fazer - Núcleo estudos de gênero

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fazer - Núcleo estudos de gênero
1
UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARANÁ
JULIANA L. LOCATELLI M. PINHEIRO
MADAME D’ÉPINAY E ROUSSEAU: UM DEBATE FILOSÓFICO SOBRE A
EDUCAÇÃO FEMININA.
CURITIBA
2009
2
JULIANA L. LOCATELLI M. PINHEIRO
MADAME D’ÉPINAY E ROUSSEAU: UM DEBATE FILOSÓFICO SOBRE A
EDUCAÇÃO FEMININA.
Monografia apresentada à disciplina de
Estágio Supervisionado em História
como requisito parcial à conclusão do
curso de História da Universidade
Federal do Paraná.
Orientadora: Profa. Dra. Ana Paula
Vosne Martins
CURITIBA
2009
3
Ao meu pai, Julio, à minha mãe Raquel,
ao meu irmão Felipe, ao meu namorado Rafael e
à minha cunhada Stephanie.
4
RESUMO
Palavras-chave: educação feminina; escrita de mulheres; iluminismo.
Esta pesquisa tem como tema a proposta de educação feminina na França do
século XVIII. O debate principal recai sobre as propostas pedagógicas de JeanJacques Rousseau, com seu livro “Emílio ou Da Educação” (1762) e Madame
d’Épinay em seu tratado “Les Conversations d’Emilie” (1774). A partir do estudo do
contexto em que ambos estavam inseridos, o trabalho preocupou-se com a proposição
de ambos para a educação das mulheres. Rousseau defendia que as mulheres deveriam
ter acesso à educação apenas para serem boas companheiras para os homens, em
contraposição Madame d’Épinay propôs igualdade intelectual entre homens e
mulheres. Em nossa pesquisa levamos em consideração também o estatuto da escrita
produzida por mulheres e o fato de que as mulheres encontraram vários obstáculos
para escrever, pois permitir instrução às mulheres significava reconhecer a capacidade
feminina e representava a possibilidade de quebrar o domínio patriarcal da escrita.
Para pensar a escrita de mulheres no século XVIII foi necessário entender o local que
permitia a reflexão literária e que possibilitava essa escrita. Tendo por objetivo
principal análise das duas propostas, este trabalho está pautado dentro do debate
historiográfico a respeito das mulheres e das relações de gênero
5
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO...................................................................................................................08
1 A ESCRITA DAS MULHERES...................................................................................11
1.1 O DISCURSO E AS LIMITAÇÕES À ESCRITA DAS MULHERES.........................12
1.2 O ILUMINISMO E A MULHER NO SÉCULO XVIII.................................................18
1.3 PRIMEIRO COMO OUVINTES DEPOIS COMO ESCRITORAS..............................21
2. A EDUCAÇÃO DAS MULHERES...............................................................................24
2.1 A EDUCAÇÃO DAS MULHERES NO SÉCULO XVIII.............................................25
2.2. PROPOSTAS DE EDUCAÇÃO..................................................................................30
3. O SABER FEMININO..................................................................................................37
3.1. MADAME D’ÉPINAY: MÃE, AVÓ E PRECEPTORA, UMA RIVAL SEGUIDORA
DE ROUSSEAU...................................................................................................................38
3.2. EMILIE A ANTI-SOPHIE............................................................................................46
CONCLUSÃO....................................................................................................................54
REFERÊNCIAS.................................................................................................................56
INTRODUÇÃO
A primeira história que gostaria de contar é a
história das mulheres. Hoje em dia ela soa evidente.
Uma história “sem as mulheres” parece impossível.
Entretanto, isso não existia. Pelo menos não no
sentido coletivo do termo [...].
Michelle Perrot1
Debruçar-se sobre a história das mulheres teria sido pouco previsível até
algumas décadas atrás, já que as práticas femininas como objeto de análise histórica
constituem um campo recente. Assim esta pesquisa se propõe a debater dois tratados
de educação buscando diferenciá-los em suas propostas para a instrução das mulheres.
Um dos tratados é “Emilio ou Da Educação” de Jean-Jacques Rousseau e o outro é
“Les Conversations d’Emilie” de Madame d’Épinay. Ambos viveram como pessoas
letradas inseridas numa configuração social que dificultava a inserção da mulher no
campo literário ou filosófico.
Rousseau teorizou a respeito da educação das mulheres no século XVIII, mas
para representá-las ele criou seu modelo de esposa ideal, Sophie. O problema é que ela
era fruto de sua imaginação, idealizada, sem falhas e completamente moldada de
acordo com o as necessidades do autor.
Já a outra proposta de educação opõe-se à Rousseau ao voltar-se completamente
para as mulheres e mais importante, ter sido produzida por uma mulher. Quando
Madame d’Épinay escreveu não o fez para alguém idealizado, mas sim para sua neta
Émilie. “Les Conversations d’Emilie” foi pensado para o enriquecimento cultural a
principio de sua neta, mas era um saber que se dedicava a várias áreas que não apenas
a doméstica.
Devemos entender que as mulheres possuíam acesso ao saber, mas era de
maneira incompleta, a educação que lhes era destinada era diferenciada da dos
homens, pois as mulheres deveriam saber apenas alguns assuntos. O que devemos
ressaltar é o fato de Madame d’Épinay, uma mulher da aristocracia francesa do século
XVIII, ter escrito um tratado pedagógico pensando na felicidade das mulheres
1
PERROT, Michelle. Minha história das mulheres. 2007. p.13
9
independentemente dos homens. Madame d’Épinay inovou, pois dedicou-se ao saber
feminino sem estar atrelado ao mundo masculino, era o saber pelo saber e foi além ao
sugerir a “igualdade intelectual entre os sexos e a importância fundamental dos estudos
para a felicidade feminina.”2.
Ao privilegiar uma temática relacionada ao universo feminino foi necessário
uma aproximação com as teorias sobre as relações de gênero, encontrando em Joan
Scott uma referência teórica. A categoria gênero apontada por Scott refere-se à
organização social da relação entre os sexos e implica em compreender
relacionalmente o feminino e o masculino.
O conceito “gênero” começou a ser usado a partir da década de 1970 como uma
categoria de análise histórica, não apenas para salientar a diferença entre os sexos, mas
como uma maneira de referir-se à organização social das relações entre homens e
mulheres. Assim, “gênero” passou a introduzir uma noção relacional no nosso
vocabulário analítico tendo como objetivo descobrir a amplitude dos papéis sexuais e
do simbolismo sexual nas várias sociedades e épocas, achar qual o seu sentido e como
funcionavam para manter a ordem social e para mudá-la. 3
De tal modo, o objeto
deste trabalho, a educação das mulheres no século XVIII foi pensada não
isoladamente, mas inserida no conjunto das relações sociais para os quais, tanto o
homem quanto a mulher, eram peças importantes e complementares da organização
familiar e civil.
É necessário destacarmos que alguns textos aqui citados se apresentam no
original em francês ou em inglês e a tradução das passagens que foram utilizadas no
decorrer do trabalho foi feita de maneira livre.
Feitas essas considerações é preciso mencionar a estruturação deste trabalho,
que visando responder os propósitos anteriormente anunciados, foi construído em três
capítulos.
O primeiro capítulo aborda a problematização da escrita de mulheres, bem
como lugares sociais nos quais estavam inseridas e os obstáculos impostos ao seu
desejo intelectual. A França e o século XVIII são as delimitações de espaço e tempo
2
3
BADINTER, Elisabeth. Émilie, Émilie. A ambição feminina no século XVIII. p. 376.
SCOTT, Joan. Gênero: uma categoria útil de análise histórica.
10
desse estudo, pois no que concerne à escrita, apenas tiveram a possibilidade de
exprimir suas idéias as mulheres provenientes de famílias que pertenceram à alta
classe da sociedade.
O segundo capítulo é dedicado à educação das mulheres e dos objetivos visados
por essa educação. Também neste capítulo apresentaremos outros tratados de educação
concernentes tanto ao universo masculino quanto ao feminino, como os de John Locke
e de Fénelon escritos em meados do século XVII e de Rousseau produzido no século
XVIII
.
O terceiro capítulo explicita o debate entre os autores escolhidos, Madame
d’Épinay e Jean-Jacques Rousseau, ambos do século XVIII na França Iluminista. Tal
debate privilegia as discussões a respeito das propostas de educação para as mulheres.
Finalmente cabe dizer que este trabalho permite compreender a organização da
educação das mulheres e também salientar que esta era uma dentre tantas experiências
que elas vivenciaram durante o século XVIII.
1. A ESCRITA DAS MULHERES
Neste capítulo tratamos da escrita das mulheres e de sua problematização no
século XVIII bem como dos debates sobre a mulher escritora e da falta de uma
tradição literária feminina. Para tanto, será necessário observarmos de maneira
cuidadosa a conjuntura social em que estas mulheres escritoras estavam inseridas e
entendermos os papéis historicamente produzidos para as mulheres, bem como sua
relação com a escrita.
12
1.1 – O DISCURSO E AS LIMITAÇÕES DAS MULHERES
Desde as épocas mais longínquas da história as relações entre o masculino e o
feminino correspondiam a modelos ordenados pelos interesses dos grupos sociais.
Assim, as representações de gênero4 são construções apreendidas, institucionalizadas e
transmitidas socialmente. A partir dessas relações é que podemos compreender a
representação da mulher escritora, já que por muito tempo foram os homens que
escreveram sobre as mulheres.
Nas representações de gênero instituídas conforme as necessidades e interesses
do grupo, devido a alegação da inferioridade sexual e intelectual da mulher, ela foi
destinada à esfera doméstica, tendo como definição “natural” a maternidade e o papel
de esposa assegurando a total submissão feminina em relação ao homem.5
A Igreja exerceu um papel fundamental ao relacionar a imagem da mulher com
Eva, responsável pela desgraça da humanidade. Mais tarde a Igreja lançou um novo
olhar sobre a mulher através da imagem de Maria, categorizando as mulheres segundo
seus papéis sociais, de virgens, viúvas ou casadas. Essa ambigüidade permeou as
discussões que envolveram o lugar social da mulher, pois ora eram vistas como
monstros causadores da perdição dos homens, ora como anjos que os protegiam dos
males do mundo.
A produção teológica para controlar o comportamento da mulher nesse
momento tem por base os modelos de Eva, Virgem Maria e Madalena. (...)
Eva havia condenado toda a humanidade a uma vida árdua na Terra. As
mulheres eram sua descendência direta, ou seja, carregavam consigo todo o
peso do pecado. Virgem Maria é aquela que abre as portas do paraíso
novamente para a humanidade (...). Porém, apesar da esperança de
reingresso no paraíso vir por uma mulher, Maria é um modelo inatingível
para as demais, em virtude da manutenção de sua virgindade após a
concepção e o nascimento de um filho. As mulheres que não eram mais
virgens tinham como proposta de vida o modelo da matrona, em oposição à
prostituta. A dedicação à maternidade era essencial, assim como o exemplo
de Maria, mãe de toda a humanidade. (...) Finalmente, Madalena, modelo de
redenção feminina. Se pelas mãos da mulher, Eva, a morte havia recaído na
humanidade, pela mulher a ressurreição foi anunciada. Além disso, é a
4
Gênero é uma possibilidade de demonstrar a criação inteiramente social das idéias sobre os papéis dos homens
e das mulheres. Uma maneira de interpretar as relações sociais. SCOTT, Joan. Gênero: uma categoria útil de
análise histórica.
5
CRAMPE-CASNABET, Michele. “A mulher no pensamento filosófico do século XVIII”. In: História das
Mulheres no Ocidente: do Renascimento à Idade Moderna. 1990. p.388.
13
representação de uma pecadora que serve de exemplo para os pecadores
arrependidos. A mulher é essencialmente o símbolo do pecado da carne e a
sua regeneração se dá pela penitência e pelo arrependimento representados
na figura de Madalena. Eva representa a mulher real, em que as influências
da Igreja deverão ser exercidas. Maria é a do plano ideal, a distante,
inatingível, projetada pelos homens para guiar as mulheres daqui, Madalena
se encontra entre essas duas figuras, significando a possibilidade de
arrependimento dos pecadores.6
No Renascimento a reflexão acerca da natureza humana trouxe consigo novas
discussões relativas às mulheres. Essas novas concepções serviram como instrumento
para um amplo debate intitulado querelle des femmes7. Esse movimento se inicia no
século XV sob forte influência do Humanismo e das Reformas Religiosas, atingindo
primeiramente a Itália e depois a França e outros países europeus. Da querelle8
participavam escritos tanto de homens quanto de mulheres que dialogavam através de
livros, panfletos e até mesmo obras de arte.
Esses diálogos se apresentavam através de acusações e reclamações sobre quais
os papéis relativos aos homens e às mulheres9. Os escritos masculinos foram
considerados ora misóginos10 ora filóginos11. Os textos produzidos pelas mulheres
foram classificados na segunda categoria, com isso elas se inseriram no espaço letrado
permitindo o diálogo com grandes autores.
