). MAISS-Manual de aconselhamento e intervenção em
situações de stress: Aplicações para o contexto de polícia de investigação
criminal. Manuscrito não publicado, ISPJCC, Loures.
Soeiro, C. (2004). Stress e incidentes críticos: Um projecto de prevenção e intervenção
na polícia de investigação criminal. Manuscrito não publicado, ISPJCC, Loures.
Soeiro, C. & Bettencourt, H. (2003). Identificação de factores de stresse associados
ao trabalho de polícia: Estudo exploratório de uma amostra de inspectores da
Polícia Judiciária portuguesa. Polícia e Justiça, 1 (III Série), 127-158.
Soeiro, C., Bettencourt, H., & Samagaio, M. (2003). O stresse e o trabalho de polícia:
identificação e avaliação da magnitude do conjunto de acontecimentos de vida que
limitam o desempenho dos polícias de investigação criminal. O regime de trabalho
na investigação criminal: comunicações, debates e conclusões. Lisboa: ASFIC/PJ.
251
Sousa, R. (2004). Incidentes críticos – Modelo de gestão de incidentes críticos e o
defusing como técnica preventiva. Tese de Dissertação Final do Curso de
Formação de Oficiais de Polícia. Manuscrito não publicado, ISCPSI, Lisboa.
Vaz-Serra, A. (2003). O distúrbio de stress pós-traumático. Coimbra: Vale & Vale.
Vaz-Serra, A. (2005). Esquemas mentais e vulnerabilidade ao stress. Psiquiatria Clínica,
26 (3), 213-226.
252
253
Candidatura 13
Autores: Maria Adriana Coler & Manuel Lopes
Título: Os Profissionais de Saúde frente a violência no idoso
254
OS PROFISSIONAIS DE SAÚDE FRENTE A VIOLÊNCIA NO IDOSO*
*Maria Adriana Coler, Mestre em Psicologia Social, Doutoranda em Psicologia – Universidade de Évora,
Portugal.E-mail: [email protected]
*Dr. Manuel Lopes, Profº Coordenador da Escola Superior de Enfermagem São João de Deus, Vice-Reitor
da Universidade de Évora, Portugal.E-mail: [email protected]
*Drª Antonia Moreira, Profª Coordenadora do Departamento de Enfermagem da Universidade Federal
da Paraíba, Brasil. Email: [email protected]
Resumo
Os profissionais da área de saúde que se colocam no papel de cuidadores têm a oportunidade
de tratar o problema da violência no idoso que chega às diversas Instituições considerando
especialmente, a pessoa que o traz. Mas será assim que a dinâmica ocorre? O paciente que
apresenta sinais de abuso ou mesmo os que comunicam maus-tratos são assistidos
considerando suas individualidades ou se perdem na burocracia do atendimento técnicoprofissional? Será que o modo como os profissionais de saúde percebem a violência afectaria a
assistência prestada?
Levando-se em consideração que esses podem ser os primeiros indivíduos em
contacto com possíveis vítimas, a preocupação sobre o que os profissionais de saúde
pensam sobre esse tipo de violência parece por si só, justificável. Se a preocupação da
existência de equipas multi-profissionais não garante que o profissional se sinta
capacitado a abordar o tema, resta a reflexão sobre as maneiras de se promover a
comunicação da violência como acção de combate à mesma.
255
O conhecimento sobre o conjunto das representações sociais dos profissionais de
saúde em relação a violência no idoso pode fornecer informações singulares para a
capacitação profissional e melhoria da prestação de serviços comunitários e de saúde
especialmente, em relação as atitudes que podem motivar ou não a expressão verbal
da violência.
Palavras Chaves: Violência, Violência no Idoso, Envelhecimento, Profissionais de Saúde,
Representações Sociais.
Introdução
Apesar da preparação pessoal ou profissional que estamos acostumados a dizer que
temos, muitas vezes a incerteza de como tratar a pessoa idosa faz-se presente no
nosso discurso. Se se é condescendente, corre-se o risco de lhes faltar com respeito. Se
esperamos o exercício da tão falada independência nas actividades rotineiras, pode-se
ignorar as suas necessidades.
São inúmeras as queixas e demandas. Os profissionais por um lado, estão a trabalhar
com boas intenções, mas a reclamar da “falta de tudo”: de recursos materiais,
financeiros, educacionais, da falta de tempo. O trabalho pode até ser suficiente mas
não é, na grande maioria das vezes eficiente, provocando frustrações para ambos, o
paciente idoso e o profissional que lhe assiste. Sem contar mais com o tempo como
aliado, estes são forçados a adaptarem-se a uma nova identidade com aspectos únicos
de uma idade peculiar às outras: a terceira idade.
O ser humano deve ser mesmo o animal mais difícil de se entender. Fala-se sobre o
velho, o envelhecido, o caduco ou qualquer outro termo para representar o que é
256
ultrapassado, utilizando-se quase sempre uma conotação pejorativa da palavra. Por
outro lado, apreciamos um bom vinho ou Scotch (de preferência velho), o juízo (que
muitos de nós nunca teremos não importa quão velhos nos tornemos), o clássico em
todas as suas formas (e como é chique essa palavra), as fotos antigas, o valor da
história e, portanto do que é velho, histórico, arcaico. Estamos todos a viver esse
paradoxo da sociedade ocidental moderna numa constante luta pelo equilíbrio entre
as perdas e ganhos que acompanham o processo de nossa existência.
Culturalmente, ignoramos os nove meses precedentes ao nascimento mesmo sabendo
que lá já acontece muito de nosso desenvolvimento. Passamos apenas a medir nossa
idade a partir do nosso primeiro ano de vida, ganhando dessa forma, pelo menos uns
180 dias. Para aproveitar ou não todo esse tempo e mais o que se adiciona ao longo
das nossas vidas há várias maneiras de se ficar velho. Pode-se envelhecer vendo o
tempo passar, pois, como dizia John Lennon* “a vida é o que acontece enquanto
ocupados, fazemos outros planos16” (Lennon, 1980) ou se pode escolher uma maneira
mais participativa nessa etapa do ciclo humano. Mas como podemos definir que ciclo é
esse?
Algumas Considerações sobre o Envelhecimento e a Violência no Idoso
Se é para se escolher uma definição, será eleita uma pela abrangência de seu
significado. Toma-se então o conceito de senescência, baseado na ciência da biologia
que é entendida como o processo natural de envelhecimento ou o conjunto de
fenómenos associados a estes processos (Iaria-Timo, 2003).
16
Tradução livre de: “life is what happens to you while you’re busy making other plans” (Beautiful Boy,
Lennon, 1980).
257
Com esse conceito em mente fica mesmo difícil se pensar numa idade cronológica do
envelhecimento. Por essa mesma razão nos agrada. Afinal de contas, com que idade se
começa a envelhecer? Para o poeta brasileiro Carlos Drummond de Andrade que viveu
até os 87 anos, mas cuja obra não se mede cronologicamente, "Só o velho saberia
contar o que é a velhice, se ele soubesse!" (Drummond, 1987).
Por mais que se encontrem definições e conceitos sobre o envelhecimento, há de se
respeitar as diferenças sociais, culturais, biológicas ou, simplesmente psicológicas já
que sentir-se velho acontece independente de ser caracterizado como tal, pois
repetindo-se as palavras de Simone de Beauvoir, o inconsciente não tem idade
(Beauvoir, 1968).
As populações de praticamente todos os países em desenvolvimento estão em
processo de envelhecimento. Apenas em Portugal, já se ultrapassa a casa dos
1,849.831 milhões de indivíduos nessa faixa etária (INE, 2007).
Ser idoso significa para alguns, poder finalmente aproveitar a vida, viajar, não se
preocupar com as responsabilidades domésticas ou financeiras mas, também é para
outros, sinónimos de ser frágil, vulnerável, dependente, temeroso diante da mudança
de seus papéis seja em família e/ou sociais.
O processo de viver mais tem implicações importantes nos conflitos exacerbados pelo
stress da convivência intensiva. Esses conflitos de identidade podem significar para
muitos a exposição a situações de negação da própria autonomia e agressão a sua
integridade materializando-se em forma de violência. Esse é, segundo Silva et al (2008)
258
um dos aspectos da vida moderna que causa medo ao idoso suscitando portanto,
nosso interesse para reflexão nesse estudo.
Só nos últimos cinco anos seus registos triplicaram de oito para vinte e cinco mil casos
aonde as vítimas têm mais de 64 anos. Embora alarmante, essa quantidade apenas
reflectem parte do problema da violência nos idosos que em suas variadas formas
emudece muitos outros.
Sua definição provavelmente mais conhecida é a da Organização Mundial de Saúde
(OMS) que a explica como sendo “o uso intencional de força física ou do poder, real ou
em ameaça contra si próprio, contra outra pessoa, ou contra um grupo ou uma
comunidade, que resulte ou tenha possibilidade de resultar em lesão, morte, dano
psicológico, deficiência de desenvolvimento ou privação” (WHO, 2002, p.30). Quando
envolve a população idosa, a definição da violência usada popularmente é a fornecida
pela Rede Internacional de Prevenção ao Abuso de Idosos (INPEA) e aceita pela OMS
que a conceitua como “ato único ou repetido, ou falta de acção apropriada ocorrendo
entre qualquer relacionamento aonde exista a expectativa de confiança que cause
dano ou sofrimento ao idoso” (WHO/INPEA, 2002, p. 9).
Remetendo-se a experiência profissional que tive como membro de uma equipe
multidisciplinar que atendia vítimas, a expressão comum entre muitos com histórico
familiar de violência em relação a questão de discutir ou não o abuso sofrido, era de
vergonha pelo acontecido. A tristeza por se identificarem como vítimas era motivo de
intensa discussão, já que pertencer aos grupos de apoio facilitava falar sobre o tema
mas, nem sempre, implicava em registar oficialmente o ocorrido.
259
Sabe-se que mesmo as que procuram serviços de assistência de saúde em
consequência de maus-tratos podem justificar suas presenças com outras razões que
não sejam as envolvidas com a violência, pois, como se deve imaginar, a discussão de
experiências abusivas não se caracteriza como situação de aprazimento. Apesar dos
muitos que enunciam o problema, há ainda a desconhecida população dos demais que
estão a se calar.
As estatísticas do primeiro semestre de 2008 fornecidas pela Associação Portuguesa de
Apoio a Vítima – APAV, mostram um aumento de 20,4% do total de pessoas idosas
vítimas de crime entre 2006 e 2007. A Associação Cívica Vidas Alternativas publicou
que nos últimos cinco anos, os registos deste tipo de violência triplicaram dos mais de
oito mil casos para os quase 25 mil em que a vítima do crime tem mais de 64 anos.
Publicou ainda que das 2911 queixas recebidas na PSP em 2006, apenas 139 são
respeitantes a violência contra idosos.
Entender para Intervir
Por se constituir um dos mais preocupantes problemas da vida actual já pois, considerado
de Saúde Pública, existe a necessidade de compreendê-lo não só do ponto de vista
epidemiológico, mas, sobretudo conhecer seu significado e suas significações, expressos
pelo conjunto de pessoas envolvidas directa ou indirectamente com a questão da
violência.
Se pode afirmar que em geral, as pessoas estão sempre a desenvolver opiniões a
respeito dos acontecimentos ao seu redor. Com o tema da violência não é diferente.
Obviamente que existem conceitos e até informações acerca de como e porquê
260
acontece. Entretanto, a riqueza de muitas explicações sobre o que é violência, bem
como as diversas maneiras que se tem de entendê-la, pode tornar confusa a clareza
indiciadora de seus fatos. Por ouro lado, essa aparente desvantagem do saber popular
pode ser transformada em conhecimento científico preservando-se o conjunto de
pensamentos sociais e mantendo-se em mente a importância da relação de
reciprocidade entre o indivíduo e o meio social em que vive.
Considerando essa reflexão, lembro-me aqui do livro “O Pequeno Príncipe”, de
Antonie de Saint-Exupéry. Permitam-me que repita uma passagem específica que
muito se associa com o pensamento que em seguida, gostaria de expor.
Logo no início do livro, o protagonista da história ainda quando criança faz um
desenho, fruto de sua imaginação, envolvendo animais selvagens. O esboço que muito
orgulhoso mostrava aos adultos é imediatamente seguido pela pergunta se o desenho
lhes meteria medo. Elas indagavam porquê ter medo de um chapéu?! (fig. 1). O autor
muito desapontado concluiu que as pessoas não entendiam as coisas sozinhas e
explicava que seu desenho “não representava um chapéu. Representava uma jibóia
digerindo um elefante” (fig. 2) (Exupéry, Capítulo I).
fig. 1
fig. 2
Uso desse clássico então, para ilustrar quão interessante se faz as diversas maneiras de
se ver e explicar os fenómenos ao nosso redor. Parece-me oportuno aqui lembrar que
261
a maneira como as pessoas expressam seus sentimentos, ideias e representações a
respeito de algo é o que nos faz entender sobre eles.
Uma teoria em especial, a Teoria das Representações Sociais é mesmo como Moscovici
(2007) afirma “uma teoria da crença e do conhecimento, de seus respectivos
conteúdos”(Moscovici, p.38). Por isso, a escolhemos para subsidiar a discussão
baseada no conjunto de representações que os profissionais de saúde constroem
acerca da violência no idoso. Aguiar e Nascimento (2005) explicam como esta teoria é
percebida pela sociedade auxiliando-nos assim, a entender sua utilização para uma
compreensão mais ampla do fenómeno da violência. Afirmam então os autores que a
teoria da representação social é parte de um sistema simbólico que provê significados
à realidade manifestadas através de palavras, sentimentos, gestos e condutas. (Aguiar
e Nascimento, 2005).
Quanto a sua utilidade para a saúde especialmente no tocante a mudanças de
comportamento, Marques (2008) fala sobre a importância de se reconhecer o
dinamismo e a reciclagem dos sistemas de interpretação dos indivíduos. Mais
precisamente no que diz respeito ao assunto que aqui se aborda, se pode assumir que
ao se explorar o que as pessoas têm a dizer e como expressam suas opiniões e
perspectivas acerca da violência no idoso, se poderia contribuir mais efectivamente
para o aprimoramento de políticas de assistência e prevenção primária dos diferentes
tipos de abuso que são vítimas em particular essa população.
Ocasionais queixas de maus-tratos podem ser “justificadas” apenas como
consequências da dificuldade de locomoção ou necessidade de ajuste diante de novas
262
demandas provocadas pela idade, disfarçadas para evitar o confronto entre o agressor
e a possível vítima numa conveniente e ilusória compreensão do ocorrido.
No artigo de Ferreira (2006) encontra-se a afirmação de que “a maioria das pessoas
idosas vítimas da violência, sentem-se permanentemente ameaçadas, são incapazes de
se defender e de assegurar a sua própria segurança” denotando uma fragilidade
espantosa sobre a capacidade da pessoa idosa em lidar com esse tipo de problema
(Ferreira et al, 2006, p 17).
A violência poderia ser pois, mais uma patologia incurável que atinge parte dessa
população em particular. Para os que concordem com esse pensamento, lembro
alegremente de todas as outras pessoas na faixa etária em questão que convivem com
outros problemas de igual, menor ou maior gravidade de uma maneira reactiva, digna
e dinâmica sem uma conotação tão ressaltada de fraqueza. Pois, se temos que aceitar
a velhice como sinónimo de fragilidade e delicadeza, há também de se permitir que se
explore o pensamento dos que não se identifiquem como tais.
Nessa mesma linha de raciocínio, a tarefa de compreender como a violência acontece, é, pois
um desafio que deve ser respeitado pela sua complexidade embora passível de ser feito. O
artigo que aqui se desenvolve é parte de uma investigação de doutoramento a respeito das
Representações Sociais sobre a violência no idoso utilizando como referencial teórico a Teoria
das Representações Sociais que identificam as concepções partilhadas socialmente
correlacionando-as com os indivíduos que as produzem. Envolve três perspectivas distintas
quais sejam, a perspectiva do próprio idoso, o ponto de vista de famílias que tenham como
integrantes pessoas maiores de 65 anos e finalmente, profissionais da área de saúde que
prestam assistência a população nessa faixa etária.
263
Nesse momento, se tecerá apenas algumas considerações envolvendo a dinâmica do
relacionamento entre a população de idosos vítimas de violência e os profissionais de
saúde que lhe prestam algum tipo de assistência com o objectivo de facilitar o
entendimento sobre a influência das atitudes desses profissionais na comunicação do
abuso. Se agrupou portanto as três formas de violência de que podem ser vítimas os
idosos, exploradas pelos autores Silva et al (2008), quais sejam: a violência
intrafamiliar, a estrutural e a violência institucional.
1. Violência Intrafamiliar: De acordo com o Ministério da Saúde (2001) esse tipo de
violência é caracterizado como toda acção ou omissão que prejudique o bem-estar,
a integridade física, psicológica ou a liberdade e o direito ao pleno
desenvolvimento de um membro da família. Estão incluídos aqui não só
integrantes ligados por descendência mas todos àqueles que exercem a função de
guarda ou poder. Por envolver na grande maioria, pessoas emocionalmente
próximas às vítimas, essa forma de violência suscita reacções claras de desgosto
pela população em geral devido a conotação afectiva que existe entre vítimas e
agressores.
2. Violência Estrutural: Esse termo foi introduzido pelo sociólogo Johan Galtung há
mais de vinte anos atrás e seu conceito utilizado largamente desde então, não só
nas ciências políticas e sociais mas também nas ciências médicas (Evangelista,
2005). Referimo-nos a Minayo (1994) para entender sua definição. A violência
estrutural segundo a autora é uma “violência gerada por estruturas organizadas e
institucionalizadas, naturalizada e oculta em estruturas sociais, que se expressa na
injustiça e na exploração e que conduz à pressão dos indivíduos” (Minayo, 1994,
p.8). Silva (2008), fala sobre uma vulnerabilidade em particular dos idosos que
264
sofrem essa forma de violência pois não a compreendem como violência
“aceitando apenas como incompetência dos governantes e responsáveis”(Silva et
al, 2008, p.125).
3. Violência Institucional: Volta e meia, esse tipo de violência chega aos canais de TV
expondo a negligência da assistência ao idoso nas instituições. Existem poucas
opções de lares para quem deles precisa e é verdadeiramente angustiante discutir
o problema com pessoas que planejam lá viver ou com familiares que necessitam
dos serviços para cuidar de seus idosos. O Conselho Nacional de Saúde ao se referir
sobre a taxa de morbi-mortalidade por acidentes e violência, traz a preocupante
mas já ultrapassada incidência de um terço do grupo (de idosos) que vive em casa
e a metade dos que vivem em instituições sofrem pelo menos uma queda anual
(CNS, 2002). Em Portugal, o Procurador-geral da República, ao discutir
publicamente o problema da violência, afirmou que apesar de ter dados sobre a
doméstica e a que acontece em escolas, não possui os elementos necessários para
avaliar a que é praticada em instituições.
O papel dos profissionais de saúde e o problema dos registos de casos
Os profissionais da área de saúde que se colocam no papel de cuidadores têm a oportunidade
de tratar o problema da violência no idoso que chega às diversas Instituições considerando
especialmente, a pessoa que o traz.
Levando-se em consideração que esses podem ser os primeiros indivíduos a terem acesso a
sinais de abuso e tendo como referência seu dever em realizar notificação compulsória, a
preocupação sobre o que os profissionais de saúde pensam sobre a violência no idoso parece
por si só, justificável.
265
Em relação a notificação de casos, a dificuldade dos profissionais de saúde em realizá-la é
discutida por Gonçalves e Ferreira ressaltando-se como se valoriza a privacidade da vida
familiar na sociedade brasileira e como é intrusiva e ofensiva qualquer intervenção que
confronte a autoridade paterna (Gonçalves e Ferreira, 2002).
O artigo de Jogerst chama a atenção para o fato do registo de apenas 21% dos 550.000 casos
de abuso ocorridos há doze anos, devido a falta de conhecimento público sobre o assunto e
políticas confusas de saúde públicas ou normas referentes a práticas profissionais (Jogerst et
al, 2003).
De acordo com D’Oliveira e Schraiber (1999), os profissionais tendem a compreender a
violência como problemática que diz respeito à esfera da Segurança Pública e à Justiça, e não à
assistência médica. Dessa forma há o “desligamento” do dever de notificar, e a equação
correspondente ao fato dela existir independente de sua notificação, é evidentemente
comprometida.
A falha nas notificações de violência é provocada, segundo Deslandes (2000) pela “falta de
adequação técnica e material para a realização da tarefa, ou seja, falta de pessoal, rotinas de
registro não adequadas à dinâmica do trabalho, ausência de informatização e pouca
valorização da prática de registro”(Deslandes, 2000, p.146).
O estudo de Craig (2003) ilustra casos de dificuldades dos profissionais de saúde, e
menciona razões encontradas pela Associação Médica Britânica dos médicos não
identificarem mulheres vítimas da violência doméstica como sendo: medo em discutir
as experiências de abuso, falta de conhecimento sobre violência doméstica, além de
serviços de ajuda e suporte, falta de tempo, falta de treino no assunto, visitas médicas
irregulares
por
parte
das
vítimas,
irregularidade
ou
mesmo
falta
de
266
respostas/explicações pelas vítimas, sentimentos de impotência para ajudar e negação
do abuso.
Já a violência envolvendo a população masculina é no mínimo intrigante. Apesar das
estatísticas de violência fornecidas pela Secretaria Nacional de Segurança Pública
destacarem que os homens de uma forma geral são “suas maiores vítimas”, pouco se
sabe sobre o número de casos de violência intrafamiliar, estrutural ou institucional
aonde ele aparece como tal. Este tipo de violência, afirma Dantas-Berger & Giffin
(2005), é pouco investigada pelos profissionais de saúde, o que colabora para que seja
subestimado suas ocorrências em dados oficiais. Existe porém, indicativos de alguns
estudos internacionais sobre o tema, apontando para um número significativo de
casos.
Estatísticas americanas publicadas sobre violência doméstica como as encontradas no estudo
de Corry et al (2001) por exemplo, apontou que as mulheres são tão violentas quanto os
homens. Essa afirmação foi reiterada por 206 investigações feita por Fieberg (2007) acerca de
estudos comprovativos de que as mulheres são fisicamente agressivas ou mais agressivas do
que os homens em seus relacionamentos.
Um estudo sobre o relato de profissionais que trabalhavam na área de Violência
Doméstica, mostrou que 80% desses profissionais identificaram casos em que as
mulheres iniciaram algum tipo de violência física contra seus parceiros; 69% o fizeram
sem aparente história de abuso por seus companheiros (Adams, 2002).
Murray Straus, famoso sociólogo americano especialista em estudos envolvendo o tema da
família, é citado por muitos por suas pesquisas demonstrando dados sobre mulheres
agressoras. Ele é um dos principais defensores de pesquisas sobre gender symmetry ou
267
simetria dos sexos apontando a necessidade das análises incluírem dados sobre homens e
mulheres, pois como ele mesmo menciona: “ ao menos que existam resultados de pesquisa
para ambos (os sexos), embora se possa obter resultados importantes, não haverá resultados
empíricos ou simetria per se” (Straus, 2006 - tradução nossa).
Embora já preocupantes, os números relacionados a realidade da violência acometida contra
os idosos são no mínimo, furtivos. Há uma tremenda dificuldade em saber sobre sua
epidemiologia por se tratar de uma população particularmente fragilizada no que diz respeito
a estereótipos.
As atitudes influenciando o tratamento
Diante desse “retrato mal revelado da violência”, pode-se supor que suas estatísticas
possuem ainda características bastante duvidosas quanto a sua fidedignidade. Mas
anterior à questão da notificação existe evidentemente, a necessidade de falar sobre o
ocorrido.
A opinião das vítimas sobre serem ou não abordadas sobre o tema, foi explorada em pesquisa
realizada por Bradly, Smith, Long e O`Dowd (2002) demonstrando que entre 651 mulheres
com história de abuso, 77% afirmaram ser certo a iniciativa do médico em questionar sobre o
assunto.
Podemos assumir que se o profissional escolhe uma atitude de distanciamento ou mesmo de
negação diante dos sintomas da violência, provavelmente irá comprometer de forma negativa
alguma intenção da vítima em discutir o assunto. Por outro lado, uma atitude de interesse por
suas histórias pode trazer benefícios terapêutico-clínicos importantes, já que de nenhum
modo contribuem para ignorar a tentativa das vítimas em procurar ajuda apesar de
aterrorizadas por suas experiências de abuso.
268
Trata-se portanto, da escolha entre silenciar a intenção da fala ou de permitir que se escute o
que nem sempre está presente no discurso. Esse aspecto é extremamente relevante no campo
da saúde por não se restringir apenas ao carácter educativo da expansão do conhecimento
mas, principalmente no possível trabalho preventivo ao se constatar a eficácia de uma
intervenção individual contextualizada no social, capaz de minimizar uma situação de abuso ou
mesmo contribuir na diminuição dos níveis de violência na comunidade.
Infelizmente, a preocupação da criação de equipas multi-profissionais assegurando a
cobertura bio-sócio-cultural para vítimas e agressores, não parece ser suficiente para
garantir que o profissional se sinta capacitado a abordar o tema. Aí também se perde a
oportunidade de realizar prevenção primária, devendo-se pois, adquirir o hábito de
abordar o assunto como parte da rotina de consulta não só para educar, mas
sobretudo oferecer apoio e suporte aumentando a possibilidade de discussões futuras
sobre a violência no idoso.
Steven Pinker, controverso psicólogo evolucionista que actua na área de linguística, posiciona
seus trabalhos rastreando fatos históricos para comprovar que “o declínio dos
comportamentos de violência tem acontecido paralelamente ao declínio de atitudes de
tolerância e glorificação por ela1’’(Pinker, 2007).
Adaptando essa afirmação ao papel da assistência profissional às vítimas, pode-se concluir que
promover a comunicação da violência é também uma acção de combate à mesma, já que o
contrário desse comportamento, ou seja, dificultar a discussão do assunto pode ser percebida
como uma forma de tolerá-la, permiti-la e glorificá-la.
Entender como a violência nos idosos acontece é obviamente um desafio que envolve um
trabalho multidisciplinar exigindo a conexão de todos os sectores da sociedade. Conhecer as
269
representações sociais que orientem as atitudes desses profissionais em relação as vítimas de
violência é reconhecê-la como parte da assistência que se presta.
Se espera que a expectativa por respostas diante das considerações aqui expostas sirva
mais precisamente, de motivação para a contínua tarefa de reflexão sobre o tema. Fica
aqui a inquietude da pluralidade da existência de muitas acompanhadas pela incerteza
de suas eficácias. Resta-nos pois a suscitação pelo respeito a singularidade das
situações e de suas demandas considerando sempre a relação de reciprocidade entre a
pessoa idosa e o profissional que lhe atende aonde o único aspecto inquestionável da
assistência é o reconhecimento da existência do outro.
REFERÊNCIAS
. ADAMS, S.R., 2002. Women who are violent: Attitudes and beliefs of professionals working in
the
field
of
domestic
violence.
Military
Medicine.
http://findarticles.com/p/articles/mi_qa3912/is_200206/ai_n9105012. Acesso 19 Jun 2008.
. AGUIAR, M.G. & NASCIMENTO, M.A.A., 2005. Saúde, doença e envelhecimento:
Representações Sociais de um Grupo de Idosos da Universidade Aberta à Terceira Idade
(UATI) – Feira de Santana - BA. Textos Envelhecimento. v.8 n.3 . Rio de Janeiro.
ISSN 1517-5928
. APAV – Associação Portuguesa de Apoio a Vítima. Estatística 2000-2007 - Idosos
vítimas de crime.http://www.apav.pt/estatisticas.html Acesso em 20 Set. 2008.
. BEAUVOIR, S. 1968. A Velhice. Rio de Janeiro, edição 1990. Ed Nova Fronteira.
270
. BRADLEY, F., SMITH, M., LONG, J .& O’DOWD, T., 2002. Reported frequency of domestic
violence: cross-sectional survey of women attending general practice. British Medicine Journal.
324:271.
. BRASIL. Ministério da Saúde. 2001. Direitos Humanos e Violência Intrafamiliar:
Informações e Orientações para Agentes Comunitários de Saúde. Série A Normas e
Manuais Técnicos. Brasília: Ministério da Saúde.
.-----------. Ministério da Justiça. 2002. Relatório final da Pesquisa Nacional sobre as Condições
de Funcionamento de Delegacias Especializadas no Atendimento às Mulheres. Brasília:
Secretaria de Estado de Direitos Humanos, Conselho Nacional de Direitos da Mulher,
Secretaria Nacional de Segurança Pública.
. CONSELHO NACIONAL DE SAÚDE. 2001. Trauma e Violência. Política Nacional de Reducão da
Morbimortalidade por Acidentes e Violências. In: Ministério da Saúde. 2002. Brasília, DF.
http://conselho.saude.gov.br Acesso em 20 Set. 2008.
. CORRY, C. E., FIEBERT, M., & PIZZEY, E., 2002. Controlling domestic violence against men,
paper presented at 6 th International Conference on Family Violence, San Diego, Sept. 10, 2001.
. CRAIG, C., 2003. Domestic Violence and Health Professionals: A short study on women’s
experiences. Northern Ireland Women's Aid Federation.
http://www.niwaf.org/research. Acesso em 15 de Jul.2008.
. DANTAS-BERGER, S. M.; GIFFIN, K.. A violência nas relações de conjugalidade: invisibilidade e
banalização da violência sexual?. Cad. Saúde Pública , Rio de Janeiro, v. 21, n. 2, Apr. 2005 .
Disponível em: http://www.scielosp.org/scielo.
Acesso em: 02 Nov. 2008.
271
. DESLANDES, S. 2000. Violência no Cotidiano dos Serviços de Emergência Hospitalar.
Representações, Práticas, Interações e Desafios. Tese de Doutorado. Escola Nacional de Saúde
Pública. Fundação Oswaldo Cruz.
. D'OLIVEIRA A.F.P.L. & SCHRAIBER, L.B., 1999. Violência de gênero como questão de saúde
pública: a importância da formação de profissionais. Rede Saúde. 1999;19:3-4.
. DRUMMOND DE ANDRADE, C., 1987. O Avesso das coisas. Rio de Janeiro. Record.
. EVANGELISTA, M., 2005. Peace Studies: Critical Concepts in Political Science. Taylor & Francis.
London & New York
. EXUPÉRY, A. The Little Prince. 2000. Translation: Richard Howarson. 1st Edition. Harcourt
Children’s Books.
. FERREIRA, M.A., NUNES, I.C.M, CARVALHO,R.S., DA SILVA, P.C.P. & MARTINS, S.A.F., 2006.
Maus-tratos nos idosos. Nursing. Revista de Formação Contínua de Enfermagem. 16;16. Dez
2006, p 16-18 & 49.
. FIEBERG, M.S., 2007. References Examining Assaults by women on their spouses or male
partners: An annotated bibliography.http://www.csulb.edu/~mfiebert/assault.htm
Acesso 10 Jul 2008
. GONÇALVES, H.S. & FERREIRA. A.L., 2002. A notificação da violência intrafamiliar contra
crianças e adolescentes por profissionais de saúde. Cadernos de Saúde Pública.18(1): 315-319.
. IARIA-TIMO, C.,2003. O envelhecimento. Acta Fisiátrica 10(3);114-120.
. INPEA – International Network for the Prevention of Elderly Abuse.2002.In: WHO. World
Report
on
Violence
and
Health.
Abuse
of
the
Elderly.
Chapter
5.
272
http://whqlibdoc.who.int/publications/2002/9241545615_chap5_eng.pdf Acesso em 17 Set.
2008
. INSTITUTO NACIONAL DE ESTATÍSTICA (INE). 2007. Estimativas Anuais da População
Residente. Actualizado em 29/05/2008. http://www.ine.pt Acesso em 20 Set. 2008.
. JOGERST, G.J., DALY, J.M., BRINIG, M.F., DAWSON, J.D., SCHUMUCH, G.A & INGRAM, J.G.
2003. Domestic elder abuse and the law. American Journal of Public Health. Dec 2003, 93;12.
. MARQUES, M.C., 2008. Representações sociais sobre o enfarte agudo do miocárdio
construídas por doentes, famílias e profissionais de saúde. Projecto de Doutoramento. Centro
de Ciências da Saúde. Universidade de Évora.
. MINAYO, M.C.S., 1994. A violência social sob a perspectiva da saúde pública. Caderno de
Saúde Pública. Rio de Janeiro: 10, supl. 1
. MOSCOVICI, S. 2007. In: MOREIRA, A.S.P., CAMARGO, B.V., (Org.) Contribuições para a teoria
e o método de estudo das representações sociais. João Pessoa: Editora Universitária p.21-43.
. PINKER, S., 2007. A Brief History of Violence . TED Conference (Technology, Entertainment,
Design). Palestra filmada em Março de 2007 e colocada a disposição pública em Setembro de
07. http://www.ted.com/index.php/talks/view/id/163 Acesso em 16 Ago 2008
. SILVA, M.J., OLIVEIRA, T.M., JOVENTINO, E.S. e MORAES, G.L.A., 2008. A Violência na vida
cotidiana do idoso: Um olhar de quem a vivência. Revista Eletrônica de Enfermagem;10(1):124136. http://www.fen.ufg.br/revista/v10/n1/v10n1a11.htm Acesso em 18 Set2008.
. STRAUS, M., 2006. Future Research on Gender Symmetry in Physical Assaults on Partners.
Violence Against Women. Sage Publications 12(11). http://online.sagepub.com Acesso 10 Abr
2008
273
. THE WORLD HEALTH ORGANIZATION (WHO). 2002. World Report on Violence and Health.
Geneva, Switzerland. P. 147-181.
. VIDAS ALTERNATIVAS. Violência contra idosos em Portugal. 2008.
http://va.vidasalternativas.eu/?p=641 Acesso em 22 Ago 2008.
274
Candidatura 14
Autores: Silvana Bueno
Título: Estudo sobre o atendimento à paciente vítima de violência sexual
275
ESTUDO SOBRE O ATENDIMENTO À PACIENTE VÍTIMA DE VIOLÊNCIA SEXUAL
Silvana Bueno
Email: [email protected]
Fundação Hospitalar do Estado de Minas Gerais/Maternidade Odete Valadares
Resumo
O estudo apresenta percepções sobre a saúde mental dos profissionais no atendimento às
vítimas de violência sexual e traz a necessidade do contínuo processo de formação para a
assistência. A finalidade é contribuir para a prevenção do sofrimento psíquico do profissional,
promovendo espaços reflexivos e incluir na formação, diretrizes de saúde pública, aspectos
clínicos, jurídicos, psicológicos e sociais, relevantes na assistência. Considerando o número de
263 profissionais envolvidos, organizou-se uma amostra representativa para a composição dos
grupos focais. Percebeu-se entraves na construção do atendimento não previstos na
formação: desconhecimento da legislação existente e dos procedimentos clínicos definidos no
protocolo do Ministério da Saúde; pré-conceitos em relação à violência sexual; sofrimento de
profissionais mulheres que muitas vezes são vítimas de violência sexual; angústia gerada
quando há identificação com a vítima; impotência dos profissionais diante de questões sociais,
políticas e na continuidade do tratamento; e o limite como cidadão em intervir no contexto
para não ocorrer mais casos. A construção da formação do profissional deve considerar essas
questões, pensando na violência, nos seus efeitos nas relações interpessoais, na saúde mental,
nas instituições sociais que vão interferir na conduta do profissional no atendimento à vítima
de violência e conseqüentemente na adesão e continuidade do tratamento.
276
Introdução
A violência de gênero, a violência sexual é considerada pela Organização Mundial de Saúde
(OMS) uma questão de saúde pública. A instituição pública que atende às mulheres, desde
1990, vem atendendo casos de abortamento a pacientes vítimas de violência sexual.
Entretanto, foi a partir de 1999 com a definição da Norma Técnica para o atendimento às
mulheres vítimas de violência sexual que o serviço vem buscando encontrar uma metodologia
de trabalho que permita um atendimento mais qualificado a estas mulheres. Neste percurso
tornou-se uma das referências no atendimento às vítimas de violência sexual.
O
reconhecimento do trabalho desenvolvido dentro e fora da rede de serviços traz como
conseqüência o crescimento da demanda para a Instituição e a necessidade do contínuo
processo de formação dos profissionais que lidam diretamente com estas mulheres para o
aprimoramento da assistência.
Não obstante, ao longo do período, percebe-se diversos entraves na construção do
atendimento às mulheres vítimas de violência sexual, não previstos na formação do
profissional de saúde, dentre eles:
a falta de conhecimento da legislação existente e dos procedimentos clínicos definidos no
protocolo do Ministério da Saúde; a falta de novos conceitos e teorias no campo da saúde;
pré-conceitos e tabus envolvidos no episódio da violência de gênero pelos profissionais que
atendem à vítima; ou mesmo, o sofrimento de profissionais mulheres que muitas vezes são
vítimas de violência de gênero e sexual e a angústia que é gerada da atuação direta em que há
uma identificação com a vítima; a impotência dos profissionais diante de questões sociais e
políticas nas quais eles não podem intervir na resolução dos casos e também na continuidade
deste tratamento; e por último, outra questão, é o limite como cidadão e profissional de
intervir no contexto maior para que não ocorram mais casos.
277
A partir do levantamento e análise dos dados a finalidade é incluir na formação do profissional
de saúde diretrizes de saúde pública, os objetivos institucionais, o protocolo de atendimento,
os aspectos jurídicos, clínicos e sociais, abrangendo todos os aspectos relevantes que
envolvam a assistência à vítima de violência sexual.
Métodos
O grupo focal foi escolhido por ser o mais adequado para a temática a ser investigada, pois dá
margem a uma discussão grupal aberta na qual os profissionais sentem mais livres para
abordar temas de alta sensibilidade implícitos na violência de gênero.
Os grupos focais foram organizados de forma a incluir os profissionais das diversas áreas:
grupo com profissionais da área administrativa, grupo com profissionais de apoio assistencial,
grupo com profissionais de assistência direta, grupo com multi profissionais, que atendam à
vítima de violência sexual.
Perguntas orientadoras do grupo focal:
Como os profissionais conceituam violência de gênero e violência sexual?
Violência de gênero e agressão sexual – estão ligados a que? Em que circunstâncias isto
ocorre?
Como é utilizado o poder, o domínio nas relações de gênero?
O que dá ao outro o direito de agir, de agredir desta forma?
Como os profissionais vivenciam a violência de gênero e agressão sexual?
Como ocorre a identificação com as vítimas e quais as possíveis conseqüências para os
profissionais?
Diante dos casos que ocorrem na Instituição:
278
Como é feito o acolhimento à vítima de violência sexual?
As pacientes devem comprovar que sofreram agressão sexual?
Como lidam e atendem as pacientes vítimas de violência sexual?
Para complementar o estudo utiliza-se a metodologia de entrevista em profundidade,
permitindo aprofundar e obter informações para a compreensão do atendimento à vítima de
violência sexual. O contato entre o entrevistador e o entrevistado, permite ao entrevistar
esclarecer pontos que foram abordados nos grupos focais e analisar se a percepção individual
confirma o que foi dito nos grupos focais em relação ao atendimento à paciente vítima de
violência sexual.
Orientação para a entrevista em profundidade
A primeira parte da entrevista permite a composição do perfil do profissional. Contém idade,
sexo, tempo de atuação no serviço, profissão.
A segunda parte abrange questões relativas à percepção do profissional sobre o atendimento à
paciente vítima de violência sexual.
Como você entende violência sexual e violência de gênero? São a mesma coisa?
Você costuma atender vítimas de violência sexual com freqüência?
Conte como é o atendimento à paciente vítima de violência sexual.
Como você percebe o atendimento prestado à paciente vítima de violência sexual?
Para esse tipo de atendimento faz diferença ser homem ou ser mulher? Por quê?
Como você considera que deveria ser feito esse atendimento? Você acha que deveria mudar?
279
Você acha que o profissional de saúde tem formação para esse atendimento?
O que falta para capacitar o profissional de saúde?
O que você acha que falta para a melhoria no atendimento?
Delimitação do universo
Segundo Minayo (1999) a pesquisa qualitativa não se baseia no critério numérico para garantir
sua representatividade. Ela baseia-se em uma amostra com a escolha de indivíduos sociais que
têm vinculação mais significativa para o problema a ser investigado.
Amostra
Considerando o levantamento realizado do número total de 263 profissionais envolvidos com
o serviço, foi realizado um estudo para organização de uma amostra aleatória e representativa
desse universo, para a composição dos grupos focais.
As informações foram gravadas e transcritas, resguardando o sigilo das informações dadas
pelos participantes durante o processo. Os convidados a participar dos grupos assinaram um
termo de consentimento livre e esclarecido, e os dados coletados ficaram sob guarda do
pesquisador. As observações e as filmagens foram feitas de maneira a interferir o mínimo
possível nos relatos e não representam risco significativo conhecido e sim benefício, visto
contribuírem para a auto observação, auto conhecimento e empoderamento do conteúdo.
Resultados
Análise a partir das especificações:
Conceituação – caracterização de violência: Conceito e caracterização sobre violência de
gênero e violência sexual – pré-conceitos
280
Identificação dos profissionais: Identificação dos profissionais de saúde e sentimentos em
relação à vítima de violência sexual. Vivência dos profissionais, como o profissional vivencia.
Assistência à vítima de violência sexual: Como é feito a assistência à vítima- procedimentos
internos.
Necessidade de capacitação: Sugestões que os profissionais apresentam para a capacitação.
Conceituação – caracterização de violência: Conceito e caracterização sobre violência de
gênero e violência sexual – pré-conceitos
A partir da apresentação de uma figura de mulher com o rosto tampado pelas mãos, os
profissionais conceituam a violência como momento de silêncio, de dor, vergonha, repressão.
Conceituam também como violência doméstica, agressão física.
Em um determinado momento o grupo banaliza e coloca a definição na área médica com se a
figura representada estivesse com dor craniana.
A pessoa é vista como vítima e isso transparece quando ficam penalizados enquanto atendem
a pessoa.
Alguns têm dúvida em relação à veracidade do fato e sentem-se mais seguros quando é feita
uma ocorrência policial.
A princípio fazem o atendimento pela informação, dizem que não é papel dos profissionais de
saúde fazer algum tipo de julgamento, porém têm receio da paciente não estar falando a
verdade e necessitam de um aval da polícia e de outros órgãos para validar a palavra da
pessoa.
Na ficha da paciente está escrito vítima de violência sexual e é como se ficasse esta marca na
testa da paciente na hora do atendimento.
281
Alguns têm dúvida se a Instituição atenderia um travesti. Os risos aparecem quando é citado
que se aparecesse um caso de um travesti, de que forma seria feito este atendimento.
Alguns preocupam-se em atender a paciente sem repassar o que estão pensando em relação
ao comportamento do paciente.
Identificação dos profissionais: Identificação dos profissionais de saúde e sentimentos em
relação à vítima de violência sexual. Vivência dos profissionais, como o profissional vivencia.
Em relação à identificação, alguns têm sentimento de revolta, principalmente quando
identificam que poderia ter sido com ele ou com alguém próximo do profissional.
Sentem-se fragilizados diante da impotência em relação à violência.
Apresentam sentimentos ambíguos em relação ao atendimento. A penalização diante da
vítima e a dúvida em relação à veracidade dos fatos. O pensamento no primeiro momento de
dúvida e o sentimento de que não devem julgar a paciente. Sentem-se inseguros.
O sentimento religioso transparece na negação da realização do aborto. Sentimento de estar
sendo violentado por ter que realizar um ato que é contra seus princípios religiosos. O medo
de estar realizando um ato em cima de uma fala que não sabe se é verídica ou não.
Sentimento de estar realizando um ato ilícito de acordo com a filosofia médica de preservar a
vida. Sentem que as leis são feitas distante da realidade do que convivem no dia-a-dia e que a
responsabilidade fica com quem lida direto com a paciente. Sentem-se isolados diante disto,
sendo obrigados a cumprir uma lei que não ajudaram a construir.
A identificação com a situação da paciente é mais forte quando se sentem mais próximos da
vítima, numa relação de empatia. Alguns profissionais parecem utilizar como mecanismo de
282
defesa o distanciamento da vítima, evitando um maior envolvimento emocional com a
paciente.
Assistência à vítima de violência sexual: Como é feito a assistência à vítima-procedimentos
internos
A partir da entrada da paciente, o primeiro passo é o atendimento medicamentoso. Percebem
como principal função na Admissão o cuidado com a prevenção de doenças sexualmente
transmissíveis. Primeiramente colhem a história da paciente para atender às necessidades
físicas desta e relatam que o atendimento é demorado, exigindo maior disponibilidade de
tempo, que muitas vezes não tem porque precisam atender as urgências que chegam na
Admissão.
Os atendimentos às pacientes vítimas de violência vão ficando para depois porque as outras
pacientes consideradas como maior urgência médica são consideradas prioritárias.
O suporte psicológico e social não é feito na Admissão. Informam que as pacientes muitas
vezes chegam de madrugada e depois é que fazem o encaminhamento para o atendimento no
Ambulatório. Os profissionais não têm tempo para o atendimento individualizado, repassando
a orientação necessária e muitas vezes as pacientes não assimilam o que foi dito. Sugerem que
fosse realizado um atendimento psicossocial primeiro e depois o atendimento médico.
Existe um questionário que a paciente precisa responder que demora em torno de uma hora
para ser respondido. E este procedimento é realizado pelo médico. Percebem uma certa
rigidez no protocolo que é utilizado, e uma necessidade de melhor qualificação na assistência à
vítima de violência sexual, apesar de ser um hospital de referência a este tipo de atendimento.
283
Demonstra a fragmentação do processo, e como a relação médico-paciente perpassa pela
intersubjetividade na comunicação.
Necessidade de Capacitação: Sugestões que os profissionais apresentam para a capacitação
Sugerem que as informações e que as orientações sejam ampliadas nos lugares de referência
desse tipo de atendimento.
Os profissionais buscam melhor qualificação, de forma a utilizar o protocolo de forma menos
rígida e percebem que deve ser revisto. Sentem a necessidade de maior aproximação entre a
equipe multidisciplinar.
Discussão
A construção da formação do profissional de saúde deve considerar essas questões,
envolvendo a conceituação e análise da assistência às vítimas de violência sexual, pensando na
violência e em seus efeitos nas relações interpessoais, nas instituições sociais que vão
interferir na conduta do profissional de saúde no atendimento à vítima de violência e
conseqüentemente na adesão e continuidade do tratamento.
Conhecer as limitações na eficácia do atendimento contribui na formação adequada e
qualificada dos profissionais de saúde que atendem às pacientes vítimas de violência.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
Barbosa, R. M.; et al (2002).Interfaces: gênero, sexualidade, e saúde reprodutiva.
Campinas: Editora da UNICAMP.
284
Berer, M. (1997). Mulheres e HIV/AIDS. São Paulo: Brasiliense.
Brasil. Ministério da Saúde.(1995). Coletânea de textos de Apoio para o curso “Direitos
Sexuais e Reprodutivos e Atenção à Crianças e Adolescentes Vítimas de Violência
Intrafamiliar e Sexual. Brasília:MS.
Bruschini,C.;Pinto, C.R.(2001). Tempos e lugares de gênero. São Paulo: FCC: Ed. 34
Casa de cultura da mulher negra. (2002). Violência contra a mulher: um novo olhar, 2ª
ed.
Dejours, C et al.(1994). Psicodinâmica do Trabalho: Contribuições da Escola Dejouriana
à Análise da Relação Prazer, Sofrimento e Trabalho.São Paulo: Atlas.
Goldenberg ,M. (1998). A arte de pesquisar: como fazer pesquisa qualitativa em
Ciências Sociais. Rio de Janeiro:Record, 2ª ed.
Heise,R. Pitanguy, J. e Germain,M.(1994). Violência contra la mujer: carga de salud
oculta.
Lakatos, Eva Maria; Marconi, Marina de Andrade.(1982). Metodologia Científica. São
Paulo: Atlas.
Minayo, M.C. S. (1999). Pesquisa Social:Teoria , método e criatividade. Petrópolis:
Editora Vozes.
Moreira, R. L. B. D. (1997). Representações Sociais da Violência Sexual. Um estudo
realizado com pacientes atendidos em um Hospital Público de Belo Horizonte,
Dissertação mestrado, Faculdade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, MG, Brasil.
285
Oliveira, Fátima. (1998).Oficinas Mulher Negra e Saúde- Manual, Maza Edições.
Parker, R.; Galvão, J.; Bessa, M.S. (1999). Saúde, desenvolvimento e política: respostas
frente à AIDS no Brasil. Rio de Janeiro: ABIA, 400 p.
Pitanguy, Jacqueline.(1994).Violência de gênero e saúde – Interseções. In Sexo & Vida –
Panorama da Saúde Reprodutiva no Brasil.
Schpun, M. R.(1997).Gênero sem fronteiras: oito olhares sobre mulheres e relações de
gênero. Florianópolis: Editora Mulheres.
286
Candidatura 15
Autores: Geórgia Silva & José Aires
Título: A morte na formação médica: implicações para humanização do cuidado
287
A morte na formação médica: implicações para humanização do cuidado
Medical education and death: consequences to care and humanization practice
Geórgia Sibele Nogueira da Silva - SILVA, Geórgia Sibele N
Universidade Federal do Rio Grande do Norte - UFRN/[email protected]
José Ricardo de Carvalho Mesquita Ayres - AYRES, José Ricardo CM
Universidade de São Paulo - USP/ [email protected]
RESUMO
A partir da narrativa de médicos em processo de formação, buscou-se compreender o
processo de construção do “ser médico“ e sua relação com o fenômeno da morte, com a
finalidade de investigar em que medida essa relação contribui para promover o
distanciamento entre as tecnociências médicas e os processos dialógicos do cuidar no
cotidiano da prática médica. Foi realizada uma pesquisa qualitativa com estudantes de
medicina da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, escolhidos entre todos os períodos
de formação. A Fenomenologia Existencial, a Hermenêutica Gadameriana e a Teoria da Ação
Comunicativa, de Habermas, constituem a base filosófica do trabalho de produção e
interpretação das narrativas. Foram combinadas duas estratégias tecno-metodológicas:
entrevistas em profundidade com roteiro e oficinas com utilização de “cenas” projetivas. Os
estudantes e residentes transitam entre escassos modelos, poucas experiências para nominar
e lidar com a morte, e muitos paradoxos. No seu encontro com o paciente à morte, esse
cuidador se depara com as dificuldades para não promover a distância entre intenção e gesto
em suas interações e recuperar a humanização do cuidado em sua prática.
Palavras–chaves: educação médica, estudantes de medicina, morte, humanização, cuidado.
ABSTRACT
We have sought the understanding of the process for building a “doctor being” and its relation
to the phenomenon of death, based on the narratives of students in the process of becoming
doctors, with the objective of investigating how this relation with death helps to promote the
detachment among the medical scientific technologies and the dialogical processes of caring in
the daily medical practice. A qualitative research took place with the medical school students
from the Federal University of Rio Grande do Norte, chosen from all levels of the undergraduation (from the first year to medical residency). The existential phenomenology,
Gadamer´s Hermeneutics and the theory of communicative action, of Habermas, constitute
the philosophical basis of the narratives production and interpretation work. To produce the
narratives two techno-methodological strategies were combined: In depth interviews with
scripts and workshops using projective role-play activities, seeking for a deeper and sufer in
the interpretative analysis. The students move between these two scenarios, with rare role288
models, few experiences to name and deal with death, and many paradoxes. In their meeting
with the patient to die, the caretaker faces the difficulties of not promoting the distance
between intention and gesture in their interaction and to re-humanize itself and recover the
dimension of care in its practice.
Descriptors: 1-Medical education 2-Medical students 3-Death 4-Humanization of assistance
“Como é possível que nos aproximemos com a distância
do simples olhar, de coisas que na prática, nos queimam os
dedos, por exemplo, a doença e a morte?”
Gadamer
INTRODUÇÃO
Este trabalho aborda de forma panorâmica reflexões provocadas pela tese de doutorado
da autora: “A construção do “ser médico” e a morte: significados e implicações da
humanização do cuidado” (2007).
Procurou
compreender
em
que
medida
as
conseqüências da construção do “ser médico” e sua relação com a morte, desenvolvidas na
formação médica, interferem na prática médica, em seu distanciamento da dimensão do
cuidado?
É conhecido o fato de que a formação médica tem-se preocupado ativamente
com os novos, eficazes e elaborados procedimentos técnicos de manutenção da vida
humana. Contudo, no que diz respeito ao enfrentamento da situação de sofrimento
existencial do paciente que se encontra nos limites entre a vida e a morte, parece
faltar à devida orientação ao estudante de medicina e ao médico. Muitas vezes, este se
afasta, se sente falho, e frustrado diante da sua ocorrência. Tal reação é
compreensível, tendo em vista que, dentro da ênfase tecnocientificista, volta-se o foco
para o estudo do agente/doença, remédio/cura, e a morte simboliza apenas o
fracasso. (Falcão & Lino, 2004).
289
Ayres (2002), por sua vez, adverte para a necessidade de se examinar o
significado do lugar destacado e determinante que a tecnociência passou a ocupar na
prática médica. Lugar esse que evidencia um progressivo distanciamento da dimensão
do cuidar no saber-fazer médico.
Cuidado, no âmbito deste trabalho, é tratado como designação de uma atenção à saúde
imediatamente interessada no sentido existencial da experiência do adoecimento, físico ou
mental, e, por conseguinte, também das práticas de promoção, proteção ou recuperação da
saúde (Ayres, 2004). Bem como, dirigido à atenção existencial, as práticas relacionadas ao
acompanhamento do processo de morte de pacientes.
Por sua vez, humanizar é entendido como “garantir à palavra sua dignidade
ética”, ou seja, possibilitar que o sofrimento a dor e o prazer possam ser expressos
pelos sujeitos em palavras e reconhecidos pelo outro (Deslandes, 2004).
Ocorre que temos assistido os inegáveis benefícios da medicina tecnocientífica, mas,
unilateralizada como recurso diagnóstico e terapêutico, ela pode ficar mutilada da dimensão
humana. A evitação do contato humano elimina o reconhecimento do sofrer do outro através
da palavra. A dor é medida, medicada, mas não reconhecida em seu significado, pois a palavra
fica reduzida a meras informações na anamnese. Diante de um cenário assim, radicaliza-se o
distanciamento e a desumanização da prática médica; nega-se a possibilidade de uma atenção
integral no processo saúde-doença e morte.
É oportuno ressaltar que as Diretrizes Curriculares do Curso de Graduação em Medicina
no Brasil, homologadas pelo Conselho Nacional de Educação / Câmara de Educação Superior /
Resolução CNE/CES nº4, de 7 de novembro de 2001; oficializaram o acompanhamento do
processo de morte como uma habilidade a ser desenvolvida no ensino médico.
290
De acordo com o artigo 5, que trata das competências e habilidades específicas, temos o
destaque no Item XIII: “atuar na proteção e na promoção da saúde e na prevenção de doenças,
bem como no tratamento e reabilitação dos problemas de saúde e acompanhamento do
processo de morte”.
É notório que os diferentes aspectos envolvidos no ensino da morte na formação
médica e de outros profissionais de saúde têm sido estimulados por alguns autores, como
Howells (1986), Boemer (1989), Klafke (1991), Rappaport (1993), Zaidhaft (1990), Viana e
Piccelli (1998), Rosa (1999); Lino (2003); Kovács (1992 2003); Falcão e Lino (2004). Contudo, os
mesmos autores também concordam que é inegável que as escolas médicas ainda enfrentam
dificuldades para assumirem o compromisso educacional com essa temática.
Partimos do pressuposto de que compreender a relação do estudante de
medicina com a morte em sua formação pode nos ensinar sobre a relação médicopaciente, para além das relações com pacientes terminais, e poderá fornecer pistas
para resgatar a humanização do cuidado na prática médica.
METODOLOGIA
Foi realizada uma pesquisa qualitativa com estudantes de medicina da Universidade
Federal do Rio Grande do Norte - UFRN, escolhidos entre todos os períodos de formação (do
primeiro ano à residência médica). No total foram 19 entrevistados (8 homens e 11 mulheres),
dos quais dez participaram das oficinas.
Para a produção das narrativas foram combinadas duas estratégias metodológicas:
entrevistas em profundidade com roteiro e oficinas com utilização de “cenas”, tendo por
objetivo alcançar maior profundidade e segurança na análise interpretativa (Kvale, 1996;
Minayo, 2002, Paiva, 2005).
291
A pesquisa atendeu os princípios de eticidade preconizados pelas Diretrizes e Normas
Regulamentadoras de pesquisa envolvendo seres humanos do Conselho Nacional de Saúde
(BRASIL. MINISTÉRIO DA SAÚDE. CONSELHO NACIONAL DE SAÚDE: 1997).
A base filosófica do trabalho de análise das narrativas foi constituída pela Ontologia
Existencial, a Hermenêutica Filosófica e a Teoria da Ação Comunicativa.
A compreensão assumiu, aqui, centralidade na atitude de investigação. O
processo interpretativo, por sua vez, obedeceu à regra hermenêutica, segundo a qual
devemos compreender o todo a partir da parte e a parte com base no todo. Foram
realizadas leituras exaustivas e repetidas, que visava ampliar a unidade do sentido pela
concordância de todas as partes singulares com a totalidade compreensiva (Gadamer,
2002).
Para Habermas a dimensão da linguagem privilegiada é a das relações comunicativas
entre os sujeitos, que usam a linguagem para se referirem ao mundo e tomar parte dele – ou
seja, a dimensão pragmática da linguagem, não o uso das sentenças como uma representação
da realidade na nomeação dos objetos e estado de coisas. (Aragão, 2002).
Portanto buscávamos em nossa pesquisa identificar e interpretar as pretensões e
condições de validade dos discursos que permeiam os valores, as concepções (esfera
normativa – o que é correto), as suas verdades acerca do ensino médico (verdades aceitas – o
que é entendido como verdade) e o plano de autenticidade das interações estabelecidas, a sua
subjetividade (as expressões subjetivas).
DISCUSSÃO DOS RESULTADOS
A BUSCA DA HUMANIZAÇÃO
292
No primeiro momento dessa discussão teremos acesso ao horizonte normativo dos
estudantes e residentes de medicina – os interesses, as auto-exigências, consistem em ser um
bom médico, significando ser um bom técnico e humano na doença e na morte.
O médico desejado ou idealizado pelos estudantes /residentes desta pesquisa apresenta
os seguintes atributos: conhecimento técnico e conhecimento humanístico, que por sua vez
implica desenvolver disposições ou habilidades humanísticas, competências comunicativas, e
uma boa relação médico-paciente.
A fala a seguir é ilustrativa:
“Não é todo mundo que pensa nesse lado humano, a maioria ta
preocupada em ensinar e os alunos em aprender as técnicas, e é importante mesmo é o que
cura, né? Claro que é preciso os dois, mas tem que saber o mundo da técnica. Ideal é juntar a
medicina com esse lado humano, o currículo novo ta tentando. Mas ainda é muito pregação
e pouca prática.” [Fragmento de entrevista – Carmen, 5ºano/ 9º período].
Ser um bom médico compreendido como bom técnico e humano é a expectativa de
todos os alunos investigados, independentemente do período. No entanto, percebe-se que a
idealização quanto à realização desses desejos encontra suas tensões ao se deparar com as
incompatibilidades do modelo de ensino em que estão inseridos, tornando sua visão mais
realista. A partir do terceiro e quarto anos, apesar de manterem a imagem de uma prática
humanizada, eles passam a questionar a dinâmica do processo de formação, evidenciando, a
cada ano que passa um desencanto com o processo vivenciado, em relação ao alcance global
de suas metas.
Embora inseridos num contexto cultural que interdita o tema da morte e do morrer, os
estudantes e residentes demonstram sensibilidade e desejo de participarem de uma possível
rehumanização³ do processo de morte nas instituições de saúde.
293
Ao abordarem sobre as concepções dos estudantes/residentes sobre o enfrentamento
do processo de morte de um paciente, citam vários papéis.
Evitar a chegada da morte (1) foi o papel citado por quase todos os estudantes de
todos os períodos. Apenas os alunos do internato (5º e 6º anos) não se referiram a
3________________________________
A “rehumanização” do processo de morrer é definida por Kovács (2003, p. 102) como “uma possibilidade de reaproximação da
morte pelas pessoas, que voltam a se tornar o centro da ação no momento mais significativo da vida – o da própria morte.
morte do paciente. Talvez isso se deva ao fato de eles acompanharem com mais freqüência a
morte de pacientes.
Apesar de a maioria se considerar responsável pela cura do paciente, de assumir o papel
de evitar a chegada da morte, os estudantes/residentes também reconhecem, como parte do
seu ofício, oferecer cuidados físicos e emocionais ao paciente diante da morte.
A procura por uma abordagem integral do paciente fica explicitada através dos outros
papéis citados. São eles: Promover qualidade de morte (2), Estabelecer comunicação
qualificada com o paciente e a família (3), Ficar até o fim (4) – conseguir acompanhar o
paciente até sua morte, e Seguir a rotina (5). - ter equilíbrio emocional para continuar a rotina
de trabalho após a morte de um paciente.
São papéis que demandam cuidados com pessoas e não apenas com corpos ou órgãos
doentes. Demanda o exercício de uma medicina humana que seja capaz de relacionar tais
cuidados não só em situações de morte, e entender a morte não como um fracasso das
instituições e dos médicos, como comumente é considerado pela medicina biomédica. Implica
construir meios para ampliar os horizontes dessa racionalidade instrumental.
294
Vários autores (Kafkle, 1991; Kovács, 1991, 1996; Boemer, 1991, 1996), afirmam que,
diante de um paciente “terminal”, ocorre um aumento de cuidados técnicos e diminuição de
contatos humanos, inclusive visitas médicas. Fato bastante citado também pelos entrevistados
deste estudo.
Esse é o locus em que estão inseridos nossos entrevistados, transitando entre a firmeza de um
horizonte normativo que expressa na primeira pessoa: “eu quero continuar com o modelo que
eu acho certo e estar junto do meu paciente para curar ou para ajudá-lo a morrer com
qualidade” (Fragmento de entrevista – Felipe, 4ºano/8º período), e a relativização desse
mesmo horizonte, fabricada no dia-a-dia de sua formação e relatada esquivadamente em
terceira pessoa: “não é culpa do médico se ele não tem condições de estar perto de um
paciente terminal”. (Fragmento de entrevista – Carmem, 5º ano/9º período).
A INICIAÇÃO MÉDICA NA DISTÂNCIA DO SIMPLES OLHAR
No segundo momento da discussão abordaremos o plano da pretensão da verdade dos
discursos – a aceitação ou não de proposições, das orientações recebidas, nos indicará o ritual
de iniciação da racionalidade médica
Fato é que, em nossa cultura ocidental contemporânea, a morte e o falar sobre ela, de
indesejados e temidos, são também banalizados e interditados. E na medicina, se a morte é
uma constante no trabalho médico, se eles são obrigados ao seu convívio (ou optam por ele),
como os cursos de graduação preparam seus alunos para lidar com a questão da morte?
Os estudantes e residentes entrevistados evidenciam os poucos e pontuais espaços para
o ensino da morte em sua formação. Despreparo constatado em estudos tanto no Brasil
(Vianna & Piccelli, 1988; Zaidafht, 1990; Falcão & Lino, 1990, 2004), como no exterior (Buss et
295
al., 1998), demonstrando que os estudantes de medicina percebem a carência de
oportunidades no curso médico para o preparo e o treinamento em lidar com a morte.
A fala de uma estudante nos demonstra a necessidade de operacionalização dessa
demanda:
“Como é que você vai aprender a lidar com o paciente que vai morrer? Já
quando ele está em estado terminal? Só lidando, no dia-a-dia, errando, chorando quando ele
morre, se descabelando nas primeiras vezes, mas infelizmente é assim. É muito solitário, não
é pra ser assim. Se tiver sorte de acompanhar algum professor que saiba lidar (pequena
pausa), mas a gente nem tem com quem conversar sobre tudo isso Tem que falar na morte,
tem que ensinar a gente a lidar. Não sei se você já notou, mas a gente nem diz essa palavra,
diz óbito, alta celestial êxito letal.” [Fragmento de entrevista – Simone, 6ºano/12º período]
Se, por um lado, constatamos um quase silêncio em torno do lidar com a morte e o
morrer ao longo da formação médica, por outro é possível identificar as disciplinas de caráter
humanista sendo eleitas como responsáveis para promover o ensino do tema, para promover
as mudanças atitudinais nesse processo, já tão impregnado por uma visão biológica e
tecnicista do adoecimento. Disciplinas que segundo Souza (2001) convivem com o permanente
desafio de manter em tensão o saber sobre a doença e o saber sobre a relação com o doente.
Entretanto, se todo comportamento é uma comunicação (Watzslawick, 1967) as
atitudes, os valores, as formas de lidar com a morte no dia-a-dia da prática médica serão
sempre ensinadas mesmo no silêncio de um saber-fazer, dentro de uma concepção desejada
ou não. A morte não nominada (“óbito”, “alta celestial”) já comunica por si só uma recusa em
lidar com ela, a tentativa de esquecer que ela existe, representando uma recusa da dimensão
intersubjetiva no cotidiano do “ser médico” que desponta em idiossincrasias da linguagem.
296
É fato que o início da construção da racionalidade médica tecno-científica, ocorre nas
aulas de Anatomia. A morte biológica abre-lhes as portas à investigação científica, revela que a
verdade da doença deve ser buscada na intimidade dos tecidos mortos (Foucault, 1987), sem
voz, identidade, sem contato humano, ou melhor, buscando despir-se deste por meio da
evitação de qualquer sinal de humanidade do cadáver, ou do próprio estudante (ao insinuar
revelar seus sentimentos). Começa nesse momento o processo de expropriação dos
sentimentos, de negação de aspectos existenciais e simbólicos da morte. O distanciamento da
subjetividade é a estratégia adotada para se obter o conhecimento objetivo, claro, exato,
apregoado por um tipo de saber científico que construiu seus pilares em cima da cisão sujeitoobjeto. O vínculo com a humanidade deve ser rompido, sob o argumento de evitar
identificações e possíveis sofrimentos. Aqui também começa a invisibilidade em relação a um
possível sofrimento existencial do estudante.
Vejamos alguns depoimentos:
“Ninguém tem a reação na hora, pelo menos tenta disfarçar, não pega
bem porque você é aluno de medicina, tem que agüentar. Mas aí além desse momento,
quando você disseca o dorso, passou o estresse... Até que você tem que virar o cadáver [...]
Aí é outro estresse, cadê que eu conseguia dissecar o cadáver olhando pra cara dele? Uma
angústia... eu não consigo... Eu passei uma semana eu acho, botando um pano no rosto do
cadáver, pra conseguir dissecar o abdômen. Até que você com o tempo vai se adaptando...
não pode ficar a vida inteira cobrindo o cadáver.” [Fragmento de entrevista – Cecília, 5º
ano/10º período]
É possível inferir que o processo de dissociação corpo-mente e a dessubjetivação dos
pacientes no exercício da biomedicina têm seu primeiro modelo no treinamento obtido com os
cadáveres, conforme afirmou um aluno:
297
“No primeiro momento você reflete um pouquinho, você olha assim,
ali é um braço, é uma perna, uma cabeça que foi de alguém, quem deveria ser essa pessoa, daí
agente entra olha o rosto que lembra mais, não pode se envolver com isso, ai com o tempo a
gente se acostuma mais sabe, que tem o lado bom e o lado ruim, o lado bom é você se
acostumar um pouco porque você precisa trabalhar com aquilo, mas o lado ruim é que você
vai se tornando mais frio pra lidar com as coisas, né, pra lidar com essas questões difíceis aí,
vai ficando mais frio e começa a ver o ser humano não como ser humano, mas como uma
máquina. Depois você vê o paciente também como um objeto de estudo, uma máquina que
tem o coração batendo. Aí o médico precisa rever essa postura, senão ele vai ficar
desumano.” [Fragmento de entrevista – Felipe, 4ºano /8º período]
O aluno argumenta que é preciso desmitificar a morte, é preciso esquecer o morto, para
se acostumar e trabalhar com “aquilo”, mas teme chegar pelo hábito, à mesma frieza
necessária com o cadáver. Finaliza refletindo sobre a necessidade de rever a postura
mecanicista, sob o risco de se desumanizar. Nessa direção, Martins (2004, p. 27) afirma que
“nosso corpo não se encaixa na abstração da máquina, senão ao preço de grandes perdas”.
