fazer - Núcleo estudos de gênero
Transcrição
fazer - Núcleo estudos de gênero
1 UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARANÁ JULIANA L. LOCATELLI M. PINHEIRO MADAME D’ÉPINAY E ROUSSEAU: UM DEBATE FILOSÓFICO SOBRE A EDUCAÇÃO FEMININA. CURITIBA 2009 2 JULIANA L. LOCATELLI M. PINHEIRO MADAME D’ÉPINAY E ROUSSEAU: UM DEBATE FILOSÓFICO SOBRE A EDUCAÇÃO FEMININA. Monografia apresentada à disciplina de Estágio Supervisionado em História como requisito parcial à conclusão do curso de História da Universidade Federal do Paraná. Orientadora: Profa. Dra. Ana Paula Vosne Martins CURITIBA 2009 3 Ao meu pai, Julio, à minha mãe Raquel, ao meu irmão Felipe, ao meu namorado Rafael e à minha cunhada Stephanie. 4 RESUMO Palavras-chave: educação feminina; escrita de mulheres; iluminismo. Esta pesquisa tem como tema a proposta de educação feminina na França do século XVIII. O debate principal recai sobre as propostas pedagógicas de JeanJacques Rousseau, com seu livro “Emílio ou Da Educação” (1762) e Madame d’Épinay em seu tratado “Les Conversations d’Emilie” (1774). A partir do estudo do contexto em que ambos estavam inseridos, o trabalho preocupou-se com a proposição de ambos para a educação das mulheres. Rousseau defendia que as mulheres deveriam ter acesso à educação apenas para serem boas companheiras para os homens, em contraposição Madame d’Épinay propôs igualdade intelectual entre homens e mulheres. Em nossa pesquisa levamos em consideração também o estatuto da escrita produzida por mulheres e o fato de que as mulheres encontraram vários obstáculos para escrever, pois permitir instrução às mulheres significava reconhecer a capacidade feminina e representava a possibilidade de quebrar o domínio patriarcal da escrita. Para pensar a escrita de mulheres no século XVIII foi necessário entender o local que permitia a reflexão literária e que possibilitava essa escrita. Tendo por objetivo principal análise das duas propostas, este trabalho está pautado dentro do debate historiográfico a respeito das mulheres e das relações de gênero 5 SUMÁRIO INTRODUÇÃO...................................................................................................................08 1 A ESCRITA DAS MULHERES...................................................................................11 1.1 O DISCURSO E AS LIMITAÇÕES À ESCRITA DAS MULHERES.........................12 1.2 O ILUMINISMO E A MULHER NO SÉCULO XVIII.................................................18 1.3 PRIMEIRO COMO OUVINTES DEPOIS COMO ESCRITORAS..............................21 2. A EDUCAÇÃO DAS MULHERES...............................................................................24 2.1 A EDUCAÇÃO DAS MULHERES NO SÉCULO XVIII.............................................25 2.2. PROPOSTAS DE EDUCAÇÃO..................................................................................30 3. O SABER FEMININO..................................................................................................37 3.1. MADAME D’ÉPINAY: MÃE, AVÓ E PRECEPTORA, UMA RIVAL SEGUIDORA DE ROUSSEAU...................................................................................................................38 3.2. EMILIE A ANTI-SOPHIE............................................................................................46 CONCLUSÃO....................................................................................................................54 REFERÊNCIAS.................................................................................................................56 INTRODUÇÃO A primeira história que gostaria de contar é a história das mulheres. Hoje em dia ela soa evidente. Uma história “sem as mulheres” parece impossível. Entretanto, isso não existia. Pelo menos não no sentido coletivo do termo [...]. Michelle Perrot1 Debruçar-se sobre a história das mulheres teria sido pouco previsível até algumas décadas atrás, já que as práticas femininas como objeto de análise histórica constituem um campo recente. Assim esta pesquisa se propõe a debater dois tratados de educação buscando diferenciá-los em suas propostas para a instrução das mulheres. Um dos tratados é “Emilio ou Da Educação” de Jean-Jacques Rousseau e o outro é “Les Conversations d’Emilie” de Madame d’Épinay. Ambos viveram como pessoas letradas inseridas numa configuração social que dificultava a inserção da mulher no campo literário ou filosófico. Rousseau teorizou a respeito da educação das mulheres no século XVIII, mas para representá-las ele criou seu modelo de esposa ideal, Sophie. O problema é que ela era fruto de sua imaginação, idealizada, sem falhas e completamente moldada de acordo com o as necessidades do autor. Já a outra proposta de educação opõe-se à Rousseau ao voltar-se completamente para as mulheres e mais importante, ter sido produzida por uma mulher. Quando Madame d’Épinay escreveu não o fez para alguém idealizado, mas sim para sua neta Émilie. “Les Conversations d’Emilie” foi pensado para o enriquecimento cultural a principio de sua neta, mas era um saber que se dedicava a várias áreas que não apenas a doméstica. Devemos entender que as mulheres possuíam acesso ao saber, mas era de maneira incompleta, a educação que lhes era destinada era diferenciada da dos homens, pois as mulheres deveriam saber apenas alguns assuntos. O que devemos ressaltar é o fato de Madame d’Épinay, uma mulher da aristocracia francesa do século XVIII, ter escrito um tratado pedagógico pensando na felicidade das mulheres 1 PERROT, Michelle. Minha história das mulheres. 