10 - Ribanceira1978

Transcrição

10 - Ribanceira1978
JURANDIR, Dalcídio. Ribanceira. Rio de Janeiro: Record,
1978. 330p.
[9] De repente o Fortim sobre o largão aqui fora.
O Forte. Fortim. Fortim daquele tempo, lido no jornal, mandado
restaurar pelo Dr. Washington. O Presidente, passando por Manaus,
quis ver de perto o Fortim, tinha um fraco pela história, meteu em
obras o bastião caduco. Picharam a ferrugem dos canhões. Lá está o
chalezinho caiado. A preço de meio instante estamos na ribanceira.
Nestes olhos mal saídos do beliche, soneira e preguiça, se
misturam canhões e estirões. o labirinto, aquele, de Breves, o largão,
este, que vem das três bocas do Xingu, e duas portuguesinhas
desembarcadas não faz três horas no Pucuruí. Aí a um passo me
espera meu degredo, contam que lugar de abacate e febre. Meus vinte
anos onde não é mais o mundo ao pé deste bicho rio que se cevou no
dilúvio. Em outubro, agora, ganha uma pele tucupi, rebojam, nesta
vazante, seus peraus. Os canhões salvam, atirando piche no gaiola.
Despede a ribanceira um vermelhume a lembrar sangrador de índio,
aquele, nos 1600 e nos 1700, Mané taa yamê Yara? na boca das armas
expiraram nações, finquem no chão do massacre a cruz dos brancos,
até hoje as guaribas tocam funerais. Pela proa, lá pra lá, no encalço de
Prainha, Arumanduba, Santarém, Óbidos, Manaus e do Tio Sebastião,
esparrama-se a baía no fogo da tarde e de onde fogem velas
assustadas. Nem a propósito, aqui rente a bombordo desliza a
montaria puxada a vento no mastrinho folharal. Bem, agora é todo o
Fortim em continência.
Mas a cidade? Ainda encaramujada na ribanceira. Reserva-se,
quer nos pegar de surpresa, tapando nossos olhos [10] com suas
mangueiras ou mostrar-se, telha por telha, retraída nas paredes,
preguiçosa de se levantar. Do barranco, que se empinou na várzea, a
testa é sabrecada, endurecida, nos coices do rio, agora aqui e ali
pendura suas folhagens. Em pedra se assenta o terreiro com um
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sobejo de almas, ai foi um hospício, fortim, uma cidade? Breve estou
naquele moquém debaixo deste algodoado azul, o sol esfolando o rio.
Onde os abacateiros? Quando a. minha febre? Te desencaramuja,
cidade, ou que foi, mais não é, suspende teus jiraus, solta teus
morcegos, teus galos, teu cancan os teus podres.
Agora a igreja com uma penugem de garça velha, cidade saindo
do seu ouriço, se pondo de cócoras, não mais aquela que fazemos de
conta na viagem. AI só a de hoje, desta tarde e só os seus fundilhos no
barranco, contam que anda caindo aos pedaços ao peso da mais
maciça urucubaca. Espia com suas pestanas verdes, enroscada nos
paus e pardieiros, banheiros com a maré dentro, sentinas e degraus
para a praia. O gaiola bem de bubuia, manhoso. Vai assustar com três
apitos?
Palmebiche, gravata, tem de desembarcar com cerimônia, lá
esperam o Secretário Municipal, filho de peixe... O peixe pai, aquela
hora, vinte e cinco anos Secretário, lá no chalé à janela, depois do
expediente. O navio nem se puxa, nas grudes da vazante, mais parece
de fogo apagado, conta até dez vai apitar? não apitou? Ao peso destas
águas se calou.
Aqui desembarco, não como no cais do Rio de Janeiro,
descarregado nas muletas da Sem Nome e nos mais minguados
quinze mil-réis deste mundo. Aqui Secretário o lavador de pratos do
Café São Silvestre na Saúde. Aqui Secretário o zinho andante pelo
túnel debaixo daqueles gritos ali acumulados desde quando.
Secretário quem volta a Belém, aquela tarde, com a cara no
chão, e Que fez por primeiro? Junta a manga no largo da Pólvora e
vai, com sua maleta, ao ponto da Magá, Quintino com a São
Jerônimo. Magá, tão foi seu susto, que se levanta e mal abençoa,
Santinho! de suas panelas se afastou, carregou com aquele-não-seidonde-aparecido para. um à parte ali debaixo da mangueira.
— Mas valha-me Deus, mas seu diabo! Donde mas donde já
que vós me aparece então com esse baú na mão [11] ver um ceará
chegando, aquele-menino? O sorteio te pegou? Desertando? Quem
que te anda te ferrando o dente que tu nunca senta a bunda? É o teu
oficio? Que praga é, quem te rogou, que Deus livre-guarde? Donde
que tu vem corrido?
Magá! Era escutar toda a cidade e o chalé, Araquiçaua, Areinha,
as antigas noites do Não-se-Assuste, aquela italiana olhando pela
rótula.
De tudo que lhe cortava o peto fez uma alegria:
— Chegando lá do Guamá, Magá. Com três marés chegando.
Lá de lá de cima. De bem detrás da sapopema onde, sabe? aquele
nosso pessoal? Da garrucha e da azagaia? Vigiam o tempo, só
vigiando. Fiz lá o meu serviço militar. Um dia? Escreva. Um dia,
tempo de açaí ou de pupunha, um dia, não duvidar, tomam Belém,
vão beber teu tacacá em Palácio.
— Me vem! Me vem já com a tua cabanagem, confianças essas,
pirralho! Te correram dadonde, passarinho?
— Lhe disser que venho do Rio, Magá, vai dizer que é meu
farol. Sim que nem te dei adeus. Por esquecimento, não. Por pressa.
Pois do Rio de Janeiro neste mesmo repente, sem mentira. Num
instante me aborreci de lá. Cheguei de volta, adivinhei, na vigilenga
do Mestre Cardoso, for! Pela luz divina! lhe disser que voltei seco
pelo seu tacacá e sua bença! Quer fazer uma fronha para um travesseirinho que me ficou da viagem? Uma coisa: a senhora só é
tartarugueira de rio? Do mar, não? Nunca preparou uma do mar?
— E me chamando de tu, você, senhora... Não estou dizendo?
Estou ou não estou? Que três Magas essas na tua língua? É tua
tonteira ou verniz do Rio? Precisando é que eu te reze um Creio-emDeus-Padre já na tua cabeça, e já. Do mar salgado, a suruanã, ou da
água doce, qualquer uma tartaruga na mea mão, se bem não trato,
arremedeio. Comeste de uma do mar por aí nas tuas navegagens? Ao
menos descansa o teu terém no chão. Alivia o braço, rapaz! Ou vem
carregando os diamantes do seu Antonino Emiliano? Te encontraste
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com ele na Costa Negra ou na mina? Pensa que não sei? Toma este
pano (o pano? só cheiro de Mãe Ciana), passa na testa. Suando então
como quem acaba de ter um acesso. Pensa que tua mãe não me
estoriou toda aquela tua febre? Pensando que não sei?
[12] A tacacazeira tirou do cesto a cuia pintada, que trazia
escrito “Quero-te bem”, destampou a panela de barro que fumegava.
— Mas, e tua mãe? E teu pai? E o que transpira do teu Tio
Sebastião? E teu estudo? E teu juízo? Onde ai o homem, rapaz?
Carrego na pimenta?
— Carregue, carregue.
Com três cuias de tacacá, bem pimenta, um camarão e jambu,
regalou-se, fazendo render a goma para pedir mais tucupi. Magá
servia aos fregueses, cantarolando:
Tigre preto
Tigre branco
Que vem nas ondas do mar
Beiço a tremer da folha do jambu, Alfredo ouvia e isso era
reaver o nome, o conhecer-se de novo, o restituir-se ao chão. Dali, no
rumo da Timbó, a pé — boa-tarde, açaizeiras de bandeirinha
vermelha no portão — bebia comia Pará lambendo o dedo. Manga,
tacacá, misturou sem fazer mal. Escondia com isso seus vinagres, a
vergonha, era ou não era? de ter voltado. Desertando? indagou Magá.
Voltava por esmorecido ou por uma razão obscura, esta de caminhar,
de novo, nas tuas travessas, Belém.
Na Timbó debaixo daquela semelhante chuva — ah, que se
lavava! Lá em riba a palhocinha da D. Dudu, a janelita olho de
menina, o cajueiro curumim, o poço e a toiça do vindicá em volta, a
mamona, a papoula; sobre o banheiro descoberto, mais forrado de
planta que das tábuas velhas, pendia o ramo do pião. Tremendo na
chuva a folha da bananeira entra pela janela de lado, assim todo o
pobrinho paraíso. D. Dudu nem espantou-se, levantou da máquina,
mais chupada de rosto, o duro beiço arroxeado:
— Queres café?
Foi lá fora, atrás da palhoça, acendeu a trempe rente da parede.
— Entra aí dentro no quarto, tira essa tua roupa que eu enxugo
no ferro. Te mete na calça velha que tem aí na corda. Ai no baú a
rede, arma. Ou me dá que eu armo, tens mão cega no armar rede.
Promessa a tua de apanhar chuva? Por demais sujo que só na chuva?
[13] A chuva suspendia com aquele arco-íris encomendado para
ele. Aqui dentro, na velha moldura se apagando, uma Nossa Senhora
das mais pobres. Roçando a cabeça nas palhas do teto, já bem
velhinho um Santo Antônio. Por causa das goteiras, tapava o rosto
com o velho avental de sua dona, ora, ora, meu Santo Antônio. Em
todo caso benzeu-se. Juntas, defronte da máquina, as três cadeiras de
palhinha, muito irmãs, tão idosas quanto felizes de servir. Sim, mas ia
ficar ali para semente? Gastar o assento das três velhinhas, defronte
da máquina onde a D. Dudu, horas e horas, tirava o pirão? Do outro
lado o capinzal, a vacaria, um e outro urro a lembrar o gado do chalé,
a vaca Merência. No mais, aqueles desassossegados açaizeiros cacheando ao vento na chuva. Via-se de paletó recerzido pela
costureira, o salto comido tanto andar a pé, vexame de passar pela
janela da moça, a moça ali na janela com um ar de fêmea já habitada,
peitos de amamentar o mundo. Uma tarde, viu-a sair da vacaria com
um jarro cheio, de seus ubres? E aqui este-um, seco e só, já recomeça
a marcha pela cidade; vou repetir o Eutanázio, não em busca de Irene
mas nesta: Escritório, loja, oficina, a vaga de amanuense do
cemitério, onde ensine a cartilha (não mais a D. Nivalda), Limpeza
Pública, condutor de bonde, a bordo, bicheiro, vigia de depósito, tem
lugar nesse curtume? sento praça? rendo-me ao chalé? recebo passe
na União Espírita? me meto no contrabando com a D. Brasiliana, me
pego com o batuque da Pedreira? que prometo à Virgem Nazaré? vou
na cartomante, tomo os banhos que desapanemam, consulto a Magá,
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mando ler a mão, que lhe diz a cigana, vou no Dr. Raiz? Sigo pro
Guamá? Aonde andam as vozes daquela tarde do Largo da Pólvora, a
Palácio! a Palácio!? Aí me agarro no pé, cavado pelos beijos, do
velho São Pedro da Igreja de Santana? E nada e nada, escova urubu,
escova, na mesma pedra, na mesma pedra, escova, escova urubu, na
mesma pedra. Voltava no pexímetro, desfeito em suor e poeira, para
filar o pirão de D. Dudu. Logo saía mas pra onde? se desabafar, com
quem, com as torres e os telhados da Cidade Velha? Toda vez, uma e
outra noite, que subia pela corda o sótão da Moura de Contrabando,
descia jurando nunca mais subir. Largar-se até o mais longe e mais
longe a mãe, chalé, Ginásio, juventude, dezenove pífias primaveras.
Se deu conta se viu defronte da Fábrica de Solas de Borracha, [14]
encostou-se num portão sob a neblina da chuva e foi que viu,
arrepiou-se, arrepiou-se ao aceno da velha indesejada. Fechou os
olhos, sua no calafrio, não enxota a miragem. O sol bebeu a neblina, e
o aceno, lá. Era. Lhe acenava, de graça, no convite de costume, a
única, naqueles meses, a lhe dar o que nenhum emprego dava. Bem
em frente da Fábrica, só dizer sem e lá se ia o sem-trabalho para
aquela cama de sete palmos toda forrada de minhoca. Lhe acenava:
pulo no poço, veneno pra rato, a lâmina... Nisto a Fábrica apitou e
dela irrompem oitenta moças fedendo a borracha, a enxofre, a
fumaça, a suor ou lua, ávidas do meio-dia, dos papagaios que os
meninos enpinam, da sombra das mangueiras, da freguesa que fincou
no portão da estância a bandeirinha de açaí, ei que as moças fazem da
rua um arraial, no meio delas a de peitos universais. Então, solitário
escova-urubu? Te ensinam ou não a morder a pedra sem quebrar o
dente? Toda faca, nessa pedra, acha o seu gume, palerma. Aqui fora,
desertor, tens a neblina da chuva, a ponta da corda que te lança a
Moura, aquela D. Dudu virando a máquina, a aleijadinha na porta do
beliche te atirando o travesseiro, o teu calcanhar solto, te sacode, aqui
fora, que lá dentro oitenta moças morrem para viver. A noite, tinham
ainda fôlego para os namorados. Da banca da seção caíam nos braços
dos rapazes, daquela canseira para esta, curtidas pelo batente e pelo
chamego. À noite, no serão, a Fábrica mastigava as moças,
murchando aqueles seios que a dona sabia hastear, aqui fora, nas
tardes de domingo, naquela tarde suada, de tacacá e priprioca, em que
se levantou o mastro da Tia Romualda. Oitenta borracheiras perdiam
nome e voz, ali na goela. Nem pela chaminé os seus suspiros. Que
apitou, eivém o bando, aqueles rostos, risadas e passos sobre Alfredo,
agora, esta manhã, ao pé da vala. O tal aceno escorreu sarjeta adentro,
e a possível namorada, fedendo a enxofre e borracha, no rumo da
amassadeira de açaí, lhe dava bom-dia.
Então se viu, uma noite, Porto do Sal, no toldo da canoa do
Arienga, lá se foi, duas noites ao som da requinta, cruza o igarapé
com aqueles surucucus querendo pular no casco, os quiriós vaiavam
da beirada, no penacho da sumaumeira pendia a lua. Por tudo umas
águas umas folhagens faziam dele um peixe, um pássaro um bom
xerimbabo, chega no sítio onde se faz farinha, a flor trombeta [15]
subia como um anjo, vozes que era ver as árvores falando, daquele
olho-d’água se tirava a mandioca, as mulheres traziam os aturás em
riba das costas e entravam na casa do forno, tipitis esticados
espremiam a massa crua, redes do terreiro faziam que faziam as
tardes mais longas, o velho sentado no tupé tirava tala de guarumã, iase cortar cansanção para forrar os paneiros que o velho tecia, cipós
enroscavam-se na nuvem, quando se tira cipó dos paus mais altos se
diz: me dê um fio do seu cabelo, mea avó. Sapos e borboletas muito
de dentro de casa, sobre o fogão pendiam cabeças de pacas,
amanhecia como se nevasse tanto o sereno, se caçava, os cachorros
traziam no olho o mistério das sumutumas e onde o caititu mora e
onde passam os veados. Nhá Fé ensinava: cachorro que pegou
panema só desempanema se o dono dele der um prato de sua caça pra
gata prenha. Passa-se três vezes o prato pela perna esquerda da bicha;
o caçador, este então contava:
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Na mira do meu tiro aquela paca.
A paca perdi de vista
Então me astrevi eu disse:
Deus me deu Deus me tirou
Agora meta no seu cu
Nisto que eu disse pois a paca não voltou?
A Deus me rojei no chão.
As mulheres corriam com o demo, o demo lá fora par de tempo,
as guaribas lá no mais longe rezando por ele, sol entrando no forno
sinal que anoitece, noite no copiar. Lamparina treme no meio da mesa
baixa onde se emborcou um alguidar e se amontoam feixes de taniça.
Nhá Fé, na cadeira da mesa, amarelosa de febre e das bichas, alinhava
a saia de brim, mascando tabaco. D. Laurinda. (empalhou farinha toda
a tarde) desenrola o cabelo. Outra velha enche o cachimbo, O marido
da Nhá Fé, a mão corubenta, ponteia.
— Mas ora credo! Pare dessa sua viola geme-geme, seu por
demais entristecido. Que nem já tipiti, só que em vez do tucupi,
escorrendo a mágoa.
— Ande, venha daí, Nhá Fé, nos estorie uma. Aquela-uma.
Nhá Fé os olhos na cumeeira onde pendurou a memória:
[16] — Rasparam tudo que foi de rescordância de dentro da
mea cabeça, sa gente. Noutro da, sim? Memória na cumeeira, rato
comeu. Me deixem esperar meu sono mascando meu tabaco.
— Mas só aquela-uma, Nhá Fé, a pedido. O rato acaba de lhe
trazer a memória de volta. Sim?
— Foi nas ocasiões mais antigas, isso. A estoriação na ponta da
língua, eu tinha um alqueire, delas agora é só o paneiro sem fundo.
— Puxe que num instante vem.
— Quem, aquela menina?
Escoou-se um silêncio.
— Surucucurana cantando, sa gente. Que aviso é?
— Deixe a cobra, é a distração dela. Ela que não vai nos contar
a estória, é a senhora.
— Enfiei o fio na agulha. Vou contar o que a surucucurana está
me dizendo de lá dos paus, oiçam. Tu acompanha com essa tua viola,
meu velho?
— Não fosse lhe faltar com o respeito, dizia que a senhora...
— Confianças, menina! Confianças...! ver se desatrapalho a
memória. Da Maria Sabida?
A viola cessou.
— Maria Sabida...
Nhá Fé mascou seu tabaco como se tirasse dele a visão de
Maria Sabida: Tinha duas irmãs. Roça, o pai delas fazia e apanhava
camarão na praia. (Ó aquela-menina... Bebendo água com a lamparina
acesa na mão?) Um dia, o pai de Maria Sabida resolve ir para a mata
real cortar madeira.
— Deixo vocês três aqui até que eu volte. Olhem olhem o que
vão fazer. Tu, Maria Sabida, sendo a mais velha, põe cobro nas tuas
irmãs. Aqui estão três manjericões, um pra cada. Aquela que deixar
murchar o manjericão, perde a fala. (Eh gente, chovendo. É recado da
lua: de com pouco estou saindo. Seu Pernambuco me disse ontem que
no sertão dos diamantes, quando chove, é só virar o cinturão do
avesso a chuva passa.)
E sim: Maria Sabida tanto que aconselhava as irmãs, quem
disse? Os dois manjericões murchando, os dois [17] man|jericões
murchando. Tanto foi, morreram. (Boa noite, mestre Farausto, que é
que vem trazendo nesse frasco? A pororoca?)
Morreram. O manjericão da Maria Sabida, não. Igual àquele
meu que aí um tempo eu tive... Que tanta bebeção d’água essa,
aquela-menina, mea estória está salgada? Só no pote, só no pote, tua
sede é mais sono. Ou saudade do Avelar? Não bate assim no pote por
fora que senão acorda a mãe-d’água. Estou é te dando sono, te deita,
lugar de sono é rede. Onde eu estava? Surucucurana, me sopra aqui
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no ouvido, onde? Ah, sim. E foi que lá um dia pois não aparece o
príncipe?
Coberto de ouro. (Dormir, meu velho, põe no saco a tua viola.)
Coberto de ouro. Por onde passasse, já se sabia, as cunhatãs que
te contassem. Com as duas irmãs da Maria Sabida assim deu-se. Foi
arriando a asa em volta das duas, brincou com uma, brincou com a
outra, adeus donzelas. Que foi, aquelas-meninas, botando esse teu
zolhão em cima de mim vendo o príncipe? E sim: as duas, não sendo
mais, não se conformavam que Maria Sabida guardasse a jóia dela.
Maria Sabida, com o seu manjericão, faz de conta que não está aí
perto dela nem a sombra do príncipe. O manjericão dela? Pena que
vocês aqui deste nosso triste copiar não vissem. As irmãs procuraram
toda arte de atrair a mais velha para o príncipe. Por fim se fizeram de
doentes, se fingiam mal de morte, ataque em cima de ataque na
esteira, ai, Maria! te condói, vê um remédio na casa do príncipe,
nossa irmãzinha!
Maria Sabida, “por isso, não”, foi.
O príncipe toca a soprar a música dele no ouvido de Maria
Sabida. Ai que não se cansava. Cada palavra linda, cada queixa
sentida. Maria Sabida, entrava por este ouvido, saía pelo outro. Então
os dias passavam, as duas irmãs se desesperavam, o príncipe de goela
seca.
— Maria Sabida, me dá desse teu beijo um gole.
— Lhe dar um gole do meu beijo não me atrevo. O senhor me
dá, mas só em riba dum véu. Me cubra este meu rosto com um véu, só
então sim. Me beije em riba do véu.
[18] O príncipe assim fez, beijou em riba do véu. (Não disse?
Que era só passar a chuva, a lua?) E sim: o príncipe meio cismou que
fosse arteirice dela, saiu-se:
— Me deixa ao menos que eu deite a cabeça na tua coxa, Maria
Sabida. (Ao menos por cima do vestido, creio que ele também falou.)
Por isso não, lhe dou licença, o que ela respondeu. O príncipe,
agora sim! mas cansado de tantos dias foi foi pegando num sono, a
cabeça na coxa de Maria Sabida. (Gente, me deixem ao menos molhar
a goela enquanto o príncipe está roncando, sim?)
E sim: devagarinho, Maria Sabida foi, tirou a coxa, botou a
cabeça do adormecido num chão de folhas. No que ele se acordou:
— Maria Sabida, Maria Sabida!
Corria o príncipe pelo mato atrás dela, deixa que eu te dê meu
beijo sem ser em cima do véu! Vem cá, Maria Sabida!
Aí Maria Sabida parou, fez que deixou, quando o príncipe vai
estalar o beijo na face dela, Maria espreme bem nos olhos dele um
sumo. Sumo este que o príncipe se viu foi longe, só abriu a vista no
fundo do lago, montado no cavalo-marinho, o sumo roxo verde verde
roxo lhe escorrendo pelo corpo.
— Devera, Nhá Fé? Dá sua palavra?
— Axi, quem fala! Tu que me andaste contando outro dia ao pé
do forno de farinha que cinqüenta porco do mato entraram no buraco
do pau, as perninhas dos bichos varando pelos buraquinhos do pau,
assim os bichos carregavam o pau andando, todos com as perninhas
de fora até chegarem em casa, quem que fala...
— Não foi a senhora, Nhá Fé? Me parecendo que foi, sim, a
senhora.
— Não dê cavaco, Nhã Fé. Deixar a estória pela metade, não
presta.
E sim: Ora vai que as duas irmãs pois não apareceram de filho?
Aí ah que se queixavam, pediam a morte, os dois curumins mijando
em riba da palha. Maria Sabida, não teve conversa, conversa rouba
tempo, se virou numa velha, cambeta, põe os gitinhos dentro do
balaio, cobriu de flores, rumo da casa do príncipe.
[19] — Meu príncipe, ora vós me dê um agasalho só por esta
noite, um zinho de-comer, sim?
— Criado, dá comida pra essa velha.
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A velha se regalou.
— Conte da comida que ela comeu, Nhá Fé. Que foi?
— Aquieta aí tua gulodice, esfomeada. É mais fome do Avelar,
não?
A velha se regalou. No que se viu só, entra na alcova do
príncipe, deixa debaixo do leito de ouro e cortinado o balaio com os
dois sobrinhos, pois me esqueci de vos dizer que eram machos. Maria
Sabida saiu na carreira largando os disfarces de velha pelo caminho,
O príncipe, vindo da caça, escuta aquele choramingo na alcova.
— Tocando, meu velho, de novo? Mágoa de mim que tu
espreme dessa tua viola? Ó Maria Sabida! falou o principe. Sempre
tu. Deixa teu pai chegar.
Passado um tempo, o pai chega da mata, bem do satisfeito,
madeira deu, embrulhado no bolso um bom boró.
— Os manjericões?
Ah aí que as duas se pegaram que se pegaram com a Maria
Sabida.
— Mana, manazinha, nos dá o teu. De conta que o teu é os
nossos três que assim se juntaram, sim?
Maria Sabida entretia o pai mas o pai:
— Os manjericões?
— Nosso pai!
Maria Sabida tanto fez tanto fez que o pai a, língua não
arrancou das duas que as duas bem mereciam que arrancasse. Ora vai,
o príncipe voltou:
— Maria Sabida, vou te pedir a mão. Mas na noite do
casamento, te degolo, aceitas?
— Se aceito.
O príncipe pede a mão da moça. O pai dela:
— Se o senhor acha mea filha suficiente...
Os enxovais? O primeiro, Maria Sabida mandou de volta. O
segundo, Maria Sabida também não. O terceiro, Maria Sabida
espichando o beiço:
— Este até que arremedeia.
[20] Moradia, que fosse uma bem grande. A primeira não
servia. Não se agradou da segunda. A terceira arremediava. Chega o
dia do casamento. Deixe que Maria Sabida teve cabeça de fazer uma
boneca igualzona a ela, do tamanho mesmo dela. Na noite do
casamento, deita a boneca no leito das núpcias com a cabeça presa ao
fio que a noiva, debaixo do soalho, bem debaixo do leito, fica segurando.
O príncipe entra na alcova: deitada, toda de branco, a cobiçada
Maria. E o príncipe foi falando de coisas naturais, Maria, te lembra
disso, Maria, te lembra daquilo... Dela, Maria Sabida, só a cabeça se
mexia. Até que o príncipe num só golpe degola a esposa. Lambe a
faca, oh como foi! Pra que que fiz semelhante horroridade! Se o
sangue dela é um puro mel, doce toda é a sua pessoa. Maria Sabida,
que ouvia tudo bem debaixo do soalho, corre para a casa do pai,
dançando em roda do manjericão dela. O príncipe no que se dá conta
foi no rastro, foi atrás:
— Maria...
— Não, meu príncipe. Maria Sabida já morreu para o senhor, O
senhor degolou a sua mulher. Viva eu aqui e vós lá como puder.
O príncipe se fez um errante, flechando o ar à toa à toa, olhando
os ocos de pau na fiúza de encontrar a Maria Sabida. Um dia passou
por um olho-d’água, ficou a vida inteira olhando o olho-d’água. (Te
cala, Fé, gruda a boca, que estou nestas noites estoriando demais. Tira
esse teu sentimento da viola, meu velho, meu tipiti chorão, meu velho
cochiloso. Ai o senhor aquele-moço, nos conte unia da cidade, senão
paga prenda, o senhor que é de lá e tem o falar de quem decorou a
tabuada. Ai de mim que nunca fui lá na cidade, a vida inteira me
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preparando para passar o Círio, chega ano passa ano, cadê, tu foste? O
olho-d’água não me larga. Puxe aí um assunto da cidade, aquelemoço, o senhor que é tão de lá, sim? O padre-nosso, agora, é o senhor
que reza.
Aquele caçador, um do sertão de Pernambuco, ali errante, tirava
décimas, rima na ponta da língua:
Teus olhos me cativou
Tuas feições me prendeu
Tu sois minha e sou teu.
E o mote:
[21] Qual de nós amor mais tem
E apurando:
Empreguei toda a fineza
Em ti, meu amor querido
Não te tiro do sentido
Décimas que se perdiam entre as vozes de caça a fazição de
farinha, debulha do milho, batição de arroz, aquela boca de susto
espalhando: o sírio, aquele, o vendedor de tabaco? racharam a
machado no balcedo; a onça miava: olhem os matadores aí atrás do
manival, tire dessa morte uma décima, seu Pernambuco. Certo que o
senhor pegou um veado pela perna? Qual de nós amor mais tem.
Marido da Nhá Fé, se acorde, ponteie a sua mágoa, sim? Naquela
tarde, seu Pernambuco não voltou, visto na proa de uma freteira de
lenha enrolando a pele de jibóia, nas costas o paneiro de urucu. Noite.
Janta? Só mapará salgado ou mingau de arroz com coco. Me dê de
seu caribé, Nhá Laurinda, pra tirar fraquezas do meu peito. Arma a
rede por entre os paneiros de farinha, a noite carrega o mato pra
dentro de casa, o mato cobrindo nosso espanto, nosso medo, o sono, o
recender da crueira e do tucupi, faz que dorme que a onça eivém:
arranhava nossa rede, nos lambia, o pixé do bicho pelos nossos
sovacos e outras partes cabeludas, pelos nossos sonhos. Cobra que se
ouvia pela madrugada! A moça escolhe o rumo do bacaba — comadre
cebola-brava, se espalhe pelo chão mas não me dê coceira... — vamos
atrás daquela que mexia farinha no tacho do forno, trepada no cepo,
brabo de feição e bela formosura quando trabalhava. Atravessaram o
igarapé em cima de uns paus visguentos, bonita esta água, fala o
Alfredo. Hum, case com ela, responde a moça. a modo, como, não se
sabia, cuspiu na água.
— Escute, aquela-menina.
— Escute é de canua. Assim pelo bacabal, a sombra punha uns
macios do rosto dela tapuio, um barro esverdeado, um suor pela
cantareira, um limo no cabelo, tudo nela de repente canibal, boca,
peito, silêncio. Alfredo atirava nela uma cebola-brava, um caroço de
bacaba, a tala de arumã. Vá-se embora, perapeuá, que ela disse, o que
só dizia, a voz acre, o pé espalhando folha, as cebolas a ponto de
virarem flor, e algum maruim, se embora, perapeuá. Um peixe comprido, perapeuá, o peixe-perapeuá com a folha de imbaúba [22]
assustava maruim, a mexedeira de forno já lá adiante; precisou correr
atrás dela, puxa conversa, quem disse, então brincou: Pipira checa
mas não tira. Ela aí mexeu a boca e ele: destrave a língua, disse ele.
Xero, respondeu de goela limpa, era da mesma opinião, xero. Pipira
choca mas não tira. Xero. Logo contrariou-se, guardou a boca, de
novo a comegente. Quando vê, a braba esconde-se no folhame, bem
fazendo pixixi e ele escutando e nisto deu uma chuva ficaram debaixo
da chuva, lhe cubra disse ele, “assim, sim” gritou o japiim, aquele
enxoval de chuva nas palmeiras; quando parou, o sol batia palmas.
Noutra manhã, trepada no cepo, empunhando o rodo, mexia a farinha
no forno, jogava a farinha no ar, bela quando trabalhava; pula o rapaz
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na proa, desce por este rio, o Barcarena, carrega um santo de festa que
chegou no barco embandeirado, salva de foguetes, siris pulavam rente
a estiva para ver o santo, e espia a reunião da Irmandade, uns velhões
colarinhos e gravata muito empinados que se ralham com palavras de
outro tempo, tiradas das malocas mortas, do baú velho, das arcas
portuguesas, assim se falam meio guturais, morubixauas cururus
anciões daquela Irmandade, mas protetores do santo que protegidos,
logo depois entravam no capado gordo, era uma vez na mão deles a
frasqueira de São Francisco de Jararaca, pávulos marcadores de
quadrilha, puxando a dança já nas barbas do sol saindo, a requinta
pincando os silêncios do sitio, os cacauzeiros ali mal dormidos, lá nos
fundos o fogareiro queimava um breu de boa sorte. Sonhou com os
potes de ouro do Zé Caseiro enterrados — onde? — na Vila do Conde
— aqui escrito na porta: nesta casa vadio não entra, e logo embaixo:
xero, assinado o Filho. Neste chão sangrou cabano. Dançou, no copiar
sobre a maré cheia, com aquela Não Sei Sua Graça toda uma tarde,
nunca viu moça, naquela chita só, tão bem vestida tão bem calçada
com os pés no chão, só a chitinha no corpo, mais pele dela que pano
— a rabeca então nos atiçava — o santo coberto com a toalha de
renda fingindo nada ver, dona que foi só aquela tarde sumiu, crer que
era mesmo encantada na folha da canarana, uma e outra vez põe a
chita, e vem à festa, sua graça não diz, seu andar não soa, dos seus pés
fica um veludo pelos caminhos, não se deixa ir nesse veludo, o
canaranazal é tão longe todo tempo, todo o tempo. Sim que antes de
sumir deixou um coco verde na mão dele.
[23] Orvalho e cheiros da madrugada, praia de camarão e
gurijuba. Os matapis se perfilavam na maré. Praia tão que não se
esperava, saltou nu nela areia, corre se deita, pode morrer um pouco,
a vida inteira olhando o olho-d’água, me diz tua graça, tua graça,
peraueuá, me dá teu manjericão, Maria Sabida, me deixe comer suas
estórias, Nhá Fé. Lá defronte as bocas do rio se azulam, a tarde
desceu, o sol um jurumum cortado ao meio boiando entre as escamas
da baía e tudo se acaba num caudaloso sono de onde só volta porque
ao pé da rede, no prato de barro, os camarões assados cheiram tanto.
E volta com um paneirinho de tapioca para a D. Dudu. O búzio,
guardando a estória da Maria Sabida, mandou para a Roberta; de
novo o escova-urubu, na mesma pedra meses, até que encontra, na
Casa Batista, recém-nomeado, o Dr. Intendente.
Soa o comando, atrás, diante... O barranco escalda. Aqui
desembarco. O gaiola da firma Dacier segue sua linha, engolido,
vomitado por esses paranás, furos, bocainas. Aqui desembarco.
Pena não seguir também, rio arriba, o rastro do tio Sebastião e
Dolores, subindo conforme sempre deu na cabeça do tio, subindo a
serra da Juruti até o cimo, no lago, mais lá em cima, o lago Jacundá,
onde reina o peixe, aquele tanto falado, qual peixe seja, seu tamanho,
feitio, nome, macho ou fêmea, nunca ninguém desencanta. Sabido é
só o poder que o peixe tem. Quem ali se atreve a ir, no que mete o
remo no lago perde a sombra que o peixe leva para o poço. A sombra
que a todo vivente acompanha, dia e noite, pisando este chão ou
debaixo dele. O tio, sabedor do peixe, temperou a goela:
— Mas eu? Este? Este que sou eu? Sebastião não me chamo se
não vou lá, não tiro a cisma. Eu? Pois vou, monto a serra, meto o meu
remo no Jacundá, ver qual dos dois perde a sombra. Rá! Suspendo
aquele mal-assombrado é no bico do arpão tirando a dúvida se é
parapitinga, pirarucu, quem sabe tambaqui senão mesmo um jacundá.
Ou de peixe só é a falência? Moqueio no meu moquém aquele
encantado.
Já no cocuruto da serra de Juriti, remo no lago, o tio arpoa o
peixe ou o peixe lhe come a sombra? Mais um sem-sombra vagando
pela serra, será? Com mais: Dolores feita aquela triste inhambu
depenada?
[24] E este vaporzinho até lá não me leva, aqui, por multo
favor, me deixa, nesta Secretaria. Em vez de arpar o peixe de
Jacundá, cobrozinho nesse Trapiche o imposto da traíra seca. Sina do
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pai, será também do filho? E lá na serra, arriscando sombra e mulher,
o bate-lonjura-e-encanto, o tio.
E aqui desce.
Chegar de viagem é não desembarcar inteiro. Que é que de nós
fica a bordo, não sabemos. Viajar acostuma, estirão emenda estirão
neste vaporzinho a lenha, a domicílio, olha que dezesseis horas de
mergulho nas ilhas, lenha neste trapiche, mas um milheiro naquele,
prancheia no Liberato, apanha a banda da paca, descarrega o sal, a
caixa de quinino, o quadro do Sagrado Coração de Jesus, larga o
taciturno passageiro no verdoengo afluente que, vá ver, nasceu no
mijo dos sapos e da gordura dos botos. Aquele maço de fósforo, a
libra de cera, o envelope azul do aviador de Belém cortando o crédito,
deixam muito mais velhinho o velho Trapiche. Uns ali, nossos
semelhantes, escorados no esteio ou embaixo nas montarias, olham
com suado torpor o gaiola que se afasta. As mulheres, nos tapiris,
sabem que o navio não lhes trouxe uma bolacha sequer, um grampo,
um pedaço de sanefa de bordo para uma saia. Fica pelos tauiris
pendurados no beiço grosso da lama, ali vizinhos do navio, o cheiro
daquela carne assando lá a bordo. Navio tão que se espera tão que se
deseja, não, não trouxe nada para os tapiris, e assim tão sovina mais
boiúna parece, nas visões do mariscador e do remeiro. O estirão
abocanha os tapiris. Varas fincadas no baixo estremeciam na
correnteza, passou Mupéua, um canoal sepultado. Olha! em cima do
miritizeiro caído na meia-maré a tracajá tirando urna vista da gente.
Anus em bando levavam nos seus vôos negros e brancura das
portuguesas. Joga o cabo para o trapiche, é Boa Esperança, e esse
tambor ao pé da balança de borracha? Tambor do Santo Antônio da
ilha da Mucura. O “não”, curto, surdo, daquela cabocla encostada no
esteio, atando o cabelo, “não”, foi só, recolhia a boca, o filho a seu pé
se assossegou. O urutaí gritou pela desolação da várzea, aceso um
facho no bico da ilha. As mulheres espiam pela frincha da palha o
gaiola que volta para o rio, aquelezão. Estezinho aqui na ilha murchou
no soturno, recolhido pelos bichos. E a chita. e a alfacinha e o lamê,
hein, irmãs? Nem o pano das [25] sanefas, não? Panão aquela
bandeira no mastro, dava uma blusa. Na popa, proa, amurada ou
salão, as portuguesas, que vestidos! Nos barrancos, trapiches, paranás,
caboclos recebem os cabos do gaiola, carregam a prancha, e esperam.
Da cor d’água, não se sabe se tristes, ali derreados; lá está o acauã,
chorando na boca da noite. Os caboclos nem se mexem, riem
soturnamente. Ficou um na cabeça do trapiche, de pé, um gesto fez,
que foi? Entra e sai o vaporzinho, rios se abriam ao seu apito, só para
ele — por exemplo, um muito escumoso, com aquele miritizal todo
por dentro do repentino arco-íris — corre a prancha à noite num
trapiche que ardia ainda de sol, uma vila no escuro, no escuro o sino
batendo, os igapós atrás, as cobras acordadas. “Seu escrivão, o senhor
tem pedra lispe? Me ceda um cuí da sua, acabar com este meu cavalo,
já não posso, seu escrivão, é agrado daquela que o senhor deu
passagem, aquela tetéia, me deixou este raminho de flor, esta
recordância... Mas me arranje, sim? a. Pedra lispe.” O sino batia no
escuro. Alfredo espiou pela porta da casa do Trapiche: trazido de uma
cabeceira, já de fígado tirado pelo guarda, em cima de velhas tábuas
apoiadas no baú e num caixote de sabão, o defunto. Três velhas, de
cócoras, feitas de barro, à luz das velas, com um Cristo sem um braço,
meio envergonhado na sombra. Mas na sombra dois homens jogavam
cartas. E eivém de volta o vaporzinho, volta do ilharal como se
bolasse do fundo e pega de novo o Largo, seu apito é um tanto rouco,
suando suas milhas, escapa daquele entrançado, feito um cachorro nadando.
Este tombadilho ganha um ar de nossa varanda, aqui a aventura
acostuma-se a armar a rede de onde avista o mundo lá no mais sem
retorno, ali ao pé do abacateiro e da febre, onde foi enterrada a
caveira de burro. O Trapiche se espicha, saindo da várzea, que
barranco só é aquela bandeja com a vila, para dar na vista, servir ao
Fortim. O gaiola apita. Na bandeja este e aquele telhado entre cada
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mangueira! cada miritizeiro! e ali embaixo na praia a cunhá lava seu
trapo: o Amazonas, tão nas mãos dela, lhe lambe o pé, como um
arroio, O Trapiche Municipal, bastante idade, suas defesas aluídas, a
modo que roga ao gaiola: manobreie, manobreie fino, camarado.
Encoste a jeito, maneiro, que senão vou água abaixo, tempos que
apodreço.
[26] Só eu a descer nesse porto com a fatal mala e esta outra
aqui por dentro (sempre carregamos), aqui no nosso porão. Encosta
não encosta, a atração puxa pelas artes do comando, sorte é roçar nas
defesas, joga o cabo, tão-só para desembarcar o Secretário e dar
tempo ao escrivão de ir ao Correio e ao Telégrafo. Lá está de mão na
testa o ruivo e feião Intendente, dando a honra de receber-me, todo de
cáqui, todo recém-nomeado. Abriu o guarda-sol, a mandíbula saltada,
sempre mexendo os pés. E aqui desembarca quem nunca redigiu um
ofício, traçou um balancete, lavrou uma ata, abriu uma lei, SecretárioTesoureiro. Ou era Secretário de nascença, sangue do pai? Caminho
que a mãe sonhou não é, não, nem aqui termina a pressa de esquecer
o Ginásio, e Roberta e a Sem Nome e tudo que ficou além, muito
além daqueles quinze mil-réis no Rio de Janeiro.
No beliche o leque esquecido, o papel de chocolate, a casca da
maçã. Duas moças portuguesas. A esta hora, no Pucuruí, tomam seu
banho, tão alvas, no banheiro fechado, que aqui de fora se sente o
alvor. Ainda a bordo o movimento delas, o falar português, dois
rostos de azulejo. De Belém ao Pucuruí tomaram conta, não por
soberania ou fogo, mais por saberem fiar fino a convivência, fosse
manhã, fosse noite, a todo momento prontas para o baile, missa,
passeio, procissão, quem sabe não dormiam paramentadas. E o haver
de leques que exibiam? Se não se engana. doze. Dos doze este,
esquecido, azul-laranja de varetas douradas. Elas o cumprimentavam
com todo o curso das boas maneiras. Alfredo, desta vez na mesa do
comandante — terceira aquela, do Lóide, sinistra gororoba, valei-me,
travesseiro da aleijadinha! — mesmo assim com meia-cerimônia se
esquivava, grau dez no negar o garfo, em tirar a casquinha do queijo,
no servir do guardanapo, muito ausente diante das duas ali face a
face, uma dizia que aprendia piano, outra inglês e andava de bicicleta
e nadava na piscina e viajou no Booth Line e comprou rendas na
Madeira e caiu em prantos vendo o peixinho morto no vidro d’água.
“Era o meu, aquele do chalé” — pensou Alfredo. Sorriam partindo a
maçã, o azul de seus olhos lembrava aquela garrafa antiga de fundo
partido meio enterrada debaixo do tanque, um azul para sempre do
menino e das suas primeiras indagações. Outras horas, Alfredo
teimava enxergar nelas a barra da várzea lá das [27] margens
atoladas, o estirão à noite se fechava como se o vaporzinho viajasse,
com efeito, por dentro da cobra, a grande. Mal saía da mesa, sumia-se
que sumia-se, fingindo ler. Então uma, de leque se abanando, lhe veio
pelas costas:
— Mas assim que tanto lê? As letras somem se não ler agora?
Trancou o espanto e o livro, veio a outra, as duas exalavam
brancura como se o empoassem. “Olhe! Olhe!” — gritavam correndo
para a amurada. “Um bando!”
— Maracanã — disse ele, e não era, não sabia, disse para se dar
uma ordem e sustentar os olhos azuis, agora quatro, que o fitavam.
“Vamos então conversar lá na proa. Vamos até Manaus. O medo que
nos dá é da água, das febres. E pode uma serpente...”
Serpente. Soava remota, improvável. Ou astuciosa? Partiam a
maçã, embalavam-se nas redes aqui fora, recostavam-se no balaústre.
Palpitavam a serpente? Água, febre, serpente. Temia, sim, pelos dois
rostos de tão recém-maciez e ai! neles de repente moroçoca morde.
Aqui Alfredo já se fazia Peri diante das duas, palmeira escolhida para
salvá-las da enchente, dos miasmas, da vila no escuro com o sino
batendo e o defunto no Trapiche pedindo lhe devolvessem o fígado.
Gêmeas pareciam, juntas na mesma embalagem, como se viessem de
conserva de Portugal. Mas a qualquer instante crestadas, esvaídas de
caruara terçã e pereba. Mimosas de leque e pucarina, este aningal vos
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devora, só vos deixa o osso limpo. Essa brancura põe um alumeio no
rio, que chama surucucu. Corriam pelo navio muito colegiais, maçã
na mão, o rapaz este, brando de modos mas com as suas piranhas por
dentro. A primeira moça inventou de ir no escaler e tão entoado
cantarolou a seu modo português que o escaler ia voar? O rosto cobria
de alvura os mangues do estirão. Subiu a segunda, as duas no escaler,
os três ali de cima atados pela serpente, à espera que pulasse dum oco
de pau lá da várzea nem que fosse um macaco-da-noite ou, Deus te
livre!, a inhambu-anhanga, aquele bicho. Numa altura, o vapor parou
para pegar lenha. “Vamos achar aí atrás do trapiche um sapo canuaru,
um pretinho de olho vermelho, um que dá uma resina e seu cantar
retumba? Quem acha um, dá-que-dá-sorte, vamos?” Assim Alfredo
convidou, de má intenção limpo. As moças de mangas compridas,
suas golas de renda, seus leques sem sossego, num instante se
meteram na. rede, [28] bebendo mineral morna. De só pisar naquele
chão encardam, se poluíam? Saltou, atrás do sapo, caçador de encantamentos, atrás de canuaru, quem que acha um, feliz fica. Passou
por uns naus de jaranduba, agachou-se pelo cipoal, só ouvia naquele
quiriri o sapo que reza, reza por todos nós e nossas embiaras, o
cuitaca. Rezava, onde, não se sabia. Deu meia-volta mais sozinho,
sem ouvir um japiim tudo de boca fechada nem mesmo um peixe, o
próprio navio nem ressonava, a lenha embarcava em surdina, só o
cuitaca debulhando o seu terço. As duas na popa embalavam-se de
leque no rosto, o cuitaca lá pelo não sei por onde, pedindo que
pedindo pelo mundo. Quando foi, as duas desembarcavam naquele
barracão largo escancarado de janelas, trapiche de madeira e lenha,
boca do Pucuruí, defronte-defronte da ponta da ilha do Guarupai. Não
tinham dito que iam a Manaus? Filhas do Vice-Rei desembarcavam
deste bergantim. Saltavam de branco, luís quinze, leques, sombrinha,
bolsa, figurinos, os empregados levando as redes, o piano, o jogo de
gamão, a redoma, o aparelho de chá, os cadernos de inglês, os
cadernos de música, o filtro, e de longe, mal embrulhados, levados
com cautela, os peniquinhos, dois. O pai conteria a bagagem.
Correram para dentro protegidas pelo guarda-sol, sol ardia no
tabuame, nas bolas de sarnambi. Pelas portas uns fregueses de igarapé
e ilha tão que espiavam o gaiola e o movimento daquela bagagem, ali
de remo na mão e débito na casa. Sentada na baúta a mãe enganava o
emperreado dando-lhe o peito seco, e nem a propósito secava no
tendal a pele de jibóia. Das duas nem mais sinal, um adeus, uma
aragem de seus leques, desfeitas lá por dentro, já metidas na redoma,
uma aprende inglês, outra piano, ou estreando os peniquinhos, dois.
Aqui fora, jornais debaixo do braço, discutindo com o comandante a
situação nacional, o pai delas lhe entregava um paneirinho de ovos.
Vamos ter omelete, Alfredo palpitou, como se fosse comer também,
na omelete, um pouco das duas portuguesas. O vaporzinho, sem elas,
veio que veio subindo muito do desanimado, sanefa descida, fazendo
um banzeiro ralo contra a maré, cisma de que seria engolido pelo
folharal. A mesa do comandante, cadê omelete? Os passageiros
provavam a sopa insossa. Do Pucuruí ao Forte, nunca mais. Arre, foi
que foi estirão.
[29] O Trapicheiro enfia o cabo no esteio, olhem que o Trapiche
vai abaixo; o Dr. Intendente agita o guarda-chuva.
O Secretário a bordo vê na ponta do Trapiche, quem? a modo
que te conheço? como se viesse no ar, aquele tão pé no chão só pele e
osso, enfiado no molambo, mas é ver o Cristo, com o tucano dentro
do paneiro, um de peito amarelo. Vem vender o tucano a bordo? O
Cristo mesmo, toda a feição. Escrito e escarrado. O gaiola, a medo, de
ilharga, com muita delicadeza atraca, a prancha vai correr. O Cristo
fita Alfredo que se debruça na amurada. Nunca nas pinturas os olhos
do Cristo se mostraram tão exatos, os olhos no navio, os olhos no
Secretário, o tucano no paneiro, tucano-de-peito-amarelo e o bico
tomando conta do paneiro, deste tamanho o bico, como se a cruz
fosse o bico e todo o nosso desespero aquele peito amarelo. Que
prancheou, Alfredo pisa no rumo do Cristo mas é puxado pelo
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Intendente para as apresentações — olhe a tábua solta! — aqui na
casa do Trapiche; o Capitão da Brigada, o Coletor Estadual, o
comerciante, o Porteiro e o Trapicheiro, estes descalços, o Porteiro
com a mala do Secretário. Sim, senhor! Já não é tão pouca bosta, aqui
entre autoridades, pela primeira vez recebido num porto, no guardasol do Intendente. Num instante de novo se lembra do travesseirinho
atirado pela moça das muletas. Aqui neste palanque também ponho o
meu diadema. Logo um ferrão na gabolice: aquele bilhetinho a lápis
lido à. luz da fogueira de São João no Chão dos Lobos e a fuga, pelos
fundos do frege, desertando da pia e dos pratos sujos. Com o seu
tucano no paneiro, o Cristo vem voltando de bordo, a cabeça aqui
embaixo, o cabelo arrepiado mais parece a coroa, aquela. Recosta-se
no esteio, ali crucificado.
— Capitão, me compre o tucano do Cristo — pede Alfredo no
corpo da comitiva, já assumindo ar Secretário.
— Do Cristo? — fez o Intendente, sustentando o guarda-sol,
numa brusca impaciência.
O Capitão fardado, escanhoado, alto, grisalho nas fontes,
marcial cabeleira, volta-se para a cabeça do Trapiche:
— Ei, oi, Seruaia!
O Cristo vira-se, assustado.
— A como o tucano?
O Cristo se descrucifica, paneiro na mão, vem num passinho
esmorecido, vem vindo, guarda distância, meio fanho:
[30] — Pro senhor, até dois mil-réis lhe deixo, é do senhor,
Capitão — gemeu, já a modo cansado de ter feito a caminhada e pelo
que falou.
— Salgado... Está, não, Seruaia?
— Então dê o senhor o quanto. A troco de um quartilho de
farinha e um grão de sal?
— Vá lá, vá lá, Seruaia. Leve em casa que a mulher lhe dá o sal
e a farinha.
O Capitão põe o quepe, franze a testa, fingindo esforço de
memória:
— É. É da família... da família dos ranfastídeos a ave... se não
me falha. Estou certo, Secretário?
Alfredo olhando para o seu Seruaia: Quem que encontrou por
aqui perdido a vender um tucano, Virgem de Nazaré, teu filho, O
escrivão segue para o Correio. A comitiva avança para a calçada do
seu Guerreiro, as duas portas do seu comércio e as duas janelas da
residência.
— Entrem só um tempinho, o de passar o café, já estão
passando, me façam a fineza — roga o comerciante, mulato mais para
preto, bigodão pintando, todo no linho que fosse ainda gomado na
Franca, muito de lenço na mão, dente à mostra, guarda-sol cabo de
madrepérola.
— Da volta dos cemitérios, da volta dos cemitérios — escusa-se
o Dr. Intendente, sem parar, batendo as botas no pedregulho, numa
urgência administrativa.
— Mas até lá já é hora da janta, doutor, pois só estão de volta aí
pela boquinha da noite chegando com as corujas e os vaga-lumes,
doutor — ri o comerciante, lenço na mão, lenço no rosto, sempre se
enxugando, se limpando como se quisesse virar branco. Cem aquele
comércio, aquela posição no Município, relações de peso em Belém,
o chapéu de massa, o linho inglês, o lenço de seda, o dente de ouro, o
cabo de madrepérola, é, a rigor, branco. A pele não conta. Aquele
Cristo de Trapiche é, sim, alvação, mas preto pelo estado. Seu
Guerreiro, apurando a etiqueta, insiste no café. Quer trazer cadeiras
para a calçada, “a de balanço debaixo da mangueira, doutor, para um
embalinho só”. E tira outro lenço, de cambraia, a enxugar-se, a
limpar-se... Já o Juiz de Direito, no cartório, não faz segredo: o
Guerreiro? Um preto de cu branco. Também ele me quer ver pelas
costas desta Comarca pelas facadinhas que lhe dou na minha
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passagem para o Trapiche. [31] Faltando a ele é uma daquelas
sentenças que, de preto que é, fique branco esfolado.
— Estão passando, doutor. Estão passando insiste o
comerciante, lenço no cangote.
— Dá tempo, não, seu Guerreiro. Vamos aos cemitérios —
repete o Intendente mais apressado, fechando o guarda-sol e a enfiar
dois dedos no braço do Secretário, segredando:
— Que tal a tirada zoológica do nosso Capitão?
Alfredo nota no Intendente um regozijo suspeito, uma agitação.
Mas eivém, lá de dentro a xerimbaba com a bandeja. Alfredo aprecia
as finas xícaras, de prata a bandeja? A roda se fecha em torno do café
sob o olhar de um e outro freguês de balcão e do velho caboclo, este,
pelo visto, já bem bebido, a agachar-se na raiz da mangueira.
— Cemitérios? — estranha Alfredo xícara na mão e o olhar na
primeira mulher que vê na cidade. Descalça, a saia preta, o rosto
amarrado. Entra na taberna, espia a prateleira das fazendas,
indiferente à comitiva.
— Cemitérios? — torna a indagar do Dr. Intendente, este
empenhado a fazer a sua segunda inspeção às obras começadas
ontem, inaugurando assim nova era no município.
— Três. Três. Três cemitérios, O meu primeiro ato nessa
Jerusalém dos nossos sonhos foi capinar os três cemitérios. Três. São
três. É que está chegando o Dia dos Mortos. Quatro com o dos judeus.
Beste, a família Bensabá se incumbe.
— Aos três cemitérios, então — obedece o Secretário, como se
fosse lá a sua posse e o seu primeiro expediente.
O Intendente, guarda-sol aberto, acelera o passo, guiando o
Secretário pela primeira rua.
— Quando vi você a bordo nessa beca, cor de chocolate... Isso
aqui é incompatível, rapaz, vai ser só quitute de cupim,, de traça, você
vestindo um desperdício. Trazia era dois dólmãs de mescla ou brim e
estava feito o enxoval. Enfiando todo aquele seu dinheirinho no
palmebiche? Bastava um simples cáqui para o diário, uma boa bota,
um reúna, e estava acabado. De gravata, paletó, ou fraque, todo dia,
às tardes, na calçada de casa, só é o nosso [31] Coronel Cácio, o ExIntendente, à espera do Coche, aquele que você vai ver. Essa sua
beca? Acesso de grandeza? Você sabe como seu pai, o nosso Major,
vai para a Intendência em Cachoeira. Sim que de gravata mas
tamancão no pé, pelo seco ou pelo encharcado. Aprenda a poupar seu
dinheirinho. O bicho vai banquetear-se no seu palmebiche e você
vestirá um paletó todo bordadinho pela traça nas costas. Pensa que a
Secretaria obriga a um palmebiche?
Alfredo, cala-te boca. O palmebiche? Para esta Secretaria,
exato-exato que não foi, estreou na última noite de arraial de Nazaré,
esperando ser visto pela Fada. Girou assim todo empacotado em torno
dos pavilhões, das bandas de música, orla e carrossel, saída de teatros,
bunda de arraial, embaixo da sumaumeira, parada de bonde, ah,
certeza de vê-la e ser visto quebrando o palmebiche, e girava, esta,
aquela, umas e outras, todas as moças de Belém mas a? Fugiu do
arraial, danou-se pela Dois de Dezembro, varou o Chão dos Lobos;
fica de ronda, abotoa-se, desabotoa-se, ao pé daquela barraca, quando
ela em pessoa, sim, sozinha no sapato branco, saindo proibido,
incerta, num susto; de não sei donde, vá ver descendo na ponta da
corda atirada da janela da Moura, eivém o rapaz, o outro, mangas de
camisa, chapéu de palha; apanha a assustada, lhe agarra a cintura, lá
se foram, caminho do Una. Aqui atrás, sem nunca ser visto, o
palmebiche pulando vala, suspende a calça por via da lama, escuro
como cão.
Bem, continua o Intendente, aqui é o casarão do Coronel Cácio.
Nesta calçada ele passeia, entonado. Somos vizinhos, moramos nessa
nossa residência oficial, sala e alcova para os dois que somos nós,
Intendente e Secretario, os fundos para o Capitão e senhora. Vizinhos
somos também do seu Bensabá. o judeu marroquino, com as duas
portas do negócio e a da moradia, sempre à espera que chegue o
15
sonhado telegrama — Me agredite! Me agredite [sic] — anunciando a
alta da borracha. Ali adiante o que sobrou do Grupo Escolar. Só
paredes onde está escrito um dicionário de obscenidades. Fede.
Debaixo da folharia as cobras desovam, Contam que os que daqui
subiram defuntinhos descem do céu e aparecem aí, à noite, decorando
aqueles palavrões. Vendo aquela ponta da ribanceira? Corre que ali
foi o hospício colonial. A cova aberta é recente, obra do Coletor
Federal. O Sede de Justiça. Suspeitou [33] que ali, ou sonhou, ou lhe
disseram, enterraram ouro. Pelas madrugadas, pistola em punho, o
Coletor dirigia a cavação. Três homens, os Três-pra-Todo-Serviço,
cavavam. A mãe dele, em casa, de joelhos diante do oratório ou atrás
da bananeira no quintal com vela acesa. Ouro encontrado só foi a
caveira, não se sabe de um branco, se de índio, ou de certo viajante
misteriosamente assassinado ali na beira do rio, anos. Noite de
sábado, anda o Coletor todo de luto pela praia, com a caveira na mão
num surdo monólogo. Dizem uns que indagando sobre o ouro. Outros
que é como já tivesse na mão a. caveira do Juiz. Talvez as duas coisas
juntas, ambição e ódio. E a sede de justiça, como ele diz, justiça que o
Juiz vende a varejo, com que enxuga o saco. O ouro era para instalar
uma serraria na cidade. Dando emprego e dando renda, a serrada,
segundo o Coletor, pode salvar o Município. Mas vamos aos
cemitérios.
Dobram a esquina.
Aqui, do que seria o Palacete Municipal, só foi armado o
esqueleto. Olhe a escada para o segundo andar. A obra parou no
mesmo ano em que desceram aqueles preços. O ex-Intendente passou
no cobre os materiais da construção. Mas entre o povo corre que foi
arte de São Benedito. Os materiais pertenciam ao santo para a. sua
igreja que nunca saiu da pedra fundamental. Foram requisitados pelo
Intendente para a obra do palacete. Zangou-se o santo. Consta que
São Benedito anda farto de morar em casa alheia, a casa é do Santo
Antônio. Mas agora não tem remédio. Os dois santos se tolerem
secula seculorum debaixo do mesmo telhado.
O Intendente segura o braço do Secretário, solta, salta em
frente, detém o rapaz, ficam parados, o Intendente contando: Os
grandes da terra davam o baile quando chega o gaiola que ninguém
esperava e salta a notícia, aquela, o Ceilão, ia tomar conta do mercado
da borracha. Baile e champanha, perfumes e vestidos de Paris, depois
do banquete gordo. Pelo salão adentro corre o alarma, quem que
acreditava? As valsas sucediam-se, orquestra de Belém, mais
champanha! O pé-rapado, este, batucava na Ramada, o pessoal preto,
brancos sem condição, corria o frasco. Lá no Trapiche o navio
apitava, pelas ilhas apitando, rio acima apitando, até que no Solimões
pegou fogo. Apitava a calamidade.
[34] Vamos, vamos, apressa-se o Intendente. Você esperava
banda de música no Trapiche com os escolares abrindo ala? Rua
embandeirada para a posse? Ainda não entrei na Intendência. No que
tirei uma linha da fachada, capinei de cabelo em pé. Em
compensação, que almoços, que jantares no Guerreiro! Cointreau,
menino! Regado a vinho francês, as queixas que faz contra o exIntendente! Lá fora, no breu, os habitantes jantam os cheiros da mesa
que saem pela janela. Da sua fazenda no Xingu mandou buscar uma
rês especialmente para celebrar a minha chegada. Pois carne, neste
pardieiral, só de urubu, pois nem de peixe-boi. Só talhando as vacas
do seu Bensabá soltas pelas taperas, invadindo o que resta de roçado
atrás do barranco ou pastando pelos cemitérios ou comendo a couve
da velha espanhola, espanhola muito soberba que não quis voltar para
a Espanha, a chamado dos parentes. Morre de orgulho ao pé de couve,
com o filho meio inválido, tentando salvar a horta das vacas do
Bensabá.
Param diante do velho portão. Alfredo espia.
— Isso aí? Harpa?
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— Contam que toca pela meia-noite mas tão! que as corujas se
calam e lá embaixo pelo largo e pelo fundo o rio se cala, os peixes
escutam. Aqui ao pé é um reino de formiga. Olha a vaca e o bezerro
passando.
Alfredo vê no bezerro o menino, a menina, meninos de
Cachoeira, Andreza com o rosto na cuja de leite, o rosto todo espuma,
meio assustada com aquele sol de repente: olha! É um pinto saindo do
ovo, amarelinho, amarelinho! Lá atrás do chalé, a Merência, a vaca,
obrava grosso e verde a madrugada, saboreando o seu ruminar.
Andreza puxa o bezerrinho do peito da vaca e Roldão tira o leite,
espumou na cuia pitinga, bota farinha no leite, é a bacuba, come,
Andreza. Amadureciam os ingás. Merência nos olhava como se
dissesse: esses meus filhos... A manhã engatinhava pelos
descampados alvos de sereno. Nem bem um instante Andreza na
beirada: Te levanta da tua rede, rio, que já é dia, anda, seu preguiçoso.
Boiava um peixe dizendo bom-dia, o rio se espreguiçava, vinha
subindo o batelão, lá noutra banda o vaqueiro a cavalo trazia o sol na
garupa. Andreza jogava pedra no rio: Se acorde, comadre maré.
Vamos. Vamos. Olhe o sobradinho talhado ao meio. Esse
casarão desaba-não-desaba, já com o alpendre [35] desas|soalhado,
aquela soalhado, aquela parede escorada... Aí foi o Bazar. Não entre.
Foi aí aquele baile grande. Debaixo do soalho enterraram champanhe.
De fel e lágrimas, me diz o Sede de Justiça. E aqui estou eu, meu
Secretário, Vinte anos, vinte, pelos atoleiros do interior, de
promotoria a promotoria, à espera da vez, da minha vez, varando a
nuvem da febre e do mormaço. Espere, Dr. Januário, que chegará. Vá
batendo carapanã, tremendo o queixo, vá, arrote mapará salgado e
ovo choco. Chegou. Aqui está, O que me coube.
O Governador, percorrendo os três salões do Palácio: Sua
missão, Dr. Januário, é sobremodo delicada. É a de acomodar aquelas
coisas no Município. Nem imagina o serviço que me presta, Dr.
Januário, ao pacificar a. família daquela terra. O fardão de diplomata
lhe cabe muito bem. Pois lhe dou carta branca. E enverguei o fardão,
de queixo caído. Obrigado, Excelência, pela confiança. Cumpro ordens, Excelência. Diplomática missão, carta branca, felicitações em
Palácio, para limpar três cemitérios e a. resignar-me a ouvir no meio
deste entulho os podres locais, um de cada vez, e comê-los, como na
brincadeira do gato podre nos velórios: Moças e rapazes em torno do
defunto, sentados no banco — você bem que viu em Belém — começam, com a primeira falando: Eu ia. andando vi um gato morto
bem podre bem fedorento que axi... mas bem bem que o Berico ia
comendo do gato morto, fazendo dele um petisco... Menos verdade,
responde o Berico, que quem comia era a Luci, e esta: agora isso, não,
que quem se deliciava, de lamber os dedos, era a Filuca, ao que salta a
Filuca: quem eu vi foi a Brasilina mas tão saboreando... E esta
desatenciosa, no fim do banco, tão distraída, não passa o gato morto a
outra e por isso... comeu! Brasilina comeu o gato morto! O gato
morto, que é esta Intendência, passada para minha mão, eu,
distraído... Meus cunhados: agora é a sua vez, cunhado, caia em cheio
na mina, é o Baixo-Amazonas, é o Baixo-Amazonas, e nos mande
dizer quando vamos. O Arcebispo, me prometendo um pastor para
esse rebanho estourado, me oferece um almoço canonicamente
irrepreensível, uma tartarugada.
— Sei quem fez. A Magá. Foi, não foi?
— Magá?
O guia vai apontando, virando-se para todos os lados:
— O entulho nos engole. Venho administrar o outrora, o que já
foi. E cidade foi, sim, com hotel, piano, harpa, [36] banda de música,
coche fúnebre, jornal, biblioteca, advogados e um Trapiche-cais. Os
santos fugiram, alega aquele bêbedo lá da raiz de mangueira. Santo
Antônio e São Benedito são só fantasmas. Desmente o Coletor
Federal, o Sede de Justiça: Quem daqui saiu no Lobão, com as imagens num saco de borracha, senão o Meritíssimo? Mas me servindo
um cálice de Porto, afiança o seu Guerreiro: Não, o Juiz não, foi o ex-
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Intendente. Fazendo acordo com o Diabo, destelhou a igreja para
cobrir com as telhas sagradas a casa do filho no Jocojó. O filho torrou
as imagens em Belém, trocou uma a bordo por um pacote de quinino.
O Diabo em troca, acrescento eu, meu Secretário, agora que
estamos em inspeção de obras...
O Intendente pára, queixo no ar.
Este silêncio crava no osso da gente, meu amigo, como o nosso
fígado. Contando-lhe o que estou contando parece que todo mundo
nos escuta, de ouvido na parede. Mas que todo mundo? Onde? Bem.
O Diabo lhe manda um pupilo na figura do Fiscal de Imposto de
Consumo já passando dos sessenta, já avô, recebido pelo Intendente
na palma da mão, tratado a peru, os derradeiros perus da fortuna e do
poder. Descem da prateleira os derradeiros vinhos. A lábia do Fiscal
ganhou o casarão. Grandezas e fantasias a filha do Intendente
principia a escutar da boca do velho e aceitando dele aqueles
presentinhos trazidos de Belém ou comprados a bordo, numa hora em
que a mulher do Intendente, queixando-se de surdez, também se
queixa da riqueza acabada e da miséria à porta. Uma noite, o Fiscal,
depois de lhe comprar uma arara e um tipiti, manda o nosso barbeiro
tocar valsa à janela do Intendente. O que o velho deixou de falar à
moça, fala a flauta e vai, a moça abre o soalho do seu quarto ao
galante ancião. O velho descia o barranco e entrava por baixo do
soalho. Danado! Força dos abacates locais? Se tratou com o Mestre
Parijó? Urna noite, um da família, muito cioso da irmã, o anão, que
costuma ir ao jirau, à noite, urinar sobre o Amazonas, vê o Fiscal
entrando e toda a casa num rebuliço acordou. O pai tira a 44 da
parede, os filhos, também se armou o primo, Secretário-Tesoureiro,
agora nos favores da prima. Atezinho o nosso porteiro, esse seu Dó,
por obrigação do cargo, acudiu de facão em punho. Chorando no jirau
sobre o Amazonas, o anão gritava. A desafronta, dirigia o Prefeito de
Polícia, filho mais velho do [37] Intendente, já devendo ao Fiscal
trezentos mil-réis e um par de abotoaduras. No quarto, enrolada na
rede, a prima de Bi gritando que não sabia, não sabia que a Bi botava
aquele senhor no quarto delas duas. Ao que a Bi, abafadamente,
respondia: Sabias, sim, sua coma, não chora, sua manteiga derretida,
sabias, sim, só eras de ouvido fino, de dentro do lençol teu olho só
espiando, dizendo: me dá urna sobra, anda. Pára essa tramela. A
prima foi, se encolheu, lhe doendo o dente. Aqui por fora abre-nãoabre, abre-não-abre, bandido, se tens topete, pula, e o velho Fiscal
salta da rede, senta na rede, meu camisão? Que seu costume era entrar
de camisão. No meio do cu-de-boi, o anão gritava à. irmã que lhe
perdoasse, lhe perdoasse... por ter dado o alarma, O anão, na
ribanceira, rolava-se pelas pedras, batia a cabeça nos paus.
Começavam a sacudir a porta, esquecidos de atacar por debaixo do
soalho ou só fingiam? Não saia por debaixo do soalho, lhe peço,
pedia a Bi. Mas não foi por onde entrei? Sim, como meu namorado.
Tem que sair agora como uma. autoridade federal que é, Fiscal
Federal, que é que não vai dizer o comércio? Pela porta, que atirar,
não atiram, se atirarem, morremos juntos. Enfrente meu pai, enfrente
meus irmãos, mas saia pela porta. Vista o camisão — meu Deus está
que só suor e gelado — se vista e vamos de braço. Pelo soalho, não,
Beijava o velho. Pelo soalho, não. Agarrada ao velho. Pelo soalho,
não. A prima, lhe doendo o dente: bota por amor de Deus pelo buraco
dó soalho o diabo desse velho, Bi. Aqui por fora arromba-nãoarromba. Minha filha, pela porta, não, que não trouxe a máuser, falou
o velho. Sua obrigação é sair pela porta que senão é feio, instava a
moça. Um boi!
— Até que o doutor... Tão a par.
Contado pelo próprio, lá no Café Manduca, comentado em
Palácio, o Governador me falou. O sangue-frio dela! Ou zombava do
amante e da família? Aquela heroína? Aquela? Agora que você
assumiu, que é Secretário-Tesoureiro, em lugar do outro, não pense
que aqueles favores dela lhe serão transmitidos por força de lei.
Cuidado. Que aquele buraco de soalho por debaixo do quarto é a
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porta larga, de que fala o Cristo. É a porta larga, e estreita é a do
Secretário, meu amigo. Guarde o que estou lhe dizendo. Assim de
palmebiche, dando Ilusão; pode assanhar a cabra. A porta é de
Secretário, não é o buraco do [38] soalho e você tem vinte anos e o
outro sessenta, e Fiscal de Consumo.
— E enfim? O velhote saiu pela porta larga, como entrou?
Minha filha, minha filha, pela porta, não, que eu a máuser não
trouxe. E em pêlo escoou-se pelo buraco, escalavrou-se nas pedras da
praia, foi bater nos fundos da casa do Juiz. Onde o Meritíssimo mora
com a família numero dois, que a número um, a legitima, não arreda
de Belém, passando o verão no Mosqueiro. Para fazê-lo entrar, o Juiz
cobriu o sedutor com a toga. Assim o Fiscal pernoitou, sem poder
comunicar-se com o Coletor Federal, O Juiz não permitia da casa dele
recado algum para o inimigo. De manhãzinha, a cria de casa da Bi foi
deixar na janela do Juiz aquele embrulho. Vem o Fiscal, abre-nãoabre, que mocó será, abriu. O camisão, Por via das dúvidas vai
queimar o camisão. Ara não me queime o bom do pano, doutor, que
ele me serve, faço dele unia saia pro meu uso, de que estou um tanto
precisada, meu branco, me dê, acudiu a preta, a Nhá Barbra, que
passava pela janela aquele instante. Já antes a mesma Nhá Barbra, do
pano da faixa cívica da inauguração das obras do Fortim, fez um
lençol. Prevenindo qualquer vexame no Trapiche por parte da família
ultrajada, o Fiscal embarcou debaixo da toga do Meritíssimo. Em
Belém, no Manduca, alega o Fiscal que dever não deve, nada deve,
que a donzela, eh! já não é mais des a viagem que fez a bordo do
Andirá a Monte Alegre. Correu que a seduzida ia ser internada no
Santo Antônio, despachada para o Ceará ou casada com um “pedreiro” mediante emprego de Juiz Substituto interino, já aí o poder
escapava das mãos do Coronel. Ficou a menina pela casa, mirando os
postais da Suíça, no banheiro fazendo pixixi e ao mesmo tempo adeus
aos navios que passam e da escadinha da praia ao peitoril da janela,
chinelinho de bico prateado. Quando passo, ela, os cotovelos não na
almofada mas no velho catálogo da Galeria Lafaiete, me responde ao
bom-dia: Doutor, doutor, gostando da nossa ex-cidade? Bem
aborrecidinha, não? Eu se fosse o senhor, doutor, trazia era o
Governador em pessoa só pra ver esta, preciosidade, não era? A mãe
lá de dentro agachada puxando a filha pelo cós. Cuidado com a
menina. Uns olhos, se não me engano, passados em gordura de cobra.
Hoje, no jantar que o pai dela me oferece, você vai vê-la, Aparou [39]
o
cabelo até o cangote, fez peladinho, um sinal se vê no pescoço
quando pendura a cabeça. Costuma ficar entre as folhas da, janela
com o nariz de fora ou só a língua ou só as mãos no peitoril, de pluma
no rosto, contando as varetas do leque ou dedão na boca mexendo os
outros dedos para um qualquer menino da rua. O beiço é só pintura.
Rua? Esta solidão? Rua? Recomendo-lhe cuidado. A porta é muito
larga, sim. Atrás a mãe, puxando pelo cós.
Alfredo sente-lhe a voz perturbada, o Intendente enrouquece.
O Coronel, cioso do seu nome, vai levar avante o processo, ver
se mete o velho Fiscal na chave, ao menos pena mínima, para isso
hipotecou a casa de Belém, assinou promissórias. Esperava ter costas
quentes do PRF quando o Partido, pela mão do Governo, lhe tira o
Município, a, Policia, a escora da Justiça. Deu certo o jogo do seu
Guerreiro que todo dia escrevia ao seu aviador, ao seu advogado,
pedindo as devidas providências, embora “nunca se metendo nisso”.
É que o filho do velho Cácio, o Prefeito de Polícia, exigia do seu
Guerreiro levasse os peixes do cacuri diretamente ao Mercado, não
podendo vendê-los na taberna, como sempre fazia. De código e rifle
em punho, foi buscar os peixes na taberna e os levou ao Mercado
onde os peixes apodreceram. Uma rês que seu Guerreiro, lá de três
em três meses, mandasse buscar da fazenda para o talho, tinha que
levar a carne para o Mercado, pagando o imposto da lei. A carne só é
para gasto da família, explica o seu Guerreiro. Ficava a carne toda no
Mercado, ali às moscas, com os curununs e os cachorros só faltando
saltar o bago do olho, pois quem que aqui pode comprar carne se não
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a própria família Guerreiro, os Bensabás, o Juiz que leva fiado, o
Tabelião que recolhe o bucho por conta de futuras certidões, o
Promotor: “ponha na minha conta”, o Sede de Justiça: dois quilos em
nome da Fazenda Nacional... Sim que Mestre Parijó, por dom e
privilégio de suas artes e ações, tem o seu filé de graça. Político não
sou, nunca fui nem hei de ser, doutor, vivo para a minha família, este
balcão desafreguesado, aquela fazenda, o cacuri, umas amizades em
Belém, não me meto, alega modestamente o seu Guerreiro. Mas pelo
meu peixe, pela minha carne, rá! Seu Guerreiro então que telegrafava,
telegrafava contra “a exorbitação, o coagimento”. Se não baixassem
aquele rifle, defronte de sua porta, la sair, Ia sair... Para [40] o meu
peixe, para a minha carne, o Delegado sabia abrir o código. Mas pra
aquele capim todo em cima dos defuntos, fechava. Até que São
Benedito e Nossa Senhora das Batalhas nos atenderam, me diz ele
com humildade, cara agradecida, não sem manifestar, pelo risinho,
que a reviravolta foi obra toda sua, suas relações, seu amor à terra.
“Me meter, nunca me meto”. Muito difícil separar o regozijo da
compaixão que se misturam no seu Guerreiro no que toca ao seu
desafeto. É o senhor chegando, me diz ele. Podemos agora sem dor de
cabeça trazerzinho nosso peixe do cacuri pra casa e talhar um que
outro boi que a gente possa, sem obrigação de Mercado e imposto,
graças a Deus. Que o Coronel, de quem não guardamos ódio, tenha
ganho de causa no processo da filha, justo que zele pelo seu nome.
Mesmo a gente não se dá com Fiscais de Consumo que, quando não
inventam multas de tirar a pele, por outro lado nos arrancam os olhos
da cara, com suas facadas. Até que o velho pelintra carecia de sentar
no banco do réu um instante, se bem que também não me agradem os
termos daquela rapariga. Bem, não me meto. “Viu. Secretário? Os
termos daquela rapariga.”
O Intendente passa a mão pelas costas do Secretário:
— Ao pé do marido, a senhora Guerreiro carregava no
semblante a respeitabilidade da família e do Município, senhora
mulata mas de porte autoritário, em toda ela a branquidâo social.
Alfredo, muito pouco Secretário, puxado pela manga:
— Olhe que você com a sua idade já chegou a Secretário. Seja
prudente. Oiça e não dê palpite. Não me entorne o caldo. Amizade,
sim, com todos, nem a mais nem a menos, igualmente repartida, com
a maior discrição, com respeito e isenção que o cargo reclama.
Alfredo intimamente: Estou frito, como dizia o pai.
— Fino ouviu? Fino. Neutro diante das altercações e boatos,
neutro sem frieza mas sem acinte. Também vim para as próximas
eleições. Não estamos tratando de capinar os cemitérios? Desde já
agradando, com prioridade, aqueles nossos fiéis correligionários
defuntos.
Faz que ri:
— Esta? Esta cidade é toda-toda cemitério. Mas não me entorne
o caldo. Debaixo do soalho é o precipício. Bi é o [41] lacrau debaixo
da pedra. Bula com a pedra, não. Ela sempre me parece acima da
culpa e da inocência. Por isso mesmo lacrau. Custa a crer...
O Intendente faz-se cauteloso:
— Que até o Capitão me reparou na insolência do busto, dos...
Com efeito...
Caminham em silêncio, o Intendente ganha pressa, o Secretário
o alcança:
— Com efeito? Que que tem, doutor?
— Olhe, olhe... As regras do bom Secretário! Você é o meu
substituto imediato. Não me entorne o caldo. Sustente o freio, o freio!
Contam que o anão embaixo do banheiro na praia fica a guardar a
irmã, horas, a irmã no banheiro. Porventura...
De repente, ferrando os dentes, o Dr. Januário abre os braços:
— Como os abacates daqui, como os abacates! Despropositais!
Despropositais!
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Muda de tom:
— O ex-Intendente, o Coronel Cácio, andou pela Suíça, pela
Bélgica, cerrou-se de livros franceses que não lê, sobretudo do
Larousse que gosta de folhear na varanda sobre o Amazonas onde se
balança na rede a suspirar pelos lagos suíços e com uma estampa de
Bruges, a morta, na parede. Chefe local do PRF, deputado estadual,
Coronel da Guarda, dono de gaiolas e seringais, lagos e igarapés. Os
filhos jogaram a fortuna n’água. Sempre de paletó, cu fraque, ou
mesmo sobrecasaca, à tarde pela calçada de casa, bengala de pau de
laranjeira polida em dourado. Na calçada, folheia o catálogo velho da
Galeria Lafaiete, de Paris, de onde, nas vacas gordas, mandava buscar
a roupa. Mansinho-mansinho fez reinar o chicote, o roubo de urnas, a
rolha na oposição, o despejo de terra, mas eis que descem os preços
da borracha. Como foi que tão de repente a cidade morreu? Todos os
dias via cair um sobrado, embarcar uma família, via a cidade, o
Município, desmanchando-se na mão dele com o Juiz pondo a Justiça
a varejo, cobrindo com a sua toga venal a Comarca sem defesa. Até
que o Imposto de Consumo lhe cobra o selo na filha, deu-se aquela
noite e seu Guerreiro manda o seu mais aflito telegrama a Belém, os
amigos tomam pé em Palácio, [42] o velho Cácio amoleceu o miolo,
o Governador cede. Assim chegam à minha mão três cemitérios no
cerrado e tenho de jantar hoje com o Coronel Cácio. Também o filho
dele meteu a mão no cofre de São Benedito, devoção desta várzea e
barranco. Os donativos e esmolas somam alto. O padre, que viera
fazer a festa, vendo que não podia levar a seu Bispo o cobre
arrecadado, berrou. Berrando, moído a pau, foi embarcado a toque de
caixa no Lobão. Ao passar pelo Fortim, o padre, todo esfolado, desfia
o rosário, cospe grosso a caninga sobre a cidade. Noutro dia, no que
deu a febre num, deu no outro, e tal foi que toda hora o sino
dobrando. As casas passaram a cair mais. O Intendente, gravata e
colarinho, não chegava para os enterros e para os desabamentos. Em
Belém manda dizer missa em Nazaré pelos defuntos daquela safra
grande. Procura o padre nas Mercês e lhe pede: Retire aquela praga,
reverendo, que lhe devolveremos em parcela o que o meu filho, do
São Benedito, por um descuido, tirou. O padre, pois não, passe a
primeira parcela. Comeu o milho, sustentou que poder não tinha para
descuspir a caninga. Volta o Intendente ao seu Larousse, ao seu
catálogo da Galeria Lafaiete e a provar a sua pontaria atirando nos
urubus. A filha, essa, no que pega aquele corpo... se regale, Sr. Fiscal.
Toma um fôlego o Intendente, se encolhe, piscando muito.
Salta a toiça de capim, cai-lhe um botão do dólmã.
— Nomearam-me Intendente Municipal dos Escombros.
Alfredo, alegremente curioso, imune às ruínas, se bem que um
tanto encabulado no palmebiche.
Pelo menos, no entulho, cresce mato. Aquele bezerro mama. A
caninga se cobre de verde. No resto daquela parede se abre a flor-desão-caetano.. Uma flor, sim, sim, senhor, Secretário-Tesoureiro dos
Escombros, 150 por mês, zero em balancetes, talões, lei de meios,
pagamentos...
A burra da Intendência? Servindo de fossa a um dos d filhinhos
do ex-Intendente, falou o Dr. Januário. Ali é mais útil.
A
Recebedoria de Rendas me entregou os réditos do mês. A cobrança
dos impostos de exportação do Município é feita em Belém. A
Intendência paga uma assinatura d’O País, 30$000 à caixa do PRF e
uma verba de propaganda do Município. E ainda 5% ao Procurador.
Sendo [43] tão pouco o vintém cobrado, calcule a soma dos
descontos. E é ainda consignado: óbolo ao Papa, 30$000.
Óbolo ao rapa. O Vaticano surrupia destes cacos trezentos
tostões mensais cobrados piamente pela Recebedoria de Rendas, já
descontados em tolha.
— E Nosso Senhor Jesus Cristo aí no Trapiche vendendo um
tucano a troco de um grão de sal e um quartilho de farinha.
— Aqui saltou e aqui vende tucano como servo do Diabo. Aqui
a farinha, meu filho, é medida a litro. Secretário, 30$000 ao Papa.
21
todos os municípios entram com o Óbolo. Pois vou lhe mostrar a
documentação. Você lança no Receita e Despesa. Alguma noção
disso?
O Intendente pára, mão na ilharga:
— Instei que você desse um pulo em Cachoeira, pedisse umas
instruções a seu pai que é Mestre Secretário. De certo modo, você
principia um ofício. Com o meu ordenado e o seu, vai-se o resto da
pingue arrecadação. Como pagar o Porteiro, o Trapicheiro, a luz do
Trapiche? Em compensação, na parede da sala do ex-Intendente está a
Bênção Papal.
— E os cemitérios?
— Do saldo que recolhi da Recebedoria reservei um cobrinho
para os defuntos. O resto em ordem de mantimento no Guerreiro.
Abri conta no Guerreiro. Por ser para o senhor, doutor, explica o
comerciante. Para a Intendência, cruz!
Alfredo caminha como se aprovasse as ruínas, chegasse com os
seus vinte anos para ressuscitar a cidade. O ofício, aqui, é se fazer
gente, obscura aprendizagem. Mestres, o Juiz, o Guerreiro, o Sede de
Justiça. Atrás, o Porteiro, chapéu na mão, mais cabeludo, o dedão do
pé amarrado com um pano sujo, aquele seu olho de coruja.
O Intendente estacou, contemplando o que foi a residência de
sacadas de ferro e barra de azulejos. Aqui morou um Senador do
Estado. Fogem os lagartos. Alfredo vê os Alcântaras fugindo da casa,
em Nazaré, que desabava. Apanha um caco de azulejo, se lembra de
D. Celeste e seu sobrado demolido. Lá na mata, encharcado de
cachaça e febre, o seu Antonino Emiliano se afundando no cascalho.
— E nem um periquito nessa mangueira. Um!
[44] Alfredo, esse, ouve os periquitos. Um instante lhe dá para
rir, só um querer rir, O Intendente tenta fechar o guarda-sol.
— o suspensório, é a navalha de barba, é a fechadura dà mala, o
relógio, o sono, o estômago, a vesícula, o guarda-sol... Tudo em três
dias me empenou, me quebrou, me enferrujou.
Alfredo fecha-lhe o guarda-sol.
— Pois não acha bem que reservasse um cobrinho para os
cemitérios? Primeiro pacificar os defuntos. Tirar de cima deles o
canim. Mas o Meritíssimo, o ex-Intendente, o Promotor, o Sede de
Justiça, o Tabelião, a D. Pequenina, os comerciantes, o Cabo do
Fortim, o Mestre Parijó, a espanhola e suas couves? Pois todos neste
covil se comem uns aos outros, se juram de morte?
— Pelo menos pôr abaixo a cabeleira do meu colega aí... à
escovinha com aquela máquina.
— Que máquina?
— Sim, a que me pelou o coco em menino no Ver-o-Peso. Até
hoje me péla.
O Intendente contempla o quintal de abacateiros.
— É o que dá neste degredo, neste pedregulho, abacate.
Abacate, febre e ódio. Estou, pelo menos, livrando os defuntos
daquele cerrado, daquela urtiga, do sauval. Ficou aqui um resto de
gente, como o sernambi, resto de borracha. Pulando das ruínas, o
peito da Bi.
O Intendente, o Secretário, o Porteiro alcançam o largo da
Matriz, caminho do Fortim.
— Viva alma... — murmura o Intendente como num regozijo.
— Ninguém, não, doutor. Não está escutando a pipira? Esse
trinado longo?
O Intendente verga-se, a mão no rim:
— É que nos espreitam. De olho na brecha das paredes. Atrás
da caliça. Todos ali nos espiando. Todos ali entocados, tremendo de
paludismo, esvaiando-se em verme. ontem me mostraram um besouro
tirado de dentro de uma mulher, tirado das partes, um besouro rajado,
vivo. A Matriz já dá sinais. Do forro da sacristia caíram umas tábuas e
umas cobras. A caninga mina os abacates, os [45] par|dieiros, as
consciências. Aqui é o oco das surucucuranas. Dos pardieiros sai um
mormaço, é a peste. Ou os dois, o Santo Antônio e o São Benedito, os
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dois comendo abacate, possuídos de gula. Aquela menina, a Bi,
segundo me disse o Guerreiro, acordou, uma dessas noites, gritando
que estava sendo mamada pelos dois santos. Ouvi dizer ainda que ela
vai à igreja, pela madrugada, entra pelos fundos da sacristia e se
despe diante do altar. Versão do Juiz que espiou. Aqui tudo cria
bicho. Aí debaixo do chão a caveira de burro babando. E estou eu
depositário destes destroços, inventariante desses fantasmas,
arquivistas da catástrofe. Os meus vinte anos de interior, promotorias,
advocacia, as longas sestas, as longas impaciências de ser honrado, os
mais puxados desenganos, os suspiros debaixo do mosquiteiro por
uma remoção na capital, o raio do casamento, aquela inumerável
família com quem me casei, dependurada na cacunda, atochado de
cunhadio, tudo isso, meu caro, culmina neste entulho escaldante a
inspecionar a capinação de três cemitérios. Você vai secretariar nada.
Estamos velando um município defunto. Durante o velório, vá
lançando no Receita e Despesa o Óbolo ao Papa, os 30$000 de
propaganda do Município e lendo O País. O resto é abacate e o
buraco de soalho do quarto de D. Bi.
Chega o Trapicheiro correndo, os bofes pela boca. Ânimo não
tem de se dirigir ao Intendente, fala ao Secretário:
— É o querosene, esta noite. Sem um pingo. Por mais que
poupe...
Querosene? Pra queimar a tapera?
— Lá pro farol, Secretário.
— Farol?
— Do Trapiche, sim. Carece acender toda noite.
O Intendente:
— Toda noite? Mas toda noite?
Se dá conta, mandando uma ordem ao seu Guerreiro para aviar.
— Depressa, Secretário. Senão nunca chegamos. Farol, toda
noite, servindo de aviso: passem de largo. Passem de largo. Passem
de largo.
Já nem disfarça a pressa, não de chegar aos cemitérios, mas de
volver a Belém no primeiro gaiola.
[46] — E aceite isto solenemente lá em Palácio com o seu
Fausto Batalha, aquele altíssimo e risonho Primeiro-Oficial da
Secretaria Geral, me entregando, entre parabéns e um cafezinho, o
titulo de nomeação... Principiava o jus ao merecimento, agora eu
disparava. Meto no chinelo aquela pasmaceira de tantos anos
promotor. O Municípo atravessa urna situação melindrosa, me confia
sua Excelência. O senhor é indicado pelos céus, o único a me tirar do
arrocho. Tantos os candidatos, que o seu nome me salvou. Tantos os
candidatos! Situação melindrosa! Mais envelhecido e rombo me
encontro agora nestes três dias degredado. Já alguma coisa me
apodrece corpo e alma. Hoje acordei me sentindo sem pernas. E sem
socorro posso ir-me desta para a outra com uma amebiana. Não
demora estou que um pardieiro. Como esse aí, atrás de nós, o seu Dó,
um pardieiro com as chaves do outro pardieiro no bolso e com aquela
coruja nos olhando dentro dos olhos dele. Edifica-te, Januário, com
esse prêmio à tua carreira, agora palaciano, ao lado do Governador
nos três salões do Palácio. No que deu! O bacharel, a partir do Recife,
com o canudo feito espada mosqueteira, recitando Tobias, Martins
Júnior, alea jacta est! A Justiça, no Pará, Amazonas e Acre, está à
espera de magistrados, doutor. Siga no Lóide para a Promissão.