O argumento utilizado para o não envolvimento é a evitação do sofrimento do
estudante, desde o cadáver ao primeiro paciente à morte. “Condição” para que ele consiga
tornar-se médico, mediante discursos coercitivos
Zaidafth (1990) e Quintana et al. (2002) defendem que há uma exclusão intencional da
temática da morte nos estudos médicos que se funda fundamenta na idéia explicitada por
alunos e profissionais da área de saúde, por eles observada: “estamos numa profissão na qual
convivemos com a doença e a morte e, se permitimos que aquilo (grifo nosso) que acontece
nos pacientes nos “toque”, acabaríamos loucos e na conseguiriam exercer nossas funções”
(Quintana et al,2002 p. 26).
298
Porém alguns alunos, não por acaso – um próximo ao final do curso e outro residente –
nos dão pistas de que, diante do despreparo para enfrentar com o equilíbrio desejado nas
situações de acompanhamento de morte de um paciente, a aceitação do distanciamento como
estratégia eficaz de enfrentamento (usada antes na anatomia) é reiterada.
“Então você notou que tem alguma coisa ali, chama o psicólogo ele vai lá
conversar, é uma forma de poder ajudá-lo. O médico poder ajudar chamando o psicólogo
que vai poder ajudar muito mais, entendeu? E aí você desliga a partir daí. Eu não acho certo
a pessoa ficar carregando não. Mas se a pessoa consegue.Tem médico lá na Liga contra o
Câncer que é bonito de ver, mas eu tenho dificuldade, eu queria aprender como fazer,
entende?” [Fragmento da entrevista – Clara, 5º ano/10º período]
“Não deve se envolver. Acho que o ideal seria o relacionamento
ser apenas profissional mesmo, que a partir do momento que criar amizade, acho que
isso aí não é bom não, apesar de às vezes acontecer, mesmo sem querer, acontece.”
[Fragmento da entrevista – Rodrigo, residente 2]
Os estudantes e residentes relatam os escassos modelos, as poucas experiências para
nominar e lidar com a morte, e os inúmeros paradoxos. A prescrição do não envolvimento é
adotada, e convive com sinais de relativização (não se envolver muito), quando o horizonte
almejado é a humanização da prática médica, que, por sua vez, prescreve uma boa
comunicação com o paciente à morte.
No entanto eles não aprendem como se envolver com equilíbrio, como vão conseguir
conversar com seu paciente sobre sofrimento e morte? Eles sabem que não ser tocado pelo
outro e sua dor não será possível o tempo todo, descobrem isso nas interações com os
pacientes (“mesmo sem querer, acontece”), e reclamam por práticas, professores e uma
política de educação que os preparem; que auxiliem a eles e seus educadores a se envolverem
e saberem comunicar sobre a morte, pois é fato, seus pacientes também morrem.
299
Em outras palavras, é ao desenvolvimento do domínio emocional e a aquisição de uma
competência comunicativa que eles se remetem, domínios estes de incorporação prevista nas
reformas curriculares e pedagógicas em desenvolvimento no país, embora com uma evidente
distância entre intenção e gesto. As verdades dos discursos se deparam quase inevitavelmente
com paradoxos na prática. Suas narrativas ilustram uma vivência em que a ambigüidade é a
tônica - precisam e querem ser “suficientemente frios” e “suficientemente humanos” no seu
saber-fazer.
QUANDO A PRÁTICA QUEIMA OS DEDOS
O outro momento de discussão se dá no terreno em que se expressa à subjetividade nas
interações propriamente ditas: o contato dos estudantes com o paciente em situação de
doença e diante da morte.
Quando “a prática queima os dedos”, as dores dos cuidadores se revelam nas
dificuldades em lidar com a morte de seu paciente e realizar as atitudes desejadas para o
enfrentamento desse processo (citadas no início do texto).
A falta de acolhimento e continência aos aspectos emocionais dos próprios estudantes,
desde as aulas de Anatomia, podem se reproduzir mais tarde em semelhante falta com seus
pacientes.
A cena a seguir ilustra um pouco da relação entre as concepções desejadas/idealizadas
e as dificuldades enfrentadas pelos nossos estudantes.
“Já passava das 7 horas da manhã e eu chegava ao hospital. Sendo
próximo ao dia das mães, estava todo enfeitado com flores, como uma homenagem especial,
lindo, com o sol entrando pelas vidraças, fazendo esquecer, por um momento, que me
encontrava em um hospital. Mas eu não podia esquecer. [não podia esquecer o sofrimento a
ser encontrado]. Antônio era um senhor de 67 anos, de cabelos grisalhos, rugas leves no rosto,
300
pele rosada, sempre sorrindo. Seu Antônio, como era sempre chamado, recebeu o diagnóstico
de câncer de pulmão há cerca de 6 meses, de maneira inesperada, após apresentar tosse com
sangue e ir ao hospital para tratar-se. Era fumante desde a juventude e nunca se preocupou
em parar de fumar. Morava com a esposa numa casa confortável, e tinha duas filhas, ambas
casadas, e um neto. Estava internado há duas semanas pois houve piora do seu estado geral,
mostrando um agravamento do seu câncer já intratável. Durante a noite recebi a ligação de
que Antônio tinha sofrido uma piora considerável neste dia, indo para a UTI. Já não estava
mais sempre consciente, não falava, estava pálido, com os olhos sem brilho. Era o primeiro
paciente que eu deveria visitar naquela manhã, o que me fez lembrar de toda sua história.
Aquela visita provavelmente seria a última. À porta da UTI estavam a esposa e uma das filhas,
com os olhos ansiosos direcionados para mim. “O que faço agora?” (dúvidas na condução)
Cheguei próximo às duas, olhei em seus olhos, apertei suas mãos e dei um sorriso acolhedor.
[comunicação não verbal qualificada] Foi o suficiente para aliviá-las um pouco. Disse que logo
que saísse da UTI falaria com as duas. Fui chegando próxima ao seu Antônio e ele estava
acordado, olhando imóvel para o teto logo acima de sua maca. Cumprimentei-o e vi uma
pessoa diferente, que eu não conhecia. Ele já estava ciente da gravidade de sua doença, das
metástases, da falência de órgãos que já apresentava e da irreversibilidade cruel das
transformações que se passavam com ele nos últimos dias. O seu olhar foi profundo. Parece
que por um segundo eu pude ver sua alma. Não gostei. Foi desolador. Pelo instante de um
suspiro, sem uma palavra, senti toda a sua frustração e derrota, me fazendo sentir incapaz.
“Não cumpri meu dever”. [evitar a chegada da morte -1] A partir daí ele já sabia o que eu
tinha a lhe dizer. [dar a notícia ruim -2]. Sentei numa cadeira ao lado de sua maca e perguntei
se tinha algo que ele quisesse fazer, alguma comida que estivesse desejando, algum filme que
quisesse assistir. Disse que tudo que acontece tem um sentido, por mais que não sejamos
capazes de entender. Se fazemos tudo que está ao nosso alcance, devemos ficar tranqüilos e
ter fé. Mas, nem tudo sai como planejamos, infelizmente. Disse ainda que chamasse sua
301
família e amigos para quem quisesse dizer algo especial, pois eles ficariam muito mais
tranqüilos assim. As coisas não acabam aqui, isso seria uma mudança dolorosa em sua
existência, mas algo melhor estava por vir. [comunicação qualificada sobre o fim - 2/
realização de desejos - 3] Fui vendo sua expressão mudar um pouco, o que me deixou
bastante aliviada. Ele então me deu um sorriso, bem discreto, apesar da tristeza em seu olhar.
Pediu então que eu chamasse sua esposa, pois ele mesmo queria conversar com ela, e me
agradeceu. [estar junto/ ficar até o fim - 4]. Saí, talvez até mais triste do que entrei, e chamei
sua esposa (sentimentos do médico) Ela rapidamente entrou, dando um abraço e beijos em
sua filha, apressada por ver seu Antônio. E eu? Como fico a partir daí? [sentimentos do
médico/ acostumar-se ou aprender] Paro um pouco e sento no banco para pensar, vou fazer
um lanche, ou simplesmente vou ao próximo paciente? Acho que a cada dia vou ter que
aprender um pouquinho mais, até saber bem o que fazer. Bem, e a vida continua...” [seguir a
rotina - 5] [Fernanda, 4º ano/ 8º período]
As “cenas” foram ricas em exemplos das possibilidades de encontro com o o outro familiares ou pacientes. As comunicações silenciosas e o confortar aconteceram também por
meio de olhares. E, nesse encontro autêntico de seres humanos que se olham, tem-se a
apreensão da responsabilidade ética. Dizia Clara: “Eu me sentiria preocupada, com uma
responsabilidade maior do que eu posso arcar...” Ou Fernanda: “Fui vendo sua expressão
mudar um pouco, o que me deixou bastante aliviada. Ele então me deu um sorriso, bem
discreto, apesar da tristeza em seu olhar...”. E Sofia, conclui: “Ele olha para mim, segura minha
mão e pela primeira vez, em meio a tanta dor, ele me dá um sorriso. Nessa hora eu percebi
que estava fazendo a coisa certa. Sorri para ele e dessa forma ele também entendeu que eu fiz
a minha parte”.
As estudantes em questão ensaiaram situações em que foi possível realizar a
singularidade de um encontro humano. Apesar de seus conflitos elas conseguem realizar
302
relações que desejariam para elas próprias enquanto pacientes. Seus relatos nos remetem aos
vários papéis citados como representativos do “ser médico” diante da morte.
Cabe ressaltar, portanto, que o uso das cenas pode consistir em um instrumento
facilitador do processo ensino-aprendizagem de novas atitudes. Além de promover encontros
e reflexões sobre sentimentos e dificuldades em torno do saber e práticas vivenciados, pode
possibilitar ensaiar saídas na construção desse mesmo saber-fazer.
Portanto, o contato com o paciente quase-morto, ainda sob cuidados médicos; ou até
mesmo com os pacientes em seus vários sofrimentos (que não seja a iminência da morte);
impele ou poderá impelir o estudante a enxergar a incompletude de seu saber, a reclamar a
compreensão do processo existencial de atitudes que dêem conta de ressignificar o
sentimento de impotência e fracasso diante da morte, pelo reconhecimento da dimensão da
potência presente no papel de cuidar. Situações de ensino-aprendizagem que podem ser cada
vez mais facilitadas à medida que os alunos começam mais cedo a lidarem com pacientes e
possam encontrar professores preparados para tal processo.
CONCLUSÃO
Foi possível observar a presença dos discursos herdeiros da racionalidade biomédica,
cuja normatividade tecnocientífica, ao tentar eliminar as emoções, termina por distanciar-se
do outro; convivendo com as dificuldades de estudantes/residentes de medicina que
defendem uma racionalidade, sem prescindir da tecnociência, seja capaz de aliar sua atenção
ao sentido existencial da experiência do adoecimento, seja na recuperação da saúde ou no
acompanhamento do processo de morte.
É fato, que a solidão diante das dificuldades vivenciadas por estudantes e residentes
para enfrentar a dor de não salvar; de não saber dar a notícia ruim; de não saber confortar,
303
nem ficar ao lado do paciente à morte, são etapas vivenciadas que, se não forem acolhidas,
enfrentam um percurso de grande vulnerabilidade ao desenvolvimento de mecanismos rígidos
de defesa e de distanciamento do outro e de si mesmos.
Depois de visitar alguns pontos de parada para as discussões realizadas no percurso
deste trabalho, é hora de apontar um lugar de chegada: a constatação de que a negação da
morte na formação médica, o apartar-se de seus conteúdos simbólicos e existenciais no
processo de construção do “ser médico” contribui para um distanciamento entre as
tecnociências médicas e a dimensão do cuidado no cotidiano das interações médico-paciente.
Se as tecnociências biomédicas interferem sistematicamente nas possibilidades de
expressão subjetiva e de regulação das interações nos processos de atenção à saúde, torna-se
necessário, como afirma Ayres (2005), admitir que mesmo as problematizações voltadas aos
campos expressivos e normativos desses processos; e especialmente nas interações com
pacientes à morte, dependerão de um esforço reconstrutivo dirigidos à esfera proposicional.
Na procura pelo ideal de objetificação na ciência médica, tomamos a doença enquanto
uma abstração, como a verdade do sofrimento do paciente, enquanto este é silenciado em sua
alma, em seu ser total, e os médicos passam a descrer de sua própria habilidade simbólica, por
não ser considerada cientifica. A distância é legitimada; o paciente é apagado, enquanto
indivíduo, e os estudantes podem apagar-se enquanto pessoa, diante das exigências do seu
saber.
A dificuldade de inclusão do preparo para lidar com a morte na formação acadêmica
não é, portanto, apenas um efeito acidental do ensino médico, mas implica questões
epistemológicas que estão na base da própria racionalidade da biomedicina, que, no dizer de
Canguilhem (1977) é a dificuldade de apreender a lidar com a dor, o sofrimento e a morte.
304
Este estudo pontua a urgência de um processo de ressignificação na construção do “ser
médico” que inclua acolher na prática médica conteúdos subjetivos e simbólicos ao longo da
formação acadêmica e profissional, como a morte, que poderá contribuir para a formação de
médicos capazes de aliar a tecnociência as dimensões do cuidado na prática médica.
Sugere caminhos para um aprofundamento e adensamento conceitual capaz de
contribuir para o percurso que pretende sair de um olhar que distancia; para um olhar que, ao
se aproximar existencialmente da morte, aprenda a se aproximar do outro. É no terreno da
intersubjetividade, no poder falar algo com alguém, que acontecem os encontros ou
desencontros da relação do médico com seu paciente à morte implicando, em práticas
desumanas, por serem meramente técnicas, ou no aprendizado na direção da humanização do
cuidado, da re-situação do paciente como sujeito de seu processo de vida, adoecimento e
morte.
Tal proposição encontra sustentação em Habermas (1996), cuja concepção de
racionalidade assume um caráter eminentemente ético, interessada na produção de diálogos
acerca do sentido interacional e emancipatório e não somente instrumental e técnico das
formas de vida.
Nesse sentido seu pensamento é bastante próximo da Hermenêutica Filosófica e da
Ontologia Existencial (Heidegger, 1995), recuperando a dimensão do humano como ser de
cuidado, possibilitando o aprendizado para transitar nas sombras - morte, dúvidas e dores do
ser médico e do ser humano.
A perspectiva existencial não concebe a existência impessoal como único modo
previsível e possível de ser, direção à qual nos impulsiona o paroxismo tecnológico da
modernidade. Não, ela defende que a possibilidade de resgate do ser está sempre em jogo, é
sempre um poder-ser. Sendo assim é possível desumanizar, mas também rehumanizar.
305
Para tal, é preciso olhar para a morte e o sofrimento e poder falar sobre eles, ou seja, é
preciso construir espaços para cuidar da dor do cuidador, a fim de que ele possa cuidar de
forma humana das dores de seus pacientes, e possa enfrentar o medo da intimidade que esse
tipo de encontro desperta.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:
Aragão, L. (2002). Habermas: filósofo e sociólogo do nosso tempo. Rio de Janeiro, RJ: Tempo
Brasileiro.
Ayres, J. R. C. M. (2002) Tão longe, tão perto: o cuidado como desafio para o pensar e o fazer
nas práticas de saúde. In: VII Encontro de Pesquisadores em Saúde Mental e VI Encontro de
especialistas em enfermagem psiquiátrica, 2002. Anais. Ribeirão Preto, SP.
Ayres, J. R. C. M. (2004). O cuidado e os modos de ser (do) humano e as práticas em Saúde.
Revista Saúde e Sociedade, 3(3), 16-29.
Ayres, J. R. C. M. (2005). Hermenêutica e humanização das práticas de saúde. Ciência e Saúde
Coletiva, 10 (3), 549-560.
Boemer, M. (1986). A morte e o morrer. 2ª ed. São Paulo, SP: Cortez.
Buss, M.K. (1998). The preparedness of students to discuss end-of-life issues with patients.
Acad Méd, 73, p. 418-422.
Canguilhem, G. (1977). O normal e o patológico. 3 ed. Rio de janeiro, RJ: Forense Universitária.
Conselho Nacional de Educação. Diretrizes Curriculares Nacionais do Curso de Graduação em
Medicina. Câmara de Educação Superior/Resolução CNE/CES Nº4, 7 de novembro de 2001.
Brasília, 2001.
Deslandes, S. F. (2004). Análise do discurso oficial sobre a humanização da assistência
hospitalar. Ciência e Saúde Coletiva, 9(1), 7-14.
Foucault, M. (1987). O Nascimento da Clínica. Rio de Janeiro, RJ: editora Forense-universitária.
Gadamer H-G. (2002). Verdade e Método II. Complementos e índice. Petrópolis, RJ: Vozes.
Habermas, J. (1996). Racionalidade e comunicação. Lisboa: Edições 70.
306
Heidegger, M.(1995). Ser e Tempo. I. Petrópolis, RJ: Vozes.
Howells, K., Gould, M. & Fields, D.(1996). Fear of death and dying in medical students: effects
of clinical experience. Med Educ, 20, 502-506..
Klafke, T. E. (1991). O médico lidando com a morte: aspectos da relação médico-paciente
terminal em cancerologia. In Cassorla RMS. Da morte: estudos brasileiros. Campinas, SP:
Papirus.
Kovács, M. J. (1992). A morte e o desenvolvimento humano. 2ªed. Casa do Psicólogo.
Kovács, M. J. (2003). Educação para Morte. Temas e reflexões. São Paulo: Casa do Psicólogo.
Kvale, S. (1996). Interviews: an introduction to qualitative research interviewing. Thousand
Oaks: Sage publications.
Martins, J. C. (1985). A morte e os mortos. Rio de Janeiro: Zahar.
Minayo, M.C.S. (2002). Hermenêutica e Dialética como caminho do pensamento Social. In:
Deslandes, S.F. Caminhos do pensamento: epistemologia e método. Rio de Janeiro: Editora
Fiocruz.
Paiva, V. (2005). Analysing sexual esperiences through scenes: a framework for sexualty
education and evaluation. London: Sex education, March.
Quintana, A. M., Cecim P.S. & Henn, C.G. (2002). O Preparo para lidar com a morte na
formação do profissional de medicina. Revista Brasileira de Eduação Médica, 26(3), 204-210.
Souza, A.N. (2001). Formação médica, racionalidade e experiência. Ciência e Saúde Coletiva,
6(1), 87-96
Viana, A & Piccelli, H. (1998). O estudante, o médico e o professor de medicina perante a
morte e o paciente terminal. Revista Associação Médica Brasileira, v.44, 21-27.
Watzlawick, P., Beavin J,H. & Jackson, D. (1967). Pragmática da Comunicação Humana. Um
estudo dos padrões, patologias e paradoxos da interação. São Paulo, SP: Cultrix.
Zaidhaft, S. (1990). Morte e formação médica. Rio de Janeiro, RJ: Francisco Alves.
307
Candidatura 16
Autores: Railda Alves, Maria Eulálio, María León & Sylvia Brobeil
Título: La psicología en la salud pública: discursos, dificultades y límites de la formación de
psicólogos en Brasil y Portugal
308
La psicología en la salud pública: discursos, dificultades y límites de la
formación de psicólogos en Brasil y Portugal
Railda F. Alves. Profesora Doctora de la Universidade Estadual da Paraíba – Brasil
[email protected]; [email protected]
Maria do C. Eulálio. Profesora Doctora de la Universidade Estadual da Paraíba – Brasil
[email protected]
María T. M. León. Profesora Doctora de la Universidad de Granada – España [email protected]
Sylvia A. J. Brobeil. Profesora Doctora de la Universidad de Granada – España [email protected]
Resumen
Este trabajo presenta parte de los resultados obtenidos en una investigación realizada junto a
los psicólogos actuantes en salud pública de la ciudad de Campina Grande, Brasil y del
Concelho de Coimbra, Portugal. Los objetivos fueron: conocer las intervenciones llevadas a
cabo en la sanidad pública; valorar la adecuación de estas prácticas a cada nivel de atención de
salud; conocer los discursos sobre las intervenciones en Atención Primaria de Salud (APS)17. El
estudio fue viabilizado mediante la triangulación metodológica y tuvo como instrumentos de
toma de datos un cuestionario, una entrevista en profundidad y un diario de campo. Para
deslindar los resultados se utilizó el análisis de contenido. Para demostrarlos, el árbol de
asociación de sentidos. Las informaciones cuantitativas fueron obtenidas mediante la
estadística descriptiva. Los resultados destacaron las dificultades de los psicólogos en
identificar las intervenciones más apropiadas a APS y mostraron que el modelo clínico es,
todavía su sustentáculo para el ejercicio de la profesión en salud pública.
Palabras clave: Psicología de la salud, intervenciones en la sanidad pública,
primaria de salud
Atención
1 - Introducción
Las últimas décadas atestiguaron la incorporación gradual de psicólogos a los servicios
de salud pública. Tal incorporación estuvo anclada al modelo de intervención clínico. Hecho
que privilegió la naturalización y circulación del aporte clínico como prácticas “standard” para
todas las demás intervenciones de psicología en el campo de la salud pública y pone de
17
En Portugal este término equivale a “Cuidados de Saúde Primários” (Trindade, 2007). En el ámbito de
este trabajo elegimos mantener el uso del término Atención Primaria de Salud, por querer mantener la
fieldád a forma utilizada en el idioma español.
309
manifiesto una inadecuación entre lo que es realizado y lo que deberían ser.
Actualmente, los avances y reformas observadas en el campo conceptual y práctico de
la salud impulsaron el surgimiento de nuevas demandas para la actuación de los psicólogos,
esta vez en APS (Alves, 2008). Los factores más importantes ligados a ello, son: 1- la evolución
del concepto de salud-enfermedad-vida-muerte; 2 – la maduración de la Psicología de la Salud;
3 - las reformas sucedidas en los planeamientos institucionales de salud observadas en varios
países que pasaron a enfatizar la APS como intervenciones propias a los psicólogos; 4 - la
Reforma Psiquiátrica que apunta hacia el cierre de los manicomios y la implantación de los
servicios sustitutivos (Brasil, 2005a).
De ese contexto resulta la necesidad de una nueva organización y elaboración de los
programas de salud y el desarrollo de acciones de corto, medio y largo plazo, que aporten la
preparación a los profesionales de salud para la intervención en ese nuevo modelo.
De cara a contribuir a la solución de esta problemática realizamos el presente estudio
cuyos objetivos fueron: 1 - conocer las prácticas de salud llevadas a cabo por psicólogos
actuantes en la sanidad pública de la ciudad de Campina Grande, Brasil y del Concelho de
Coimbra, Portugal; 2 - a partir de ese conocimiento valorar y criticar la adecuación de estas
prácticas a cada nivel de atención de salud destacando las prácticas de APS. El estudio fue
viabilizado mediante la triangulación metodológica y tuvo como instrumentos de toma de
datos un cuestionario (Escala Whoqol-100, 2008), una entrevista en profundidad (Alves, 2002)
y un diario de campo (Alves, 2001). Para llegar a los resultados utilizamos el análisis del
contenido (Bardin, 1977). Y para demostrarlos, el árbol de asociación de sentidos (Spink y
Lima, 1999).
2 - Resultados y discusión
2.1. Parámetros socio demográficos de las muestras
310
La tabla 2.1.1., (Test exacto de Fisher: P = 0,025) nos muestra que los psicólogos que
están en la sanidad pública son mayoritariamente mujeres (89,3%). Dimenstein (1998) hace
referencia al predominio de mujeres en la profesión de psicólogos. Afirma que la Psicología fue
quedándose marcada como una profesión de mujeres hecho que influye sobre la repercusión
de su valor social y de los espacios ocupados en el mercado de trabajo.
La edad media es 42,31 años y el estado civil predominante es casada/o (44,6 %). Es en
Portugal donde se encuentra las mayores tasas de viudas/os (28,1%), solteras/os (28,1%) y
separadas/os (18,8%). Mediante aplicación del test de Chi-Cuadrado (Chi2=15,970; P=0,001)
verificamos que en Portugal (Coimbra) hay menos casados y muchos más viudos de lo que es
de esperar (hay 9 viudos frente a 1 en Brasil).
Tabla 2.1.1. Perfil socio demográfico de las muestras – julio a diciembre de 2007
311
SEXO
Brasil
Portugal
Total
N
%
EDAD
MEDIA
ESTADO CIVIL
N
%
Total
FEMEN
MASC
AÑOS
CASADO
VIUDO
SOLTERO
SEPARADO
49 96,1%
2
3,9 %
39,23
29 56,9%
1
2,0 %
14 7,5%
7 13,7%
51 100 %
26 78,8%
7 21,2%
43,54
8 25,0 %
9
28,1%
9 28,1%
6 18,8 %
33 100%
75 89,3%
9 10,7%
42,31
37 44,6%
10
12%
23 27,7%
13 15,7%
N=84
En la tabla 2.1.2. cruzamos las informaciones sobre la realización de PostGrado. El resultado del test Chi-Cuadrado no llega a dar significativo (Chi=1,834; P=
0,176) a pesar de que según nuestra muestra los psicólogos de Brasil han realizado
más cursos de Post-Grado (82,4%), respecto a Portugal (69,7%). Hay una concentración
en la realización de Expertos, seguido por los masteres y por último, con poquísimos
casos, doctorados.
Tabla 2.1.2. Lugar y Realización de Post-Grado
Realización de Postgrado Total
Brasil
Lugar
Sí
No
Recuento
42
9
51
Frecuencia esperada
39,5
11,5
51,0
% de Lugar
82,4%
17,6%
100,0%
% de Realización de Postgrado 64,6%
47,4%
60,7%
Residuos corregidos
1,4
-1,4
Recuento
23
10
33
Frecuencia esperada
25,5
7,5
33,0
% de Lugar
69,7%
30,3%
100,0%
% de Realización de Postgrado 35,4%
52,6%
39,3%
Portugal
312
Residuos corregidos
-1,4
1,4
Recuento
65
19
84
Frecuencia esperada
65,0
19,0
84,0
% de Lugar
77,4%
22,6%
100,0%
100,0%
100,0%
Total
% de Realización de Postgrado 100,0%
La tabla 2.1.3. nos habla sobre el área en la cual se realizó la formación. En este
caso, Portugal presentó mayor concentración de cursos en Psicología
(91,3%),
respecto a Brasil (68,3%), (Chi cuadrado=3,160; P= 0,075) aunque el resultado no llega
a la significación.
La alta frecuencia de profesionales interesados en la adquisición de nuevos
conocimientos nos puede indicar una preocupación por el avance hacia nuevos
aportes teóricos y técnicos de la psicología. Lo malo está en que los cursos realizados
están concentrados en el área de la psicología clínica. Sobre todo en la muestra de
Portugal. En Brasil hemos detectado una mayor preocupación con la realización de
cursos en el área de la Salud Pública/Comunitaria.
Tabla 2.1.3. Lugar y Área de Realización de Post Grado
Área
Total
Psicología clínica Salud pública
Recuento
28
13
41
Frecuencia esperada 31,4
9,6
41,0
% de Lugar
68,3%
31,7%
100,0%
% de Área
57,1%
86,7%
64,1%
Lugar Brasil
313
Residuos corregidos -2,1
2,1
Recuento
2
23
5,4
23,0
91,3%
8,7%
100,0%
42,9%
13,3%
35,9%
21
Frecuencia esperada 17,6
Portugal % de Lugar
% de Área
Residuos corregidos 2,1
-2,1
Recuento
15
64
Frecuencia esperada 49,0
15,0
64,0
% de Lugar
76,6%
23,4%
100,0%
% de Área
100,0%
100,0%
100,0%
49
Total
314
A continuación pasamos a comentar los resultados en cuanto a las medias de
sueldos cobrados mensualmente en las dos muestras. Los portugueses
ganan
1.452,75€/mes, de media, mientras los brasileños, para desempeñar lo mismo ganan
en media 1.021,10 reales/mes18. Para tener un parámetro más concreto buscamos el
valor de cada hora trabajada en euros, que figuran en la Tabla 2.1.4., en las dos
muestras. Los resultados nos dicen que los psicólogos de Portugal ganan tres veces
más que los de Brasil. Ahora bien, el conocimiento obtenido de las realidades de cada
país investigado, nos permite afirmar que la calidad de vida de los psicólogos
brasileños no está muy por debajo de la de los portugueses. Hecho explicado porque
en Brasil los psicólogos tienen entre 1 y hasta 3 empleos más de lo oficial lo que les
garantiza un incremento en sus sueldos.
Tabla 2.1.4. Valor de la hora trabajada en Euros en Brasil y Portugal
Lugar
N Media
Desviación típ. Error típ. de la media
Brasil
50 3,4913
1,31514
,18599
Portugal 28 10,2213 2,25906
,42692
Hora trabajada en euros
Pasamos a hablar de la satisfacción de los profesionales en relación a los
sueldos cobrados. Los resultados demostrados en la tabla 2.1.5. reflejan la relación
entre sueldos cobrados y calidad de vida personal y familiar. Esta tabla nos confirma
los datos descritos en la categoría anterior que enseña que los portugueses se dicen
más satisfechos con lo que ganan (30,3%) que los brasileños (13,7%), sin embargo,
ninguno de los psicólogos en las dos muestras ha marcado la opción muy satisfecho.
18
Para comparar las ganancias medias (en euros) entre Brasil y Portugal el factor de corrección utilizado
en el momento de la toma de datos fue 0,3856 céntimos de euro.
315
(Estadístico exacto de Fisher= 9,935; P= 0,025). Se observa en la tabla como hay en
Brasil menor grado de satisfacción y más en Coimbra.
TABLA 2.1.5. Lugar * Calidad de vida
Calidad de vida
Brasil
Total
Sin
opinión
Nada
satisfecho
Poco
satisfecho
Regular Satisfecho
Recuento
5
15
24
0
7
51
Frecuencia
esperada
3,0
12,1
24,3
1,2
10,3
51,0
% de Lugar
9,8%
29,4%
47,1%
,0%
13,7%
100,0%
% de Calidad de
100,0%
vida
75,0%
60,0%
,0%
41,2%
60,7%
Residuos
corregidos
1,9
1,5
-,1
-1,8
-1,8
Recuento
0
5
16
2
10
33
Frecuencia
esperada
2,0
7,9
15,7
,8
6,7
33,0
% de Lugar
,0%
15,2%
48,5%
6,1%
30,3%
100,0%
% de Calidad de
,0%
vida
25,0%
40,0%
100,0% 58,8%
Residuos
corregidos
-1,9
-1,5
,1
1,8
1,8
Recuento
5
20
40
2
17
84
Frecuencia
esperada
5,0
20,0
40,0
2,0
17,0
84,0
% de Lugar
6,0%
23,8%
47,6%
2,4%
20,2%
100,0%
Lugar
Portugal
Total
39,3%
316
% de Calidad de
100,0%
vida
100,0%
100,0%
100,0% 100,0%
100,0%
En la tabla 2.1.6. acerca de la relación satisfacción con el que hace en su trabajo
las respuestas son homogéneas (Test de Fisher = 4,321; P= 0,354)( NO significativo). La
mayoría de respuestas están concentradas sobre la categoría “estoy satisfecho con lo
que hago”, respectivamente tenemos: Brasil 62,0%, Portugal 54,5%.
Si sumamos los ítems satisfecho con muy satisfecho tendremos para Brasil un
percentil de 94% de satisfacción con el trabajo y un 84,8% para Portugal. O sea, hay un
buen nivel de satisfacción de los profesionales con lo que hacen.
Tabla 2.1.6. Lugar * Satisfacción con el trabajo
Satisfacción con el trabajo
Brasil
Lugar
Portugal
Total
Sin
opinión
Nada
satisfecho
Poco
satisfecho
Satisfecho
Muy
satisfecho
Recuento
1
0
2
31
16
50
Frecuencia
esperada
,6
1,2
3,0
29,5
15,7
50,0
% de Lugar
2,0%
,0%
4,0%
62,0%
32,0%
100,0%
% de Satisfacción
100,0%
con el trabajo
,0%
40,0%
63,3%
61,5%
60,2%
Residuos
corregidos
,8
-1,8
-1,0
,7
,2
Recuento
0
2
3
18
10
33
Frecuencia
esperada
,4
,8
2,0
19,5
10,3
33,0
% de Lugar
,0%
6,1%
9,1%
54,5%
30,3%
100,0%
,0%
100,0%
60,0%
36,7%
38,5%
39,8%
% de Satisfacción
317
con el trabajo
Residuos
corregidos
-,8
1,8
1,0
-,7
-,2
Recuento
1
2
5
49
26
83
Frecuencia
esperada
1,0
2,0
5,0
49,0
26,0
83,0
% de Lugar
1,2%
2,4%
6,0%
59,0%
31,3%
100,0%
100,0%
100,0%
100,0%
100,0%
100,0%
Total
% de Satisfacción
100,0%
con el trabajo
Por otra parte, son los brasileños los menos satisfechos con sus sueldos, al
mismo tiempo, los más satisfechos con sus haceres cotidianos. Quizás se pueda
explicarlo por las muchas y recientes contrataciones de psicólogos, incluso sin
oposición. Hecho que, puede ser interpretado como la necesidad de enseñar la pericia
y la idoneidad respecto al desempeño de su labor, una vez que muchos no tienen
segura su plaza. Tal inferencia resulta de la lectura de las informaciones registradas en
el diario de campo que nos ha permitido ver que las condiciones generales para el
buen desempeño de las actividades de estos profesionales no son nada apropiadas.
Desde las condiciones físicas de las consultas y ambiente de trabajo hasta la falta de
comunicación entre los profesionales de salud.
2. 2. Análisis cualitativo de los discursos de psicólogos actuantes en Atención Primaria de
Salud
Este apartado está dedicado a mostrar y discutir los resultados de las entrevistas en
profundidad. Es oportuno aclarar que aunque desde el punto de vista político-geográfico
Campina Grande y Concelho de Coimbra estén muy lejos la una del otro, los resultados son
318
muy similares, lo que nos ha permitido proceder a su agrupación en las mismas categorías de
análisis.
2. 2. 1. Auto-relatos de los psicólogos sobre las intervenciones realizadas en Atención
Primaria de Salud (APS)
En esta categoría, tal como demostramos en el árbol 2.2.1 (p.10), los actores de la
investigación centraron sus discursos sobre lo que hacen actualmente en APS. La idea matriz
radica en la creencia de que lo que hacen es adecuado a la APS, y sus intervenciones son
descritas como compatibles a este campo.
Así, tal como la describen, la APS es una asistencia inicial definida como una primera
atención a los problemas más sencillos, algo cercano a los primeros auxilios brindados a
alguien que llega por primera vez al servicio.
Esta intervención, tal como la vemos, podría encontrar amparo teórico-práctico en lo
que es el ‘Pantão Psicológico’19, actualmente muy utilizado en Brasil (Tassinari, 1999; Mafhou,
1999; Tassinari, 2003).
19
Se trata de una escucha clínica, no caracterizada como psicoterapia, frente a una necesidad de
acogimiento urgente, de cualquier persona que acuda al servicio. Tal como lo ven los autores, el “plantão”
remite a una técnica de deconstrucción de la clínica tradicional porque al contrario de la vertiente
curativa, busca situar la demanda psicológica del individuo, en su contexto social, de modo que evite el
aumento de su sufrimiento psíquico.
319
320
La actividad central a través de la cual son desarrolladas las intervenciones en este
nivel es la psicoterapia. Así, los psicólogos relatan que sus jornadas de trabajo son dedicadas
casi exclusivamente a la referida actividad, no restando tiempo
para otras actividades
distintas. Todo es hecho en los moldes tradicionales incluso con los pacientes previamente
citados.
En la mayoría de las respuestas de los entrevistados queda claro una vaga
comprensión del que hacer en APS. Todas las ideas concernientes al tema demuestran la
fuerte influencia de la formación universitaria anclada al modelo clínico y la consecuente
actuación en el referido modelo.
Aunque algunos de ellos, en diversos momentos de la entrevista, demostraron hacer
una reflexión sobre la (in) adecuación de sus asistencias al campo de la APS, hay una evidente
comprensión de que la psicoterapia es parte no solamente integrante del campo, sino que la
consideran una práctica normal de hacer en APS.
Otra equivocación que nos parece evidente es creer que su tarea está involucrada
primariamente en el ámbito de la salud mental, cuando debería estar volcada a la salud
general, la cual tiene en la promoción de salud y en la prevención de enfermedades, sus
objetivos más grandes.
En la misma línea, el árbol 2.2.1. (p.10) señala la narrativa discursiva del argumento
psicoterapéutico: sesiones de 30’, labor en ambulatorio, seguimiento a pacientes desde hace
dos años etc., y la falta de permanencia de los pacientes a consecuencia de la falta de
adhesión a las asistencias; como algo que dificulta su trabajo. Todo ello sedimenta aún más el
uso del paradigma clínico utilizado en sus prácticas.
321
2.2.2. Las Intervenciones que deberían ser realizadas por psicólogos en Atención Primaria de
Salud (APS)
Esta categoría captó los discursos sobre lo que debería ser realizado en APS. Conforme
muestra el árbol 2.2.2. (p.13), las respuestas están planteadas sobre tres premisas: dar
prioridad a la psicoterapia, no priorizar la psicoterapia y actuar con grupos.
Respeto a la premisa (la prioridad de la psicoterapia en APS), no nos vamos a detener
puesto que viene comentada en la categoría anterior. Respecto a la segunda, no ofrecer la
psicoterapia en APS, quedó claro que hay una preocupación en relación a que la psicoterapia
no debe componer el rol de actividades en APS. Tal preocupación no es suficiente para
eliminar la psicoterapia del rol de sus tareas.
Utilizan la reciente implantación del servicio y la falta de capacitación para ello como
justificantes de sus desconocimientos sobre lo que hacer en el lugar de la psicoterapia.
Los brasileños recurren al término Equipo Matricial como un desconocido. O sea, como
a algo que se sabe que existe, del que se habla mucho, pero no se comprende qué es. Aún en
esta línea de justificación, señalan la resistencia por parte de los profesionales a cambiarse al
nuevo. Lo explican como una dificultad de dejar lo conocido para arriesgarse a lo novedoso.
De un modo general la construcción del argumento gira en el entorno de la
psicoterapia. Ya que cuando se remite a la realización de grupos (tercera premisa), se está
pensando en una psicoterapia de grupo como una manera de hacer lo mismo como si fuese el
nuevo y, también de asistir a más gente a la vez. Insistimos en afirmar que es una idea
equivocada porque los psicólogos no se están dando cuenta de que la formación de grupos
que proponen está mediada por la psicoterapia. Y no podría tener tal carácter, ya que la
referida intervención no deberá componer la labor del psicólogo a este nivel de atención.
322
323
Tal como la entendemos, el único problema de la propuesta de los psicólogos para su
labor en APS es que todo el planteamiento se guía por la realización de la psicoterapia en vez
de ser guiado por la promoción y educación para la salud y la prevención de las enfermedades.
La prevención también aparece como una actividad pertinente en APS, pero su
comprensión se vuelca hacia una clínica cuyo objetivo es evitar la cronificación de problemas
neuróticos o prevenir una psicosis en el futuro.
La forma en la que los actores de la investigación miran la prevención resulta algo
limitada una vez que está demarcada por el criterio de tiempo. O bien por intervención en
edad temprana o por intervención en un problema neurótico, como medida de evitar que se
vuelva psicótico.
Las equivocaciones contenidas en estos discursos habrán de ser relativizadas frente a
realidad encontrada en Campina Grande en aquel momento histórico. Es decir, el servicio
estaba en fase de implantación y resultan comprensibles las dificultades allí encontradas en
cuanto a la adecuación de las prácticas a la propuesta de trabajo en APS. Pero está igualmente
claro que no hubo una preparación de los profesionales antes de sus traslados a los Centros de
Salud, hecho que podría crear una gran diferencia en las respuestas de salud, brindadas a la
comunidad.
Los psicólogos de Portugal afirman que los que están en APS son los que deberían
ocuparse de los niños maltratados. Idea que está también vinculada a la disminución de la
carga sobre el servicio especializado y a la prevención precoz. Compararon
la
labor
del
psicólogo en APS como semejante a la del médico generalista. Afirmaron que la inserción de
psicólogos en APS, igualmente que en Brasil, es también muy reciente.
324
2.2.3. Objetivos de las prácticas psicológicas en APS
En esta categoría captamos los discursos sobre la adecuación y la importancia de la
presencia del psicólogo en APS. El árbol 2.2.3 (p.16) muestra que ésta está organizada a partir
de cuatro ideas centrales. La que viene en el medio, dar a conocer la psicoterapia, ratifica lo ya
dicho y repetido: la psicoterapia es el eje de todas las prácticas en APS. La segunda, que está
también en el medio, remite al conocimiento, aunque superficial, de que deberían hacer otras
cosas. Como muestra el árbol, hicimos diversas intervenciones en la búsqueda de una
respuesta más coherente. Pero está claro que en aquel momento no tenían claridad sobre el
asunto.
El tema gira alrededor de actuar con las UBS20 y PSFs21, pero el qué y el cómo hacer, no
lo tienen claro. Alegan la falta de conocimiento de las leyes y la novedad de la intervención.
La tercera idea, y la más extremada, muestra que el término primario es inadecuado al
uso de las actuaciones del psicólogo en APS porque remite a una asistencia superficial, puntual
sobre una primera queja y quedan los verdaderos motivos de la búsqueda del servicio
encubiertas, con lo cual vendrían a explotar en otro momento, implicando un descuido en las
quejas principales del paciente. Tal equivocación es la más grave entre las demás. Muestra un
alto nivel de desconocimiento de lo que es el trabajo en salud pública, precisamente en APS.
Ratifica la dificultad, ya señalada, del psicólogo de pensar su práctica desde un paradigma
distinto del clínico.
La cuarta idea, desahogar los servicios especializados, tiene mayor valor de coherencia
con la APS.
20
21
UBS: Unidade Básica de Saúde (Brasil, 2005b).
PSF: Programa de Saúde da Família (Brasil, 2007).
325
326
2.2.4. La formación universitaria para la actuación a nivel de APS
El árbol 2.2.4 (p. 18) muestra que todas las dificultades señaladas por los actores son
dirigidas a la formación universitaria. O, mejor dicho, a la falta de una formación adecuada. Las
quejas son las mismas: han sido preparados para la actuación en la clínica privada, les falta el
conocimiento de lo que son los Programas institucionales de salud, les falta la preparación
para enfrentarse a la realidad de las comunidades usuarias del servicio público de salud. Todo
ello recarga la dificultad de dejar la psicoterapia para cambiarse a lo nuevo y desconocido.
Vemos pertinente la crítica respecto a la formación poco adecuada a las necesidades
reales del campo, sobre todo, cuando solicitan una reforma en el currículum cuyo objetivo es
garantizar una formación volcada a la realidad que el profesional encontrará en el mundo
laboral de la salud pública.
327
328
3 – Conclusiones
La presente investigación nos mostró la serie de equívocos en las intervenciones de los
psicólogos que actúan en el campo de la salud pública. La formación académica inapropiada y
disociada de las políticas de salud pública es
lo más grave. La adecuada actuación de
psicólogos en salud pública debe tener en cuenta las posibilidades de intervención en los
diversos niveles de atención de salud. Sopesando la adecuación de cada acción en su nivel
apropiado. Teniendo claro que las intervenciones de salud primaria objetivan la salud general
en la búsqueda de la promoción de salud y la prevención de enfermedades; que las
intervenciones de salud secundaria deben volcarse hacia las asistencias especializadas de
seguimiento, donde la salud mental tiene su mayor expresión. Y las asistencias de tercer nivel
se relacionan con las intervenciones de alta complejidad y las investigaciones científicas.
La promoción de salud y la prevención de enfermedades son actividades propias a la
labor del psicólogo, debiendo ser ejecutadas en conjunto con los demás profesionales del
equipo de salud. Cada cual aportando su conocimiento especializado al equipo multidisciplinar
de cara a comprensión del perfil epidemiológico del colectivo social a ser asistido y a la
elaboración de los planes de intervención.
En definitiva, la intervención de psicólogos se amplia hacia nuevos campos de salud,
como en el caso de la APS. De igual manera se exige una mirada y una preparación de estos
profesionales más compatibles con los procederes psicológicos exigidos para su intervención
en salud pública.
Referencias
ALVES, R. F. (2001): O olhar de agricultores do Cariri Paraibano sobre a loucura. Dissertação de
mestrado. Mestrado Interdisciplinar em saúde Coletiva. Universidade Estadual da Paraíba.
Campina Grande, Brasil.
ALVES, R. F. (2002): Entrevista não-diretiva: aplicações e limites.. Revista do UNIPÊ. Série
Ciencias biológicas e da saúde. João Pessoa. V6(3), p. 46-50.
329
ALVES, R. F. (2008). Tesis de Doctorado. Intervenciones de profesionales en el campo de la
salud: estudio antropológico comparativo en Brasil, España y Portugal. Universidad de
Granada, España.
BARDIN, L. (1977): Análise de conteúdo. Edições 70, Lisboa.
BRASIL (2005a): Ministério da Saúde. Secretaria de Atenção à Saúde. DAPE. Coordenação Geral
de Saúde Mental. Reforma psiquiátrica e política de saúde mental no Brasil. Documento
apresentado à Conferência Regional de Reforma dos Serviços de Saúde Mental : 15 anos
depois de Caracas. OPAS. Brasilia.
BRASIL (2005b): Ministério da Saúde. Secretaria de Políticas de Saúde. Projeto Promoção da
Saúde. As Cartas da Promoção da Saúde. Brasília, DF.
BRASIL (2007): Ministerio da Saúde do Brasil. PROGRAMA DE SAÚDE DA FAMILIA. Disponible
en http://dtr2004.saude.gov.br/dab/atencaobasica.php acceso en enero de 2007.
DIMENSTEIN, M. (1998): O psicólogo nas Unidades Básicas de Saúde: desafios para a formação
e atuação profissionais. Estudos de Psicologia 3(1), 53-81.
ESCALA WHOQOL-100. OMS (2008): Organización Mundial de Salud, disponible en
http://www.ufrgs.br/psiq/whoqol-100.html acceso en 12 de junio de 2008.
MAHFOUD, M. (1999): Plantão Psicológico: novos horizontes. Editora compañía ilimitada. São
Paulo.
SPINK, M. J. P. Y LIMA, H. (1999): Rigor e visibilidade: a explicitação dos passos da
interpretação. En SPINK, M. J. (Dir.) Práticas discursivas e produção de sentidos no cotidiano.
Aproximações teóricas e metodológicas. (pp. 93-122). Cortez, São Paulo.
TASSINARI, M. A. (2003): A Clínica da urgência Psicológica: contribuições da abordagem
centrada na pessoa e da Teoria do caos.Tese de Doutorado UFRJ/ Instituto de Psicologia. Rio de
Janeiro.
TASSINARI, M. A. (1999): Plantão psicológico centrado na pessoa como promoção de saúde no
contexto escolar. Universidade Federal do Rio de Janeiro – Dissertação de Mestrado Rio de
Janeiro.
TRINDADE, I. (2007). Competências do psicólogo nos cuidados de saúde primários. En
TRINDADE, I. y TEIXEIRA, J. A. C. (eds.), Psicología nos cuidados de saúde primários. (pp. 54-64).
Lisboa: Climepsi Editores.
330
Candidatura 17
Autores: Laura Vilela e Sousa, Manoel Antônio Santos, Fernanda Mishima & Fábio ScorsoliniComin
Título: Vulnerabilidade ao stresse em profissionais de emergência médica pré-hospitalar
331
O grupo de apoio psicológico entendido pelos familiares de pessoas com transtornos
alimentares
Souza, Laura Vilela – [email protected]
Santos, Manoel Antônio – [email protected]
Mishima, Fernanda Kimie Tavares – [email protected]
Scorsolini-Comin, Fábio – [email protected]
Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto
Universidade de São Paulo (FFCLRP-USP)
Brasil
RESUMO
O grupo multifamiliar tem tido bons resultados pela troca de experiência entre famílias
favorecendo uma coesão grupal e atmosfera de apoio. Buscamos compreender como
as famílias de pessoas com Anorexia e Bulimia Nervosa significam a sua participação
em um grupo multifamiliar de apoio psicológico. Participaram nesse estudo 37
familiares. Foram audiogravadas 10 sessões grupais, posteriormente transcritas na
íntegra e submetidas à análise de conteúdo temática. Essa análise permitiu identificar
“tópicos/temas” que emergiram espontaneamente e que estão relacionados aos objetivos
do estudo, a saber: quem deveria participar do grupo, por que e como participar, o que
mudou após a participação e para que serve esse espaço. Os diversos sentidos sobre qual
é a função do grupo geram diferentes construções sobre quem deve e as razões
332
participar dele. Assim, a participação vista em função do familiar adoecido constrói o
grupo como um lugar para se falar da doença. Aqui o grupo seria apenas para
familiares iniciantes, com os filhos ainda adoecidos. Já o sentido do grupo como um
compromisso de ofertar ajuda aos demais participantes, ou o grupo como espaço de
dar e receber ajuda faz com que famílias já com seus filhos melhores possam sentir-se
legitimadas no grupo favorecendo a troca. (Capes).
INTRODUÇÃO
A partir da perspectiva epistemológica do pós-modernismo, que não considera
a existência da dualidade sujeito-objeto, mas sim o sujeito e o objeto como
construções sócio-históricas, a abordagem Construcionista Social convida-nos a ver a
pesquisa como uma prática social, considerando que o critério de cientificidade e suas
estratégias de validação estão ligados às definições do que é ciência ao longo da
história.
A pesquisa científica é compreendida como um discurso institucionalizado, com
normas validadas por uma comunidade lingüística. Gergen (1994) afirma que a
investigação construcionista preocupa-se principalmente com os processos por meio
dos quais as pessoas explicam e descrevem o mundo e a si mesmas. Segundo Spink e
Frezza (2000) a investigação proposta dessa maneira transfere “o locus da explicação
dos processos de conhecimento internos à mente para a exterioridade dos processos e
estruturas da interação humana” (p. 26).
333
Dentro da perspectiva moderna do fazer ciência tem-se um esforço de evitar, e
ficar atento, a influência da subjetividade do pesquisador na sua produção, como se
essa subjetividade pudesse distorcer a realidade, que poderia ser objetivamente
percebida.
Spink e Menegon (2000) definem como infeliz a distinção entre métodos
qualitativos e quantitativos, que associaria a mensuração do método quantitativo com
rigor e objetividade, e a abordagem qualitativa com subjetividade e uma menor
precisão no espelhamento da realidade. A crítica se faz pertinente com o
entendimento de que o conhecimento científico não é o retrato da realidade, mas uma
construção possível sobre essa realidade, negociada e contextualizada em seu meio de
produção. Portanto, ambas abordagens produzirão diferentes metáforas sobre essa
realidade, e a escolha por uma ou outra dependerá não do fato de ser mais ou menos
precisa na sua descrição do real, mas dos objetivos do pesquisador. A responsabilidade
pela escolha dos passos metodológicos a serem adotados, em uma pesquisa, aumenta
dentro dessa perspectiva, e deve ser justificada de acordo com os fundamentos
epistemológicos que embasam o olhar do pesquisador. É uma mudança
epistemológica dentro da abordagem qualitativa utilizada na Psicologia, assim como
vem acontecendo nas demais ciências humanas (Spink & Menegon, 2000).
A postura ética e crítica que essa compreensão implica repercute na postura do
pesquisador, que vai ser assimilado no processo da produção de sentido, e que
entende que não existe uma verdade única e irrefutável a ser descoberta; ou um
ponto de vista privilegiado para o entendimento do objeto escolhido. Ou seja, segundo
Ibánez (1994) as verdades são pautadas em critérios de coerência, utilidade,
intelegibilidade e moralidade.
334
O construcionismo social considera a pesquisa como uma constante abertura
ao novo, às construções alternativas da realidade, às renegociações de sentidos,
buscando manter a conversação sempre em aberto. Assim, dentro dessa perspectiva, o
estudo das interações grupais torna-se um objeto valioso para a compreensão da
maneira que os sentidos podem ser construídos e negociados nas relações, pois
favorece variadas conversações, trocas e multiplicidade de vozes (Souza & Santos,
2007).
A negociação de sentidos no espaço grupal contextualiza-se sempre de acordo
com os limites construídos entre seus participantes, através do contrato grupal, do
objetivo do grupo, das pessoas que estão ali presentes e dos repertórios
interpretativos que elas trazem de sua vivência cultural, histórica e social (Japur, 2004).
Ou seja, o grupo não é uma entidade que existe independentemente de seu contexto,
como muitas vezes é defendido na literatura psicológica moderna, mas um artefato
social produzido a cada momento no calor da interação.
Dessa forma, o grupo pode ficar preso a repetição de discursos
institucionalizados em nossa sociedade ou pode ser um espaço promotor de novos
sentidos e discursos que podem ser mais significativos e úteis para os seus
participantes (Rasera & Japur, 2001). O alcance desses sentidos alternativos relacionase, segundo Japur (2004), “ao conjunto de relacionamentos em que as pessoas estão
inseridas e das condições relacionais da sociedade como um todo” (p. 165).
Portanto, uma vez que o potencial terapêutico de um grupo não pode ser
garantido, dentro dessa perspectiva, apenas com o uso de técnicas específicas ou
abordagens utilizadas pelos seus coordenadores, pois a consideração do que é
335
terapêutico dependerá sempre das negociações feitas pelas pessoas a cada momento
da interação, torna-se fundamental compreendermos de que maneira essas relações
se estabelecem e que sentidos são produzidos para percebermos as conseqüências
dessas construções para as pessoas
Especialmente na área da saúde, que utiliza essa estratégia de atendimento
amplamente, o estudo das intervenções grupais busca garantir: o conhecimento da
maneira que esses grupos são construídos; quais os discursos e repertórios sociais que
neles se presentificam; quais as conseqüências das descrições de mundo e de simesmo produzidas nas conversações e qual a vivência de cada participante sobre as
possibilidades e limites de cada grupo.
A compreensão desses aspectos visa trazer subsídios para a elaboração de
estratégias de cuidado mais condizentes com as necessidades dos usuários dos
diferentes serviços de saúde.
Objetivo
Buscou-se nesse trabalho compreender de que maneira os diversos sentidos
construídos em um grupo de apoio a familiares de pessoas diagnosticadas com
anorexia nervosa e bulimia nervosa, constroem diferentes possibilidades de se estar
no grupo (através de movimentos de afastamento e aproximação entre os
participantes) e viver a sua potencialidade terapêutica.
Método
O grupo de apoio estudado
O grupo de apoio psicológico aos familiares de pessoas com anorexia e bulimia
336
nervosa é oferecido como uma das modalidades de atendimento à família pelo Grupo
de Assistência em Transtornos Alimentares (GRATA) do Ambulatório de Nutrologia do
Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto da Universidade de
São Paulo. Acontece semanalmente, tem uma hora de duração e é coordenado por
dois psicólogos (em esquema de co-coordenação) e tem como objetivo principal ser
um espaço de troca de experiências entre os participantes (Santos, Oliveira, Moscheta,
Ribeiro & Santos, 2004).
Tem cerca de três anos de funcionamento e desde o início, é um grupo de
“portas abertas”, isto é, aberto aos parentes e acompanhantes dos pacientes
atendidos. Não tem número definido de vagas e todos os familiares dos pacientes,
atualmente atendidos, estão convidados a participar dos encontros.
O convite para a participação no grupo acontece em todo início de tratamento
e é reforçado ao longo do mesmo, sempre que a equipe percebe que a família está
ausente. A aderência tem sido significativa, ainda que em algumas famílias apenas um
membro participe do grupo. A assiduidade tem sido diferente em cada família, sendo
que, na época da coleta de dados, a média de participantes nas reuniões foi de 6 a 8
integrantes. Apesar do contínuo estímulo à presença sistemática, alguns familiares
participam apenas nas datas de retorno ambulatorial dos pacientes.
Aspectos Éticos
O projeto de pesquisa conta com a anuência do médico responsável pelo
Ambulatório de Nutrologia do HC-FMRP-USP e foi submetido e aprovado pelo Comitê
de Ética em Pesquisa da referida instituição em 25 de outubro de 2004, de acordo com
o processo número 10823/2004. A participação dos familiares no estudo foi voluntária,
337
de modo que, antes do início da coleta dos dados, e antes do início de cada grupo,
todas as pessoas formalizaram sua anuência mediante a assinatura do termo do Termo
de Consentimento Livre e Esclarecido.
Participantes
Participaram da sessão analisada a psicóloga Luma, 34 anos e o psicólogo
Felipe, 26 anos e 10 familiares: Helena, 44 anos, mãe de uma jovem com bulimia
nervosa, comerciante; Valéria, 62 anos, mãe de uma jovem com anorexia nervosa,
aposentada; Otávio, 65 anos, pai de uma adolescente com anorexia nervosa,
professor; Magali, 46 anos, mãe de uma jovem com bulimia nervosa, dona de casa;
Marcos, 44 anos, irmão de uma senhora com anorexia nervosa, pecuarista;
Guilhermina, 54 anos, mãe de uma jovem com bulimia nervosa, dona de casa; Nilma,
77 anos, mãe de uma senhora com anorexia nervosa, dona de casa; Camilo, 21 anos,
namorado de uma jovem com bulimia nervosa, estudante; Milton, 46 anos, padrasto
de uma jovem com bulimia nervosa, comerciante; Ronaldo, 44 anos, pai de uma jovem
com anorexia nervosa, profissional autônomo.
Materiais e procedimentos de coleta de dados
Fontes complementares
A) Diário de Campo: Utilizou-se do Diário de Campo como recurso complementar para que
a pesquisadora, enquanto observadora do grupo, pudesse registrar as conversas informais
(antes e ao término do grupo), os comportamentos, gestos e expressões dos participantes,
assim como a tonalidade afetiva dos diferentes momentos da sessão.
B) Consulta aos prontuários: Os prontuários do serviço foram consultados para
a obtenção das descrições dos profissionais quanto aos chamados "pacientes". Essas
338
informações colaboraram na compreensão das narrativas dos participantes com
relação à seu familiar atendido no serviço.
Observação e registro do grupo
As sessões grupais foram áudio-gravadas na íntegra por meio de um gravador
K-7 colocado no centro do círculo de cadeiras. A coleta foi interrompida quando se
completou um conjunto de 10 sessões consecutivas do grupo. Assegurou-se que o
tema relacionado ao nosso objetivo nesse estudo estivesse presente nesse intervalo
temporal.
Análise dos dados
Inicialmente realizou-se a transcrição integral e literal das 10 sessões. Após o
primeiro contato com o conteúdo das sessões, através de sua transcrição, foram
realizadas releituras desse material, buscando aprofundar o reconhecimento de seus
conteúdos, temas, processos de produção e negociação de sentidos e formas de
interação engendradas.
Uma vez que o objetivo desse estudo foi o estudo da produção e negociação de
sentidos dos familiares para a sua participação no grupo, o passo seguinte, dentro
desse momento de pré-análise dos dados, foi o realce das falas nas quais essa temática
estivesse presente. Considerando-se a natureza qualitativa desse estudo, um recorte
desse material tornou-se necessário para o aprofundamento da análise. Dessa forma,
foi selecionada para a análise uma sessão, na qual estavam presentes variadas
negociações, construções e posicionamentos com relação aos diferentes sentidos
construídos para a participação grupal, evidenciando, assim, sua riqueza polissêmica.
339
Para a análise das sessões utilizamos o recurso metodológico das delimitações
temáticos-seqüenciais empregada por Rasera e Japur (2001). Através desse recurso
são recortados, ao longo da seqüência da sessão, as diferentes temáticas que vão
delimitar diferentes momentos da interação grupal.
A abordagem teórico-
metodológica utilizada foi a da "teoria relacional do significado" (McNamee, 2004;
Gergen, 1994), cujo foco é o estudo da maneira através da qual as pessoas se engajam
umas com as outras na construção de sentidos - objeto de estudo do construcionismo
social - em um constante diálogo com o mundo (McNamee, 2004).
Resultados
O contexto da sessão:
O grupo nesse dia estava bastante lotado. Fernando e Helena entraram
atrasados. Havia 3 pessoas novas no grupo: Guilhermina, Camilo e Nilma. Marcos
trouxe sua mãe Nilma hoje pela primeira vez.
Os casos graves e não graves: a possibilidade de um novo sentido para a diferença
O grupo inicia com a apresentação dos participantes, que falam seu nome e o
parentesco com a pessoa atendida no serviço. Logo após a apresentação, o
coordenador Felipe pergunta a Marcos se é a sua primeira vez no grupo. Marcos
afirma que já veio uma vez na semana anterior, na qual Felipe estava de férias.
Após essa conversa introdutória, Marcos afirma ter ficado preocupado desde o
último grupo, pois ele havia falado da gravidade da doença da irmã e acabou
percebendo que a filha de Valéria estava em uma situação "mais grave". Ele se dirige à
Valéria desculpando-se:
340
Marcos: É minha preocupação que eu tava falando, eu tava conversando... Como
que é o nome? Esqueci o seu nome. Valéria: Valéria. Marcos: Valéria! Dona Valéria,
né? Eu até pedi desculpa pra você, né? Porque o caso da filha dela é... É mais pela
minha mãe, né? Porque eu via que minha irmã tomava laxante, toma diurético e a
filha dela nem isso tá comendo. Aí ela (Dona Valéria) precisa levantar pra dar água
pra filha, minha mãe não faz isso! Então queria trazer minha mãe para ela estar
vendo que... Que tem um que tá pior que minha irmã. Parece, né? A senhora
desculpa mais uma vez a senhora (fala para Valéria). Valéria: Não! O caso dela é
grave mesmo (fala com voz de riso para amenizar). Marcos: Precisa estar auxiliando
pra estar andando, isso e aquilo. E a minha irmã ainda tá aí, mais ou menos, né?
Cada caso é um caso, mas pra ela (mãe dele) tá vendo aí. Porque a gente fica
meio... Valéria: Perturbado. Marcos: É! Aí fica preocupado com ela, fica
preocupado. Eu aqui eu to bem, né? Na terça- feira (dia do último grupo) eu fiquei
meio assim. Mas, hoje eu tô bem. Tão tratando (os profissionais), né? Se vai fazer o
que?
Temos a construção da diferença entre a gravidade da doença para cada uma
das famílias. Valéria nomeia seu "caso" como sendo "grave". Ao contar como se sentiu
frente à gravidade do caso de Antônia (filha de Valéria), Marcos faz uma pausa ao
dizer: "a gente fica meio...", e Valéria parece completar a frase com a palavra
"perturbado". Marcos, por sua vez, completa dizendo sentir-se "meio preocupado".
Têm-se duas descrições de como é possível se sentir ao perceber casos graves
de doença no grupo: o ficar "perturbado" e o ficar "preocupado".
341
A partir desse momento, o grupo continua discorrendo sobre as diferenças
entre os "quadros sintomatológicos" dos filhos, filhas, namorada, e irmã.
Os familiares falam dessas diferenças enfatizando a dificuldade de comunicação
entre as pessoas, seja na família ou no próprio grupo. Na família, essa dificuldade se
concretizaria através das brigas com o familiar "adoecido", e no grupo seria, segundo a
compreensão de Felipe, a impossibilidade de, muitas vezes, ser entendido e aceito
pelo outro.
Felipe retoma o conteúdo da sessão até esse momento, e faz um paralelo com
a busca de entendimento entre os participantes no grupo, como uma tentativa de
aproximação entre eles:
Felipe: É, eu quero agora fazer uma observação. Assim... Eu tava aqui perguntando
mesmo pra vocês que eu ainda não conheço, eu tava aí querendo saber um pouco
de vocês como é que é participar do grupo? Eu acho que desde o começo a gente
ficou falando de algo muito importante, né? Que é de comunicação, né? Ah, desde a
comunicação que a gente faz aqui, né? Mas aí vocês foram falando de que a
comunicação é algo muito difícil né? Assim, chegar perto da outra pessoa, conseguir
fazer com que ela entenda o que a gente tá pensando e, por outro lado, assim,
entender o que ela tá pensando, o que ela tá vivendo. É sempre um desafio, né? É
sempre muito difícil. (alguém concorda) E eu acho que é isso que a gente acaba
vivendo aqui no grupo, né? Num grupo desse, né? Com tanta gente. E que a gente
fica aí perguntando, querendo saber como é que é, quem é você, né? O que você tá
esperando. É na tentativa de chegar perto, né? De se aproximar daquilo que vocês
tão vivendo e daquilo que vocês tão precisando. Como ele tava dizendo, às vezes
342
ficar sozinho é muito difícil, né? Ficar sozinho é muito ruim, né? E aí eu queria saber
agora de quem ficou escutando o que pensou enquanto tava escutando a história
dessas pessoas que tão chegando agora.
Nessa fala, Felipe traz a aproximação entre as pessoas no grupo como uma
possibilidade de entendimento da vivência alheia, de não ficar solitário na sua
experiência. Para Felipe, nesse momento de produção de sentidos, o grupo é visto
como oportunidade de as pessoas se aproximarem.
A aproximação entre os participantes parece ter um significado de igualdade
entre os participantes, como se, para chegar próximo do outro, tivesse que ser
reconhecido nesse outro algo que os iguale.
Essa compreensão leva em conta a interação que se estabelecesse no grupo
após a fala de Felipe. Valéria posiciona-se como alguém diferente dos outros
participantes, parecendo difícil se aproximar, nesse momento, das vivências alheias:
Valéria: Eu tava pensando o seguinte, que eles estão... Acho que não tem doença!
Felipe: Como assim? Valéria: Tanto tempo e eu tô sempre assim, vivendo o dia.
Felipe: Hum, hum. Valéria: Mas em matéria de... Eu com a minha filha... Não tem
assim... A gente se comunica, conversa e tudo. Num tem esse problema, mas tem o
dia que ela não quer saber de nada. O caso dela é grave, ainda hoje ainda é. São
muitos anos de luta. Felipe: E o que a senhora tava falando é que perto dessa sua
situação, a situação deles? Valéria: Ah! elas são curadas! São curáveis! Porque eu
não... Que eu venho, acompanho, não deixo ela, fico lado a lado. Ela não vem no
grupo, eu venho. Não tem essa, eu procuro dar, quer dizer que não tive a minha
vida própria, fiquei em função dela, né? Agora nessa semana tá difícil.
343
Em sua fala, nesse trecho, Valéria afirma que as outras pessoas no grupo não
teriam "doença", e que seus familiares seriam "curáveis". Em contraposição ao seu
caso que seria "grave" e "não curável".
Valéria coloca-se, nesse momento, como diferente dos demais participantes,
sendo difícil sentir-se próxima deles. Dessa maneira, o grupo não poderia ser sentido
como espaço de união e aproximação entre as pessoas. Fica solitária na especialidade
de sua "situação".
Na seqüência desse grupo, Magali questiona sobre a influência negativa que os
pacientes poderiam ter uns sobre os outros, ao participarem do grupo de apoio a eles
destinado e ouvirem os relatos de exemplos negativos dos outros pacientes, como o
relato de alguém que esteve bastante emagrecida e não morreu. Segue-se o diálogo
entre Magali e Valéria sobre esse aspecto:
Magali: Não, assim, porque a semana retrasada que eu vim, tinha duas meninas
junto com a Tatiana (filha de Magali) e aí elas esperam ali embaixo até a hora delas
entrarem no atendimetno. E elas estavam conversando, né? E aí a Tatiana... Não sei
o que ela perguntou pra menina e ela falou: “Ah... eu cheguei a pesar vinte e sete
quilos... fui internada e eu tava que nem morta e o médico deu lá uma injeção de
ânimo. Ele falou: “Ou tudo ou nada”, né? Cheguei nos vinte e sete quilos e não
morri, tô aqui”. E ela falou ainda: “Engordar pra que?” isso e aquilo outro. Quer
dizer, é uma coisa que a gente vê que é uma pessoa que tá doente, (referindo-se a
menina que falou com sua filha) não tá normal, não tá boa. Então, o que eu quis
dizer foi o seguinte: a Tatiana, depois disso, ela deu uma piorada. Então, em vez
dela pegar o exemplo bom, ela pegou aquele ruim, porque uma pessoa chegar a
344
beira da morte, isso não é uma coisa boa! Valéria: Ô Magali, desculpe eu estar
interrompendo, mas a coisa funciona assim, está dentro do doente. Ele... Num é que
a Tatiana pegou o que a outra falou, ela que não se aceita gorda. Magali: É. É. Não,
eu concordo, só que... Valéria: É esse o problema, é aquela agressão com ela
mesma. Magali: Eu tô dizendo, assim, porque ela comia demais e provocava o
vômito (fala mais baixo). Agora isso... Não tô falando que é culpa da menina, porque
ela... Todas ali se enquadram num caso muito sério, muito difícil, né? Eu assim, nem
levei assim em consideração. Procurei conversar com ela de outra maneira, né?