2007. p.13 9 independentemente dos homens. Madame d’Épinay inovou, pois dedicou-se ao saber feminino sem estar atrelado ao mundo masculino, era o saber pelo saber e foi além ao sugerir a “igualdade intelectual entre os sexos e a importância fundamental dos estudos para a felicidade feminina.”2. Ao privilegiar uma temática relacionada ao universo feminino foi necessário uma aproximação com as teorias sobre as relações de gênero, encontrando em Joan Scott uma referência teórica. A categoria gênero apontada por Scott refere-se à organização social da relação entre os sexos e implica em compreender relacionalmente o feminino e o masculino. O conceito “gênero” começou a ser usado a partir da década de 1970 como uma categoria de análise histórica, não apenas para salientar a diferença entre os sexos, mas como uma maneira de referir-se à organização social das relações entre homens e mulheres. Assim, “gênero” passou a introduzir uma noção relacional no nosso vocabulário analítico tendo como objetivo descobrir a amplitude dos papéis sexuais e do simbolismo sexual nas várias sociedades e épocas, achar qual o seu sentido e como funcionavam para manter a ordem social e para mudá-la. 3 De tal modo, o objeto deste trabalho, a educação das mulheres no século XVIII foi pensada não isoladamente, mas inserida no conjunto das relações sociais para os quais, tanto o homem quanto a mulher, eram peças importantes e complementares da organização familiar e civil. É necessário destacarmos que alguns textos aqui citados se apresentam no original em francês ou em inglês e a tradução das passagens que foram utilizadas no decorrer do trabalho foi feita de maneira livre. Feitas essas considerações é preciso mencionar a estruturação deste trabalho, que visando responder os propósitos anteriormente anunciados, foi construído em três capítulos. O primeiro capítulo aborda a problematização da escrita de mulheres, bem como lugares sociais nos quais estavam inseridas e os obstáculos impostos ao seu desejo intelectual. A França e o século XVIII são as delimitações de espaço e tempo 2 3 BADINTER, Elisabeth. Émilie, Émilie. A ambição feminina no século XVIII. p. 376. SCOTT, Joan. Gênero: uma categoria útil de análise histórica. 10 desse estudo, pois no que concerne à escrita, apenas tiveram a possibilidade de exprimir suas idéias as mulheres provenientes de famílias que pertenceram à alta classe da sociedade. O segundo capítulo é dedicado à educação das mulheres e dos objetivos visados por essa educação. Também neste capítulo apresentaremos outros tratados de educação concernentes tanto ao universo masculino quanto ao feminino, como os de John Locke e de Fénelon escritos em meados do século XVII e de Rousseau produzido no século XVIII . O terceiro capítulo explicita o debate entre os autores escolhidos, Madame d’Épinay e Jean-Jacques Rousseau, ambos do século XVIII na França Iluminista. Tal debate privilegia as discussões a respeito das propostas de educação para as mulheres. Finalmente cabe dizer que este trabalho permite compreender a organização da educação das mulheres e também salientar que esta era uma dentre tantas experiências que elas vivenciaram durante o século XVIII. 1. A ESCRITA DAS MULHERES Neste capítulo tratamos da escrita das mulheres e de sua problematização no século XVIII bem como dos debates sobre a mulher escritora e da falta de uma tradição literária feminina. Para tanto, será necessário observarmos de maneira cuidadosa a conjuntura social em que estas mulheres escritoras estavam inseridas e entendermos os papéis historicamente produzidos para as mulheres, bem como sua relação com a escrita. 12 1.1 – O DISCURSO E AS LIMITAÇÕES DAS MULHERES Desde as épocas mais longínquas da história as relações entre o masculino e o feminino correspondiam a modelos ordenados pelos interesses dos grupos sociais. Assim, as representações de gênero4 são construções apreendidas, institucionalizadas e transmitidas socialmente. A partir dessas relações é que podemos compreender a representação da mulher escritora, já que por muito tempo foram os homens que escreveram sobre as mulheres. Nas representações de gênero instituídas conforme as necessidades e interesses do grupo, devido a alegação da inferioridade sexual e intelectual da mulher, ela foi destinada à esfera doméstica, tendo como definição “natural” a maternidade e o papel de esposa assegurando a total submissão feminina em relação ao homem.5 A Igreja exerceu um papel fundamental ao relacionar a imagem da mulher com Eva, responsável pela desgraça da humanidade. Mais tarde a Igreja lançou um novo olhar sobre a mulher através da imagem de Maria, categorizando as mulheres segundo seus papéis sociais, de virgens, viúvas ou casadas. Essa ambigüidade permeou as discussões que envolveram o lugar social da mulher, pois ora eram vistas como monstros causadores da perdição dos homens, ora como anjos que os protegiam dos males do mundo. A produção teológica para controlar o comportamento da mulher nesse momento tem por base os modelos de Eva, Virgem Maria e Madalena. (...) Eva havia condenado toda a humanidade a uma vida árdua na Terra. As mulheres eram sua descendência direta, ou seja, carregavam consigo todo o peso do pecado. Virgem Maria é aquela que abre as portas do paraíso novamente para a humanidade (...). Porém, apesar da esperança de reingresso no paraíso vir por uma mulher, Maria é um modelo inatingível para as demais, em virtude da manutenção de sua virgindade após a concepção e o nascimento de um filho. As mulheres que não eram mais virgens tinham como proposta de vida o modelo da matrona, em oposição à prostituta. A dedicação à maternidade era essencial, assim como o exemplo de Maria, mãe de toda a humanidade. (...) Finalmente, Madalena, modelo de redenção feminina. Se pelas mãos da mulher, Eva, a morte havia recaído na humanidade, pela mulher a ressurreição foi anunciada. Além disso, é a 4 Gênero é uma possibilidade de demonstrar a criação inteiramente social das idéias sobre os papéis dos homens e das mulheres. Uma maneira de interpretar as relações sociais. SCOTT, Joan. Gênero: uma categoria útil de análise histórica. 