Esse debate não ficou restrito ao século XV ele prosseguiu até depois da Revolução
Francesa. “Rousseau também foi um protagonista na querelle des femmes e respondeu
a essa tradição em seus escritos”12. Podemos citar a sua obra “Émile ou Da Educação”
publicada no ano de 1762, como um exemplo de trabalho inserido na querelle, assim
como o trabalho Madame d’Épinay, sua obra prima, intitulada “Les Conversations
d’Emilie”, publicada no ano de 1774 como uma forma de resposta a Rousseau por seu
6
OLIVEIRA, Adriana Vidal de; PILATTI, Adriano (Orientador). A expressão constituinte do feminismo: por
uma retomada do processo liberatório da mulher. p. 11-12
7
Segundo Joan Scott a querelle no século XVI tem por designação um debate literário e filosófico
predominantemente entre homens, sobre as capacidades intelectuais e amorosas das mulheres. SCOTT, Joan W.
“La querelle des femmes” no final do século XX.
8
Deve-se apenas atentar para o fato de que a estrutura utilizada pela querelle era similar ao exercício de retórica
utilizado por estudantes universitários, muitas criticas misóginas podem ter sido construídas pelo mesmo autor.
9
BOCK, Gisela. Querelle des femmes: a european gender dispute. p. 1-31.
10
Misoginia é um discurso hostil em relação às mulheres. Segundo o dicionário básico de filosofia seria uma
“Atitude ou comportamento de antipatia, aversão ou ódio em relação às mulheres.” JAPIASSÚ, Hilton;
MARCONDES, Danilo. Dicionário básico de filosofia.p189
11
Termo descrito para aqueles que defendiam o sexo feminino.
12
BOCK. Ibidem. p.31 “Rousseau was also a protagonist in the querelle des sexes and responded to that tradition
in his writings.” N.T. Tradução livre.
14
tratado de educação fazer tão pouco pela educação das mulheres. Ambos são tratados
pedagógicos, mas o primeiro privilegiou o sexo masculino, enquanto que o segundo é
completamente moldado para a educação feminina. A diferença entre os dois tratados
será apresentada mais adiante nesse trabalho, mas é importante lembrarmos que ambos
os autores estavam inseridos no contexto do século XVIII, bem como na querelle des
femmes.
Alguns filósofos do século XVII contribuíram, pouco ou muito, para a
mudança ideológica revelando a identidade comum do homem e da mulher.
Descartes, de quem não podemos suspeitar de feminismo, foi um dos
precursores. Afirmando a completa autonomia do pensamento em relação
ao corpo, tornava possível a igualdade intelectual da mulher. O cartesiano
Poullain de la Barre aproveitou a brecha aberta por seu mestre para
sustentar a idéia nova da igualdade do homem e da mulher. 13
Poullain de la Barre foi quem introduziu a noção de igualdade na querelle des
femmes, com seu trabalho intitulado “De l’égalité des deux sexes” publicado em 1673.
Seguidor de Descartes, De la Barre privilegiou a razão acima de tudo. Para ele a mente
não tinha sexo, não devendo haver distinção entre homens e mulheres. Ao fazer isso
ele elevava a condição feminina ao mesmo patamar dos homens, dizendo que elas
também eram capazes de raciocinar e já no início de seu texto ele propõem:
Onde podemos demonstrar que a opinião vulgar é um preconceito, e que
comparando sem interesse aquilo que podemos remarcar na conduta dos
homens e das mulheres, somos obrigados a reconhecer nos dois toda uma
igualdade.14
Mesmo com a defesa de Poullain de La Barre as mulheres encontravam
limitações à sua escrita, não assumindo o controle de suas idéias de maneira repentina.
Foi um longo processo iniciado a partir do momento em que se inseriram nas redes de
sociabilidades cultas. Conforme se inseriram em espaços para conversar e exprimir
suas idéias, foi possível a elas escrever. Podemos citar o exemplo de Tullia
D’Aragona, uma cortesã na Itália do século XVI, que conseguiu produzir seu trabalho
13
BADINTER, Elisabeth. Émilie, Émilie. A ambição feminina no século XVIII. p.31
BARRE, Poullain de. De l’égalité des deux sexes . p.1 “Ou l’on montre que l’opinion vulgaire est um préjugé,
e qu’en comparant sans interest ce que l’on peut remarque dans la conduite des hommes e des femmes, ont est
obligé de reconnaitre entre les deux une égalité entiere.” N.T. Tradução livre.
14
15
“Sobre a infinidade do amor”15 por estar inserida num círculo humanista, local que lhe
permitia o acesso ao saber. Logo, se a mulher estivesse presente em locais que lhe
permitissem o conhecimento, sua produção tornar-se-ia mais acessível se comparada
às outras mulheres que não tinham acesso aqueles espaços privilegiados.
Apesar da querelle e de mulheres como Tullia, não se caracterizou uma tradição
de pensamento filosófico feminino, pois a tradição da escrita pertencia por excelência
aos homens.
(...) tudo que é relacionado aos valores positivos do falo conta como bom,
verdadeiro e bonito; tudo que não é pautado nos padrões do falo é definido
como caótico, fragmentado, negativo ou não existente. O falo é considerado
inteiro, unitário e de forma simples, em oposição ao caos da genital
feminina.16
Quando as mulheres se debruçavam sobre qualquer tema estavam adentrando
num universo masculino. O fato de tomar para si o ato da escrita foi visto para Sandra
Gilbert e Susan M. Gubar17 como se a mulher estivesse usurpando o lugar dos homens,
demonstrando que a escrita pertencia ao homem e não à mulher. Quando ela o faz é
classificada como pedante.
A falta de tradição implica na ausência de suporte histórico para respaldar a
escrita das mulheres; elas não encontravam em suas ancestrais alguém em quem
pudessem se basear, uma carência que demorou a ser suprida. Isso prejudicou seu
trabalho, pois toda vez que escrevia a mulher se apoiava num autor masculino que
muitas vezes não a satisfazia naquilo que desejava criar.
Um dos problemas para muitas dessas mulheres escritoras era que foram os
homens escritores que se tornaram autoridades estabelecidas. Muitas
mulheres simplesmente trabalharam nas sombras, tanto inspiradas pelas
publicações masculinas quanto influenciadas por homens que conheciam.18
15
D’ARAGONA, Tullia. Sobre a infinidade do amor. 2001.
MOI, Toril. Sexual/Textual Politics – Feminist literary theory.p.67 “(…) anything conceived of as
analogous to the so-called ‘positive’ values of the Phallus counts as good, true or beautiful; anything that is not
shaped on the pattern of the Phallus is defined as chaotic, fragmented, negative or non existent. The Phallus is
often conceived of as a whole, unitary and simple form, as opposed to the terrifying chaos of the female
genitals.” N.T – Tradução livre.
17
GILBERT, Sandra M.; GUBAR, Susan. The madwoman in the attic. apud ROSSI, Aparecido. Seria a pena
uma metáfora para o falo? Ou a inquietante presença da mulher na literatura.
18
BLOCH, Jean. Discourses of female education in the writings of eighteenth-century French women.
In:KNOTT, Sarah; TAYLOR, Barbara.Women, Gender and Enlightenment. p254. “One of the problems for
many of these women writers was that it was male writers who became the established authorities. Many women
16
16
Concomitantemente, outra questão que dificultava a produção de seus ensaios,
bem como sua publicação, era a falta de um espaço apropriado, o que tornava mais
laboriosa sua função de escritora.
(...) escrever uma obra de gênio é quase sempre um feito de prodigiosa
dificuldade. Tudo se opõem à probabilidade de que ela aflore íntegra e
completa à mente do escritor. Em geral as circunstâncias materiais opõemse a isso.(...) Mas para as mulheres, (...) essas dificuldades eram
infinitamente descomunais. Em primeiro lugar, ter um quarto próprio – sem
falar num quarto sossegado ou num quarto à prova de som – estava fora de
questão, a menos que seus pais fossem excepcionalmente ricos ou muito
nobres, mesmo no início do século XIX.19
Era difícil para uma mulher escrever quando lhe diziam que não fora feita para
pensar e ao fazê-lo precisava ir contra uma opinião que a julgava inferior e que a
submetia ao poder masculino. Uma justificativa para tal ação seria o medo masculino
de perder o controle sobre as esposas. Permitir instrução às mulheres significava
reconhecer a capacidade feminina e representava a possibilidade de quebrar o domínio
patriarcal. Ao assumir o papel de escritora as mulheres expunham o patriarcalismo
dominante.
Daí a enorme importância para um patriarca que tem que conquistar que
tem que dominar, de sentir que um grande número de pessoas, a rigor,
metade da raça humana, lhe é por natureza inferior. De fato, essa deve ser
uma das principais fontes de seu poder.20
A inferioridade feminina era entendida como parte de sua natureza, os discursos
em seu entorno restringiram sua liberdade. Mesmo com a existência de muitos
interditos à escrita das mulheres houve escritoras que compuseram um pequeno grupo,
pois suas obras ficavam à margem da escrita oficial21.
simply worked in their shadow, either inspired by the publications of male mentors or influenced by men they
knew.” N.T. – Tradução Livre.
19
WOOLF, Virginia. Um teto todo seu.p.65
20
Ibidem. p.44
21
Escrita canônica masculina
17
Considerar a sua escrita é uma forma de conhecer o pensamento produzido
pelas mulheres que se conscientizaram da opressão e que se opuseram ao
patriarcalismo que as submetia constantemente ao domínio masculino.
(...) ao longo da história poucas mulheres excepcionais tentaram de fato
resistir a pressão da ideologia patriarcal, tornando-se conscientes da sua
própria opressão e manifestando sua oposição ao poder masculino.22
Quando produziram seus escritos no campo das letras sofreram críticas
justamente por ser do sexo feminino. Tudo que escreveram foi apreendido como fraco
e inferior. Para quebrar o domínio masculino elas precisaram provar que o que foi
referenciado como inferior, ou seja, seu trabalho, pode ser reconhecido como algo
relevante para a tradição ou na contra-corrente dela.
22
MOI, Toril.Op.Cit. p.26 “(…) throughout history a few exceptional women have indeed managed to resist the
full pressure of patriarchal ideology, becoming conscious of their own oppression and voicing their opposition to
male power.” N.T – Tradução livre
18
1.2 – O ILUMINISMO E A MULHER NO SÉCULO XVIII
No contexto iluminista a querelle des femmes forneceu os termos para a
discussão a respeito da mulher no século XVIII. Devemos entender este contexto para
compreendermos o lugar da mulher na sociedade desta época.
O Iluminismo23 foi um movimento cultural de grandes proporções que abarcou
áreas como a filosofia, as ciências naturais e sociais e que se desenvolveu
principalmente na França, Alemanha e Inglaterra no século XVIII. Foi um movimento
heterogêneo de múltiplos discursos que se caracterizou pela defesa do conhecimento e
da racionalidade crítica contras os dogmas religiosos. Correntes do Iluminismo
defenderam as liberdades individuais, os direitos dos cidadãos contra o autoritarismo e
o crédito à razão e ao saber, bem como para a capacidade de emancipação do
homem.24 Foi um movimento de duras críticas à Igreja Católica e à sua forte influência
social e política no Antigo Regime.25
O progresso e a razão foram os principais motores do pensamento iluminista
que influenciaram mudanças políticas e sociais até o início do século XIX. O
pensamento iluminista criticava o Absolutismo e a estrutura do Antigo Regime, crítica
essa que se aproximava das aspirações da burguesia que se encontrava em ascensão.
Com o desenvolvimento das ciências naturais o homem passou a ter uma visão mais
pragmática da natureza, passando a buscar formas de submetê-la à sua vontade.
Ciente de seu lugar no mundo o homem viu a necessidade de formar indivíduos
capazes de dominar a natureza e as leis que a regiam, assim houve o surgimento de
vários tratados relativos à educação. Um bom exemplo dessa necessidade é a criação
da Enciclopédia, o grande monumento do Iluminismo organizado por Diderot e
D’Alambert, um projeto pensado coletivamente que visava um balanço dos
conhecimentos adquiridos em vários campos da ciência, uma compilação de tudo
aquilo que havia sido produzido pela atividade humana guiada através da razão.
Entretanto, esse discurso foi articulado a partir de uma perspectiva masculina,
“é do ponto de vista do homem filósofo que se institui um duplo discurso do homem
23
Como conceito foi criado pelo filósofo alemão Immanuel Kant, em 1784.
JAPIASSÚ, Hilton; MARCONDES, Danilo. Op.Cit. p.142
25
SILVA, Kalina V; SILVA, Maciel H. Dicionário de conceitos históricos. p.210.