Porque a gente tá vendo uma pessoa doente, uma pessoa que eu creio que não tá
nem normal. Elas não tão nem normal. Pra mim eu acho assim, porque uma pessoa
assim em sã consciência mesmo, uma cabeça firme mesmo, ela vai querer levar uma
vida regrada, ela vai querer comer certinho direitinho. Não vai querer ficar doente,
não vão querer fazer isso, quer dizer, a partir do momento que elas fazem é porque
elas estão doente. Apesar de demorar muito também pra mim se conscientizar que
isso era uma doença. Então, um caso assim de informação da gente ter, da gente
saber da doença certinho eu só fui parar de brigar com a Tatiana depois que eu
entendi isso.
Magali inicia falando que a filha Tatiana, ao ouvir o relato de outra menina no
grupo, havia piorado, pois começou a seguir o exemplo dado por essa pessoa. O relato
teria sido de ter chegado aos "27 quilos" e não ter morrido, ao que a filha de Magali
haveria entendido que então poderia emagrecer mais e que também não morreria.
Para Magali, essa conversa fez a filha comer menos na mesma semana e piorar.
Segundo sua compreensão, a filha teria "pego o exemplo ruim" no relato no grupo, ao
345
invés de pegar exemplos "bons". Magali afirma que esse foi um exemplo ruim, pois
alguém que chega a "beira da morte" não é "coisa boa".
Sabe-se, através da leitura dos prontuários do serviço e pelos relatos dos
profissionais em outros contextos, que a filha de Valéria é um "dos casos da doença"
que chegou a um nível bastante crítico de emagrecimento, "beirando a morte". Assim,
pode-se hipotetizar que Valéria assumiu o relato de Magali como uma referência à
situação de sua filha Antônia. Essa hipótese é enfatizada pela explicação de Valéria de
que tal atitude da "paciente" teria sido em função da "doença" que está "dentro da
pessoa" e que a faz não querer ganhar peso.
Felipe traz a sua compreensão para a narrativa de Magali:
Felipe: Mas isso que se tá contando, né? Eu vou aproveitar pra fazer assim um
registro pra quem tá vindo aqui. É de que você tá contando que esse grupo te
ajudou a entender algumas coisas. Magali: Exatamente Felipe: Mas também te
ajudou a mudar o seu jeito de se relacionar com ela. Magali: Certo. Felipe: Hoje
você já se relaciona de um jeito diferente... Magali: Certo. Felipe: E eu fiquei
pensando: mas como é que ela conseguiu isso? Eu acho que você conseguiu isso
porque você teve contato com outras pessoas que tinham experiências diferentes da
tua. Luma: E se dispôs a pensar.
O coordenador Felipe parece entender que a pergunta de Magali, referente ao
grupo das pacientes, pode ser utilizada para a compreensão da diferença
(heterogeneidade) também presente no grupo de familiares.
346
Ele afirma que a experiência de ter o contato com pessoas diferentes pode
provocar impacto e questionamentos, como a angústia de não saber se seus familiares
vão melhorar ou não, mas que esse contato com a diferença também pode "ajudar a
entender algumas coisas", como aconteceu com Magali que pôde, após a sua
participação no grupo, melhorar o seu relacionamento com a filha:
Felipe: O que a gente escuta de um paciente que sente que ficou muito mal, de uma
paciente que não tá comendo há muito tempo, de que isso vai fazer com que a filha
de vocês piore, né? O medo de que elas fiquem aprendendo a piorar, a fazer coisas
cada vez piores, que eu acho que tem tudo a ver com o que a gente vive nesse grupo
aqui, né? Quando vocês chegam e escutam histórias, por exemplo, quando a Dona
Valéria conta a história dela, né? De como a filha dela tá, dos muitos anos da luta
dela, eu acho que isso tem um impacto em vocês, né? Eu acho que vocês estão se
perguntando assim: “Poxa... mas e eu?”, né? “Quanto tempo eu vou ter que
enfrentar essa doença?”, né? “Quanto tempo vai levar pra que ela melhore?”, né?
“E será que eu vou conseguir? Será que eu não vou conseguir?”. Ah, vocês também
tão escutando histórias que mexem com vocês, né? Mas eu acho que esse grupo é
pra isso mesmo, é pra que a gente conte as nossas histórias e que a gente pense
sobre elas, né? Porque também nessas histórias pode ter alívio, né? Vocês podem se
sentir mais aliviados. Podem pensar: não é verdade, acho que não tá tão ruim”.
Acho que nessas histórias tem muito aprendizado, né? Quando você fala que você
mudou o seu jeito e que a Valéria também tem mudado o jeito dela ao longo desse
tempo.
347
Felipe parece acreditar que a participação no grupo é para que os participantes
possam "contar suas histórias" e que essas histórias podem "mexer" com eles, mas
que são importantes, pois nessas histórias podem ser encontrados alívio e
aprendizado.
Valéria parece concordar com esse sentido:
Valéria: Porque não adianta você vir no grupo pra encontrar tranqüilidade, uma luz
lá no fundo do poço e chegar aqui ficar sentada e não falar nada. Aí, num resolve.
Então tem que por pra fora aquilo que você tá sentindo, porque tem que ser na
prática. Teórico não funciona!
Valéria parece encontrar na fala de Felipe uma oportunidade para
complementar seu sentido do grupo como espaço para todos poderem contar suas
histórias, mesmo que sejam histórias tristes. Ao valorizar os diferentes relatos no
grupo, o coordenador abre a oportunidade para Valéria defender o seu direito de "por
na prática" a sua experiência, ou seja, poder contar a sua história.
Valéria entende que se ficasse calada não poderia encontrar "tranqüilidade" e
uma "luz no fundo do poço" com relação ao seu problema. Então, parece fazer uso da
posição de autoridade do coordenador no grupo para validar seu lugar no grupo, não
tendo que se sentir discriminada ou um mau exemplo.
Magali, logo na seqüência, questiona Ronaldo sobre o que ajudou na melhora
de sua filha:
Magali: Então, que nem ele falou que a filha dele melhorou, né? Então eu queria
que ele falasse um pouco, né? Sobre como que agiu, como que foi, desde o começo,
348
porque eu acho que isso daí também é importante pra gente, né? Porque quando
cada um dá o depoimento, quando eu chego em casa eu vou parar e pensar: “Ai,
vou fazer isso, assim assim, assim” Então eu vou tirar, assim, um pouquinho do que
cada um falou e vou ver como é que eu vou fazer. Que nem ela falou que quando ela
vem se anima, as vezes eu tô em casa desanimada, aí eu paro pra pensar, nossa a
Dona Valéria, todos esses anos e tá firme e tá lutando, não desanimô, então eu
também não posso desanimar, eu tenho que ir em frente também, entendeu como
que é? Então eu procuro tirar um pouco. Você houve que muitas tenta, tenta e não
tá conseguindo, mas tem aqueles também que tentam e tá dando certo, né? Então
eu acho que tudo é importante pra gente poder conseguir ter um bom resultado,
né?
A pergunta de Magali dirigida a Ronaldo pode ser entendida como uma ação
complementar ao sentido dado pelo coordenador de poder significar o grupo como
espaço de aprendizagem. Esse sentido, além de ampliar as possibilidades da
participação grupal, propõe uma maneira alternativa dos participantes se
posicionarem no grupo e não apenas ficarem impactados com a diferença presente
entre os participantes.
Essa ampliação parece mudar a tonalidade da interação, saindo de movimentos
de culpabilização e segregação dos participantes para uma postura mais ativa de
engajar-se com o outro na busca de sentidos mais criativos e possibilitadores de
mudança.
Discussão
Nesse fragmento de sessão podemos perceber a diferença construída
marcando o distanciamento entre as pessoas. A distinção entre os casos "graves" e
349
não "graves", com relação aos sintomas dos transtornos alimentares, implica em
diferenciações entre os relatos dos participantes no grupo. Os relatos da gravidade da
doença são "perturbadores" e, portanto, provocam a estigmatização das pessoas que
trazem tais relatos.
Segundo Andersen (1998):
nós necessitamos ser 'perturbados' desde que as perturbações nos mantenham vivos e nos
tornem capazes de mudar de acordo com a transformação do mundo que nos rodeia. Mas
se as perturbações são muito diferentes do que nosso repertório é capaz de integrar, nós
nos desintegramos se as absorvermos. (p. 75).
O autor entende que a perturbação que a diferença promove é positiva no
sentido da promoção de transformação nas pessoas, mas se demasiada, poderia
provocar 'desintegração'.
Nesse grupo acontece a negociação sobre o valor das narrativas "dos casos
graves da doença" e do "mau exemplo" que elas poderiam ser para os participantes.
Os familiares e os coordenadores parecem debater a dupla função que essas narrativas
podem ter: como provocadoras ou generativas de mudança.
Os distintos relatos no grupo representam a multiplicidade de moralidades e
crenças possíveis nesse contexto, e esse momento da sessão denuncia a dificuldade
das pessoas de serem sensíveis a essa multiplicidade (Gergen & McNamee, 2000).
A resistência em significar positivamente a diferença no grupo permeia o
diálogo entre Valéria e Magali sobre o "exemplo ruim" no grupo de apoio aos
pacientes. A construção do sentido de Valéria para a explicação do que acontece com
350
a "menina" que traz o "exemplo ruim" às demais pacientes traz o discurso da
psicopatogênese do transtorno alimentar, muito comum no discurso psicológico e suas
teorias de entendimento desse fenômeno. Ao afirmar que essa pessoa agiu em função
da "doença" que está dentro dela, Valéria legitima esse discurso e se defende da
acusação (indireta) sobre sua filha.
Nessa situação, a construção da doença aparece como uma entidade que reside
no paciente e tem o controle sobre suas ações.
Percebe-se que o uso dos sentidos nas relações dentro do grupo não é fortuito,
e é sempre endereçado a alguém na interação. Quando o direcionamento dos sentidos
pode ser revelado na conversa, pode-se reconhecer a quais diferentes audiências as
pessoas se dirigem nos diversos momentos do grupo, e o reconhecimento dessas
audiências pode promover a reflexão sobre quais construções de mundo estão sendo
feitas a partir desse endereçamento (Gergen & McNamee, 2000).
Para Gergen e McNamee (2000) toda ação que traga uma voz alternativa
aumenta o potencial dialógico, aumentando as chances de transformação dos
sentidos. Seria a atitude de sair do monólogo com o mundo e incluir novas vozes que
possam integrar o repertório de construções dialógicas entre as pessoas.
Em suas intervenções, Felipe parece buscar uma maneira alternativa das
pessoas significarem a diferença no grupo, que não apenas como algo ruim e
"perturbador". Ao fazer isso, ele pode construir outras formas de compreensão dessas
diferenças promovendo o movimento de reaproximação entre as pessoas, como
acontece na interação entre Magali e Ronaldo no final do recorte da sessão.
351
Segundo Rasera e Japur (2006), o grupo ao colocar as pessoas em conversação
possibilita que elas possam perceber que os significados que dão para suas
experiências são muito semelhantes, ainda que possuam histórias e vivências distintas.
Esse sentido para o grupo como local de aparecimento de diferentes tipos de
vida, ainda que existam semelhanças e diferenças entre seus membros, parece ser
consoante com o sentido proposto por Felipe, do grupo como espaço de aproximação
entre as pessoas para a obtenção de aprendizagem e alívio.
Uma vez que as formas utilizadas pelas pessoas para se descreverem limitam
suas ações, a mudança de posicionamento pode favorecer o aparecimento de novas
interações (Lax, 1998). No grupo essa mudança acontece com a postura ativa tomada
por Magali ao buscar no grupo relatos de obtenção de melhoras da doença.
Conversar com os outros é, segundo Andersen (1998), uma maneira de se
definir e a conversa terapêutica é a busca de novas descrições, entendimentos e
sentidos. Essa busca parece ter sido empreendida nesse fragmento da sessão grupal.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
Andersen, T. (1998). Reflexões sobre a reflexão com as famílias (C. O. Dornelles, Trad.).
In S. McNamee & K. J. Gergen (Eds.), A terapia como construção social (pp. 6985). Porto Alegre, RS: Artes Médicas.
Gergen, K. J. (1994). Realities and relationships: Soundings in social construction.
London: Harvard University Press.
Gergen, K., & McNamee, S. (2000). From disordering discourse to transformative
352
dialogue. In R. Neimeyer & J. D. Raskin (Eds.), The construction of disorder (pp.
333-349). Washington: American Psychological Association Press.
Ibáñez, T. (1994). La construccion del conocimiento desde una perspectiva
socioconstrucionista. In M. Montero (Ed.), Conocimiento, realidad e ideología
(pp. 39-48). Caracas: Asociación Venezolana de Psicologia Social/AVEPSO.
Japur, M. (2004). Alteridade e grupo: uma perspectiva construcionista social. In L. M.
Simão & A. M. Martínez (Ed.), O outro no desenvolvimento humano: diálogos
para a pesquisa e a prática profissional em psicologia (pp. 145-170). São Paulo:
Pioneira Thomson Learning.
Lax, W. D. (1998). O pensamento pós-moderno na prática clínica (C. O. Dornelles,
Trad.). In S. McNamee & K. J. Gergen (Eds.), A terapia como construção social
(pp. 86-105). Porto Alegre, RS: Artes Médicas.
McNamee, S. (2004). Social construction as practical theory: lessons for practice and
reflection in psychotherapy. In D. Pare & G. Larner (Eds.), Critical knowledge and
practice in psychotherapy (pp. 10-26). New York: Haworth Press.
Rasera, E. F., & Japur, M. (2001). Contribuições do pensamento construcionista grupal
para o estudo da prática grupal. Psicologia: Reflexão e Crítica, 14, 201-209.
Rasera, E. F., & Japur, M. (2006). Sobre a preparação e a composição em terapia de
grupo: Descrições construcionistas sociais. Psicologia: Reflexão e Crítica, 19, 131141.
353
Santos, M. A., Oliveira, E. A., Moscheta, M. S., Ribeiro, R. P. P., & Santos, J. E. (2002).
Mulheres plenas de vazio: Aspectos familiares da anorexia nervosa. Vínculo, 1,
46-51.
Spink, M. J. P. & Frezza, R. M. (2000). Práticas discursivas e produção de sentidos: a
perspectiva da psicologia social. In M. J. P. Spink (Ed.), Práticas discursivas e
produção de sentidos no cotidiano: aproximações teóricas e metodológicas (pp.
7-39). São Paulo: Cortez.
Spink, M. J. P. & Menegon, V. M. (2000). A pesquisa como prática discursiva. In M. J. P.
Spink (Ed.), Práticas discursivas e produção de sentidos no cotidiano:
aproximações teóricas e metodológicas (pp. 63-92). São Paulo: Cortez.
Souza, L. V. & Santos, M. A. (2007). Grupo de familiares de pessoas com transtornos
alimentares: um espaço co-construído. Vínculo, 4, 38-47.
354
Candidatura 18
Autores: Ângela Menezes, Débora Cláudio, Nuno Sousa, Rui Tinoco, Margarida Azevedo, Maria
Neto & Delfina Nunes
Título: Programa de Alimentação Saudável em Saúde Escolar PASSE
355
Ministério da Saúde
Departamento de Saúde Pública
Dr.ª Ângela Menezes – coordenadora do programa
Departamento de Saúde Pública da Administração Regional de Saúde do Norte, I.P.
[email protected]
Drª Débora Cláudio
Departamento de Saúde Pública da Administração Regional de Saúde do Norte, I.P.
[email protected]
Dr Nuno Sousa
Departamento de Saúde Pública da Administração Regional de Saúde do Norte, I.P.
[email protected]
Dr. Rui Tinoco
Departamento de Saúde Pública da Administração Regional de Saúde do Norte, I.P.
[email protected]
Eng.ª Margarida Azevedo
Departamento de Saúde Pública da Administração Regional de Saúde do Norte, I.P.
[email protected]
Dr.ª Maria Neto
Departamento de Saúde Pública da Administração Regional de Saúde do Norte, I.P.
[email protected]
Dr.ª Delfina Antunes
356
Departamento de Saúde Pública da Administração Regional de Saúde do Norte, I.P.
[email protected]
Resumo:
O PASSE é um programa que operacionaliza o desenvolvimento de projectos no que respeita
ao determinante da saúde, alimentação saudável, de acordo com os objectivos do Programa
Nacional de Saúde Escolar (PNSE) integrando as dimensões organizacionais, ecológicas,
curriculares e comunitárias. As actividades são abordadas de forma integrada, intersectorial e
multidisciplinar, sendo a articulação entre a escola e a equipa de saúde escolar indispensável.
Após validação das dinâmicas durante o ano lectivo 2007/2008 conta neste ano lectivo com 30
escolas aderentes, 45 Turmas PASSE e 26 equipas de profissionais de saúde PASSE na Região
Norte.
Introdução:
A Organização Mundial de Saúde, no seu documento “Health for all”1, prevê que em 2015,
95% das crianças que frequentam a escola integrem estabelecimentos de ensino promotores
de saúde e define que a Escola Promotora de Saúde é aquela que inclui a educação para a
saúde no seu curriculum e possui actividades de saúde escolar, assumindo as três vertentes –
currículo, ambiente e interacção escola/família/meio.
A par do trabalho de transmissão de conhecimentos organizados em disciplinas, a escola deve
educar para os valores, promover a saúde, a formação e a participação cívica dos alunos, num
processo de aquisição de competências que sustentem as aprendizagens ao longo da vida e
promovam a autonomia.
357
Neste âmbito foi assinado em Portugal a 7 Fevereiro de 2006 um protocolo entre os
Ministérios da Educação e da Saúde, em que ambas as partes assumem responsabilidades
conjuntas no desenvolvimento de projectos de promoção da saúde em meio escolar.
O PASSE é um programa específico que pretende operacionalizar, de forma pragmática, o
desenvolvimento de projectos no que respeita ao determinante da saúde, alimentação
saudável, de acordo com os objectivos do Programa Nacional de Saúde Escolar (PNSE), com
actividades abordadas de forma integrada, intersectorial e multidisciplinar.
Fundamentação do Programa de Alimentação Saudável em Saúde Escolar - PASSE:
Fruta e vegetais
Segundo o estudo da OMS “Health Behaviour in School-Aged Children”2 e no qual Portugal
participou, as crianças e jovens escolarizados consomem diariamente pouca fruta e vegetais
(18 a 36%), havendo uma percentagem significativa que consome diariamente doces (20 a
28%) e refrigerantes (mais de um terço). Também se revelaram percentagens consideráveis
relativamente à obesidade e excesso de peso, tendo tais variáveis aumentado mais de 10 %
nos últimos 10 anos em Portugal. De acordo com dados da Organização Mundial da Saúde
(OMS), o baixo consumo de hortofrutícolas é responsável por cerca de 19% dos cancros
gastrointestinais, 31% da doença cardiovascular isquémica e por 11% dos enfartes3.
Alimentos ricos em açúcar, gordura e sal
As crianças e os jovens encontram-se rodeados de alimentos de elevada densidade energética,
ricos em açúcar, sal, gordura, atractivos, apaladados e de longa duração, mas em muitos casos
com fraca densidade nutricional. Em muitos países estes produtos são mais baratos e estão
358
disponíveis mais rapidamente do que as opções mais saudáveis, uma realidade que é
determinada predominantemente pelas políticas agrícolas, comerciais e alimentares4.
O papel da escola
O contexto da escola parece ser em simultâneo um factor de risco e um instrumento de apoio
para o bem-estar físico, emocional e social.
O grupo de pares é visto como um dos mecanismos pelos quais os comportamentos
relacionados com a saúde de jovens podem ser influenciados, e é particularmente responsável
pelo início e continuação do comportamento de risco. Os adolescentes podem adquirir as
competências sociais e de resolução de problemas através da interacção com o grupo de
pares. Estas competências têm efeitos na tomada de decisão, no estabelecimento de
prioridades, na resistência à pressão do grupo e na liderança.
É neste contexto que surge o Programa de Alimentação Saudável em Saúde Escolar (PASSE).
Este programa regional tem como base de trabalho as teorias ecológica e da aprendizagem
social e pretende:
- que a escola ofereça uma alimentação promotora de saúde;
-que o curriculum seja adequado à promoção da Alimentação Saudável;
- que o curriculum oculto (oferta no bar, cantina, máquinas de venda) seja coerente com o
explícito (aulas);
-que a comunidade escolar se envolva na melhoria das ofertas alimentares nos espaços periescolares;
-que os alunos adquiram competências pessoais de auto-conceito e auto-estima
359
-que os alunos adquiram competências de tomada de decisão, nomeadamente alimentares;
- que os alunos desenvolvam atitudes e crenças tendentes a escolhas responsáveis e
conscientes;
As principais potencialidades do programa são:
- constituir-se um modelo estruturado pronto a ser implementado e disponibilizar materiais já
preparados e prontos a serem utilizados (evita duplicação de trabalho dos profissionais de
saúde);
- normalizar procedimentos das equipas dos centros de saúde;
- envolver equipas multiprofissionais - permitindo a real participação de diferentes áreas do
saber, nos Centros de Saúde;
- envolver toda a comunidade escolar (órgão de gestão, professores, professores parceiros,
alunos, pais, manipuladores de alimentos );
- aplicar metodologias adaptadas a cada parceiro da comunidade escolar;
- possibilitar a adaptação a diferentes níveis de ensino;
-constituir um estímulo recíproco (saúde/educação) para a implementação e avaliação
contínua do projecto;
- permitir agilizar a implementação de programas de promoção da saúde em alimentação;
Finalmente, a equipa regional do PASSE pretende contribuir para o desenvolvimento do
programa nacional de saúde escolar na região norte, no que concerne ao programa de
alimentação saudável através da consultoria na implementação dos modelos do PASSE e da
harmonização de procedimentos e boas práticas
360
Dada a sua especificidade, o PASSE inclui documentos para cada uma das áreas, níveis de
ensino e dimensões de intervenção na comunidade escolar para a promoção de estilos de vida
saudáveis e prevenção de determinados comportamentos de risco nos determinantes da
saúde alimentação/actividade física, saúde mental e consumerismo.
A dimensão e complexidade deste programa obrigam a que se inicie primeiramente por um
dos níveis de ensino.
Considerando que o Ministério da Educação está a trabalhar a oferta alimentar nas escolas, o
PASSE decidiu conceber em primeiro lugar um programa que promova competências
informativas, de atitudes e de tomadas de decisão nos alunos de 1º ciclo do Ensino Básico.
Nível do 1º Ciclo - Alunos
No que diz respeito ao 1º ciclo, escolheu-se o 3º Ano como “ano motor” que terá como um dos
objectivos, que os alunos promovam a disseminação das suas aprendizagens aos restantes
anos. Os 1º, 2º e 4º anos verão o seu currículo normal a integrar actividades que amplificam as
mensagens do PASSE.
O programa de 2º ano contempla as recomendações para uma alimentação saudável, pelo que
a oportunidade de consolidar conhecimentos surge no 3º ano, que sendo o ano “motor”,
permite a avaliação 12 meses após intervenção, no 4º ano.
Objectivos Gerais:
Relativos a alunos:
•
Aquisição de competências pessoais de auto-conceito, auto-estima e de tomada de
decisão.
361
•
Aumento de intenção de escolhas de consumo de alimentos de acordo com as
recomendações alimentares para a população portuguesa, nomeadamente as
veiculadas pela Roda dos Alimentos.
•
Diminuição de intenção de escolhas do consumo de alimentos ricos em açúcar, sal e
gorduras, particularmente guloseimas, refrigerantes e salgadinhos.
Relativos à oferta alimentar:
•
Colaborar no aumento de disponibilidade de alimentos e refeições saudáveis em
cantinas, bares e máquinas de venda escolares;
•
Contribuir para o aumento da percentagem de pais/encarregados de educação que
preparam merendas saudáveis para os alunos.
Actividades:
1ª Fase:
Concepção do programa por níveis de ensino e actores:
a) Programa para alunos do 1º ciclo - intervenção directa no 3º ano
b) Intervenção indirecta, no currículo dos restantes anos
c) Manipuladores de alimentos e Serviço de Alimentação
Validação interna:
a) Discussão crítica com professor do 3º ano do 1º CEB – Setembro de 2007;
362
b) Discussão crítica com psicólogos, nutricionistas e coordenadores de Saúde Escolar de 3
Centros de Saúde + equipa coordenadora do PASSE – DSP – Dezembro / Janeiro de 2008;
c) Validação das sessões e materiais a usar com os alunos– Fevereiro a Junho de 2008,
incluindo reuniões com os Agrupamentos de Escolas seleccionados, reuniões com os
professores das turmas em questão, agendamento das sessões e da aplicação dos
questionários para validação.
Para a validação interna do nível alunos com as 15 sessões:
a) Aplicaram-se os questionários em 11 turmas em 3 momentos diferentes:
1º: pré-teste em Janeiro/Fevereiro de 2008 ( 3 turmas do concelho do Porto)
2º: 4 turmas intervencionadas (teste piloto) e 4 turmas controlo piloto- Fevereiro de 2008 e
Junho de 2008
3º : 4 turmas intervencionadas (teste piloto) e 4 turmas controlo – Novembro de 2008
b) Intervenção em sala de aula utilizando o manual com as 15 sessões do PASSE alunos,
dinamizadas por equipas de psicólogos e nutricionistas e com a presença crítica do
professor da turma teste.
2ª Fase:
Reformulação das sessões do programa ao nível de alunos de 1º CEB, de acordo com as
conclusões da validação interna.
3ª Fase:
Formação das equipas de Saúde Escolar aderentes ao Programa PASSE (nutricionistas,
psicólogos e coordenadores de equipas de saúde escolar – de Julho a Novembro de 2008)
4ª Fase:
363
Implementação
do
PASSE
no
1º
Ciclo
do
Ensino
Básico
no ano lectivo 2008/09 pelas equipas de Saúde Escolar PASSE dos Centros de Saúde aderentes
(26 equipas até Dezembro de 2008 que incluem 30 escolas e 45 turmas PASSE).
Linhas condutoras da implementação do PASSE:
1- Organizacionais
a) criação da equipa local do programa: Equipa de Saúde Escolar, turmas, Professores
parceiros, Interlocutores do órgão de gestão e da Associação de Pais;
b) integração das actividades do PASSE no projecto educativo da escola para o ano
lectivo;
c) definição das fases de intervenção do PASSE (implementação, avaliação) e dos papéis
e tarefas de cada parceiro;
d) definição de um orçamento específico para implementação local do PASSE.
2- Curriculares
a) Conteúdos curriculares para cada nível de ensino– áreas em que se inserem,
possibilidade do seu desenvolvimento na Formação Cívica, Área Projecto ou Estudo
Acompanhado;
b) Articulação coerente das actividades entre os diferentes níveis de ensino;
c) Articulação das actividades curriculares com actividades extra-curriculares.
3- Ecológicas
a) Apoio na oferta de refeições escolares equilibradas e saudáveis ao almoço e lanches;
b) Consultoria no cumprimento das regras básicas de confecção e manipulação de
alimentos ;
364
c) Consultoria nos objectivos PASSE para gestão, rentabilização e decoração dos espaços
de alimentação colectiva .
4- Psicossociais
a) Sugestões para envolvimento da comunidade educativa nas actividades do programa;
b) Utilização de metodologias activas-participativas;
c) Incentivo para o desenvolvimento de um bom relacionamento intra e inter-pessoal;
5- Comunitárias
a) Apoio e incentivo ao envolvimento extra-escolar da comunidade educativa
6- Indicadores de saúde positivas
a) Avaliação de conhecimentos, atitudes e intenções de comportamento.
I. Acções a desenvolver com profissionais de saúde
1. Formação das equipas de profissionais de saúde no Programa PASSE ;
2. Reuniões com Agrupamentos de Centros de Saúde no sentido de se articularem os
Técnicos Superiores de Saúde (nutricionistas e psicólogos clínicos) nas Unidades de
Recursos Assistenciais Partilhados (URAP) e Unidades de Saúde Pública (USP) dos
Agrupamentos de Centros de Saúde.
II. Acções a desenvolver com o Órgão de Gestão da Escola:
1. Marketing adequado do PASSE;
2. Avaliar condições higiénicas, estruturais e de funcionamento das áreas de alimentação
colectiva;
3. Parecer técnico sobre as ementas e refeições oferecidas na escola;
4. Promoção da venda de alimentos saudáveis a preços reduzidos;
5. Apoio técnico sob forma de parecer, sobre o caderno de encargos de fornecedores
alimentares da escola/agrupamento
365
III. Acções a desenvolver com professores parceiros
Sugestão de material de apoio para promoção do PASSE integrado no curriculum,
aprofundamento de conceitos, quer em alimentação/nutrição, actividade física, quer em
psicologia da saúde;
IV. Acções a desenvolver com manipuladores de alimentos
Sugestão de material de apoio para promoção do PASSE integrado na formação
profissional contínua anual e/ou formação específica para aquisição de competências de
auto-eficácia na influência positiva aos alunos, de comportamentos responsáveis na área
alimentar.
V. Acções a desenvolver com pais e encarregados de educação
Sugestão de material de apoio para promoção do PASSE para reuniões com pais,
associação de pais e encarregados de educação.
VI. Acções a desenvolver com comunidade peri-escolar
Sugestão de material de apoio para promoção do PASSE na comunidade que envolve a
escola e com os seus principais parceiros, nomeadamente autarquia ou Junta de
freguesia, fornecedores, empresas privadas incluindo as de transportes e comerciantes.
Articulações
O PASSE procura articular com parceiros com protocolos com a ARS Norte, IP, como o
Ministério da Educação com a DREN, Universidades e outros organismos públicos e privados.
Bibliografia:
366
1 World Health Organization Regional Office for Europe. The Health for All policy framework
for the WHO European Region: 2005 update. Regional Committee for Europe. Fifty-fifth session
(http://www.euro.who.int/Document/RC55/edoc08.pdf, accessed 1 Nov. 2005).
2 Currie C et al., eds. Inequalities in young people's health: HBSC international report from the
2005/2006 Survey. Copenhagen, WHO Regional Office for Europe, 2008 (Health Policy for
Children and Adolescents, No. 5)
3.Preventing chronic diseases: a vital investment. Geneva, World Health Organization, 2005.
4. Story, M., Neumark-Sztainer, D., French, AS., Individual and environmental influences on
adolescent eating behaviors. Journal of the American Dietetic Association, 2002,102,40-51.
ANEXO – índice do Manual PASSE nível alunos 3º ANO:
Nível Alunos – 3º Ano 1º CEB
Índice
Introdução ______________________________________________
1. - Modelos de Promoção da Saúde ________________________
2. - Competências básicas do dinamizador __________________
2.1. – Competências pessoais ____________________________
2.2. - Trabalho em pequeno e grande grupo ________________
3. - Contexto de aplicação __________________________________
367
4. - Estratégias de disseminação ____________________________
5. – Sinergias curriculares ________________________________
Módulo I Apresentação, constituição do grupo e variáveis genéricas _
Sessão 1 – Jogamos com regras! _________________________
Sessão 2 – Juntos conseguimos! __________________________
Sessão 3 – Somos únicos e insubstituíveis __________________
Sessão 4 – Aprender a admirar ____________________________
Módulo II Jogos de Aprender ________________________________
Sessão 5 - Os alimentos e os cinco sentidos _________________
Sessão 6 – As famílias dos alimentos ______________________
Sessão 7 – Um passeio pelo País dos Alimentos ______________
Sessão 8 – Correntes de energia ____________________
Sessão 9 – Sei fazer substituições! _________________________
Sessão 10 – Tenho olhos mas não consigo ver _______________
Módulo III As escolhas certas _______________________________
Sessão 11 – Decidimos o que comemos? ____________________
Sessão 12 – Os alimentos que vêm ter connosco _____________
Sessão 13 – Às vezes, faço o que não quero ________________
Módulo IV Dinâmicas de finalização e Avaliação do Programa ____
368
Sessão 14 – Os grupos também têm um fim ________________
Sessão 15 – Agora é comigo _____________________________
369
Candidatura 19
Autores: José Canesim, Áurea Reis, Fernanda Mishima & Valéria Barbieri
Título: A Entrevista Devolutiva Infantil: Utilização de Recursos na Áera da Transicionalidade
370
A Entrevista Devolutiva Infantil: Utilização de Recursos na Área da Transicionalidade
José Danilo Chiaratti Canesin – [email protected]
Áurea Nascente Junqueira Reis – [email protected]
Fernanda Kimie Tavares Mishima – [email protected]
Valéria Barbieri – [email protected]
Faculdade de Filosofia Ciências e Letras de Ribeirão Preto
Universidade de São Paulo
Brasil
INTRODUÇÃO
O atendimento psicoterápico infantil teve início ainda em Freud (1909/1976) com a
análise do caso do pequeno Hans, em que ele atuava como supervisor do pai da criança,
orientando sua conduta e sua escuta de forma psicanalítica. Segundo o próprio Freud
(1909/1976), a psicanálise não seria possível em crianças devido à dificuldade de comunicação
verbal no atendimento para a criança e às resistências dos pais. Ocorre que, a partir do caso
Hans, outros psicanalistas começaram a trabalhar técnicas para acolhimento deste novo
público.
O diagnóstico e atendimento psicoterápico infantil devem muito de sua especificidade
aos trabalhos de Klein (1932/1997), destacando-se, entre suas contribuições, a indicação da
primazia da expressão pré-verbal por parte desta população. A proposta técnica de Klein foi
sustentada em desenvolvimentos teóricos relevantes acerca do predomínio do processo
primário de funcionamento mental na criança, caracterizado principalmente pelo pensamento
por imagens (e conseqüente uso da metáfora), temporalidade, deslocamento e condensação.
371
Klein (1932/1997) entendeu que a criança expressa suas fantasias e desejos, bem
como suas experiências reais, por meio de brincadeiras e jogos. A criança usa o pensamento
metafórico e simbólico como representação de uma idéia, devido a sua falta de recursos para
expressar verbalmente o que é sentido. Este conceito se assemelha à linguagem dos sonhos,
sendo que, para analisar estes conteúdos, deve-se usar os mesmos procedimentos da análise
dos sonhos propostos por Freud (1899/1976).
Além disso, Klein (1932/1997) considerou as fantasias como forma de expressão
mental dos instintos, relacionando-os com a realidade externa e vice-versa, que levam a
entender o ambiente, e a forma pela qual a criança o internaliza, como fatores importantes no
desenvolvimento infantil. A manifestação da fantasia pela compulsão à repetição seria uma
condutora da expressão da angústia infantil, mostrada de forma direta ou permeada por
mecanismos de defesa a serem nomeados e interpretados.
Para Klein (1932/1997), caberia ao analista de crianças, por meio da técnica do brincar,
transformar em palavras aquilo que a criança demonstra em gestos, conseqüentemente, isso a
ajudaria no processo de simbolização.
Dessa forma, com raras exceções, na prática kleiniana tradicional, o emprego
de formas consideradas como mais arcaicas de expressão por parte da criança não é
acompanhada por interpretações do profissional neste mesmo nível, que permanece
predominantemente verbal e mais sofisticado em termos da evolução afetiva. Assim, o
psicólogo acaba se distanciando de seu paciente.
Nesse sentido, estudos posteriores de winnicott (1971/1975) ampliaram a
compreensão das funções do brincar, que, além de forma de expressão, adquiriu
também o sentido de atividade fundamental, promotora do desenvolvimento afetivo.
A brincadeira infantil passou a ser considerada uma expressão de impulsos agressivos
372
em um ambiente protegido, sem a possibilidade de retaliação, sendo o meio ambiente
favorável aquele que acolhe este brincar e o aceita. Também em winnicott
(1971/1995), o brincar assume a forma de objeto de estudo, e não apenas uma forma
de comunicação.
Para atingir a experiência da brincadeira é preciso que a criança tenha passado
pela experiência da ilusão/desilusão, que só é possível com a participação da mãe
(winnicott, 1971/1975). Esta participação advém da identificação da mãe com seu
bebê, ao acolher as necessidades deste e possibilitar que ele tenha a idéia de que pode
criar e controlar o meio (em um estágio denominado de dependência absoluta). Esta
adaptação da mãe às necessidades do bebê torna-se cada vez menos precisa com o
passar do tempo, ou seja, a mãe comete falhas graduais que permitem ao bebê ter
frustrações e, assim, lidar com elas, em um processo conhecido por desilusão.
Posteriormente, o bebê percebe que nem tudo aquilo que ele deseja ele pode ter,
havendo uma diferenciação entre seu mundo interno e o mundo externo, fazendo com
que o bebê passe de criador do espaço a usuário deste. O processo de desilusão
proporciona ao bebê reconhecer o elemento ilusório, e, diferenciá-lo dos objetos reais.
Durante a diferenciação entre o eu e o não-eu, em que a criança começa a discriminar
a realidade interna da realidade externa, cria-se um estado de tensão, que é aliviado
pelo surgimento de um espaço transicional que permite o trânsito entre eles. É neste
espaço que se inserem o brincar da criança, a arte, a religião e a imaginação.
Na vivência da transicionalidade, há o uso do objeto transicional, que representa tanto
o mundo interno quanto o mundo externo para o bebê, ou seja, é representante do mundo
conhecido (fusão com a mãe) com o desconhecido (mundo separado). É este objeto o
responsável pela integração sujeito-objeto e promotor do aparecimento dos símbolos. O
373
objeto transicional é assumido pelo bebê como algo que pode ser amado, acariciado e
também odiado, mutilado, e que sobrevive a todo tipo de sentimento, é parte de si e, ao
mesmo tempo, é do mundo exterior (Winnicott, 1971/1975).
Nesta fronteira entre a fantasia e a realidade situa-se o brincar, localizado em um
espaço entre o não-eu e a subjetividade que Winnicott (1971/1975) chamou de espaço
potencial. A partir desta experiência o bebê tolera a ausência da mãe, substituindo-a por algo
da realidade. Esta experiência não desaparece por completo na idade adulta.
Diferentemente da proposta kleiniana, em que o psicólogo interpretava o brincar da
criança de forma verbal, a proposta winnicottiana das consultas terapêuticas com o uso do
jogo dos rabiscos estabelece um nível mais simétrico de comunicação entre o psicólogo e o
paciente, uma vez que sua ênfase não é tanto tornar consciente o inconsciente, mas sim
promover uma movimentação psíquica, capaz de proporcionar ao indivíduo a retomada de seu
desenvolvimento (Winnicott, 1971/1984). Além do jogo dos rabiscos, outros procedimentos
são capazes de promover o surgimento do espaço e dos fenômenos transicionais, sendo o uso
de estórias um dos mais conhecidos.
Para Safra (1984), o processo de identificação materna primária é necessário à relação
mãe – bebê, para que possa ocorrer a incorporação do id pelo ego, integrando-o ao processo
secundário. Por meio do processo de introjeção a criança chega à independência, após passar
pelo estágio de dependência absoluta e relativa em relação à mãe.
Há a idéia da tendência natural da criança ao desenvolvimento, sendo que as
dificuldades de elaboração de conflitos psíquicos acarretariam a formação do sintoma. A
representação do sintoma, na criança, se dá por vias lingüísticas ou plásticas, e a
transformação da angústia em pensamento é mais eficiente quando realizada em um espaço
transicional. Dentro do ambiente terapêutico há um período de hesitação, em que a criança
374
experimenta o ambiente, e é neste ponto que se insere a estória. Com ela, apresenta-se à
criança algumas idéias sobre o seu conflito e a resolução deles, causando uma identificação e,
ao mesmo tempo, dando a ela recursos para expressão de suas angústias, sem que haja a
invasão da interpretação, que poderia resultar em uma reação improdutiva.
O uso da estória produz um vínculo com o psicólogo que segue por muito tempo,
fenômeno que Safra considera possível graças ao fato de a estória atuar no espaço
transicional. São experiências que enriquecem o self, pois proporcionam a criança a se
conhecer e elaborar suas angustias de forma criativa.
Nessa mesma direção, Hisada (1998) faz uso das estórias também com adultos.
Segundo ela, quando o conteúdo é muito intenso as angústias ficam mais próximas do préverbal, por pertencerem a um nível mais inconsciente e primitivo, o que impossibilita o
paciente de representar o sintoma através de códigos lingüísticos. Hisada considera o uso e a
elaboração da estória um processo criativo, como o que é usado por poetas, pintores e no
teatro, capaz de liberar conteúdos internos e de ajudar a promover a integração do self
possibilitando ao paciente expressar-se.
Embora seja bastante difundido o uso que o profissional pode fazer das estórias
elaboradas por seu paciente como um método que informa sobre os processos inconscientes
deste último (fantasias, angústias e defesas), há raros estudos científicos sistematizados
referentes ao uso que o psicólogo pode fazer desses instrumentos mediadores de sua
comunicação com o paciente. Nesse contexto, fazer uso das estórias como um meio de
transmissão de seus assinalamentos e interpretações do material produzido pela criança, pode
possibilitar a inserção da sua comunicação no âmbito do espaço transicional, tornando-a mais
compatível com as capacidades de apreensão do seu pequeno paciente, ou seja, próxima do
processo primário de pensamento.
375
Diante dessas considerações, o presente estudo tem como objetivo apresentar as
possibilidades do uso de estórias na realização de entrevistas devolutivas com crianças
submetidas a um processo de triagem para atendimento psicológico. Para tanto, é
apresentado o estudo de caso de uma criança adotada de seis anos de idade, do sexo
feminino, que foi atendida no Setor de Triagem e Atendimento Infantil e Familiar (STAIF) do
Centro de Pesquisa e Psicologia Aplicada – CPA, da Faculdade de Filosofia Ciências e Letras de
Ribeirão Preto (FFCLRP-USP). No momento da devolutiva o procedimento usado foi a
intermediação por meio de estórias, debatendo-se ao final suas contribuições e limites.
DESCRIÇÃO DO CASO
Entrevista inicial com a mãe
A mãe, Eunice22, tem 53 anos, está divorciada a um ano, e mora sozinha com seus dois
filhos adotivos, um menino, que será chamado de Júlio, adotado recém nascido, e uma menina
que será chamada de Mariana, adotada com um ano e nove meses, ambos com 6 anos de
idade.
Eunice é a segunda filha de três irmãos, e diz que em sua família de origem havia
muitos conflitos entre os membros, o que a fez pensar que não iria constituir uma família
própria para não repetir a mesma história. Casou-se e não quis ter filhos. Ela contou que
quando estava com 45 anos de idade, e sete anos de casada, assistiu a uma cerimônia de
casamento e sentiu que a maternidade havia “amadurecido” nela (sic). Então, foi procurar, na
Medicina Reprodutiva, uma maneira de ter filhos, devido à sua idade já avançada para uma
gravidez natural. Ela expressou este desejo a seu marido, mas ele não esboçou nenhuma
reação, segundo seu relato. Mesmo assim, ela fez os exames médicos e, no mês em que
22
Estes nomes são fictícios, a fim de preservar a identidade dos participantes.
376
começaria um tratamento hormonal, o marido disse-lhe que não queria filhos. Ela então
resolveu adiar o tratamento, mas não desistiu dele. Alguns dias depois, ficou sabendo de uma
jovem, grávida de sete meses e que não queria o filho. Conseguiu contato com ela e resolveu
adotar esta criança, porém, não avisou ninguém desse projeto. Quando Júlio nasceu, ela o
levou para casa e disse para o marido: “agora você escolhe se vai ser papai ou titio” (sic).
Depois de um ano e nove meses com o menino, ela sentiu vontade de adotar outra criança.
Quando o juiz determinou a disponibilidade de Mariana para adoção, Eunice, na fila
de espera, era a quinta interessada, mas como nenhum dos outros quatro casais foi
encontrado, ela conseguiu adotar a menina.
Eunice disse o que a assistente social sabia sobre os primeiros meses de vida de
Mariana. Contou que a mãe biológica não a queria e deixou o bebê no asfalto para morrer.
Depois, o Conselho Tutelar determinou que a guarda da menina ficaria para o avô
materno, que neste momento estava casado com uma mulher de 20 anos de idade, com três
filhos pequenos e grávida do quarto filho. Mariana vivia abandonada, sendo que a sua
avó/madrasta cuidava somente dos próprios filhos. E. disse que Mariana comia só o que
sobrava das outras crianças, acostumando-se a pegar o que caía no chão, hábito que até hoje a
menina tem, e que a mãe adotiva tenta eliminar.
Mariana ficou com o avô até o processo de adoção ser concluído. A mãe adotiva disse
que se apaixonou pela menina quando a viu. Com 1 ano e 9 meses de idade, ela media 75
centímetros e pesava 7 quilos. Estava subnutrida e suja. Somente a vacinação estava correta,
pois a cada vacina, a família ganhava um litro de leite do Centro de Saúde. Mariana já andava e
falava algumas coisas como “mamã” e “papá”. A chegada na nova casa foi de difícil adaptação.
A menina só parava de chorar se estivesse no colo da mãe adotiva e se esta ficasse de pé. A
criança estava acostumada a dormir no chão, por isso não conseguia dormir na cama. A mãe
377
adotiva pegou um colchão fino e dormia com a menina para ela ir aos poucos se acostumando
à nova situação. Até os cinco anos, as duas crianças dormiam com a mãe. Foram para um
quarto separado no ano do divórcio dos pais adotivos.
Segundo o relato da mãe, Júlio é maior que as crianças de sua idade, tem alergia e é
muito dependente para tudo. Eunice acha que ele sente medo de perdê-la. A menina já é
muito independente. Faz tudo sozinha, se veste e tem opiniões próprias. É muito exigente e
insatisfeita. A mãe disse que achava isso normal, porém a pediatra das crianças disse que não
era o caso. O relacionamento entre os irmãos foi referido como bom, embora eles não
brinquem juntos, principalmente se há outra criança envolvida. Nestes casos, Mariana não
deixa seu irmão participar da brincadeira, ou não brinca. Na escola acontece o mesmo.
Mariana quer tudo o que o irmão tem, tudo que ele vai fazer ela também quer para si.
A queixa de Eunice é referente à exigência da filha. Diz que a menina tudo quer, e se
não tem tudo que deseja na hora, chora. Seu choro dura muito tempo, em torno de uma hora.
A mãe vai conversar com ela e a menina diz que não consegue parar de chorar. Durante seu
choro, fala que a mãe não a ama.
A mãe, ao revelar sua vida infantil, mostra um ambiente falho em termos de sua
família de origem, que deixou marcas no modo como ocorreu seu desenvolvimento psíquico,
mostrado de forma clara por sua necessidade de manipulação do meio. Busca reparar suas
feridas narcisícas advindas da pouca continência afetiva que recebeu dos próprios pais e do
atendimento insuficiente das necessidades infantis adotando uma postura de “salvadora”, o
que reflete um ideal de ego bastante exigente com o qual tenta se identificar, o que leva a
instauração de uma personalidade do tipo falso-self ou “como se”.
Deste modo, a maternidade chega para esta mãe como uma possibilidade de
salvamento, sendo a filha adotiva um meio para satisfazer sua necessidade de assegurar-se da
378
própria bondade e atingir assim as demandas do ideal de ego. Dentre estas, encontra-se a de
que ser uma boa mãe implica em tudo fazer pelo filho, o que leva a manter com eles um
relacionamento fusional que, embora adequado no inicio de suas vidas, permanece ao longo
do desenvolvimento deles, comprometendo o alcance da independência. Deste modo, a mãe
encontra-se paralisada e sem recursos para sair deste processo, impedindo seus filhos de
diferenciar-se dela.
Descrição da Sessão Lúdica
Inicialmente, Mariana estava tímida. Logo que viu a caixa lúdica, perguntou o que era. O
psicólogo explicou que era uma caixa de brinquedos e que ela poderia ver as coisas que
tinham lá dentro. Então, ela abriu a caixa e começou a explorar os brinquedos. A caixa foi
colocada no chão pelo psicólogo, pois assim ficava mais fácil para ela ver. Então foi tirando
uns brinquedos. Viu o quebra-cabeça e disse que iria brincar com ele depois. Achou o
telefone celular e ficou bastante tempo apertando os números e ouvindo os barulhos,
enquanto olhava a caixa. Pegou a família e olhou. Perguntou-me quem era uma das figuras,
e o psicólogo disse que achava que era a bisavó. Ela então pôs em cima da mesa e voltou
para a caixa.
Continuou a mexer na caixa e achou a espada. Ao pegar a espada, esticou-a até o
limite, forçando um pouco. Levantou com a espada na mão e pôs na mesa. Voltou para a caixa.
Pegou o revolver e apontou para o psicólogo. Disse: “mãos ao alto”. Ele levantou as mãos.
Então ela pôs o revólver de volta na caixa e pegou a espada. Esticou-a de novo e apontou para
rosto do psicólogo, com um sorriso, e então deu uma espadada no braço dele, que logo
respondeu: “Você me bateu. Mas eu ainda estou aqui”.
Pegou o jogo de palitos e disse que queria jogar. Soltava muito forte, as peças, sendo
que elas ficavam espalhadas pela mesa. Disse que era ela quem começaria. Explicou ao
psicólogo que não podia mexer os outros palitos. Jogaram duas partidas em que ela disse que
começaria e que ela ganhou, mostrando muito prazer com isso. Ela mexia alguns palitos e
379
quando era questionada, mentiu que não mexeu. Então, voltou para a caixa. Separou o quebra
cabeça e disse que jogaria depois. Levantou-se e foi para a lousa, e escreveu o nome do
psicólogo. Depois apagou e escreveu o nome da escola.
Ela se sentou e pegou o quebra cabeça, começou a montar com ajuda do psicólogo. Ela
pediu para ele separar as peças que estavam coladas. Enquanto ele fazia isso, ela foi virando as
peças. Quando o psicólogo terminou, começaram a montar. Ela juntou duas peças e
continuava procurando quando o psicólogo perguntou se ela sabia o porquê de estar ali. Ela
disse que não sabia. Desistiu do quebra-cabeça e voltou para a caixa. Interessou-se pela
tesoura e pela cola. Então disse que queria desenhar. Pegou o papel e o lápis de cor. Pegou o
guache também. O psicólogo foi até a pia com a vasilha e pôs água. Ela se sentou e começou a
desenhar com a tinta, perguntando se ele sabia o que ela estava fazendo. Ele disse que não
sabia. Ela pediu que ele esperasse ficar pronto. Ela desenhou uma flor.
Depois pegou outra folha e começou a desenhar com o lápis de cor. Fez uma cabeça e
depois o corpo de uma menina. Começou a fazer os braços. Quando chegava à mão, rabiscava
uma bola olhando para o psicólogo. Fez isso nos dois braços e então disse que não queria mais
desenhar. Voltou para a caixa e pegou o jogo “Resta Um”. Colocando o mico na mesa dizendo
que era para depois.
O psicólogo pegou o jogo que estava em um saco plástico e ia tentando tirar o nó
quando ela disse que o tiraria e arrancou o saco da mão dele, como não conseguiu desatar o
nó, devolveu o saco plástico para o psicólogo. Quando ele estava quase desamarrando, ela
quis tomar dele novamente, mas ele disse que já havia soltado. O psicólogo colocou o jogo na
mesa e perguntou se ela sabia jogar. Não teve resposta. A menina pôs uma peça no tabuleiro e
disse que era vez dele. Ele colocou uma peça e então ela separou algumas peças e pegou as
outras. Quando as dele acabaram, ela o deu um pouco das suas até que completaram o
tabuleiro.
380
Disse que não queira mais brincar disso e o mandou guardar as peças. Depois de
guardadas, falou que queria brincar de mico. O psicólogo pegou o baralho e disse que ia ver as
regras, mas ela quis ver também.
Pegou o baralho e distribuiu na mesa. Jogaram o jogo da memória. Quando estava no
fim, restando somente um par e o mico e era a vez dela, ela virou uma carta, era o mico,
desvirou em seguida e pegou o par. Aí contou quantos tinha. O psicólogo perguntou quem
ganhou, e ela contou os dele e disse que ele tinha ganhado, mas mais do que depressa pôs as
cartas novamente na mesa e disse para ele começar. Desta vez, ela ganhou. Durante este jogo
o psicólogo assinalou o fim da sessão. Ela disse, então, que queria fazer outra coisa.
Pegou um papel, a cola e a tesoura. Começou a jogar cola no papel, e espalhar com o
pincel. Jogou cola em toda folha. O psicólogo disse que havia terminado o tempo, mas ela fez
que nem ouviu. Continuou a jogar cola. Ele disse novamente que havia acabado o tempo e ela
perguntou por que. Ele disse que era este o tempo que a eles tinham para brincar e falou que
da próxima vez iria chamar o seu irmão e a mãe para brincar também. Ela se levantou e eles
saíram da sala.
Análise Geral do Caso
A sessão lúdica indicou um desenvolvimento motor e intelectual normal, de acordo
com a idade. Porém, suas escolhas de brinquedos sugeriram uma ansiedade quanto à família
atual e a de origem.
Como já estudado, na primeira infância, o bebe precisa se sentir cuidado, isto vai
determinar o processo de ilusão de onipotência, desilusão e criação do principio de realidade.
O estudo do caso mostra uma falha desse processo, que pode ter impedido a essa criança a
381
diferenciação entre necessidade e desejo. Esta indiferenciação faz com que tudo o que não é
satisfeito se torne ameaçador ocasionando uma intolerância à frustração. Diante da
dificuldade da mãe de suportar os gritos e exigências da filha, os desejos são totalmente
satisfeitos, e o ambiente fica altamente sedutor, o que não permite a filha lidar de modo
criativo com suas frustrações, buscando saciar-se de forma imediata e concreta.
O pensamento mágico, segundo Winnicott (1979/1983), faz com que o objeto se
comporte segundo leis mágicas, existindo quando é pensado, aproximando quando
aproximado, machucando quando é machucado e desaparecendo quando não é mais
desejado. Esta situação acarretava grande sofrimento, pois a mãe, ao realizar todos os desejos
da filha, assumia uma postura de sedução, satisfazendo o id, mas comprometendo o
desenvolvimento do self. Ainda tentando proporcionar satisfação completa, incrementava a
angústia da criança, já que a gratificação total gerava um sentimento de não mais necessitar
do objeto, e, portanto, aniquilá-lo. A dificuldade da mãe de passar do processo fusional,
conferindo a filha uma personalidade própria, faz com ela busque na figura do analista alguém
que consiga fazer o papel de figura paterna, e a ajude a sair de um vinculo simbiótico com a
mãe. . Assim, a estória composta para a entrevista devolutiva com a criança levou estes pontos
em consideração.
Descrição da estória
Catarina e o Rouxinol
Era uma vez uma linda princesa chamada Catarina. Ela morava em um lindo castelo cor
de rosa cheio de torres e bandeirinhas, que tinha um grande e bonito jardim com as mais
diversas flores e arbustos. O castelo ficava perto de um bosque e de um lago azul. Neste
382
castelo moravam, além da princesa Catarina, a rainha e o príncipe-irmão. O rei também
morava no castelo, mas como o reino era muito grande, ele tinha que viajar muito a negócios,
então ficava pouco tempo no castelo.
Embora brincasse com o príncipe-irmão e passasse muito tempo com a rainha, a
princesa Catarina se sentia sozinha. Por isso, a rainha resolveu dar um pássaro para ela. Era um
lindo rouxinol, com penas verdes muito brilhantes e um bico amarelo. Ele tinha um canto
maravilhoso, sabia muitas músicas. Ele sabia muitas histórias também, pois havia vindo de
terras muito distantes. A princesa ficou emocionada com o presente. Comprou para ele uma
gaiola de ouro, com um bebedouro de cristal e um prato de ouro branco onde era servido o
melhor alpiste.
Todos os dias a princesa conversava com seu rouxinol, passando horas ouvindo suas
histórias e suas músicas alegres. O tempo foi passando e eles foram ficando cada vez mais
amigos.
Um dia, a princesa começou a notar que o rouxinol estava triste. Ele ficou cada vez
menos falante e as músicas que cantava não era mais tão alegre. As penas foram perdendo o
brilho pouco a pouco, até que um dia ele ficou muito doente. A princesa ficou muito
preocupada e chamou o veterinário do reino. Após examinar o rouxinol, ele se aproximou da
princesa e disse:
-Seu rouxinol está muito doente, e comprimidos e injeções não vão ajudá-lo. O que ele
precisa é de ar fresco e liberdade para voar para o mundo, sem ter hora para voltar. Somente
assim ele ficará curado.
A princesa ouviu atentamente o veterinário e falou inconformada:
383
- Como assim, doutor? Eu dei tudo o que ele precisava, a comida mais cara, a gaiola
mais bonita e ele fica doente?! Precisa ir embora? De jeito nenhum! Doutor dê outro jeito!
- Esse é o único remédio que adiantaria. Se ele não tiver liberdade, vai piorar e morrer.
– respondeu o veterinário.
A princesa, ainda inconformada, mandou o veterinário embora. Pegou o rouxinol e o
levou para seu quarto. Quando lá chegou, pediu para o pássaro contar uma história e ele
estava tão fraco que não conseguiu. Sentindo tristeza e raiva, a princesa disse:
- Você não gosta mais de mim!
- Eu gosto muito de você – respondeu o rouxinol - mas estou triste e fraco e não
consigo mais contar histórias. Já contei todas que sabia e que aprendi na minha vida. O resto
da minha vida passei aqui com você, dentro desta gaiola.
A princesa ouviu o pássaro e ficou muito triste. Passaram-se três dias e o rouxinol
piorou. No quarto dia, a princesa percebeu que o veterinário tinha razão. Foi até o rouxinol e
disse:
- Eu não queria que você fosse embora, porque eu gosto muito de você, mas se for
para você ser mais feliz, pode ir.
O pássaro olhou para ela agradecido e lhe disse:
- Eu também gosto muito de você! Você é a melhor dona que já tive. Vou sentir muito
a sua falta. Mas prometo que voltarei sempre para a visitar.
A princesa pegou o rouxinol e deu-lhe um beijo afetuoso. Levou-o até os jardins do
castelo e o libertou.
384
O rouxinol levantou vôo, olhou para trás e depois seguiu em frente. A princesa caiu em
prantos. Ficou muito triste e chorou muito por vários dias.
Um dia, caminhando pelo belíssimo jardim do castelo, a princesa Catarina encontrou
um pequeno pardal caído no chão, com sua asa quebrada. Ela pegou o pássaro e o levou para
o castelo. Lá ela cuidou do pássaro até que ele pode voltar a voar. Em outro dia, encontrou
outro pássaro machucado, um bonito bem-te-vi. Ela cuidou dele também. Então, enquanto
cuidava do bem-te-vi, percebeu que havia vários pássaros que precisavam de ajuda. Pensou
em uma maneira de ajudá-los. Pediu para a rainha montar um grande criadouro, e chamou de
volta o veterinário, que ficou muito feliz em poder voltar a trabalhar.
Neste criadouro, a porta ficava aberta. Os pássaros vinham quando precisavam e iam
embora quando estavam fortes. A princesa ficou muito ocupada com este novo trabalho e,
embora ainda triste por causa da partida de seu rouxinol, ela se consolava cuidando de outros
pássaros.
Um belo dia, quando estava no criadouro fazendo curativos em um beija-flor, ela ouviu
um canto muito bonito e diferente. Sabia quem era. Era seu rouxinol.
- Ele voltou! – exclamou ela muito feliz e emocionada.
O rouxinol voou em sua direção, pousou em seu ombro e disse:
- Olá princesa Catarina. Estou de passagem pelo reino e vim vê-la. Estava com muita
saudade de você. Tenho lindas histórias para contar, sobre os lugares que visitei. Mas vi que as
coisas aqui estão diferentes.
- Também tenho histórias para contar. Por sua causa, agora cuido de outros pássaros
que precisam. - disse a princesa. E então contou a história de seu trabalho e do criadouro,
385
contou sobre todos os pássaros que ela havia ajudado e como estes ficavam agradecidos pela
ajuda.
O rouxinol ouviu emocionado e disse:
- Estou vendo que fará muito pelo seu povo!
Naquela noite, o rouxinol contou várias histórias e músicas novas para a princesa
Catarina e os pássaros que lá estavam. Todos se divertiram muito.
Três dias depois, ele disse que tinha que partir, mas voltaria a vê-la com mais histórias
para contar.
A princesa e o rouxinol perceberam que apesar de estarem afastados, gostavam ainda
mais um do outro. Perceberam assim, que não precisavam ter tudo o que queriam na hora que
queriam, mas que o mais importante era o afeto que tinham um pelo outro.
Eles se despediram e o rouxinol voltou várias vezes. A princesa cresceu e fez um lindo
trabalho pelo seu povo, cuidando daqueles que precisavam dela e ensinando tudo que
aprendera com o rouxinol. E, por onde passava, o rouxinol contava a história de um reino em
que havia uma linda e generosa princesa que ele conhecia, chamada Catarina.
Fim.
SESSÃO DEVOLUTIVA
A mãe adotiva, Eunice, procurou o serviço por indicação de um pediatra. O processo
de triagem constou de uma entrevista inicial com a mãe (anamnese), uma sessão com a
técnica projetiva da hora de jogo com a criança (sessão lúdica) e uma entrevista familiar, em
que compareceram, a mãe, a criança e seu irmão, também de 6 anos de idade, adotivo (as
386
duas crianças não tinham os mesmos pais biológicos). Após as três sessões, foi agendada a
entrevista devolutiva com a mãe e com a criança. Como forma de comunicar, na entrevista
devolutiva, os conflitos latentes da criança, expressos durante a triagem recorreu-se ao uso de
uma estória. Nesse trabalho serão descritas somente a entrevista com a mãe, a sessão lúdica e
a entrevista devolutiva realizada com a criança.
A sessão devolutiva começou com o conto da estória. Mariana prestou atenção à
estória toda. Após o termino da mesma, foi à caixa lúdica e começou a tirar os brinquedos de
dentro, avisando para o psicólogo que ele teria que arrumar tudo. Pegou o revolver e em
seguida a espada, ameaçando-o. Depois foi à mesa com trabalhos feitos na sessão familiar que
estavam na caixa. Sua brincadeira era com fita adesiva, estava tentando colar a folha na mesa.
Enquanto isso, ela foi avisada que ao termino da sessão, o psicólogo falaria com sua mãe. A
menina disse que não deixaria os dois conversarem sozinhos. Disse que estaria junto. Ao ser
perguntada pelo psicólogo se ela estava com medo de que a sua mãe fosse tirada dela, ela
disse que sim. Ao final, brincava com uma cola, tentando colar um círculo recortado de papel
em cima de um desenho de um quadrado que havia feito. Estava usando mais cola do que o
necessário. Ela abriu o pote de cola, pois disse que queria mais, e pegou a tesoura para ajudála. Ao sair, havia concordado em esperar na sala de espera a conversa do psicólogo com sua
mãe. Porém, no decorrer da devolutiva com a mãe, Mariana interrompe, entrando na sala e
entregando para a mãe a estória que havia ganhado do psicólogo. Entrega para a mãe e sai.
CONCLUSÃO
Para que haja um desenvolvimento saudável da criança, é necessário que, ao lado
dela, esteja uma mãe que se identifique com ela e faça com que ela se sinta onipotente. A mãe
387
deverá ser capaz de regredir a estágios muito primários de sua evolução afetiva para que seu
ego já estruturado seja um complemento do ego infantil, ainda muito precário.
A partir daí a mãe começa um processo de retorno ao real, que induzirá o bebe, a
partir de falhas maternas, a ter uma compreensão de meio interno diferente um meio externo,
promovendo uma integração. Este processo dá a criança, ainda muito pequena, capacidade de
tolerar suas pulsões e ter uma personalidade própria.
A introjeção da figura materna, como ser que apóia o ego, torna possível o
desenvolvimento harmonioso da criança, e dá a ela suas primeiras noções de independência.
Começa aí a diferenciação entre o que é necessidade do que é desejo.
Qualquer ruptura neste processo de diferenciação mãe/filho pode trazer
conseqüências ao desenvolvimento emocional infantil, impedindo o amadurecimento
emocional e a total integração da criança, caracterizando o surgimento de um sintoma.
Como a criança ainda não possui recursos psíquicos para falar de suas angustias, cabe
ao analista entrar no universo infantil, e trabalhar com os recursos apresentados por seu
pequeno paciente, e promover uma elaboração das angustias presentes no contexto da
análise. Esta entrada se dá pelo espaço transicional, um lugar entre a fantasia e realidade, e
tem como função reestruturar a aptidão criativa da criança, recuperando sua capacidade
natural para o desenvolvimento.
A estória usada foi baseada em um livro do escritor e psicanalista Rubem Alves, e foi
escolhida por ilustrar bem as angustias apresentadas pela criança durante a sessão lúdica.
Segundo Safra (1984), há, no contato psicoterápico com crianças, um período de
adaptação da criança ao meio terapêutico. É um tempo, que vem antes da comunicação, de
observação do meio, em que ela passa por um período de hesitação até se sentir segura para
388
se aproximar da figura do psicólogo. É neste período que emerge a ilusão e a possibilidade do
espaço transicional. É onde as estórias atuam, respeitando o tempo e o espaço da criança,
além de recriar o espaço transicional a cada vez que a estória é recontada pelos seus pais.
O uso das estórias com papel terapêutico foi pensado a fim de apresentar a criança os
seus conflitos, trabalhando no campo da ilusão, permitindo à criança aceitar a estória, ou
partes dela, como pertencente a sua realidade psíquica sem que haja necessidade de
interpretação o que, por inflar o ego, poderia prejudicar sua espontaneidade, e colocar em
risco a possibilidade de integração dos seus processos primários e secundários.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
Freud, S. (1976). O Pequeno Hans. In Obras psicológicas completas de Sigmund Freud. Edição
standard brasileira. (vol. 10). Rio de Janeiro: Imago. (Trabalho original publicado em 1909).
HISADA, S. A Utilização de Histórias no Processo Psicoterápico Uma Proposta Winnicottiana.
Rio de Janeiro: Ed. Revinter, 1998.
KLEIN, M. Psicanálise da criança. Rio de Janeiro: Imago, 1997.
SAFRA, G. Um método de consulta terapêutica através do uso de estórias infantis.
Dissertação de mestrado, USP, 1984
WINNICOTT, D. W. O brincar e a realidade. Rio de Janeiro: Imago, 1975.
WINNICOTT, D. W. O ambiente e os processos de maturação. Porto Alegre: Ed. Artes Médicas,
1982.
389
WINNICOTT, D. W. Consultas terapêuticas em Psiquiatria Infantil. Rio de Janeiro:
Imago, 1984.
390
Candidatura 20
Autores: Rodrigo Peres & Manoel Santos
Título: Funcionamento defensivo em mulheres acometidas por câncer de mama:
especificidades de pacientes em remissão e pacientes em recidiva
391
FUNCIONAMENTO DEFENSIVO EM MULHERES ACOMETIDAS POR CÂNCER DE MAMA:
ESPECIFICIDADES DE PACIENTES EM REMISSÃO E PACIENTES EM RECIDIVA23
Rodrigo S. Peres e Manoel A. Santos
[email protected] e [email protected]
Universidade Federal de Uberlândia e Universidade de São Paulo
Resumo: Diversos autores sugerem que a personalidade de mulheres acometidas por câncer
de mama é capaz de influenciar o curso da doença, mas poucos contemplam diretamente essa
questão. Dessa maneira, uma pesquisa foi realizada visando a comparar aspectos dinâmicos e
estruturais de personalidade em pacientes com evolução clínica distinta. O presente estudo é
um recorte da referida pesquisa e aborda especificamente a identificação dos mecanismos de
defesa prevalentes em mulheres em remissão e mulheres em recaída. Tal recorte justifica-se
porque o funcionamento defensivo se destaca como uma das principais facetas da
personalidade. O instrumento utilizado na coleta de dados foi o Teste de Apercepção
Temática. A avaliação dos resultados foi realizada por juízes especializados, os quais utilizaram
um protocolo constituído por diversos indicadores. Observou-se que as pacientes em remissão
tendem a um funcionamento defensivo mais apropriado do que as pacientes em recidiva.
Afinal, as primeiras se caracterizaram pela utilização contextualizada da intelectualização e da
racionalização, ao passo que as segundas demonstraram uma marcante propensão à negação,
à denegação e à anulação retroativa. Tais resultados fornecem elementos para uma
compreensão inicial de certos processos por meio dos quais a personalidade das pacientes
pode influenciar o curso do câncer de mama.
23
O presente estudo contou com subsídios da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível
Superior (CAPES).
392
393
Introdução
O câncer de mama incide sobre o principal símbolo corpóreo da feminilidade, da
sensualidade e da maternidade, de modo que compromete não apenas a condição física da
paciente, mas também sua saúde mental (Venâncio, 2004). Assim sendo, seu diagnóstico e
tratamento representam um importante trauma psíquico na maioria dos casos e,
conseqüentemente, implicam na elaboração da perda da vida “normal” anterior à
enfermidade e na redefinição de metas, sonhos e projetos. Por essa razão, o câncer de mama
se destaca como a doença mais temida pela população feminina (Massie & Holland, 1991).