Cuidado, seu Alfredo!
Precipita-se para tirar o Secretário da calçada..
— Por aí rente, não! Despenca a platibanda e acabou-se, você
soterrado. A todo momento pode o barranco sumir rio abaixo, meu
amigo. A caveira de burro, aí no fundo, não cessa.
Cabisbaixo, carrancudo, o Intendente pára.
— E você? E você, meu anjo, voltou do Rio, por quê? Que lhe
deu, que voltou? Que veio dar com os seus vinte anos neste trapiche
podre? Esmolambado lá no Rio mas tendo pela frente todo aquele
horizonte e aqui agora de palmebiche debaixo dessa. platibanda? Vai
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empanzinar-se de abacate, inchar o baço nesta beira-rio, receber seu
quinhão de caninga. Resta-nos salgar a tapera, esperar o vapor mas lá
no meio do rio, longe do Trapiche. Os navios andam a milhas disto
aqui, adeus, ribanceira saudosa! e passam pelo outro canal. O Diabo
que atraque, não eles. Adeus, ribanceira saudosa! é o que sempre se
diz quando se passa ou se foge por aqui. Era o que gritavam os
barqueiros [47] quan|do conseguiam livrar-se do posto fjscal montado
no Fortim. Adeus, ribanceira saudosa! chorava o fresco se despedindo
do barranco depois de tanto regalar-se com os machos no abacatal.
Alfredo corre atrás do lagarto. Está sem espanto. Não é 150 por
mês? No calor e silêncio do barranco, vai encontrando um ânimo,
uma aceitação, o gosto de correr atrás dos lagartos e descobrir uma
flor no entulho. Entram na segunda rua.
— Já verificou que nem um cachorro? A que fui guindado, Sr.
Governador! Terei de encampar aquela caveira a quem o Coletor
confia seus desabrimentos e sua ambição? Retiro da fossa a burra da
Intendência? Recosturo o hímen da filha do ex-Intendente?
Desenterro as garrafas de champanhe? Mando retirar destes
escombros cobertos de mato as vacas do Bensabá? Onde teus fogos,
maldita, tuas almas, deserdada... Aqui vai soar a trombeta.
O Intendente fala em surdina, abre o guarda-sol com
dificuldade, batendo a bota nas pedras.
— E tive de telegrafar — o telegrama foi a bordo do Rio-Mar, o
cabo interrompeu — ao Governador dando conta da minha chegada,
da posse, reiterando que o meu empenho de servi-lo, etc., etc., neste
meu cargo marca barbante. Seu Secretário! Posse? Aqui, transmissão
de posse?
Ferra os dentes:
— Aqui outrora retumbaram hinos... — e geme fundo, o queixo
no ar, cospe numa súbita náusea.
— No Recife, meu desejo era voltar à Paraíba, ali para sempre.
Meu colega, o Ademar, com notas, lhe digo, modéstia à parte, muito
abaixo das minhas, o que fez foi partir paia o Rio onde chegou a
Desembargador, e eu? Também vi em Altamira queimarem nota no
charuto, vi chegarem da França aquelas roupas, aqueles enxovais... E
mal saltando a rolha do champanhe o El-Dorado se afunda... Nisto.
Fecha o guarda-sol, pisando nos restos da parede derruída. Um
gole d’água queria, mas onde? Que água?
— Todo esse monstro rio aí fora e nem um golinho d’água,
daquela que se quer e certo é que venho neste patinhar lama vinte
anos beirando os rios atrás da fonte...
[48] Pálido, quer voltar.
Aos cemitérios, regouga, e avança a abrir os braços:
— A fonte? A fonte? Justiça? Fortuna? Aquele casamento que
não foi? Você trouxe mosquiteiro?
Agarra-se ao Secretário, meio trêmulo:
— Eu queria ver-e-não-ver a quase noiva, aquela desventurada
que me esperava na Paraíba fiando rede. Lá na Paraíba fiando.
Esperando-me, esperando-me, durante os anos na Faculdade. Por
feiosa e sem fortuna não tinha pretendentes. Colei grau, soavam as
harpas aqui no Paraíso. Fugi daquela Panélope noiva e me vi de
pijama e dores na tripa a bordo do vaticano subindo o Xingu,
engolindo elixir paregórico. Com quarenta graus ia me atirando no
Xingu não fosse me agarrarem na proa. Não me amarrei no mastro
quando as tais cantavam. O herói agora tropeça nos pardieiros, capina
três cemitérios.
Entram na capoeira em direção do primeiro cemitério. Um anu
anuncia. O caminho cerrou; agora o Intendente, pela sombra,
distancia-se.
O Secretário recua para a iharga do Porteiro.
— Boa viagem, Secretário? — indaga o Porteiro numa voz de
outrora. Alfredo lhe põe a mão no ombro: uma voz do lugar, daquelas
ruínas, guardada em baú. E tão cabeludo, tão vergado, o olho tão
coruja. Mas pardieiro tanto assim não, quem sabe um dos doze
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apóstolos, ali também perdido, sem ter reconhecido o Messias na
cabeça do Trapiche, porteiro deste céu derrubado.
— Dandozão as febres na terra, seu Dó?
— Até que este ano... pra lhe dizer, assim-assim é só um arrepio
num, uma ardência noutro, pra não perder o costume. Taxizeiro
desfolhou a última flor na vazante, carapanã acaba, adeus febre. A
Mãe da Febre faz agora suas cobranças é pelas bandas do Xingu,
abrindo cova nas Ilhas, e assim nos deuzinho uma folga, se enjoou
este ano de nós aqui. Quim Mendes e Tatajuba pouco serviço têm tido
por ora com o ferro de cova, lá onde é o pé junto. Fazendo agora um
regular mês, assim queira São Benedito. Mesmo meu compadre Parijó
falou que vai levar por aqui por nós uma temporada sem dar. É o que
val.
— Seu compadre Parijó?
[49] — Compadre Parijó? Rá! Por todo esse Baixo, falou no
nome dele, só o senhor vendo e ouvindo. Muito exigido, até Faro, aí
pra cima, esse correr de ilhas, Costa de Óbidos, não falo Xingu, onde
carecerem dele, por aí tudo. Ele só que tem licença do peixe pra entrar
no lago lá da serra. Olhe, Secretário, não facilite. Que aquele meu
compadre? Não brinque.
— Brincando, seu Dó? Eu?
— Compadre Parijó é-é matriculado. Não sei se o Capitão, por
nova lei, por edital contra, vai tirar do meu compadre o alvará da
matriculação. Carta de curador que ele tem, já faz bote tempo. Aqui o
Juiz, o Promotor, o Coletor, a Irmandade de São Benedito, o Cabo do
Forte... todos fechando o olho, que assim é o que mais convém. Quem
que com meu compadre facilita, ah! facilitou, Deus te livre! Inda mês
passado, na vez que voltou, veio e enrolando o tabaco na casca do
tauari me falou: “Olhe, compadre Dó, o governo da terra que vai
mudar, vai, sim, que isso escutei lá. O doutor que vem, vem com carta
branca. Também vem o Secretário. Mas seu lugar, compadre, com as
chaves da Intendência, garantido está.” Estou me fiando.
Alfredo, num passo lento, como se escutasse aquele tio das
viagens, varador de lonjuras, agora subindo aquela serra onde no lago,
o peixe reina.
— Que acabou de falar, corro no seu Guerreiro, seu Guerreiro
mostrando no balcão o telegrama. Era. Logo se via o
transformamento, torna o Porteiro depois que foi no mato um
instante.
Alfredo: vá ver, o tio Sebastião se aconselhou aqui com o
Mestre Parijó, andante que é o tio pelas sessões, terreiros,
puçangagens, por onde nunca se sabe. Por certo afilhado desse um
daqui, aqui de grande na boca do seu compadre. Seu Dó fala do
compadre como se visse a sombra do Mestre saindo da maré,
carregado de adivinhação e poder. O tio Sebastião sabe dele, sim,
misturado com mistérios que é, seja nos lavrados do búfalo, por entre
a nuvem dos guarás avermelhando a tarde, seja nestas várzeas de
timbó e guariba, de tudo isso tirando carta. Assim no silêncio, seu Dó
e Secretário, até que podem estar esperando o Mestre, mergulhoso das
águas, enxuto-enxuto, com o seu penacho, maracá, seu cachimbo. Das
águas só traz o peso na palavra.
[50] — Vai e vem de onde, seu Dó?
— De onde? Onde, essa é que são elas, o poção onde desce e lá
demora quem me aponta o lugar? Também eu queria saber. O senhor
que mal chega ainda não foi inteirado, bom ficar ciente, o senhor que
é Secretário. Ele? Não conhece um descanso, vem, volta, chega, ele
vira, mas tudo é lá por dentro das lonjuras dele, lá no aforamento
dele, a lei do Município não abrange, cismo que é o chaveiro das
marés, quem escoa a vazante, quem puxa a enchente, dei uma, lá pelo
fundo, as desovas. Cismo que tudo que vai pelo fundo, lá que aqui em
cima a gente não decifra, ele sabe. Todo esse haver de rio que vem
descendo? Tão mansinho é na mão dele...
Esfrega a virilha.
25
— Tudo é sempre lá no não-se-sabe dele. Converse isso num
particular com o Capitão. Tudo ali entesourado nos caramujos do meu
compadre, daquela boca não se colhe o onde que o senhor quer saber.
Secretário. É um onde, rã! a gente puxando pela adivinha, não pega.
Cheiro do rumo nem um.
Rosto do seu Dó se escurece.
— É só o senhor querer, que ele lhe dá uma audiência. E olhe
que para agarrar ele um instantinho na barranca dele, ponha sorte
nisso. O Mestre que mal entrou saiu, que mal saiu entrou, quando se
vê não está, está no Tajapuru, entrando pelas três bocas do Xingu, pé
cá pé lá. Sempre a chamado. Chegando virando. No que está, já dizendo: até outra maré, compadre. Sumindo no piscar do olho. Rio
acima, abaixo, igarapezal adentro, pelo igapozal, essas longidades,
toda a navegação dele que o senhor querendo medir não mede. Dê
maré, maré não dê, onde, por onde, eu sei? Indago? Arrisco o olho?
Não chega pra saber. Se dá com as mais diversas famílias e esses
doutores, se dá, é com rico, é pobre, é bem vestido, é rasgado, é
branco, é preto, é cafuzo, só lhe conto uma: uma noite, num mergulho
dele, tirou um gaiola da encalhação numa croa de areia aí acima, maré
que bem baixa estava. Que ele pode, pode. Sete afogados de uma
embarcação já toda lá no fundo, ele foi, tirou debaixo do toldo,
salvou. Isto se deu no Arinuá. Só isto? Fora o que não sei. O senhor
olha para a pessoa dele, nem faz fé, mas é o que lhe digo.
[51] — E ele, com a força de seu mergulho, seu taquari, seu
poder do fundo, por que não livra este lugar da caninga? Ou foi ele?
— Até aí os poderes dele... Longe dele contrariar. Me chamou,
me disse: “Isto que aqui se deu, compadre, vi escrito, eu que não sei o
A, foi antes quando aqui ninguém cismava no que ia suceder. Eu vi
foi muito mas muito antes já traçado. Muito antes vi esta cidade toda
iluminada escorrendo barranco abaixo. Lá onde costumo ir me punha
a ouvir o tombo das casas, o Gasômetro parando, aquele navio
apitava. Uma note, de volta do Paraná do Vira-Cabo onde fui ver uma
doente olhada de bicho, provei, aqui defronte do Trapiche, a água da
reponta. Tinha mudado. Amargava que amargava. Era ou não era um
sinal? Fiquei com o gosto dessa maré umas semanas na goela.” Foi só
o que ele me disse, adivinho que ele é, é. Já basta a ele o nosso gogo,
os nós da nossa tripa.
Estira o pescoço.
— Dizer que não vi, uma vez, pendurada a vara, a casca que ele
se serve quando mergulha, a pele de cobra que ele veste quando vai
embora, e mergulha, minto, vi, fazendo que não vi, e foi já que tirei o
olho daquela vestimenta dele. Dela me ficou nos olhos foi um
ardume... Nessa noite quando que grudei o olho? A casca da cobra me
queimando a vista.
— E as transformações de agora, viu?
— Não viu? No que desembarcou, o doutor tratou de mandar
sentar o terçado naquele cerradão de riba dos defuntos. Que aquilo
triste era, feio que estava, estava. Agora, se por sorte pingar na mão
da gente um tostão escoteiro pra nem que fosse uma cera no seu
Guerreiro, no seu Bensabá ou mesmo a bordo, então se pode acender
já no dia dos nossos finados. Mas assim como estava? Iluminação?
Nem vaga-lume no cerrado.
Dobra-se como ferroado no rim, coçando a planta do pe.
— Teve mais. O doutor nos pagou um mês, e olhe que em
dinheiro! Meu ordenado e o do meu colega do Trapiche. Pra quem só
recebia em vale, em mantimento ardido, de um resto só mofo que o
Coronel estocava antigo na despensa dele. Falando mal não estou, em
cima de quem está no chão o pé não ponho. Mas só mofo, pra que vou
[52] esconder? O preço? Esfolava. Bem, mas passou-se, foi na
correnteza, Deus viu, a queixa, pedra em cima. Que o Coronel Cácio
carrega o barco mas é de desgosto. Levantar a voz pra mim, isso é
certo, ele nunca levantou. A derradeira vez que me entendi com ele
foi quando fui lhe pedir uma vassoura para a Intendência. Seu Dó, me
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respondeu, enfiando o fraque, vá, vá varrendo com vassoura de açaí,
vá varrendo, que o que está faltando é verba. Nossos eventuais, adeus.
— Quer dizer...
— Que que tem?
— Precisando ainda de uma vassoura?
— Se a verba consentir, se tiver eventual, sempre melhorava.
Que que o Senhor diz? Fosse por mim, na minha mão, andava um
brinco a Intendência.
Seu Dó passa o braço no rosto, a modo pesaroso.
— Da volta do cemitério, vamos comprar no seu Guerreiro
uma.
— O senhor acha que devo fazer unia requisição? Por escrito?
— Algum parente seu neste primeiro cemitério, seu Dó?
— Quer dizer... parente que predicado não me dá, mas por que
esconder? Era, não era? Então...
— Parente?
— Unzinho só, Secretário, digo. uma prima do lado da nossa
falecida mãe, por apelido Bonita. Já conta par de anos que daquela
família tantos dela já nem sei onde arriam o lombo, se já juntaram o
pé, se inda viventes, minha família, perdi de vista. Foi um espalho
sério, grito por um parente, meu grito vem de volta, sozinho. A prima,
essa-uma, par de anos já faz. Priminha, que então eu já me dava com
ele, eh! Primos e pombos sujam a casa. Só sei dizer que principiou,
gitinha assim, indo a bordo nos navios, foi que uma noite tiram a
prancha, a bordo ela ficou. Desembarcada na Prainha, pega um
regatão no Vilarinho do Monte, chega aqui de trancelim, cinto na
cintura, toda pintada na boca.
Faz uma respiração.
[53] — Indagou-se, indagou-se dela, quando que a precipitosa
sabia dizer? Passou-se. Deixe que ela como quem quer não quer foi
soltando: tinha sido levada pra unia festa no fundo. Desceu na costa
de um guia invisível por nome Pena Verde. Lá na festa o ente lhe
falou: peixe que lhe derem nesta festa, não coma. Nem caça nem
camarão nem nada. De todo o de-comer que aqui tanto tem nem prove
nem apeteça. E quando subir lá pra cima não volte no rio por três
luas, não olhe pra folha verde e só beba água em cuia pitinga virgem.
Ela então apanhava o junco, assava, comia.
— Assava?
— Fogo, sim, o fogo lá do modo deles no fundo, que eles têm,
assim então ela assava o junco. Comer daquelas comidas, não, senão
adeus que voltava. Antes comesse, por lá ficasse, mais valia lá no
encantado que aqui no mundo debaixo daquele nome. Festa inteirou a
conta de oito noites, que de dia dormiam. Lugar onde se deu ela
guardou, o Morooca, a água lá é ver vinho de mucajá, e dá cada pacu?
Raiando o dia da segunda-feira foi achada no aturiá no Ipixuna mas
dormindo... que desse dormir ninguém tirava. Dormindo, dormindo.
Tão dormindo que, levada para o jirau, o olho não desgrudava,
ninguém sabia que sono era. Ó aquela-menina, é aquela-menina
chamavam, que o nome dela ninguém.. sabia. Se passava a mão pelo
rosto, no pé, ou outra porção do corpo era demais liso, liso-liso,
ninguém podia pegar nele, escorregava na mão de todo mundo e tão
pitiú! Vomitada por um bicho, será? Mas por que tu tanto dorme,
mal-aparecida, por que que tu nunca te acorda, que erva no chá te
deram? Ela? Olhe.
Seu Dó junta as duas mãos na banda do rosto inclinado e fecha
os olhos.
— Aquele sono-emenda-sono se enfiou pelo dia. Deixe está que
ela depois me estoriou: Um instantinho ouvia falarem lá em redor de
mim e logo eu me sumia no meu sono. Uma pessoa soprou no meu
nariz, botou o ouvido bem em cima do meu peito e ouvi: coração dela
bate. Vinha aquela voz por dentro do meu sono. Coração dela bate,
todos disseram todos diziam, e parecia correr pelo rio abaixo e acima,
coração dela bate. Que ia acontecer comigo? Vira pajé, será? indagou
uma voz de velha. Tudo dizia que sim mas nesse instante eivém
27
aquele [54] embarca|diço saltando da proa do pontão, forte como um
sucuriju, agarra o corpo dela, vai lambendo aquele lisume dela, limo
do fundo, baba da maré, catarro dos caruanas, e toca a passar alho, vai
passando alho, no que ela então se acordou. Então ela: tão nua me vi
que, tibungo! me atirei foi n’água e já atrás aquele homem me
trazendo pra bordo me cobriu com urna colcha de ramagem, foi, abriu
um baú, tira a saia de cretone e já me dando o trancelim, me dá o
cinto, me pinta mea boca, eu, ele e Deus naquele toldo, nós três
descendo o rio.
Esfrega com o minguinho o bigode, escarafuncha a orelha.
— Como, não sei, que aconteceu, quero neste instante cair
morta se não foi, dizia ela. Sinal teve para ser urna experiente. Não
foi chamada? Sete dias no fundo, não foi? Quem era aquele do pontão
senão o... Puxou a linha dela com mais sustento e jeito e macheza, aí
ela está, ou já lá em cima acabou-se, pois aquele do pontão, dono dela
só foi aquela só viagem. Falo desse princípio, já do seguinte não falo.
Seu Dó na sua pausa ganha uma luz nos olhos de coruja.
— Muito mas muito por demais faceira deste mundo, tinha de
berço aquela sua influência por festa, viagem, brinco e cetim. Só urna
coisa lhe afianço, não por ser meu sangue, não sou de gabo, no que
pegou tamanho todos urna só boca: de feição e tudo o mais, um
colosso, urna linda formosura, formosa o mais que seja, pelo geral
apreciada, que foi, foi. Quem que lhe botou aquele apelido, Bonita,
sabedoria tinha. Lavou o rosto na água onde boto bóia pra ficar mais
aperfeiçoada de formosura. Seu molde, o Criador raro usa. O seguinte
não lhe digo, o senhor ponha sua peneira e coe. Aquilo que era uma
alegração a dela! A cruz de ouro no pescoço, e cheirando a cumaru,
ah, que Deus tenha, que ele até que diz: menina, tu não era pra tu sair
da minha fôrma, de dentro de mim. A cruz de ouro, de quem ganhou
não sei, como sumiu também não sei, não me compete. A saia que
levantava, não era ela que levantava nem o vento nem o par dela,
quem senão a sorte? Que o que ela dava, aqui neste purgador, de Deus
também era. O maná que elas têm, só do céu sendo, perparo igual o
Diabo não faz. Nós, machos, até que muito mal a gente aprecia o que
Deus preparou com [55] o seu melhor tempero. O desjuízo que teve,
aqui deixou, com ela não levou, O mal que praticou só a ela mal fazia,
que pros outros só o bem fez. Um aqui não tinha, um vivente, por
volta destes vinte estirões, que conhecedor dela falasse o contrário.
Também perdi os traços da sepultura dela nem cruz nem terra em
cima, sinal que toda ela inteira já subiu, chega o que purgou, andou de
canto virado, espero em Deus, que há pra isso o São Benedito tem
procuração nossa. Bonita foi árvore de caucho, espremida de uma vez
só.
Lá adiante o Intendente a acenar que se apressem.
— Olhe, Secretário, aqui entre este seu criado e a pessoa do
senhor, com o devido respeito, de sua posição não vou abusar, que
este zinho cemitério? Tido é como o cemitério das donas que um
passo mal pensado deram, por obra da desinfelicidade. Aquelas todas,
ah, foi-se o tempo... nesta cidade, naquela alumiação do Gasômetro,
ali no Trapiche e largo da Igreja e barracão da Ramada elas só
quebrando cada seda, cada fustão, cada cretone, não falo a cambraia,
mas nunca afrontando as famílias. Sabiam ser desonradas com todo o
respeito, tinham dado aquele passo mas caminhavam como se nunca
tivessem dado, na frente do público. Pois bem, sempre deram de
enterrar aquelas desassossegadas nesse-um aí. Aí sossegam. Então foi
que quando o doutor: Seu Dó, me faça favor, me diga... pra dar o
nome das mais carecentes de ganharzinho um tostão em moeda ou
uma ordem de mantimento, botei no meu juízo que as mulheres
podiam só elas dar conta das três roçagens. A conselho daquele meu
compadre e sopro delas, apresentei de boca uma lista de quatro
daquele ofício delas para obra de capinação desse aí que há de ser o
delas e onde já estão aquelas outras pareceiras. Torto ou direito?
Cabia? Fui, me aconselhei com o Juiz, o Juiz me aprovou. Bati no
Coletor, estou ciente, cortando a conversa que é sempre o assunto
28
dele, contra o Doutor, sempre puxando fogo contra o Dr. Fidalgo,
nisso não meto o nariz, fico sempre nas encolhas, fora de lá o Dó, o
boi é deles. Esses dois, justamente esses dois que tanto se comem,
mal de morte. De cada um a aprovação tive. Cabia? Sempre me
escorando nas boas opiniões, com a maré me levando. Aprovaram. O
senhor não?
O Intendente, o Secretário, o Porteiro, entram no cemitério sem
cerca, numa clareira, uns tucumãzeiros no [56] fundo. Nem um
tucumã. Alfredo vê a Andreza, de cobra-coral vestida, fazendo o
vinho de tucumã, guarda os caroços no tanque embaixo do soalho, um
destes amanhã na palma da mão do menino, tarde de colhereira e
marreca, o gavião pousa na ponta da estaca “cuidado com os pintos!”
— grita a mãe. Aqueles caroços criam bicho, Andreza cheira a
tucumã, pula corda à noite, dos seus pés uma poeira subindo faz lá em
cima a Estrada de São Tiago.
— Que foi? Que foi que viu? — pergunta o Intendente.
Inhambus se lamentam. As capinadoras, quatro, não param o
serviço, dobradas sobre o chão. Alfredo aproxima-se delas com um
tímido boa-tarde. Uma, passando o braço na testa, faz menção de
responder, se responde, não se sabe. As três continuam dobradas
capinando. A que faz menção suspende a capina para apanhar a cruz
tombada, apanha a cruz com um jeitoso respeito, uma intimidade
humilde. Olha para Alfredo, como quem perdoa.
— Seu Dó — cochicha o Secretário — quem aquela que
ajuntou a cruz?
— É a Justa Zolhuda, Secretário. A Justa. Do agrado do senhor?
O senhor carecendo...
Cauteloso entre as desfeitas sepulturas, por entre o capinzal já
abatido, o Intendente, de braços cruzados, guarda-sol ao ombro, mais
se abisma em si mesmo, os olhos na sumaumeira alta. Seu Dó guarda
diante dos chefes atento silêncio e distância, com aquele olho dele de
coruja. As quatro atacam agora um capinzal maciço. O Intendente
contempla. É a sua primeira medida administrativa, sim, senhor, só
falta o fotógrafo. Mal assume as rédeas e já trabalhando. Um instante
só, quer rir, pensa nos cunhados, que eles vissem esta mina, com
quatro putas capinando. Procura onde sentar-se, não tinha, lá está bem
alta a sumaumeira. Ah, miserável! Telegrafa para os cunhados:
venham. Venham.
Alfredo, lá adiante, o Porteiro se chega:
— É o chãozinho delas.
As inhambus gemem mas onde?
— Quem que por esse caminho não se perde... — murmurou o
Intendente em busca do segundo cemitério, o São Sebastião. Vão por
um atalho, varando mato. Alfredo, sentindo cheiro de resinas, pensa
achar um cunuaru, [57] e do cunuaru chegam ao Pucuruí as duas
portuguesas a esta hora se abanam com seus doze leques, comendo
figo.
Desembocam diante da velha cerca na sombra. Ressurgem do
cerradal as primeiras sepulturas.
— Aqui, sim, Secretário, é só senhoras e senhoritas, pessoas de
respeito e a inocentada toda — cochicha o Porteiro, a amarrar a tira
de pano no dedo estropiado. Alfredo olha: seis, de enxada e facão, era
ou não era? Enegrecidas, rotas, na sombra e com o silêncio a que se
habituam lá embaixo? São os próprios, os próprios, repete a si mesmo
e ao coro das inhambus que se queixam. Alheio à inspeção, o
Intendente empina o queixo em torno do folharal: onde as inhambus?
Devolvo o cargo em Palácio? As seis (defuntas?) capinam.
— Vivas, seu Dó?
— Vivas, Secretário? — arregala-se o Porteiro apressado em
informar.
— As seis que ali capinam?
— Que é tudo família, isso lhe afianço, Secretário.
Mas vivas? Tirou a limpo, seu Dó?
29
O Porteiro, ar capataz, avança até onde as seis capinam, dando a
entender a elas que examina o serviço mais de perto por ordem de
cima. O Intendente, de costas, sombrio, risca o chão com a ponta do
guarda-sol: Quem que por esse caminho não se perde...
Desce mais sombra sobre as capinadoras, estas, por isso mesmo
mais fantasmas.
Do atalho, girando a bengala, fumo no chapéu de palha,
engravatado, sapato duas cores, aparece o Coletor Federal, voz de
rabecão:
— Na cidade toda à sua procura, doutor. Mais documentos em
mão. Nunca em tempo algum se documentou uma denúncia, uma
acusação, libelo tão cerrado e inapelável, doutor! Fisguei mais uma.
Já reconheci a firma. É o arpão na goela do crápula! Demissão, só?
Cadeia! Cadela! Veja a carta e pasme, doutor.
Tentando esquivar-se, a afetar cortesia e isenção, o Intendente
força o sorriso, cruza e descruza as mãos agora cercado pelo Coletor.
[58] — Coletor, declarei e declaro, nunca deixo de declarar:
minha posição aqui é sui-generis, à força das recomendações de
Palácio. Desviar-me um só grau da linha que me foi traçada, posso,
não. Não vim para acirrar, para acirrar, não. Ficar a cavaleiro, é o que
me compete.
— A cavaleiro? A cavaleiro? Com esse Juiz a varejo recolhendo
na própria toga os graúdos e miúdos por cada sentença, seja até um
dez-réis de mel coado e escarrando nas ventas de toda a Comarca?
Diante desse espoliador de cem viúvas contadas a dedo, uma a uma,
de mil órfãos cujos nomes posso lhe dizer um a um? Esse salteador de
toga e arminho? Doutor!
— Convenha, Coletor. Bom é o galo que nunca sai do seu
terreiro. O Judiciário não me delegou poderes para ação corregedora e
aqui estou para eximir-me de qualquer inclinação seja deste lado, seja
daquele... Sim, Coletor, tenha em consideração seus sentimentos, sua
indignação, sua luta. Que desista da campanha não sou eu que lhe
peço. Mas a mim, nesta missão, só me cabe, a rigor, estritamente,
fazer o que delega o Executivo. Até o momento que merecer a
confiança de Palácio ou no instante em que voluntariamente eu...
Uma coisa, me permita lhe dizer: presumo avaliar, na minha idade, a
que levam as paixões, Coletor. Estou na sua terra, Coletor, para observar absoluta imparcialidade, aplainar desentendidos, dando às partes a
minha melhor audiência e os meus, não digo bons, sim, magros
ofícios. Não é por vezes indicado, Coletor, um pouco d’água na
fervura?
— É que o doutor onde pensa ver paixões, ver desentendidos,
ainda não meteu o pé a fundo no atoleiro a que foi jogada a Justiça no
meu Município, doutor. Pois me deixe ferver, me deixe ferver, que só
a fervura lava a Comarca, doutor.
Bugalhos acesos, carta na mão, saltando sepulturas, o Sede de
Justiça, batendo o capim com a bengala:
— Suficiente a prova desta carta e o bicho, era uma vez, crá!
nas grades, doutor! Pra despachar em favor dos Lima e Paes, aqui na
carta dá o preço, aqui a letra dele, estipula a quantia, em letra corrida,
em algarismos. Aqui a letra dele, letra que um entendido em
grafologia me leu a bordo: exata letra de rufião. Aqui a letra dele.
Quem arrasta ele para o xadrez sou eu? Ou as cartas do próprio [59]
punho aos comerciantes desta terra que ele devastou e devasta? Só os
comerciantes? Só?
Apóia-se na bengala:
— Aqui nesta cidade tinha uma rapariga criada no limo da
maré, um mimo de tapuia, vivendo do “Me dá um pago que arribo a
saia”. Desembestou rio adentro, hoje ai no campo delas. Quem que
podia chegar ao pé do corpo? Trazia do mundo o seu fedor inteiro. Só
lhe restava aquela cruz de ouro no pescoço, cruz que sempre
carregava mesmo no vuquevuque do seu ganha-pão. Como, por que,
me decifre, não se sabe, não se sabe, a mesminha cruz de ouro é vista
no colo de alabastro da filha do Juiz, em Belém. com estes meus
30
olhos vi, vi, era! Saía da Basílica ou do Bosque com a cruz de ouro,
vista num baile da Assembléia com a cruz de ouro, com a cruz de
ouro a bordo do navio do Mosqueiro, e andando pela João Alfredo e
no cais num bota-fora aos cadetes, e na terrasse do Grande Hotel e no
Olímpia, a cruz de ouro, que ele, o Juiz de Direito da Comarca,
insensível ao fedor, zás-trás arranca do pescoço da agonizante.
Toma a dianteira do Intendente.
— E da ilha? E da ilha? Da ilha que deu ao Jovico Umiri,
pescador do rio abaixo, já soube?
— Soube, não — assevera o Intendente, abrindo os braços,
queixo arriado. O Coletor tira o lenço: olhe que não faz dois anos.
Senta-se no pau caído, toma um descanso.
Sobre isso o estirão é uma boca só. Numa das suas viagens pelo
interior, entrando nos barracões do comércio que nem mucura nos
poleiros, o Meritíssimo amarra o bote, já carregado de gêneros, na
estiva do Jovico Umiri e dá com a filha do homem escolhendo
sementes de ucuuba no jirau.
— Mas Jovico Umiri!
— De que o senhor se assustou, já, doutor? Que foi?
— Está-que-está um pexixéu essa tua filha, bichão. Teu nome?
Vem cá, aquela-menina.
A pequena saltou do jirau, meteu-se atrás de umas sororocas;
dela o Juiz só via o cabelo no meio das folhas. Quebra um ovo,
engole a gema, manda o piloto cobrir com a lona os gêneros do bote,
anda que anda pelo jirau, meio [60] bufoso, olho nas sororocas. Então
seu Jovico Umiri soprou o assento do banquinho, puxou o banquinho
para o pé do Juiz: mas, doutor se assente, o senhor não repare a mobília. O Juiz se assentou, a modo assossegado, pondo na voz aquela
sumaúma dele:
— A ilha lá defronte, quem morando lá?
— Morador, que eu saiba, que me conste, doutor, estou por
saber. Dono daquilo pra lhe dizer que sei, minto. A ilha, cismo, é do
Governo mas não lhe garanto.
— Te serve?
— Me serve o que-que me serve, doutor?
— Te indagando se te agrada. Queres?
— Que então já que é, que o senhor está me dando?
— Fica. Fica com ela.
— Eu, doutor?
— Não te faz de desentendido. A ilha. Aquela. Pega pra ti.
— Bem, o senhor me dando, dado pelo doutor, o doutor quem
manda, o doutor dispõe, é do Governo, rejeitar é até desfeita. Bem, o
senhor que sabe.
— Despachado. Tua.
— Escritura só de boca, doutor?
— Ou não é o Juiz de Direito que te fala, Jovico Umiri?
— O embaraço é que o senhor só faz isso só por uma pura
caçoagem comigo, doutor, só pra me experimentar. Não carece me
adoçar a boca, que o amargoso é o meti de cada dia.
— Pois é tua, a ilha, meu pé-atrás. Depois te dou um papel. Te
dou de boca, é lei. Isto aqui é demais encharcado para o pé da tua
filha, lá mais enxuto, mais vistoso. Toma logo posse e me planta lá
uns pés de maniva, me manda uns carás do teu plantio, se tem cotia,
me manda uma. Finca teu tapiri lá, que isso aqui não é teu, é do
Catunda que não demora te bota pra fora. Lá te dou eu, governa a
Ilha.
— Governo só é de parte do senhor, doutor, o mais que sou é
governado.
— Te dou a ilha, pronto e acabado.
Vinha que vinha aparecendo de detrás das sororocas, pulou no
jirau a arisca Umiri.
[61] — E tu, minha filha, vem cá, me diz tua graça.
31
— Damiana, criada do senhor — respondeu o pai. — Não
arrepare, doutor, não arrepare que ela no que botou corpo se
asselvajou que só visto muito por demais braba.
— Braba? Multo por demais braba? Nem me toma a bença?
Damiana, coçando o pescoço, repuxando os dedos, veio, dobra
o joelho: a bença? sempre poupando o rosto, tirando a mão ligeiro das
garras do Juiz. O pai, atrás do tapiri, em busca da vara. Damiana na
beira do jirau, de costas para o Juiz que avaliava a caça. Obra de um
Instante, o Meritíssimo:
— Mas o peixe, Jovico Umiri? Onde que está o peixe? Que
peixe vou ter hoje no meu jantar, ainda hoje em casa? Te dou a ilha,
me escasseias ao teu peixe. Me faltando com o peixe?
— Me aprontando pra a tapagem, doutor. Já vaza, O senhor
espera?
O pai voltou, aquela tamanha hora da madrugada, dono da ilha
e com os peixes para o Meritíssimo. Ganhou do Juiz a ilha, o Juiz lhe
comeu a filha, é o que o estirão repete, quase na boca do Bacá, não
tem aquele igarapé?
Um pouco mais abaixo é lá.
— Sabia, não — fala o Intendente num gesto imparcial.
— Fosse só Isso... Me come é a Comarca toda, toda. Toda! E os
negócios dele, de farinha, arroz e madeira, na ilha Gavião?
Fugindo por entre as sepulturas, com o Coletor atrás, o
Intendente aproxima-se das capinadoras, o rabecão tocando:
— Pois me arrasa o Município, me desonra a Comarca, e
sempre impune, e sempre intocável? O vitalício? O irremovível?
Sempre a safar-se pelas injunções partidárias, levando a Palácio, a seu
crédito, as vitórias eleitorais que faz a bico de pena, etc., etc. Ou nada
vale meu berreiro em nome de vivos e mortos? Esprema aqueles
autos, doutor, e apare as lágrimas que escorrem, de viúvas, ódios, de
todos os esbulhados. Até desses aqui em descanso, se necessário se
levantam para testemunharem, doutor. Será que estou berrando no
deserto? Que até aí vai a maldição [62] daquele padre? Que tudo que
recolhi, documentei, selei, para o processo, é meu delírio? Que fiquei
pancada? Que todo o mundo na Capital tapa os ouvidos ao meu berro,
doutor, e sou apontado pelas ruas, a bordo, no Manduca, na portaria
do Tribunal, como o Sede de Justiça? E eu sempre provando minha
fidelidade ao PRF, ao Governo, e vendo que as minhas representações
junto a Palácio contra o prevaricador ficam com a pedra em cima? Ou
por ter passado do limite, pelo tamanho dos crimes dele, pela
acumulação das provas, já ninguém crê? Ou confirmo que tenho razão
ou fico perambulando pelo Foro, subindo e descendo a escada do
Tribunal, completamente zuruó?
O Intendente finge maior interesse pela roçagem, curva-se,
solícito, diante da capinadora que até se assusta, caindo-lhe a enxada
da mão.
— O servicinho indo, minha senhora?
A pé-no-chão nem apanhou a enxada sabe. Acode a outra,
enxada no ombro, risonha, desdentada:
— Bem por demais puxado o servicinho, doutor, demais gito o
tempo da empreita. Pelejando pra que no dia esteja, doutor.
— O cemitério, dona, é das senhoras, das senhoras.
A risonha apóia-se no cabo da enxada:
— Uai! Deus querendo pode ser também do senhor, não,
doutor? Ah, doutor, meu atrevimento! Forrado de veludo e na cidade
será o seu, os sete palmos do senhor, quando for a hora, doutor. Me
desculpando, já mordi mea língua pra não bater mais no dente.
O Intendente desafina, toca aos dois companheiros:
— Em frangalho a casa da espanhola com a hortinha na frente.
A senhora aceita parte da empreita da capinação dos cemitérios?
Estava de preto, da cabeça aos pés ferozmente viúva. O filho, como
de cera, cheio de eczemas, feridas na cabeça, os olhos escancarados.
Não, me disse ela com toda a soberbia, virando-se para as suas
couves.
32
Alfredo volta-se para as capinadeiras, o olhar da risonha uns
longes caçoava. Brandindo a carta, o Sede insiste:
— Intimou a espanhola, ameaçou com oficial de justiça, disse
que mandava jogar creolina e cal no canteiro. [63] Anteontem
indeferiu a petição de um compadre meu, morador da ilha Grupaí, só
porque está escrito Ilustríssimo em lugar de Excelentíssimo. Exige
Excelentíssimo ou Meritíssimo.
— Coletor, uma informação, a tradição dos abacates aqui...
— Olhe, doutor, por tudo que faço, é por minha terra, minha
gente, ver se ainda se pode salvar um telhado, uma donzela, um órfão,
a horta da D. Pepa. Pelo que ainda resta na Comarca. A que hoje,
neste barranco, o senhor encontra tão morta, era-que-era à beira do
Amazonas, com o Gasômetro dando a melhor luz do Pará. Foi na
minha mocidade, doutor. Guardo ainda essa luz nos olhos, doutor. De
longe quem passava ao largo, a bordo dum lóide ou do navio inglês,
se admirava, por força tinha de se admirar. Tempo que tínhamos Juiz.
Pá, o velho Juiz, coração despenca... e vem esse. E tudo apagou. O
que resta do Gasômetro? Desabou tudo, roemos aquela beira, doutor.
Ajeita a liga da meia, sacode os punhos:
— Agradeça a quem?
Quebra um ramo, morde a folha, atira fora o pau:
— Agradeça a quem?
Vem curvo, fazendo-se sorrateiro, para o lado do Intendente,
recua, a bengala no ar.
— Borracha? Borracha! Costas largas tem a borracha! Em asa
negra se virou aquela toga. Pelo que sei e comprovo, só de donzelas
nessa beirada de baixo contado dez. Não somos as do rio acima e
afluentes, estou ouvindo vítimas e testemunhas. Espero novos
documentos na descida do Lobão. Como cidadão nascido e crescido
neste lugar, jurei. Ah, jurei!
Bengala no braço, mãos postas para o céu:
— Jurei, sim. Deus me escuta.
Enfia a mão no braço do Intendente:
— Jurei arrastá-lo pelos fundilhos até o banco de réu. Ele veio
num lote de bacharéis que pensavam que nisto aqui se achasse ouro
nas beiradas... Os janotas ganhavam o canudo no Recife e: o Pará,
que lá é a mina. Tacavam a unha de tamanduá em cima das comarcas.
O lote! E esse? Já corrido do Paraná. Desembarcava já [64] crápula. E
à nossa terra, à nossa Comarca coube ao canalha. Anda de bote todo
nu pelos igarapés, o canalha.
— Como lhe venho ponderando, Coletor — tenta o Intendente,
contrafeito, sabendo-se daquele lote de Recife, a balançar a cabeça, a
rir como se troçasse do que dizia.
— Pela parte que me toca, Coletor, tudo farei para pacificar,
obter uma trégua. Acirrar, não. Faça de conta, Coletor, que está me
vendo com o ramo de oliveira. Com o ramo de oliveira. Ó Secretário,
ande, ao terceiro, ao serviço.
O Coletor, dobrando a carta:
— Uma jura fiz comigo, doutor. Se não ouvirem meus gritos, se
aquele Tribunal não me der ganho de causa, se o Supremo — pois
vou ao Supremo — não tomar conhecimento, outra coisa não me
sobra senão mandá-lo às minhocas. Guardo um chumbo com o nome
do vasilha. As minhocas, doutor.
O Intendente abre os braços numa lástima afetada.
O Coletor enxuga o carão pardo, recolhe a carta, apalpa o peito,
tira outro lenço que exala... Essa loção? indaga Alfredo, surpreendido.
— O Coletor conhece em Belém...
O Coletor levanta a bengala, conduz o Secretário pelo braço,
num ar confidente:
— Quem que por ali pelo Foro, Delegacia Fiscal, Recebedoria
de Renda, Alfândega, igreja das Mercês, desconhece aquela senhora?
Já até você conhece.
E agarrando o braço do Secretário:
33
— Mas que vou com Isto até o fim, ah, até o fim!
Tira do bolso os óculos escuros, inclina-se para o Intendente:
— O apelido? Este meu apelido?
O Intendente faz de surpresa e Indagação.
— Ora, doutor! Aposto que já ouviu nos salões do Palácio. Sei
que o Governador também me chama. Corre. Multo me honra o
apelido, sim, sou o Sede, sou o Sede, acabo pondo no meu cartão
embaixo do meu nome. O Sede, sim.
De óculos, tirando o chapéu, mostrando o fumo:
— E este fumo, só tiro quando matar a minha sede. Por ora.
carrego luto.
[65] No rumo do terceiro cemitério, o Intendente chama o
Secretário. Seu Dó precipita-se numa zelosa obediência. O Coletor
acompanha.
— Olhe, doutor, por me gabar não é, mas a nossa casa? Onde
moramos? Sem platibanda, duas janelas da sala, sem vidraça, a porta
com cancela e a janela mais larga da. minha saleta, nos fundos a copa
de uma palmeira, o coqueiro? Pode tocar nas paredes, soa ali é tempo.
A mais antiga desta ribanceira, claro que depois do Forte. Cumeeira
de 75. Ali atrás da igreja, paredes da monarquia, ouve os primeiros
vivas ~. Abolição, à República, importantes fatos locais, urnas que ali
se abriram para proclamar a vitória dos nossos candidatos, ali
documentadas tantas atas, compromissos familiares, resoluções
públicas, sessões cívicas, festas escolares, bodas e funerais, questões
do Foro e da Fazenda. Aqueles famintos de 1920? Aqui desembarcados, ou chegados do mato, perseguidos? Tratados como
bandoleiros? Minha mãe lhes deu guarida, deu de-comer, lá rezaram
ladainha, minha mãe: desta casa, autoridade alguma me tira um
sequer, debaixo do meu telhado, meus filhos são. Xadrez deles é aqui
a mesa posta, pomada e secativos para as suas feridas. Assim falou a
minha mãe. Ali nasceram duas crianças do bando, se foram três anjos,
a muito custo um velhinho cedeu a alma ao Senhor. A casa cercada de
praças e minha mãe, na porta, mandando buscar mantimentos, chama
parteira, quem faz o caixão do velho, quem leva os anjos, com o cerco
dia e noite. ~ ou não é uma tradição? Ali modestamente, atrás da
igreja. Se uns reparos no altar lá na igreja? Onde guardar os santos?
Na nossa casa, por mais perto e mais seguro, por se tratar de nossa
residência. D. Pequenina não tem peito, apesar dos seus dois tão
melancias, pra dizer não na minha frente. Quando o Bispo passou por
aqui e quis ver o Forte, tomou café conosco, abençoou a casa. Lavrei
uma ata de visita, assinada pelo Bispo e todos de sua comitiva. A
velha maloca também serve de escola estadual, sede da Coletoria,
ponto de eleitores, onde fica o Fiscal de Consumo quando passa por
aqui, guarda o espólio do Euterpe Clube que há de ressurgir das
cinzas. A casa mais fotografada neste Baixo-Amaxonas. É ou não é
um monumento da cidade? Isto já me perguntou um viajante. Resido
nesse monumento e dele faço os meus disparos pela Justiça. A casa de
pé ficou. De pé. O azar, com toda a sua [66] venta|nia em cima deste
barranco, não me quebrou uma viga, uma telha, uma ripa. Moradia
com o seu alvará do tempo, ali atrás da igreja, desafiando as
calamidades e olhe que calamidade como é esse Juiz! Pinturas, sim,
de unia mão de tinta carece, mas isso só quando, o quando que há de
vir. Estou no mais antigo, ali de idade, que o tempo é grande e mais
que o tempo é só Deus. Diz ou não diz alguma coisa?
Os óculos no bolso, abre o paletó, vê-se o revólver.
— Dali na velha morada, com o Juiz no xilindró, redimida a
Comarca, pinturas vou fazer, caio a fachada, empalho as cadeiras
velhas, lustro a escrivaninha, ponho em cima um forro com um
candelabro, respeitando sempre a obra antiga. Reinauguro o Euterpe
Clube. Então solto meus foguetes. pum! Minhas girândolas, pum!
Meus balões, lá vai! Minhas gargalhadas, os passarinhos das minhas
gaiolas, meu confete, minha serpentina, já tenho as bandeirinhas com
que adornar a frente onde armo um palanque, um coreto, inauguro o
busto da Justiça (já tenho um, de bronze), dou uma feijoada campal
34
feita pela velha Efigênia, com uma leitoada no espeto, eita, Nosso
Senhor. Sem falar nos pratos finos, ah, ah! Monstro baile vou dar,
trazendo damas e cavalheiros da Prainha, do Porto de Mós, de
Gurupá, do Arumanduba, de São Domingos da Boa Vista, de São
Francisco da Jararaca, de Santo Antônio da Mucura, das principais
famílias do Interior do Município, todos num gaiola fretado,
embandeirado, por dentro e por fora todo iluminado nas três noites
comemorativas. Não contente com os Fonsecas do Bacal para
tocarem, contrato de Monte Alegre aquela banda com doze figuras.
Baile da sociedade, baile da Redenção da Justiça, e para o pessoal
geral abro a Ramada, aquece tambor, Nhoduca, bate tambor,
Raimundo Mendes, povaréu revirando, três ladainhas rezo, com folia
do Divino Espírito Santo. Se possível, mesmo fazendo de conta, o
Fortim dá três salvas... Deixa está que já tenho em casa meus
foguetões. E no cemitério das meretrizes, ah! No cemitério! No
primeiro! Compadecido, cavo os sete palmos condignos, com estrume
e piche. Aqui apodrece o meretriz-mor. Quem for vivo, verá, verá.
Então, sim, tiro o fumo deste chapéu e, descalço, acompanho o Círio
em Belém, carregando na cabeça uma balança de cera.
[67] O Intendente:
— E a igreja? De que data, Coletor? Foi depois?
O Coletor já não lhe dá atenção:
— Dormir, não durmo, comer, não como, engulo, ninguém me
rende na guarita, sentinela que sou dia e noite, toda madrugada oiço a
sururina. Os cigarros que fumo! As noites em claro que passo! As
visitas, em Belém, e cada desembargador! É a redenção, que eu
quero, de minha terra, doutor, e é só o que eu quero! Me reserve uma
tarde para lhe expor todo o processo, faço desfilar os crimes, as
prevaricações... Azar não é que sopra nesta terra, é só esse Juiz, o Asa
de Urubu.
O Coletor despede-se, vai ao Trapiche, tem ainda de reconhecer
umas firmas.
Estou acendendo a mecha, doutor. O estrondo que vai ser no
Judiciário! E olhe, cedi a minha enxada a uma delas para limpar o
cemitério, aceitando fazer parte dessa limpeza. A minha, que é varrer
esse Juiz desta Comarca, pede em troca a sua enxada, doutor. As suas
ordens, doutor, na casa mais antiga deste Baixo-Amazonas. Apareça,
Secretário. A loção que uso? É dela, sim. Consigo, sim, lá com a
Brasiliana.
Intendente, Secretário, seu Dó chegam no terceiro cemitério. As
mulheres roçam, refincam cruzes, varrem lápides.
— Fede a bosta de gado — segreda o Intendente.
— Este aqui não navega como o de Cachoeira, doutor. Lá,
quando enche, sai nadando. Os pé-juntos de Cachoeira são anfíbios.
Alfredo escuta aquele cemitério debaixo da enchente,
navegando. Logo que parava a chuva, do velho cemitério no campo
orvalhado a lua subia.
— Mas onde que piam as inhambus? — indaga o Intendente a
encobrir de indagação a contrariedade e a pressa de embarcar no
primeiro gaiola. E baixinho, mão no ombro do Secretário:
— O nosso Sede... O Sede de Justiça... O caso da ilha? Eu já
tinha ouvido da boca do Guerreiro, sim. Que o que diz seja verdade,
me parece que sim, se sabe em Palácio, no Tribunal, o Governador
me falou. Mas como [68] diz, como declara, insiste, berra... Está
cego, o que só vê pela frente é o Juiz, figura do Cão, que quer destruir
e não pode mais viver sem o Juiz. Ë no que pensa, sonha, come,
defeca. Logo, sem querer, me vejo do outro lado, ao lado do outro, o
totalmente corrupto, o outro que já parece uma invenção do Coletor,
uma grossa fantasia, embora não duvide que o bicho exista, custando
a crer, mas de carne e osso, não nego, na toga de magistrado. Que o
Juiz é um cavalheiro não se contesta, sim, sim, uma airosa falta de
vergonha, uns rasgos de simpatia, sim, sim, no mal que faz, um tão
insinuante descaro. Ou não será uma vitima também? O que lhe
35
coube? Ou o Sede usa apenas um pretexto para gargantear... E a parte
que nos cabe, da culpa?
O Intendente fecha a cara.
— Cada um de nós mal põe o pé neste barranco logo se sente
réu, alguma coisa perpetrou que não sabe. E creio que o Coletor é
grato ao Juiz pelo que o Juiz lhe dá para poder exibir a sua sede de
justiça...
Uma cobra! salta Alfredo para o lado, escondendo o susto com
o riso. Veio o Porteiro: é um calango, Secretário. Aqui no sagrado as
cobras respeitam.
— Pois avante! É a nova era, Secretário! — exclama o
Intendente numa zombaria rouca. O sinal do ressurgimento. Os
defuntos atestam. E o Conselho Municipal, para aprovar a capinação
dos cemitérios, quando convocaremos? Também podemos arrancar o
mato lá, de dentro do Gasômetro. Se não dá luz, pelo menos não dê
cobra. Temos que considerar de utilidade pública a horta da D. Pepa,
a flauta do Maestro, o Coche Fúnebre. Oh, essas inhambus não se
calam!
Que as inhambus continuem a piar, pede Alfredo, piando,
piando pela cidade aquela que lhe apareceu devagarinho e não esta,
aquela vista do navio, Fortim e mangueira sobre o Amazonas.
Também as inhambus lhe falam do sossego que o envolve, a visão
devertida dos cemitérios, três e sendo capinados. De tudo tira o sabor,
uma promessa, seja do Cristo e seu tucano, das ruínas ou das
sepulturas, das decepções do Intendente e da sede-no-Juiz que ferve
no Coletor. As inhambus lhe trazem tardes do Arari, festa de Santana,
o pai na montaria com o velho Barnabé remando, Isabel no jirau
escamando peixe, aquela dos [69] ma|racujás que lhe dizia: Mas se
asserene, mas se asserene, ao pé da loucura em flor. A viagem ao Rio,
foi? O praça desertou? Na pia do frege limpou as mãos, pois trabalharam. E aqui neste fosso? Vozes e vozes se depuram no pio das
inhambus. Desertei do mundo e dos meus vinte anos? Descobre junto
da campa um pé de roseira. Perante vós, roseira, tomo posse.
Soturno, o Intendente recita:
— Quem que por esse caminho não se perde...
Nisto, no caminho, agitando uma folha de embaúba, todo de
branco o Meritíssimo.
Bateu a cidade, porta do Guerreiro, porta do Bensabá, atrás do
Intendente. Aonde andava o Intendente? Raptado pelas botas do
Itaperera? Abraçou o Secretário, se desculpando não ter ido ao porto.
Então o novo Secretário? Tão em flor! Não vinha enganado? Sabia
para onde vinha? Recebeu a bordo um abacate como a chave da
cidade?
— Estou indo o menos possível àquele era-uma-vez Trapiche.
Prefiro sair no meu bote a vela até o meio, no largo, acenando para o
navio. O nosso belo cais? A qualquer rabo de maré desmancha-se.
Morreu debaixo dela a paidegona cobra que o sustentava. De um
tempo pra cá tudo aqui apodrece... Eu, se me conservo um pouco, é
pela salmoura que a mim preparo, se não!
Dá uma olhada no cemitério
Eta ferro, Januário! Pode-se afinal bater o pacau nesta cloaca. Já
não recuso os sete palmos nesse chão agora capinado, que Deus me
poupe. Contribui emprestando a enxada lá de casa para a capinação.
Até para a morte estava isto aqui inabitável. Mas mais fácil é limpar o
lugar dos mortos. Dos vivos é que quero ver, meu plenipotenciário.
Palmadinha no Secretário, piscando para o Intendente:
— Mas, Januário! O mancebo? Esse é no trinque, por quê?
Porque esse mal emplumado neste jirau podre? Que fez ele na Capital
para vir purgar nesta aldeia defunta? Tão começando a vida nisto que
está acabando? Principiar onde tudo termina? Bastava ter trazido um
daqueles pedintes que atravancam a Secretaria Geral, o Palácio, a
Casa Batista, cavando as Secretarias Municipais vagas. Aqueles
sujeitos, coçados do interior, de paludismo e [70] ca|chaça, danados
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por uma vaga aqui ou no interno. Aqueles caça-Secretaria, estou, que
lhe assediaram, não? Mas o moço, esse, de palmebiche? Que foi? isto
aqui, meu filho, este brejal, esta cabeça de ribanceira, só pra mim que
resisto, que sobrevivo, me forro, nestas cinzas emendo meus pedaços,
não fosse o bicho que sou. Mas menino que vem de fora aqui
depressa amofina e enferruja, de repente, de repente. Isso aqui só dá
para o Fiscal, por exemplo, que encontra o elixir na Bi, com o anão
dando saltinhos na praia e batendo a cabeça nos paus. Você, rapaz,
está mais com cara de quem ia ao Rio de Janeiro e pegou o barco
errado. Foi?
Alfredo diz que sim, pegou navio errado, mas aqui fica.
— Todo dia olhando o estirão de outra banda? As três bocas do
Xingu? O mesmíssimo mato?
— Armo a rede no Fortim, durmo a sesta ao pé dos canhões.
— Então, meu filho, você não tem vinte anos, tem, não. Tenhoos eu, que faço ainda das minhas arrancadas.
O Juiz cobre-se de seriedade e cortesia.
— Então já viram o piano? A harpa? As nossas relíquias? A
horta da D. Pepa? Sou o Instituto Histórico neste Município, O
Fortim? O Coche, a harpa, o piano, o Gasômetro, o ex-Intendente, o
anão, os sonhos do Velho Bensabá, as mamas da Bi, os penicos
pendurados no palhal da D. Benigna? É de minha obrigação guiá-los
e indicar-lhes os pontos de recreio. Aqui para o dom donzel: já
ouviste falar do Itaperera, lá, onde é o xirizal?
O Intendente finge não escutar seguindo aqui, ali. Alfredo
instiga o Juiz:
— Que que tem, doutor?
O Juiz inclina-se, respeitoso:
— Sim, pras bandas do Itaperera. O gineceu, xiris em penca.
Vamos no meu bote. É a plantação daqueles sítios.
Lastima-se:
— Pelos anos que me embrenhei nisto, bom guia sou. Também
vim do nordeste, me formei no Recife, me aventurei no sul. Saindo do
Paraná, perseguido pelo Floriano, aqui me atolei, esta lama
devagarinho me engolindo anos e anos. É a minha estoriola. O Dr.
Fidalgo Loureiro, neto [71] de senhor de engenho, criado no leito de
negra? Que pensava obter no Celeiro o que lhe foi prometido e curar
seu paludismo na Suíça? Ou lavando o fígado em Vichy? Adeus
Ficando, ficando, que acabei, de uma vez, aqui sepultado, nesta
Comarca podre, já gasto das minhocas, não fosse a marapuama que
me sustenta.
O Intendente, de cabeça baixa. O Secretário: garanhão velho
apessoado, todo de branco, a gravata, fez a sesta, tomou seu banho.
Transpira o que dele dizem, sim, mas tão naturalmente, quem sabe
bem prosa de suas ações, olhem o rosto de cavalheiro, a tesa cabeça
branca, o olhar gavião. Ganhou do Juiz a ilha, o Juiz lhe comeu a
filha. Alfredo, agora, sim, um pouco espantado. As palavras do Juiz
se vê num sobressalto. Com efeito, neste fim? Começar neste fim? O
velho vampiro tinha sugado a ribanceira toda? Seu desembaraço diz?
Ali está, vitalício, de branco, gomado pela jovem amásia, o bote à
espera para levá-lo ao xirizal selvagem. Magistrado de corpo Inteiro,
e irremovível, safado como um jacurutu. Velho vampiro. Será que o
Sede te crava a estocada no peito?
— Então, Secretário? o Dó já lhe deu a chave do primeiro
cemitério? Quem que ali jaz e quem que ali capina? É ou não é, Dó?
O bordel das mortas?
O Porteiro, mais cabeludo, o pé amarrado, acenando que sim,
senhor, sim, senhor, suado e obediente.
— E aqui às ordens, meu jovem Secretário, o seu Juiz de cacuri
e bote a vela, Juiz de beira rio, aningal e piri, Juiz deste monturo, ao
peso destes escombros, a seiscentos mensais que é quanto um
magistrado vence neste buraco. Que se há de fazer senão o marisco?
Alfredo concorda, o Juiz bate-lhe às costas:
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— Olhe, menino, o Lobão está desce-não-desce do Xingu,
aproveite o retomo. Apronte-se para o concurso de Fiscal de
Consumo, o mais que depressa. Aqui a galinha bota o ovo oco, só
casca. Mande o inocente de volta, Januário. Deixe isto pra nós que já
passamos, que somos do Palácio. Condená-lo a este abacatal sinistro?
— O Lobão desce-não-desce? insiste o Intendente.
— Enfim, paciência, rapaz, não demora fazemos juntos unia
viagem de bote por essas ilhas, igarapés e beiradas. Quer tapar
igarapé comigo? Me vá de palmebiche, não. No bote, fico nu de corpo
e alma.
[72] — O Lobão?
— Já, Januário? Já vai safar-se? Já, Januário? O rabo de foguete
nas mãos desse menino? Ao Coche Fúnebre, vamos.
O Juiz segura o braço do Intendente, hesita, engole palavras,
solta o braço do Intendente, volve indagando baixinho se o Januário
andava dando trela àquele cachorro, se aquele negro lhe tomava o
tempo, falando-lhe.., O Intendente, como num sobressalto:
— Dr. Fidalgo, aqui não estou para pôr pólvora no fogo e sim o
meu modesto balde d’água. E o de que se precisa aqui, justamente,
esfriar os ânimos. Será que o caldeirão não esfria?
O Juiz volta-se para o Secretário:
— Criou-se em minha casa. Dei-lhe pão, dei-lhe roupa, dei-lhe
letras, desentupi-lhe a barriga das lombrigas. Bem molequinho, assim
chegava em casa berrando, em pêlo, fugindo da caruana que a mãe
mandava correr atrás dele:
este, doutor, filho meu não é, deixado que foi pela mucura na
bosta das galinhas, com perdão da palavra. Tirei da bosta das
galinhas. Dei-lhe a oportunidade de ser um homem, uma ova! Quis
tirá-lo da merda. A minha comiseração em que deu! Veio até aqui a
víbora?
— O instante em que aqui esteve foi para ver as sepulturas da
família.
— Família? Aquele filho da puta? Ora, Januário! Não me venha
com panos quentes!
O Juiz ri curto, dá de ombros, escarra. Alfredo lhe vê no rosto a
irremovibilidade crespa, a vitaliciedade ganhando uma palidez.
— Com o nome que tenho, posso admitir que um tal cabra?...
Ora, Januário! Quem passa por perto dele tem que apertar o nariz. E
esse monturo em pessoa, criei em casa, lhe dei um lugar na minha
mesa, tempo que a minha família penou nesta cloaca. Que é que o
pústula anda lhe dizendo, Januário?
— Veio aqui ver as sepulturas dele, Dr. Fidalgo. Se não
acredita, paciência. Fie-se na minha palavra, homem!
— Chão deste cemitério? Vomita os despojos, nega-se a
sepultar até parente dele, Januário! Família dele? A mãe? Ah, nunca
imagine coroca mais ordinária! A coirona, [73] com o terço na mão,
vai guardando os ouros que tomou da afilhada órfã, que morreu na
mão dela, sabe lá de quê. Vira matintaperera na sexta-feira, vista
botando mocó na minha porta. É a bruxa velha das aflições, ai Jesus
tão lacrimosa! rastejante, cãibras na perna em abril, dor na ponta da
pá, come ovo de cigana para curar a piama, se faz de eterna infeliz,
crê que todos neste mundo lhe invejam o filhinho Federal, o
monstrengo que ela gerou com o macho da mucura. Até no telhado
tem tajá para lhe proteger o pardieiro, dia que a casa anoitece toda
cercada de vela acesa. Uma vez queimou a capoeira que faz fundo ao
quintal dela para espantar as cobras para ali mandadas pelos inimigos,
e enxotar visagens e feitiçarias, quando o seu oficio é só desejar mal
aos outros, por isso a Deus reza, roga ao Diabo, tirando do rabo os
malefícios que espalha por toda a cidade. Tão rastejante, vá ver, a megera te come sem que percebas. Certidão nunca mostrou de seus dois
casamentos, um disque na ilha Mariatiapina, outro no Ituquara, e os
retratos dos amásios na parede como maridos. No meio o dela, como
inconsolável, virtuosíssima viúva. Semelhante bucho obrou
semelhante filho. Pois uma noite, não me veio em casa, de véu, toda
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de preto, banhada em lágrimas, com aquela caveira no saco? Doutor,
me acuda, nos livre desta caveira que o meu filho usa na praia para as
representações dele, que Deus nos livre. Nas suas mãos deixo a
caveira, aceite, que lhe peço de joelhos. Perdoe o meu desgraçado
filho. Sei que o senhor é sempre o Juiz. Contra a Justiça aqui na terra
só a Divina, e esta não está do lado do meu filho, está do lado do
senhor. Receba das minhas mãos a caveira que a alma, que viveu
dentro dela, demais padecendo está nas trevas, eu oiço os seus
gemidos. De mãos na frente, fazendo o meu exorcismo, fiquei de
guarda: “E já, jacuraru de saia!” A filha, essa coitada, dando o seu tiro
na macaca, creio que já nasceu de perna podre. O irmão, aquele
Zeqüenqüém, eu quis meter no xadrez, reles falcatrua, e lá me vem a
megera, toda emplastada com pó de rosca e mocotó se rojando aos
meus pés que não fizesse isso, filhos dela não prestavam, sua sina,
não botasse o desventurado no xadrez. Acabei dando a ela uma
nomeação de oficial de justiça, a ele, o Zeqüenqüém, tocador de
violão, mordedor a bordo dos gaiolas. Vou indicá-lo para Juiz
Substituto interino. A mulher do outro, sempre em Belém, mamando
do Tesouro como [74] pro|fessora da escola aqui sempre fechada?
Essa, explica-se, um clorótica, morrendo por tão miserável
casamento. É a gente dele. Tem lá em Belém as costas quentes, vive
lambendo as botas do Monteiro Tavares. É claro que não tomo
conhecimento. Minha posição, meu passado de família, a consciência
do que sou, tudo me impõe que o ignore.
O Juiz assume a Vara, Meritíssimo, assim de branco, roupa
imaculada, tentando dominar o asco, o rancor. Ou medo?
— Miasma algum me atinge. Miasma algum. E é sua profilaxia,
Januário...
— Dr. Fidalgo Loureiro...
— Não que receie dele qualquer desacato. Lasco-lhe a cara com
chicote. Apenas de sua parte, Januário, seria de boa higiene evitá-lo.
O Meritíssimo faz um gesto:
— Limpo o meu sim-senhor com os papéis do processo dele. E
olhe que repugna-me ter de falar nos rombos da Coletoria Federal
onde... Repugna-me, repugna-me. É que depois me vem a megera de
joelhos e a filha me entrando pela casa com aquela perna fedendo, oh,
não! Mas vamos ao Coche.
O Juiz aperta o nariz, assoa-se, readquire o tom divertido.
— Não fosse, com efeito, a marapuama... Juiz com o meu
fôlego, onde? Onde? E a seiscentos mil tão chorados, ah,
magistratura! Aqui está o Coche.
Na beira do caminho, forro abrindo capota desmantelada. A
caleche de Marinatambalo? Alfredo, Lucíola e Dr. Edmundo na
caleche entrando em Cachoeira, com a gente do seu Cristóvão em
peso na janela. O Coche, informa o Juiz, não conduziu defunto algum.
Louva-lhe a primeira classe, o custo, de onde veio, quando o navio
que o trouxe desembarca no Trapiche, entra na cidade puxado pelo
Intendente, subiu um foguete, tocou o sino, o Promotor falou.
Chegou-se a comprar cavalos para a carruagem e os cavalos, mal
desembarcavam, morriam de uma peste até hoje sem explicação. O
Coche não rodou. Onde foi depositado, desabou o telheiro. Aos
poucos trazido pelos rapazes até parar de vez na toca desta capoeira,
agora sim de serventia pública.
[75] — Serve aos casais. Casais de meia hora. É o lupanar
fúnebre. A cama das raparigas. É ou não é, Dó?
O Porteiro disfarça o risinho, acentua o embaraço. Queixo na
mão, recolhido em si mesmo, o Intendente parece escutar o Lobão
descendo.
— Vamos à harpa?
— Já lá estivemos, doutor.
— Ao piano?
— Também o piano. Todas as tradições, doutor.
— As mamas de Ei? Também? As tetas daquela bota?
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Pia uma coruja, já vaga-lumes pela moita. Alfredo espia a
capoeira.
— Ao jantar, Secretário! — arranca o Intendente numa pressa
súbita. — O nosso Juiz vai?
— Depois da toga nas costas do Fiscal? Éramos cordiais, agora
figadais, embora esteja em minha mão o processo da filha. Eu, aliás,
disse ao Fiscal: cubro-te agora com a minha toga e não titubearei em
recolher-te nu ao xadrez por força do meu despacho. Lovelace caindo
aos pedaços! E além do mais, as ligações dele com aquela pútrida
Coletoria. Bom banquete, amigos. É um jantar de extrema-unção. O
derradeiro que dá e com ele se afunda para sempre a bela época nesta
ribanceira. E esse jantar, como dá, donde tirou, que não se sabe.
Móveis e imóveis, o que resta, tudo na hipoteca. Quer levar a ferro e
fogo o processo contra o Fiscal. O depoimento da menina, aí é que é o
diabo, não complica o velho Lovelace. Ela nega sedução. Não se deu
por seduzida nem diz ao certo se foi ele o primeiro ou não. Não acusa
ninguém, “fiz porque quis”. Nem culpa a sorte ou sua inocência. “Fiz
porque quis.” Brava menina! De certo modo cabe a mim a pá de cal.
Afinal de contas, podia ser com a minha filha, com a tua filha,
Januário, com sua irmã, Secretário. Essa a questão. Bem, só me cate
tocar na harpa o réquiem da família e daquela época, enquanto vocês
jantam os últimos comes e bebes da honrada casa. Que o Fiscal, o
velho Lovelace, não empine tanto a crista, contando com o triunfo...
Duvidou, lasco-lhe a sentença desagravando o velho Coronel. O que
está em jogo não é a honra da filha mas a velhice do pai. Jantem,
jantem, enquanto jantem, harpejo.
Agarra o braço do Intendente:
[76] — O desgraçado, aquele, já lhe mostrou as cartas que
recebe de Belém aplaudindo a campanha contra mim? Obra dele, vai
a Belém, escreve as cartas, bota no correio para cá. Recebe da mão da
Benigna. Já lhe mostrou alguma?
O Intendente toca de leve nas costas do Juiz, como se tocasse
com o ramo de oliveira. O Juiz puxa o Secretário para o lado,
afastam-se.
— Eu na velha harpa aqui no relento e o jovem cavalheiro, lá
dentro, por baixo da mesa, hein, hein? Por certo sentado junto dela...
A sombra daquelas tetas. Tome, tome posse, termine a janta debaixo
do soalho, assuma a Secretaria. Oiço que ela tem um pinguelo e
tanto... certifique-se. Vá ao Coche com ela. Triste de mim que vou
jantar o meu jeju moqueado. Uma toquinha de Juiz. Servidos?
Nu, dentro do mosquiteiro, charuto apagado, o Intendente pensa
escutar um apito vindo do Xingu ou de Almeirim. Assusta-se com o
bêbedo subitamente à porta da alcova, aquele da raiz da mangueira,
na mão a banda de peixe seco.
— Carecendo, doutor, carecendo de ir a Belém, doutor. Prometi
ajoelhar-me diante da Virgem de Nazaré, rezar por esse nosso
desvalido torrão. Desta urucubaca? Só a Virgem, só a Virgem. Só ela
com o seu manto nos tira daqui de dentro de nós a tal caveira de
burro. A passagem no Lobão, doutor! De 3.ª já me serve! Devo de ir
quanto antes. Hoje, na igreja, vi que o Santo Antônio está ficando
descorado-descorado. É sempre assim quando... é o sinal. De com
pouco é a epidemia.
O Intendente, toalha na cintura, apanha a navalha, apanha o
afiador:
— Passagem, só uma, ai de mim, meu senhor, a minha, a
intransferível.
— De 3.ª, de 3.ª! As faces do santo dando sinal! De 3.ª já me
serve, doutor! As faces da imagem já dão sinal! Prometo ao senhor e
à Virgem que logo que voltar do meu particular com ela, adeus
bebida! Vou abolir! Vou abolir!
[77] — Ó Capitão!
O bêbado, levado pelo praça para a raiz da mangueira, fica a
rezar. É Santo Antônio avisando. Avisando! Avisando! O soldado,
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então, joga nele uma lata d’água, cala-se o bêbado. Foi calar-se, fecha
a noite sobre o barranco, engolindo o rio por um instante. Devorando
um abacate, o praça ri que ri no escuro.
— Arriou que arriou no sono, Capitão. O senhor quer, eu
apanho a couve da espanhola, antes da chegada do Lobão, posso?
O Capitão hesita:
— Aguarde ordem. Aguarde. Me faça antes um serviço. Arranje
uns homens e me arrastem o Coche para debaixo da mangueira,
aquela. Dada a ordem, praça.
O Intendente, agora, embala-se, queimando charuto. Alfredo
entra e sai, sai e entra, e seu banho? Capitão o leva ao banheiro de
esteios fincados na praia. No parapeito da varanda o tucano-peitoamarelo, o bico sobre o rio como se a noite sobre o rio escorresse do
bico.
— Minha senhora, Secretário.
Ela cumprimenta sem dar a mão, esquiva-se para a cozinha,
Capitão atrás, “mas, minha filha, fias minha filha”, fardado, pondo o
cinto, cercando a senhora que volta de farol na mão, o alvo rosto
crispado, queixo sobre o rio, a aragem no cabelo.
Alfredo muda a camisa a escutar o Capitão sobre a natureza dos
solos no vale amazônico. Aquela pedra da praia, aí neste barranco?
Madeira. Conte os milênios.
— E as conchas? E os fósseis? Houve ou não houve uma
convulsão vulcânica neste barranco? Vou lhe mostrar um fragmento.
Madeira petrificada. Observou a situação topográfica?
O Capitão sai para o quarto atrás da senhora, a porta do quarto
fecha com violência.
Alfredo mete o leque no bolsinho de dentro. Madeira
petrificada.
Na varanda, a. senhora e o tucano, os bicos sobre o rio. Alfredo
impacienta-se. Fecha o teu bico, bicho, que de tanta noite basta. O
Capitão abraça a mulher, leva-a de novo para o quarto.
[78] — Pronto, Capitão, às ordens!
É o Intendente, charuto aceso, abrindo um vidro de extrato,
segura o braço do Secretário:
— A caveira, de que fala o bêbedo, não é aquela na mão do
Sede de Justiça? Em vez de burro? É, não? Guardar em casa uma
caveira... Com habilidade o senhor, Capitão, pode convencê-lo a...
Está de casimira, abotoa os punhos da camisa, extratou-se.
— A mãe dele pode furtivamente... Fala-se com a mãe dele,
Capitão.
— Tomo as providências que o senhor quiser, doutor. A caveira
é um bem comum do cemitério, doutor.
— E sua senhora? — pergunta o doutor, recendendo.
— Tive de lhe dar um calmante. Quer que faça então a
apreensão da caveira, doutor?
— Apreensão, rigorosamente não. Persuadi-lo, por exemplo, de
mandar para a Faculdade de Medicina... Não é aconselhável ouvir
antes a mãe dele?
Os três na sala, à espera que um diga: vamos? O Capitão
aumenta a luz do candeeiro coberto de mosquitos. Apanha uma
jacina:
— Seu Secretário, já alguma vez observou as libélulas?
Jacinas de Cachoeira, lembra Alfredo, sem ouvir o Capitão.
Vinham trazidas pelo vento, sol e silêncio. Iam bulir com o Major que
imprimia no prelinho, e das jacinas esta visão: A sombra das copudas,
o Dr. Edmundo, alto e alvo, no búfalo negro. Agora é a suspeita de
que passeia ali, entre as ruínas, o cavaleiro e seu búfalo, errante pela
Amazônia, fede a mondongo, protege as couves da espanhola,
subindo o Juriti em busca daquele peixe, dá de cara com o tio
Sebastião e Dolores. Sabe de Andreza, Dr. Edmundo? Viu algum dia
Andreza pelo campo, curral, balcedo? Viu? ou traz Andreza na
garupa do búfalo? Andreza tem consigo os caroços de tucumã, o
chalé, os muitos meninos que Alfredo foi não foi, as muitas meninas
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que ela era, guardou o rio no ouvido, a pororoca dentro do caramujo
pendurado no pescoço.
O Intendente assusta-se, o Capitão abate o morcego a espada,
agora ofegante, o suar pelo rosto, a espada na mão.
[79] — Hein, Secretário? Mamífero... da ordem dos...
— Esgrimindo com engenho e arte, não, Capitão? — acode o
Intendente cruzando e descruzando as mãos, quer fechar a janela,
machuca o dedo no trinco. O Capitão embainha a espada, traz um
algodão com iodo ao doutor.
O Intendente vai mudar a gravata. E a senhora e o tucano na
varanda? pensa Alfredo, como se os dois estivessem vendo o
cavaleiro no búfalo a galope sobre o rio.
— E nem um apito, Capitão, reaparece o Intendente espiando
para o lado do Trapiche, tira o leque, abana-se. Defronte, entre os
destroços do Hotel, a vaca rumina.
— O Capitão ouviu o que o bêbado diz do santo? Ouviu?
Ouviu?, não?
— Por efeito do mormaço, a imagem descolora, doutor. Mas
santo é santo. Quem sabe?
— Capitão, o senhor está aí, ai onde? — indaga o Secretário na
escuridão.
— É o que nos resta, trevas sobre trevas, resmunga o Intendente
batendo as botas na calçada.
— Estou curioso de ver o Santo Antônio no altar perdendo
glóbulos...
— É o velho vampiro. Artes do velho vampiro.
— Que velho vampiro?
— O nosso Meritíssimo. Tacou o dente no pescoço do santo.
— Secretário! Tome partido, não! Aqui todos têm razão. O
nosso papel é só ouvir este e aquele, sem sim nem não.
Lá embaixo o rio bufa.
— A chave da igreja, Capitão?
— Com a D. Pequenina, doutor, a mulher do telegrafista. É a
zeladora. Teréns de igreja é com ela. Quatro maridos já despachou,
agora é o quinto, o esmirrado e alvinho telegrafista que anda se
acabando, tive de lhe dar injeção, fraco-fraco de tanto ir ao bacio, mal
podendo passar os telegramas do seu Guerreiro. Foi um alívio para
ele o cabo rompido. Na mão dela a chave da igreja. O ano Inteiro
suspirando por urna hóstia. Ver o santo, doutor?
Vai despachar o quinto?
[80]— Nasceu de fígado branco, diz a velha Benedita Lucrécia,
uma preta do lugar que está nos lavando a roupa. Vai enviuvar outra
vez por ser de fígado branco. Fígado branco. Nhá Benedita Lucrécia
lhe botou outro apelido: a Mata-Marido. Quando o quarto espichou,
foi retirada de cima do morto aos gritos, que só era mesmo esposa de
Jesus, esposa de Jesus! E passou a noite toda agarrada a um quadro de
Coração de Jesus. Corre-corre.., que no intervalo de uma viuvez,
assim me contou o Juiz, emprenhou, não se sabe como. Foi lontra, as
bocas espalharam. Macho de lontra fez filho nela. Quer tirar a limpo,
oiça o Juiz. As lontras emprenham as viúvas. Também como pariu,
não se sabe. Vista, meia-noite, descendo a ribanceira.
— É, é, ver o santo. Podemos?
— Seu Dó pode ver a chave. E a apreensão da caveira?
O Capitão gritou pelo soldado que apareceu de farol na mão.
— Trouxe o Coche?
— Ordem cumprida, Capitão. Falta pagar os emolumentos.
— Emolumentos?
— Gratificar os homens, Capitão.
— Doutor, por favor, assine um ordem de mantimento ao seu
Guerreiro para pagar o carreto do Coche.
— Capitão, não terá sido isso uma medida impopular?
— Cale bem entre as famílias, doutor.
— Insisto: não foi impopular?
— Posso repor o Coche, doutor. Cumpro ordens.
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O Intendente começa a rir, abanando-se:
— Pode, pode bater palmas no vizinho. O jantar, Capitão. O
santo que espere. Vou eu mesmo me entender com a D. Pequenina, a
Fígado Branco, a que emprenhou de lontra macho.
— Vamos de Coche, doutor?
— Secretário, Secretário! No Coche para ver o santo esvair-se?
Santo Antônio precisa comer ferro. Precisa roer o ferro do barranco.
Nada do gaiola, Capitão? Ó diabo!
— Que-que tem, doutor?
— Três noites nesta ribanceira!
[81] — Que-que tem, doutor?
— Secretário, Secretário! Desconfio que já vai gostando de tudo
isto aqui. Entrando pela porta larga?
Na sala de jantar — a patente do Coronel, o Coração de Jesus, a
Bênção Papal, uma vista dos Alpes — os espelhões, quatro, em
moldura negra.
— Do genuíno, do genuíno — assevera o Capitão, a mirar-se
nos espelhos, marcial a cabeleira, as suíças, a boca geniosa, não, não,
não é um oficial à-toa, talhado, isto sim, para Ajudante-de-Ordens em
Palácio, uniforme de gala, em Palácio, a tordo de navio de guerra
ancorado no Guajará, mas quando?
— Aquele retrato, Coronel?
O Coronel traz os convidados para a mesa.
— Ah, sim, Capitão, é a Calvo, a Pepita. Lendo a dedicatória?
Cantou no Teatro da Paz na opereta... Já nem lembro...
— Conde de Luxemburgo, salta o anão não sei de onde. Meu
filho, diz a senhora, olha o serviço lá dentro, vai.
O Coronel, rosto fechado, mão no bolso, volta-se para o
Intendente:
— Chegou a ver, doutor?
— Como, Coronel?
— A Calvo? A opereta?
— Cheguei, não, Coronel. Aqui o Capitão, quem sabe, não,
Capitão?
— Eu? Se não me falha a memória, é sim, é sim — mente o
Capitão, relendo a dedicatória, lê alto, e vai entendendo quadros,
cristais e óperas, cantou em coro de igreja, espiou, bem menino,
espiou no camarim a atriz atracando o espartilho, sentou praça por
paixão da Banda de Brigada, ouvindo aqueles dobrados, fez letra e
música de duas marchas militares, tinha em casa, infelizmente
quebrado, o disco do Guarani, a Protofonia.
— Da banda, me lembro daquela vez, foi em Batista Campos,
festa cívica, batalhão formado, com o nosso mascote, um carneiro, o
Omega, solto no meio dos músicos.
[82] De repente, quando os músicos se preparavam para atacar
o dobrado, eu, em plena posição de sentido, praça que eu era, rompi
na risada. O Omega, pois não estava comendo a partitura do
clarinetista? Comia sempre as partituras. Empanturrava-se de
dobrados. Pela risada, gramei três dias na grade. O bicho tinha o
maior apetite pelas partituras.
Os espelhos parece aumentarem o silêncio.
— Mas o meu gênero é o lírico. Sim que detesto serenatas.
Pelo espelho Alfredo descobre a moça, a Bi, num vestido de
baile, os olhos nele.
Ora, sim, senhor, Coronel Cácio, foi fato. O Omega do batalhão
comia as partituras. A música cevava o carneiro. Algum dia criou um
carneirinho?
— Minha filha já criou uma oncinha.
— Fugiu, adeus, ninguém soube mais dela — lastima-se a dona
da casa que via no sumiço do filhote de onça outro mau agouro.
O Capitão pára diante das cadeiras de embalo.
— Ah, já não é aquele tempo, não é, não. O tempo delas! E aqui
tão bem tratadas! Deixe-me embalar um pouquinho... Ah.
43
Todos esperam que o Capitão se embale um pouquinho. O
Intendente exclama diante dos espelhos: como sou feio, com
seiscentos mil diabos!
— Mas, doutor! Mas, doutor!
É a Bi, senta ao lado de Alfredo, os braços nus, num suarê lilás
com um cacho de jasmins no colo, peito, olhe o tamanho. Olha para
Alfredo pelo espelho. “Ah a louça antiga! A louçaria de antigamente!
Quanto mais usada mais nova! Desta não fabricamos mais neste
mundo. Hoje é tudo de pior têmpera.” O Capitão faz o xerimbabo
parar com a terrina na mão.
— Hein, Coronel? Nobre louça, especialmente para aquelas
batatas francesas da Casa Klingelhoefer, aquela cebola, aquele alho
de Portugal, não?
Alfredo vê pelos espelhos o ex-Intendente à cabeceira, com os
escombros ao fundo, Piano Harpa Vaca Coche Cemitérios, o processo
da filha, o filho com a mão no cofre de São Benedito. O Velho, com
esse jantar, se despede.
[83] Morre ali na ostentação dos pratos, reunindo pela derradeira vez em torno dos quitutes o que resta do seu passado e do
orgulho. Alfredo ouve o Juiz tocando o réquiem na harpa podre; mais
tarde o Coche, depois de servir o último casal de rua, recolhe a mesa e
seus restos, incluindo a família, naquela direção. Chega o pirarucu
desfiado, .e os casquinhos de muçuã e o pato no tucupi e a travessa do
peru e a galinha de forno, a cabidela, eivém a marreca no arroz;
trazido pelo anão, o casco da tartaruga ganha o centro da mesa.
Alfredo suspeitando: vêm do fundo do Amazonas que ali embaixo, no
escurão, bate o barranco?
Diante da cerimônia e distância do anfitrião os convidados não
sabem como principiar, rodeados pelos quatro espelhos. Coronel
contempla-se nas louças, na comedoria, nos guardanapos, nos vinhos,
mesa dos seringais, rebanhos, trapiches, eleições, viagens à Europa,
ou não é senão seu delírio. Manda abrir as janelas da varanda, pe-
dindo o ar do rio. Lá na varanda a rede armada, a estampa de Bruges a
morta, a moringa no parapeito, a gaiola vazia, uma plumagem, a
coleção de postais, o consolo onde repousa o Larousse e o catálogo da
Galeria Lafaiete, 1912. Aqui ao lado a senhora, de roxo, o busto
escorrido, o penteado antigo, a moda que reza. No rosto consumido o
que fez para tamanho jantar, sobretudo por ter encontrado, no bolso
do marido, um cupim, sinal de morte. Esquecido de seus comensais, o
Coronel Cácio, solitário, dá a si mesmo, no derradeiro banquete, a
ilusão da fortuna restituída e do poder reconquistado. Alfredo só vê
embaraço e pasmo no Dr. Intendente. O Capitão tenta seus assuntos.
Alfredo, sob o olhar de Bi pelo espelho, figura o Juiz entre as corujas
caladas, tocando harpa, e o Santo Antônio empalidecendo,
empalidecendo. Num súbito desembaraço, Bi levanta-se, os
tamanhosos seios multiplicados pelos espelhos:
— Mas, doutor? Então? Pra inglês ver? Não começa? Pela
pirapitinga? Pela fritada de camarão? Pela pirapitinga?
— O melhor peixe do Amazonas, com escamas prateadas,
eriçadas, eriçadas, eriçadas — repete o Capitão, perneira rangendo, já
num esforço de memória. Alfredo receia a ciência:
— Coronel, alguém da sua família tocava harpa?
— Harpa?
[84] Coronel tem um gesto: faz muito tempo, faz muito tempo.
Bi insiste:
— Então, Capitão? O tamautá no coco?
Alfredo:
— Quando, Coronel?
O Coronel tenta responder, Bi insiste:
— No coco, sim, Capitão?
— Coco local? Aqui do barranco? Que acha, Coronel, nisto
aqui não ocorreu uma convulsão vulcânica?
O Coronel revira as mãos:
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— Sim, talvez... O solo, pra coco, talvez se preste. A harpa, foi,
sim. Uma prima de minha senhora.
— Laudemira. Antes de expirar, pediu que também
enterrássemos a harpa. Foi. Parece que estou vendo. Que morte! — se
benze a dona da casa.
— Os pacus assados? A jatuarana de escabeche? Bi nomeia os
pratos com voz modesta como se dissesse: Não reparem, não
reparem, e quer servir o Intendente:
— Principie pela pirapitinga, doutor. Ouviu o que o Capitão
disse? Da pirapitinga? Eriçadas! Eriçadas!
— Minha filha!
— Pois pela pirapitinga, doutor.
O Intendente foi sorrir e o espelho: oh, boca. orangotango!
Recolhe a dentuça, enxuga os beiços no guardanapo.
— O senhor Capitão, pelos seus olhos, vejo que é o tamautá,
sim? Deixe que lhe sirva, sim?
O Capitão fala sobre o futuro do coco no Pará, nas várzeas do
Baixo-Amazonas. Espera que o Coronel Cácio primeiro se sirva, o
Intendente.
— Sem cerimônia, Capitão — responde o Coronel numa voz
longe, ausente da mesa, ali na cabeceira presidindo, quem sabe,
aquele banquete de sua posse, ou no chalé suíço olhando as neves
eternas.
— Deixe que lhe sirva, Capitão, sim? — Teima a Bi, com os
olhos no Secretário. A mãe, atenta aos movimentos da filha, atenta ao
serviço do anão, no ar de quem reza.
[85] — Depois... Depois, o tamautá com coco, minha filha —
pede o Capitão.
Coronel Cácio, o Intendente, o Capitão, a senhora e os filhos
entreolham-se, desentendidos. Chega a terrina de molho. Bi olha
Alfredo, talvez lhe dizendo: só nós dois merecemos esta mesa, serve-
se de pirapitinga, levando o garfo à boca, baixa o garfo, indecisa, os
olhos no Secretário. O Capitão:
— Bem, tem, da cerimônia começar pelo peixe. Quero antes
prestar homenagem por semelhante quantidade, por tamanho... Juro
que o senhor, Coronel, tem ai debaixo da varanda um viveiro, um
aquário secreto...
O Intendente corta o assunto, indagando do Coronel a respeito
da passagem de naturalistas pela cidade. Se na Suíça entrou em
contato com algum Instituto, alguma Universidade... O xerimbabo
traz o cozido de paca. “Não digo? — exclama o Capitão — espero,
Coronel, que me mostre as 44, aquelas. Soube que o senhor atira
como Guilherme Tell.” Alfredo lê na cara do Dr. Januário que o
Capitão acaba entornando o caldo. Debaixo do soalho jaz o escândalo
— pensa Alfredo, que vê chegar o pirarucu, o galheteiro com azeite
doce. Vai ou não acabar com um brinde do Coronel cheio de
carapuças? A torta de piracuí. O Capitão faz um “Mas isto é a Canaã,
Coronel !“É a vez dos acaris moqueados.
— Coronel Cácio! — pasma o Brigada.
Coronel desce do seu silêncio, como se a voz viesse dos
espelhos:
— Dos nossos lagos. Dos nossos lagos. Tivemos lago exclusivo
da família, só para consumo de casa, exclusivo, exclusivo, em nossas
posses, um lago de pirarucu, o Pirarucuara. Com vigia armada. O
nosso pescador arpoava, segundo nossas instruções e necessidades.