24
19
sobre o homem e do homem sobre a mulher.”26 Assim, as mulheres estavam presentes
no discurso iluminista como objetos de estudo, neste sentido o século XVIII foi
considerado o século da mulher27, por estar mais em evidência em cenas públicas e
literárias, tornou-se uma figura importante, mas sempre subordinada ao homem.28 Ela
faz parte do discurso não como indivíduo independente e sim como alguém que existe
para garantir a felicidade do homem.
(...) o discurso não dá conta da realidade da sua presença; cego, só vê
através de uma imagem, a da Mulher que pode tornar-se perigosa pelos seus
excessos, ela que é tão necessária, dada a sua função essencial de mãe. O
discurso não a mostra, inventa-a, define-a através de um olhar culto (logo
masculino) que não consegue senão subtraí-la a si própria.29
Ao mesmo tempo em que conferem às mulheres autonomia os discursos o
fazem apenas por precisarem de mulheres instruídas e capazes de manter uma
conversa apropriada com os homens. Por esse aspecto o Iluminismo é um movimento
contraditório, pois não faz a conciliação entre a diferença sexual e uma filosofia do
universal.30
O ponto de partida para pensar o sexo feminino no século XVIII, foi o homem.
Nos escritos produzidos pelos filósofos as mulheres eram vistas através de suas
diferenças com o sexo oposto, não passando de seus complementos inferiores. Para
elucidar tal fato, recorremos ao exemplo da Enciclopédia, que classificou a mulher
como “fêmea do homem”
31
, ou seja, ela é um espelho que servia para enaltecer a
razão e a capacidade masculina.
Para embasar seus argumentos os homens buscavam na natureza feminina a
desculpa necessária para inferiorizar as mulheres, pois as consideravam um ser de
paixão e de imaginação, sendo seu intelecto menos capaz. Rousseau foi um dos
teóricos que utilizou esse argumento ao dizer que às mulheres caberia apenas conhecer
26
CRAMPE-CASNABET, Michèle. Op.Cit.p.373
HOFFMANN, P. La Femme dans La pensée des Lumières. Ophrys. Paris. 1977. apud GODINEAU,
Dominique. A mulher. In: VOVELLE, Michel. (org) O homem do iluminismo.p.311
28
GODINEAU, Ibidem.p.311.
29
DAVIS, Natalie e FARGE, Arlette. Introdução. In: História das Mulheres no Ocidente: do Renascimento à
Idade Moderna.
30
GODINEAU. Op.cit. p.312
31
Idem.
27
20
aquilo que estava ao seu entorno para torná-la uma companheira melhor para o
homem.
Apesar das críticas, houve mulheres que assumiram o papel de protagonistas de
sua defesa e argumentavam em favor de seu sexo, realizando traduções e escrevendo
correspondência e tratados relativos à educação. Fizeram isso apoiadas na tradição
masculina, mas nem sempre foram reconhecidas por tal empreendimento; contudo, aos
poucos, mostraram que eram capazes e moldaram a sua própria tradição.
21
1.3 – PRIMEIRO COMO OUVINTES DEPOIS COMO ESCRITORAS
Mais instruída do que suas antecessoras, a mulher do Iluminismo não quer ser
aquela que um século rico em inovações intelectuais relega para posições
secundárias. Aproveita também a instrução ministrada para a transformar numa boa
esposa, para se enriquecer pessoalmente. Quer participar também nas Luzes, e não
se alhear do seu século. Como inserir-se numa cultura que não se lhe destina
diretamente? Não deixando de estudar, mantendo-se ao corrente daquilo que se diz,
daquilo que se escreve e, porque não, dizendo ou escrevendo também ela própria.
(Michel Vovelle)
No Iluminismo houve um aumento na produção de livros devido à maior
facilidade de publicação, permitindo melhores oportunidades de conhecimento. Assim,
ocorreu um aumento significativo na circulação das idéias através do grande número
de correspondências. A difusão do conhecimento possibilitava a inserção das mulheres
no enriquecimento cultural do período, procurando manter-se instruídas, buscavam
informações, participavam de debates e liam o máximo de livros que lhes era
permitido, “a mulher iluminista é uma grande leitora”.32 Ainda eram vistas como
pedantes, pois queriam ter acesso ao saber destinado aos homens que diziam que ao
invés de ler a mulher deveria estar preocupada com os cuidados da casa.
Mas, enquanto a leitura masculina é sinal de atividade intelectual, a leitora é
facilmente considerada com uma pedante orgulhosa ou uma ociosa. Em
ambos os casos, isso sucede porque a mulher surge menos no seu papel
tradicional, porque quer ter acesso a um saber masculino, porque rouba o
tempo que deveria dedicar ao governo da casa, ao marido ou aos filhos,
porque cria entre si própria e o livro um espaço íntimo do qual o homem se
vê excluído. A leitura feminina é perigosa.33
O livro passou a ser sinônimo de distinção social para as mulheres,
principalmente para aquelas que pertenciam à aristocracia, pois não queriam ser
confundidas com as mulheres da burguesia. O livro também passou a estabelecer uma
“rede de sociabilidade intelectual da qual a mulher sai vitoriosa.”34.
32
GODINEAU, Dominique.Op.Cit.p.325
Ibidem. p.325-326
34
Ibidem.p.326
33
22
Para entender a escrita de mulheres no século XVIII é necessário conhecer os
locais que permitiam a reflexão literária e a produção dessa escrita. Os salões35 foram
esses lugares que permitiram a aproximação entre homens e mulheres e promoveram
debates intelectuais. Tal espaço desempenhou um importante papel no campo
filosófico e literário daquele período.
Eram as mulheres que dirigiam os salões, organizavam os espaços, evitavam os
excessos, valorizavam cada convidado.36 A função delas dentro desses lugares era de
fundamental importância. Eram elas que conduziam as ações.
No seu melhor estado uma brilhante vida social é essencialmente externa.
Seu encanto repousa nas graças superficiais. Nas dóceis maneiras, o pronto
tato, a rápida inteligência, os raros e perecíveis dons de conversa. (...) Seu
dom de se projetar em atmosferas alegres é peculiar, de tratar mesmo
assuntos sérios de uma maneira viva, de habitar sobre a agradável superfície
das coisas, que fez os franceses, acima de todos, os artistas da vida social.37
Nos salões aconteciam debates e discussões de idéias, “eles discutiam questões
econômicas, políticas, religião, arte, literatura, com igual liberdade e ardor.”38 Eram
verdadeiros centros de cultura e os encontros tinham data e local certo para acontecer.
O salão de Madame d’Épinay, denominado La Chevettre, era uma residência próxima
de Paris adquirida por seu marido. Nele recebia seus amigos, grandes nomes de sua
época, como Francueil, Duclos e Rousseau. 39
Assim, as práticas dos salões assumiram maior importância no século XVIII por
serem os lugares propícios para a expansão das idéias e também para os debates. Para
as mulheres era uma maneira de absorverem conhecimento, pois possuíam as
qualidades fundamentais para receber em seus salões, sabiam manter as conversas e
35
Os salões surgiram no século XVII na sociedade de corte, faziam parte desses círculos apenas aqueles que
pertenciam a nobreza.
36
GODINEAU, Dominique. Op.Cit.p.326
37
MASON, Amélia Gere. The women in the french salons. “In its best estate a brilliant social life is essentially
an external one. Its charm lies largely in the superficial graces, in the facile and winning manners, the ready tact,
the quick intelligence, the rare and perishable gifts of conversation. (...) Its is peculiar gift of projecting
themselves into a joyous atmosphere, of treating even serious subjects in a piquant and lively fashion, of
dwelling upon the pleasant surface of things, that has made the French the artists, above all others, of social life.”
N.T – Tradução livre.
38
MASON, A. Op.Cit. “They discuss economic questions, politics, religion, art, literature, with equal freedom
and ardor.” N.T. – Tradução Livre.
39
BADINTER, E. Émilie, Émilie.Op.Cit. p.128
23
mais do que tudo deveriam saber exatamente qual era o lugar que lhes cabia nesses
centros de cultura.
Os salões do século XVIII permitiam os encontros de aristocratas, letrados,
homens de ciência e burgueses ricos. Neles era primordial a circulação do saber e a
divulgação dos trabalhos produzidos para o enriquecimento cultural do período.
Ilusoriamente dentro dos salões parecia não existir distinção entre as camadas da
sociedade e entre os sexos, as mulheres adquiriram status de interlocutoras. Eram as
companheiras dos homens e ao mesmo tempo capazes de manter uma ótima discussão.
Assim as mulheres avançavam no campo filosófico, mas ainda não eram vistas como
iguais, havendo distinção entre o saber masculino e feminino.
A mulher ocupa neste sistema geral a posição ambígua que o século lhe
confere: dá, sem dúvida, um passo em frente, que a transformará na rainha
dos salões freqüentados por ‘philosophes’, sendo objeto de uma atenção
mais intensa e simultaneamente inquieta que a mantém, geralmente numa
situação de dependência, faltando ainda muito tempo para dela se
emancipar.40
Inserida nesse universo, a mulher conseguiu dar mais um passo em direção a sua
“independência”, atingindo o terreno da escrita. Com o conhecimento que adquirem
nos salões produzem seus ensaios a fim de tornarem públicas suas idéias e na busca de
tentar romper com a ordem patriarcal mostraram que eram tão capazes quanto os
homens.
40
VOVELLE, Michel. (org) O homem do iluminismo. p.18-19
2. A EDUCAÇÃO DAS MULHERES
O objetivo desse capítulo é tratar da função da educação fornecida para as
mulheres. Mostraremos a ação desempenhada pelos tratados de educação como o
trabalho de John Locke, Fénelon, Rousseau e Madame d’Épinay. Esses tratados
tinham por objetivo propor métodos de educar as crianças e maneiras de ensinar os
cuidados necessários desde a infância.
25
2.1 - A EDUCAÇÃO DAS MULHERES NO SÉCULO XVIII
“O saber é contrário à feminilidade. Como é sagrado, o saber é apanágio de Deus e
do Homem, seu representante sobre a terra.”
Michelle Perrot
Iniciamos o capítulo citando Michelle Perrot, pois esta foi uma das historiadoras
que se debruçou sobre o estudo da história das mulheres. Através da epígrafe acima
podemos perceber que o saber não era considerado próprio ao sexo feminino, assim a
educação das meninas ficou obscurecida até meados do século XIX, mas devemos
ressaltar que desde o século XV houve sinais de mudança em relação a esse tema.
(...) é preciso lembrar que toda a educação propriamente intelectual lhes era
proibida. Na escola, em casa ou no convento, evitava-se desenvolver esses
espíritos. E mesmo se houve, aqui e ali, pequenas modificações de
programa, o conteúdo de ensino das meninas foi de uma mediocridade
espantosa até a primeira metade do século XIX, pois a finalidade era sempre
a mesma: fazer delas esposas crentes, donas-de-casa eficientes.41
Segundo Sarah Ross42 o século XV testemunhou a emergência de uma nova
categoria de mulheres, as intelectuais, que não eram nem cortesãs e nem freiras. Em
seu texto a autora trata da influência do pai na educação da filha e o exemplo analisado
é o de Cassandra Fedele, uma mulher da elite renascentista italiana. Ross apresenta
assim a díade pai-filha e a utilização desse lugar por Cassandra, que ao fazer isso se
afastava dos preconceitos que lhe impediam de ascender intelectualmente. Ao se
colocar no lugar de filha, Cassandra não carregava os preconceitos existentes em
relação à mulher, ela se deslocava do papel mulher para o papel de filha, colocando-se
assim numa posição abaixo dos homens, o que lhe permitiu a troca de
correspondências e a inserção no meio letrado. Outra mulher desse período que se
serviu da díade pai-filha foi Tullia d’Aragona que também recebeu incentivo paterno,
não apenas de seu pai biológico, mas de outros “pais” com quem ela pôde exercer este
papel de filha para que não levantasse comentários a seu respeito e assim se inserir no
41
BADINTER, Elisabeth. Um Amor conquistado: o mito do amor materno. p.91-92
ROSS, Sarah. Her Father’s Daughter :Cassandra Fedele, Woman Humanist of the Venetian Republic.
p.206
42
26
meio culto do Renascimento.
Com relação a essa questão podemos citar no século XVIII Madame Du
Châtelet que teve em seu pai um grande incentivador de sua educação, além de ter sido
seu primeiro preceptor. O pai permitia que ela participasse dos encontros nos salões,
não se preocupando com o que a sociedade pensava, simplesmente não se opondo ao
saber da filha. Madame d’Épinay também teve em seu pai um incentivador, a
diferença é que ele faleceu quando ela tinha apenas dez anos. Não podendo continuar
com seus estudos d’Épinay acabou sendo destinada a um convento.
A diferença da educação oferecida pelo pai, é que este não restringia a educação
de suas filhas, enquanto que o convento ensinava apenas os princípios morais da
religião para que pudessem ser boas esposas e mães.