Além disso, trata-se, nos dias de hoje, do tipo de neoplasia maligna mais comum na população
feminina de dezenas de países, constituindo, portanto, um importante problema de saúde
pública no mundo todo (Brasil, 2007).
Nas duas últimas décadas, inúmeras pesquisas voltadas aos aspectos psicológicos do
câncer de mama têm sido desenvolvidas. A maior parte delas contempla o impacto emocional
do diagnóstico e do tratamento. A assistência psicológica a mulheres acometidas pela doença
igualmente se destaca como um assunto recorrente na literatura especializada. Ademais, os
fatores emocionais associados à gênese da enfermidade em questão também foram
explorados por diversos estudos. Todavia, novas pesquisas se fazem necessárias para que
venham a ser esclarecidas certas questões para as quais, no atual estágio do conhecimento,
ainda não existem respostas satisfatórias. Como mencionam Peres e Santos (2008), pouco se
sabe, por exemplo, sobre a influência de variáveis psicológicas no curso do câncer de mama.
Tjemsland et al (1997) reportaram que pacientes que demonstram sintomas
clinicamente significativos de distress, referem pensamentos intrusivos relacionados à doença
e utilizam estratégias de enfrentamento centradas na emoção quando do diagnóstico
freqüentemente apresentam níveis reduzidos de linfócitos B e células T4 após terem sido
submetidas à cirurgia. Já Walker et al (1999) verificaram que pacientes que preenchem os
394
critérios para transtornos do humor após receberem a confirmação do câncer de mama
tendem a responder de forma desfavorável à quimioterapia em termos anatômicos e
histológicos, apresentando manutenção do tamanho do tumor e mudanças inexpressivas na
distribuição das células carcinomatosas.
Além disso, Lilja et al (2003) observaram que pacientes que, a despeito de inicialmente
reagirem com desesperança ao diagnóstico, adotam, ao longo do tratamento, estratégias de
enfrentamento centradas no problema e se mostram capazes de manejar satisfatoriamente a
ansiedade provocada por estímulos agressivos tendem a apresentar tumores com indicadores
prognósticos anatômicos, histológicos e endócrinos favoráveis. Dentre esses indicadores,
destacam-se os seguintes: extensão tumoral inferior a 3 cm, baixo índice proliferativo,
linfonodos axilares preservados e receptor hormonal positivo. Ambos contribuem para um
maior período de sobrevida e um menor risco de recorrência da doença, assim como justificam
procedimentos cirúrgicos conservadores e contra-indicam terapêuticas adjuvantes.
Não obstante, os achados oriundos das pesquisas mencionadas não podem ser
considerados conclusivos, de modo que novos estudos são necessários para o avanço do
conhecimento no campo da Psico-Oncologia. A exploração de características de personalidade
associadas à recidiva do câncer de mama se apresenta como um tema particularmente
promissor. Afinal, diferenças em termos da estrutura e dinâmica psíquica entre mulheres que
conseguem recobrar a saúde e pacientes que são acometidas novamente pela enfermidade
ainda são praticamente desconhecidas. Partindo desse princípio, o primeiro autor do presente
estudo, contando com a orientação do segundo autor, desenvolveu sua tese de doutoramento
– atualmente em andamento – no sentido de fornecer subsídios iniciais para o preenchimento
dessa lacuna.
O presente estudo é um recorte desse trabalho mais amplo e tem como objetivo a
identificação dos mecanismos de defesa prevalentes em dois grupos distintos, em termos do
curso da doença, de mulheres acometidas por câncer de mama, a saber: mulheres em
395
remissão e mulheres em recidiva. Tal recorte justifica-se porque o funcionamento defensivo se
destaca como uma das principais facetas da personalidade, sendo definido, do ponto de vista
psicanalítico, como o conjunto de operações mentais das quais um sujeito lança mão para se
proteger das tensões – sejam elas internas ou externas – às quais é submetido (Kusnetzoff,
1982). Portanto, essas operações mentais, denominadas mecanismos de defesa, visam a
garantir a manutenção da constância psíquica.
De acordo com a segunda tópica freudiana, o ego pode ser considerado tanto um
aparelho adaptativo quanto uma instância resultante de identificações que tomam o lugar de
energias psíquicas abandonadas pelo id. Sua autonomia em relação aos demais sistemas
psíquicos é relativa, pois atua como intermediário entre as reivindicações do id, as limitações
do mundo externo e os imperativos do superego. Ademais, o ego constitui o pólo defensivo da
personalidade (Freud, 1917/1996). Logo, é o responsável pela mobilização de mecanismos de
defesa perante estímulos potencialmente desestruturantes. Mas vale destacar que esse
processo geralmente ocorre de maneira inconsciente, sendo agenciado pela porção do ego
que não se encontra totalmente diferenciada do id.
Justamente por esse motivo muitas vezes o funcionamento defensivo de um sujeito
não se mostra apropriado ao contexto situacional no qual o mesmo se inscreve. De qualquer
forma, vale salientar que o emprego de operações defensivas não deve ser considerado um
processo psicopatológico a priori, pois a sobrevivência do aparelho psíquico se encontra
intimamente relacionada à sua capacidade de se proteger. Para Freud (1895/1996), uma
defesa pode ser considerada desadaptativa apenas quando remete à revivescência de
sentimentos penosos associados a acontecimentos prévios dos quais o ego, quando da
experiência original, não foi capaz de se defender mediante a execução de investimentos
laterais. Tal revivescência, além de gerar excitações internas que provocam desprazer,
396
fomenta uma intensa regressão egóica, influenciando negativamente o equilíbrio da
personalidade e o ajustamento do sujeito ao meio.
Método
Desenho metodológico
A abordagem qualitativa foi privilegiada no presente estudo, de modo que os dados
coletados foram submetidos a análises majoritariamente descritivas e exploratórias, as quais
buscavam a interpretação da significação simbólica dos mesmos a partir de uma atitude
compreensivista embasada pelo referencial teórico psicanalítico. Vale destacar também que se
considerou pertinente adotar o recorte transversal e o método clínico de pesquisa, de modo
que se optou por avaliar exaustivamente, em um momento circunscrito, um grupo
relativamente reduzido de sujeitos mediante o emprego de um conjunto de técnicas. Tal
delineamento metodológico se mostrou proveitoso em um estudo anterior, conduzido com
pacientes onco-hematológicos (Peres & Santos, 2006).
Participantes
As participantes do presente estudo foram selecionadas e contatadas a partir o
cadastro de uma entidade assistencial voltada a pacientes oncológicos por atenderem a
critérios de inclusão previamente definidos, a saber: não apresentar antecedentes
psiquiátricos, suspeita de déficit intelectual, quadros demenciais ou distúrbios da comunicação
capazes de comprometer a interação com o pesquisador. As mulheres em remissão (n=8)
constituíram o denominado Grupo 1, ao passo que as mulheres em recidiva (n=8) constituíram
o denominado Grupo 2. Em sua maioria, ambas eram donas-de-casa casadas na faixa dos 50
397
anos de idade que não chegaram a completar o ensino fundamental, como se vê na Tabela 1 e
na Tabela 2. Ou seja: possuíam um perfil semelhante em termos da ocupação atual, do estado
marital, da idade e do nível educacional.
Participantes
Idade
Escolaridade
Ocupação atual
Estado civil
Cecília
65 anos
Ensino superior completo
Professora
Casada
Ângela
58 anos
Ensino fundamental incompleto
Dona-de-casa
Casada
Paula
66 anos
Ensino fundamental incompleto
Dona-de-casa
Casada
Mônica
62 anos
Ensino fundamental incompleto
Dona-de-casa
Viúva
Ester
52 anos
Ensino fundamental incompleto
Artesã
Amaziada
Joana
53 anos
Ensino fundamental incompleto
Cozinheira
Solteira
Quitéria
60 anos
Ensino fundamental incompleto
Dona-de-casa
Amaziada
Ifigênia
55 anos
Ensino fundamental incompleto
Dona-de-casa
Casada
24
Tabela 1 - Dados de identificação das participantes (Grupo 1)
Participantes
Idade
Escolaridade
Ocupação atual
Estado civil
Anastácia
42 anos
Ensino superior completo
Professora
Casada
Catarina
58 anos
Ensino fundamental completo
Dona-de-casa
Casada
Luzia
62 anos
Ensino fundamental incompleto
Dona-de-casa
Casada
Isabel
55 anos
Ensino fundamental incompleto
Empregada doméstica Casada
Bárbara
50 anos
Ensino médio incompleto
Dona-de-casa
Casada
Úrsula
56 anos
Ensino médio completo
Comerciante
Casada
24
Os nomes verdadeiros das participantes do presente estudo foram substituídos por nomes fictícios com
o intuito de preservar-lhes o anonimato.
398
Emília
65 anos
Ensino fundamental incompleto
Empregada doméstica Casada
Madalena
41 anos
Ensino fundamental incompleto
Costureira
Divorciada
2
Tabela 2 - Dados de identificação das participantes (Grupo 2)
INSTRUMENTOS
A coleta de dados do trabalho mais amplo do qual o presente estudo decorre envolveu
a realização de uma entrevista psicológica semi-estruturada e a aplicação do Teste de
Apercepção Temática (TAT). Por fundamentar-se no processo de apercepção, ou seja, no
processo que promove a “integração de uma percepção com a experiência passada e com o
estado psicológico atual do sujeito” (Lourenção van Kolck, 1981, p. 284), o TAT possibilita a
exteriorização tanto de aspectos dinâmicos quanto de elementos estruturais da personalidade.
Trata-se, portanto, de um instrumento considerado dos mais profícuos para o exame da
personalidade (Jacquemin, 1981; Silva, 1989). Justamente por esse motivo optou-se, no
presente estudo, por contemplar especificamente os dados oriundos da aplicação do TAT.
Coleta e análise de dados
As participantes do presente estudo foram avaliadas individualmente em uma sala
reservada e com condições apropriadas de acomodação, iluminação e ventilação na sede da
entidade assistencial na qual se encontravam cadastradas. As despesas relativas ao transporte
das mesmas foram de responsabilidade dos pesquisadores. Ademais, vale destacar que as
participantes foram conscientizadas que, a despeito de terem concordado previamente – por
meio de um contato telefônico executado pelo primeiro autor do presente estudo – em se
submeter à coleta de dados, poderiam mudar de idéia a qualquer momento e que, se o
fizessem, não teriam nenhuma espécie de prejuízo no atendimento oferecido pela instituição.
399
As recomendações técnicas propostas por Morval (1982) nortearam a aplicação do
TAT. Desse modo, as participantes foram solicitadas a elaborar uma estória25 com começo,
meio e fim a partir da observação de cada uma das 20 pranchas que compõem a série
completa do instrumento26 e a criar um título para a mesma após tê-la concluído. A coleta de
dados foi dividida em duas sessões para cada caso e gravada em áudio com o consentimento
prévio das participantes. Os pontos principais das estórias coligidas foram anotados com o
intuito de direcionar as questões a serem apresentadas durante o inquérito. Tomou-se ainda o
cuidado de, imediatamente após a conclusão de cada uma das estórias, retirar as pranchas do
alcance visual das participantes, visando a evitar que o estímulo anterior influenciasse a
elaboração da estória referente à prancha subseqüente.
As estórias coligidas foram avaliadas independentemente por dois juízes
especializados27 mediante o emprego de um protocolo baseado nas categorias de análise
sistematizadas por Morval (1982), as quais, por seu turno, representam um desenvolvimento
daquelas definidas por Murray (1973). Assim, foram consideradas 7 categorias de análise
básicas, a saber: 1) análise formal; 2) identificação do herói; 3) necessidades do herói; 4)
relações interpessoais do herói; 5) condutas do herói; 6) pressões do ambiente e 7) desfecho
da estória. A análise formal focaliza basicamente os aspectos relacionados ao modo particular
do sujeito reagir à tarefa proposta e divide-se em 5 sub-categorias distintas, a saber: 1) atitude
do sujeito; 2) adaptação ao estímulo; 3) adaptação às instruções; 4) elaboração e estruturação
da estória e 5) mecanismos de defesa.
Desse modo, para os fins do presente estudo apenas serão reportados, para maior
aprofundamento, os resultados decorrentes da avaliação de 1 das 5 sub-categorias que
25
O verbete “estória” será privilegiado em detrimento do verbete “história” para enfatizar o aspecto
ficcional das produções.
26
Vale destacar que a aplicação do TAT envolveu a utilização das seguintes pranchas: 1, 2, 3RH, 4, 5,
6MF, 7MF, 8RH, 9MF, 10, 11, 12F, 13HF, 14, 15, 16, 17MF, 18MF, 19 e 20. Considerou-se pertinente
adotar as pranchas 3RH e 8RH tendo em vista que, conforme Silva (1989), a despeito de originalmente
destinadas apenas a sujeitos do sexo masculino, as pranchas em questão podem ser aplicadas em mulheres
por se mostrarem mais produtivas do que suas equivalentes femininas.
27
Psicólogos pós-graduados especializados no TAT.
400
compõem 1 das 7 categorias básicas do protocolo adotado pelos juízes. Vale destacar também
que, na composição do protocolo, foram considerados como alternativas da sub-categoria em
questão todos os mecanismos de defesa cuja utilização, conforme Laplanche e Pontalis
(2000), é consagrada pela literatura psicanalítica, a saber: 1) recalque, 2) regressão, 3)
formação reativa, 4) isolamento, 5) anulação retroativa, 6) projeção, 7) introjeção, 8) retorno
sobre si, 9) inversão de uma pulsão em seu contrário, 10) sublimação, 11) denegação, 12)
negação da realidade, 13) racionalização e 14) intelectualização. Ademais, foi considerada
também a alternativa “não-classificável”.
Deve-se esclarecer ainda que, após a conclusão do trabalho dos juízes, foram
determinados os índices de concordância mediante o cálculo da subtração da concordância
possível pela discordância real e da posterior divisão do produto dessa operação pelo número
de alternativas do protocolo. A média dos índices de concordância como um todo foi igual a
0,74. De acordo com os parâmetros estabelecidos por Fachel e Camey (2000), essa média
pode ser considerada satisfatória. Por fim, cumpre assinalar que, constatada a validade do
trabalho dos juízes, o primeiro autor do presente estudo apreciou o conjunto dos resultados
obtidos utilizando para tanto essencialmente as proposições teóricas de Kusnetzoff (1982),
Morval (1982), Marty (1993), Marty (1998) e Laplanche e Pontalis (2000).
Aspectos éticos
Todas as participantes concordaram espontaneamente em colaborar com o presente
estudo e formalizaram sua anuência mediante a assinatura de um termo de consentimento.
Escrito em linguagem simples, objetiva e compreensível, tal documento, além de descrever
sucintamente a coleta de dados, assegurava às participantes a preservação de seus direitos. As
participantes foram informadas ainda que contariam, caso os procedimentos relativos à coleta
dos dados lhes acarretasse qualquer espécie de desconforto emocional, com um atendimento
401
psicológico focal a ser prestado pelo primeiro autor do presente estudo, em um horário de
comum acordo, com a finalidade específica de promover a ventilação dos sentimentos
suscitados28.
Apresentação e discussão de resultados
A avaliação do conjunto do material obtido mediante a aplicação do TAT no Grupo 1
revela que a alternativa “não-classificável” foi a mais freqüente na sub-categoria de análise
“mecanismos de defesa”, ou seja, predominou nas estórias elaboradas pela maioria das
mulheres em remissão (n=5). Entretanto, seria ingenuidade afirmar que as mesmas
prescindiram de operações psíquicas capazes de contribuir para a redução das tensões ao
longo da coleta de dados. Houve, na verdade, uma dificuldade por parte dos juízes na
classificação de tais operações. É possível associar esse fenômeno à aparente justaposição de
certas estratégias que denotam uma consistente estruturação egóica e outras que sugerem o
oposto. Ou seja, observou-se a coexistência de recursos evoluídos com elementos mais
imaturos, não-desenvolvidos, da personalidade.
Vale ressaltar também que, reforçando a hipótese precedente, uma significativa
diversificação de mecanismos de defesa caracterizou o Grupo 1, o que, a propósito,
inviabilizou o delineamento de convergências mais expressivas do ponto de vista quantitativo
no que se refere a esse aspecto. Tal diversificação não gera estranhamento considerando-se
que, como já mencionado, a sub-categoria de análise “mecanismo de defesa” contou, no
protocolo de avaliação adotado pelos juízes, com 15 alternativas. A despeito disso, a anulação
retroativa e a negação despontaram em segundo lugar em termos de prevalência no Grupo 1,
dado que parte das mulheres que o constituíram as utilizaram recorrentemente (n=3).
28
Recorreram a esse atendimento 2 participantes, sendo 1 do Grupo 1 e 1 do Grupo 2.
402
No Grupo 2, o isolamento se afigurou como a principal operação psíquica mobilizada a
partir da veiculação das pranchas do TAT (n=6). Ademais, o recalque, a denegação e a
intelectualização também foram empregados majoritariamente com regularidade considerável
(n=3). Pode-se deduzir, portanto, que, entre as participantes do presente estudo em recidiva,
houve uma menor variação de mecanismos de defesa, ensejando, conseqüentemente, uma
maior saturação de determinadas alternativas do protocolo de avaliação para essa subcategoria de análise. A restrição do repertório protetor pode, inclusive, ser relacionada à
inadequação do funcionamento defensivo de parte delas, pois conduz ao uso excessivo de
automatismos e estereotipias.
Se tomados de forma geral, estes resultados confirmam parcialmente as conclusões
procedentes de duas pesquisas brasileiras semelhantes no que tange às características básicas
da amostra. Em uma delas, Barbosa (1991) observou que a negação, a intelectualização e a
formação reativa foram, nessa ordem, os mecanismos de defesa mais atuantes em um grupo
de mastectomizadas submetidas a uma bateria de testes psicológicos. Vale destacar que,
embora tenha privilegiado técnicas projetivas na coleta de dados, a autora investigou o
funcionamento defensivo de suas participantes exclusivamente mediante o emprego de um
instrumento psicométrico: o Inventário de Estilos de Vida (IEV). Ou seja, lançou mão de um
procedimento metodológico distinto daquele adotado no presente estudo.
Já em uma pesquisa mais recente, Bandeira e Barbieri (2007) buscaram a identificação
de similaridades e especificidades em termos de características de personalidade em mulheres
portadoras de dois tipos diferentes de neoplasia. Para tanto, recorreram à realização de
entrevistas psicológicas e à aplicação de uma versão reduzida do TAT. Os resultados revelam
que pacientes acometidas por câncer de mama tendem à projeção e à negação, ao passo que
pacientes acometidas por câncer do aparelho digestório são mais propensas ao isolamento e à
racionalização. Ademais, apontam a prevalência da repressão em ambos os grupos. Diante
403
desse cenário, tais autoras caracterizaram o funcionamento defensivo das primeiras como
psicótico e o das segundas como neurótico.
Ao longo da obra freudiana é possível observar tentativas de identificação de
mecanismos de defesa típicos de certas psicopatologias, até porque os mesmos claramente
variam de estratégias de natureza essencialmente instintual a recursos que envolvem
atividades intelectuais sofisticadas. Porém, Kusnetzoff (1982) alerta que as contribuições de
diversos psicanalistas contemporâneos sustentam que, em última instância, qualquer
operação voltada ao resgate da homeostase psíquica, em que pese sua associação com o ego,
pode ser apresentada por qualquer sujeito, dependendo da situação. Seguindo esse raciocínio,
o referido autor defende que há, na base dos processos psicopatológicos, não apenas o
emprego de uma ou outra defesa especificamente, mas sim sua adoção compulsiva e
descontextualizada.
É justamente a partir desse critério que se torna possível o mapeamento de diferenças
no que tange ao sistema defensivo entre as mulheres em remissão e as mulheres em recidiva
avaliadas no presente estudo. Por utilizarem de modo ponderado a intelectualização, a
repressão, a regressão e o isolamento, 2 participantes do Grupo 1 se caracterizaram pela
adequação dessa função. O oposto pode-se afirmar sobre 1 delas devido a seu apelo constante
à negação e à anulação retroativa. As demais mulheres em remissão apresentaram um
funcionamento defensivo cuja adequação se mostrou parcial, sobretudo por conta do
emprego apropriado da intelectualização e racionalização e inapropriado da negação, anulação
retroativa, introjeção e formação reativa.
Considerando-se as participantes que constituíram o Grupo 2, têm-se uma situação
distinta. Somente 1 delas se mostrou capaz de se proteger com êxito das tensões que
ameaçam abalar o equilíbrio de seu aparelho psíquico, recorrendo, para tanto, à
intelectualização e à racionalização de maneira pertinente. A compulsão de 3 pacientes em
404
recidiva à negação, ao isolamento, à denegação e à anulação retroativa reflete a inadequação
do funcionamento defensivo das mesmas. As demais participantes do Grupo 2 adotaram
contextualizadamente a intelectualização e o isolamento, bem como descontextualizadamente
a repressão, a formação reativa, sublimação e denegação.
Diante do exposto, conclui-se que a intelectualização se mostrou associada a um
funcionamento defensivo mais apropriado. Tal resultado não provoca surpresa, pois, como
destacam Laplanche e Pontalis (2000), a intelectualização, ao promover o controle dos afetos e
das fantasias intoleráveis mediante a utilização em larga escala do pensamento abstrato,
pressupõe a existência de um ego organizado que lhe sirva de suporte. Por se afigurar
essencialmente como a exacerbação de uma função normal adquirida em uma etapa tardia da
infância, a operação psíquica em questão pode até ensejar a revivescência de experiências
anteriores, mas esse processo tende a se limitar às experiências das quais, quando da situação
inicial, o ego encontrou meios de se proteger. Isso contribui de forma substancial para a
preservação do processo secundário.
Em contrapartida, a negação, a denegação e a anulação retroativa conduziram a um
funcionamento defensivo pouco adequado. Para Morval (1982), a negação envolve, por parte
do sujeito, a recusa de pertencimento de representações que inconscientemente são
reproduzidas na atividade do pensamento a partir de estímulos que se originam do exterior,
ao passo que a denegação consiste na contestação de conteúdos recalcados que conseguem
retornar – mas não de modo pleno – para a consciência à custa de imperativos internos. A
anulação retroativa, conforme a mesma autora, envolve a utilização de certas representações
com o intuito de retratar os desdobramentos de representações anteriores, de sentido oposto,
que foram capazes de contornar as barreiras a elas impostas inconscientemente.
Ou seja: a negação, a denegação e a anulação retroativa possuem uma natureza
arcaica, em contraste com a intelectualização. Por conta desta ter sido mais freqüente no
405
Grupo 1 e aquelas no Grupo 2, deduz-se, à luz da teorização de Marty (1993), uma maior
insuficiência funcional do aparelho psíquico entre as mulheres em recidiva do que entre as
mulheres em remissão. Além disso, cumpre assinalar que o referido autor sustenta que,
quanto mais acentuada for tal insuficiência, maior a vulnerabilidade à somatização,
principalmente após a ocorrência de eventos traumáticos. Essa associação conduz diretamente
ao conceito de mentalização, definido como o conjunto de representações que determina a
dinâmica mental integralmente, desde a formação de vínculos à manutenção do
funcionamento do sistema defensivo.
Portanto, pode-se afirmar que, excetuando-se 1 delas, o pré-consciente das
participantes do Grupo 2 é povoado sobretudo por “más mentalizações”. Aprofundando esse
raciocínio, torna-se incoerente qualquer tentativa de compreensão do funcionamento psíquico
das mesmas sob a ótica das neuroses clássicas e se impõe o recurso a uma categoria
nosológica descrita originalmente por Marty, a saber: neurose mal mentalizada. Afinal, tratase de uma modalidade particular de psicopatologia em cuja essência se identificam fenômenos
“de ausência, de limitação e de superficialidade das representações, desprovidas dos valores
afetivos e simbólicos que se encontravam relacionados a elas, anteriormente” (1998, p.44).
Tomando como base seus movimentos defensivos, as participantes do Grupo 1
apresentaram, em sua maioria, uma dinâmica psíquica com aspectos relativamente mais
favoráveis, análoga à dinâmica psíquica típica da chamada neurose de mentalização incerta.
Conforme Marty (1998), nessa condição há uma variação expressiva no funcionamento do préconsciente, de modo que representações altamente associativas e representações
marcadamente insípidas se alternam. Assim, a capacidade de simbolização se mantém
operante graças a um equilíbrio ameaçado por fragmentações psicóticas e resguardado por
entrelaçamentos sofisticados de afetos e idéias, sendo, portanto, ora desoladora, ora
promissora.
406
Não obstante, exceções a essas formulações gerais devem ser admitidas: 1
participante do Grupo 1 e 1 participante do Grupo 2 podem ser consideradas neuróticas bem
mentalizadas, dado que aparentemente são dotadas de representações enriquecidas por
valores simbólicos, o que garante maior fluidez ao pré-consciente. Além disso, 1 participante
do Grupo 1 e 2 participantes do Grupo 2 apresentaram características que remetem à neurose
de comportamento. Nessa condição, uma falha básica no desenvolvimento do pré-consciente
potencializa a substituição de representações por traços mnésicos puros e inviabiliza a
estruturação de um sistema defensivo consistente, já que conduz a expressões diretas,
traduzidas na atualidade, do inconsciente por meio do aparelho sensório-motor (Marty, 1993).
Considerações finais
Faz-se necessário esclarecer que a recidiva das participantes do Grupo 2 não está
sendo entendida como uma doença psicossomática, ou seja, decorrente majoritariamente de
fatores psíquicos. Uma conclusão dessa natureza seria incoerente não apenas com o modelo
biopsicossocial, mas também com a postura monista preconizada pela psicossomática
psicanalítica, pois, como sustenta Marty (1993), a indissociabilidade que caracteriza o
funcionamento mental e o funcionamento orgânico faz do homem um ser psicossomático por
definição. Portanto, a utilização do termo “psicossomática” como adjetivo encerra uma falácia
na medida em que remete ao antigo dualismo cartesiano.
Na verdade, o presente estudo reitera que o corpo é dotado de uma dimensão
metapsicológica, a qual faz dele uma testemunha viva de um passado que permanentemente
se reatualiza sob a forma de vestígios ainda não elaborados e, dessa maneira, veicula as
inscrições da história do sujeito. Tal dimensão foi estabelecida definitivamente por Freud antes
mesmo da virada do século XIX ao demonstrar o papel do recalque na etiologia da histeria.
Porém, cumpre assinalar que sua genialidade o levou a apontar a incoerência de se
estabelecer qualquer relação de exterioridade entre o indivíduo e seu corpo, bem como, ao
407
mesmo tempo, evitar o ingênuo desmerecimento do inegável sustentamento do psiquismo no
corporal.
Mas cabe aqui uma ressalva: os resultados ora reportados não subsidiam a obtenção
de “leis universais” sobre a personalidade de mulheres acometidas por câncer de mama ou
sobre os fatores psicológicos relacionados ao curso da doença. As hipóteses apresentadas
possuem um alcance – determinado, sobretudo, pelo número relativamente reduzido de
participantes – que não deve ser extrapolado. Entretanto, vale enfatizar que essas hipóteses
fornecem elementos para generalizações naturalísticas, de modo que instrumentalizam outros
autores a aprofundar o conhecimento estabelecido até o momento sobre o assunto em pauta.
Em última instância, o que se propõe com o presente estudo é que a relação dialética
existente entre mente e corpo não deve ser desconsiderada caso se pretenda apreender a
complexidade inerente ao processo saúde-doença. Essa proposição sugere um resgate do
pensamento hipocrático, considerando-se que o mesmo tem sido negligenciado na atualidade
diante dos avanços no campo da biologia molecular que permitiram o seqüenciamento do
genoma humano. Volich (2000), inclusive, salienta que esses avanços provocaram um
deslumbramento capaz de conduzir a uma frustração semelhante àquela resultante das
expectativas engendradas pela sistematização do conhecimento anatômico no século XIV, as
quais levavam a humanidade erroneamente a crer que nas entranhas do corpo se
encontrariam as respostas para todos os enigmas da vida.
Referências
Bandeira, M.F. & Barbieri, V. (2007). Personalidade e câncer de mama e do aparelho
digestório. Psicologia: Teoria e Pesquisa, 23 (3), 295-304.
408
Barbosa, A.M.S. (1991). Viagem ao vale da morte: estudo psicológico sobre mulheres
mastectomizadas por câncer de mama. Em R.M.S. Cassorla (Org.). Da morte: estudos
brasileiros (pp.159-180). Campinas: Papirus.
Brasil. Ministério da Saúde. Instituto Nacional do Câncer. (2007). Estimativas 2008: incidência
de câncer no Brasil. Rio de Janeiro: Ministério da Saúde.
Declerck, C.H., De Brabander, B., Boone, C. & Gerits, P. (2002). Locus of control, marital status
and predictors of early relapse in primary breast cancer patients. Psychology and Health 17 (1),
63-76.
Fachel, J.M.G. & Camey, S. (2000). Avaliação psicométrica: a qualidade das medidas e o
entendimento dos dados. Em J.A. Cunha (Org.). Psicodiagnóstico-V (pp.158-170). Porto Alegre:
Artes Médicas.
Freud, S. (1996). Projeto para uma psicologia científica (J.L. Meuer, Trad.). Em J. Salomão
(Org.). Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud (v.1,
pp.395-452). Rio de Janeiro: Imago (Original publicado em 1895).
Freud. S. (1996). Conferência XXII: algumas idéias sobre desenvolvimento e regressão (J.L.
Meuer, Trad.). Em J. Salomão (Org.). Edição standard brasileira das obras psicológicas
completas de Sigmund Freud (v.16, pp.343-360). Rio de Janeiro: Imago (Original publicado em
1917).
Kusnetzoff, J.C. (1982). Introdução à psicopatologia psicanalítica. Rio de Janeiro: Nova
Fronteira.
Laplanche, J. & Pontalis, J.B. (2000). Vocabulário da psicanálise (P. Tamen, Trad.). São Paulo:
Martins Fontes (Trabalho original publicado em 1982).
409
Lilja, A., Smith, G., Malmstrom, P., Salford, L.G., Idvall, I. & Horstman, V. (2003). Psychological
profile in patients with stages I and II breast cancer: associations of psychological profile with
tumor biological prognosticators. Psychological Reports 92 (3), 1187-1198.
Lourenção van Kolck, O. (1981). Técnicas de exame psicológico e suas aplicações no Brasil.
Petrópolis: Vozes.
Marty, P. (1993). A psicossomática do adulto (P.C. Ramos, Trad.). Porto Alegre: Artes Médicas.
Marty, P. (1998). Mentalização e psicossomática (A.E.V.A. Güntert, Trad.). São Paulo: Casa do
Psicólogo.
Massie, M.J. & Holland, J.C. (1991). Psychological reactions to breast cancer in the pre- and
post- surgical treatment period. Seminars in Surgical Oncology 7 (5), 320-325.
Morval, M.V.G. (1982). Le TAT et les fonctions du moi. Montreal: Les Presses de l’Université de
Montreal.
Murray, H.A. (1973). Teste de Apercepção Temática (A. Cabral, Trad.). São Paulo: Mestre Jou.
(Trabalho original publicado em 1943).
Okamura, M., Yamawaki, S., Akechi, T., Taniguchi, K. & Uchitomi, Y. (2005). Psychiatric
disorders following first breast cancer recurrence: prevalence, associated factors and
relationship to quality of life. Japanese Journal of Clinical Oncolology 35 (6), 302-309.
Peres, R.S. & Santos, M.A. (2006). A exclusão do afeto e a alienação do corpo. São Paulo: Vetor.
Peres, R.S. & Santos, M.A. (2008). Personalidade e câncer de mama: produção científica em
Psico-Oncologia. Artigo submetido.
Silva, M.C.V.M. (1989). Aplicação e interpretação do Teste de Apercepção Temática. São Paulo:
EPU.
410
Tjemsland, L., Soreide, J. A., Matre, R. & Malt, U.F. (1997). Properative psychological variables
predict immunological status in patients with operable breast cancer. Psycho-Oncology 6 (4),
311-320.
Venâncio, J.L. (2004). Importância da atuação do psicólogo no tratamento de mulheres com
câncer de mama. Revista Brasileira de Cancerologia 50 (1), 55-63.
Volich, R.M. (2000). Psicossomática: de Hipócrates à psicanálise. São Paulo: Casa do Psicólogo.
Walker, L.G., Heys, S.D., Walker, M.B., Ogston, K., Miller, I.D., Hutcheon, A.W., Sarkar, T.K., AhSee, A.K. & Eremin, O. (1999). Psychological factors can predict the response to primary
chemotherapy in patients with locally advanced breast cancer. European Journal of Cancer 35
(13), 1783-1788.
411
Candidatura 21
Autores: Ana Paula Parada
Título: A vivência da endometriose no contexto conjugal: um estudo de caso
412
A VIVÊNCIA DA ENDOMETRIOSE NO CONTEXTO CONJUGAL:
UM ESTUDO DE CASO
Ana Paula Parada – [email protected]
Valéria Barbieri – [email protected]
Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto
Universidade de São Paulo - Brasil
Este trabalho tem como finalidade principal a apresentação de um estudo de caso
de um casal infértil devido ao diagnóstico de endometriose. O estudo visou a compreenssão
das características psicodinâmicas do casal envolvidas nesta patologia
por meio do
conhecimento de sua história de vida, seu desenvolvimento psicossexual e relacionamento
conjugal.
Assim, o presente trabalho estrutura-se de modo a apresentar inicialmente alguns
recortes teóricos sobre a infertilidade, características gerais da endometriose e seus aspectos
psicológicos. Em seguida, há apresentação e discussão do estudo de caso e da contribuição dos
resultados encontrados para compreensão da problemática da infertilidade.
1. Introdução:
A infertilidade ou esterilidade é definida como a inabilidade de conceber após um
ano de intercurso sexual regular sem uso de métodos contraceptivos, ou de levar a gestação
até o nascimento (Word Health Organization, 2002). Há estudos diferenciando os termos
infertilidade e esterilidade, mas, neste trabalho, o termo “infertilidade” será utilizado como
sinônimo de “esterilidade”, seguindo o seu emprego na literatura latino-americana. Sua
413
prevalência varia entre 5 e 30% dos casais em idade fértil, concentrando a maioria em países
em desenvolvimento (Ferrari, 1991; Di Paola e Procaccini, 1991; Word Health Organization,
2002).
Quanto à etiologia, Di Paola e Procaccini (1991) afirmam que a reprodução
humana é uma problemática psico-sócio-biológica, em que uma falha no tripé determinará a
infertilidade. Esta pode ser primária, quando não houve gravidez anterior, ou secundária,
quando ela aconteceu, mas com abortamento e/ou gravidez ectópica. Os fatores biológicos
determinantes da infertilidade podem ser divididos em masculinos e femininos. Os fatores
femininos representam 40 a 70% dos casos, os masculinos 30 a 50%, e 10 a 20% dos casos
apresentam-se pela combinação de ambos os fatores. Estudos indicaram que homens com
problemas de infertilidade têm maior probabilidade de escolherem parceiras também com tais
problemas (Brandi, Pina e Lopes, 1997; Petracco e Badalotti, 1997; Ferrari, 1991).
O diagnóstico de Endometriose, por sua vez, é geralmente concebido como um
fator determinante da infertilidade, principalmente em seus estágios mais severos, devido
suas conseqüências como distorções anatômicas causadas pelas lesões, implantes e/ou
aderências características desse quadro. Entretanto, ainda não há um claro conhecimento
sobre o papel da endometriose na infertilidade, especialmente nos estágios mais leves da
doença (Abrão et al, 1998).
Segundo Abrão et al (1998), a endometriose é uma das doenças ginecológicas mais
estudadas nos últimos anos, devido à dificuldade de estabelecer sua etiopatogenia,
diagnóstico, tratamento e, principalmente, a melhor forma de classificação. Em geral admitese a incidência de 10 a 15% na população, e de 20 a 40% em mulheres inférteis (Urbanetz;
Andrauz, 1999; Matta e Muller, Geber et al. 2004). Urbanetz e Andrauz, (1999), bem como
Matta, Muller e Geber et al (2004), afirmam que o diagnóstico tende a ser atribuído às
414
mulheres que apresentam queixas de dor pélvica, dismenorréia, dispareunia, irregularidade
menstrual e, algumas vezes, esterilidade.
Encontram-se na literatura diversas teorias que visam estabelecer sua definição e
etiologia, como a Teoria do Transplante, da Metaplasia Celômica e da Indução. Dentre elas
destaca-se a primeira, descrita em 1920 por Sampson e ainda aceita atualmente, que postula:
“Células endometriais e fragmentos descamados durante o período menstrual são
transportados através de tubas uterinas para a cavidade peritonial, onde se implantam,
proliferam e se desenvolvem em lesões endometrióticas” (Urbanetz e Andrauz, 1999; Viscomi,
1995). A despeito da clara definição postulada, os fatores que permitem e/ou aumentam a
probabilidade
de
células
endometriais
implantarem-se
em
locais
ectópicos
são
indeterminados. Explicações contemporâneas indicam como possíveis fatores alterações na
auto-imunidade, além da participação de fatores genéticos e ambientais ligados à poluição
(Urbanetz e Andrauz, 1999; Viscomi, 1995).
Quanto às classificações da doença, esta pode variar conforme seu local de
acometimento, a histologia do tecido endometrial e o grau de severidade da doença (Abrão et
al, 1998). Acosta (1990) e a American Society for Reproductive Medicine (1995) propuseram a
classificação da doença em formas leve, moderada e grave, conforme as conseqüências
causadas pelas lesões, implantes e/ ou aderências periovarianas, já citadas anteriormente.
Geber et al (2004) afirmam que a maioria das mulheres apresenta endometriose mínima ou
moderada sem evidência física de problema na liberação de oócitos e sem disfunção
anatômica tubária. Desse modo, levanta-se a questão de como a endometriose leve/moderada
poderia interferir na fertilidade da mulher, discutindo a existência ou não de um mecanismo
de causa/efeito entre endometriose leve e infertilidade.
Em relação aos exames específicos destaca-se a laparoscopia, por sua ampla
utilização e eficácia. Este é um procedimento que, apesar de invasivo, permite confirmar o
415
diagnóstico e representa uma excelente opção terapêutica em muitas patologias pélvicas. A
laparoscopia é o único método que permite diagnosticar e classificar com precisão a
endometriose, porém nem sempre as lesões de endometriose se apresentam típicas. Diante
desses quadros duvidosos, deve-se colher material para a comprovação histopatológica
(American Society for Reproductive Medicine, 1995)
Em relação aos tratamentos, mulheres com endometriose podem atualmente
receber tratamento clínico hormonal como, por exemplo, a administração contínua de
anticoncepcionais orais; cirurgias reconstrutivas ou até mesmo técnicas de reprodução
assistida como Inseminação Intra-Uterina (IUI) ou Fertilização in vitro (FIV) (Geber et al, 2004).
Entretanto, segundo dados da American Society for Reproductive Medicine (1995), não existe
consenso na literatura acerca do tratamento da endometriose em pacientes inférteis, sendo
imprescindível a laparoscopia. Nesse contexto, questiona-se se lesões mínimas e leves devem
ser tratadas, mas defende-se que em suas formas moderadas e graves, o tratamento deve ser
feito no ato do diagnóstico laparoscópico. Assim, os focos são cauterizados, coagulados ou
vaporizados quando o laser é disponível, e as aderências são desfeitas na tentativa de
restabelecer a anatomia pélvica. Esse tratamento é normalmente complementado com drogas
que suprimem a produção estrogênica ou que antagonizam seus efeitos.
2. Os fatores psicológicos envolvidos na Endometriose:
Diante da falta de uniformidade das informações relativas à etiologia desta
patologia, é razoável considerar a influência de fatores psicológicos. Esta influência não deve
ser considerada apenas neste diagnóstico, e este, por sua vez, também não deve ser
compreendido como expressão exclusiva de problemas psicológicos. Deve-se então,
considerar a relação “recíproca” entre mente e corpo em todas as categorias diagnósticas,
como citado por McDougall (1991). Esta autora afirma que diante da dor psíquica, das divisões
416
internas, dos traumatismos universais e pessoais que a vida inevitavelmente provoca, o
homem pode criar uma neurose, psicose, escudo caracterial, perversão sexual, sonhos, obras
de artes e doenças psicossomáticas. Essas seriam as possibilidades do homem manter o
equilíbrio da economia pulsional e, especialmente, o sentimento de ter uma identidade. Entre
todas essas expressões da psique em conflito, destacam-se as últimas: as doenças
psicossomáticas.
Segundo McDougall (1991) a doença psicossomática é uma explosão no corpo, não
é uma comunicação neurótica e nem psicótica, mas tem uma função de ato, de descarga.
Nesses casos, há uma carência na elaboração psíquica e uma falha na simbolização, as quais
são compensadas por um agir, que busca a redução da dor psíquica pelo caminho mais curto.
Assim, o soma declara-se doente quando as defesas neuróticas e psicóticas ou as organizações
“perversionantes” falham ou tropeçam em seu funcionamento, porém, as doenças
psicossomáticas não exercem as mesmas funções protetoras. Assim, as manifestações
psicossomáticas são atribuídas a uma carência da capacidade de representar o conflito, de
onde há impossibilidade de recalcamento.
Para a compreensão do desenvolvimento da endometriose, e demais quadros
relacionados à infertilidade, os estudos fundamentam-se principalmente na abordagem
psicanalítica à luz das idéias psicossomáticas, que consideram a possibilidade de complexos
emocionais estarem envolvidos em sua etiologia ou manutenção, como apontam Langer
(1986), Perseval (1986) e outros.
A maioria dos estudos psicanalíticos dos transtornos psicogênicos da fecundação
aborda esse distúrbio somente nas mulheres, sugerindo explicações relacionadas à aceitação
ou não da feminilidade como possível fator etiológico. A compreensão desse transtorno da
vida adulta é possível somente se consideradas as etapas da evolução psicossexual do
indivíduo, propostas inicialmente por Freud (1905). Ele defendeu a existência de uma vida
417
sexual desde o nascimento, cujo desenvolvimento é marcado pela vivência do Complexo de
Édipo, que culmina na chamada sexualidade genitalizada. Para a compreensão da infertilidade,
autores como Langer (1986), Perseval (1986), Levy Jr. (1980), Maldonado (1992) e Tubert
(1996) destacam justamente a importância do desenvolvimento psicossexual e do Complexo
de Édipo, por seus desdobramentos fundamentais na construção da identidade sexual.
Nessas mulheres há uma constelação familiar comum (mãe como figura central e o
pai como secundária) e fatores que contribuem para a constituição de duas principais
situações psicodinâmicas: relações com a figura materna permeada por sentimentos de
hostilidade, inveja e ciúme, e/ou intensa rivalidade com o pai. A atitude de rejeição de uma
mãe fria provoca hostilidade na menina que, se sentindo seduzida pelo pai, passa a temer uma
atitude vingativa da mãe. Como a gravidez implica justamente numa identificação da mulher
com sua mãe grávida, a hostilidade dirigida inicialmente contra esta figura é vivenciada, nesse
momento, como passível de voltar contra a própria mulher. Assim, a impossibilidade de
identificação com a mãe grávida aliada à dificuldade de vivenciar de modo completo a etapa
edípica, seja porque o pai não se apresenta como suficientemente amoroso ou devido à
rivalidade com a mãe, podem levar a mulher ao desenvolvimento de uma atitude viril ou
infantil. Assim, ligada à mãe num Édipo negativo, a mulher fica impossibilitada de vivenciar
plenamente sua feminilidade, o que a conduz à esterilidade (Langer, 1986).
Assim, Langer (1986) afirma que as mulheres estéreis apresentam uma posição
ambivalente frente à maternidade e um desejo por um filho que, por algum motivo, não se
sentem no direito de ter. Estes conflitos podem ser expressos através de sintomas como atraso
menstrual ou pseudociese, em que a mulher está certa de ter conseguido o desejado, a
gravidez. Porém, esta é uma tentativa de negar tal incapacidade.
Em relação à endometriose, Maldonado (2002) defende que existem
características psicológicas comuns entre mulheres com endometriose, ainda que não exista
418
um número significativo de pesquisas científicas que comprove tal fato. De acordo com eles,
alguns traços de personalidade podem ser observados com freqüência, como perfeccionismo,
auto-exigência e capacidade de controle e comando. Eles também afirmam que os resultados
apontam para uma imaturidade emocional e o precário desenvolvimento psicossexual.
Nota-se que os diferentes estudos psicanalíticos apresentados buscam fatores
comuns que possam auxiliar na compreensão da problemática da infertilidade. Contudo, vale
ressaltar que a contribuição desses fatores é efetiva somente quando respeitada a
singularidade dos casos. Poucos autores como Perseval (1986) se concentraram no estudo da
paternidade e/ou infertilidade masculina. Segundo ele, a sua única diferença com relação à
psicogênese da infertilidade feminina é sua organização, pois os conteúdos são os mesmos.
Para compreendê-la é essencial reportar aos conflitos do homem com seus próprios pais, em
seu relacionamento real ou fantasmático, pois a paternidade coloca o homem diante da
transgressão da proibição edipiana e de um remanejamento profundo da libido.
Nota-se então a necessidade de estudos específicos para a melhor caracterização
dos casais inférteis devido à endometriose, que possibilite a verificação de diferenças e
similaridades entre esta e outras categorias diagnósticas da infertilidade, bem como a
compreensão mais profunda dos psicodinamismos e da organização da personalidade dessas
pessoas.
3. Objetivo:
Investigar, por meio de entrevistas e testes psicológicos projetivos, as
características psicodinâmicas de um casal infértil cuja mulher foi diagnosticada com quadro
de endometriose. Buscou-se também, como objetivos específicos, conhecer a história de vida
do casal, o modo como decorreu o seu desenvolvimento psicossexual, o relacionamento com
419
as figuras maternas e paternas, a assunção de sua identidade sexual e a qualidade do
relacionamento conjugal.
4. Método:
Este trabalho foi desenvolvido com base em abordagens metodológicas
qualitativas, típicas de estudos relativos às Ciências Humanas. Dentre as abordagens, foi
escolhida a perspectiva clínica de investigação seguindo o referencial teórico psicanalítico.
Para sua operacionalização, optou-se pela metodologia do estudo de caso, em que foram
utilizados os seguintes instrumentos:
1. Roteiro de Triagem, elaborado pela pesquisadora com base nos critérios de
inclusão/exclusão da amostra;
2. Entrevista semi-estruturada, com suporte de um roteiro, contendo tópicos relativos à
história pessoal, desenvolvimento psicossexual, relacionamentos interpessoais, sexualidade e
saúde reprodutiva;
3. TAT (Teste de Apercepção Temática), em forma reduzida, que busca investigar elementos
fundamentais do funcionamento psíquico e assim, identificar complexos e conflitos
inconscientes, tendências recalcadas patológicas ou não. A avaliação foi realizada segundo o
referencial de Shentoub (1970), conforme atualizado por Brelet-Foulard e Chabert (2005).
Segundo este referencial, a forma reduzida do TAT é composta por 15 cartões, a saber: 1, 2,
3BM, 4, 5, 6GF, 7GF, 9GF, 10, 11, 12BG, 13B, 19, 16 e 13 MF (Brelet-Foulard e Chabert, 2005).
5. Estudo de caso:
5.1. Apresentação:
420
Os membros do casal participante serão denominados de Helena e Afonso. Eles
foram selecionados no Ambulatório de Infertilidade do Departamento de Ginecologia e
Obstetrícia da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo, onde se
encontram em acompanhamento há mais de 1 ano. Helena e Afonso possuem 32 anos de
idade, estão juntos há 16 anos e casados há 5 anos. Eles trabalham o dia todo, ela como
secretária e ele como vendedor de produtos infantis.
Desde o início do casamento apresentavam o plano de ter filhos, momento em
que descobriram a dificuldade de engravidar. Há 3 anos Helena recebeu o diagnóstico de
endometriose leve, passou por duas tentativas mal sucedidas de tratamentos de fertilização
(laparoscopia e complemento hormonal), sendo a última realizada 6 meses antes de sua
participação neste estudo.
5.2. Resultados e discussão:
Esta síntese dos dados obtidos com Helena e Antônio constitui uma tentativa de
compreender a interação do casal, os resultados produzidos quando essas personalidades,
com seus psicodinamismos próprios, entram em interação. Dessa forma, buscou-se
compreender a influência desta interação na vivência da maternidade/ paternidade e,
conseqüentemente, da infertilidade.
Os dados iniciais obtidos dizem respeito ao primeiro encontro entre os
entrevistadores e o casal, em que foram feitas as apresentações e explicação detalhada da
pesquisa. As primeiras impressões dos entrevistadores foram positivas, pois comportamentos
não-verbais, como aproximação e troca de olhares, transmitiam um sentimento de
cumplicidade por parte do casal. Os dados obtidos indicam que há semelhanças relevantes da
421
história de vida de Helena e Afonso, especialmente quanto ao desenvolvimento emocional e
da sexualidade.
Entretanto, o período de infância foi vivenciado de forma muita distinta entre eles.
Helena estabeleceu fortes vínculos com as figuras parentais, e a chegada de irmãos mais novos
era vista de forma negativa, uma vez que estes se tornavam rivais pela disputa do amor dos
pais. Já Afonso esforçou-se por uma aproximação física e efetiva com os pais, que se
mantiveram bastante ausentes nessa fase de seu desenvolvimento. Nesse contexto, os irmãos
mais velhos, especialmente do sexo feminino, eram concebidos de forma positiva, uma vez
que assumiam o papel da figura materna, provendo-lhe afeto e cuidados necessários.
Entretanto, neste caso, a ausência dos pais e a carência afetiva conseqüente não foram
satisfeitas e o sentimento de privação mostra-se presente, especialmente em relação ao pai.
Entre as principais lembranças sobre infância, Afonso ressalta a diversão e o
apreço pelas brincadeiras, enquanto Helena afirma nunca ter se interessado por elas. Esse
desinteresse pelas brincadeiras pode sinalizar uma identificação precoce com as figuras mais
velhas, os pais. Apesar das diferenças na história, ambos afirmam possuir a sensação de que a
infância foi roubada ou finalizada precocemente, uma vez que, por diferentes motivos, não foi
possível gozar plenamente desse período como sinalizado nos trechos abaixo:
“(...) Oh, para falar a verdade eu para brincadeira sou uma negação. (...) Se você fizer
uma gracinha para mim você desanima, tudo para mim tem que ter uma coerência, uma
explicação (...). Nunca fui de brincar. Minha mãe fala que na infância eu brincava de boneca,
mas eu não lembro não (...). Eu sempre gostei de ler... acho que porque eu comecei a trabalhar
mais cedo, então eu acho que mudou, é diferente... então eu cuidava mais dos meus irmãos,
meus pais saíam para trabalhar então (...). Até hoje eu não sei andar de bicicleta (...)”. (Helena)
“(...) Eu comecei a trabalhar mesmo... registrado... com uns quinze anos... já ia pro...
vendia naquela época bijuteria e tudo... desde uns onze anos mais ou menos já trabalhava... já
tinha aquela... conseguir seu próprio dinheirinho.” (Afonso)
422
Quanto ao relacionamento com a mãe, ambos o conotaram positivamente, porém
também destacaram o afastamento afetivo existente, especialmente no caso de Helena.
“Isso, e eu nunca fui muito apegada com a minha mãe, nunca fui tão apegada a
ela quanto eu era com o meu pai. Parece que a gente passou a ter uma relação melhor depois
que eu tive endometriose.” (Helena)
“Boa, muito boa... brincava... era muito carinhosa... muito boa (...) Quer dizer, era
minha mãe lavar roupa, fazer almoço, pensar em deixar a janta pro outro que ia chegar já do
trabalho, e casa pra limpar e minhas irmã ajudava tudo, mas era muita coisa, né? Não tinha
aquele tempo já de sentar e ficar ou vamos conversar (...)” (Afonso)
Já a descrição do relacionamento com o pai dispara uma mobilização emocional
em ambos. Para Helena, este relacionamento é marcado por desejos incestuosos e, para
Afonso, por necessidades afetivas não satisfeitas. A morte dos pais constitui um marco em
suas histórias de vida e provocou, inicialmente, um distanciamento entre os membros das
famílias de ambos. A identificação com a figura paterna é nítida no caso de Helena, enquanto
que para Afonso ela surge de forma muito fragilizada, especialmente pela dificuldade em
contatar e elaborar as pulsões agressivas dirigidas ao pai, devido ao seu afastamento físico e
afetivo.
“(...) E quando eu tava na adolescência aí mais ainda sabe, meu pai era
maravilhoso, meu pai era tudo, sinto muita falta dele (...) Na fase de adolescência eu convivi
muito com ele, minha mãe trabalhava à noite e meu pai sempre foi muito boêmio, eu saia
muito com ele, eu tinha um pai... meu pai não era o meu pai, ele era pai das minhas irmãs e
meus irmãos, para mim acho que... eu tenho ele mais como um amigo sabe, ele foi muito
presente para mim como um amigo, um amigo assim que não tem igual(...) Com a minha mãe
eu sempre tive menos intimidade com a minha mãe, eu sempre tive intimidade com... meu pai
sempre foi amigo. Meu pai era e minha mãe é. Lá em casa a gente teve uma relação muito
diferente do normal. Além do meu pai ser enfermeiro ele era filho de índio, tinha uma cabeça
toda diferente” (Helena)
423
“Ele era guarda noturno... via mais de manhã só, e quando eu via ele, ele já
chegava numa fase já de... de ter... o contato já não dava mais porque ele chegava de manhã e
eu já ia pra escola, e aí a tarde não via que ele tinha ido trabalhar de novo e acho que foi até...
uma coisa assim que... superou um pouco a perda dele também quando faleceu porque não
tinha tanto... pra mim, até hoje assim, se for ver ele tá trabalhando, tá no emprego dele, tá
lá... não tem contato.” (Afonso)
A puberdade, com suas modificações corporais e surgimento dos interesses
sexuais, foi pouco descrita e constitui um tema de difícil acesso, por acionar fortes
movimentos defensivos. Helena e Afonso não tiveram muitas experiências de relacionamentos
amorosos, considerando apenas o namoro entre eles como a relação mais significativa. Ambos
relataram com riqueza de detalhes o período do namoro e o casamento, enfatizando o
companheirismo estabelecido. A iniciação sexual, vivenciada conjuntamente, foi contada
positivamente por Afonso, mas com descrição de sentimentos negativos vindos de um
despreparo emocional. Este também foi sentido por Helena que, por sua vez, fez conotações
ambivalentes sobre essa experiência. Seguem alguns trechos ilustrativos:
“(...) Não foi aquilo que o pessoal fala não. O povo fala ‘ai é lindo, maravilhoso’. Não
tem nada de lindo ou maravilhoso não. Mas eu acho que foi normal, foi prazeroso e tal, mas
nada do que a gente imagina não, ‘nossa é lindo, é prazeroso, é isso e aquilo’. Não, dói, é
chato, é incômodo” (Helena)
“(...) Foi... é... um jeito estranho... assim, do jeito que foi, né? (...)É, foi estranho por
causa da conseqüência, né? (...) Na maneira, nada planejado, vamos colocar assim...” (Afonso)
Helena e Afonso concebem o casamento como uma união que não provocou
mudanças relevantes em suas vidas, principalmente no que diz respeito à aquisição de novas
responsabilidades, comportamentos ou papéis. Nessa relação, destacam-se sentimentos de
companheirismo, amizade e diversão, em que o papel de objeto de apoio é assumido por
ambos. Porém, interesses e atividades sexuais não foram mencionados ou enfatizados. Dessa
424
forma, as pulsões e comportamentos sexuais são evitados e combatidos pela repressão,
indicando a dificuldade de ambos em vivenciar uma relação genitalizada, uma sexualidade
madura e adulta.
A paternidade e a maternidade estão atreladas a conteúdos ambivalentes por
parte de ambos os cônjuges, marcados pelo desejo e receio de ter filhos, justificado no relato
manifesto pela impaciência no contato com crianças.
“(...) Olha... um sonho, aquela coisa de ser mãe, de dar vida, isso é mais um sonho.
Sabe... hoje, eu tenho sobrinhos pequenos e eu fico com eles meia hora eu tenho vontade de
matar eles sabe, esses dias eu falei: Deus faz as coisas certas por linhas tortas, você já
imaginou eu com um desse aqui? Mas... eu sempre quis, sempre... e de repente não poder é
complicado” (Helena)
“(...) Às vezes, eu sou meio... um pouco impaciente com criança, mas eu como pai
eu... não sei (...). Vamos levar pra mim fazer aquele papel de pai também, né? Que eu não tive
por não ter... tempo, por meu pai não ter tempo, né? Igual eu penso em levar ele numa
pescaria, um companheiro de pesca, né? Pai e filho... de sentar ali e ensinar ele...” (Afonso)
Entretanto, ambos compreendem a chegada de um filho como uma forma de
crescimento pessoal e estabelecimento de uma verdadeira família. Dessa forma, ter filhos
constitui a única maneira de alcançar um desenvolvimento sexual pleno. Porém, a
possibilidade de assumir o papel de pai e de mãe aparece limitada por implicações físicas,
devido à infertilidade, bem como psicológicas, em que se destacam conflitos relativos à
assunção da identidade feminina e masculina.
No caso de Helena, ressaltam-se os conflitos edipianos não elaborados, a intensa
rivalidade feminina, bem como a rejeição de uma maternidade e sexualidade em que o espaço
para o prazer não é possível. Esta rejeição pode ser relacionada a uma barreira entre afeto
(prazer) e representação (idéia de maternidade), formada pelo forte mecanismo de repressão,
e fortalecida pelo comprometimento de sua capacidade criativa, presente desde a infância. A
425
dificuldade de aceitação e vivência da feminilidade pode ser ilustrada nas falas de Helena em
que relata sua rejeição à menstruação, insatisfação com o corpo, principalmente com o
volume dos seios, e relacionamento com outras mulheres.
“(...) Uh! Só de falá, ah! Eu falo que eu não tenho tanta TPM, eu tenho DPM, durante
a menstruação, é terrível nossa! (...) Não, até hoje, ninguém merece, aí eu sou muito nojenta
para essas coisas, ninguém merece, mas não tem jeito (...). Mas não me adaptei até hoje.”
“(...) Isso aqui é hormônio puro (Helena aponta para os seios), lá em casa ninguém
tem, ninguém merece!”
“Sempre me dei melhor com homem do que com mulheres, sempre me dei muito
melhor com o meu pai do que com a minha mãe, e me dava melhor com o meu irmão do que
com as minhas irmãs. (...) Eu acho homem mais sincero apesar de tudo, eu acho mulher muito
traiçoeira (...). Minha relação com o meu pai não tem igual, a imagem que eu tenho do meu
irmão não é igual para as minhas irmãs, sabe.”
Para Afonso, os conflitos relativos à assunção da identidade masculina dizem
respeito especialmente aos problemas de relacionamento com a figura paterna e sua
dificuldade de identificação com ela. Nesse contexto, os conflitos emocionais de Helena e
Afonso favorecem uma vivência mais infantil da sexualidade, em que a idéia de ter filhos surge
como uma forma de desenvolvimento pessoal, mas, ao mesmo tempo, implica no
enfrentamento desses conflitos que são, por sua vez, constantemente evitados.
Em relação ao enfrentamento da infertilidade, Helena forneceu dados importantes
relacionados ao seu prejuízo emocional e ao surgimento de sintomas depressivos como a culpa
por ser a “portadora” do problema. Apesar do esforço de ambos, Helena afirma que a
problemática da infertilidade e o sentimento de culpa interferem no relacionamento conjugal.
“(...) Hoje assim... apesar que eu tento controlar o máximo, mas no início era pior
porque elas (crises de choro) eram uma vez a cada 15 dias, e eu chorava demais, eu não me
controlava mesmo, então por mais que ele fizesse de tudo para me apoiar, para mim não tava
426
de bom tamanho, porque querendo ou não querendo por mais que ele participe, é um
problema meu, não é dele; ao ponto de quando ele foi fazer o espermograma eu rezar para dá
alguma coisa no exame dele, para tirar um pouco esse peso das minhas costas sabe. Então
hoje, gravidez me tira muito do sério; qualquer coisa relacionada à gravidez eu fico me
cercando sabe, para eu não me magoar (...) Acho que a princípio foi para não ter que
sentenciar ele a ficar do lado de uma pessoa que não pode ter um filho. Porque todo mundo, no
fundo, no fundo quer ter um filho, entendeu? Então eu acho que foi mais isso.” (Helena)
Já Afonso apresentou dificuldades para entrar em contato com este tema,
mostrando o uso de intensos mecanismos de defesa. Assim, ele limitou-se a mencionar sua
preocupação com o sofrimento da esposa diante dessa problemática. Nesse contexto, nota-se
que apesar do apoio mútuo manifesto no enfrentamento da infertilidade, há um
distanciamento e evitação por parte do marido, devido à sua dinâmica interna e formas de
manejar o sofrimento, que favorecem a culpabilização de Helena pela dificuldade em ter
filhos.
“(...) Não foi... normal... aí... ela julgou a culpa de até ser minha... aí eu fui fazer o
teste, aí viu que não era, aí foi ver, conversamos, aí... dei o apoio pra ela, aí ela... aí acho que
não ter jeito, aquela... parcela de culpa, né? De, às vezes, também o medo, né? De ela não
poder me dar um filho, aí eu falar assim: Puta, mas por que que eu vou ficar ela também?. (...)
Não é assim, só ter filho só... casamento, qualidade também não é só... constituir uma família,
né?(...)” (Afonso)
Por meio de uma análise geral das produções de Helena e Afonso diante das
pranchas do TAT, pode-se perceber que os conflitos emergentes se baseiam na oposição entre
desejos e proibições, assumindo um caráter neurótico. Destaca-se em ambos o uso
predominante de procedimentos de registro da labilidade e de registro rígido. No registro lábil,
é dominante a expressão de afetos, geralmente vinculadas ao acento dado às relações
interpessoais; já no registro rígido, destaca-se o apego à realidade com descrição de detalhes
objetivos dos cartões. A problemática edipiana ocupou o eixo central das produções, marcadas
427
também pelos conflitos interpessoais, em que surgem conteúdos relativos à infertilidade e
proeminência da angústia de perda do objeto e/ou de seu amor.
Para exemplificar, seguem abaixo trechos das produções de Helena diante dos
cartões 7BM e 13B, cujos conteúdos latentes referem-se, respectivamente, a relação mãe e
filha e ao medo de abandono dos pais.
“(...) Ah, não sei, não gostei não, é estranho eu vejo dois olhos assim, mas não é
pessoa. Animal, aí! Ou alguma coisa da história, sabe? Eu que tô viajando na história dela,
deixa quieto isso aí (...). Mas isso aqui me dá a sensação de alguma coisa ruim.”
“(...) Me dá a sensação de... me dá a sensação de tristeza, é... assim quando a
gente vê imagem na televisão de lugares simples sabe, apesar que essa criança está bem
vestida, me dá a sensação que é uma criança que precisava de mais colo, que passa fome,
sabe, ela está esperando alguém chegar com alguma coisa, ou o pai ou a mãe com alguma
coisa para ela comer. Eu espero que cheguem logo com a comida para passar isso.”
Em relação à estrutura de personalidade, Bergeret (1998) propõe critérios de
classificação que se apóiam em dados metapsicológicos e genéticos das organizações
psíquicas. Esses critérios baseiam-se em quatro fatores principais: natureza da angústia
latente, modo de relação do objeto, principais mecanismos de defesa e modo de expressão
habitual do sintoma. Desse modo, Bergeret (1998) acentua as condições de ligação das
diferentes organizações psíquicas entre si, seu estatuto do modo de funcionamento mental
latente e não apenas os aspectos aparentes dos comportamentos observados.
Em relação à linhagem estrutural neurótica, Bergeret (1998) afirma que estas
organizações têm acesso à triangulação genital sem frustrações precoces ou fixações prégenitais demasiadamente severas. Assim, a linhagem estrutural neurótica é caracterizada pela
428
organização da personalidade sob o primado do genital. O conflito central situa-se entre o
superego e as pulsões e desenrola-se no interior do ego. A angústia específica das
organizações neuróticas diz respeito à ameaça de castração, e sua defesa característica é o
recalque. Há outros mecanismos acessórios, mas não há recusa da realidade, uma vez que as
exigências do princípio do prazer ficam submetidas ao controle do princípio da realidade. A
relação de objeto neurótica realiza-se de modo genital e objetal, em que o objeto conserva
uma posição proximal e é buscado nesse sentido.
Com base nos critérios propostos por Bergeret (1998), a análise geral dos dados
sinaliza que os conflitos vivenciados por ambos os cônjuges são de ordem neurótica, por se
constituírem pela oposição entre proibições e desejos, especialmente vinculados ao recalque
das pulsões agressivas e sexuais. Desse modo, evidenciam-se aspectos da estrutura de
personalidade de Helena e Afonso, como o primado do genital e a angústia de castração.
Porém, elementos como o ponto de vista tópico, a gênese da relação parental e a
representação fantasmática diferenciam-se, indicando que Helena possui uma subestrutura
histérica de conversão, enquanto que Afonso apresenta uma subestrutura obsessiva.
6. Considerações Finais:
De acordo com essas características psicológicas observadas no casal, torna-se
possível assumir um determinado posicionamento em relação às postulações teóricas citadas
no início do trabalho.
Helena indica prejuízos em relação ao brincar e, conseqüentemente, na expressão
livre de sua criatividade. Esse resultado merece destaque, ao considerar os estudos feitos por
McDougall (1991), em que estes prejuízos interferem na formação da unidade psicossomática.
Para McDougal (1991), nas manifestações psicossomáticas há uma carência na elaboração
429
psíquica e uma falha na simbolização, as quais são compensadas por um agir, que busca a
redução da dor psíquica pelo caminho mais curto. Assim, as manifestações psicossomáticas
são atribuídas a uma carência da capacidade de representar o conflito, e a impossibilidade de
haver recalcamento.
Nesse contexto, as características de Helena corroboram com a teoria
de McDougal (1991) em que a blocagem na capacidade de representar ou de elaborar as
demandas instintivas que corpo dirige à psique constitui um fator psicológico importante na
etiologia e manutenção da endometriose.
Helena também apresentou peculiaridades na passagem pelo Complexo de Édipo,
que pode ter prejudicado o alcance de uma sexualidade genitalizada, fator comum entre as
mulheres inférteis conforme Langer (1986), Perseval (1986), Levy Jr. (1980), Maldonado (1992)
e Tubert (1996). Assim, é possível inferir que a baixa capacidade de fantasiar e a vivência
precária da sexualidade auxiliaram na formação de uma conversão somática simbolizada, uma
vez que o corpo converte-se em uma via possível de expressão dos conflitos psíquicos.
Os sintomas depressivos atrelados à infertilidade, como a expressão de tristeza,
baixa auto-estima e, especialmente, culpa por ser a portadora do diagnóstico de endometriose
são resultados que correspondem àqueles presentes na literatura, em estudos feitos por
autores como Mamede (2000), Moreira, Tomaz e Azevedo (2001), sobre as dificuldades
emocionais enfrentadas pelas mulheres inférteis. Neste contexto, pode-se inferir que os
fatores psicológicos de Afonso, como suas características obsessivas, a constante evitação e
repressão de conteúdos negativos podem ter contribuído para que Helena se tornasse portavoz da dor /sofrimento diante da infertilidade.
As peculiaridades da passagem pelo Complexo de Édipo e do desenvolvimento
psicossexual de Afonso e Helena podem ter como resultantes os prejuízos na capacidade de
assunção da paternidade e maternidade, marcada por sentimentos ambivalentes. Assim, as
430
características psicodinâmicas de cada membro sinalizam as dificuldades de enfrentamento e
elaboração de conflitos, mas a união entre os membros constitui uma forma apoio frente a
essas dificuldades.
7. Referências Bibliográficas:
Abrão et al. (1998). Classificações da endometriose: é tempo de reavaliar. Femina, v. 26, n. 8,
p. 677-680.
Acosta, A. (1990). Endometriose. In: Ferrari, A.N. (1990). Esterilidade Conjugal. São Paulo:
Roca, 1991.
American Society for Reproductive Medicine. (1995). Infertily: coping and decision making – a
guide for patients. Birmingham: Alabama.
Bergeret, J. (1998). A personalidade normal e patológica. (M. E. V. Flores, Trad.). 3ª ed. Porto
Alegre: ArtMed. (Trabalho original publicado 1996).
Brandi, M.C.A.C.; Pina, H.; Lopes, J.R.C. (1997). Epidemiologia da infertilidade. In: Donadio, N.;
Lopes, J.R.C.; Melo, N.R. (1997). Reprodução humana II: infertilidade, anticoncepção e
reprodução assistida. São Paulo: Organon.
Brelet-Foulard, F.; Chabert, C. (2005). Novo manual do TAT: abordagem psicanalítica. (A. J.