5 CRAMPE-CASNABET, Michele. “A mulher no pensamento filosófico do século XVIII”. In: História das Mulheres no Ocidente: do Renascimento à Idade Moderna. 1990. p.388. 13 representação de uma pecadora que serve de exemplo para os pecadores arrependidos. A mulher é essencialmente o símbolo do pecado da carne e a sua regeneração se dá pela penitência e pelo arrependimento representados na figura de Madalena. Eva representa a mulher real, em que as influências da Igreja deverão ser exercidas. Maria é a do plano ideal, a distante, inatingível, projetada pelos homens para guiar as mulheres daqui, Madalena se encontra entre essas duas figuras, significando a possibilidade de arrependimento dos pecadores.6 No Renascimento a reflexão acerca da natureza humana trouxe consigo novas discussões relativas às mulheres. Essas novas concepções serviram como instrumento para um amplo debate intitulado querelle des femmes7. Esse movimento se inicia no século XV sob forte influência do Humanismo e das Reformas Religiosas, atingindo primeiramente a Itália e depois a França e outros países europeus. Da querelle8 participavam escritos tanto de homens quanto de mulheres que dialogavam através de livros, panfletos e até mesmo obras de arte. Esses diálogos se apresentavam através de acusações e reclamações sobre quais os papéis relativos aos homens e às mulheres9. Os escritos masculinos foram considerados ora misóginos10 ora filóginos11. Os textos produzidos pelas mulheres foram classificados na segunda categoria, com isso elas se inseriram no espaço letrado permitindo o diálogo com grandes autores. Esse debate não ficou restrito ao século XV ele prosseguiu até depois da Revolução Francesa. “Rousseau também foi um protagonista na querelle des femmes e respondeu a essa tradição em seus escritos”12. Podemos citar a sua obra “Émile ou Da Educação” publicada no ano de 1762, como um exemplo de trabalho inserido na querelle, assim como o trabalho Madame d’Épinay, sua obra prima, intitulada “Les Conversations d’Emilie”, publicada no ano de 1774 como uma forma de resposta a Rousseau por seu 6 OLIVEIRA, Adriana Vidal de; PILATTI, Adriano (Orientador). A expressão constituinte do feminismo: por uma retomada do processo liberatório da mulher. p. 11-12 7 Segundo Joan Scott a querelle no século XVI tem por designação um debate literário e filosófico predominantemente entre homens, sobre as capacidades intelectuais e amorosas das mulheres. SCOTT, Joan W. “La querelle des femmes” no final do século XX. 8 Deve-se apenas atentar para o fato de que a estrutura utilizada pela querelle era similar ao exercício de retórica utilizado por estudantes universitários, muitas criticas misóginas podem ter sido construídas pelo mesmo autor. 9 BOCK, Gisela. Querelle des femmes: a european gender dispute. p. 1-31. 10 Misoginia é um discurso hostil em relação às mulheres. Segundo o dicionário básico de filosofia seria uma “Atitude ou comportamento de antipatia, aversão ou ódio em relação às mulheres.” JAPIASSÚ, Hilton; MARCONDES, Danilo. Dicionário básico de filosofia.p189 11 Termo descrito para aqueles que defendiam o sexo feminino. 12 BOCK. Ibidem. p.31 “Rousseau was also a protagonist in the querelle des sexes and responded to that tradition in his writings.” N.T. Tradução livre. 14 tratado de educação fazer tão pouco pela educação das mulheres. Ambos são tratados pedagógicos, mas o primeiro privilegiou o sexo masculino, enquanto que o segundo é completamente moldado para a educação feminina. A diferença entre os dois tratados será apresentada mais adiante nesse trabalho, mas é importante lembrarmos que ambos os autores estavam inseridos no contexto do século XVIII, bem como na querelle des femmes. Alguns filósofos do século XVII contribuíram, pouco ou muito, para a mudança ideológica revelando a identidade comum do homem e da mulher. Descartes, de quem não podemos suspeitar de feminismo, foi um dos precursores. Afirmando a completa autonomia do pensamento em relação ao corpo, tornava possível a igualdade intelectual da mulher. O cartesiano Poullain de la Barre aproveitou a brecha aberta por seu mestre para sustentar a idéia nova da igualdade do homem e da mulher. 13 Poullain de la Barre foi quem introduziu a noção de igualdade na querelle des femmes, com seu trabalho intitulado “De l’égalité des deux sexes” publicado em 1673. Seguidor de Descartes, De la Barre privilegiou a razão acima de tudo. Para ele a mente não tinha sexo, não devendo haver distinção entre homens e mulheres. Ao fazer isso ele elevava a condição feminina ao mesmo patamar dos homens, dizendo que elas também eram capazes de raciocinar e já no início de seu texto ele propõem: Onde podemos demonstrar que a opinião vulgar é um preconceito, e que comparando sem interesse aquilo que podemos remarcar na conduta dos homens e das mulheres, somos obrigados a reconhecer nos dois toda uma igualdade.14 Mesmo com a defesa de Poullain de La Barre as mulheres encontravam limitações à sua escrita, não assumindo o controle de suas idéias de maneira repentina. Foi um longo processo iniciado a partir do momento em que se inseriram nas redes de sociabilidades cultas. Conforme se inseriram em espaços para conversar e exprimir suas idéias, foi possível a elas escrever. Podemos citar o exemplo de Tullia D’Aragona, uma cortesã na Itália do século XVI, que conseguiu produzir seu trabalho 13 BADINTER, Elisabeth. Émilie, Émilie. A ambição feminina no século XVIII. p.31 BARRE, Poullain de. De l’égalité des deux sexes . p.1 “Ou l’on montre que l’opinion vulgaire est um préjugé, e qu’en comparant sans interest ce que l’on peut remarque dans la conduite des hommes e des femmes, ont est obligé de reconnaitre entre les deux une égalité entiere.” N.T. Tradução livre. 