Olha os espelhos, trazem para a mesa os lagos de Jocojó, ricos
de tambaqui, pirarucu e marreca. A senhora tapa o suspiro com o
guardanapo. Bi senta-se, os jasmins roçam o ombro de Alfredo.
Defronte os três irmãos em silêncio, engravatados. numa postura de
velório. Fofão, resignados bigodes, alisando a pérola, ou que seja, na
gravata-borboleta, o ex-Secretário. Xerimbabos vão e vêm ao
comando do anão, este de paletó, resmungando grosso, cabeçudo,
cabeludo. Sem mexer na pirapitinga, o Intendente [86] só é fastio e
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embaraço. Essa abundância sufoca. Tanta fartura e só apetece um
charuto, o apito do gaiola... Alfredo, sob o olhar de Ei pelo espelho,
vai provar da pirapitinga. Pela primeira vez. Peixe que em Belém não
via nem no Arari, freqüente nos cacuris do Amazonas. Provou. Bi
com os olhos nele. Razão tinham, é. Nem o tucunaré do Arari nem o
mandubé nem a pescada de escabeche ou de frigideira que a mãe
fazia, tão outrora... Nem aquela curimatã dos Alcântaras nem a tainha
cozida, com pirão de farinha amarela, casa da Magá. É, tinham, têm
razão. Ou porque principio só agora a saborear maduramente, a
ganhar apetite de homem? Bi, pelo espelho, espreita aquele apetite.
“O jeito é só nós dois, só nós dois nos servirmos de tudo que está na
mesa, senão... Não é? É o que nos cabe. Que remédio! Vamos!” É o
olhar da moça pelo espelho, sério.
— Então, doutor, e a pirapitinga? Olhe que depois é a dona ai
do centro da mesa. Ao menos fazendo de conta que beliscou de cada
um dos pratos dela, senão, senão... É ou não é, doutor? Ah, bem que
podia ter trazido sua senhora. Agora por este tempo, sim, seco, verão,
febre é raridade... Não só dá abacate nem formiga no taxizeiro, dá... e
ela então, sua senhora, que ia gostar das laranjas de Urucuriteua, que
é que é um mel, não era, mamãe? Não era?
— Aquelas laranjas? Meu Deus, que o meu pai plantou, minha
filha. Anos que não ponho na boca um gomo.
— Pois então, doutor? Não era?
— Paciência, minha filha. Estou sem palavras. Sem palavras.
— E sua senhora, Capitão?
— Já vestida pra vir e foi que se sentiu um tanto indisposta...
— O clima, Capitão?
— Uma azia, senão... Uma dispepsia.
— Vá ver que é da água. Visito sua senhora amanhã — fala a
Bi, que se levanta para ajeitar o vestido, e corta a palavra do Capitão:
— Mas o senhor vai me provar das laranjas de Urucuriteua e
leva umas pra sua senhora, sim?
[87] — Urucuriteua. Longe? É longe?
— Já no Xingu, Capitão, uma maré — informa pausado o exSecretário, apanhando o garfo como se apanhasse um remo.
— Grande o laranjal?
— O que resta, só-só umas e dando demais erva, faltando é
trato.
— Na nossa mão que foi! — suspira a D. Generosa.
— Aquela terra? Dá uma doçura. Capitão! Mesmo que um mel
aquelas laranjas. O senhor na sobremesa, experimente uma. Uma
laranja de Urucuriteua, Capitão.
— Minha filha, laranja e este seu criado não se dão bem à noite.
Então leva. Leva! O doutor também, sim? Leite que mamei foi
só-só daquelas laranjas.
A mãe olha para a filha: passando da conta, passando da conta.
O Intendente assoa-se, de novo ao espelho, oh, várias e soturnas
promotorias, trapiches de madrugada, cartórios, chuvas e terçãs. Não
é só feio, feião, caruncho no rosto, este cascão da idade, a pelanca de
contrariedade e marasmo, o medo de ficar aqui um dia mais. Essa
menina mamando laranja, carregada de peixe, laranja e mamas. Um
silêncio, os três irmãos não se mexem. O ex-Secretário alisa o gato a
seus pés, a senhora vira-se para o anão, este, às suas costas, cochicha,
apressado, coçando a orelha.
— Coronel, este tarranco tem grés ferruginoso? A famosa pedra
do Pará? — indaga o Capitão, indeciso entre o pacu de escabeche e a
dourada frita.
O anão, com a vassoura de piaçava, espanta o gato. O Coronel,
meditando, ergue a mão cansada:
— Andei, faz anos, interessado... Mas sobrecarregado com o
Município, a herança dessa Intendência que me veio às mãos depois
daquela cotação brusca...
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— Coronel, aquele navio não esperado, anunciando a queda dos
preços, foi fato? O mesmo que pegou fogo no Solimões? Que aqui
passando, havia um baile? Foi, não?
O Coronel, nem sim nem não, pede a sua xícara de chá, sem
nunca servir-se, quem sabe ofendido por terem tocado no jantar que
deseja intocável, montado como um [88] cenário, com os quatro
espelhos em volta. Nos seus olhos se lê que este instante é, sim, a sua
abdicação mas de grande mesa posta e seu desdém e seu nojo pelo
que lhe fazem, e tudo isso nos pratos finos, fora de sua exangue
vaidade e moribundo capricho, é só espelho, espelho, espelho, como
não é mais dele o laranjal de Urucuriteua, não mais os lagos de
tucunaré, pirarucu e marreca; tudo isso na mesa a um sopro se
esfuma, os vinhos, as comidas. Ah, queria esta mesa, mas para
sempre, só ali nos quatro espelhões. Na última vez, em Palácio, não
lhes devolvi o Município? Não lhes disse que a política... que só
desilusão e ruína foi o que me deu a política? O Governador:
“De maneira alguma, Coronel, absolutamente, o Município é
seu, o Município é seu”. Passa a vista pelos três filhos: mais parecem
sobreviventes daquele vago hospício colonial. Os bigodes do
sobrinho, o ex-Secretário, cerram sobre a moça que é, na família, à
mesa, a menos tocada pela ruína, a menos poluída, tão longe de ter
provocado toda aquela vergonha. Aqui do lado, a senhora, já meia
viúva, vendo cupim no bolso do marido, chama o velho Parijó para
uma sessão, logo onde, na alcova, é a cachaça, é o taquari, é a
cantoria, a corrente, caruanas entrando por debaixo da varanda. Os
filhos! Aquele, o mais velho, o menos que fez, nos estudos em Belém,
foi quebrar a vitrina da loja Carvalhaes, acabando aqui Prefeito de
Policia, a chave do xadrez no cinto, furtando o São Benedito, pedindo
emprestado ao Fiscal que vinha à noite, por debaixo da varanda,
cobrar os juros na rede da menina. O outro aprendeu mágica, sumiu
de segunda a sábado o que restava de mercadoria e crédito na casa de
Jocojó. Jogou a culpa no pajé do estirão, e naquela porca grande em
que se virava, meia-noite, debaixo do tamarindeiro, a D. Idália
Arantes, diretora de Irmandade, roupeira de Nossa Senhora das
Dores. O terceiro, o Escora-Canto, dia e noite pelas ruínas aí fora, o
que sabe fazer só é “Que há de novo? Que há de novo? Que há de
novo?” O caçula, o anão, na falta de picadeiro, rebola-se com as
xerimbadas [sic] debaixo da varanda e com os tatus na capoeira.
Paixão dele: o rufo e a irmã. A pantomima, servir o jantar. Coronel
busca nos espelhos a visão dos lagos, vapores descarregando no
Jocojó, a sua posse na Câmara, as viagens, as viagens, Pepita Calvo
no camarim recebendo-lhe as rosas, o Colégio do Amparo, em Belém,
onde viu, pela primeira vez, cheirando a freira, [89] esta aqui ao lado,
naquele dia de azul-marinho, hoje de roxo, esfalfada pelo jantar que
fez e por tudo que se acabou. Vai levantar-se, fugir para a varanda,
puxar a toalha da mesa... No joelho a mão da mulher.
— Mas é verdade, Coronel, desculpando a indiscrição, que o
senhor possui uma quinta em Portugal? — indaga o Capitão.
O Intendente franze a testa. Coronel Cácio, num gesto
indefinido:
— A quinta? Contaram, então, ao senhor? Mas veja, meu
marido, eh! De fato. Por força de uma herança. Um português, velho
amigo nosso e compadre, testamentou. Casado com uma índia aí da
Prainha onde aquele nosso compadre juntou fortuna, começou com
um batelão vendendo as coisas pelos rios e furos. Sim, que com a
índia só se casou mesmo foi bem mais tarde. Mas pra que que foi o
casamento! Ai a senhora dele faleceu, consta que de um jeju
moqueado que tanto desejou, mandado não se sabe até hoje por quem.
O nosso compadre, de paixão, liquida os negócios, se embora pra
Portugal. Do falecimento dele, que se tivesse uma linha, pra ser exato,
nunca tivemos. Sim que transpirou nos ter deixado a quinta.
Comunicação que viesse da repartição de lá, do juiz, de quem guardasse o espólio, ou o que seja, tudo ficou no ora-veja. Só se se
extraviou a correspondência.
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Aqui a senhora engole em seco o que sempre suspeita: a
correspondência retida, desviada ou destruída, na Agência do Correio,
tramóia de Anacleto e Benigna. O marido, com o olhar, tenta fazê-la
calar-se. Tanto que pedia ao Cácio: tira deles o Cartório e o Correio,
tira.
— Esperança de receber um aviso? Para dizer que não temos,
mentia, ainda temos. Cácio, esse, quis saber? Passou procuração? Se
cientificou com o cônsul português, o Dr. Pacheco, em Belém? Aqui
com o Município lhe caindo nas costas e o meu marido levando a
culpa e se agachando para juntar os cacos, até o pescoço de
compromissos com o Governo. E agora, e agora? Nem um telegrama
de satisfação? Nem um desagravo. Fique na Intendência, Coronel, na
Intendência, Coronel, etc. e tal? Quando acaba, mingau com bacaba.
D. Generosa tira um alívio.
[90] — Tirar a limpo o que mesmo sucedeu em Portugal, lá em
Portugal... Escrúpulos de Cácio. De fato, Capitão, doutor, já caducou?
Se assenhorearam? Que me diz, doutor. O senhor que sabe,
conhecedor da lei que é?
Sim que o Dr. Fidalgo, o Juiz, no que palpitou, no que farejou,
logo falou e teimou, atrás do Cácio, atrás do Cácio, Deus nos livre.
Acatava era nos tomando a quinta.
— Generosa... Generosa... — faz o marido, absorto, num gesto
fatigado.
— Agora boto na cabeça que é o senhor doutor, só o senhor vai
nos defender a causa?
— Causa?
— A nossa, de Portugal, doutor. Saber que fim levou a quinta. É
tudo que nos resta e lá em Portugal. Onde que seja, sabemos?
Coronel pisa no pé da mulher.
— De tudo e o mais não sabemos. A mulher dele, que era uma
índia, índia-índia, isso que era, era. Tão calada, estou por ver, oh,
senhora silenciosa. Estou que o silêncio era aquela morte que já trazia
com ela, tempos. Pois um jeju moqueado, oh, senhora silenciosa.
Mesmo falando, falava silencioso. Foi o que perdemos. E é o que só
nos tem acontecido, a nós, perder.
— Perder, minha mulher? É o que temos ganho. É o nosso
lastro.
Bi pede ao anão o molho de tucupi com pimenta de cheiro.
— Sirvo, Secretário?
— Por onde ficava, em Portugal, em que paragem, saber, nunca
se soube. A nossa quinta, é verdade... As uvas que minha filha deixou
de comer, Capitão! As cerejas, doutor!
— Ah, mas assim também não! Que que a senhora então
misturou na comida, mamãe? Ninguém jantando? Ninguém-ninguém!
Coitado do nosso jantarzinho...
O Intendente a modo que se assusta. Chegam os ovos de tracajá.
— Zinho, menina? Zinho? Que me diz, meu Secretário, zinho?
[91] Alfredo pára com o garfo cheio. Bi serve-lhe o escabeche.
Os demais numa inércia morna. Só os dois jantam. Coronel mira-se
nos espelhos. A senhora volve da quinta para a alcova, ver se outro
cupim entrou no bolso do paletó. Vai, tira a moeda do bolso, pula,
pula o cupim. O marido avezou de atirar em boto e eu ralhando: não
baleia esse bicho, Cácio, olha... Cácio amanhecia anoitecia atirando
nos botos. Cácio, esse bicho te castiga! Não castigou? Não foi? Agora
mesmo a filha: mamãe, que então a senhora já misturou na comida?
É, coisas vêm no ar, cupim, o ar, o ar. Na Prainha o jeju moqueado,
aqui o cupim. Olhem o Cácio na cabeceira, quede aquele homem que
foi? Uma sombra, uma sombra de colarinho e gravata. A filha, nesse
vestido, até que de novo donzela, finge ao menos isso, infeliz. Os
olhos do anão como brilham para a irmã, coitadinho. Os três irmãos
ali, todos no que acabou. Agora nos quatro espelhos cresce o cupim,
negro, cabeludo. Podíamos morrer aqui, todos, todos, deste jantar. É
ou não é morte na família aquele cupim no bolso? Era, é. D. Generosa
olha os espelhos que lhe trazem o enterro do pai pelo rio na montaria,
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de repente a chuva, o caixão encharcado. No sonho dela, outra noite,
o defunto: chovendo que chovendo aqui por dentro, minha filha. O
inferno? De fogo não é, mas de chuva. D. Generosa vai levantar-se,
sente o pé do marido. Vem o anão:
— Mamãe, o carneiro?
— Licença?
Trazida pela prima de Bi, entra a mulher do Tabelião, a Agente
do Correio, a D. Benigna, num organdi azul-celeste, pente prateado
no cabelo, colar e brincos, o broche faiscando no peito.
Desculpassem, não interrompendo o jantar, muito bom proveito, tão
só convidá-los... pára um instante, apanhadas pelos espelhos, quatro
Benignas, assim tão de surpresa. Volta-se para a D. Generosa: só
decidido com a certeza de que o Loriano, o Maestro, podia tocar.
— Benigna, mas o Maestro?
— Mas já anda? Efeito hipnótico das minhas injeções?
— Ah, quem sabe, Capitão, o senhor até que lembrou bem...
Tanto que se pediu, se pediu, tão que foi rogado, que acabou: “Olhe,
D. Benigna, se me levarem na cadeira, até que arrumo um jeito, toco,
estou fazendo o impossível”.
[92] — Mas olhe que aquele bichão pesa.
— E não é o Quim Tatajuba, Capitão? Não é o Nhoduca? Não é
o Dico Mendes Jandiá? Peso é com esses três. Tudo neste mundo,
Capitão, não é a toa vontade? Caruara inda não deu no beiço dele,
deu? Então? Aqueles três que carregam ele? Se criaram mas foi
debaixo de peso. É remando, é trazendo doentes, carrega defunto,
enterra, corta pau, despesca cacuri, apanha sementes, roçam, racham
lenha, faz carreto, peso é com eles três. Três pro que der e vier é só
pedir, socorrem. Trabalho não tem que não façam. Agorinha mesmo
não trouxeram o Coche? Foi o senhor Capitão?
— Determinação do Dr. Intendente, D. Benigna. O que fiz foi
cumprir ordem.
— Acha então o senhor que a carruagem com um conserto pode
ter uma serventia? Tão sem uso que é! Pode servir, Capitão? Tanto
que precisamos de um melhoramento. Pode, Capitão?
— Levado a uma oficina em Belém, quem sabe, conforme...
Provavelmente. Cabe ao Dr. Intendente decidir. Pelo nosso ferreiro
daqui, já ouvi dele: Não tenho apetrechos para isso. Podemos tentar,
doutor? Uma reforma?
O Intendente, com um aceno aos espelhos, fala, afinando a voz,
que não vem reformar nada no Município, nada, nada. Em boas mãos
sempre esteve o Município, e indica a cabeceira. Coronel Cácio tem
os olhos não se sabe aonde. Traz o anão a. travessa dos pastéis. D.
Benigna, vista pelo espelho numa nuvem de organdi sobre a mesa
para onde aflui a comida, é dama daquele baile em que correu a
notícia da calamidade. Alfredo se admira, sim, senhor, real aquele
organdi? Toque no vestido, e o vestido em pó cobrindo os espelhos,
os rostos, a pressa do doutor para Belém.
— Não invejo sua sorte, Capitão. Amanhã outra injeção no meu
velho, ha, maçada. Vá nos tolerando, Capitão.
— Pra que que trago comigo o aparelho, minha senhora? Nasci
enfermeiro da Assistência e não oficial da Força Pública. Sempre de
seringa fervendo, nunca me nego, não. Não se incomoda que
debelarei a crise reumática do seu marido.
[93]— Deus lhe oiça, Capitão, assim espero, Capitão. Deus o
senhor ter também vindo. Olhe que aquele meu velho tem-que-tem
cortado.
D. Benigna volta-se para os espelhos, dá. com os olhos no
Secretário, com os olhos na Bi.
— Seu marido com aquela injeção já não dá pra marcar
quadrilha, hoje, ele? Dá não? Hoje?
— Caçoando, será, Capitão do meu entrevado... Quadrilha ele?
Hoje, ele? Marca quadrilha é no simples te aprecio, conformado ali na
preguiçosa, mea velha me traz daí de dentro um cafezinho. Sim, que,
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quando passa, se desentrava todo, aquele azougue, é-que-é um pião.
A Deus tanto peço.
— Deus não tem cera no ouvido, D. Benigna, tem, não —
garante o oficial apreciando nos espelhos a sua palaciana cabeleira.
— Se é penitência do meu marido, se é a parte que lhe cabe dos
castigos... Contra o que Deus manda não blasfemo. Ë ou não é, D.
Generosa?
— Cácio que o diga — geme a dona da casa, fazendo sinal ao
anão que hesita, parado com o travessa no ombro.
— Só eu sei o que nos coube. Põe o arroz na mesa, meu filho.
Mas sente, Benigna. Anda, meu filho, um prato com talher aqui pra
Benigna.
D. Benigna pega o anão, só está ali por um minuto, só pela
incumbência. Horas que já tinha jantado. Solta o anão, outra olhada
nos espelhos, aproxima-se do Dr. Januário que aconcheia a mão na
orelha para ouvir vapor no rio.
— É um insignificante agrado aos senhores, doutor, na falta de
uma homenagem que pudesse condizer. Mas não é, perdoando a
ocasião importuna...
Dá uma palmada na testa:
— Ah, mas sim senhor esta que foi! Meu Deus. Esta minha
cabeça! A carta do convite! A carta do convite? Nos alvoroços, não
foi que deixei em cima da escrivaninha?
Escrito pelo marido, passado a limpo durante a tarde, estragou
três folhas de papel timbrado do Cartório. Já se dirige para o corredor
apressada, vem o anão da cozinha correndo: deixe que eu vou, D.
Benigna.
[94] O Intendente já de pé:
— Mas já estamos convidados, minha senhora. Logo mais, a
senhora nos dá o convite.
O anão pára, hesitando. D. Benigna lhe segura o braço:
— Se assim é, doutor... Cativa de tua boa vontade, meu filho.
Lá, ao doutor lhe dou na mão. Não interrompe teu serviço, meu anjo.
Tudo por via do Maestro, toca-não-toca, toca-não-toca, que aqui
só o que nos salva é o Maestro. Nosso tão pequenino festejo, político
não é, Deus me livre. Tanto vivi bem com o Município na mão do
Coronel Cácio, não por ele estar aqui presente, como agora na mão do
doutor.
— Estava em boas mãos, em boas mãos e em suas mãos está —
atalha o Intendente, acenando para a cabeceira. Coronel Cácio, muito
mais só, mira a própria solidão nos espelhos.
— O doutor não repare, tudo é não ficar assim em branca
nuvem, sendo que é a chegada do senhor. Tudo na toa harmonia, não
é, Coronel? Bem sei que não se mexe uma palha no Município sem o
parecer do Coronel. Ah, Coronel, ouvi que o senhor vai viajar? Bem
que merece. Vai?
D. Generosa pede licença, vai na alcova, volta, senta-se,
escutando:
— Vai, Coronel?
O Coronel apanha a faca, corta o ar:
— Talvez, possivelmente..
— Europa? Seguem para a quinta?
D. Generosa fecha os punhos. Bi, os olhos parados na intrusa.
Coronel faz um gesto evasivo. D. Benigna inclina-se para a D.
Generosa:
— Ainda bem me lembro quando — aquela noite, não, D.
Generosa — na posse do Coronel...
D. Generosa morde o beiço, apanha a volta do pescoço.
Coronel, impassível, contempla-se nos espelhos. Um ar saudoso toma
a D. Benigna agora em silêncio, solidária com a família outrora
festejada na posse do seu chefe e dando esta noite um desesperado
jantar ao outro que o [95] apeou do poder. Feita a cortesia, D.
Benigna reassume o ar comemorativo, virando-se para o Intendente:
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— É um zinho chocolate com uma fatia de doce, feche os olhos
para a insignificância, que o tempo de hoje, nesta nossa terra, só
vendo para acreditar, espero em Deus que passe. Mas deixe estar,
doutor, que em casa, é o senhor lá chegando, já lhe entrego em mão o
convite, sim?
— Já estou perfeitamente convidado, minha senhora,
perfeitamente...
— Assim, no momento, quem tem boca... Nos honre com a sua
presença, doutor. Sua, do Capitão e sua senhora, o Secretário, que
estimo conhecer, bem de viagem? Sua graça? Mas tão novinho, não?
Vai que vai bonito aquela roçação lá nos cemitérios, é só o que oiço,
que bem que precisava, não por descuido aqui do Coronel Cácio, não
vim pra dizer isso, sei o quanto fez o Coronel pelo Municípios é que o
diabo do capim grela por demais depressa quando mais que é no
estrume dos defuntos, estes que estejam em glória. Uma das enxadas
é da nossa casa.
Um tanto quanto embaraçada, o olhar crescido sobre tamanho
jantar, avança para a cabeceira.
— Sua filha, D. Generosa. Me entregue ela, esta noite, sem
susto, coitadinha, meses sem uma diversão, que aqui a mocidade rói
uma volta. Fica em meu poder, lá em casa, comigo, sim? Que o que
mesmo não tem, arremediandozinho a música, é dama. Uma faltura.
Quem te viu, ah, tanto que no meu tempo, moça? Nesta nossa terra?
Como dava’
Olha para a D. Generosa que parece rezando. O Coronel se
petrifica na cabeceira. Uma visão do baile ali nos espelhos, aquele
taile, ali estou eu na valsa, e com o meu par chegado de Belém, e
aquelas noites, depois, olhava a estrela, cachorro late, porta bate,
alguém assobia, Nossa Senhora da Conceição, quero que vós me diga
se Américo Burlamáqui, terceiro-oficial da Recebedoria de Rendas,
gosta de mim, cachorro há de ladrar, alguém há de assobiar, a porta
há de bater que sim. Ninguém assobiou, não ladrou o cachorro, a
porta não bateu, acabei mesmo, que remédio, amarrada no Anacleto.
Burlamáqui. só foi beijar aquele meu retrato, logo me traiu, me
esqueceu. Retrato só se beija de pessoa morta.
[96]— O doutor não vá reparar na pouqueza de dama, sim?
Uma xicrinha de chocolate só, o pobre do encarangado calejando o
beiço na flauta. Coitado do doutor que por educado, vai, não?
— Minha senhora!
Mais feião fica esse homem quando sorri. Nossa Senhora das
Candeias. Por isso mesmo, ao lado dele, o Capitão é um brinco de
oficial, e o Secretário, esse, ainda cheira a leite de peito e alfazema.
D. Benigna põe a mão no ombro de Bi:
— Bi, mas por amor de Deus! Me inventa, me inventa dor de
dente como a tua prima, pra não ir, me inventa... Dama, esta noite, ah,
que andei catando como quem cata diamante no rego.
— Mas as duas do Guerreiro, Benigna? Nem para abrilhantar o
baile que a senhora dá ao novo Intendente, ao Doutor tão que tão pelo
Guerreiro festejado? Será que vão fazer tamanha desfeita? Não é
contra a senhora, contra a senhora não é, a desfeita deles. Foi?
Convidou?
— Só estou a senhora, D. Generosa. Falando só para mexer
comigo. Aquelas? Da redoma em que estão? Aquelas nem janela!
— Nem o novo governo tira as cunhadas da corrente?
— Ali no cadeado? Melhor do que eu sabe a senhora. Deus me
perdoe, não estou rogando, ali no anzol, ali na lei, ali debaixo que
nem no convento. Eu quem sou eu pra arrancar aquelas duas da
chave? Só se a podido do doutor. Pode, doutor?
— Não ouvi, minha senhora.
— O obséquio de solicitar ao seu Guerreiro a presença das duas
cunhadas dele, em casa, esta noite, sim?
O Intendente desdobra o guardanapo.
51
— Seria uma interferência nos hábitos da família, minha
senhora. O seu Guerreiro podia recusar e não me ficaria bem a recusa.
Por outro lado, por gentileza mas constrangido, o seu Guerreiro podia
consentir e não me ficaria bem o constrangimento dele.
— Fosse eu convidar, a resposta: As meninas estão, no
momento, sem traje apropriado, além do mais, fazendo [97] serão
para o enxoval de um casamento no Almeirim. As meninas pagando
uma promessa, as meninas...
D. Benigna olha para os espelhos, corrige um brinco, agora
sorrindo para a D. Generosa:
— Como se o que tiver de acontecer com as meninas não
acontece. Ninguém é livre de tomar chá com raspa de uma ralada.
D. Generosa benze-se, vai levantar-se, chama o anão, dá uma
ordem. O xerimbabo chega com o prato de sardinhas portuguesas.
— Não sei, não sei, sei, não. Mas que chá então é esse, D.
Benigna?
— Não sabe, Capitão? Virando cabeça por aí de uma
quantidade. Pois não vira? As duas do Promotor por isso não me
acabaram com todo o selo lá da Agência?
O anão apanha o guardanapo que caiu dos joelhos da irmã. Bi
lhe passa a mão pela cabeça.
— Também pra nunca mais. Este que dou em casa, cefini. Bi,
Bi, fiada na tua palavra.
Bi põe olhos apressados no Secretário, corre os espelhos, volta
para o Secretário, agora para o anão:
— Maninho, um prato fundo para as espinhas, sim?
D. Benigna avança para a varanda aberta sobre o rio, debruça-se
no parapeito, vem de volta:
— Ah, tempo que nem o rio mais vejo. Enterrada que sempre
fico nos fundos de casa, na Agência. Até gosto dos passeios perdi.
Sinal da idade.
— A senhora? A senhora? — protesta Bi. — Aí os espelhos pra
lhe dizer não apoiado, D. Benigna. É ou não é, Capitão?
— Mas indubitavelmente!
O doutor se arranca da apatia — ouviu um apito? — mostra a
dentuça:
— O Lobão? Costuma passar à noite?
D. Benigna, como espantada, chega-se para a mesa, evitando os
espelhos:
— A passeadeira que fui. Apreciava. Mas hoje?
— Está uma noite eleita para um baile, D. Benigna.
[98] — Bailes do outro tempo, Capitão! Aqueles que sim.
Tenham dó deste meu que hoje dou, sim? Não caçoem. Olha, Bi, Bi.
Fiada em tua palavra. Com aquelas duas do Promotor não conto, por
ocupadas nas cartas que escrevem toda santa noite.
— Vá, sossegada que ela vai, sim, vai, sim, confiada ao caçula,
garante a D. Generosa repentinamente agradável. O Coronel Cácio,
mais alheio, repuxa os punhos da camisa. Alfredo atacando o
primeiro prato de tartaruga, o sarapatel. D. Benigna fala ao ouvido da
dona da casa que chama o anão. Este volta da cozinha entregando o
batedor de chocolate à visitante levada, agora, pela prima de Bi que
não vai ao baile nem sentou-se à mesa por doer o dente, de latejar que
só ele, três noites latejando. Na calçada, o Maxico com o farol na
mão, espera a madrinha.
— Ah, esqueci de oferecer o soldado para ajudar a carregar o
músico — bate na testa o Capitão.
— Ainda em tempo, Capitão interessa-se o Intendente, voltado
para o corredor da sala.
— Deixe, Capitão, que a Benigna tanto de chá como de carreto
entende, o senhor não ficou ciente?
Nisto o Coronel ergue o copo, resmunga o brinde, ouve-se um
rumor de navegação, o Intendente de pé: o navio! Preciso ir no
Lobão! O Lobão! O Lobão! A mala! Seu Secretário! Seu Capitão! O
52
Lobão! Ganha o corredor de saída é seguro pelos três irmãos: vai por
fora, doutor, noutro canal, subindo, decerto a Distrito Federal para
Manaus nem aqui escala. O Intendente arria-se, um trago de vinho,
embola o guardanapo.
— Aquele chá? Como se faz? Aquele chá?
O Coronel levanta-se, levanta-se o Intendente, o Capitão, os três
irmãos, o ex-Secretário.
Ficam os dois, Alfredo e Bi, agora no picadinho de tartaruga,
fiéis ao jantar.
— O senhor vai?
— Onde?
— Ora, onde, fazendo já que não escutou?
— Que escutei? Buzinaram no rio? Que foi?
— Ora, que foi!
[99] Calam-se, solitários, a grande mesa atulhada. Os outros
sentam-se nas cadeiras de embalo, esperando o café. Diante dos
espelhos, o Capitão ensaia esta e aquela pose já em Palácio, já
Ajudante-de-Ordens.
— Foi direito ficarmos? — diz Alfredo, querendo cruzar o
talher
— Torto é não terem nem tocado na comida.
— Depois, então, aquele chá?
Bi vai responder, chega a mãe:
— Olha, minha filha, licença tem de ir, mas vestida assim como
está, santa paciência.
— Mamãe! Já não vesti pra isso?
— Este o trato, Bibiana? Do baile nem você sabia.
— Que foi então que se falou toda a tarde, mamãe?
— Me mude o vestido, sim? Um mais de acordo. Esse, não.
Esse, santa paciência. Inda mais sendo na Benigna onde tudo se
repara, tudo choca e no mais afrontado as outras que vão de
vestidinho.
— Sara de vestidinho, mamãe? E o organdi da dona do baile,
vestidinho?
— Sara vai de ombro no relento, vai? Os judeus deixam?
Guarde o seu pra quando em Belém. Aqui, Deus me livre. Já não
vestiu esta noite? Eu bem que não queria que a Benigna te visse assim
na mesa. Tua prima logo carregando com ela casa adentro, ha, que
vocês, Mãe de Deus! Tape o ouvido, moço, tudo é a idade. O senhor f
alou? Ando com uma surdura. Falou?
— Não, não falou, mamãe. Não falou!
Alfredo os olhos pelo ombro de Bi, jasmins no colo, ombro nu,
macio lacrou, sedoso lacrou. Assim, de palmebiche, pode assanhar a.
cabra. O Intendente, na varanda, vê a Distrito Federal subindo. O
Capitão examina rifles, postais, o velho gramofone, o catálogo da
Galeria Lafaiete, o Larousse, a caixinha de rapé de madrepérola, os
Anais da Biblioteca e Arquivo Público, a coleção do finado Correio
do Município, alguns nomes do comércio extinto, Bola de Ouro,
Bazar, Barbearia 15 de Novembro, tônicos capilares da mais fina
qualidade, lê alto. O anão traz a bandeja do licor.
[100]— O tricoline, minha filha, está passadinho. Se apropria
melhor. Este, Deus nos livre, Deus te livre. O caçula te leva e te traz.
O teu irmãozinho tocando o rufo e tu te distraindo um pouco, filhinha
do coração. Que eu aqui, que remédio, fico catando cupim na roupa
do teu pai.
— Mamãe!
— Que foi? Espinha de pirapitinga na goela?
— Ah, mamãe!
A moça cruza o talher, incerta, ou vexada, ou fingindo, mira-se
no espelho, vê-se no suarê, as costas suam.
— Comam. Comam. Os velhos não têm fome — diz a mãe
numa voz confidente, saindo para a cozinha.
53
— Deus meu... Deus meu... Ó rio, á tempo, 6 vapor que vai
passando, me manda um teu escaler, uma febre, que me suma... —
murmura a moça a servir o companheiro.
— Prove do acari, vá pagando pela desfeita dos outros. Prove.
Posso ir num baile contra meu pai?
— Contra? O baile é pela harmonia.
— Mas era, se fosse! Aquela D. Benigna? Aquela? Prove, prove
do acari moqueado.
— Pena não ir com esse vestido...
— Certo de que vou?
— Pena...
— Minha mãe deixou dito que este vestido arrasta no capim da
rua, prende na pedra. Depois para afrontar? Mamãe não deixou dito?
Alfredo entra a comer mais. Vem das mãos dela o apetite?
Vozes na varanda, espelhos, o anão indo e vindo, nada, senão o
ombro nu, os jasmins no colo.
— O molho? Mais pimenta? Do vinho, inda nem um só gole,
não? Ah, como se a comida estivesse envenenada. Ou tudo estragou,
está moído?
— Estou às suas ordens.
— Agora é a vez do leitão, o leitão? O carneiro, O carneiro do
Capitão que comia as músicas. O carneiro?
Alfredo olha a mesa enorme, repleta.
— O carneiro? Que você disse? Come o carneiro comigo?
[101] — Moça que vai a baile janta só um tiquinho de nada ou
nem isso, só lambisca ou nem isso, pra, não ficar pesada nos braços
do cavalheiro, não sabia? Mas como lhe faço par na mesa... Pois não,
a seu dispor. Depois, lá, não se arrependa... A minha presunção!
Como se já soubesse que o senhor vai me tirar. Olhe, não sai da mesa
sem provar do leitão e da paca, me ouvindo? E aquele ali, coitadinho,
o guisado de tatu? Que me diz do tatu? O tatu?
Convidados na sala, três damas à janela, raspada a cera no
soalho, D. Benigna nem bem aqui na porta da rua e já lá na cozinha e
eivém de volta, apanha a ventarola, que aconteceu? onde socaram a
criatura? que aqueles três fizeram dele? pois nada de Loriano, o
Maestro, com a flauta.
— Se aflija, não, D. Benigna, que o meu soldado vai dar busca.
Ó praça!
— Obrigadinho, Capitão, não carece, que já despachei o
Maxico. Com pouco eles chegam.
D. Benigna, cozinha, quarto, varanda, porta da rua, agora na
sala:
— Mas, Mãe de Deus! Caminho da casa dele pra nossa é um pé
lá pé cá, o espicho do meu beiço. Se desencaminharam ai pela noite?
Aí pela beira do barranco? Cismaram que o baile é aonde? E já
ficando tão que tão tarde! Os convidados! Doutor, ah, doutor, já nem
levanto os olhos .para o senhor.
— Levante, sim, minha senhora. A flauta chega, é só o tempo
que afina. O carreto vem vindo, se aflija, não. É o escuro, o puxo da
maré no fôlego dos carregadores, a distância aumenta, o estirão, à
noite, estica. E o bicho, vá ver, já imaginam quanto peso?
Principalmente agora que tão esperado. Se aflija, não. D. Benigna.
— Querendo me adoçar a boca, doutor? Neste ermo, só que
acontece, noutro nunca, doutor. Ai! Papel! Anos que já devia ter
chegado na cadeira. Santa Mãe! Isto, vai-se ver, é praga.
Senta-se, se abanando:
— Olhe que não é por não ter falado. Tanto que escureceu, fui
falando: Quim Tatajuba, esquenta a goela, [102] mas só depois da
obrigação. Nhoduca, teu abre só com o serviço feito. Também falando
contigo, Dico Jandiá, cobra juízo. Primeiro me tragam o Maestro,
quanto antes, olhem a minha responsabilidade nesta noite.
Misericórdia! Mas que deu na cabeça deles três, tão de confiança?
Até o Maxico sumiu.
54
Levanta-se:
— Tome, doutor, além do mais nem uma aragem, se abane com
esta ventarola.
— Tão bem recebidos somos, minha senhora, que queremos
mais?
— É o que me salva.
— Não ouvi, minha senhora.
— A fina educação que o senhor tem, porque senão... Ah, pois
já não ia de novo me esquecendo?
D. Benigna apanha da escrivaninha o ofício, timbre do Cartório.
Antes que me esqueça de novo, doutor, desculpando o mal
escrito.
O Intendente lê:
Fui eu a escolhida para, pessoalmente, convidar o senhor, o
Capitão, o Secretário, a fim de abrilhantarem, com suas presenças, a
modesta festa que realizar-se-á, hoje, às vinte e uma horas, em minha
residência, onde funcionam a Agência do Correio e o Cartório do
Juízo, pelo motivo que bem conhece.
Para todos será uma grande satisfação a presença dos senhores,
mormente quanto tanto os funcionários como a sociedade local fazem
jus ao comparecimento dos senhores.
Para todos, aliás, os termos entre nós é de valor inconfundível,
pois, desterrados como vivemos, só podemos sentir prazer imenso em
contato com pessoas ilustres, como os senhores. E para que não se
sintam deslocados (eu particularmente adianto-lhes), tudo farei para
que desapareça o cunho político.
Antecipo os meus agradecimentos pela atenção que venham a
me dispensar, ficando satisfeita em solucionar problema que a mim
confiaram, certos de que eu o desvendaria.
[103] O intendente inclina-se, tirando os óculos, dobrando o
ofício:
— Ora, minha senhora, ora, minha senhora.
— Não tem de que, doutor, não tem de quê. Não nos leve a mal.
Como aliviada, a dona da casa tira do cesto de costura a outra
ventarola e vai olhar à janela, falando para o escuro:
— Maxico! Maxico! Hein, Maxico? Sinal nem um, Maxico?
Exagera o vexame? desconfia o Intendente, notando-lhe o
penteado, o remexo da anca. D. Benigna acende uma vela no oratório,
reza breve, corre da alcova para a cozinha:
— Nhá Eugênia, me acuda, que estou de cara no chão. Batendo
o chocolate no alguidar, a preta de carapinha alva ralha grosso:
— Não se aflija assim tanto que o preto chega, D. Benigna.
Desavexe. Loriano é pessoa que falha? Enterta os convidados, as
autoridades, é que é. D. Benigna, abom! Vá fazer sua sala, sala que é
o lugar da senhora.
Na rua, ao lado do Capitão que sonda a noite atrás do praça, o
Intendente cochicha:
— Está o praça experimentando os afofados do Coche, Capitão?
Vamos buscar a ,harpa? Deram aquele chá aos três do carreto e lá vai
o baile barranco abaixo? Aposto que foi o velho Parijó. Arrastou o
músico e seus carregadores lá para a corrente. Ou os defuntos, para
festejar a capinação, requisitaram o flautista? A hora em que o Lobão
apita? Aqui bailamos enquanto o Sede de Justiça ceva a sua
indignação. Bem faz o Juiz de garupa na rede, esta hora. Quantos
barrigudinhos já tem, só com essa. costela do barranco?
— Quatro, doutor.
— Está agora fazendo o quinto.
O Intendente chama:
— Seu Dó! Seu Dó!
Seu Dó se levanta da beira da calçada, aparece na luz da janela.
[104] — Seu Dó, longe onde mora o Maestro?
— O Maestro? Logo ali, doutor. Alizinho na primeira rua, numa
puxada meia caindo, defronte do Mercado, na ilharga do Telégrafo,
55
doutor. Mora lá com a mãe velha dele, a Nhá Mãe. Ali corta cabelo,
trança tipiti, rói o reumatismo e o mais.
— Me veja se inda estão lá, se já carregam o homem, me faça
obséquio.
— Bote estirão de tempo que já saíram, doutor. Presenciei,
carregavam o Maestro na cadeira, chega dos Três gemerem no
suspender a cadeira, só avalio aquele peso, eu de lado só apreciando.
Adjutório não dei pra não passar por oferecido.
— Traziam farol?
— Uma lamparina no paneiro, só vinha apagando. Vinha na
mão do sobrinho do Tatajuba.
— Então se abriu no caminho, diante dele, um precipício, só
sendo. Não, seu Dó? Agora que foi, peixe-boi.
— Deus o livre.
O Porteiro coça a costela:
— É, até esta hora... Mas é verdade... era pra terem chegado que
tempo! Ah, mas possível! Só se foram primeiro na comadre Benedita
Lucrécia atrás de azeite de pracaxi pra a perna do Maestro, ou
pararam, será, no meu compadre Parijó pra uma benzição, que o
compadre pode que tenha chegado lá das viagens. Quem sabe se
depois disso o Maestro não vem andando com as pernas dele? Ou...
Me deixa trancar mea boca.
— Molhando a goela, seu Dó, no querosene do farol, lá. no
Trapiche?
— Olhe que é o senhor que está dizendo, doutor, Arriscando
ser. Pela tanta demora. Pode que esteja tirando a poeira dos olhos. Um
golinho sempre limpa a vista. Mas paciência que de com pouco, fé em
São Benedito, os Três desarriam a carga bem aí dentro do baile, o
Maestro já soprando aquele primeiro chorinho dele do bom costume.
Mas o senhor que manda. Me deixe ver.
— Não, não, seu Dó, se assente onde estava, vá serenando o
baile.
[105] — Serenando? Eu, doutor? Quem me dera eu. Só estou
cumprindo ordens.
— Ordens, seu Dó?
— Aqui como Porteiro, doutor.
Seu Dó, vai, agacha-se na calçada escura, folha de abade no
beiço, tira o migado e em respeito “aos homens” não acende o
cigarro. Mais tarde, vai sem falta na cozinha pegar sua xícara de
chocolate e a fatia de bolo, que jantar mesmo, esta noite, quem disse?
só foizinho aquele rabo de traíra, mesmo que comer palha, um cui-cui
de farinha, mofo que tinha na farinha!
O Secretário, à. luz da janela, divisa rostos debaixo da
mangueira. Ali agachados, ou de pé, à espreita, aquelas do cemitério?
Ali misteriosas, à. espera. O Tabelião, para entreter, que remédio,
dobra a folha de abade no pente fino e tenta a valsinha ao violão do
sobrinho, escrevente juramentado, o Cipri, e o anão no rufo. Na sala,
o Intendente, o Capitão, o Secretário, o Coletor Estadual, o irmão do
Sede de Justiça, o Zeqüenqüém, este, sim, com aquele dente de ouro,
se dando com todo mundo. Na janela, as três debruçadas, olhando a
noite.
— Ao som do pente fino, Secretário. Tem três damas na janela.
Tire uma, Secretário — cochicha o Intendente. O Tabelião, na
preguiçosa, estirada a perna reumática, frinfrinfrim no pente fino para
salvar o baile. D. Benigna, fazendo sinal ao marido que pare um
repente na alcova, depressa empoa-se, cheira-se nos sovacos, e aqui
na sala nem sabe onde botar os olhos, quando se dá conta estão no
Secretário. Estendendo a toalha da mesa, a Esmeridiana, cabocla do
sítio, ali de passagem, num vestido de chita quebrando tigela, tem
permissão de dançar sem fazer sala, ocupada em xícaras, bandejas,
copos d’água, pronta para servir e atender, agora pasmada com a
demora do flautista, cobrindo o pasmo com a palma da mão.
A outra afilhada da D. Benigna, uma meia escurinha de fita no
pixaim, a Zezé, esta então nunca passa do corredor, raspando a unha
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pela parede, moça, sim, mas de segunda, entra pelos fundos, ali de
reserva, podendo, por uma licença da madrinha, para não deixar na
mão um cavalheiro, ser tirada para a sala, sem ficar para costume.
Damas de baile mesmo só as debruçadas na janela. Bi de tricoline
manga comprida, jasmim no peito, cheia daquele [106] jantar, Sara, a
judia, os olhos sonolentos, faixa negra na cintura, e a Liliosa, por
demais pintada, folhos na saia azul, perna piririca, irmã do Sede de
Justiça, sempre o dentão de fora, querendo que querendo se dar com
todos, nada tem com as brigas do irmão metido a desentortar o
mundo. “Olhe que é tão dificultoso, é que é um castigo orquestra
nesta nossa terra. Passa martírio quem dá um baile.”
— Nossa? — fala a Ei, tira põe o anel no dedo, virando-se para
onde está o Secretário.
— Nossa, Liliosa? Nossa terra? Minha que não é nem nunca
foi.
— Uai, aquela-menina!
— Que eu estou te dizendo, gerada, batizada, criada em Jocojó,
minha filha. Tiro já uma certidão aqui, já, neste Cartório. Dá ai no
livro.
— Ah, Bi, por esta eu não esperava. Rejeitando o berço?
— Meu berço? Jocojó. Tanto que no dia em que nascia, no
Jocojó, assim mamãe me estoria o caso, arpoavam um desconforme
dum pirarucu o qual tamanho, olha só o tamanho. Com certeza o pai
dos pirarucus, arpoado lá no lago das nossas famílias. No que dei o
primeiro grito aqui fora já no mundo, o arpão entrava no peixe teba. A
mamãe contava, conta, está aí ela vivinha, é só ires em casa, vai mas
fala alto que a velha me anda meia surda, vai que ela te conta tudo
estoriadinho, te mostra o aparado do meu umbigo, meu penso, meu
primeiro macuru, a cabeça de minha primeira boneca, uma que dava
corda e andava, que atorei com a machadinha. Danada por não ver
sair sangue do pescoço da degolada, arriei num berreiro. Tudo que fui
eu menina em roupa e brinquedo e dengo, mamãe fechou num baú.
Mas de tudo aquilo só uma coisa estimo.
Fica de costas para a rua, fazendo-se atenta ao pente fino do seu
Anacleto ali na varanda frinfrinfrim, já o Zeqüenqüém afina o violão.
— Só uma coisa estimo: o botija.
— É mesmo. Vezes que já te vi com a botija na porta do
banheiro.
[107]— Sara, não desminto. Quando estou amargurada,
amargurada de um desgosto ou de uma raiva, só soprar na boca da
botija e alivia.
— Ah, me empresta por uma noite essa tua. botija. Me
empresta?
— Boto a botija embaixo da rede, digo: AI quieta, tira daí de
dentro de ti meu sono. Assim ela vai me dando sono, como, não sei,
só sei que durmo.
— Dela eu queria o contrário. Que me deixasse três noites sem
fechar o olho. Ando doida atrás de não dormir. Demais que durmo.
Não tem sonho que já não tenha sonhado. Guarda meu sono na tua
botija, guarda?
— Cedinho levo a botija no rio, lhe dou um mergulho, faz
aquele glugluglu. Foi um tempo atrás a minha boneca preferida.
Estimo muito aquele diabo. Cismo que guardada dentro dela está a
mea sina. Ou na esperança de eu ter que parir um pirralho, espera que
tenha de fazer força soprando nela?
Liliosa, mãos no rosto, afeta um pasmo. Sara, fácil de rir, ri alto,
logo tapa o riso, debaixo dos olhos do seu irmão, o Coletor Estadual.
O anão no rufo não deixa de espiar a irmã que lhe mostra a língua,
franze a testa, sustenta o ar zangado, sabendo-se observada por
Alfredo.
— Manda, manda o caçula buscar a botija. Pode ser que nos
diga por onde anda o Maestro.
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— Te lembraste bem, Sara, mas que pena... Tapei a botija com
o meu sono dentro. Hum! com pouco saio do meu natural, tiro aquele
Secretário insosso no som do pente fino. Que tu achas, Sara? Liliosa?
— Envergonha o baile.
— Mais envergonhado do que está? Envergonhadas somos nós
três nesta janela, desenganadas de baile e tudo, ah, fiasqueira!
Bi se finge séria, alisando o atracador, meio voltada para o
Secretário, logo em cheio na janela!
— Abom, abom. Já passa! De com pouco chamo meus
cachorros e sou eu trazendo o Maestro pela perna encarangada.
Puxa a manga de Liliosa:
[108] — Agora que nesse pente fino não rodo, isto te afianço,
não rodo, eras!
Sara abafa o riso, balançando aquele seu violão, faixa negra na
cintura. E Bi volta a puxar a manga da Liliosa:
— Este? Lugar do meu nascimento? Era, se tosse. Vê lá. Jocojó,
sim, mamando na mamadeira o leite das laranjas de Urucuriteua, me
criando em cima das melancias, em pêlo-pêlo saltando da cabeça do
Trapiche n’água. Vinham os botos e eu gritando com eles:
Cuiapitinga! Cuiapitinga! por causa de que a cabeça deles é pelada,
pelada, aí então que os botos fungavam, se zangavam, não gostavam
do apelido, e eu: Cuiapitinga! Cuiapitinga! Mal que me fizessem qual,
o quê. Me criei no meio deles, nadando rente do animal ouvindo o
ranhido das ciganas... Lá de cima do Trapiche, me gritavam: olhe,
olhe que tu pega a asma de cigana, criatura! O ranhido deles é ver
asma de gente. Peguei? Vi foi bota ter filho, que só tem o filho em
terra, na água, não. O filho mama e chora que nem criança. Até que
me apelidaram Menina Mama-na-Bota, só porque andei falando que
sonhei mamando na bota.
— Falar em sonho, já estou a ponto de dormir. Maestro caçando
arara esta noite no ombro dos Três? Oh, sono!
— A minha ama-de-leite, a bota, subia o jirau, chegava na beira
do meu macuru, me dava o peito.
Se queria dar baile agüentasse repuxo, mandasse buscar os
Fonsecas, a preço que eles pedissem, pagasse com os capados que
ceva aí no fundo do quintal. Fazia de casa em casa uma tiração de
esmolas, seu Guerreiro dava, meu pai dava, seu Bensabá dava, o Cabo
do Fortim dava, o diabo dava. Quem pode, pode, quem não pode, se
sacode.
— Conversa, conversa, Bi, que senão durmo em pé, que dormir
é a minha natureza. Bi, me tira deste meu vicio, este sono.
— O vinho do meu mijo? Pergunta pra mamãe. Beberam no
dia, vinho de Portugal, com pirarucu na brasa. As mantas do peixe na
salmoura. Foi, sim, tanto festejo e agora aqui à toa, num baile que não
é. Foi, sim. Me criei no leite de bota.
Liliosa, boca aberta, o dentão satisfeito, um pouco a cismar: O
Secretário está reparando nas piras da perna dela? Transparece na
meia? Que não fez para sumir a [109] piririca, que não fez? Doutores
de Belém, conselhos, perna de cera para a Virgem de Nazaré, Mestre
Parijó, .até o Elixir 914, qual. Transparece na meia? Tão que queria
vir com uma de algodão grossa. A mãe: “Num baile assim, oficial, de
comemoração, só meia de seda, minha filha, a que a tua cunhada te
mandou.” Seda. Seda nestas pernas. Que vale que a luz da sala é
candeeiro de querosene, não carbureto, fraca que nem de bagunça da
terceira rua, ai que estas piras parecem no meu rosto, mais por dentro
de mim que na perna. É que foi, que do Maestro nem cheiro? “Isso
que te deu na perna que foi inveja deles, minha filha, foi, que tua
perna, até uma tua idade, quando estavas botando penugem, benza-te
Deus, bem nascida era. Invejação, invejação te botou a vista, a
primeira pereba se abriu. Invejosidade te cobre a perna, minha filha.
Aqui, nesta terra, se amontoou o mal em quantidade. E por isso calafeto o quarto, calafeto tudo pros maus espíritos não entrarem mais.”
Coitada da mamãe. As seis da tarde tira uma cachimbada contra as
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pragas que lhe mandam, outra na meia-noite, fazendo subir na
fumação os pedidos de felicidade para os filhos, a terceira no sol
raiando, para que dia Inteiro o São Benedito esteja dentro de casa. E
aqui a dama de perna pirenta à espera do Maestro. Dançando até que
disfarça, o Secretário pode me experimentar, sei o suficiente que uma
dama da cidade dança, ou mais, o que Bi e Sara dançam juntas, só vir
a flauta, mas quando? Aonde o Loriano? Vá ver foi assinar o ponto,
quis primeiro passar pelas Seruaias, aquelas que me chamam de Pira
de Cachorro. “Lá vai a Pira de Cachorro, se afastem que aquilo pega.”
Pensa que não sei? Loriano pediu ao Três para assinar primeiro o
ponto nas Seruaias, uma lá que é dele, a mais velha, cara de porco-domato, brigona de rua e beira-rio. Pira, Pira de Cachorro. Cachimbadas
que mamãe fuma no rumo das Seruaias, já quantas? A cruz de cera
para cortar assombração de bicho e praga das Seruaias! Qual! Já não
passo pela frente da casa delas, no caminho do costume. Dizer que
tenho irmão para ir lá tirar a limpo, espere por tal. Zeqüenqüém canta,
agarrado ao violão e a catar palavra no dicionário. O outro só é o
desvario contra o Juiz. A Deus entrego. Está nas Seruaias. Bi,
também, assim também não, os olhos dela! Não tira os olhos de cima
do Secretário. Puxa, só faltando engolir o rapaz?
[110] Sara num sossego, já sonolenta, do Maestro desesperançada. O Secretário tivesse ânimo de tirá-la ao som do pente fino,
se deixava tirar, sim, não é só o que merece este baile? Só estou é
abrindo a boca, vou dançar sonâmbula.
Alfredo olha as três debruçadas na janela.
O Intendente, de ouvido no rio, à espera dum apito, decide-se:
— Melhor é Ir atrás, catando os desgarrados, Capitão. Vamos
dar uma busca, Capitão?
— Atrás deles, doutor?
— O baile em busca de sua música, pois não?
— As suas ordens, doutor. Onde que se meteu o praça? ó praça!
O praça apresenta-se.
— Aqueles Três carregando o flautista?
— Queria que escoltasse o Maestro, Capitão? O senhor quer,
faço diligência.
— Vamos todos. Bater a cidade.
— Ferros em cima! Ferros em cima! Atrás do Maestro! Atrás
do Maestro! — repete o Doutor, subitamente festivo, chamando o
Secretário. Seu Dó, de pé, chapéu na mão, aguarda no escuro. O
Intendente acena para as moças da janela:
— A fineza! façam as honras! As honras do cortejo!
Desencantar o Maestro. Também as senhorinhas!
As três hesitam.
— A fineza! Faz parte do baile! É do programa. Ao trotoá!
— Doutor, então chame a D. Benigna — pede Bi.
As três damas saem com a D. Benigna — olha, Zezé, a louça,
minha filha. Esmeridiana, a mesa. Ah, Mãe de Deus!
Esmeridiana:
— Madrinha, mandou será na Nhá Benedita Lucrécia? Cismo
que é isso. Pode que ele esteja passando azeite de pracaxi na perna,
madrinha. E ele zás aproveitou o carreto [111] pra ir até lá na Nhá
Benedita Lucrécia, madrinha. Eu que não duvido. Pode que seja.
Zezé quer tirar a limpo:
— Passem é pelas Seruaias. Foi primeiro dar o seu bordo por lá,
tomar um cheirinho. Dias que não vai lá por via da perna. Assim
carregado quem que não Ia.
O Maxico foi na carreira saber e voltou: Nhá. Benedita
Lucrécia, na última vez que benzeu o Maestro, benzeu na casa dele, já
fazendo três dias. Quanto ao passar pelas Seruaias, D. Benigna que
não, não ficava bem.
Em busca do Maestro pela ribanceira, o Capitão ergue o farol
sobre as ruínas. Seu Dó manca um pouco, mexendo as chaves no
bolso. O Intendente acompanha a D. Benigna. Atrás o Secretário com
as três senhorinhas. Lá na varanda, o Tabelião no pente fino ao som
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do violão e rufo, o Zeqüenqüém cantando. Sim, que o anão primeiro
vem saber da Irmã.
— Fica aí no rufo, maninho, que todos aqui que vão comigo
têm a sua responsabilidade. Sabem tomar conta de mim, sim?
Lanterna acesa, o passo miúdo, suando na casimira, Jacobito, o
Coletor Estadual, agarra o braço da Irmã:
— Pra casa!
Sara desvencilha-se:
— Meu braço! Inda mais essa! Me larga!
— Pra casa já.
— Que que tem? Por que não me acompanhas? A tua
Ilustríssima proíbe?
— Quem te mandou? Quem te mandou?
— Tira a lanterna de cima de mim, me escandeando.
O Coletor apagou, tira o paletó, desata o borboleta:
— Sara! Hora de moça andando na rua? Aqui à toa na rua? Pra
casa, Sara! O baile gorou.
— Gorou, como? Se estamos procurando o Maestro? Não foi a
convite do Intendente que saímos? Fala com ele. Sabe lá o que
aconteceu ao Maestro?
— Mas até onde? Correndo rua até onde? Até quando? Até
bater lá nas Seruaias? 86 o que faltava. Só o que faltava. Nas
Seruaias! Lá arriado, arriadão, a Bernarda [112] Seruaia lhe passando
gordura de boto na perna. Nas Seruaias! Nas Seruaias! Papai vai
danar-se. Só pode estar nas Seruaias. Nas Seruaias!
— Danar-se com o Intendente? AU na frente não vai quem dá o
baile? E o Capitão e o soldado? E eu? Vou só? Vou perdida?
A esquivar-se da lanterna, Bi Intromete-se: ver se Inda se salva
o baile, Jacobito. Atrás da música. O baile não é em regozijo? Tu
também não passaste telegrama ao Governador felicitando pelo novo
Intendente? Agora é o baile. Sara, tão sossegada que Sara vai! Não
tira o sossego da tua irmã, cabuloso. Deixe a menina passar esta noite
em claro, tanto que ela pede pra não dormir, ora já se viu? Vamos
acudir os Três que carregam o Maestro, rapaz.
— É, sim — aprova Liliosa, temendo que a lanterna lhe
descubra as pernas. O Coletor apaga a lanterna, dá meia-volta, logo
eivém, segura o braço da Irmã, segreda-lhe ao ouvido, e a moça —
boa noite, Secretário, noite, Liliosa, noite, Bi — se deixa levar pelo
irmão. Liliosa corre para a D. Benigna lá na frente.
— A desconsideração de Jacobito, Benigna. A criatura morre de
tanto dormir.
O Intendente volta-se: — Hein? Hein? O Coletor Federal?
Atirou no Juiz?
— Não, não, o Estadual, o Jacobito. Tirou a Irmã do baile.
— Que hei de fazer com o Jacobito, minha filha —resigna-se a
D. Benigna — convidei, sim, a família dele, que é o direito, o social
veio ele e a Irmã. Mas a amásia? Por Isso.
Liliosa já não sabe: aqui na frente ou junto de Alfredo e BI?
Toma a dianteira, coçando as pernas, sozinha. Alfredo e El atrás sem
pressa.
— Que jantar!
— Que baile!
Bi, baixo, mais vagarosa:
— Viu? Aqui a meu lado a Irmã dele se desencaminhava, está
vendo?
[113] — Que jantar!
— Que baile! Comigo, Sara fica na beira do precipício.
— Procuramos a música juntos. Sara já deu o seu boa-noite. A
este instante armando a rede.
— O senhor! Já sabe que a vida dela é dormir? Que acha, não é
bem talhada de rosto, aqueles olhos, assim sobrancelhuda, não fica
bem nela?
— Sara?
— Já sabendo de quem falo? Já fazendo umas pontas com ela?
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— E a senhora?
— Eu, quem sou eu para ser uma senhora. Quem me dera eu.
Adeus que serei senhora. Olhem que estão nos vendo, nos cocando.
— Assim tão breu?
— Sara levou seu juízo?
— Quem jantou comigo? Sara?
— Sara agora está cantando aquilo que sempre se canta na
Ramada em dezembro:
Se eu soubesse que tu vinha
fazia o dia maior
Pegava na fita verde
Prendia o raio de sol
— Que jantar!
— Me tire então, duma cisma, me tire. Que lhe sopraram sobre
minha pessoa mal o senhor põe o pé no Trapiche, ou já foi a bordo?
Em Belém, será? Por que aqui do meu lado? Que tenho eu de mais
que lhe interesso? A fama? Quer mandar um ofício sobre os maus
costumes desta cidade? A fama?
— Afinal nem dançamos.
— Mas jantamos. E não demora o efeito do veneno no senhor.
— Do tatu? Jeju moqueado, creio que não tinha.
— Bem que podia ter dançado com a Sara. Música no baile não
faltava. Era só no pente fino.
[114]— Então no pente fino, vamos? Ou buscar aquelezão
gramofone de sua casa? Vamos?
— Aquele? No que dou por mim neste mundo já estava a
geringonça em casa, encostado na. parede, sair dali um som? Dava
corda, dava corda, o terém parado, calado, só estampa, tomando lugar
na casa. Só dando trabalho ao espanador, a mamãe espanando, todo
santo dia. Quando destorce meu juízo, vou, destorço o bocal dele,
pego, fico-que-fico soprando no rumo do rio, a mamãe atrás de mim
mas danada. Vive espanando o gramofone. As vezes me ponho a
dançar sozinha diante dele com o cabo da vassoura meu cavalheiro
meu par. Mamãe me vem: onde tu deixaste a cabeça, pequena? E eu:
Saçaricando ao som do nosso afinado gramofone, mamãe. Estou que
dentro dele mora um uruá que subiu da praia.
Sentou na raiz da. mangueira, varre o rei, varre a rainha,
cantarolou, põe-se de pé, as mãos cobrindo o peito.
— Eu e o senhor nesta nossa Idade, os velhos, o que nos dão os
velhos? Só nos dão aquele gramofone? O pente fino? Esta procuração
atrás do Maestro? Será?
Alfredo pensa nos professores velhos do Ginásio (também os
novos, também os novos), o decano roufenho: quando eu passar, o
senhor sentado, o senhor levante-se, moço. Não é um cidadão. Vê-se
que não é um cidadão. Os velhos, na casa da Duduca, em Cachoeira,
remexem os podres da vila, agora em silêncio, por lhes faltar assunto
ou a língua deles secou. Administrador do Mercado, vendedor de
arroz-doce, naquele pandemônio de família, ó velho seu Cristóvão!
Na caleche de Marinatambalo, a desvairada avó Meneses chicoteia
visagens que lhe rondam a fazenda morta. Tecendo cestos e
recordações, lá na Areinha, o velho avô e seus amigos do peito os
miritizeiros. Por onde anda o velho Alcântara? E aqui o velho Fiscal,
o velho Fiscal, o amante, esse, o galante ancião, o teu, menina? Foi
fazer serenata, o velho entrou por debaixo do soalho. Antes o
flautista, menina, pois no tempo, que leva o velho, é que vens.
Bi emparelhou-se com eles.
— Ainda pensando em Sara?
[115] — Sara dorme.
Só a mãe não envelhece, aquela, seja de Areinha, do chalé, no
barco, no campo tomada de delírio ou atravessando a nado o rio
escuro, cantando.
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Oi a rolinha, sinhô sinhô
Se embaraçou sinhô sinhô
Caiu no laço sinhô sinhô
Alfredo em silêncio espera que a moça se levante da raiz da
mangueira.
Salta como assustada: Quem é? É o irmão, pijama, chinelo e
cigarro, o Escora-Canto, a palmadinha no ombro de Alfredo: que há
de novo? que há de novo? E some-se. Bi abata a voz:
— Ah, meu mano, indaga dos defuntos, que agora lá anda tudo
capinado, é a única novidade, indaga.
Tirou o pé do sapato.
— Um lugarzinho aí na sua bodega, para esse irmão meu, o
senhor não tem um?
— Só se em lugar do Porteiro ou do Trapicheiro. Nosso
funcionalismo está completo. Ou o meu.
— Não não, carregar água do rio pra sua tina de banho. Isso,
isso.
E dá um repelão como se quisesse dizer que já tinha emprego, o
dela, assim entende Alfredo. Bi com o sapato na mão: É. Meu povo
acabou-se. Volta a sentar na raiz da mangueira, varre o rei varre a
rainha.
— Mesmo assim, se quiser, meu senhor, vamos roubar o
gramofone, enquanto mamãe se tranca na alcova. Entra-se pelos
fundos. Ao menos de conta que tocou no grande baile, fazendo correr
que tinha gramofone na festa. Diabo é que o traste pesa. Mas não
somos dois a carregar o dragão? Não carregamos o jantar? Já não
estamos com o baile nas costas? Vamos?
— Vamos.
— O senhor!
— Vamos?
—Conheço, conhecendo o tom desse seu vamos.
[116] Param, defronte um do outro, um Instante calados. Bi dá
dois passos, uma topada, upa! Aqui tem dinheiro?
Coitada de nhá mãe, a esta hora, trancada na alcova. Se não está
se defumando com resina de cunuaru contra a dor de cabeça, cata
cupim no bolso do velho, vendo-que-vendo morte na família e aí o
anãozinho toca funeral no rufo. Aquele outro, escorando canto, pena
por estes breus, atrás do que há de novo. Mamãe pode também estar
martirizando a cabeça atrás de um nome de advogado de Belém que
por força aceite a causa da quinta de Portugal. As cerejas que a filha
dela deixou de comer, Secretário. O mano, o mais velho, lixa as
armas, a ocupação dele, lixar cano de espingarda. Eu aqui por entre
pardieiros caindo, e catando o Maestro. Sabe, a primeira, neste
buraco, que mandou chamar o Maestro para aparar o cabelo, fazer o
peladinho, de acordo com a moda?
— Já sei.
Pois foi. Este meu peladinho? Dele. Chegando em casa a meu
chamado, mostrei a ele a moda num figurino, na fotografia de uma
colega minha de Belém, abri o jornal em que vinha um cabelo exato
como eu queria, o Maestro só me olhando. Maestro, exatinho a um
destes, sim? Pode? E ele, no seu falar tão! mas tão sem nenhuma
pressa, aquela feição do rosto dele sempre cerimoniosa e ao mesmo
tempo caçoísta e bem do nosso agrado: Que que não se pode, D.
Bibiana? Poder, pode. O meu porém é que esta minha tesoura velha
nunca cortou que fosse um fio de cabelo pertencente ao gênero
feminino, D. Bibiana. Olhe que a senhora pode correr o risco de
estragar a sua madeixa. Responde: Que que tem? Ou vai cegar a sua
tesoura, Maestro? A madeixa a seu dispor. Conheço o seu esmero.
Deixe estar que depois amolo a sua tesoura, sim? E assim foi mas...
está me ouvindo o senhor? Seu ouvido onde anda? No Rio? Em
Belém ouvindo o vem-e-vai da cadeira de embalo nos Bensabás, a
Sara agora se embalando, se danando nos embalos pra não dormir?
Sempre que lhe dá uma raiva, ai que aquelas cadeiras do pai dela
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passam baixo. Pois desta ultima vez que precisei do meu cabelo na
moda tive que vir, eu que fui lá naquele salão, coitado do Maestro. O
pretão lá amado de reumatismo e nem... com nada se contraria, se
dores tem, o olhar dele não diz.
[117] Então que cortou com todo gosto, no uso de sua
delicadeza, sim que muito dado a rir, como coisa que dá e não dá
assim tamanha importância ao que acontece e desacontece mas no
geral respeitador e conversando, tocando, caçando, tecendo seus
tipitis, cortando cabelo, o caprichoso de sempre. Dizer que algum dia
viu um banco de colégio, quando? E tão parecendo que sim, pois tão
fino!
Fala sossegado, exalando seus jasmins, e Alfredo ali quieto,
longe a viagem, que jantar! perdido o baile, amanhã a Secretaria.
— Assunto dele é: As araras, peixe, os tipitis. Do reumatismo,
que tanto morde, coitadinho, a perna dele, se a gente fala da moléstia
é já com a resposta na ponta da língua, risonhento: não sabia que foi
caruana? Mal que fie botaram, bem merecido, no que toco atraio os
males para cima de mim, bem merecido. Só sei que ontem a Nhá Mãe
Velha me defumou com resina de breu queimado. Assim estou eu, D.
Bibiana, conte as contas do seu rosário por mim, sim?
Os dois caminham.
— Duas coisas, me diz ele.
— Quem?
— Ora, quem! O varão que procuramos, esta noite. Duas coisas,
me diz ele, passando o pente no meu cabelo. Duas coisas me queixo
de não saber fazer: Casco de montaria e tocar bombardino. Da flauta,
falar, pouco fala, nem arrancando. E a voz dele, a voz dele? Só se o
senhor escutasse, aquele tão descanso de voz: A senhora, D. Bibiana,
conhece esse mato que bota uma palma amarela, o mata-pasto?
Medicina da nossa flora. E eu: Maestro, quem que corta o cabelo do
Maestro Carijó? O senhor? O Maestro, abrindo com o pente um
caminho no meio do meu cabelo: “Assunto que não é bom estar se
falando, D. Bibiana, sempre convém observar silêncio.” Esse
observar silêncio, não sei donde tirou, se dos almanaques, dos jornais
ou da boca do Zeqüenqüém, seu acompanhante de violão, rapaz
artificioso, cheio de pedras preciosas no falar se bem que não
desagrade o seu tocar violão. A flauta ali em cima da mesa, ao pé
dum bem velhinho São Francisco de Sales de pau, ali, oh, santinho,
aquele, dorminhoco! Em cima da mesa velha, no meio dos folhetos de
modinha, cópias de letras, aquele pedaço de espelho. D. Bibiana, ara
[118] me ceda por um tempo um daqueles espelhos do seu pai, aqui
de tanta serventia, me faça empréstimo de um! Olhe, olhe, só estou
brincando, só brincando, D. Bibiana, que é o que não trago nem levo
comigo, cobiçar o alheio. Esta noite era até capaz de arrancar da
parede lá de casa um espelho, carregar por estas horas da noite,
gritando por todo o barranco: Mui o espelho, Maestro! O espelho,
Maestro. Por paga, nos toque o baile! Contou que um tarde foi ele
pegar na flauta, saiu de dentro dela aquele bruto centopés. E um dia
que ele se serviu da chave inglesa do seu Bensabá para desatarraxar a
flauta? Aquela flauta?
— Nunca ele lhe fez uma serena?
— Eras! Serenata?
— Se não tocou na frente de sua janela, por conta e risco ou a
pedido alheio, sendo você quem é?
— Que me lembre... Sendo eu quem sou por quê? Destrance.
— Impossível que, um luar, não tenham tido a tentação, ele ou
quem pedisse a ele, noite de junho ou de agosto, verão, vamos acordar
a D. Bibiana?
— Janela do meu pai nunca abriu pra serenata, meu senhor.
Nem o Maestro se atrevia.
— Então desculpe.
— Não precisa desculpar-se, sei, já sei a que quer chegar se já
não fizeram minha cama pro senhor. O senhor quer tirar de mim todas
as informações, não? Sou ou não sou a mal-afamada?
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Corre pelo escuro, volta batendo a mão na coxa: Viu?
Alfredo não responde.
— Não era?
Alfredo calado fica.
— Um anjo me soprou que foi meu pai. Mau meu pai? Aqui, a
esta hora, ele que de casa não sai senão para a calçada? Que fosse o
caçula...
— Foi.
— Como sabe?
— Vigiando a irmã. No dever dele.
— Meu Deus, eu ando é perseguida.
[119] — Visões?
— Adivinhou.
— Mas sim, o nosso Maestro. Quem é que procuramos? Onde
fiquei?
— Na flauta.
Bi pára como a lembrar-se, esticando os dedos.
— Vem passando de mão em mão, beiço em beiço, morre o
flautista, outro toma o lugar. Instrumento que não se sabe como veio e
que não se acaba, seculorum, como diz papai. Ora, me ensine flauta,
Maestro, peguei, falei, e ele: Magoa vossos divinos lábios, D.
Bibiana. Pois a resposta dele! Escondia o sorriso pelos cantos da
boca, mais que satisfeito de ter dito o que disse como se fizesse letra
de música. Bem que ele tem um modo lá dele até que meio... me diga
o nome, me diga o nome, ah.
Os dois sondam o escuro, lá adiante vozes.
— Ele então se riu, aquele rir dele, que só o senhor vendo,
bastante descansado, lambendo a risada. Eu, com os meus divinos
lábios grudadinhos, me aquietava no mocho bem abaixo da rede onde
ele estava entrevado, me aparando a madeixa. Tesoura dele muito da
macia. Mas sem dó dos meus cachos, liso que é então este meu cabelo
de vassoura velha. Quer ver, arrisque a mão. Não é? Vá ver, aquela
tesoura também passando de mão em mão, barbeiro a barbeiro. As
ferramentas do Maestro? Têm estória. Um dia, comprei dele um tipiti,
que pendurei como enfeite na parede do meu quarto. Fui pagar pela
janela e o Maestro: Não. Pague pela porta. Dar e comprar pela janela
não presta.
Alfredo lhe passa de novo a mão pelo cabelo.
— A não ser pelo Maestro?
— Gordurosa que fica a sua mão, meu cabelo engordurece
muito. Mostrando suas unhas? Olhe, fique sabendo que sou escrito a
matintaperera, unha de gente me queima a pele.
— A não ser, sim, por ser muito natural, ali não malda, o ofício
dele inocenta as mãos dele, não dá reuma na gente. Mas, sim, mas me
deixe lhe contar, que estou aqui com o senhor fazendo ofício de
contadeira do que acontece e deixa de acontecer neste cabuloso
beiradão do rio [120] Ama|zonas, me deixe lhe contar: Mãe Velha, ó
Nhá Mãe, olhe aí um moca aqui pra D. Bibiana, era ele. A Mãe
Velha, a Nhá Camila, nasceu na escravidão. Dela tomo a bênção, sim,
a negralhona, nela cabem duas de mim, duas Bibianas. De pouco
falar, dali não desentoca, quando não está rachando lenha com toda
aquela sua idade. Ajuda o neto no tecimento do tipiti. Ou arrumando
os feixes de arumãmembeca com que se faz o tipiti. Do que sucedeu
com ela, lá pelo passado, diz? De soberbia, não diz. Ou tanto foi que
lhe tirou a voz? Uma e outra vez lá vai com aquele corpozão dela
rumo do rio. Desce o barranco, com a carga de toda aquela idade,
certidão não tem, vá contar, bem noventa, croatá de roupa na cabeça.
No que bispo lá do meu banheiro, que ela desceu, me enrolo na
toalha, vôo pela praia para o pé dela, a alma pela boca. Bença, Nhá,
Mãe Camila? Aqui este sabonete que lhe trouxe! Ela então primeiro
faz que não dá pela minha presença, depois tão balançando a cabeça,
ah, que um ralho toma conta de todo o rosto dela, contrariosa em todo
o porte, até que tirando espuma do braço me diz, desenrugando a
testa: “Que São Benedito lhe dê o juízo que está agora lhe faltando,
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menina, lhe faça lembrar de se vestir, que o que não lhe falta é roupa,
só a sua cabeça! Onde já que a senhora aprendeu isso? Olhe o que seu
pai é, iaiá. São Benedito lhe sente a cabeça, volte já-já, vá botar sua
roupa, que se não os bichos reinam, não assanhe o rio, risco de
apanhar um ar do tempo, cuidado com as pedras e paus da praia, a senhora assim só passada na toalha, assim como o seu pé no chão
correndo sem escolher nem caminho! Vamos que tropece, que Deus o
livre, lhe aconteça na ponta de uma pedra o que não quero que nunca
aconteça a moça? Sol que não era brinco, lá em cima o neto na flauta
ensaiava tão demais saudoso, sentimento dele? Ou meu? Sei lá. Ah,
que já estou de goela seca, me dando é uma sede!
— Vamos beber no rio.
— Agora, a esta hora, a água do rio cheira a suor do Mestre
Parijó, lá por dentro pelo fundo, viajando na casca da cobra. Que
desse rio, aí o Mestre? É sabedor de cabo a rabo, de cor e salteado.
Ouvi dizer que ele, unia sessão, no que se atuou, foi falando: Estive
dentro da barriga da terra, lá mas lá pra cima onde se gerou aqueleum aí que passa já tão crescido. Vi o olho, vi o olho. Podia cobrir o
olho só só com o dedão do meu pé, o olho latejava. Assim [121] ele
falou, o que escutei repito com palavras parecidas, foi o que me
contaram, devera ou não, lavo a mão na água da chuva ou nas palmas
serenadas. Só sei que quando o Mestre passa pela gente a modo que
sai dele um sereno assim como a gente atravessa um folharal chovido.
Vamos no rio. Tiramos os sapatos, passamos a toalha.
— Conto do que sei com seriedade e o senhor só fazendo
pouco.
Dá um salto como se fugisse. Esconde-se atrás da mangueira.
Alfredo espera. E para isso estou aqui Secretário. Atrás do flautista.
Quando sairei daqui, que farão de mim estas ruínas? Gratuita
indagação, ouvindo a moça atrás da mangueira cantarolar o rei e a
rainha. Ela vem vindo, mais cheirosa de seus jasmins, talvez ungida
nos óleos do Mestre Parijó neste instante chegando do rio.
— Quando faço meu cabelo no Maestro, o que só receio é de
supetão a Bernarda Seruaia, a costela dele, ali de supetão. Ela? Por
causa dele, Nossa Senhora de Nazaré, já se viu a mais fera onça? Sim,
que ela tem uma consideração pela Mãe Velha dele. Mãe Velha não é
brinco, não, é a respeitosidade em pessoa. Infunde. Bernarda Seruaia
na casa da Mãe Velha nunca vai. Nem por defronte. Comigo, justiça
seja feita, isto reconheço, talvez por minha família, ou porque nós
mulheres sabemos por um adivinhamento aquilo que é o mal e aquilo
que é o bem e o que está no meio dos dois, se olham uma. na outra
por dentro e sabem. Sabendo que vou lá, que deixo um par de tempo
minha cabeça na mão dele, Bernarda Seruaia passa pela frente de
casa, toda descalça, na mesma saia tingida de preto, eu, por uma
coincidência na janela e ela: “Boa tarde, D. Bibiana”, sinal de
contrariedade nenhuma na feição. Só, naquele passo dela, de quem
caminha na pinguela do igarapé, rumo do seu Guerreiro. Só. Vá ver
por baixo da seda, a surucucu lá dentro, de bote armado. Também não
custa ver nos meus olhos que do apaixonado dela sou a maior
inocente.
Inocente. Alfredo tem a, visão de Luciana. Inocente. Bi fala
pela outra que nunca falou. Inocente. Foi sepultada aquela com a mãe
ali em cima na roupa de ver-a-Deus, dizendo de boca fechada: Tua
mãe não sou. Em mim não te geraste. Bicho te desovou no igapé.
Luciana. Subiu o [122] Ginásio no braço de Luciana. Desceu debaixo
daquele trote em que lhe berravam: Culpada! Culpada! Razão a mãe
dela tem, que arraste a culpa nos atoleiros! E assim se vai a
adolescência.
Aqui está na busca da música, solta no barranco, toalha passada
no corpo, mas inocente sempre, cada banho de maré lhe restitui a
pureza.
— Mas daquela mulher tenho os meus calafrios. Que é, é, das
mais brabas é, outra, não eu, que duvide. Sobre de raiva crônica. Pois
me contaram que ela, escute o senhor, já preparou uma tal de poqueca
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na folha de inajá com um fiapo e um botão da blusa da pessoa visada.
Botou a poqueca na boca do sapo e costurou a boca do infeliz. No que
a boca do sapo espocou, a. rival pacau! Disque assim que morreu a
Rosária, do Itaperera, pacau, tão de repente, só porque andouzinho se
engraçando para o lado do Maestro. Conto o que me contaram. Não
foi uma nem duas mas não Lhe afianço. Benzendo minha boca no
caso de que seja só aleive. Ciúme, hein? Ciúme? Faz da mais mansa a
mais monstra. Hum! Comigo que não, que contra semelhante poqueca
fechada na. toca do sapo, sei bater bem batido meus nove galhos de
pião roxo, mal nem um que me mandem, me desejam, nesta dona
Bibiana, pega? Axi!
— Então por que o calafrio?
— No que vou tendo, me nasce um respeito e me dá uma
coceira na língua de lhe perguntar: Bernarda Seruaia, como, quando,
vocês dois principiaram? Um com outro, quando o começo? A
primeira cisma de que o Maestro te mundiava? Ou foste tu? Por força
que foi com a flauta, não? Vá ver que não. Como é que as coisas
principiam? Me tire a venda dos olhos, a cera do ouvido, a grude da
boca.
Se faz de aborrecida.
— Fale, fale da Bernarda Seruaia.
— Mais falante do que estou sendo? Eu sei dizer é que levo dias
sem abrir esta mea boa, sem bater língua, e agora nesta noite atrás do
Maestro me sinto, ou quase, não sei, quem sabe?
— O quê?
— Infeliz, pra não dizer o contrário. Não era?
[123] — Então me dê sua mão, dançamos agora mesmo defronte
do rio, ao som daquelas estrelas, sim?
— Ao som da orquestra do fundo, aquela que tem na ilha
Redonda?
— Tem?
— Então não?
— Ao som dela, sim. Sim? Vamos principiar as coisas?
Alfredo lhe toca o braço, lhe aperta a mão, a dama fugiu-lhe.
— Sabe? Chegando hora que mudo de rosto, como aquele rio
no Jocojó que, chega a meia-noite, a água muda de gosto. Assim eu
de rosto. Me acredita?
— Muda de rosto ou de gosto?
— Mas não era preciso que eu mesma virasse em rio?
— Era.
— Pois de com pouco me viro em rio e o senhor em peixe,
peixe pirarara. Em peixe? Em peixe pirarara. Peixe pirarara, dente não
tem, tem uma serrinha, papo amarelo, barbatana encarnada. Gosta de
comer criança. Vira em pirarara?
Esquiva-se.
— Mas que uma fina criatura está naquele homem, está, no
homem que estamos procurando, o Maestro, a pérola desta noite, sem
ele cadê baile? Flauta no beiço, tesoura na mão, caçando arara,
tecendo tipiti, de caniço no rio, bebendo — pois beber é com ele — é
sempre aquela especial criatura. Gosto de fazer dele boa ausência,
sim, coisa que neste buraco, de cobra e caba, rá!
— E ela, filha do seu Seruaia?
Bi se chega, abrindo os braços:
— Ela? Ainda tem hoje uma feição que só vendo, mesmo
debaixo dos maus tratos. Ela.
Desaparece pela escuridão. Alfredo, num repente de
impaciência, quer sacar o paletó, a gravata, a Secretaria, sentar na raiz
da mangueira, ora este palmebiche. Cemitérios, jantar, baile, esta
busca, a dama, por que também não sigo no Lobão?
Bi volta.
— Me deixe ver se mudou de rosto. E de gosto.
[124] — Onde está no senhor o peixe pirarara? Vendo que o
senhor virou em peixe pirarara, ai então, sim, lhe mostro o rosto
66
mudado e o gosto que esta noite tenho. Vamos! Seu pé, ou meu, qual
o mais preguiçoso?
Baixando a voz:
— A esta hora o senhor meu pai, ainda de gravata e paletó, lado
e outro da varanda, espia o rio. De dia é no binóculo. De noite
empresta a vista dos morcegos. Esperando que os vapores dele, que
nunca chegam, porque não tem mais, cheguem de Belém, carregados.
O mais que pode ver é a ilha Redonda ali defronte dar o seu bordo
dum estirão a outro com aquela orquestra pau e corda tocando pelo
fundo. Meu pai espera ainda que o PRF lhe mande um telegrama de
desagravo, como ele diz, por lhe terem tirado a Intendência. O senhor
telegrafou a ele, avisando? Assim o Governo. Sem a menor
consideração que tiveram com ele. Hoje só abria a boca para falar que
o telegrama está demorando porque o cabo interrompeu. O cabo interrompeu! A menor consideração. Caldeira do Botelho é que é, não
passa duma caldeira do inferno, isso que por aí os graudões remexem,
a tal política. E o senhor? Já se meteu?
— Vamos arder juntos?
Faz pião com o corpo, desata a fita do cabelo, varre o rei, varre
a rainha, cautela e caldo de galinha, um dois três, quatro cinco seis,
sete oito nove, para doze faltam três.
— Sabe que já dancei no meio dos tangarás? Me convidaram
para o baile deles. Foi em Jocojó. Debaixo de um mato, eu bem gita.
Foi.
Mas parece falar a si mesma, com unia queixa de menina na
voz:
— A prima, aquela, a esta hora, desadorada do dente que nem
Santa Apolônia faz passar. O Capitão passa pela janela, vendo a
penitente de mão no queixo, cobriu-se de compaixão! Minha filha,
vou lhe dar um bálsamo. Se nem Santa Apolônia que dirá bálsamo.
Está que nem um gengibre tauá, de amarela. Mas pra ver se cria, lá
nela, um pingo de cor, meia pílula do Dr. Luciano de Castro toma?
Retarda o passo, dá meia-volta, apanha qualquer coisa no ar:
[125] — Vi quando chegava o navio do senhor. Se não me
engano, o senhor a bordo com essa mesma roupa cor de casca de
cupuaçu. Eu no banheiro só no meu binóculo. Hum! O Secretário
chegando. Lá no meu banheiro.
— Por que não da varanda?
— Ver escondida é minha preferência. Gosto. Eu e minha
prima. Mas agora a prima...
Senta-se na velha calçada, levanta-se, repuxa o vestido:
— Cismou também que padece do peito.
Calou-se, a mão na boca.
— Quando dou por mim, pois fazendo relatório... Não é coisa
pouca. Em vez do baile, lhe dou conta da minha casa.
— Pois eu também, lá do navio, se não me engano, vi você
dentro do banheiro. Lá do navio.
— Foi? Mas foi? Olhos de lince? Foi? Mas viu? O senhor até
que sabe guardar conveniência, não? Puxando conversa no rumo do
que não é. Morda uma pimenta antes.
Com uma súbita serenidade:
— Pois bem, guarde sua urtiga, sua maliciosidade, me deixe lhe
dizer. Sabe que peitoral minha prima pediu? Acudiu-se com o Mestre
Parijó que lhe passou um chá, minto, primeiro-primeiro rezou no
peito dela, passando um raminho de vassourinha em cima do peito
dela, rezou rezou ao som do maracá, aquele xexexé do maracá, tirou
uma cachimbada por cima do peito dela. Isto é bem perciso, ele
afiançou, soprou o taquari dentro do copo, a cachaça espumou ver
cerveja, e foi que foi desabotoando a blusa da paciente, soprando
fumaça, tudo no colo dela ao natural recebendo a defumação, assim
também nas costas, foi indo, foi indo, o mais não lhe digo que não me
foi contado mas credo! A curiosidade do senhor! Chega de saltar seus
olhos!
Dá em Bi uma pressa de contar:
67
— Botou limão com sal no buraco do dente dela. Se ela
desmaiasse de dor, era feitiço. Não desmaiou, não era. Sim, que o
Mestre, por via das dúvidas, chamou a ave, foi encostando o ouvido
dele em cima do seio lá dela, minha prima, todo ao relento, como se o
Mestre escutasse a [126] dor, lá dela, do peito, lá dentro. A prima se
arrepiava com a barba dele espinhenta, a voz dele, o bafo, o maracá, a
fumaça. Macaco quis roubar a sombra da senhora, falou o Mestre. Ah,
que credo! Meu Deus! Que que me deu que sem mais nem menos, ó
boca quente, estou aqui me confiando a uma pessoa que só conheci
esta noite, destapando o meu cesto de roupa suja. Conheci?
Tapou a boca, retira a palavra.
— Que palavra?
— Me admira do senhor. Bem que sabe o senhor qual é. Eu
devia ter dito assim: Fui apresentada ao senhor esta noite, etc. e tal. O
que eu lhe disse próprio não foi.
— Ah, que tivesse sido.
Bi, se fazendo surda, murmura o varre o rei varre a rainha.
— Já não somos tão estranhos, juntos não procuramos a
música?
— Com amigo incerto, um olho fechado, o outro aberto.
— E sua prima? Sarando do peito?
Pois a minha prima contou que daquela enfeitiçação toda tornou
foi mais empambada com uma tisna debaixo dos olhos dela. Além do
mais a dor no dente. Do resto sou ignorante. Que eu de sessão nem
aquela, feita na alcova para a pobre da mamãe. Bastante do
contrariado, papai se guardou na varanda. Decerto. Não tiro a razão
dele. Um homem de sua posição, viajado na Suíça, cortando seu
francês, sabe de cor em latim da santa missa a metade, hospedou o
Arcebispo, padre e pessoas de saber, recebeu o Presidente da
República na visita ao Forte, sempre leva um agrado para as irmãs de
Santo Antônio, ele em Belém é multo procurado pelo Pão de São
Francisco, vezes que almoçou no Quartel-General e no Arsenal de
Marinha, sempre diz que religião é religião, superstição é superstição.
Pois o papai, ali na varanda, voto vencido, tão relegado, como se a
casa já não fosse dele, alizinho na varanda, mesmo de paletó, seu
colete, sua gravata. Até que o candeeiro se apagou. Quando apaga o
candeeiro na varanda, a claridade vem do rio, o rio entorna a sua
iluminação na nossa varanda. Se eu lhe contar que já sonhei com o rio
dentro da minha rede, todo com aquelas escamas prateadas da
pirapitinga? Como, [127] não sei, vinha na figura dum clarão, sei lá,
sonhos. Mas sim. Papai, ali horas, e lá na alcova aquela sessão braba
entrando pela madrugada com defumação de tabaco, benjoim manso,
paricá. ralado no lombo seco da arraia... Lá dentro só o Mestre,
mamãe e minha prima, o som do maracá tomava conta da casa. A
prima, veja o senhor! da tal sessão não me disse esta, proibida pelo
Mestre, não transpareceu um isto. Só sei que o Mestre veio, armou a
mesa, deu na mão da mamãe um ninho de gavião-cauré contra a
panema, agora ali debaixo do guarda-roupa, o ninho eu vi, no outro
dia, ninho feito de pena de cada uma ave. Coisas que se vê, na sessão,
que se ouve! Mais custa que se deve contar senão caruana se vinga, o
menos que faz é jogar pedra no linguarudo. Eu, pra lhe dizer, me
meteu um... me acuei, me tranquei no meu quarto, ora aflita pelo
papai, ora pela mamãe, dando razão aos dois, também a nenhum
razão dando. Capaz de jurar que os companheiros do fundo passavam
para a alcova batendo suas folhas de aninga no punho de minha rede,
cada calafrio, pé que um gelo, rosto aquele fogo, com São Benedito
me peguei, o senhor me acudiu? Assim o nosso bom pretinho.