Lelé, Trad.). 1ª ed. São Paulo: Editora Vetor.
Di Paula, G.R.; Procacini, J.C. (1991). Enfoque do casal estéril. In: Ferrari, A.N. (1991). Esterilidade
Conjugal. São Paulo: Roca.
Ferrari, A.N. (1991). Esterilidade Conjugal. São Paulo: Roca.
431
Freud, S. (1976). Obras psicológicas completas de Sigmund Freud. (Salomão, Trad.). Rio de
Janeiro: Imago. (Trabalho original publicado em 1905).
Langer, M. (1986). Maternidade e Sexo. Porto Alegre: Artes Médicas.
Levy JR., M. (1980). Ginecologia psicossomática. Bol. Psiquiatria, v. 13, n. 1-4, p. 1-11.
Maldonado, M.T. (1992). Psicossomática e Obstetrícia. In: Mello Filho, J. Psicossomática hoje.
Porto Alegre: Artes Médicas.
Mamede, F.V. (2000). Aspectos psicossociais da infertilidade: um estudo monográfico.
(Monografia em Enfermagem). Faculdade de Filosofia Ciências e Letras de Ribeirão Preto,
Universidade de São Paulo. Ribeirão Preto: São Paulo.
Matta, A.Z., Muller, M.C. (2004). Endometriose: considerações teóricas para uma leitura
junguiana. Mudanças, v. 12, n. 1, p. 153-166.
McDougall, J. (1991) Em defesa de uma certa anormalidade: teoria e clínica psicanalítica. 4ª
ed. Porto Alegre: Artes Médicas.
Moreira, S.N.T.; Tomaz, G. (2001). Psicologia em Reprodução Humana. Femina, v. 29, n. 7, p.
70-81.
Perseval, G.D. (1986). A parte do pai. (T.C. Stummer, Trad.). Porto Alegre: L & PM.
Petracco, A.; Badalotti, M. (1997) Infertilidade feminina comportamental. In: Badalotti, M.;
Teloken, C.; Petracco, A. (1997). Fertilidade e infertilidade humana. Rio de Janeiro: MEDSI.
Shentoub, V. (1990). Manuel D’Utilisation du T.A.T. Paris: Bordas.
Tubert, S. (1996). Mulheres sem sombra: maternidade e novas tecnologias reprodutivas.
(Rodriguez, G., Trad.) Rio de Janeiro: Rosas dos Tempos.
432
Urbanetz, A.A.; Andrauz, A.M. (1999). Endometriose: epidemiologia e aspectos clínicos.
Femina, v. 27, n. 3, p. 249-255.
Viscomi, F (1995). Endometriose: Recentes Conceitos. Femina, v. 23, n. 8, p. 689-691.
World Health Organization (2002). Current Pratices and Controversies in Assisted Reproduction.
Report of a WHO Meeting. New Delhi: Byword Editorial Consultants.
433
Candidatura 22
Autores: Fernanda Mishima, Valéria Barbieri & Ana Paula Parada
Título: Apresentação do setor de triagem e atendimento infantil e familiar (staif) do centro de
pesquisa e psicologia aplicada (usp): uma experiência em formação
434
APRESENTAÇÃO DO SETOR DE TRIAGEM E ATENDIMENTO INFANTIL E FAMILIAR (STAIF) DO
CENTRO DE PESQUISA E PSICOLOGIA APLICADA (USP): UMA EXPERIÊNCIA EM FORMAÇÃO
Fernanda Kimie Tavares Mishima – [email protected]
Ana Paula Parada – [email protected]
Valéria Barbieri – [email protected]
Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto
Universidade de São Paulo
Brasil
RESUMO
Uma área complexa no trabalho do psicólogo se refere à psicopatologia infantil, pois os
sintomas infantis podem ou não perdurar por um longo período de tempo, levando a
patologias mais complexas na vida adulta. Por este motivo, uma abordagem precoce das
dificuldades psicológicas infantis e sua intervenção se tornam fundamentais na Psicologia
Clínica, além da inclusão da família no tratamento da patologia infantil. Na clínica-escola de
Psicologia da Universidade de São Paulo, campus Ribeirão Preto, foi implantado um serviço de
atendimento infantil, privilegiando o contato familiar e a conseqüente intervenção. Assim, foi
criado o Setor de Triagem e Atendimento Infantil e Familiar (STAIF). A triagem consiste em
quatro sessões: entrevista inicial com os pais da criança, sessão lúdica com a criança,
entrevista familiar diagnóstica (EFD) e devolutiva (com os pais e a criança em separado). Com
os dados advindos das triagens, pretende-se construir um programa informatizado para
organização do serviço e armazenamento de informações, em conjunto com profissionais de
outras áreas, como Ciências da Informação e Documentação e Informática Biomédica.
435
Finalmente, haverá maior rapidez do trabalho administrativo da clínica-escola, bem como
possibilidade de pesquisas de caráter sócio-demográfico e estudo das psicopatologias infantis,
além da eficácia da intervenção no atendimento infantil.
INTRODUÇÃO
Uma das áreas mais complexas para o psicólogo refere-se à psicopatologia infantil, já
que os sintomas infantis podem ou não perdurar por um longo período de tempo, levando a
patologias mais complexas na vida adulta. Somado a esse fato, os diversos sintomas
apresentados por uma criança são passíveis de estarem vinculados às vicissitudes do
desenvolvimento, quando o ego, ainda imaturo, recorre a variados mecanismos de defesa no
intuito de dominar a ansiedade, resultando em aparentes sinais de perturbação. Mesmo que
alguns desses sintomas possam desaparecer com o tempo, outros permanecem durante toda
a infância e adolescência, desembocando em quadros mais graves na vida adulta, de difícil
tratamento e, às vezes, irreversíveis. Nesse sentido, torna-se de importância fundamental para
a Psicologia Clínica a realização de uma abordagem precoce das dificuldades psicológicas, bem
como o estudo de tipos de intervenção mais eficazes para a população infantil.
Logo, em relação ao diagnóstico psicológico, é possível assinalar que, para que o
psicólogo o faça de maneira precisa e tranqüila, ele necessita reunir diversos conhecimentos
presentes em sua formação. Por se tratar de um processo longo, e, por vezes, dispendioso
financeiramente, o processo de triagem, que antecede a realização do diagnóstico psicológico,
termina por adquirir grande importância.
Apesar do elevado índice de prevalência de psicopatologia entre a população infantil,
existem poucos serviços voltados para o atendimento dessa demanda. As clínicas-escolas de
436
determinadas instituições são consideradas as mais comuns no oferecimento de tal serviço,
reunindo finalidades de extensão, pesquisa e ensino.
Nesse sentido, a avaliação psicológica com objetivos de triagem exerce fundamental
importância em clínicas-escola de Psicologia e em instituições de saúde (principalmente as
públicas), no intuito de selecionar urgências, realizar encaminhamentos adequados e melhor
organizar as listas de espera por atendimento.
Por oferecer informações relativas à estrutura e funcionamento de um indivíduo por
meio de uma avaliação rápida e com a utilização de poucas técnicas, o processo de triagem
passa a ser considerado uma das tarefas mais complexas da área da avaliação psicológica,
também por exigir do profissional amplo conhecimento científico e prático somados à
sensibilidade clínica.
Contudo, os estudos presentes na literatura científica acerca do tema da triagem
psicológica são escassos, surgindo de maneira superficial e indiretamente relacionados a
publicações que tratam de instrumentos psicológicos específicos, geralmente de natureza
objetiva. Em tais estudos, denota-se que a indicação do uso do instrumento para finalidades
de triagem é feita a partir da constatação de suas limitações, sugerindo que os possíveis erros
decorrentes das técnicas passam a ser toleráveis nessa situação, pois há oportunidades de
correção durante o processo psicodiagnóstico que necessariamente se seguirá.
Diante de tal fato, é possível assinalar a presença de uma espécie de inversão de
valores relativos ao trabalho de triagem que, de atividade altamente complexa, passa a ser
considerada como secundária ao psicodiagnóstico, sem usufruir de seu status.
Somado a essas dificuldades enfrentadas pela visão que se tem do processo de
triagem, deve-se enfatizar que a maioria das clínicas-escola de Psicologia e instituições de
437
saúde que contam com procedimentos de triagem dedica-se à população de adultos.
Geralmente tal procedimento é realizado por meio de uma única entrevista psicológica.
Portanto, é mais raro encontrar instituições com setores específicos destinados à
triagem de crianças e, nos locais onde eles existem, o processo é bastante semelhante àquele
realizado com a população adulta, com a diferença de que a entrevista é realizada
individualmente com os pais, ou em grupo. Dessa forma, a informação que se tem sobre a
criança é indireta, permeada pela percepção que os pais têm dela. Pensando nesses dois tipos
de entrevista, tem-se que a informação (compreendida não apenas pelo relato verbal
manifesto, mas incluindo toda a atmosfera afetiva) obtida por meio da entrevista de triagem
de um adulto que procura atendimento psicológico passa a ser considerada diferente daquela
que se tem quando os pais se referem ao filho.
Ao realizar a avaliação da personalidade infantil, surge um aspecto de suma
importância cada vez mais estudado e considerado na literatura, que diz respeito às influências
do meio familiar na saúde ou patologia da criança. Em relação a essas considerações, o papel
da mãe na construção da saúde mental do filho já é reconhecido há tempos, e apenas há bem
pouco surgiu o interesse pelo papel do pai (Barbieri, 2002; Mishima, 2007).
Quanto à relevância do contexto familiar no desenvolvimento emocional das crianças,
as idéias de Winnicott foram bastante difundidas, especialmente a presença de uma mãe
suficientemente boa, que é capaz de atender as necessidades da criança e realizar as funções
de holding, handling e apresentação de objetos. Dessa forma, a mãe exerce papel fundamental
na sustentação do ego incipiente do bebê, e, o pai, deve apoiá-la em sua função, além de que,
em estágios mais tardios do desenvolvimento, ele passa a agir como pessoa separada da
criança e da mãe e como ser sexuado (Winnicott, 1979/1990).
Dentre os critérios para o diagnóstico estrutural da personalidade, Bergeret
(1996/1998), por sua vez, destaca a gênese da relação parental do indivíduo, que é específica
438
ao registro neurótico, psicótico ou limítrofe. Para este autor, a estrutura da personalidade se
desenvolve a partir desses relacionamentos familiares. De acordo com estudos mais clássicos,
várias contribuições a respeito da influência do ambiente familiar (em sua estrutura e
dinâmica) proliferaram e, com elas, novas propostas de psicoterapia familiar, diádica e
conjugal. Apesar do reconhecimento tardio, esses desenvolvimentos alcançaram o âmbito do
diagnóstico psicológico, tanto que, atualmente, a avaliação infantil realizada de maneira
desvinculada do ambiente familiar passa a ser considerada incompleta.
No entanto, mesmo quando o ambiente familiar é levado em consideração, novas
questões surgem, especialmente relacionadas ao manejo prático da situação de avaliação (ou
de intervenção). Somado a esse fato, a literatura não oferece respaldo para fundamentar as
ações do profissional. Nesse sentido, Siskind (1997) é uma das poucas estudiosas a oferecer
uma contribuição importante referente a alguns impasses comumente encontrados na
psicoterapia infantil. Dentre eles, é possível destacar:
•
O terapeuta da criança deve ser ou não o mesmo dos pais? Caso seja diferente, os
pais devem ser atendidos como um casal ou individualmente?
•
Quando os pais de uma criança em tratamento são vistos pelo terapeuta do filho,
eles devem ser compreendidos também como pacientes ou não?
•
Os pais devem ser orientados diretamente com relação ao filho, ou isso significa
desrespeitar um direito deles?
•
Em que idade considera-se a criança já crescida para continuar a manter contato
regular com seus pais?
•
Até onde vai o direito da criança à confidencialidade e até onde vai o direito dos
pais de saberem o que está acontecendo no tratamento do filho?
•
A participação dos pais no tratamento da criança deve ser voluntária ou
compulsória?
439
•
No caso de pais separados, o que acontece em relação à confidencialidade, ao
contato com ambos os genitores, com padrastos e madrastas, o papel do psicólogo
em disputas de custódia e assim por diante?
Assim, é possível enfatizar que, embora relacionado principalmente ao trabalho
terapêutico, esses questionamentos de Siskind (1997) aplicam-se igualmente ao trabalho de
avaliação psicológica, incluindo a triagem, fato esse que confirma a complexidade dessa
atividade.
Portanto, após a exposição acima, é possível concluir que um trabalho de triagem
psicológica da população infantil deve, necessariamente, ser realizado de modo a proporcionar
uma compreensão global e integrada da família e, nesse contexto, não pode prescindir do uso
de instrumentos projetivos de diagnóstico. Essa compreensão global, que inclui a
determinação das tramas relacionais e sociais que resultam em psicodinamismos
idiossincráticos, implica a utilização de um modelo compreensivo de avaliação psicológica em
acordo com o modelo proposto por Trinca (1984).
Em relação à população que procura atendimento psicológico para as crianças nas
clínicas-escola e instituições de saúde é grandemente extensa e variada. Somado a esse fato,
tem-se a existência de um longo tempo de duração dos atendimentos psicológicos em nosso
país, tanto em função de necessidades específicas dos pacientes, mas também em relação às
preferências da maioria dos nossos profissionais. Logo, tal combinação faz com que haja um
aumento das filas de espera para atendimento. Conseqüentemente, até o paciente ser
convocado para o atendimento terapêutico propriamente dito, há um grande espaço de
tempo contado a partir do momento em que solicitou auxílio e foi feita a triagem. Tal situação
é passível, a nosso ver, de adulterar os processos transferenciais (e contratransferenciais) na
relação com o profissional, por ser capaz de gerar no usuário a sensação de que a instituição
negligencia o seu sofrimento, mesmo sabendo da dimensão dele. Portanto, a relação
440
estabelecida pelo paciente com o profissional pode aparecer permeada e entremeada pelos
sentimentos de impotência, desprezo e inferioridade. Diante dessa situação, torna-se de suma
relevância que a entrevista de triagem possa, portanto, ser explorada em todos os seus
recursos, o que significa incluir em seu processo uma característica não somente diagnóstica,
mas também interventiva. Situação semelhante também se aplica ao contato com os pais, e
mesmo nos casos em que se detecta que um deles, ou ambos, necessitam de atendimento
psicológico (em conjunto com a criança ou não) as intervenções nessa etapa podem auxiliá-los
na assimilação dos encaminhamentos. Essas funções seriam acrescidas àquelas já cumpridas
pelas triagens tradicionais, de detecção de urgências, organização de filas de espera e
realização de encaminhamentos, trazendo como vantagem o aumento da precisão diagnóstica,
dada a sua maior compatibilidade com os desenvolvimentos teóricos e técnicos da área clínica
de atuação.
Outro aspecto que merece destaque em relação ao processo de triagem realizado
pelas clínicas-escola diz respeito ao seu funcionamento e organização do trabalho,
particularmente relacionado ao percurso do paciente, pois este ainda vem sendo realizado por
meio da consulta a prontuários e fichas impressas de seguimento, guardadas em arquivos
convencionais. Tal processo faz com que os profissionais gastem muito tempo para a consulta
e acompanhamento dos pacientes, além de ocupar muitos espaços e inutilizar salas das
clínicas. Somado a esse fato, esse tipo de armazenamento faz com que haja uma dispersão de
informações que dificulta ou mesmo impossibilita a sua utilização para finalidade de pesquisa,
comprometendo o avanço científico a partir dessa rica fonte de dados.
Uma maneira possível de substituir os arquivos convencionais seriam os sistemas
informatizados de gerenciamento de dados. A utilização de tais sistemas no campo da
Psicologia Clínica já pode ser observada, segundo Prado (2005), com o desenvolvimento e
comercialização de softwares de testes psicológicos, bem como de correções dos mesmos.
441
Porém, poucos registros podem ser encontrados acerca de softwares voltados para a
informatização de serviços de Psicologia, visando à questão administrativa e a facilitação de
pesquisas na área.
Dentre os estudos disponíveis na literatura nacional, encontra-se o de Herzberg (2007),
sobre a informatização da clínica-escola “Dr. Durval Marcondes” do Instituto de Psicologia da
Universidade de São Paulo. Nesta, um sistema foi elaborado para o registro das informações
referentes, principalmente, a cadastro de pacientes, incluindo seus dados pessoais, histórico,
atendimento, o que possibilitava o melhor acompanhamento do percurso destes na clínicaescola, assim como o andamento dos atendimentos e os profissionais responsáveis pelos
mesmos. O programa também abarcava o cadastro de profissionais da própria instituição
(docentes, estagiários, pós-graduandos) e vinculados, contendo, entre outros dados, sua
especialidade e as modalidades de atendimentos realizados.
Assim, com a possibilidade de inserção dos dados em um sistema e sua posterior
filtragem dos dados, tornou-se viável a realização de pesquisas qualitativas, como
levantamento do número de pacientes que procuraram a clínica, faixa etária da demanda,
sexo e escolaridade predominantes, no período de 1999 a 2006 (Herzberg, 2007).
Esses estudos, que possibilitam avaliar a triagem em clínicas-escola, denotam
relevância em relação à melhor reformulação e adequação dos atendimentos prestados às
necessidades específicas da população que busca seus serviços Prado (2005). Assim, o
armazenamento dos registros de triagem em formato digital facilitaria o manuseio dos dados e
também o número das pesquisas na área.
Além dos estudos sócio-demográficos já citados, também seria possível a realização de
outros, relacionados a áreas mais específicas da Psicologia, como a psicopatologia infantil, caso
fosse possível o cruzamento da variedade de dados obtidos com as entrevistas psicológicas e
métodos projetivos realizados no processo de triagem.
442
OBJETIVOS
Diante de todas essas ponderações acerca da importância do processo de triagem em
relação à população infantil, e da relevância em se ter um sistema digital para armazenamento
de dados, o presente trabalho tem como objetivo realizar algumas considerações sobre a
natureza e a complexidade do trabalho de triagem e apresentar, ao final, um modelo de
processo dessa natureza dedicado à população infantil, que vem sendo implantado no Centro
de Pesquisa e Psicologia Aplicada da FFCLRP-USP.
A PROPOSTA DO SERVIÇO DE TRIAGEM E ATENDIMENTO INFANTIL E FAMILIAR (STAIF)
No presente momento, o STAIF é composto por uma docente da área de avaliação
psicológica infantil e quatro psicólogos (um contratado e três voluntários). Esses profissionais
realizam o atendimento das crianças e suas famílias que procuram a clínica, seja de forma
voluntário ou por meio de encaminhamentos.
No funcionamento anterior do Centro de Pesquisa e Psicologia Aplicada (CPA), os pais
ou responsáveis pela criança vinham pessoalmente ao local preencher uma ficha de inscrição e
aguardavam a chamada para a atenção psicológica. O trabalho de triagem propriamente dito
encontrava-se extinto há vários anos, em razão da aposentadoria da psicóloga por ele
responsável, sem que houvesse sua substituição. No início deste ano, com o apoio do
Departamento de Psicologia e Educação da FFCLRP e dos psicólogos voluntários, a docente em
questão encampou essa atividade.
Dessa forma, passou a ser instituído um modelo-padrão de atendimento em triagem,
composto por uma entrevista de anamnese realizada preferencialmente com ambos os pais,
443
que é seguida por uma sessão lúdica com a criança. Posteriormente é realizada uma entrevista
familiar diagnóstica (EFD) e entrevistas devolutivas com os pais e a criança. Esse modelo é
suficientemente maleável, de forma a permitir a inclusão de outras técnicas de avaliação
direcionadas tanto à criança quanto aos pais, quando se julga necessário. Portanto, trata-se de
uma forma estendida de triagem, que prioriza o uso de instrumentos abertos e não diretivos,
possibilitando a expressão das fantasias inconscientes de enfermidade e cura da criança e uma
avaliação mais acurada dos recursos e limitações dos pais, tanto isoladamente, mas também, e
principalmente, quando reunidos no grupo familiar, influenciando e influenciado pelos
dinamismos que ali se desenrolam. Assim, a “sintomatologia da criança” é avaliada no
contexto dos relacionamentos familiares, com a captura dos mecanismos projetivos e
introjetivos neles presentes, o que é fundamental para a identificação de quem é o paciente
real, independente da presença manifesta dos sintomas; nessa conjuntura é possível realizar
encaminhamentos apropriados.
Como houve a escolha pelo uso de métodos de avaliação fundamentados na
associação livre, axioma do psicodiagnóstico compreensivo de Trinca (1984), tem-se por
conseqüência o acatamento de outro de seus eixos estruturantes: a avaliação do material por
meio da livre inspeção, com predomínio do julgamento clínico para, a partir daí, ser possível
elucidar a significação inconsciente do sintoma, selecionar os seus aspectos centrais
distinguindo-os dos acidentais, e assim por diante.
O caráter interventivo que esse modelo de atendimento assume aparece em dois
contextos. O primeiro deles, mais bem conhecido, refere-se ao emprego de assinalamentos,
interpretações, holding e manejo por parte do profissional, fundamentado na hipótese
winnicottiana de que o pouco conhecimento que o profissional tem sobre seu paciente é
contrabalançado pelo profundo insight que ele consegue alcançar nesses contatos iniciais
(Winnicott, 1957/1993). Com referência ao segundo contexto interventivo, ele surge no
444
momento em que se propicia à criança na sessão lúdica (e ao adulto na Entrevista Familiar) a
possibilidade de expressão por meio do brinquedo, que permite, muitas vezes, restabelecer a
conexão entre os processos primário e secundário de pensamento, dado o acesso que a
atividade lúdica permite aos elementos mais primitivos da personalidade. Tal efeito, também
observado por Winnicott (1971/1975), é responsável por sua assertiva de que o brincar é uma
terapia universal.
De acordo com estudos realizados, foi possível notar a existência de divergências
teóricas entre autores e desses com os objetivos do trabalho de triagem da clínica-escola.
Dentre elas, encontram-se as diferenças entre conceito de hora de jogo diagnóstica e hora de
jogo terapêutica. Para Ocampo, Arzeno e Piccolo (2001), a hora de jogo diagnóstica é diferente
da terapêutica, pois só a segunda é capaz de proporcionar mudanças estruturais por meio da
intervenção do psicólogo. Contudo, na prática de triagem realizada na clínica-escola do CPA, a
hora do jogo diagnóstica já funciona como hora de jogo terapêutica, já que a intervenção do
psicólogo pode provocar essas mudanças, sendo que o processo de triagem não visa só a uma
coleta de dados para futuro encaminhamento, mas, também, a ação do terapeuta sobre a
problemática envolvida.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
De acordo com essas características diagnósticas e interventivas do trabalho realizado
no STAIF, torna-se possível assumir um determinado posicionamento em relação a algumas
das questões levantadas por Siskind (1997). A principal delas é a de que nessa proposta, tanto
a criança quanto os seus pais são vistos desde o início como pacientes, já que se parte do
pressuposto de que não há patologia infantil que não esteja, pelo menos de certa forma,
vinculada ao ambiente familiar. Nesse sentido, há concordância com o pensamento de Soifer
(1992) de que mesmo nos casos em que a disfunção da criança seja de ordem claramente
445
orgânica, a forma como o ambiente a abordará tem efeitos importantíssimos no
desenvolvimento posterior. Com relação ao caráter voluntário ou compulsório da participação
dos pais no atendimento da criança, a despeito do relato de sua importância, optou-se pela
voluntariedade, já que as imposições são contraproducentes em qualquer tipo de atendimento
psicológico; neste caso específico, considera-se que elas podem contribuir para enrijecer
defesas do tipo falso self, extremamente prejudiciais ao desenvolvimento próprio e do filho.
Outras considerações de ordem ética como o respeito à liberdade individual e a consideração
de que são de fato os pais os principais responsáveis pelo filho, também sustentam tal decisão,
exceto em casos extremos. Com relação à questão sobre até que ponto uma orientação do
profissional implica violar os direitos dos pais, nos momentos em que elas são feitas, não
assumem jamais um caráter diretivo, mas são efetuadas no contexto da área da
transicionalidade dos pais, permitindo-lhes uma apropriação pessoal e significativa delas, pois
eles próprios também são considerados pacientes.
Somado a esse fato, a equipe do STAIF tem mobilizado esforços para a construção de
um programa informatizado no intuito de facilitar a organização do serviço e armazenamento
de informações no Centro de Pesquisa e Psicologia Aplicada (CPA) da FFCLRP – USP. Tal
programa está sendo construído em sistema de colaboração entre profissionais e dos cursos
de Psicologia, Ciências da Informação e Documentação e Informática Biomédica. A
informatização desse serviço deverá abranger tanto os dados relativos à identificação dos
pacientes e seu percurso no CPA, como aqueles procedentes da entrevista de anamnese
realizada com os pais, da sessão lúdica e da entrevista familiar.
Nesse contexto, busca-se a congregação das atividades de extensão com as de
pesquisa, bem como uma avaliação futura dos resultados que permita examinar as
contribuições e restrições desse modelo de trabalho em triagem infantil, tanto no que se
446
refere às crianças e seus pais, mas também à sua adequação em relação aos objetivos gerais e
específicos de instituições que oferecem atendimento psicológico à população.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
Barbieri, V. (2002). A família e o Psicodiagnóstico como recursos terapêuticos no tratamento
dos transtornos de conduta infantis. Tese de Doutorado apresentada ao Instituto de
Psicologia da Universidade de São Paulo. São Paulo: São Paulo.
Bergeret, J. (1998). A personalidade normal e patológica. (M. E. V. Flores, Trad.). 3ª. ed. Porto
Alegre: ArtMed. (Trabalho original publicado 1996).
Herzberg, E. (2005). Gerenciamento informatizado de uma clínica-escola de psicologia. Tese de
Livre-Docência, Instituto de Psicologia, Universidade de São Paulo, São Paulo. Recuperado
em 8 de julho, 2008, de http://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/livredocencia/47/tde12032008-101133/
Mishima, F. K. T. (2007). Investigação das características psicodinâmicas de crianças obesas e
de seus pais. Dissertação (Mestrado em Psicologia) – Faculdade de Filosofia, Ciências e
Letras de Ribeirão Preto, Universidade de São Paulo. Ribeirão Preto: São Paulo.
Ocampo, M. L. S., Arzeno, M. E. G., & Piccolo, E. G. (2001). O processo Psicodiagnóstico e as
técnicas projetivas. (M. Felzenswalb, Trad.). 10ª. ed. São Paulo: Martins Fontes.
Prado, O. Z. (2005). Softwares para psicologia: regulamentação, produção nacional e pesquisas
em Psicologia Clínica. Boletim de Psicologia, LV, 189-204. Recuperado em 8 de julho, 2008,
de http://pepsic.bvs-psi.org.br/pdf/bolpsi/v55n123/v55n123a06.pdf
Siskind, D. (1997). Working with parents. London: Jason Aronson Inc.
447
Soifer, R. (1992). Psiquiatria infantil operativa: psicologia evolutiva e psicopatológica. Porto
Alegre: Artes Médicas.
Trinca, W. (1984). Diagnóstico psicológico: a prática clínica. São Paulo: EPU.
Winnicott, D. W. (1975). O brincar e a realidade. (J. O. A. Abreu; V. Abreu, Trad.). Rio de
Janeiro: Imago. (Trabalho original publicado em 1971).
Winnicott, D. W. (1990). O ambiente e os processos de maturação. (I. C. S. Ortiz, Trad.). Porto
Alegre: Artes Médicas. (Trabalho original publicado em 1979).
Winnicott, D. W. (1993). A família e o desenvolvimento individual. (M. B. Cipolla, Trad.). São
Paulo: Martins Fontes. (Trabalho original 1957).
448
Candidatura 23
Autores: Sónia Pereira, Margarida Gaspar Ramos e Isabel Leal
Título: Cultura, Iniquidade Social e Género: Contributos Para um Programa de Educação Sexual
449
450
CULTURA, INIQUIDADE SOCIAL E GÉNERO: CONTRIBUTOS PARA UM PROGRAMA DE
EDUCAÇÃO SEXUAL
Sónia Pereira*29, Margarida Gaspar de Matos** & Isabel Leal***
RESUMO: Nos últimos anos as investigações sobre a sexualidade na adolescência têm
proliferado um pouco por todo o mundo. No entanto, os estudos qualitativos são ainda
escassos, especialmente no que diz respeito ao estudo dos factores que devem ser
trabalhados em contexto interventivo e em populações específicas. Objectivos: O presente
estudo procura caracterizar os factores de risco/protecção associados à sexualidade dos
adolescentes migrantes, com o intuito de delinear um programa de intervenção adaptado a
esta população. Método: É utilizada uma metodologia qualitativa, através da utilização da
técnica do grupo focal, onde são analisados relatos de 72 adolescentes distribuídos por 6
grupos focais (provenientes de duas escolas inseridas em ambientes socioculturais distintos).
Resultados: São identificadas diferenças na forma como os jovens dos diferentes grupos vivem
a sexualidade. Os jovens que vivem em meios mais carenciados destacam-se por terem menos
informação, por comunicarem menos com os pais e por terem maior tendência para
comportamentos de risco. Discussão: Verificou-se que os jovens são diferentes, no que diz
respeito ao género, cultura e condições económicas, sendo fundamental que se desenvolvam
programas de educação sexual que tenham em conta as especificidades de cada grupo-alvo.
Palavras-chave: cultura, iniquidade, género, adolescência, prevenção, sexualidade, grupos
focais, crenças, informação, factores protectores, factores de risco, gravidez, VIH/SIDA,
infecções sexualmente transmissíveis, educação sexual.
29
* Projecto Aventura Social, Faculdade de Motricidade Humana/UTL
** Projecto Aventura Social, Faculdade de Motricidade Humana/UTL, Centro da Malária e Outras
Doenças Tropicais/IHMT/UNL
*** Instituto Superior de Psicologia Aplicada
Toda a correspondência deve ser enviada para: [email protected]
451
CULTURE, SOCIAL INIQUITY AND GENDER: CONTRIBUTES FOR A SEXUAL EDUCATION
PROGRAM
ABSTRACT: In the past few years, studies about sexuality in adolescence had proliferated all
over the world. Currently, there are few qualitative studies about sex behaviour in early
adolescence and there is little practice-based information concerning interventions designed to
reduce risk-taking sexual behaviours, especially in adolescents of specific social background.
Objectives: The main objectives of this investigation are to understand and characterize risk
and protective factors associated to sexuality of adolescents, seeking also a comparison of
culture, economic status and gender. Method: Various aspects of sexuality in early
adolescence are explored by qualitative analysis via focus groups. The participants of this study
are 72 students from 8th grade. They come from different social background. Results: This
study identified differences in how young people from different groups live sexuality.
Adolescents from migrant communities and from families with low socioeconomic status tend
to have less information, less communication with parents and more risky sexual behaviour.
Discussion: Gender, culture and socioeconomic status are associated to differences in sex
behaviour among adolescents. The development of programs about sexual education that
have in account the specificities of each group is a very important issue.
Key words: culture, iniquity, gender, adolescence, prevention, sexuality, focus groups, beliefs,
information, protective factors, risk factors, pregnancy, HIV/AIDS, sexually transmitted
infections, sexual education.
A adolescência é uma etapa exploratória, onde se colocam em cena acontecimentos e
comportamentos que podem influenciar a saúde dos indivíduos. A sexualidade é uma área de
grande importância no desenvolvimento do adolescente e, apesar de existir cada vez mais
informação e de proliferarem métodos que garantem uma sexualidade segura, as infecções
sexualmente transmissíveis (IST’s) e a gravidez não planeada continuam a ser realidades
difíceis de combater. As populações carenciadas continuam a apresentar mais fragilidades no
452
que diz respeito à vivência de uma sexualidade saudável e as condições económicas afectam
em grande medida o bem-estar, a saúde e o desenvolvimento dos jovens que vivem em
situação de iniquidade social. A pobreza e o desenraizamento cultural estão habitualmente
associados a condutas problemáticas e adopção de comportamentos de risco em diversas
áreas, nomeadamente na sexualidade. Por esta razão, são os adolescentes mais carenciados
que mais necessitam de uma intervenção urgente, efectiva e eficaz no que diz respeito à
promoção da saúde e da sexualidade saudável.
A sexualidade na adolescência é um tema que tem merecido a atenção dos
investigadores nos últimos anos um pouco por todo o mundo. No entanto, nem
sempre os estudos efectuados valorizam a vertente qualitativa, o que permitiria a
obtenção de informações que de outra forma não seriam identificadas. Também
são escassos os estudos destinados a populações específicas, com o intuito de
identificar pistas para a construção de acções interventivas e de trabalho com a
comunidade, especificamente adaptadas às necessidades e especificidades da
população-alvo.
O objectivo deste trabalho é o de aprofundar a compreensão dos aspectos que
influenciam a sexualidade dos adolescentes e determinam as suas decisões,
nomeadamente no que diz respeito a crenças, atitudes e comportamentos de risco.
Pretende-se também enfatizar a importância da educação sexual nas escolas,
apurando quais são os factores que devem ser trabalhados ao nível da intervenção
e personalizar os seus conteúdos, para que esta seja adaptada a populações
específicas e de diferentes condições sociais.
Adolescência, comportamentos de risco e sexualidade
453
A adolescência representa um período pleno de comportamentos, sentimentos e
experiências intensas, que nem sempre surgem de forma tranquila. O impacto negativo dos
comportamentos de risco e o perigo que implicam para o adolescente justifica a criação de
inúmeras estratégias de promoção da saúde nesta faixa etária (Malik, Oandasan, & Yang,
2002).
A sociedade assistiu a mudanças profundas na sexualidade. Actualmente a gravidez não
desejada permanece um problema difícil de resolver, mas o aparecimento do VIH/SIDA e a
proliferação das IST’s são fenómenos que se têm dispersado um pouco por todo o mundo,
incluindo Portugal. A antecipação das primeiras experiências sexuais, associada à idade cada
vez mais tardia do primeiro relacionamento longo e estável alargou o período de relações
sexuais instáveis. Este fenómeno aumentou a vulnerabilidade dos adolescentes a IST’s
(Charlotte, Fitzjohn, Herbison, & Dickson, 2000).
A informação é considerada um factor importante, pois está habitualmente associada à
adopção de comportamentos protectores. Embora há algumas décadas atrás fosse difícil
encontrar informação sobre sexualidade, actualmente é fácil obter conhecimentos sobre esta
temática. Mas para que esta informação se traduza em comportamentos protectores, é
fundamental que a informação transmitida esteja correcta. Por outro lado, a relação entre
informação e comportamento nem sempre é linear (Camargo & Botelho, 2007; Martins,
Nunes, Muñoz-Silva; Sanchez-Garcia, 2008). O comportamento sexual é influenciado por
diversas situações, crenças, atitudes e comportamentos. Kirby (2001a) identificou mais de cem
razões que levam um adolescente a adoptar comportamentos de risco face à sexualidade, tais
como (a) factores económicos, (b) características da comunidade, (c) estrutura familiar, (d)
influência dos pares, (e) características biológicas, (f) relação com a escola, (g) perturbações
emocionais, (h) crenças e atitudes sobre sexualidade, entre outros. Estes factores devem ser
trabalhados no âmbito da promoção da saúde sexual e reprodutiva. Existem outros factores,
454
para além da informação, que podem afectar as decisões relativas ao comportamento sexual
dos adolescentes. O comportamento sexual depende fortemente do contexto social, da
cultura, da forma como somos educados e das crenças. Estes factores podem gerar
comportamentos de risco, que constituem ameaças reais à saúde do adolescente (Muluka, &
Slonim-Nevo, 2007; Parker & Camargo, 2000; Pontes et al, 2004).
Muitos dos comportamentos relacionados com a promoção da própria saúde são
aprendidos no contexto familiar durante os primeiros anos de vida, onde os pais e os
familiares mais próximos funcionam como modelos (WHO, 2000). O surgimento da
adolescência implica paralelamente um certo afastamento da segurança do meio familiar,
associado a uma progressiva aproximação do grupo de pares. A busca da identidade, a procura
de autonomia e a necessidade de pertencer ao grupo leva por vezes o adolescente a adoptar
comportamentos de risco e a deixar que as decisões dos seus pares determinem as suas
escolhas (Albino, Vitalle, Schussel, Batista, 2005; Arilha e Calazans, 1998, cit. por Vieira, 2008;
Borges, Latorre, & Schor, 2007; Martins, Nunes, Muñoz-Silva; & Sanchez-Garcia, 2008).
A relação entre o adolescente e o seu grupo de pares é marcada pela intensidade. Esta
intensidade pode ser perigosa ou protectora, exigindo que sejam delineados programas de
promoção da saúde que tenham em conta as especificidades desta faixa etária, evitando ser
demasiado simplistas. Actualmente o adolescente passa a maior parte do seu tempo na escola,
sendo este um ambiente privilegiado para a realização de aprendizagens que promovam a
saúde. Uma escola promotora de saúde deve ser considerada como fonte de desenvolvimento
de atitudes e comportamentos orientados para a promoção da saúde e bem-estar (WHO,
2000).
Pobreza, etnicidade e iniquidade
455
Os factores socioculturais podem influenciar a sexualidade e o planeamento familiar dos
indivíduos (Kirby, 2001; Singh, Darroch, & Frost, 2001). A gravidez não desejada afecta
maioritariamente as classes mais desfavorecidas, o mesmo acontece em relação ao início
precoce da vida sexual (Singh, Darroch, & Frost, 2001). Esta é uma das razões que justifica a
importância do investimento em programas de educação sexual que se destinem
especialmente a estas populações.
O VIH/SIDA, a gravidez e as IST’s afectam frequentemente jovens pertencentes estes
grupos populacionais socialmente e economicamente desfavorecidos, nomeadamente
indivíduos pertencentes a minorias étnicas (Aronowitz, 2005; Aronowitz, Todd, Agbeshie, &
Rennells, 2007; Nagel, 2000; Ogungbade, & James, 2005; Parker, 1997; Parker, 2001; Parker &
Camargo, 2000; Rumbaut, 2005; Sikkema et al, 2005). Estes jovens podem apresentar uma
tendência para a prevalência de condutas problemáticas, como início precoce da vida sexual
(Carvajal, 1999; Larkins, 2007; Matos et al, 2006; O'Donnell, Dash, JeanBaptiste, Stueve, &
Wilson, 2002), menor utilização de contraceptivos (Brückner, Martin, & Bearman, 2004; Matos
et al, 2006), menor utilização do preservativo (Larkins, 2007; Ogungbade, & James, 2005),
consumo de substâncias (Matos et al, 2006; Parker & Camargo, 2000; Pontes et al, 2004),
relações sexuais associadas à violência e relações sexuais casuais (Parker & Camargo, 2000;
Pontes et al, 2004), relações sexuais associadas ao consumo de substâncias (Larkins, 2007;
Rashad & Kaestner, 2004).
Blum et al (2000) consideram que estes resultados podem dever-se à etnicidade, mas
existe também um peso importante de outros factores, nomeadamente a pobreza e o padrão
de comportamento familiar. Estes autores consideram que a etnicidade não é o único preditor
de uma sexualidade pouco segura, existindo a necessidade de desenvolver perspectivas mais
abrangentes que englobem também conceitos como a pobreza ou a iniquidade. Estes autores
456
sugerem o desenvolvimento de estudos qualitativos que explorem os factores que
determinam o comportamento sexual destes adolescentes, uma vez que os resultados obtidos
através de estudos quantitativos apresentam grandes variações individuais e resultados
bastante heterogéneos.
Nestas populações existem diferenças de género, que mostram como a forma implícita
como a educação influencia as crenças dos adolescentes. As raparigas recebem da família
mensagens negativas acerca da sexualidade, que é vista como algo associado à culpa e
vergonha (Ndinda, Chiweni, Uzodike, & Okeke, 2007; Pacheco-Sánchez, 2007). Os rapazes
recebem frequentemente mensagens que associam a sexualidade à virilidade, sendo aceitável
ter várias parceiras e esperado que sejam os homens a decidir se querem ou não usar
preservativo (Ferguson, Sandelowski, Quinn, & Crouse, 2006; Pacheco-Sánchez, 2007).
Alguns investigadores exploraram as crenças que os indivíduos migrantes e de baixo
estatuto socio-económico têm acerca do VIH/SIDA, o que influencia a adopção de
comportamentos sexuais seguros ou de risco (a pessoa infectada tem mau aspecto, o tempo
de transmissão é limitado, os problemas só acontecem aos outros, o preservativo é demasiado
caro, usar preservativo é sinónimo de desconfiança e promiscuidade) (Aarons & Jenkins, 2002;
Connell, McKevitt, & Low, 2004; Ekere, Ogungbade, Gbadebo, Osemene, Meshack, & Peters,
2005; Juarez, & Martin, 2006; Manuel, 2005; Merchán-Hamann, 1995; Moore, 2006;
Ogungbade, & James, 2005; Parker & Camargo, 2000).
No que diz respeito à prevenção da gravidez, os contraceptivos orais nem sempre são
aceites pelas adolescentes carenciadas ou desenraizadas em termos culturais. A falta de
informação sobre os efeitos secundários e a ausência de locais onde possam esclarecer as suas
dúvidas fazem prevalecer crenças (gravidez como um mal necessário, como sinónimo de
feminilidade) e são os principais factores que determinam a não aderência a estes fármacos
(Clark, Barnes-Harper, Ginsburg, Holmes, & Schwarz, 2006; Mushi, Mpembeni, & Rose, 2007).
457
Outro aspecto que influencia fortemente os comportamentos sexuais dos adolescentes
migrantes é a pressão dos pares (Aarons & Jenkins, 2002), que influencia geralmente decisões
relativas ao início da vida sexual e à utilização de preservativos (Camargo & Botelho, 2007;
Stanton et al, 2002; Whitaker & Milleer, 2000).
Entre os adolescentes mais carenciados existem alguns factores protectores que estão
correlacionados com maior adopção de comportamentos sexuais saudáveis, nomeadamente a
detenção de informação correcta acerca de VIH e prevenção de IST (Juarez, & Martin, 2006),
comunicação com os pais, onde é permitida a discussão aberta de temas relacionados com a
sexualidade (Aronowitz, 2005; Stanton et al, 2002; Whitaker & Milleer, 2000). No entanto,
nem todos os pais se mostram à vontade para abordar estas temáticas e os progenitores com
menor nível socio-económico e menor nível de escolaridade apresentam mais dificuldade em
falar sobre sexualidade, por não terem conhecimentos suficientes sobre prevenção do
VIH/SIDA e IST´s (Lefkowitz, Boone, Kit-fong, & Sigman, 2003). A informação transmitida pelos
pais exige um complemento facultado pela escola, pelo centro de saúde e pela comunidade.
A aprendizagem sobre a escolha de uma sexualidade saudável e sem comportamentos
de risco requer uma intervenção efectiva e precoce (Cláudio, & Sousa, 2003). Para que se
obtenham bons resultados são necessários investimentos sociais estruturais, especialmente no
que diz respeito ao acesso universal à Educação e à Saúde (Taquette et al., 2005).
MÉTODO
Participantes
Os jovens que participaram no estudo frequentam num externato (classe
média, média-alta) e uma escola pública (inserida numa zona onde vivem
maioritariamente jovens migrantes e/ou carenciados). Foram organizados 6 grupos
458
focais, três em cada escola (rapazes, raparigas e misto), cada um com 12 alunos
(total: 72 alunos). A idade dos alunos varia entre os 13 e 15 anos (8º ano de
escolaridade). Os grupos são homogéneos e representativos da população que se
pretende investigar, em relação à idade, nível educacional e nível socioeconómico.
Procedimento
No presente estudo é utilizada uma metodologia qualitativa, através da utilização
da técnica do grupo focal. Este método de investigação permite a obtenção de
informações sobre determinado assunto (foco), onde todas as opiniões proferidas
pelos participantes são consideradas válidas. A técnica do grupo focal procura obter
um conhecimento mais vasto da perspectiva de cada grupo, explorando as suas
ideias e pontos de vista, opiniões, crenças, valores, discurso, compreensão dos
participantes sobre a investigação (Edmunds, 1999; Matos, Gaspar, Vitória, &
Clemente, 2003; Matos, Gonçalves, & Gaspar, 2005; Morgan, King, & Krueger, 1998;
Vogt, King, & King, 2004; Westphal, Bógus, & Faria, 1996; Vogt, King, & King, 2004).
Este método de avaliação é indicado para vários tipos de investigações,
nomeadamente exploração de crenças e atitudes sobre os mais variados temas e
observação de diferenças culturais entre grupos (Kitzinger, 1995). Os materiais
utilizados foram: um gravador áudio e um bloco de notas, onde foram sendo
registadas as intervenções dos participantes.
Os grupos têm como foco principal o tema “Sexualidade: informação, crenças, atitudes e
comportamentos” e pretende-se clarificar diversas questões relacionadas com os
comportamentos sexuais dos adolescentes. As questões lançadas são as seguintes: 1)
459
diferenças de género e diferenças culturais; construção de papéis associados à sexualidade;
afectos e emoções; 2) pressões dos pares ; 3) sexo seguro; 4) educação sexual.
RESULTADOS
As categorias mais frequentes, ou seja, que estiveram presentes em quase todos os
grupos, foram as seguintes:
Diferenças de género: De um modo geral, os alunos consideram que existem claras
diferenças entre rapazes e raparigas, relativamente à forma como vivem a sexualidade “somos
diferentes” (rapaz).
Factores socioeconómicos e culturais: Nesta categoria são referidos alguns aspectos
associados às diferenças entre adolescentes que vivem em situação de iniquidade social e
adolescentes provenientes de outros países. De um modo geral, tanto os jovens do externato
como os jovens da escola consideram que existem diferenças. No entanto, as respostas dos
alunos do externato mostram maior distanciação/discriminação face aos jovens mais pobres
e/ou de outras raças, assim como em relação aos jovens que frequentam as escolas públicas:
“os adolescentes de outras escolas são diferentes” (rapariga). As respostas dos alunos da
escola apresentam exemplos concretos e casos que conhecem de perto, do bairro social onde
muitos vivem. Não são identificadas diferenças entre as opiniões das raparigas e dos rapazes.
Fontes de informação: Apesar de referirem diversas fontes de informação, as conversas
sobre os pais e professores são as que geram mais polémica e intervenções entre os alunos de
todos os grupos. São identificadas algumas diferenças entre escola e externato, especialmente
ao nível das conversas sobre sexualidade com os pais (os pais dos jovens que frequentam a
escola reagem com mais agressividade). No que diz respeito às opiniões emitidas, não são
encontradas diferenças entre rapazes e raparigas. No entanto, é de salientar que as raparigas
460
são mais participativas que os rapazes. Estes mostram-se sempre mais inibidos, tanto nos
grupos da escola como nos grupos do externato.
Pressão dos pares: A maior parte dos jovens refere que a pressão dos pares para iniciar a
vida sexual mais cedo é uma realidade e afecta essencialmente rapazes e alunos do externato.
Idade de início das relações sexuais: Os jovens do externato referem mais vezes o
adiamento do início da vida sexual, enquanto que os jovens da escola referem mais a
antecipação. No entanto, a grande maioria refere que não existe uma idade ideal, sendo mais
importante o grau de maturidade do jovem e o facto de se sentir preparado ou não.
Métodos contraceptivos: A maior parte dos jovens faz referência a poucos métodos
contraceptivos. No entanto, desenvolvem-se em todos os grupos questões relacionadas com o
preservativo.
Infecções Sexualmente Transmissíveis: Discutem-se crenças acerca das IST’s e
comportamentos de discriminação/aceitação dos doentes com SIDA, sendo notória uma maior
discriminação nos grupos do externato e nos grupos dos rapazes.
Gravidez na adolescência: Relativamente a este tema são identificadas diferenças entre
os jovens do externato e os jovens da escola. Enquanto que os jovens do externato não
desenvolvem muito o tema, os jovens da escola descrevem alguns casos que conhecem bem,
relativos a colegas que engravidaram recentemente.
Interrupção voluntária da gravidez: Relativamente às opiniões acerca do aborto, as
opiniões dividem-se. Verifica-se que é nos grupos da escola que são referidos mais exemplos
de casos concretos, nomeadamente amigas e colegas. Verifica-se que é no externato que
existem mais jovens a não concordar com o aborto.
461
Boas práticas associadas à intervenção na sexualidade: Na generalidade, os jovens
fazem referência a consultas de planeamento familiar, com alguma ambivalência entre a
curiosidade e o medo do desconhecido. São referidos exemplos de boas práticas,
nomeadamente na abordagem dos pais e na educação sexual nas escolas (periodicidade das
sessões, conteúdos e técnicos mais indicados).
DISCUSSÃO
Pretendeu-se com este trabalho aprofundar a compreensão dos aspectos que
determinam a sexualidade dos adolescentes, nomeadamente crenças, atitudes e
comportamentos de risco. Vários autores têm investigado ao longo dos últimos
anos quais os factores que mais influenciam o comportamento sexual dos jovens
(Kirby, 2001 a; Muluka, & Slonim-Nevo, 2007; Parker & Camargo, 2000; Pontes et al,
2004). Os resultados do presente estudo corroboram os resultados encontrados por
estes autores e sugerem que os factores que mais influenciam os seus
comportamentos sexuais são os seguintes: factores económicos, características da
comunidade, cultura, nível de informação, factores associados às diferenças de
género, estrutura familiar, influência dos pares, crenças/atitudes sobre sexualidade
e relação com a escola. Tal como refere Kirby (2001 a) os adolescentes estudados
também consideram que estes factores podem ser trabalhados no âmbito da
promoção da saúde sexual e reprodutiva.
Os factores económicos e o ambiente vivido na comunidade, em especial nos
bairros sociais, encontram-se associados a um maior número de comportamentos
de risco. Nos bairros sociais, a presença de pessoas pertencentes a comunidades
462
carenciadas e migrantes não permite, através de uma avaliação quantitativa, que se
consiga perceber se são os factores económicos ou a etnicidade que se relacionam
mais directamente com os comportamentos de risco. A utilização de uma
metodologia mais qualitativa permitiu-nos perguntar directamente aos jovens qual
a sua opinião relativamente a esta questão. Em todos os grupos os jovens referem
que os factores económicos, e não tanto a etnicidade, influenciam em grande
medida os comportamentos sexuais dos jovens. Estes resultados confirmam dados
obtidos por alguns autores, ou seja, os factores socioculturais podem influenciar a
sexualidade e o planeamento familiar dos indivíduos (Kirby, 2001; Singh, Darroch, &
Frost, 2001). Além de estarem menos informados, estes jovens têm também menos
condições económicas para comprar preservativos e menos acesso às consultas de
planeamento familiar. As famílias mais carenciadas apresentam também
características específicas, nomeadamente maior insegurança relativamente à
qualidade da informação que podem transmitir, dificuldade em conversar sobre
sexualidade com os filhos e tendência para abordar o assunto com agressividade,
tal como se verifica nos temas desenvolvidos em grupo focal pelos alunos mais
carenciados. Esta atitude agressiva associada aos comportamentos sexuais dos
filhos pode ter repercussões negativas. Os comportamentos repressivos, punitivos
ou contraditórios por parte dos pais podem ter o efeito oposto ao pretendido
(Deering, 1993; Taquette et al., 2005; Weiss, 2007).
Apesar de maioritariamente os jovens que participaram no estudo considerarem
que são os factores económicos e não a etnicidade que influenciam os
comportamentos sexuais dos jovens, alguns dos participantes no estudo referem
que os jovens africanos e brasileiros têm comportamentos diferentes, comparados
463
com os jovens portugueses. Atribuem estas diferenças à cultura, que se traduzem
em
comportamentos mais desinibidos, menos conhecimentos e
menos
investimento no planeamento familiar. Estes resultados confirmam as diferenças
identificadas no estudo quantitativo HBSC 2006, que apontavam para uma
discrepância entre os jovens da CPLP e os jovens de nacionalidade portuguesa,
sendo os primeiros aqueles que iniciavam a vida sexual mais cedo e aqueles que se
protegiam menos.
Actualmente a sexualidade já não é encarada como um tabu. Os jovens conseguem
facilmente obter informações sobre os mais variados assuntos e encontram
rapidamente respostas para as suas dúvidas. No que diz respeito às fontes de
informação, assiste-se actualmente a mudanças significativas a este nível. Verificase que os jovens dão grande importância a meios que há alguns anos atrás não
existiam, como é o caso da Internet (Borzekowski, & Rickert, 2001; Hansen, Holly,
Resnick, e Richardson, 2003; Matos et al, 2006). Uma análise mais qualitativa
através dos grupos focais permite-nos observar que esta fonte nem sempre
transmite informação correcta e, por vezes, culmina no visionamento de sites com
pouca qualidade técnica e/ou no acesso a conteúdos pornográficos e desadequados
à idade, que transmitem muitas vezes aos jovens informações contraditórias e
erradas. A atenção dada aos programas de televisão, especialmente séries
televisivas (por exemplo, “Morangos com Açúcar”) também é comum no discurso
de muitos jovens. Alguns autores defendem que a informação passada através dos
media nem sempre é credível e que os jovens nem sempre confirmam a
credibilidade das informações que recebem. Relativamente à televisão, alguns
estudos sugerem que os jovens que se baseiam essencialmente nas informações
464
transmitidas por este meio têm mais probabilidade de antecipar o início da vida
sexual, em comparação com os jovens que optam por escolher os pais como fontes
de informação preferenciais (Bleakley, Hennessy, Fishbein, & Jordan, 2008).
A informação obtida nem sempre está correcta e prova disso é o facto de grande parte
dos jovens entrevistados, especialmente os mais carenciados, não saberem o que significa
“consulta de planeamento familiar”, terem dificuldade em caracterizar as principais IST´s e não
saberem como se pode proteger. Estes resultados são independentes do ESE e do género, tal
como é sugerido pelos grupos focais. Considera-se que estes dados são extremamente
preocupantes, tendo em conta que as IST’s aumentam cada vez mais (Charlotte, Fitzjohn,
Herbison, & Dickson, 2000). Portugal tem dos piores índices da Europa no que diz respeito às
ISTs e é fundamental que os jovens recebam informação correcta sobre os seus riscos
(Caetano, 2006).
É fundamental que se tenha em conta a crescente importância dada a estas fontes de
informação e que se procure compreender que podem levar a comportamentos de risco,
especialmente se os jovens se mantiverem sozinhos enquanto recebem informações
provenientes da Internet, da televisão e dos amigos. Alguns alunos referem que as séries
televisivas influenciam as decisões que tomam em relação às suas próprias relações amorosas
e que agem muitas vezes em conformidade com os comportamentos das personagens. Por
outro lado, quando estes programas transmitem informações sobre comportamentos
protectores (e.g. contracepção), também se verifica que os jovens adquirem e retêm mais
facilmente os conhecimentos, pois identificam-se com as personagens que os transmitem.
Para que se obtenham vantagens associadas a estas novas preferências dos jovens deve existir
um maior controlo da qualidade da informação transmitida através destes meios, assim como
uma sensibilização dos pais para poderem pesquisar informação na Internet juntamente com
465
os jovens e assistir em conjunto a séries televisivas. Estas actividades realizadas em conjunto
podem ser um bom ponto de partida para conversas entre pais e filhos sobre sexualidade.
Enquanto que as opiniões acerca dos professores são unânimes (quase todos os jovens
referem que nunca iriam recorrer ao professor para conversar sobre sexualidade), as opiniões
acerca dos pais dividem-se. Apesar de todos referirem que existe uma barreira clara na
comunicação (falta de à vontade de pais e filhos), os alunos do externato mostram confiar
mais nos pais e sentem uma maior disponibilidade da parte destes. Existe também uma clara
preferência em conversar com a mãe, por considerarem que as mulheres têm mais facilidade
em falar sobre sexualidade, tanto com filhos como com filhas.
A forma como são educados e o tipo de mensagens implícitas enviadas pelos pais
determina claras diferenças de género na forma como os adolescentes vivem a
sexualidade. Independentemente dos factores económicos, os rapazes e as
raparigas referem que a família transmite a informação de forma muito diferente.
Assim, e tal como referem os jovens dos grupos focais, os rapazes parecem ter sido
educados para serem mais atrevidos, para terem muitas namoradas e para terem
uma vida sexual muito activa. As raparigas, por outro lado, devem pensar mais no
amor e nos sentimentos. Quando admitem falar de sexo ou tomar a iniciativa numa
relação, são conotadas (pela família e pelos rapazes) como muito “oferecidas”. As
raparigas consideram injusto o facto de não aceitarem que uma rapariga
adolescente tenha uma vida sexual activa, assim como a superprotecção dos pais,
que geralmente não se estende ao género masculino.
Muitos dos comportamentos relacionados com a promoção da própria saúde são
aprendidos no contexto familiar durante os primeiros anos de vida, onde os pais e
os familiares mais próximos funcionam como modelos (WHO, 2000). No presente
466
estudo, verifica-se que os jovens filhos de pais adolescentes sentem que as suas
atitudes perante uma gravidez não planeada na adolescência são mais tolerantes.
Estes jovens referem também uma ausência de comunicação sobre sexualidade
com os seus pais. Alguns autores (Deering, 1993; Taquette et al., 2005; Weiss, 2007)
defendem que a tolerância excessiva, associada à ausência de comunicação,
aumentam os comportamentos de risco entre os jovens.
A influência dos pares exerce uma importância significativa nas decisões dos jovens
(Albino, Vitalle, Schussel, Batista, 2005; Borges, Latorre, & Schor, 2007; Martins,
Nunes, Muñoz-Silva; & Sanchez-Garcia, 2008). No presente estudo, verifica-se a
existência de um desfasamento entre a idade estimada e a idade real do início da
vida sexual dos jovens. Num estudo sobre a idade de início das relações sexuais
verifica-se que os jovens entre os 16 e os 20 anos referem ter iniciado a sua vida
sexual aos 16,3 anos (Durex, 2005). Quando questionados sobre a idade de início
das relações sexuais dos seus pares, apenas os jovens do externato mostram uma
aproximação à realidade (16,2 anos). Os jovens da escola consideram que os seus
pares iniciam a vida sexual antes dos 15 anos (14,8 anos). Tendo em conta a
existência de uma influência dos comportamentos dos pares, é importante salientar
que as estimativas que os jovens fazem acerca da vida sexual dos seus pares pode
ter consequências nos seus comportamentos e, em especial no caso dos alunos da
escola, estas estimativas podem levar os jovens a antecipar o início da sua vida
sexual por pensarem que os seus colegas/amigos já são sexualmente activos.
No presente estudo foram encontradas diferenças claras entre escolas,
relativamente ao início da vida sexual. No externato os jovens pensam em adiar as
467
primeiras experiências sexuais por acharem que ainda não estão preparados
emocionalmente para perder a virgindade, preferindo centrar-se nos estudos e nos
namoros que não incluam relações sexuais. Estes jovens consideram que a maior
parte dos seus pares ainda não teve relações sexuais e falam sobre sexualidade
como uma experiência associada ao futuro. Na escola, os jovens referem que a
maior parte dos seus pares já iniciou a vida sexual. Nos grupos focais verifica-se que
estes jovens colocam a questão do início da vida sexual no presente.
No que diz respeito à pressão dos pares, verifica-se que são os rapazes quem exerce
mais pressão para que os outros tenham uma vida sexual activa. Tal como se pode
verificar no estudo qualitativo, os rapazes referem que essa pressão existe
essencialmente entre os grupos de rapazes. Estes resultados vão de encontro aos
de Arilha e Calazans (1998, cit. por Vieira, 2008) e são mais comuns entre os rapazes
de classe média-alta (grupos focais do externato).
Nos grupos focais são exploradas algumas crenças e atitudes relacionadas com o
VIH/SIDA. Relativamente aos conhecimentos sobre a doença, a maior parte dos jovens mostra
ter conhecimentos correctos, sendo as raparigas e os jovens provenientes de meios mais
diferenciados aqueles que têm mais conhecimentos correctos acerca dos modos de
transmissão. No entanto, a atitude perante os doentes é geralmente discriminatória, apesar de
reconhecerem que se trata de um contra-senso (a proximidade física e a amizade não
constituem risco de contágio) muitos jovens admitem que não seriam capazes de se sentar a
lado de um doente com VIH/Sida nem de manter uma amizade. São os rapazes do externato
quem apresenta uma atitude mais discriminatória e a principal causa referida prende-se com o
medo, admitido como irracional. Por outro lado, as raparigas (independentemente do ESE)
apresentam uma atitude mais tolerante perante os doentes com VIH/SIDA, justificando esta
468
atitude com um sentimento de segurança relativamente à qualidade dos conhecimentos que
têm sobre os modos de transmissão. São também referidos valores como a amizade e o
interesse em ajudar o outro para justificar esta atitude.
A melhor forma de combater os inúmeros problemas associados a uma sexualidade
pouco responsável passa pela prevenção e mudança de comportamentos (Dias,
Matos, & Gonçalves, 2002; Matos et al, 2003), sendo fundamental que a escola
reuna esforços para a organização de uma intervenção a este nível. Tal como
defendem alguns autores (Malik, Oandasan, & Yang, 2002) é fundamental a criação
de inúmeras estratégias de promoção da saúde nesta faixa etária. No entanto, esta
realidade ainda é rara em Portugal. Tal como se verificou neste estudo, a
intervenção na área da educação sexual ainda não existe em muitas escolas, apesar
de se tratar de um país onde existem elevados índices de gravidez na adolescência e
IST’s (Caetano, 2006).
Os alunos, independentemente do género, cultura ou condição social, consideram
fundamental a existência de educação sexual nas escolas, referindo que existem
alguns aspectos importantes a ter em conta. Na generalidade, os jovens referem
que a educação sexual deve começar na infância e em casa. Os pais devem ter uma
atitude de naturalidade, manter um ambiente descontraído, não fazer juízos de
valor e não agir com comportamentos repressivos. Para os jovens que fizeram parte
do estudo, a educação sexual deve iniciar-se no 1º Ciclo do Ensino Básico e
prolongar-se até ao final da adolescência. Os grupos devem ser pequenos e as
sessões devem ser dinamizadas por técnicos com formação específica na área, de
preferência do sexo feminino. Os técnicos não devem fazer parte do corpo docente
da escola e a confidencialidade deve ser garantida com todo o rigor. Quanto aos
469
temas focados nestas sessões, os jovens consideraram menos importantes as
matérias relacionadas com o sistema reprodutor (pois trata-se de uma matéria que
está incluída no programa de uma das disciplinas), mostrando preferência pelos
temas relacionados com os diferentes tipos de contraceptivos, as infecções
sexualmente transmissíveis, os afectos, as relações amorosas, as diferenças de
género e as mudanças associadas à adolescência. Quase todos os jovens referiram a
importância de um momento para responder a dúvidas.
Paralelamente a estas sessões, os alunos sugerem a organização de sessões de
sensibilização dinamizadas por adolescentes mais velhos, com quem os mais jovens se
conseguem identificar mais facilmente, e a existência de um gabinete de atendimento
individual, onde os jovens podem ter um acompanhamento mais personalizado.
Verificou-se com este estudo que os jovens são diferentes, no que diz respeito ao
género, cultura e condições económicas. No entanto, considera-se que esta conclusão tem as
suas limitações, dada a dimensão reduzida da amostra. Ainda que se trate de uma avaliação
qualitativa, seria benéfico se fossem realizados mais grupos focais noutras escolas, o que
permitiria entrevistar um maior número de alunos. O delineamento de um estudo longitudinal,
que permitisse acompanhar os alunos ao longo de vários anos também permitiria uma
investigação da sua evolução, assim como uma acção interventiva mais sólida. A elaboração de
um programa de educação sexual mais desenvolvido e pormenorizado (com mais horas de
duração e ao longo ao ano lectivo) permitiria não só aumentar a quantidade de informações
transmitidas, como também a realização de actividades mais interactivas, dinâmicas de grupo,
debates, role-play, visionamento de vídeos e utilização de recursos técnico-pedagógicos mais
diversificados. Tal como sugerem os resultados deste trabalho, estas sessões devem ser
cuidadosamente adaptadas à população alvo, tendo em conta as suas características e
470
necessidades específicas, especialmente no que diz respeito ao género, cultura e condições
económicas.
Uma escola promotora de saúde deve ser considerada como fonte de desenvolvimento
de atitudes e comportamentos orientados para a promoção da saúde e bem-estar (WHO,
2000). Por esta razão, é fundamental que se reúnam esforços para que se desenvolvam
programas que permitam aos jovens viver a sexualidade de uma forma saudável.
REFERÊNCIAS
Aarons, S., & Jenkins, R. (2002). Sex, Pregnancy, and Contraception-related Motivators and
Barriers among Latino and African-American Youth in Washington, DC, Sex Education, 2,
1, 5-30.
Albino, G., Vitalle, M., Schussel, E., & Batista, N. (2005). A sexualidade pelo olhar das jovens:
contribuições para a prática do médico de adolescentes. Revista Paulista de Pediatria,
23, 3, 124-129.
Aronowitz, T. (2005). Heterosocial Behaviors in Early Adolescent African American Girls: The
Role of Mother-Daughter Relationships. Journal of Family Nursing, 11, 2, 122-139.
Aronowitz, T., Todd, E., Agbeshie, E., & Rennells, R. (2007). Attitudes that affect the ability of
African American preadolescent girls and their mothers to talk openly about sex. Issues
in Mental Health Nursing 28, 1, 7-20.
As-Sanie, S., Gantt, A., & Rosenthal, M. (2004). Pregnancy Prevention in Adolescents American
Family Physician, 70, 8, 1517-1524.
Ashcraft, C. (2006). "Girl, you better go get you a condom": Popular culture and teen sexuality
as resources for critical multicultural curriculum. Teachers College Record, 108, 10, 21452186.
Bleakley, A., Hennessy, M., Fishbein, & M., Jordan, A. (2008). How Sources of Sexual
Information Relate to Adolescents' Beliefs About Sex. American Journal of Health
Behavior, 33, 137-48.
Blum, R., Beuhring, T., Shew, M., Bearinger, L., Sieving, R., & Resnick, M. (2000). The Effects of
Race/Ethnicity, Income, and Family Structure on Adolescent Risk Behaviors. American
Journal of Public Health, 90, 12, 1879–1884.
Borges, A; Latorre, M., & Schor, N. (2007) Fatores associados ao início da vida sexual de
adolescentes matriculados em uma unidade de saúde da família da zona leste do
Município de São Paulo, Brasil, Cadernos de Saúde Pública, 23,7
471
Borzekowski, D., Rickert, V. (2001). Adolescent Cybersurfing for Health Information. Archives of
Pediatric Adolescent Medicine, 115 consultado a 26 de Junho de 2008 através de
http://archpedi.ama-assn.org/cgi/reprint/155/7/813.pdf
Brückner,
H.,
Martin,
A.
&
Bearman,
P.
(2004).
Ambivalence
and
Pregnancy:Adolescents’Attitudes, Contraceptive Use and Pregnancy. Perspectives on
Sexual and Reproductive Health, 36, 6, 248–257.
Burgess, V., Dziegielewski, S, & Green, C. (2005). Familial Sex Communication. London: Oxford
University Press.
Caetano, J. (2006). Prefácio. In M. Matos & Cols (Eds.). Indicadores de saúde dos adolescentes
portugueses. Relatório Preliminar HBSC 2006. Consultado em 9 de Setembro de 2007
através
de
http://www.fmh.utl.pt/aventurasocial/pdf/191206/Indicadores%20deSaude.pdf
Campbel, C. & Mzaidume, Y. (2002) How can HIV be prevented in South Africa? A social
perspective. British Medical Journal, 324, 229-232
Carvajal, S., Parcel, G., Banspach, S., et al. (1999). Psychosocial predictors of delay of first
sexual intercourse by adolescents. Health Psychology, 18, 443–452.
Clark, L., Barnes-Harper, K., Ginsburg, K., Holmes, W., & Schwarz, D. (2006). Menstrual
irregularity from hormonal contraception: a cause of reproductive health concerns in
minority adolescent young women. Contraception, 74, 3, 214-219
Connell, P., McKevitt, C., & Low, N. (2004). Investigating ethnic differences in sexual health:
focus groups with young people. Sex Transmitted Infections, 80, 300-305.
Coordenação Nacional para a Infecção VIH/sida (2007). O Programa Nacional de Prevenção e
Controlo da infecção pelo VIH/sida – 2007/2010 retirado de http://www.acs.minsaude.pt em 9 de Setembro de 2007.
Cuffee, J., Hallfors, D., & Waller, M. (2007) Racial and Gender Differences in Adolescent Sexual
Attitudes and Longitudinal Associations with Coital Debut Journal of Adolescent Health,
41, 1, 3-13.
Currie, C., Samdal, O., Boyce, W., & Smith, R. (2001). HBSC, a WHO cross national study:
research protocol for the 2001/2002 survey. Copenhagen: WHO.