14 15 “Sobre a infinidade do amor”15 por estar inserida num círculo humanista, local que lhe permitia o acesso ao saber. Logo, se a mulher estivesse presente em locais que lhe permitissem o conhecimento, sua produção tornar-se-ia mais acessível se comparada às outras mulheres que não tinham acesso aqueles espaços privilegiados. Apesar da querelle e de mulheres como Tullia, não se caracterizou uma tradição de pensamento filosófico feminino, pois a tradição da escrita pertencia por excelência aos homens. (...) tudo que é relacionado aos valores positivos do falo conta como bom, verdadeiro e bonito; tudo que não é pautado nos padrões do falo é definido como caótico, fragmentado, negativo ou não existente. O falo é considerado inteiro, unitário e de forma simples, em oposição ao caos da genital feminina.16 Quando as mulheres se debruçavam sobre qualquer tema estavam adentrando num universo masculino. O fato de tomar para si o ato da escrita foi visto para Sandra Gilbert e Susan M. Gubar17 como se a mulher estivesse usurpando o lugar dos homens, demonstrando que a escrita pertencia ao homem e não à mulher. Quando ela o faz é classificada como pedante. A falta de tradição implica na ausência de suporte histórico para respaldar a escrita das mulheres; elas não encontravam em suas ancestrais alguém em quem pudessem se basear, uma carência que demorou a ser suprida. Isso prejudicou seu trabalho, pois toda vez que escrevia a mulher se apoiava num autor masculino que muitas vezes não a satisfazia naquilo que desejava criar. Um dos problemas para muitas dessas mulheres escritoras era que foram os homens escritores que se tornaram autoridades estabelecidas. Muitas mulheres simplesmente trabalharam nas sombras, tanto inspiradas pelas publicações masculinas quanto influenciadas por homens que conheciam.18 15 D’ARAGONA, Tullia. Sobre a infinidade do amor. 2001. MOI, Toril. Sexual/Textual Politics – Feminist literary theory.p.67 “(…) anything conceived of as analogous to the so-called ‘positive’ values of the Phallus counts as good, true or beautiful; anything that is not shaped on the pattern of the Phallus is defined as chaotic, fragmented, negative or non existent. The Phallus is often conceived of as a whole, unitary and simple form, as opposed to the terrifying chaos of the female genitals.” N.T – Tradução livre. 17 GILBERT, Sandra M.; GUBAR, Susan. The madwoman in the attic. apud ROSSI, Aparecido. Seria a pena uma metáfora para o falo? Ou a inquietante presença da mulher na literatura. 18 BLOCH, Jean. Discourses of female education in the writings of eighteenth-century French women. In:KNOTT, Sarah; TAYLOR, Barbara.Women, Gender and Enlightenment. p254. “One of the problems for many of these women writers was that it was male writers who became the established authorities. Many women 16 16 Concomitantemente, outra questão que dificultava a produção de seus ensaios, bem como sua publicação, era a falta de um espaço apropriado, o que tornava mais laboriosa sua função de escritora. (...) escrever uma obra de gênio é quase sempre um feito de prodigiosa dificuldade. Tudo se opõem à probabilidade de que ela aflore íntegra e completa à mente do escritor. Em geral as circunstâncias materiais opõemse a isso.(...) Mas para as mulheres, (...) essas dificuldades eram infinitamente descomunais. Em primeiro lugar, ter um quarto próprio – sem falar num quarto sossegado ou num quarto à prova de som – estava fora de questão, a menos que seus pais fossem excepcionalmente ricos ou muito nobres, mesmo no início do século XIX.19 Era difícil para uma mulher escrever quando lhe diziam que não fora feita para pensar e ao fazê-lo precisava ir contra uma opinião que a julgava inferior e que a submetia ao poder masculino. Uma justificativa para tal ação seria o medo masculino de perder o controle sobre as esposas. Permitir instrução às mulheres significava reconhecer a capacidade feminina e representava a possibilidade de quebrar o domínio patriarcal. Ao assumir o papel de escritora as mulheres expunham o patriarcalismo dominante. Daí a enorme importância para um patriarca que tem que conquistar que tem que dominar, de sentir que um grande número de pessoas, a rigor, metade da raça humana, lhe é por natureza inferior. De fato, essa deve ser uma das principais fontes de seu poder.20 A inferioridade feminina era entendida como parte de sua natureza, os discursos em seu entorno restringiram sua liberdade. Mesmo com a existência de muitos interditos à escrita das mulheres houve escritoras que compuseram um pequeno grupo, pois suas obras ficavam à margem da escrita oficial21. simply worked in their shadow, either inspired by the publications of male mentors or influenced by men they knew.” N.T. – Tradução Livre. 19 WOOLF, Virginia. Um teto todo seu.p.65 20 Ibidem. p.44 21 Escrita canônica masculina 17 Considerar a sua escrita é uma forma de conhecer o pensamento produzido pelas mulheres que se conscientizaram da opressão e que se opuseram ao patriarcalismo que as submetia constantemente ao domínio masculino. (...) ao longo da história poucas mulheres excepcionais tentaram de fato resistir a pressão da ideologia patriarcal, tornando-se conscientes da sua própria opressão e manifestando sua oposição ao poder masculino.22 Quando produziram seus escritos no campo das letras sofreram críticas justamente por ser do sexo feminino. Tudo que escreveram foi apreendido como fraco e inferior. Para quebrar o domínio masculino elas precisaram provar que o que foi referenciado como inferior, ou seja, seu trabalho, pode ser reconhecido como algo relevante para a tradição ou na contra-corrente dela. 22 MOI, Toril.Op.Cit. p.26 “(…) throughout history a few exceptional women have indeed managed to resist the full pressure of patriarchal ideology, becoming conscious of their own oppression and voicing their opposition to male power.” N.T – Tradução livre 18 1.2 – O ILUMINISMO E A MULHER NO SÉCULO XVIII No contexto iluminista a querelle des femmes forneceu os termos para a discussão a respeito da mulher no século XVIII. Devemos entender