— Mas, em compensação, quem fez o jantar, esta noite? Não
foi ele?
— Quem somos nós, já, para ter um santo na nossa cozinha!
— Aquele jantar? Foi ele.
Bi fez o pelo-sinal:
68
— Não me bote nos infernos, meu Pai do céu, pelo que vou
dizer, mas estou que muito do tempo Mestre Parijó com todo o seu
aparelho do fundo já enrolou no fumo do seu taquari foi todos os
santos da nossa igreja e dos nossos oratórios. Santos deste barranco?
Só trabalham pra ele. Não duvidar me entranho também nesse
movimento das feitiçarias, rá!
Benze-se de novo.
— Foi quando vi na parede, tomando conta da parede, aquele
desconforme bicho, a figura dum cururu mas verde-verde, o olho um
vidro de aumento faiscando, ah, que me sumi na rede, quis gritar,
cadê grito? me deu um soluço, saltei corri para a varanda e me
atraquei com o papai. O maninho, o caçula, agarrou-se na minha
perna, prendia [128] a minha perna. Foi dando horas, horas, e lá
dentro xéquexéque xéquexéque aquele maracá não se calava. Passouse, passou-se...
Chega-se mais a Alfredo, baixa a voz:
— Que foi, foi. Verde-verde, olhe o tamanho.., O bicho
invocado? Só sei que na varanda eu e meu pai abraçados e o caçula
nos meus pés, papai meio tremia, eu, nem lhe digo, o caçula nos
soluços. Lá dentro aquela sessão nunca mais acabava e então vinha de
fora a luz, aquela, como se o rio viesse se cobrindo de vaga-lume.
— Desconfio que guarda essa luz no rosto. Ou é próprio do seu
rosto?
Bi faz que não escuta, como se lembrasse:
— Sim, que não descreio nem debico, ir também por Ir, por
abelhuda, não, este papel não faço, sessão aqui, estou ali.
— Agora vamos ao rio, matar a sede. Descer. Vamos?
— E o senhor? Sabe? Conhece? Já foi num?
Neto de um de lá de Marajó, sangue deles. Me dou com a
biguane de uma sucuriju do lago, costuma na lua cheia sair do lago,
desemboca nas águas salgadas e volta badalando as mandíbulas com
o sal do mar, badalando. Corre então pelo fundo do lago aquele som
de sino. O lago, no que ela vem de volta, vira salgado-salgado, e só
torna a doce quando a cobra entra no sono. Ela adotou um curumim
no poço, um por nome Antônio, achado na popa de uma igarité
perdida. Madrinha, a bença? fazia ele. Santinho, meu afilhado.
Passou-se, passou-se. Pois o afilhado um dia, lua cheia, a madrinha no
mar, bate as asas e onde que se esconde? em Belém, na Gentil
Bittencourt, 160, bem lá. Coincidência foi que me dei então com ele,
casa de uma família toda gorda, gordo o pai, a mãe, gorda a filha, três
gordões, tinha um piano e uma cria de casa por nome Libânia, papapupunha, carregadeira de lenha, o rosto meio esbraseado, comia-se
bem nos domingos. Mas uma noite, lua nova, trem do Curro atrasado,
dois gaviões-reais agarram o fujão pelo umbigo no trilho da estrada
de ferro, e levam ele de volta para o lago, até hoje, xerimbabo da
monstra, madrinha dele. Quando vou ao lago com o meu tio, um tio
todo saído em proeza e mistério, meu tio remando muito do vagaroso,
me indago só comigo com o meu umbigo: O Antônio, seu afilhado,
ele como vai, Nhá, [129] Mãe do Lago? Mal me indaguei, a água se
arrepia, eivém aquele som de sino: Alisando minhas escamas,
alisando minhas escamas, aquele-menino. Aqui comigo aprendendo.
Assim.
— No destorcer de sua estória — o seu bicho tem escamas? —
melhor que os gaviões-reais levassem a cor-de-brasa, a comedeira de
pupunha, carregada de lenha. O senhor! O gavião-real dela, o senhor?
— De volta de Juriti, meu tio passa por aqui para lhe confirmar.
— O senhor! Pensando que o que lhe conto, sou eu que
invento? Não fosse de vera, podia eu contar tão sentido como contei?
Ou o que se inventa sai sentido? Faltando é uma luz para que o senhor
visse no claro a minha fisionomia, notasse se estou inventando ou
não.
— Luz? E essa do seu rosto?
— Eras! Mãe de fogo que não sou. Pra lá! Esse tal do Antônio
do senhor, era liso, escorregoso que nem?
69
— Que nem, sim. Gosma da madrinha dele, a Mãe do Lago.
Assim ele me dizia. Só que era demais amarelinho. Deixe que um dia
trago ele para a senhora só tirar uma linha.
— Então o senhor! Se dando com uma Mãe de Lago.
— Nos damos.
— Duvide e um dia também me viro numa.
— O lago, já escolheu? Aquele dos pirarucus? Me adote!
— Acabo é jurando que nós já se encantamos. Lá está a
embarcação que nos leva, nos chamando.
— Vamos?
— Só este desvario de procurar o Maestro... Mas me deixe lhe
rezar meu padre-nosso, me deixe minha boca trabalhar. Calar que
não, calar consente.
Alfredo pensa em Antônio, o tão amarelinho, de mãos dadas
com a Bi, a Lacrau de peito grande. Agora, na longe baía, escorregoso
menino, hoje rapaz, afilhado da sucuriju mãe.
— Mas sim, o Mestre deu pra minha prima um chá, aquele chá
do dente do jacaré. O cujo chá lhe aconselho [130] ao senhor que vai
ralar, por demais ralado, o vosso peito neste pedregume. Olhe que é
um santo chá. Por falta de dente que não, que lhe cedo um de um
jacaré tempos baleado pelo papal, papai que não perde um tiro. Lhe
dou um. Não me diga depois que não está sendo assistido.
Bate palmas, vem para Alfredo com uma boca de espanto.
— Pode me dizer se acabamos nós indo mesmo para a Ilha
Redonda, ali da outra banda, contratar aquela orquestra? Passe um
telegrama.
— O cabo interrompeu.
— Ah, é verdade. Também nem o Mestre pelo fundo para
emendar esse cabo. Papai que tanto espera o desagravo. Que baile!
— Que jantar!
— O jantar na mesa estava, o baile que não está na sala. Por que
comparando?
— Nós dois não jantamos?
— Assim creio eu, não é?
Os dois se defrontam, calados. Liliosa se aproxima. No que os
vê assim, esquiva-se, toma a dianteira, some-se.
— Que foi que Liliosa viu? Ó Liliosa!
— Não chame.
— Liliosa!
— Deixe a Liliosa em paz.
— Em paz quero eu estar, meu senhor, eu, sim, em paz. Aqui
jantamos música que nem o carneiro do Capitão, comendo a partitura.
— Na mesa, rodeada pelos quatro espelhos, um par sozinho
devorava o jantar de um batalhão.
— Então nosso jantar foi um rancho de quartel?
— Força de expressão, força de expressão. Que jantar!
— Que baile!
— Os velhos não comeram.
— Olhe, aquele jantar, o que não fiz, o que não falei, o que não
roguei, pra mamãe tirar da cabeça do papai. Jantar? Em vez de crepe,
pano preto na porta, jantar? Papai sem tirar da cabeça. Grandezas
dele, visões, papai [131] sempre posando para retrato no salão da
Intendência com toda aquela cerimoniosidade. Papai? Se dói por não
ter ainda o dele entre os retratos lá. Se aquilo ainda é salão, minha
botija então é feita de porcelana. Sabe, eu não escondo, o dele, feito
em Belém, ele guarda em casa. Quando ia Inaugurar... Coitado do
papai. Pois o jantar, fez questão, pronto-acabado, quando acaba...
— Mingau com bacaba?
— Brincando-brincando, o senhor vai malinando com o bico de
sua flecha, se ponha no meu lugar. O senhor, de tinteiro e pena, não é
meu escrivão? Eu só contando da minha família. E a do senhor? Seu
pai? Sua mãe? Irmã tem? Onde moram? Me conta? O senhor
70
freqüentou o Ginásio? Tirou os preparatórios? Que foi, que não está
tirando o canudo? Cumprindo pena? Que arte fez em Belém pra vir
aqui, senhorzinho Secretário?
Alfredo, mãos no bolso, escuta na voz da moça a mãe dele que
sempre se guardou de indagar assim.
— Jantar, que só faltou lá na cozinha a Nhá Efigênia. Mamãe
não mandou chamar a velha quituteira porque ela tinha já servido na
casa do seu Guerreiro quando o Intendente jantou lá. Não sei ainda
como a D. Efigênia recebeu a noticia do jantar que ela não fez, tão
sentida, tão ralhona nessas coisas que ela é, muito mas muito da
gloriosa da sua arte. D. Efigênia? É benza-te Deus num tempero,
comidas do céu que faz, merecia ter feito a Santa Ceia, um tal de
saber dar um gosto, hum! Aquela sabe. Retinta-retinta. Aqui nesta excidade temos uma coleção de pretas mas bem pretas, hoje escravas só
do São Benedito, é o melhor daqui. D. Efigênia? Ah, manjarzeira
velha! Coma, um dia, no seu Guerreiro, com Nhá Efigênia
cozinhando e depois me diga. Por uma comparação: o senhor vai
provar do chocolate que ela agora mesmo bateu no baile gorado.
— O baile não gorou. Este nosso caminhar é o baile.
Banquetes que ela fez, falados em Belém, em Manaus, a bordo,
aí pelo rio, o nome dela no jornal. Na Ramada, pela festa de São
Benedito, olhe só as cadeiras dela: samba divinamente. É a mãe de
um dos três que carregam o Maestro esta noite. Mas pra onde? Que
rumo?
— Nhá Efigênia não fez o jantar, em lugar dela foi o São
Benedito. Foi ele?
[132] — Que cozinhou esta noite lá em casa? O senhor já disse
isso. Foi.
— Sim, o São Benedito.
— Quem cozinha sua comida é só santo?
A moça sacode os punhos, ri curto, afetando desalento.
— Orgulhosidade? É ali no papai. Eu, não, sou despida. Que
culpa nos cabe de se ter esta nossa idade, mas me responda! Então
este é o propalado baile com toda a pompa? A dona, por que não
mandou buscar os Fonsecas? Os Fonsecas, sim. Moram no Bacá,
roceiros de beira de igarapé, que tocam.
— Também do fundo?
Viventes de terra firme, pessoas como nós, meu senhor.
Fazedores de farinha, moqueadores de acari, são sim, irmãos e
primos, família antiga, um deles afilhado do papai. Trompa clarinete
pistão bombardino. Quando é São Benedito, eles chegam contratados
pela Diretoria, se hospedam na D. Efigênia. Tocam a semana da festa,
bombardino pistão trompa e clarinete. Ela, a dona do baile, pagava os
Fonsecas com aqueles capados do marido, lá no quintal. São duas
horas a remo rio abaixo, subindo o igarapé, duas de volta, conforme a
maré, mandasse buscar os Fonsecas pelos mesmos que agora se
desencaminham com o Maestro e nós aqui pelo escuro. Não queria
com toda a pompa? Não queria dar um baile? E saiba, meu
senhorzinho, que ela só me tolerou no grande baile dela, por pura
carência de dama. Dama é o que não tem, oh, diabo! Tenho de me
arrumar com a Bi, essa praga. Ela cortou amizade com as duas do
Promotor. É uma cadeira vazia a menos na sala. E eu não sei? Eis aí o
baile comemorativo da posse do novo Intendente, presente o Sr.
Secretário, o Sr. Capitão, seu Dó como porteiro, o soldado fazendo
continência. Que vai dizer a opinião pública!
— Logo encontramos o Maestro e dançamos.
— No que danço, tão que me entristeço. Rezo que não se
encontre o Maestro. Me dói aquela flauta dele, pensa? Fere aqui por
dentro.
— Põe a culpa na flauta?
— Culpa? Me vê com semblante de culpa? Que andaram então
lhe dizendo? Pensa que não sei que meu nome [133] já anda pelos
71
cafés em Belém? Meu nome virou saburá na língua alheia. Por mim.
Por mim...
— Quando a vejo?
— Mas?! Virei ar? Não está, me vendo? Lhe espirraram sangue
de periquito no olho para ficar cego?
— Neste justo instante a noite lhe esconde o rosto.
— Pegue no braço da Liliosa, ali tão sozinha, tão desacompanhada, e vá perguntando a ela: Quando a vejo? Sim?
— A noite lhe esconde o rosto.
— Isto que não sou, escondida. Escondia só no banheiro.
Ficando cego? Pedindo guia? Lá adiante a Liliosa, tão visível, tão só!
Acuda a suplicante.
— Então chame a Liliosa.
— Liliosa!
Liliosa não responde.
— Quer, lhe pingo nos olhos leite de pião, quer? Chamo quem
esteja com nenen de peito, pingou, sarou. Acuda os olhos do
Secretário, Santa Luzia. Ou o que aconselha a Nhá Benedita Lucrécia
para quem sofre da vista: põe nos olhos ferrugem de tesoura? Sua
visão, Sara levou? Foi aquele rosto de brasa que lhe queimou a vista,
a come-pupunha, a que carrega lenha? Foi o jantar, então. Ralo o
paricá no lombo da arraia?
— Que jantar!
— Que baile!
— A noite não deixa mais ver seu rosto senão na sala, no jantar,
aquele vestido de baile, lá diante dos quatro espelhos, servindo a
pirapitinga, o rio no parapeito da varanda, ah, eu pirralho com o meu
caroço de tucumã!
— Estou que o senhor bem-bem da cabeça não é. Pelo que vejo,
não.
— Coisas e lousas que vi e fiz bem pirralho com o meu caroço.
— Então me parta o caroço, ver o que tem dentro. Uma
comparação: me tire de dentro dele uma outra noite, faça nascer. E
jogue esta nossa de agora no rio, sim? Numa só noite a gente devia ter
porção de noites, não era?
[134] — O menino que eu era, a onça, que bebia no rio, pá! me
comeu. Posso lhe dar o meu caroço pra bilro de sua almofada, vai ver
as rendas que faz.
— Com todas as letras lhe declaro: O senhor certo não é da
cabeça. Só o que estou pensando, sabe? No que só estou pensando?
No risco que vai correr com as minhas pareceras deste barranco,
Secretário. Daquela grude delas? Nem Deus te livre e guarde. Pois
amanhã cedinho lhe dou o dente pro chá, vamos a ver. Tome em
jejum.
— Tão cedo assim me faz o chá, você mesma?
— O dente, que lhe dou. O chá, peça pra a senhora do Capitão.
— Não vou incomodá-la tão cedo. Hoje mesmo, esperamos a
madrugada na beira do rio, arrumo um fósforo, Junta-se uns paus, se
faz um fogo, é o chá. Fico de peito protegido contra as suas pareceras.
— Elas? Facilite e veja, elas devoram! O menino que foi o
senhor a onça não comeu na beira d’água? Agora é o rapaz.
— Que me devorem, a São Benedito peço, rale o paricá, me dê
o dente.
— Até que o senhor tão moço, feição tão sonsa, já assim
delambido? Cara do senhor não treme? O senhor figura ser, por favor
não escute, um tantinho moleque. Ah, Bibiana, que foi que tu
disseste! Fica por não dito, sim?
— Na sua companhia, esta noite, tudo são flores.
Alfredo ri, ela não, um silêncio, e chama a Liliosa, está onde
escondida?
— De tão desacompanhada, Liliosa se embora. Liliosa!
Liliosa aparece.
72
— Estou aqui. Me deixem sozinha, que careço tirar uma dúvida
dos meus pensares. Estou ai na frente, sim?
Bi emparelhara-se com Alfredo:
— Mas só estou lhe prevenindo. A cada uma delas o velho
Parijó passou a beberagem, bem capaz de ser aquele vinho de
jenipapo com tapioca de batatarana. Rã! Cada uma amansa um
quatipuru no sovaco.
— O seu?
[135] — O meu?
— O seu.
— Pena não ter lua, esta noite. Me espie a lua aqui de cima
desta ribanceira e me diga depois.
— O seu?
— O meu?
— Amansou?
— O meu que amansei, encarnadinho-encarnadinho, dei.
— A bordo? Em Belém? Nesta cidade? No porto de Monte
Alegre?
— Pra lhe dizer, amansei mas tão manso, que não ficou, fugiu.
Estou que pras bandas do Itaperera. Dizer lá pra a família dele o que
viu-não-viu na casa do Coronel Cácio. Por força que ainda me chama
de madrinha. Mas elas? Com elas, o senhor vai se ver, sim.
— Vamos fazer uma visita aos cemitérios agora capinados?
— Daqueles cemitérios só me cabe um, que eu sei. Por mim!
Por mim!
— Vamos agora lá?
— A proeza dos senhores foi limpar os cemitérios pois só lá
está o nosso remédio. A salvação.
— Já me sinto de peito doendo.
— Todo dia elas é só tomando banho de camaru, passando pelo
corpo aquele tal cheiro pega-não-me-larga. Isso agarra que quanto
maior força se fizer pra desgarrar, o agarradio é mais. Do senhor não
fica um osso pra pendurar no pescoço.
Alfredo pára. Os cemitérios. Todos os caminhos e descaminhos
da ribanceira levam aos cemitérios, sim. O riozão batendo os paus no
pedregulho.
— Secretário, desistiu da procura? Bem, olhe, passando da letra
A para a letra Z. Bem faz o Maestro que está repenicando com
aqueles pareceres dele lá na Ilha Redonda num salão do rio. O Juiz,
sabe? Com certeza, já sabe. Sabe? Tem uma das dele lá, uma de
minha Idade, beneficiada por ele, lá na ilha Redonda, uma garnisé.
Vai lá no bote. Aquele bote! Quando o bote aparece num rio, num
[136] igara|pé, se aproxima dum trapiche, dum portinho, duma praia,
duma estiva, quem viu estremeceu. É o Juiz como Adão, na proa do
bote. Quem tem menina verde, esconda no oco do pau. As já
madurinhas se metam debaixo do jirau e da folha do tajazeiro, senão...
— O Juiz já fez lenda.
— Não sei o que o senhor quer dizer com isso, só sei que ele
anda por essas águas no bote dele, em pêlo, em pêlo, fazendo terra
cair. Tivesse eu uma filha minha? Nem olhar para ele eu deixava.
Filha minha? Só o olhar dele já suja, já deixa a moça falada, a
inocente perdida.
— Torce pelo Sede de Justiça?
— Não, pelo ódio que tem a meu pai. Só transpira inveja e ódio.
Deixe estar que ele e o juiz, os dois se merecem, nasceram um
para o outro, o par mais unido que já vi, pelo que são. Um quer comer
o outro pra ter guardado dentro.
O Juiz, a conselho do Mestre, deu banho de sorte no bote,
banho de aninga, croatá e alho. O nome do bote, Deus me Guia. O
Deus me Guia, Deus me Guia carrega o Magistrado que vai despido e
de binóculo espiando onde é que tem moça na beirada, no jirau ou na
boca dos igarapés. Na ilha Redonda, o Juiz vai lá de bote, come peixe
assado no jirau, a garnisé faz o cupu pra ele, o velho se esparralha na
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rede de miriti com a fulana lhe fazendo cafuné, ou passando talco
pelas costas. Não espalhem, mas brotoeja então que o doutor tem..,
diz ela pras conhecidas dela e as conhecidas — olhe! — no que viram
a costa, passando para as outras, e assim vão cobrindo de mais brotoeja o costado do nosso Meritíssimo. O Juiz na sua sesta ouve aquela
orquestra? Juro que não, que Juiz como o Dr. Loureiro, Dr. Fidalgo
Loureiro, dom não tem de ouvir aquelas coisas que só um inocente
pescador sabe ouvir. Tem um sono, ele..., ela diz, a garnisé. Ali na
ilha Redonda, ponta da ilha, quem pesca de madrugada, pesca é som
daquela orquestra tocando debaixo d’água. Que o Maestro esteja lá,
não ponho dúvida. Ou tirando, isto sim, tirando uma dorminhoca
primeiro no colo da Bernarda Seruaia? Até que aprovo, o senhor não?
Um bacurau gritou. O rio lá fora e tão presente aqui debaixo dos
pés, Alfredo e Bi de bubuia. Bi aconcheia as mãos no ouvido.
[137] Parecem chamando lá na frente.
Os dois correm. É o Intendente repetindo: “Onde estão? Onde
estão?” Seu Dó, com o farol, inteiro um rosto de coruja. Alfredo
murmura:
— Onde estão? Quem?
— Quem mais? Os Três com o Maestro no colo. O baile da
harmonia, em que deu.
Cantarola:
Mandei fazer uma flecha
da perna de um gavião
para flechar o Chico
na veia do coração
— Também? Sabendo?
Alfredo admira-se, sim, subitamente o Boi, a Fada, o Curral,
sim, o Boi do Profeta, o Boi desmergulha do rio, urra na ribanceira ou
sai debaixo do vestido da Bi. O Boi. Em Belém, ao pé da vala, com o
buraco na testa, lavando a flauta com cachaça, o Sátiro, o flautista do
Chão dos Lobos. Na água da vala, que se empoava de lua, o rosto de
Polunga, o triste bucho do cariazal, a sonhadeira da serra.
— Foi agora bem longe? Longe?
— Seu cantar me levou ao palanque do Boi lá em Belém, foi
este ano, junho, andando atrás do Boi, o Boi pela cidade. Lá. num
palanque. Levado pela toada que cantou. De onde aprendeu? Em
Belém? A bordo? Esteve, junho, em Belém?
Roberta: eivém descendo da mangueira a Fada, com o seu
diadema, seus vaqueiros, o Pai Francisco, o Boi.
— Eu não digo? Eu não digo? Certo da cabeça é o que o senhor
não é.
Chega defronte do Mercado sobre o rio. O Capitão grita pelo
praça. Batem na puxada do Maestro. Entreabre-se a janela, é Nhá
Mãe Velha, senhorona, pretona, lenta, a voz do fundo:
— Tempo eh... que os Três... no que chegaram...
O grupo avança em direção do Fortim. Aqui atrás. Alfredo e Bi
beirando o barranco.
[138] — O Intendente embarca? Vai dar parte ao Governo que
capinou os cemitérios?
— Embarca esta madrugada. Possível que o Lobão não demore,
apite. A condição é aquela?
— Que aquela?
— A noite.
— Mas o muro é multo alto, olê, meu cavaleiro! Vou tirando
pedra a pedra, olê, meu cavaleiro! Uma pedra não faz falta, olê, meu
cavaleiro!
Bi cantarola.
— Já nem sei quando fui menina, e o senhor?
— Já tirei tudo que foi pedra. A noite?
Bi rodopia, vem, lenta, dois dedos esfregando a testa.
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— Puder ser... conforme minha tristeza, minhas raivas, meus
desesperos, poder me virar na mãe do rio. Vou saber com a minha
botija. Aquela de onde tiro meu sono e meus maus conselhos, sim?
— Porta toda aberta? Tudo que foi pedra, já tirei, tem mais?
BI cobre o rosto com as duas mãos, parada.
— A idéia que tem de minha pessoa, me acuda, Mãe
Santíssima! A fama!
— Já não sou seu amigo?
— Amigo é o meu umbigo que quando eu morrer vai comigo.
— Ganhou do Juiz a ilha...
— Já? Sabendo já de cor?
— Lhe dou de graça a ilha Redonda.
— Ilha só quem dá é o Juiz. Eu valer uma ilha? A Ilha que eu
pedi, neste rio não é. Só é no meu mapa.
— Ganhou do Juiz a ilha...
— Ah, que o senhor mal chega e já sabendo de cor os nossos
maus costumes? Olha que pega, que pega, pega, veja lá! Então de
mim-que-que não sabe, o ouvido cheio. Zumbiu? Dá pra me ouvir o
zumbido, sim. Aqui, não se admire, coisa assim zinho que se faz, o
tamanhão que fica na língua dos outros! Mas nada me mal-assombra.
Curada [139] sou de riscos. A nada me sujeito. Que sei bater meus
nove galhos de pião, que sei, sei.
— Quer? Descemos o barranco, um instantinho provar se o rio
mudou de gosto?
— Não, que o Mestre Parijó está por aí vizinho, mergulhando.
Seus mergulhos pegam Oriximiná, Juruti, Trombetas, Lago Grande,
de repente no Boim, de repente no Marajoí, agora andando perto a
água é dele, convém não provar.
Como uma pomba o seu papo, BI sacode o peito. Um calor do
chão. Será longe as guaribas rezando? Lá embaixo o rio remexe os
seus fundões gordos. Um ar de cumaru e peixe. No vento que bate as
velhas portas, Alfredo escuta aquela cidade à luz do Gasômetro, que
foi. A esta hora, acumulando provas, o Sede de Justiça remói a
insônia até que a sururina cante. Bi afasta-se, some-se, com certeza
pescando no rio as noites de Belém, noites de Luciana com aquelas
tochas da procissão, no Ver-o-Peso as proas cheias de donas,
carnaval, as donas levando as canoas rumo da trovoada na Baía do
Sol, a foliã dormindo no morgue, e aquela, na, ladeirinha, levantando
a saia, bem defronte da oficina onde se imprimia, no serão devoto,
uma nova edição do catecismo, dali a um passo e a casa do
Arcebispo, o Bispo perdendo o sono com o alarido das donas pelo
canoal do Ver-o-Peso, assim contou o tio de Luciana, o triste do
Jandiá. Bi, uma noite, será? e Irene, as duas no bailéu, de odaliscas,
comem mapará no prato de folha, o piloto servindo na cuia a água
benta do Abaeté. E Bi, aqui ao lado, nesta busca, machuca os jasmins
no peito, sacode o peito, dizendo que vai fazer o peladinho com o
Maestro, bem curto, ou surpreendida, como se agora, sim, se visse
pela primeira vez livre para saber o que perdeu. Talvez o seu
derradeiro baile de filha-família, poucos que foi, nem todos os dedos
da mão direita. Sua restante hora de filha-família e esse, o par que a
segue, com correta distância e correta perseguição. Que saiba se fazer
filha de quem é, jogando na praia aquela casca de coco velho, o velho
Fiscal, e ao mesmo tempo, assim ao relento, a dama escolhe o seu
desrumo, o seu abismo, perdição a seu gosto. Apressa o passo,
enxugando os olhos no peitilho, um jasmim na boca, pára, esperando
o cavalheiro. Aqui nesta noite cabe não perder o baile, arisca e
oferecida, ou será, [140] pedra e cal, o primeiro passo largo de rua e
mundo, mal prancheia o navio e já a bordo?
Aproxima-se dele, cautelosa:
— Estamos demais afastados deles, o senhor não acha?
Parecem nos chamando, não?
Pisavam no chão de pedras, varre o rei, varre a rainha, lá
embaixo o baque dos cedros na praia.
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Cismo que esta hora é a folga daqueles dois — fala Bi com voz
resignada.
— Que dois? O rio e a noite?
— Santo Antônio e São Benedito saírem juntos para tomar
fresco.
— Se livrarem um pouco do cheiro da santidade e dos
morcegos?
— Os dois costumam sair, sim, o branco e o preto. Mas agora,
não, ah, nem me lembrava! São Benedito anda em tiração de esmolas.
Vem das Ilhas, cobrando óbolos.
— Óbolo ao Papa?
— Ao Papa? Sabe que Santo Antônio foi, uma noite, alvejado?
Levou uma tala lá nele que até hoje traz a marca. Foi numa. das suas
saídas de noite.
— Por isso perde sangue?
— Brinque. Brinque e me venha correndo me dizer depois.
Olhe o Intendente de volta, que foi?
O Intendente apressado, o seu Dá com o farol.
— Estou me gelando, me gelando todo. É a bicha. Oh, danada!
Contaminei-me! O diabo do santo bem que avisou, está lá avisando.
— É do sereno, doutor. Frio de paludismo que nada.
— Isto? Isto? Isto lá é terra de gente, onde se viva, meu filho...
Está no ferrão do lacrau? Do lacrau? Bula com a pedra, não. Force a.
porta estreita. Uf! Estou que uma vara verde!
— Cobra? Foi? Foi cobra, doutor? — É a D. Benigna com a
ventarola, cercando o Intendente.
— Vou é bater dente, minha senhora. Antes cobra. Já o baço me
doendo. Devo estar amarelo como o santo. Seu Dá, me suspenda o
farol aqui no meu rosto, veja, Secretário, não estou?
[141]— As pílulas do Dr. Luciano de Castro, doutor — acode o
Capitão. — Aquelas pílulas. É pá, casca! Mas isso é só sereno da
noite. É um falso sintoma. Aquelas pílulas, doutor. É sereno da noite,
o frio da caminhada. As pílulas, doutor.
— Pílulas coisa nenhuma, Capitão. Me chame é o Lobão, isto
sim, á meus seiscentos demônios! Como foi que aceitei isto? Estou
mesmo condenado a ficar de baço podre, já não bastam as febres de
promotoria em promotoria. Como foi que engoli esta choldra? Não
tenho dormido de mosquiteiro? É o agradecimento dos defuntos?
Aquela boca da capinadeira me agourando? É pelo que fiz aos cemitérios? Devolvo-lhe os cemitérios, Sr. Governador!
— É só o sereno, doutor — fala a D. Benigna. — Aqui serena
muito. Com o chocolate, que está de queimar beiço, isso do senhor
passa, o frio passa, quando a pessoa caminha vai suando vai ganhando
um frio, aqui estou meio friosa também, embora me abanando. E olhe
que é bem capaz do Maestro estar me chegando em casa, no braço
daqueles três doidos, todos os três, vá ver, de juízo bebido. Ah, não
quero passar mais por esta, doutor. Um gole de chocolate e adeus
cisma de frio e febre, sim?
Liliosa:
— Sim, doutor? Só uma chávena!
O Intendente vara o cerco da D. Benigna, tropeça nas raízes da
mangueira:
— Todo gelado. Todíssimo gelado. Foi botar o pé no Trapiche
podre, o primeiro mosquito, tome! Aqui estão as boas-vindas.
Pegado! Me pegaram! Foi uma emboscada, bosta!
D. Benigna e Liliosa se afastavam, as duas no rastro do farol
que seu Dó suspende. O doutor dá um giro em torno da mangueira, o
Capitão atrás, seu Dó pousa o farol no chão. Ei e Alfredo, distante,
esperam.
— Baile mesmo só no outro dia, era uma vez, agora que foi,
não, Secretário? O seu doutor tão fino até então, não? Embarca mas
vai escaldado. Arre!
— Arre?
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— Arre também para a D. Benigna, a homenageante, a boa da
chaleira, a abre-alas. Não quis fazer o baile com toda a. pompa? E o
doutor no primeiro arrepio, pernas [142] pra que te quero, tenho o
mais que fazer, deixo o ninho de caba na mão do Secretário. Acabo é
passando urucu nas faces do Santo Antônio, é num instante a anemia
dele que tanto agoura... Tão amarelo que deve estar. Ou tapo o buraco
da bala?
— Mas se ele nem beliscou na comida?
— Quem? O santo?
— O doutor.
— O doutor? Por Isso mesmo, por isso mesmo! Que o promotor
escalde, vomite bem verde no salão do Palácio a Intendência que o
Governador lhe meteu pela goela.
Tamanho, tamanhoso homem se desmanchando de fruxura. Que
mais frio faça bater o queixo do Excelentíssimo, pode dizer a ele, o
senhor que é Secretário dele, pode. O Capina-Cemitério, o Intendente
da Cidade do Pé Junto, o Pau de Dois Bicos, o Raminho de Oliveira:
Não, Coronel, só venho simbolicamente substitui-lo, Coronel, o
Município continua em suas mãos, em boas mãos, trago apenas o
Ramo de Oliveira. Seu Cheira-Cheira!
Alfredo segura-lhe o braço, confidente:
— Peitou os Três para não trazerem o músico? Peitou?
— Quem dera fosse, e se fosse? Mas, ah, era mesmo e nem me
lembrei disso!
— Que prometeu aos Três pra esconderem o Maestro? Diga,
que guardo segredo.
— Aos Três? Mas era mesmo!
E como se falasse sozinha:
— Para pegar o Maestro, só com a flecha do curupira. Curupira,
me dá tua flecha, anda já! Arre, Intendente dos Cemitérios! Sem mais
nem menos, arrancam do meu pai a coisa que mais o meu pai
estimava.
— Os cemitérios?
— Quem sabe? Papal sempre pensou ficar Intendente até o fim,
mesmo dentro da cova.
— Como o Juiz, até depois da morte?
— Como o Juiz. E vem esse senhor, me arranca meu pai do
lugar sem mais nem menos! Castiga, paludismo! Pegue um febrão
teba, ah, eu peço!
[143] D. Benigna chama, os dois se apressam, uruá, uruá,
peixinho do fundo, uruá, Bi cantarolou.
— Ei, me apalpa a testa. Gelada? Me tome a mão um Instante,
Secretário, mais que um gelo, não? Febre, não é. É o meu papel, esta
noite. Pra nunca mais! Agora me digam, que melhoramento, me
digam, se pode fazer neste nosso Município, mas me digam?
Procede? Procede? Fie-se no progresso. Fie-se no progresso...
Comigo, só comigo que acontece, nada tenho a expiar. Pois por Isso
tranco a casa toda, Cartório, Agência do Correio, um mês. O Sede de
Justiça que me bata — Liliosa, minha filha, é teu irmão, mas é o
apelido, até que bom apelido — me bata a porta para reconhecer
firmas contra o Juiz, não abro, trinta dias facultativo, não abro, arre!
Cefini. Não ponho o bico na janela um mês. Ah, gana de encontrar
esse Loriano, tirar da mão dele a flauta, quebrar aquela taboca em
quatro, adeus o tão procurado, o mimo de toda festa. Adeus, preciosa
flauta. Praga! E dizer que cheguei ver baile aqui com trinta damas,
cada qual da melhor família, aquela banda com maestro de vera,
aquela, sim. Aquela que era, sim, aquela banda. Dela só resta o rufo.
Agora tem é trinta damas defuntas e o jazz de cururu e coruja. Vá ver,
é bem praga daquelas, das duas do Promotor, as escriturárias. Nas
costas das três, essas ai na janela, as trinta daquele tempo esperando
os pares, as caveiras debaixo do véu.
— Credo, D. Benigna!
— Quem sabe carregando o negro pros infernos com flauta e
tudo. Capaz de ter sido empreitado pelas duas do Promotor só para
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nos fazer isso. Comprado. Por essas tantas coisas que tenho um abuso
de negro, por isto! Negro lá presta!
— Negro?
— E não é, Secretário? O Maestro não é aquela negridão toda e
os Três do mesmo tição? Ó raça! Isto aqui, Secretário, de uma senzala
nunca passou. Ficou que só se visse. Deu demais preto.
— Demais preto?
— Que estou lhe dizendo, por demais, sim. Foi mina. Quando
chegava vapor, o Trapiche escurecia. E a Ramada? Tinha noite que o
ar era só pixé de preto.
— Assim então que a senhora sem querer se meteu no meio...
[144] — Eu?
— Faço parte do tição. Mancha?
— Mas o senhor? Com esse cabelo fino, a boca fina, as feições?
— Mancha?
— O senhor só está advogando a causa alheia, Secretário. Do
senhor que não.
— Minha mãe. Meus tios. Não é uma pena?
D. Benigna faz que tira um fôlego.
— Ora, Secretário, meu destempero de língua, devota que tanto
sou de nosso São Benedito. Não estou eu aqui atrás do nosso Maestro,
só me faltando de terço na mão? Cor que eu ligo mesmo só as cores
da nossa bandeira, Secretário. Agora, esta noite, se ponha no meu
lugar. No meu papel, esta noite.
— Uma bela noite, D. Benigna.
— Onde, onde, que eu estava com a cabeça quando inventei
semelhante baile, meu São Benedito? Onde? Onde?
— Nós três, a senhora, Liliosa e eu, encarnamos as trinta damas
defuntas, em nós se incorporaram, a culpa não é da senhora — fala Bi
tirando de dentro do colo um leque branco, toca com o leque o ombro
da dona do baile. Liliosa se inclina sobre um monte de tijolos, D. Benigna cruza descruza os braços. Nisto, o estrondo, estrondando a uma
quadra, desabando um pardieiro em meio uns urros e tudo logo
cessou.
— A vaca! — exclamou D. Benigna de ventarola ao peito, Bi
de leque na boca, Liliosa com as mãos no rosto.
— A vaca! — repete D. Benigna. — A vaca! É a dela, da Sara,
E o piano? Arriou-se tudo em cima do piano velho. É lá, sim. Pelo
tamanho do estrondo, já sei qual casa, onde caiu. Agora de vez o
piano foi-se. E eu que cheguei a escutar, ouvi tocando. Dancei menina
ao som daquele piano. Não que eu esteja assim tão entrada em anos,
tudo que esta cidade era, é de ontem-ontem. A vaca ficou debaixo.
Uma só vez urrou? Também o bezerro? Também, também o bezerro.
Daquela menina, sim, da Sara, a infeliz vaca, ah! Só não cai nunca é a
casa daquelas duas escreventes de carta, com elas duas dentro, que
Deus o livre.
[145] Alfredo propõe:
— Vamos ver? Quem sabe não pegou nos Três, no músico?
D. Benigna segura as duas moças, levanta a ventarola para o
rapaz:
— Eh, isto que não, meus filhos. Agora pra casa, já que não se
encontra o que tanto se procura. O Maestro no ombro dos Três vai
custar mas chega. O piano, aquele, não tinha mais remédio. Estava
que só esqueleto. Aquela vaca, Deus me perdoe, é quem mais comia a
couve da pobrezinha da D. Pepa, arre. Seu Bensabá tem a outra. Pra
casa! São ou não são meus convidados? Então debaixo de intimação,
da minha lei. Pra casa, que jogar pros meus capados todo aquele
chocolate, tenha dó. A vaca? o bezerrinho? Praga daquela espanhola,
oh, boca! Vá ver, D. Pepa acende vela ao santo, dando graças... Pra
casa, damas e cavalheiro.
Alfredo se lembra do baile soterrado da José Pio, em cima dele
o palacete Boaventura e a perdição de Luciana.
— A esta hora, no baile, Zezé está servindo as trinta damas.
— Te zangaste, Bi, minha filha? Te ofendeste?
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— Me zanguei quando, D. Benigna? Não sou de me zangar, D.
Benigna. Me cabe dez das trinta damas, me vá dizendo o nome de
cada, vou me registrar com todos esses nomes no Cartório do seu
marido.
— Por mim, que tu te ofendas não dou cavaco. Falo só por
falar, o que falo não penso, sempre o melhor da gente fica sem
palavras. Me espanta é o que me fez o Maestro, pessoa tão... que
sempre foi de uma só palavra, reto no ajustar um serviço, encomenda
de um tipiti, chamado pra cortar o cabelo do meu velho, quando nos
promete uma arara que a gente tem que oferecer a amigo que passa a
bordo. É que tudo nesta cidade se esboroa mesmo. O Secretário e a
Bi, que vieram do banquete, me ajudam a beberzinho todo aquele
chocolate. Também tu, Liliosa. Teu irmão?
— Zeqüenqüém? Então não ficou lá dentro esgoelando ao som
do pente fino, esgoelar é sina dele. Desentoa que só galinha choca.
[146] — Peste que pegue no doutor, pegue a bordo, pegue
Belém inteira — murmura Bi e já ao ouvido de Alfredo:
— Dançando com todas as trinta? Seu cabelo fino, suas feições
finas, dança?
E alto:
— Que a senhora disse, D. Benigna, banquete?
— Ora, Bi, e não foi? E não vi? Ao pé dele, tadinho do meu
chocolate. Ao pé dele, triste que é meu baile nesta rua jogado agora
debaixo do pardieiro no chão.
— Cada prato na mesa virava quatro nos espelhos, D. Benigna,
foi isso. Mágica dos espelhos. Foi isso, D. Benigna. Nos espelhos que
a senhora viu. Faziam de cada prato quatro.
— Arte ou não dos espelhos, era. Estava lá na mesa, e o seu
irmãozinho trazendo comida, trazendo comida, como se estivesse
tirando o jantar da cartola do magico.
— Vou pedir a papai que embarque logo pro leilão em Belém
aqueles ouatro espelhos. Parece que eles só teimam refletir aquela
nossa mesa que foi e agora não é mais.
— Minha filha, pois muito apreciei, foi um jantar de
hombridade, ali eu vi, sim, um trio da moda antiga, a luva de pelica,
um não deixar quebrar castanha na boca. Que honrou a nossa terra,
minha filha, honrou. Seu pai é um diplomata.
— Jantar que só regalou as trinta damas, minha santa. Só cupim
na comida. Vivo nenhum comeu.
— Comi eu — reclamou Alfredo.
— Agora que me lembro, sim, foi, já nem se lembrava, sim, o
senhor comeu! — fez Bi um pasmo, as mãos na cabeça. — Ou será
que o senhor também não existe? Eu, se comi, foi ura lhe fazer par,
foi, sim, mas só nós dois, me lembrando agora. De vivo só nós dois.
O mais era o bando das trinta defuntas. Ou será que o senhor é
também um?
— Mas ah! É só morte a nossa conversa? — indaga Liliosa.
— Pensando que inda és vivente, menina? Nós, a vaca, o
bezerrinho, o piano, já todos nós batemos o pacau, já estamos de pé
junto, aquela-menina.
— É, minhas filhas, quis dar baile contando com os nossos
quatro cemitérios. Vou mandar o jabuti atrás da música. O jabuti da
Daria, jabuti que sabe.
[147] D. Benigna, sondando o escuro, os olhos do Secretário,
apanha a saia, pensando: Bi, já tamanha rapariga, já de rede rasgada,
ainda freqüentando a sociedade? Liliosa, já pra dar o tiro, donzela à
força, essa até que a perna dela meio fede, Deus que me perdoe. Sara
a outra dama, neste mesmo instante, só faltando quebrar a cadeira de
tanto embalo, à falta de um namorado, chora por um bezerrinho. Não
faz uma semana chorou a morte do quati que criava com ovo. O quati
era um agarradio com ela! A cadeira balançou, balançou, com Sara
balançando, o quati ali ao pé dela, morto.
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— Mas e o Capitão? Acudindo o Intendente? Ou correu lá pras
bandas do estrondo?
— Registrando o flagrante — troça Alfredo.
— Do meu dever mandar pra ele um bule de chocolate. Só as
injeções que tem dado no meu marido!
Liliosa arrisca:
— Sempre sai escoteiro, o Capitão. Sempre desacompanhado.
— Desacompanhado, não! E o soldado?
— Não falo do soldado, Bi. Morde aqui que não me entendes.
— Mas é verdade! — acode a D. Benigna. — E a senhora dele,
gente? Que nunca se sabe, tão metida lá por dentro? Tão metida lá
com ela? Nunca sai do ouriço?
Bi amenina a voz:
— A senhora dele? A esposa? Olha a proa que tem ali, lote
proa. De costa é tocó mas alta. Debruçada no parapeito, o queixo no
parapeito, os cotovelos no parapeito, os olhinhos de bubuia pelo rio,
bicudinha que ela é. E o Capitão engraxando as perneiras, lustrando o
chanfalho ou aparando as unhas. Só lhe dizendo: mas minha filha,
mas minha filha
— E por que essa voz de menina, Bi? — estranhou a Liliosa
Bi engrossa a fala:
Esposa! Só se atrás da porta. Que-que não se sabe... Esposa
— Bi. minha filha, gruda a boca. Quem pouco fala, feliz é.
[148] — Fosse por isso, D. Benigna, fosse por pouco falar... Lhe
digo já-já o número das palavras que falo durante o dia em casa. Não
cabia na costa dum selo, feliz, feliz, eu, me marque a data na folhinha.
E o baile, D. Benigna, pra seu governo, o baile só empanemou, por
via de mim, ponha isso na cabeça.
— Bi, minha filha, falas como se alguém tivesse te ofendido,
menina. Eu te ofendi? Me diz. Passa a esponja, menina.
— Juízo me cutucou por dentro que eu de casa não saísse esta
noite, a botija me avisou, ficasse eu folheando o catálogo da França
me vestindo com os vestidos daquele tempo ou fazendo meas caretas
nos espelhos com as várias pessoas Que finjo que sou, vá ver nem eu
já sou. Fui eu me influir derramou-se o caldo. Mas os Fonsecas? Os
Fonsecas, D. Benigna? Os Fonsecas?
D. Benigna, lá adiante, não responde, empinada lá na frente,
mexendo os seus berenguendéns, o andar balançado.
— Agora só um remédio — fala Bi, num aceno para Alfredo
que chega a lhe pegar o braço, a dama se esquiva
— é todos nós de montaria com um galho de mangue feito vela,
cada um no remo, rumo do Bacal arrancar os Fonsecas da rede,
tocarem o baile nem que seja com o galo cantando.
— Escusa de dizer que foram falados, minha filha, mandei
falar. Tinham ajustado uma festa esta mesma noite, lá no Pucuruí, foi.
Tu bem que sabes, falou-se em festa ai por essa beirada abaixo,
chama os Fonsecas. Que só são eles, são.
Bi vira-se batendo palmas para o lado de Alfredo:
— Não lhe disse, não estava lhe dizendo? Bem que eu dizia,
bem que eu dizia que a senhora, o primeiro cuidado da senhora, foi
despachar gente atrás dos Fonsecas. Culpa da senhora que não foi. Eu
sabia.
— Tocando no Paraná de Baixo. No casamento da Alzirinha
Calado.
— Os Fonsecas?
— Era pena, disseram eles. Tanto que queriam tocar no baile, o
nosso. Foi o que disseram. Não faltará ocasião, paciência.
[149] Bi faz que salta corda, compenetra-se, emparelha-se com
Alfredo.
— Só sei que a urucubaca é minha. Foi saber que a minha
insignificante pessoa vinha ao baile e já que os Fonsecas são falados
para o Pucuruí.
Lá da frente a D. Benigna:
80
— Tranca essa tua boca, agourenta. Virando já anu branco?
Olha que estás no meu poder, esta noite. Faço as vezes de tua mãe,
esta noite.
Sempre atrás, junto de Alfredo, Bi com as mãos nas costas dá
banana. Sussurra:
— Peguei a dona na maior pirua. Viu como se mente?
— E alto:
— Ora, D. Benigna, me desencaiporar agora Inês é morta.
Mamãe não se cansou de me dar no sim-senhor com tanto pano de
cozinha? Tanto pano de cozinha. Por isso que os Fonsecas não
vieram. E caldo de resto de comida que bebi? As quantidades. Foi
isso.
— Minha filha!
— Agora avalie a caiporice. Nem a vassoura feita com as penas
do rabo de jurutaí que mamãe me deixou embaixo da rede, qual.
Nem!
— Bi! Bi!
— Um dente de jibóia pra me dar sorte, ganhei. Sorte! Ah,
sorte! Ó sorte! Penduro o dente no pescoço, pendurei foi a
calamidade. A panema me correndo meu corpo como espinho de
piquiá quando a gente engole um.
D. Benigna passa a mão pelos cabelos de Bi e lhe dá um beijo.
— Ah, D. Benigna, carinhosa então que a senhora está comigo,
esta noite! Compadecida? Olha que pega panemice de mim.
Compadecida?
— Raiva, minha filha. O figurão que fazemos, estou que estou
com a cara no chão. E aqui o Secretário? Se com pena ou só
desfazendo?
— Uma bela noite, D. Benigna.
— Vou é carregar toda esta vergonha pelo resto da vida.
Vamos. Mas... aonde já então o molongó do nosso faroleiro? Que fim
levou o Maxico? Ó menino! Aposto foi [150] ver se tira o bezerrinho
debaixo do entulho. Ah, Sara! Nem o baile nem a vaca, ó boca tem
aquela espanhola! Bem que se diz que a espanhola estruma a horta
com terra de cemitério.
D. Benigna, de braço com a Liliosa, se aproxima de casa, 6
praga, ah, padre aquele! Atrás, Alfredo baixinho rente de Bi:
— Que jantar!
— Que baile!
D. Benigna pára:
— Diabo me leve se o encarangado do meu marido não está de
beiço naquele pente fino fazendo gaita, a triste figura, á sina, em que
acabamos! Pois está! Estão ouvindo? Liliosa, Liliosa, que-que correu
ai na tua frente, criatura? Cobra?
Bi faz que se assusta, roçando no braço de Alfredo, jasmins lhe
caem do peito, canta um galo, o rufo cessando, e de repente lá na sala
o Loriano, o Maestro, tira um dó menor.
Vão entrar, apita o Lobão, corre Alfredo e encontra o Intendente
em casa batendo o queixo debaixo do mosquiteiro, afundado em
lençóis sem poder levantar-se, o Lobão! Me carreguem pro Lobão!
Um morcego entra na sala. Lá fora o ordenança correndo para o
Trapiche a avisar o comandante que espere o Intendente. Aqui dentro,
no parapeito da varanda, o oficial cochicha com a mulher que empina
o rosto sobre o rio, a seu lado o tucano e seu bico. O morcego bate-se
pelas paredes, e onde, em que lonjura aquelas guaribas rezando?
Debaixo do mosquiteiro, boiando dos lençóis, o Intendente
pedira a Alfredo lhe arrume a mala, ou o caixão — a capinadora
vaticinava, vaticinava — ou chame os três carregadores do flautista
para levá-lo a bordo, ou à cova.
O Lobão atraca? Apita três vezes, ou é o sino dobrando?
Três vezes. Danado desse morcego. Atraca, não vá abaixo o
Trapiche.
— Quer que chame os carregadores?
81
— Seu Secretário, seu Secretário, a consciência humana é esse
morcego, dizia o nosso Dos Anjos. Isto aqui [151] não passa de uma
velha senzala. Viver nisto aqui, só negro. Só negro, seu Secretário, só
negro.
— Doutor, me deixe desarmar o mosquiteiro, olhe que o
comandante não espera.
— Só negro. Que é aquilo batendo fundo lá embaixo na praia?
Fantasma de negro?
— Paus que o rio carrega de cima, cedros.
— Só negro. Só negro.
— Bom apressar-se, doutor. Aquele paneiro de abacate vai?
Prefere ir carregado?
— Só negro, seu Secretário.
— Neste caso chamo minha mãe pra cá. Que acha? Lugar
dela...
O Intendente desvencilha-se dos lençóis, o morcego entra e sai
do quarto, bate na vidraça. O Intendente, tremendo, levanta a barra do
mosquiteiro:
— É o baço, me doendo o baço! O frio me racha como um
terremoto, estou não no Lobão mas no outro em que vamos todos nós,
que prancheia na nossa rede. Não limpei os cemitérios? Cuido que
ouvi o urro da vaca. Ou da harpa ou do piano. É o rio aí embaixo
urrando. A porta larga. O lacrau. O jantar! Me desarme o mosquiteiro,
o óbolo ao Papa. O óbolo ao Papa! O santo perdendo sangue. Devolhe obséquios, atenções, lá no chalé. Tardes em Cachoeira... dê cá por
favor o sapato... conversando com sua mãe, tardes. Vi você de
pensinho e cueiro no braço dela ou em cima da mesa tomando banho
de bacia. Aquele rosto sobre o caixão da filha, vi, um instante só,
virei-me para a janela, olhando para o ingazeiro. Eu ia ao chalé, e
contava-lhe das minhas andanças com o namoro, nesse tempo
promotor solteiro, já de charuto na boca, seco-seco o desgraçado pra
se amarrar, danado atrás de noiva, escolhe esta, refuga aquela —
afinal tudo deu no mesmo, a mulher é a mesma — e sua mãe, na
varanda, me trazendo café com cuscuz quentinho, só me escutava, só
estou a paciência dela. Sim que lá pelos olhos a sombra de uma troça
ou se voltava para a janela assim por assim dizer: upa, como esse
sem-o-que-fazer me faz perder tempo, olha que nem com a vassoura
atrás da porta. D. Amélia, eu lhe falava, aquela moça até que me
servia por ser de tão distinta aparência sendo eu este carão que faz
correr [152] crian|ça. Correr criança que nada, doutor, quem só desfaz
de sua pessoa é o senhor mesmo, corra e peça a moça, é o seu melhor
serviço, que D. Etelvina não só é dotada de feição como de prenda e
tem suas cem reses no São Marçal e aqueles carneiros pastando ao pé
do moinho, doutor. Posso, não, D. Amélia, é o diabo ter como sogra
aquela madama mãe dela que permite se enfie porta adentro o velho
Guaribão, de chapéu na cabeça, só cachaça e sarro no bafo,
beliscando as cadeiras dela, tua misturada de jenipapo e a paçoca de
castanha de caju, cadê, Leopoldina, sua safada, me dá do teu um
bocadinho. Já sabes, Leopoldina, o podre que fedeu hoje na sala da
Duduca? Bita assombrada de bicho. D. Amélia, sua mãe, dava aquela
sua risada a seu gosto, dava outra e isso parecia dizer: pois digno de
semelhante sogra até bem que o senhor é. No mais não dizia esta, só
escutava, ali na máquina, distribuindo sua atenção pela casa, costura,
passando a ferro. Um ar de ouvir, só ouvir, que valia por toda uma
conversação. Desarmou o mosquiteiro? Vamos? Fique... Confiou-lhe
os escombros, o Santo Antônio descarnando, sustente o ramo de
oliveira no meio das feras, não levante a pedra que o lacrau salta,
respeite a couve da espanhola, ai que baço, que gelo, esse, dos
infernos, oh, tremedeira! e veja por mim se ficam prontos os
cemitérios. O Guerreiro tem ordem de pagar o serviço delas em
mantimento, que dinheiro já adiantei o que pude, pois pouco sobra do
óbolo do Papa e da verba de publicidade do Município e dos cinco
por cento do Procurador, me substitua, assuma, agradeça àquela
senhora pela homenagem, pelo baile, acharam a música? Peça ao
82
Bensabá que tire para cada capinadora dos cemitérios um meio
quilinho de carne da vaca soterrada. Vamos.
O Capitão! Faça amizade com o Capitão. O Capitão! Já estou
embarcando, Capitão?
O Capitão com o tucano no paneiro:
— As ordens, doutor, á praça, carrega a mala, e leve o farol, seu
Dá. Pode levar o tucano, Secretário? Pode caminhar, doutor?
— Capitão, Capitão, mal me aprumo, mal me ponho de pé, o
calcanhar me foge neste treme-treme de papouco, mas o primeiro
dever do Intendente é seguir com as próprias canelas. Carregado, não.
E os abacates? Secretário, me passe o telegrama lá pra casa, avisando.
Está na porta o Coche? A vaca foi esquartejada? E o piano?
[153] — Temos carne verde, amanhã, e do que restava do piano,
adeus — responde o Capitão segurando o Intendente pela cintura.
— E quanto ao Telégrafo, doutor, o cabo rompido. Tem que
esperar o navio da Amazon para conserto.
Saem. Na calçada vizinha, o Coronel Cácio, agora de fraque,
mãos nas costas, ereto na calçada.
— Vai também, Coronel?
— Não, não, doutor. Tomando fresco, aqui com os meus botões
e os meus bacuraus.
— E eu aqui pagando a minha taxa, Coronel. Alguma coisa pra
Belém, às ordens.
— Boa viagem, doutor, e pronto restabelecimento. Minha
patroa manda para sua patroa umas laranjas de Urucuriteua.
— Precisava incomodar-se, não, Coronel.
— Doutor, me permita um particular.
Os dois se afastam no escuro.
— Confio-lhe este documento.
— Perfeitamente, Coronel.
— Formulei nessa carta a minha estranheza à matéria das
ofensas que sofri. O senhor é o portador.
— Perfeitamente, Coronel.
— Essa carta é um pré-rompimento, doutor.
— Coronel, não! Direi em Palácio que o senhor exige, com
razão, um desagravo público.
— Espero do Governo uma cabal resposta, dentro de uma
semana. Do contrário publicarei nas folhas as razões do meu
rompimento. Boa viagem, doutor.
O doutor embrulhado em lençóis, pelo braço do Capitão, abre o
guarda-chuva por via do sereno. Alfredo, com o tucano no paneiro,
cuida ver ali pelo escuro uma pessoa fugindo beirada abaixo. Bi? Que
há de novo? Que há. de novo? Passa o irmão da Bi, o Escora-Canto,
pijama e tamanco. Passa o xerimbabo com o paneiro de laranjas na
cabeça. Rasante uma corta-mortalha passou. Tinham se calado as
guaribas. Do largo, atrás das mangueiras, o choro da flauta, bate o
rufo, a luz no Cartório e Agência do Correio. D. Benigna, à janela,
desmancha o cabelo?
[154] Liliosa dança com Zeqüenqüém, o irmão, se lembrando
do que disse a Bernarda Seruaia: A Liliosa teima em entrar na igreja
com aquela ferida na perna, não presta. Ferida, não, só manche. Na
varanda, gemendo, o Tabelião encolhido na preguiçosa.
É terçã, Capitão? Seu Secretário execute o meu programa. O
Capitão aí está pra lhe dar apoio. Pelo menos capinamos os
cemitérios. No mais vou curtindo a rebordosa a bordo. É terçã,
Capitão? O cato interrompido? Aqui é a sede do azar, Isso é lá lugar
de gente, Capitão, lugar onde se comece uma carreira política ou
mesmo administrativa? Lá lugar de gente! Vou arder a bordo. Terçã?
— Trinta e oito e meio, doutor. O frio passou, não?
— Já. nem sei se passou, se é frio com a febre ou esta paúra.
— Simples acesso, doutor, de natureza benigna, e é só pisar em
Belém, passa. Darei instruções ao enfermeiro de bordo. Pisou Belém,
prancheou no cais, passa. Passa.
83
No Trapiche aquelas tábuas soltas, saltou, grita o Intendente,
seguro pelo Capitão:
— Vai tudo abaixo, Capitão!
— Animo, doutor, estamos já na prancha.
De bengala, empaletozado, lanterna, revólver no cinto, fumo no
chapéu de massa, surge o Sede de Justiça em busca de importantes
documentos a tordo contra o Juiz e de dez maços de cigarros para a
sua vigília. Acompanhada do filho, já a espanhola, de volta, toda de
preto, com o cestinho de mantimentos. Tinha vendido a couve. Pé no
chão, encolhido no seu posto, o Trapicheiro.
— Vendo o farol, Secretário? Só que a manga dele está meia
rachada. Tem verba, tiro uma nova no seu Guerreiro, pode?
— Não, Trapicheiro — responde o Secretário, seguindo o
Intendente levado pelo Capitão. Dá de novo com aqueleum-zinho
Cristo tão descalço molambento. ali escorado no esteio, a sacola no
dedo, o seu Seruaia. Tinha deixado o macaquinho a bordo a troco de
um café. um açúcar, um livro de abade, um sal e dois tostões de linha
de carretel, tudo um pouquinho, olha que caiu do céu. Fechado no
camarote com o comandante, numa roda de passageiros no passadiço,
com o imediato, na prancha, com o escrivão, [155] este danado com o
cabo interrompido, o Sede de Justiça esbordoa o Juiz. Debaixo dos
lençóis, o Intendente embarca, atrás o tucano, o doce de cupuaçu que
a Sra. Guerreira manda para a patroa do Doutor, o paneiro de laranjas
de Urucuriteua, o cento de abacates, as recomendações do Capitão ao
enfermeiro, desatraca o Lobão, com o Sede de Justiça na cabeça do
Trapiche, bengala em punho: vão ver o meu libelo! o meu libelo!
berrando a todos ali de bordo que haviam de ver bem cedo aquele
Meritíssimo no pau.
De volta, o Alfredo, o Capitão, o Sede de Justiça sobraçando
documentos e o pacote de cigarros, seu Dó, encontram o Jacobito,
afobado, de lanterna acesa. Vem pedir desculpas ao Intendente por
tamanha precipitação,, aquela dele, quando procuravam o Maestro.
Queria repor a irmã no baile, agora que o Maestro toca. Custoso é
arrancar a irmã da cadeira de embalo, se embalando de não acabar
mais, cega-cega. Só assim obtém a insônia que tanto pede.
— Vi seu pai — diz o Sede de Justiça, mandando tirar a vaca de
debaixo dos destroços. Vai mandar esfolar. Era a papa-couve da
espanhola. Rosbife, amanhã?
— Não é fato que comia a couve de D. Pepa. A única vez que
comeu, só foi parte de uma só folha de couve. Papai indenizou com
tudo testemunhado.
— Acredito — rosna o Sede, tocando no cotovelo de Alfredo.
— Sara perdeu esta noite o baile e a vaca.
— Coisa pouca, Jacobito. Agradeça àquele Juiz, minha terra
perdeu a justiça e a honra. Luz acesa ainda no Promotor? As filhas
escrevendo contra o pai e dando conta do que acontece esta noite.
— Mas se Sara já tirou o vestido, veste de novo e volta.
— Agora com a. morte da vaca? — diz Alfredo, por dizer, no
rumo do baile.
— Vou concluir meu relatório — suspira o Capitão,
desapertando o cinto.
— Nem um gole de chocolate, Capitão?
— É o fígado, meu filho. A ferrugem no alambique, Secretário.
Vou dar uma olhada na. esfolação. Também se convenço a moça a
voltar ao baile.
[156] — Vou consigo, Capitão, é um particular.
No braço do Sede de Justiça, o oficial afasta-se, cinturão,
espada, perneira e quepe. O soldado na frente com o farol. Lá se vai
para a porta da amásia o Jacobito, lanterna acesa, o andar de
arrependido. Passa pelo Escora-Canto que vem em busca de cigarro e
de novidades no maior escuro. O Capitão apreende a caveira?
Registra a caveira no seu relatório? O Sede de Justiça leva o Capitão a
1875?
84
Pelo breu, no caminho da segunda rua, com seu café seu açúcar
seu sal seus dois tostões de linha o Cristo Seu Seruaia.
Geme o Tabelião na espreguiçadeira, afomentado pela mulher.
Esmerediana e Zezé na varanda dançam dama com dama ao som do
Maestro, Zeqüenqüém no violão e o anão no rufo. Os Três-pra-TodoServiço, na escada dos fundos, repartem a meladinha, três dedos num
vidro de xarope. Logo mais vão ajudar na talhação da vaca. Depois
carregam o Maestro de volta, acabado o baile.
— O bucho, Benigna. Apalavra o bucho — fala o Tabelião com
uma careta de sofrimento. — O bucho é meu. Manda o Maxico.
D. Benigna no seu espanto: E agora que já me meti neste robe?
Eu já dava o baile por acabado, meu Deus!
O Maestro, perna estirada no banco, toca e faz sinais a Alfredo
para tirar Liliosa. Liliosa, tão da desconsolada, passando o dedo na
língua folheia um almanaque bristol já sem capa, roído de rato. De
cima duns autos na escrivaninha pula o bichano, correm algumas
baratas, entra pela janela um vaga-lume a piscar na cadeira, uma das
trinta damas defuntas. Alfredo recebe das mãos de Zezé a xícara de
chocolate e a fatia de pão-de-ló no pires, e seu Dó, lá pela cozinha, até
ajudou a lavar a louça, então que se farta, rapou da. panela uma sobra
de cozido e a oferecer-se aos Três-pra-Todo-Serviço para fazer parte
da talhação da vaca, lambiscar um miúdo, ao menos um mocotó, um
naco de ratada. Bena anda se queixando do peito. Alfredo, bebido o
chocolate, formaliza-se, vai, tira a dama do almanaque, o gato senta
em cima do almanaque, por onde anda o vaga-lume? Roda o par pela
sala deserta, passa pelos [157] livros do Cartório, a escrivaninha
atulhada, é o Foro, aqui se lê: errar é humano, perdoar é divino,
marcado no pano da parede, lá está o carimbo, é a Agência do
Correio, e aqui com toda a pompa azul e tranco a escarradeira. E Ei?
quer indagar. Faz chá de dente de jacaré para a prima? Se
aconselhando com a botija? Debaixo da varanda, à espera? Atrás dos
dois santos, com o irmão dizendo a estes: Que há de novo? Que há de
novo? Pela praia, toalha passada no corpo, para o chatô do exSecretário, aquele resto de pardieiro onde foi o Clube Euterpe?
Tapando com o bico do tamanho seio a marca da bala no Santo
Antônio? Vira pirapitinga no aquário secreto, de que falou o Capitão.
Ou se põe no suarê defronte dos quatro espelhos, o pai, de fraque, na
varanda, ao embalo da rede, aguarda seus gaiolas carregados de cereja
e postais da Suíça. Cupim! Cupim no paletó do meu marido, minha
Santa Rita dos Impossíveis! exclama a D. Generosa, acendendo vela à
santa. Alfredo dança o bis. Pelas feições do flautista, luzindo no seu
negrume, se vê que o músico toca com todo gosto, tocando para uma
pessoa de tora, um da cidade, nomeado Secretário, traz boas oiças da
cidade, daqueles musicais de Belém mas escutezinho esta, compare,
não fica multo atrás, aqui o degas sola com muita orelha e peito, o
rapaz tinge que não se admira. Alfredo vai assim levando a dama que
lhe parece uma campeã, prima-dona do passo. Vê-se um pouco mais
Secretário, meio sentado na cadeira do Intendente; vai conseguir, sim,
uma carninha para o Cristo Seu Seruaia. E o Intendente se explicando? aquele retrato da mãe saindo do álbum assim tão de repente. A
risada, sim, sim, fazia aquela varanda muito mais da mãe que do pai,
prelos, catálogos, tintas, soalho, telhado, rir que era um cantar, lá tora
ventava no ingazeiro, da corda do quintal o lençol voou, as nuvens
pareciam pendurar-se nas estacas, na beira do telhado. Mamãe, a
senhora lavou aquela nuvem, foi? Assim tão alva só a sua mão, foi?
Etelvina, o burro do promotor não casou com ela? Pois que agora
torça a orelha. Sara, sobrancelhuda, dona de todo aquele seu violão,
perde o baile e a vaca, mais perdeu o seu Jovico Umiri, ganhou do
Juiz a ilha, o Juiz lhe comeu a filha. Passa pela janela, lá no sereno
meio escondido na mangueira o Jacobito. agora de pijama e lanterna
apagada, a amásia no vestido de missa, seca, ali fincada, menos
mulher que uma estaca. A esta hora o Sede de Justiça tira do envelope
a estatística dos [158] deflo|ramentos feitos pelo Juiz no corrente ano.
E aqui este-um Secretário dançando com trinta damas defuntas, uma
85
delas no meu braço, o dentão de fora, a perna piririca, ganha a coroa
num concurso de valsa, que jantar, que baile, o Cristo Seu Seruaia
(Acabe a parte logo, Maestro, chega), faz agora o lambisco, café,
açúcar, sal. Com os dois tostões de linha de carretel a caçula do Cristo
Seu Seruaia cerze a única saia. O Coronel Cácio veio buscar a
Menina? Mestre Mergulhador, leve a Menina ao fundo e volte com
ela com os três vinténs lacrados, que o seu poder de tudo isso é capaz,
as grudes do fundo reatam o nó. Leve a Menina ao fundo, pajé velho.
— Vá desculpando. Sua graça?
— Atendo por Emiliana, sua criada, sendo de agrado Liliosa.
Vá lá em casa amanhã que lhe passo azeite no seu pé que inchou com
meus pisões, não foi?
— O seu que sim, a senhora passou martírio, me deixe ver.
Mais que depressa a dama senta, escondendo a perna.
— Olhe, se vergonha matasse...
— Mas nunca mata. Por quê?
— Coitado.
— Coitado?
— Coitadinho.
— Do nosso doutor com trinta e oito e meio a bordo? Do
bezerrinho?
— Ora, de quem mais, deste baile.
— Não apoiado, não apoiado, e uma bela noite. Licença, que
agora é a triste vez daquela dama.
Vez da Esmeridiana mas só na varanda. Zeqüenqüém canta.
O que passou, passou, não volta mais O que ficou, ficou, dores
fatais.
Também na varanda, ali dos gemidos do Tabelião, dança com a
Zezé que cheira a cumaru. Cumaru. Todas tomam banho com cumaru,
cada qual com um quatipuru debaixo do sovaco. Aqui o poder é da
bota que está em cada uma à força do cumaru. Se não me devoras, Ei,
te levo ao Coche, te levo na asa do morcego, voando atrás de ti na
praia, te desenrolando a toalha, olhe o lacrau, o lacrau! Que te diz a
botija, Bi?
[159] — Benigna, já mandaste o Maxico apalavrar o bucho?
Senão o Juiz vai na frente. Anda!
Alfredo aceita outra xícara de chocolate.
— Mas, D. Benigna? E a senhora? A nossa?
Com estas palavras, quer saber de Ei, e D. Benigna a modo que
adivinha, de Ei não dá noticia.
— D. Benigna, a nossa.
— Nestes trajes? As mãos assim da fomentação?
— Que que tem? Bem, a senhora que sabe...
O Tabelião, gemendo:
— Te prepara, Benigna, anda, e aceita o cavalheiro.
— Não, assim vai ser incômodo, D. Benigna. Fica para outro
baile.
— Outro baile, Secretário? Depois deste só o pé-junto, meu
senhor.
— Ela vai se vestir, sim. Baile é baile. Ai, seu Secretário! Vai
desculpando o gemido e a fomentação.
— Ah, vou contar desta noite quando chegar no purgatório, ó
baile! Então esperezinho só um pouco, Secretário, sim?
D. Benigna volta-se para a sala:
— E tu, Liliosa? Que tu estás fazendo ai sozinha, rapariga de
Deus, tão que tão sozinha na sala já que nem no sereno o Jacobito está
com a dele agarrado? Liliosa,, minha filha! Queres uma carta no
correio? Selo não tem, criatura. Faltando. O que tinha acabou nas
cartas das filhas do Promotor. Não chegaram. Tanto que tenho
mandado reclamar. Ou queres uma certidão? Para a varanda, menina,
que senão aí sozinha aquelas trinta damas te carregam. Oh, lã estão
aqueles porcos no quintal. Cipri! Farejaram chocolate. Por isso! Cipri!
A dentão-de-fora vem para a varanda com o almanaque debaixo
do braço, belisca na fatia de bolo que Esmeridiana lhe oferece.
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— Mas, compadre Maestro, até que muito me admira. E aquela
sua? Ah, o senhor inda não tocou esta noite aquela sua, de seu maior
gosto. Que foi que ela lhe fez que se aborreceu com ela, que se deu?
A... O senhor bem que sabe qual, não se faça de mal-entendido.
Aquela sua. Não?
[160] — Aquela qual minha já então, comadre Liliosa?
Voz de folião do Divino, perna estirada no banco, a mecha alva
no pixaim, meio de fora o barrigão, a flauta no braço, o sorrir toda na
boca faltando um dente. Zeqüenqüém:
— Calma no Brasil que o Maestro reserva a circunstância.
Aperta a cravelha, tira uma nota, se dirige a Alfredo,
oferecendo-lhe o violão:
— Dedilha?
Alfredo espera que a D. Benigna acabe de fomentar o marido.
Cipri tinha ido no quintal sossegar os porcos, dando-lhes um pirão de
chocolate. Sentados no batente da cozinha, escorando-se no jirau de
roupa ou debaixo das bananeiras, aqueles mais pobrezinhos da
terceira rua com suas cujas e canecos, & espera. O anão, rufo no
joelho, todo no paletó do pai, colarinho, gravata, loção da irmã, come
a coxa de marreca trazida do jantar. Os três carregadores fazem
render a meladinha, ali no sereno, esperando o chamado para
esfolarem a vaca. Maestro dá o seu tom menor, pedindo:
— Zezé, mea mana, não te fazendo mea criada, me puxa lá da
sala aquela escarradeira, mea flor, sim?
D. Benigna, mãos na perna do marido, abre a boca, contida a
um puxão do seu Anacleto. Ao menos lembrar à moça traga lá de
dentro um cuité, qualquer vasilha, a escarradeira, não. Naquela
ninguém escarra nem cospe, nem mesmo o Bispo de Itacoatiara que
visitou o Cartório e tanto admirou o vaso, adorno do Correio e do
Foro. O marido lhe dá outro puxão e D. Benigna, ó baile! Até a
escarradeira! esfrega com enraivecida obediência a perna do seu
paciente e seu senhor. Zezé, mesmo sabendo que contraria a
madrinha, vem, abaixada, puxando, pela asa, a escarradeira azul e
branca, “cuidado!”, é a madrinha falando, meio engasgada, outro
puxão do seu Anacleto e o flautista: que Santo Antônio te presenteie
com um especial maridinho, aconcheia a mão ao canto da boca e
cospe com todo acatamento. Como se cuspisse em mim, estremeceu a
D. Benigna agora com dor de cabeça, a pedir à Esmeridiana lhe
enxugue o rosto por ter as mãos ocupadas.
— Que a senhora está sentindo, madrinha?
[161] — Que que então te dói tanto, menina, que estás passando
tua dor pra mim?
Por que Zezé mais que depressa? Como coisa que o Maestro
fizesse de propósito ou a casa fosse dele... Não digo? E para agravo é
a vez do Zeqüenqüém de servir-se. O Maestro, pelo menos, foi
delicado. Agora esse-um escarrou foi grosso.
— Obrigado, Esmeridiana. Me põe por favor a chaleira no
fogo, sim?
O anão bate o rufo, atirando o osso da marreca no quintal. Ó
baile! — geme a D. Benigna acabando de fomentar e descobrindo
debaixo do consolo uma fila de formigas que sobe a parede.
— Ó Zezé, pequena, me acende um papel, me bota fogo
naqueles demônios, anda, aquela-menina!
Desce ao quintal, serve de chocolate os da terceira rua,debruça-se no parapeito do corredor, deseja fumar, uma e outra vez
por desfastio fuma. Tem de escaldar a escarradeira, um banho de
creolina. Saem os três carregadores para a esfola da vaca. Seu Dó, que
vai com eles, dando com o Secretário na janela:
— Seu Secretário, mais algum expediente? Por hoje me
dispensa? Então com sua licença.
— ... for hora me venham me buscar, vocês santíssima trindade
e olhem o meu bobó e o sebo pra isca. Fé em Deus que já esta semana
possozinho jogar mea unha n’água — lembra o Maestro na lenta voz
87
folioa. Sustentando cortesia, volta o Secretário a pedir a D. Benigna
para dançar. A dona da casa afeta espanto, embaraço, incredulidade.
— Só a sua paciência, Secretário. Gabar, não lhe gabo. Não lhe
gabo o gosto. Até que aprecio as pessoas caridosas.
Morde o beiço, demorando a decidir-se.
— O Secretário vai depois pensar que foi uma desfeita da dona
da casa — geme o seu Anacleto, pausando o seu gemido.
— Pois bem, só o instantinho de eu me preparar de novo, sim?
Não mostra pressa, o que estou é cansada, será que vai me dar
dor de barriga? Lava as mãos na bacia que [162] Zezé segura, põe o
vestido que Zezé abotoa atrás, com a ajuda da Esmeridiana faz o
cabelo — repara na chaleira, minha filha, por favor me cobre a
escarradeira com jornal velho, minha filha — empoa-se, vem que
vem num risonho contragosto, cheia de se isto já se viu, em idade já
não estou para semelhante proeza, ouve do Zeqüenqüém um não
apoiado e olha para o marido como a dizer: cada obrigação que tem
uma dona-de-casa, meu velho...
— Mas o bucho, mea velha, o bucho? Mandaste?
— Anos que o Maxico foi, rapaz! — a mulher ralha, franze a
testa, fazendo-se ainda magoada pelo que aconteceu à escarradeira e
agora o bucho, esta ameaça de cólica e ter de dançar com o moço, á
baile! ventarola na mão, o tartaruga no penteado, o colo um
travesseiro de renda e cetim. Maestro lasca. o chorinho, Zeqüenqüém
no violão, o anão no rufo, une-se o par. Pra sala, pede a dama, bem
baixo.
O Maestro volta a cuspir na escarradeira, e vem da sala, como
sufocada, a dona da casa. Fecha-se no quarto.
Alfredo na janela, palmebiche suado, e já a Zezé lhe entrega a
xícara de chocolate.
— É o epílogo, Maestro? — indaga alto o Zeqüenqüém, como
se tirasse a palavra do seu dente de ouro. O Maestro resmunga:
— Soltar o cabo, que tocar assim tão em seco,, deixa disso,
deixa disso... Assim não, meu camarado, deixa disso. Só toco mais
sentido, molhando a língua, meu gogó reclama, que me desculpe o
reumatismo. O Capitão me proibiu o bicho. Não fiz promessa. — E
alto:
— Bem, seu Anacleto, dona Benigna, rezei meu padre-nosso,
cumpri o regulado, não levando a mal o meu sopro, levanto
acampamento, licença, sim?
O Tabelião, na preguiçosa, ronca. D. Benigna, voltando da
cozinha, vai pedir só mais uma, engole o pedido, a mão gelada. Vê-se
embaixo do consolo espiando se ainda tem formiga, vai ao quarto,
apaga a vela no oratório. Que vem fazer no quarto que nem se
lembra? Corre para a cozinha, destampa a chaleira que lhe fumaçou o
rosto, sem sede bebe água. As duas moças de segunda apreciam o
chocolate, cruzando olhares malinos. Liliosa tira-não-tira na folhinha
da parede aquele dia morto. Voltando à sala [163] deserta, o
Secretário passa a vista nos livros do Cartório, com um apetite de
sumir naquele breu lá das mangueiras e ruínas, seja prudente, seja
sério, seja grave, tenha todo juízo, lembre-se que está na flor da idade
e vai lazer as vezes de Intendente, ouvido a bordo, da boca do doutor
com 38 e meio. Os magarefes, besuntados de sangue, fedendo a couro
e cachaça, entram e colocam o Maestro na cadeira.
— Mas primeiro ao menos provem do chocô, gente — troça a
Zezé. A dona da casa tenta acordar o marido. Os Três, que chocolate,
não. O Maestro:
— Esfola bem-bem molhada a de vocês, correu o xarope,
santíssima trindade, não foi? e nem pra se lembrarem do mano, aqui
de goela estorricada, foi, não foi? Estou por ver... O bobó, o sebo?
— E olhem, não se esqueçam de me devolver hoje mesmo a
cadeira, é só onde o Dr. Fidalgo se senta quando dá audiência — fala
o Tabelião amparado pela mulher. Alfredo se aproxima.
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— Ah, Secretário, com pureza d’alma não lhe desejo esta minha
moléstia, que está, só Deus sabe. Deus o livre. É um fogo no osso, um
fogo no osso. Mas, Benigna, e o Maxico? Os Três já voltaram da
esfola e o Maxico nem nada?
Vem chegando o Maxico.
— Seu Bensabá só entrega o bucho depois que levar a carne e
os miúdos pro Mercado. Que é da lei.
— Mas só agora é da lei?
— E manda dizer aqui pros três irem já-já levar a carne pro
Mercado. O bucho só no Mercado.
— Ordem do Capitão?
— Ordem do Capitão, não, que não lhe compete e sim aqui ao
Secretário, cuja competência vem de substituir o Intendente, está no
exercício — corrigiu Zeqüenqüém, oficial de justiça.
— Não estou no exercício.
— Para todos os efeitos, o atual Intendente é a sua
personalidade, meu caro amigo — insiste Zeqüenqüém, com todo o
dente de ouro de fora.
[164] — É sim — apóia timidamente a Liliosa, incerta ainda se
arranca da folhinha o dia morto.
Maxico explica:
— Birra do seu Bensabá. O que só sai da boca dele é a lei.
— E Sara? Inconsolável?
— Quer porque quer enterrar o bezerro no cemitério. A noite
inteira na cadeira de balanço.
— Na hora de carregar o santo, sa gente, decide-se o Nhoduca.
Os Três rodeiam a cadeira, o Maestro sentado.
— Me suspendam então no andor, meus devotos — ri o
Maestro, piscando para Alfredo que se despede. D. Benigna alisa o
ombro do marido.
— Aqui às ordens, Secretário. Desculpando. Que as faltas
foram muitas, me deixe me calar. Morrendo que estou por semelhante
baile!
— Uma bela noite, D. Benigna.
— ... souber noticia do doutor nos mande dizer pelo seu Dó.
Venha, venha uma noite conversar com o Anacleto, faz prazer. De
conta que foi um baile, Secretário, sim? Uma. noite, conversar com o
meu velho.
— Não faltará ocasião, D. Benigna.
D. Benigna, ventarola ao peito, amacia o ombro do marido, a
seu lado as duas moças fazem o maior respeito. Os três magarefes
levantam o Maestro sentado na cadeira como um ídolo. Zeqüenqüém
tira uma nota de despedida, luze o dente de ouro:
— Partir saudosamente. Penhorado, D. Benigna, seu Anacleto,
pela veleidade e honra de ter tangido o bronze neste sarau.
E faz um olhar pachola, tira outra nota, voltando-se para
Alfredo:
— Dá-nos o privilégio de vossa companhia, Secretário?
As duas moças levam a mão à. boca, correm para dentro.
— Olhe, Secretário, fala a D. Benigna — depois eu mando o
Maxico levar uma fatia de bolo para a senhora do Capitão, sim?
[165] — E um bule de chocolate — acrescenta o seu Anacleto,
na preguiçosa, ensaiando seus gemidos. Maxico, não te esquece, leva
de volta a cadeira do Juiz.
Atrás do ídolo, Alfredo, no palmebiche de Secretário, sozinho,
seguindo o ídolo, o ídolo no seu andor toca a flauta, Zeqüenqüém no
violão, anão no rufo. Os Três, bebidos, sustentam o ídolo.
D. Benigna, em casa, mais que depressa escalda a escarradeira,
põe creolina. Esmeridiana vai varrer a sala, seu Anacleto ralha, varrer
de noite não presta, não sabia ainda? Noite? pergunta a Zezé. Era urna
vez a noite, meu padrinho. Esmeridiana: então depois tiro o cisco do
baile. Nhá Eugênia, esta, quando foi, não se viu, botou-se pelos
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fundos; negra velha que é, só se aborrecer um dia do mundo o céu
chama ela para fazer comida lá. Liliosa cuida não ser vista no grupo
que saiu, tamanha hora na rua, apressa-se no rumo da 1875, com o
embrulho de doce, enrolando no dedo o dia morto da folhinha. O
remédio é passar mais do que depressa pelas Seruaias. Esta hora a
mãe está na terceira cachimbada.
— Fazendo a bela alvorada, não, Secretário? — fala o
Zeqüenqüém cessando de tocar, acendendo um palhaço. Alfredo, com
efeito, dá com o dia: nascendo do rio? da flauta? da desejada janela
que se abre de repente?
— A botija falou? Hoje?
Bi não com a cabeça fechando a janela. Alfredo corre para o
grupo, paletó no braço, o ídolo, no ombro dos Três, tocando, som de
flauta, solitário, remoto, no bojo do barranco, o Zeqüenqüém canta:
O que passou passou não volta mais
O que ficou ficou dores fatais.
Atrás, bigodudo, atarantado, suspensórios caldos, o velho
Bensabá:
— Mais depressa com o Maestro! Mais depressa! Olhe a carne
pro mercado!
Os Três baixam o andor na porta do Maestro, abre-se a janela, e
lenta, bem dormida, grandosa, a Mãe Velha, a Nhá Mãe. O ídolo, na
cadeira, lhe pede a bença, e o Zeqüenqüém e o anão e os Três.
Alfredo beija-lhe a mão e vem agachar-se numa pedra, dia claro, sim,
e só silêncio o rio [166] manda, aqui da Nhá Mãe, do sim que Bi fez
com o não na súbita janela.
Vão os Três buscar a carne e os miúdos, olhem ali o Maxico, e
de onde brotou o Escora-Canto? Já passeia na calçada, paletó e
gravata, o Coronel Cácio, eivém o Capitão a abotoar o dólmã e a pôr
o cinto, atrás o praça comendo abacate, o seu Dó exibe a chave do
Mercado, todos guardando silêncio que o rio exala, como aquela tarde
a bordo, tudo de boca fechada, agora muito mais, a Nhá Mãe na
janela. Mestre Parijó volta do fundo com a maré no ombro.
— A sua espera, tocou o rancho, o café, Secretário.
O Capitão? Assim um tanto brusco? Capitão dá meia-volta,
arranca em direção de casa, chamando o praça. Alfredo levanta-se,
paletó e gravata no braço, nó na garganta. O Maestro, na cadeira, à
porta da sua puxada, tinha adormecido, com a flauta ao peito, não
mais a Nhá Mãe na janela. Sentado no batente, um amarelinho,
cabeludo! espera que o barbeiro acorde. Alfredo lembra o Antônio, o
afilhado das boiúnas. Agora aqui do lado é o seu Dó:
— As ordens, Secretário. Manda abrir?
— Abrir?
— O Mercado, Secretário, estou com a chave.
Quer dizer mais: “Pra o que, já não sei, nesta ribanceira carne
quem que compra?” Quer mostrar serviço, e o Mercado aberto, é, faz
lá a sua figura com a calçada sobre o rio. Lá na frente detém-se o
Capitão, voltando ao encontro do Secretário.
— O Guerreiro nos mandou para o café um .pedaço de queijo
do seu gasto. Se bem andou, o Lobão chegando em Breves.
Seu Dó deixa-se ficar atrás para não ouvir a conversa entre duas
autoridades. Sempre escutou a palavra queijo. Queijo. Do Trapiche
aprecia aqueles queijos a bordo no jantar iluminado, ah.
— Leve a mal, não, aquele modo meu de há pouco, meio
brusco, Secretário. Não era com o senhor, não. Era comigo mesmo. É
a tarimba. Que até é cedo para o café. O senhor é mais menino, não,
para sujeitar-se a rigor do [167] horário. D. Benigna lhe deu a bacia
d’água para lavar o rosto?
Alfredo não sorri, o olhar no Coronel Cácio lá debaixo das
mangueiras, voltado para as bocas do Xingu.
— Mesmo o senhor — o Capitão fala alto — mesmo o senhor
vem do baile a que tinha, por protocolo, de comparecer e ficar durante
90
a noite em nome do Intendente, do seu, do meu, pelo que lhe
agradeço. O praça deu plantão?
— O praça no seu posto, sim, Capitão. Perfeita ordem pública...
— Fazendo troça, Secretário?
— Cheguei do baile, Capitão.
— Confesso que prefiro voltar quanto antes a Belém.
— Compreendo.
Na hora da injeção no seu Anacleto, explico a ele a minha
ausência do baile. Sim que estive lã aquele momento, dei caça ao
músico e foi que a febre do doutor... De volta do Trapiche e da vaca, e
das palavras de consolo que quis dar à menina do Bensabá, encontrei
minha senhora não muito bem.
— Febre, Capitão?
O Capitão deu dois passos:
— Vou-me que deixei a seringa fervendo. Tempo tem para o
café.
Rangem as perneiras do Capitão. Seu Dó se aproxima:
— O senhor determina, Secretário?
— O que determino?
— O Mercado, Secretário.
— Também porteiro do Mercado?
— Várias chaves do Município debaixo da minha guarda,
Secretário. O Mercado, administro mas sem emolumentos. Um dia
por mês vou lá, abro, faço uma varrição, deixo que uns conversem um
pouco lá dentro, mesmo pode passar um navio e de lá de bordo
digam: Movimento no Mercado, movimento no Mercado. É sempre
unia ilusão, que o senhor acha? Tenho a chave do Gasômetro, a chave
daquele cemitério... Acha que posso acumular? Bem que o Intendente
podia baixar uma portaria fazendo ver que [168] essas chaves estão
debaixo da minha guarda, que o senhor acha, Secretário?
— Faz parte, sim, da sua folha de serviço. Logo que
desinterromper o Telégrafo, mando um cabo ao doutor nesse sentido,
seu Dó.
— É uma atenção de sua parte, Secretário.
Alfredo indaga da maré, quer um mergulho, quando será sua
febre? Precisa rápido do dente de jacaré. Pega das mãos do seu Dó a
chave enferrujada; devolve-lhe. Seguir para Manaus? Terá chegado
ao lago o Tio, arpoa o peixe e desce, com o encantado na salmoura?
Esse-um, o Capitão, quem é? E Ei, logo mais, à noite, segundo a botija. A porta da frente aberta, porta larga, larga, no quarto dos fundos
dorme o casal, Capitão e capitoa, seja grave, seja sério, tenha todo
juízo... Seu primeiro ato público de Secretário: Manda o seu Dó abrir
o Mercado para a carne do seu Bensabá. Os outros atos, como o
desembarque, visita aos três cemitérios (não se empossou diante da
roseira?), o jantar, busca do Maestro, bota-fora do Intendente, o valsar
com a D. Benigna entre os autos do Cartório, o ajuste com a Bi, não
tinham sido próprios de Secretário, embora não mais o escova-urubu
de Belém, jogado no curral do Boi pela Fada; foi do Rio cuspido.
Aqui desembarcou, anoitece, amanhece, quebrando o palmebiche.
Tira do bolso o bilhete a lápis de Roberta e o Ginásio perdido. “Pra
sala”, aquela voz baixa, “pra sala”, e o mais, toque da flauta, certas
ocasiões pungente, valsava ao som da flauta ou ao gemido do
Tabelião?
— O Bensabá jurou por Deus que tem de cumprir a postura
municipal.
De novo o Capitão. Tinha voltado para só dizer isso? O Porteiro
se afasta.
— Cabe a você, meu filho, decidir...
— Seu parecer, Capitão?
Capitão repuxa o dólmã, observa o tempo, traça uns círculos no
ar.
91
— No meu parecer, sem que me meta na sua atribuição,
pondero, Secretário, que isso vai suscetibilizar o Guerreiro. Guerreiro
alega que o Bensabá só faz isso por pinima e você bem sabe, um dos
motivos do rompimento entre o Guerreiro e os homens da
administração passada foi a [169] questão do talho público. Imposto
por imposto, o Guerreiro concorda, paga, sem ser preciso levar carne
ou peixe no Mercado. Sugira isso ao Bensabá. Ele faz questão de
pagar o imposto? Pois pague, com a carne em casa e pronto. Estive
agora mesmo com o Guerreiro. Ele, embrulhando o queijo, verberou a
idéia do Bensabá. Abre um precedente, diz, abre um precedente.