Entre os séculos XVI e XVIII percebe-se um aumento nas pretensões
intelectuais e pela educação, pois a sociedade sentiu a necessidade de educar seus
cidadãos43. A igreja contribuiu para essa mudança na mentalidade, uma vez que
percebeu o papel fundamental que as meninas exerciam no processo de reconquista da
religiosidade e também no resgate da moral cristã44.
Nenhum estudo na educação francesa no século XVIII pode ser dar ao luxo
de perder de vista a força e a influência exercida pela Igreja Católica e isso
é particularmente verdade na educação das mulheres. Se as garotas
receberam educação nos séculos XVII e XVIII na França, foi normalmente
das petites écoles parisienses, dos conventos, das boarding schools, ou nas
casas de seus pais.45
A Igreja da Contra-Reforma incentivou a educação das mulheres em conventos
para que elas pudessem seguir os valores determinados pela religião. Outra
contribuição foi da Reforma Protestante que ao incentivar a leitura pessoal da Bíblia
influenciou para que as mulheres tivessem acesso à leitura.
43
Cabe lembrar que tal educação era diferenciada entre homens e mulheres e mais ainda entre as classes sociais
SONNET, Martine. “Uma filha para educar”. In: História das mulheres no Ocidente. Do Renascimento à
Idade Moderna. Tradução.p.141
45
BLOCH, Jean. Discourses Op.Cit. p.243. “No study of French education in the eighteenth century can afford
to lose sight of the strenght and influence of the Catolic Church and this is particularly true of women’s
education. If girls received an education in seventeenth and eighteenth –century France, it was normally from
parish petites écoles and the convent boarding schools, or in the parental home.” N.T. – Tradução Livre
44
27
Esta educação cristã tradicional manteve a sua mira na preparação para o
pós-vida, embora ela também forneceu as meninas habilidades necessárias
para guiar estabelecimentos religiosos e, posteriormente, para a casa ou, no
caso de grupos sociais mais elevados, habilidades decorativas.46
Nos conventos as mulheres foram educadas segundo as suas funções sociais de
mãe e esposa, pois sua educação visava a formação de boas mães cristãs.47 A educação
visando apenas a obtenção do saber intelectual não era permitida às mulheres. O saber
pelo saber as afastariam de suas funções maternas.
A educação de Madame d’Épinay se deu nesses moldes, pois após a morte de
seu pai, que havia incentivado muito sua educação, a sua mãe, Madame d’Esclavelles,
não atribuiu grande importância à educação de sua filha. D’Épinay acabou indo morar
com uma tia, onde procurou aprender com a governanta de sua prima. Nem sua mãe e
nem a sua tia permitiram que tal estudo continuasse, assim Madame d’Épinay foi
confinada num convento de onde saiu completamente devota e submissa, bem
diferente da menina que havia sido educada pelo pai.
No final do século XVII, na França, devido a emergência do novo indivíduo
com novos princípios para suprir as necessidades do Estado, a responsabilidade das
mães sobre a educação dos filhos aumentou, para isso tiveram que receber o mínimo
de instrução para poder ensinar seus filhos.
Não devemos deixar de lado que a mulher erudita foi ridicularizada, diziam que
se possuíam acesso ao saber deveriam empregá-los em fins altruístas, nunca em
benefício próprio. “Uma mulher que ame os estudos por si mesma comete uma
heresia.”48
Para Elisabeth Badinter no fim do século XVIII o essencial, para alguns, era
menos educar súditos dóceis do que pessoas simplesmente: produzir seres humanos
que seriam a riqueza do Estado. O Estado percebeu a necessidade de cuidar bem de
suas crianças para que estas pudessem ser melhores soldados, melhores cidadãos. A
partir de então que começou uma mudança de mentalidade e as mulheres foram
incentivadas para que ao invés de delegar os cuidados de seus filhos a uma ama-de46
Idem.p.243 “This traditional Christian education kept its sights firmly on preparation for the afterlife, though it
also provided girls with practical skills necessary for the running of religious establishments and, subsequently,
for the home or, in the case of the highest social groups, decorative accomplishments”. N.T. – Tradução Livre
47
SONNET, Martine. Op.Cit.p.145
48
BADINTER, Elisabeth. Émilie, Émilie.Op.Cit.p.68
28
leite, elas mesmas o fizessem. O discurso rousseauniano sustenta estas idéias
auxiliando positivamente tal mudança, pois através do discurso de Rousseau presente
no “Emilio” as mulheres viram a possibilidade de atingir a glória sendo mães.
Nesse contexto de mudança de mentalidades é que devemos entender a função
da educação das mulheres, principalmente no século XVIII. A educação feminina foi
construída de maneira diferente da educação masculina, pois tinham funções e
princípios diferenciados.
As mulheres por muito tempo foram preparadas para o casamento ou para vida
religiosa. Visando esses princípios não era concedida uma educação além do
necessário para que atingissem o fim desejado. A educação visava o bom
funcionamento da casa, se lhes ensinavam matemática era para saber administrar as
contas domésticas, sabiam o básico de leitura escrita, religião, moral, além de
manusear o fio e a agulha. O saber feminino por muitos anos permaneceu incompleto,
pois deveriam saber o mínimo necessário para educar seus filhos moralmente. Quando
atingissem certa idade os filhos homens seriam entregues aos cuidados de um
preceptor e as meninas deveriam ficar à espera do casamento sob os cuidados de uma
governanta.
Outro lugar possível para a educação das mulheres eram as suas próprias
residências, principalmente aquelas que tinham pais esclarecidos, que escolhiam
melhores preceptores para seus filhos. Tal lugar permitia que as mulheres possuíssem
uma educação parecida com a que era destinada aos meninos nas escolas. Essa prática
da educação familiar ganhou mais força em meados do século XVIII.
É preciso, pois, educar as meninas, e não exatamente instruí-las. Ou instruílas apenas no que é necessário para torná-las agradáveis e úteis: um saber
social, em suma. Formá-las para seus papéis futuros de mulher, de dona-decasa, de esposa e mãe. Inculcar-lhes bons hábitos de economia e de higiene,
os valores morais de pudor, obediência, polidez, renúncia, sacrifício...que
tecem a coroa das virtudes femininas.49
A educação dos homens foi completamente diferente das mulheres, eles foram
educados para a política, o governo, a filosofia, pois seriam eles que governariam a
sociedade.
49
PERROT, Michelle. Minha história das mulheres.p.93.
29
Família e religião são os pilares dessa educação quase que exclusivamente
privada. O Estado, na França, instrui os meninos, seus futuros chefes e
trabalhadores. Não as meninas, o que deixa para as mães e para a Igreja.50
Com a necessidade de construir cidadãos melhores, muitos teóricos, através de
seus trabalhos, chamaram as mulheres a assumir seus lugares maternos na sociedade.
Alguns manuais de educação, como o próprio Emílio, vieram para ensinar às mulheres
como cuidar de suas crianças.
50
Ibidem.p.94
30
2.2 – PROPOSTAS DE EDUCAÇÃO.
“De Montaigne a Rousseau, passando por Molière e Fénelon, conjuram-nas a voltar
às suas funções naturais de donas-de-casa e de mãe. O saber, dizem eles, estraga a
mulher, distraindo-as de seus deveres mais sagrados.”51
(Elisabeth Badinter)
As obras aqui citadas trataram da educação nos séculos XVII e XVIII, sendo
voltadas principalmente para os homens, mas contemplaram, de alguma forma, a
educação das mulheres, uma vez que elas influenciavam diretamente os homens e sua
educação. As mães eram as primeiras educadoras de seus filhos e para que pudessem
exercer essa tarefa da melhor maneira possível elas precisavam ser instruídas.
A função de mãe educadora atingiu maior destaque no final do século XVIII,
mas isso não significou que as mulheres foram educadas somente a partir de então. As
mulheres tiveram acesso à educação por muito tempo. A questão fundamental era qual
o sentido de sua educação e qual o tipo de educação que lhes era dada. Como nosso
trabalho trata do século XVIII nos debruçaremos principalmente sobre esse período. É
importante deixar claro que as mulheres não receberam educação de uma hora para
outra, mas foi no século XVIII que adquiriram status de educadoras de seus filhos.
É necessário primeiramente explicitarmos a escolha por John Locke e François
Fénelon, para depois adentrarmos em seus trabalhos. Esses autores foram selecionados
devido a influência que exerceram tanto sobre Rousseau quanto sobre Madame
d’Epinay, pois ambos, em seus tratados, citaram as idéias daqueles autores.
Iniciaremos com o trabalho de Locke, para depois compreender como suas idéias estão
presentes em Rousseau. Em seguida apresentaremos o trabalho de Fénelon e como
Madame d’Épinay o leu.
John Locke em seu livro “Some thoughts concerning education” publicado em
1693 construiu a sua proposta de educação de forma linear. Conforme a criança se
desenvolvia ela se tornava capaz de adquirir mais conhecimento. Seu manual de
educação foi pensado principalmente para a educação dos meninos. No início do seu
texto ele coloca o incentivo para pensar suas razões.
51
BADINTER, E. O mito do amor materno.Op.Cit.p.93
31
O educar de seus filhos faz parte do trabalho e diz respeito aos pais, e o
bem-estar e a prosperidade da nação dependem disso, que todos deveriam
levar a sério em seus corações;(…)52
Locke dispõe os conhecimentos como se estivessem atrelados uns aos outros,
assim era necessário que a criança aprendesse aos poucos tudo aquilo que seria
necessário para sua vida, porque um saber não era independente do outro. Assim um
conceito fundamental de Locke é o da tábula rasa, onde a mente é como um papel em
branco que pode ser preenchido pelos conhecimentos adquiridos pela criança através
da experiência. Devido a isso o autor dispôs os conhecimentos de maneira que
pudessem ser abarcados em sua totalidade pela criança. Ela deveria apreender aquilo
que fosse adequado à sua idade. Locke afirmava que a educação transformava o
homem no que ele era53, destacando o importante papel das experiências adquiridas
desde a infância.
Igualmente enfatizou a importância da família na educação da criança, pois os
pais não só deveriam cuidar de seus filhos, mas deveriam também atentar para os
cuidados excessivos. Ao mimá-los corrompiam os princípios da natureza. Outra
função importante da família seria os exemplos dados às crianças, uma vez que elas
imitavam tudo o que viam, então “você não deve fazer nada em frente a ele, que você
não gostaria que fosse imitado.”
54
Assim, Locke afirmava a autoridade paterna e a
submissão da criança em relação ao pai. “Esteja certo de estabelecer a autoridade de
pai, assim que ele seja capaz de submeter-se e possa entender sob o poder de quem ele
está submetido.” 55
O tutor exercia um papel de fundamental importância, pois ele deveria ter
cuidados com a formação da criança, transformar o menino em homem e incutir nele
as boas maneiras. Assim os pais deveriam ter muita atenção sobre quem escolhiam
para guiar a educação de seus filhos. Deveriam preocupar com a influência exercida
sobre a criança, assim como das suas companhias, ou seja, as pessoas que estavam
52
LOCKE, John. Some thoughts concerning education.p.24. “The well educating of their children is so much
the duty and concern of parents, and the welfare and prosperity of the nation so much depends on it, that I would
have every one lay it seriously to heart.”N.T – Tradução Livre
53
Ibidem.p.25
54
Ibidem.p.55. “You must do nothing before him, which you would not have him imitate.” N.T. – Tradução
Livre
55
Ibidem.p.32 “Be sure then to establish the autority of a father, as soon as He is capable of submission, and can
understand in whose power he is.” N.T – Tradução Livre
32
envolvidas em seu universo, pois os exemplos eram importantes na educação das
crianças, uma vez que é através dele que se demonstra o que é certo e o que é errado
para a ela.
Em seguida a criança deveria aprender a ler, escrever, desenhar e após adquirir
esses conhecimentos aprender francês e latim. Gramática, história e geografia viriam
na seqüência. Essa era a maneira de educar as crianças linearmente, como Locke
expõe. Com relação a educação das mulheres, ele não se preocupa diretamente com
esse assunto.
Eu disse ele aqui, porque o principal objetivo do meu discurso é como um
jovem rapaz deveria ser elevado de sua infância, que em todas as coisas não
vai perfeitamente preencher a educação das meninas; embora a diferença de
sexo exija diferença de tratamento, até não ter dificuldades para distinguir.56
Através do entendimento da proposta de Locke, podemos tratar de algumas
idéias de Rousseau que se aproximam de seu predecessor.
Dois dos mais remarcáveis tratados de educação do século XVIII, o Émile
de Rousseau (1762) e o Ensaio da Educação Nacional (1763) de La
Chalotais, adotaram os ensinamentos de Locke sobre a gênese do conteúdo
mental e os aplicaram em seus temas.57
Jean-Jacques Rousseau em seu tratado da educação “Emílio ou Da Educação”
aborda todos os cuidados necessários para educar um cidadão, visando formar um
homem livre que deveria estar submetido às leis da natureza. O Emílio está dividido
em cinco livros, onde apenas o último foi dedicado à educação das mulheres, pois é
quando seu personagem estaria pronto para o casamento. A educação que cabe
ressaltar aqui é aquela que Rousseau pensou para os homens, a maneira como
construiu seu tratado.