este contexto para compreendermos o lugar da mulher na sociedade desta época. O Iluminismo23 foi um movimento cultural de grandes proporções que abarcou áreas como a filosofia, as ciências naturais e sociais e que se desenvolveu principalmente na França, Alemanha e Inglaterra no século XVIII. Foi um movimento heterogêneo de múltiplos discursos que se caracterizou pela defesa do conhecimento e da racionalidade crítica contras os dogmas religiosos. Correntes do Iluminismo defenderam as liberdades individuais, os direitos dos cidadãos contra o autoritarismo e o crédito à razão e ao saber, bem como para a capacidade de emancipação do homem.24 Foi um movimento de duras críticas à Igreja Católica e à sua forte influência social e política no Antigo Regime.25 O progresso e a razão foram os principais motores do pensamento iluminista que influenciaram mudanças políticas e sociais até o início do século XIX. O pensamento iluminista criticava o Absolutismo e a estrutura do Antigo Regime, crítica essa que se aproximava das aspirações da burguesia que se encontrava em ascensão. Com o desenvolvimento das ciências naturais o homem passou a ter uma visão mais pragmática da natureza, passando a buscar formas de submetê-la à sua vontade. Ciente de seu lugar no mundo o homem viu a necessidade de formar indivíduos capazes de dominar a natureza e as leis que a regiam, assim houve o surgimento de vários tratados relativos à educação. Um bom exemplo dessa necessidade é a criação da Enciclopédia, o grande monumento do Iluminismo organizado por Diderot e D’Alambert, um projeto pensado coletivamente que visava um balanço dos conhecimentos adquiridos em vários campos da ciência, uma compilação de tudo aquilo que havia sido produzido pela atividade humana guiada através da razão. Entretanto, esse discurso foi articulado a partir de uma perspectiva masculina, “é do ponto de vista do homem filósofo que se institui um duplo discurso do homem 23 Como conceito foi criado pelo filósofo alemão Immanuel Kant, em 1784. JAPIASSÚ, Hilton; MARCONDES, Danilo. Op.Cit. p.142 25 SILVA, Kalina V; SILVA, Maciel H. Dicionário de conceitos históricos. p.210. 24 19 sobre o homem e do homem sobre a mulher.”26 Assim, as mulheres estavam presentes no discurso iluminista como objetos de estudo, neste sentido o século XVIII foi considerado o século da mulher27, por estar mais em evidência em cenas públicas e literárias, tornou-se uma figura importante, mas sempre subordinada ao homem.28 Ela faz parte do discurso não como indivíduo independente e sim como alguém que existe para garantir a felicidade do homem. (...) o discurso não dá conta da realidade da sua presença; cego, só vê através de uma imagem, a da Mulher que pode tornar-se perigosa pelos seus excessos, ela que é tão necessária, dada a sua função essencial de mãe. O discurso não a mostra, inventa-a, define-a através de um olhar culto (logo masculino) que não consegue senão subtraí-la a si própria.29 Ao mesmo tempo em que conferem às mulheres autonomia os discursos o fazem apenas por precisarem de mulheres instruídas e capazes de manter uma conversa apropriada com os homens. Por esse aspecto o Iluminismo é um movimento contraditório, pois não faz a conciliação entre a diferença sexual e uma filosofia do universal.30 O ponto de partida para pensar o sexo feminino no século XVIII, foi o homem. Nos escritos produzidos pelos filósofos as mulheres eram vistas através de suas diferenças com o sexo oposto, não passando de seus complementos inferiores. Para elucidar tal fato, recorremos ao exemplo da Enciclopédia, que classificou a mulher como “fêmea do homem” 31 , ou seja, ela é um espelho que servia para enaltecer a razão e a capacidade masculina. Para embasar seus argumentos os homens buscavam na natureza feminina a desculpa necessária para inferiorizar as mulheres, pois as consideravam um ser de paixão e de imaginação, sendo seu intelecto menos capaz. Rousseau foi um dos teóricos que utilizou esse argumento ao dizer que às mulheres caberia apenas conhecer 26 CRAMPE-CASNABET, Michèle. Op.Cit.p.373 HOFFMANN, P. La Femme dans La pensée des Lumières. Ophrys. Paris. 1977. apud GODINEAU, Dominique. A mulher. In: VOVELLE, Michel. (org) O homem do iluminismo.p.311 28 GODINEAU, Ibidem.p.311. 29 DAVIS, Natalie e FARGE, Arlette. Introdução. In: História das Mulheres no Ocidente: do Renascimento à Idade Moderna. 30 GODINEAU. Op.cit. p.312 31 Idem. 27 20 aquilo que estava ao seu entorno para torná-la uma companheira melhor para o homem. Apesar das críticas, houve mulheres que assumiram o papel de protagonistas de sua defesa e argumentavam em favor de seu sexo, realizando traduções e escrevendo correspondência e tratados relativos à educação. Fizeram isso apoiadas na tradição masculina, mas nem sempre foram reconhecidas por tal empreendimento; contudo, aos poucos, mostraram que eram capazes e moldaram a sua própria tradição. 21 1.3 – PRIMEIRO COMO OUVINTES DEPOIS COMO ESCRITORAS Mais instruída do que suas antecessoras, a mulher do Iluminismo não quer ser aquela que um século rico em inovações intelectuais relega para posições secundárias. Aproveita também a instrução ministrada para a transformar numa boa esposa, para se enriquecer pessoalmente. Quer participar também nas Luzes, e não se alhear do seu século. Como inserir-se numa cultura que não se lhe destina diretamente? Não deixando de estudar, mantendo-se ao corrente daquilo que se diz, daquilo que se escreve e, porque não, dizendo ou escrevendo também ela própria. (Michel Vovelle) No Iluminismo houve um aumento na produção de livros devido à maior facilidade de publicação, permitindo melhores oportunidades de conhecimento. Assim, ocorreu um aumento significativo na circulação das idéias através do grande número de correspondências. A difusão do conhecimento possibilitava a inserção das mulheres no enriquecimento cultural do período, procurando