Durex. Give and Receive – 2005 Global Sex Survey Results. Retirado da Internet em 5 de Maio
de 2008, www.durex.com/gss .
Edmunds, H. (1999). The Focus Group Research Handbook. London: McGraw-Hill Professional
Ekere, Ogungbade, Gbadebo, Osemene, Meshack, & Peters (2005). Strategies to prevent HIV
transmission among heterosexual African-American men. BMC Public Health, 5, 3.
Fern, E. (2001). Advanced Focus Group Research. London: Sage Publications.
472
Fleck, M., Leal, O., Louzada, S., Xavier, M., Chachamovich, E., Vieira, G., Santos, L., & Pinzon, V.
(1999) Desenvolvimento da versão em português do instrumento de avaliação de
qualidade de vida da OMS (WHOQOL-100). Revista Brasileira de Psiquiatria, 21, 1, 19-28.
Gaspar, T. & Matos, M. (2007). Comportamentos de saúde de adolescentes migrantes e o
efeito protector da relação com os avós. Revista de Estudos demográficos, 41, 38-51.
Greenbaum (1998). The Handbook for Focus Group Research. London: Sage Publications.
Hansen, Holly, Resnick, & Richardson (2003). Adolescents searching for health information on
the Internet: an observational study. Journal of Medical and Internet Research, 5, 4
Consultado em 26 de Junho de 2008 através de www.jmir.org/2003/4/e25
IOM (2004). Migration from Latin America to Europe: Trends and Policy Challenges. IOM
Migration Research Series, 16: IOM.
Jones, N. & Haynes, R. (2006). The association between young people's knowledge of sexually
transmitted diseases and their behaviour: A mixed methods study Health, Risk & Society,
8, 3, 293 – 303.
Juarez, F., Martin, T. (2006). Safe Sex Versus Safe Love? Relationship Context and Condom Use
Among Male Adolescents in the Favelas of Recife, Brazil. Archives of sexual behaviour,
35, 1, 25-35.
Keller e Belle (2005). STDs.com: Sexuality Education Online. Education and Health 23, 1, 11-12.
Kitzinger, J. (1995). Qualitative Research: Introducing focus groups. British Medical Journal,
311, 299-302
Lefkowitz, E., Boone, T., Kit-fong, T., & Sigman, M. (2003). No sex or safe sex? Mothers’ and
adolescents’ discussions about sexuality and AIDS/HIV. Health Education Research, 18, 3,
341–351.
Manuel., S. (2005). Obstacles to condom use among secondary school students in Maputo city,
Mozambique. Culture, Health & Sexuality, 7, 3, 293 – 302.
Marques et al, (1999). Educação Sexual e Promoção da Saúde nas Escolas: Um Projecto
Experimental. Consultado em 11 de Março de 2007 através de http://www.min-saude.pt
Martins, A. Nunes, C., Muñoz-Silva, A.; Sanchez-Garcia, M. (2008). Fontes de informação,
conhecimentos e uso do preservativo em estudantes universitários do Algarve e de
Huelva, Psico, 39, 1, 7-9.
Matos, M. G. (in press). Correr riscos e proteger-se. In M. Matos (Org.) Sexualidade,
Segurança e SIDA: Estado da Arte e Propostas em Meio Escolar.
Matos, M. G. e equipa do Projecto Aventura Social & Saúde (2003). A Saúde dos Adolescentes
Portugueses (Quatro anos depois). Lisboa: FMH.
473
Matos, M. G., Gaspar, T., Vitória, P. & Clemente, M. (2003). Adolescentes e o tabaco:
Rapazes e raparigas. Publicação: Conselho de Prevenção do tabagismo.
Matos, M.G., Gonçalves, A., & Gaspar, T. (2005). Aventura social, etnicidade e risco:
Prevenção primária do VIH em adolescentes de comunidades migrantes.
Publicação IHMT/CMDT/UNL.
Matos, M. G., Simões, C., Tomé, G., Pereira, S., Diniz, J., & Equipa do Aventura Social (2006).
Comportamento Sexual e Conhecimentos, Crenças e Atitudes Face ao VIH/SIDA –
Relatório Preliminar, Dezembro 2006. Web site: www.fmh.utl.pt/aventurasocial;
www.aventurasocial.com
Mayo, P. (2005). Educação crítica e desenvolvimento de uma cidadania multi-étnica. Uma
perspectiva da Europa do Sul. Revista Lusófona de Educação, 6, 47-54.
Merchán-Hamann, E. (1995). Grau de Informação, Atitudes e Representações Sobre o
Risco e a Prevenção de AIDS em Adolescentes Pobres do Rio de Janeiro, Brasil
Cadernos de Saúde Pública, 11, 3, 463-478.
Moore, A. (2006). Gender role beliefs at sexual debut: Qualitative evidence from two
Brazilian cities. International Family Planning Perspectives, 32, 1, 45–51
Morgan, D. (1998). Planning Focus Groups. Consultado em 2 de Agosto de 2007 através
de http://idrinfo.idrc.ca/
Morgan, D., King, J, & Krueger, R. (1998). Focus Group Kit. London: Sage Publications.
Mullen, P., Ramírez, G., Strouse, D., Hedges, L., & Sogolow, E. (2002). Meta-analysis of the
Effects of Behavioral HIV Prevention Interventions on the Sexual Risk Behavior of
Sexually Experienced Adolescents in Controlled Studies in the United States Journal of
Acquired Immune Deficiency Syndromes, 30, 94-105.
Muluka, L., & Slonim-Nevo, V. (2007). AIDS-related knowledge, attitude, and behavior
among adolescents in Zambia. Ethnicity & Disease, 16, 2, 488-494.
Mushi, D. Mpembeni, R. & Rose, A. (2007). Knowledge about safe motherhood and HIV/AIDS
among school pupils in a rural area in Tanzania. BMC Pregnancy and Childbirth, 7, 5.
Consultado
a
7
de
Janeiro
de
2008
através
de
http://www.biomedcentral.com/content/pdf/1471-2393-7-5.pdf
474
Nagel, J. (2000) Ethnicity and sexuality, Annual Review of Sociology, 26, 107-133
Ndinda, C. Chiweni, U., Uzodike, C. & Okeke, R. (2007). Gender relations in the context
of HIV/AIDS in rural South Africa, Aids Care, 19, 7, 844-849
O'Donnell, L., Dash, K., JeanBaptiste, V., Stueve, A., & Wilson, R. (2002). Understanding
early sexual initiation and sexual risk taking among young, urban minority
adolescents: The Reach for Health (RFH) Middle Childhood Study. International
Conference of AIDS. Jul 7-12. Consultado em 10 de Setembro de 2007 através de
http://gateway.nlm.nih.gov
Pacheco-Sánchez, C. et al. (2007). Significaciones de la sexualidad y salud reproductiva
en adolescentes de Bogotá. Salud Pública de México, 49, 1, 45-51
Parker, R. (1997). Migration, sexual subcultures, and HIV/AIDS in Brazil. In: Herdt, G., (Ed.).
Sexual culture and migration in the Era of AIDS: anthropological and demographic
perspectives, p. 55-69. Oxford: Claredon
Parker, R., Easton, D. Klein, C. (2000). Structural barriers and facilitators in HIV prevention: a
review of international research. AIDS, 14, 1, 22-32.
Parker, R. (2001). Sexuality, culture and power in HIV/AIDS research. Annual Review of
Anthropology, 30, 166-179.
Parker, R. & Camargo, K. (2000). Pobreza e HIV/AIDS: aspectos antropológicos e sociológicos.
Cadernos de Saúde Pública, 16, 1, 89-102.
Pontes et al (2004). Prevention of HIV infection among migrant population groups in Northeast
Brazil. Cadernos de Saúde Pública, 20, 1, 320-328.
Promundo (2001). Da violência para a convivência. Trabalhando com homens jovens. Retirado
da world wide web a 6 de Julho de 2008 através de www.promundo.org.br
Promundo (2001a). Razões e emoções. Trabalhando com homens jovens. Retirado da world
wide web a 6 de Julho de 2008 através de www.promundo.org.br
Reis, M. & Vilar, D. (2004). A implementação da educação sexual na escola: Atitudes dos
professores. Análise Psicológica, 4, 22, 737-745.
Rivers, K. & Aggleton, P. (2002). Working with young men to promote sexual and
reproductive health. Retirado da world wide web a 6 de Julho de 2008 através de
http://www.safepassages.soton.ac.uk/pdfs/workingwithymen.pdf
Rumbaut, R. (2005) Turning points in the transition to adulthood: Determinants of
educational attainment, incarceration, and early childbearing among children of
immigrants, Ethnic and Racial Studies, 28, 6, 1041 – 1086.
Sikkema et al (2005). Outcomes of a randomized, controlled community-level HIV prevention
intervention for adolescents in low income housing developments. AIDS, 19, 14, 15091516.
475
Stanton et al (2002). Longitudinal influence of perceptions of peer and parental factors on
African American adolescent risk involvement. Journal of Urban Health, 79, 4 536-548.
Tortolero et al (2005). Using Intervention Mapping to Adapt an Effective HIV, Sexually
Transmitted Disease, and Pregnancy Prevention Program for High-Risk Minority Youth.
Health Promotion Practice, 6, 3, 286-298.
Vaughn, S., Schumm, J., & Sinagub, J. (1996). Focus Group Interviews in Education and
Psychology. London: Sage Publications.
Vieira, R. (2008). Juventude e sexualidade em movimento. Retirado a 1 de Junho de 2008 de
http://www.anped.org.br/reunioes/28/textos/ge23/ge23193int.rtf
Vogt, D., King, D., & King, L. (2004). Focus groups in psychological assessment: Enhancing
content validity by consulting members of the target population Psychological
Assessment, 16, 3, 231–243.
Westphal, M., Bógus, C., Faria, M. (1996). Grupos focais: experiências precursoras em
programas educativos em saúde no Brasil. Boletín de la Oficina Sanitaria Panamericana,
120,6, 472-82.
Whitaker, D., & Miller, K. (2000). Parent-Adolescent Discussions about Sex and Condoms.
Impact on Peer Influences of Sexual Risk Behaviour. Journal of Adolescent Research, 15,
2, 251-273.
476
Candidatura 24
Autores: Susana Algarvio, Isabel Leal & João Marôco
Título: Aferição portuguesa de uma escala de preocupações parentais: dados preliminaes
477
AFERIÇÃO PORTUGUESA DE UMA ESCALA DE PREOCUPAÇÕES PARENTAIS: DADOS
PRELIMINARES
Susana Algarvio, Isabel Leal e João Marôco
ISPA – Instituto Superior de Psicologia Aplicada, Lisboa
[email protected]; [email protected]; [email protected]
Pretendeu-se com este trabalho apresentar os dados preliminares de um estudo que está a ser
realizado a nível nacional sobre Preocupações Parentais. O objectivo deste estudo é validar
uma Escala de Preocupações Parentais, desenvolvida em estudos anteriores (Algarvio & Leal,
2002, 2004; Algarvio, Leal e Marôco, 2008), para a população portuguesa. Os participantes
foram 1186 pais de crianças que frequentam o ensino público Pré-Escolar e 1º ciclo do Ensino
Básico em 260 escolas distribuídas por 125 Concelhos de 17 Distritos de Portugal Continental.
A Escala de Preocupações Parentais é constituída por 24 itens divididos por 5 sub-escalas:
Problemas Familiares e Preocupações Escolares, Desenvolvimento Infantil, Preparação, Medos
e Comportamentos Negativos, em formato de escala de Likert, com 5 possibilidades de
resposta, não me preocupo nada, pouco, razoavelmente, bastante e muitíssimo. Neste grupo
de pais verificámos que a Escala apresenta níveis de consistência interna elevados e
capacidade discriminativa face à população normativa.
Introdução
Pretendemos, com este trabalho, apresentar os resultados obtidos à data de um
estudo que está a decorrer a nível nacional sobre preocupações parentais. Em estudos
anteriores (Algarvio & Leal, 2002; 2004; Algarvio, Leal & Marôco, 2008) desenvolvemos uma
478
escala de preocupações parentais assente em questões normativas do desenvolvimento
infantil e das relações familiares. A necessidade de desenvolver um instrumento de avaliação
das preocupações parentais resultou da prática clínica, reforçada pelos estudos realizados
sobre esta temática que consideram de uma forma genérica a importância de avaliar as
preocupações dos pais a par da avaliação dos sintomas apresentados pelas crianças.
A maioria dos estudos encontrados centra-se nas preocupações dos pais relativamente
aos sintomas apresentados pelas crianças em problemáticas específicas, não abordando o
desenvolvimento normal ou a definição do conceito. Embora fundamental para a resolução de
dificuldades encontradas na criança, consideramos esta forma de análise insuficiente porque,
tal como refere Winnicott, «a normalidade ou saúde, está ligada à maturidade e não à
inexistência de sintomas» (1993, p.147). Este autor acrescenta que uma criança pode
apresentar vários sintomas próprios de um desenvolvimento saudável, enquanto outra criança
onde os mesmos sintomas estejam ausentes pode, por seu lado, estar gravemente perturbada
(Winnicott, 1979, 1993, 1995; Debray, 1988). Por outro lado, sabemos como o comportamento
e atitudes parentais podem condicionar o desenvolvimento da criança, sendo que sintomas
normativos do desenvolvimento podem ser reforçados por ansiedade dos pais dando origem a
perturbações psicopatológicas.
O nosso trabalho baseou-se num dos poucos estudos centrados no desenvolvimento
normal, realizado por Mesibov, Shroeder e Wesson (1993) a partir das preocupações expressas
pelos pais.
Face à inexistência de uma conceptualização teórica das preocupações parentais
baseámo-nos no conceito de preocupação definido por Winnicott (1979). Este autor considera
que o sentimento de preocupação pressupõe que o indivíduo tenha atingido um nível de
maturidade emocional em que se interessa, sente e aceita responsabilidade pelo outro.
Relativamente ao conceito de parentalidade surge, segundo Houzel (1997) pela primeira vez
479
em 1985 num trabalho de Clément. Houzel (1997) considera a parentalidade como o processo
através do qual um indivíduo se torna progenitor de modo psicológico. Bléandonu considerou
a parentalidade etimologicamente enquanto a qualidade do progenitor. O processo de
parentalidade implica mudanças biológicas e físicas profundas, especialmente para as mães,
emocionais e psicológicas nas mães e nos pais, constituindo uma fase do desenvolvimento
psicológico individual (Bléandonu, 2003, Houzel, 1997, Green, 1997). No entanto, estes
processos individuais permitirão a construção de um aparelho psíquico do casal (Anzieu &
Kaes, 1997, cit. Lejeune, 1997, Houzel, 1997; Green, 1997) reservado para a criança e que
constitui a base para o nascimento da vida psíquica do bebé (Lejeune, 1997). O aparelho
psíquico do casal permitirá o desenvolvimento de uma função de pensar parental, que terá em
consideração as necessidades da criança que podem ser antagónicas das necessidades dos
pais, enquanto pessoas ou mesmo enquanto casal (Guillaume, 1997; Rosenbaum, 1997).
Winnicott reforçou esta ideia ao descrever a ambivalência muitas vezes observada no
comportamento parental. Por um lado, os pais querem que a criança cresça e desenvolva
capacidades de autonomia, por outro lado, de forma não totalmente consciente, não querem
abdicar do funcionamento parental da primeira infância.
É necessário para um desenvolvimento saudável da criança que os pais encontrem um
equilíbrio satisfatório entre o investimento narcísico (o outro enquanto parte de si próprio) e o
investimento objectal (o outro enquanto ele próprio) da criança (Bléandonu, 2003; Guillaume,
1997; Rosenbaum, 1997).
Deste modo, o funcionamento parental poderá gerar diferentes tipos de ansiedade
resultante de conflitos internos individuais e/ou do casal e de conflitos externos face a
problemáticas específicas da criança e/ou de diferentes problemas psicossociais, que se
manifestarão em diferentes tipos de preocupações dos pais. Surge, assim, a ideia de que a
função parental deverá ser também um processo em desenvolvimento, ou seja, em função das
necessidades decorrentes do desenvolvimento da criança. Por conseguinte, consideramos que
480
as preocupações dos pais serão vividas internamente por cada um e por ambos enquanto casal
para além dos problemas reais experienciados e dependerá do desenvolvimento da sua função
parental, individualmente e enquanto casal.
A parentalidade implica organizar as emoções de uma forma empática relativamente
às preocupações e aos resultados necessários ao bem-estar e ao desenvolvimento da criança
(Dix, 1991, cit. Richter, 2003). Dix acrescenta que esta consciência emocional irá permitir a
atenção dos pais às necessidades da criança, a vontade de ensinar, de encorajar e de
confortar, ou seja, de colocar em acção a sua função parental.
Método
Participantes
Tratando-se da apresentação de dados preliminares, a Escala de Preocupações Parentais foi
preenchida por 1186 pais de crianças que frequentam o ensino público pré-escolar e 1º ciclo
do Ensino Básico em 260 escolas distribuídas por 125 Concelhos de 17 Distritos de Portugal
Continental.
Nível escolaridade
Frequência
Percentagem
Pré-escolar
252
21.2
1º Ciclo
934
78.8
Total
1186
100.0
Tabela 1. Número de crianças a frequentar o Ensino Pré-escolar e 1º Ciclo
As crianças têm idades compreendidas entre os 2 e os 11 anos, com uma média de
idades de 7.09, 46.7% do sexo masculino e 52.1% do sexo feminino.
481
As Escolas onde foi recolhido o grupo de pais distribuem-se, segundo o Distrito de
Portugal Continental, do seguinte modo (tabela 2):
Distrito
Frequência
Percentagem
Percentagem acumulada
Aveiro
136
11.5
11,5
Beja
28
2.4
13,8
Braga
185
15.6
29,5
Bragança
19
1.6
31,1
Castelo Branco
24
2.0
33,1
Coimbra
52
4.4
37,5
Évora
33
2.8
40,3
Faro
125
10.5
50,8
Guarda
59
5.0
55,8
Leiria
93
7.8
63,6
Portalegre
22
1.9
65,5
Lisboa
167
14.1
79,6
Viana do Castelo
52
4.4
84,0
Viseu
74
6.2
90,2
Vila Real
52
4.4
94,6
Porto
62
5.2
99,8
Setúbal
2
.2
100,0
Total
1185
99.9
Missing System
1
.1
Total
1196
100
Tabela 2. Distribuição de Escolas por Distrito de Portugal Continental
482
A maioria dos questionários, 64.7% foi preenchida por mães, 26.9% por ambos os pais
e, unicamente 7.2% por pais. As mães têm idades compreendidas entre os 24 e os 53 anos,
com uma média de idades de 36.35. Quanto aos pais têm idades compreendidas entre os 24 e
os 69 anos, com uma média de idades de 39.02. A maioria dos pais são casados, 85.9%, 3.7%
vivem em união de facto, 6.7% estão separados ou divorciados, 2.6% são solteiros e 0.5%
viúvos. Quanto ao número de irmãos, 57% das crianças têm um irmão, 30.4% são filhos únicos,
10.1% têm dois irmãos e 2.4% têm 3 ou mais irmãos.
Relativamente ao nível de escolaridade, como se pode verificar nas tabelas
apresentadas abaixo (tabela 3 e 4), as mães têm em média um nível de escolaridade superior
ao dos pais, 34.3% terminaram o ensino superior, enquanto os pais só 18.9% terminaram o
ensino superior.
Nível escolaridade das mães
Frequência
Percentagem
4º ano
42
3.5
6º ano
182
15.3
9º ano
259
21.8
12º ano
290
24.5
Ensino superior
407
34.3
Total
1180
99.5
Missing System
6
.5
Total
1186
100.0
Tabela 3. Nível de Escolaridade das Mães
Nível escolaridade dos pais
Frequência
Percentagem
4º ano
97
8.2
483
6º ano
267
22.5
9º ano
295
24.8
12º ano
269
22.7
Ensino superior
225
18.9
Total
1153
97.2
Missing System
33
2.8
Total
1186
100
Tabela 4. Nível de Escolaridade dos Pais
Material
A Escala de Preocupações Parentais (Algarvio & Leal, 2002; 2004; Algarvio, Leal e
Marôco, 2008) é constituída por 24 itens, com 5 possibilidades de resposta em formato de
escala de Likert, preocupo-me muitíssimo, bastante, razoavelmente, pouco e nada. Os índices
de ajustamento da análise factorial confirmatória efectuada revelaram validade de constructo
para as 5 sub-escalas propostas (X2=420.067; g.I.=247; X2/gI=1.701; p=.000; NFI=.837;
CFI=.924; RMSEA=.048; p=.634). A consistência interna da escala foi medida através do alfa de
Cronbach, tendo-se obtido resultados elevados para a totalidade dos itens da escala, 0.93,
assim como para a maioria das sub-escalas, 0.87 para a sub-escala I, Problemas familiares e
preocupações escolares, 0.85 para a sub-escala II, Desenvolvimento infantil, 0.75 para a subescala III, Preparação, 0.84 para a sub-escala IV, Medos e 0.86 para a sub-escala V,
Comportamentos Negativos (Algarvio, Leal & Marôco, 2008).
ESCALA DE PREOCUPAÇÕES PARENTAIS
I.
SUB-ESCALA DE PROBLEMAS FAMILIARES E PREOCUPAÇÕES ESCOLARES
1.
2.
3.
4.
OS PAIS NÃO ESTAREM DE ACORDO EM RELAÇÃO ÀS REGRAS E DISCIPLINA
SE A CRIANÇA TEM O QUE PRECISA NA ESCOLA
A PROFESSORA/EDUCADORA ENTENDER A CRIANÇA
OS PAIS DISCUTIREM MUITO
484
5.
6.
II.
SUB-ESCALA DE DESENVOLVIMENTO INFANTIL
1.
2.
3.
4.
5.
6.
III.
3.
COMO PREPARAR A CRIANÇA PARA MUDAR DE CASA
A CRIANÇA ENTENDER O QUE É A MORTE
A CRIANÇA ENTENDER A MORTE DE ALGUÉM PRÓXIMO
SUB-ESCALA DE MEDOS
1.
2.
3.
V.
O QUE A CRIANÇA DEVE COMER
A CRIANÇA TER O SONO AGITADO
A CRIANÇA TER DIFICULDADE EM ADORMECER
A CRIANÇA TER PESADELOS
A CRIANÇA QUEIXAR-SE DE DORES DE BARRIGA
A CRIANÇA QUEIXAR-SE DE DORES DE CABEÇA
SUB-ESCALA DE PREPARAÇÃO
1.
2.
IV.
A CRIANÇA SER SUJEITA A MAUS-TRATOS
O QUE DEVE SER DITO À CRIANÇA EM CASO DE SEPARAÇÃO DOS PAIS
A CRIANÇA TER MEDOS
A CRIANÇA TER MEDO DO ESCURO
A CRIANÇA TER MEDO DO PAPÃO OU DE MONSTROS
SUB-ESCALA DE COMPORTAMENTOS NEGATIVOS
1.
2.
3.
4.
5.
6.
A CRIANÇA CONTROLAR DIFICILMENTE OS COMPORTAMENTOS
A CRIANÇA NÃO OBEDECER
A CRIANÇA FAZER BIRRAS
A CRIANÇA NÃO QUERER IR PARA A CAMA
A CRIANÇA SER MANDONA E EXIGENTE
A CRIANÇA QUEIXAR-SE MUITO
Procedimento
Num primeiro momento foi feito um levantamento de todas as escolas públicas de
ensino pré-escolar e 1º ciclo existentes em Portugal Continental, através do roteiro de escolas
disponível no site do Ministério da Educação. Com estes dados foi construída uma base de
dados a partir da qual foi realizada uma amostragem estratificada no SPSS 16 com o objectivo
de se obter uma amostra representativa desta população. A amostragem seguiu as seguintes
condições: 10% das escolas de cada Concelho de cada Distrito de Portugal Continental. Das
8200 escolas existentes em Portugal Continental foram seleccionadas 820 escolas. Foi
elaborada uma carta de apresentação do estudo que foi enviada às 820 escolas, seguida de um
telefonema a averiguar da disponibilidade para participar no estudo. Às escolas que aceitaram
participar, através dos seus Coordenadores ou Agrupamentos, foram então enviados
485
questionários em envelopes abertos com os portes pagos, para serem preenchidos por 10%
dos pais das crianças que frequentam a escola. Os professores entregaram os envelopes com
os questionários aos pais que manifestaram interesse em participar que, após o seu
preenchimento, os fecharam e colocaram no correio.
Resultados
Foram calculadas as médias das respostas dadas pelos pais à totalidade da Escala e às
diferentes
sub-escalas,
como
se
pode
observar
na
N
Escala Preocupações Parentais
tabela
abaixo
(tabela
5).
Média Desvio-Padrão
1180 3.589 .6722
Sub-Escala I. Preocupações Escolares e Probl. Familiares 1172 4.015 .7707
Sub-Escala II. Desenvolvimento Infantil
1172 3.653 .7727
Sub-Escala III. Preparação
1109 3.366 .9364
Sub-Escala IV. Medos
1083 3.247 .9179
Sub-Escala V. Comportamentos Negativos
1113 3.344 .8482
Tabela 5. Média e Desvio da Padrão dos resultados obtidos na Escala
A média de preocupação situa-se entre o razoavelmente (3) e o bastante (4), para a
totalidade da escala e para todas as sub-escalas. A maior média de preocupação encontra-se
na sub-escala I, preocupações escolares e problemas familiares, onde a média de pais se
preocupam bastante (4.015), seguida da sub-escala II, desenvolvimento infantil, itens que
preocupam entre razoavelmente e bastante os pais (3.653). A sub-escala que, apesar de
486
apresentar resultados médios igualmente entre razoavelmente e bastante, preocupa menos os
pais é a sub-escala IV, referente aos medos das crianças.
A consistência interna dos resultados obtidos neste grupo de pais foi medida através
do alfa de Cronbach (tabela 6), tendo-se obtido resultados semelhantes ao do estudo anterior
(Algarvio, Leal & Marôco, 2008), para a totalidade dos itens da escala, 0.94, para a sub-escala I,
Problemas familiares e preocupações escolares, 0.83, para a sub-escala II, Desenvolvimento
infantil, 0.81, para a sub-escala III, Preparação, 0.75 e para a sub-escala V, Comportamentos
Negativos, 0.87. Relativamente à sub-escala IV, Medos, obteve-se neste estudo um resultado
inferior, 0.76, ao obtido no estudo anterior, 0.84.
Alfa Cronbach
Escala Preocupações Parentais
0.944
Sub-Escala I. Preocupações Escolares e Probl. Familiares 0.828
Sub-Escala II. Desenvolvimento Infantil
0.812
Sub-Escala III. Preparação
0.748
Sub-Escala IV. Medos
0.764
Sub-Escala V. Comportamentos Negativos
0.871
Tabela 6. Alfas de Cronbach da Escala e Sub-Escalas
Os resultados obtidos pelos pais de crianças a frequentar o pré-escolar, ou seja, entre
os 3 e os 5 anos, apresentaram médias de preocupação inferiores aos resultados obtidos pelos
pais de crianças do 1º ciclo, ou seja, com idades compreendidas entre os 6 e os 10 anos, com
excepção para a sub-escala V, comportamentos negativos (tabela 7).
487
Escala PP
Sub-Escala I
Sub-Escala II
Sub-Escala III
Sub-Escala IV
Sub-Escala V
Pré/Básico
N
Média
Desvio-Padrão
Média Desvio-Padrão
Pré-Escolar
252
3.5607
.67676
.04263
1º Ciclo
928
3.5972
.67114
.02203
Pré-Escolar
251
3.9229
.86368
.05451
1º Ciclo
921
4.0398
.74196
.02445
Pré-Escolar
250
3.6330
.73590
.04654
1º Ciclo
922
3.6586
.78269
.02578
Pré-Escolar
230
3.3348
.96632
.06372
1º Ciclo
879
3.3747
.92885
.03133
Pré-Escolar
235
3.2121
.87547
.05711
1º Ciclo
848
3.2565
.92958
.03192
Pré-Escolar
243
3.3663
.76195
.04888
1º Ciclo
870
3.3382
.87109
.02953
Tabela 7. Média e Desvio da Padrão dos resultados obtidos no Pré-Escolar e 1º Ciclo
Para comparar o grupo de pais de crianças do pré-escolar e do 1º ciclo escolhemos o
teste t-Student com a correcção de Welch para a heterogeneidade de variâncias, analisado no
SPSS 16. Foram encontradas diferenças significativas na sub-escala I, Preocupações escolares e
problemas familiares (t (356.754) = - 1.956; p = 0.051), sendo que os pais de crianças do 1º
ciclo se preocupam com maior intensidade do que os pais de crianças do pré-escolar.
As mães preocupam-se com maior intensidade do que os pais em relação a todas as
sub-escalas (tabela 8).
Escala PP
Quem responde
N
Média
Desvio-Padrão
Média Desvio-Padrão
Pai
85
3.4253
.65192
.07071
488
Sub-Escala I
Sub-Escala II
Sub-Escala III
Sub-Escala IV
Sub-Escala V
Mãe
765
3.6053
.66384
.02400
Pai
85
3.9163
.74141
.08042
Mãe
760
4.0308
.76067
.02759
Pai
85
3.5247
.69040
.07488
Mãe
759
3.6376
.79280
.02878
Pai
82
3.0650
.90561
.10001
Mãe
718
3.4452
.92464
.03451
Pai
79
2.9473
.95428
.10736
Mãe
704
3.2869
.88940
.03352
Pai
82
3.1764
.85933
.09490
Mãe
721
3.3534
.81997
.03054
Tabela 8. Média e Desvio-Padrão dos resultados dos Pais e das Mães
Para comparar as preocupações dos pais e das mães escolhemos o teste t-Student com
a correcção de Welch para a heterogeneidade de variâncias. Foram encontradas diferenças
significativas na sub-escala III, Preparação (t (798) = -3.535; p = 0.000), na sub-escala IV, Medos
(t (781) = -3.195; p = 0.001) e diferenças quasi-significativas na sub-escala V, Comportamentos
negativos (t (801) = -1.843; p = 0.066).
Relativamente ao sexo da criança, foram encontradas diferenças significativas apenas
na sub-escala IV, Medos (t (1078) = -2.724; p = 0.007), onde os pais apresentaram uma
preocupação mais intensa relativamente aos filhos do sexo feminino.
Escala PP
Sexo
N
Média
Desvio-Padrão
Média Desvio-Padrão
Masculino
562
3,5777
,64313
,02713
489
Sub-escala I
Sub-escala II
Sub-escala III
Sub-escala IV
Sub-escala V
Feminino
615
3,5986
,69564
,02805
Masculino
556
4,0182
,75341
,03195
Feminino
613
4,0105
,78596
,03174
Masculino
555
3,6509
,76023
,03227
Feminino
614
3,6551
,78208
,03156
Masculino
519
3,3314
,95423
,04189
Feminino
587
3,3938
,91980
,03796
Masculino
514
3,1654
,90644
,03998
Feminino
566
3,3168
,91809
,03859
Masculino
525
3,3438
,83562
,03647
Feminino
585
3,3428
,85782
,03547
Tabela 9. Média e Desvio-Padrão dos resultados por sexo da criança
Discussão
Tendo por objectivo a validação do instrumento de avaliação de preocupações
parentais por nós desenvolvido em estudos anteriores, verificámos através da análise destes
primeiros resultados obtidos no estudo nacional que estamos a desenvolver que a Escala
apresenta níveis de consistência interna elevados e poder discriminativo.
Os resultados obtidos nos estudos comparativos efectuados demonstram a
capacidade discriminativa da escala face à população normativa, relativamente ao
nível de escolaridade da criança, ao sexo da criança e às preocupações dos pais e das
mães. Este resultado vem reforçar os resultados obtidos em estudos anteriores
efectuados com diferentes populações com problemáticas específicas, na área da
saúde com pais de crianças nascidas por fertilização in vitro (Serra & Algarvio, 2006;
Algarvio, Leal, Marôco, & Serra, 2008)e com pais de crianças prematuras (Matono &
490
Algarvio, 2004; Algarvio, Leal, Marôco, & Matono, 2008), na área da psicopatologia,
com pais de crianças autistas (Lucas & Algarvio, 2005), na área psicossocial com
mulheres vítimas de maus-tratos (Ataíde & Algarvio, 2004) e para avaliar possíveis
diferenças culturais com pais moçambicanos (Algarvio, Leal, Marôco & Moreno, 2008).
Consideramos que esta escala poderá ser um instrumento útil de avaliação em
contextos educativos, clínicos e de saúde. Apresentaremos brevemente os resultados
finais da aferição nacional e a discussão teórica do conceito.
Referências
Algarvio, S.; Leal, I. & Marôco, J. (2008). Escala de Preocupações Parentais. In I. Leal e J.
Marôco (Eds.), Instrumentos de avaliação em Psicologia e Saúde. (no prelo)
Algarvio, S.; Leal, I. & Marôco, J. (2008). Parental concerns: Preliminary validation study
of an instrument of evaluation. Psychology & Health, 23 (1), 53.
Algarvio, S.; Leal, I.; Marôco, J. & Moreno, M. (2008). Parental Concerns: Comparative
study between a group of Portuguese Parents and a group of Mozambican Parents.
International Journal of Developmental and Educational Psychology, 1 (4), 199-208.
Algarvio, S.; Leal, I; Marôco, J. & Matono, M. (2008). Preocupações Parentais: Estudo
comparativo entre um grupo de pais normativo e um grupo de pais de crianças prematuras. In
I. Leal, J. Ribeiro, I. Silva & S. Marques (Eds.), Actas do 7º Congresso Nacional de Psicologia da
Saúde – Intervenção em Psicologia e Saúde. (pp. 639-642)
Algarvio, S.; Leal, I; Marôco, J. & Serra, M. (2008). Preocupações Parentais: Estudo
comparativo entre um grupo de pais normativo e um grupo de pais de crianças FIV. In I. Leal, J.
491
Ribeiro, I. Silva & S. Marques (Eds.), Actas do 7º Congresso Nacional de Psicologia da Saúde –
Intervenção em Psicologia e Saúde. (pp. 635-638). Lisboa: ISPA.
Algarvio, S. & Leal, I. (2004). Preocupações parentais : validação de um instrumento de
medida. Psicologia, saúde e doenças, 5 (2), 145-158.
Algarvio, S. & Leal, I. (2002). Parental concerns: Construction of an instrument of
evaluation. In I. Leal, T. Botelho & J. Pais-Ribeiro (eds.), Proceedings of the 16th Conference of
the European Health Psychology Society - Health through the life cycle: A life span perspective.
(pp. 165-172). Lisboa: ISPA.
Ataíde, S. & Algarvio, S. (2004). Preocupações Parentais de mulheres vítimas de maustratos. In I. Leal & J. Ribeiro (Eds.), Actas do 5º Congresso Nacional de Psicologia da Saúde – A
Psicologia da Saúde num mundo em mudança. (pp. 285-292). Lisboa: ISPA.
Bleandonu, g. (2003). Apoio terapeutico aos pais. Lisboa: climepsi.
Debray, R. (1988). Bebés/Mães em revolta - Tratamentos psicanalíticos conjuntos dos
desequilíbrios psicossomáticos precoces. Porto Alegre: Artes Médicas.
Green, V. (1997). Le travail avec les parents. Journal de la Psychanalyse de l’enfant,
21,72-93.
Guillaume, J. C. (1997). Les parents, l’enfant et la psychanalyse. Journal de la
Psychanalyse de l’enfant, 21, 48-71.
Houzel, D. (1997). Les dimensions de la parentalité. Journal de la Psychanalyse de
l’enfant, 21, 165-189.
Lejeune, E. (1997). Éditorial. Journal de la Psychanalyse de l’enfant, 21, 9-18.
Lucas, A. & Algarvio, S. (2005). Preocupações Parentais de pais de crianças autistas. In
I. Leal & J. Ribeiro (Eds.), Actas do 6º Congresso Nacional de Psicologia da Saúde – Saúde, Bemestar e Qualidade de Vida. (pp. 265-270). Lisboa: ISPA.
492
Matono, M. & Algarvio, S. (2004). Preocupações Parentais em pais de crianças
prematuras. In I. Leal & J. Ribeiro (Eds.), Actas do 5º Congresso Nacional de Psicologia da
Saúde – A Psicologia da Saúde num mundo em mudança. (pp. 279-284). Lisboa: ISPA.
Mesibov, G., Schroeder, C. & Wesson, L. (1993). Parental concerns about their children.
In M. Roberts, G. Koocher, D. Routh & D. Willis (Eds.), Readings in Pediatric Psychology. (pp.
307-316). New York: Plenum Press.
Richter, L.M. (2003). Poverty, underdevelopment and infant mental health. Journal
Paediatrics Child Health, 39, 243–248.
Rosenbaum, A. (1997). L’évaluation du fonctionnement parental: un processus critique
dans l’évaluation des enfants, pratiquée en vue d’une psychanalyse. Journal de la Psychanalyse
de l’enfant, 21, 19-47.
Serra, A. & Algarvio, S. (2006). Preocupações Parentais em pais de crianças FIV.
Análise Psicológica, 24 (2), 149-154.
Winnicott, D.W. (1979). The Maturational Processes and the Facilitating Environment.
London: Tavistock.
Winnicott, D.W. (1993). A família e o desenvolvimento individual. S.Paulo: Martins
Fontes.
Winnicott, D. W. (1995). Conversas com os Pais. Lisboa: Terramar.
Nota : Este estudo faz parte de uma investigação para a obtenção do grau de Doutoramento e
é co-financiado pelo Programa Operacional da Ciência e Inovação 2010 e pelo Fundo Social
Europeu.
493
União Europeia – Fundos Estruturais
494
Candidatura 25
Autores: Anabela Pereira, Elisa Motta, Carolina Pinto, Olga Bernardino, Ana Melo, Joana
Ferreira & Mª João Rodrigues
Título: Intervenção em Comportamentos de risco na Universidade
495
496
INTERVENÇÃO EM COMPORTAMENTOS DE RISCO NA UNIVERSIDADE
Anabela Pereira1, Elisa Motta2, Carolina Pinto2, Olga Bernardino2, Ana Melo2, Joana Ferreira2,
Mª João Rodrigues2
1
DCE-Universidade de Aveiro. [email protected]
2
GAP-SASUC , Universidade de Coimbra, [email protected]
A Educação para a Saúde na prevenção de comportamentos de risco
A Organização Mundial de Saúde (WHO, 1985, 1986) define a saúde como “um estado
de bem-estar físico, mental e social completo, e não a ausência da doença”. Tal definição
enfatiza a perspectiva holística da saúde, actuando como farol orientador das políticas que são
desenvolvidas a nível nacional, esta organização tem vindo a chamar a atenção para que sejam
endereçados esforços conjuntos no sentido de se actuar na promoção da saúde (física e
mental) e na prevenção da doença ao longo do ciclo de vida. Nesse sentido, as intervenções
para a promoção da saúde têm enfatizado uma abordagem mais abrangente, a nível social e
ambiental, no sentido da mudança para comportamentos e estilos de vida saudáveis.
Neste contexto a educação para a saúde, entendida enquanto uma combinação de
experiências de aprendizagem concebidas para facilitar acções voluntárias conducentes à
saúde, assume-se como estratégia fundamental de promoção da saúde e de prevenção de
comportamentos de risco. Por seu lado, consolidada nos pressupostos teóricos da participação
de indivíduos e grupos, na mobilização da comunidade e no empowerment, a educação pelos
pares vem responder às necessidades de responsabilização e partilha do processo de educação
para a saúde (Rodrigues et. al., 2005), bem como de desenvolvimento pessoal dos indivíduos a
nível das competências de decisão, dos sistemas de ajuda e de relacionamento pessoal (Egan,
1994), e das aptidões para lidar eficazmente com situações difíceis, indutoras de stresse
497
(Maslach, 1982; Ellis et al., 1997 ; Pereira, 1998), procurando influenciar positivamentea
prevenção de comportamentos de risco e a adopção de comportamentos saudáveis.
A educação pelos pares é um processo através do qual um grupo de pares (minoria)
tenta informar e levar a que a maioria altere os seus comportamentos e atitudes, com o
objectivo de incutir a mudança para estilos de vida saudável (Pereira, 2005; Dias, 2006). No
âmbito da promoção da saúde diz respeito ao processo através do qual indivíduos bem
treinados e motivados desenvolvem actividades educacionais informais ou organizadas, com o
objectivo de desenvolver conhecimentos, atitudes, crenças e competências nos seus pares, de
forma a capacitá-los para protegerem a sua saúde e a das comunidades onde estão inseridos.
Este modelo vem, assim, colmatar a lacuna dos enquadramentos educativos apoiados
em sistemas verticais descendentes de ensino/aprendizagem ou de aconselhamento,
permitindo adaptar as intervenções aos grupos-alvo, bem como atribuir significado às
mensagens que passam a circular em grupos socialmente congruentes.
A aplicação dos modelos de educação para a saúde pelos pares tem ocorrido em
diversos contextos, através de sistemas formais (como escolas, universidades ou espaços
laborais), ou informais (associações, organizações não governamentais, movimentos sociais,
entre outros). Em Portugal e em contexto académico, a educação para a saúde pelos pares
tem merecido algum destaque, destacando-se alguns projectos de investigação e de
intervenção neste domínio, quer em Universidades, quer em Politécnicos (Pereira, 2005).
Estes modelos de intervenção na promoção da saúde apresentam bastantes
vantagens, mas também algumas limitações. Como vantagens desta estratégia, as
investigações na área identificam o facto de facilitarem o processo de transmissão e
compreensão da informação (Green, 2001); o desenvolvimento de estratégias de motivação
para a mudança comportamental (Turner & Shepherd, 1999); a promoção de aprendizagens
mais sustentadas no tempo; o facto de os educadores de pares poderem ser modelos de
498
influência positiva e ajudar a criar e reforçar normas sociais que apoiam a mudança
comportamental, ao mesmo tempo que podem oferecer apoio emocional e social (Pinto et al.,
2005); o facto de serem menos dispendiosas por assentarem no voluntariado de pares
(UNESCO, 2003), bem como promoverem o processo de empowerment de indivíduos e
comunidades (Rodrigues, et al., 2005). Por seu lado, as limitações da estratégia prendem-se
com a pouca clarificação dos conceitos que lhe subjazem, a par das dificuldades no
desenvolvimento dos projectos de educação pelos pares, concretamente ao nível da sua
avaliação e formação, treino e supervisão dos educadores.
No sentido de colmatar essas limitações é necessário um bom planeamento dos
projectos de educação para a saúde pelos pares, respeitando todas as fases indicadas como
essenciais para o seu funcionamento eficaz, concretamente: a análise da situação e avaliação
das necessidades; a definição de metas, objectivos e grupo-alvo; o desenvolvimento do plano e
estratégias de acção; a implementação do projecto; a selecção e recrutamento dos educadores
de pares; a sua formação e treino, supervisão e apoio; a permanência dos educadores de pares
e a avaliação dos projectos, bem como a sua sustentabilidade (Dias, 2006).
Atendendo às especificidades da educação para a saúde na prevenção de
comportamentos de risco, o presente trabalho visa apresentar um programa de
desenvolvimento de competências ao nível da prevenção de comportamentos sexuais de risco
no âmbito da educação pelos pares implementado na Universidade de Coimbra, bem como os
resultados da sua operacionalização e avaliação.
Programa de Desenvolvimento de competências para a prevenção do VIH/SIDA e IST em
contexto do Ensino Superior
499
O crescimento exponencial de pessoas infectadas por VIH/SIDA e IST a nível mundial
tem gerado uma verdadeira crise global de saúde pública (Kalichman, 1998), alertando as
estimativas para os próximos anos da ONUSIDA para a incidência de infecções em grupos
sociais como as mulheres e jovens (UNAIDS, 2005). A luta contra a SIDA tem, assim, de passar
necessariamente pela intensificação das medidas de prevenção, quer em termos de escala,
quer em termos de grupos envolvidos, pois a epidemia não se centra exclusivamente nos
tradicionais grupos de risco (homossexuais, toxicodependentes e prostitutas), alargando-se a
outros grupos sociais.
A prevenção do VIH/SIDA em contexto do Ensino Superior tem, assim, vindo a afirmarse como uma necessidade no âmbito da luta contra a SIDA. A nível internacional várias
investigações e programas de intervenção têm procurado envolver as Instituições do Ensino
Superior nesta luta, explicando a sua pertinência enquanto entidades directamente
responsáveis pelo bem-estar físico e consciencialização de um conjunto considerável de jovens
brilhantes com contributos importantes ao nível da formação de opiniões nos seus próprios
contextos; instituições com capacidades de introduzir estratégias para conter o alastramento
da doença no sector do ensino superior; bem como enquanto formadoras de futuros líderes de
opinião, com possíveis responsabilidades ao nível da definição de políticas e influência de
comportamentos na sua vida em sociedade, nas suas famílias, locais de trabalho, grupo de
amigos (ACU, 2004).
O Programa Nacional de Prevenção e Controlo da Infecção VIH/sida 2007-2010, da
autoria da Coordenação Nacional para a Infecção VIH/sida (2007), contempla as estratégias de
prevenção deste risco, que passam pela formação dos alunos num sistema de apoio entre
pares, bem como pelo desenvolvimento de competências preventivas.
Porque a epidemia do VIH é conduzida por comportamentos, existem várias teorias
psicológicas e sociais que têm contribuído para a construção, desenvolvimento e avaliação das
500
intervenções de redução do risco do VIH. Destas, destacamos o modelo de crença na saúde
(Rosenstock, Strecher & Becker, 1994), a teoria da acção racional (Fishbein & Ajzen, 1975), a
teoria social cognitiva (Bandura, 1994) e o modelo trans-teórico (Prochaska, DiClemente &
Norcross, 1992), que influenciaram modelos específicos para a redução do risco do VIH,
nomeadamente o modelo de redução do risco da SIDA (Catania, Kegeles & Coates, 1990) e o
modelo de competências informativo-motivacional-comportamental.
Estas teorias têm algumas características comuns entre si, das quais destacamos, a
percepção de ameaça e susceptibilidade, as atitudes para o desempenho de comportamentos
de redução do risco, as crenças normativas acerca dos pares e membros da comunidade, as
crenças e atitudes acerca da capacidade individual de desempenhar acções preventivas, a
aquisição de competências sociais e comportamentais que resultem na redução do risco e os
factores motivacionais que induzam um indivíduo ao estado de prontidão para agir.
Assim, a concepção de um programa para intervir ao nível da prevenção de
comportamentos de risco deverá apostar no desenvolvimento dos estudantes a nível das
competências de decisão (Jacinto e Pereira, 2006), a nível dos sistemas de ajuda e de
relacionamento pessoal, a lidar eficazmente com situações difíceis, indutoras de stresse
(Pereira, 2005), devendo adequar as suas estratégias de forma a ter em consideração o
contexto em que estes estudantes se inserem (Pereira et al., 2006, 2008).
O “Programa de Desenvolvimento de Competências para a Prevenção do VIH/SIDA e
IST” foi especialmente construído no âmbito de uma intervenção de Educação para a Saúde
pelos pares dirigida a estudantes do Ensino Superior, tendo como objectivos desenvolver
competências pessoais para a mudança de comportamentos de risco face ao VIH/SIDA;
analisar e modificar crenças e cognições associadas a comportamentos-problema; dar a
conhecer e treinar técnicas básicas de aconselhamento com base em problemas associados a
comportamentos de risco; e fomentar valores como a tolerância e a não discriminação, bem
501
como uma melhor informação no âmbito das questões da sexualidade e IST (Motta et al.,
2006). O principal impulso na origem da sua construção e implementação foi a aprovação de
uma candidatura, promovida pelos Serviços de Acção Social da Universidade de Coimbra, em
parceria com o Departamento de Ciências da Educação da Universidade de Aveiro e com o
Instituto de Ciências Sociais da Universidade do Minho, apresentada ao Programa de
financiamento de projectos de intervenção “ADIS/SIDA”, da Coordenação Nacional para a
Infecção do VIH/SIDA (ADIS/0196/06).
As actividades realizadas no âmbito do projecto de intervenção aprovado foram
estruturadas tendo em consideração a sua aplicação em 3 pólos: Coimbra, Aveiro e Minho
(Braga). Em Coimbra e no Minho foram implementados programas de desenvolvimento de
competências para a prevenção do VIH/SIDA e IST, constituídos por 7 sessões de formação de
presença obrigatória, alusivas às seguintes competências: Aptidão Social, Auto-eficácia, Autoestima, Tolerância e Responsabilidade Social, Assertividade, Crenças e Mitos e Sexualidade. No
pólo de Aveiro, atendendo à especificidade do contexto de implementação, a formação foi
organizada em módulos de formação independentes, embora tivessem sido abordadas as
mesmas competências.
Para os programas de desenvolvimento de competências foi ainda construído um
manual de formação, com conteúdos elaborados pelos formadores responsáveis pelo
desenvolvimento das competências em causa, que foi distribuído aos participantes em
Coimbra e no Minho. As sessões dos programas desenvolveram-se de acordo com
metodologias de formação menos directivas e mais interactivas, como a instrução, modelação,
ensaio de comportamentos, role playing, focus group e dramatização de situações.
Pese embora a estrutura global do projecto assentar em três pólos, neste artigo
procurámos focalizar as actividades desenvolvidas no pólo da Universidade de Coimbra,
502
incidindo na apresentação e discussão dos resultados da avaliação do Programa de
Desenvolvimento de Competências para a Prevenção do VIH/SIDA e IST.
Metodologia da Intervenção e Avaliação do Programa
Amostra
O Programa de Desenvolvimento de Competências realizado na Universidade de
Coimbra contou com a participação de 58 estudantes do Ensino Superior (M=16; F=42), com
idades compreendidas entre os 17 e os 41 anos (M=22,43, dp=4,23). Estes alunos eram
naturais de vários distritos portugueses, dos quais se destacam: Coimbra (6), Porto (6), Leiria
(4) e Madeira (4); tendo contado igualmente com alunos oriundos da Guiné (3), Cabo Verde
(2), Angola (1), Congo (1), Timor (1) e EUA (1). A maioria dos estudantes participantes no
Programa pertenciam à Universidade de Coimbra, tendo ainda participado alguns
pertencentes ao Instituto Politécnico de Coimbra. Em termos de distribuição por faculdades da
Universidade de Coimbra, os alunos frequentavam cursos, na sua maioria, das faculdades de
Medicina (12) e de Direito (12), embora quase todas as faculdades estivessem representadas, à
excepção da Faculdade de Desporto e Educação Física da Universidade de Coimbra. Em termos
de anos curriculares que frequentavam, os alunos distribuíam-se por todos os anos (do 1.º ao
5.º), contado ainda com a presença de um aluno do ensino pós-graduado.
Instrumentos e Procedimentos de Avaliação do Programa
Para a avaliação do programa foi concebido pelos autores um questionário, intitulado
“Programa de Desenvolvimento de Competências para a Prevenção do VIH/SIDA e IST”, com
base numa escala de tipo Likert, para averiguar os conhecimentos e comportamentos dos
503
estudantes relativamente a um conjunto de sete competências no âmbito da prevenção de
comportamentos de risco do VIH/SIDA e IST. O referido instrumento foi aplicado no início e no
final do Programa, a um grupo experimental (constituído pelos participantes do Programa) e a
um grupo de controlo (estudantes do Ensino Superior escolhidos de forma aleatória), de forma
a permitir comparações de resultados.
A nível dos formadores, foi elaborado um instrumento de avaliação, que designamos
de “Avaliação da sessão de formação: Perspectiva do formador”, envolvendo uma escala tipo
Likert, de 1 a 5, em que 1 correspondia a Mau e 5 a Muito Bom, que permitiu obter dados
relativos à percepção destes sobre as condições e organização da formação e sobre o grupo de
participantes. Os dados recolhidos foram tratados com recurso ao programa estatístico SPSS.
Resultados e Discussão
Em termos de avaliação das competências antes do início do programa (Baseline do
programa), quer do grupo experimental, quer do grupo de controlo, os resultados, além de
permitirem a avaliação dos conhecimentos dos participantes, foram também indicadores de
ambos os grupos se encontrarem ao mesmo nível.
No que respeita ao Grupo Experimental, as percepções que os participantes tinham
relativamente às suas competências no âmbito da prevenção do VIH/SIDA e IST (avaliadas
numa escala de tipo Likert, de 1 a 5, em que 1 representa mau e 5 muito bom), foram
classificadas com valores entre o suficiente e o bom (Quadro 1).
N
Média
Mediana Desvio Padrão
Aptidão Social
57 3,8246 3,8
,63816
Auto-Estima
54 3,9889 4
,60241
504
Assertividade
54 3,9556 4
,62122
Auto-Eficácia
53 4,3321 4,4
,53052
Crenças e Mitos
54 4,2741 4,4
,68217
Sexualidade
55 3,7709 3,8
,81597
Tolerância e Responsabilidade Social 58 4,2138 4,4
,53227
Quadro 1 – Distribuição das percepções sobre as competências pelo grupo experimental
Por sua vez, no que respeita ao Grupo de Controlo, este foi constituído por 45 alunos
(M=17; F=28), com idades compreendidas entre os 16 e os 41 anos (M=22,95, DP=4,99),
frequentando, na sua maioria cursos da Universidade de Coimbra, das Faculdades de Medicina
(9), Ciências e Tecnologia (9), Letras (6), Economia (6), Direito (3), Psicologia (3), Farmácia (2) e
Desporto (1), bem como por alunos do Instituto Politécnico de Coimbra e outros (4).
As percepções deste grupo referentes às suas próprias competências para a prevenção
do VIH/SIDA e IST, à semelhança do que aconteceu com o grupo experimental, foram, em
geral, classificadas com valores entre o suficiente e o bom (Quadro 2).
N
Média
Mediana Desvio Padrão
Aptidão Social
43 3,8762 3,8
,58427
Auto-Estima
44 4,1182 4,2
,52175
Assertividade
44 3,8273 3,8
,61846
Auto-Eficácia
40 4,3436 4,6
,59107
Crenças e Mitos
44 4,2773 4,4
,64731
Sexualidade
42 3,8714 4
,69678
Tolerância e Responsabilidade Social 41 4,0683 4
,74915
Quadro 2 - Distribuição das percepções sobre as competências pelo grupo de controlo
505
Comparando, em termos médios, as percepções sobre as competências dos dois
grupos antes do início do programa verificamos não haver grandes diferenças (Gráfico 1),
revelando-se ser adequada a amostra seleccionada, a nível da sua uniformização, sendo
também tais características de grande utilidade para a posterior avaliação da eficácia do
programa.
5
4
Grupo Experimental
3
Grupo de Controlo
2
Tolerância e
Responsabilidade
Social
Sexualidade
Crenças e Mitos
Auto-eficácia
Assertividade
Auto-Estima
Aptidão Social
1
Gráfico 1 – Comparação entre as percepções ao nível das competências entre grupo experimental e
grupo de controlo antes do Programa
Por sua vez, a avaliação das competências depois do Programa foi realizada, quer para
o grupo experimental, quer para o grupo de controlo. Identificaram-se, por um lado, os
resultados da comparação entre os valores médios obtidos antes e depois do programa para o
grupo experimental, no sentido de se perceber se houve uma evolução dos valores atribuídos
a cada competência, ou seja para avaliar o impacto do programa no grupo dos alunos que nele
participaram. Por outro lado, os resultados da comparação entre o grupo experimental e o
grupo de controlo no final do Programa foram apurados para averiguar da existência de
diferenças entre o grupo que participou no programa e o que não participou.
506
Assim, da comparação entre o desenvolvimento das competências antes e depois do
programa para o grupo experimental, verificamos que em todas as competências houve
evoluções positivas (Gráfico 2).
5
4
Antes
3
Depois
2
Tolerância e
Responsabilidade
Social
Sexualidade
Crenças e Mitos
Auto-eficácia
Assertividade
Auto-Estima
Aptidão Social
1
Gráfico 2 – Comparação entre a classificação das competências antes e depois do programa para o
Grupo Experimental – Pólo de Coimbra
Através de testes emparelhados de comparação de valores médios verificamos
existirem diferenças estatisticamente significativas nos valores obtidos antes e depois do
programa nas competências: “Auto-Estima” (t=-2,515; gl=40; p=.016) e “Assertividade” (t=2,334; gl=40; p=.025). Foram ainda encontradas diferenças significativas nas competências:
“Crenças e Mitos” (t=-2,983; gl=41; p=.005); “Auto-eficácia” (t=-3,183; gl=37; p=.003) e
“Sexualidade” (t=-4,201; gl=42; p=.000). Nas competências “Aptidão Social” e “Tolerância e
Responsabilidade Social” os valores médios foram mais elevados depois do programa (M=4,10
e M=4,36, respectivamente) do que antes (M=3,84 e M=4,29, respectivamente), contudo tais
diferenças não foram estatisticamente significativas. Estes dados permitem-nos, assim, inferir
a existência de alterações positivas ao nível do desenvolvimento de competências do grupo
que participou no Programa de Desenvolvimento de Competências para a Prevenção do
VIH/SIDA e IST no pólo de Coimbra.
507
Esta mudança positiva ao nível do desenvolvimento de competências para a prevenção
do VIH veio realçar os modelos específicos que sustentaram esta intervenção, dos quais
salientamos, a nível nacional, os trabalhos de Jacinto e Pereira (2006), e a nível internacional,
os modelos de Catania, Kegeles e Coates (1990) e Kalichman (1998) para a redução do risco da
SIDA.
Por sua vez, da comparação entre os valores atribuídos às competências pelo grupo
experimental e pelo grupo de controlo depois do programa, verificamos que os participantes
do programa apresentam valores mais elevados quando comparados, no mesmo período, com
os alunos que não participaram no programa (Gráfico 3).
5
4
Grupo Experimental
3
Grupo de Controlo
2
Tolerância e
Responsabilidade
Social
Sexualidade
Crenças e Mitos
Auto-eficácia
Assertividade
Auto-Estima
Aptidão Social
1
Gráfico 3 – Comparação dos valores médios das competências do grupo experimental e do grupo de
controlo depois do programa
Estes dados permitem, assim, verificar que a melhoria das competências do grupo que
participou no programa (visível nos resultados da comparação do antes e depois do programa
para o grupo experimental), não se verificou no grupo de controlo, já que inicialmente os dois
grupos apresentavam resultados muito semelhantes (Gráfico 1). Tais resultados poderão estar
relacionados com a aplicação do Programa de Desenvolvimento de Competências para a
Prevenção do VIH/SIDA e IST ao grupo experimental. Contudo deverá ser tida em consideração
508
alguma precaução nesta análise e discussão dos dados visto que neste tipo de estudo é muito
difícil controlar as variáveis parasitas.
Por seu lado, a avaliação realizada pelos formadores sobre o envolvimento no
Programa foi também avaliada de forma muito positiva, tendo estes atribuído “Muito Bom” ao
apoio administrativo às sessões de formação (M=5), ao material das sessões (M=4,86) e à
organização geral da formação (M=4,71).
O feedback recebido posteriormente, traduzindo a satisfação dos formadores ao longo
deste processo de desenvolvimento de competências, veio realçar as vantagens que a relação
de ajuda tem para o desenvolvimento pessoal do próprio formador, tal com tem sido
salientado nos estudos de Prochaska, DiClemente e Norcross (1992), Egan (1994) e Pereira
(2005).
Considerações Finais
A avaliação da implementação do Programa de Desenvolvimento de Competências
para a Prevenção do VIH/SIDA e IST na Universidade de Coimbra revelou-se bastante positiva,
realçando-se o potencial de utilidade desta forma de intervenção para prevenção de
comportamentos de risco em contexto académico.
A par dos resultados objectivos obtidos através da análise dos questionários,
salientamos igualmente, a nível qualitativo, os vários feedbacks francamente positivos que
fomos tendo conhecimento ao longo das sessões pelos participantes, bem como o entusiasmo
dos formadores confrontados com um grupo altamente motivado e interessado.
Relevamos também as preocupações transmitidas pelos formadores face aos
conhecimentos reduzidos ao nível de planeamento familiar, sexualidade e contracepção
509
demonstrados pelos dos estudantes do Ensino Superior que participaram nas diferentes
sessões, levando-nos a reforçar a pertinência da Educação para a Saúde, e concretamente para
a Saúde Sexual neste contexto.
Consideramos igualmente importante a integração dos conteúdos de programas deste
género na estrutura curricular dos vários cursos do Ensino Superior, que poderia ser, por
exemplo, operacionalizada pela criação de uma disciplina aberta aos alunos de todos os
cursos,
intitulada
“Desenvolvimento
de
Competências
Pessoais
e
Prevenção
de
Comportamentos de Risco”, dada a sua pertinência para o desenvolvimento pessoal e social
dos estudantes do Ensino Superior.
Em termos de continuidade da investigação neste domínio, sugere-se ainda alargar
este trabalho a outras instituições nacionais para que se possam comparar resultados obtidos,
bem como envolver equipas multidisciplinares e internacionais.
Referências Bibliográficas
ACU (2004). HIV/AIDS: Towards a Strategy for Commonwealth Universities. Registered Charity
No. 314137 (documento online em: www.acu.ac.uk/hiv-aids/hiv_aids.html).
Bandura, A. (1994). Social cognitive theory and exercise of control over HIV infection. In R.
DiClemente & J. Peterson (Eds.), Preventing AIDS: Theories, methods, and behavioural
interventions (pp. 25-60). New York: Plenum.
Catania, J.A.; Kegeles, S.M. & Coates, T.J. (1990). Towards an understanding of risk behavior:
An AIDS risk reduction model (ARRM). Health Education Quaterly, 17, 53-72.
510
Coordenação Nacional para a Infecção VIH/sida (2007). Programa Nacional de Prevenção e
Controlo da Infecção pelo VIH/sida 2007-2010. Lisboa: Coordenação Nacional para a
Infecção VIH/sida.
Dias, S.F. (2006). Educação pelos Pares: Uma estratégia na promoção da saúde. Lisboa:
Universidade Nova de Lisboa/Instituto de Higiene e Medicina Tropical
Egan, G. (1994). The skilled helper: models, skills and methods for effective helping (4th
edition). Pacific Grove, CA: Books/Cole.
Ellis, A., Gordon, J., Neenan, M., & Palmer, S. (1997). Stress counselling: a rational emotive
behaviour approach. London: Cassel.
Fishbein, M. & Ajzen, I. (1975). Belief, attitude, intention & behavior: Na introduction to theory
and research. Reading, MA: Addison Wesley
Green, J. (2001). Peer Education. Promotion & Education, VIII(2), 65-68.
Jardim, J. & Pereira, A.S. (2006). Competências Pessoais e Sociais. Guia Prático para a Mudança
Positiva. Porto: Edições ASA
Kalichman, S.C. (1998). Preventing AIDS. A Sourcebook for Behavioral Interventions. New
Jersey: Lawrence Erlbaum Associates, Inc. Publishers.
Maslach, C. (1982). Burnout, the Cost of Caring. Prentice-Hall.
Motta, E.; Vaz, A.; Pereira, A.S.; Pinto, C.; Bernardino, O.; Melo, A.; Pereira, A.; Ferreira, J.;
Rodrigues, M.J.; Medeiros, A.; Bombas, T.; Monteiro, S.; Pinheiro, M.J.; Carvalho, D. &
Nossa, P. (2006). Educação para a saúde pelos pares: Intervenção em comportamentos
de risco do VIH/SIDA. In I. Leal, J.P. Ribeiro e S.N. Jesus (Orgs), Actas do 6.º Congresso
Nacional de Psicologia da Saúde (pp. 673-679). Faro: Universidade do Algarve.
511
Pereira, A.S. (1998). Apoio ao estudante universitário: peer counselling (Experiência –piloto).
Psychológica, 20, 113-124.
Pereira, A.S. (2005). Para obter sucesso na vida académica. O apoio dos estudantes pares.
Aveiro: Universidade de Aveiro
Pereira, A.S.; Decq Motta, E.; Vaz, A.; Pinto, C.; Bernardino, O.; Melo, A.; Ferreira, J.; Rodrigues,
M.J.; Medeiros, A. & Lopes, P. (2006). Sucesso e Desenvolvimento Psicológico do
Estudante Universitário: Estratégias de Intervenção. In Análise Psicológica, 1 (XXIV), 5159.
Pereira, A.S.; Gomes, R.; Francisco, C.; Jardim, J.; Motta, E.; Pinto, C.; Bernardino, O.; Melo, A.;
Ferreira, J.; Rodrigues, M.J. & Pereira, P. (2008). Desenvolvimento de competências
pessoais e sociais como estratégia de Apoio à Transição no Ensino Superior. In INFAD
Revista de Psicologia, 1, 419-426.
Pinto, C., Mota, E., Pereira, A.S., Ataíde, R., Bernardino, O., Mendes, R., & Ferreira, J. B. (2005).
Suporte social no desenvolvimento do aluno do ensino superior. In Medeiros, T., &
Peixoto, E., Desenvolvimento e Aprendizagem: do Ensino Secundário ao Ensino Superior
(pp.137-144). Ponta Delgada: Universidade dos Açores e Direcção Regional da Ciência
e Tecnologia do Governo Regional dos Açores.
Prochaska, J.O.; DiClemente, C.C. & Norcross, J.C. (1992). In search of how people change.
American Psychologists, 47, 1102-1113.
Rodrigues, M.; Pereira, A.S. & Barroso, T. (2005). Educação para a Saúde. Formação
Pedagógica de Educadores de Saúde. Coimbra: Edição Formasau - Formação e Saúde
Lda
512
Rosenstock, M.; Strecher, V. & Becker, M. (1994). The health belief model and HIV risk
behaviour change. In R. DiClemente & J. Peterson (Eds.), Preventing AIDS: Theories,
methods and behavioural interventions (pp. 5-24). New York: Plenum.
Turner, G., & Shepherd, J. (1999). A method in search of a theory: peer education and health
promotion. Health Education Research, 14(2), 235-247.
UNAIDS (2005). Intensifying HIV prevention. UNAIDS policy position paper. Geneva: UNAIDS.
UNESCO. (2003). Peer approaches in adolescent reproductive health education: some lessons
learned. Bangkok: UNESCO.
WHO (1985). Targets for health for all. Regional Office for Europe
WHO (1986). Ottawa Charter for Health Promotion. Geneva: WHO.
513
Candidatura 26
Autores: Anabela Pereira, José Tavares, Gustavo Vasconcelos, Paula Vagos, Luísa Santos, Sara
Monteiro, Pedro Almeida, Luís Pedro, Carlos Santos, Cátia Figueiredo, Mariana Fortuna, Marília
Moita, Rui Rodrigues & Helder Castanheira
Título: LUA na Second life ou apoio psicológico virtual: resultados da fase experimental
514
LUA NA SECOND LIFE OU APOIO PSICOLÓGICO VIRTUAL:
RESULTADOS DA FASE EXPERIMENTAL
Anabela Pereira, José Tavares, Gustavo Vasconcelos, Paula Vagos, Luísa Santos, Sara Monteiro,
Pedro Almeida, Luís Pedro, Carlos Santos, Cátia Figueiredo, Mariana Fortuna, Marília Moita,
Rui Rodrigues & Helder Castanheira
Anabela Pereira, [email protected], Universidade de Aveiro
Introdução
O Second Life (a seguir abreviado por SL) é um ambiente virtual, tridimensional,
acessível pela internet, cuja subscrição-base é gratuita e que simula ou tenta simular o mundo
real. Pode ser encarado por vários prismas, como um jogo, um centro de negócios virtual, uma
rede social, ou quase uma vida paralela em que cada pessoa pode escolher uma personagem
(avatar) e agir de forma diferente da sua conduta habitual.
Foi desenvolvido em 2003 pela empresa Linden Lab e tem aumentado
exponencialmente o número de utilizadores. Um levantamento demográfico, se assim se pode
dizer, feito pela empresa comScore, especializada em estatísticas de internet e citado pelo
blog mundolinden aponta para um crescimento de 5 vezes nos primeiros meses de 2007,
chegando aos 6 milhões de utilizadores registados, dos quais 1,3 milhões são activos. Afirma
ainda que, em 15 meses, a população do Second Life cresceu de 100.000 para 6 milhões em
todo
o
planeta
(blogue
“mundo
linden”
em
http://mundolinden.wordpress.com/category/estatísticas).
515
Este ambiente virtual consiste num conjunto de ilhas, habitadas por avatares
(personagens
virtuais),
que
são
escolhidos
pelos
utilizadores,
sendo
totalmente
personalizáveis. Todo esse “mundo” (edifícios, ruas, objectos, etc.) é construído pelos seus
residentes. Para isso, o SL disponibiliza uma ferramenta de modulação 3D que permite que
utilizadores mais avançados possam construir objectos, edifícios, veículos, entre outros. que
depois ficam na sua posse, sendo mesmo possível vender ou negociar. A unidade monetária
utilizada é o Linden Dollar e serve, por exemplo para adquirir porções de terreno ou mesmo
ilhas (artigo wikipédia em http://pt.wikipedia.org/wiki/Second_Life).