— Que é que diz a lei, Capitão? O doutor lhe deixou a lei?
Onde a lei?
— Carne no Mercado é carne ao Juiz, ao Promotor, aos figurões
da Justiça e das Rendas Públicas, tudo no beiço. Em casa a carne dá
menos na vista, Secretário.
— Se o Bensabá sabendo disso, por que teima levar a carne ao
Mercado?
— Não descubro o ardil. Acirrar o Guerreiro?
— O doutor não lhe deixou uma lei? Nem um exemplar?
— Conheço a lei, não, Secretário. Me resta lembrar que a vaca
não foi abatida voluntariamente. O pardieiro que lhe servia de
estábulo caiu-lhe em cima. Nos fornecia leite. Foi o diabo. Sara, a
menina, de olhos marejados. Os desabamentos não param. Ou será
um fenômeno sísmico, qualquer óbice no subsolo que faz estremecer
os alicerces? Vou ter tempo de averiguar a ocorrência. Enfim,
Secretário, o Mercado está nas suas mãos.
— O bezerro, a dona quer sepultar com funerais de anjinho? A
dona Lodo tempo na cadeira de embalo?
O Capitão desaperta o cinto, sorrindo. Uma palmada nas costas
do Secretário:
— Ah, meus vinte anos, Secretário! Zombe, não, no sentir
alheio, zombe, não. Tudo aquilo da moça muito a recomenda. Vi o
seu estado na cadeira de embalo. Que por sinal linda judia. Receiteilhe água carmelitana.
— Então um momento, Capitão. Tenho de ir já na Intendência
ver a lei.
— Sim, pelo arquivo, pelas gavetas da Secretaria. É. O Bensabá
quer seguir a lei ao pé da letra. Vá ver a letra. Se vexe, não, que
tempo dá para o café, Secretário. Louvo-lhe o zelo. Mas vamos ter
depois que conversar com o Guerreiro.
[170]— Capitão, é o meu primeiro ato de Secretário...
— Espero-lhe no café, com o pedaço de queijo. Quer o
ordenança?
O Capitão apressa-se, chamando o ordenança; batendo a rua, 6
praça! 6 praça!
Alfredo pega no braço do Porteiro:
— Vamos, seu Dó. Deixe o Capitão ir atrás do praça. Tem a
chave? Já viu alguma lei, por acaso, lá na Intendência?
Seu Dó baixa a cabeça puxando pela memória, coça-se,
apertando os olhos de coruja.
Topam no caminho com o Cristo Seu Seruaia. Tira o velho
carnaúba salvando o Secretário.
— Seu Seruaia, logo mais me dê um pulo no Mercado que lá
tem um meio quilinho da vaca para o senhor.
Cristo Seu Seruaia pára, o olho grande, amassando o carnaúba
com as duas mãos. Já o seu Dó batalha para abrir a porta da
Intendência.
Alfredo acode:
— Não precisa chave, seu Dó. Pode-se entrar pelos buracos.
— Do meu dever entrar pela. porta, Secretário. Seu Dó
consegue abrir. Alfredo hesita. Aqueles figurões na parede, coitados,
os dois sofás de palhinha furada, o relógio sem ponteiro com a tripa
de fora, seis sombrias escarradeiras, o pano verde se delindo sobre a
92
mesa das solenidades. Seu Dó desce da tribuna de degraus rachados,
trazendo a bandeira.
— Posso içar, Secretário?
— À vontade, meu patriota. O mastro agüenta? Mas também a
bandeira...
Rota, desbotada, o seu Dó desdobra, pano e porteiro tão
parecidos. Alfredo se lembra das cores de que falava a D. Benigna.
— Fale com a D. Benigna que ela cerze.
Seu Dó parece ofendido, talvez por isso se encha de brio
catando a lei no outrora arquivo, tear das aranhas, mina de cupim e
traça, papelada no ladrilho. Esta armação de bombo, aqui por quê?
Aqueles foguetes, de que [171] festa? Foge barata por entre Diários
Oficiais. Um pé de capim. Aí no forro é o reino dos morcegos, olha! a
centopéia; extintos bicos de gás; o cofre, pesadão — o cofre, sim,
mentiram para o Intendente — faz pilhéria com a sua presença. De
perna partida a banca do Secretário. O rosto de bandeirinhas cívicas,
roídas pelo rato, no cesto sem fundo. Ali no lixo irremovível, a
República: com um rasgão no seio, despenca da moldura.
— Mas me abra as janelas, seu Dó.
Alfredo vê é a janela de Ei que lhe promete logo mais, esta
noite, meia-noite, o repouso do Secretário.
— Aí do lado é o Gabinete do Intendente?
— É a Cadeia, Secretário. Rodeie lá por fora que está aberta.
— Também guarda a chave?
— O filho do Coronel Cácio era com ela dia e noite. No que
soube do novo Intendente, me entregou a chave. Veio o Capitão, me
tirou.
Alfredo entra: dois chãos imundos, de tijolo, grossas paredes
descascadas, caroços de abacate. Atrás o mato arma um pulo pelo
telhado a espiar pelas grades.
— Bem, seu Dó, lei o rato comeu, nem sombra, encerrado o
expediente, feche o paço.
Com a velha bandeira na mão, seu Dó permanece escorado na
parede, o bigode sarrento, cada vez mais tão olho de coruja, fitando
através das grades o Secretário.
Me olha como um encarcerado, sente Alfredo, esfregando as
mãos, batendo as mãos, soprando as mãos. Dá com o Gasômetro
defronte, meio comido pela capoeira. Deseja urgentemente a noite de
Manaus, aquele mar da Bahia ao pé da aleijadinha lhe dando o
travesseiro, ou Manaus. Terá de enxugar com a velha bandeira aquela
aflição do seu D6. Em que dá a Secretária. E lá na serra o Tio? Com o
peixe no arpão, o peixe no moquém?
— Tranque, seu Dó, ou faça de conta que fecha a chave. Vá. Vá
abrir o Mercado.
— Venha, D. Almerinda, por obséquio.
A cabeceira da mesa, passando manteiga na rosca, o Capitão.
Alfredo, liberto do palmebiche, refeito com o mergulho no rio, espera
a senhora.
[172] — Aqui à esquerda, Secretário. Mergulhou? Não lhe
aconselho, não. Tome mas não desça do degrau maré enchendo. Inda
ontem acudi um ferroado de arraia. A medicamentação que tenho para
picada de arraia evita tranchã a infecção, receita de minha cabeça,
meu uso exclusivo. Mande depois uma comunicação para a Escola de
Farmácia.
D. Almerinda demora-se. O Capitão vai ao quarto, volta
sozinho, dá uma espiada no rio, senta-se à mesa.
— Então a praia, Secretário? Verificou a argila, o teor, a pedra.
Ó D. Almerinda!
O Capitão faz dois furos na lata de leite.
— Condensado, meu amigo. A nossa vaca foi morrer... É, esta
ribanceira sacode-se, penso, tanto desabamento! De bom alvitre
demolir as casas que constituam risco.
— Verba, Capitão?
— Um trabalho de boa vontade, um putirum do povo.
93
— A não ser que a Recebedoria de Rendas suspenda a cobrança
do óbolo ao Papa, a percentagem do Procurador, a Caixa do PRF, a
propaganda do Município.
— Vamos ao sério, meu caro. Acha que a ribanceira está
montada numa rocha, de ferro? Crê que aqui se esconde uma, jázida?
O Capitão repete jázida, com garbo militar, confessa que a
geologia é o seu fraco, sempre ia ver os quartazos [sic] no Museu
Goeldi.
— Nada pra mim como a identificação dos solos. O corte
vertical das camadas do nosso planeta, o nosso Cosmos interior, já leu
o Júlio Verne? Ah, ir lá embaixo, ao centro do Orbe! O subterrâneo é
que me atrai, o sideral, não. Sirva-se de mais leite, Secretário.
Almerinda, minha. filha, vens não? Queres que te traga no colo, filha?
— O senhor é assim um oficial telúrico, como dizia o meu
professor de Geografia.
— Telúrico? Telúrico? Isto mesmo, exatamente, o termo exato
— confirma o Capitão, surpreendido.
— Por exemplo, a petrificaçâo imemorial deste barranco, pois
tudo aqui foi madeira, foi floresta. Demorasse eu aqui mais tempo e
acabaria localizando o teor vulcânico ou a fervura a tanto de
profundidade. Os sedimentos a [173] estudar, os fósseis a descobrir!
Acredita que habitamos num aluvião? Que ainda estamos no
quaternário? Que o Amazonas desfalca a planície... quer dizer,
empurra, dá de graça o nosso barro lá para a costa da Flórida? Ó D.
Almerinda!
Capitão puxa o revólver, põe a arma no aparador.
— Atira?
— Não — responde o Secretário, pensando em Bi, o ajuste na
alcova, esta noite e, de repente, sobre os dois na rede, o cano desse
revólver.
O Capitão senta-se, baixa a voz:
— Mas o doutorzinho, o nosso, hein, Secretário? Fina pessoa,
com uma educação de moça e de repente jogado neste entulho.
Quando desembarcou e foi vendo, fez-se pálido, desabou na rede
como se tivesse levado bordoada. Veio como um anjo. Foi uma
crueldade, sim. Aquela gente de Palácio! Aquela gente de Palácio!
— Capitão, correu que o senhor ia ser convidado para
Ajudante-de-Ordens do Governador do Estado.
— Quem sou eu, Secretário, quem sou eu, onde os meus
padrinhos? Vi, uma vez, na vitrina de uma livraria, um livro com este
titulo: O Culto da Incompetência. Tirei logo as minhas conclusões.
Não preciso explicar-me para logo entender-me. Aquela gente de
Palácio! Aquela gente de Palácio!
Levanta-se, fica em posição de sentido, ao parapeito, como para
comprovar que daria mesmo um bem talhado Ajudante-de-Ordens,
vem, senta-se, como tomado de uma vertigem.
— Fiz-lhe ver, ao doutor... Lá em Belém, ao convidar-me para
esta comissão, fui leal. Minhas informações aqui do Município eram
fidedignas. Fiz-lhe ver. Que nada! Estava animado, animadíssimo,
estalando os dedos, de que ia fazer isto, fazer aquilo.., mais que me
ouvisse falar do estado real do Município, não ia nunca supor.
Aqueles 38 e meio dele foi-foi pânico.
— Pegou a doença, Capitão. Também corremos risco, nós.
— O quinino para aquela febre do doutor é a cidade, meu
amigo. A medicação? Belém. Pode exercer de lá, é o remédio. Tem
ainda as obrigações de Promotor Público, [174] parece não renunciar
a uma cadeira de Português no Ginásio e precisa ganhar mais
intimidade em Palácio, até que apareça uma vaga, como a de
Procurador Geral do Estado. Não censuro o doutor. Tu não vens,
Almerinda?
Traz a mulher pelo braço e a faz sentar defronte de Alfredo. Ela
nem bom-dia, um vago cumprimento, o peito para dentro, os olhos
descidos, cabelo sarará, um quanto bicuda, beiço pulado.
94
— Mais leite, minha filha?
Servindo o Secretário e a senhora que não se fitam, ambos em
silêncio.
— Sara na cadeira de embalo, só se embalando, se embalando,
Secretário. Parecia de sobrancelha em pé. Sobrancelhuda,
sobrancelhuda, toda porco-espinho. Enterrar o bezerro! Impossível
dissuadi-la. E você, Secretário, quando voltava da Intendência chegou
desfigurado. Revolveu o monturo e acabou sem lei. Sem o
palimpsesto. Aquilo só a fogo. Mais leite, Almerinda, minha filha.
D. Almerinda os olhos na xícara, guardando a boca na palma da
mão. O Capitão levanta-se, segura-lhe o ombro, inclina-se sobre o
ombro da D. Almerinda, vira a lata de leite na xícara.
— Veja quando chega. Chega?
Pega-lhe o queixo, olha bem nos olhos dela, D. Almerinda de
pau. Batem palmas lá fora.
— Entra! — grita o Capitão num desabafo, passando o dedo na
tampa do leite, lambeu.
— Entra!
É a Zezé com a fatia de bolo para a D. Almerinda, o bule de
chocolate para o Capitão e para o Secretário dois ovos.
— Os ovos, Secretário, quem lhe mandou não deu o nome.
— Permite, Capitão, que ofereça a D. Almerinda?
O Capitão, festivo, abre os braços, ora, ora, Secretário!
— Mas aceite, D. Almerinda, agradeça.
D. Almerinda se resmunga não se sabe, crava os olhos na
parede, não quer do bolo nem do chocolate.
[175] — Pão de trigo, minha flor, tem não, que a maldição do
padre também caiu sobre os padeiros. O padeiro que aqui vivia virou
pajé, passou a mundiar as moças no seu refúgio do Itaperera, consta
que o Mestre Parijó fez o rival embarcar num casco com duas
garrafas de cachaça, alagou-se. Uma e outra vez o Bensabá acende o
forno e fábrica este e aquele pão azedo. Temos de roer as roscas da
barrica do Guerreiro. Resta-nos este queijo. Prova da xícara da
mulher:
— Mas amargo o teu café, filhota! Amargo, amargo. Adoce
mais. Licença, eu adoço. Seu organismo está carente de sacarose,
minha filha. Ah, D. Almerinda, as prescrições, as prescrições, minha
filha!
Alfredo: Amargo? Mas o leite condensado? Amargo? Que está
se passando? Fazendo um pigarro, o Capitão vai ao parapeito. D.
Almerinda e Secretário à mesa, um defronte do outro, ele querendo
quebrar o gelo, ela inquebrável.
— D. Almerinda — falou de lá o Capitão lá vai pelo canal de
fora um cargueiro para Manaus. Para Manaus, D. Almerinda.
Alfredo, como distraído:
— Manaus?
O Capitão, costas para a mesa, atento ao rio, assobiando. Virase para os dois:
— Aqueles espelhões no jantar, aqueles espelhões! D.
Almerinda, vá estalar os dois ovos para o moço.
O Secretário, que não, basta o queijo, o bolo, o chocolate, a
rosca da barrica, vai levantar-se.
— Já? Só? Não acha, D. Almerinda? Que é isso? As emoções
do baile? Ó Zezé!
Zezé de chinela, mão na cintura, o beiço zombeteiro.
— Leve os dois ovos, me faça na manteiga aqui para o
Secretário, minha filha.
— Não, Capitão. É de D. Almerinda. Da senhora, D. Almerinda.
— Ouvindo, D. Almerinda? O moço sustenta a palavra.
Ouvindo?
Dura na cadeira, D. Almerinda não tira os olhos da parede.
[176] — Minha filha, temos um programa social a cumprir,
visita no Guerreiro, ao Coronel Cácio — e as iguarias de ontem, hein,
95
Secretário? Só de ver fartei-me. Não lhe pareceu fantasmático? E o
senhor com a filha, a do escarcéu, dançou? É, D. Almerinda. Toda
uma tarde para as visitas, não é, minha filha?
Ela nem sim nem não, guardada na torre.
Batem lá na frente.
Dois do rio Moju, um carrega o cacho de banana, outro o
embrulho debaixo do braço.
— Zezé, minha santinha, um café pros visitantes.
Depois de ouvi-los, olhando documentos, o Capitão leva o
cacho para a despensa. De volta, os olhos na mulher, que se debruça
no parapeito, agarrada ao rio, louva as bananas.
— Pesa-me não conhecer da queixa, não dar andamento a
qualquer diligência conquanto que o caso já foi concluído por
sentença do Juiz de Direito da Comarca, a mais alta instância da
Justiça neste Município. A ação seguiu os trâmites. A rigor, tivesse eu
de usar as minhas atribuições, o que cabia no caso, como autoridade
mantenedora, só era garantir a execução da sentença.
— Mas, Capitão, direito é que o nosso plantio, a moradia, as
fruteiras, as benfeitorias... Já que o senhor é a nova autoridade, vim
aqui me pegar com o senhor. Tudo isso fica assim, Capitão?
— Fica, fica, fica assim, sim, pois tudo foi pela vara da lei. O
proprietário, que reclamou a posse, reclamou o que era dele, por força
de escritura. Agora me diz o senhor: ele não tem precisão da posse,
que terra tem demais, tem um rio inteiro e tantas bocas de igarapé, é
tudo dele, sim, sim, aí a lei é omissa, cessa a minha atribuição.
O Capitão olha para D. Almerinda. Vai à mesa do aparador,
toca na arma, toca nos ovos, vira-se com um ar solidário;
— Chorem ao Juiz. Já foram? Já foram no Juiz? Chorem ao
Juiz.
— O Juiz, Capitão?
— Pelo menos as benfeitorias.., O Juiz, sim. D. Almerinda,
recolha-se um pouquinho, minha filha, o Juiz, sim.
[177] — O Juiz, Capitão, é carne e osso com a parte contrária,
comendo do bom e do melhor quando passa lá, lá despachou. Sai de
lá com o bote carregado.
O Capitão ergueu a mão:
— Ai, ai, ai, ai! Dando murro em ponta de faca, não, em ponta
de faca, não! Juiz é Juiz. Vá o fraco se ombrear com o forte. Vocês
são fracos.
Os dois se despedem. O Capitão volta abrindo os braços, que se
há de fazer? que se há de fazer? tira do copo o botão de rosa, enfia no
cabelo da mulher. Esta, ao parapeito, olhando o rio. O Capitão apanha
o revólver, atira. Traz da praia o urubu morto.
— Diabo que está bem magro.
D. Almerinda não se move. O Capitão deixa o urubu na
cozinha.
— D. Zezé, minha filha, quando vier o praça, que ele me leve
esse bicho para o Mestre Parijó. Sangue de urubu cura impingem.
Puxa o relógio.
— Secretário, tenho de fazer um curativo bruto, quer ver?
Desvira a mulher do rio.
— Filha, por misericórdia, acate as prescrições. Me faça, me
faça as vontades. O ar do rio bem não lhe faz, não. Só um pouquinho
de repouso. Vou armar sua rede.
Novas palmas, um recado do seu Guerreiro ao Secretário: para
jantar. Se puder, esta horinha, um café na casa dele.
— Vá, Secretário. Convém Ir, convém. Se nem a lei você achou
no palheiro? Birra do velho Bensabá? Pois não podemos com essa
birrinha dar margem a um acirramento de ânimos? Aconselhável que
vá. Custa?
— Aceito o jantar. O café, agora, não. Vamos ao curativo.
— Bem, não vai ao café, paciência, fica por conta de sua Idade.
O caso a. que vou, pela descrição que me fizeram, já sei a terapêutica.
Vou queimar o bicho. Vou aparelhado.
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O Capitão vai à despensa atrás da mulher, cochicham, bate a
bota, bate a porta, quebra-se um copo, cochicham, [178] cochicham.
Alfredo, na alcova, vê o revólver no aparador, o botão de rosa no
cabelo da senhora, o olhar dos despejados, o Capitão subindo da praia
com o urubu morto.
Tira a rede da mala, atou. Sem varandas mas tão cheirando a
lavada, a desvelo da D. Dudu: Desencardiu a rede a sabugo de milho
e folha de vindicá, secou na corda atrás da barraca entre os
passarinhos, passou a ferro num passar paciente, sua secura já não me
engana, tia torta. Limpa. Limpa para logo mais, a embeber-se de
jasmim, cumaru e loção, ou é temeridade? ... sério, seja grave, tenha
todo juízo, a todos declarei que você era mesmo que meu filho, de
bons costumes, ainda verde na, prática do mundo, rapaz ilibado, de
tudo isso fiz ciente aos Bensabás, ao Juiz, ao Coletor Federal,
Guerreiro, Promotor, Capitão. Ao Capitão. Desata a rede. Sai de lá
com o bote carregado. O palmebiche, guarda no armário velho. O tiro
no urubu, bate a bota, bate a Porta, o copo quebra. Atirar em urubu
azara a anua. Um rio inteiro, com tantas bocas de igarapé, fechado na
mão. O Capitão pendura na viga da cozinha o cacho de banana. Lá
dos fundos, do quarto do casal, se ouve rumor na alcova? Buliu com a
pedra, o lacrau salta.
Dá com a Zezé no corredor, varrendo.
— Uma varridinha lá na alcova, sim?
— Quero um particular com o senhor. Agora, não, daqui um
pouquinho.
Na calçada, o Capitão, cabeleira alta, a fala branda, o beiço
mau.
Casarão adentro, meio destelhado, saltando caibros caídos,
montes de telha, para na cozinha onde, numa esteira, embrulhada num
lençol sujo, está a paciente. Num tamborete ao pé do fogareiro de
barro, aquele velho mameluco, sem camisa, enrola o cigarrinho.
— Já morreu? — graceja o Capitão, descobrindo o rosto da
moça: aqueles olhos saltados, bem escuros, a boca treme, os cabelos
espalham-se na esteira.
— O pai dela?
O velho levanta-se, o olho vazado, dente de jacaré no pescoço,
atrás da orelha o outro cigarrinho, no cinto a faca de migar, a calça
esburacada no joelho. Esfrega pé no pé, esconde o cigarrinho na
palma da mão.
[179] — Sou só tio, Capitão. Eu que trouxe ela, mea sobrinha.
Olhe que de lá duas marés a bem remar, Capitão.
— Do Munituba?
— Do Munituba.
— Derrubam madeira lá? Madeira?
— Andiroba e macacaúba, Capitão. Semana passada o vapor
carregou.
— Por que não chamou o Mestre?
— Chamar, nós quis chamar, mas porém...
— Receio Infundado, receio infundado, andam espalhando
boatos. Por mim, que não, o Mestre tem carta branca, não sou eu que
vá coibir, a ordem pública muda, os mistérios do mundo, não. Agora
mesmo abati um urubu — não foi, Secretário? — para o Mestre tirar a
banha.
O olhar da moça, na esteira, se escurece fundo no Secretário. O
Capitão inclina-se:
— E aí a senhorinha? Vamos, moça, vamos ver o aspecto.
A moça, de olho mais escuro, a boca treme.
— Moça de Munituba. Andiroba e macacaúba, não? Pelo que o
praça me falou... Como que com esse rosto de pintura, tão... Não é,
Secretário?
Alfredo só tem espanto para os olhos da moça que não se
desembrulha, muda, os olhos saltados, mexe-se e brota um ombro,
alvo ombro um instante, os olhos saltados, a boca torcida. Alfredo se
97
lembra daquela prima do seu Dó, criada no limo da maré, voltando do
fundo. O Capitão abre a maleta, drogas, algodão, gaze, a pinça,
destampa o vidro.
— Vamos, filha, se desembrulhe, tenha vexame, não. Que Isto
aqui é um cautério mas salva, cresta a infecção. Doer não vou mentir
que não dói, dói que gritar pode, à vontade, solte o peito mas vou
secar o Cão. Seco o Cão. Moléstia, do tempo ou do pecado, pegada
sem culpa ou por luxúria, obra de Deus não é, do Cão, sim. Este
medicamento meu é ferro em brasa mas sara. Que pulveriza o Cão,
pulveriza. Reze, minha filha, para tudo ser bem sucedido. Se pegue
com o São Benedito, com a Santa Maria Madalena.
[180] — Com a Santa Maria Madalena, é, sim, com a Santa
Maria Madalena — repete o velho, com o sinal-da-cruz, a outra mão
no dente de jacaré.
O Capitão arrasta o tamborete, tira o dólmã, arregaça as mangas
da camisa, apanha a gaze, tudo Isso com excitação, um tanto
satisfeito.
— Aqui sou um sacerdote, criatura de Deus, mesmo que seu
pai, tem pai, não? Chore, não, chore, não, é só pra seu bem, tão moça,
oh, mundo! rosto que nem parece, o rosto dá a idade que tem mesmo,
não é, Secretário?
Alfredo, pare de falar, homem, comece, Capitão. O Capitão
colhe o lençol, a doente repuxa, se cobre toda, pula o cabelo, os olhos
mais escuros mais acesos, o Capitão agarra-lhe o braço:
— Se não adeus, minha filha, serás destruída, desditosa, vá,
descruze, me deixe, vá rezando, vá, descubra, descubra.
Alfredo foge casarão fora debaixo dos gritos. Um rosto de
pintura? Para seu bem, desditosa. Já na rua e os berros de sempre,
sustente aqui, Secretário, e o senhor aí que é o tio, seguro, vire o
rosto, mas segure.
Apontando para o casarão, o soldado, no meio da rua, se ri.
Alfredo lhe faz sinal que se cale. Para seu bem, desditosa, o podre aí
faz ninho, de pintura o rosto? Passa o Escora-Canto:
— Que há de novo? Que há de novo?
— Surdo?
— Os gritos? Carregação da braba. Toda a carregação? Deus o
livre, Secretário.
Cessam, como se o rio os recolhesse. Seu bem, desditosa, os
olhos mais molhados mais escuros os gritos. Lembra aqueles lá no
túnel do Rio de Janeiro. Por que pensa também em Luciana, a
desabençoada? Em Luciana nos seus secretos atoleiros.
Espera, indo vindo na calçada. Lá embaixo e ao largo, plena
manhã, o rio muda suas tintas.
O Capitão sai, com a maleta, a caminho do Cartório.
— Já levou o bicho na casa do Mestre? — Indaga do praça, que
sal correndo.
[181] Alfredo volta ao casarão, entra vagaroso, pisa no caco de
telha, salta um sapo. O velho acende no fogareiro o cigarrinho.
Alfredo Inclina-se sobre a esteira: como desfalecida, mas tão viva a
vela do pescoço, fedor do remédio ou do ninho ou de todos nós.
Junta-lhe os cabelos, enxuga-lhe o rosto, imune, Intacto, carne, suor e
sua Idade, liberto do lençol e do que o lençol oculta.
E deu aquele seu repente, bate nos Bensabás, ali mais à mão.
Surge um rosto espichado, tamanho olhar de pasmo:
— Desculpando... mas a senhora tem um travesseiro velho que
não lhe sirva mais, que não precise...
— Travesseiro? Pois não, Secretário, mas entre...
— Travesseiro, sim.
— Mas, entre, Dor favor, Secretário. Eu e Santa estamos lhe
devendo uma visita. E o baile, por Deus. Sara não queria fazer
desfeita, geniosidade do meu filho. Ele desculpou-se no Trapiche?
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Como foi que o Mestre errou o rumo, ah, aqueles Três, aqueles Três!
Juro por Deus, o que há de dizer de nós o doutor, o senhor, o Capitão.
E tudo que ainda nos aconteceu esta noite, a nossa vaca... O senhor
releve.
— Travesseiro já sem uso, que não sirva mais.
— Pois não, Secretário, pois não, como não entra, assim com
tanta pressa, um, sei que lhe arranjo, pois não, Secretário.
De volta do casarão, até ao Fortim andou, daqueles gritos
sobrecarregado. No bolso o lenço, uma verônica, pobres canhões
neste piche. AI na igreja defronte o baleado Santo Antônio mais
lívido, lá atrás na casa de 1875 o Sede de Justiça carrega de novas
provas o libelo, e nem sono nem coisa nenhuma e como vai custar vir
a. noite! lá eivém o seu Dó chamando e o Capitão e o praça, vamos ao
Mercado.
— Aqui estou pra cumprir a lei, Capitão.
O velho Bensabá, com seu gorro marroquino. A vaca morta, a
filha chorando, a carne da vaca no Mercado. Consolar a filha é que é.
A filha? Ninguém arranca ela da cadeira de embalo, se embalando, se
embalando. Pelo menos naquele embalo desesperado, não dorme.
— Coração da minha filha, Secretário! Que se há de fazer,
Capitão. Coração da minha filha!
[182] — Benfazeja a família que formou tal coração, diz o
Prefeito de Policia abraçando o velho Bensabá.
Coração da minha filha, coração da minha filha. Salta da, filha
para os preços da borracha, fala da casa caindo em cima da vaca, da
carne no Mercado sob protesto do seu Guerreiro. Tudo é à conta de
sua habitual amargura, ou da constante ansiedade de que irrompa o
telegrama da Casa Aviadora: preço subiu cotação firme peça
aviamento. Tanto que, no meio das providências da carne, consolo à
filha e agora entender-se com as autoridades e com a D. Benigna a
propósito do baile, o velho Bensabá continua indagando: E o Vaique?
E o Vaique? O Vicking, da Amazon Telegraph, que conserta os
cabos. Com a linha interrompida, maior o desassossego do velho,
mais alto o muro entre a sua esperança e a cotação da borracha nos
mercados do mundo.
— Ela exige caixão para o bezerro? — indaga Alfredo sem
malícia. O velho lhe segura a mão:
— Me agredite! Me agredite! Acabou aceitando que vá num
lençol dela, o bichinho amortalhado. Coração na minha filha,
Secretário!
Leva no Cocho, vai dizer Alfredo mas se emenda:
— Então num carrinho de mão. O senhor tem? Um carrinho de
mão?
O Capitão.:
— Proponho quintal, debaixo do assoalho, debaixo do
pedregulho na praia, pode daqui a mil anos tornar-se fóssil.
Cemitério, não, não me parece lícito, é privativo dos defuntos, filhos
de Deus ali sepultados. E aqui de cima que- dirão os vivos?
— Filhos de Deus por filhos de Deus...
O Capitão faz sinal a Alfredo pedindo prudência e põe a mão no
ombro do comerciante:
— Sentimentos de moça. Animais entram no âmbito da família.
É quando se está na flor da vida! Sobremodo. Sendo que vocês, filhos
de Israel, sentem mais a fundo as adversidades.
— Coração da minha filha! Sai a avó, sai a avó!
— Faz questão de acompanhar o enterro?
[183] — Consente ficar na cadeira de embalo, contanto que o
bezerro tenha sepultura conveniente. Pelo menos lhe tira o sono.
— Levem no carrinho. Tem carrinho de mão, seu Bensabá?
— O meu quebrou a roda, conte os anos, Secretário. Conserto já
não tem, me diz o ferreiro. Só me sobra aquela enxada que cedi para a
capina dos cemitérios. Nada para o ferreiro tem conserto, nem mesmo
a filha dele. Estava no pomposo baile, eu e os mais, quando se ouviu
aquele apito. Foi feio. Trazia a noticia.
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Aqueles outros apitos que sim. Borracha a 13, casa sortida, os
trapiches no chega-e-sai dos gaiolas.
— Mas aquele apito? Trago comigo. Vai me pondo surdo.
O carrinho quebrou-se todo, já lá pela praia, assento de urubu.
O Guerreiro tem o dele ainda mas desconfio que não nos ceda e pelo
que sei está de tromba comigo.
Alfredo que não, a carne vai ser talhada em paz, mande a seu
Guerreiro uma boa pesada.
— E eu que mato uma mosca, Secretário! Uma mosca! Ah, me
agarro é com Deus e meus semelhantes neste nosso Município para
acabar com a tromba um com outro, me agredite. Eu o primeiro a
pegar com as duas mãos o ramo de oliveira que o novo Intendente nos
oferece. O Intendente jogou dama comigo. Por Deus, me agredite. A
gente pode, os dois, Guerreiro e eu, que coitados negociamos, que
sobramos da calamidade, cada um no seu fecha-e-abre todo o dia,
viver conforme a lei e os mandamentos e esperar um dia, quem sabe
lá um dia... Vendo aquele pardieiro? Era o Hotel, meu amigo, era o
Hotel. Agora hospeda morcego, cobra e capim. Ah, ingleses!
Seu Bensabá ergue as mãos para o céu, titubeando.
— Pois me agredite, do mundo lá fora, que mal sei, pois vim
rapazinho de Marrocos, ainda espero uni sinal, ainda espero, custa tão
pouco ao mundo nos mandar um sinal! Já não quero um assim deste
tamanho, como foi, como era, mas uns oito ou dez, mercado firme...
Ah, Secretário. Um preçozinho e havia de ver como se trabalhava!
[184] Seu Bensabá, braços abertos, suspensórios caldos, agarra
o punho de Alfredo; nisto o estrondo, desaba uma parede, um poeiral,
onde morou o solicitador Serafim.
— Malquerença enxota a boa noticia. Um se aborrece com o
outro, nesta cidade, faz cair casa, mata mais vaca, derruba o Trapiche,
acaba nos tirado o Telégrafo. Deus nos mandou o doutor com o ramo
de oliveira.
— Vamos ao Mercado? — insiste Alfredo.
— Quem sabe se o doutor não volta com um bom preço no
bolso para a nossa seringa. Ah, que o doutor desembarque sem febre e
volte de lã sem demora. Sim, que o Secretário e o Capitão ficam
fazendo as vezes dele, em boas mãos estamos. Me disse o doutor: o
Secretário é rapaz de bons costumes. O Capitão, um oficial benquisto.
E falando de todos nós: todos se devem dar as mãos. Está na palavra
de Deus. Cedo estou convidando o Coronel Cácio para jogar dama
comigo. Não lhe guardo rancor. Também escutou aquele apito e tudo
desabou em cima dele, fortuna, Intendência, filha, me livre Deus. Lá
está ele na calçada.
O Coronel, indiferente ao Mercado, consulta o relógio. Abre-se
a janela, é D. Generosa chamando-o, a janela fecha, agora é a D.
Generosa na porta com uma xícara para o marido.
— É o chá contra a panema. A mulher já fez sessão na alcova
— cochicha o velho Bensabá.
— Também espera um cabo. Está desfazendo a casa. Vai
vender aqueles espelhos a um salão de cabelo e barba de Belém.
O Coronel, já na beira do barranco, teso, ao sol, contempla as
bocas do Xingu.
— Ah, todos nós sonhamos, me agredite.
Preços subindo, julho chegou, vamos abrir as estradas, põe
gente, recomeça aquele tempo. Certas noites, saltava da cama, tonto.
Ia revirar suas peles sem preço, aquilo que ouro negro foi, não era
mais. Farol na mão, no meio delas, meu Deus, corte a noite pela
metade, me mande o dia depressa, pode vir um telegrama. Era fechar
o olho, seringueiras lhe cobriam o sono, lá se vai na vazante o Bensabá com toda aquela borracha de bubuia, logo de pé, assustado, e
este suor? cor cheiro visgo, suor de seringa.
[185] Banhava o rosto na praia, soltando a sobra do sono e dos
sonhos na correnteza. Na loja escura, corria com os ratos, remexia as
prateleiras, borradores, e o estojo, aquele, de um freguês morto e que
não abre nunca. Acabava migando um pouco de tabaco, com a
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primeira baforada ao primeiro clarear na telha de vidro. E quando
chegava o guarda-livros para pôr a escrituração em dia? Agora quem
faz a escrita é o filho, nem sombra daquela. O filho, tão bem no
Ginásio, teve de largar, vem de volta, amasia-se com a varapau que o
domina, vagou a Coletoria, cavou a nomeação, o que vai, o que vai.
Amanhecia anoitecia, joga dama, joga dominó, faia a seu Deus, se
embala na cadeira, manda ver no Telégrafo, é o telegrafista bem na
sesta treinando para quinto da Fígado Branco, é a futura viúva pela
quinta vez entupindo de catecismo os afilhados.
Multa não é a sua borracha nem suas estradas nem seus aviados.
Não pede por olho grande, gana por mais fortuna, pede para ver no
balcão aqueles seus fregueses de tão boa convivência, peles trazendo,
gêneros levando, este com o palinha novo, aquele: me embrulhe do
seu fustão cinco metros e me deixe ver esse brinco para a filha. Isso
vai abalar a Inglaterra. Vai?
Põe a mão em pala para o Telégrafo ali adiante: só vê na janela
a D. Pequenina sacudindo os panos velhos da paróquia.
— Como tudo nesta cidade, a roda quebrou, Secretário.
— Me tire, me tire, acode o Capitão, me tire uma fotografia
daqueles barrigudinhos ao pé da balança, a carinha de famintura
deles, me apreciem. Por que não dá a eles o bezerro, seu Bensabá?
Vamos supor que o bichinho é enterrado. Sua filha, com todo o meu
respeito pelo transe que atravessa, será de tudo informada e
obedecida. Fazia-se a cerimônia etc. e tal. Mas aqueles meninos
comiam.
Fora, na calçada, receosos de entrar, os mais velhos, como se
estivessem noites ali à espera. Alfredo vê enfim os habitantes,
surgidos da solidão e da ruína, pé no chão, sobreviventes da
ribanceira.
Ao pé dos cepos os três açougueiros reclamam.
— Não tem nem serra pra serrar, que é só osso a carne.
— Como eu — se queixa o Nhoduca, tirando o seu xarope do
bolso e virando.
[186] — Nem machado, nem cutelo.
— Como eu — repete o Nhoduca, passando o xarope ao Quim
de piche cada vez mais lustroso.
— Ó Trapicheiro! Teu Trapiche caindo, arruma aqui serviço,
amola a faca velha na pedra do passeio, aí!
Seu Dó puxa o Secretário para um canto:
— Seu Bensabá só dá a instrumentação dele de talho debaixo da
requisição do senhor por escrita.
Tudo isto, Alfredo, te parece mais ressaca da viagem e do baile,
ar da ribanceira, impaciência pela chegada da noite. Ou próprio de
Secretário?
— Daqui deste Mercado tudo foi roubado, até as armas brancas
— chasqueia o Nhoduca, arrastando a cabeça da vaca no ladrilho. Seu
Dó adianta-se, manco, embaraçado, fazendo ver que não, que o que
sumiu foi pelo tempo, pelo uso... Apressadas, um tanto duvidosas de
serem atendidas, chegam as capinadeiras dos cemitérios. Perder
tempo não podem que senão adeus empreita. Juntas na mesma pressa
e com o mesmo direito ao meio quilo, já não se sabe quem do Coche
quem de família. Alfredo reconhece a Justa, o andar manso,
amarelenta, empoeirada do cemitério. A seu lado, a indiarana com o
nariz no ombro da outra, o olhar em cima do Secretário, toda arisca, o
olhar mais de pássaro, peito menino. Corre pega a criança, flechando
o olho no Secretário. O curumim abre o berreiro. Outras crianças lá
fora também rompem no choro. Um dos açougueiros:
— Eta ferro, dia de batizado! Bota os pagãos cá pra dentro que
eu batizo, sa gente! Seu Bensabá, o sal.
— Estão chorando por carne, Nhoduca.
As mulheres vão saindo, Justa a derradeira a apanhar a sua
parte, beiço de quem roeu açaí. Olhou zolhuda para Alfredo, olhou à
101
toa mas doído. A indiarana sai de banda, como se crescesse a cada
passo, tropeça, o curumim no colo, a mãe dele acode, outra mulher
exclama:
— Mulher! Como foi que deixaste ficar assim tão grande o saco
do teu filho? Tão verde e assim tão sacudo! Cheira, cheira todo dia o
saco dele que diminui, criatura!
A indiarana cobre o rosto com as mãos se rindo, no meio da rua,
agora mais que uma menina, esguia cunhatã do barranco, a perna
meia torta.
[187] Volta o Capitão, entra falando alto, agora sabichão de
carnes, e que a chã-de-dentro e que a alcatra... Bom dia, D. Benedita
Lucrécia, carregada de ervas? Trago autorização do Loriano para
levar o sebo, o bobó, Capitão. É despachado um rapaz com parte da
costela e o miolo ao Mestre Parijó em meio do silêncio daquela gente
atochada no passeio. O Secretário manda pesar o prometido ao Cristo
Seu Seruaia, este sempre lá por fora, passando e repassando a sua
desconfiança. Com o seu naco tirado do lagarto, abriu o pé e Isso só
faz espalhar pela calçada que a carne vai ser mesmo distribuída de
graça. Seu Dó se chega para o Secretário: correndo uma falância... e o
Secretário aqui fora não pode nem sabe lhes dizer nada e tal é que
isso dá mais esperança àqueles olhos, aqueles que por pedirem tanto
nem boca têm de pedir. Chega o Juiz e o Promotor em trajes de
audiência. O Secretário e o Capitão entreolham-se, vigilantes: aqui
está o Sede de Justiça examinando a carne e se voltando para o
Secretário:
— Bastante magra. Eu fosse eu, Secretário, condenava. Puxa o
lenço, loção de D. Brasiliana; Alfredo vê descer o cabo que o levava
ao sótão entre loções, champanhes e pombos no telhado.
Ali na roda, frente a frente, ocupados em escolher o melhor da
vaca, os inimigos. Seu Bensabá, pelas costas do Secretário, puxa-lhe a
manga, preocupado, logo ao aceno do Juiz, do Promotor, do Sede,
aprovando o que cada um prefere, obsequioso com os três, ramo de
oliveira na mão. Alto, cabeça branca, vestido de amarelo e bengala, o
Coronel Promotor Felício escora-se na banca, assoando-se com
estridor, numa atitude que Alfredo não sabe se de desafio ou
precavido. Vem, tira os óculos, cochicha:
— É uma cerimônia de sacrifício, Secretário? A vaca era
sagrada? Estamos todos no velho Egito? Já lá vêm zoando pela
capoeira as doze pragas. Que perpetrou em Belém para dar com o
costado nisto, menino?
O Juiz manda arriar o quarto traseiro e indica aquela polpa, e do
filé a metade, também o bucho. Salta o Promotor, voz rouca, bengala
no ar:
— O coração é meu. E o fígado. Crever le coeur!
— O Anacleto se contente com a língua, o mocotó. Precisa de
caldo de mocotó.
[188] — O bucho é meu, Maxico — diz o Juiz. Manda levar o
bucho, dá palmadinhas no velho Bensabá:
— E Sara? Me faz lembrar minha filha, no Mosqueiro, quando
morreu o angorá dela. Faça a vontade de sua tuba. Enterre o bezerro.
Pisca para Alfredo, repetindo enterre o bezerro, enterre o
bezerro da menina, que isso evita funestas conseqüências. Tira da
mão do Maxico a língua da vaca.
— Esta, não, esta, tu não leva. Resolvi incluir no bucho. Depois
eu falo com o Anacleto. E selo postal? Benigna ainda em falta? Agora
é a vez de desabar sobre os três capados da Benigna. Ando sonhando
com aquele toucinho.
Com o cachorro na coleira, entra o Cabo Zelador do Fortim,
troncudo, barba cerrada, culote e manga de camisa.
Diante do Juiz, faz posição de sentido, voz de instrutor:
— Dr. Juiz de Direito, verdade que sua senhoria anda falando
que tranco dia e noite no Forte, sob a guarda deste meu cão, a minha
senhora?
102
— Sua senhora? — macio, o Juiz, guardando o sobressalto, já
Meritíssimo.
— A minha senhora.
— No que o senhor faz muitíssimo bem. Nunca uma honra foi
tão bem guardada como é a da sua senhora, Cabo. Quisera eu fazer o
mesmo, o mesmo. Congratulo-me com o senhor por Isso. Por isso,
relevo sua tentativa de desacato.
O Cabo, na mesma posição, faz um olhar de surpresa, tenta
refletir, pede licença, dá meia-volta, puxando o cachorro.
— Três quilos para o Forte — rosna, sombrio, escolhendo as
postas.
Capitão e Secretário previnem-se: Com o Juiz o Capitão e com
o Sede o Secretário, sob o olhar do velho Bensabá, também cercando
de atenção o Cabo do Fortim que se retira, com seus três quilos e o
cão, a caminho do Guerreiro onde vai requisitar algum peixe de
cacurl.
Lá fora a calçada cheia principia a resmungar pela demora. ~ ou
não é de graça, o que falta então? Chega o bêbedo, aquele:
[189] — O sangue da vaca, esta noite, o sangue que o Santo
Antônio pedia. Esta madrugada levei o sangue para o santo, sim.
Voltou as cores no rosto da imagem. Quero por Isso um osso. Um
osso já me serve. A carne não é de graça? Assim escutei lá fora, voz
do povo voz de Deus. Um osso!
Ouvindo o rumor da calçada, apressa-se o Sede de Justiça a
falar aos impacientes:
— A Municipalidade não dispõe de eventuais para aquisição da
carne. Hoje nem dia de eleição é. Esperem, esperem o meu dia.
Mando matar mais de um boi e de graça a todos no meu dia, no meu
dia. Não é, Secretário?
Alfredo, ralado com a intromissão do Sede, mete-se de repente
entre as pessoas da calçada para explicar-lhes... O Capitão se
antecipa:
— Meus filhos, a vaca tinha dono. Nossa não era, não, era do
Governo, não. Dela o Governo não pode oferecer-vos nem um osso.
Obséquio evacuar a calçada. Tratem dos seus comuns afazeres.
Secretário, faça a fineza, acompanhe o Dr. Loureiro.
Alfredo, sentindo-se comandado, não se move. O Juiz sal para o
Cartório. O Capitão afrouxa o cinto: mantida a ordem no barranco.
Apalpando o revólver na cinta, o Sede de Justiça arregala seus ódios
em direção do Juiz que dobra o canto.
— Em consideração aos senhores, só aos senhores, em
consideração não despachei ele pro inferno. Consideração aos
senhores.
— Sou reconhecido ao senhor, Coletor. Entre cavalheiros tudo
deve se processar por meios suasórios.
— Suasórios, Capitão? Ora, Capitão. Pelos meios, sim, que
tenho de levá-lo à cadeia ou ver o fulustreco no dente da minhoca.
O Secretário acompanha o Promotor que agita a bengala para o
seu xerimbabo: leve a carne pé cá pé lá, tarde que está. As meninas,
as duas filhas dele, toda a manhã esperando, o rosbife, rosbife.
— O coração no jantar. E o fígado. Crever...
E baixo para Alfredo:
— Vê como o canalha intromete-se? Tinha atribuição para
zurrar aquilo? Pronto estava eu com a minha bengala [190] a um
simples gesto, a uma simples ameaça de um coice. Fico de estômago
embrulhado, é só ver o cachorro. Vá lá em casa para uma
conversación. As meninas lhe preparam um refresco.
E toma o rumo do Cartório.
Seu Bensabá se chega:
Agora para todo o cumprimento da lei, Secretário, me forneça
o talão, Secretário.
— Seu Dó, destaque o talão.
103
Seu Dó, um passo atrás, talão? Alfredo vai & calçada, dá com o
olhar daqueles seus semelhantes, vira, mexo, o velho Bensabá atrás
lhe pedindo o talão.
— Dispensada a taxa, seu Bensabá. O senhor não vendeu sequer
um quilo. O que saiu é pra pagar no dia do são nunca ou requisitado.
O senhor cumpriu a formalidade, prestigiou o Mercado, serviu de
exemplo. Vamos lhe mandar um oficio agradecendo, seu Bensabá.
Seu Bensabá empertiga-se, ofendido.
— O oficio espero, Secretário, para pregar lá na parede da loja,
mas tenha paciência. Que o Guerreiro saiba que paguei a taxa, que a
carne eu trouxe por exigência da lei e garantia da ordem. O senhor me
agredite. Seu Dó, ache naquele papelório um talão em branco e encha
com meu nome. Eu lhe gratifico.
Seu Dó, o olho coruja: na Intendência? Mas na. voz do eu lhe
gratifico, tira do bolso a chave da Intendência.
— Tenho de ir, não, Secretário?
— Espere um pouquinho. Vamos ouvir o Trapicheiro.
O Trapicheiro, ombro caído, pedindo, por conta do vencimento,
meio quilinho ali mesmo do pescoço, e que sim, em casa tem um livro
de talão rubricado para o Trapiche. Inteiro como recebeu, inteiro está.
— Ah, seu Marcolino, pois pegue lá o seu meio quilo, que não é
nada, mas me traga já-já o talão — roga o velho Bensabá com a nota,
emendada com folha de abade, de cinco mil-réis na mão. Já fora da
calçada, atentos ao Mercado, os sem-carne ainda confiam. Alfredo,
agora, sim, fadiga, sono, e a moça de Munituba, aquela, dos gritos?
Tem de arranjar-lhe meio quilo. Manhã que não acaba. E aqui na mira
dessas criaturas plantadas na rua, ainda à espera. [191] Olham para
ele, já sem decepção nem mágoa, apenas olham, parados, à espera do
milagre.
— Não, seu Secretário? — a voz atreve-se, voz de mulher,
como se viesse lá de baixo e com todos os olhares no Secretário.
Alfredo logo se vira, ia dar uma ordem, uma vaga ordem, agora
escutando o Capitão.
— Seu Bensabá, toque de recolher, recolha a carne. Já cumpriu
a lei, senão estraga. Tem de salgar a carne.
— Estraga, Capitão? Ou podem entrar e...
— Estraga. Lei é lei, Secretário.
Os Três-pra-Todo-Serviço recolhem a carne na loja do seu
Bensabá. Seu Dó pede licença ao Secretário para fechar o Mercado.
— Dando horas, Secretário, vai tocar rancho — lembra o
Capitão.
— Primeiro agradecer o queijo, lá no Guerreiro. No jantar, você
toma conhecimento do mal-estar que causou a ele essa carne no
Mercado. Viu o Cabo? O Cabo, Secretário?
— E o Juiz, viu?
— O Cabo segue à risca. Feriou, hasteia a bandeira no Forte,
toca a cometa com a mulher em posição de sentido e o cão ali ao pé.
Espero que o senhor implante a moral nesta circunscrição, Capitão. E
a idéia da Pátria, Capitão. Em cima do canhão, o louro é dando vivas
ao Brasil.
— E o que o Juiz conta? É?
— O foro não é meu. Não nos cabe averiguar. A mulher é dele.
O Capitão morde o beiço, olha duro, o que vai dizer, não diz.
— E uma coisa me veio à mente, Secretário.
Desendurece o olhar, afirma a voz.
— Eu proporia ao Governo a transferência da Prefeitura de
Policia para o Forte, devolvendo o Cabo ao seu quartel. Que acha?
— Mas, Capitão, quer pôr em risco a honra daquela senhora?
[192] — Secretário, o Cabo brinca com fogo, não. Que o
primeiro fogo do mundo foi visto nascendo daquele atoleiro de onde
também nascemos. Não lhe proclamo mais nada.
Que falou, abrandou-se.
104
— Sim, sim, fazia ali a minha residência enquanto durasse esta
comissão. Mandava buscar o meu cachorro. Não era?
— Proponha, então.
— Vou incluir no relatório.
— E os meninos? Almoçando o anjo?
— Dei rigorosa ordem ao praça para dividir irmãmente.
Alfredo: pelo menos, neste fiasco geral, o Capitão dá o bezerro
aos meninos. E o seu primeiro ato de Secretário? Dizer não àqueles
viventes? Fosse com o Tio? O Tio, no seu cavalo, Dolores na garupa,
entrava no Mercado, apanhava a laço os quartos da carne... Bom
começo, bom primeiro expediente seja sério, seja grave, tenha tudo
juízo, lembre-se que na flor da idade... E não é que o Maestro toca
flauta? Remoto, solitário som no barranco, voz daqueles vozes da
calçada. Olhem lã, lá está na janela a Nhá Mãe. Seu Dó fecha o
Mercado, enxotando os velhos cachorros que lambem o ladrilho. As
últimas pessoas se retiram em silêncio, gemendo na flauta do
Maestro. Nhá Mãe pendura dois tipitis na janela. A flauta não se cala.
Não, seu Secretário? repete o chorinho. Secretário e Capitão, um com
o meio quilo pra a moça de Munituba, outro vai agradecer o queijo,
cruzam com o Escora-Canto.
— Que há de novo? Que há de novo?
Na hora do almoço, chega a D. Pequenina: pois o Epaminondas,
Capitão, de tão bêbedo, não foi tocar o sino?
— Dê a ele um corretivo de 24 horas, Capitão. Não nego que é
meu primo carnal. Não soube entregar a Deus o seu desastre e aí está
com esses espetáculos tão públicos. No que deixei a porta aberta da
Igreja, me viu de costas mudando a toalha do altar, entrou, e de
repente o sino.
D. Pequenina, alva de pó-de-arroz, toda no branco, mangas
compridas, apura seus efes e erres.
[193] — É tornar-se ébrio e seu primeiro desjuízo é agarrar-se
com Santo Antônio. É a bebida dele. Se ao menos o sino, tocado pelo
infeliz, fosse bater na consciência do verdadeiro culpado...
— Sim, D. Pequenina, ouvimos o sino. “Ladainha, hoje na
igreja, foi o que eu disse ao Secretário. Mas em tudo isso tem
culpado?
— Já me prometeu de joelhos em plena procissão que beber
nunca mais. Em plena procissão, de joelhos no meio da rua. Fez para
a procissão. De joelhos no meio da rua. Carregando o andor, estava o
culpado, vendo a vitima de joelhos e nem como coisa, muito se rindo
carregando o santo. E o meu primo de joelhos no meio da rua. Agora
me põe a mão no sino. Quem só me põe a mão no sino é o seu Dó que
faz as vezes de sineiro, afinal, é só.
— Tocou festivo.
— Gritei do altar: “Epaminondas!” Desceu dizendo —em que
estado, meu Deus! — dizendo que era por ter o Santo Antônio
voltado às suas cores.
— Lhe deu sangue da vaca, contou no Mercado.
— Capitão! É um ébrio, não sabe o que diz. Mas a culpa ponho
no que fez o infortunado pegar o vício, no causador de toda a ruína do
inveterado. Agora dá bebida ao Infeliz para me atormentar mais, para
rir da família, no gosto de ver o infeliz mais infeliz, mais raso, até que
o defunto vá, encharcado de cachaça...
— D. Pequenina, a senhora insiste no culpado?
— As terras dele do meu primo, Capitão, sabe quem ficou com
elas? O mesmo que hoje embebeda o espoliado.
— Não, D. Pequenina!
— Já foi tudo consumado, Capitão. O Juiz deu a sentença final
foi pago para isso. O fato é que agora remédio mais não tem.
Epaminondas esbulhado sem remissão.
— D. Pequenina, e ainda quer que o prenda?
— Provas? Mas toda a ribanceira sabe, Capitão!
105
D. Pequenina concentra-se, cerra os olhos um momento,
Capitão e Secretário entreolham-se. D. Almerinda, a mesma, de
cabeça baixa.
— Meu primo, na bebida, foi-que-foi bebendo, “bebe,
Epaminondas”, dizia o outro. Assim como no jogo. O outro [194]
botando bebida no copo, tomando nota na bebida, que botava, e tal foi
que a conta deu aquela desconformidade toda. Feita a petição, o Juiz,
zás, despachou. Como de ontem para hoje. Despachou, adeus
Epaminondas. Agora diverte o algoz, bebendo defronte, rezando na
raiz da mangueira. Posses no Xingu. Terras! Estradas de seringueiras.
Paus de macacaúba. Benfeitorias. Cadê tuas posses, Epaminondas?
Dele só o molambo do corpo e a graça de dormir ali na raiz da
mangueira. O sino ao menos devia bater na consciência do algoz. Pois
de joelhos, fazendo parar a procissão. E de andor no ombro, o algoz
se ria, se ria do ajoelhado. Ali de joelhos, bêbedo, me prometia não
beber mais, não beber mais.
— Não há de beber, não, minha senhora.
— Só na cova, Capitão.
— Vivo, D. Pequenina.
— Traído e humilhado. Triste Epaminondas!
— Vá ver que o espera o Reino dos Céus, D. Pequenina.
— Por falta de minhas preces que não, Capitão.
— Mas sobre a palidez do santo?
— Mistério que não pode andar na boca de um ébrio, Capitão.
De tudo que se passa na igreja tomo ciência. Informo por escrito o
Arcebispado. As mínimas particularidades. Sou capaz de lhe dizer
quantos morcegos moram no forro, quantas telhas tem no telhado.
Todas as ocorrências. Sobre o que o senhor pergunta, cabe às
autoridades eclesiásticas a palavra final.
— Seu Epaminondas espalhou que o Santo Antônio
empalidecia.
— Não posso, Capitão, ferir uma ocorrência dessa natureza em
reunião profana. Ninguém sabe daquela igreja, daqueles santos, mais
do que esta pecadora, criada dos senhores. Porém, do que sei, só
confio ao meu confessor. E só dezembro, festa de São Benedito,
temos padre, faço as minhas confissões. Olhe que tenho me batido
para conseguir um, um pároco, ah! Abaixo assinado que fiz? Os
dedos da minha mão. Lá tio Arcebispado: “que faltam aí os mínimos
recursos para a manutenção do pároco.” Por isso não, que já me
ofereci, e é o que sempre faço em dezembro, hospedo o padre, dou
casa, dou mesa, dou luz, dou roupa lavada. Tanto casamento aí sem
ser na igreja, tanto [195] meni|no sem primeira comunhão, tanto
moribundo sem os Santos Óleos! O Dr. Intendente não pode
interceder? Estou que funcionando a paróquia, aqui melhore tudo. O
Monsenhor Argemiro me escreveu lá do Arcebispado: “estão nos faltando sacerdotes.” Pois eu, em casa, na aula de catecismo, preparo
quatro afilhados tendo em vista o Seminário. Quatro vezes me casei,
agora estou no quinto, e dos meus falecidos maridos e deste atual, um
só filho, um que fosse! De mim não é a falha, é o que garanto. Deus
me livre desejar a morte do meu atual esposo, mas espero ainda um
que me dê ao menos o varão que sonho entregar ao serviço de Deus.
O Dr. Intendente, eu soube, almoçou com o Arcebispo, antes de vir.
Bem pode interceder junto ao Arcebispado a respeito do padre,
Capitão. Este é também o motivo de minha visita.
— O Intendente embarcou com esse objetivo, D. Pequenina.
— Espero em Deus que alcance essa graça para nós.
— Mas o Telégrafo, D. Pequenina?
— Ainda não, Capitão. Nem sabemos quando. Tudo nesta excidade, Capitão, não sabemos quando.
Chega o praça, o bêbedo já dorme na raiz da mangueira.
— Pois fique de sentinela ao pé dele. Espere ele acordar. Tome
a chave. Recolha-o, com delicadeza, por algumas horas. Espere ele
acordar. Com delicadeza, que é pessoa de família.
106
— Deus lhe dê o pago, Capitão, nossa família lhe fica
reconhecida.
D. Pequenina, de pé, sustenta a cerimônia:
— Consente, Capitão, logo que ele esteja recolhido, que eu leve
a ele uma rede, uma chávena de chá e a cruz do meu rosário?
— Pois não, D. Pequenina. Que o seu primo vislumbre a boa
senda. Talvez encontre Deus lá dentro, que Deus é onipresente.
— Nosso Senhor lhe ouça, Capitão.
Levada à porta pela D. Almerinda, desta vez Alfredo ouve,
nítida, nordestina, desembaraçada, a voz de D. Almerinda:
[196] — Apareça, D. Pequenina. Na primeira ladainha, estaremos lá, sim. Almerinda de Vasconcelos Maldonado, criada às
ordens. É assim mesmo. Todas nós bebemos da taça da amargura.
Já o Capitão, com a senhora no braço, trancam-se no quarto dos
fundos. Alfredo na alcova quente. Lá fora o rio fervendo, o dia
encalha, sol que não acaba, Bi guarda a noite na botija, noite de
lacrau, rede em que espera o lacrau.
A tarde acabou? Restos do suado sonho, prancheia o Lobão no
cemitério, desembarca o Intendente, Bonita embarca, a prima do seu
Dó, coração dela bate, coração dela bate, jantar nos quatro espelhos, o
Juiz tocando a harpa, arfar da D. Benigna no Coche, aqueles sem
carne na calçada, Coronel Cácio abrindo a sobrecasaca sobre a cidade
destruída, a centopéia no colo de Bi, o bêbedo reavendo, no copo,
suas terras do Xingu, boca de forno esta alcova, lã fora morto, tempo
morto, rio morto, as traças já roem o palmebiche. Abre a janela da
sala.
— Que faz aí, seu Dó?
— Fazendo o expediente, Secretário. Esperando que o senhor
acordasse.
— Tem por perto um igarapé com sombra?
— Perto, perto, de lhe dizer logo ali, não lhe garanto. Um, que
tem, é sempre uma pernada.
— Pois até onde a perna der.
Seu Dó, manco, mais moído, não acompanha o passo do
Secretário. De novo os cemitérios, a capina das mulheres, as
inhambus piando. Justa Zolhuda arranca o capim da própria
sepultura? Mais amarela, mais empoeirada.
Seu Dó arrisca:
— Licença?
Alfredo pára.
— Da mea obrigação botar o senhor ciente do igarapé
Mucajazeiro, aí atrás, não tão distancioso. Ao pé dele, num tapiri vive
a Daria-Mora-com-o-Diabo, uma do Xingu. Lá, quem passa lá,
atravessa o igarapé, dá com o tapiri. Lá dentro luxo dela é a rede, é a
moringa, é a baúta de folha [197] pintada de azul e branco guardando
os cetins. Quem que por ali passa, sendo macho, paga. Ela cobra. Que
também se serve de um jabuti na ausência do Outro, se diz. Se falou
que ela teve um filho do tempo, rumo que o verdinho levou, só se
sabe que foi visto a bordo do Lobão, no colo de uma dona, subindo o
Xingu. Posso lhe falar?
Coçando a testa:
É que a Daria está sempre lavando não sei que roupa ou vasilha
no igarapé, seja vazante ou enchente, ou tomando não sei que banho.
Ali na espera. No que viu o passante, que ali é uma passagem, a
rapariga se estira na lama ou de bubuia, e ai se faz de bem dormindo,
tamanho dia seu bicho de molho, corre vá ver que está morta, no que
é socorrida, a coma pega o socorrente. Assim cobra o imposto. O
senhor tirou a limpo?
— Fiscal do Município?
Sozinha-sozinha, dali não se arreda, que se saiba. Pra lhe dizer
mais, nunca se viu a Daria, fosse uma noite, na festa, em dezembro,
ou no balcão do seu Bensabá ou do seu Guerreiro, fosse comprando
um palito. Correu que os soldados da obra do Forte por ali passaram,
dali fugiram por ser bastante demais aquele bicho, que só lama
107
gulosa. Desculpe o atrevimento mas o tapiri, quando ela carrega um
pra rede, mais parece sacudido pela ventania. Foi o caso que uma
noite fizeram a malvadeza de tacar fogo na barraca. Daria com um lã
dentro. Daria mais que depressa no igarapé e o macho, esse, viram
sair? Quem disse? Dizer que sabrecou, se derreteu no fogo, não, que
se sabia. Era ou não era quem que estava com ela? Era ou não era?
Quem mais? De quem tirou o apelido? E se eu lhe disser que
noutro dia, lá está de novo em cima o tapiri de ubuçu, a esteira na
porta, o baú, a moringa, a rede sempre nova? Que o jabuti socia com
o outro, assim se diz.
Escondendo a curiosidade, Alfredo segura o braço do
Porteiro:
— Então voltar, seu Dó, antes que D. Daria nos veja. E o pé,
mandou benzer?
— Mandado benzer, sim, Secretário, na comadre Benedita
Lucrécia. Arruinou, andei comendo reimoso.
Alfredo desce o barranco, dá um mergulho só, catando a noite
pelo fundo, bóia meio assustado, gosto de barro ou do perau onde
Mestre Parijó refaz seus poderes.
[198] — A água ferve, não, Secretário?
— Lá no largão, ferve.
— Aquele rebojo ali chega papouca.
— Seu Dó, me abra amanhã a Intendência, passa uma
vassourada no salão.
Mete-se no palmebiche, gravata não. Bi virá? Encantada em
casa, vendo-se trinta damas nos espelhos, de molho nos cheiros, de
infusão, Bi esconde a noite. Lá está o pai tentando avistar no Xingu os
lagos perdidos.
— Coronel Cácio, venho solicitar o retrato do senhor para o
salão da Intendência.
Coronel não tira a vista do horizonte.
— Não sei, não sei se a Generosa guarda o retrato. Ela que sabe.
Alfredo bate palmas. Aquela com dor de dente chama a tia. D.
Generosa traz o retrato, soprando o pó da moldura.
— Ordem do doutor, não foi? Deus não se faz esperai tanto.
Pode crer, pode crer.
— Vou oficiar à família, D. Generosa.
— Não carece, Secretário. O senhor já oficiou de boca.
D. Generosa, de olhos molhados, faz o pelo-sinal. Alfredo deixa
o retrato nas mãos do seu Dó. O velho Bensabá, na sua porta, mostra
ao Capitão quatro dedos, já bastava quatro o quilo, e o seringal em
festa. Chega o filho, o Coletor.
— Deve ser um bicho em contabilidade, não, Secretário? Fênix
Caixeiral ou Escola Prática do Comércio?
— Grupo Escolar Barão do Rio Branco.
— Sim que é só o balancete. Receita e Despesa, cada mês. É
canja. Por que está rindo? O lançamento... Por que rindo?
— Por exemplo, lançar na Receita os 2$000 da carne de hoje.
— Desculpando o meu pai. Não se refez ainda. Um
traumatismo comercial.
E ao ouvido de Alfredo:
— O velho Cácio lhe pedindo para inaugurar o retrato?
— Pedi eu.
[199] — Aqui não tem dente...
Jacobito corta o passo do Secretário.
— Toma ou não posse de todas as prerrogativas? A menina é
parte da Secretaria.
— Pode me dar umas lições de contabilidade?
— Estarei na inauguração. Escute uma coisa: lê francês?
— A segunda pessoa nesta cidade que me faz tal pergunta.
— A outra?
— O seu Dó.
— Dó coisa nenhuma. Foi o Coronel Felício. Ele vive agarrado
a um dicionário velho, principalmente quando bebe e fuma aquele
108
tabaco do quintal dele. No tempo em que havia baile nesta cidade, a
mania dele com as damas era mamazele pra cá mamazele pra lá, as
damas fingindo que entendiam. Uma vez põe num papel na porta da
casa dele: Ensina-se a marcar quadrilha no original. No júri, leva o
dicionário. Sobrescrita as cartas em francês e, na hora do almoço,
berra na cozinha: qual é o mini ujurdui? Não é o meu caso. Posso lhe
emprestar um livro que me restou do Ginásio. Racine, conhece? Por
que ri? O livro está como foi comprado. Um dinheiro perdido. Estou
ai sem saber que é que faço do compêndio. Quer passar uma vista?
Ou lhe vendo, me paga depois. Sim, posso lhe dar uns rudimentos de
contabilidade, se é que anda assim tão cru em tesouraria.
Alfredo vê a velha corcundinha alemã abrindo o Francês sem
Mestre na varanda de Luciana. Nisto, no outro lado da praça, aparece
de toalha no ombro a varapau do Coletor na janela. O Coletor ganha
uma pressa. A varapau bate a janela.
— Deixo o livro de volta. Vou à cerimônia do retrato. Me avise.
Use as prerrogativas.
Dá pulinhos pelo capinzal da praça, fica batendo à porta,
batendo, chamando a mulher. A dona não abre. O Coletor entra pelos
fundos.
Alfredo vê a indiarana, aquela, passando com o balaio, os olhos
no Secretário, o andar miúdo, a perna meia torta, dá uma topada, os
olhos no Secretário. Seu Dó, retrato [200] debaixo do braço, segue
para a Intendência. Sai do Telégrafo a D. Pequenina e dois afilhados
que levam o xarão do chá e a rede. Seu Epaminondas foi detido. D.
Pequenina vai de rosário na mão. Na outra banda do rio, o sol se
esconde em suas plumagens, escorre da várzea a pouca noite, agora
mais. Bi destapou a botija, noite solta, some-se o Coronel Cácio, a
porta do Bensabá, o Coche debaixo da mangueira. Qual casa, esta
noite, vai abaixo? Não seja esta sobre nós na alcova pela madrugada.
Esta noite é a vez do Diabo, ou do jabuti, na rede da Daria? Lá no
estirão raso, a novena das guaribas. A esta hora ao pio das inhambus
vem caminhando a Justa com o seu suor do cemitério, sua poeira. Boa
noite, a voz cansada. É o Cristo Seu Seruaia.
— Secretário, o senhor não repare mas lhe trouxezinho aqui um
cupu, o senhor querendo, prove. Madurinho que está.
Alfredo oferece o cupu:
— Talvez a sua senhora aprecie o vinho, Capitão.
O Capitão dá um grito chamando o praça, outro grito, sal
gritando com o cupu na mão. Volta aliviado, com o cupu na mão.
— Esqueci que o praça dá guarda na cadeia com o seu
Epaminondas lá dentro.
— A esta hora, Capitão, o bêbedo beija a cruz do rosário.
— Traído e humilhado, Secretário. É um bêbedo em busca de
Deus, Secretário. Por isso, bebe. E olhe que está na hora de comer o
peru do seu Guerreiro. Diplomacia com ele. Quer a lanterna?
— Obrigado, Capitão, preciso me acostumar no escuro.
— Aqui em casa, Secretário, nos queira desculpar, nesta nossa
mesa não consta daquela carne do Bensabá. Verdade que ele teve a
picardia de nos mandar três quilos. Pesei na balança e joguei no rio.
Quem comeu dela pessoa ou bicho, corre um risco.
— Esmagada que foi a vaca, devia de estar toda ela roxa. Meu
Deus, vaca rogada de praga pela D. Pepa! — alarma-se a senhora
Guerreiro, amável de boca, ríspida no olhar.
[201] — Aqui o senhor pode não regalar-se mas não arrisca a
saúde. Nossa mesa pobre é, é o que temos para dar. Nunca fui
inclinado a banquete. Nosso viver é muito despido. Não passa dum
pirão de farinha d’água, e só. Farinha pouca mas fresca. Passa o peru
ao moço, Fortunata.
Alfredo pensa na D. Inácia Alcântara. Aqui está um que
provocaria as iras e os louvores da madrinha-mãe. O comerciante ri.
— Se não me engano, Secretário, a última vez que estive em
Belém vi o senhor no Rotisserie, Secretário?
109
— Só se lá dentro, na copa, lavando pratos, seu Guerreiro. Meu
último emprego foi lavar pratos num frege.
— Modéstia tanta assim da sua parte que não, Secretário. Sua
categoria está se vendo. Então o Intendente ia trazer de Secretário um
lavador de pratos?
— Por sinal péssimo.
— Brincando que o senhor está — fala a D. Fortunata,
agradando com o sorriso, censurando com os olhos.
Seu Guerreiro fala do filho que estuda em Belém, materno, ali
de rédea curta. Uma coisa exige: Que o rapaz, uma vez formado, não
se meta nem de longe na política. Puxe ao pai que sempre teve
repugnância pela política, nunca se mete, nunca foi no canto da
sereia, se dá por muito feliz por isso, aqui esquecido no seu cantinho.
— Político, quando entra nesta casa, deixa na chapeleira o
chapéu e a. política. Nosso costume, aqui em casa, é recebermos
alemães é franceses. Aqui esteve o Presidente da República, o
Arcebispo, o Major Bonifácio, que veio dirigir as obras do Forte. Está
é me faltando um livro de impressões dos meus visitantes.
Seu Guerreiro, no que fala, se ri, dólmã, gomado, o anelão, o
lenço de cambraia. D. Fortunata traja austero, fechada até o pescoço,
a boca gentil, o olhar censor. A seu lado, vestidas ver uniformes,
muito mudas, muito pálidas, as duas irmãs, como noviças.
—Ao que me consta, Secretário, os pobres tiveram carne?
Alfredo, contido na sua impaciência de acabar e soltar-se pelo
barranco, aceita a zombaria:
— O senhor bem sabe que não.
[202] — Não? Palavra Que não? Pois não foi o que vieram nos
dizer. Não? Ou é mais uma modéstia sua? Não? Olhe que quem nos
contou não costuma mentir, Secretário.
— Quando o senhor talha um boi, dá carne?
— Quem mais pelos pobres do que nós, neste arraial,
Secretário? Não chegam as caridades que fazemos todo dia?
Fortunata e eu, todo ano, chega dezembro, São Benedito, é aquele
batiza-criança que não acaba mais. Temos pelo Município uma
população de afilhados. Mas sobre a carne, foi? O senhor deu? Deu?
Deu que eu sei. Não deu?
— Dado-dado, só a dois dos mais carecidos.
— O velho Seruaia, o mais carecido? Mais carecida aquela àtoa podre de doença desembarcada do Munituba, que o Capitão devia
impedir que desembarcasse?
— Guerreiro!
— O senhor anda bem informado.
— Somos sabedores. Foi só? Dois dos mais carecidos?
Seu Guerreiro ri. Alfredo quer rebater, cala-se. Seu
Epaminondas, no xadrez, bebe por suas posses do Xingu.
D. Fortunata:
— Conheceu a bordo duas moças portuguesas? As Borralhos?
Me prometeram passar unia semana conosco. Muito finas.
— A bordo?
— Como? Não é Isso que nos disseram, Secretário. Que durante
a viagem... Não é, Guerreiro?
Seu Guerreiro mastiga ruidoso.
— Fortunata, o nosso Secretário, uni tanto retraído, se guarda
no casco.
— Vacas, seu Guerreiro? Tem na cidade?
— Uma meia dúzia de carneiros. Por quê? Vai tirar do
perímetro o gado do Bensabá? Pois isto sim! Reses dele estragam
roçados aí atrás, olham pela janela da Intendência, emporcalham as
ruas, comem as couves da D. Pepa. O velho judeu alega que seus
animais ajudam a limpar a cidade, comendo o capim. E quanto aos
meus carneiros? Quer me tirar os carneiros? Também coagido a levar
ao Mercado o peixe do nosso cacuri?
— Por exemplo: Hoje, à. noite, qual a casa que vai abaixo?
110
[203] — Fortunata, serve o vinho ao moço. Vá desculpando,
Secretário. É um vinho de certa idade, de uma remessa antiga, me
lembro, chegou no Aimoré, vacas gordas, vacas gordas. Verdade que
a queda da borracha não paralisou de todo os nossos negócios.
Sofremos da catástrofe a metade. O velho Bensabá? Não pense que
ande tão quebrado, sem saldar suas duplicatas. O mais nele é manha,
é maxiavelice. Os sonhos? Sonhos que não são sonhos, inventa
sonhos, obra da astúcia, ora, sonhos... Passa por qualquer cabeça que
aquele velho sonhe? O filho, sim, que foi fisgado...
— Guerreiro!
— E o embalo de cadeira que a filha faz porque lhe morreu a
vaca? A moça quer é casamento e a família espera marido da raça
deles, mas quando?
D. Fortunata olha para o marido. E este:
— Também no Mercado teve espetáculo? Assistiu, Secretário?
Alfredo interessa-se pela jarra azul no consolo. Da jarra salta a
Bi, toalha passada no corpo, amigo é o meu umbigo, correndo pelo
pedregume da praia, montada nesta asa de peru.
— Aqui o Exército me custando os olhos da cara, Secretário. A
requisição dos peixes... todo dia! Não sei como dar ponto final. É fato
que as obras do Forte sempre me movimentaram o talcão e o do
Bensabá. Foi um zinho ganha-pirão pra essa gente aí, coitados.
Também, aqui entre nós, não me meto, mas mamaram, mamaram
grande.
— Guerreiro...
— Fortunata, antes não falei que não me metia? Me meto?
Seu Guerreiro, com um gesto, dá o tamanho da verba federal,
não se mete, antes calar o bico.
— Só sei que durante a obra a filha do velho Seruaia pedida,
foi, por um praça, acabou a obra, o praça chispou até hoje. O Cabo,
este casou, a redondinha dele nem o rio espia. O Maestro tocou que
tocou flauta, cortou que cortou cabelo, vendeu que vendeu arara e
tipiti e tudo que ganhou bebeu. Sim que dividia a bebida entre o nosso
balcão e o do Bensabá, isso foi.
Olhando para um e outro lado, seu Guerreiro segreda:
[204] — Ou melhor, quem mamou foi a D. Mundiquinha Paiva,
trazida atrás da porta, no piquete de soldados, pelo velho Major
Bonifácio, engenheiro militar, encarregado da obra. E tínhamos de
recebê-la em casa, a mulher ostentando a sua ligação ilegítima. É o
que dá, o que dá...
Limpa a ofensa com o guardanapo, sorrindo:
— A empreiteira mesmo foi a D. Mundiquinha Paiva, com o
Cabo, sempre de cara trancada, barba de sete dias, feito o braço
direito dela. Quem fosse ao Major, ele da rede, no seu pijama, com
um monte de jornais, logo dizia, maçado: Oh, mas já não disse que
isso é só com a D. Mundiquinha? Servindo bem a D. Mundiquinha, o
Cabo inventou recibo, inventou diaristas na folha, fornecimentos,
tudo conta de chegar, a mamança foi aquela. Pela verba, verba
federal, o Forte era pra ter saído da obra, outra coisa que não é. Tudo
matado de cima a baixo. Tudo poupado para ser melhor comido. O
velho Major só era na rede, e a dona, de broche no peito, carnaúba na
cabeça, capatazeando, juntando o seu pecúlio. Gritava com os
soldados... Meninas, se levantem...
Depressa as duas cunhadas corredor adentro.
— Nos causou foi pasmo... Sim, que só soubemos depois.
Todos nós, nesta casa, na inocência do que ocorria, tal é não nos
metermos... Com os soldados, sim, que serviam a ela na obra durante
o dia e a ela em pessoa durante a noite. Com os soldados. Foi ou não
foi, Fortunata? De dia a patroa mais dura. De noite a mais dada. Foi
ou não foi, Fortunata?
— Guerreiro, nós não vimos, nem nos cabia ver. Isso não é
mais hora, não é mais hora...
D. Fortunata vira-se para o corredor:
— Meninas, vocês estão onde?
111
Uma voz precipitada:
— Aqui dentro, mana Fortunata.
Marido e mulher inclinam o ouvido e a suspeita para o corredor.
— Até no Coche.
— Mas já chega, Guerreiro. Não te mete. Meninas, pra mesa.
[204] — Ou melhor, quem mamou foi a D. Mundiquinha Paiva,
trazida atrás da porta, no piquete de soldados, pelo velho Major
Bonifácio, engenheiro militar, encarregado da obra. E tínhamos de
recebê-la em casa, a mulher ostentando a sua ligação ilegítima. É o
que dá, o que dá...
Limpa a ofensa com o guardanapo, sorrindo:
— A empreiteira mesmo foi a D. Mundiquinha Paiva, com o
Cabo, sempre de cara trancada, barba de sete dias, feito o braço
direito dela. Quem fosse ao Major, ele da rede, no seu pijama, com
um monte de jornais, logo dizia, maçado: Oh, mas já não disse que
isso é só com a D. Mundiquinha? Servindo bem a D. Mundiquinha, o
Cabo inventou recibo, inventou diaristas na folha, fornecimentos,
tudo conta de chegar, a mamança foi aquela. Pela verba, verba
federal, o Forte era pra ter saído da obra, outra coisa que não é. Tudo
matado de cima a baixo. Tudo poupado para ser melhor comido. O
velho Major só era na rede, e a dona, de broche no peito, carnaúba na
cabeça, capatazeando, juntando o seu pecúlio. Gritava com os
soldados... Meninas, se levantem...
Depressa as duas cunhadas corredor adentro.
— Nos causou foi pasmo... Sim, que só soubemos depois.
Todos nós, nesta casa, na inocência do que ocorria, tal é não nos
metermos... Com os soldados, sim, que serviam a ela na obra durante
o dia e a ela em pessoa durante a noite. Com os soldados. Foi ou não
foi, Fortunata? De dia a patroa mais dura. De noite a mais dada. Foi
ou não foi, Fortunata?
— Guerreiro, nós não vimos, nem nos cabia ver. Isso não é
mais hora, não é mais hora...
D. Fortunata vira-se para o corredor:
— Meninas, vocês estão onde?
Uma voz precipitada:
— Aqui dentro, mana Fortunata.
Marido e mulher inclinam o ouvido e a suspeita para o corredor.
— Até no Coche.
— Mas já chega, Guerreiro. Não te mete. Meninas, pra mesa.
[205] As duas voltam apressadas, cabisbaixas. Seu Guerreiro
concheia a mão à boca:
— Gritava com os soldados, ali no leme das compras do
material. Levou todos no pacote. Quem mandou pichar os canhões foi
ela. E aí ficou o Cabo ensinando o louro a dar vivas ao Brasil. Bem,
não me meto.
Um piparote, ah, sim, agora se lembra.
— Pena que a irmã do Sede de Justiça...
As duas cunhadas a um só tempo se puseram de pé.
— Sentem. Quem mandou? Sentem. — ordena o seu Guerreiro
surpreendido, testa franzida, logo sorri, bebe o vinho, olhando para as
duas cunhadas. Aí Alfredo também olha, sem cautela: As duas só
falta meterem a cabeça dentro do prato. A primeira faz um rosto de
órfão, boca infeliz, e sua atenção à conversa se mede pelos dedos sem
sossego. A outra deixa escorrer dos olhos um alheamento por tudo,
encolhe-se numa submissão bem aceita, o beiço obediente.
— Pena que...
— Guerreiro, meu marido, estou te desconhecendo... que a irmã
do Sede de Justiça tenha tido tão pouca sorte com as obras do Fortim.
Por falta de empenho da parte dela que não foi, coitadinha. As
mundiações que a mãe fez, Deus te livre. A filha não conseguiu um,
um que levasse ela pra mulher ou coisa que o valha. Também com
aquelas pernas. Bem, do meu bedelho não é.
— O piche, o senhor que forneceu?
112
— Ela? Mandou buscar em Belém. Levou um ano a obra. A
empreita não podia ser nossa? Aqui em minha casa que o Presidente
ouviu a idéia de restaurar o Forte. Aqui nesta mesa, tomando café.
Partindo de uma pergunta minha: Presidente, V. Exa. pode dar um
socorro à nossa terra, ao menos umas obras no Forte? Foi ou não foi,
Fortunata?
— Guardamos a xícara em que o Presidente bebeu café — diz
D. Fortunata empinando o rosto.
— Hoje o Cabo faz exercícios de tiro em volta da mulher que
ele amarra no esteio.
— Guerreiro!
— Pois fique sabendo, Secretário, que a birra de hoje do velho
Bensabá não me pisou no calo. Ordem tenho do [206] doutor
Intendente para talhar meu boi em casa, O que pisa meu calo é o filho
dele, Bensabá, vir de vez em quando examinar a selagem das nossas
mercadorias. Destaca um talão de indústria e profissão que é um
demais abuso de autoridade. Canso estou de recorrer à Fazenda
Estadual contra o exorbitamento. Faz ele o mesmo com as mercadorias do pai? Com os parentes dele, de raça, lá no Taiaçuí? Deixa-se
arrastar por uma insaciável...
— Guerreiro!
— Ela, pra pedir, tem toda aquela boca de arapapá, e os
comerciantes do Município que abasteçam a goela. Como se já não
bastasse Juiz, Promotor, Sede de Justiça, Cabo, o padre no fim do
ano. Esquecido, o Jacobito, de que eu botei minha pedrinha lá com os
graudões a favor da nomeação dele. Mas Deus está com o lápis na
mão tomando nota. Harmonia mais do que a minha, neste Município?
O senhor, o Capitão, o Intendente vão atestar o que sou, o que pratico,
no que intercedo. Por isso mesmo é que em política não me meto.
Agora mesmo, para a capinação dos cemitérios, as enxadas e
terçados? Emprestei ao Doutor.
Alfredo escuta, peru feito por Nhá Efigênia, galinha de
cabidela, apetite dos vinte anos, vendo saltar da travessa de purê a
dama desta noite, a esperada clandestina lá na alcova. As duas irmãs,
sempre cabisbaixas, praticam sobre o prato o seu noviciado. Alfredo
olha de esguelha, mais purê, mais esta asa no molho, ora cortado pelo
rir do seu Guerreiro, ora pelo olhar de D. Fortunata que fala tão
agradável, transpirando tão bons costumes.
— Pelo que nos consta, Secretário, o senhor vai inaugurar o
retrato do Coronel Cácio? Fato?
— Seu Dó?
— Dizer, não disse exatamente, vimos ele carregando o retrato.
A pessoa que viu indagou: Dó, mandaste fazer o teu retrato? E assim
concluímos com a resposta dele... O Intendente...
— Deixou ordem, sim — precipita-se Alfredo, tentando
encerrar o assunto, repetindo a cabidela, o coração de galinha, que
sorte, o sobrecu, nariz de vigário, como ouviu dum sergipano. Seu
Guerreiro faz a tromba de ressentimento, já resignado.
[207] — Pois até que multo me admira, Secretário. Me disse o
Intendente, aqui nesta mesma mesa, e repetiu: “Seu Guerreiro, sobre
tudo que eu possa fazer nesta terra, venho primeiro ouvir seu
conselho.” Não foi, Fortunata? E eu: “Meu conselho, doutor? Quem
sou eu, doutor.” Não foi, Fortunata? E ele: “O senhor, na minha
administração, será, sim, meu conselheiro.” E eu: “Não me confira
semelhante responsabilidade, doutor. Absolutamente.” Foi ou não foi,
Fortunata?
Seu Guerreiro palita os dentes, ou palita o riso? Guarda o arroto
no guardanapo.
— Bem, aqui este seu criado velho se meter, não se mete. Nem
cadeira de vogal nem simples escrutinador pleiteei neste mundo. Me
chamam de Major mas patente da Sois Nada nunca me chegou às
mãos. Sempre aqui no escondido atrás do balcão, tirando meu
peixinho do cacuri. Bem, te deixa ficar no teu lugar, nada és,
113
Guerreiro, te recolhe ao que nada és, assim. Na tal política, seus
mexidos e remexidos, São Benedito é testemunha, nunca meti minha
colher de pau. Eu, retrato, honrarias, se quisesse... Fortunata quis um
meu e o dela, aí na sala, desejo da Fortunata. Nunca andei pela Suíça.
Também coitado do velho. Pendurezinho o benfeitor do Município
naquela parede caindo. Já viu como está lá a República?
Seu Guerreiro ri breve, às vésperas do furor, logo domina-se, de
repente consternado, volta a rir.
— Eu até que estava para pedir ao Secretário, ao senhor, retirar
dali o retrato do meu padrinho Dionísio. Me autoriza?
— Como, D. Fortunata? Retirar seu padrinho?
— Se estragando ali no tempo, que está o retrato. Nós
compramos.
— Só com ordem do Intendente, D. Fortunata.
— Não vai pendurar o Coronel Cácio? Ponha no lugar do meu
padrinho.
— Ação que não me cabe, D. Fortunata.
D. Fortunata toca a campainha. Agora outra cabocla, com sinais
de bexiga, cheirando a cumaru. As duas cunhadas do seu Guerreiro
sem boca nem olhos na mesa. Alfredo, já de leve, no calor do vinho,
olha a jarra, a janela aberta, [208] a ausente lá de fora lhe acenando.
Seu Guerreiro se volta num tom ressentido mas sorridente:
— O que vou lhe falar, Secretário, não passe ao Capitão. Não
falo ofendido. Mas antes de mandar prender o infeliz do
Epaminondas, o Capitão devia ter me ouvido, se aconselhado comigo.
O praça jogou no próximo uma lata d’água. Está marcando o homem?
Pois o homem dormindo molhado na raiz da mangueira de frente de
minha porta com a sentinela ao pé? Em que o sono dele já perturba a
ordem pública? Com o velho Coronel, era grampeado dia sim, dia
não. Agora que mudou... Defronte de minha porta. Aquele está
debaixo da minha mangueira, Secretário. O infeliz bebe, não nego,
bebeu o que tinha, agora bebe da minha garrafa. É um dos bêbedos da
casa, como o Bensabá tem os dele. O beber dessa gente nunca ofende.
O Capitão quer reprimir o alcoolismo, o fumo do diabo? Comece pelo
quintal do Promotor. O Epaminondas viu o Santo Antônio perdendo
sangue? Quem sabe? Talvez um bêbedo tenha mais visão que nós,
mais olhos de ver. Bebeu? É diário nele, mexeu no sino, eu que não
mandei. Mas a prisão, na minha porta, sem me dar uma só satisfação?
Ele conserta nossas cadeiras, nosso relógio, pintou a nossa sala.
Vezes, na hora da ave-maria, ele, bem bebido, dobra o joelho, ali na
beira do barranco, e então que então que reza! De cortar o coração.
Ocasião que deixo ele beber um pouco mais pra que me faça melhor
pensar em Deus, em nosso destino.
— Rezar como ele reza! Não é, Guerreiro?
— De perseguição já basta a do tempo do Coronel Cácio,
Secretário.
Seu Guerreiro puxa a terrina, escolhe, escolhe, escolhe a moela.
— D. Pequenina, o que devia antes era saldar o compromisso
dos fornecimentos que fiz pra casa dela quando hospedou o padre na
festa passada. Até o vinho da missa. Regalou o padre com nosso
vinho e as nossas cebolas, o padre comia por três. Me comeu a
metade de um carneiro. Donativos ao santo, já sem conta, Fortunata
faz, todo ano. Mas 640 mil de fornecimentos, quem que vai me
pagar? São Benedito em pessoa?
— Olha o santo, Guerreiro!
[209] — Com o marido, o número cinco, o dela, se quero um
telegrama, tenho de gemer à vista. Estou em Belém, vou ao
Arcebispado, quero dar um parecer sobre a nossa igreja, o estado da
paróquia, me respondem que é da alçada da D. Pequenina, que só com
a D. Pequenina. Então que me paguem a conta. Pode-se endireitar
esta terra, assim desse modo, como, Secretário? Religiosa, religiosa,
muito religiosa... Bem, não me meto.
— Guerreiro e eu ficamos neste refúgio, Secretário.
Seu Guerreiro às cunhadas:
114
— Pro quarto um instante.
As duas corredor adentro. Seu Guerreiro baixa a voz:
— Abençoada pelo Papa, com carta branca aqui na igreja, às
minhas custas? Telegrama pra mim, seja o mais confidencial, é lido
antes pela senhora dona? Já ouviu falar do homem-lontra? Caritativa
senhora que ribanceira abaixo...
— Guerreiro!
— Fígado Branco do diabo! Meninas!
As cunhadas, com um ar de espreita, ressurgem de repente.