manter-se instruídas, buscavam informações, participavam de debates e liam o máximo de livros que lhes era permitido, “a mulher iluminista é uma grande leitora”.32 Ainda eram vistas como pedantes, pois queriam ter acesso ao saber destinado aos homens que diziam que ao invés de ler a mulher deveria estar preocupada com os cuidados da casa. Mas, enquanto a leitura masculina é sinal de atividade intelectual, a leitora é facilmente considerada com uma pedante orgulhosa ou uma ociosa. Em ambos os casos, isso sucede porque a mulher surge menos no seu papel tradicional, porque quer ter acesso a um saber masculino, porque rouba o tempo que deveria dedicar ao governo da casa, ao marido ou aos filhos, porque cria entre si própria e o livro um espaço íntimo do qual o homem se vê excluído. A leitura feminina é perigosa.33 O livro passou a ser sinônimo de distinção social para as mulheres, principalmente para aquelas que pertenciam à aristocracia, pois não queriam ser confundidas com as mulheres da burguesia. O livro também passou a estabelecer uma “rede de sociabilidade intelectual da qual a mulher sai vitoriosa.”34. 32 GODINEAU, Dominique.Op.Cit.p.325 Ibidem. p.325-326 34 Ibidem.p.326 33 22 Para entender a escrita de mulheres no século XVIII é necessário conhecer os locais que permitiam a reflexão literária e a produção dessa escrita. Os salões35 foram esses lugares que permitiram a aproximação entre homens e mulheres e promoveram debates intelectuais. Tal espaço desempenhou um importante papel no campo filosófico e literário daquele período. Eram as mulheres que dirigiam os salões, organizavam os espaços, evitavam os excessos, valorizavam cada convidado.36 A função delas dentro desses lugares era de fundamental importância. Eram elas que conduziam as ações. No seu melhor estado uma brilhante vida social é essencialmente externa. Seu encanto repousa nas graças superficiais. Nas dóceis maneiras, o pronto tato, a rápida inteligência, os raros e perecíveis dons de conversa. (...) Seu dom de se projetar em atmosferas alegres é peculiar, de tratar mesmo assuntos sérios de uma maneira viva, de habitar sobre a agradável superfície das coisas, que fez os franceses, acima de todos, os artistas da vida social.37 Nos salões aconteciam debates e discussões de idéias, “eles discutiam questões econômicas, políticas, religião, arte, literatura, com igual liberdade e ardor.”38 Eram verdadeiros centros de cultura e os encontros tinham data e local certo para acontecer. O salão de Madame d’Épinay, denominado La Chevettre, era uma residência próxima de Paris adquirida por seu marido. Nele recebia seus amigos, grandes nomes de sua época, como Francueil, Duclos e Rousseau. 39 Assim, as práticas dos salões assumiram maior importância no século XVIII por serem os lugares propícios para a expansão das idéias e também para os debates. Para as mulheres era uma maneira de absorverem conhecimento, pois possuíam as qualidades fundamentais para receber em seus salões, sabiam manter as conversas e 35 Os salões surgiram no século XVII na sociedade de corte, faziam parte desses círculos apenas aqueles que pertenciam a nobreza. 36 GODINEAU, Dominique. Op.Cit.p.326 37 MASON, Amélia Gere. The women in the french salons. “In its best estate a brilliant social life is essentially an external one. Its charm lies largely in the superficial graces, in the facile and winning manners, the ready tact, the quick intelligence, the rare and perishable gifts of conversation. (...) Its is peculiar gift of projecting themselves into a joyous atmosphere, of treating even serious subjects in a piquant and lively fashion, of dwelling upon the pleasant surface of things, that has made the French the artists, above all others, of social life.” N.T – Tradução livre. 38 MASON, A. Op.Cit. “They discuss economic questions, politics, religion, art, literature, with equal freedom and ardor.” N.T. – Tradução Livre. 39 BADINTER, E. Émilie, Émilie.Op.Cit. p.128 23 mais do que tudo deveriam saber exatamente qual era o lugar que lhes cabia nesses centros de cultura. Os salões do século XVIII permitiam os encontros de aristocratas, letrados, homens de ciência e burgueses ricos. Neles era primordial a circulação do saber e a divulgação dos trabalhos produzidos para o enriquecimento cultural do período. Ilusoriamente dentro dos salões parecia não existir distinção entre as camadas da sociedade e entre os sexos, as mulheres adquiriram status de interlocutoras. Eram as companheiras dos homens e ao mesmo tempo capazes de manter uma ótima discussão. Assim as mulheres avançavam no campo filosófico, mas ainda não eram vistas como iguais, havendo distinção entre o saber masculino e feminino. A mulher ocupa neste sistema geral a posição ambígua que o século lhe confere: dá, sem dúvida, um passo em frente, que a transformará na rainha dos salões freqüentados por ‘philosophes’, sendo objeto de uma atenção mais intensa e simultaneamente inquieta que a mantém, geralmente numa situação de dependência, faltando ainda muito tempo para dela se emancipar.40 Inserida nesse universo, a mulher conseguiu dar mais um passo em direção a sua “independência”, atingindo o terreno da escrita. Com o conhecimento que adquirem nos salões produzem seus ensaios a fim de tornarem públicas suas idéias e na busca de tentar romper com a ordem patriarcal mostraram que eram tão capazes quanto os homens. 40 VOVELLE, Michel. (org) O homem do iluminismo. p.18-19 2. A EDUCAÇÃO DAS MULHERES O objetivo desse capítulo é tratar da função da educação fornecida para as mulheres. Mostraremos a ação desempenhada pelos tratados de educação como o trabalho de John Locke, Fénelon, Rousseau e Madame d’Épinay. Esses tratados tinham por objetivo propor métodos de educar as crianças e maneiras de ensinar os cuidados necessários desde a infância. 