Nessa obra Rousseau escreve diretamente para as mulheres, para que elas
cuidem de seus filhos, pois segundo o autor “um homem abandonado a si mesmo
56
Ibidem.p.26 “I have said he here, because the principal aim of my discourse is, how a Young gentleman should
be brought up from his infancy, which in all things will not so perfectly suit the education of daughters; though,
where the difference of sex requires different treatment, ‘twill be no hard matter to distinguish.”N.T – Tradução
Livre
57
Ibidem.p.11 “Two of the most remarkable educational treatises of the eighteenth century, Rousseau’s Emile
(1762) and the Essai d’Éducation Nationale (1763) of La Chalotais, adopt Locke’s teaching on the genesis of
mental content and apply it to their theme.”N.T- Tradução Livre
33
desde o nascimento entre os outros seria o mais desfigurado de todos.”58. Ele valorizou
a importância das mães como educadoras de seus filhos, valorizando-as por exercerem
tal função.
Ele pensou na educação do Emílio desde os seus primeiros anos até a idade
adulta. Ele construiu um indivíduo que pudesse ser educado perfeitamente, sem
qualquer tipo de questionamento, “tomei o partido de tomar um aluno imaginário, de
supor em mim a idade, a saúde, os conhecimentos e todos os talentos convenientes
para trabalhar em sua educação e conduzi-la desde o momento do seu nascimento até
que, já homem, não precise de outro guia que não ele mesmo.”59 Sua preocupação
estava em formar o homem para que pudesse realizar o que pretendia e educá-lo para a
vida. De todas as maneiras esse homem deveria ser livre e ter sua educação guiada
pelos princípios da natureza.
No primeiro livro Rousseau se dedica aos cuidados iniciais com os bebês, desde
os cuidados com a amamentação, as funções das mães, pais e preceptores, além de
ensinar a essas pessoas como lidar com a criança, pois ela jamais deveria dominar seus
pais. Nesse livro Rousseau ensina principalmente aos pais como cuidar fisicamente de
seus filhos, como dar banho, como vesti-los, pois tudo isso influenciava naquilo que o
bebê iria se tornar. Já no segundo livro ele se preocupou com a infância da criança,
ensinando que não se devia satisfazer todas as vontades da criança, pois isso a tornaria
um ser sem limites.
Rousseau foi um grande incentivador dos exercícios físicos. Ele chamou a
atenção para os cuidados com o corpo da criança, pois seu corpo deveria ser
fortalecido para que não adoecesse com facilidade. Preocupou-se também com a
educação intelectual do Emílio, pois não bastava ter boa saúde precisava ter também
moral e intelecto desenvolvidos.
É sobre isso que trata o Livro Três, a educação propriamente dita das crianças,
como se comportar, como agir em determinadas situações, e principalmente, que a
criança deveria ser guiada a todo instante pelo seu preceptor, mas em nenhum
58
59
ROUSSEAU, Jean-Jacques . Emilio ou Da Educação. p.07.
Ibidem p.29
34
momento ela deveria desconfiar disso. Ela deveria crer que tudo que estava fazendo
era devido ao seu esforço próprio.
Os Livros Quatro e Cinco são voltados para “o despertar da consciência moral e
religiosa de Emilio e Sophie”60, mas esse último livro será tratado mais adiante quando
analisarmos a educação das mulheres.
Assim como Locke, Rousseau construiu seu tratado de maneira linear para
atender ao desenvolvimento da criança. Nada devia ser ensinado para a criança sem
que ela estivesse apta para entender. Com seus ensinamentos Rousseau “logo se tornou
a nova, mas controvérsia, autoridade na teoria da educação, particularmente no campo
dos cuidados com as crianças e educação inicial. Foi bem sucedido ao trazer os
métodos empíricos de Montaigne e Locke para o primeiro plano na educação.”61
O tratado de educação de Fénelon62 foi formulado de maneira diferente.
Primeiro inovou ao se preocupar com a educação das mulheres e segundo que não foi
construído de maneira linear. Ele trabalha com o porquê da importância de educar as
mulheres e também de como fazê-lo. Fénelon, assim como Rousseau, chamou a
atenção das mulheres para que tomassem conta de seus filhos, ressaltando a
importância desse papel para a sociedade. “He ahí, pues, la ocupación de la mujer, de
tanta importância para la sociedad como la del hombre, puesto que tiene a su cargo el
gobierno y la dirección de la casa, la felicidad y el bienestar del marido y la buena
educación de los hijos”63. Para ele,
O objetivo era dotar as mulheres das classes superiores para guiar suas
residências, em alguns casos, grandes propriedades, bem como torná-las
educadoras de seus filhos.64
60
Ibidem .p. XVI
BLOCH,Jean.Op.Cit. p.248 “soon became the new, but controversial, authority on educational theory,
particularly in the field of childcare and early education. He succeeded in bringing the empirical teaching
methods of Montaigne and Locke firmly to the fore.” N.T – Tradução livre
62
François de Salignac de La Mothe-Fenélon, bispo francês, nasceu em 1651 e faleceu em 1715. Com doze anos
foi enviado para a Universidade de Cahors, onde demonstrou sua vontade de entrar para a Igreja Católica. Seu
“Traité sur l’education des filles” foi escrito em 1687 para e duquesa de Beauvilliers, que o pediu conselhos para
lhe ensinar a educar suas oito filhas. Enciclopédia Católica.
63
FENELON,François.La educación de las Jovenes. p.07
64
BLOCH,Jean. Op.Cit.p.244 “Fénelon’s aim was to equip upper-class women to run their households, in some
cases large estates, as well as to make them serious educators of their children.” N.T – Tradução Livre
61
35
Podemos perceber na passagem citada qual seria, para Fénelon, o verdadeiro
sentido da educação das mulheres: educá-las para ser mães e esposas. Semelhante a
Rousseau, diferencia apenas na forma como o tratado é pensado, pois Fenélon
construiu sua obra pensando primordialmente na educação das mulheres, enquanto
Rousseau o fez pensando na educação dos homens.
É a partir desses autores que vemos a importância que a mulher assumiu no
século XVIII, pois a elas cabia o verdadeiro papel de educar os novos indivíduos para
o bem-estar da sociedade. Pensando ainda na obra de Fénelon vemos o quão
importante era educar as mães, pois, segundo o próprio autor, uma mulher desocupada
e ignorante acabava tendo uma propensão às diversões e espetáculos, incitando-se para
a curiosidade.65 A mulher deveria ocupar a sua mente com pensamentos que a
despertassem para a virtude, o bem maior de uma mulher.
Fénelon, assim como Locke e Rousseau, referiu-se também aos exemplos que
as crianças recebiam, como as crianças podiam imitar tudo o que viam, então “por eso
es de importância capital no presentarles sino Buenos modelos. No se les puede
permitir juntarse sino com quien pueda darles ejemplos dignos de imitación.”66 Ao
final de seu livro ele fala diretamente do que a mulher deve se ocupar
está encargada de la educación de los hijos: de los niños hasta cierta edad,
de lãs niñas, hasta que se casan o toman el hábito de religiosas; de vigilar la
conduta de los sirvientes, sus costumbres y su servicio, de los gastos que
deben hacerse, del modo de tratarlo todo economica y honrosamente (...).67
Podemos perceber que mesmo incentivando a educação das mulheres elas
poderiam ter apenas dois caminhos, o casamento ou a vida religiosa. O autor ressalta
em algumas passagens que mesmo voltadas para esses caminhos as mulheres deviam
se sentir honradas, pois todos os cuidados que despendiam em seus lares e a educação
de seus filhos exigia talento, querendo assim incentivar as mulheres em seus papéis.
Qui talento necesita para conocer el genio y el carácter de cada uno de sus
hijos, para encontrar el mejor médio de conducirse com ellos, de muedo que
pueda descobrir su temperamento, sus inclinaciones y su capacidad, para
65
FENELON,Op.Cit.p.10-11.
Ibidem.p.21
67
Ibidem.p.99
66
36
prevenir las pasiones incipientes, inspirarles buenas máximas y curar todos
sus errores.68
Fénelon foi um importante autor em quem Madame d’Épinay pôde se inspirar,
pois ele abriu uma porta que possibilitou o acesso para a educação das mulheres.
Logicamente que não o fez sozinho, Rousseau também incentivou tal educação.
Fénelon chegou a ser citado na obra d’Épinay, com isso vemos que ela foi uma leitora
também do “Traité sur l’education des filles”, o que a possibilitou fazer algumas
reflexões a respeito da educação das mulheres.
Madame d’Épinay, grande amiga de Rousseau, abre uma nova era na
história da mulher. Deixando a ciência aos homens, ela se apodera
simbolicamente de um novo papel, deixado vago há muito tempo: o de
mãe.69
Assim, pudemos ver como Locke e Fénelon influenciaram tanto Rousseau
quanto Madame d’Épinay ao escreverem seus tratados pedagógicos. A partir disso
podemos, no capítulo seguinte, partir para a análise das fontes e comparar as diferentes
propostas pensadas para educar as mulheres.
68
69
Ibidem.p 99-100
BADINTER, E. O mito do amor materno.Op.Cit.p.97
3. O SABER FEMININO
O objetivo deste último capítulo é analisar as duas fontes primárias para
compará-las a fim de compreendermos as idéias sobre educação para as mulheres no
século XVIII. A partir das fontes, percebemos que à mulher foi atribuída a
responsabilidade de educadora de seus filhos, mas com significados e intensidades
diferentes. No caso de Rousseau, a mãe deveria ser educada para que pudesse cuidar
das crianças nos primeiros anos. Madame d’Épinay é o oposto pois para ela a mãe
poderia educar os filhos em qualquer momento que fosse. São essas diferenças e
também semelhanças que tratamos neste capítulo.
38
3.1- MADAME
D’ÉPINAY:MÃE, AVÓ E PRECEPTORA, UMA RIVAL
SEGUIDORA DE ROUSSEAU.
Após tratarmos do lugar das mulheres na sociedade francesa do século XVIII,
bem como refletir acerca do papel da mulher escritora podemos então falar de Louise
d’Esclavelles, mais conhecida como Madame d’Épinay. Louise foi uma mulher
escritora que possuiu um salão nos moldes de sua época e que foi submetida a várias
críticas por tudo que fez no campo literário, assim como outras mulheres do mesmo
período. Ela tentou tomar para si o papel de mãe no momento em que ainda era
incomum para as mulheres fazê-lo. Tentou também se dedicar pessoalmente à
educação de seus filhos.
Poder-se-ia dizer que Madame d’Épinay estava um pouco à frente das idéias de
seu tempo, mas não se pode negar que foi uma mulher notável e que de alguma forma
inspirou mudanças no processo educacional, principalmente das mulheres.
Após anos de uma péssima educação que lhe fora fornecida no convento,
Louise retornou à casa de sua tia onde acabou estreitando relações com seu primo La
Live d’Épinay, que veio a se tornar seu marido. Reflexo de sua educação, Louise
buscou ao máximo ser a esposa ideal para seu marido, dedicou-se ao seu casamento e
tentou fazer seu esposo feliz. O que ela não sabia era que ambos possuíam visões
diferentes de casamento,
Através da influência de sua mãe, Louise acreditava no ideal cristão de
fidelidade conjugal e no novo e envolvente ideal burguês de domesticidade
(...) Seu marido, por outro lado, pertencia a geração dos financistas da alta
burguesia (…) ele havia adotado a concepção de casamento vigente na
nobreza, a qual aceitava e até esperava a infidelidade por parte de ambos os
cônjuges.70
Assim, seu casamento foi sua primeira frustração, mas mesmo assim
engravidou o que resultou numa felicidade imensa. Nesse momento decidiu que
tomaria para si os cuidados com o seu bebê. Esse ato a fez perceber qual era o seu
70
TROUILLE, Mary. La Femme Mal Mariée: Mme d’Epinay’s challenge to Julie and Emile “Trough her
mother’s influence, Louise fervently believed in the Christian ideal of conjugal fidelity and the newly evolving
bourgeois ideal of domesticity (…). Her husband, on the other hand, belonged to the generation of financers of
the haute bourgeoisie (…) he had adopted the conception of marriage prevailing among the court nobility, who
accepted and even expected infidelity on the part of both spouses.” N.T. – Tradução Livre
39
lugar, pois tanto sua mãe quanto seu marido foram contra essa idéia, uma vez que
pertencia à alta classe e portanto não seria bem aceito a uma mulher de sua posição
dedicar-se aos filhos.