— Agora lá na cadeia, pendurando o rosário no freguês meu,
sangue dela, que ela manda trancafiar, e metendo na cabeça dos
afilhados que a perdição do Epaminondas está aqui nas nossas
garrafas.
D. Fortunata torce a boca:
— Os conselhos que temos dado a seu Epaminondas! Por falta
de conselho que não.
Seu Guerreiro:
— Secretário, meu amigo, pudesse, eu e os meus já estávamos
de bagagem a bordo, fora daqui conte os anos, a léguas deste
bamburral, que aqui ninguém reconhece nada. Isto aqui deixa de ser
lugar de família. Deus entregou isto ao Diabo.
D. Fortunata abana a cabeça, olha para as irmãs.
— Pensa o senhor que já não espalham o que se passou no baile
da Benigna, fora e dentro do baile, Secretário?
Alfredo bebe o espanto no vinho, embola a resposta no
guardanapo.
[210] — Meninas...
A um só tempo as cunhadas no corredor. Seu Guerreiro, garfo
no ar:
— Aquele passeio atrás do Maestro? Visto e comentado. É, o
Diabo no Coche, no tapiri de D. Daria, se cobre com a toga, planta
aquele fumo, toma conta da igreja, faz companhia ao Sede de
Justiça...
Seu Guerreiro bate palmas:
— Meninas!
Fez sinal de silêncio, olhando para as duas cunhadas tão ali sem
ouvir, sem ver, nem falar. D. Fortunata cobre-se de maior sisudez,
erguido o busto,. olhar de muito acima.
— E nós, nossa família, pisamos casa de ninguém. Daqui não
saímos, aqui metidos na toca, ferrolho descido, debaixo do
mosquiteiro, fazendo fumaça contra carapanã, com o fogareiro
correndo a casa, aqui ilhados... ah, cansa!
Seu Guerreiro, numa impaciência, cruza o talher, pede o abricó.
Servido o café, Alfredo olha ã janela da varanda e dá com
aqueles penitentes no escuro jantando o ar da mesa farta. No cheiro
do abricó somem as noviças. Seu Guerreiro e D. Fortunata
resignadamente se embalam.
Arma a rede, experimenta-lhe a segurança e altura, tira da mala
o lençol e o travesseiro, aquele da viagem ao Rio, agora com fronha
feita por Nini. O travesseiro lhe devolve a 3.a, o ronco das máquinas a
bordo, o rosto da aleijadinha.
Vai sair apressado, topa na porta:
— Mas seu Dó! A estas horas?
— As ordens, Secretário.
— Hora de rede, seu Dó.
— Pode que o senhor queira um rumo, Secretário.
— Não, seu Dó. Olhe, vasculhe o salão da Intendência, amanhã.
Não quero rumo nenhum.
— Um, o senhor querendo, o senhor não aprecia?
— Estou só apreciando a noite, e só, seu Dó.
[211] — O senhor só nesta ribanceira, assim primeiras noites,
cru como o senhor está deste pedregume? Levo o senhor até onde
115
quiser. O ué me passou mais. Minha comadre Benedita Lucrécia no
que benzeu de novo, aliviou. Olhe, Secretário, não se acanhe.
— Me deixe andar sozinho, seu Dó. Sozinho que se aprende.
Sabe daquela doente, a moça de Munituba?
— Onde estava não está mais. Dela só ficou o travesseiro que o
senhor pediu da mulher do seu Bensabá. Faz crer que rejeitou o
travesseiro. Sobrinha e tio se botaram. Cismo que foi Compadre
Parijó.
— Então me apanhe o travesseiro, guarde em sua casa, por
favor. Boa noite, seu Dó.
— O travesseiro? Já guardei lá em casa, Secretário, tive o
expediente. Qualquer coisa, em casa, segunda rua, do canto, lá às
ordens.
Acende o candeeiro da sala; na mesa, deixado pelo Coletor, o
Racine. Capa esverdeada, compêndio de liceu, fitinha verde, como
encontrar um verso que lhe dê a imagem de Bi entre a botija e os
espelhos, salte a janela, cheirando a cumaru, entrando nesta sala com
aqueles lagos do pai no olhar?
Fecha o livro, mais encardida a parede da sala. Racine, D.
Marta, velha mestra alemã! Andas pelas tardes de Belém, com tua
corcunda, teu luto, tuas línguas. Aqui, desterrado, o teu Racine,
adorno deste randevu de beira-rio. Aqui dentro, como lá fora, está um
forno, ar de febre e morcego.
Sai para o Trapiche, arrisca-se pelas tábuas soltas, desce a
escada, olha, olha! que o Trapiche se esvai no primeiro redemoinho.
O bicho-rio cavalga as suas massas e correntezas. Daqui para aquele
igarapé é o descaminho.
Volta à alcova, escuta lá pelos fundos: O quarto do casal em
silêncio. O Capitão sonha com quartzos e cristais. Abre a janela,
apanha o leque das portuguesas, no vizinho ninguém, as janelas de Bi
fechadas, debaixo da mangueira o Coche. Os pardieiros esperam a
vez de desabar.
Vamos seguir a bai a que passa pelo começo do Trapiche,
lambida de maré. Fecha-se a janela do Guerreiro. Seu Guerreiro não
se mete em nada, e nada se faça sem sua [212] audiência e anuência.
Atenção que o seu Dó deve estar por ai perto, no rastro, corujando.
Desta baixa fofa até o Forte é uma viagem. Aqui ao pé dos
canhões nem um pio. O Cato já desamarrou a senhora? Na Igreja, os
santos comentam os incidentes do Mercado. Lá atrás, luz na casa de
1875, é a vigília do Sede de Justiça.
Virá? O rio clareia o barranco, virá com a luz do rio. Virá,
meia-noite, porta aberta, e de repente sobre a rede o cano do revólver,
o Capitão. Na palha destas barracas de barro, corre um vento,
despenteia a mangueira. Agora faz barulho no rio, os paus na praia
como bichos. Vagalumeia lá na outra banda, barco? Holofote de
cobra? Mestre Parijó boiando?
Na alcova, embala-se, embala-se, guarda o travesseiro, que vai
ser da aleijadinha no Rio? Pendura o palmebiche no guarda-roupa,
como se pendurasse a Fada do Boi, aquelas noites de lama e fogueira
do Chão dos Lobos, a viagem ao Rio de Janeiro. O chinelo novo
range, fica nu? Alguns rostos o rodeiam: o Capitão com a mão no
gatilho, o Intendente sentado na pedra de onde o lacrau salta, a boca
— descomunal pelos gritos — da moça de Munituba, a Nhá
Mãe na janela, ou num andor?
Não vem, meu amigo é o meu umbigo. Ou só pela madrugada?
Pula da rede, corre até aqui fora, alguém passando?
Anda, anda, Trapiche, Coche, igreja, Forte, onde caiu a casa que
matou a vaca. Bate no seu Dó.
— Seu Dó, me diga aonde...
O arrancado do sono veste do avesso a blusa em fanicos:
— Aquela, Secretário? Cismo que esta noite é a vez do jabuti.
— Não, seu Dó, procuro sono, boa noite.
— Pena o nosso maracujazeiro sem um maduro, senão o senhor
chupava, no instante dormia. O senhor quer um chá, a mulher faz.
116
— Não, seu Dó, apanho o sono no ar, boa noite.
— D. Sara dormindo rouba o sono geral, Secretário.
[213] Agora na segunda rua um cheiro de araticum lhe dá força
de esperar. Desce na praia, saber se ela não foi primeiro à rede do exSecretário.
Fica debaixo da mangueira junto ao Coche. Lhe deu pressa,
segue para a Intendência, vê luz na cadeia.
— Dormindo, seu Epaminondas?
— Quem é? Santo Antônio?
— Um pecador, seu Epaminondas. Senhor trancou o sono aí?
— Quem é?. Ah, o Secretário. Não durmo, só rezo. A que devo
a honra? Não faça cerimônia. Está aberto. O soldado me confiou a
chave.
O velho bêbedo na esteira, o catecismo aberto, a garrafa pela
metade, no chão a lamparina.
— Por que não sal?
— Dei a palavra ao praça, é a vontade da minha prima,
Secretário. Mas é só clarear, saio.
— E a garrafa? Água benta, seu Epaminondas?
— Foi o praça, Secretário. O praça me auxiliou, trazendo uma
do seu Guerreiro. Servido? Ou quer servir-se um pouco deste meu
fumo?
— Os dois santos também fumam? Esperando por Santo
Antônio?
— Não desespero, Secretário.
— Boa noite, peça a ele por mim, seu Epaminondas.
— Farei presente, peço, sim, Secretário. Me recomende ao
Capitão.
Vem vindo, quem sabe um movimento no Coche, entra em
casa, enfia-se na rede. Porta da rua toda aberta, candeeiro aceso na
sala, o Racine, ar daquele fumo, febre e morcego.
Na praia, chinelos na mão, dente de jacaré no bolsinho da blusa,
corre a beira do barranco para o lado do Trapiche.
Todo o dia oculta, toda a tarde fingindo arrumar roupa, objetos,
sentimentos, guardando-se na botija.
Esta noite, pela primeira vez, como desejava, esta noite. Joga na
maré o velho Fiscal, o ex-Secretário e a [214] que se deu aos dois
como coisa nenhuma. Demora-se na beira do barranco, demora-se,
como se amadurecesse. Vai ser para ele como as laranjas de
Urucuriteua, mais que o jantar, mais que a busca do Maestro, o peixe
que ele não comeu na mesa, muito mais que a pirapitinga, o que ele
vai comer na rede. Agora a perdição dela vai salvá-la. E se demora
olhando o rio a lembrar-se da estória, aquele xerimbabo da Mãe do
Lago, o escorregoso Amarelinho. Agora me dou por mim mesma e foi
o jantar, comidas que comeram juntos, se ia ao baile, a instigação dos
espelhos, a busca da música, ou não é nada senão este meu danar-me,
isto em mim que me arranca do quarto e me joga no escuro? Tinha
fugido do baile por um brusco sem-motivo, ou não era? Ou simples
cálculo, já nem sabe. Volto ao quarto, mudo este vestido, melhor o de
etamine azul só por cima do corpo, dente de jacaré no pescoço, ah,
como se ninguém me tivesse tocado antes. Estira-se na rede se
embalando, a botija ao lado. A prima dorme (o dente passou). Erra
pela casa um ar de defumação.
Na sala de jantar os espelhos lhe mostram a mesa posta com o
rosto de Alfredo até que um pouco triste mas feliz, um rosto ainda de
viagem. Tudo nesta sala me leva a ele, me põe a grinalda, me leva a
reencontrar nele o que perdi com aquele velho de camisão e aquele
primo de bigode e barriga. Pela primeira vez legitimo, sendo o mais
secreto.
Agora, sim, passos na sala, baixa a luz do candeeiro, um
silêncio. De novo os passos, agora na porta da alcova:
Toda de preto na porta.
117
Quer apanhar-lhe a mão, ela esquiva-se pela alcova na ponta
dos pés. Vestido preto, de renda, e esquiva e encostando-se na parede.
Alfredo lhe faz sinais, o soalho range, os dedos estalam,
sobressaltado, mais de meia-noite. Alfredo lhe faz sinais e agora é
como se a dama sumisse, desfeita na sombra. De repente vem, joga-se
na rede que range nos esses. Levanta meio corpo, cochicha:
— O Capitão nos mate, ora essa. Cemitério não foi capinado?
Seu Epaminondas reza por nós.
Alfredo se lembra da cena com o velho Fiscal, contada pelo
Intendente, quer abraçá-la, repelido. Bi sacode o cabelo molhado,
cheirando-se no peito, braço, ombro:
[215] — Sentindo?
Cobre-se com a varanda da rede.
— Que estou com um pixé, estou? Estou, sim.
— Mais baixo. Não fale.
— Nem banho de rio nem todo o frasco da loção de 15 mil-réis,
não tira, não tira, me deixe me ir, acabou-se. Pegue o dente. Faça o
chá.
— Mais baixo. Teve sessão em casa?
— Não sente? Não sente? Que estou fedendo a podre?
— Fomentada com banha de urubu?
Alfredo, sem levar a sério, segura-lhe o braço que ela brusco
puxou, saltando para o pé do guarda-roupa, as mãos na boca, vai
vomitar? Embora sobressaltado, Alfredo já aceita aqueles modos,
aquele capricho, seja sério seja grave lembre-se... deixando-a solta,
aqui é a porta larga, tirou a pedra, o lacrau salta, solta no quarto que
se impregna de loção. Aproxima-se dela, mão estendida, cavalheiro
tira a dama, seja grave seja sério lembre-se...
— Duas vezes no rio, na segunda me deixei ir na correnteza, la
já longe, lá fora, morrer por morrer melhor morrer no rio, acabei me
vendo no seco como se o rio me vomitasse, como se alguém me
trouxesse: Vai, sua porca, pro teu chiqueiro. O tucuxi, sei lá.
— Fui eu — cochicha Alfredo, com um sinal de silêncio.
— Não tem mais cura. No primeiro cedro que descer de bubuia,
me embora.
— Comigo.
— Esta que sou eu? Com o senhor? Esta que sou, ainda mais
agora? Com o senhor? Era se fosse.
Faz beiço, faz um nojo de si mesma e de tudo. Alfredo entende
como faceirice dela, por isso mais preciosa, de preto e rendas, cumaru
e loção, os olhos passados em gordura de cobra; anda pela alcova, na
sala abre e fecha o Racine, vai fugindo, retrocede como se um bicho a
espreitasse lá de fora, sopra o candeeiro, fantasmeando pelo escuro,
de repente na beira da rede.
— Vou inaugurar o retrato do seu pai.
— Que tenho eu com isso?
[216] — Venenosa como o jacuraru em junho quando briga com
cobra? Brigou com cobra, esta noite, pegou veneno delas? Estamos
em junho?
Dá de ombro, sacode o vestido, Alfredo vai beijá-la.
— Não, que só lhe passo bubônica. Peguei da pior peste.
Alfredo passa-lhe o braço na cintura, “alguém quis lhe roubar a
sombra?” Ela resiste. “Assombração da rua, do rio, do Coche?” Bi
cruza os braços, “essa comediante”, julga Alfredo, cheio do seu
triunfo, abrindo a rede.
Seu Dó varre o salão, espana os sofás furados, sacode lá fora os
farrapos da toalha da mesa, a custo consegue pendurar o exIntendente na parede que racha.
Iça a bandeira já cerzida, enxota o capado do Promotor que quer
entrar no salão, coloca as escarradeiras nos lugares, vai em casa
entonar-se.
Volta, paletó de alpaca, ganho a bordo, gravata de elástico, com
um pé, o direito, num borzeguim ruço, e outro no chão por via do
dedo estropiado. Na lapela a pena de urubutinga que o porteiro exibe
118
nas datas cívicas. Tinha cortado o cabelo cedinho do Maestro, que lhe
perguntou:
O Secretário não precisa dos meus préstimos na cerimônia?
— A cerimônia não pede a comparecência da música,
Secretário? O Maestro pode vir puxando da perna, no braço de uma
pessoa. Ficava mais cerimonioso ele tocando, Secretário, não
querendo eu lhe dar lição ao senhor, sabedor de multa cerimônia na
cidade que o senhor é.
— Satisfeito, seu Dó, com o novo retrato?
— Sempre enfeita, Secretário. Cerimônia assim não é todo dia.
Chamo o Maestro?
— Fiado?
— Por isso não, que ele toca. Flauta e cabelo, ele toca e corta
em confiança. Agora a Intendência tem crédito. Desconsideração ao
senhor ele não faz. Ah, vi a hoje finada banda tocar na inauguração de
par de retratos desses! Sempre dá uma saudade. O Maestro fia,
secretário. Chamo?
Não demora, o Maestro no braço do Nhoduca, capengando,
alpercatas e paletó, e o Zeqüenqüém, vestido de escoteiro, com o
violão. Chega o Prefeito de Polícia.
[217] — Mas, Secretário, que foi isso, que foi isso?
— Não avisei ao senhor? Nossa política de rasga-seda. Ou não
é?
— O Guerreiro? Ouvido?
— Ficou ciente.
— Isso é rasgar seda?
— Seu Guerreiro nunca se mete.
Flauta e violão se afinam. O Capitão baixa a voz:
— Mas no momento em que a moça voa?
O Capitão contempla o retrato, considera os estragos no prédio,
leva o Secretário à janela.
— Pois ainda não sabe? Azulou no Aimoré ao amanhecer,
descendo para Belém.
Alfredo se faz desatento.
— Claro que o pai não vem. Adie a solenidade. O Coronel não
vem.
— Vem, sim — diz Alfredo, vendo o Coronel a caminho da
Intendência sobrecasaca, bengala, o passo lento, seguido pelo anão.
Entra, olha o retrato na parede rachada e suja. O anão, paletó e
gravata, reclama o rufo, o rufo no Cartório do Juízo. Vai buscar, o pai
segura-lhe o braço. O anão tentava sentar-se no sofá furado. Lá fora
grunhe o canado do Promotor. Longo silêncio, Coronel, olhando o
teto estragado, os sofás defuntos, as escarradeiras. Presidentes da
República. Governadores, Intendentes, roídos de bicho, resignados no
bolor.
— Onde, onde está? — indaga baixo, como a si mesmo.
— Onde, Coronel?
— A República.
— Lá dentro, Coronel, precisando de moldura nova — explica a
Alfredo.
— Bicho comeu um dos seios dela — lastima o Porteiro,
temendo que o culpem por isso. Coronel volta-se:
— As pesquisas geológicas, Capitão?
— Ocupações de rotina não me dão tempo, Coronel. Estamos
aqui praticando um ato de justiça.
[218] Coronel inclina-se, apanhando a aba da sobrecasaca,
barba feita, brilhantina no cabelo, lustro no sapato. O flautista ensaia
a introdução. O hino, o nacional, sugere Zeqüenqüém. Vendo-o assim
de escoteiro, o Maestro, no braço do Nhoduca, apara o riso, puxa a
perna, descansa a perna no sofá. Zeqüenqüém mandou vir o uniforme
de Belém, usa em dia de gala. Alfredo vai rir sozinho na Secretaria,
atrás da papelada, batendo osgas e baratas. E Bi, que se foi? Dela
resta, lá na alcova, a loção, o asco, a sombra do vestido de rendas.
119
Que aconteceu a ela, esta noite, senão seu cálculo, a náusea para se
dar mais preço ou para justificar a fuga?
— Secretário, o Capitão lhe chama.
O Juiz chega, o Promotor com o seu cachimbo, o Coletor
Estadual. O soldado em posição de sentido, sabre à cinta. Entra um
gafanhoto que o anão esmaga com o bico do sapato. Seu Dó atira o
morto ao capado do Promotor que recusa a comida. Alfredo e Capitão
se entreolham num embaraço. Nem o Maestro toca nem de
Zeqüenqüém um som. Grita uma curica defronte do Gasômetro. O
Capitão acotovela o Juiz, este, por sua vez, ao Promotor que
murmura:
— Você. Você, na qualidade de magistrado, você... Se
esqueceram de cobrir com um pano o retrato.
O Juiz puxa para junto de si o homenageado, seguido pelo anão.
— Declaro inaugurado o retrato do Coronel Cácio. Era uma
divida da Municipalidade para com o Coronel. Esta galeria reclamava
há tempos a sua presença.
Abraça o Coronel, o anão chora, o Coletor bate palmas, o
Promotor reclama contra o mormaço ainda tão cedo, desabituado que
está com roupa de cerimônia, e lasca algumas frases em francês; o
Coronel Cácio, ouvido atento, aprova, fechando a sobrecasaca. Olha
para os presentes como se lhes dissesse: Isso não é ainda o desagravo.
O Coletor o cumprimenta em seu nome e no da Fazenda do Estado,
representando também, a Casa Bensabá. O Maestro toca a marcha
com Zeqüenqüém ao violão, entra o ex-Secretário num colarinho
duro, a pentear-se, esgazeado. Alfredo a seu Dó:
— Possível arranjarzinho com a D. Bena agora-agora um café?
[219]O Juiz puxa a manga do Secretário:
— Tem mais tempo, não, encerre. Vamo-nos antes que isto
desabe.
O Maestro cala a flauta, zás, desprende-se o retrato do Marechal
Floriano, o Juiz: arre! Alfredo apanha o Marechal de Ferro:
— Fica em cima da mesa. Amanhã seu Dó dependura.
O Coronel pede uma atenção:
— Proponho que o Secretário Municipal envie ofício ao
Governo do Estado e ao Partido, comunicando o fato, e, logo que
tiver telégrafo, aos jornais a respeito do evento.
Toma a direção da porta, entre o Juiz e o Coletor, Zeqüenqüém
ergue o violão e dá um viva ao Brasil. Amparado pelo Nhoduca,
caxinga o Maestro tocando Dores Fatais, o Zeqüenqüém cantando, o
Promotor leva pela orelha o capado para casa, o anão enxuga os olhos
na ponta da toalha, o Coletor desculpa-se com o Capitão pelo sucedido na noite do baile. Seu Dó, desasteada a bandeira, cobre com ela
o Marechal na mesa, e vamos fechar a Intendência, depressa, já
descalço o porteiro, borzeguim na mão, a pena de urubutinga na
lapela. Alfredo abre o bilhete que o Zeqüenqüém lhe enfiou no bolso:
Empreste-me, por obséquio, até segunda dois mil e quinhentos. Excorde.
Deixa o Coronel em casa, vai ao Trapicheiro.
— O ex-Secretário estava?
— Que eu visse... O anão, sim, carregou a mala, se
desmanchava em choro.
— Ia de branco?
— Toda de preto com rendas e olhe que bastante perfumada.
Foi, desatou o punho da rede, se foi, Secretário. E tão sem sangue no
rosto. Adeus, Trapicheiro, me disse, olhe que você acaba sustentando
esse Trapiche no ombro. Não deixe a candeia dele apagar. O que
estranhei foi aquela botija na mão dela, como se levasse uma imagem.
Ah, já is. me esquecendo. Tem aqui um bilhete...
Puxa o bolso, revira o bolso, um minuto indeciso.
— Mas então onde que botei, uai?
Debaixo do velho carnaúba no banquinho ao pé da rede.
Alfredo abre: Procure saber de quem é a máquina [220] de escrever
que está no chatô do ex-Secretário. Consulte o livro da Tesouraria.
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Volta à Intendência, apanha o Receita e Despesa.
Bate no chatô do ex-Secretário.
— A máquina é do meu tio, Secretário. Compra particular.
— Aqui registrado na parte da Despesa: 600 mil-réis.
— Vamos em casa do meu tio.
— Fica aqui entre nós, devolva a máquina sem que o Coronel
saiba.
— Em tudo isso deve haver um desentendimento. Vamos ao
meu tio.
— Seu tio já anda tão sobrecarregado...
— Vamos ao meu tio.
O velho Coronel aparece na sala como descido do retrato,
sobrecasaca, Larousse na mão.
— Conhece, Secretário? Não, Coronel.
Alfredo apanha o volume, salta das páginas a velha mestra
alemã, também professora de violino.
— Coronel, ficou bem o retrato?
— Preferível do lado direito, junto do Dr. Lauro.
— Pois o seu Dó vai colocar junto do Dr. Lauro, Coronel.
O cafezinho trazido pelo anão. O ex-Secretário penteia-se,
penteia-se. É o diabo, perde a Secretaria, perde BI e a máquina numa
vez só, pensa Alfredo.
— Lamento, Coronel...
O ex-Secretário guarda o pente, adianta-se e explica.
— Máquina?
— A de escrever, meu tio. Não se lembra?
O Coronel põe os óculos, segue com o dedo a linha escrita no
Receita e Despesa, volta a ler, abanando a cabeça, devolve o Receita e
Despesa ao ex-Secretário. De sobrecasaca e Larousse, o velho se
mantém de pé, o peito inchado.
— Convém restabelecer a verdade, meu tio.
[221] — A letra não é sua?
— Já faz dois anos. Um lapso.
Coronel sobraçou o Larousse.
— Adquiri a máquina com os meus recursos. Em todo caso, é
uma doação ao Município. Entregue.
O Sede de Justiça alcança o Secretário defronte da porta do
Maestro que tece tipiti à janela.
— Secretário! Com a boca na botija! Não fosse a minha
vigilância! Gatunos!
Alfredo impacienta-se.
— Eu ia examinar a Caixa, dar por falta...
— Mas o brado de alerta, a hora e a tempo? Foi meu! Foi meu.
Você inaugurou o retrato de um velho lunfa. Exija uma catalogação
dos pertences da Intendência. Um inventário.
— Já tenho em mãos um, Coletor.
— Inclui a máquina? Não. E o mais que não se sabe. E o mais
que nunca se sabe. É só uma relação de coisas mortas, aquele lixo na
Intendência.
— Um catálogo de ruínas, Coletor.
— Mas todas as escarradeiras estão lá, Secretário? Faltam
quatro. E um lampião e um sofá. E o mais que nunca se sabe. Tem
uma hora disponível? Quero lhe mostrar as partes que acrescentei, de
ontem para hoje, no meu processo. É de cair de costas. Mostro-lhe
também cartas que recebo de Belém a respeito. E você me convida
aquele ladrão velho para inaugurar retrato do outro, com o xadrez ali
junto, junto. Um pontapé no traseiro e estava jogado no xadrez ali
junto, junto. No entanto, o Capitão, a pedido da carola, trancafia o
pau-d’água. Por um lado foi bom prendê-lo ali nas barbas do
Guerreiro. O Guerreiro, comprando o Juiz, tomou as terras do pobrediabo. Agora, quando quer distrair-se, dá mais bebida ao Epaminondas, para o Epaminondas ali na raiz da mangueira se esgoelar na
reza, fazer-se de profeta, contar das suas intimidades com o Santo
Antônio. É a distração do Não-me-Meto-em-Política. Rindo, às
121
gargalhadas, à custa do pau-d’água que ele botou na miséria e na
cachaça.
[222] Alfredo quer explicar.
— E a pombinha que bateu asa? Nem tempo deu ao nosso
Secretário para assinar o ponto, foi uma injustiça. Ou deu? E
principiou tão bem: aquela busca do Maestro. Você cobrou dela o
imposto do Trapiche? É um produto da terra que se exporta. De
encomenda direitinho para a Cristal que deve ter lhe pago a
passagem, lhe deu ajuda de custo...
— Assim?
— Ou ainda duvida? Burlado? Sim, vai assumir o seu posto, ou
melhor, a sua cama, meu filho. É só eu pôr o pé em Belém, dar
entrada no processo, dou uma passadinha na Cristal. As mamas, ela
vai expor na vitrina. Uma visita à minha conterrânea, à caloura.
Caloura! Dez em preparatórios, além dos predicados que o Diabo lhe
dá. Me dou com a Belarmina, a dona da Cristal. Belarmina, uma
noite, se tomou de um brusco arrependimento, se encheu de contrição
e gim, apanhou quatro de suas pupilas, tomou um carro, e invadiram o
Arcebispado, se prostraram aos pés do Arcebispo que saltava da cama
de camisão e terço, tocando a sineta de alarma. O violino da
permanência foi grampear as arrependidas. Ficaram rezando no pátio
toda a madrugada com os ladrões fazendo coro. A Cristal fechada sete
dias com guarda na porta. Mas ai os Poderes, na pessoa de várias
autoridades federais, estaduais e municipais, sustaram o embargo com
a condição de nunca mais Madame e pupilas se arrependerem. Agora
é ver a filha-família lá, o alfenim da mãe, a filha única do meu
egrégio inimigo, leitor do Larousse e do catálogo da Galeria Lafaiete.
Ah, ver a menina lá, ah, seu Secretário, vale, vale a pena! A galinha
cuspia quando eu passava. Escarrava atrás de mim!
Um instante de vacilação e declara:
— Com aquele piquete que veio para as obras do Forte, aqueles
soldados, Bi, ao que estou informado, batia a janela no nariz deles.
“Não me passo para soldado”, o que disse. Preferiu o velho Fiscal,
substituído pelo primo por ser este então Secretário. Secretário,
Secretário, hein, Secretário? Veja que estou fazendo justiça a quem
não merecia:
nem no seu quarto, nem no Coche, nem na praia, deu para o
Exército. É ou não é fazer justiça? Rendo-me aos fatos. Foi.
[223] Braço no ombro do Secretário.
— E então? Tratado a peru e a vinho onde ninguém se mete em
política? Guerreiro se queixou que o Presidente da República não lhe
deu a empreita das obras do Forte? Não lhe falou que a idéia das
obras partiu dele? Guarda a xicra do Presidente e o ressentimento.
Olhe que se empenhou!
Acende o cigarro.
— Como, mas como! se empenhou pra pegar a mamata! Até a
nossa bancada federal, como nunca faz nada, intercedeu a pedido
dele. E mais.
Dá a baforada.
— Guerreiro a muitos parece sujeito descansado, retraído.
Conversa! Não mexe uma palha? Desvia o curso do rio aí, no seu
interesse.
— Você, que o ataca, acaba de elogiá-lo — diz o Alfredo.
— Mas teve de engolir mesmo a D. Mundiquinha Paiva, uma
sapa de rede rasgada que aqui acampou, mamou a empreita à custa de
alisar, no Maranhão, a careca do Major velho que não pode ver uma
saia. E aqui “minha senhora, minha senhora”, etc. e tudo e o mais.
Soltei meu bem-te-vi, descubro que a legítima do Major mora no Rio,
e sei de fonte limpa que a senhora recebeu mais de uma carta
anônima. Estás a ver que só pode ter sido escrita por quem perdeu a
empreita. As duas cunhadas dele sentaram à mesa? Foi? Milagre!
Guerreiro é demais zeloso da herança delas, medo como diabo que o
pitéu lhe saia das mãos, o tutor da maior cautela e fúria, por isso tem
as duas na corrente. Aí está! Aí está pra você uma bela ocasião. Está
122
pra sua idade. Não só uma. As duas de uma cajadada. Pape que elas
andam tinindo. Questão saber fiar a arapuca. Faça isso, por mim, que
o Guerreiro merece, bem merece. O patife me parece rir do que
sucedeu a nós todos nesta ribanceira. É preciso que o desastre atinja
ele também, e de grande.
Enfia o braço no do Alfredo: Está brincando, brincando.
— Não seja eu, no entanto, que lhe desaconselha a sugestão. No
Coche, não resta dúvida, a D. Mundiquinha Paiva só aquela noite.
Uma vez só, por sensação, por [223] novi|dade. Cada noite com um
soldado, não resta dúvida, mas dentro de casa, no dormitório do
piquete. Para a devida exatidão histórica, só com o piquete, não. D.
Mundiquinha Paiva, sedenta de fantasias, não apelou só para o Coche,
apelou para o Quinca Tatajuba. Já conhece? Aquele que é pra todo
serviço? Pra todo serviço, sim, seja nas obras do Forte, seja nas ancas
da empreiteira. Tamanhão de preto! Pretão espichado, raça! Pois a D.
Mundiquinha Paiva veio a saber, ou observou, adivinhou, palpitou,
que o Tatajuba era portador de uma muiratinga nascida lá nele, já
afamada em toda esta beira de rio, pelo calibre. D. Mundiquinha
Paiva, sempre despachada, foi ver o monarca de perto. Fez justiça à
ribanceira. É o que nos resta, o que a ribanceira só tem de próspero,
aquele bem gerado do Quinca Tatajuba. Nesse ponto, tiro o chapéu,
rival do da anta. Ela ia ver a madeira de perto. Saía com o Tatajuba a
passeio pelo rio, na montaria, sumiam igarapés adentro, ela voltava
falando das garças e das guaribas. No mais, não era má com nossos
pobres, do que sobrava das suas panelas distribuía. Não consentiu que
os soldados mexessem com moça-donzela. O Cabo, por exemplo.
Mexeu com a namorada? Fez mal? Não tem por onde nem pra depois,
bota o Cabo pra casar, tirou, não tem conversa, casa. Embora lastime
eu a sorte da casadinha. Come, sim, se veste, não tem dúvida, tem o
que calçar, é fato, por estas bandas isso não abunda. Mas em troca, ali
trancada, ali trancada, ali no grilhão, tornozelo amarrado na perna da
mesa? Por outro lado, D. Mundiquinha Paiva andou até dizendo que
eu tinha razão no meu combate ao Juiz. Me aprovava. Mandei dizer a
ela que muito obrigado, favor não me estava fazendo. Pensando bem,
que culpa tem ela de seus apetites? A responsabilidade não é dela, é
do Exército. Incrimino a pasta da Guerra. E só não mexi meus paus,
por ocupado na redenção do Juizado. Por isso não representei contra o
Major, não denunciei, eu, Federal, às autoridades federais nem soprei
no jornal. O erro era de fundo. Reforma do Forte, quando aqui atrás
podre quem está é a Justiça? Só sei que a D. Mundiquinha Paiva
comeu foi tudo. Foi. Pois Guerreiro e Fortunata foram despedir a
Madame a bordo, a Ilustre atochada de presentes, e Irapuru e
muiraquitã, só faltaram estender tapete no Trapiche. Eu na popa do
gaiola, só de olho, bebendo minha cerveja, e quem vejo? O Tatajuba,
o pé na prancha, estende, humildezinho, a mão para a D.
Mundiquinha Paiva no braço [225] do Major: bença, mea madrinha? e
ela: São Benedito te dê mais juízo, meu afilhado. Viu? Tinham
passado fogueira em junho, e eu não sabia. Contam que para se
lembrar dele levou consigo no maior segredo um pau de muiratinga.
Viu? Assim é que se trabalha, Secretário, O Guerreiro não lhe falou
do Forte?
— Não.
— Duvi... d-ó-dó.
— Só falou do filho.
— Usando você a política do ouve e bico calado?
— Só falou do filho.
— Do filho que socou no colégio interno em Belém e quando
vem de terias amarra o rapazinho no balcão, cobrando do caixeiro os
gastos do colegial, e o rapaz sem licença nem de um pulo ali na
cabeça do Trapiche pra esvaziar a bexiga? Não sabe que pediu ao
Presidente levasse o rapaz para a Escola Militar?
Sede retira o braço, espirra.
— Empreiteiro não foi, mas que papou o seu pedaço, papou. Só
em recibos... Vendeu o piche pelo dobro, armou rede na varanda para
123
o Major velho que saiu daqui com vinte gaiolas de passarinho, um
Irapuru, um muiraquitã, tudo dado pelo Nunca-me-Meto. Quem
trabalhava no Forte ganhava 2$500 ao dia mas na tolha se escrevia
5$000 a gosto de D. Mundiquinha Paiva. O mais favorecido da terra
foi o Guerreiro que matava uma rês por semana. Mas o ressentimento
está lá, dentro dá xicra.
Aponta com a bengala para o Forte.
— Sim, que tradição o Forte guarda. Deu seus tiros. Aqui
passou o bandeirante, os jesuítas. Depois das guerras, virou Forte
Fiscal. Foi ficando calado, se quebrando, desmoronando, até ficar
debaixo do mato. Muito se obrou e fornicou naqueles paredões. Ter
um Forte ali na frente com esse Juiz aqui atrás? E ainda lhe digo: o
Juiz comeu naquele cocho, sim. D. Mundiquinha Paiva lhe facilitou
uns vales a titulo de consulta jurídica, foi. Onde fareja um osso, lá o
cão. A não ser que se jogue o Juiz barranco abaixo e se transfira para
o Forte o Cartório do Juízo, aí sim. Não esqueça que é preciso
também sanear o Cartório, o Correio, uma vassourada em regra,
mudando o Tabelião, a Agente Postal. Eis aí pra você, com o meu
voto: cave o [226] Cartório, com o meu voto. Cave o Cartório. Sim
que se deve primeiro mudar de Juiz. Com esse Juiz ai, nem você, meu
anjo, no Cartório, se salvava.
Alfredo quer livrar-se, alegando serviço.
— Serviço, Secretário? Serviço?
O Sede funga e se empertiga.
— Uma, uma casa de família, nesta ribanceira, D. Mundiquinha
Paiva não se atreveu a botar o pé metido no camurça de salto alto, rã!
Ah, não! Já adivinhou qual casa? Pois essa mesma, pois essa mesma,
a 1875. Pôr o pé? Aquela? Rã!
Corta o passo de Alfredo, faz uma curvatura.
— Quanto ao Major, eu só de passagem lhe tirava o chapéu. Ele
bem sabia que discordei das obras. Sabia que enderecei urna carta ao
Presidente da República mais ou menos nestes termos: Exa., em vez
das obras do Forte, obras na Justiça, varrendo este Juiz daqui para
sempre. Mas D. Mundiquinha Paiva pesou mais.
Passam pelo Telégrafo.
— Comadre Pequenina, já tem cabo?
D. Pequenina, na porta, passa a flanela no ostensório, finge-se
muito ocupada.
— Comadre Pequenina, já tem cabo?
Ela então que se assusta:
— Ah! Ainda não, compadre. Como vai a nossa professora?
— Sempre trabalhando pela religião, não, comadre?
— O que posso, com o que Deus Nosso Senhor me dá,
compadre, meu dever de toda hora. Quero, dezembro, tudo na. Igreja
no maior lustro, compadre, para isso não poupo as minhas flanelas. E
a saúde da nossa professora?
— A febre do seu marido?
— Faço as minhas preces. Gostando da nossa terra, Secretário?
Os dois caminham para a 1875.
— Desconfio, Secretário, que a minha comadre, de ostensório
na mão, anda é matando o quinto aos bocadinhos. Tome cautela. É
pretendente à vista. E naquela [227] pergunta pela nossa professora
tem peçonha. Minha senhora, licenciada para tratamento de saúde,
não pode reassumir a cadeira por todo este ano e mais os primeiros
seis meses do que vem. Um dia estouro. o enigma daquele embrulho
que a refinadíssima papa-santo atirou ribanceira abaixo numa noite
em que até o farol do Trapiche apagou. Com o mesmo sanguinho que
enxuga o cálice, na missa, depois que bebe o vinho, o padre enxuga a
guloseima dela, da carola. Deixa, deixa me livrar do Meritíssimo, sua
Fígado Branco! Contigo é no p-a-pá-santa justa!
Bago de olho empolado, bate a bengala.
— E aqui com franqueza, Secretário, não fosse o cabo
interrompido e já os jornais de Belém teriam estampado o meu
protesto contra a inauguração do retrato, além da comunicação do
124
embarque da filha-família para os cuidados da Madame Belarmina.
Não que fosse um rompimento com os senhores. Dou-lhes ainda um
crédito de confiança. Ë, sim, uma coerência de minha parte. Zelo pelo
meu torrão. Não posso transigir. Não posso ver o ramo de oliveira do
nosso Intendente sem logo fazer dele um vergalho justiceiro.
Entram na 1875. Zeqüenqüém rápido se enfia na blusa, emborca
o violão, exibe o dente de ouro. Liliosa esconde as pernas, agora
folheando uma antiga Cena Muda. Lá de dentro vem a mãe, de mãos
postas:
— Filho do meu coração, nos trouxeste o Secretário, ah! Liliosa
tanto que vem falando tão do senhor lá no baile, o Secretário, pra cá,
o Secretário pra lá, uma pessoa que vale a pena! Zeqüenqüém,
assunto dele toda hora, o senhor, o senhor! Zeqüenqüém, meu filho, te
agarra com essa amizade, que uma assim é que é.
Põe os óculos, remira o visitante, puxa cadeira. O Sede de
Justiça dá corda no despertador. Na mesa entre jornais o bronze da
justiça, onde a caveira? Na parede, com efeito, os dois maridos e a
viúva no meio, até se parecendo com
D. Tereza Cristina, a Imperatriz. Batendo a bengala no ladrilho,
o Sede faz soar seu rabecão:
— A nossa velha 1875, Secretário. A inabalável.
Bate mais duro.
— Oh, mas não me deixem galinha entrar nesta sala, joça!
[228] Liliosa foge, Zeqüenqüém remove o titi do ladrilho, retira-se com o violão.
— Mamãe, o cafezinho, enquanto vou mostrando uns
documentos aqui ao Secretário. Zeqüenqüém trouxe carta do Correio?
Aquela D. Benigna! Chegará a vez dela.
— Zeqüenqüém, meu filho, me parte um pau de lenha, neste
Instante. Liliosa, me tira do guarda-louça aquelas xicras da tua
cunhada, minha filha. A visita é de tratamento. Prende a galinha
debaixo do paneiro com uma pedra em cima, anda.
Sede mostra a Alfredo a pasta cheia:
— Aqui é a forca do bandido.
Pára na porta do Juiz que passeia na calçada, pijama e tamanco.
— Me desculpar, meu caro. Vindo de onde vem, não lhe abro a
porta. Não se poda sair imune daquela cloaca, trate logo de se
desinfetar todo. Ia lhe dar um café, mostrar meus barrigudinhos
ilegais, mas convenhamos... Vá lavar-se e volte. Tome um tanho de
creolina e volte.
Alfredo leva na conta de gracejo, seguindo com o ramo de
oliveira na mão. Na calçada do Mercado aquela negra alta, a Nhá
Barbra.
— Meu branco, tanto que eu queria um particular com o
Senhor. Pode?
— Me chamando de branco, Nhá Barbra? Me repare na pele.
Somos do mesmo mocambo. Sim?
Nhá Barbra acende o olhar, baixa a cabeça, embaraçada.
Lava-se naquele olhar da negra alta. Ali o seu banho e quer
beijar a mão da Nhá Barbra. Lhe dá um cruzado.
— Nossa Senhora, São Benedito...
— ... ser mea madrinha, Nhá Barbra?
— Comadre, mais melhor, sim? Assim chegue São João,
ajustado, desde já lhe chamando de compadre, sim, meu compadre?
Quando escrever, lembrança pra sua mãe, que a Barbra, esta negra
velha, manda para ela. O senhor é parecido com ela?
[229] Não responde com aquela Indagação andando. No corredor de casa, misteriosa, um cupuaçu na mão, a Zezé.
— Secretário, aquele meu particular com o senhor é só pra lhe
avisar, agora que o Capitão saiu, que a senhora dele manda lhe dizer
que o senhor evite sempre de falar com ela, de ficar em casa quando o
Capitão não está. É de toda conveniência. O urubu que ele matou?
Matou pra não atirar no senhor.
Vai na rua ver se vem o Capitão, volta:
125
— Olhe, Secretário, ele, de dente ferrado, risca o peito dela com
ponta de canivete, naquela maltratação. Este cupu? É aquele mesmo
de ontem que o senhor ganhou do velho Seruaia e logo deu ao
Capitão perguntando se a senhora dele gostava de vinho de cupu. Pois
só era “de enterro, te deixo enterrada nesta ribanceira, rameira”. Lá no
quarto trancados, o Capitão de canivete no peito da
D. Almerinda. Ordem de atirar o cupu no rio. Coitada, ela o que
fez? Fez que atirou o cupu no rio, pegou me mandou que eu
devolvesse o cupu ao senhor me encarregando de lhe dar
conhecimento do que sucede. Deixe estar que eu levo o cupu pra casa,
lá lhe faço um vinho, só se o senhor não quiser nos dar a honradia.
Tem repugnância de entrar em nossa barraca? Aqueles ovos que o
senhor deu? O senhor nem faz idéia. Rameira, que ofensa é?
— Mas tão atencioso com ela na minha presença? Tão minha
filha, minha filha!
— Ai que a porca torce o rabo, vê cara não vê coração, o mimo
é pra inglês ver, o bem-parecido esconde o horripiloso, me beijando
no rosto e me furando a barriga com a ponta do canivete. Ele só de
propósito, mas só de propósito, senta a D. Almerinda bem confronte
do senhor na mesa, a rameira ali no banco do réu. Rameira é mesmo
nome feio, Secretário?
Vagueia pela capoeira, apanha um chuvisco, desemboca na
terceira rua, desvia-se do Escora-Canto, pára defronte do Gasômetro.
Quer bater no Coronel Cácio, chamar a prima. A casa trancada.
Anda na segunda rua, na terceira, onde mora a indiarana? Para não
seguir no rumo da Daria-Mora-com-o-Diabo, entra na barraca da
Zezé.
[230] — Que menos sonhei neste mundo! O senhor debaixo de
nossa palha! Que foi? Que alma se salvou? Eu la deixar a casa só, ia
trançar as redes pra avisar que ninguém está, e agora o senhor?
Alfredo vai sair, Zezé toma-lhe a frente.
— Um instantinho. O cupu é um instantinho. Arma a rede, faz a
visita deitar-se e corre a abrir o cupuaçu. Despolpa com a tesoura os
bagos amarelos, sempre se rindo, descalça, suada, jogando os caroços
no chão. Pela barraca reina sossego, ali acumulado, cheirando a
cupuaçu, a terra.
O vinho na cuja adoçado com açúcar moreno.
— Veja se está bom de doce.
— Tem o mel daquelas laranjas, aquela-menina.
— Laranja?
— De Urucuriteua.
— Onde provou da laranja?
— Não provei, adivinhei.
— Prova desta.
Deu o beiço. Alfredo na rede, com a cuja, provando o gomo.
Nisto um tiro no mato.
— Meu Irmão caçando. Ou chamando a filha do ferreiro, a
Duli.
Se derreia no mocho, a pele paludosa, o olhar finório.
— Mais cupu? Ter, tem. Mais?
Fica na porta da rua, costas para a rede. Alfredo quer sair, ela se
escora na porta fechada, cruza os braços, rindo.
— Daqui? Daqui só me pedindo bença. Por esta porta, era, se
fosse.
— Tenho de pagar o Maestro pelo serviço de hoje. Ver os
cemitérios.
— Ah, o senhor pague o Maestro com a sua amizade. A rede
lhe dá nojo? Pra cemitério, deixe que cedo ou tarde lá estamos. A rede
lhe dá nojo? Tirada do baú para o senhor. Nojo? O senhor é medonho
de tão cismado. Já tem lavadeira pra sua roupa? Mamãe lava. D. Bi lá
em Belém não vai saber oi gente.
[231] — Amanhã trago a roupa.
126
— Não carece, eu mesmo vou buscar. Assossegue os ossos, o
senhor é bem ossudo. Ai na rede, mimoso das outras. Basta já ter
suspendido aquele retrato naquela parede desaba-não-desaba, já
ganhou o dia, descanse. Deixe primeiro o Capitão derrubar outro
urubu.
— Tenho pressa.
— Pressa quem tem é vento, seu tira-pai-da-forca.
Embala a rede, vamos levar a rainha pro nosso rei do Rosário...
Espia pela janela. Alfredo, naquele embalo, lembra as tardes do chalé
com os periquitos no ingazeiro em flor.
— Eivém gente.
Alfredo levanta-se.
— Assossegue que o Capitão não é, seu sobressaltado. Foi a
Duli do ferreiro correndo no rumo daquele tiro. A embiara atrás do
caçador.
Zezé embalando, xô, carão, xô, carão, carão vai voar pro atiriá,
xô, carão.
— Não cruze assim as mãos no peito, chama a morte.
Chamando a morte?
Alfredo de olhos fechados escutando, escutando, aquela voz
também de Areinha, conversação com Ludica dentro do coqueiral,
embalo das marés de Araquiçaua.
— Chamando? Chamando a morte?
Zezé se inclina sobre a rede.
— Mel só achou na laranja de Urucuriteua? Foi? O Aimoré só
carregou laranja no porto de Urucuriteua? A dona das laranjas toda de
preto, a botija na mão. Aquela? Aquela fede a sangue real.
Sangue real, repete Alfredo, olhando agora para Zezé, com
súbita indagação.
— Que foi? Zumbiu que o senhor embarcou a donzela por sua
conta... Estimo multo de minha parte, ah, laranja!
Alfredo levanta meio corpo.
— Donzela? Ela ou vós?
Zezé pára de embalar, sacode a sala.
[232] — Não ouvi bem o que o senhor disse. Me repita. Indagou
dela só?
— Não mais aqui quem perguntou.
— Sustente o remo. Como prefere vós saber? Na minha
palavra? Ou onde?
— O seu quatipuru? No sovaco?
— Onde o senhor mais pensa que está, não está.
Agarra-lhe a cintura, ela se dobrou, crispando o rosto.
— Açaizeiro que verga e não quebra. Eu me quebro. Açaizeiro
não grita, eu grito. Não joguei meu cabelo no fogo.
— Endoida? Cabelo no fogo?
— Se não!
Abre a porta, enxota o pinto, debruça-se na janela. Alfredo se
levanta:
— Só quis foi sacudir o açaizeiro.
— Pensando que caiu o cacho? Que o açaizeiro já deu? Julga as
outras pela sangue-real?
Zezé não se vira.
— Pedida estou não faz mês, se isso quer saber.
— E então?
Ela se volta, pega no punho da rede.
— Que que tem?
— Olhe que está queimando alguma coisa no fogão.
— Queimando está o senhor. E o café, filho de Deus, não
espera o café? Água no pucuru ferve. Não?
Zezé vai, destampa o pucuru, vem enxugando as mãos na barra
do vestido, cai de bruços na rede. Alfredo corre o minguinho pela
perna da falsa adormecida.
— Não me azunhe que lhe dou um coice, sou coiceira. Pula da
rede, fica em roda, gapuia, gapuia, tamautá,
127
os olhos mais miudinhos.
— Pensando que está metido dentro daquela botija?
Alfredo, no mocho, as mãos no rosto.
— Nem sempre o parecido é, ponha no seu caderno.
— Então, licença. Não esqueça a roupa. Por quanto sua mãe...
[233]— Quem está lhe pondo a corda no gogó?
Zezé volta do quintal com um feixe de açucenas.
— Desfolhe dentro de sua mala. Não se empavule.
Quer abraçá-la, o feixe lhe cai da mão, no que ambos vão
apanhar, os rostos se tocam. Ela ficou de joelhos juntando as
açucenas.
— Vá que os cemitérios esperam pelo senhor. Não passe o
calote nas capinadeiras. Junte sua roupa suja e deixe lá na sala.
Segure o feixe. Desculpando o cupu mal feito, não suma, laranjeiro
das outras. Ou sua alma se foi na botija da dona?
Ele sal como fugindo, ganha a calçada do Mercado, o feixe no
bolso.
— Secretário! Secretário!
É o praça, culote, mangas de camisa, enxugando o suor com a
folha de jornal, à porta do ex-Secretário.
Entrou, ouvindo a reza. Já os Três-pra-Todo-Serviço haviam
baixado o corro e Alfredo vê o morto na esteira com as moscas em
cima. Nhá Benedita Lucrécia, Nhá Barbra, Nhá Efigênia rezam. Entra
o Zeqüenqüém com o maço de velas fiado no seu Bensabá.
— A família? Ninguém do Coronel? Da casa do tio?
— A família trancou-se. Bateu-se, bateu-se, só se faltando
mesmo arrombar a porta. Nem na rua o Escora-Canto.
Toda no pó-de-arroz, chega a D. Pequenina com um castiçal já
de vela acesa. Surgindo dos fundos, o Capitão ensaboa as mãos, o
Trapicheiro atrás com o alguidar de água. D. Pequenina benze-se, sai.
Seu Dó volta do ferreiro a quem encomendou o caixão. O ex-
Secretário morava só, ocupando o quarto e o corredor que restavam
do Clube Euterpe. O melão-de-são-caetano amortalha o pardieiro.
— Quer fazer comigo, Secretário, o laudo pericial?
— Ora, Capitão!
Alfredo espia o quarto: a um canto a esteira enrolada, a rede, a
corda na viga, o fogareiro de barro cheio de cinza. Entre postais
velhos na parede, no retratinho, a Ei, meninota ainda, fita no cabelo,
sorrindo. As velhas negras rezam:
[234]
Abri, meu Senhor, a minha boca
Para louvar o vosso santo nome.
Espalha as açucenas na praia, o rio incha, crespo. Bóiam,
devolvidos pelo fundo, aqueles gritos da moça de Munituba. Senta
num degrau da velha escada por onde naturalmente descia aquela
doida nos encontros meia-noite com o então Secretário. Pela máquina
ou pela moça? Ajudei a matar esse homem? Jantar entre os espelhos,
o olhar do ex-Secretário cravado nela, aqueles bigodes, aquela
barriga, o sempre pentear-se, decerto rastreando os dois na busca do
Maestro, vigiando-a, seguindo-a. E ela a par de tudo, falando de
visões e do seu umbigo. Na noite em que fugiu do baile, desceu a
escada? Na outra noite foi? E o bicho entrando na Intendência,
colarinho duro, e esgazeado, olhando o retrato do tio, que tio que
nada, a prima, a prima que fugia a bordo. Ou deixava supor que se
enforcou de vergonha, pilhado com a máquina? A Língua saltando
para a menina, a menina nem como coisa sorri entre os poeirentos
postais de Belém. Que tinha eu de lhe tomar a máquina ou a menina
ou não tomei nada, seu endoidecimento e mais nada, a cinza daquele
fogareiro e mais nada. As velhas negras rezam. Daria-Mora-com-oDiabo, fêmea do jabuti, quero beber da tua moringa.
128
Veio vindo pela praia, maré lambendo o pedregulho e os paus, a
reza das negras atrás dele, os magros urubus nem voar podem mais.
Duas lavadeiras, croatá de roupa na cabeça, se falam: foi ela, sim.
Gordo ex-Secretário na esteira à luz do castiçal da D.
Pequenina, debaixo daquela reza. O primeiro a entrar no cemitério
capinado. Alfredo vê o cemitério do Teso: Maninha indagando da
borboleta. Cristino, do velho Cristóvão, trazido no couro de boi, com
toda a carga do rifle no queixo, para o pandemônio da família.
Lucíola, no campo, em silêncio, à sombra do búfalo.
Sendo embora uma imprudência, subo pelos fundos da casa,
passo pela porta do quarto conjugal. Trancado. Ainda mais sem o
Capitão em casa, imprudente, depressa entra na alcova. Já o Capitão
bate os tacões no corredor, desatracando o cinto, a barba como
crescida de repente, a mão crispada.
[235] — Veio pela praia?
No que falou corre para o quarto, bate, abre-se a porta, a porta
fecha.
É o Capitão agora entrando na alcova:
— Veio pela praia? Examinando o teor da pedra? Não sentiu os
vestígios de uma convulsão vulcânica?
Abrandou a voz:
— Três, atendi a três, em minha vida. Um deles meu Irmão.
Esse agora é o quarto. Não absolvo nem condeno. Vamos comer. Ó
D. Almerinda!
— Mas nem uma unha, Capitão?
— Talvez esperasse ser mantido.
— No cargo? Que cargo?
— Que cargo, no que agora o senhor está, qual mais? Claro que
o senhor nada tem com isso. Tinha uns oitenta quilos, pesou muito.
Aquela viga é acapu. Pediu ao doutor a nomeação de Juiz Substituto
que está vago. Na mesa, Secretário.
O Capitão na cabeceira. Defronte do Secretário, a D.
Almerinda, o rosto ausente, as mãos cruzadas.
— Ah, menina! Bateu o pé que ia embora e foi! A mãe está de
cama. Tive que lhe dar uma injeção. Compaixão ou crueldade o ato
da homenagem, Secretário?
— As duas coisas. Também pela menina. Antes de partir, me
disse: peguei da pior peste. Pegou de nós todos.
— Onde tão menino o senhor já foi buscar essa peste,
Secretário? Deixe isso para o morto.
— E o Forte? Vai morar no Forte?
O Capitão fecha o rosto, servindo a senhora.
— Quer mais cortadinho, minha filha?
A senhora, tu falaste? A mão na gola, o longo pescoço lívido, o
olhar na parede, o Capitão cortando-lhe a carne no prato.
— Secretário, um fato lamentável. O cupuaçu que o senhor teve
a gentileza de oferecer à D. Almerinda, deixado na janela, escapuliu,
caiu n’água. D. Almerinda tinha essa satisfação a dar-lhe.
[236] O Capitão vai ao parapeito. Aqui na mesa a D. Almerinda, pescoço duro, boca torcida, cega para. o Secretário. Alfredo fita
a senhora que baixa a cabeça, tão inocentes quanto cúmplices. O
Capitão, de costas, cantarola, assobia, debruça-se no parapeito, bate
os tacões. Vem, senta-se.
— E o pardieiro não foi abaixo com aquele peso. Oitenta quilos
de corpo e oitocentos de desespero. Me parecia um bom homem. Nem
esperou pela nomeação.
Alfredo não toca na comida. Com uma fava de baunilha no
cabelo, entra a Zezé como assustada, vai à cozinha, volta, se apóia no
parapeito.
— D. Almerinda, meu anjo, principie a refeição, minha filha. E
o senhor, Secretário.
Zezé, no parapeito, ri.
— De que está rindo, menina? Do enforcado?
129
— Credo, Capitão! De nenhuma coisa. Me rio de mim mesma.
Me dá na cabeça. Vez por outra me rio assim, à toa, à toa.
Defronte da senhora, o retrato, a máquina, os ovos, a
desaparecida, cupu, botija, rede da Zezé, feixe de açucenas, cinza,
cinza, cinza no fogareiro, defronte da senhora. Embaixo do meu pé
esquerdo eu te trago, preso, morto, sepultado. Ou não será fita da D.
Almerinda, uma isca? Qual dos dois o inocente, ela? o marido? Ou
reinação, trança, artimanha da Zezé? Ou de mim mesmo, quem sabe,
eu que conspiro, sem querer dou motivo... Atei ou não no pescoço do
outro aquela corda? Defronte da senhora, a gema cobrindo-lhe o
rosto, e duzentas moças rompendo a goela da fábrica. Aprende a bater
na máquina, escreve, por exemplo: até onde me faz descer esta Secretaria? Aceito essa morte ou volto àquela pedra, em Belém, escovando
o meu urubu? Urubu, urubu, que o Capitão derruba, tira do urubu a
manteiga. Enforcou-se no colarinho, bigode doido, barriga
desesperada. Quem de nós amor mais tem. Por que não pegou o
caminho da Daria, a jabota, a que cobra a passagem? D. Almerinda,
olhando para a parede, cumpre pena ou faz o jogo? Os olhos na
parede, sabe lá, os olhos na parede, arrisque, menino, arrisque, não
diz nos olhos? Não está escrito na parede? A devolução do cupu foi
uma senha? O Capitão, na cabeceira, aplicado sombriamente em
comer. Depois de duas garfadas ferozes:
[237] — Está em casa, Secretário. Aqui estamos, nós que somos
de fora, aqui desterrados. Formamos uma só família. Ausente o
doutor, temos que fazer as vezes dele na administração e na ordem
pública. Fez bem em reaver a máquina. Já não podemos reaver a
menina nem o morto.
Afia a faca no garfo, é um instante longo para Alfredo, os olhos
da senhora na parede, voam moscas. Se tocar no joelho da D.
Almerinda? A mão da D. Almerinda, abandonada na mesa, parece
pedir isso. A aragem traz de fora a cinza do fogareiro.
— Não é hoje que acaba a empreita dos cemitérios? Determinei
que o praça fique de plantão no velório desta noite. Me incumbo dos
funerais. O diabo é que toda a família se trancou e estou é vendo lá
por dentro, dum lado a outro, o Escora-Canto resmungando: Que há
de novo? Que há de novo? D. Almerinda, prepare-se, à. tardinha, para
as visitas. Quer ir em nossa companhia, Secretário? Não era, D.
Almerinda? E ver como ficaram os cemitérios, hein, D. Almerinda?
— Capitão, vou mudar-me. Aí na alcova a traça rói o meu
número um.
O Capitão se faz de surdo, comendo com voracidade.
D. Almerinda, que lê na parede? Agora no prato, sem tocar no
prato?
— Está em casa, faça as refeições conosco — a voz do Capitão,
rouca, mastigando feio, mais sal na comida, mais malagueta, mais
vinagre.
— O que precisar de mim e da D. Almerinda...
Foi a D. Almerinda abaixar-se para enfiar o pé na chinela que
fugia, o Capitão acode:
— D. Almerinda, filha, a carne está com gosto das lágrimas de
Sara? Do enforcado? Me mostre a cicatriz do pé, secou? O pezinho,
me mostre.
Zezé, ao parapeito, ajeitando no cabelo a fava da baunilha:
— Estão escutando? Seu Dó tem hoje em que se ocupar. Sino
dobrando tarde inteira.
Sob as teias de aranha na Intendência, preso ao imaginário
expediente, relê: “todo juízo, seja grave, seja [238] sério, seja homem,
lembre-se que na flor da Idade, está fazendo as vezes de Intendente.
Sigo amanhã no Ernestina, em viagem de curta demora, até
Cachoeira. Remeto-lhe os livros de talões. Você poderá servir-se
deles para qualquer cobrança, assinando e declarando por baixo:
Secretário-Tesoureiro. Rubrique os que entrar em uso ao alto, entre o
canhoto e o talão, e faça a abertura e encerramento nos seguintes
130
termos...” E no final: “Que há do Trapiche? Procure a amizade de
todos, respeite a todos. Cuide dos números. Cuide dos números. Seja
agora o homem das cifras. Das cifras.”
É o Intendente, de longe, cadeira de balanço na Mundurucus (ou
na rede a bordo do Ernestina), sempre Promotor Público, dando,
interinamente, aulas de Português no Ginásio, a qualquer instante
nomeado definitivo na capital. Bem merece (seja dos números, seja
agora das cifras), bem merece, Dr. Januário. Vinte anos de Promotoria no interior, uma advocacia que-deus-me-acuda, sem estudar pela
manhã as leis e os autos, graças à barulheira da família, nem à, noite,
por via dos bichos atraídos pelo candeeiro na saleta morna, acrescente
o cunhadio às costas e a desesperança de cargo à altura, olhando, sob
o vidro poeirento, o distante diploma do Recife.
Sim, Dr. Januário, números, cifras, chame algum Fiscal à conta,
respeite a todos. Aprendo a aritmética dos escombros. As cifras do
descalabro. Reforço com fio de aranha os esteios do Trapiche. Vou
granjear reputação entre os sapos e as mucuras. Chegou sua hora, Dr.
Januário, pelo menos acumule, exerça de lá, do seu embalo, de bordo
do Ernestina, da Promotoria ou aula de Português, o administrativo
ramo de oliveira, a missão dos panos quentes.
Cifras, cifras, cifras. Receita, coitadinha: mal pinga para os 750
mensais do Intendente, espremidos do saldo entregue pela
Recebedoria que desconta: Publicidade do Município, percentagem
do Procurador, caixa do PRF, assinatura d’O Paiz, óbolo ao Papa.
Agora no Ernestina, Dr. Januário, s6 em pensar neste Trapiche, lhe dá
terçã, a tripa afrouxa, vê o Santo Antônio se esvaindo. O que lhe foi
possível, digno de uma página de relatório, aí está: limpos os três
cemitérios para o dia de Finados.
Resta-me lavrar os termos de abertura e encerramento dos
Talões, numerados e rubricados por mim.
[239] SECRETÁRIO-TESOUREIRO
Administro as obras da saúva na capoeira, taxo a orquestração
das guaribas, somo as lástimas do velho Bensabá, contabilizo as
lombrigas dos mal nascidos, numero e rubrico a espessura da noite e
da solidão na ribanceira.
Como vê, Dr. Januário, isto não é mais ladrilho de branco, é só
chão das Seruaias, beira-rio da Nhá Barbra, rastro da indiarana,
janela, da Nhá Mãe Camila ao som da flauta. Aqui é a pedra de onde
sai pelo fundo o último pajé.
Cedo o ex-Intendente seguirá para os lagos, amortalhado na
toalha do seu último banquete, levando ao peito Q catálogo da Galeria
Lafaiete e o Larousse. Cedo o Capitão também se vai, com a D.
Almerinda na mochila, e com as novidades que recolheu neste
pedregume — madeira petrificada! madeira petrificada! E tique,
servido pelo seu Dó e o Trapicheiro, este-unzinho SecretárioTesoureiro, já compadre da Nhá Barbra, benzido de espinhela caída
pela Nhá Benedita Lucrécia, devendo ser grave, sério, lembrar-se que
faz as vezes de Intendente, a 150 por mês, com direito a atraso e às
epístolas do Efetivo.
Resta esperar pelo São Benedito.
Está chega-não-chega de sua tiração de esmolas pelo interior,
cada vez mais espantado com o que vê nos barracões, beiradas e
trapiches, comerciantes lhe suplicando um tostão a mais no preço da
seringa senão quebram de vez. Um deles se ajoelhou perante o santo e
lhe mostrou o monte de compromissos a pagar. Os foliões, nessa
noite, nem da água do pote se serviram, desatracaram na mesma hora,
receando que o dono da casa pedisse uma esmola ou mesmo roubasse
o pouco, aquele tão pouco que o santo andava, sabe Deus, recolhendo.
São Benedito traz no baú dos donativos a carga das Implorações e
lástimas do comércio. Nem se fale dos mais carecentes, aqueles sem
eira, ali na maré só enche e vaza, estes só rezam ou nem aparecem na
ladainha, nus que ficam no tapiri, e não é para São Benedito se
desembaraçar das suas fitas e dos seus foliões e tirar da prateleira o
131
que reste de pano antigo e diga: ó gente, tomem? Ah, mas não dá.
Não cabia uma tira a cada um, mais que um luxo é o morim ou o
brim-de-américa nem meia peça, artigo raro nas faturas. E São
Benedito, rema, rema, que deste rio só tem maré e balança [240] sem
pesar mais nada senão queixa e tudo o que foi, rema, rema.
Agora, por exemplo, como desembarcar no Trapiche desabanão-desaba? Por tudo Isso, chegando vasqueiro, que será da festa?
Ah, Ingleses! Bem que os foliões se esforçam. São Benedito se enfia
pelas Ilhas, sai das Ilhas, um capado pra minha festa, sa gente! uma
frasqueira, um cacau! tamanha viagem e o baú leve-leve, rema, rema,
come estirão que nada! Aquele tanto festeja-festeja nos barracões e
trapiches, recebido até com foguete de lágrimas? Era mas acabou-se.
Comes e bebes para o folião? Fique chuchando o dedo, adeus regalos
de baco-baco. O Mastro, defronte da Igreja? Se levantava, se
derrubava, tanto que foi, e agora? Adeus que se levanta mais. Falar
nisso, foi visto, uma noite dessas, o Mastro em pé fantasmeando com
a Bandeira lá em cima, carregado de ananás e fitas sob a chuva, visto
pela comadre Nhá Barbra. Que fim levou a Irmandade dos pretos?
Juizes do Mastro, velhos mestres em reza e em samba, lá na Igreja e
aqui na Ramada? Aonde andam os promesseiros? Dele também
aquele barco, mastro de muirapinima, vela branca, convés corrido,
camarinha que nem oratório — o porta-bandeira na boca do toldo —
barco de suas viagens, marés e ventos a seu gosto, quanta meia-lua no
rio! Deu turu, atolou na Maria Ribeira, é só esqueleto.
Hoje? São Benedito já nem pode mais brincar com o Santo
Antônio: Olha, rapaz, Igreja é tua mas sou eu quem paga a casa.
Igreja carecendo de uns tantos reparos por dentro e por fora, mão-deobra ainda se dá um jeito de graça mas o material? Por mais que o
povo lhe peça: Jogue na correnteza ao menos meio alqueire de toda
esta nossa calamidade, São Benedito, o senhor não pode? O santo só
faz é ficar mais negrinho, o olho mais branco, mais de urucu o beiço,
encolhido entre os castiçais apagados no altar, sem poder.
Antigamente, ah, papouco de fogos quando passava um barco pela
ribanceira, salve São Benedito!
Escutem agora.
Negro não tem voz lá em cima, seus tambores de pretos só
tocam aqui na Ramada, em mio de samba, não soam onde só é harpa
e anjo cantando, tudo lá é multo rosado, os querubins de arminho.
Sempre o branco mandando, [241] aqui embaixo na ribanceira e lá na
altura, diz o Maestro a fazer o cabelo do velho Bensabá. O barranco
não tem mais o que ir pra trás.
— Pra trás, não — discorda o velho Bensabá. — Fosse para
trás, ia pro bom tempo, ah, aqueles preços! Bote negócio! 50 quilos
de borracha só pra São Benedito. Me agredite. Atrás? Atrás? Não, rá!
Vai é pra adiante. Atrás é que eu queria.
Pra adiante, pra adiante, pra mais panemice, com o São
Benedito e seus foliões catando uns miúdos, aqui e ali, neste furo,
nesta beira, quando olham é lá no Tocantins onde não é mais a
jurisdição, os santos de lá bem que se aborrecem com isso, com razão
reclamam 6 tempos!
Festa? Já se fala dela, eivém dezembro. Sim? Se o seu Anacleto,
o mandachuva da festividade, não se levanta do reumatismo nem o
barracão da Ramada, onde se faz a mão de samba em louvor do santo,
é recoberto. Ou o Tabelião, chocando sua mazela, aguarda os
donativos da viagem? Ah, tempo que São Benedito ganhava peles e
peles da mais fina, àqueles preços, os seringais jorrando, o Milagroso
metido num luxo, em dezembro, leilões e leilões à luz do Gasômetro.
Entra o seu Dó, com as chaves na mão, contando que o seu
Remundo da Purificação tem de levar os acaris ao Mercado.
— O que só fiz, Secretário, fiz ver a ele a lei.
— Que lei, seu Dó?
— Remundo da Purificação quando vem da pescaria, se traz
peixe, cisma que está acima da lei. Agora lhe fiz ver a lei. Desacatou
mea autoridade. Não estamos mais na administração passada,
132
secretário. Agora tudo é melhoramento. Os acaris precisam passar
pelo Mercado. Da lei.
Alfredo às voltas com São Benedito, lendo velhos programas da
festa, recordando o que lhe disse o Zeqüenqüém, finge-se interessado
em indagar do seu Dó o que vai ser dezembro com o São Benedito de
mãos abanando.
— Secretário, me queira desculpar, mas primeiro o seu
despacho.
[242] — Que despacho?
— O assunto dos acaris. É o direito do mercado.
— Então abriu o Mercado?
— Ciente de que o Remundo da Purificação desembarcava o
peixe, fui, abri o Mercado, cumpri a lei, Secretário. Remundo, pelo
regulamento, tem de levar o peixe para o próprio municipal. O abuso
precisa dum corretivo. Sei que o senhor me dá mão forte, Secretário.
Posso autuar?
Seu Dó, chaves na mão, o olho coruja, transpira autoridade.
— Um acari que seja no Mercado ele vende, seu Dó? Sabe que
se levar o peixe lá, as autoridades lhe tomam tudo?
— Secretário, se o senhor não confirmar o meu ato, estou
debaixo do pé desse pessoal abusante. Vou é comer da banda mais
podre.
— Deixe os acaris em paz.
— Em paz que já não estão, Secretário. Pegados já foram.
Agora é o novo governo, O peixe passando pelo Mercado põe
respeito.
Seu Dó fala humildemente mas cioso de sua fiscalização, com o
livro de talões de Trapicheiro no bolso. Lá do seu quintal, a mulher
dele, a sia Bena, faz que tira uma casca da mangueira, rabo do olho na
Intendência.
Na praia a reunião em torno do paneiro de acaris.
— Passe, seu Remundo, por favor, com os acaris lã pelo
Mercado, um instantinho. Pro Capitão mandou uns?
Então eivém o seu Remundo da Purificação com o paneiro de
peixes. No grupo atrás o Secretário e a distância a indiarana, que o
segue. No Mercado, a um aceno do Secretário, seu Dó fala: os acaris
o imposto não cobro.
Seu Dó com um triunfo nos olhos de coruja, salva o nome do
Mercado. Alfredo, fugindo do seu embaraço, chama a indiarana.
— Me diz teu nome.
Ela se faz de assustada, a mão na boca, vai fugir, seu Dó lhe
agarra a munheca:
[243] — Obediença, aauela-menina, aqui é a lei. Até me parecendo pagoa? Ou botou o nome no olho-d’água? Não te levaram na
pia? Te vi de sal na boca, te vi berrando no colo da madrinha. A
autoridade perguntando teu nome, onde o teu alfabeto?
Ela fica de lado, o pé riscando o chão.
— Menina!
— Eras, seu Dó, que também o senhor! Não sabe, será?
Seu Dó vira-se para o Secretário:
— Já que a menina atorou a língua, Secretário, Maximiniana
Vilhena, no Cartório, e de agrado, Mazica. Menina? Taluda assim?
Ontem que foi menina.
A indiarana escapa. Seu Remundo da Purificação, paneiro de
acari no ombro, também foge, antes que o Juiz, o Promotor, o Sede, o
Cabo do Fortim cheguem.
Descendo na praia, agora o pé sobre o rio até encontrar meu
rumo, vê o pai, no chalé, folheando o álbum de recortes, aqui o
soneto, olha o artigo de Alcindo Guanabara, o farol de Alexandria, o
cometa de Halley, o casamento da princesa, a bomba na Irlanda, o
telescópio, o estradivário, a receita de sabão, acontecidos no mundo e
na varanda. Demais que recortasse também o caso dos acaris? E entre
os peixes à Maxica, a indiarana, sal na boca, pé arisco. Também o
133
retrato do seu Dó, montado na lei, chaves na mão, nome de toda gente
na ponta da língua, a contar os acaris na banca, quem sabe chamando
cada um deles pelo nome de batismo.
O álbum do pai traz a Alfredo um chalé mais longe no aterroado
escuro, e a mãe na borda do poço como à beira do seu passado, e o
curral vazio e o tamarindeiro seco.
Carta do Intendente, espera do santo, os acaris... A filha do seu
Aurélio, oficial de justiça, este-um arriado na rede ao peso de sua
hérnia. Ela, espichada, meia caramuja, voz preguiçosa. A porta do seu
Aurélio, o Secretário vê nos olhos da moça a noite e o silêncio tapera
do barranco. Sim que uma e outra vez soa lá na frente o Maestro
ensaiando flauta. Mais pros lados do Fortim o ronco [244] gre|goriano
das guaribas e aqui ao pé um e outro gemido do oficial de justiça. No
vizinho, as Seruaias, ouvidos de peixe-boi, ou destratam meio mundo.
A pequena olha o Secretário tal como aquelas pessoas, frente do
Mercado, dia da carne, quando lhes foi dito não. Alfredo se dá uma
Impaciência, ou culpa ou compaixão ou vago desespero.
— Olhe, não estou pra te empatar. Te iludir, não te iludo.
Futuro é o que ainda não tenho. Até que quis andar pelo rio a pé...
— A pé, Secretário? Que lhe deu já no seu pé?
A moça afina o ouvido.
— Tudo por não dito? Se bem que nada te disse, sim?
Aquele espanto na moça, segura o dente de jibóia, mas então o
Secretário? Um senhor tão do bem colocado? Corre a mão no cabelo,
rosto, braço, quase debaixo do braço, onde botar a cabeça? cuidadosa
que ninguém lá de dentro veja, assim chorando meio proibido. Ou as
Seruaias, ó aqueles ouvidos! escutam?
— Combinado, não? Espécie de só uma simples amizade, sim?
Toque.
Enxuga os olhos no peitilho fiapento, esfrega perna com perna,
esfrega a orelha no ombro.
Com aquele beijo dele nos olhos:
— No meu olho assim lagrimando? Deixa o gosto no seu beiço.
Não quis dar a mão:
— Assim então até um dia. Desculpando as faltas.
Dormir? Aquela sempre dorminhoca, a Sara do seu Bensabá,
dorme todo o sono. Entra no ar das ruínas o morcego. Traz carta do
Intendente? Foi grave, foi sério, foi Secretário? Te Iludir não te iludo,
um verso de modinha. Lhe queimam aquelas lágrimas cautelosas, o
gosto do beiço, o esfregar perna com perna, aquele “até um dia” que
soa a Juízo Final.
A irmã dela, a Djanira, tem, bem verdade, aquele filho do
tempo, agora rapariga do seu Cipriano, o dono [245] do barco-regatão
Abaeté-Santarém, que escala na ribanceira. O regatão lhe traz uma
água-de-colônia, um e dois cortes, até que um bom mantimento. É o
São Jorge atracar e logo o pardieiro, onde o velho Aurélio mora de
favor, se enche de vizinho e parente, come-se. Enquanto a mulher
trata de esconder os regalos, seu Aurélio, aí sim, se anima, contando
do bom tempo, andador da Irmandade, diligências como oficial de
justiça, corte de seringa, luz do Gasômetro, azeitonas de Portugal. A
mulher, lá pra dentro, no esconde-esconde, resmungando o seu padrenosso: Ah, seu Cipriano, esta viagem, trouxe só foi a cara dele e isto
ele subindo, imagine na descida... A filha leva a mãe para atrás da
porta: Assim também que não, mamãe, São Benedito está lhe vendo,
lhe ouvindo, desesconda as coisas. O que seu Cipriano me dá, do
dado dou também um pouco pros quantos que aqui entram mais que
carecidos, deixa lamberem o nosso osso, uai. A mãe espalma as mãos
no rosto: Dado, mea filha? O que ele traz, essa lambuja, é dado,
rapariga? E do teu, o que tu dás em troca? A filha benze-se: Mamãe, o
que dou é por um simples gosto, ou sorte, é do meu natural. O que ele
dá, também é. Desesconda as coisas.
A mãe, metendo por dentro da blusa o embrulho de bolacha: Os
outros que vêm aqui lambujar dão a ele um agrado, um vergalho de
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quati que seja, mea filha? Tua rede que me diga, tua rede que me
diga.
A filha, de cara mais paciente: Deixe, que eu represento eles
todos, dou por todos eles. Na rede em que me deito, eles se deitam
também. Tire as coisas do escondido que escondimento ofende.
Fortuna é que seu Cipriano inda amarre o barco nesse trapiche. Que
val.
A mãe: Esta ribanceira não vai uma só das tuas noites com ele,
rapariga, ribanceira que nem no amor de Deus está mais. Olha! Olha!
que a mãe do Sede de Justiça (não digo o nome dela pra não cair mea
língua) está escarrando de lá o praguejume, põe o vidro de aumento
no mau-olhado, só-só em riba da nossa família! Não viste o Sede
lascar a multa no Seu Cipriano? Precisou seu Cipriano rasgar seda,
puxa da lábia e do bolso, tem-bem no ouvido do multador, num
instante desmultado. Esta, esta ribanceira? Rá!
— A senhora, mea mãe, bem sabe que esse nosso São Benedito
dormir, não dorme, só nos cocando. Depois, [246] de|pois! Sou
desonrada mas não escasseosa, a ninguém culpo do que sou, por mim
distribuía toda essa água-de-colônia, esse mijo-de-cheiro, no sovaco
dessa gente, ao menos tire o pixé da pobreza, a barriga lá dentro mas
de umbigo cheirando. Guarde é que é um tabaco pra mea madrinha
Nhá Barbra, que ela com pouco eivém.
Sermão que não dobra a mãe, agora escondendo as coisas
escondido da filha, coisas trazidas pelo dela... só dela? espera por
isso, só ali de passagem na subida e na descida, conta, depois, os
meses. Lá dos fundos, as Seruaias, ouvidos de peixe-boi, escutam, se
cobrem de um luxo, amarelas de necessidade, pedir, não pedem, por
mais que oferecido, nada aceitam. Só o Cristo Seu Seruaia, como
coisa de saber como vai a hérnia de seu Aurélio, lhe cochicha:
— O seu Cipriano, muito aqui entre nós, Aurélio, será não me
arranjavazinho uma munição que mesmo só dê pra derrubar um
tucano? Mea espingarda, estou lhe dizendo, falta de espoleta faz é
tempo.
Seu Aurélio, se vingando da soberbice das Seruaias e burlando
a mulher, pede no ouvido do regatão o chumbinho, uma carga só,
mais não precisa. O Seruaia, no manejo da arma, tala nenhuma perde.
Onde que foi então que o senhor já me arranjou espoleta, papai,
assim todo do assanhado, espingarda no ombro? Roubou, foi sua unha
da. palma da mão, será? A filha mais velha, a Bernarda, a Bê,
trazendo do rio o balde cheio. O pai amarra a cara, dana-se pela
capoeira. A filha enchendo o pote, cuspindo: ah, puta da mãe que te
pariu, a entreperna da Djanira serve de cocho prum bando de semvergonha, égua-te!
Seu Cipriano, festejando sua passagem pela cidade, escolhe a
sala de tijolo da Nhá Benedita Lucrécia, duas lamparinas na parede, o
banco comprido da Intendência emprestado pelo Dó com o sim do
Secretário: Oferece a bagunça à fina flor da gente de segunda, quatro
damas donzelas, duas recém-desonradas, sem contar esposas e esposaranas. Zezé, esta vem de chinela, guardando o sapato para São
Benedito ou, quando seja, um aniversário na Madrinha Benigna, a
ajudar no serviço, aí dançando ou só fazendo presença, sem passar da
varanda. Sala, não, pois sabe não ir além, sala? mas sim! não queria
era levar [247] pela cara. Entre as do lado de fora, no sereno um
pouquinho, a Justa Zolhuda, só o tempo de ver a pompa da Djanira,
logo se vai, recolhida àquele cemitério delas. Faz parte daquelas mais
lá embaixo, já muito impróprias, passageiras do Coche. Das Seruaias
vêm as duas irmãs, a muito rogo de seu Cipriano. Bernarda, e do
Maestro, de quem, durante a bagunça, guarda distância, sem perdê-lo
de vista, e a Rosa, costela do Alcebíade, este por apelido CuiaPitinga, filho-família, irmão da amásia do Coletor Estadual, sempre
fazendo mala para Belém a fim de um emprego, e vai adiando a
partida, agora de filho com a Rosa, a Rosa, ali rente, olha, seu
embarca-não-embarca, olha, Cuia-Pitinga, lambanceiro, a tua Belém
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é-é os sete palmos nesta meleca, caixa de preguiça, seu pirento, filhofamília de uma bosta! Língua, as Seruaias ter, têm, a Seruaia donzela,
a caçula, desenganada do noivo, prefere se enterrar em casa,
inventando dor dum lado, fazendo o filho da Rosa dormir mas tampa
esse teu olho, enjeitado da suinara, a Sara te comeu teu sono? Bate o
pacau logo!
O regatão paga o Maestro com uma toalha de rosto. Chama a
Nhá Efigênia (me aceite este corte de pano-da-américa, minha
madrinha, não por paga que seu serviço não tem preço) para bater o
chocolate. Retira da camarinha uma, bem destilada, de Abaeté, de
litro, o anão toca o rufo, ao violão o Zeqüenqüém. O Zeqüenqüém dá
a facada no ex-corde, 5$000, seu costume, quando o regatão sobe, lhe
pago sem falta na sua descida, seu Cipriano, sem falta que nunca se
dará.
Três partes tinha tocado o Maestro e entra a Djanira, peitos de
recém-parida saltando na Musa de seda carmesim, o pente-travessa de
pedrinhas, sapato de fivela, toda na água-de-colônia, dada com todo
mundo, a fala assim a. modo meio lastimosa, boa-noite a um por um,
abanando com o leque o rosto das moças, o ombro das raparigas,
dona da festa e nem metida, que metida não é nem nunca foi nem
será, só sei dizer que tudo que cai na mea mão nem tanto peço nem
cobiço, se mereço. O de lá de cima (faz o pelo-sinal) que sabe.
Mesmo nas glórias não me glorio. Do seu Cipriano ao meu desarrimo
basta que na outra viagem ele passe de largo. Tudo está na mão do
Trapiche. Ao pai, que fica vigiando o dorme-acorda-dorme do guito e
apalpando a hérnia, manda um caneco de chocolate. Com a comadre
Djanira sempre se vale a ribanceira, diz [248] o seu Dó que passa pelo
seu Aurélio e ganha a sua bolacha. Faço que não sei que o compadre
Dó é gratificado pelo seu Cipriano pra me espiar se sou séria... pago
pra isso. A bolacha que dou a ele? É que ele não inventa nem acrescenta. Pena que também não espie pra dentro da casa dele, pra isso é
cego, será? Ou faz que não vê? Do meu proceder não tenho susto nem
que viesse o filho do Governador.
Na bagunça, Alfredo efetiva com a mais nova do seu Aurélio
nem alta nem baixa, assim de meia viagem. Zezé, passando por ele,
tira liberdade: já o casório? De gurijuba essa sua grude? Já armou
tarraca? Cochicha:
Atirei com sete balas
Atravessei sete baías
Deu no barco deu na lancha
Deu no peito de Maria
— Agora peça pra ela lhe fazer o cupu, amanhã no primeiro
galo, sim?
Maestro sapeca o chorinho, Alfredo tira o seu par.
— Agora que foi...
— Agora que foi por quê?
— Vigie só Tanto do olho me comendo por via do senhor que
de com pouco desta que sou eu nem rastro fica. Por isso que tudo aqui
com a gente acaba panema.
Lá na pontinha do banco, escorada na parede, sem tirar a vista
de cima do Secretário um só instante, aquela indiarana, agora menos
menina, tira e põe o pé na chinela, trança e destrança os dedos da
mão, os gomos do rosto desabrochando. Calou a flauta, vem o seu
Cipriano:
— Secretário, me dê a satisfação, agora com a primeira valsa. A
dama, já escolhi pro senhor aqui a D. Djanira. Chega de pão torrado.
— Pão torrado?
— E não é? Pão torrado, sim, marido e mulher sempre par no
salão.
— Agora isso, seu Cipriano... Olhe que a sua por lei e altar está
lá no Abaeté, não faça uso de tirar o direito dela. O pão é ela e eu dum
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triste beiju não passo. Conheço o meu lugar, de pia e no civil me
chamo Djanira. Do [249] registro ninguém risca meu nome. O sal que
o padre me meteu na boca estou comendo até hoje.
Zeqüenqüém, o copo na mão:
— Secretário, não se digna! Não sensibiliza? O néctar?
Na seguinte noite, se vê na porta do seu Aurélio, ali no
banquinho da porta um que lhe dá uma solidão, um desterro, adeus
Ginásio que ficou no sapato branco de Roberta, adeus bacharel, o
rosto da mãe na sombra do ingazeiro. Crio raiz, será? Aqui toda a
vida, nesta noite, nesta porta, secretariando três cemitérios ao pé dessa
inocente?
Oiço, Secretário, não me culpe por ter ouvido, que o senhor diz
que vai mandar seu futuro sogro para o hospital, é? Meu voto, de
minha parte estimo, de todo o meu agrado, assim arrolha de vez na
botija a Sangue Real, puxa a Zezé cortando com a tesoura a polpa do
cupu. E pá, conta que a mãe da Zi corre, bate na Nhá Benedita
Lucrécia, esta mais que depressa benze a preferida do Secretário, lhe
pendura um dente de jibóia no pescoço, lhe passa a folha de tajá por
dentro do vestido, defuma o pardieiro: olha, Sabá, no mais, te pega
com o Mestre Parijó. Sendo que o Mestre sempre caminheiro, em
diferentes lonjuras pelo fundo, a acudir a quantos chamados, por
onde? Só as marés sabem.
Zezé desfia: Nhá Sabá não fez como coisa quisesse assim de um
dia pra outro fisgar um genro Secretário, olho deste tamanho no rapaz
nem bem parou na porta, casa ou te junta que senão te vario o juízo.
Por obra de malefício, não. O que só quer que a filha, essa, encontre o
seu travesseiro, seja pelo Juiz ou atrás da porta, Acende a candeia de
andiroba ao Menino Jesus, rezando aquela oração da pedra, de uma
pedra, Deus te salve, pedra, pedra que no mar foste achada...
Zezé lhe dando o cupu:
— Já? Já? Com a pedra ai no vosso peito? Olhe, olhe... Mande
Nhá Benedita Lucrécia rezar no seu peito. A pedra que pesa, pesa.
Rale o tajacamã, ponha de molho na cachaça um tempo e se
afomente, que senão a pedra lhe racha o peito e é bem empregado.
— Sobrosso que não tenho, aquela-menina. Quem se quebra é a
pedra.
[250] — Dizque a sua Secretaria é lá no Coche, será? Só dá
audiência lá?
— Delas me sirvo no cemitério delas, naquele que não é nem
será o teu.
— Seu adivinho!
— Não estás pedida?
— Do altar para o Coche, basta uma topada. Sei do meu
cemitério?
— Guarde, guarde o seu manjericão. Sabe da Maria Sabida?
Zezé, num repente, senta-se em cima da mesa e tira um peito da
blusa:
— Este? Este manjericão? Pois coma.
Larga-se o barco do Cipriano, seu Aurélio volta à sua hérnia e a
ex-namorada, perdido o Secretário, fica na velha máquina, esta, noite,
acabando o seu vestido para São Benedito, sobra de uma chitinha com
pingos amarelos ganha do regatão, ou melhor, da boa e desonrada
irmã que talhou.
O rio escouceia o barranco. Debaixo das águas o pajé anda
estirões. Aí no parapeito, o velho Coronel, de binóculos no escuro,
busca os seus navios ou rastro da filha pelas calçadas de Belém.
Passa pelo Coche: ocupado. Amorosa e solitária, urra a outra
vaca do seu Bensabá, arrancando para os lados do Fortim.
Chega o Trapicheiro, calça rasgada no joelho, pedindo a ração
de querosene para o farol do Trapiche.
— Não dá será pra comprar logo uma lata, Secretário?
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— Por ora, é o quartilho no Guerreiro, até que o seu Guerreiro
nos corte o crédito. Algum imposto no Trapiche que ao menos pague
uma noite de farol?
— Com perdão da palavra, Secretário, mas axi que aquele
Trapiche dê pra cobrir que seja uma hora de farol. Quem sustenta ele
em pé é a mão de São Benedito, isto sim, O rio só está esperando que
o santo chegue das esmolas, no que o santo tira o pé da ponte, era
uma vez a podrura. Mestre Parijó, esse, pelo Trapiche já não sobe. É
[251] visto já na ribanceira ou aparece na praia a modo gapuiando,
disfarçando o onde que andou.
— Nem do barco do seu Cipriano? Não cobrou nada? que ele
me deu, dado só uma tira de tabaco, um grão de sal e a caixa de
sapato vazia que eu, no que vi, botei a vergonha do lado, fui pedindo,
foi só. O talão continua inteiro-inteiro. Do talão mesmo só aquele que
o senhor mandou tirar pra carne do seu Bensabá. Rendimento
mesmo... Cobrando por casal que use o Coche, sempre ajudava a
renda do Município, lhe digo. Do comércio do velho Seruaia nem é
bom falar. Nem da D. Pepa.