25 2.1 - A EDUCAÇÃO DAS MULHERES NO SÉCULO XVIII “O saber é contrário à feminilidade. Como é sagrado, o saber é apanágio de Deus e do Homem, seu representante sobre a terra.” Michelle Perrot Iniciamos o capítulo citando Michelle Perrot, pois esta foi uma das historiadoras que se debruçou sobre o estudo da história das mulheres. Através da epígrafe acima podemos perceber que o saber não era considerado próprio ao sexo feminino, assim a educação das meninas ficou obscurecida até meados do século XIX, mas devemos ressaltar que desde o século XV houve sinais de mudança em relação a esse tema. (...) é preciso lembrar que toda a educação propriamente intelectual lhes era proibida. Na escola, em casa ou no convento, evitava-se desenvolver esses espíritos. E mesmo se houve, aqui e ali, pequenas modificações de programa, o conteúdo de ensino das meninas foi de uma mediocridade espantosa até a primeira metade do século XIX, pois a finalidade era sempre a mesma: fazer delas esposas crentes, donas-de-casa eficientes.41 Segundo Sarah Ross42 o século XV testemunhou a emergência de uma nova categoria de mulheres, as intelectuais, que não eram nem cortesãs e nem freiras. Em seu texto a autora trata da influência do pai na educação da filha e o exemplo analisado é o de Cassandra Fedele, uma mulher da elite renascentista italiana. Ross apresenta assim a díade pai-filha e a utilização desse lugar por Cassandra, que ao fazer isso se afastava dos preconceitos que lhe impediam de ascender intelectualmente. Ao se colocar no lugar de filha, Cassandra não carregava os preconceitos existentes em relação à mulher, ela se deslocava do papel mulher para o papel de filha, colocando-se assim numa posição abaixo dos homens, o que lhe permitiu a troca de correspondências e a inserção no meio letrado. Outra mulher desse período que se serviu da díade pai-filha foi Tullia d’Aragona que também recebeu incentivo paterno, não apenas de seu pai biológico, mas de outros “pais” com quem ela pôde exercer este papel de filha para que não levantasse comentários a seu respeito e assim se inserir no 41 BADINTER, Elisabeth. Um Amor conquistado: o mito do amor materno. p.91-92 ROSS, Sarah. Her Father’s Daughter :Cassandra Fedele, Woman Humanist of the Venetian Republic. p.206 42 26 meio culto do Renascimento. Com relação a essa questão podemos citar no século XVIII Madame Du Châtelet que teve em seu pai um grande incentivador de sua educação, além de ter sido seu primeiro preceptor. O pai permitia que ela participasse dos encontros nos salões, não se preocupando com o que a sociedade pensava, simplesmente não se opondo ao saber da filha. Madame d’Épinay também teve em seu pai um incentivador, a diferença é que ele faleceu quando ela tinha apenas dez anos. Não podendo continuar com seus estudos d’Épinay acabou sendo destinada a um convento. A diferença da educação oferecida pelo pai, é que este não restringia a educação de suas filhas, enquanto que o convento ensinava apenas os princípios morais da religião para que pudessem ser boas esposas e mães. Entre os séculos XVI e XVIII percebe-se um aumento nas pretensões intelectuais e pela educação, pois a sociedade sentiu a necessidade de educar seus cidadãos43. A igreja contribuiu para essa mudança na mentalidade, uma vez que percebeu o papel fundamental que as meninas exerciam no processo de reconquista da religiosidade e também no resgate da moral cristã44. Nenhum estudo na educação francesa no século XVIII pode ser dar ao luxo de perder de vista a força e a influência exercida pela Igreja Católica e isso é particularmente verdade na educação das mulheres. Se as garotas receberam educação nos séculos XVII e XVIII na França, foi normalmente das petites écoles parisienses, dos conventos, das boarding schools, ou nas casas de seus pais.45 A Igreja da Contra-Reforma incentivou a educação das mulheres em conventos para que elas pudessem seguir os valores determinados pela religião. Outra contribuição foi da Reforma Protestante que ao incentivar a leitura pessoal da Bíblia influenciou para que as mulheres tivessem acesso à leitura. 43 Cabe lembrar que tal educação era diferenciada entre homens e mulheres e mais ainda entre as classes sociais SONNET, Martine. “Uma filha para educar”. In: História das mulheres no Ocidente. Do Renascimento à Idade Moderna. Tradução.p.141 45 BLOCH, Jean. Discourses Op.Cit. p.243. “No study of French education in the eighteenth century can afford to lose sight of the strenght and influence of the Catolic Church and this is particularly true of women’s education. If girls received an education in seventeenth and eighteenth –century France, it was normally from parish petites écoles and the convent boarding schools, or in the parental home.” N.T. – Tradução Livre 44 27 Esta educação cristã tradicional manteve a sua mira na preparação para o pós-vida, embora ela também forneceu as meninas habilidades necessárias para guiar estabelecimentos religiosos e, posteriormente, para a casa ou, no caso de grupos sociais mais elevados, habilidades decorativas.46 Nos conventos as mulheres foram educadas segundo as suas funções sociais de mãe e esposa, pois sua educação visava a formação de boas mães cristãs.47 A educação visando apenas a obtenção do saber intelectual não era permitida às mulheres. O saber pelo saber as afastariam de suas funções maternas. A educação de Madame d’Épinay se deu nesses moldes, pois após a morte de seu pai, que havia incentivado muito sua educação, a sua mãe, Madame d’Esclavelles, não atribuiu grande importância à educação de sua filha. D’Épinay acabou indo morar com uma tia, onde procurou aprender com a governanta de sua prima. Nem sua mãe e nem a sua tia permitiram que tal estudo continuasse, assim Madame d’Épinay foi confinada num convento de onde saiu completamente devota e submissa, bem diferente da menina que havia sido educada pelo pai. No final do século XVII, na França, devido a emergência do