(...) percebe-se que não cabe à futura mãe decidir, mas ao marido. Só ele
sabe o que é bom para a família. Ou, sobretudo, para ele. Neste assunto que
concerne à mãe e à criança, o marido se insinua entre os dois e decide em
função de seus interesses de homem. 71
Seu filho Louis-Joseph logo que nasceu, foi confiado a uma ama-de-leite no
campo, de onde só retornou aos braços de sua mãe nove meses depois. Madame
d’Épinay teve ainda mais três filhos; uma menina, Suzanne-Thérese, que faleceu antes
de completar dois anos de idade e dois filhos adulterinos com seu amante, Francueil,
Angélique e Monsenhor de La Blanc de Belieu. A respeito deste último pouco se sabe.
Seu filho mais velho só lhe trouxe problemas e infelicidade, enquanto que sua
filha Angélique lhe proporcionou anos de alegria. Foi através dela que d’Épinay
exercitou sua função de mãe e pedagoga, mas devido ao destino não pôde concluir sua
obra dedicando-se a esta tarefa posteriormente com a filha de Angélique, Émilie. Foi à
sua educação que ela se dedicou e foi através dos diálogos com sua neta que escreveu
“Les Conversations d’Emilie”.
É a respeito dessa obra que falaremos a seguir, pois é a partir dela que
realizaremos a comparação com a obra de Rousseau, o livro “Emilio ou Da Educação”
que foi publicado no ano de 1762 e demonstra as maneiras como o preceptor,
Rousseau, pode educar um menino, Emílio72. Ao longo do tratado, conforme Emilio se
desenvolve, vai sendo educado de acordo com os princípios de Rousseau. Toda a sua
educação está pautada na natureza onde a criança deveria ser criada livremente sob os
cuidados de um preceptor.
A educação proposta por Rousseau visava o afastamento da civilização
conforme ela se constituiu historicamente e de seus males sociais, além do
desenvolvimento das capacidades naturais da criança. No que se refere à educação das
71
BADINTER, Elisabeth, Emilie, Emilie.Op.Cit. p.112
Devemos ressaltar que os personagens são fictícios, frutos da imaginação de Rousseau, não há registros da
existência nem de Emilio e nem de Sophie.
72
40
mulheres ele defendeu a subordinação da mulher ao homem e o personagem que
representa tal papel é Sophie, que teve sua educação voltada para ser uma boa
companheira para Emílio.
Por outro lado “Les Conversations d’Emilie”, foi publicado no ano de 1776 e
pensado de uma forma que garantisse uma melhor educação para as mulheres. O
tratado está proposto na forma dialógica, composto por uma série de conversações
entre mãe e filha, que na realidade eram avó, Madame d’Epinay, e neta, Emilie.
Também nessa obra podemos perceber o desenvolvimento da criança. Conforme o
tempo passa, Emilie torna-se mais instruída. Foi através dos diálogos diários com sua
neta que Madame d’Epinay demonstrou a possibilidade do saber feminino.
Ambos os tratados são propostas pedagógicas que buscavam a formação do
cidadão a partir da infância, ou seja, educar as crianças para que essas viessem a ser
bons cidadãos para o Estado. Assim como Locke, Madame d’Épinay e Rousseau
também acreditavam numa educação que respeitasse as idades das crianças, ou seja,
ensinar à criança apenas aquilo que ela fosse capaz de assimilar, tanto o aluno de
Rousseau, Emilio quanto a aluna de Madame d’Épinay, Emilie, tiveram sua educação
planejada de maneira a respeitar suas capacidades intelectuais.
Devemos agora explicar de que maneira as duas fontes se constituem. Rousseau
em seu livro “Emílio ou Da Educação” apresenta a forma de educar um homem, para
isso ele se utiliza do personagem Emílio, um ser extremamente passivo, que
corresponde a todas as expectativas de seu preceptor, que não tem atitude diante dos
ensinamentos e que acata todas as decisões do mestre.
Desde pequeno Emílio foi enviado por seus pais para ter sua educação guiada
por um preceptor, no seu caso o escolhido foi Rousseau, que guiou os passos de seu
aluno até quando este se casou, assim, os quatro primeiros livros do “Emílio ou Da
Educação” foram voltados para a formação física e moral do personagem principal.
Emílio foi um aluno exemplar que seguiu todos os ensinamentos que lhe foram
dados, o tempo todo ele foi dominado por Rousseau, demonstrando ser um aluno
extremamente tranqüilo. Emilie, a aluna de Madame d’Épinay e também sua neta, é
uma criança ativa, que exibe seus descontentamentos e questionamentos a todo
instante. Pelo texto se apresentar na forma dialógica percebemos o quão perspicaz é
41
Emilie, pois tudo que sua avó lhe ensina não fica imune aos seus questionamentos,
demonstrando assim o conhecimento adquirido por ambas.
O diálogo como afirma Melinda Caron73 possibilita o retorno dos interlocutores,
permite incluir conhecimento a partir da relação que se estabelece entre as pessoas que
estão dialogando. O diálogo era também a forma como se constituíam as conversações
nos salões iluministas, permitindo a participação de todos e o debate de idéias, o que
dava a possibilidade de enriquecimento para os interlocutores. É exatamente isso que
ocorre na obra de Madame d’Épinay, uma troca de conhecimentos entre mãe e filha,
pois a mãe também acaba adquirindo experiência, e a interlocução com sua filha lhe
permite conhecer o outro a quem se está ensinando.
A forma de apresentação dos textos indica uma grande diferença entre as
propostas, Rousseau apresenta alguns raros momentos de diálogo com o próprio leitor,
que permite a ele que tome parte do texto. É como se o autor chamasse a atenção do
leitor em alguns momentos e em outros ele utilizasse esse “diálogo” para se justificar
de algo.
A educação tanto de Emílio quanto de Sophie, personagem feminina do livro é
uma imposição, pois é Rousseau quem manipula os acontecimentos; é o preceptor
quem cria os fatos e o aluno acaba correspondendo.
É por esses e outros meios semelhantes que, durante o pouco tempo que
estive com ele, consegui fazer com que fizesse tudo o que eu queria, sem
lhe ordenar nada, sem lhe proibir nada, sem sermões, sem exortações, sem
aborrecê-lo com aulas inúteis.74
Ao contrário, Madame d’Épinay apresenta seus ensinamentos para Emilie
através de uma conversa e que conforme surgem dúvidas Emilie questiona a sua mãe
que deve respondê-la. Em alguns questionamentos a mãe percebe que a criança pode
responder suas próprias dúvidas. Madame d’Épinay devolve a questão para que a
criança reflita e seja capaz de responder por si própria. Assim ela incentiva a reflexão e
demonstra a capacidade que a criança tem de sanar suas próprias dúvidas.
73
CARON, Melinda. Conversations intime e pédagogie dans Les Conversations d’Emilie de Louise
d’Épinay. p.86
74
ROUSSEAU. Op.Cit. p.147
42
Mãe – Mas o que é o mundo?
Emilie – Mas, mamãe, é tudo isso. É Paris, é Bologne é Sant-Cloud. Assim
tudo.
Mãe – Assim tudo? Nesse caso esse mundo não é muito vasto. Seus quatro
elementos devem ir de Saint-Cloud a Bologne? E como é isto?
Emilie – Ah, eu não sei.
Mãe – Bom, nossa ciência está um pouco distante. Vamos voltar ao nosso
caminho. Veja o que está no mundo que você conhece. De que ele é
composto? O que é que você vê?
Emilie – Os campos, as casas, os rios, os homens, os animais, (...)75
Podemos perceber que Emilie num primeiro momento simplifica a resposta
como toda criança, mas quando instigada acaba demonstrando que possui
conhecimento para responder a pergunta feita por sua mãe.
Outra questão de fundamental importância é o fato de Madame d’Épinay trazer
suas próprias experiências como mãe e educadora
(...), d’Epinay sublinha o fato de que sua aproximação com a educação foi a
partir da sua experiência diária como mãe e educadora de uma criança real,
o que a permitiu unir teoria e prática e trazer seus métodos e suas metas
para o mundo real. A própria experiência de d’Epinay como mãe e avó a fez
desconfiar de tratados pedagógicos escritos por homens como Rousseau que
nunca criaram um filho.76
Esse é o ponto que mais os diferencia, pois Madame d’Épinay foi mãe e avó o
que a permitiu sentir e viver coisas que Rousseau jamais imaginou, já que este teve
cinco filhos e não criou nenhum deles. A criação de um filho propicia responsabilidade
e experiência. A proximidade e os sentimentos são maiores se compararmos a uma
criança cuja educação não tem qualquer relação afetiva. Este é o triunfo de Madame
d’Épinay, pois ela imprime em seu texto a experiência de sua vida e como mãe. Ela
75
EPINAY. Madame. Les Conversations d’Emilie.p.91 “Mère – Mais qu’est ce que c’est Le monde?
Emilie – Mais, Maman, c’est tout cela. C’est Paris, c’est le bois de Boulogne, c’est Sant-Cloud. Voilà tout.
Mère – Voilà tout? En ce cas ce monde n’est pas trop vaste. Vos quatre élémens font donc aller Saint-Cloud et le
bois de Bologne? Et comment cela?
Emilie – Ah, je ne sais pas.
Mère – Bom, voilà deja notre science um peu défaut. Tâchons de nous remettre sur la voie. Voyons ce qu’il y a
dans le monde que vous connaissez. De quoi est-il composé? Qu’est-ce que vous y voyez?
Emilie – Mais des champs, des maisons, des rivieres, des hommes, des animaux. (...).” N.T. – Tradução Livre
76
TROUILLE, Mary.op.cit. “d’Epinay underlines the fact that her own approach to education was drawn from
her daily experience as the mother and educator of real children , wich enable her to join theory with practice and
to gear her methods and goals to the real world. D’Epinay’s own experience as a mother and grandmother made
her wary of pedagogical treatises written by men like Rousseau who never raised children of their own.” N.T. –
Tradução Livre
43
não molda uma criança perfeita e nem constrói apenas teorias a respeito, ela articula
teoria aquilo que aprendeu na prática com aquilo que viveu.
Contrariamente as afirmações de Rousseau no livro cinco do Emilio,
d’Epinay afirma a igualdade intelectual das mulheres e o seu direito a uma
educação igual. Ela insiste que o desenvolvimento intelectual das mulheres
é essencial para sua felicidade e bem-estar. Contrastando com a cega
submissão a autoridade na Sophie de Rousseau, d’Epinay encoraja sua neta
a pensar por si mesma.77
É claro que as obras não são completamente opostas em todos os assuntos. Em
alguns pontos podemos notar a semelhança entre elas. É onde percebemos a influência
de Rousseau na obra de Madame d’Épinay. Sabe-se que ambos conviveram em
determinados momentos de suas vidas e chegaram a estabelecer amizade, bem como
trocar idéias.
Quaisquer que tenham sido os segredos e as conseqüências do caso do
Ermitage, é inegável que Madame d’Épinay acreditava prestar serviço a
Rousseau ao lhe emprestar aquela pequena casa. Já não suportando Paris e
já não sabendo como viver em Genebra, Rousseau se sentia perdido e
desamparado. Madame d’Épinay pensava ajudá-lo a sair deste dilema
propondo o Ermitage, (...). Naquela época, Rousseau, que ela conhecia
havia quase dez anos, não poupava declarações de amizade.(...) Os
equívocos e as mentiras recíprocas, que porão fim a esta amizade, deram
lugar a uma das mais célebres polêmicas da história da literatura. É preciso
não esquecer, no entanto, que antes de trocar estes gritos de raiva por
interpostas confissões, Madame d’Épinay amou muito Rousseau e tudo fez
para provar-lhe seu sentimento. Se é verdade que ela soube tirar proveito
desta relação de amizade, é certo que ele nunca lhe dedicou sentimentos tão
ternos quanto os que nutria por ele.78
Devido a essa amizade, Madame d’Épinay pode aproveitar algumas das idéias
pedagógicas de Rousseau. A mais fundamental delas é a idéia do retorno a natureza,
pois ambos incentivaram a educação de seus alunos conforme as leis da natureza. A
criança deveria ser educada ao ar livre, correr e brincar com liberdade. Defendiam a
saúde da criança, que não deveria mais ser enfaixada e presa, pelo contrário deveria
ficar mais livre em seus movimentos e utilizar roupas adequadas para isso.
77
Ibidem. “Contrary to Rousseau’s assertions in Book V of Emile, d’Epinay affirms the intellectual equality of
women and their right to an equal education. She insists that the intellectual development of women is essential
to their happiness and well-being. In contrast to the blind submission to authority instilled in Rousseau’s Sophie,
d’Épinay encourages her granddaughter to think for herself.” N.T. – Tradução Livre
78
BADINTER, Elisabeth. Émilie, Émilie.Op.cit.p.90-91
44
Em vez de deixá-lo estragar-se no ar corrompido de um quarto, que seja
levado diariamente até o prado. Ali, que corra, se divirta, caia cem vezes
por dia, tanto melhor, aprenderá mais cedo a se levantar. O bem-estar da
liberdade compensa muitos machucados. Meu aluno muitas vezes terá
contusões; em compensação estará alegre.79
Madame d’Épinay também defende que sua Émilie faça exercícios físicos e se
fortaleça.