Sendo, como vimos, um veículo privilegiado de comunicação com os jovens, muitas
empresas e outros organismos não quiseram desperdiçar mais este meio de cativar clientes
e/ou membros. Também as instituições de ensino não poderiam deixar de estar associadas a
este novo desafio. De facto, cada vez mais agentes educativos em todo o mundo começaram a
comprar ilhas no Second Life (Kelton, 2007; Kirriemuir, 2007), tanto mais que em 2007 já lá
estavam registadas mais de mil universidade ou instituições de ensino (De Lucia, Francese,
Passero, & Tortora, 2008; Lagorio, 2007).
Essencialmente, as instituições de ensino procuram no SL uma nova e mais atraente
plataforma de e-learning. No fundo, um ensino à distância a 3 dimensões, com algumas
semelhanças com o “ensino tradicional”. O Second Life permite o ensino síncrono, ou seja,
aulas com hora marcada em que todos terão que estar online ao mesmo tempo e o ensino
assíncrono, nomeadamente trabalhos, questões ou projectos em que o professor/tutor deixa
as instruções para que os alunos executem determinada tarefa num período de tempo. Isto já
era possível nas plataformas de e-learning mais tradicionais. A novidade é que no SL tudo
parece mais real, envolvente e atractivo. Em vez de intermináveis páginas/ecrãs de texto
existem salas de aula virtuais em que é possível realmente assistir a uma apresentação
516
(slideshow) comodamente instalado em casa e ao mesmo tempo comunicar com os outros
alunos e professores em tempo real. Isto pode potenciar, por exemplo, o número de inscrições
de alunos estrangeiros em cursos de uma Universidade.
Deste modo, os ambientes 3D começaram a ser utilizados pelas instituições de ensino
como suplemento das actividades realizadas na sala de aula (Barab et al., 2002; Delwiche,
2006; Dickey, 2003; 2004 Mayrath et al., 2007), oferecendo a possibilidade de realizar tarefas
que seriam difíceis no mundo real, como dar a oportunidade a alunos de arquitectura de
construir edifícios que seriam demasiado caros ou fisicamente impossíveis (Lamb, 2006) ou
permitir que alunos de psiquiatria e o público em geral compreendessem melhor a visão do
mundo de um esquizofrénico, levando os seus avatares a experimentarem uma alucinação,
como fez o projecto Virtual Hallucination, pertencente ao UC Davis Medical Center (site oficial:
http://www.ucdmc.ucdavis.edu/ais/virtualhallucinations/; The Economist, 2006).
Apesar disso, as aplicações da Internet não se esgotam na aprendizagem de
conteúdos académicos. Tendo em conta que a maior parte dos estudantes são
utilizadores frequentes da Internet e das ferramentas associadas e que já as utilizam
para pesquisar informação sobre saúde mental (Christensen & Griffiths, 2000;
Escoffery et al., 2005), o desenvolvimento de serviços de educação para a saúde e
promoção da saúde mental e bem-estar online seria naturalmente outro passo
importante.
Apesar de existirem já várias iniciativas online como serviços de aconselhamento,
(Efstathiou & Kalantzi-Azizi, 2005), comunidades informais para aprendizagem sobre saúde
mental (Richards & Tangney, 2008) e apoio de pares (peer counselling) (Drees, 2005; Freeman,
Barker, Pistrang, Keane, & McAteer, 2005), a maioria destes projectos baseia-se em
tecnologias de segunda geração, tal como os emails, fóruns, blogs ou as salas de conversação,
517
escasseando dados empíricos que comprovem a sua eficácia (Eysenbach, Powell, Englesakis,
Rizo, & Stern, 2004).
Neste sentido, as intervenções dirigidas à saúde mental que sejam aplicadas em
ambientes virtuais, como o Second Life, são ainda mais recentes e inovadoras. Foram surgiram
grupos de ajuda dirigidos a públicos com problemáticas específicas, como a depressão,
perturbação bipolar ou o alcoolismo (Depression 24/7 Helpline, Second Life Bipolar Support
Group ou Alcoholics Anonymous), apoio de pares para pessoas com dificuldades, incidindo nas
competências de coping e promoção da saúde mental (Mental Health Network),
aconselhamento
aos
residentes
do
Second
Life
(Wellness
Island
-
site
oficial
http://www.slcounseling.org/nexus.htm) e apoio aos residentes que sofram na vida real de
síndrome
de
Asperger
ou
autismo
(Brigadoom
-
site
oficial:
http://braintalk.blogs.com/brigadoon/2005/02/online_social_n.html).
Se é verdade que no estrangeiro se tem apostado ao longo dos últimos anos, na
Internet e ferramentas associadas, sejam de 2ª ou 3a geração, para fins tão diversos como o
ensino ou promoção da saúde, em Portugal, todavia, esse interesse pela tecnologia não foi tão
precoce. De facto, foi apenas no ano lectivo de 2006/2007 que a Universidade de Aveiro (UA)
adquiriu uma ilha, tornando-se assim na primeira instituição de ensino portuguesa a fazer-se
representar no Second Life. O Departamento de Comunicação e Arte deu, então, início à
construção do espaço virtual da UA, tendo, para esse efeito, envolvido alunos dos cursos de
Novas Tecnologias da Comunicação e dinamizado projectos para que o desenvolvimento e
actualização fossem suportados numa base regular. O facto de o SL ser integrado desde logo
nos planos de estudo de algumas disciplinas contribuiu significativamente para a imagem de
credibilidade e pragmatismo que por vezes falta nestes projectos de índole tecnológica. O
envolvimento dos alunos neste tipo de projectos apresenta grandes vantagens pedagógicas e é
518
um elemento bastante motivador, porque se sentem parte activa do processo desde a sua
génese.
Aos visitantes da ilha da UA são já disponibilizados diversos serviços. Entre os quais,
um dos mais recentes e inovadores é a LUA (Linha da Universidade de Aveiro) no Second.UA. A
LUA foi, originariamente, um projecto de doutoramento da professora Anabela Pereira,
implementado em 1994 e que constitui a primeira experiência a nível nacional, consistindo
numa linha telefónica nocturna de apoio aos estudantes pelos próprios estudantes, tendo por
base o modelo de peer counselling (Pereira, 1997,1998; Pereira e Williams, 2001).
Partilhando os objectivos com o projecto inicial, surge agora a LUA em ambiente
virtual tridimensional, que presta apoio através de avatares (peer counsellor). O upgrade da
LUA para o SL não é apenas uma questão de acompanhar os tempos, mas também porque o
Second Life oferece um ambiente imersivo em que as pessoas se sentem mais livres de poder
exprimir todas as suas ideias, emoções ou frustrações, como que protegidas por um avatar. É
uma plataforma extremamente interactiva que pede constantemente a intervenção do
utilizador. É também um meio de comunicação muito abrangente, no sentido em que chega a
um público massivo, multifacetado e em número crescente. Num tempo em que há cada vez
menos tempo, o SL permite, em comparação com o atendimento tradicional, uma maior
disponibilidade e acessibilidade, sem constrangimentos de horários apertados, transportes,
esperas prolongadas, etc. A consulta é feita sem a deslocação do paciente ao consultório, o
que por outro lado permite também o anonimato, quando pretendido
O presente trabalho pretende apresentar os resultados obtidos com a activação dos
serviços LUA no SL, tanto a nível de consultas e apoios prestados, como a nível da perspectiva
dos utilizadores apoiantes.
519
Método
Amostra
Envolveu uma equipa multidisciplinar: 11 peritos de tecnologias da informação
(settlers); 5 psicólogos e 3 investigadores (terapeutas e formadores) e 15 estudantes de
psicologia (peer counsellor).
Para a análise da utilidade e actividades desenvolvidas no espaço virtual LUA durante
este período experimental, recorremos ao registo automático de entrada de avatares no
espaço e de pedidos de consulta e aos registos feitos por cada aluno conselheiro ou peer
counsellor sobre cada consulta que efectuou.
Instrumentos
Para registar a entrada de avatares no espaço e pedidos de consulta, foi incorporado no
funcionamento do próprio espaço um sistema de registo automático. A entrada de avatares
foi realizada pelo reconhecimento de uma nova identidade de avatar e o pedido de
consulta foi registado pelo clicar no local apropriado.
Como forma de registo das consultas dadas, foi construída uma página online, de
acesso restrito aos peritos, investigadores e alunos integrados no projecto, onde eles
preenchiam dados relativos a características visíveis, aos problemas apresentados e às
estratégias utilizadas.
Procedimento
Para a activação dos serviços, foi construído um espaço no ambiente virtual Second
Life, constituído por uma sala de entrada, duas salas de consulta individual e uma sala de
reuniões/ terapia de grupo. A confidencialidade das consultas individuais foi garantida pela
520
subida do espaço a uma altitude inacessível a outros avatares (400metros). Os serviços
estiveram activos por um período de duas semanas a nível experimental, em horário nocturno
(inicialmente previsto das 22h à 01h da manhã, mas que se prolongou por toda a noite e
madrugada).
Resultados
O espaço online foi visitado por 178 avatares, de acordo com o registo automático de
entrada no edifício. Destas visitas, 112 (62.92%) foram concretizados em pedidos de ajuda
junto dos avatares peer counsellors, sendo 66 (37.08%) de visita e reconhecimento do espaço.
Dos pedidos realizados, 54.5% (n = 61) ocorreram durante o período de activação
experimental do serviço e 45.5 (n = 51) após a conclusão deste período. No que respeita ao dia
da semana, 19.6% (n = 22) dos pedidos ocorreram ao fim de semana (sexta, sábado e
domingo) e 80.4% (n = 90) durante a semana (segunda a quinta-feira). Relativamente à hora de
ocorrência, 1.8% (n = 2) decorreu de madrugada (1h – 6h59), 29.5% (n = 33) aconteceu de
manhã (7h – 12h59), 21.4% (n = 24) ainda de tarde (13h – 18h59) e 47.3% (n = 53) decorreu de
noite (19h – 24h59).
No que concerne ao prosseguimento do pedido, e considerando apenas os pedidos
realizados durante o período de activação dos serviços, 34.4% (n = 21) foram consultados,
tendo sido verificada a necessidade de continuação no apoio prestado, enquanto 65.6% (n = 4)
foram encerrados, tendo sido dado término ao processo de apoio.
De entre as consultas dadas, foram registadas 18.03% (n = 11). Relativamente ao
género dos avatares com consultas registadas, 45.45% (n = 5) foram do sexo masculino,
45.45% (n = 5) foram do sexo feminino. Não foi possível identificar o sexo de um avatar
consultado (9.1%).
521
As problemáticas abordadas e que os levaram ao pedido de ajuda variaram entre relações
com amigos (n = 3; 27.3%), insatisfação com a imagem corporal (n = 1; 9.1%), relação com o
namorado/a (n = 3; 27.3%), isolamento e solidão (n = 2; 18.2%) e sintomas depressivos (n = 2;
18.2%).
522
Discussão
Apesar do curto espaço de tempo em que a LUA esteve activa no SL, podemos
retirar desta experiência alguns dados que, de um modo global, nos permitem fazer
uma apreciação bastante positiva. Em primeiro lugar, constatámos que este espaço
teve uma grande afluência, não apenas de avatares movidos pela curiosidade, como
também daqueles que pretendiam procurar ajuda.
Este interesse demonstrado pelas pessoas, em conhecer e aderir ao apoio
psicológico num mundo virtual, vem reforçar a pertinência da utilização da iniciativas
online de promoção da saúde mental, dirigidas aos estudantes universitários (Richards
& Tangney, 2008), que são, de um modo geral, utilizadores frequentes da Internet,
recorrendo a ela para obter informação e educação no âmbito da saúde e da saúde
mental (Christensen & Griffiths, 2000; Escoffery et al., 2005).
Efectivamente, o aconselhamento no SL, quando comparado com o
aconselhamento tradicional, tem a vantagem de possibilitar o total anonimato, já que
cada pessoa não se expõe directamente, mas sim através de uma identidade fictícia
que criou, o seu avatar. Ao levar as pessoas a sentirem-se mais confortáveis e à
vontade na hora de expor os seus problemas, dúvidas, receios, este meio poderá atrair
um grupo de indivíduos que, de outro modo, não procurariam apoio psicológico.
Se atentarmos aos motivos que levaram os avatares a procurar ajuda na LUA,
ou seja, dificuldades interpessoais (tanto no relacionamento com amigos como nos
namoros), problemas com a imagem corporal, isolamento, solidão e sintomas
depressivos, facilmente verificamos que estas problemáticas são essencialmente de
natureza psico-social e encontram-se entre as mais comuns apresentadas pelos
523
estudantes nos serviços de aconselhamento no ensino superior em Portugal (RESAPES,
2002), bem como nalguns estudos anteriormente realizados ao nível do apoio psicoterapêutico (Pereira, Masson, Ataíde e Melo, 2004)
Com base na distribuição das visitas ao longo do tempo, podemos fornecer
algumas pistas quanto horário de funcionamento mais indicado para o apoio
psicológico virtual dirigido à população estudantil do ensino superior (embora não
exclusivamente), Com efeito, o melhor período parece ser durante os dias úteis, de
segunda a quinta-feira, preferencialmente durante a noite (19h-24.59), seguida da
manhã (7h-12:59), sendo tais períodos coincidentes com os estudos pioneiros de
Pereira (1997).
Apesar dos resultados promissores desta experiência, deverão ser tidas em considerações
algumas limitações. Para compreendermos até que ponto esta iniciativa foi bem sucedida,
seria importante ter a opinião dos alunos apoiados/avatares, pois apenas estes nos poderão
indicar se as consultas contribuíram de alguma forma para ultrapassar as suas dificuldades ou
problemas ou para melhorar o seu bem-estar e auto-estima. Esta informação é fundamental,
até porque as informações existentes sobre a eficácia de iniciativas de peer counselling
realizadas online, são algo complexas e dúbias (Eysenbach, Powell, Englesakis, Rizo, & Stern,
2004) e não temos conhecimento de dados sobre apoio de pares especificamente no Second
Life ou outros ambientes virtuais. Neste sentido, acreditamos que, de futuro, possamos
ultrapassar esta limitação, aplicando alguma medida de avaliação da eficácia das consultas aos
alunos atendidos e eventualmente comparando com um grupo de controlo.
Por outro lado, a formação dos alunos voluntários, tanto ao nível de competências de
manuseamento do Second Life, como do próprio peer counselling poderá ter tido algumas
lacunas, especialmente devido a constrangimentos de tempo, o poderá ter estado na origem
da baixa percentagem de consultas registadas (18,07%), face ao total de consultas efectuadas,
524
bem como de registos reduzidos de informação e por vezes confusos. Para além disso,
problemas técnicos impossibilitaram a consulta de alguns dos registos.
A reactivação da LUA no Second Life, com a preocupação de ultrapassar as limitações
desta primeira fase, está prevista para um futuro próximo. O sucesso desta experiência de
elevada utilidade para os tempos vindouro só foi possível devido a um trabalho de uma equipa
multidisciplinar e complementar
Acreditamos que os resultados desta experiência pioneira em Portugal são indicadores da
potencialidade desta ferramenta de apoio psicológico de pares em ambiente virtual, enquanto
meio inovador e alternativo de promoção e educação para a saúde, abrindo portas para a
procura de apoio psicológico em contexto real e assim promovendo por dois meios o bemestar e saúde mental do indivíduo.
Referências Bibliográficas
Barab, S. A., Hay, K. E., Squire, K., Barnett, M., Schmidt, R., Karrigan, K., et al. (2000). Virtual
solar system project: Learning through a technology-rich, inquiry-based, participatory
learning environment. Journal of Science Education and Technology, 9, 7 – 25.
Christensen, H., & Griffiths, K. (2000). The Internet and mental health literacy. Australian and
New Zealand Journal of Psychiatry, 34 (6), 975-979.
Corbit, M., & DeVarco, B. (2000). SciCentr and BioLearn: Two 3-D implementations of CVE
science museums. In E. Churchill and M. Reddy (Eds.), Proceedings of the Third
International Conference on Collaborative Virtual Environments (pp. 65 – 71). New York:
Association for Computing Machinery.
525
De Lucia, A., Francese, R., Passero, I., & Tortora, G. (2008). Development and evaluation of a
virtual campus on Second Life: The case of SecondDMI. Computers & Education,
doi:10.1016/j.compedu.2008.08.001
Delwiche, A. (2006). Massively multiplayer online games (MMOs) in the new media classroom.
Educational Technology & Society, 9 (3), 160-172.
Dickey, M. D. (2003). Teaching in 3D: Pedagogical affordances and constraints of 3D virtual
worlds for synchronous distance learning. Distance Education, 24(1), 105 – 121.
Dickey, M. D. (2004). An architectural perspective for the design of educational virtual
environments. Journal of Visual Literacy, 24(1), 49 – 66.
Drees, D. (2005, November 24_25). E-mentoring at the University of Westminster: Supporting
first year students in a metropolitan setting. Paper presented at International
Completense: Mentoria Universidad-Empresa, Madrid, Spain.
Efstathiou, G. & Kalantzi-Azizi, A. (2005). Students’ psychological webcounselling: A European
perspective. Paper presented at the Fedora Psyche Conference, Groningen, Netherlands.
Escoffery, C., Miner, K. R., Adame, D. D., Butler, S., McCormick, L., & Mendell, E. (2005).
Internet use for health information among college students. Journal of American College
Health, 53 (4), 183-188.
Eysenbach G, Powell J, Englesakis M, Rizo C, Stern A. (2004). Health related virtual
communities and electronic support groups: systematic review of the effects of online
peer to peer interactions. BMJ, 328, 1166-1170.
Freeman, E., Barker, C., Pistrang, N., Keane, B., & McAteer, C. (2005). Online peer support for
students. Association for University and College Counselling Journal, Autumn. 23_25.
Gaidos,
S.
(2008).
Scientists
Get
a
2nd
Life
(documento
online:
http://www.sciencenews.org/view/feature/id/31953/title/Scientists_Get_a_2nd_Life)
526
Gortari, A. O. (2007). Second Life Survey: User Profile for Psychological Engagement
&Gambling(documentoonline:http://www.cyberpsyke.org/cyberpsyke/media/SLSU
RVEYVERSION%205.4.1.pdf).
Kelton, A. J. (2007). Second Life: Reaching into the virtual world for real-world learning. ECAR
Research
Bulletin,
2007(17);
http://www.educause.edu/ir/library/pdf/ecar_so/erb/ERB0717.pdf .
Kerley, C (2008) em http://www.drkerley.com/cybertherapy.html.
Kirriemuir,
J.
(2007).
The
Second
Life
of
UK
Academics
(documento
online:
http://www.ariadne.ac.uk/issue53/kirriemuir)
Lagorio, C. (2007). The Ultimate Distance Learning, New York Times de 07/01/2007 em:
http://www.nytimes.com/2007/01/07/education/edlife/07innovation.html?scp=2&sq=sec
ond%20life&st=cse.
Lamb, G. M. (2006, October 5). Real learning in a virtual world. The Christian Science Monitor;
http://www.csmonitor.com/2006/1005/p13s02-legn.html
Mayrath, M., Sanchez, J., Traphagan, T., Heikes, J. & Trivedi, A. (2007). Using Second Life in an
English Course: Designing Class Activities to Address Learning Objectives. In Proceedings of
World Conference on Educational Multimedia, Hypermedia and Telecommunications 2007.
Chesapeake, VA: AACE.
Pereira, A.S. (1997). Helping Students to cope: Peer Counselling in Higher Education. PhD
Disertation, Hull, University of Hull, U.K.
Pereira, A. S. (1998). Apoio ao estudante universitário: Peer counselling (Experiência piloto),
Psychologica, 20, 113-124.
527
Pereira, A. S. (2005). Para obter sucesso na vida académica: apoio dos estudantes pares.
Universidade de Aveiro. Aveiro.
Pereira, A.S. & Williams, D.I. (2001). Stress and coping in helpers on a student “nightline”
service. In Counselling Psychology Quartely, vol. 14, n.º 1, pp. 43-47.
Pereira, A.S.; Masson, A.; Ataíde, R. & Melo, A. (2004). Stresse, ansiedade e distúrbios
emocionais em estudantes universitários. In Ribeiro, J. & Leal, I. (ed.) (2004). Actas do 5
Congresso de Psicologia da Saúde, Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, ISPA edições,
pp. 119-125.
RESAPES (2002). A situação dos serviços de aconselhamento psicológico no ensino superior em
Portugal. Edição da RESAPES (Vol. 1, 2 e 3).
Richards, D., & Tangney, B. (2008). An informal online learning community for student mental
health at university: a preliminary investigation. British Journal of Guidance & Counselling,
36 (1), 81-97.
The Economist. (2006, September 28). Virtual online worlds: Living a Second Life;
http://www.benchmark.com/news/sv/2006/09_28_2006.php .
Outras fontes:
Site oficial do SL: http://secondlife.com/whatis/economy_stats.php
Artigo Wikipedia online sobre o SL: http://en.wikipedia.org/wiki/Second_life
528
Candidatura 27
Autores: Fabio Scorsolini-Comin & Manoel dos Santos
Título: A Psicologia Positiva no contexto brasileiro: história, presente e perspectivas futuras
529
A Psicologia Positiva no contexto brasileiro: história, presente e perspectivas futuras
Fabio Scorsolini-Comin30 ([email protected])
Manoel Antônio dos Santos31 ([email protected])
Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto,
Universidade de São Paulo - Brasil
Agência de fomento: Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP)
Resumo
Dada a recorrência de estudos na perspectiva da Psicologia Positiva a partir da década de 90, o
objetivo deste estudo é apresentar uma revisão integrativa da literatura produzida no
contexto brasileiro, por meio da análise de artigos indexados nas bases LILACS e SciELO,
publicados entre 1970 e 2008. Foram localizados 246 publicações. Entre as principais
contribuições da Psicologia Positiva no Brasil destacam-se: a construção de instrumentos de
avaliação e modelos de intervenção, com predominância de estudos de revisão teórica e de
relação com outros conceitos, revelando que esse movimento ainda não recebeu a devida
atenção do meio científico brasileiro. Por ser recente, tem mobilizado o desenvolvimento de
estudos nacionais predominantemente de fundamentação teórica, uma vez que a maioria dos
trabalhos nesta perspectiva foram desenvolvidos no cenário internacional. Examinando as
30
Psicólogo e mestrando em Psicologia e Educação pela Universidade de São Paulo, Brasil (FFCLRPUSP). Especialista em Gestão Educacional e graduando em Pedagogia pela Universidade de São Paulo.
Pesquisador na área de conjugalidade e bem-estar subjetivo e bolsista da Fundação de Amparo à Pesquisa
do Estado de São Paulo (FAPESP).
31
Psicólogo, mestre e doutor em Psicologia pela Universidade de São Paulo, Brasil (FFCLRP-USP).
Professor do Departamento de Psicologia e Educação da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de
Ribeirão Preto, da Universidade de São Paulo, Brasil (FFCLRP-USP). Bosista de produtividade científica
do CNPq.
530
perspectivas futuras para a área, cada vez mais as pesquisas devem se voltar para os aspectos
positivos da personalidade e dos fatores que efetivamente promovem o desenvolvimento, em
diferentes contextos de investigação. Pelos trabalhos selecionados, conclui-se que a
comunidade acadêmica brasileira está despertando para acompanhar os relevantes avanços
da área, o que pode favorecer uma rápida e complexa produção científica no mundo, que
rompe com os ideais epistemológicos vigentes até o momento. (FAPESP)
1. Introdução
A Psicologia, durante muito tempo, deu ênfase às questões relacionadas à doença, não
se atendo às discussões sobre a saúde e o bem-estar (Diener, 1984). É nesta lacuna de
investigações que se situa a Psicologia Positiva. Graziano (2005), ao discorrer sobre as origens
da Psicologia e, especificamente, da Psicologia Positiva, afirma que a Psicologia enquanto
ciência deve contemplar toda a complexidade e diversidade da mente humana e não apenas
alguns de seus atributos, positivos ou negativos. Para esta autora, a Psicologia ainda está
voltada para a doença, para os aspectos tidos como negativos ou desfavoráveis, uma vez que
há intensa dificuldade de romper com este paradigma, que remonta à Segunda Guerra
Mundial. Após este período histórico, os estudos em Psicologia se direcionaram para a
recuperação e remediação de déficits e patologias. Na seqüência, surgiu uma concepção do ser
humano baseada e influenciada pela doença mental e pelas disfuncionalidades dos sistemas e
organizações, destacando as fragilidades e limitações das pessoas (Marujo, Neto, Caetano &
Rivero, 2007).
Naquela época, segundo Seligman (2004), a Psicologia era fortemente identificada
como um tratamento de doenças mentais, a fim de curar desordens e não vinculada à
promoção de saúde e qualidade de vida das pessoas. O foco na doença ajudou a construir uma
Psicologia que negligenciou uma importante fatia do estudo dos seres humanos, ou seja, de
531
suas potencialidades e aspectos positivos de desenvolvimento. A partir disso, Marujo et al.
(2007) destacam que surgiu um movimento interessado em discutir aspectos como felicidade,
bem-estar, otimismo e longevidade, temas que simplesmente eram descartados pelos
pesquisadores anteriormente devido ao foco na doença. Assim como apontado no trabalho de
Marujo et al. (2007), a Psicologia Positiva surge na década de 1990 e se constitui como uma
“área de estudo científica própria, vibrante e multifacetada que vai além de uma abordagem
centrada nos problemas e nas patologias, para se endereçar teórica e empiricamente à
construção das melhores qualidades de vida, nos âmbitos subjetivo, individual e grupal” (p.
117).
Segundo Sheldon e King (2001), a Psicologia Positiva é o estudo científico das forças e
virtudes próprias do indivíduo. Para Seligman (2004), trata-se do estudo de sentimentos,
emoções, instituições e comportamentos positivos que têm como objetivo final a felicidade
humana. Do ponto de vista de contextualização histórica, a Psicologia Positiva foi desenvolvida
por Seligman (2004), que propôs, basicamente, a modificação do foco da Psicologia de uma
reparação das “coisas ruins da vida” para a construção de qualidades positivas (Caprara &
Steca, 2006).
De acordo com Seligman (2004), a Psicologia Positiva se sustenta sobre três pilares
principais, a saber: o estudo da emoção positiva; o estudo dos traços ou qualidades positivas,
principalmente forças e virtudes, incluindo habilidades como inteligência e capacidade atlética;
e, por fim, o estudo das chamadas instituições positivas, como a democracia, a família e a
liberdade que dão suporte às virtudes que, por sua vez, apóiam as emoções positivas
(Graziano, 2005, p.34). A Psicologia Positiva pretende debruçar-se sobre as experiências
positivas (como emoções positivas, felicidade, esperança, alegria), características positivas
individuais (como caráter, forças e virtudes), e instituições positivas (como organizações
baseadas no sucesso e potencial humano, sejam locais de trabalho, escolas, famílias, hospitais,
532
comunidades, sociedades ou ambientes físicos a todos os títulos saudáveis) (Marujo et al.,
2007; Larrauri, 2006; Park & Peterson, 2007; Peterson & Seligman, 2004; Seligman, 2002;
Seligman & Csikszentmihalyi, 2000).
No cenário global contemporâneo, temos observado uma série de mudanças e cada
vez mais todos são expostos à complexidade crescente. Sendo assim, alguns teóricos
revisitados por Graziano (2005), como Wright (2000) e Marsella (1998), destacam que quanto
mais jogos de soma positiva houver em uma cultura, maiores serão as suas chances de
sobrevivência e desenvolvimento. Esses e outros apontamentos justificam não apenas a
necessidade de uma Psicologia Positiva, mas principalmente do desenvolvimento de pesquisas
na área. De acordo com Graziano (2005), o desenvolvimento de pesquisas na área da
Psicologia Positiva talvez se torne uma questão de sobrevivência, uma vez que é preciso que
temas como virtude, caráter e felicidade humana sejam discutidos de forma secular,
produzindo um conhecimento capaz de transpor os portais das igrejas e a superficialidade dos
manuais de auto-ajuda, de forma que todos possam crer na sua existência.
Feita essa breve apresentação e contextualização do quadro teórico conceitual,
compreende-se que a Psicologia Positiva ainda é um campo científico recente e que deve ser
mais explorado tanto por pesquisas empíricas que resgatem seus pressupostos, quanto por
trabalhos que explorem o modo como este referencial vem sendo utilizado na ciência e de que
modo ele tem contribuído para o desenvolvimento da Psicologia. Os estudos de revisão
sistemática da literatura são escassos, resgatando os principais trabalhos produzidos sobre o
tema na atualidade.
2. Objetivo
533
Apresentar uma revisão na literatura científica acerca da Psicologia Positiva, buscando
evidenciar o perfil dos trabalhos publicados em fontes de pesquisa de impacto, de modo a
possibilitar um maior direcionamento das pesquisas sobre este referencial teórico e discutir as
tendências dessas publicações, bem como as perspectivas de produção na área, notadamente
no contexto científico brasileiro.
3. Método
De acordo com Beyea e Nicoll (1998), uma revisão integrativa sumariza pesquisas
passadas e tira conclusões globais de um corpo de literatura de um tópico em particular.
Segundo Fernandes (2000), a revisão integrativa permite a construção de uma análise ampla
da literatura, contribuindo para discussões sobre métodos e resultados de pesquisa, assim
como reflexões sobre a realização de futuras pesquisas. É necessário, portanto, seguir padrões
de rigor e clareza na revisão e crítica, de forma que o leitor possa identificar as características
reais dos estudos revisados. De acordo com os procedimentos de Ganong (1987) e ScorsoliniComin e Amorim (2008), embora os métodos para a condução de revisões integrativas variem,
existem padrões a serem seguidos. Na operacionalização dessa revisão, utilizamos as seguintes
etapas: seleção da questão temática, estabelecimento dos critérios para a seleção da amostra,
análise e interpretação dos resultados e apresentação da revisão.
3.1. Procedimento
As buscas nas bases foram realizadas em um único dia em uma rede de acesso público
de uma universidade pública do Estado de São Paulo. Em todas as bases de dados foi utilizado
o termo de busca Psicologia Positiva (Positive Psychology). Após o levantamento das
publicações, os resumos foram lidos e analisados segundo os critérios de inclusão/exclusão
534
estabelecidos. Os trabalhos selecionados foram recuperados na íntegra e, posteriormente,
analisados.
3.2. Bases consultadas
Visando assegurar uma ampla abrangência desta revisão, foram consultadas as
seguintes bases: LILACS e SciELO. A base PEPsic reúne uma coleção de revistas científicas em
Psicologia e áreas afins. É fruto da parceria entre a Biblioteca Virtual em Saúde – Psicologia
(BVS-Psi) e a Associação Brasileira de Editores Científicos de Psicologia – ABECiP. Esta base não
foi utilizada neste estudo, uma vez que em revisões anteriores (Scorsolini-Comin & Amorim,
2008), a maioria dos trabalhos resgatados nesta fonte foram também encontrados nas bases
LILACS e SciELO, que possuem maior abrangência. A LILACS é uma base de dados cooperativa
da Rede BVS que compreende a literatura relativa às ciências da saúde, publicada nos países
da América Latina e Caribe, a partir de 1982. A SciELO (Scientific Electronic Library On-line
Brasil) é uma biblioteca eletrônica que abrange uma coleção selecionada de periódicos
científicos brasileiros que tem por objetivo a preparação, armazenamento, disseminação e
avaliação da produção científica em formato eletrônico.
3.3. Critérios de inclusão e exclusão dos trabalhos
Para esta revisão, foram excluídos trabalhos como teses, dissertações, resenhas,
entrevistas, livros e capítulos de livros. Foram selecionados apenas resumos de artigos
indexados. Essa escolha se deve ao fato de que em uma das bases (LILACS) há alto registro de
trabalhos deste tipo (não apenas artigos indexados) e que, muitas vezes, podem não passar
por um processo de avaliação aos pares, o que garante a qualidade do trabalho e de
apreciação científica. A fim de buscar apenas trabalhos que passaram por um processo
rigoroso de avaliação, foram selecionados apenas artigos indexados (Scorsolini-Comin &
Amorim, 2008). Foram excluídos, ainda, trabalhos distantes do tema, como trabalhos
535
relacionados à área médica e à Psicologia Experimental (descrição de experimentos não
ligados à Psicologia Positiva).
O levantamento compreendeu o período de 1970 a 2008. Tal abrangência objetivou
traçar um perfil das publicações, ao longo dos últimos 38 anos, na tentativa de resgatar grande
volume de trabalhos produzidos a respeito do tema ou utilizando-se dessa noção, a despeito
da ressalva de que a Psicologia Positiva se desenvolveu, fundamentalmente, a partir da década
de 90 (Marujo et al., 2007). Como critérios de inclusão, destacamos: artigos publicados apenas
em periódicos indexados; trabalhos publicados nos idiomas português, inglês, espanhol e
francês; e, ainda, trabalhos empíricos, teóricos e de revisão acerca do tema. Os resumos
condizentes com os critérios adotados foram selecionados, partindo-se daí para a busca dos
trabalhos completos, que foram posteriormente analisados, segundo categorias temáticas.
4. Resultados
Nas bases selecionadas, foram encontrados 246 trabalhos pelos termos de busca.
Entre os trabalhos excluídos, a grande maioria se refere à área médica, como estudos de caso
de patologias específicas como câncer, diabetes e outros, além de investigações sobre
prevalência e tratamentos de doenças (73 trabalhos); outra grande produção excluída está
relacionada à Psicologia Experimental, dentro da perspectiva da Psicologia Comportamental
(52 trabalhos). Esses estudos reportam resultados de experimentos realizados com ratos e
outros modelos animais acerca de determinados aspectos do comportamento, sem relação
direta ou indireta com a perspectiva da Psicologia Positiva. Outro eixo de destaque encontrado
foi o de trabalhos que abordam o HIV, a vivência da soropositividade sem relação direta com a
perspectiva da Psicologia Positiva (33 trabalhos). Outros eixos elencados foram: Psicologia
Clínica (16 trabalhos); educação (11); antropologia/filosofia/religião (11); testes psicológicos
(nove); habilidades sociais (nove); inclusão (quatro); Psicologia Ambiental (três); idosos (três);
536
saúde no trabalho (dois); arte (um); homossexualidade (um); cooperativismo (um); educação
musical (um); violência (um); adolescência (um) e ecologia do desenvolvimento (um). A partir
dos critérios de inclusão/exclusão, chegou-se a um total de 10 artigos selecionados, que
constituíram o corpus da pesquisa. Esses artigos foram lidos na íntegra e analisados em
profundidade.
Deve-se destacar que a redução drástica do número de trabalhos - de 246 encontrados
para apenas 10 selecionados e resgatados – deve-se à grande dispersão dos trabalhos. Assim, a
maioria das publicações encontradas se referiam à Psicologia enquanto área mais ampla ou a
aspectos positivos de determinada área, como a questão do reforçamento na terapia
comportamental ou na Psicologia Experimental. Assim, apenas os trabalhos que efetivamente
abordavam a Psicologia Positiva enquanto área de estudos foram selecionados para discussão.
Atesta-se, ainda, que este campo de investigação, embora atual e discutido pela Psicologia de
modo crescente, notadamente a partir de 1998, tem sido contemplado por poucos trabalhos
de revisão ou empíricos que adotem tal referencial. Em alguns trabalhos, os autores apenas
mencionam a assunção da Psicologia Positiva sem, no entanto, utilizá-la efetivamente. Como a
maioria dos trabalhos localizados foi produzida no contexto brasileiro, deve-se considerar que
a tímida produção nacional contrasta com a produção européia e norte-americana, uma vez
que, em levantamentos anteriores, a partir de outras bases de dados, apontou-se grande
volume de trabalhos nessas regiões (Marujo et al., 2007; Larrauri, 2006; Park & Peterson,
2007; Caprara & Steca, 2006; Peterson & Seligman, 2004; Seligman, 2002; Seligman &
Csikszentmihalyi, 2000).
Em relação ao ano de publicação dos trabalhos selecionados, observa-se que 57% se
concentram nos anos de 2006 e 2007 (quatro trabalhos), o que revela se tratar de uma
produção recente e em crescimento; 28% dos artigos selecionados são do ano de 2003 (dois
trabalhos) e apenas 14% de 2002. Ou seja, todos os trabalhos selecionados são da década em
curso, o que mostra que, embora as discussões relativas a esta perspectiva sejam anteriores,
537
como observado na introdução, o pico de produções científicas se deu na presente década,
com acentuado crescimento nos dois últimos anos. Em relação ao idioma, a maioria dos
trabalhos selecionados nessas bases encontra-se em português (86%), seguidos por dois
trabalhos (14%) em língua espanhola. Nenhum trabalho em inglês foi selecionado, idioma no
qual predominam as produções médicas e comportamentais indiretamente relacionadas à
perspectiva investigada.
No que se refere ao perfil dos trabalhos selecionados e resgatados, todos fazem uma
breve contextualização da área da Psicologia Positiva. Este movimento é compreendido como
uma aproximação das pesquisas à comunicação científica, uma vez que este campo de
investigação é relativamente recente. Encontraram-se importantes artigos de revisão histórica,
destacando a origem e o surgimento da Psicologia Positiva (Passareli & Silva, 2007; Ferraz,
Tavares & Zilberman, 2007; Paludo & Koller, 2007), bem como as suas implicações para a
ciência psicológica (Serbena & Raffaelli, 2003; Yunes, 2003; Paludo & Koller, 2007). Outros
trabalhos destacaram os conceitos existentes dentro da Psicologia Positiva, como o bem-estar
subjetivo (Guedea, Albuquerque, Tróccoli, Noriega, Seabra & Guedea, 2006; Passareli & Silva,
2007; Paludo & Koller, 2007), e flow (Paludo & Koller, 2007), bem como a sua correlação com
as noções de resiliência (Yunes, 2003), self (Liberalesso, 2002), estratégias de enfrentamento,
apoio social e variáveis sociodemográficas (Guedea et al., 2006).
Em relação às populações estudadas nos trabalhos empíricos, destacam-se os idosos
(Liberalesso, 2002; Guedea et al., 2006). Outro eixo de destaque são os trabalhos que abordam
os instrumentos de mensuração existentes nesta perspectiva, geralmente em relação ao bemestar subjetivo e à satisfação (Paludo & Koller, 2007; Ferraz, Tavares & Zilberman, 2007). Por
fim, destacam-se os trabalhos que abordam os campos de aplicação da Psicologia Positiva,
bem como as suas perspectivas em termos de produção científica e intervenção (Paludo &
Koller, 2007; Contreras & Esguerra, 2006).
538
5. Análise e discussão dos trabalhos
5.1. A Psicologia que estuda a felicidade: uma revisão histórica
O estudo de Passareli e Silva (2007) apresenta o surgimento da Psicologia Positiva
como um importante novo campo de estudos da Psicologia contemporânea, que emerge em
um momento em que novos estudos têm focado a compreensão das forças e virtudes
humanas. Segundo os autores, especial atenção é dada a um de seus principais componentes –
o bem-estar subjetivo –, também conhecido como felicidade. Buscando elucidar os aspectos
envolvidos no estudo do bem-estar subjetivo, o artigo aborda alguns de seus principais
correlatos, afirmando que o melhor entendimento dos fatores envolvidos com o surgimento
tanto de emoções positivas quanto de negativas permite uma maior compreensão da condição
humana diante das adversidades. Como se trata de um artigo de revisão histórica, os autores
destacam a publicação, em 2002, do livro Authentic happiness, traduzido para o português no
ano de 2004 (Seligman, 2004), em que este autor relata suas reflexões sobre a Psicologia
Positiva e sua relação com a felicidade. O artigo também apresenta uma perspectiva sobre os
estudos realizados acerca do bem-estar subjetivo no âmbito internacional e, portanto, dentro
da Psicologia Positiva. Segundo Passareli e Silva (2007), diferentes estudos que envolvem o
bem-estar subjetivo já foram realizados, principalmente fora do Brasil. A maioria dos estudos
relacionados por Passareli e Silva (2007) investigavam o bem-estar subjetivo em estudos
transculturais, tentando apontar as diferenças culturais como uma variável relacionada à
percepção de felicidade. A maioria dos participantes dessas pesquisas era constituída de
estudantes. Apenas um trabalho, que utilizou escalas e questionários para mensurar o bemestar subjetivo, foi referido neste artigo resgatado.
Passareli e Silva (2007) também apontaram que, no Brasil, poucos estudos sobre o
bem-estar subjetivo foram realizados, destacando apenas dois, um com adolescentes e outro
com policiais civis para a validação de um questionário de avaliação do bem-estar subjetivo em
termos de afetos positivos, negativos e satisfação com a vida (Albuquerque & Tróccoli, 2004).
539
Passareli e Silva (2007) concluem afirmando a necessidade do “desenvolvimento de outros
estudos que abordem a importância do bem-estar subjetivo tanto para conhecer mais
profundamente o tema como para adequá-lo à realidade brasileira” (p.516).
Em um outro artigo selecionado, Serbena e Raffaelli (2003) apresentam uma reflexão
sobre a Psicologia enquanto ciência, afirmando que a mesma é definida habitualmente como
ciência do comportamento, mas necessita uma revisão de seus pressupostos. Este artigo foi
selecionado e resgatado justamente por fazer um levantamento no plano epistemológico e
teórico, ao sustentar que a dificuldade em se definir o objeto de estudo da Psicologia gerou
um projeto contraditório dentro da área, uma vez que esta ficou dividida entre uma ciência
natural, segundo os moldes tradicionais e um saber sobre a subjetividade, mais afim com a
filosofia, sendo dessa forma radicalmente diferentes. Entretanto, “esta contradição está
presente no próprio projeto de constituição da Psicologia como ciência separada da filosofia e
de outras ciências, como a sociologia e a medicina” (Serbena & Raffaelli, 2003, p.33).
Os autores prosseguem destacando esta contradição entre a necessidade de uma
epistemologia positiva, que dissolve o sujeito na universalidade e na impessoalidade, e um
estudo da subjetividade que remete ao único e ao particular. Este embate provocaria
dificuldades até mesmo na formação de novos psicólogos, uma vez que nasceria daí a clássica
cisão entre a teoria e a prática. A Psicologia, na visão de Serbena e Raffaelli (2003), não pode
se sujeitar a uma função ideológica, o que é exemplificado quando a complexidade do
comportamento humano é negligenciada ao ser considerado apenas por meio de um modelo
teórico linear e simples, oriundo de uma visão mecanicista da realidade. Este modelo
aproxima-se de um novo paradigma científico que emerge em certas reflexões
contemporâneas (Serbena & Raffaelli, 2003, p.36), paradigma dentro do qual nasce a
Psicologia Positiva, ou seja, diferentemente do positivismo criticado no trabalho, esta nova
corrente do pensamento psicológico seria uma resposta ao paradigma colocado, rompendo a
dicotomia entre teoria e prática, saúde e doença, visão particular e visão universal.
540
Um outro trabalho selecionado apresenta também uma revisão na literatura científica,
mas a respeito do conceito de felicidade. Ferraz, Tavares e Zilberman (2007) referem que a
felicidade é uma emoção básica caracterizada por um estado emocional positivo, com
sentimentos de bem-estar e de prazer, associados à percepção de sucesso e à compreensão
coerente e lúcida do mundo. Destacam que, nos últimos anos, diversos pesquisadores têm se
preocupado em desvendar as relações entre felicidade e saúde mental. A partir disso, os
autores revisaram criticamente a literatura científica que aborda o tema da felicidade, assim
como as suas contribuições para a saúde mental e a psiquiatria, especificamente. Segundo
este trabalho, os estudos na perspectiva da Psicologia Positiva têm sido publicados
notadamente por pesquisadores norte-americanos e europeus.
Em outro artigo selecionado, Paludo e Koller (2007) descrevem que a Psicologia
Positiva está em pleno processo de expansão dentro da ciência psicológica, a qual possibilita
uma reavaliação das potencialidades e virtudes humanas por meio do estudo das condições e
processos que contribuem para a prosperidade. De acordo com essa nova visão, o
conhecimento das forças e virtudes poderia propiciar o “florescimento” (flourishing) das
pessoas, comunidades e instituições.
5.2. De mãos dadas com outros conceitos
Em outro trabalho selecionado, publicado em 2003, Yunes apresenta a Psicologia
Positiva como movimento de investigação de aspectos potencialmente saudáveis dos seres
humanos, em oposição à Psicologia tradicional e sua ênfase nos aspectos psicopatológicos.
Dentre os fenômenos indicativos de vida saudável, a autora destaca a resiliência, por referir-se
a processos que explicam a superação de adversidades, cujo discurso hegemônico foca o
indivíduo. Yunes (2003) afirma que as pesquisas quantitativas colaboram para naturalizar a
resiliência como capacidade humana, e os estudos em famílias trazem contribuições de
541
pesquisas qualitativas realizadas na visão sistêmica, ecológica e de desenvolvimento.
Consideradas as dificuldades metodológicas e as controvérsias ideológicas do conceito, Yunes
(2003) sugere uma cautelosa investigação de sentido antes da aplicação do termo.
O conceito de resiliência, segundo o levantamento de Yunes (2003), ainda é bastante
discutido na Psicologia, não havendo uma uniformidade e unidirecionalidade em seu uso. O
foco das pesquisas pode recair tanto sobre o indivíduo quanto sobre a família. Em relação ao
indivíduo, e é nesse ponto que a Psicologia Positiva, a partir do conceito de bem-estar
subjetivo (percepção individual) se vincula de modo mais íntimo à resiliência, que passa a ser
definida como uma capacidade universal que permite que uma pessoa, grupo ou comunidade
previna, minimize ou supere os efeitos nocivos das adversidades (p.78). Alguns estudos,
contrapondo-se a esta visão individualista de resiliência, concebem que o conceito não é uma
característica ou traço individual, mas que processos psicológicos devem ser cuidadosamente
examinados.
Em outro estudo selecionado, de Guedea, Albuquerque, Tróccoli, Noriega, Seabra e
Guedea (2006), foram analisadas as relações das estratégias de enfrentamento, apoio social e
variáveis sociodemográficas com o bem-estar subjetivo de uma amostra de idosos.
Participaram 123 idosos, revelando que a satisfação com a vida é maior em mulheres, em
pessoas que recebem pensão, pessoas que estão satisfeitas com o apoio recebido, pessoas
que dão apoio aos outros e pessoas que enfrentam os problemas de forma direta e mediante
re-avaliação positiva. Neste artigo, é também abordada a noção de bem-estar subjetivo em
comparação com outros conceitos como os de estratégias de enfrentamento e apoio social.
Segundo os autores, essas variáveis estão diretamente relacionadas ao bem-estar subjetivo,
assim como sustentado no estudo de Yunes (2003). Guedea et al. (2006), a partir de uma
ampla revisão na literatura, destacam que o bem-estar subjetivo está associado ao processo
de envelhecimento e constitui um indicador de saúde mental, também sinônimo de felicidade,
ajuste e integração social.
542
Em outro trabalho selecionado, Liberalesso (2002) parte da perspectiva da Psicologia
Positiva para analisar o bem-estar subjetivo durante a vida adulta e a velhice. A autora
apresenta uma revisão de diversas concepções e indicadores, como os sociodemográficos,
socioculturais e de bem-estar subjetivo, apresentando alternativas de avaliação do bem-estar
nas literaturas nacional e internacional.
5.3. A procura que não cessa: perspectivas da Psicologia Positiva
Após resgate histórico presente também em outros trabalhos, Contreras e Esguerra
(2006) destacam que, nos últimos anos, as pesquisas em Psicologia evidenciam uma tendência
a abordar as variáveis positivas e preventivas ao invés dos aspectos negativos e patológicos
tradicionalmente estudados. Segundo levantamento feito por esses autores, essa tendência se
apresenta como uma perspectiva para os próximos anos, ou seja, cada vez mais as pesquisas
devem se voltar para os estudos dos aspectos positivos da personalidade e dos fatores que
efetivamente promovem o desenvolvimento, compreendendo e fortalecendo os fatores que
permitem os seres humanos prosperarem, de modo a melhor a qualidade de vida das
comunidades e sociedades nas quais estão inseridos.
De acordo com Contreras e Esguerras (2006), as emoções positivas possuem um
objetivo fundamental na evolução da espécie, uma vez que ampliam os recursos intelectuais,
físicos e sociais dos indivíduos, proporcionando longevidade e capacidade de adaptação. Ao
experimentarem sentimentos positivos, as pessoas modificam suas formas de pensamento e
ação, incrementando seus padrões para atuarem em certas situações mediante a otimização
dos próprios recursos pessoais em diferentes níveis.
No nível clínico, um dos objetivos da Psicologia Positiva tem sido o desenvolvimento de
estratégias terapêuticas que favoreçam a experiência emocional positiva, o que se relaciona à
prevenção e o tratamento de problemas derivados ou exacerbados pelas emoções negativas,
tais como a ansiedade, a depressão, a agressão e outras. Essas últimas emoções, na visão dos
543
autores, restringem o repertório de pensamento e de ação dos indivíduos. Na área da
educação, têm sido desenvolvidos trabalhos sobre motivação, desenvolvimento de jovens,
orientação profissional e familiar, entre outros temas, que enfatizam a geração e otimização
das forças existentes nas pessoas, suas emoções positivas. A Psicologia Positiva na educação
centra sua atenção nas forças e atributos especificamente positivos das pessoas e dos grupos
nos ambientes pedagógicos. Por fim, os autores revelam a necessidade premente de que mais
estudos empíricos sejam realizados como forma de desenvolver as pesquisas interventivas em
Psicologia Positiva, a fim de se criarem instrumentos válidos para a mensuração de
características relacionadas ao bem-estar e à felicidade, além de propostas de atuação prática
que enlevem as emoções positivas como promotoras de desenvolvimento, saúde e qualidade
de vida.
O movimento da Psicologia Positiva tem produzido importantes aplicações e avanços
científicos. Constata-se a existência de uma tendência positiva devido ao crescente número de
publicações no cenário científico internacional, o que evidencia o interesse dos pesquisadores
nessas temáticas. Ainda entre as contribuições deste campo, Paludo e Koller (2007) destacam
a terapia positiva, que é uma modalidade de tratamento que visa fortalecer os aspectos
saudáveis e positivos dos indivíduos, (re)construir as virtudes e forças pessoais e ajudar os
clientes a encontrarem recursos inexplorados para mudança positiva. Ainda de acordo com
este estudo, outra importante contribuição da Psicologia Positiva envolve a possibilidade de
abordar as questões envolvidas no desenvolvimento do indivíduo, reconhecendo que as
pessoas e suas experiências estão inseridas em contextos sociais e culturais. Essa concepção
não corresponde a um movimento inédito na Psicologia, mas produz uma mudança na teoria
psicológica ao conceitualizá-lo como um organismo integrado. Por isso, dedica-se, também, ao
estudo do funcionamento de grupos e instituições, por entender que esses ambientes são
significativos na vida das pessoas (p.15).
544
No Brasil, Paludo e Koller (2007) revelam que o movimento da Psicologia Positiva ainda
não recebeu a devida atenção, o que é corroborado pelos dados obtidos nesta revisão
sistemática da literatura. Examinando as perspectivas futuras para a área, as autoras concluem
o trabalho afirmando que a comunidade acadêmica brasileira está despertando para
acompanhar os relevantes avanços da Psicologia Positiva. O movimento vem favorecendo,
segundo as autoras, uma rápida e complexa produção científica no mundo, rompendo com os
ideais epistemológicos vigentes até o momento.
6. Discussão
A Psicologia Positiva, enquanto área do saber psicológico, não promove uma novidade,
não cria uma nova realidade, mas é um exercício teórico e metodológico no sentido de mudar
a visão tradicional que se lança aos fenômenos investigados pela Psicologia, em uma proposta
perspectiva que evidencia os aspectos positivos e salutares do desenvolvimento, dentro de
uma proposta de compreensão que prioriza a prevenção (Diener, 1984; Seligman, 2002, 2005,
2006; Albuquerque & Tróccoli, 2004; Csikszentmihalyi, 2006) e o florescimento de aspectos
positivos que possam ser adaptativos (Graziano, 2005; Fiquer, 2006).
No Brasil, Paludo e Koller (2007) revelam que o movimento da Psicologia Positiva ainda
não recebeu a devida atenção, o que é corroborado pelos resultados sistematizados na
presente revisão integrativa da literatura. Apesar disso, pode-se perceber que esses trabalhos
estão aumentando, notadamente os de revisão, que se preocupam não apenas em apontar
tendências, mas em resgatar o histórico desse movimento, a fim de entender seus
pressupostos de base, bem como seus avanços, limites e possibilidades. Esse movimento
crescente pode contribuir para a edificação de mais trabalhos empíricos nesta vertente, o que
foi destacado como uma carência na presente revisão. Pensando ainda no contexto brasileiro e
na produção científica dedicada à Psicologia Positiva, corroboramos os apontamentos de
545
Paludo e Koller (2007), que referem que ainda são escassas as informações sobre essa
mudança expressiva que ocorre na Psicologia, embora seja possível constatar uma modificação
gradual dos estudos brasileiros que enfocam essa abordagem sobre o desenvolvimento
humano. Isto se deve ao caráter recente dos trabalhos produzidos na área, uma vez que este
campo nasce oficialmente no final da década de 1990 e início dos anos 2000. Enquanto
corrente surgida nos Estados Unidos, sua repercussão no cenário brasileiro ainda é tímida,
quando comparada aos países europeus (Marujo et al., 2007; Delle Fave, 2006; Delle Fave &
Massimini, 2006), mas tem encontrado no Brasil um campo fértil para a produção de saber
científico de impacto (Paschoal & Tamayo, 2008; Paludo & Koller, 2007; Passareli & Silva, 2007;
Fiquer, 2006; Graziano, 2005; Albuquerque & Tróccoli, 2004).
Também em relação à mensuração na Psicologia Positiva, nos aspectos de bem-estar
subjetivo e noções correlatas como flow, self, satisfação, locus de controle e outros, os estudos
apontam a necessidade de firmar a produção de instrumentos adaptados e validados para
nosso contexto (Albuquerque & Tróccoli, 2004; Paschoal & Tamayo, 2008; Scorsolini-Comin &
Santos, 2008). Também é desejável a elaboração de novos instrumentos a serem construídos a
partir de estudos nacionais, o que não impede que estudos nacionais investiguem também os
clássicos instrumentos internacionais, seus pressupostos, sua validação e sua aplicação (Ferraz,
Tavares & Zilberman, 2007) em diversas situações e populações, como é o caso de idosos, dos
transtornos mentais e de comportamento (Fiquer, 2006).
Quais as possibilidades de aplicação desses instrumentos? Quais as suas repercussões
para a prática psicológica? Em que medida o estudo da felicidade e dos aspectos positivos do
desenvolvimento pode favorecer o desenvolvimento de políticas públicas adequadas à
população, que não negligenciem as capacidades de cada indivíduo e não proponham intervir
com práticas remediadoras? Qual o real alcance da Psicologia Positiva? Questões como essas
ainda estão em aberto e merecem consideração e investigação adequadas. Assim, cada vez
546
mais há necessidade de desenvolvimento e “florescimento” de novos estudos que investiguem
a Psicologia Positiva em seu cerne, em seus limites e possibilidades, a fim de que este campo
não possa apenas sobreviver, mas que possa contribuir para um repensar contínuo acerca do
ser humano, promovendo mudanças e intervenções bem-sucedidas em seus contextos de
atuação, sejam eles clínicos, educacionais ou organizacionais (Paschoal & Tamayo, 2008;
Marujo et al., 2007; Fiquer, 2006; Scorsolini-Comin & Santos, 2008).
Referências
Albuquerque, A. S. (2004). Bem-estar subjetivo e sua relação com personalidade, coping,
suporte social, satisfação conjugal e satisfação no trabalho. Tese de Doutorado, Instituto
de Psicologia, Universidade de Brasília, Brasília.
Albuquerque, A. S., & Tróccoli, B. T. (2004). Desenvolvimento de uma escala de bem-estar
subjetivo. Psicologia: Teoria e Pesquisa, 20(2), 153-164.
Beyea, S.C. & Nicoll, L.H. (1998). Writing in integrative review. AORN Journal, 67(4), 877-880.
Caprara, G. V., & Steca, P. (2006). Affective and interpersonal self-regulatory efficacy beliefs as
determinants of subjective well-being. In: A. Delle Fave (Org.). Dimensions of well-being:
research and intervention. Milão: Franco Angeli.
Contreras, F., & Esguerra, G. (2006). Psicología positiva: una nueva perspectiva en psicologia.
Diversitas perspectivas em Psicologia 2(2), 311-319.
Csikszentmihalyi, M. (2006). Introduction. In M. Csikszentmihalyi, M., & I. S. Csikszentmihalyi
(Eds.), A life worth living: contributions to Positive Psychology (pp. 3-14). New York: Oxford
University Press.
Csikszentmihalyi, M., & Csikszentmihalyi, I. S. (Eds.) (2006). A life worth living: contributions to
positive psychology. New York: Oxford University Press.
547
Delle Fave, A., & Massimini, F. (2006). The relevance of subjective well-being to social policies:
optimal experiences and tailored intervention. In: F. A. Huppert, N. Baylis, & B. Keverne
(Eds.). The science of well-being (pp. 379-402). Oxford: Oxford University Press (2nd
Edition).
Delle Fave, A. (2006). The impact of subjective experience on the quality of life. In M.
Csikszentmihalyi, M., & I. S. Csikszentmihalyi (Eds.), A life worth living: contributions to
positive psychology (pp. 165-181). New York: Oxford University Press.
Diener, E. (1984). Subjective well-being. Psychological Bulletin, 95, 542-575.
Diener, E., Emmons, R. A., Larsen, R. J., & Griffin, S. (1985). The satisfaction with life scale.
Journal of Personality Assessment, 49, 71-75.
Fernandes, L. M. (2000). Úlcera de pressão em pacientes críticos hospitalizados: uma revisão
integrativa da literatura. Dissertação de Mestrado, Escola de Enfermagem de Ribeirão
Preto, Universidade de São Paulo, Ribeirão Preto.
Ferraz, R. B., Tavares, H., & Zilberman, M. L. (2007). Felicidade: uma revisão. Revista de
Psiquiatria Clínica, 34(5), 234-242.
Fiquer, J. T. (2006). Bem-estar subjetivo: influência de variáveis pessoais e situacionais em
auto-relato de afetos positivos e negativos. Dissertação de Mestrado, Instituto de
Psicologia, Universidade de São Paulo, São Paulo.
Graziano, L. D. (2005). A felicidade revisitada: um estudo sobre bem-estar subjetivo na visão da
Psicologia Positiva. Tese de Doutorado, Instituto de Psicologia, Universidade de São Paulo,
São Paulo.
Ganong, L. H. (1987). Integrative reviews of nursing research. Research in Nursing & Health, 10,
1-11.
Goldwurm, G. F., Baruff, M., & Colombo, F. (2006). Subjective well-being training to increase
happiness. In: A. Delle Fave (Org.). Dimensions of well-being: research and intervention.
Milão: FrancoAngeli.
548
Guedea, M. T. D., Albuquerque, .J. B., Tróccoli, B. T., Noriega, J.A.V., Seabra, M. A. B., &
Guedea, R. L. D. (2006). Relação do bem-estar subjetivo, estratégias de enfrentamento e
apoio social em idosos. Psicologia: Reflexão e Crítica 19(2), 301-308.
Larrauri, B. G. (2006). Programa para mejorar el sentido del humor: porque la vida con buen
humor merece la pena! Madrid: Ediciones Pirámide.
Liberalesso, A. (2002). Bienestar subjetivo en la vida adulta y en la vejez: hacia una Psicologia
Positiva en America Latina. Revista Latino-americana de Psicologia 34(1/2), 55-74.
Lopez, S. J., & Snyder, C.R. (2004). Positive Psychological assessment: a handbook of models
and measures. Washington, DC: American Psychological Association.
Marsella, A.J. (1998). Toward a global-community psychology: meeting the needs of a changing
world. American Psychologist, 53, 1282-1291.
Marujo, H. A., Neto, L. M., Caetano, A., & Rivero, C. (2007). Revolução positiva: Psicologia
positiva e práticas apreciativas em contextos organizacionais. Comportamento
Organizacional e Gestão 13(1), 115-136.
Paludo, S. S., & Koller, S. H. (2007). Psicologia Positiva: uma nova abordagem para antigas
questões. Paidéia, 17(36), 9-20.
Park, N., & Peterson, C. (2007). Methodological Issues in Positive Psychology and the
assessment of character strengths. In A. D. Ong & M. H. M. van Dulmen, (Eds.), Oxford
Handbook of methods in positive psychology (pp. 292-305). New York: Oxford University
Press.
Paschoal, T., & Tamayo, A. (2008). Construção e validação da escala de bem-estar no trabalho.
Avaliação Psicológica, 7(1), 11-22.
Passareli, P. M., & Silva, J. A. (2007). Psicologia positiva e o estudo do bem-estar subjetivo.
Estudos de Psicologia (Campinas), 24(4), 513-517.
549
Pereira, C. A. A. (1997). Um panorama histórico-conceitual acerca das subdimensões de
qualidade de vida e do bem-estar subjetivo. Arquivos Brasileiros de Psicologia, 49(4), 3248.
Peterson, C., & Seligman, M. E. P. (2003). Positive organizational studies: Thirteen lessons from
positive psychology. In K. S. Cameron, J. E. Dutton & R. E. Quin (Eds.), Positive
organizational scholarship: foundations of a new discipline (pp. 14-27). San Francisco:
Berrett-Koehler.
Peterson, C., & Seligman, M. E. P. (2004). Character strengths and virtues: a handbook and
classification. Oxford: Oxford University Press.
Scorsolini-Comin, F., & Amorim, K. S. (2008). Corporeidade: uma revisão crítica da literatura
científica. Psicologia em Revista, 14(1), 189-214.
Scorsolini-Comin, F., & Santos, M. A. (2008). A felicidade medida: uma revisão integrativa de
conceitos e instrumentos de mensuração na perspectiva da Psicologia Positiva. In: S. R.
Pasian, E. T. K. Okino, S. R. Loureiro, & F. L. Osório (Orgs.), Avaliação de personalidade:
técnicas e contextos diversos. Ribeirão Preto: Vetor.
Seligman, M. E. P. (2002). Authentic happiness: using the new positive psychology to realize
your potential for lasting fulfilment. London: Nicholas Brealey Publishing.
Seligman, M. E. P. (2006). Breaking the 65 percent barrier. In M. Csikszentmihalyi, M., & I. S.
Csikszentmihalyi (Eds.), A life worth living: contributions to Positive Psychology (pp. 230236). New York: Oxford University Press.
Seligman, M. E. P., & Csikszentmihalyi, M. (2000). Positive Psychology: An introduction.
American Psychologist, 5(1), 5-14.
Seligman, M. E. P., Park, A. C., & Steen, T. & Peterson, C. (2006). A balanced psychology and a
full life. In F. A. Huppert, N. Baylis, & B. Keverne. The science of well-being (pp. 285-304).
Oxford: Oxford University Press (2nd Edition).
550
Seligman, M. E. P, Steen, T. A., Park, N., & Peterson, C. (2005). Positive Psychology progress:
empirical validation of interventions. American Psychologist, 60(5), 410-421.
Serbena, C.A., & Raffaelli, R. (2003). Psicologia como disciplina científica e discurso sobre a
alma: problemas epistemológicos e ideológicos. Psicologia em Estudo 8(1), 31-37.
Sheldon, K. M. & King, L. (2001). Why positive psychology is necessary. American Psychologist,
56, 216-217.
Wright, R. (2000). Não zero: a lógica do destino humano. Rio de Janeiro: Campus.
Yunes, M. A. M. (2003). Psicologia positiva e resiliência: o foco no indivíduo e na família.
Psicologia em Estudo 8 (número especial), 75-84.
551
Candidatura 28
Autores: Fábio Scorsolini-Comin & Manoel dos Santos
Título: “Na saúde e na doença, felizes para sempre”: a satisfação conjugal na promoção do
bem-estar psicológico, na perspectiva da Psicologia Positiva
552
“Na saúde e na doença, felizes para sempre”: a satisfação conjugal na promoção do
bem-estar psicológico, na perspectiva da Psicologia Positiva
Fabio Scorsolini-Comin32 ([email protected])
Manoel Antônio dos Santos33 ([email protected])
Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto,
Universidade de São Paulo - Brasil
Agência de fomento: Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP)
Resumo
A satisfação conjugal é um fenômeno complexo de avaliação subjetiva da relação conjugal,
obtida após comparação entre aquilo que é percebido no casamento com os modelos e
expectativas construídos culturalmente. O objetivo deste estudo é apresentar uma revisão
integrativa da literatura científica acerca do tema, por meio de artigos indexados nas bases
LILACS e SciELO (1970-2008), destacando sua investigação pela Psicologia Positiva. Dos 12
trabalhos selecionados, a maioria trata da definição de conceitos relacionados à satisfação
conjugal, como ajustamento e qualidade, buscando maior coesão e consistência teórica, uma
vez que, no cenário internacional, identifica-se um grande número de estudos que apontam
32
Psicólogo e mestrando em Psicologia e Educação pela Universidade de São Paulo, Brasil (FFCLRPUSP). Especialista em Gestão Educacional e graduando em Pedagogia pela Universidade de São Paulo.
Pesquisador na área de conjugalidade e bem-estar subjetivo e bolsista da Fundação de Amparo à Pesquisa
do Estado de São Paulo (FAPESP).
33
Psicólogo, mestre e doutor em Psicologia pela Universidade de São Paulo, Brasil (FFCLRP-USP).
Professor do Departamento de Psicologia e Educação da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de
Ribeirão Preto, da Universidade de São Paulo – Brasil (FFCLRP-USP). Bolsista de produtividade
científica do CNPq.
553
para um alto índice de fatores associados à satisfação no casamento. Encontram-se
investigações nos contextos de casais de duplo trabalho, casamentos de longa duração,
transição para a parentalidade, construção de instrumentos de mensuração e correlação com
outras variáveis como quantidade de filhos, estado de saúde e histórico familiar. As pesquisas
resgatadas apontam que o relacionamento conjugal está positivamente associado à saúde, ao
bem-estar psicológico e à qualidade de vida, principalmente nos anos de maturidade e velhice,
o que se vincula diretamente à perspectiva da Psicologia Positiva, embora aponte-se a
necessidade de estudos sistemáticos de correlação em diferentes contextos, tais como o
brasileiro.
1. Introdução
Segundo Machado (2007), a necessidade de se estar com o outro é algo típico do ser
humano, que começa no seu nascimento, em suas primeiras relações com as suas figuras de
referência. Assim, somos constituídos pelos relacionamentos que estabelecemos, motivo pelo
qual é muito importante investigarmos como se dão esses relacionamentos. De acordo com as
reflexões de Lipovetsky (2007), a nova ordem cultural na contemporaneidade valoriza os laços
emocionais e sentimentais, as trocas íntimas entre as pessoas e a proximidade comunicacional
com o outro. Perlin (2006) afirma que, a despeito de, na modernidade, o casamento ter sido
locus da vida comum e ponto de partida para a formação da família, atualmente se encontra
em um estágio no qual as relações são marcadas por um aprofundamento do individualismo,
que estimula a instabilidade do relacionamento íntimo e leva a constantes reformulações dos
projetos conjugais; esses fenômenos contemporâneos evidenciam a necessidade de aceitação
das heterogeneidades, das descontinuidades e efemeridades das relações. Féres-Carneiro
(2003, 1998, 1997) considera o casamento contemporâneo representante de uma relação de
intensa significação na vida das pessoas, envolvendo alto grau de intimidade e um grande
554
investimento afetivo. Encontrar alguém para compartilhar a vida e ter filhos parece ser um
busca incansável, e o casamento ainda configura um rito de passagem muito significativo em
várias sociedades (Scorsolini-Comin & Santos, 2008a).
Segundo dados recentes do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE, 2007),
em 2006 o total de casamentos no Brasil foi de 889.828, número 6,5% maior do que o apurado
no ano anterior, confirmando a tendência de crescimento que vem sendo registrada no país
desde 2002. Segundo o documento de divulgação da pesquisa, o aumento pode estar
relacionado à legalização de uniões consensuais. Além disso, os pesquisadores atribuem a
expansão também à realização de casamentos coletivos, que têm o atrativo da redução de
custos. De acordo com os autores da pesquisa, a questão dos custos é responsável também
pela realização do maior número de casamentos no mês de dezembro, quando o pagamento
do 13º salário e outros benefícios aumentam a disponibilidade financeira. A pesquisa mostra
que, em 2006, do total de casamentos realizados, 85,2% ocorreram entre solteiros. No
entanto, houve declínio nesse tipo de casamento, que em 1996 representava 90,9% do total.