— Que coisas o seu Cipriano embarcou?
— Que embarcasse alguma, Secretário, que eu visse, não vi.
Minto. Bem que fiquei vigiando. Levou pra bordo um paneiro de
abacate. Fora o que o Coronel Promotor exportou, no barco do seu
Cipriano, uma encomenda secreta.
— E o que desembarcou?
— Se a vista não me engana, só foi aquele rancho pra casa do
velho Aurélio, que a filha do velho Aurélio, a mais velha, faz vivença
com o regatão, na passagem dele. Comércio dele, aqui em terra, é só
esse neste nosso porto, Secretário. Negócio do barco, ah, é mais é lá
pra cima, lá, que tem, quem dera aqui. Aqui? Inda agradeça a Djanira
que senão... A não ser, desculpando o gracejo, que se cobre o imposto
das dormidas dele com ela. Cismo, Secretário, que isto aqui inteiro se
acabou. Aqui, se o barco demora um tiquinho mais, seu Cipriano até
sem as duas velas da embarcação fica, que aquele pano serve pra
cobrir o nosso corpo. Veja só o que me cobre. Isto é cobrir?
— Não pode poupar mais o querosene do farol?
— Diminuo a luz o quanto posso, Secretário. Que mal clareia
galo puxando o dia, querosene? babau. Sim que uma noite um nãosei-que-diga chupou o pingo do farol, apagou. Foi na noite que a Nhá,
Barbra viu os cemitérios se alumiarem. Deus foi que nem um navio
passou e se passou não deu por falta. Visto de longe isto aqui é um
escurecimento só, deixa de existir, Secretário. Tem noite que me
arrepio, oiço carregar e descarregar no Trapiche. ~ o vento? Peguei
ainda a luz do Gasômetro, ah, era! Agora toda madrugada bem que o
galo avisa: apagou o farol! [252] apagou o farol! É o galo no quintal
do seu Guerreiro, aquele galo? Todo cor de vinagre, crista pegando
fogo, bico e esporão de senhor meu rei. Tão do bem comido, tão bom
galador. Com aquele galo uma noite até sonhei, pois sonhei que o
bicho fervia na minha panela de barro, gordo com pena esporão crista
e canto, oiça e me responda. Licença que eu lhe diga, as fêmeas que
ele gala, lhe sobram, não contando as frangas, e de lá do quintal dele
cismo que me faz zombaria, que aqui comigo quem? Só a coruja na
beira da palha toda noite, que luz de alumiar em casa só tem quando é
lua ou com o céu bem estrelado. Sombra de mulher por cima da rede?
Abro o olho e é o morcego. Senhor tire a limpo. Raiou o dia é aquele
galo, papo cheio, rodeado das dele e aqui comigo vez que nem sarro
pra tampar a panela do meu dente — sempre me dói. Não contraria?
Então cada um sonho! A dona de Altamira, urna que ele viu de
vera a bordo do Lobão subindo, olhar de pedra lispe, toda de dentro
da rede, as unhas do pé rosadas, penteado assim de pedraria, se
embalava e mandava pra gente uma aragem dela.
— O Trapicheiro é o senhor?
— Até dizerem o contrário, um às ordens, serviçal da senhora.
— Pois me mandaram pro senhor. Sopre a luz do Trapiche.
— Ainda que mal pergunte, a senhora quem procura?
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Quando viu, ele e ela na barraquinha, ali na entrada do
Trapiche, onde ele faz que mora.
— Seu Trapicheiro, despenque em cima do senhor todo este
meu cabelo, sim? Se esconda dentro dele, sim? Tire do saco de
borracha a nossa rede,. o lençol e o paninho de enxugar, sim?
Que acordou na puída rede remendada, a corujinha lá, fora
caçoava, o morcego: nem nada tens que eu chupe, seu pira. Foi lá
fora, o farol apaga-não-apaga, a maré tinha levado a dona de
Altamira.
— Ah, Secretário! E a manga do farol? Já tão rachada já que
está! Vento, uma noite dessa, pai! apaga.
— Vá poupando, Trapicheiro. A azeite ou querosene, sustente o
farol do Trapiche. O seu Cipriano só levou mesmo um paneiro de
abacate?
[253] — Um paneiro e conforme seja as saudades da Djanira,
olhe que aquela rapariga tem o que dar, Secretário, me permita lhe
dizer. Coitada, nem como coisa que ganha aquele rancho de três em
três meses, o que tem, dá. Dá do rancho mas dela, do cacuri dela, é
só-só pro seu Cipriano.
O Dó, pago pelo regatão, pra vigiar os pessoa dela, por ela põe a
mão no fogo. Não escondo: andeizinho sonhando umas noites com
ela, ah, mas quando já!
— Então poupe, Trapicheiro.
— Querosene ou sonho, Secretário?
D. Bena, lá do seu quintal, sacode o cabelo, cai a flor do cabelo,
apanha a flor num requebro, noutro dengue voltada para a
Intendência. Aqui na papelada morta, com as aranhas fiando em cima,
a dama do Trapicheiro. No salão do Júri e do Conselho, vão bichando
os Governadores, os Intendentes, os Senadores Federais. A
República, o selo comido. arriou-se de uma vez no ladrilho, sem mais
moldura. Atrás dela salta um rato, salta o manjericão de Zezé, a flor
de D. Bena. A máquina, devolvida pelo ex-Secretário, nada escreve
senão o nome do enforcado. Folheia a coleção do finado órgão local,
A Ribanceira: a cidade à luz do Gasômetro, o piano tocando, a harpa.
Chega o Coche. As trinta damas, de que fala a D. Benigna, todas no
baile em que se anuncia a calamidade: a borracha do Ceilão. Coronel
Cácio assume: seus navios embandeirados ao largo, o fogo de artifício
mais parece subir da ilha onde a orquestra toca no fundo. Assim acaba
o expediente.
Passa pela janela de D. Débora, a prima do Bensabá. Mora só,
recebe, nas sextas-feiras, meia-noite, um de capa amarela, longa barba
e sandália, presume-se que um profeta ou macho lontra na figura de
um marinheiro holandês morto em batalha pela posse do Fortim. Toda
tarde, à janela, bordando, a ninguém mostra os seus bordados. Consta
que os leva ao Trapiche, nas noites de chuva, e ali despacha o volume
a bordo de um gaiola no rumo do Nhamundá e do Mar Morto.
Antes da bóia no Capitão, o pulinho na Zezé, é o cupu, saber em
quantos graus ferve o Capitão. Zezé desfia, [254] fa|zendo o vinho: ...
lhe jogo no Amazonas, D. Almerinda, de mãos atadas, com um urubu
pendurado no vosso umbigo. Logo se ajoelha, agarra a coxa da
mulher: Almerinda... Teus amantes? Onde?
Zezé num rodopio some-se.
Alfredo bebe o cupu na cuia, andando pelo copiar.
Gira por entre as seringueiras do quintal, espia no quarto
traçado de redes, Zezé, Zezé, destampa o baú, desemborca o alguidar,
Zezé, Zezé, bem baixo. Pelos fundos vem do igarapé todo o silêncio
que o leva ao esconderijo onde são guardados os tambores do Divino
e de São Benedito — o tio dela é tamboreiro da Ramada — e a
encontra se rindo no escurume para aquele ensaio, noiva imprudente,
impaciente, donzela, seja grave, seja Secretário, um faz-de-conta em
pleno risco, tocável mas inviolável naquela fomentação a cumaru,
gosto de cupu, ali de pé no meio dos tambores de São Benedito e do
Divino, sacode o açaizeiro, cuidado, tambores, a. luz do Trapiche não
se apague, deu no barco, deu na lancha, bordados de D. Débora, este
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manjericão? pois coma, não apanhe o cacho, o cacho é do noivo, se os
tambores acordam? se a pomba do Divino? ou os sete palmos da Zezé
estão naquele cemitério ao lado da Bonita? Rosto no escurume, pele
de tambor, o beiço crescido, assanha-se o pixaim, chovem os
bordados de D. Débora.
Como sair neste sol da rua, neste meio-dia, grave, sério, nas
vezes de Intendente, a noiva lã dentro apanhando no chão os bagos do
cupuaçu?
Na mesa do Capitão: D. Almerinda ali de castigo, submetida
aos olhos do Secretário, o Capitão ferozmente gentil.
— Secretário, hoje o Sede me leu longa carta de um
desembargador.
— O desembargador escreve do purgatório?
— Veio pelo Correio.
— De um desembargador desencarnado que desce na sessão
espírita e vai ditando as cartas. Sede também se pega com os
babaçuês de Belém, entrou na maçonaria, consultou o astrólogo, o
quiromante, esteve em Faro atrás de uma feiticeira que choca pedra.
Da parte do Mestre Parijó, informado que o Juiz não vai sair tão cedo
da [255] Comar|ca. O Sede não quer questionar com o Mestre. Ao
contrário de Sara, o Sede já não dorme, chocando o seu ódio no
processo com a caveira ao lado. Manda furtar aquelas folhas do
quintal do Promotor e fuma. Agora o ponto da matintaperera local é
no tabacal do Promotor, fumando lá â. vontade.
— Homessa! Como soube tudo isso? Então, Secretário,
satisfeito?
— Ah, muito.
— Pois eu não, Secretário. A comissão que aqui desempenho só
me acarreta dano. Sim que o Intendente me escreve, me pede mais
paciência. Depois minha senhora não se dá nestes ares. E tudo me
parece que o resto dos habitantes vem voltando dos três cemitérios. A
respeito das folhas do fumo, sabia que elas cobrem a sepultura do ex-
Secretário, o suicida? Quem foi lá plantar? Acabo de passar pela
calçada do Coronel, passei por ele, não respondeu ao meu bom-dia,
tão alheio estava, dentro do fraque e do colarinho, passeando na
calçada. Não, Secretário! Minha senhora já. mal respira. É ou não é,
D. Almerinda?
D. Almerinda, olhar na parede, a boca no gesso.
— O Coronel... O anão, batendo sempre o rufo, vai na D.
Benigna saber se tem carta da irmã, nunca tem. Fica batendo rufo,
horas. A noitinha, no parapeito, o Coronel, de Larousse na mão,
sonda o rio. Ou fica na sala entre os espelhos, entonado, dando
audiência aos morcegos. Já escreveu seis telegramas ao Partido mas o
cabo, cadê? Nem selo tem o correio. Não, Secretário!
— E o seu relatório, Capitão, mandou?
— Ainda umas considerações a fazer. Mas, D. Almerinda,
minha filha! D. Almerinda, minha santa? Nem bom-dia ao moço? Por
que não come, D. Almerinda? Dê um bom-dia ao Secretário.
— Dia, Secretário — num repente, brusco, a D. Almerinda.
Alfredo meio assustou-se, o beiço de D. Almerinda crespo,
brusco. O Capitão afia a faca no garfo. D. Almerinda recolhe o beiço,
agora com os olhos no prato.
— O gavião, Capitão? O gavião que matou?
[256] — Também esta noite matei treze morcegos. Preciso fazer
uma comunicação ao Museu Goeldi. Fiz uma descoberta.
— Desenterrou as garrafas de champanhe? A respeito dos
morcegos?
Minha queda não é para a fauna nem para a flora. O que
descobri, comunicarei depois.
Barbeado, lívido, de esguelha para a mulher, serve a ela com
delicadeza e furor contido. Atrás dela, esvoaçam os amantes, a figura
mesma do Secretário, os treze morcegos, o gavião, o fumo do
Promotor. D. Almerinda tempera a garganta. O Capitão sobressaltase.
140
Nesta casa velha, varanda aberta sobre o rio, soalho cedendo,
ocupado pelo Secretário, seu Dó vem pedir ordens.
— Seu Dó nem pesca nem caça nem planta aquela folha?
— Sem com que caçar, Secretário. Pra pescaria, vontade não
me falta, anzol e linha que são elas. Plantio aquele, Deus o livre, o
Coronel Promotor me metia na grade. Ele tirou patente.
— Abriu?
— O Mercado, Secretário? Abri, areja um pouco. O senhor não
tem mesmo pra comprar uma nova bandeira nacional, Secretário?
Alfredo abre o Racine, abre o Receita e Despesa.
— Então com sua licença, Secretário. Ver se espano a
Intendência.
— Não, seu Dó. Espanação bota abaixo o pardieiro. É certo que
o soldado toda noite não sai de sentinela ao pé do Coche?
— Olhe, Secretário, aquele soldado? Visto saindo dos fundos
do quintal do Promotor. Fazendo o quê que não sei, não sou eu que
estou lhe dizendo.
— Você mata morcego em sua casa, seu Dó?
— Bena se acordou urna noite dessa gritando que um chupava o
peito dela.
Passa lá fora a indiarana jogando olhares, sacudindo o balaio
vazio.
[257] — Que ela faz, indo e vindo, com aquele balaio, seu Dó?
de conta que vai no seu Guerreiro comprar. A mãe dela, sim, é
que deve ir a bordo ver se vende estória. Contadeira de estória está
ali. Dá pra encher o balaio da filha, carregar um navio.
— Então vá dormir a sesta, seu Dó.
Examina o palmebiche, tudo como foi previsto: o número-um
esburacado nas costas pela traça, só faltando Roberta para ver e rir.
Neste instante, “rameira” escreve o Capitão a punhal no peito de D.
Almerinda e esta, beiço chupado por treze morcegos, olha o navio
chegando a Manaus.
Arma a rede na. varanda sobre o rio, tenta o Racine, ora, ora,
vai capiscando com a ração do Francês sem Mestre, duas vezes por
semana, dada pela corcundinha alemã, a D. Marta, bastante poliglota,
também professora de violino. Vamos a ver, por exemplo, esta
passagem.
É só fala de príncipe, nem vos mereço, princesas do texto. O rio
lá fora ferve e bufa. Escorre o livro no soalho, o cochilo apanha lá da
ilha o zinho rio caseiro, o Arari, agora na palma da mão. Nem carta da
mãe nem notícia do tio. Dolores no ombro, o tio desce da serra com o
encantado no arpão ou na salmoura.
O ex-Secretário fuma lá embaixo o fumo plantado aqui em cima
da sua sepultura. A vaca do seu Bensabá onde foi o Grupo Escolar,
lendo na parede aqueles nomes cabeludos. De novo passa na rua a
indiarana esguia, zolhinho índio à espreita, balaio.
Assim se arranca da rede, uma pirueta ao Racine, salta a
princesa com o rosto de Bi, ou de Zi, ou de Zezé, o cupu na mão, a
botija, o sono de Sara, os treze morcegos de D. Almerinda, o canteiro
do Promotor. A pele da cobra leva o Mestre Parijó Xingu adentro, Jari
acima, apalpando as Ilhas pelo fundo. Atenção, é o ferreiro na
bigorna, batendo que ferro? Na filha? Neste silêncio, nesta Secretaria.
Vai à porta e dá com o Escora-Canto.
— Que há de novo? Que há de novo?
[258] — Que você anda comendo o fantasma da vaca no Cocho.
— Eu, Secretário? Eu, Secretário?
Seu Dó traz o que há de novo: O Capitão prendeu um das Ilhas,
acusado de ter sumido da. canoa em trânsito um valor embrulhado no
lenço. O Secretário acode. Impaciente à, porta do xadrez, fuzil no
braço, o soldado come abacate. Lã dentro, o homem escuro e alto e de
luto, todo um passarão, os olhos empolados, tão na pele os ossos que
só esqueleto.
— Ordem do Capitão. Não come não bebe até que confesse,
Secretário. Ordem do Capitão. Ordem é ordem.
141
Ordem neste mormaço, os ossos do faminto ressecando, o
ferreiro bate na bigorna e na filha. Agora é a flauta do Maestro. Ratos
da Intendência começam a espiar os ossos do condenado. Sozinho,
curvado sobre o tabuleiro de dama, com as moscas cobrindo a traíra
seca no paneiro aberto, seu Bensabá sonha com os preços altos e Sara
dorme na cadeira de embalo. No azulado estirão da outra banda sobe
um fumaçal. Seu Guerreiro manda despescar o cacuri. Defronte da
taberna, debaixo da mangueira, o bêbedo:
Se condoa dele, Cavaleiro Jorge
Se condoa dele, Cavaleiro Jorge.
Na praia, o Capitão estuda os seixos, como diz. Passando
ungüento nas roxidões do corpo, D. Almerinda se olha no espelho e
em pedra quer se virar, em pedra. Onde esses meus amantes que não
vêm? No seio a marca roxa, o rameira a punhal. Subam do rio os
meus treze amantes) treze morcegos me levem a Manaus.
Lá está, fraque e colete, binóculo em punho, o Coronel Cácio,
avistando no Xingu ou na Suíça os lagos perdidos, a filha em Belém.
Geme na flauta o Maestro. Seu Dó chega, mostrando a vela para
Finados.
— A sepultura da prima, seu Dó. Achou?
— Naquele cemitério delas, todas é uma só, Secretário. Acendo
a vela pra todas elas.
Chega a comadre Nhá Barbra, pedindo de mãos postas nem que
seja uma velinha para seus mortos, tão carecidos, [259] seu Bensabá
não fia, seu Guerreiro no mesmo seguinte, ir no navio que passou não
pôde, ganhar de um trabalhinho aonde? este tempo, quem disse?
Risco das almas de sua família passar o dia dois escuro-escuro. Não
basta o cemitério limpo.
— Bem que a gente merece uma luz, que tão pouca seja,
Secretário, uai já... meu compadre. Te emenda, língua, compadre do
meu coração. Sempre mande pra sua mãe uma lembrança desta sua
triste comadre Barbra, sim?
Alfredo escuta. Vivos e mortos, uns e outros, sempre carecidos.
Comadre Nhá Barbra, esta, lhe abre o baú da família: D. Amélia no
chalé, ao espelho, rosto de baunilha e delírio. Pretas de Areinha
passando a ferro a cambraia das brancas, pretos do Araquiçaua
apanham goiabas para a calda dos brancos, pretos da Rui Barbosa
saem para o torno e o motor da oficina, tio Sebastião cobrindo, com o
seu negror viageiro, chãos e rios, e aqui, devota do seu pareceiro preto
São Benedito, a comadre Nhá Barbra, espichada, saia feita do
camisão do Fiscal de Consumo, pé no chão, pedindo vela para as suas
almas.
— Só posso mesmo lhe servir com uma cera, sim?
— É o suficiente, compadre do meu coração, essazinha só
chega. Mais meas almas não pedem. São Benedito lhe alumie dia e
noite, nesta e na outra vida.
Comadre Nhá Barbra caminha, toda espigada, agora na janela
do Maestro, mostrando a cera a Nhá Mãe Camila.
— Seu Dó, leve este vale ao seu Guerreiro. Distribua o maço de
velas pelos cemitérios.
— Secretário, incluo o cemitério delas?
— Então? Tudo irmãmente. Mais alguma coisa?
— É que, Secretário... está vagando há anos um lugar na
Intendência.
— Vagando estamos todos nós, meu amigo. Que lugar?
— O de arruador municipal. Posso acumular?
— Acumule, acumule, ocupe o cargo, sem emolumentos.
Precisa chave?
Na porta de casa, o senhor de mangas de camisa. calça branca,
chapéu de palha, sorrindo.
[260]— Na sua espera, Secretário, venho me quitar.
Alfredo não esconde o pasmo.
142
— É o trapicheiro de lenha na boca do Bacá, abaixo daqui duas
horas em montaria.
Alfredo verifica a relação dos trapiches.
— O seu é de 1.ª. A tabela marca 60.
— Tenha dó, Secretário. Raro o gaiola que me pega lenha no
porto, e, quando pega, de um milheiro não passa.
O sorrir constante, a vaselina no cabelo, na camisa marcado
RG.
— Camaradagem, Secretário. Pelos 20.
— O seu nesta tabela. Não é possível.
— É, Secretário. Veja. Pelos 30.
No que põe duas de 5 e uma de 20 na mesa, o contribuinte enfia
no bolsinho da blusa do exator a nova de 10. Alfredo, brusco, restitui
a nota ao dono que sorri agora com espantada incompreensão.
— Bem, diante da situação do comércio, a de dez do bolso
acrescento aos trinta da mesa, fica pelos quarenta.
Sorrindo, cheio de dedos, o comerciante recebe o talão, se
despede.
Mira e remira o canhoto, 40$. Já dá pra pagar o seu Dó. A
ribanceira, viva! conta com um Secretário honrado. Tenta com a
zombaria encobrir a indignação e a vaidade. 10$. Tão natural o gesto
do comerciante molhando-lhe o bolso! Lá embaixo, na praia, a
lavadeira cantando. Na cozinha do Juiz, socam pilão. Lá vai passando
o Sede de Justiça. 10$. Não vale mais que los nesta ribanceira. Lá está
de novo a flauta.
Capoeira adentro, beirando o igapó, topa o sapo-aru,
descaminha, onde sair? Pega o atalho, se vê na beira do igarapé,
aquele.
Meia usada, grossa de anca, igarapezeira de muita maré,
lavando roupa. Em volta o jupatizal, a moita de aninga, na seringueira
os japiins filhando. Boa-tarde, passa o bando de anu. a dona nem se
vira, respondendo Boa, agachada sobre o pano, lenta, metade peixe?
O igarapé vaza deixando um lodo nas aningas, desce uma espuma e
[261] Alfredo assim como arpoado se vê em pêlo alegando banho seja
grave seja sério, faça as vezes de Intendente, dobrando a lavadeira no
areiúme barrento mas eras do senhor. Mal que pegue o senhor traz? O
senhor não carrega? O senhor que é o Secretário?, assim como quem
come bota.
Pula do areiúme e lodo ó diabo, como foi? Quer fugir, roupa no
traço, fica atrás das sororocas.
— Se apresente, Secretário, o feito já foi desfeito, pra fazer não
está mais. Venha que lhe armo a rede prum descanso. Tire uma
pestana.
Aquela voz afinada no soturno. Vai tirá-lo das sororocas, afasta
o japá da palhoça, entram: o casco de jabuti, a moringa a um canto, o
taú dos cetins. AI atrás, roçando a palha da parede, o tajazeiro. Num
penico enferrujado a roseira em botão. Desce do folharal um ar de
tarde antiga, das primeiras tardes do paraíso. Armada a rede, a dona
tira do baú uma fita amarela, fez laço no cabelo, apanha uma garrafa e
vai passando no peito, no cangote, entre as coxas uma água-de-cheiro.
Finge um ralho. Eras do senhor! A modo então que o senhor só estou
a travessura, o senhor só veio, será, mexer com quem, ai de mim, se
achava quieta-quieta ali de molho, desencardindo um triste molambo,
esta pra lhe servir, Daria de Jesus Ferreira, gerada que fui de uma
índia, peguei tamanho em Porto de Mós, rente ali no Xingu, um
tempo em Altamira, de bubuia rio abaixo, ensequei nesta solidão. A
graça mesmo do senhor? Olhe que me pegou, pela luz divina, por
demais desassistida. Aquele seu boa-tarde... quem então era? me
indaguei, até que nem maldando. se maldando, maginar que era o
senhor quem me dera fosse. Luz divina, que no que o senhor me
passou o braço, foi no sucuriju me laçando que meio cismei, um por
aí de tocaia, já faz par de dia, só deixa rastro, por mais que fareje o
bicho, olho inda não botei nele. De com pouco, uma noite dessa,
quando vejo, livrai-me, Senhora do Perpétuo Socorro, o sucuriju bem
143
na mea rede comigo. Espero que o tajá aí o meu, seu pio avisando do
bicho. Ou foi aviso trazido pelo sucuriju, que já então mandava dizer
da vossa visita etc. e tal, foi? Também o pinica-pau se riu bem cedo
esta manhã, sinal de bom tempo, o bom tempo o senhor, será? Faço
voto. Também o anu cantou beira de casa, anunciou. Bem que a
mosca, este meio-dia, voou que voou em volta da mea orelha e eu:
que tu queres me dizer. rapariga? A [262] mosca ou foi a cobra? O
senhor primeiro-primeiro manda um na frente preparar a visita?
Aparece, pra nós desta nossa vida, metido num?
— Que num?
— Sucuriju, quem mais? A mosca? O pinica-pau?
— O pinica-pau.
— Pelo frenesim do senhor, assim no que chega é já cobrindo a
embiara? Nem como coisa que a água, e os olhos e os ouvidos do
mato? Peixe-boi novilho, meio adivinho eu que o senhor tem um
sangue furioso ou por hipótis sou eu? Lá no meio do caminho, o
senhor, sim, já me mundiava, trazia sina, e eu ali órfão, cresceu pra
minha banda, olhe o bote, semelhança de outro rafião nunca vi, me
acontecer assim não guardo igual na memória. Aí eu dizendo à toa
aquelas coisas do meu espanto, do meu embaraço, de sua saúde, o
senhor ouviu? me revirou foi que nem tartaruga.
Escorado na parede, Alfredo no gosto de escutar aquela voz
meio queixosa, lenta e resignada, tão saindo do silêncio.
— Exprimente a rede. Por pixé que o senhor não deixa de se
deitar, sei ser limpa.
Alfredo não se mexeu. A mulher abriu a rede.
— O remendo do fundo? Retalho de vela de canoa, ganhei
numa viagem, a rede é forte.
Repara nos olhos dela, miúdos, abelhudosos.
— A rede é forte, sim. Só se o peso dos pecados do senhor.., vá
ver nem tem, assim na sua idade. Bem, pecado não pede tempo nem
se pesa na balança. Dê uma deitada. Descanse, me dê satisfação, me
faça a merecendênda, sendo o senhor o Secretário. Quero me gabar
depois: nesta rede o Secretário descansou, sim? Bate palma, faz a cara
ressentida:
— Mas, ah, quedê que me chamou pra capina do cemitério, nem
nada, também um filho de Deus que se lembre que aqui esta-uma
vive... Tal coisa pede querer bem e compadecimento. Só se lembra
dela para mandarem o Diabo morar com ela, ó Daria, rapariga, não
tira da tua boca uma contrapraga, não dá cavaco, entrega tudo [263] a
quem fez o céu e o mundo e fez nós que hoje somos, amanhã de nós
nem sombra.
Desentalou o cachimbo da palha da parede.
— O senhor se desgosta que eu tire uma cachimbada? Se sim,
juro obediença, volta, cachimbo velho, pras palhas. Da consolação
que ele me dá, nem lhe digo, não se ria, é, sim. Ah, meu senhor,
quando de tarde o pinica-pau pinica o pau é que está fazendo lenha
antes da chuva, escuto e me preparo e com pouco cargas d’água,
acendição de raio, tufão de vento de acabar o mundo, e sempre me
benzendo vou me ameninando na rede, acendo o cachimbo,
cachimbando o meu medo, ah, é o que val, o que te vai, Daria de
Jesus Ferreira.
Puxa o banquinho, sopra o assento.
— Já que o senhor desapetece a rede, se malcomode neste. Este
foi presente dos meus anos, tempo que eu fazia ano, da mão dum
carpina bastante sabedor de sua arte, nasceu morreu no Vilarinho do
Monte. A gosto, Secretário. Ou no casco do jabuti? Também serve de
mobília.
Dá uma volta, vem, mão nas cadeiras.
— Agora que o senhor está ai até que mal mas acomodado,
licença que lhe pergunte: as informações que o senhor teve desta
minha fraca pessoa? Leu no edital do Trapiche? Ouviu dum boca
quente? Seu Dó lhe deu a chave? Veio vindo sem rastejo, perdido?
Aqui quem chega perdido, aqui se acha. Quem sem errar lhe riscou
144
este meu rumo? Me palpitou de longe a uma bote-lonjura? Assim as
nossas pedras se encontraram, veio na mea batida, havera de nós sem
falta se encontrar hoje-hoje na beira d’água, dia encarnado na
folhinha, folhinha que não tive este ano, já nem conto tempo. Hoje
que dia é no almanaque lá da sua Intendência? Se eu lhe disser que
andei sonhando que um moço saltava de bordo, só o meu nome
perguntando, pergunta na porta do Guerreiro, na porta do Bensabá,
vento, tu sabe? pedra, caminho dela é este? atrás de uma tal de Daria
de Jesus Ferreira, só-só o que indagava. De resposta só ouvindo:
Pessoa com esse nome, por aqui? que se saiba nem nunca andou nem
nunca se ouviu falar. Então o moço foi no Forte, fez canhão dar um
tiro; foi na igreja, badalou; bateu na bigorna do ferreiro, tocou na
flauta do Maestro, todo isso me chamando. Me acordei até que
assustada. Quem? Quem que, naquele [264] tamanhão de mundo tão
desencontrado lá fora, que chama, me avistou, me adivinhou neste
igapó? O senhor? A luz morre-não-morre do Trapiche lhe guiou?
Daria de Jesus Ferreira — servido? — bebe de sua moringa.
Era ou não era a sua pessoa? Ou simplesmente aquela que se
cobre de pena se vira numa pomba, instante agarra a gente, lá se vai a
gente inteirinha, dura, para dentro daquele cá-te-espero o nosso
buraco? O senhor não repare, aqui neste acabou-se-o-mundo tem
noite que passo só sonhando, é acontecidos e não acontecidos. O
finado meu pai, pois me aparece com um porco-espinho no ombro.
Dou de cara com a defunta mea tia Calixta atiçando o forno da
farinha, a falecida comadre Rufina chega e desarma mea rede, me
acordo me vendo escanchada no casco do jabuti, não demora me
eivém a alma do cavalheiro, que este foi quem primeiro me
desassossegou, me jogou no erro eu bem verde.., mas que eu diga que
fui iludida por ele, a tal não chegou. Que onceiro foi, isso foi, caçou
onça por este bamburral, foi em quantidade, ponha no meio delas
esta-uma que sou eu, fiquei de sobra, aqui miando. Se ele agora purga
culpa, por mim não é, por mim não ferve no tacho, não pedi. Por ele
não comprei luto. Pelo meu mau passo culpo a ocasião. Fiz por cega,
não por ele mas por um outro tão por mim cobiçado e que nunca foi
para o meu dente. Assim meus sonhos. Sabe lá se muito caçador,
muito remeiro já não fez comigo nesta rede e eu toda enterrada no
sono, inocente de quem se deita comigo, é o que mais cismo, só sei
lhe dizer que me acordo toda descomposta, toda servida. Contra o
mais, tenho pra me proteger um tajá puruã plantado em cima do
fígado de veado... Contra os meus inimigos, ele na frente de casa vira
uma onça.
Alfredo, escorado nas palhas. D. Daria sacode a rede.
— Mas se deite, seu muito do bem aparecido, se deite sem
cisma que a rede não tem pegajume proposital, isso não uso, aqui
quem passa por aqui entra por gosto, não assujeito, simpatia não se
compra. Não tiro do senhor a volta, assim como o senhor veio o
senhor vai, não ponho sapo na água do alguidar pra agarrar um, aqui
tudo é despido de malineza. Sim que espalham, pode-se com a força
das falâncias? espalham que vivo com o... pois [265] bem, por uma
hipótis fosse devera, no que ele entra aqui comigo já entra aquele anjo
que foi no começo, no que sai é então que engata o rato de novo e
volta a feder, aqui dentro só cheira. Ë só o que lhe digo, fora de
qualquer caçoagem, falo de dedo em cruz. Se deite então me deixe lhe
tirar seu sapato, o senhor pede mimo? licença que lhe esprema esse
seu cravo? Se espiche a seu gosto, cabe o seu peso e o meu, vexame
não carece, não carece pressa, tarde tem que tem de sobra, um gole da
moringa? Que lhe passaram na pele pra pegar esse lisume, esse
maciúme? Gordura de tartaruga? Mimo da mãe? O senhor aí com o
seu zolinho aceso é só se lembrando do que soprem pelo mundo a
respeito da insignificante, esta que sou, tão enjeitada neste tapiri.
Mapinguari não mora neste igarapé. Tape a oiça e coma que o pirão
está pronto. Mas, sim, senhor, é verdade, o que quase não escutei, sua
voz. Sua voz? Foi na maré? Lá fora lhe esperando? Mande ela entrar,
sim? Deixou a língua em casa? Agora, licença, sim, mea vez de me
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agasalhar, primeiro se suspenda, é o mandamento, mereço? A rede é
forte. A seu gosto? Senhor assim então que é leve, ver um anjo,
aquele anjo? assim, sim. Seu peito chega queima.
O folharal sopra um ar pelas palhas, embala o desenleio.
Três metros, pede, de um pano que lhe disseram tem no seu
Guerreiro, chegadinho no Marcílio Dias, sim? Põe na memória, põe?
— Mas não é mesmo o O que lhe sustenta, D. Daria?
— Já nem lhe digo, Secretário, larguei de mão, eu mesma até
que acreditando. Já que assim tanto falam, lhe informo que ele me
traz um mantimento na lua nova, uma e outra vez entra lá no céu
pelos fundos e tira do baú dos anjos um pano, desse pano faço a mão
um meu vestido. O que vai.
D. Daria benze-se, tira do baú um cetim alvo.
— Esta combinação? Foi ele. Cetim usado de uma virgem lá,
tome que uma de lá te mandou, ele me disse. De onde então? Da sua
fornalha? perguntei. Não, aquela-menina, lá dos éden. Deixe aí, foi só
o que eu disse. É do que não tenho medo. Ah, deixa correr a falância.
Sou bem rezada. Sei guardar o meu bezerro. Banho de aningapara que
tomei! Também já não lhe disseram que durmo, sou [266]fêmea dum
jabuti? Vendo aí o casco dele? O corpo, a maré leva e traz, o casco
dele fica.
— Então três metros?
— Se o senhor Dode. Se o senhor não pode... É o que ajusto
com o senhor, seu Secretário, coisa pouca. Está no seu querer na
conveniência do senhor, suas posses. Obrigar, não lhe obrigo, o que
se brincou brincado foi, a gente não desbrinca mais, foi só
consideração de sua parte, não tem prejuízo. O senhor de sua parte
querendo me fazer um presente, não rejeito, três metros ou dois e
meio, mais não carece. Presente que mea mão, esta, me avisou, me
coçou muito hoje. Me vestir pra São Benedito, dezembro já na porta.
Que o santo me veja e se diga lá com ele. Hum-hum, a Daria, afilhado
do Velhaco, a rapariga do jabuti, de vestido novo dado pelo
Secretário. Dá uma cotovelada no outro do lado. Esta vendo,
Antônio?
— São Benedito e Santo Antônio nunca deram um bordo por
estas bandas, D. Daria? Capaz, não?
D. Daria vai fecha o baú, se escora na rede, armando o pitó.
— Ah, também já o senhor Secretário! Se eles, os dois santos,
passassem por estes tristes lados neste ai-de-mim, garanto que meu
lugar lá em cima eu já tinha escolhido, mulher desaconselhada tão
que sou, mais pelo que foi escrito e não pelo meu desjuízo, só o
passar deles me salvava. Prece é o que de mim não falta. Aqui tão do
afastado é, que só rezo a São Pedro, em noite que ande pescando,
fisgue com o anzol dele este tapiri comigo dentro e a minha rede e a
minha moringa e o meu baú e lá se vai eu se embora, quem me dera
eu, ao menos lá embalando o macuru dos querubins.
— Xero.
— Xero, o senhor diz? Xero é. Então advogue pra que assim
seja. O senhor é advogado? Reza? Ah, mas sim, senhor! Só o que não
tenho é um deste tamaninho agrado pra lhe dar, uma insignificante
lembrança que seja mas não faltará ocasião. Pra outra vez, sim? Pena
que esta mea mão de pecadora não se vire em cobra um tempo, poder
subir no pau tira lá do galho o ovo do japiim, ajudava a sua memória.
Acontecer que o senhor volte — nem no dia do juízo, não? — espero
sentada na beira da maré. Deixe estar que não desespero. Tivesse eu
uma cobra de [267] criação, mandava ela buscar o ovo, assim o
senhor bebia a gemada se recordava de mim. Puxe pela sua memória,
sim?
As sombras começam, geme um tucano, ciganas se alarmam
pelo igarapé.
— Espere ai um instante que lhe acendo um facho. Aqui, não
demora, escurece que escurece. Não só é a noite, é a negridão da
lonjura. Traz oração com o senhor pra andar assim só o senhor pelo
mato? Melhor que fique, que que tem? passe esta noite aqui comigo,
146
não reparando no tapiri, este palácio às ordens. Pelo de-comer que
não, que tem aí um jeju moqueado e um cuí de farinha, dá. Vá no
raiarzinho amanhã, primeiro beba do meu caribé.
Alfredo desce, D. Daria acende o facho, um japu assobia longe.
Maré, será, que enche?
— Ando que ando reinando fazer meu peladinho no Maestro
bem na moda, Secretário. Que o senhor diz? O senhor se aborrece se
eu lhe pedir me consiga um atracador desses de 1500?
— Boa noite. D. Daria. Me recomende ao seu padrinho. Que ele
lhe dê um atracador tirado escondido da prateleira celeste, D. Daria.
— Padrinho? Meu? Estou é vendo ele já aí no calcanhar do
senhor, Padrinho, acompanhe essa alma. Mande, é que é, por ele, o
atracador e os três metros e mais meio de um pano cor-de-rosa para
enfeitar o vestido. Quando quiser, sem cerimônia, sim, que a sua
cerimônia, esta tarde, Deus me livre, só sei a qual na beira d’água.
Também não nego que inda não passa de um filhotão de gente. Assim
com o senhor dá é gosto, me dei feito ama-deleite, tudo tão bem se
passou, até que vejo o senhor mais crescido. Vá com Deus e Nossa
Senhora, Secretário. O lobisomem desse atalho é meu compadre,
dente dele já caiu, vá sem susto, que já avisei ele. Por via de dúvida
leve esta folha de tajá, se abane com ela. Erê.
Facho na mão, tajá debaixo do braço, desemboca na terceira
rua, direção do xadrez.
— Zezé!? Mas menina! Fazendo o que neste escuro, bacurau?
— Assim com esse facho na mão, o senhor, Secretário?
Fiscalizando o Município? Vem dos cemitérios? O jabuti [268] lhe
deu vez? Comprou os bordados da D. Débora? Vem de donde?
— Dum confim.
— Em vez de Secretário, o senhor tomando o lugar do Mestre?
Pela casca de cobra que não, que guardo uma no baú ’xe ver sua cara
nesse facho. Mas, ah! senhor lede a aningapara. A modo que lhe
passaram uma gosma no rosto.
O facho apaga, Alfredo abana-se com o tajá, Zezé, meio
sumida, lhe segreda:
— Que que’os senhores, umas autoridades, tão fazendo com
aquele coitado? O senhor, falo com o senhor, o senhor não se
envergonha? Pois, pra seu governo, agora mesmo atirei pela grade um
abacate, um embrulho bem amarrado de farinha e açúcar moreno.
Esfomeando o filho de Deus? Já basta as fomes dele aqui fora. Os
senhores pagam por isso. Agora vá, encha o ouvido do Capitão sobre
o que fiz, mandem o soldado me trancar na grade também, me
condenam a fome. Mas, ah, o senhor só fede! Bem empregado, pra
não andar por onde não devo. Me embora antes que eu pegue.
Alfredo pendura-se na grade do xadrez, mal vê o preso largado
no chão.
Passa pela porta do seu Dó que se assusta.
— Confessou?
— Cismo que o penitente nada tem pra confessar, Secretário.
— O soldado?
— Também o soldado me disse em particular que suspeita o
mesmo.
— O Capitão.
Coronel Felício, o Promotor, vem buscá-lo para um café com
pão-de-ló em casa. As duas filhas em cadeira de embalo, o gato
dormindo no velho tapete. A Leontina, ossuda, marca funda de ferida
na perna, a voz gasta. A Laudemira, recém-chegada de Belém,
cantarolando modinha nova, fala como professora idosa, estou aqui
agradeça à birra do papai, aqui perdemos nossa mãe, lugar este que
[269] só nos deu foi desgosto e agora a mim esta sempre fisgada no
fígado e esta falta de apetite, nada pára neste meu estômago.
Enterrou-se no silêncio, mais pálida, mais macambúzia. Alfredo lera
na mão do Sede de Justiça uma carta delas, furtada do camarote do
comandante do Lobão, em que metiam o pau no pai. Traz o café a
cria de casa, a Calundu, sorrateira moreninha de testa franzida, olhos
147
de muito ver. Alfredo sempre a via na janela se fazendo a zangada.
Bandeja na mão, à porta do corredor, finge nada ver, devorando o
Secretário. Da primeira rua a flauta do Maestro por vezes longe, como
tocando rio adentro.
— Laudemira, chama o Maestro e ensina a ele as novidades que
vens cantando. Que orelha ele tem, de anjo. Tão do ronca o tocar dele.
O tocar dele, Deus me acuda, até que adoece mais a gente. Não é só
ele que sopra a flauta, também os flautistas defuntos que foram donos
dela.
Laudemira tira os olhos de sua unha polegar para a janela que
traz da ribanceira a espessura da noite. O Promotor mostra os
dicionários de francês, exibe o papagaio que diz chéri ma petite-fille.
Mas entra casa adentro o urro.
— A vaca! A vaca! a vaca do Bensabá, resmunga o Promotor a
desancar o Bensabá, o Juiz, o Sede, o Guerreiro, o Coletor Estadual, o
Cabo do Fortim, a Agência do Correio, o Telegrafista, a flauta do
Maestro, a Zeladora da Igreja, a administração passada, o Trapiche, a
imoralidade no Coche, o Ministério Público.
— Neste monturo vegeto, nesta promotoria insepulto. Há
cerebelo que agüente? No tempo da colônia, ao que consta, havia aqui
um manicômio. Por que, não sei. Bastavam os presos do Fortim. Nem
só de heroísmo é feito aquela relíquia histórica borrada a cal. Muito
índio ali penou. Um que o padre Vieira mandou prender ficou ali
meses. Pois o manicômio... Correu que os loucos fugiram para o
mato, vagueiam pelo igapó. Certas noites, quando a mãe do Sede sai
distribuindo pela aldeia as suas puçangas, os doidos vêm espiar na
ribanceira. Agora, a esta hora, espiam. Ou ficam bebendo daquele
champanhe enterrado debaixo do antigo Bazar. Não sente o ar de
manicômio? Ficamos de repente em delírio. Não está ouvindo a vaca,
ouvindo a flauta, ouvindo as minhas filhas?
— Mas papai!
[270] O Promotor pára o embalo, espicha-se, suspirando fundo.
Acende o cachimbo, puxa o lenço, assoa o desgosto e o delírio.
— Fui, fui logrado. A vaca que urra é a viva ou a morta?
— Quando o senhor nos oferece um baile, Secretário?
—
indaga a Leontina. — D. Benigna, por simples malquerença, se esqueceu de nos convidar para o dela. Mas nas nossas
cartas mandamos contar do baile tintim por tintim. Que a cama dela já
foi feita, ah, isso que foi, foi.
Alfredo olha para a moça, indeciso, levanta-se.
— Na Intendência? Desde já incluída na comissão organizadora
do baile. A D. Laudemira ornamenta o salão.
O Promotor, de pé, recuando para a janela:
— Só se um baile fantasma, meninas. Com os doidos do
cerradal na orquestra cobertos pelos bordados da D. Débora. O
Secretário tripudia.
Alfredo, que não; as duas moças ficam ouvindo a flauta do
Maestro que parece doer mais.
— Também não rondo o Palácio, não galgo aquelas escadarias.
E estou aqui a pique de ser tragado pelo Amazonas no instante que
arrastar na correnteza o Trapiche.
O Trapiche irá embora nas costas de um sapo-boi de cinco
metros de altura. Não duvido que leve também a ribanceira. O
barranco só é pedra na fachada, oco por dentro, só lama por dentro. A
enxada que cedi para a capinação dos cemitérios me foi devolvida
podre. Não tem mais conserto, me diz o ferreiro. Deixei aí na janela
agora mesmo uma laranja, apodreceu de repente. O poço do nosso
quintal, sabe? Mandei os Três-pra-Todo-Serviço limparem. Só saía
água podre. Tiveram que esgotar o poço e por minha ordem lhe deram
um banho de cachaça. A água aí então foi saindo limpa. Gastei uma
frasqueira. Limpo a peso de cachaça. Foi preciso.
Enfia os dedos trêmulos na cabeleira branca, anda em busca de
nada pela sala; o copo d’água que pediu a Calundu, põe em cima do
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dicionário francês, o gato foge. E o papagaio? No corredor, a
moreninha tapa o rosto com a bandeja, instante a instante arrisca um
olho.
[271] — O Cácio com todos os seus anos de Suíça? Vamos em
casa dele entabular urna palestra e veja se entende bugalhos. Vamos?
— Estou inteiramente a par, Coronel, do francês do senhor.
— Quem lhe... Quem lhe disse? Estás vendo, Leontina?
Escutando, Laudemira? Escutando? As quadrilhas que marquei, aqui
e no Tocantins! As quadrilhas!
Agora brande uma espada:
— Esta? Vem de longe, ao tempo da invasão francesa.
Franceses, sim, que deveriam colonizar este país, estaríamos hoje
falando como civilizados. Sinto-me muita vez levado para aqueles
bosques de Alexandre Dumas, para a Corte.
Pisa o tapete que vai levá-lo à Corte.
— Este barranco só embrutece. Que tal uma. conversação no
nobre idioma? Comprou do Coletor o Racine?
— D. Marta não me deu o suficiente para trocar três palavras
com o senhor, Coronel, responde Alfredo, com toda a seriedade,
agarrado ~» visão do esfomeado no xadrez, olhando para a moreninha
da bandeja que não deixa o corredor. “Que relação há entre a
moreninha, a flauta, o esfomeado e o tapete?” Se lembra do tapete do
Padrinho Barbosa, tapete, tapete, tapete e moreninha se entendem, ela
no corredor, de bandeja no rosto e o tapete aqui no centro com as suas
ramagens desfiando. Leontina faz sinal à moreninha para retirar-se.
— D. Marta, Secretário?
— Alemã. Também ensinava violino.
— Exato que vai incutir as primeiras letras nos dois menores do
Bensabá?
— A senhora dele tanto me pede. Não sei. Devo-lhe um
travesseiro.
— Não perca seu tempo. Coloque no Trapiche este aviso: Aqui
é expressamente proibido ler e escrever.
— Na França esteve, foi?
— Cá e lá, estou, em espírito. Me reparto. D. Benigna me
extravia a correspondência de Paris.
Calundu, na fresta da parede, só espiando. Alfredo, na cadeira
de balanço, tenta se comunicar com a espiã, [272] tocando com o bico
do sapato no tapete. A voz velha de Leontina:
— Assunto para nossas cartas, Secretário, a sua visita. A nossa
ocupação aqui é escrever carta. Faltando selo na D. Benigna, a
correspondência vai a bordo na mão do escrivão. Nosso sonho é um
pombo-correio, aí, sim, ah.
O pai:
— Não estamos tão atrás dos chineses, Secretário, Ai na
cadeia... Esta Promotoria é também a gota d’água na cabeça. Resta o
derivativo. Misturar-me aos malucos do igapó. Embora hospício não
seja manicômio, é hospital comum. Oh, aquela vaca!
Alfredo se lembra: o Sede de Justiça espalha: Curtindo a sua
água ou seu fumo, o Promotor destrata as filhas: Vocês, suas comas,
já deram mil e um tiros na macaca, e tiros de canhão! casamento?
Adeus-tia-chica!
Agora o Promotor se levanta, põe a mão no ombro da Leontina:
— Esta e aquela, os meus dois pilares. Estas moçoilas.
As moçoilas param o embalo, escondem o vexame, entreolhamse. Rangem as cadeiras, cala-se a vaca, cala-se a flauta, a noite
carrega mais o barranco. Alfredo olha o corredor vazio. Lá pelos
fundos, Calundu com a lamparina acorda o galo que se alarma, rouco.
Aqui na sala as duas assustadas. O Promotor desembainha a espada,
as filhas se levantam.
— Mas que é isso, papai?!
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— Duelar com o galo velho. Assunto para as vossas cartas.
Faço do meu quintal o bosque dos Três Mosqueteiros. É a minha
viagem a Paris! A Paris!
Alfredo, boa-noite, e o Promotor, de espada em punho, corre
pelo quintal a trás do galo, Calundu com a lamparina. Que me venha
agora o Sede de Justiça e a sua caveira! Não pisa nas plantas, curupira
de saia e lamparina! Arremete com teu esporão, galo velho! A Paris!
— Mas, Secretário, já ouviu falar de Lombroso? O detido é um
lombrosiano escarrado.
— Toda a ribanceira achando que fome aí no xadrez dói muito
mais, Capitão. Não está ouvindo o Maestro? [273] To|cando de novo.
Pedindo que pedindo que o Capitão solte o inocente. Solte o homem,
Capitão. Até a vaca, não a viva mas a morta, urrou.
— No não confessar já mostra a tara lombrosiana, Secretário.
Ou pensa que não me aflige, não me mortifica aplicar a sanção?
Talvez seja eu que mais sofra.
— Então não sofra mais, solte o inocente. Até o ferreiro
batendo a bigorna.
Capitão ferve a seringa para a injeção na mulher.
— Capitão, o homem lá dentro virou visagem, só uns ossos...
Oiça o Maestro, oiça o ferreiro.
— Inocente é ainda o senhor. Dessas coisas anda o senhor
bastante verde. A confissão dele, por mim exigida, é o começo do
arrependimento. Estou dando a ele uma purga moral. Assim posso
salvar o homem... Onde me anda o ordenança para me fazer calar
aquela flauta e a bigorna.
Prepara a injeção, vai ao quarto.
Com essa injeção, D. Almerinda confessará imaginárias
infidelidades, calcula Alfredo entrando em casa, pega no Racine, sai a
princesa esvoaçando pelas grades da cadeia. As duas do Promotor
acendem seus cigarros e escrevem contando da visita, do condenado a
fome, do duelo com o galo, da laranja que apodrece num repente da
viagem a Paris. Os ratos à mingua correm pelo soalho.
Abre o armário, sacode o palmebiche: além de roído, velho tão
depressa. Sai ao som da flauta e da bigorna, vai para a cadeia. Logo a
seu lado o cochicho pelo escuro:
— Secretário, Secretário...
É a Maroca Mendes, barriguda de verme e baço:
— Ali a comadre carecendo de um zinho particular mas só com
o senhor.
— Que comadre?
— Comadre Bena, quem mais? Tanto me pediu que eu falasse
com o senhor esta noite, não passando desta noite. Inquente que o
senhor vá.
— Ela ou seu Dó?
— Ela, sim. Compadre Dó se arriou debaixo de uma febre.
[274] — Quer que chame o Capitão?
— Já não carece. Madrinha Benedita Lucrécia acudiu e é já que
põe ele de pé desta noite pra amanhã sem falta. Ordem dela,
madrinha, é dele não se arredar da rede por toda esta noite. Que o
bacio está ao pé da rede.
— Me pede pra vê-lo?
Maroca Mendes cospe para um lado, coçando a. barriga.
— Ë que é só com ela, o senhor e ela e os dois anjos da guarda,
o tempo em que vigio o compadre lá no quarto. o senhor pode?
Zoando pela capoeira, eivém vindo que eivém vindo a danada
da chuva, aposto que nos viu, os dois correm, que remédio, para a
porta do seu Dó. Ficam na porta. Chuva diminuindo, fala a Maroca
pra dentro:
— Espere aí que já vou, compadre, olhe a ordem da madrinha e
inda chovendo que está, o senhor nessa febre. E a senhora, comadre
Bena, vai ou não vai num repente debaixo da chuva onde ia?
150
— Quem lhe disse que não vou, comadre Maroca? Me espere ai
ao pé da rede até que eu volte. Me cubro com a panacarica. Não me
deixe o doente esticar.
A chuva calou a flauta e o ferreiro. O corredor fede a mofo, a
ervas. Lá no quarto mal a mal o alumeio da candeia de andiroba, seu
Dó geme? Alfredo vai sair, fugir, agarrado no braço, é a olho aceso
no corredor, com aquele travesseiro na mão, cabelo solto, os dois
anjos da guarda batendo as asas.
Agora pelo Trapiche desafia o risco das tábuas soltas, o farol
com a. manga partida, o Coronel Promotor, em Paris, rega o canteiro
de fumo. O rio rabeando sobre estirões e ilhas. Pras bandas do Xingu
relampeia. Imunda noite, vem no vento o fedor dos igapós e o barulho
dos doidos no antigo Bazar desenterrando champanhe. E esse grito?
No xadrez, lá das grades, o homem gritou.
Na praia, tira a roupa: o senhor que é bão, ouve ainda o
cochicho no corredor, entra n’água e sai, escutando o baque dos
cedros no pedral, o gemido de seu Dó e da D. Bena. E o grito.
O Tuxaua consegue atracar no Trapiche. Alfredo, que vem da
Intendência, toma um espanto: o Capitão e a [275] D. Almerinda a
caminho de bordo. Já os Três-pra-Todo-Serviço haviam embarcado a
bagagem.
— O praça também, Capitão?
— De hoje em diante a sua autoridade basta, Secretário. O
ladrão, soltei.
— Era? É? Ouviu o grito dele?
— Quis confessar, não.
— Vai assumir? Ajudante-de-Ordem?
Tranca a D. Almerinda no camarote, compra ao Cristo Seu
Seruaia o feixe de baunilha e o olho-de-boto, recebe cumprimentos e
presentes do seu Guerreiro.
— O Município na sua mão, Secretário.
Lá se vai a Força Pública no Tuxaua, trancada no camarote a D.
Almerinda. Na popa, o soldado acena com o quepe. Voltando do
Trapiche o Cristo Seu Seruaia e a Iná-Perde-a-Viagem.
Topa o seu Dó na porta do Mercado aberto.
— Secretário, dei consentimento. O senhor aprova?
— De onde?
— Do Arinuá. No Mercado, enquanto o ferreiro faz o caixão.
Bem que o seu Felizardo podia ceder o dele que tem em casa. Não,
que não que já cedeu quatro, que nesse quinto, desta vez, pode esticar
de repente. Esperando morrer bote que tempo. Tão sem ninguém que
nem a morte se lembra dele.
— Temos carne fresca, hoje, Secretário? — passa o Sede de
Justiça apontando o cadáver na esteira.
— Ninguém dele, seu Dó?
— Os dois remeiros, Secretário, me entrega o corpo e se foram
no remo sem responderem o que eu tanto indagava.
Chega o Zeqüenqüém.
— Mestre Parijó trouxe ele pelo fundo?
Zeqüenqüém corre em casa e volta com o castiçal. Põe um pires
de sal no peito do defunto.
Seu Dó mexendo com o prato da balança:
[276] — Secretário, o registro de óbito não fiz. Os remeiros
nem o nome do falecido quiseram me dizer. Dou sepultura grátis.
Olhe só no pé dele só que só terra comendo ele desde já. Os Três-praTodo-Serviço estão abrindo a cova, basta que o senhor pague pra eles
no Bensabá um arde-goela. Licença, que vou dobrar o sino. Nhá
Barbra não demora eivém.
Zeqüenqüém pega no braço do Secretário:
— O túmulo do desconhecido, Secretário! Quero lhe dever um
obséquio, meu ex-corde...
Defunto às moscas, à luz da vela e do sol no Mercado aberto, o
ferreiro, na segunda rua, serrando tábua. Nisto o som da flauta.
151
Mestre Parijó apareceu a bordo pela madrugada, no furo do
Murupucu, como, os foliões não sabiam. Saltou do fundo na pele da
cobra, enxuto-enxuto. Amanheceu em silêncio na proa. O barco
atravessou o rio. O Trapicheiro apanhou o cato, primeiro a
desembarcar foi o Mestre.
Forram-lhe o colo com a toalha bordada e lhe entregam o
recém-chegado, o São Benedito, agora pelo Trapiche, atras os foliões,
a bandeira do santo girando no ar. A pedido do Secretário, os fiéis
ficaram no chão firme à espera. Os Três-pra-Todo-Serviço
desembarcam os bichos doados, a cachaça, o melaço, alguma
borracha e uns couros do mato. São Benedito chega de coração
pesado e só
o Mestre pode carregá-lo, os dois conversando de suas viagens,
seus trabalhos. O Secretário nota a ausência do Juiz (tingindo com
cumatê a vela do bote), do Promotor (bêbedo) e filhas ocupadas com
a correspondência seu Guerreiro e os seus apreciam da janela. O exIntendente de binóculo sobre as três bocas do Xingu, a mulher, no
quarto, catando debaixo do travesseiro a quinta de Portugal. Embora
fiel à sua religião, o velho Bensabá inclina a cabeça na balança: Pede
secretamente a São Benedito, advogado dos seringueiros, não mais
que três mil-réis para a borracha, me agredite, ou espalho uma praga
grande nos seringais da Inglaterra. Lá dentro, na cadeira de embalo,
Sara ressona. D. Débora, à janela, borda. Cristo Seu Seruaia, tecendo
a urupema, chega ao canto da travessa, benze-se. Rosa Seruaia,
sentada no tupé, dá de mamar [277] ao filho, descompondo o Cuia
Pitinga que decifra enigmas no almanaque velho. Bernarda Seruaia e
a irmã caçula vêm receber o santo. D. Pepa não Larga a horta, o filho
mais de luto e mais agachado sobre um pé de couve. Sem o que bater
na bigorna, o ferreiro bate bate que bate na filha que foge pela
capoeira de saia arregaçada no rumo daquele tiro além do igarapé. O
Cabo tranca a mulher, se uniformiza, dá um giro com o cachorro,
hasteia no Fortim o pavilhão nacional; viva o Brasil, rosna o louro em
cima do canhão. Seu Anacleto, puxando da perna, vai já-já em casa
abrir o baú dos donativos, dá ao menos para mandar buscar o padre?
Entre os seus xerimbabos, saia de veludo, guarda-sol e leque, segue a
D. Benigna.
— Ai, que a senhora vai que vai tão cheirando, madrinha
Benigna.
— Abom, então querias que recebesse o santo fedendo,
criatura?
Nhá Camila, mãe do Maestro, a Nhá Mãe, faz a sua aparição na
janela, entre os tipitis, tapando o sol com a mão. Na cabeça da
procissão, o Mestre Parijó leva o santo até a porta da igreja. D.
Pequenina agasalha a imagem no altar de pouca vela. Bostoque e
gravata de elástico, a pena de urubutinga no peito, seu Dó puxa o
sino. Aqui fora o Maestro bisa a marchinha de boas-vindas, acompanhado ao violão pelo Zeqüenqüém e com o anão no rufo. Pela
primeira vez — sim, senhor, sim, senhor, até isso! — faltam os
Fonsecas, os músicos do Bacá. O Trapicheiro solta os foguetes, meia
dúzia, dois no desembarque, três de entrada da igreja, um não pegou.
Junto da pia, duas mulheres se segredam. Nhá Benedita Lucrécia jura
que o Santo Antônio, foi só rever o São Benedito, recuperou as cores.
En, en, confirma Nhá Barbra habituada aos milagres. Entra o
Zeqüenqüém, de escoteiro, com o violão, o dente de ouro perplexo:
Inverossímil! O bêbedo Epaminondas; esbarruando as mulheres: está,
sim, mas é do sangue da vaca que lhe passei nas faces. Acode a D.
Pequenina, levando o parente para a sacristia, nisto, sempre naquela
busca. o Escora-Canto: que há de novo? Que há de novo? Alfredo não
perde de vista o Mestre, velho Sacaca, pajé de muito calendário, e
sem idade, camisa brim-da-américa, o timbó na cabeça, pé no chão,
abençoando esse e aquele, fechado no seu silêncio. Num repente
some, de volta ao seu mistério. Vai dar a maré. As águas o chamam.
152
[278] Alfredo vê um encontro do Mestre com o tio Sebastião, o
tio estoriando o acontecido na serra — o lago, o peixe, as sombras —
e o Mestre o que sabe e faz pelo fundo.
Apressado, de vela acesa, o luto no chapéu, a pasta no sovaco, o
Sede de Justiça.
A porta da igreja, entre as mulheres, Alfredo se aproxima da
noiva Seruaia, a caçula num azul desbotado, os olhos caroçudos, o
pôr-do-sol no cabelo. Deixe estar que a indiarana, só de parte, aqui e
ali, que nem saracura.
Boa tarde, falou baixinho à moça Seruaia. Respondeste? Boa
tarde. Boa tarde. Ela lhe dando as costas:
— Eu, eras! Se arrede, vá mas é pra junto das do senhor por aí,
se arrede gastando sua língua à toa. Pra lá.
Meio cantando, um pouquinho pelo nariz. Alfredo se vira e dá
com a Bernarda Seruaia lá do outro lado só-estou-te-olhando, sóestou-te-olhando, olhar de onça com cria. Entram os foliões, viola e
tambor, vozes da ribanceira e varja. uma imploração doída. O
Maestro acompanha a folia, e o Zeqüenqüém e o anão no rufo. Lá
fora um poente sarará escoa-se atrás da outra banda. Aqui dentro se
ajoelham as devotas, a Nhá Efigênia, que há de fazer no céu o pato no
tucupi, a Comadre Nhá Barbra, tão agarrada a seus defuntos, a Nhá
Benedita Lucrécia, a benzedeira, que vai ceder, esta noite, o seu chão
de tijolo para a bagunça, a Justa, que se dá no Coche ver uma Nossa
Senhora, a Maroca Mendes, a Iná-Perde-a-Viagem, voltadas para o
pareceiro delas lá no altar:
Senhor então fez boa travessia?
Do rosto de São Benedito desce a noite.
“Apesar de calcular que você esteja aí se vendo em palpos de
aranha, nenhuma queixa até agora recebi, o que realmente me edifica.
Hoje recebi 503$000, toda a renda do mês passado. Como vê, não
podemos continuar assim. Urge reduzir, cortar, mais da metade do
subsidio do Intendente e só para isto seja eu o primeiro a dizê-lo!
Adeus! Não sei por que não lhe envio hoje réditos. Vontade não me
falta. Mas não sei por que não mando; aguardo talvez que você dê o
brado de súplica. É sujeitar o próximo ao suplício... que digo? Nem
sei o que digo. Adeus. Basta de Adeuses.”
[279] 503$000. O olho de D. Bena no corredor, o defunto no
Mercado, tambores de São Benedito e do Divino Espírito Santo dêem
o brado de súplica, cai um pardieiro na segunda rua, a flauta do
Maestro soando dentro da pedra, de pedra os abacates, o seio da Zezé,
D. Pequenina se tranca na igreja agarrada ~s imagens, o marido
vomita, telégrafo mudo, minguando a luz do Trapiche, racha a parede
da Intendência, a lamentação do velho Bensabá embala o sono da
filha. 503S000. O rosto do Mestre Parijó gravado no barranco.
503$000. Pára na porta da D. Sensata.
Na porta velha da D. Sensata.
— Secretário, dizer o senhor não diz por ser bem-criado, mas
cisma que o que Lhe conto é meu invento, um meu Duro imaginar,
salpico no acontecido o meu pó de canela. Desentorte a cisma. Na
batida desses anos, fiz foi aprender da toca alheia, esse-um vem,
estoria, aquela-uma, maré vem vai, passarinho muda a pena, o que fiz
foi tampar neste meu panacu o que só andei foi escutando.
Destampa agora: causos, rescordância, miuçagens, tirando
sempre do cesto a figura do Mestre Parijó.
Quando na pompa da borracha? Uma crueira, aqui, ali, da tal
pompa, esta zinha de sua parte lambiscava, catando o bago que restou
da urupema. Largar do meu que-fazer, isto que não, não largava. Galo
nem três vez cantou? Sensata, desemperna da rede, consumição do
dia te espera. Sol cambou? É o amassamento do açaí apanhando
naquele instante. Só então de noite — isto em dezembro — me
perparava, ai, sim, muda a casca, te passa um cheiro, Sensata, ia-olhe
lá como ela ia! — de anágua-de-noiva no cabelo, pelo arraial no
encandeio da luz do Gasômetro, no incanti da flauta do falecido,
aquele que foi o meu primeiro. Esse-um, sim. Fazia peito da gente
153
doerzinho tão bom lá no fundo. Me derrubou no poção dele, não subi
mais. Caçador de paca que só ele. Igual ao falecido me diga quem
antes ou depois dele. Das embiaras guardava a cabeça, uma a uma,
aquela porção. Mas tempo não é maré: só vaza, não enche. Uma noite
de agosto, no Jacupi, indo por um atalho balcedoso escurão o falecido
esbarrua com aquele tucano, o bico do tucano raspinhando na costela
do caçador. Dessa esbarruada a modo que o próximo meio tresvariou,
se desencaminha não diz palavra com palavra, tocava na flauta o que
ninguém ouvia. Chove reza [280] na cabeça dele implasto mais que
implasto, até um doutor de bordo, só sei que madrugou todo
espichado sem mexer o olho. Que foi que não foi, foi assobio do
anhanga? me queixo do tucano. Também cismo de ele ter matado, no
dito mês, aquela preguiça. Em agosto não se mata preguiça, faz mal, o
bicho anda com febre, passa pro caçador. So mais tarde me alembrei
do aviso do surucuá justamente aquele dia. Surucuá? Esse passarinho
de papo amarelo? No que me olhou de lá no inajazeiro me deu a
costa. Surucuá dando a costa, vai ter pessoa parente nosso, nosso
conhecido velho, mal de morte. Como de fato, o falecido foi o meu
autor, pai dessa mea primeira, tanto me agradava a feição dele, um
cabelo quebrado, aquele modo dele bastante cativoso de me pedir
uma coisa, seja de cima da mesa seja do meu mais oculto, e de se
desculpar das arteirices. flauta no beiço dizia porque não dizia, sim
que muito — que havera de se fazer? — muito do feitio dele por
demais pinica esta, pinica naquela, não perdia vez tarrafeando fêmea.
Também! Guardava no bolso, com licença da palavra, secada por mão
do Mestre, a coisa da bota, preferência dos apaixonados. Mulher que
por aí filhou por autoria dele tem é bando. A flauta, que já vinha de
outro, o finado Zaca, este por sua vez herdando do finado Constantino
do Ara tinga, a flauta se passou pra mão desse-um aí, o Loriano, que a
caruara tem é maltratado. Essa flauta? Mal faz, chama morte, se se
indaga de onde ela vem.
Bate palma de leve, prende o cabelo, a voz cautelosa.
A que se atreveu. uma do Sucurijuquara, por nome Sinhuca, no
que vai falar, do banco da montaria onde tinha a bunda crê tibum!
num perau onde, assim conta quem por lá pesca, se ouve subindo lá
do fundo bem puxado um soluço. São Benedito desafogue aquela
alma, eu por mim sempre peço. Dum estirão de tempo pra cá chove
castigo nesta ribanceira e varja. Mas tempo do falecido, agora isso! se
folgava tinha influência eta pau! tinha era festejo eu agarrada naquele
bicho malazarte. Ah, paixão, se uma tive, ai de mim que me gabe,
pelo falecido uma me doeu foi grande. Encaramujava meu ciúme,
forte eu me fazia como só Deus sabe. Visto por todos só era o meu
ocupar com ele a hora e a tempo, escrava com todo gosto e desgosto,
não perdia um instante, O tucupi, esse, que se engrossa com farinha,
faz a papa, a caiçuma? Não me [281] fartei de preparar pra quem que
hoje não vive, o meu falecido. Caiçuma me dá é peito pra lidar com a
flauta, caçar meus bichos e ferver eta pau! noite adentro no fogo da
mea tapuia. Ele? Tão do bom sem-vergonha, a troça dele, cada
assanhamento, ah, falecido! Aceso que só um quati. Do zinho ler e
escrever que lambisquei só escrevo e leio o nome dele, o que aprendi,
foi só.
— Mas entre, se sente, cachorro de casa caiu o dente,
Secretário. Cumprindo pena? Pagando promessa? Não cresça mais,
bem crescido o senhor já é.
Desprendeu o cabelo, atou.
Também no boi-bumbá saía. Tocava no boi. O boi? Hoje nesta
ribanceira só é de visagem. Chega São João? bate a meia-noite, o boi
dançando pelos cemitérios, a defuntada passando fogueira. Na frente
do boi vai aquele monstro dum barrasco desconforme. Quem se
arriscou ir na batida do boi — ouvi que comadre Nhá Barbra — estoria que o boi se recolhe bem atrás do cercado da D. Cipriana, essa que
é a mãe do seu Sede de Justiça. AI então se levanta tamanha poeira e
o que porco era, guiando o cordão do boi, é um senhor de capote
154
preto. O falecido que não, de senhor só foi na flauta, de se cobrir com
semelhante vestimenta estou por saber. Capote, esse? Preto? Que eu
saiba, existe um nesta ribanceira, no cabide na sala do doutor, o Juiz
dos direitos. Aquele travesseiro-de-orelha dele, a Tomásia, cansa eu
de ver a Tomásia sacudindo o capote na janela. Mas olhe, o jornal que
lhe apresento, a Sensata, esta, não é quem lhe põe na mão, o que o
senhor leu não fui eu. Flauta, quem sopra é o Maestro, sino, quem
toca é o Dó, bigorna, quem bate o ferreiro, bandeira, quem iça no
mastro é o Cabo do Forte, o Trapicheiro quem acende o farol do
Trapiche.
— D. Sensata, e essa sua menina?
— Três tive, três rachas, uma casou, a mais velha, mas essa
passa martírio na língua dos outros. Do sangue dela ou fado? Cego é
o marido pela paixão que carrega por ela. Ela? É, sim, peixe fisgado,
mas solte a linha, vai rio adentro, por demais travessa a. coma, puxa o
pai, tanto tirou comida da panela fervendo no fogão que virou falsa
pro marido, o que lhe digo, não escureço. Fiz ver ao marido: está no
teu direito te largar dessa mea filha. Ele? Desgarra? Morto por ela.
Costume dela tirar comida [282] da panela fervendo e eu: Palmira,
olha, isso não presta, isso não presta. Não foi? Que eu dizia? E eu
podre de avisar. Olhe que tanta vez varri por baixo da rede dela com a
vassoura feita com pena de rabo de urutaí, que isso guarda mulher
casada contra tentação. Mas quem disse? Descasar, espere por isso, o
agarro dele nela nem por obra da morte. A do meio nem bem criou
penugem se arraparigou, mas em vez de logo ir e se alotar com as
pareceras de oficio lá na cidade de Belém, ai femeando coberta de
cetim fazendo seus cabedais, não. Preferiu, vadiação dela é só aí no
Coche, axi. Só agora, gaiola que se atreva encostar no Trapiche, lá vai
essa mea filha de cara mais lambida, pirangando passagem, vapor de
riba ou de baixo, Manaus Santarém Belém, nunca dão. Isso des
daquela tarde, me deixe lhe contar pro senhor crer. Um praça pra cá
destacado, indo se embora de volta, encabeçou que levava porque
levava ela com ele, não te deixo nesse Coche, me entregue sua filha,
D. Sensata, vá só escutando, te cobrir de ouro e seda não está nas
meas posses mas uma barraca de sala assoalhada na Rua da
Conceição te consigo te dou meu pouco nome mas serve te levo
domingo no meu padrinho capitão Boanerge e coisa e tal muito oue
bem, vamos, pois vamos, lacrado e jurado mas tem urna: te espero lá
a bordo, estou com a tua passagem, te espero lá a tordo, me jura que
vais? De bagagem só carece a roupa do corpo, lá em Belém te visto te
calço te enfeito te ponho mobília na boca. Isso assim também não, ela
disse, ao menos uma trouxa nos dois dedos pra não parecer nos olhos
da tua família que tu me achaste na maloca. O baú? Um que a
madrinha dela de fogueira, a Comadre Nhá Barbra, tinha, e tem, um
de tampa mas triste de tão... não tinha onde que não fosse amassado.
Urna vez em Belém, ora então, ia comprar um novo, e o baú velho
havia de voltar carregado de cera pra finados, bolacha e bem morim
pra a dona dele, tão carecida, o que a má afiançou. Se despediu, só
estou a paciência, em tudo quanto foi porta. Com quem estava de mal,
ficou de tem, pediu a boa união, cobriu a irmã casada oi gente! com
tanto conselho. Mas a outra foi se agarrou na tola: me manda me
buscar, nana, que eu me pegando em Belém me faço. Ao Mestre
ausente deixou um rogo, me acompanhe nesta viagem. Na igreja, D.
Pequenina por uma consideração abriu pra ela, se despede das
imagens, uma a uma. Me manda um maço de cera [283] que te rezo
aqui em casa uma ladainha, eu trato com os foliões do Divino, falou a
Nhá Benedita Lucrécia depois que fez o benzimento nela. Não come
queijo pra tu te lembrar de me mandar uma lata de talco e a tua
fotografia, segredou a Justa Zolhuda, costa da mão passando no olho.
Te encomendo um vidro de tira-lombriga da farmácia que depois te
pago, segredou a Maroca Mendes, grávida de verme. Mas me escreve,
um dia, me chamando que eu vou, também pediu, logo quem, a que é
chamada a tiro por aquele caçador, a Duli do Ferreiro. Não arrenega,
criatura, tu te pegando na cidade, desta tua desinfeliz terra, má,
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brabeja a Bernarda Seruaia, o Maestro tocando debaixo da limeira o
adeus da despedida. Assim que tu dê de cara com o tal que foi noivo
da desgraçada dessa mea irmã, te dou carta tranca, toma dele o
vestido dela que ele levou e escarra por mim em cheio na venta
daquele que de homem só tem a farda. Me manda me dizer de tudo,
que te respondo, Loriano escreve e assina por mim nem que seja
escrito na folha da bananeira. E assim a má meteu no baú o zinho que
pissula, o pé no salto alto entortado presente das duas do Coronel
Promotor, eu sei que mal o apito, é o Lobão, na bença, nhã mãe, toma
leva essa oração contigo, São Benedito não te perca de vista, te pega
te agarra com a sorte, rapariga, agora é a tua maré. Pois muito que
bem. No Trapiche foi que foi de repente aquela carga d’água aquela
tarde, e o praça? Toca ela já toda encharcada atrás do praça, já de pé
no chão, me vigie, por enquanto, este sapato, seu Seruaia, mas o baú?
baú da comadre Nhá Barbra não desgruda da mão dela. Trapicheiro,
não viu ele? Soares! e todo o tempo em que o escrivão de bordo foi
no Telégrafo e voltou, se arredar de dentro do navio quem disse, aqui
de dentro não saio, Soares! Soares! Precisou tirarem de bordo ela e
baú na munheca do marinheiro. Lá eivém vindo de volta, desfazendo
a despedida, trazendo .de volta os adeuses, pedidos e malquerenças,
atrás dela o velho Seruaia no préstimo de carregar o baú nas costas
como se carregasse a cruz, os dois comendo chuva, o Maestro
tocando lá nas Seruaias, com o pé, que Bernarda escaldava, no
alguidar. Agora o senhor aprecie, o Lobão já no largo, já passando
pelo Forte, pois de lá do confim da popa dando adeus com o quepe,
adivinhe quem, quem mais? O cadelo. Três dias três noites ela no
poço de uma triste rede roçando no chão, te levanta, má, prova deste
caribé, o senhor provou? O baú, lá se vai [284] a Maxica levando de
volta, comadre Nhá Barbra, não querendo mais receber, encheu foi o
baú com suas lágrimas. má ficou tomando chá de raiz de mucajá, o
Mestre lhe passou, pra a doença que ela então não foi pegar pegou
daquele grandessíssimo? Des dessa tarde apelido dela, essa gente do
Trapiche e do seu Guerreiro botou, Iná-Perde-a-Viagem. Viajar? Só
se num pau de aninga. Tempo de arroz apanha arroz nas Ilhas.
Puxou um alento.
— A caçula? Menina, o senhor diz? Mexa com ela e veja o que
grela.
Não satisfeita com duas fui brincar.., tive essa, a Maxica. Fui
até por demais filhenta. Das minhas raparigagens só de anjo tenho
três lá em cima. Ah, não me esqueço que já bem barrigudona dessa
mea Maxica, uma tarde à. toa à toa fui me abracei no tronco do
abacateiro, um que tinha atrás da nossa barraca. Me rocei com o
barrigão na fruteira e foi o ano que o abacateiro mais carregou,
prenho igual aquela Sensata que não sou mais, que naquele tempo tão
eu era. No que eu descanso da Maxica, me deu foi uma semelhante
quebreira no corpo, estou por lhe dizer, mas feia, que me levantar da
rede cadê? Mestre Parijó, abaixo de Nosso Senhor, me curou com o
leite de muiratinga.
— Do pau aquele que se assemelha ao do homem, não lhe
faltando com o respeito, D. Sensata?
— Não compare o dia com a noite.
Nunca mais levantou a vista para homem.
Que criei ânimo, pedi: ara, Mestre, me aconselhe um chá, um
lambedor, uma raiz, uma reza pra mim nunca mais ter percisão que
nós fêmea, umas mais outras menos, a gente tem de tirar uma sesta
com esses cachaços, esses cão. Mestre Parijó: Sensata, te
desaconselho, vai sestando que senão só a minhoca come ou sobe pra
cabeça. Da outra sesta, aquela, mais tarde, ninguém se regala. E ficou
assim me falando nesse assunto da morte. Assim ele me disse. Mas
cismo que vento do maracá e fumaça do taquari dele secou mea
percisão. Des aquela sessão fui pegando um fastio... Uma carecência
de menos, me dou por satisfeita, me sosseguei, me benzo. Também...
Correu duns anos pra cá, me acudi no espelho, me vi esta mucura
velha que o senhor está vendo.
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[285] Abana os braços, como se balançasse um balaio invisível.
O Mestre? Dia desse tirou da batata da bunda do Izidro
Cambéua do Munituba o ferro do arpão que se fincou lá nele, e como
fincou inda se está por saber. Tirou sem que o arpoado um ai soltasse.
No lugar da arpoada passou três folhas de um mato que só o Mestre
sabe, rezou, sarou. Mas entre, Secretário. Faça serventia da casa,
acabo lhe apelidando de Escora-Porta, igual aquele outro, e EscoraCanto; oh, rapaz do mais repugnoso aquele, o primeiro padre-nosso
dele é: Que há de novo? Que há de novo? De novo é a tua fina irmã...
Hum. Desta boca não sai praga. Deixe me calar.
Cabelo de uma banda só, D. Sensata espia para dentro de casa
— Mas Maxica! — se acocora ao pé da porta.
O Mestre? Com o taquari defuma a água, sopra, sopra, a água se
abre e o Sacaca metido na casca da cobra mergulha e viaja. Ocasião
que vem do fundo vem numa dieta sem dar nem bença a ninguém.
Vem falando dum cavalo azul e tranco, me dêem água pra este meu
cavalo, sa gente. Noite que não durmo e oiço, hora morta, o sacudir
do bicho, o galope pela frente aí desta casa, o rincho lá pras bandas da
Igreja e do Forte. Estou que é o Mestre no azul e branco em riba do
rio, por dentro da maré, correndo a varia. Me deu na sessão a cuia de
cachaça, vinagre e vinho, bebe mas não derrama um só pingo,
derrama, e vê o que te acontece, menos que tu leva é uma frechada.
Quando vi, vazia-vazia a cuia. Bebeu, quem? Eu? Os?
O Mestre, cinta encarnada e branca, cambou para a ilharga dela,
de olho fechado, o taquari queimando taquari, salta pela porta do
fundo, salta pela porta da frente, respeito! a Corda vai abrir: Corri o
rio Amazonas surrador de feiticeiro vim andando vim andando
tangurupará surrador de feiticeiro tangurupará. O Mestre? Uma
ocasião, que levo comigo pras eternidades, se deu na beira do rio,
esse-um zão aí. Peixe dourada? Se podia pegar com a mão, tão que
era, peixal todo bebido, toca a gente pela praia, peixe chega pulava
em cima de nós, cardume que era cardume cobrindo a beira
branqueava. Vez de se desencolher a barriga, donde tanto peixe? Se
aproveitem, pessoal, que é decomer pruns tantos dias o rio nos dá na
mão. Então que de repente o Mestre Parijó. Desse peixe nem a
escama nem [286] o pitiú, não peguem nele, não levem dessa
dourada, só rezem mas rezem puxado, acudia o Mestre de cima do
pau de cedro na praia. Grelei um espanto no Mestre, me arrepiei num
tamanho medo, meu peixe me escorreu da mão. Essa piracema que
está dando é castigo mandado. Rezem pra sumir quanto antes,
ninguém apanhe um, ninguém se arrisque, o Mestre falando. Toca a
se rezar pra São Benedito. Tirai de nosso pé essa piracema monstra,
São Pedro. Rezou-se feito ladainha, entra pela noite, nós de procissão
no escuro, o Mestre em riba do cedro, nós com nossa curtida
famintura, sujigando a danação de fugir ao menos com uma daquelas,
ah, possível só era na brasa chiando... Na Bena na Rosa Seruaia na
Justa Zolhuda na Miquelina deu de dar chilique ou perna pras
capoeiras, Loriano toca flauta, o Dó o sino, o ferreiro a bigorna, a
filha do ferreiro tropeçando no rastro daquele tiro lá pra lá do igarapé,
e a lastimação, a aflição de cortar peito, aquela imundície de peixe,
aquele estragão de peixe, lastreou a beirada do Trapiche ao Forte.
Nem seu Guerreiro, fino no aproveitar, cacuri dele estourando de
dourada, mandou salgar uma? Seu Bensabá, embora doutra fé, me
agredite, se atreveu? Peixe saruado, castigo mandado. E assim lá vai a
maré levando aquela bebedeira, aquele peixal de bubuia, fedor da
mortandade no meio-dia subindo pela ribanceira. Do Forte ao
Trapiche o seu Sede de Justiça berrava, dando tiros de revólver,
berrando que era o bafo, Deus o livre, do Juiz. Ainda bem que o Juiz
andava no bote, creio-em-deus-padre, todo em pêlo atrás das fêmeas
dele nas ilhas. O Mestre mandava defumar as moradias. O fedor?
Castigo mandado. Mas que o Mestre nunca me oiça, inda trago
comigo aquela minha fome da dourada gorda que peguei larguei, ah.
— Uma coisa me diz, D. Sensata, que a senhora uma destas
noites também acerta o rumo do fundo...
157
— Só me arrasto neste triste chão aqui em cima e depois, por
falecimento, debaixo, aquele-menino, uai! já lhe tratando de aquelemenino... Secretário, que é o seu diploma, O mais que faço na sessão
é abanar o fogareiro.
Solta o cabelo nas costas.
Pajé também corta volta de seus guias quando relaxa o oficio.
Assim se passou com aquele-um, o Zequinha Acapu. É conhecido.
Largou maracá no jirau? Enfurnou o dom [287] no fundo do frasco?
Só ficou no gole? Se largou da Corda? Um sopro nas palhas, um
banzeiro na maré, só foi. Quem que por esses estirões acha rastro do
Zequinha Acapu? Ele e tudo dele, tudo sumiu, baú, o bananal que
tinha, terém miúdo, cachorro, a arara, o registo de Nossa Senhora na
parede. Correu que o baú dele bubuiava no Xingu, destampado, com a
sombra do homem dentro. Mestre Parijó, isto é verdade, é ele dia e
noite na Corda. Que beber, bem, ele entorna, acaba, a Corda é sem
uma inhaca da bebida. Perseguição em cima dele? Quiseram. O
tenente Otíquio. O sargento Cagagrosso. Uns de Breves. O de São
Domingos da Boa Vista, aquele outro, o subprefeito de Carrazedo.
Impinimaram? Se atreveram com ele? Toma! amanheciam atolados
no aningal, ou de boca torta ou de tripa saindo atrás como rabo.
Preso? Inda está pra nascer esse tenente. No mais, mansa pessoa, tão
escasso é no falar, tem um silêncio rã! que eu me admiro, se acha uma
graça cadeado com ela, criando a gente no seu ninho que nem
jacamim. A cinta encarnada, trouxe de Faro, lá da maloca, encarnada
e branca, dá é aquele poder lá nele.
D. Sensata, agora de pitó, vai repetindo:
Surrador de feiticeiro
esquibamba
Surrador de feiticeiro
esquibamba
esquibamba
— Mestre foi no rio, trouxe uma tão bonita pedra e uma água na
concha da mão, aquela água alva-alva. Ferve a pedra...
Desenrola o cabelo.
— Que tem índio louro no Anapu, senhor já ouviu falar? Senhor
é de onde, que mal lhe pergunto, se não se ofende se lhe indago.
— Meu onde é lá em Marajó.
— Marajó... como de longe chega o acontecido, chega e fica, a
gente guarda ou pendura na orelha de quem passa e leva. Na falta de
um brinco, dependuro na orelha essas estórias. Do Boi Estrela lá
donde o senhor é filho, é uma. Uma tarde os vaqueiros laçaram aquele
garrote com uma malha rosilha no lombo fazendo exato uma estrela.
Garrote sem marca nem sinal, de onde? No curral [288] tranca|ram.
Foram, dormiram. Noutro dia, sol ralando, quede? Quede o turuna?
Montaram que montaram atrás, meça légua na batida do garrote, que
avistam: é já que o Boi não se vira em forma de homem num
relampo? Boi Estrela, Boi Relampo.
— Quem sabe um por nome Dr. Edmundo, D. Sensata?
— Isso inda não ouvi. Não tem por lá um lago onde o mar
grande lá de fora vem por baixo da terra vem cuspir a espuma dele e
sal? O Boi Estrela, o Boi Relampo arpoa pirarucu nesse lago. O
senhor sabe? Vá ver que o senhor também jogou lá seu arpão.
— Vou com o meu boi marrequeiro.
— Os incanti que traz com o senhor! Bem perigoso que o
senhor é, é. Mas deixe ver se me lembro, a da Zula. Sensata, quem te
contou esta?
— Foi boca do meu tio.
— Seu tio, a graça dele? Boca do seu tio?
— Sebastião, um bem preto, estirado, lavrador destas e daquelas
lonjuras, bem que passou por aqui. A senhora ouviu dele?
158
— Me deixe ver: bem moreno, bem estirado... Bem parecido.
Se não me engano passou uni, sim, um com aquela moça alva como
Igual a louça do seu Guerreiro.
— Escrito-escrito.
— Iam olhar o Forte. Boa tarde, ele me salvou, a moça, essa,
não, não te ligo. Um par de se fazer um bordado em toalha fina, os
dois de cruza. Na volta do Forte, ele fez um rir que clareou a gente
toda por dentro e por fora, rir da gente guardar num búzio e quando se
está jururu põe o búzio no ouvido. Se despediu com fala antiga: até
curi. Seu tio, será?
Pois no retiro Jutuí na fazenda do Coronel Coutinho, o que ela
escutou, morava a filha do feitor, apelidada Zula. Não saia de riba de
cavalo, e de boi e de búfalo. Preta, socada, cabelo espeta-caju. E o
que não quero pras minhas filhas, oiça, enfiava no sim-senhor dela
aquele sabugo de milho coberto de cabelo tirado dos bichos a fazer
que era rabo. Assim de rabo postiço pelo campo era mula era
tamanduá era égua era onça. No bamburral, nos tesos, nos encobertos,
bichos machos cobriam ela.
[289] Alfredo escuta no campo marajoara o caminhar de
Andreza sobre o tempo.
— D. Sensata, conheci uma por nome...
— Também se virando?
— Não, que quem inventa somos nós, D. Sensata.
— Invenção, não, a coisa é, Secretário. Muito me fio, sim.
Agora tira do balaio o Mestre Parijó, o adivinhoso, o andejo. O
Mestre? Pesca sem isca, rema sem remo, come sem comida. Já tirou
acari da boca do jacaré sabendo que não tirava do solapo. Migou
tabaco em riba de uma cobra que tinha escama furta-cor. Topou o
cavalo lobisomem, sangrou o cavalo, do sangue fica o rastro, para
sempre, no caminho do Jacupi. Longe anda, longe mergulha, longe
escuta, longe adivinha, responde dos longes. A gente olha no olhar
dele, se vê longe, onde principia o mais longe. Ouviu a soca, aquele
rumor enigmático de dentro do rio Mojuim lá em São Caetano de
Odivelas, chão de uma especial sapotilha, sapotilhal ainda do tempo
do brigue português que era chegar em São Caetano tudo lá se embandeirava. Mestre ouviu aquele rio gemer bem gemido. Aqui no
Trapiche deu com aquela visão, corpo de bota? guariba? anta? todos
esses fazendo o corpo da visão, só o rosto de nós gente fêmea. Tratou
da Genoveva. Genoveva sem nunca conhecer homem, pariu na mão
do Mestre duas cobrinhas. Coisa vai que o Mestre atira as cobrinhas
no rio, cresceram que cresceram. As gêmeas da. Genoveva costumam
boiar na maré de tapacuema lá pela outra banda. Genoveva foi
enterrada virgem no cemitério de Carrazedo. Morreu de um espinho
de piquiá que engoliu. Não cansa o Mestre de avisar: piquiá se come
com todo o sentido, que o espinho dele entra pela língua, corre o
corpo inteiro e finca no coração. Dele só escapa quem vai pra debaixo
do piquiazeiro, pai da fruta, e reza. Estou que a Genoveva, o espinho
ofendeu a vergonha dela mas pela parte de dentro. Me dá uma cisma
que ainda vai gerar na sepultura dela um piquiazeiro.
Lá na ilha Mexiana, no poço mais sem fim deste mundo, um
curumim mora. Uma e outra vez descia na Corda ali no Itaperera. Que
que não fez a mãe dele, se pegou com a Santíssima Mãe dos
Inocentes pra desencantar o filho.
O filho: Me espere, nhá mãe, nestas sete pedras do [290] igara|pé. A mãe ia de caniço ficava pescando, esperando que a vazante
descobrisse as sete pedras do igarapé. Na conta de três maresias, na
terceira os olhos bolavam tamanhões de uma cobra e era logo o
curumim em riba das pedras se abraçando com a mãe. A mãe: Meu
filho, quem te botou esse incanti, o poço onde tu moras onde é, que
quero ir, te arranco de lá a peso de oração e o mais. O curumim: Só
apareço no rolo da cobra, atrás dos olhos da cobra, nhá mãe. Encha
uma bacia virgem com o leite da vaca de primeira cria e consiga uma
faca também virgem bem afiada. Jogue o leite em cima da monstra,
da cabeça ao rabo, e cegue com a faca a monstra nos dois olhos dela.