Mãe – Caminhando habitualmente, você adquire força para fazer cada dia
um pouco mais de seu caminho, e você pode então fazer grandes
caminhadas sem se cansar, porque você fortifica seu corpo com um
exercício contínuo.80
Um aluno saudável é um aluno que apreende melhor as lições e torna-se um
cidadão fortalecido para cumprir suas tarefas futuras, quaisquer que sejam elas.
Outra semelhança entre os autores é a valorização da figura materna, pois
atribuíram às mães o papel de educadora de seus filhos. Devemos ressaltar que ambos
pensam esta questão diferentemente, uma vez que Rousseau pensou na educação moral
através da mãe apenas nos primeiros anos de vida da criança. Assim que cessavam os
cuidados necessários a mãe se afastava e dava lugar ao preceptor e à governanta.
É a ti que me dirijo, terna e previdente mãe (a primeira educação é mais
importante e cabe incontestavelmente às mulheres) , que soubeste afastar-te
da estrada principal e proteger o arbusto nascente do choque das opiniões
humanas! Cultiva, rega a jovem planta antes que ela morra; um dia, seus
frutos serão tuas delícias. Forma desde cedo um cercado ao redor da alma
de teu filho; outra pessoa pode marcar o seu traçado, mas apenas tu podes
colocar a cerca.81
Assim, Rousseau atribui um papel importante às mães a partir do qual Madame
d’Épinay aproveitou para fortalecer sua pedagogia materna.
Mas Madame d’Épinay é a primeira mãe de sua condição a apresentar as
duas características da nova maternidade. Mãe, ela cuida pessoalmente de
seus filhos; pedagoga,definiu o conteúdo de sua educação e refletiu sobre
seus fundamentos e objetivos.82
79
ROUSSEAU, Jean-Jacques. Op.cit.p.71
ÉPINAY,Op.cit.p.117 “Mère – C’est qu’em vous promenant habituèlement, vous acquiérez la force de faire
tous les jours um peu plus de chemin, et vous parvenez enfin à faire de tres grandes courses sans vous fatiguer,
parce que vous fortifiez votre corps par um exercice continuel.” N.T. – Tradução Livre
81
ROUSSEAU.Op.Cit.p.07-08
82
BADINTER, Elisabeth.Emilie, Emilie. Op.cit.p.196
80
45
Devido a esta responsabilidade as mulheres puderam ambicionar melhor
opinião da sociedade, pois delas dependia os primeiros cuidados segundo Rousseau,
ou então os cuidados com toda a educação de sua prole. A partir de tal entendimento
podemos, então, analisar as duas propostas pretendidas pelos autores para a educação
das mulheres.
46
3.2 – EMILIE A ANTI-SOPHIE
Não que Madame d’Épinay nunca tenha tido a audácia de pensar que se igualaria ao
seu Mestre em pedagogia, o pai do Émile. Mas do que está segura no momento é
que sua Émilie será infinitivamente superior à Sophie de Rousseau.Pouco importam
as maledicências de Jean-Jacques, se madame d’Épinay venceu sua empreitada:
oferecer a suas descendentes e as suas contemporâneas uma pedagogia das
mulheres que não as condene mais à submissão, mas lhes assegure a autonomia.
Que os Emílios futuros não tenham muitas ilusões. As Sophies que sonham ter
como esposas correm o risco de ser, na realidade, Émilies. É a mais doce vingança
de Madame d’Épinay.
83
Elisabeth Badinter
É assim que entendemos o papel fundamental da educação das mulheres, ir
além da figura da esposa ideal e torná-las agentes de mudança. Esse foi o triunfo de
Madame d’Épinay ao nos mostrar a possibilidade das mulheres adquirirem o “saber
pelo saber”. Abriu-nos portas para que as mulheres das gerações posteriores pudessem
atingir a felicidade através da educação.
Em suas Conversações articula as contradições de Rousseau, pois para Madame
d’Épinay os obstáculos impostos à educação das mulheres provinham de diferenças
sociais e principalmente de diferenças educacionais. Os homens não permitiam que as
mulheres demonstrassem suas capacidades e foi a partir dessa compreensão que
d’Épinay se colocou contra seu mestre.
Diferentemente de Rousseau, Madame d’Épinay propôs uma outra forma de
educar as mulheres, primeiramente através do diálogo e em seguida ensinando-lhes
tudo que teriam direito a saber. Devemos ressaltar que se a educação de Emilie não é
completa, é devido à má instrução recebida por sua avó, que buscou de todas as
maneiras compreender aquilo que acontecia ao seu redor para que então pudesse
educar sua filha.
A educação proposta por Rousseau para as mulheres é mínima, pois, para ele, a
função principal delas era como companheira do homem, consolo e alívio de seus
males, enquanto ele deveria ser o chefe provedor da família.84 Ao contrário das idéias
de Louise d’Épinay, pois para ela todos estão ao lado uns dos outros e toda criatura
83
84
Ibidem.p.42-43
ROUSSEAU.Op.Cit.p.652
47
humana merece a benevolência.85 Não distingue raça e nem sexo, pois todos devem ser
tratados igualmente, é isso que ela ensina a Emilie - o amor ao próximo. Ela ressalta
que cada pessoa ocupa uma posição diferente, mas que todos devem ser respeitados.
Ela se iguala com o pai de Emilie no comando da casa “Seu pai e eu. Nós somos os
chefes da casa; eu sou sua mãe, e aqui tenho pessoas que seguem minhas ordens.” 86
Um ponto fundamental para Madame d’Épinay é que para ela a fraqueza física
e intelectual das mulheres não era determinada pela natureza mas sim pela sociedade
que excluiu as mulheres das esferas do conhecimento. Não foi a única dizer que uma
má educação enfraquecia a mulher, mas ao invés de permanecer nesta constatação ela
partiu para ação e através da sua obra pedagógica chamou a atenção para o fato de que
se as mulheres tivessem chances de serem educadas poderiam mudar muitas coisas ao
seu redor, a começar por si próprias.
“Les Conversations d’Emilie”, segundo Mary Trouille foi uma forma
encontrada por Madame d’Épinay de não somente se reconciliar com seus sentimento
de culpa como mãe, com as suas ambições como escritora e pedagoga, mas também, e
acima de tudo, foi uma resposta ao desafio do Emílio.87 Por essa razão é que
escolhemos essas duas obras para dialogar entre si, pela proximidade temporal, 1762 e
1776, e pelo fato de ambos os autores terem se conhecido e trocado afetos e desafetos
publicamente.
O nome escolhido por Madame d’Épinay para sua neta é apenas um indicativo
da proximidade das obras. A questão é que ambos trataram da educação, pensaram
maneiras de educar, mas o fizeram para indivíduos diferentes, de uma constituição de
gênero diferente, mas, segundo d’Épinay, não eram diferentes no intelecto, pois Emilie
não deixava nada a desejar em relação a Emilio.
A educação de Emilie vai quase em sentido oposto ao de Sophie,
Emilie foi ensinada a ler e escrever antes dos cinco anos de idade, com dez
anos, já havia aprendido sobre uma gama enorme de sujeitos, seguindo um
plano ambicioso de educação para o período. Entretanto, a verdadeira
originalidade de Les Conversations d’Emilie recai menos no método que o
estudo propõe (que de fato lembra mais a educação iluminista dedicada aos
85
ÉPINAY.Op.Cit.p.146
Idem. “Votre pere et moi. Nous sommes les chefs de la maison; je suis votre mere, et j’en tiens lieu à tous ceux
qui sont sous mes orders.” N.T – Tradução livre
87
TROUILLE, Mary.Op.Cit.
86
48
meninos da época) do que nas metas distintamente feminocêntricas que
desejou ter alcançado, acima de tudo na auto-confiança e na autosuficiência destinada às mulheres.88
Rousseau diferencia homens e mulheres para reafirmar porque não devem
possuir a mesma educação “Um deve ser ativo e forte, o outro passivo e fraco; é
preciso necessariamente que um queira e possa; basta que o outro resista pouco.”89 E
mais adiante continua “Uma vez que se demonstrou que o homem e a mulher não são
nem devem ser constituídos da mesma maneira, nem quanto ao caráter, nem quanto ao
temperamento, segue-se que não devem ter a mesma educação”90 Madame d’Epinay
procurou educar Emilie para que fosse livre, mas que soubesse respeitar as
convenções, pois não se pode negar o fato de que as mulheres vivem em sociedade e
para isso devem seguir algumas regras,
(…), d’Epinay procura dar a Emilie uma educação que equilibre o
sentimento de liberdade interior e seu juízo crítico respeitando os papéis
sociais e as convenções. Seu objetivo principal é assegurar que sua neta seja
feliz e adaptada, ela também ensina habilidades sociais e cuidados com a
casa.91
Na obra podemos constatar que realmente Emilie aprendeu algumas dessas
funções, o que demonstra que ela não busca somente aprendizado intelectual, mas
também saber tomar as devidas providências em relação aos cuidados com sua
residência “Emilie – Eu já aprendi a costurar, a alinhar tecidos, a cuidar dos meus
afazeres, trabalhar um pouco com bordado, a fazer meus ajustes, aqueles na minha
boneca.”92
88
Ibidem. “Emilie was taught to read and write before the age of five and, by the age of ten, had been introduced
to a broad range of subjects, following a plan of studies quite ambitious for the period. However, the true
originality of Les Conversations d’Emilie lies less in the plan or method of studies it proposed (which in fact
resembled the more enlightened educations given to boys of the period) than in the distinctly feminocentric goals
it sought to achieve and, above all, in the self-confidence and self-sufficiency it aimed to foster in women.” N.T.
– Tradução Livre
89
ROUSSEAU.Op.Cit.p.516
90
Ibidem.p.524
91
TROUILLE, Mary.Op.Cit. “d’Epinay seeks to give Emilie an education that balances this sense of inner
freedom and critical judgment with respect for social roles and conventions. Since her primary goal is to assure
that her granddaughter is happy and well adjusted, she also teaches her basic social and housekeeping skills.”
N.T. – Tradução Livre
92
ÉPINAY.Op.Cit.p.250 Emilie “J’ai déja appris à coudre, à racomoder mes mouchoirs, à avoir soin de mes
nipes, à travailler um peu de broderie, à faire aussi um peu mes ajustemens et ceux de ma poupée.” N.T. –
Tradução Livre
49
A educação de Emilie, muito diferente da de Sophie, não fica apenas nesse
terreno dos cuidados com a casa, mas vai além. Emilie tem um aprendizado mais
completo, pois sabe a respeito da biologia, como observar as estações do ano, sabe
também ler algumas fábulas e contá-las a sua avó, e mais do que isso foi educada
moralmente. A ela foram ensinados princípios morais, como ter cuidado com a
curiosidade, pois não se deve querer saber a respeito da vida alheia, uma vez que não
cabe a uma dama ficar se dando ao desfrute de comentar a respeito do que acontece
com os outros.
Mãe – Então o nosso pensamento é nossa propriedade mais secreta, a mais
íntima. Ler um pedaço de papel, como você diz, que não nos pertence, que
contém pensamentos que não se dirigem a vós, é cometer algo que pode ser
considerado uma traição, uma infâmia, enfim é o que há de mais vil e
desonroso no mundo.93
A educação de Emilie é tudo aquilo que Épinay sonhou para si mesma e para
seus próprios filhos
Mãe – Digo-lhe a verdade. Não posso permitir-me a fixar os limites do
conhecimento para as pessoas do nosso sexo; Talvez não devesse sequer ter
uma regra geral a este respeito, mas no tempo da minha infância não se
costumava ensinar as meninas. Ensinamos-lhes mais ou menos os deveres
de religião, para que pudessem fazer a primeira comunhão. Dávamos um
bom mestre para lhes ensinar dançar, um mestre para ensinar música, e um
péssimo mestre de desenho. Com isso um pouco de história e geografia,
mas sem muito interesse; Não precisava guardar nomes e datas, que nos
esquecíamos facilmente. Era a isso que se reduzia a educação sonhada.
Sobre tudo não chamávamos jamais de razão; e quanto à ciência, nós a
achávamos muito deslocada para pessoas do nosso sexo e evitávamos
cuidadosamente qualquer tipo de instrução.
Emilie – E como você fez mamãe? Porque afinal você sabe quase tudo, e de
qualquer coisa de que a gente fale, eu nunca a vejo desconcertada, nós a
encontramos sempre em casa, como diz o Senhor de Perseuil.