Por outro lado, é crescente a proporção de casamentos entre indivíduos divorciados com
cônjuges solteiros. O porcentual de homens divorciados que casaram com mulheres solteiras
passou de 4,2% do total de casamentos realizados no país em 1996 para 6,5% em 2006.
Também houve aumento do porcentual de casamentos entre cônjuges divorciados, de 0,9%
em 1996 para 2,2% em 2006 (IBGE, 2007).
Para Dessen e Braz (2005), o relacionamento marital tem sido apontado,
recentemente, como um fator preponderante para a qualidade de vida das famílias,
particularmente no que tange às relações que pais e mães mantêm com suas crianças. O
relacionamento conjugal está associado à saúde e qualidade de vida, principalmente nos anos
de maturidade e velhice, embora o fato de um casamento durar não necessariamente
signifique que o mesmo seja satisfatório para os cônjuges. De qualquer modo, segundo Costa
555
(2005), a conjugalidade é fundamental para o bem-estar psicológico e social dos indivíduos. De
acordo com Perlin (2006), casamento e satisfação se tornaram, ao longo da história do
ocidente, estreitamente interdependentes. O casamento, dentro de nossa estrutura política e
econômica, tem sido definido como uma resultante social que satisfaz necessidades básicas do
indivíduo. Dias (2000) afirma que o casamento contemporâneo tem algumas características
determinantes, entre as quais está a busca da felicidade, da satisfação e do amor. O desejo
intenso de estar com o outro motiva o casamento e determina a escolha do parceiro, pois os
indivíduos esperam encontrar nesses relacionamentos uma compatibilidade afetiva, sexual e
intelectual (Perlin, 2006, p.66).
Para Norgren, Souza, Kaslow, Hammerschmidt e Sharlin (2004), a satisfação conjugal é
um fenômeno complexo, no qual interferem diversas variáveis. O casamento transforma-se ao
longo do ciclo de vida familiar e, assim, o nível de satisfação também varia com o decorrer dos
anos de convívio conjugal, sendo necessário que se discutam as contemporâneas formas com
que vêm se desenhando os casamentos e as uniões estáveis. O ajustamento conjugal, as
formas de comunicação e as estratégias de resolução de conflitos empregadas pelo casal
influenciam o desenvolvimento de padrões de cuidado dos filhos e a qualidade das relações
entre os genitores e suas crianças. Por exemplo, casamentos saudáveis proporcionam mais
suporte aos cônjuges do que relações maritais insatisfatórias e o apoio emocional dos pais às
mães favorece o desenvolvimento saudável dos filhos (Dessen & Braz, 2005).
A literatura, ainda segundo as autoras mencionadas, aponta inúmeros prejuízos
diretos e indiretos, tanto para os cônjuges, como para seus filhos, provocados por uma relação
conjugal insatisfatória. As conseqüências negativas das relações maritais insatisfatórias e,
possivelmente, do divórcio ou da separação do casal, incluem o aumento do risco de os
cônjuges apresentarem psicopatologias, de estarem envolvidos em acidentes automobilísticos,
556
de exposição à incidência de doenças físicas, de cometerem suicídio, homicídio ou outros atos
de violência, de mortalidade em função de doenças em geral, entre outras.
Como destacado por Perlin (2006), a satisfação é um elemento fundamental em um
relacionamento interpessoal. Segundo revisão realizada por esta autora, existe uma verdadeira
diversidade de definições do que seja a satisfação no casamento. Evocando o trabalho de
outros autores, diversos termos são utilizados na literatura científica, como satisfação
conjugal, satisfação matrimonial, estabilidade matrimonial, qualidade matrimonial, ajuste
matrimonial, felicidade matrimonial, sucesso matrimonial, consenso matrimonial, integração
matrimonial (Diniz, 1993; Dela Coleta, 2006). Essa grande diversidade na terminologia gera
dificuldades para comparar resultados de estudos distintos e impõe um desafio para os
pesquisadores, que têm que investigar até que ponto esses termos são sinônimos ou
representam modelos distintos de compreensão da relação conjugal. Esse questionamento
inspira a realização de novas revisões na literatura, como a que será aqui apresentada,
focalizando o construto satisfação conjugal, como definido nas pesquisas de Dela Coleta (1989;
1992; 2006), Diniz (1993) e Perlin (2006). O que já está bem consolidado é que a literatura é
uníssona ao apontar a satisfação no casamento como um fator fundamental na vida de um
casal (Scorsolini-Comin & Santos, 2008a). Entretanto, é necessário delinear qual é o estatuto
desse construto na produção científica, as principais tendências que têm sido contempladas e
as perspectivas de pesquisas futuras.
2. Objetivo
Apresentar uma revisão integrativa da literatura científica acerca do tema satisfação
conjugal, buscando evidenciar o perfil dos trabalhos publicados em fontes de pesquisa de
impacto, de modo a possibilitar um maior direcionamento das pesquisas sobre o construto e
discutir as tendências dessas publicações, bem como as perspectivas de produção na área.
557
3. Método
De acordo com Beyea e Nicoll (1998), uma revisão integrativa sumariza pesquisas
passadas e tira conclusões globais de um corpo de literatura de um tópico em particular.
Segundo Fernandes (2000), a revisão integrativa permite a construção de uma análise ampla
da literatura, contribuindo para discussões sobre métodos e resultados de pesquisa, assim
como reflexões sobre a realização de futuras pesquisas. É necessário, portanto, seguir padrões
de rigor e clareza na revisão e crítica, de forma que o leitor possa identificar as características
reais dos estudos revisados. Seguindo os procedimentos de Ganong (1987), embora os
métodos para a condução de revisões integrativas variem, existem padrões a serem seguidos.
Na operacionalização dessa revisão, utilizamos as seguintes etapas: seleção da questão
temática, estabelecimento dos critérios para a seleção da amostra, análise e interpretação dos
resultados e apresentação da revisão.
3.1. Procedimento
As buscas nas bases foram realizadas em um único dia, em uma rede de acesso público
de uma universidade pública do Estado de São Paulo. Em todas as bases de dados foi utilizado
o unitermo satisfação conjugal. Após o levantamento das publicações, os resumos foram lidos
e analisados segundo os critérios de inclusão/exclusão estabelecidos. Os trabalhos
selecionados foram recuperados na íntegra e, posteriormente, analisados.
3.2. Bases de dados consultadas
Visando assegurar uma ampla abrangência desta revisão, foram consultadas as
seguintes bases LILACS e SciELO.
3.3. Critérios de inclusão e exclusão dos trabalhos
558
Para esta revisão, foram excluídos trabalhos, tais como artigos não indexados, teses,
dissertações, resenhas, livros e capítulos de livros. Foram selecionados apenas resumos de
artigos indexados. Essa escolha se deve ao fato de que em uma das bases (LILACS) há alto
registro de trabalhos deste tipo (não apenas artigos indexados) e que, muitas vezes, podem
não passar por um processo de avaliação aos pares, o que garante a qualidade do trabalho e
de apreciação científica. A fim de buscar apenas trabalhos que passaram por um processo
rigoroso de avaliação, foram selecionados apenas artigos indexados (Scorsolini-Comin &
Amorim, 2008).
Foram excluídas, ainda, publicações distantes do tema, como trabalhos relacionados
ao casamento entre pessoas soropositivas ou uniões homossexuais. Em relação aos idiomas,
restringiu-se a busca aos trabalhos publicados nos idiomas português, inglês, espanhol e
francês. O levantamento compreendeu o período de 1970 a 2008. Tal abrangência objetivou
traçar um perfil das publicações, ao longo dos últimos 38 anos, na tentativa de resgatar grande
volume de trabalhos produzidos a respeito do tema ou utilizando-se dessa noção. Como
critérios de inclusão, destacam-se: artigos publicados apenas em periódicos indexados;
trabalhos publicados nos idiomas inglês, espanhol e português; e, ainda, trabalhos empíricos,
teóricos e de revisão acerca do tema. Os resumos condizentes com os critérios adotados foram
selecionados, partindo-se daí para a busca dos trabalhos completos.
4. Resultados
Na busca pela palavra satisfação conjugal, nas bases SciELO e LILACS, foram
encontrados 19 trabalhos (quatro artigos na SciELO e 15 na LILACS). Destes, 12 foram
selecionados a partir dos critérios de inclusão/exclusão e serão aqui analisados em
profundidade. Dos sete trabalhos excluídos, um versava sobre suporte emocional em
tratamentos de câncer de mama; dois abordavam o suporte social no contexto de
559
enfermagem; dois tematizavam a infertilidade; um se ocupava do sofrimento feminino em
relação ao trabalho; e um dizia respeito à orientação para pais de crianças com transtornos de
comportamento. Destaque-se que dois artigos selecionados foram registrados nas duas bases,
ou seja, analisar-se-ão em profundidade 10 trabalhos, que constituíram o corpus da pesquisa.
Em relação ao ano de publicação dos trabalhos selecionados, observa-se que 70%
deles se concentram nos anos 2000, com 30% no ano de 2004. Apenas 30% dos trabalhos
foram produzidos na década de 1990. O trabalho mais antigo a ser selecionado foi do ano de
1987, o que revela a atualidade do tema. Em relação ao idioma, a maioria dos trabalhos
selecionados nessas bases encontra-se disponível em português. Como será apresentado na
análise crítica dos trabalhos, Wagner e Falcke (2001) definem que a satisfação conjugal é um
construto complexo a ser definido. Tal complexidade deve-se ao fato de que ela é composta
por diferentes variáveis, desde as características de personalidade dos cônjuges e as
experiências que eles trazem das suas famílias de origem até a maneira como eles constroem o
relacionamento a dois.
Esta complexidade motivou o desenvolvimento de trabalhos de revisão crítica da
literatura científica (Mosmann, Wagner & Féres-Carneiro, 2006; Wagner & Falcke, 2001). Esta
revisão, embora não seja o foco de outras pesquisas selecionadas, é trazida também por
outros artigos selecionados (Miranda, 1987; Dela Coleta, 1992; Norgren et al., 2004), o que
revela a necessidade de contextualização do tema investigado, uma vez que seu entendimento
não é uníssono na literatura (Perlin, 2006). Outra frente de trabalhos selecionados está na
investigação da satisfação conjugal em diferentes contextos, como em pesquisas com casais de
duplo trabalho (Perlin & Diniz (2005), em casamentos de longa duração (Norgren et al., 2004),
na transição da conjugalidade para a parentalidade (Magagnin, Kõrbes, Hernandez, Cafruni,
Rodrigues & Zarpelon, 2003) e durante a gravidez (Oriá, Alves & Silva, 2004).
Outro eixo destacado foram os trabalhos que correlacionavam as variáveis da
satisfação conjugal a outras, tais como o locus de controle conjugal (Dela Coleta, 1992), a
560
comunicação, a semelhança de atitudes entre os cônjuges e a percepção interpessoal
(Miranda, 1987), assim como a influência de outras variáveis (idade, tempo de casado, autoestima, renda, escolaridade e filhos) sobre a satisfação conjugal (Miranda, 1987) e a estrutura
de poder nas famílias (Rodrigues, Bystronski & Jablonski, 1989). O último eixo de expressão se
refere
à mensuração
da
satisfação
conjugal. Na
presente
revisão,
abordou-se,
especificamente, os instrumentos utilizados, a partir de estudos de validação, tanto quanto de
aplicação de instrumentos internacionalmente reconheecidos (Perlin & Diniz, 2005; Norgren et
al., 2004; Magagnin et al., 2003; Wachelke, Andrade, Cruz, Faggiani & Natividade, 2004). Entre
os instrumentos utilizados, deve-se destacar a prevalência da Escala de Ajustamento Diádico DAS (Dyadic Adjustment Scale), desenvolvida por Graham Spanier em 1976. A escala foi
traduzida e adaptada para a população brasileira e é referida em boa parte dos estudos desta
revisão (Perlin & Diniz, 2005; Norgren et al, 2004; Magagnin et al., 2003).
5. Análise crítica dos trabalhos selecionados
5.1. A pluralidade das satisfações conjugais: revisão de conceitos
No primeiro trabalho selecionado, Mosmann, Wagner e Féres-Carneiro (2006)
apresentam uma revisão da literatura científica a respeito do termo qualidade conjugal. Essas
autoras são consideradas grandes referências sobre o tema no Brasil e lideram a tradição de
trabalhos publicados nesta temática. Segundo as pesquisadoras, na revisão produzida, apesar
da ampla utilização do conceito de qualidade conjugal, identifica-se falta de clareza conceitual
acerca das variáveis que o compõem. Nesse sentido, este artigo apresenta uma revisão da
literatura na área com o objetivo de mapear o conceito de qualidade conjugal, a partir da
análise de cinco principais teorias sobre o tema: Troca Social, Comportamental, Apego, Teoria
da Crise, Interacionismo Simbólico.
561
No artigo em apreço, os autores destacam que a conceituação do que seria um
casamento satisfatório é uma tarefa árdua no meio científico, uma vez que a análise das
pesquisas internacionais da área, na última década, identifica um grande número de estudos
que apontam para um alto índice de fatores que se associam à definição do conceito de
satisfação conjugal. Alguns estudos mostram que a qualidade do relacionamento conjugal
estaria relacionada ao bem-estar dos cônjuges e seus filhos, às respostas fisiológicas dos
cônjuges, às variáveis sociodemográficas, à saúde física do casal, à depressão, à psicopatologia,
às características de personalidade e a combinações entre estas variáveis (Mosmann, Wagner
& Féres-Carneiro, 2006). As autoras destacam que essas variáveis estariam associadas à
qualidade da relação conjugal, porém destacam a carência de estudos que investiguem, com
profundidade, o que é a satisfação conjugal. Os trabalhos existentes não seriam orientados por
uma teoria de sustentação adequada, nem possuiriam uma clara definição metodológica capaz
de produzir reflexões e avanços nos estudos acerca dessa temática.
Em outro trabalho selecionado e resgatado na revisão, Wagner e Falcke (2001)
definem que a satisfação conjugal é um construto complexo a ser definido. Tal complexidade
deve-se ao fato de que ela é composta por diferentes variáveis, desde as características de
personalidade dos cônjuges e as experiências que eles trazem das suas famílias de origem até
a maneira como eles constroem o relacionamento a dois. Segundo revisão das autoras,
elencaram-se as variáveis que se relacionam à satisfação conjugal, tais como sexo, grau de
escolaridade, número de filhos e presença deles em casa, nível socioeconômico e tempo de
casamento. A análise destas pesquisas, de acordo com Wagner e Falcke (2001), leva a pensar
que no conceito de satisfação conjugal estão implicadas tanto as experiências precoces do
sujeito na sua família, como também os aspectos vivenciais da relação diádica atual, além das
variáveis de personalidade e biodemográficas.
A partir das questões de transgeracionalidade, as autoras destacam que a formação do
casal e, conseqüentemente, de uma nova família, se dá por meio do encontro dos sistemas de
562
crenças das famílias de origem dos cônjuges. Assim, quando as pessoas se casam ou passam a
viver em união conjugal, acontece o encaixe entre sistemas míticos de duas estruturas
familiares diferentes, formando um novo sistema baseado nos sistemas familiares de cada
cônjuge. Pensando especificamente na satisfação conjugal, as autoras destacam que
dificilmente um casal poderá estabelecer uma relação afetiva e sexualmente feliz se não tiver
conseguido uma boa independização dos pais, consolidada nos primeiros anos de
relacionamento conjugal. Salientam, entretanto, que como ninguém se separa totalmente de
sua família de origem, por mais independente que seja, tanto emocional como
economicamente, a atitude madura é caracterizada pela capacidade de evitar que as famílias
de ambos os cônjuges entrem em conflito, preservando o bom relacionamento entre ambas.
Nesse sentido, referem que é fundamental a existência de tolerância e respeito pela família do
outro.
5.2. A satisfação conjugal em diferentes contextos de investigação
O estudo quantitativo de Perlin e Diniz (2005) avaliou a satisfação no casamento de
homens e mulheres que optaram por relacionamentos de duplo trabalho, ou seja, casais que
trabalham. Os resultados mostraram que a maioria dos participantes está satisfeita com seus
relacionamentos, sendo que as mulheres apresentaram média de satisfação inferior à dos
homens. Quanto à percepção do futuro do relacionamento, ficou evidente o
comprometimento de homens e mulheres em investirem na manutenção do casamento. Os
resultados questionam a idéia vigente de falência do casamento e da família e apontam para
uma transformação das relações. Neste trabalho, as autoras destacam que a satisfação é um
elemento fundamental em um relacionamento interpessoal. Mas a pergunta: “o que é
satisfação?” pode ser muito mais complexa do que se imagina, corroborando apontamentos
também lançados por Mosmann, Wagner e Féres-Carneiro (2006). Segundo revisão de Perlin e
Diniz (2005), há uma diversidade de definições do que seja a satisfação no casamento. As
563
autoras retomam uma definição extraída de outro artigo selecionado e que será aqui
analisado: a satisfação é uma reação subjetivamente experienciada no casamento; é uma
atitude a respeito do próprio relacionamento conjugal; é o resultado da diferença entre a
percepção da realidade do casamento e as aspirações que os cônjuges têm para a relação
(Dela Coleta, 1989). Perlin e Diniz (2005) destacam que outros trabalhos afirmam que a
satisfação conjugal é afetada por fatores conscientes e inconscientes, ou seja, aspectos
internos da psique. Ela seria afetada também por fatores do meio ambiente, tais como: o sexo,
o grau de escolaridade, o número de filhos e a presença, ou não, deles dentro de casa, o nível
socioeconômico e o tempo de casamento.
Outro trabalho, da autoria de Norgren, Souza, Kaslow, Hammerschmidt e Sharlin
(2004), investiga os casamentos de longa duração. Segundo o artigo, o relacionamento
conjugal está associado à saúde e qualidade de vida, principalmente nos anos de maturidade e
velhice, embora o fato de um casamento durar não necessariamente signifique que o mesmo é
satisfatório para os cônjuges. O estudo identifica os processos e variáveis associadas à
satisfação conjugal em casamentos de longa duração, ou seja, com mais de 20 anos. Em cerca
de metade dos casais estudados, ao menos um dos cônjuges estava satisfeito. Comparando-se
casais satisfeitos e insatisfeitos foi possível identificar que a satisfação aumenta quando há
proximidade, estratégias adequadas de resolução de problemas, coesão, boa habilidade de
comunicação, se os cônjuges estiverem satisfeitos com seu status econômico e forem
praticantes de sua crença religiosa. Para essas autoras, a satisfação conjugal é, sem dúvida, um
conceito subjetivo, implicando em ter as próprias necessidades e desejos satisfeitos, assim
como corresponder, em maior ou menor escala, ao que o outro espera, definindo um dar e
receber recíproco e espontâneo. Relaciona-se com sensações e sentimentos de bem-estar,
contentamento, companheirismo, afeição e segurança, fatores que propiciam intimidade no
relacionamento, decorrendo da congruência entre as expectativas e aspirações que os
cônjuges têm, em comparação à realidade vivenciada no casamento.
564
O estudo de Magagnin, Kõrbes, Hernandez, Cafruni, Rodrigues e Zarpelon (2003)
investigou longitudinalmente a transição da conjugalidade para a parentalidade quanto ao
ajustamento diádico e à satisfação conjugal de casais primíparos. A questão da transição para
a parentalidade também é trazida em outros estudos, como os de Menezes e Lopes (2007),
que trabalham no sentido de que, entre os processos críticos que determinam as principais
transições desenvolvimentais que os casais costumam passar, a transição para a parentalidade
é uma das maiores mudanças por que o sistema familiar pode passar. É o momento em que os
cônjuges, que antes constituíam apenas um casal, tornam-se pais, progenitores de uma nova
família. O nascimento do primogênito, em especial, é a primeira experiência de parentalidade
vivida pelo casal (p.83). Ainda segundo Menezes e Lopes (2007), alguns estudos recentes
também têm enfatizado que a transição para a parentalidade acarreta a diminuição na
satisfação conjugal. O casamento, por sua vez, ao delimitar o início das famílias, também vem
sendo abordado por alguns pesquisadores. Entretanto, a transição para o casamento e suas
peculiaridades como fase inicial do desenvolvimento do casal têm sido relativamente pouco
consideradas pelos teóricos que se ocupam em estudar os casais e as famílias.
Oriá, Alves e Silva (2004), trabalhando com o contexto de gravidez e a sua repercussão
nos aspectos social, econômico, emocional e sexual do casal, constataram que a sexualidade
na gravidez ainda envolve tabus. No grupo de 35 gestantes estudadas, destacou-se que 71%
relataram situações, as quais as autoras salientaram como repercussões positivas ou negativas
da gravidez na sexualidade das mesmas. Quanto às primeiras, foram referidos a melhora do
relacionamento conjugal, o sentimento de feminilidade aguçada e obtenção de maior prazer
sexual. Sobre as segundas, o abandono do parceiro e diminuição da atividade sexual. Assim, a
partir do estudo, a gravidez pôde ser identificada como uma variável relevante que influencia
na melhoria desta qualidade percebida da relação conjugal, na visão da mulher.
5.3. Satisfação conjugal e outras variáveis
565
Dela Coleta (1992) apresenta um estudo quantitativo para mensurar a relação entre o
locus de controle conjugal e a satisfação conjugal atual, passada e estimada para o futuro, a
partir de instrumentos de avaliação desses construtos. No modelo de avaliação da satisfação
conjugal em função do locus de controle referido por Dela Coleta (1992), a pessoa com
predominância de locus de controle interno deverá se empenhar para resolver seus problemas
conjugais e, como conseqüência, deverá sentir-se mais satisfeita no casamento. Esse modelo
também propõe que, com o passar do tempo, as pessoas mais externas tenderiam a se tornar
ainda mais externas e os mais internos tornar-se-iam mais internos, pelo fato de suas
experiências de sucesso e fracasso serem reforçadas ao longo do relacionamento conjugal.
Portanto, o casal, quando ambos são internos, na medida em que percebem sua capacidade
de resolução de conflitos na relação conjugal, tenderiam, de modo geral, a estar mais
satisfeitos com o casamento.
Em outro trabalho, Miranda (1987) analisou empiricamente a inter-relação entre
satisfação conjugal e três aspectos considerados relevantes em uma relação diádica:
comunicação, semelhança de atitudes e percepção interpessoal. Examinou, também, a
influência de outras variáveis (idade, tempo de casado, auto-estima, renda, escolaridade e
filhos) sobre a satisfação conjugal. Os resultados alcançados pelo estudo apontaram percepção
interpessoal e auto-estima como as variáveis de maior importância relativa. Teve-se, também,
a oportunidade de inferir que a mulher, talvez por força de condicionantes sócio-culturais,
coloca-se em uma posição de inferioridade na relação conjugal. De acordo com os resultados
deste trabalho, pode-se identificar que a satisfação conjugal está associada ao ajustamento
conjugal, à expressão de afeto, à coesão, à proximidade, capacidade de resolução de
problemas e habilidade de comunicação.
Rodrigues, Bystronski e Jablonski (1989) estudaram a estrutura de poder em famílias,
baseando-se nas respostas fornecidas por duas amostras de casais residentes no Rio de
566
Janeiro. Esse trabalho constitui, essencialmente, uma réplica de um estudo conduzido com
casais americanos residentes em Los Angeles, em 1971. Os resultados indicaram uma queda
do poder decisório do marido, quando comparados com os obtidos mais de duas décadas
atrás. A idade se correlacionou positivamente com o maior poder do marido. Satisfação
conjugal e autoritarismo não mostraram associações com poder do marido, e as demais
variáveis demográficas consideradas, além da idade, demonstraram associações ocasionais. Os
autores notaram uma preferência por uma estrutura autonômica de poder conjugal. Estes
resultados são discutidos à luz das transformações sociais decorrentes da revolução sexual,
das mudanças dos papéis sexuais e da possível crise de identidade masculina.
5.4. Mensurando a satisfação conjugal
Nos estudos de Perlin e Diniz (2005), Norgren et al. (2004) e Magagnin et al. (2003),
entre os instrumentos utilizados está a Escala de Ajustamento Diádico - (DAS - Dyadic
Adjustment Scale), desenvolvida por Graham Spanier em 1976. A escala foi traduzida e
adaptada para a população brasileira. Segundo Perlin e Diniz (2005), a DAS é considerada uma
das medidas mais sólidas e globais da qualidade das relações interpessoais pela coerência dos
itens agrupados em quatro subescalas que abarcam áreas fundamentais dos relacionamentos:
satisfação, coesão, consenso e expressão de afeto. No estudo de Norgren et al. (2004), foram
utilizados: Lista de classificação de problemas, Questionário de avaliação de estratégias de
resolução de conflitos e comunicação (HSP - Health and Stress Profile), Lista de motivos que
levam o casal a permanecer junto; e Lista de componentes de satisfação conjugal. Outros os
instrumentos foram ainda utilizados: no trabalho de Magagnin et al. (2003) foi aplicada a
Escala de Avaliação da Relação de Hendrick, Dicke, Hendrick, de 1988 (Scorsolini-Comin &
Santos, 2008a).
Wachelke, Andrade, Cruz, Faggiani e Natividade (2004) realizaram um estudo para
descrever a construção e validação de uma escala de satisfação em relacionamento de casal
567
(EFS-RC), composta por subescalas capazes de medir aspectos componentes da satisfação com
relacionamento, no contexto brasileiro. Em estudo posterior de Wachelke, Andrade, Souza e
Cruz (2007), sobre a validação fatorial desse mesmo instrumento, os resultados confirmaram
sua estrutura fatorial, apontando para uma relativa robustez do instrumento e dos aspectos
analisados ao tratar com populações de características demográficas distintas. No entanto, os
autores destacaram que alguns itens podem apresentar flutuações na representatividade do
construto de satisfação com o relacionamento.
6. Discussão
Assim como destacado no estudo de Norgren et al. (2004), o casamento pode ser uma
construção conjunta da realidade, uma opção viável de relacionamento que corresponda às
expectativas de cada um dos parceiros, se cada um deles se comprometer com sua escolha e
acreditar no que está fazendo. Para que um relacionamento conjugal continue satisfatório ao
longo dos anos, há necessidade de se investir na relação, empenhando-se para que ela seja
proveitosa para os dois, tentando encontrar equilíbrio entre conjugalidade e individualidade,
além de partilhar interesses e relacionamento afetivo-sexual. Assim, a mudança de foco
proposta pela perspectiva da Psicologia Positiva (Seligman & Csikszentmihalyi, 2000; Seligman,
2006; Scorsolini-Comin & Santos, 2008b) pode enriquecer a discussão e permitir que os
aspectos adaptativos presentes no relacionamento conjugal sejam devidamente abarcados, a
fim de que a satisfação seja realmente investigada, e não apenas os motivos que levam o casal
a se separar ou a perder o interesse na relação com o passar do tempo e das diferentes
experiências a que são expostos.
A atualidade do tema satisfação é algo acentuado na literatura, assim como a sua
complexidade, bem como a multiplicidade de vozes que são evocadas quando se discute ou se
estuda a satisfação no relacionamento diádico, seja este conceito o trazido nesta revisão ou
568
outros apontados, como qualidade, ajustamento, sucesso ou outros. A possibilidade de
operacionalizar uma revisão integrativa só foi possível, a nosso ver, pela definição e opção
metodológica por um dos termos correntes, ou seja, da satisfação conjugal, conforme utilizado
por pesquisadores de referência na área (Dela Coleta, 1989; 1992; Diniz; 1993; Norgren et al.,
2004; Perlin; 2006).
Corroboramos a percepção de Mosmann, Wagner e Féres-Carneiro (2006) e de
Wagner e Falcke (2001) de que a conceituação do que seria um casamento satisfatório é uma
tarefa árdua no meio científico, uma vez que a análise das pesquisas internacionais da área, na
última década, identifica um grande número de estudos que apontam para um alto índice de
fatores que se associam à definição deste conceito de satisfação conjugal. Esta multiplicidade
também foi atestada no presente trabalho e pode ser justificada, segundo Wagner e Falcke
(2001), pelo fato do casamento ser um momento em que se abre a porta da família para a
entrada de um novo membro, oriundo de um outro sistema familiar, que possui a sua
subjetividade, individualidade e heterogeneidade. Este apontamento leva à consideração da
família de cada cônjuge ao se estudar a satisfação no casamento (Rodrigues, Bystronski &
Jablonski, 1989), uma vez que a maioria dos estudos elege outras varáveis para os estudos de
correlação, como idade, sexo, tempo e duração do casamento, aspectos socioeconômicos e
outros (Norgren et al., 2004; Magagnin et al., 2003).
A partir dos dados desta revisão, destaca-se a premência de desenvolvimento de
outros trabalhos, não apenas investigando a satisfação conjugal em diferentes contextos
(Perlin & Diniz, 2005; Norgren et al., 2004; Magagnin et al., 2003; Oriá, Alves & Silva, 2004) e
na relação com outras variáveis (Dela Coleta, 1992; Miranda, 1987; Rodrigues, Bystronski &
Jablonski, 1989), mas a partir de seus instrumentos de mensuração, pois a avaliação da
dimensão de seu construto só é possível a partir de instrumentos cientificamente validados,
com aplicação em contextos diferenciados, como apontado por Norgren et al. (2004), Perlin
569
(2006) e Scorsolini-Comin e Santos (2008a). Retomando as reflexões de Perlin (2006), os
estudos sobre satisfação, ao contrário da busca pela mesma, devem estar pautados em
critérios científicos rígidos, a fim de que possam agregar conhecimentos aos estudos já
produzidos. A relevância deste trabalho, neste sentido, é a de permitir sistematizar as
produções veiculadas na contemporaneidade, a fim de contribuir com o delineamento de
novas investigações e novos saberes, na medida da urgência da demanda da ciência
psicológica.
Referências
Beyea, S. C., & Nicoll, L.H. (1998). Writing in integrative review. AORN Journal, 67(4), 877-880.
Costa, M. E. (2005). À procura da intimidade. Porto, Portugal: Edições Asa.
Dela Coleta, M. F. (1989). A medida da satisfação conjugal: adaptação de uma escala. Psico,
18(2), 90-112.
Dela Coleta, M. F. (1992). Locus de controle e satisfação conjugal. Psicologia Teoria e Pesquisa,
8(2), 243-252.
Dela Coleta, M. F. (2006). Atribuição de causalidade, locus de controle e relações conjugais (pp.
199-244). In: J. A. Dela Coleta, & M. F. Dela Coleta. Atribuição de causalidade: teoria,
pesquisa e aplicações. Taubaté: Cabral.
Dessen, M. A., & Braz, M. P. (2005). Rede social de apoio durante transições familiares
decorrentes do nascimento de filhos. Psicologia: Teoria e Pesquisa 16(3), 221-231.
Dias, M. (2000). A construção do casal: um estudo sobre as relações conjugais
contemporâneas. Tese de Doutorado, Pontifícia Universidade Católica, Rio de Janeiro.
570
Diniz, G. (1993). The interaction between work. Gender-roles nd marriage-family dilemmas in
dual carreer nd dual worker couples. Doctoral Thesis, United States International
University, San Diego.
Féres-Carneiro, T. (1998). Casamento contemporâneo: o difícil convívio da individualidade com
a conjugalidade. Psicologia: Reflexão e Crítica 11(2), 379-394.
Féres-Carneiro, T. (1997). A escolha amorosa e interação conjugal na heterossexualidade e na
homossexualidade. Psicologia: Reflexão e Crítica 10(2), 354-368.
Féres-Carneiro, T. (2003). Separação: o doloroso processo de dissolução da conjugalidade.
Estudos de Psicologia (Natal) 8(3), 367-374.
Fernandes, L. M. (2000). Úlcera de pressão em pacientes críticos hospitalizados: uma revisão
integrativa da literatura. Dissertação de Mestrado, Escola de Enfermagem de Ribeirão
Preto, Universidade de São Paulo, Ribeirão Preto.
Figueiredo, P. M. V. (2005). A influência do locus de controle conjugal, das habilidades sociais
conjugais e da comunicação conjugal na satisfação com o casamento. Ciências & Cognição,
6. Recuperado em 23 de julho, 2008, de www.cienciasecognicao.org
Ganong, L. H. (1987). Integrative reviews of nursing research. Research in Nursing & Health,
(10)1, 1-11.
Garcia, M. L. T., & Tassara, E. T. O. (2003). Problemas no casamento: uma análise qualitativa.
Estudos de Psicologia (Natal), 8(1), 127-133.
Garcia, M. L. T. & Tassara, E. T. O. (2001). Estratégias de enfrentamento do cotidiano conjugal.
Psicologia: Reflexão e Crítica, 14(3), 635-642.
Gottman, J., & Silver, N. (2000). Sete princípios para o casamento dar certo. Rio de Janeiro:
Objetiva.
571
Instituto Brasileiro de Geografia Estatística (2007). Comunicação social de 06 de dezembro de
2007.
Recuperado
em
23
de
julho,
2008,
de
http://www.ibge.gov.br/home/presidencia/noticias/noticia_impressao.php?id_noticia=10
46
Machado, L. M. (2007). Satisfação e insatisfação no casamento: os dois lados de uma mesma
moeda? Dissertação de Mestrado, Universidade Federal de Uberlândia, Uberlândia.
Magagnin, C., Kõrbes, J. M., Hernandez, J. A. E., Cafruni, S., Rodrigues, M. T., & Zarpelon, M.
(2003). Da conjugalidade à parentalidade: gravidez, ajustamento e satisfação conjugal.
Aletheia, (17/18), 41-52.
Menezes, C. C. & Lopes, R. C. S. (2007). Relação conjugal na transição para a parentalidade:
gestação até dezoito meses do bebê. PsicoUSF 12(1), 83-93.
Miller, B. C. (1976). A multivariate developmental model of marital satisfaction. Journal of
Marriage and the Family, 38, 643-657.
Miranda, E. S. (1987). Satisfação conjugal e aspectos relacionados: a influência da
comunicação, da semelhança de atitudes e da percepção interpessoal. Arquivos Brasileiros
de Psicologia, 39(3), 96-107.
Mosmann, C., Wagner, A., & Féres-Carneiro, T. (2006). Qualidade conjugal: mapeando
conceitos. Paidéia (Ribeirão Preto), 16(35), 315-325.
Norgren, M. B. P., Souza, R. M., Kaslow, F, Hammerschmidt, H., & Sharlin, S. A. (2004).
Satisfação conjugal em casamentos de longa duração: uma construção possível. Estudos de
Psicologia (Natal), 9(3), 575-584.
Oriá, M. O. B., Alves, M. D. S. & Silva, R. M. (2004). Repercussões da gravidez na sexualidade
feminina. Revista Enfermagem UERJ, 12(2), 160-165.
572
Perlin, G. D. B. (2006). Casamentos contemporâneos: um estudo sobre os impactos da
interação família-trabalho na satisfação conjugal. Tese de Doutorado, Universidade de
Brasília, Brasília.
Perlin, G., & Diniz, G. (2005). Casais que trabalham e são felizes: mito ou realidade? Psicologia
Clínica, 17(2), 15-29.
Rodrigues, A., Bystronski, B., & Jablonski, B. (1989). A estrutura do poder conjugal: uma análise
de duas culturas em duas épocas. Arquivos Brasileiros de Psicologia, 41(4), 13-24.
Scorsolini-Comin, F., & Amorim, K. S. (2008). Corporeidade: uma revisão crítica da literatura
científica. Psicologia em Revista (Belo Horizonte) 14(1), 189-214.
Scorsolini-Comin, F., & Santos, M. A. (2008a). Casamento na medida: uma revisão integrativa
de conceitos e instrumentos de mensuração da satisfação conjugal. In: S. R. Pasian, E. T. K.
Okino, S. R. Loureiro, & F. L. Osório (Orgs.), Avaliação de personalidade: técnicas e
contextos diversos. Ribeirão Preto: Vetor.
Scorsolini-Comin, F., & Santos, M. A. (2008b). A felicidade medida: uma revisão integrativa de
conceitos e instrumentos de mensuração na perspectiva da Psicologia Positiva. In: S. R.
Pasian, E. T. K. Okino, S. R. Loureiro, & F. L. Osório (Orgs.), Avaliação de personalidade:
técnicas e contextos diversos. Ribeirão Preto: Vetor.
Seligman, M. E. P. (2006). Breaking the 65 percent barrier. In M. Csikszentmihalyi, M., & I. S.
Csikszentmihalyi (Eds.), A life worth living: contributions to positive psychology (pp. 230236). New York: Oxford University Press.
Seligman, M. E. P., & Csikszentmihalyi, M. (2000). Positive Psychology: an introduction.
American Psychologist, 5(1), 5-14.
Spanier, G.B. (1976). Measuring dyadic adjustment: new scales for assessing quality of
marriage and similar dyads. Journal of Marriage and the Family, 38(1), 15-28.
573
Wachelke, J. F. R., Andrade, A. L. de, Cruz, R. M., Faggiani, R. B., & Natividade, J. C. (2004)
Medida da satisfação em relacionamento de casal. Psico-USF, 9(1), 11-18.
Wachelke, J. F. R., Andrade, A. L. de, Souza, A. M., & Cruz, R. M. (2007). Estudo complementar
da validade fatorial da escala fatorial de satisfação em relacionamento e predição de
satisfação global com a relação. Psico-USF, 12(2), 221-225.
Wagner, A., & Falcke, D. (2001). Satisfação conjugal e transgeracionalidade: uma revisão
teórica sobre o tema. Psicologia Clínica, 13(2), 1-15.
574
Candidatura 29
Autores: Marluce Leão, Eliana Nascimento, Geovana Silva & Nicolle Lobo
Título: Qualidade de vida de adultos maduros e idosos brasileiros, com deficiências visuais e
residentes em instituição de longa permanência
575
QUALIDADE DE VIDA DE ADULTOS MADUROS E IDOSOS BRASILEIROS, COM DEFICIÊNCIAS
VISUAIS E RESIDENTES EM INSTITUIÇÃO DE LONGA PERMANÊNCIA
Marluce A. Borges Glaus Leão, Eliana F. Almeida Nascimento,
Geovana Clara da Silva e Nicolle Lobo
Universidade de Taubaté
RESUMO
O ritmo acelerado da população que envelhece no Brasil e a heterogeneidade do seu processo
de envelhecimento têm exigido o enfrentamento de várias questões, entre elas, a atenção
para com a qualidade de vida de idosos institucionalizados, particularmente aqueles com
deficiência sensorial, física ou mental. Um mapeamento de suas condições de vida e saúde é
necessário para o planejamento de intervenções multidisciplinares. Um programa de extensão
de uma universidade pública desenvolveu esta pesquisa de levantamento junto a adultos
maduros e idosos com deficiências visuais, residentes em uma instituição de longa
permanência, na cidade de Taubaté, Estado de São Paulo, com o objetivo de avaliar sua
qualidade de vida e a condição de saúde mental. Utilizou como instrumentos uma ficha para os
dados sócio-demográficos, uma escala de depressão geriátrica (EDG-15) e os inventários de
qualidade de vida da Organização Mundial de Saúde - WHOQOL-OLD e WHOQOL-bref. De um
grupo de dezessete sujeitos, participaram onze, de ambos os sexos, entre 51 e 88 anos, com
deficiência visual congênita ou adquirida. Os demais não foram elegíveis à pesquisa, por terem
também, deficiência auditiva ou mental. Os resultados obtidos mostram que apenas dois
idosos apresentam um quadro de depressão leve. Os aspectos de autonomia e participação
social mostram-se comprometidos, embora haja evidências de a religiosidade ser um aspecto
responsável pela manutenção da qualidade de vida de quase todos os pesquisados. A análise
destes resultados subsidiará futuras intervenções nas áreas de Enfermagem e de Psicologia,
576
visando a promoção de melhores condições de envelhecimento a esse grupo e a qualidade do
cuidado oferecido pela instituição.
ABSTRACT
The older population growing rate in Brazil and the heterogeneity of this aging process have
demanded the investigation of several questions, one of them is the quality of life of elderly
nursing home residents, especially those with sensory, physical or mental disability. It was
needed a mapping of their health conditions, so it could be established a proper
multidisciplinary intervention planning. A public university extension program has developed a
research intended to evaluate the quality of life and mental health of elderly individuals, with
visual deficiency, living in a long-term residence nursing home in the city of Taubaté, state of
São Paulo, Brazil. It was used as research tools: a form to record the social-demographic data;
a geriatric depression scale (GDS-15) and the quality of life inventory from WHO (World Health
Organization) – WHOQOL-OLD and WHOQOL-bref. It was chosen a group of eleven persons out
of seventeen, their ages varying from 51 to 88 years old and presenting visual deficiency,
congenital or acquired. The other six ones were not selected because they also had hearing or
mental disability. The results obtained indicated that only two of them had mild depression.
The aspects of the autonomy and social participation shows committed, however has
evidences of their religiosity as the most important characteristic to keep a good quality of life.
The analysis of these results will be employed later in Nursing and Psychology projects, with
the purpose of improving the aging conditions of this kind of patients and also the quality of
life offered by elderly nursing homes.
INTRODUÇÃO
577
A população brasileira atual com mais de 60 anos é de 15 milhões, sendo estimada
para 2010, em 18 milhões de idosos, o que representará 10% população geral (Camarano,
2002). Uma realidade presente neste fenômeno de envelhecimento populacional, é a
fragilidade do idoso e sua necessidade de viver em instituição, seja pela ausência ou
dificuldades da família em cuidar, ou mesmo por desejo do próprio, como apontam estudos
sobre a internação de idosos em hospitais gerais e instituições de longa permanência
(Chaimowicz & Greco, 1999).
Inúmeras pesquisas brasileiras têm analisado os desdobramentos da questão
epidemiológica e social desse envelhecimento populacional, alertando para o expressivo
desenvolvimento de doenças, incapacidades e dependência, mais freqüentes entre idosos de
baixa renda, que a assistência social e de saúde públicas não têm conseguido garantir e que,
ao acumularem seqüelas daquelas doenças, desenvolvem incapacidades e perdem autonomia
e qualidade de vida (Chaimowicz, 1997; Ramos, 2002).
No Brasil, o modelo de assistência à velhice, historicamente atrelado a práticas
filantrópicas e caritativas e, ainda vigente, muito recentemente convive com práticas de
geriatria e gerontologia, apoiadas no desenvolvimento científico (Born & Boechat, 2002), e
respaldadas por documentos oficiais que instituem sua necessidade.
Segundo Camarano (2005), que utiliza dados de 2004 do Instituto de Geografia e
Estatística - IBGE, no Brasil vivem em domicílios coletivos – 127.885 idosos; em domicílios
coletivos, na condição individual – 113.049. Não foram encontrados dados específicos de
idosos residentes em Instituições de Longa Permanência para Idosos - ILPI, com deficiência
sensorial. De acordo com o Censo 2000, aproximadamente 24,6 milhões de brasileiros, ou
14,5% da população total, apresentam algum tipo de incapacidade ou deficiência. São pessoas
com ao menos alguma dificuldade de enxergar, ouvir, locomover-se ou alguma deficiência
578
física ou mental. Entre 16,6 milhões de pessoas com algum grau de deficiência visual, quase
150 mil se declararam cegos (IBGE, 2000).
A questão que aqui se investiga, diz respeito a qualidade de vida do idoso residente
em ILPI, como ele avalia os eventuais ônus decorrentes da idade e convive com a deficiência
visual (compreendida como baixa visão e cegueira), seja ela congênita ou adquirida.
Aspectos de qualidade de vida do idoso institucionalizado
A velhice como uma experiência individual, portanto, vivenciada de forma
heterogênea, até mesmo dentro de um mesmo grupo com características biológicas, sóciohistóricas e culturais semelhantes, determina que, para alguns idosos, essa fase seja avaliada
positivamente, como etapa de desenvolvimento e bem-estar subjetivo. Para outros, contudo,
pode ser uma fase negativa da vida. Esse pressuposto tem justificado os inúmeros estudos e
pesquisas que avaliam a qualidade de vida da velhice, fundamentada em diferentes
indicadores. (Baltes, 1987; Neri, 1993)
Nos últimos trinta anos, os indicadores objetivos mostraram-se insuficientes na
investigação clínica e epidemiológica para determinar a real condição dos indivíduos, senso
incorporada a avaliação das variáveis subjetivas da qualidade de vida, embora se discuta a
complexidade de seu caráter multidimensional e mutável (Paschoal, 2000). Outrossim, a
avaliação da saúde, obtida por meio de instrumentos genéricos ou específicos, sob a ótica do
indivíduo, nem sempre é sensível às suas necessidades, como exemplo, o caso do idoso frágil.
Na última década, as pesquisas brasileiras tem analisado as dimensões biopsicossociais de qualidade de vida relacionadas ao processo de envelhecimento. Chaimowicz e
Greco (1999), analisando essa questão, do ponto de vista epidemiológico e social, pesquisaram
a dinâmica da institucionalização de idosos através da análise da oferta de leitos e
579
características demográficas dos residentes de 33 asilos. Concluíram que a baixa taxa de
institucionalização se devia à escassez de vagas.
A investigação de Telles Filho e Petrilli Filho (2002) sobre as causas da inserção de
idosos em uma instituição asilar, destacaram como resultados, a falta de respaldo familiar em
relação aos cuidados com o familiar idoso e suas dificuldades financeiras. Estes dados
corroboram a crença de que, se faltam condições à família de ofertar qualidade de assistência
a seu idoso, suas esperanças por melhor provisão nesse sentido, são depositadas na
instituição.
A pesquisa de Xavier, Ferraz, Norton, Escosteguy & Moriguchi (2003) com idosos de
área rural, identifica uma definição de qualidade de vida. Ao avaliar aspectos de saúde geral e
sintomas depressivos, sua conclusão aponta ser possível que, para esses idosos, qualidade
negativa de vida seja equivalente a perda de saúde, enquanto a positiva envolve uma
pluralidade aspectos como atividade, renda, vida social e relação com a família; categorias
diferentes de sujeito para sujeito.
O apoio social surgiu como indicador de qualidade de vida, no estudo de Mazo e
Benedetti (1999) ao verificarem as condições de vida de idosos residentes em instituições
geriátricas, concluindo que todos os pesquisados sofriam de doenças geralmente crônicas;
dificuldade em dormir, não realizavam atividades ocupacionais durante o dia e consideraram
que, além de seus filhos, os outros idosos da instituição eram sua família; percebendo a
amizade como um fator importante em suas vidas.
Savotini (2000) ao pesquisar as características sócio-demográficas e clínicas e o grau de
dependência física de idosos em instituição asilar, correlaciona estas características com a
qualidade de vida desse grupo, em relação aos domínios: capacidade funcional, aspectos
físicos, dor, estado geral de saúde, vitalidade, aspectos sociais, aspectos emocionais e saúde
mental. Chama a atenção em suas conclusões, o fator sócio-demográfico, situação conjugal,
580
apresentando influência estatisticamente significante sobre o Estado Geral da Saúde e de
Saúde Mental.
Analisando a percepção de saúde de idosos residentes em asilos, Freire Júnior, Renato
e Tavares (2005) indicam que nos resultados aparece uma relação importante entre seus
estados de saúde e felicidade com o trabalho, a rede social e a espiritualidade.
Em uma pesquisa sobre a percepção auto-relatada de saúde, idosos de asilos
avaliaram a própria saúde como satisfatória, estabelecendo relação com a ausência de dor,
desconforto físico, sensação de segurança proporcionada pela vivência na instituição. Foi
constatado que a qualidade objetiva dos cuidados oferecidos pelas instituições eram de
importância incontestável, entretanto, insuficientes para a garantia do bem-estar subjetivo do
idoso (Pestana & Espírito Santo, 2008).
A Organização Mundial de Saúde, por meio do World Health Organization Quality of
Life Group (WHOQOL, 1995; 1998; 2004) desenvolveu escalas de avaliação de qualidade de
vida de adultos, considerando seu caráter subjetivo, nos aspectos negativos e positivos e sua
natureza multidimensional. Entre essas escalas, o WHOQL-bref, avaliando quatro domínios da
qualidade de vida: físico, psicológico, relações sociais e meio-ambiente e o WHOQOL-old,
identificando a qualidade de vida de idosos e suas possíveis carências em seis facetas:
funcionamento do sensório (FS), autonomia (AUT), atividades passadas, presentes e futuras
(PPF), participação social (PSO), morte e morrer (MEM) e intimidade (INT).
Como o processo de envelhecimento apresenta algumas características semelhantes
aos sintomas depressivos, normalmente se apresentando no idoso de maneira atípica ou
indireta, ou seja, encoberta por múltiplas e variadas queixas somáticas e associada a quadros
de ansiedade (DSM-IV-TR, 1994), deve-se fazer o uso sistemático de escalas de depressão
pelos profissionais que trabalham com esses indivíduos, para facilitar a detecção desses casos
na prática clínica, conforme recomendam Almeida e Almeida (1999).
581
A Escala de Depressão Geriátrica (Geriatric Depression Scale - GDS) utilizada em
diversos estudos, inclusive os brasileiros (Almeida & Almeida, 1999) demonstra que a GDS ser
uma medida válida e confiável para o diagnóstico de episódio depressivo maior, de acordo
com os critérios da CID-10 e DSM-IV. O fato de ter versão reduzida (GDS-15), em contraste
com a versão original de 30 questões, tem tornado seu uso cada vez mais freqüente, que na
prática clínica é importante pelo tempo reduzido para sua aplicação.
Silva e Rezende (2006) ao compararem a qualidade de vida relacionada à saúde (QVRS)
de idosos institucionalizados e de participantes de centros de convivência, utilizaram, entre
outros instrumentos, a GDS e o WHOQOL-breaf, constatando que idosos institucionalizados
tiveram escores mais baixos na pontuação total do WHOQOL-breaf e nos domínios: físico,
psicológico e meio ambiente. Que a depressão, maior morbidade e dependência em atividades
de vida diária, repercutiram negativamente sobre a qualidade de vida relativa à saúde.
Para conhecer melhor a realidade de adultos maduros e idosos deficientes visuais, que
vivem em uma ILPI, foi objetivo nesta pesquisa, avaliar sua qualidade de vida e condição de
saúde mental.
MÉTODO
Trata-se de um estudo descritivo e exploratório, de abordagem quantitativa, realizado
com idosos residentes em uma ILPI para deficientes visuais, em uma cidade do Vale do Paraíba
paulista. Esta pesquisa obedeceu aos preceitos da Resolução 196/MS-Brasil, sendo
protocolada e aprovada pelo Comitê em Ética e Pesquisa da Universidade de Taubaté, sob o
no. 291/08, em 16 de junho de 2008.
582
Esta ILPI funciona em regime semi-aberto, é de natureza beneficiente, parcialmente
mantida pelo poder público e apoio da comunidade, contando também com as aposentadorias
dos internos. Apesar de sua infra-estrutura precária, atende às necessidades básicas de
alimentação, repouso, higiene e administração de medicamentos. Não possui um quadro de
profissionais de saúde permanentes, sustenta-se com a colaboração voluntária de médico e
fisioterapeuta. Estagiários de áreas da saúde e social propiciam aos internos atividades físicas,
recreativas, de lazer e atendimento psicossocial.
Residem na instituição indivíduos com idades abaixo de 50 anos. Para efeito dessa
pesquisa, selecionou-se 17 adultos maduros e idosos, na faixa etária entre 53 e 87 anos, de
ambos os sexos, com deficiência visual congênita ou adquirida. Foram incluídos na pesquisa 11
deles, os demais não consentiram ou não foram elegíveis, pela associação de deficiência
auditiva e/ou mental severas.
Foi utilizado o inventário WHOQOL-Bref para identificar sua qualidade de vida e
possíveis carências referentes aos domínios avaliados: físico (7 itens), psicológico (6 itens),
relações sociais (3 itens) e meio ambiente (8 itens), conforme Fleck et al., (1999) e OMS (1998).
Entretanto, os resultados desse inventário foram descartados, pela dificuldade que a amostra
teve em dimensionar a valoração das perguntas, não refletindo uma avaliação fidedigna.
O inventário WHOQOL-old é uma medida genérica para avaliar a qualidade de vida de
adultos idosos, em que os escores das seis facetas são combinados para produzir um escore
geral para a qualidade de vida em adultos idosos. Os valores obtidos nos escores das facetas
individuais e no escore total do WHOQOL-old, representam uma avaliação empírica da
qualidade de vida, a partir do ponto de vista do participante.
Para avaliar o estado de saúde mental, foi utilizada a versão brasileira, proposta e
validada por Almeida e Almeida (1999) do instrumento GDS-15 – Global Depression Scale. Este
instrumento foi desenvolvido especificamente para idosos, com itens aplicáveis a indivíduos
583
hospitalizados ou institucionalizados, referentes a mudanças no humor e a alguns sentimentos
específicos. A escala original contém 30 questões dicotômicas (sim X não) e quando o
resultado é igual ou maior que 5, há suspeita de depressão.
A pesquisa de campo aconteceu entre os meses de julho e agosto de 2008. A aplicação
dos instrumentos foi em ambiente privativo, ocorrendo em mais de um encontro, quando se
observava cansaço ou dificuldade por parte de algum participante. Para a tabulação dos dados,
utilizou-se a orientação do manual dos inventários.
RESULTADOS E DISCUSSÃO
A análise dos dados bio-sociodemográficos justifica uma série de aspectos das
condições gerais de vida, que concorrem para a qualidade de vida global do indivíduo,
conforme alerta Paschoal (2000).
Nos dados relativos à distribuição dos participantes por sexo nessa instituição,
constata-se a predominância de homens deficientes visuais, 55% adultos maduros e 45%
idosos. Em se tratando de idosos, contraria as pesquisas dessa população em ILPI (Jabur,
Siqueira & Reis, 2007; Silva & Rezende, 2006) e as informações demográficas que apontam um
maior número de mulheres idosas na sociedade, configurando o fenômeno da feminização da
velhice (IBGE, 2000; Herédia et al., 2005)
Na amostra, 55% são solteiros, confirmando achados de Herédia et al. (2005) e Jabur
et al. (2007), o que pode constituir um fator de risco à qualidade de vida (Savotini, 2000). É
possível que, na falta do cônjuge ou da família, as dificuldades no auto-cuidado e proteção
sejam mais asseguradas pela instituição, justificando, inclusive, que 45% deles tenham
decidido por si próprios, lá morarem. Todavia, se pudessem, 45% deles gostariam de morar em
outro lugar, aparecendo aqui o desejo de autonomia e independência. Se em anos passados, a
584
condição da deficiência não assumia uma dimensão muito significativa, agora, associada à
velhice, pode restringir mais o campo vivencial.
A baixa escolaridade identificada nos dados, é consoante a vários resultados de
pesquisa (IBGE, Herédia et al., 2004; Jabur, Siqueira & Reis, 2007; Silva & Rezende, 2006;
Davim, Torres, Dantas & Lima, 2004), mostrando que na década de 1940, época de ingresso
nas séries iniciais da escola da maioria desses participantes, o índice de analfabetismo era
muito alto. Esse indicador dificulta o acesso do indivíduo a informações, a uma melhor
qualificação ocupacional e a oportunidades sociais de um modo geral. Em se tratando de
deficientes visuais, em termos de inserção social, os obstáculos podem ter sido ainda maiores.
Possivelmente, como reflexo da baixa escolaridade, trabalharam em ocupações
primárias (agricultores), secundárias (operário da construção civil, metalúrgico), em serviços
(vendedor, encanador) ou ainda, como donas de casa, resultando ao final, uma aposentadoria
irrisória, reservada à sua manutenção na instituição.
Sobre o tempo de asilamento, metade referiu mais de 5 anos na instituição. Porém, a
dificuldade dos participantes em dimensionar esse tempo e de não ter sido perguntado sobre
a história de internação anterior, limita aqui essa análise.
Relataram que tem contato regular com a família, 73% da amostra, fato facilitado pela
procedência de 55% ser da mesma região onde agora vivem (São Paulo), denotando uma
situação favorável à manutenção do núcleo familiar, dos laços afetivos e atenção para com
eles.
Apresentam deficiência visual adquirida, há mais de 16 anos, 91% da amostra podendo
significar que, na idade adulta tiveram que se adaptar a essa condição. A perda parcial da
acuidade visual após os 40 anos pode ser esperada no processo de envelhecimento, como
mostra os resultados de Davim, Torres, Dantas e Lima (2004) em pesquisa em vários asilos.
585
Nesta pesquisa, no entanto, a ocorrência da perda total, presença de glaucoma em 9% e
diabetes em 27%, indica condições de morbidade entre eles, podendo ser o motivo da
institucionalização, associado à perda da autonomia e da independência (Chaimowicz & Greco,
1999).
Pelos resultados da GDS, apenas 9% dos pesquisados apresentam suspeita de
depressão (escore igual ou acima de 5 pontos), sugerindo que a institucionalização não é uma
variável que afeta negativamente todos os domínios da vida desses participantes deficientes
visuais. Diferentemente dos dados reportados por Silva & Rezende (2006) e da revisão de
pesquisas nacionais e internacionais feita por Munk e Laks (2005) apontando a prevalência de
episódio de depressão maior em idosos institucionalizados e o fato de as mulheres serem as
mais acometidas por essa doença. Esse resultado, todavia, é discutível, quando cruzado com os
do WHOQOL-old, onde prevalece uma baixa pontuação em quase todas as facetas de
qualidade de vida avaliadas.
Os resultados do WHOQOL-old, que constam na tabela 1, são esclarecedores sobre a
situação da amostra pesquisada. Os escores das seis facetas foram combinados para produzir
um escore geral para a qualidade de vida em adultos idosos. Os valores obtidos nos escores
das facetas individuais e no escore total do WHOQOL-old, representam uma avaliação
empírica da qualidade de vida, a partir do ponto de vista do participante.
Tabela 2. Escores obtidos pelo WHOQOL-old na avaliação da amostra
FS
AUT
PPF
PSO
MEM
INT
Facetas
Funcionamento do sensório
Autonomia
Atividades passadas, presentes e futuras
Participação social
Morte e morrer
Intimidade
Média
EBF
12,18
10,18
9,09
8,73
20,00
9,00
11,53
EPF
3,05
2,55
2,27
2,18
5,00
2,25
2,88
ETE
51,14
38,64
31,82
29,55
100,00
31,25
47,06
586
Observa-se que, com exceção da faceta MEM, todas as médias são preocupantes. A
faceta FS, relativa ao funcionamento sensorial, impacto da perda de habilidades sensoriais na
qualidade de vida dessa amostra é significativa, indica o quanto a deficiência visual está
limitando o campo vivencial. A faceta autonomia (AUT) demonstra grande restrição em termos
de independência nesta fase da vida, capacidade ou liberdade de viver de forma autônoma e
tomar decisões, corroborando dados de Herédia et al.,(2004).
Os níveis de satisfação sobre as conquistas na vida e coisas que se anseia (PPF),
capacidade de ter relacionamentos pessoais e íntimos (INT) e participação nas atividades
cotidianas, especialmente na comunidade (PSO), refletem a exclusão social deste indivíduo,
confirmando as pesquisas sobre essa população (Freire Júnior, Renato & Tavares, 2005;
Savotini, 2000; Mazo & Benedetti, 1999).
Chama a atenção, o escore total atribuído à faceta MEM, de ausência de
preocupações, inquietações e temores sobre a morte e o morrer. Pode refletir uma
preparação, de fato, para a finitude da vida, apoiada na importância delegada ao aspecto
religiosidade, muito presente no WHOQOL-breaf (embora tenha sido descartado), e também
presente nos auto-relatos dos pesquisados. Aspecto esse confirmado por outras pesquisas
(Freire Júnior, Renato & Tavares, 2005) que cita a prática da espiritualidade como um fator de
proteção à saúde mental. Por outro lado, pode refletir, a expressão de um desejo genuíno de
finitude, mediante a baixa qualidade de vida das outras dimensões existenciais.
Em síntese, a média total do WHOQOL-old de 47,06 é um indicador da fragilidade
dessa amostra, requerendo uma atenção por parte de intervenções geriátricas e
gerontológicas, principalmente pelo fato de 55% dos participantes não ter 60 anos, 55% não
ter referido doença crônica, mas o conjunto dos dados bio-sociodemográficos conter fatores
de risco potenciais à sua qualidade de vida (Xavier, Ferraz, Norton, Escosteguy & Moriguchi,
587
2003). Entretanto, os fatores protetores podem ainda ser potencializados e retardar as futuras
perdas nesses vários aspectos (Baltes, 1987; Neri, 1993).
CONCLUSÃO
Na fase da velhice, a qualidade de vida vêm sendo bastante discutida e avaliada por
diferentes áreas do conhecimento e sob vários pontos de vista, prevalecendo as avaliações em
termos saúde física, saúde psicológica e o ser social. Na população idosa residente em
instituições de longa permanência, principalmente aquela com deficiência visual, no entanto,
são escassos os resultados de pesquisas rastreando as dimensões que impactam essa
qualidade de vida.
Nesta pesquisa, constatou-se a presença maciça de deficientes visuais homens, mais
da metade deles com menos que 60 anos, sem doenças crônicas e baixa prevalência de
suspeita de depressão. Mostram-se ausentes as preocupações relativas à morte e ao morrer.
Entretanto, a exclusão social é ressaltada pela menor pontuação do indicador de participação
social, reforçada pelos baixos níveis de satisfação em termos de autonomia, capacidade de
relacionamentos e realização pessoal.
Considera-se importante em outras pesquisas com essa população, atrelar indicadores
de capacidade funcional em termos de atividades diárias e instrumentais à avaliação de
qualidade de vida, para dimensionar a capacidade funcional preservada e orientar projetos de
intervenção interdisciplinares e multiprofissionais.
Na medida em que o anacronismo de gestão dessas instituições ainda é uma realidade
no Brasil, iniciativas de estudo, pesquisa e socialização de idosos institucionalizados, por meio
da extensão universitária, constituem intervenções que viabilizam uma melhor qualidade de
588
vida dessa população, possibilitando, paralelamente, a capacitação de futuros profissionais
para o enfrentamento dessa demanda crescente na sociedade.
REFERÊNCIAS
Almeida, O. P. , Almeida, S. A. (1999) . Confiabilidade da versão brasileira da escala de
depressão em geriatria (GDS) versão reduzida. Arquivos de Neuropsiquiatria, 57, 421-426.
Baltes, P. B. (1987) . Theorical propositions of the life span development psychology: on the
dynamics between growth and decline. Developmental Psychology, 23, 611-696.
Born, T., Boechat, N. S. (2002) . A qualidade dos cuidados ao idoso institucionalizado. Freitas,
E.V., PY, L., Neri, A.L.; Cançado, F.A.X., Gorzoni, M.L., Rocha, S.M. Tratado de Geriatria e
Gerontologia. Rio de Janeiro, 93, 768-777.
BRASIL (1996). Lei nº 8.842 de 04 de janeiro de 1994. Dispõe sobre a política nacional do idoso
e dá outras providências. Brasília (DF): Ministério da Previdência e Assistência Social.
BRASIL (2008). Ministério Público Federal. Procuradoria Federal dos Direitos do
Cidadão.http://pfdc.pgr.mpf.gov.br/clipping. Acesso:novembro 2008.
Camarano, A. A. (2002). Envelhecimento da população brasileira: uma contribuição
demográfica. Freitas, E.V.; PY,L., Neri, A.L., Cançado, F.A.X., Gorzoni, M.L., Rocha, S.M. Tratado
de Geriatria e Gerontologia. Rio de Janeiro, 6, 58-71.
Camarano, A. A. (2005). Perfil dos idosos residentes em instituições de longa permanência no
Brasil. Simpósio Nacional sobre ILPI para idosos: envelhecer com dignidade, um direito
humano fundamental.
589
Chaimowicz, F.; Greco, D. B. (1999). Dinâmica da institucionalização de idosos em Belo
Horizonte, Brasil. Revista Saúde Pública, 33, 454-460.
Chaimowicz, F. (1997). A saúde dos idosos brasileiros às vésperas do século XXI: problemas,
projeções e alternativas. Revista Saúde Pública, 31, 184-200.
Davim, R. M. B. , Torres, G. V. , Dantas, S. M. M. , Lima, V. M. (2004) . Estudo com idosos de
instituições asilares no município de Natal/RN: características socioeconômicas e de saúde.
Revista Latino-Americana de Enfermagem, 12, 518-524.
DSM-IV-TR (2003). Manual diagnóstico e estatístico de transtornos mentais. 4. ed. Porto
Alegre: Artmed. 880 p.
Fleck, M. P. de A. , Louzada, S. , Xavier, M. , Chaimowicz, E. , Vieira, G. , Santos, L. , Pinzon, V.
(1999). Aplicação da Versão em Português do Instrumento Abreviado de Avaliação da
Qualidade de Vida "WHOQOL-Bref". Revista de Saúde Pública, 34, 178-183.
Freire J. , Renato C. , Tavares, M. F. L. (2005). A saúde sob o olhar do idoso
institucionalizado: conhecimento e valorizando sua opinião. Interface: Comunicação, Saúde, Educação, 9, 147-158.
Heredia, V. B. M. , Casara, M. B. , Cortelletti, I. A. , Ramalho, M. H. , Sassi, A. , Borges, M. N.
(200) . A Realidade Do Idoso Institucionalizado. Textos Envelhecimento, 7, 34-43.
IBGE-Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Encontro internacional de estatís-ticas
sobre pessoas com deficiência. 16 de setembro de 2005. www.IBGE.org.br.Censo 2000. Acesso
15 de novembro de 2000.
Jabur, F. C. , Siqueira, D. , Reis, V. V. M. (2007) . Perfil da clientela atendida em instituição de
longa permanência. Estudos, 34, 85-99.
590
Mazo, G. Z. , Benedetti, T. B. (1999). Condições de vida dos idosos institucionalizados na Grande Florianópolis. Revista Ciência e Saúde, 18, 51-6.
Munk M., Laks J., (2005) . Depressão em idosos em um lar protegido ao longo de
três anos. Jornal Brasileiro de Psiquiatria, 54, 98-100.
Neri, A.L. Qualidade de vida e idade madura. Campinas: Papirus, 1993.
ORGANIZAÇÃO MUNDIAL DE SAÚDE – OMS (1998). Versão em português dos instrumentos de
avaliação de qualidade de vida (WHOQOL). Divisão de saúde mental grupo
WHOQOL.Disponível:<http://www.ufrgs.br/psiq/whoqol.html>. Acesso: maio 2008.
Paschoal, S.M.P., (2002). Qualidade de vida na velhice. In: Freitas, E.V., PY,L.; Neri, A.L.;
Cançado, F.A.X., Gorzoni, M.L., Rocha, S. M. Tratado de Geriatria e Gerontologia. Rio de
Janeiro: Guanabara Koogan, 8, 79-84.
Pestana, L. C. , Espirito Santo, F. H. (2008) . As engrenagens da saúde na terceira idade: um
estudo com idosos asilados. Revista da Escola de Enfermagem USP, 42, 268-275.
Ramos, L.R. Epidemiologia do envelhecimento. Freitas, E.V., PY,L., Neri, A.L., Cançado, F.A.X.;
Gorzoni, M.L.; Rocha, S.M. (2002) . Tratado de Geriatria e Gerontologia. Rio de Janeiro, 7, 7278.
Savonitti, Beatriz Helena Ramos de Almeida. (2000). Qualidade de vida dos idosos
institucionalizados. Dissertação de Mestrado. Universidade de São Paulo. Escola de
Enfermagem. São Paulo-SP, 139p.
Silva, T. E., Rezende, C. H. A. Avaliação transversal da qualidade de vida de idosos
participantes de centros de convivência e institucionalizados por meio do
questionário genérico whoqol-bref. (2006).Revista Eletrônica. Universidade Federal
591
de Uberlândia.p.1-28. Disponível:
http://www.propp.ufu.br/revistaeletronica/Edicao%202006_1/D/tais_estevao.pdf.
Acesso: Maio 2008.
Telles Filho, P. C. P.; Petrilli Filho, J. F. (2002).Causas da inserção de idosos em uma
instituição asilar. Escola Anna Nery Revista de Enfermagem;6(1):135-143.
THE WHOQOL Group (1995). The World Health Organization Quality of Life
Assessment (WHOQOL): position paper from The World Health Organization. Social
Science and Medicine, 41(10): 1403-1409.
THE WHOQOL Group (1998).Development of the World Health Organization WHOQOL-Bref.
Quality of Life Assessment. Psychology Medical, 28, 551-558.
Xavier, F. M. F., Xavier, F. M. F., Ferraz, M. P. T., Norton, M., Escosteguy, N. U., Moriguchi, E. H.
(2003) . Elderly people´s definition of quality of life. Revista Brasileira de Psiquiatria, 25, 31-39.
592

Documentos relacionados