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Só assim, assim feito, me quebra este meu incanti. Nessa noite há de
arriar um tempo do bem grande. Disto a ninguém conte.
D. Sensata estala os dedos.
Tais coisas, Secretário, de quem não gruda a boca... foi, a mãe,
lhe deu coceira na língua, desarrolhou, logo pra quem, o amásio dela.
Deixe que sem pai o curumim era. Filho do vento, o vento que leva a
fama. O amásio, que não tragava o menino, passou a língua: Quero
ver tu ter é peito, sua mãe de filho do fundo, ou queres que o vento te
emprenhe de novo? Conforme o trato, ela se aperparou com a bacia
de leite e a faca afiada. A coragem dela. Deixe que o amásio com uma
penca de parceiros se socou naquele esconderijo dele com corda,
arpão e tarrafa. Meia-noite, dito e feito, tempo arria mas feio, um
tufão de vento, vazante, as sete pedras boiando. Na conta da terceira
maresia o remoinhão d’água acende os faróis da serpente, dá na
mulher aquele assombro, entorna o leite nas pedras, a faca lhe cai da
mão, ah, malvada! grita o curumim desaparecendo no rolo da cobra.
O tempo cessou. No lugar das sete pedras se abriu um perau. A mãe
usou o mata-pasto, jogando as folhas para onde o sol se senta, que
isso cura paixão de mãe por filho morto. Não curou. De tão
apaixonada, lhe deu lá nela uma dor, dor essa que se foi. Curumim?
Uma e outra vez desce ali no Itaperera chamando a mãe. Também no
Xingu ajudando as cachoeiras fabricarem o rio. Dá um grito que faz
medo, igual grito do macaco apucá. Moradia dele mesmo é na
Mexiana, bem embaixo, na raiz do fundão. Eu aqui neste chão
escutando o grito dele me aquieto que nem vara fincada no igapó.
Falar em grito, aquele do inocente [291] con|denado à fome lá dentro
da cadeia, o senhor não escutou? Ficou o eco em tudo quanto é porta.
D. Sensata suspira lá longe e volta:
Chuva que choveu miudinho
Cai na folha redondinha
Corta corta tesourinha
nos braços da Raimundinha
— Senhor inda não soube? No Itaperera, inteirou Já ano, deu
que deu toda noite um cardume de boto pelos jiraus, aí que foi! Aí
que foi! A chuva choveu miudinho. Moça que foi de nove meses... A
rapaziada! Senhor está ouvindo?
— A flauta?
— É a Bernarda descompondo. O que tem o pai dela de
escumar no acesso dele, tem a filha de tanto brabejar. Chá e benzição
não têm que amanse ela. Do natural dela passar o dia danada. Quando
ela cobre o Loriano de descompostura, o rapaz se acode com a flauta.
De tudo que aprecia e desaprecia ele se diz tocando a flauta. Maestro
se desesperando no sopro, Bernarda boca demônia! Aquela flauta, ah,
saudade, já foi minha. Tocou pra aquela pessoa que já fui eu.
Agora do balaio sai o São Benedito: vagueia o Município.
Aquela sombra cobrindo a jaranduba? É ele. Quando volta, das suas
mãos escorre a baba dos encantados. Também espalham, boca dessa
rapaziada que não tem mais o que fazer, dá na vontade do santo
cachimbar? Acende o cachimbo naquele apaga-não-apaga do
Trapiche.
D. Sensata sonhou com o São Benedito bem se embalando na
rede da Maxica, pisando nos araticuns podres, muito pensativo
sentado no Coche. Uma noite, no Mararu, saia do seringal aquele
alumeio. Era ele. Deu ventania, o santo amparava os ninhos na palma
da mão. Ia, se pesava nos balanços dos barracões, como quem diz: em
troca da borracha sem preço dou a minha santidade.
— Dele já escutei um suspiro fundo ao passar por esta nossa
porta e eu aqui sem me atrever de dizer a ela: mas entre, meu coração,
descanse nem que seja um instante nesta rede. Não vá reparando.
D. Sensata bole de novo no cabelo.
[292] — Mas então se assente, Secretário. Das três vez que o
senhor aqui aparece com um ar de quem errou de porta, não se
160
assentou uma. O assento, este, já assoprei a poeira, mancha não larga
na roupa, do senhor não tem prego nem grude nem vidro moído nem
bosta de passarinho nem formiga nem ferrão de caba nem oração pro
senhor ficar de vez nisto aqui onde a gente só faz que mora. Perna do
banco não quebra. Se assente sem susto nem cisma. Sentinela o
senhor não é, ou é?
— E a senhora?
— Banco é só um, bem verdade. Estezinho, mas dá, só nós três.
Ó Maxica, mea filha, aquela-menina? Aí dentro conte hora. Já te
viraste, Deus não me oiça, na Zula? Que vai dizer a visita. Fugindo no
cavalo lobisomem? Te nasceu asa?
A indiarana aparece:
— Galo cantou, será, esta noite, avisando que fugi, foi? Ah,
quem me dera eu!
— Foste então até onde? Anda, te assenta que de tanto tu
crescer já chega. Ou já te viraste na Zula? Abre tua ferida, pequena.
— Só sei, mamãe, que no olho-d’água não mexi.
Entre mãe e filha, os três à mesa, lamparina na parede, luz de
barro fumegante, noite seca na ribanceira, o urro do rio é surdo.
— Mas sim, D. Sensata.
— Do Mestre, Secretário?
Aqui embaixo da mesa o de repente joelho em flor da indiarana,
dê o brado de súplica, dê o brado de súplica, os olhos da indiarana na
mãe, na lamparina, desta vez nem a flauta do Maestro. O farol do
Trapiche, um agonioso fogo-fátuo. Noite em que o Epaminondas, o
bêbedo, prefere dormir no Coche, neste estrume macho-e-fêmea ainda
posso me salvar. E o Mestre, o Mestre Parijó, por onde?
D. Sensata tira o pajé do cesto:
Se criou entre o miritizeiro e a maré, o umbigo dele levado pelo
peixe aruaná. A mãe lhe dava o peito no jirau rente do remanso,
escutando o falar do fundo.
[293] Três rostos na luz que vem do barro, do peito que
amamenta no jirau. Embaixo da mesa a aranha no joelho, sonda a
coxa, seja grave, seja sério, o Município não pode existir só para
pagar o Intendente, 10$000 custa um Secretário? abra o Mercado, seu
Dó, que eivém defunto, leve que o senhor é, ver um anjo, ou não pesa
por ser o demônio na figura do senhor?
— Secando a lamparina, mamãe. Com pouco desalumia.
— Deixe, D. Sensata. A gente se escuta no clarão da janela.
— Secretário, o condenado na cadeia a não comer nem beber,
se culpou? Que castigo é pro Capitão? Por isso foi chamado? Por isso
foi embora? Certo que ele pinicava o peito da mulher dele com o fio
da navalha? Chega me arrepio só de me lembrar do grito, aquele, na
cadeia.
— Maxica!
— De acudir ele, o senhor, Secretário, nem que se lembrou,
será?
— Maxica!
Os três se desalumiando. Mestre Parijó desce na casca da cobra,
o bafo a cachaça e peixe. D. Sensata. suspira por um cuí de tabaco.
Mesmo daquele tabacal do Promotor servia.
— Pois muito que bem.
De se escutar sempre a D. Sensata, pois muito que bem, pois
muito que bem, fala dela a mais estoriosa a entoar a fama do Maestro.
Aqui por baixo esta aranha pelos ocultos fiando, a janela acende. Ou a
coxa desfolhada?
Um assim como Mestre Parijó já nasce, Secretário. Ele dormir
não dormia, sossegar não sossegava, fome sem ter, falar não falava,
gosto nem de provar o açaí. Ofício dele: gemer. Na ponta do estirão
morava um velho curador por nome Pai Miguel Barra de Ferro, que
indagaram dele. Me faça uma vistoria nesse meu curumim, a mãe
falou. Pai Miguel Barra de Ferro vistoriou o doentinho e conheceu
que, ali? no gito? estava era nascendo nele um poder. Nunca batam na
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cabeça dele nem nas entrecruzas dele que é por onde vai receber os
companheiros. Então que lhe passou uma dieta só passada para quem
vai mesmo [294] se|guir o dom. Multo que bem. No que intera quinze
anos, principia a receber os companheiros. É levado a um do
Anajatuba, o mestre Joaquim Piraíba, que vê, escuta, faz sessão, pede
ao rapaz: me traz um espelho, que seja espelho virgem por ninguém
olhado. Dito espelho esse que meteu por dentro do rapaz, sabe lá se
pelo peito, o espelho olhando nós de lá de dentro. O Mestre guarda
nesse espelho as fisionomias de todo esse povo e o mais.
— O espelho entrou ficou?
Tudo é contado com atrapalho, começa a debulhar a espiga
deixa pela metade, ata e desata, conta isto, deixa de contar aquilo,
uma coisa é logo não é, que simples fantasia não, e por não ser, não é
bem contado. Vem a borboleta, apaga a lamparina. Tem mais esta
passagem, contam, sim, que ele sempre pescava com o sol saindo e
num raiar do dia deu com aquele filho de tucunaré rente da popa do
casco e tanto se encontrou com o peixe aquela mesma hora e lugar
que já se conheciam na intimidade, já se davam, a modo que o peixe
se mirava no espelho lá dentro do rapaz. Passou-se, O peixe crescia,
rateava em volta do casco, chega uma vez saltar na folha do remo, o
rapaz metia a mão n’água, o peixe vinha roçava pelos dedos do
pescador, um tucunaré que só visto. No lugar por onde passava a água
pegava as cores da escama dele. Tucunaré esse...
D. Sensata cospe no escuro, lá fora um sopro na mangueira.
Se o peixe foi embora ou... Não se sabe. Só se soube que o
rapaz apanhou a Corda no Tocantins, foi mergulhou na boca do
Amazonas, dá com aquela teba sombra na água, olhe o tamanho. Era
a arraia grande, não deixava a luz do sol entrar no rio.
A indiarana foi à janela:
— Lua hoje arearam ela. Ontem era que só ferrugem. A luz do
espelho, que está no mergulhador, a ferrugem da lua nos dedos
suados, seja grave, seja sério, agora a mão é um tapuru queimando o
joelho, abre a chaga na coxa, enrosca-se na amêndoa. Mande o brado
de súplica.
Debaixo da mesa a sombra da arraia grande recolhe visões e
viagens. Das suas próprias escamas o tucunaré puxa o dia.
[295] A meia voz de D. Sensata na meia escuridade.
Nas Ilhas só era aquela falância, os seringais chamavam:
Venham, sa gente! Ilhéu de raiz funda, roedor de miriti, força que ele
se largasse pras Ilhas, lá se foi, conte as marés, na canoa Dinamarca,
arriar ferro mesmo só arriou no Bagre. Fez sernambi, onça lhe tatuou
o braço, se encharcou daquelas paragens. Ele veio que veio vindo. O
que se passou na brenha e na maré, defumando seringa ou com o
remo n’água, custoso saber, ou lembrar, o cancã deu sinal? foi com as
mulheres, o tatuaçu na frente, para debaixo da serra, aquela, do
Paitunare, espiar o Paitunare? e o primeiro calafrio do encantado, o
primeiro fumo adivinho, sonhou-se no papo da boiúna de Samanajós,
sumiu pelo fundão, vomitado sobre os taperebás de bubuia na
espuma, e pelas noites a febre, ardia com o rio se enroscando no
corpo dele, rio de canarana e caruana, sacaca! sacaca! sacaca! gritou o
urutaí as ilhas saltando na vazante, camaleões caindo dos cipós onde
escorria o sangue das inhambus e o sangue dos índios que o branco
matou. No balaio. da D. Sensata as estórias se aquietam.
Na sombra da mangueira, caminho do Trapiche, a D.
Pequenina, o Sede de Justiça e o Secretário esperam o Moacir que
traz o padre para a festa de São Benedito.
— O gaiola atraca? — indaga o Sede num tom acusador.
— Mestre Parijó sustenta o Trapiche no ombro — afiançou o
Trapicheiro.
D. Pequenina, toda em lilás, babado e cruz de prata no rosário,
busca um calmante para os vômitos do marido que não passam. Terá
no navio? Mestre Parijó que não, só na última necessidade. Quanto ao
Telégrafo, sinal nenhum do Vicking para a emenda do cabo. O Sede
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de Justiça pede licença à~ senhora e vai levando pelo braço o
Secretário em direção do Trapiche.
— Vamos aventurar? Desaba ao nosso peso? Lá está a InáPerde-a-Viagem. Lá o nosso velho Seruaia. Por que, em vez da
peneira, não troca logo a caçula dele a bordo?
Caminham sobre tábuas soltas, o Trapicheiro à frente. O
Coletor pára, acendendo o bago do olho:
[296] — O risco é pra quando o padre desembarcar, O que a
carola pede mesmo para o marido, o quinto, é a cova, já em busca do
sexto, esteja de aviso. O coitado vomita como vomita por não
suportá-la mais, se esvai em vômito.
Os dois voltam.
— A respeito do nosso passageiro do Moacir, jasmim não é que
se cheire. Pegado na igreja de Santana com uma filha de Maria. De
castigo para o Capim, lá lhe arrancam a batina em pleno largo da
igreja, administram-lhe uma tunda por ter se servido da cega na
sacristia. Estou nesta recepção agradeça ao Arcebispo. O padre?
Cobre de merda o sacerdócio. Corrido de Santana, corrido do Capim,
corrido do Salgado, só daqui não sairá corrido. Veja, Secretário, o fim
desta ribanceira. Não me bastava um bandido de toga, ainda me
mandam esse outro de batina. Pena que Bi tenha ido embora.
O Moacir apita, não atraca, o padre desce na montaria mas sobe
no Trapiche, escolhendo tábua em que pise. Transpiroso a loção, o
padre Pina. O Trapiche estremece.
— Mais depressa, Reverendo, depressa deste precipício antes
que... Deus nos livre! Vamos! — rogou a zeladora, cobrindo o padre
com a sombrinha.
Ganhando chão firme, exclama o Sede de Justiça:
— Reverendo, de nossas mãos a chave da cidade.
— Congratulações — apresenta-se, de escoteiro, o Zeqüenqüém, agora nomeado Juiz Substituto interino.
O padre, apressado, sim, sim, a chave, com ela abrir a nova era.
— O que não temo, as dificuldades. Não se assustam. Escolho
sempre o Impossível. A nova era, sim.
Passam pelas portas do Guerreiro que não dá sinal. No quintal
estão matando porco. Só o velho Epaminondas se apresenta, carnaúba
na mão:
— Santificado o vosso nome, Reverendo. Santo Antônio vai
vos dizer como recuperou a cor das faces. Anda o arcanjo derrubando
as casas com um sopro...
O padre esquiva-se, mãos espalmadas, toma a frente dos
acompanhantes.
[297] — Seu Epaminondas, por gentileza, atenda-me, é O Juiz
Substituto que vos fala — pede o Zeqüenqüém que leva o velho para
debaixo da mangueira.
O padre se volta para o Secretário:
— Escalavrei o pé por esse interior adentro. Barrancos e
atoleiros subi, desci, restaurando paróquias. A do Capim, deixei que
nem um brinco. Que o apetite, esse. Deus me dá.
— Assim então, Reverendo, me ajuda a varrer daqui o.
— Não esqueça, Coletor...
— Também o Senhor me trazendo o ramo de Oliveira? Cristo
veio ou não guerrear?
— Sou de paz, Coletor.
Mais do que a minha guerra pelos órfãos esbulhados, pelo
decoro da. Comarca, pelas donzelas perdidas...
— A questão cabe ao Estado, Coletor.
— Um Juiz, Reverendo, um Juiz. Queremos um Juiz!
— Façamos preces, Coletor. A Igreja não entra no âmbito...
Façamos preces.
— Preces, Reverendo?
Preces, façamos preces.
— Não se ofenda, Padre, mas se a Igreja me desamparar nesta
luta, sou levado a. fugir da tradição dos meus antepassados...
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— Qual, filho, seu coração não vira casaca. Não perderei essa
ovelha.
— Me vejo montando aqui um templo herege. Ponho uma
bíblia pregando nos bastiões do Fortim. Ao Mestre Parijó peço uma
sessão dele dentro da igreja, Reverendo.
O padre, palmadinha nas costas do Sede, estala a língua, enxuga
o rosto escanhoado, pergunta a D. Pequenina sobre o Telégrafo e o
marido. Alegando urgência de voltar à Coletoria onde concatena
documentos altamente comprobatórios, o Sede se despede:
— Na choupana mais velha do Baixo-Amazonas, às ordens,
Reverendo, O senhor há de rezar a missa que eu sonho, a missa que
eu sonho, com o meu ganho de causa, e bem cedo. Receba da parte de
minha família, da Coletoria Federal e da minha campanha as boasvindas.
[298] — Creio em Deus Padre ... — se benze a D. Pequenina,
vendo o Coletor afastar-se. — Não vá reparando, Reverendo.
— Sei, filha, de cor e salteado.
— É a sede de justiça — gracejou o Secretário se vendo
cúmplice de tudo, contaminado, atolado na ribanceira, os 10$000 no
bolso, com o olho aceso da D. Bena, a mão dele um tapuru.
— O certo, Secretário, é que você, com a sua mocidade, vai me
ajudar a restaurar a paróquia. Aceito o desafio que estas ruínas me
lançam. Ainda que o ódio...
— Nem tanto assim, Reverendo — se adianta D. Pequenina
com a cruz do rosário na mão — aqui o que tem mais é amor de Deus.
Sim, que estamos numa provação, estes anos. Quem sabe pagando por
se ter ofendido a Nosso Senhor.
— Trago na bagagem todo o otimismo do mundo, D.
Pequenina. Comigo não tem não pode ser. Assim fiz no Capim. Nasci
para as calamidades. Cravo o ferro no dragão, D. Pequenina.
— Chegando em boa hora, Reverendo, sinal de que Deus nos
acode. O padre janta cedo?
— D. Pequenina, atravesso um período de frugalidade. Se
possível um peixinho fresco na água e sal. Como vão os famosos
abacates da terra? Antes de mais nada me mande preparar um banho
tépido. E o mosquiteiro, filha? O mosquiteiro?
Toca o sino, seu Dó repicando as boas-vindas.
Passam pela porta do ex-Intendente. De paletó, colete e gravata,
o Coronel assesta o binóculo para as ilhas na boca do Xingu, fingindo
não ver o padre.
— Meu Coronel!
Coronel faz surpresa, baixa o binóculo, empertiga-se.
— Pregando neste deserto, cônego? Ou ainda não é cônego?
Julgava-o no púlpito de Santana. Ou veio dar-me extrema-unção?
— Trago-lhe um recado de Nosso Senhor, Coronel. Que me
apóie na campanha de restauração da paróquia. E é o que nos salva,
Coronel, o seu prestígio. Vamos fazer descer o Reino de Deus neste
rincão, Coronel!
[299] O Coronel ensaia o agradecimento, uma reverência, logo
de binóculo para a boca do Xingu. O padre retoma o passo entre o
Secretário e a D. Pequenina que lastima ter se esquecido do leque.
— Quente é o Capim, filha. Lã atola e ferve.
Ao passarem pelo Bensabá, o comerciante — esperem o café!
— arrasta a cadeira de embalo para a porta.
— Um dia desses Jogo com o senhor uma partida de dama e
olha que já estou rezando pelos preços de sua borracha. Contanto que
me reserve um óbolo para a igreja.
— Me agredite! Me agredite!
Alfredo: levanto a batina do padre para ver as marcas da surra
ou não foi? Vai também enxugar o bicho da D. Pequenina com o
sanguinho que enxuga o cálice? Seja sério, seja grave. Seu Dó
tocando o sino. Voltando do Trapiche, Cristo Seu Seruaia com a
urupema debaixo do braço, sem o pouco sal sem o pouco açúcar.
164
Logo atrás a Iná-Perde-a-Viagem, o rosto mais no chão, o pé mais
descalço.
Na igreja, depois de orar, o padre inspeciona, estalando a
língua, ouvindo a zeladora. Leva o Secretário para a calçada, olha o
Forte, ganha alívio:
— Tudo, tudo totalmente por se fazer, Secretário. Que cofre
arrombo para pagar as obras?
— O óbolo ao Papa, Reverendo.
— No que fiz a festa, me piro... Não! Finco o arpão no bicho!
Mas como? E você, com seu aninho de troça, que tem secretariado?
— Três cemitérios e vários desabamentos.
O padre apontou:
— Aquela geringonça desconjuntada ali debaixo da mangueira?
À espera do Coronel ex-Intendente?
— O Coche? Ali os casais brincam por uns minutos.
— No Coche?
— No Coche.
— Mas logo ali diante da Igreja? Não podia afastar mais um
pouco? Assim para dentro da capoeira, pelo menos defronte do
Fortim?
D. Pequenina vem apanhar o padre para o banho.
[300] Seu Dó, acaba de repicar, apresenta-se, aguardando
ordens. Um xerimbabo do seu Guerreiro vem correndo com recado
para o Secretário que é recebido na taberna:
— Pois se fazendo de esquecida, Secretário! Arquiva o calote
que me deu ano passado e me pede agora, por escrito, olhe o bilhete
em papel de telegrama, novo fornecimento para a hospedagem do
padre. Então sou só eu que sustento a religião nesta droga? E a coleta
de São Benedito na sua viagem? E os cabedais do santo? É para
perfumar os sovacos da D. Benigna? Só sou eu? As contas quem me
paga? O Bispo? Peixe para o padre é do meu cacuri, galinha do meu
quintal, querosene de minha lata, vinho da minha prateleira, a toalha
de mesa é a patroa que empresta, o mosquiteiro... Custeio a
hospedagem, sofro o calote e por cima espalha que lhe arruinei o parente, viola meus telegramas... Por que comigo se não me meto?
Além do mais... Não te mete, velho Guerreiro.
Seu Guerreiro engole o riso, aconcheia a mão na boca:
— Quanto à infelicitada do Capim, o Sede de Justiça, como de
costume, carrega na língua. Cega, não, órfã., uma órfão de quem o
padre quis tomar uns bens em nome da paróquia. Gracinda, o nome
dela. E uma. coisa lhe asseguro, Secretário. Minhas cunhadas? Diabo
que põem o pé agora na Igreja.
— Gracinda, o nome da infelicitada, seu Guerreiro?
— Não me meto, não me meto. Culpa tenho eu que me digam?
No que me contam, seja dito de passagem, no que me contam não
tempero com peçonha, como faz o Sede. Adoto a verdade. Mas olhe!
Tire a fotografia: olhe lá o Coronel ex-Intendente de binóculo
tentando reaver na boca do Xingu a fortuna que os filhos jogaram
n’água. A filhinha dele... Não me meto.
— Que soube?
— Lhe abrindo postema, Secretário? O Senhor! Escuse lhe
dizer, escuse lhe dizer. Estava no seu papel. O Fiscal de Consumo,
caindo aos pedaços, não abriu o talho? O outro, o ex-Secretário, não
se enforcou?
Seu Guerreiro acode no balcão, retira o peso da balança, apanha
do chão a meia folha de embrulho, murmura uma ordem para dentro,
volta-se para Alfredo:
[301] — Pode não ter acontecido... A contragosto que lhe passo.
Mas me dói que até agora o senhor esteja inocente. Naquela noite,
antes do Secretário Municipal, foi a Força Pública na pessoa do
soldado raso.
— Que noite?
— Ia ela a caminho do quarto do senhor... Mas se o Capitão
nessa hora acorda, Secretário? Vem o praça se atravessa: ou me dá ou
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toco a cometa. Foi no Coche. Ela do Coche para o rio e foi mudou
roupa. Ao passar de novo pelo Coche zás o ex-Secretário armado de
uma faca. Lá vai ela do Coche para o rio. Bem, não me meto. Vai
jantar com o padre, hoje? Vá, que o peixe é meu, a manteiga é minha,
o arroz, a batata, o vinho, o palito.
Alfredo remexe no bolso a carta do Intendente, senta-se no
banquinho à sombra da mangueira, olhando para o Trapiche. Aqui do
lado o bêbedo dormindo. Vem o seu Guerreiro coçando a orelha com
o lápis.
— De D. Bi, em Belém, por ora nada transpira. Está enchendo a
botija. O anão é que chora na beira da praia. Por certo, a D. Bi, com
aquela serventia toda dela... Naquela noite puff! na armadilha dos
dois tratantes no Coche, ex-Secretário já desesperado de faca
americana em punho.
— Já mandou o relatório ao doutor, seu Guerreiro?
— Que é isto, Secretário? Janta comigo hoje? Olhe lá, não me
meto, pode não ter sido, que eu visse, não vi, só ouvi.
Alfredo segue para a Intendência. Os velhos retratos, na parede,
lhe piscam o olho. O Coronel Cácio aparece de binóculo. O morcego.
A obra do cupim no arquivo. Bate na máquina de escrever alguns
zeros. Rodeia o velho Gasômetro, espia o quintal do Promotor. Some
pela capoeira, desemboca na esquina do seu Dó.
— Seu Dó, vamos novamente remover o Coche. Que tal junto
do Fortim?
— O Cabo, Secretário.
— Defronte do cemitério das...
— Ofende as defuntas. A morte é a honra delas.
— Tacar fogo no bicho?
— É a serventia pública, Secretário?
[302] — Debaixo da mangueira do seu Guerreiro.
— Não reme, Secretário. Se quer um parecer, ali debaixo do
araticuzeiro. Arremedeia.
— Pois isso. E desde já nomeado Administrador do Coche.
— A questão que só eu só não consigo. Precisa os Três.
— Com que eventuais?
— Um “abre” no seu Guerreiro ou no seu Bensabá, Secretário.
— Chame, chame os Três, Administrador.
Na beirada: o vaticano no outro canal rumo de Manaus. Atira
pedra no rio, faz boiar aquelas tardes do Arari. Andreza atirava, um
dois três, atirava as chaves, o baile da Mãe Maria, a paz do chalé, o
caroço de tucumã. Esta ferida, só vai sarar quando sentares em cima,
nua escanchada, Andreza.
Ao subir, o seu Dó na varanda.
— Seu Dó, alguma vez conversou com o soldado... Bem. Nada.
— Se troquei palavra com aquele praça, Secretário, que eu me
lembre, só foi mesmo bom dia, boa noite, e aquela vez do castigado
pela fome. Quis tirar graça com a Bena, o senhor não soube?
Se debruça na janela. A indiarana, balaio vazio, caneluda, passa
de bico em cima.
— Senhor já reparou na batida do sino, Secretário? Estou que o
sino vem rachando. Reparou?
— Mesmo rachando soa bem nas suas mãos, seu Dó.
Entra no Mercado o magrão pernudo, grosso o nariz, o beiço, as
orelhas, o rir de dente amarelo.
— O Secretário? Ah, nas navegações minhas pelo Município,
venho escutando de bocas respeitosas que o senhor tem um coração
de dezoito quilates. Assim oiço nos barracões, tapiris, trapiches de
lenha, jiraus e bancos de montaria. Alípio Evangelista Soares, um
bufarinheiro às ordens. Faço o comércio farmacêutico ambulante
fluvial. Dou é mais socorro aos carecentes, ação que o regatão nunca
faz, nem sou o Sr. Cipriano de Abaeté que dispõe, por um [303] litro
de farinha, meia barra de sabão, de uma rapariga em cada escala. De
tirar meu próximo do beiço da cova, me cansei não. Com o Mestre
Parijó fiz um trato de boca na vez que nos encontramos no paraná do
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Muruxaua. Cedo a ele do meu estoque o que for matéria pras suas
medicinas. Da parte dele vai me rezando nem que seja no meu rastro,
nesta banda do corpo que de vez em quando me dói e incha. Neste
Baixo-Amazonas, criatura que mais ponho na altura, o Mestre Parijó.
Que ande enrolado na. casca da cobra pelo fundo não desminto antes
dou fé. Senão por que me aparece na estiva da beiragem no menos
que se espera sem um remo na mão nem eco nem sombra de montaria
ou casco em que viajasse? Não discuto o mistério. Pois isso,
Secretário. Estamos a bordo do Sergipe 11, que o primeiro levou o
diabo numa refega no rio Araticu, com toda a drogaria. Eu e meu
tripulante, o seu Triste Vida, nos salvamos num pau de cedro e por
mão de São Benedito, faltando ainda saldar a promessa ao santo. Dou
às minhas canoas o nome de minha terra. Assim nesta odisséia de
regulador gesteira e jalapa, não cruzo com o pestoso, aquele vendedor
de tabaco, que barganha pelas ilhas, de violão e extrato falsificado,
vitimando caboclinhas, tributo não paga, debalde os comerciantes, em
dia com o fisco, mandam suas reclamações à. sede deste Município.
O contraventor só na impunidade. Isso agrava o comércio, Secretário.
Revira o bolso, desengonçado, soleniza-se.
— O Coronel Cácio me isentou do imposto e estou que o
senhor, Secretário, não revoga a isenção. Isenção tenho do Coletor
Federal, do Estadual, guardo a tordo alvará do Juiz da Comarca. Aos
fiscais Municipais sirvo calomelano e sebo-de-holanda. Mestre Parijó
rezou na proa do barco, fechou meu barco contra a trovoada, o turu, a
mundiação da boiúna e a inveja dos meus desafetos. Para isso me põe
na proa um pé de tajapará. Defumou meu toldo com fumaça de teia de
aranha. Da Marinha de Guerra tenho ordem contra os cacuris do
Amazonas. Neste caso deixo passar, não contrario o costume, advogo
a tolerância, me faço de cego. Briga não compro com o seu Guerreiro,
que embora carregado na pele, distinta pessoa é, se não me engano, O
vice-presidente do Conselho Municipal já me prometeu votar na
próxima sessão uma lei considerando o meu barco de utilidade
pública. Sim, sou trazido [304] pela Providência, vim a chamado do
São Benedito. Um bufarinheiro às ordens, Secretário.
Chega-se para Alfredo a examiná-lo de alto a baixo e com voz
de leiloeiro:
— Estou chegando do Mararu onde acabo de solicitar a mão de
distinta senhorinha. Fui desfiz o noivado no Talaçuí por aquilatar que
a noiva era que era uma boa da peste, digna uma conversa, sem
cotação para usar na sua assinatura o Evangelista, nome de
genealogia. Tinha lhe presenteado com o meu fino jogo de louça na
noite do pedido matrimonial. Fazia uma lua cheia encomendada por
mim, pedi a manceba no alpendre da casa dela ao som do meu violão,
também dedilho. É uma peste? Me devolva a louça, que custou uma
fatura. Mas a de agora, esta, sim, distinta, além do mais, modéstia à
parte, um primor de lindas faces e reta compostura. E assim neste
subir-descer a vela vara e remo, vez que se tem de cair na lama para
desencalhar a nau, levo de bubuia a minha cruz. Lhe acrescento: faço
mais caridade que negócio. Lucro, Deus me deposita para depois
desta crua e corrida escala, esta nossa. Sim, também compro ouro
quebrado.
— O diabo é que este meu coração de dezoito quilates...
— Quem me dera, quem me dera, menino! É o ouro de sua
mocidade! O meu é só se derretendo a um ai que me venha ao ouvido,
ali das paxiúbas, dos ubuçus, dos siriubais, por esses soturnos
desconformes de água e várgea, lhe afianço. E vou de, rio em rio
colhendo os meus noivados, escolho nesse alpendre, escolho naquela
varanda, peço, desmancho, não prestou desnoivo, me devolve a louça.
Enterrei no caderninho desde 1928 nove noivados. Assim como
enterro os meus desafetos no outro caderninho, a cruz na frente de
cada nome e o devido letreiro. Carrego dois cemitérios debaixo do
meu toldo. Busco um lar, não nego, é o meu garimpo. Quero que o
jogo de louça fique para sempre na mão de uma senhorinha
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competente e me fio que desta vez vai, a do Mararu, Indicado pelos
meus guias.
Barbudo e de culote, entra e sai o Cabo do Fortim, com o cão na
coleira.
— Cabo do Fortim! Cabo do Fortim! Ainda tem sal amargo? Se
não, às ordens!
[305] O Cabo se vira, como que atiça o cão, o cão ladra e seu
Alípio se recosta no aparador, cochichando ao Secretário;
— A senhora dele? Quase me leva o jogo da louça. Questão de
dias. O Cabo chegou de quepe fuzil perneira e as obras do Fortim.
Passou-me a frente. Meu freguês de sal amargo. Reinei, aqui entre
nós, Secretário, raptá-la no meu barco, escalando canhões, bastiões...
A dama não foge dele pois come. Outro de fora que lhe acenasse com
mais farinha e quisesse tirá-la do calabouço, ora se não! Tempo
acabou-se em que as moças incomodadas jogavam cuias de farinha
em cima dos botos assanhados por elas. Hoje elas pedem dos bichos a
farinha de volta.
Vem o seu Dó:
— Iço a bandeira, a da Intendência, Secretário?
— Aqui no Mercado?
— Comemorativamente, Secretário.
— O seu Alípio aprova?
— Eu quem sou eu diante das autoridades constituídas para dar
parecer sobre um ato público! Hoje é data grande? Na folhinha de
bordo não vi encarnado.
— A convite do seu Dó, nosso Administrador, o padre vem
visitar o Mercado.
— Então, seu Dó, a bandeira! Me deixe ver o mastro. O mastro
apodrece. Aqui a gente apodrece mesmo mais depressa, Secretário? Ó
seu Triste Vida, se desencoste, se desamarre da preguiça, correndo na
Sergipe 11 traga linha para içar a bandeira. Pela visita do Reverendo?
Viva o Reverendo!
Seu Triste Vida traz a linha, a custo o seu Dó iça a desbotada
bandeira cerzida por D. Benigna.
O magrão usa cerimônia:
— Secretário, decrete uma solenidade para queimar no Fortim
essa bandeira velha que também está podre, com o perdão do meu
país. Posso lhe oferecer a que tenho a bordo, sim, emprestar por uns
dias. Quando leio feriado no meu calendário iço no mastro da
belonave. Embora nada sendo no saldo dos méritos e das
consagrações, de ser brasileiro, desisto não. Ó seu Triste Vida!
[306] — Já chegou a nossa bandeira nova, seu Alípio —acode o
seu Dó, fechando a sobrancelha.
— E então?
— O padre tem ainda de benzer no dia da festa — diz o
Secretário.
— Recusa bandeira de pobre, secretário? É que o senhor é um
menino! Com esse peso de responsabilidade e tão criança! Sim que a
razão não mede idade. Me permita uma modesta pergunta? Não sendo
impertinência de minha parte, logo de antemão pondero que é mera
curiosidade de quem recém-chegando das selvas quer saber o que se
passa no foro civilizado: quando as obras do Trapiche? Encalhei o
Sergipe 11 no igarapé para não atracar no precipício, O senhor sorri?
Ribanceira como esta tão histórica sem um porto condigno? Dói no
coração do brasileiro. Pois saiba que tenho feito por essas águas
adentro bastante publicação do vosso governo municipal.
— Que limpamos três cemitérios, mudamos de lugar o Coche
várias vezes, abrimos o Mercado ao defunto e ao padre? Também em
projeto um baile na Intendência com trinta damas defuntas.
O magrão, o boca enorme, o dente amarelo, faz um assombro:
— Felicitações, Secretário!
Alisa o ombro de Alfredo, confidente:
— Acudi no Moju o cristão que aqui esteve preso, torturado a
fome para confessar o que não praticou. Lhe passei uma pomada na
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pereba que lhe abriu na batata da perna. Comeu do meu rancho na
embarcação. Dei-lhe um depurativo. Comeu pelo que não comeu no
xadrez. Foi?
Alfredo se espicha para a rua a fingir impaciência: o padre
demorando. Nisto, o Coronel Promotor Público.
— Vualá! Temos carne, Secretário? La viande?
— É a do padre, Promotor.
— Assim como chegou rechonchudo, cevado por muito papar
órfão, vale um guisado, oui, manger le prêtre!
O Promotor puxa o’ seu Alípio para um canto:
— Por acaso esconde a bordo urna rara de Abaeté sem selo para
uso excepcional? Tem? Em troca posso lhe ceder do meu fumo.
[307] Seu Alípio no mesmo tom de confidência:
— Alcoólicos a bordo, conduzo não, Coronel. Consumo, sim,
mas só em terra.
E elevando a voz:
— Temos o trivial em bálsamos, pílulas e elixires com os
respetivos selos, Coronel Promotor. Quer conferir o sortimento?
O Coronel Promotor corre os talhos num pregão rouco:
— Açougueiro! Pesa a carne. La viande! Já o Juiz de Direito
levou o bucho? Manger le prête!
Entram os Fonsecas, clarinete, bombardino, pistão e bombo,
quatro irmãos do Bacá, vindos para a festa. Atacam o dobrado em
honra do padre que chega. Seu Alípio manda o Triste Vida comprar
no Bensabá quatro chapéus de carnaúba e os distribui pelos Fonsecas
que lhe oferecem a valsa Ave-Maria e já o Triste Vida corre ao
Sergipe 11 para trazer o violão do boticário. O padre bate palmas:
— Sinal de que a Fênix sai das cinzas. A paróquia! A paróquia!
— Padre, Alípio Evangelista Soares, a ovelha negra do vosso
aprisco, perdida nesta enormidade de maré e solidão, quero cumprir
um dever de fé. É que a embarcação ainda está pagoa, reverendo, só
na espera do senhor. Ó Fonsecas, depois vocês vão comigo no seu
Bensabá fazer um toss. Quero que toquem no batismo do meu barco.
Agora outra valsa em honra do Reverendo, bem despeitosa, bem
despeitosa, que estou ainda roendo por aquela peste do Taiaçuí. Não
destronquei toda ela do peito. Viva o Reverendo! Bons olhos o vejam,
Maestro.
Na porta, flauta no sovaco, o Maestro acena para os Fonsecas.
Romeiros de São Benedito sobem da praia com seus baús e sacos de
rede, param na calçada. Seu Dó traz ao Secretário o pedido deles: se
agasalharem, nos dois dias da festa, no Mercado.
O padre, num estalo de língua, tira do bolso o espelhinho, mirase um instante, dá por finda a visita. Vai ao peru que o seu Guerreiro
lhe oferece. Seguindo o seu Alípio, que leva o violão no ombro, sai a
orquestra dos Fonsecas no rumo do Bensabá. Atrás, capenga e
pesado, o Maestro com a sua flauta e o Zeqüenqüém cantando:
Simira, minha Simira...
[308] Boca da noite, o Vicking, o navio do Telégrafo, senta
ferro. Salta pela ribanceira a loção dos tripulantes. Justa, a do Coche,
Maroca, Iná-Perde-a-Viagem passam recendendo. O Trapicheiro
passa também um pouco da loção nos sovacos e vai acender o farol
do Trapiche.
— Vou telegrafar para a Recebedoria de Rendas! Para a
Recebedoria de Rendas! Também vendo loção, só ver a seção de
perfumaria a tordo. Distribuindo assim de graça, esses marinheiros
lesam o comércio e contaminam os bons costumes nesta cidade!
É o seu Alípio Evangelista, com o Triste Vida na ilharga.
— O cabo telegráfico! O cato! Vou telegrafar para a Delegacia
Fiscal...
Engole o palavrão, é a D. Pequenina passando.
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— Ainda não localizado o ponto em que o cabo foi rompido,
seu Alípio.
— E seu marido, D. Pequenina? Aquele coração de ouro?
— Ah, quando não vomita seco, vomita verde-verde. O cabo
emenda e o meu telegrafista nem sustância tem no dedo para mexer
no aparelho.
— Ué, D. Pequenina, por isso, não. Também entendo do
aparelho, em que o seu marido é um batuta, mexo. Já pratiquei.
Guardo confidência.
— Mas se nem o cabo emendou, seu Alípio!
— Eis a questão. Em vez de estarem empestando de loção esta
cidade, deviam os marinheiros andar atrás do ponto rompido do cabo.
Ali no Sergipe 11, oferecendo-lhe os parcos préstimos de aprendiz de
telegrafista, D. Pequenina. O meu tripulante Triste Vida vai buscar jájá um elixir de camapu para o vômito do seu marido, D. Pequenina.
— São Benedito lhe anote a boa intenção, seu Alípio.
— Boa intenção? O elixir é pá, casca, D. Pequenina!
— Ando já tão desenganada com aquele vômito, seu Alípio.
— De minha parte, pedindo ao santo que suspenda o vômito do
seu marido. Mas abaixo de São Benedito, vai passar com o camapu.
Seu Triste Vida, o elixir, sem [309] demo|ra. Seu Triste Vida leva o
elixir ao seu domicílio, D. Pequenina.
— Que o santo também lhe ajude a vender seus remédios, seu
Alípio.
— Mais dou de graça, que vendo, D. Pequenina.
Seu Alípio segreda a seu tripulante:
— A santíssima prenha de lontra macho quer já me reservar
para sexto. Não me ganha o jogo de louça, não. E se eu me pegar
naquele aparelho forjo um telegrama para o Bensabá comunicandolhe a alta da borracha a três mil-réis, cotação de Londres.
Seu Triste Vida, rouco:
— É pra buscar mesmo o camapu?
— Espere que ela manda... E bem. Hoje à noite, ia sabe, seu
Triste Vida, no folharal do Promotor. Quanto ao camapu, vá dizer a
ela que acabou o estoque.
— Mas tem ainda um, seu Alípio.
— De graça, de graça? Ela não me ganha o jogo de louça, não.
Boca enorme, dente amarelo, o boticário fala da filha do
Bensabá: Sara pula do sono correndo para a janela sobre o rio. Ali no
Vicking está o de uniforme branco, aquele que a viu no Trapiche
(tempo em que as moças iam ao Trapiche), e lhe tirou o quepe,
cavalheiroso. Agora na janela, Sara cochila. O de uniforme branco
flutua no sonho dela, um rosto no vidro de loção. Seu Alípio volta a
se ver, aquela noite: tocado do balcão do Guerreiro, entra na varanda
do Bensabá, levantando a família das cadeiras de embalo. Meu jogo
de louça à hebréia formosa marroquina nascida uma vitória-régia nas
margens do Rio Mar, a prendada mão de vossa filha vos peço... Corre
o Jacobito no Juiz que recolhe o seu Alípio à camarinha do barco
— Hebréia dos meus impossíveis, sonolenta e fria, ah, bela
adormecida. Que o velho Bensabá se afunde cada vez mais no abismo
da crise da borracha e grite de lá, com a filha na mão, que eu lhe dê o
jogo de louça... A danada, [310] perdendo o sono, ria que ria na mea
cara aquela noite. Então terei a hebréia no meu toldo, coberta pelos
bordados de D. Débora. Será feiticeira dos meus remédios, me ouvindo ao violão. O quadro de Mona Lisa que ela tanto é!
Coronel Cácio contempla nas luzes do Vicking a sua frota
perdida, a filha com a botija, o desagravo que espera do Governo. Na
cabeça do Trapiche, Cristo Seu Seruaia pendura os olhos no Vicking
fundeado, é ver a boiúna da ilha defronte meia-noite, alumiando a
sessão do Mestre Parijó e a janela da D. Sensata. Cristo Seu Seruaia,
na cabeça do Trapiche, se fia que o cozinheiro de bordo vem a terra,
lhe traz um açúcar, um sal, uma bolacha, um fosfo a troco desta
urupema e destes quatro paus pra mosquiteiro. A loção do Vicking
assanha o Coche.
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— Ao Coche, no Coche, seu Triste Vida! Vá, me contrate já-já
a Iná-Perde-a-Viagem e a Justa Zolhuda, a limpa-cemitério, as duas
juntas. Ao Coche, seu Triste Vida! Depois ao folharal. Ao Coche! má
e Justa a Zolhuda! Ao Coche!
— Cumprimentos pelo brilhantismo da festividade — brada o
boticário ambulante à passagem do seu Anacleto e da D. Benigna que
vão à missa. Seu Dó badala. No Fortim, o Cabo arranca da janela a
mulher que via o Vicking. A filha do ferreiro espera o tiro lá pra lá do
igarapé. Passa a Seruaia, só, chinela, vestida de retalhos, sem cheiro,
levando a São Benedito as suas noites de noivado morto. No lugar
onde foi o coreto do arraial, os Fonsecas e o Maestro afinam os
instrumentos. Zeqüenqüém, escoteiro e Juiz Substituto, ponteia. Com
a aflição de não saber por onde a irmã anda, o anão ensaia o rufo. Por
entre os romeiros se enfia o Escora-Santo, pente na mão: Que há de
novo? Que há de novo? Epaminondas, bêbedo, chia e estoura fazendo
de conta que solta foguete.
Padre Pina tão bem representa bebendo o sangue de Cristo no
vinho fiado pelo Guerreiro. Nos bancos aqui atrás recende a loção do
Vicking. Lá na frente as negras velhas, Nhá Barbra, Nhá Efigênia,
Nhá Benedita Lucrécia. No outro banco, três do Coche. Seguem os
batizados. Recostado na parede, depois que apadrinham dois gitos, o
[311] Secretário é posto na mira dessa mãe bem moça, madona índia,
o filho no colo da apresentadeira à espera de vez na pia. Ela a todo
instante solta a linha, alheia a batismo, filho, padrinhos e convidados,
vem e vai, alta, alazoa, flechando o peixe: Vendo o pagão que eu
tive? O outro é com o senhor, vamos? Alfredo se lembra de Orminda;
tem no chão da igreja de Cachoeira a mancha do corpo, ali se deitou
com um, seu corpo queimou o chão. Assim essa outra ao pé da pia
rabeando? Preso na linha, Alfredo sai. Os Fonsecas desenterram o
maxixe, Maestro na flauta, Zeqüenqüém ao violão, o anão no rufo. Lá
fora todo branco o Vicking impregnando a ribanceira, e eivém: pára
na porta da igreja, agora na calçada, já defronte dos músicos, alta,
alazã, recebe da madrinha o recém-batizado, senta-se no chão à
sombra da mangueira dando ao filho e aos olhos do Secretário o peito
cheio.
Ramada, primeira noite, os tamboreiros já no ponto da mais
porfiada batição, lustrosos e crespos. Dançantes, um a um, vão
peneirando no alumeio das lamparinas. O Secretário gruda-se no
banco ao calor e cheirume dos corpos que volteiam e anda no ar
quente a bebida dos executantes deixadas ao santo pelo seu Cipriano,
o regatão de Abaeté. Agora na sua frente a Zezé vai-não-vai faz redemoinho segura os lados da saia, lhe anuncia que tirado está. Alfredo
se agarra no banco.
— Desabanque, Secretário, é de obrigação, acode o seu Dó ali
atento.
Ensaia o giro. Lundum? Um pouco assim a mãe dançou debaixo
dos cajueiros em velha noite de dezembro na Areinha. Mas aqui é a
tambor, geme a cantigolência, quem dança se recomenda a São
Benedito.
— Mas ele então até que já ensinado... no sangue? — se admira
a Zezé ou finge admirar-se, os dedos bulindo bilro, arisca, braço em
cima braço em baixo na esteira das velhas negras. Estas, sim,
dominam a Ramada, deslizam no chão batido, quadris, pés e mãos na
peneira, os tamboreiros cantando:
Dentro do meu peito tenho
Duas espinhas de peixe
Uma me diz que eu te ame
Outra me diz que eu te deixe
[312] No meio, muito só, a moça Seruaia apurando no samba o
seu desengano. Guardando-a, a Bernarda Seruaia, num passo duro.
Comadre Nhá Barbra, a mais alta, Nhá Benedita Lucrécia, a mais
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cheia, mexendo suas almofadas, a Nhá Eugênia de mais alvume no
pixaim, giram numa cadência que lhes desenterra avós, cativeiro,
transpiram liberdade.
A senhora me chama preto
Sou preto mas melindroso
Pimenta do reino é preta
Mas faz o comer gostoso
Cessou para aquecer os tambores, corre o frasco entre os
tamboreiros, torna a tamborear e eivém as velhas negras no lento
pião. A noiva Seruaia, noiva desesperosa, faz soberbamente a sua
volta e some no seu amargo noivado, com a irmã atrás.
Já aqui fora, Alfredo se chega a uma desconhecida de olhar
embaraçado e ávido, recostada no esteio. De igarapé ou lá da terra
alta, essa? Ou brotou do tamboreio: esta está bem feita por dentro por
fora não pedrinha do poço fundo areia do mar corrente corta corta
tesourinha... a rapariga amarrada no seu silêncio, naquele ferver de
tambor e gente, mais só. Alfredo se aproxima e a um sinal dele que
fugiu depressa, ela se desenrosca, alisa a saia, o clareúme da
lamparina lhe descobre o rosto de barro, vem vindo vagarosa,
farejando, e fica nas trevas, exalando suas raízes, a uma braça daquele
invisível. Abordada, tapa a boca, resmunga seus sobressaltos e
vexames se deixa levar entram pelo esqueleto da casa do Senador,
cacos de tijolo e telha, Paus atravessando, urtigal, cinzas de família,
poeira de cupim, pisou num bicho, o morcego sai pela janela morta,
se escoram no que resta da parede, onde foi telhado se remexe a
ramagem, os tambores se distanciam.
Ao sair, sozinho, dá com a espiã, a indiarana, fugindo.
— Lobisomando a comadre Idalina do Itaperera, Secretário? Se
esqueceu que tem lá no Coche mais a cômodo. Ao que se sabe,
escutei, espalhou-se, correu que sucuriju no Itaperera uma vez
embarrigou ela. Mestre Parijó tirou da barriga dela o ovo da cobra. É
a falência, Secretário.
O bote do Juiz, a Igarité do Promotor, a canoa do seu Alípio
Evangelista fazem velas pelas quatro da tarde para a boca do Mararu.
Na igarité, o Secretário, olhando o barranco com o Mercado vazio e o
Trapiche podre, essa ribanceira municipal, eu, agora, governo,
pensou, divertido, numa súbita sensação de poder. Vai com o
Promotor a uma festa no rio onde mora a mais recente noiva do regatão de remédios. O Juiz vai passar a noite pela vizinhança na rede de
uma das suas comadres ou afilhadas. Dali virá buscar o Secretário,
seguindo os dois rio adentro em viagem fiscal e eleitoral.
No leme da igarité — Mon bateau! Mon bateau! — o Coronel
Promotor bebendo na garrafa, cachimbo aceso, manda o tapuinho
encurtar os cabos da bijarruna e Alfredo olha a nuvem que ameaça
feio a travessia. Soltando foguete, leme na mão, garrafa entre as
pernas, o Coronel Promotor: A Paris! A Paris! Tempo arria, a custo
entram no afluente.
Abicam na estiva da barraquinha, recebidos com um jantar
posto no soalho de paxiúba rente d’água. Para Alfredo o tão sabor do
peixe vem daquela travessia, deste afluente tão dado na maciez da
noite e desta palhoça brotando do açaizal.
Chegam na festa com o Coronel Promotor fumando bebendo
soltando foguete, e o seu Alípio Evangelista, já dono da casa, lá por
dentro mexe no alguidar do chocolate, aconselha suas drogas, embala
a rede do entrevado, faz os curumins lhe pedir bença, apresenta a
noiva ao Secretário. A ladainha é acompanhada ao violão pelo
vendedor ambulante de fumo, o Sabá Maciel.
— Aí está o contraventor tocando. Meta-lhe o flagrante no
gogó, Secretário. Deste estirão não sai mais, agarrado que está na
irmã de minha noiva. Que é casado, já se sabe, casou na polícia, em
São Sebastião da Boa-Vista. Suspeito que já me infelicitou a futura
cunhada. Vou submetê-la a exame. O Juiz me autoriza a fazer eu
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mesmo a prova da desonra. Já dei conhecimento do fato ao Coronel
Promotor. Não razoei bem?
Rezada a ladainha, o violinista se aproxima:
— Secretário, meu tabaco tão pouquinho é, que não paga nem o
papel do seu talão. Servezinho só pras velhas desta soturnidade
cachimbarem, vendo só chover dia e [314] noite até que a outra velha,
a dona de nós todos, chegue. O que só faço, por estes rios, igarapés e
furos, é tocar.
Os dois se voltam para o seu Alípio que anuncia:
— Esta que vou cantar dedico à minha noiva, Olinda Gemaque,
e à distinta pessoa do Secretário Municipal, esse coração de dezoito
quilates. Depressa, seu Triste Vida! Depressa o vilão de bordo!
— Está aqui este, seu Alípio.
— Em boas mãos está, Sr. Sabá Maciel. Só o meu me entende.
Depressa, seu Triste Vida!
No meio da sala, paletó e gravata, o anel de aliança, o dente
amarelo, à espera do seu Triste Vida que lhe traz o violão e um vidro
de Linimento Celeste pedido pelo freguês queixoso de uma nevralgia.
No que o seu Alípio tira as primeiras notas, a noiva, que se
aproximara de Alfredo, passa a rir com a mão na boca. Seu Alípio
baixa o violão.
— Que fiz eu de tão gracioso para que a minha primorosa e
gentil noiva tanto exiba o dentinho?
A moça esconde o espanto nas mãos, roçando no ombro de
Alfredo que tenta esquivar-se seja sério seja grave sei a Secretário.
Seu Alípio oferece:
— Secretário, digne-se tocar neste. Não? Muito me admira o Sr.
Secretário!
A moça por trás de Alfredo puxa-lhe a ponta da blusa ao que
salta o noivo, violão em riste, o dente amarelo:
— Puxe a blusa dele, não. Puxe a blusa dele, não! Por ele ser do
Governo?
Alguns convidados acodem. Alfredo é chamado a ver o Coronel
Promotor já dormindo na rede lá dentro, cachimbo e garrafa ao pé.
Volta para a sala. Diante do oratório, do banco das damas e da noiva,
o dente amarelo:
— Pois que me devolva a louça! O meu aparelho de louça de
volta!
A noiva se recosta no esteio da parede:
— O anel, seu Alípio, já lhe devolvi. A louça, um pouco mais
de paciência, logo que se chegue em casa...
— Precisa ter trabalho, não. Vou eu mesmo agora! A bordo, seu
Triste Vida!
[315] Seu Alípio abre os braços diante do oratório:
— Diabo! Por tantas vezes dou e tomo essa louça! Correndo o
mundo atrás de mulher digna e no que dá, bosta! Com licença,
Secretário. A bordo, seu Triste Vida!
Lá se vai o Sergipe 11, seu Triste Vida no remo de tala rumo do
aparelho de louça. Festa virou até raiar. Depois do bis ai ioiô tenha
pena de mim tocado e cantado pelo Sabá Maciel, a noiva do seu
Alípio Evangelista fala a seu par:
— Secretário, engane o soninho lá onde a gente mora, vamos?
É bem ali no igarapé, uma remada. Ah, rezo que o bom daquele
homem tenha já levado as riquezas dele.
— E eu, mana, mas, ah... Devendo a ele aquele Bálsamo
Universal mas, ah...
Alfredo e Sabá Maciel no casco das duas Irmãs que remam. Já
no meio do estirão, sabem: Seu Alípio Evangelista Invadiu a barraca,
abriu a mala da família, retirou o aparelho, joga a louça e as alianças
no rio. Com o seu Triste Vida no remo de faia, sobe agora o Mararu,
bebendo cachaça com bromil em busca de outro noivado.
— Este Mararu, Secretário, cor dele tirou da baunilha. Cheira a
baunilha, sim. A esta hora é peixe em cardume dentro da louça do seu
Alípio. Sempre vou me lembrar que a louça e as alianças do meu
173
casamento no fundo deste meu rio estão. Mestre Parijó há de nos dar
notícia um dia.
A ex-noiva suspende o remo, enfia o dedo n’água como se
enfiasse na aliança.
O casco entra no igarapé, nasce do miritizal a barraca à. flor da
maré cheia. As irmãs pulam na estiva, cachos de açaí e tajás no jirau.
Caçando na várgea, aponta na arara, a espingarda racha. Cristo
Seu Seruaia senta-se no toco, espia que espia a velha parceira, um
tempo coçando o peito só osso, fosse um de chorar chorava. Comprou
de segunda mão no longe ano aquele do seringal de onde veio, cururu
então cantava debaixo do soalho. Arsenia, tomada por sete espritos,
sete vezes se perdeu no mato, na sétima os sete espritos tiraram
Arsenia da roda; se vendo livre, Arsenia foi andar por [316] cima dum
pau espinhoso um açacuzeiro, surucucu lhe morde a perna esquerda.
Ela deixou que pessoa estranha olhasse a ferida, então não se salvou.
Sepultada no Anoerá. O viúvo veio vindo, aqui se acuou na
ribanceira, onde está o rei está a corte, as três filhas trouxe. Bernarda
casa e descasa, vaca lisa nunca emprenha, se amarra no som da flauta
do Maestro. Rosa pariu um da fortuna que já do céu é, se larga pra
Monte Alegre, volta pintando o beiço cinco trajes quebrando, um par
no pé e outro na caixa, a anágua de cetineta a sombra amarela e um
cinto verde, o trancelim. Este, como sumiu, ninguém sabe, artes do
Cuia Pitinga, cismo. A caçula, Bernarda criou a sete cadeados, nem
por isso pedida durante as obras do Fortim, o noivo vou ali já volto.
Voltou uma osga.
Pai e filhas neste resto de pardieiro, sobrou o telhado, o soalho,
não, copiar se abrindo para a capoeira, fogão separado por meia
parede de juçara, os dois potes d’água, o pilão, o candeeiro sem
manga, os três pratos de folha, o alguidar, o cróton, o tajá no
parapeito, a sombra amarela da Rosa enxugando na corda.
A velha arma, agora rachada, parte de nosso umbigo, conte as
espoletas e caminhadas, as embiaras, este dente de onça, quanta cobra
amarrei no pau à força de oração, poraquês subindo o Açurana batem
nos açaizeiros dentro d’água para apanhar bago de açaí. Em junho,
cupim cobria os ninhos dos jacurarus. Do jurupari, escutei o grito.
Com a lua subindo, subindo a jaquiranabóia no pau da copaibeira,
agosto, mês de camaleão. Descobridor de pau madeira no Anoerá,
mateiro pelas madrugadas, o pé nos raizames encharcados, rastreei
lonjuras, espingarda exata, nunca renegou. Dela um paneiro de
lembranças venho derramando pelo chão.
Porfiava com o Maestro: tua flauta, 6 rapaz, tem é tempo tem
saúde. Mas esta, na mea mão, na pontaria fina, atrás não fica. Quando
atira canta. Tempo não faz vi a arara voando por cima do oco do pau
onde morava e sem nunca entrar. Cismei, fui, descarreguei meu
último chumbo dentro do oco e tirei lá de dentro dois palmos de jararaca. Que será da ribanceira quando a flauta do Maestro rachar?
Seruaias, pai e filhos, tão que tão sem nada, sem o velho pau-de-fogo
então que ficam muito mais. Agora sem ele só me resta a garupa das
mulheres, caçando [317] saú|va. Mesmo sem farinha, saúva frita, qual
outro comer? ó diabo, o tamanduá que diga!
O justo adeus da espingarda foi mesmo aquela tarde, aquele
veado rompendo o cerradal, um só tiro. A caçula atrás do caçador na
saída do mato, medrosa que o pai tivesse o ataque, aquele, de se bater
pelo chão escumando. E a convulsão no terreiro, a caçula chegando
do rio com a lata d’água no ombro e já acudindo, a Bernarda descompõe o Maestro que solfeja, Cuja Pitinga e Rosa se trocam cadaum-nome e lavam juntos no croatá o filho obrado. Diabo! Diabo!
Diabo! estribilha a Bernarda. Rosa, filho no colo, fazendo embalo
naqueles seus dois passos adiante e um atrás, com as suas gargalhadas
de rede rasgada: Anel que a cobra me deu, fazei com que apareça uma
mesa de comida. Maestro derruba a grenha dum de lá do Itaperera,
milagre, o cobre cantou. Bé, um quartinho no Bensabá, sabes que
querosene não é, voa. Mas Loriano! Não põe dinheiro na mesa onde
se come, desgraçado. chama mais pobreza. Andadeira pé que é um
174
casco, Bé vai braba mas voando.
De espingarda partida, entra pelos fundos, o chão fede a
necessidade, fosse um de chorar chorava. Também tu, Maestro, que te
servias dela nas tuas caçadas, quando a perna dava, que te esperava?
Chora na flauta a morte da espingarda.
Agora amiúdam meus ataques, cabeça na coxa da caçula que
me passa a mão pela testa, limpando a baba do estrebucho, e as
lágrimas dela neste peito seco. Pelo meu osso o frio que tem todo
agonizante. Este-um meu mal? Nem o Mestre Parijó. Já me atacou na
procissão de São Benedito, uma tarde pelo folharal, aquela vez no
Trapiche, socorrido a bordo, o cão me engasgando. Fui subir naquela
bacabeira, me vi embaixo convulso. Que que Deus nos deu este
desviver? blasfema a Bernarda encarando o meio-dia a prumo e a
seco. Diabo! Agora é ir mais murcho nos gaiolas; com esse Trapiche
podre, os gaiolas passam de largo. Se um pancheia saio dele com mil
porções secos e molhados de cheiros e visões de bordo que só é
minha conversa, os meus silêncios, em casa. Põe tua prancha nesta
soleira e desembarca o teu jantar, gaiola. Metade dum sabonete levo
para a caçula, não a troco de um cesto, urupema, tupé, mas do pó de
membro de boto que salpicado no da gente agarra que então agarra
mulher. Coisa de um [318] mês, Fortunato Pombo, mariscador da Ilha
Surubim, trouxe um para o Juiz. Que que deu na espingarda velha?
Urubu, não matei. Não atirei em urubu nem nada.
Aquela embiara! Mirei, lhe dizendo: criatura, a mal não me
leva, é por muita percisão, por outro motivo te deixava pastar pelo
cercado inocente. Mirei. Pernudo, bem galheiro, o couro troquei a
bordo por dois e meio de um riscado para a caçula. Te benzer, não te
benzeram, espingarda? Te defumei com fumaça de espinho, cipó-alho
e folha de curuatá. Bati com a folha de curuatá na tua coronha, no teu
cano, dei com a folha tem dado.
A caçula enche no rio a Lata, o balde, e olha se Mestre Parijó
lhe traz de volta ao menos aquele vestido que o noivo levou para
medida do outro, o do casamento que não foi. Vestido, esse, o pano?
tirado a bordo por um ninho de cauré e um vergalho seco de quati.
Dobrado ao peso da embiara: apanha, caçula, lá da Nicota,
pimenta e limão. O cachorro lambia o sangue do bicho. Passa,
desgraçado, não encaninga! Encaningou, sim, já lambeu, a espingarda
acabou. No que atirou na arara, em três partes rachou. Teima de
caçador, não via o chincoã contente? Chincoã brabo é sorte na caça.
Contente, não. Rosa naquelas gargalhadas de rede rasgada: eh, sa
gente, quem quer entupir o bandulho se acuse. Abençoado chamar, a
mesa recende, São Benedito come na nossa mão, um quarto do veado
para seu Bensabá pela farinha e o sal e a cibra do Maestro e do Cuia
Pitinga. Nicota e Nhoduca cabem no repartimento. Uma lasca pra a
gente do seu Aurélio viúvos que estavam do barco do seu Cipriano.
Dá do cozido um caldo a Nhá Barbra. Todo mundo de cabeça no
prato, nesta fome as fomes da semana. Cuia Pitinga pega o violão,
acompanha o Maestro, os dois cibrados. Ia eu então bem do satisfeito
trançar o meu tupé, vendo no parapeito a arma bem-leitosa, coice
manso, benza-te Deus, parecias de uma só peça, muito ensinada. A
caçula descascava a lima para o filho da Rosa, o Dinga. Bernarda
amolecia suas raivas: Loriano, seu desgraçado, aquele tipiti tu já
acabou será? Ano que vem planto roça, tu me compra aquela enxada
que bote tempo dorme na loja do Bensabá? ensaiando um meio mimo,
já aborrecida por isso, fomenta a perna do flautista, enxuga o rosto, o
dela, que até voltava aquele que foi.
[319] Nem ao menos o cachorro velho obra na porta deste caco
de casa, pra dar sorte. Agora, sem espingarda, me assujeito misturarme com as mulheres atrás de saúva. Furtar do quintal do Promotor
uma porção daquela folhagem (a bordo compram), velho estou, essa
proeza, não. Vou caçar na moda do Tônio Miúdo, contador de pirua:
Está subido no mutá, o veado lhe aparece. Diabo! nem uma carga na
arma. Pega na espiga de milho, faz dum bago a bala e pum! a embiara
caindo aqui caindo lá adiante, some. Três luas passaram, e uma tarde,
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no mutá, Tônio Miúdo ouve crescer rumorejo no cerrado. Bicho
folharal, será? Pois o veado com aquele milharal no corpo e cada
espiga!
Os machos das duas meas filhas se encharcam na rama: sempre
encontram meio e modo de beber misturando com tangerina. Maestro
quando toca em seco tira um som escuro. Se lhe pedem: aquela uma,
Maestro, sim? Ele: que água do pote tem? Se tem, ele três-vez-nove
repinica e bisa.
De borco o velho Seruaia no terreiro. Eu já sei, papai acordando
bruto? É dia. O velho Seruaia escumando. Além do mais o paludismo.
Pra curtir os gelos da febre cobre-se com a sarrapilheira no sol do
terreiro. Já na. última sezão, passou a noite variando: tapioca! tapioca!
Arsenia, come o surucucu! Choca o ovo da jararaca no oco onde a
arara faz ninho! Lá está. aquele sacana gastando chumbo pra lá do
igarapé, chamando pela filha do ferreiro.
Chupado, lanzudo — Maestro raro lhe apara o cabelo — costela
furando a pele, até já inventaram: meio me pareço com Nosso Senhor
Jesus Cristo, figurando o filho de Deus como o padecente de meus
ataques e desta febre e deste desviver e deste meu comércio a bordo.
Quem assim comparou, pra cova há de ir com um palmo de língua de
fora coberta de formiga, por isso mesmo a espingarda rachou,
parecença tenho só com o meu esqueleto. Desconfio que Cristo era, se
encarnou um instante naquele-um a fome condenado. Aquele grito?
Quem mais?
Se acabando anda a Bernarda. De tanta raiva ter. A modo que
pegou daquele cachorro aparecido não se sabe donde, morto a tiros
pelo Cabo do Fortim. Inda este ano, dia de São Bartolomeu,
apanhando açaí, despencou do açaizeiro, o cacho trazia sangue dela.
Bebeu-se no vinho. [320] Cismo que quem tem razão é o Coronel
Promotor quando diz: Açaí pra ser veneno pouco falta. Mando
amassar de manhã bem cedo, durante o dia quebra a fortidão, de noitinha tomo. O velho fuma a folha bebe açaí bebe cachaça, morrer de
semelhante misturada não morre. Que foi que estuporou o Mondoca
Andorinha inda não se sabe, mas do morto o que só escorria era açaí.
Bernarda com seu goelão asselvajado: Reinar eu reino de tacar tala
(agora com que espingarda?) em toda essa cambada de desvivente
que é nós aqui neste chiqueiro excomungado e me jogar aí nesse
Amazona, égua-te! No menos sumir a flauta dele, no fogo o par da
roupa dele, a camisa de meia, a alpercata, pente, espelho, tesoura,
aquele sacatrapo dele castrar o bicho, a mecha alva do pixaim e todo
o putal que ele tem. Por via dele, não surrou a Justa? A Casimira do
Jacopi, a Agostinha do Ipixuna, a Iná-Perde-a-Viagem, a Justa, pelo
mesmo assunto? Já passando da meia-noite, Bernarda cobre-se com a
sarrapilheira, vai fina pelo escuro faz tal qual a voz do Maestro na
porta da que é hoje finada, a Bilu: é o Loriano, Bilu. Bilu entreabre,
cochichando “entra” e é o “entra, hein, puta?”, a unha no gogó, galho
de cuja lascando. Quem bate não lembra, quem apanha não esquece.
Bilu, hoje em glória, se desforra. Encaningador do Diabo! Não nega
que és um negro e do Cão! repete a Bernarda. Esta é a cor que a
natureza me deu, estou muito satisfeito com ela, lhe responde o
Maestro, amaciando a flauta.
Bernarda brabeja, brabeja, agarra a caçula: Me jura, sua
desgraçada, pela nossa mãe morta, sua olho de tralhoto, esse teu
disque noivo soldado — sim que te pediu de mim — te binificiou
será? Te desdonzelou? Mando Nhá Benedita Lucrécia te espiar na
racha, chamo um doutor de bordo, te levo no Mestre, que senão te
retampo com bucha de timbó te toro o cangote com o serrote do seu
Aurélio! Vai, vai no pau de aninga, degolada, a trás dele!
Deus faz é pouco dos Seruaias. Que será dos Seruaias sem a
espingarda e sem a flauta que será desta tapera. Luz neste nosso
buraco só se um vaga-lume que entre perdido. Da andiroba o
derradeiro pingo acatou. A caçula olha a limeira. Nenhuma lima
madura. Batem boca Rosa e Cuja Pitinga nome das mães sai: Axi que
nem no pé da falecida mea mãe tu chega, seu pira, seu bichento. Te
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conhece!
[321] Espingarda, erê, o ferreiro desenganou: é a tua espingarda
velha, Seruaia, e a mea filha no rumo daquele tiro.
Resta a caçula desmanchando o noivado dia a dia, reatando os
nós a cada apito de gaiola. Junta saúva com as demais, bate arroz nas
Ilhas, capinou no cemitério, pega fogo selvagem, tocaiada pela irmã.
Canso eu de ouvir a caçula no terreiro, boca da noite: Vamos a ver se
caso este ano. Se logo relampeava, casava, se não, não. Se custava
relampear, era lá pro fim do ano. Depois a cor do marido: se
relampeava bem claro, branco era. Se não, moreno seja. Se relampeia
escuro, é preto. Hoje pode relampear uma quantidade, que a caçula os
relampos não vê mais. Bernarda sujiga a irmã: Reza a reza, sua
desgraçada, de Nossa Senhora do Desterro, reza, desinfeliz, valha-me
a santíssima pureza... Desterra de vez quem te prometeu o véu e te
roubou o teu melhorzinho molambo, égua-te!
Falta é passar por esta ribanceira aquela orquestra que passou
num lanchão pela Prainha. Desembarca, toca três noites e rouba no
lanchão as moças da vila, quatro. Aqui das cinco que restam uma não
escapava. Ao qual da orquestra cabe a caçula? Nem por pensamento!
Bernarda bota o Lanchão no fundo.
Me arreio nesta banda de porta caída no terreiro, sem ânimo
nem dum gole d’água que dirá apanhar guarumã para o cesto. Esta
inválida, enterro debaixo da mea rede velha conseguida a bordo a
troco de um tucano. Ai no chão deste corredor esburacado onde faço
que descanso o cadáver. A arma se quebrou, só não fez foi esperar
que o caçador velho se quebrasse antes. Enterrar também a escama de
pirarucu que lixava a espingarda. Assim um dia a flauta? Esta vai
pelas eternidades, enterrou o primeiro, o segundo, o terceiro, agora
enterra o Maestro.
Sei dum sauval no atalho do Jacopi, amanhã aviso a caçula. É
noite, lá se assanham as guaribas. Aqui vizinho a inhambu dobra o
gemer, mais parece saindo do meu peito. O ferreiro bate na bigorna a
ausência da filha que de tanto seguir aqueles tiros botou bucho. É
minguante: bom de se tirar madeira pra casco. Navio nem um apite
esta noite, que não posso. Se apitar, vou no baú, tiro escondido aquele
nosso antigo Menino Deus, troco a bordo por uma calça usada, que
esta aqui no meu corpo se delindo me deixa mais nu, mais à vista este
esqueleto. E um [322] pão, pão lá da mesa de bordo. Do castiçal já dei
sumiço, valeu um jabá no Moacir. O trancelim da Rosa, não, não fui
eu, por quem cismo não meto a mão no taxizeiro.
A calça usada e o pão pelo Menino Deus.
Daquela viagem fiscal, só arrecadou quatro volumes de
poeirento e esverdeado Cesar Cantu descobertos debaixo do balcão do
seu Dídimo Bastos no Marajoí. Dois meses de ordenado lhe deve a
Intendência. Foi ao fundo de uma vez o Trapiche. Conta a D. Sensata
que o farol aceso descia de bubuia no rastro do Mestre Parijó. O
Padre foge, morre o quinto marido de D. Pequenina, o Sede de Justiça
entra com o processo no Tribunal Superior. O Meritíssimo envia a
Palácio os resultados de sua cabala eleitoral e sai de bote pelo Xingu
no marisco, O Coronel Cácio tranca-se entre seus espelhos e lagos,
paletó e gravata, esperando o telegrama de desagravo e uma carta da
filha, o anão batendo o rufo debaixo do soalho e o Escora-Canto pela
ribanceira atrás do que há de novo. Mas apita o Lobão (parou no
largo) trazendo a mudança do governo no pais. Sem mais ouvir o
Secretário, seu Dó abre o Mercado. Chega novo Intendente com outro
rótulo: Prefeito, o solicitador Rosado, pançudo, repetindo: nossa
revolução é pobre, nossa revolução é pobre, como vai o xirizal do
Itaperera? Alfredo entrega-lhe o Dó, o trapicheiro, o Coche, os três
cemitérios, os talões e as ruínas. Só não lhe entrega aquelas noites ao
pé da laranjeira com a proibida madona índia, a que levou o filho à
pia na manhã da missa. Atirou-lhe aos pés, para dizer adeus, a moeda
de 2$000, logo devolvida, na hora em que o novo Secretário ronda a
alazoa, e a mãe dela, a D. Sensata, varrendo o cabra, vigia a cobiçada
atrás do tajazeiro.
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Até outro dia, comadre Nhá Barbra, alumiadora das almas. Me
reze na cabeça, nesta despedida, Nhá Benedita Lucrécia. Me manda
de lá do teu céu o melhor prato, finada Nhá Efigênia. A senhora, Nhá
Mãe do Maestro, esprema no tipiti as raivas da Bernarda Seruaia,
esprema e tire delas um noivado a pedra e cal para a caçula e tire também a espingarda para o Cristo Seu Seruaia, ao menos a enxada para
a roça ano que vem. Deixe estar que vai [323] sair, sai, sim, o gaiola
carregado das estórias de D. Sensata e dos bordados de D. Débora,
levando de camarote a Iná-Perde-a-Viagem. Tira na flauta um som de
esperança, Maestro. E assim Alfredo pega o Lobão descendo, salta no
seu Juca Nicácio (madeira e borracha) como auxiliar de caixeiro e
ensinando os dois meninos do patrão que vai fazer este inverno no
Alenquer a safra da castanha.
Tambariramba! Tambariramba! Vinte homens rolam toros à luz
dos tachos na várgea. Tambariramba! Vira! Tufa! Maracajá
Vamoembora, rã! Estremece, pau! Rompe, Faustino! Ah, pau macho!
Rô! Hu! Rá! Tambariramba! Tambariramba! O facho mostra aquela
argamassa de ombros e lama, faúlham os paus na estiva. Esta luz
divide o mundo. Vinte, curvados e retesos, rolando no atoleiro o seu
castigo. Alfredo, escorado no cipoal e na sua culpa, engole grito
arquejo batida, este madeiro encalha, mexe, pau! Põe o espeque na
frente, brada o proeiro. Corta! Tambariramba! Entre os toros rolados,
a Bena de olho aceso, as coxas da indiarana, o sino do seu Dó, a
mulher do Cabo fugindo do Fortim, o rosto da madona índia, o chalé
aonde anda? Tambariramba, tambariramba!
Mede com o Francom os madeiros trazidos ao barracão.
Cada palmo daquela coaruba retém sumo de vinte peitos e
ombros. Agora no trapiche os vinte se banham de silêncio e cachaça.
3 alqueires de farinha
1/2 saca de sal
5 molhos de tabaco
10 metros de brim
50 g de linha americana
50 g de maná
6 cafiaspirinas
6 chapéus de carnaúba
1 maço de cera
1 barra de sabão amarelo
3 purgantes de ipeca
1 pente cook
3 m pano americano grosso
[324] 1 dedal
1 maço de abade
3 carretéis de arame viola
1 pó joane
250 g de sal amargo
1 cartilha de abc
Olhando os aviamentos, folheando a carta de abc, o madeireiro
velho:
— Lá no Alto, sim, é de lei, o cedro reina. Lá, terra preta, chão
de cedro. Cedro! Uma árvore tão só, sem um ninho, com a sua
desgraça de ser grande. Bóia no rio como gente afogada. Uma vez,
um madeireiro pediu ao medidor: Faça com o seu lápis a palavra
cedro, me deixe ver, só ver, que nem soletrar pesco. Tinha o corpo
empapado de resina, de casca de cedro. As mãos dele brocadas. Mão
de madeireiro broca como pau. Eu? Corri demais paragem. O preço?
Esta perna bichada. Também fiz de tudo, mais pras bandas do
Demônio que pras bandas do Divino. Hoje esta perna me apodrece.
Muito fiz no mundo. Só não fiz foi santo. Viu? Rolação de pau destas
noites não foi brinco. Um pau fez saltar a tampa do joelho do Chico
Caranã. Aquele outro variava de febre, tocando a madeira: Debaixo
deste madeiro, salte o mapinguari! Febre dos campos do alto
178
Canaticu? Tem fama, os campos sopram. Diabo do seu Alípio
Evangelista! Não me chega com a pomada.
No Trapiche, duas mulheres com um paneiro de peixe.
— Pegaram então quantidade. Também! Só vão tapar igarapé
fluas.
— Que dia seu Alípio passa?
Caçando noiva pelo Alto Baquiá. Essa semana passada, deu
uma festa no Arapixi, destampou uma frasqueira e toque... Deixe que
o tripulante dele, o seu Triste Vida, está morre-não-morre a bordo da
Sergipe 11, no meio dos remédios. O patrão dele bem quebrando
dama lá no salão puxando grosso. Seu Triste Vida desta vez foi-se
embora. Seu Alípio guarda o defunto no toldo, paga uma velha
fazendo quarto e volta para o salão mandando o pagode virar.
Suspende a aula, os dois alunos fogem para o Trapiche
comendo banana-inajá. Escoando-se a tarde no mormaço verde. Sobe
da vazante o respiro do Mestre Parijó, o Sacaca.
Pelos fundos da loja, encontra num baú sem tampa três volumes
das Mil e Uma Noites. Véus de teia de aranha cobrem a moça do
califa escoltada pelos morcegos. Lá fora o pai dos rios remexe os seus
caldeirões. As guaribas desenrolam a noite das Ilhas.
— Seu Alfredo, na mesa.
— Seu nome?
— Falto ser batizada. Quer servir de meu padrinho?
Mãos molhadas dobram o cabelo, os seios bóiam na blusa como
peixes no remanso.
— Senhor hoje janta paca.
Na paca assada muito de sua boca, dos peitos, da anca. Várgea
debaixo das chuvas e dos ventos, solidão morna e lodosa onde nos
mexemos como as aningas, rabeamos como peixe-boi rente da
canarana. Calor de moquém, a carne de jacaré fede. No alguidar que
emborca na cintura, a mulher esconde a tribo.
No fundo da loja, uma tarde, deu com ela junto ao paneiro de
açúcar moreno entre o garrafão de vinagre e o baú onde dormiam as
Mil e Uma Noites. Enchia o açucareiro. Agora, parece. lhe escorre
açúcar pelo rosto.
Abre o velho almanaque do Tico-Tico aos dois alunos. As
figuras lhe trazem Roberta, no palanque do Boi, forrando o sapato
branco com as folhas da aritmética. Os dois discípulos olham o
mestre como adivinhos.
Quer lhes ensinar o jogo do tucumã, faz-de-conta intransferível,
nem jogar sabe mais. Vê nos dois meninos um espelho acusador,
como se o culpassem pela morte da mãe deles. A falecida, a patroa,
mãe destes meus dois, cabeça mais do que eu pra comércio, tinha.
Vendo as telhas velhas do telhado deste quarto? Primeiro, a finada
lavou, uma a uma, a tarde inteira entrando pela noite, e tendo no fogo
o tacho de doce e conta na montaria um peixe chegado da tapagem
aquele instante... Telha a telha. Igual aquela? Quem? Oh, tão de
repente! Nem a parteira de Santa Bárbara chegando a tempo!
Fecha o almanaque, abrindo no ar o catálogo do pai em que
aparece a mãe, D. Amélia, vagalumeando pelo [326] campo. Vento de
outubro chuva de março madrugada de muruci e iraúna lavavam as
telhas do chalé. Agora nem uma aragem. A noite cava os seus buracos
no telhado.
O tio comido pelas solidões do Acre, ou arpoando o peixe na
serra, ou já descendo, como descem os cedros e os periatãs; remanseia
nas pedras da ribanceira. Na sessão do Mestre, com D. Sensata
abanando o fogareiro, Dolores se unge na sombra do peixe da serra.
Os alunos olham que olham as telhas velhas do telhado sempre
limpas pela mãe.
— Sepultada onde?
— Lá em cima.
— Beirando este rio?
— Lá mais em cima. Uma tarde fugimos no casco até lá em
cima e não chegamos. Nos leve com o senhor, tá bem?
179
— Me achem por aí primeiro um caroço de tucumã.
A aula termina. Os meninos correm à procura.
Estira-se na montaria emborcada, olhando os madeiros atolados
na praia e no sol. Pelos escombros da ribanceira os restos do jovem
Secretário do som da flauta, o cupu de Zezé rachando sobre os
tambores e o grito do esfomeado, três cemitérios acesos. Este lixo,
que a febre não queima, faz nascer larvas na rede, nesta montaria,
nestas Mil e Uma Noites de aninga e lama. Ao pé da laranjeira,
aquelas noites, a alta alazoa a doar-se sem cautela nem esperança. Axi
que eu quero esses seus 2$000, axi. Vinha do rio o sopro do Mestre
Sacaca. Cedros encalhados pela beiragem se debatiam no transe da
maré. O quintal do Promotor fumaçava.
Os meninos se aproximam.
— Que santo aquele que o madeireiro pesa na balança?
— São Gonçalo, professor.
Aquela brusca ânsia de não sabia que deus demônio ou fuga
quando voltava do chão proibido. Esta mea febre, de que é, não atino.
Ë nenen que estou pegando do senhor. Me mande me buscar um dia.
Levo filho, levo esta laranjeira, levo nhá mãe pra lhe contar estória,
até o marido se o senhor quiser que eu leve eu levo. A laranjeira
crespa de espinho. Por demais duro este chão me doendo. Jurando que
a mana, a Maxica, nos espia morrendo pelo [327] senhor. Cismo que
o senhor por tão guloso já conheceu ela. Não? me morda aqui que
não. Lá está o Maestro tocando que sim, ele adivinha. Na rede lá
dentro, sim? Aqui no pé da laranjeira desoculta muito. O gito dorme
na redinha dele. Que que tem? Ele inda é um anjo, de noite não chora.
Um outro anjo nos dá a mão. Anjo, aquele balanço da mangueira
sobre os araticuns podres, esvoaçando no baile das trinta damas
defuntas, o jabuti subindo no tapiri de D. Daria de Jesus Ferreira. Que
esta febre é pelo senhor, é, dói que dói aqui do lado, apalpe, lá na rede
o senhor me afomenta, sim? Se ele chega? Assim como neste
instante? Nos degola com o terçado, que que tem? Ora então a gente
vai na asa do urubu-rei. Fugia do sussurro e da laranjeira em busca de
não sabia que fuga deus demônio que este, ou aquele, pelo fundo das
águas, perdia o rastro do Mestre Parijó, remexe o balaio das estórias
da D. Sensata, pede luz na Nhá Barbra. A meada, 2$000, para tapar o
fosso, logo escarrada, escarro sobre Deus, ferrão de arraia cravado
nos órgãos de Deus. Se eu gerar um do senhor lhe mando ele no
vento, pra ser batizado na igreja de Nazaré, sim? For demais duro este
chão que é só pedra. Talvez sangrasse as costas. Com as marcas da
pedra, repleta do gozo e da semente, entregasse ao fio do terçado o
pescoço feliz.
Tambariramba! A rolação noite adentro abre a cova de Deus,
baques e fachos nesta insônia, aquela moça das Mil e Uma Noites
arrasta os véus e os encantamentos pela estiva. Aqui na balança com o
São Gonçalo no meio, essas peles de borracha? De borracha ou
daqueles homens?
Que Deus é neste aperto? Este nó no bucho. Pendura o regador
no prego da parede, ouvindo o riso abafado das mulheres na cozinha.
Os alunos lhe trazem o servidor, contentes.
A porta abre:
— Passando? Nunca deixe sua mala aberta assim com a tampa
levantada, não presta.
Séria, suada, a vassoura no ombro, fecha a mala.
— Doce de miriti o senhor gosta?
— Hoje se come sucuriju moqueado?
[328] Não responde, varrendo o quarto, lhe varrendo o lixo, a
ribanceira, a. febre, toda busca de Deus e da alazoa.
— De onde é?
— De onde, para onde vou, não sei.
Desarma a rede, sai apressada, cantarolando:
Gavião que passou pelo ninho
Levou pena do meu passarinho
180
É pena é pena é pena
Pena do meu passarinho
Chega o aluno:
— Prove do doce, professor.
Chuva estala nas telhas lavadas da D. Gervásia. Apitou.
Apitou.
O Trapiche acorda, atracou o cargueiro.
Luz de bordo descobre homens e madeiros dentro d’água ao
peso de vento e chuva. Ronco do guincho, coro dos madeireiros
tambariramba tambariramba! Alfredo vem e vai, loja, varanda,
trapiche, abre as Mil e Uma Noites, o cargueiro carrega. Agora, no
quarto escuro, de repente aquela tarde em Belém: cajus no quintal de
D. Adélia, castanhas no fogareiro. Na casa alta o piano, o dos
Alcântaras talvez, por ali errante.
— Um, Roberta, come. Este, que tirei a castanha.
— Demais travoso. Dá nódoa. Não.
A poça de chuva refletia a barra do vestido e vá ver o som do
piano. Fugiam pelo fundo do arrabalde, vamos pegar a igarité do
Profeta lá no Una? Fazer nossas imagens de barro na olaria? ver a
garça desovando a lua? vamoembora não se sabe aonde? pelos becos
entre as palhoças, benzidos pelo fumo que as velhas à porta cachimbavam.
— Então apanhe a flor, Roberta.
As papoulas mornas e pesadas.
— Flor? Quando que isso já foi flor?
— Pois tive uma assim no meu quarto, bote noites. Não
murchava, sempre desabrochando, me carregando de [329] sonho.
Dormir eu não dormia mais com aquela flor eterna. Fiz foi comer a
flor.
— Então não estou vendo? Então não estou vendo?
Loja, varanda, trapiche, fecha a mala a chave, o cargueiro
carrega, trapiche varanda loja, as papoulas mornas e pesadas, lonjuras
do tio Sebastião e do Mestre Parijó na sombra da serra, o velho túnel
do Rio de Janeiro debaixo do Amazonas, e o Coche no guincho e os
dias e as chuvas que vêm, tambariramba tambariramba! Não pára de
carregar?
Ao lado da casa de Maroquita Freire o galho da mangueira da
rua batia na janela fechada, pedindo licença para entrar. Maroquita
Freire abria a janela e o galho da mangueira entrava, dando bem na
mão da moça as mangas madurinhas. Belém não era mais a janela de
Maroquita Freire. Alfredo, agora à noite, deu com a mangueira derrubada, a casa extinta e Maroquita Freire se acabou num casamento
dos diabos.
Aqui no quarto a lamparina mostra o chão batido, os dias
mortos a roupa na corda, as visões da ribanceira, o baú onde Nini
guarda entre panos velhos um e outro suspiro. Lá fora a tosse de D.
Dudu, chaleira fervendo na trempe.
— Queres café?
Bóia no silêncio o guincho lá das Ilhas, o cargueiro carregando.
Arma a rede, dá com a aranha no barro da parede e vê, na teia
suspensa, a cidade onde vai debater-se entre a busca e a recusa.
Na beira do poço a papouleira destila o paraíso.
Carrega o balde, enche a tina. O banheiro sem teto se cobre de
estrelas, um sapo afina a solidão.
Daqueles meses de Secretário, agora só espuma pelo corpo, sai
limpo? Raízes e ervas trocam cheiro pelo quintal escuro. As velhas
negras da Ramada defumam o banho. Os sapos se calam ouvindo a
flauta do Maestro.
Volta o guincho, tambariramba! tambariramba! o cargueiro
carrega, D. Dudu com o café. Aquela cabocla entre paneiros,
frasqueiras da loja e as Mil e Uma Noites, desata o colo, cheirando a
jenipapo. Os madeiros, ao som do [330] guin|cho, tombando no
porão, acordam os tambores da Ramada e do Divino onde Zezé
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assanha o pixaim e abre os cupuaçus. Cismo que o Mestre Parijó
evém chegando.
— Queres café, menino?
Sai do banheiro, menino, menino — a mãe lá. em Cachoeira na
sombra da nuvem que avança sobre o chalé — menino, menino —
apanha a xícara.
— Naquela ribanceira café igual ao desse da senhora, nunca
bebi, D. Dudu. Me diga o enigma.
D. Dudu, tapando a porta, seca, terrosa, dura. Recebera-o na
palhoça com uma faisca de zombaria nos olhos: não te disse?
— Que te deu que só foste buscar esse espanto, essa amarelidão
e magreza?
Novamente na pedra. Os santos na mesa. Quero abrir uma
janela. Roçando a cabeça na palha do teto, o Santo Antônio: te
desengana, meu filho, que não faço milagres. A máquina de costura,
as três cadeiras velhas.
Novamente na pedra. Toda faca, nessa pedra, acha o seu gume?