Mãe – É que os temas da conversa quotidiana não têm uma grande
amplitude de conhecimentos, a razão, a reflexão, a experiência, a utilização
do mundo e a instrução são mais que suficiente para isso. Quanto ao pouco
que sei que se reduz a pouca coisa, é para você, Emilie, que eu tenho a
obrigação de saber.94
93
Ibidem.p.211 “Ainsi notre pensée est notre proprieté la plus sacrée, la plus intime. Et lire un chiffon de papier,
comme vous disiez, qui nous apartient pas, qui renferme des pensées qui ne s’adressent pas à nous, c’est faire
une chose qui peut avoir toute La difformité d’une trahison, d’une bassesse, d’une infamie; enfin de ce qu’il y a
plus vil et de plus désohonorant au monde.” N.T. – Tradução Livre
94
Ibidem.p.239 “Mère – Je vous dis La vérité. Je ne me permets point de fixer lês bornes du savoir aux persones
de notre sexe; peut-être ne faut-il pás même une regle générale à cet égard; mais du temps de mon enfance ce
50
Entendendo como uma obrigação das mães se educarem para que seus filhos possam
ser felizes com a educação que receberam, Madame d’Epinay chama a atenção para
mais uma função das mães
Mãe – Eu acredito que na França uma mãe tem a obrigação de se formar,
para poder estar à altura de cuidar da educação de seus filhos, que ela terá
que esperar menos por ajuda das pessoas com quem ela deveria partilhar
esses cuidados.95
A posição de Rousseau em relação à educação das mulheres é diferente, pois
desejava que as mulheres estivessem sob o domínio do intelecto masculino
Assim, toda educação das mulheres deve ser relativa aos homens. Agradarlhes, ser-lhes útil, fazer-se amar e honrar por eles, educá-los quando jovens,
cuidar deles quando grandes, aconselhá-los, consolá-los, tornar suas vidas
agradáveis e doces: eis os deveres da mulher em todos os tempos e o que
lhes deve ser ensinado desde a infância. 96
Para o mestre de Madame d’Epinay as mulheres devem se preocupar acima de
tudo com os cuidados da casa, primeiro seu marido e seus filhos, ou seja, em primeiro
lugar a felicidade do homem “A obediência e a fidelidade que deve ao marido, a
ternura e as atenções que deve aos filhos são conseqüências tão naturais e tão visíveis
de sua condição, (...)”97
Se as mulheres podem estudar devem fazê-lo para melhor atender os desejos
dos homens, devem acatar acima de tudo a opinião masculina à qual estão submetidas
n’était pás l’usage de rien appendre aux filles. On leur enseignait lês devoirs de religion tant bien que mal, pour
lês mettre em état de faire leur premiere communion. On leur donnait um fort bom maître à danser, um fort
mauivais maître de musique, et tout au plus um medíocre maître de dessin. Avec cela um peu d’histoire et de
géographie, mais sans aucun attrait; Il ne s’agissait que de retenir des noms et des dates, qu’on oubliat dês que
Le maître était reforme. Voilà à quoi se réduidaient lês éducations soignées. Sur-tout on ne nous parlait jamais
raison; e quant à La science , on La trouvait très-deplacée dans les persones de notre sexe, et l’on évitait avec
soin toute espece d’instruction
Emilie – Comment aves-vous donc fait, Maman? Car enfin vous savez-à-peu-près tout, et de quelque chose que
l’on parle, je ne vous vois jamais embarassée, on vous trouve toujors au logis, comme dit Monsieur de Perseuil.
Mère – C’est que les sujets de La conversation journaliere n’exigent pás une grande étendue de connaissances;
La raison, La réflexion, l’expérience, l’usage Du monde ET l’instruction La plus légere suffisent pour cela.
Quanta u peu que je puis savoir ET qui se réduit à très-peu de chose, c’est à vous, Emilie, que j’en ai
l’obligation.” N.T – Tradução Livre
95
Ibidem.p.188 “Mére – Je crois qu’en France une mere a une obligation d’autant plus étroite de se former ellemême, pour être en état de veiller sur l’éducation de ses enfans, qu’elle a moins de scours à atendre des persones
avec qui elle voudrait partager ce soin.” N.T – Tradução Livre
96
ROUSSEAU.Op.Cit.p.527
97
Ibidem.p558
51
(...): é preciso, portanto, que ela estude a fundo o espírito do homem, não,
por abstração, o espírito do homem em geral, mas sim o espírito dos
homens a quem está sujeita, quer pelas leis, quer pela opinião.98
Sophie é a encarnação da mulher ideal para Rousseau, pois além de ser
imaginária, ela corresponde a todos os desejos de seu criador. Ela é um ser próprio de
seu sexo, sabe tudo que lhe é necessário saber. Assim como Emílio não questiona
qualquer decisão tomada por outro a seu respeito e é extremamente polida. “O que
Sophie conhece melhor e que a fizeram aprender com mais esmero são os trabalhos de
seu sexo, (...), tais como cortar e coser seus vestidos.”99
Rousseau expressa as idéias sobre o casamento na fala do pai de Sophie. Para
ele
A felicidade de uma moça de bem é proporcionar a felicidade de um
homem de bem; é preciso, então, pensar em te casar; é preciso pensar cedo
nisso, pois o destino da vida depende do casamento, e nunca temos muito
tempo para pensar nisso.100
Rousseau defendeu a educação feminina voltada para os cuidados com o
marido, pois além de acreditar que “é da ordem da natureza que a mulher obedeça ao
homem.”
101
Ele primava pela educação masculina, e para isso era de extrema
necessidade o mínimo de educação para as mulheres, pois “De resto, como uma
mulher que não tenha nenhum hábito de reflexão educará seus filhos? Como discernirá
o que lhes convém?”102. Mas em relação à educação intelectual ele foi profundamente
contrário, pois não concordava em que as mulheres freqüentassem os salões e
demonstrassem o seu saber
Mas eu preferiria ainda cem vezes uma moça simples e educada rudemente
a uma moça erudita e intelectual que viesse estabelecer em minha casa um
tribunal de literatura de que se faria presidenta. Uma mulher intelectual é o
flagelo de seu marido, de seus filhos, de seus amigos, de seus empregados,
de todo mundo. Da altura sublime de seu belo gênio, ela desdenha todos os
deveres de mulher e sempre começa por se fazer homem, à maneira da
senhorita de l’Enclos. De fora, ela é sempre ridícula e criticada com muita
justiça, porque não se pode deixar de ser ridículo quando se sai de sua
condição e não se foi feito para aquela que se quer adquirir.103
98
Ibidem.p.566
Ibidem.p.577-578
100
Ibidem.p.585-586
101
Ibidem p598
102
Ibidem.p.600
103
Idem.p.600
99
52
Para chamar a atenção das mulheres ele cobrava dos esposos e dava exemplos
de como era muito melhor ter uma mulher envolvida com os cuidados da casa do que
ter uma mulher ridícula que se preocupava apenas com o conhecimento
Leitores, remeto-me a vós, tende boa-fé; o que vos dá melhor opinião sobre
uma mulher ao entrar em seu quarto, o que vos faz abordá-la com mais
respeito, vê-la ocupada com os trabalhos femininos, com os afazeres do lar,
cercada das roupas dos filhos, ou encontrá-la escrevendo versos na
penteadeira, rodeada de livros de todos os tipos e de bilhetinhos pintados de
todas as cores? Toda moça letrada permanecerá solteira a vida toda quando
só houver homens sensatos na terra.104
Para finalizar ele reforça sua opinião e exemplifica através de Sophie, que é um
exemplo para seu sexo e que ao final do livro terá um “final maravilhoso” casando-se
com o homem que ama.
A arte de pensar não é alheia às mulheres, mas elas só devem tocar de leve
nas ciências de raciocínio. Sophie compreende tudo, mas não retém muita
coisa. Seus maiores progressos acontecem na moral e nas coisas do gosto;
quanto à física, só retém alguma idéia das leis gerais e do sistema do
mundo.105
Sobre à educação citamos Michèle Crampe-Casnabet que disse que “A
instrução possui uma finalidade política clara: a ignorância sempre favoreceu a tirania,
o único meio para assegurar a liberdade e a igualdade no povo é dar-lhes instrução.”106
Foi isso que Madame d’Épinay compreendeu brilhantemente ao lutar pela causa da
educação das mulheres, para que essas não ficassem submetidas aos mandos
masculinos.
Mãe- Quando você cultiva sua razão, você abre tantas novas fontes de
prazer e satisfação que você está prestes a embelezar a sua vida, tantos
recursos contra o tédio, tanto consolo nas adversidades, quando você
adquire talentos e conhecimentos. Esses são os bens que nenhuma pessoa
pode retirar de você, que te livra da dependência de outros, porque você não
precisa se preocupar e apenas ser feliz; e coloca os outros sob sua
dependência: porque quanto mais talentos e luzes nós temos, mais
necessárias nos tornamos para a sociedade. Sem contar que é o remédio
mais eficaz e mais certo contra a ociosidade, que é o inimigo da felicidade e
da virtude.”107
104
Ibidem.p.601
Ibidem.p.627
106
CRAMPE-CASNABET,Michèle. Op.cit.pp.400
107
ÉPINAY, Madame. Op.cit. p.249 “Losque vous portez vos soins à cultiver votre raison, et l’orner de
connaissances utiles e solides, vous vous ouvrez autant de sources nouvelles de plaisir et de satisfaction; vous
vous préparez autant de moyens d’émbelir votre vie, autant de ressources contre l’ennui, autant de consolations
105
53
Em relação à vida de Emilie, esta se casou em março de 1786 com o conde de
Bueil, e por conseqüência da Revolução de 1789 a França tornou-se insuportável para
viver, assim tiveram que deixar Paris o que fez com que “Emilie assumisse a educação
de seus filhos.”
108
Percebemos o quão importante para sua vida foi a educação que
obteve através de sua avó, pois pôde garantir a seus filhos a educação, dando
continuidade ao trabalho iniciado com ela por Madame d’Épinay.
dans l’adversité, que vous acquérez de talens et de connaissances. Ce sont des biens que persone ne peut vous
enlever, qui vous afranchissent de la dépendance des autres, puisque vous n’en avez pas besoin pour vous
occuper et pour être heurese; qui mettent au contraire les autres dans votre dépendance: car plus on a de talens et
de lumieres, plus on devient utile et nécessaire dans la société. Sans compter que c’est le remede plus efficace et
le plus sûr contre le désoeuvrement, qui est l’ennemi le plus redoubtable du bonheur et de la vertu.” N.T. –
Tradução Livre.
108
Ibidem.p.29. “Ce fut Emilie qui assura l’education de sés enfants.” N.T – Tradução Livre
CONCLUSÃO
O trabalho aqui apresentado buscou através da história das mulheres, resgatar a
memória de Madame d’Épinay e também fazer uma comparação entre as propostas de
educação pensadas para as mulheres por Jean-Jacques Rousseau e Madame d’Épinay.
Ao tratarmos deste tema poderíamos ter analisado outros autores que também
discorreram a respeito da educação das mulheres. Analisamos John Locke e François
Fenelon pelo fato de tanto Rousseau quanto d’Épinay terem referenciado esses autores
em suas obras. Devemos ressaltar que não foram apenas eles que trataram a respeito da
educação, tanto de homens quanto de mulheres, mas é que pela abrangência do
período e pelo motivo pelo qual o trabalho se propôs é que tivemos que fazer algumas
escolhas.
O importante é compreender que as mulheres mesmo sendo dominadas
seguiram em frente e conquistaram seus espaços, sejam na educação, em casa ou na
política. Cada conquista individual da mulher era uma conquista para todas. Tomamos
aqui o exemplo de Madame d’Épinay, que ao lutar por uma educação igualitária não o
fez pensando apenas em si mesma, mas sim pensando na condição das mulheres na
sociedade de sua época. O reflexo pode não ter sido sentido por todos imediatamente à
publicação de sua obra, mas a sua voz não ficou silenciada, e cada escritora que
combatia pela igualdade dos direitos femininos de certa forma homenageava a
memória de Madame d’Epinay.
A sua maior contribuição foi o desejo por igualdade no terreno da educação
feminina e o fato de ter argumentado em favor das mulheres contra um dos maiores
teóricos a respeito da educação, Rousseau.
Assim, buscar o papel da mulher escritora, o lugar das mulheres nos salões nos
revela o quão importante e complexo é o estudo acerca do universo feminino. Na
história, para compreendermos algo é necessário procurar outros fatores que estão
relacionados com aquilo que se investiga, pois os fatos e as circunstâncias nunca são
isolados e transparentes.
Estudarmos a obra de Madame d’Épinay nos levou a compreender o século
XVIII, o Iluminismo, além do mais importante, analisar o papel das mulheres que
55
estavam envolvidas nesse contexto e também o papel da mulher escritora. Todos esses
entendimentos fizeram parte dessa pesquisa para que pudéssemos analisar as propostas
pedagógicas de Rousseau e Madame d’Épinay.
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