novo indivíduo com novos princípios para suprir as necessidades do Estado, a responsabilidade das mães sobre a educação dos filhos aumentou, para isso tiveram que receber o mínimo de instrução para poder ensinar seus filhos. Não devemos deixar de lado que a mulher erudita foi ridicularizada, diziam que se possuíam acesso ao saber deveriam empregá-los em fins altruístas, nunca em benefício próprio. “Uma mulher que ame os estudos por si mesma comete uma heresia.”48 Para Elisabeth Badinter no fim do século XVIII o essencial, para alguns, era menos educar súditos dóceis do que pessoas simplesmente: produzir seres humanos que seriam a riqueza do Estado. O Estado percebeu a necessidade de cuidar bem de suas crianças para que estas pudessem ser melhores soldados, melhores cidadãos. A partir de então que começou uma mudança de mentalidade e as mulheres foram incentivadas para que ao invés de delegar os cuidados de seus filhos a uma ama-de46 Idem.p.243 “This traditional Christian education kept its sights firmly on preparation for the afterlife, though it also provided girls with practical skills necessary for the running of religious establishments and, subsequently, for the home or, in the case of the highest social groups, decorative accomplishments”. N.T. – Tradução Livre 47 SONNET, Martine. Op.Cit.p.145 48 BADINTER, Elisabeth. Émilie, Émilie.Op.Cit.p.68 28 leite, elas mesmas o fizessem. O discurso rousseauniano sustenta estas idéias auxiliando positivamente tal mudança, pois através do discurso de Rousseau presente no “Emilio” as mulheres viram a possibilidade de atingir a glória sendo mães. Nesse contexto de mudança de mentalidades é que devemos entender a função da educação das mulheres, principalmente no século XVIII. A educação feminina foi construída de maneira diferente da educação masculina, pois tinham funções e princípios diferenciados. As mulheres por muito tempo foram preparadas para o casamento ou para vida religiosa. Visando esses princípios não era concedida uma educação além do necessário para que atingissem o fim desejado. A educação visava o bom funcionamento da casa, se lhes ensinavam matemática era para saber administrar as contas domésticas, sabiam o básico de leitura escrita, religião, moral, além de manusear o fio e a agulha. O saber feminino por muitos anos permaneceu incompleto, pois deveriam saber o mínimo necessário para educar seus filhos moralmente. Quando atingissem certa idade os filhos homens seriam entregues aos cuidados de um preceptor e as meninas deveriam ficar à espera do casamento sob os cuidados de uma governanta. Outro lugar possível para a educação das mulheres eram as suas próprias residências, principalmente aquelas que tinham pais esclarecidos, que escolhiam melhores preceptores para seus filhos. Tal lugar permitia que as mulheres possuíssem uma educação parecida com a que era destinada aos meninos nas escolas. Essa prática da educação familiar ganhou mais força em meados do século XVIII. É preciso, pois, educar as meninas, e não exatamente instruí-las. Ou instruílas apenas no que é necessário para torná-las agradáveis e úteis: um saber social, em suma. Formá-las para seus papéis futuros de mulher, de dona-decasa, de esposa e mãe. Inculcar-lhes bons hábitos de economia e de higiene, os valores morais de pudor, obediência, polidez, renúncia, sacrifício...que tecem a coroa das virtudes femininas.49 A educação dos homens foi completamente diferente das mulheres, eles foram educados para a política, o governo, a filosofia, pois seriam eles que governariam a sociedade. 49 PERROT, Michelle. Minha história das mulheres.p.93. 29 Família e religião são os pilares dessa educação quase que exclusivamente privada. O Estado, na França, instrui os meninos, seus futuros chefes e trabalhadores. Não as meninas, o que deixa para as mães e para a Igreja.50 Com a necessidade de construir cidadãos melhores, muitos teóricos, através de seus trabalhos, chamaram as mulheres a assumir seus lugares maternos na sociedade. Alguns manuais de educação, como o próprio Emílio, vieram para ensinar às mulheres como cuidar de suas crianças. 50 Ibidem.p.94 30 2.2 – PROPOSTAS DE EDUCAÇÃO. “De Montaigne a Rousseau, passando por Molière e Fénelon, conjuram-nas a voltar às suas funções naturais de donas-de-casa e de mãe. O saber, dizem eles, estraga a mulher, distraindo-as de seus deveres mais sagrados.”51 (Elisabeth Badinter) As obras aqui citadas trataram da educação nos séculos XVII e XVIII, sendo voltadas principalmente para os homens, mas contemplaram, de alguma forma, a educação das mulheres, uma vez que elas influenciavam diretamente os homens e sua educação. As mães eram as primeiras educadoras de seus filhos e para que pudessem exercer essa tarefa da melhor maneira possível elas precisavam ser instruídas. A função de mãe educadora atingiu maior destaque no final do século XVIII, mas isso não significou que as mulheres foram educadas somente a partir de então. As mulheres tiveram acesso à educação por muito tempo. A questão fundamental era qual o sentido de sua educação e qual o tipo de educação que lhes era dada. Como nosso trabalho trata do século XVIII nos debruçaremos principalmente sobre esse período. É importante deixar claro que as mulheres não receberam educação de uma hora para outra, mas foi no século XVIII que adquiriram status de educadoras de seus filhos. É necessário primeiramente explicitarmos a escolha por John Locke e François Fénelon, para depois adentrarmos em seus trabalhos. Esses autores foram selecionados devido a influência que exerceram tanto sobre Rousseau quanto sobre Madame d’Epinay, pois ambos, em seus tratados, citaram as idéias daqueles autores. Iniciaremos com o trabalho de Locke, para depois compreender como suas idéias estão presentes em Rousseau. Em seguida apresentaremos o trabalho de Fénelon e como Madame d’Épinay o leu. John Locke em seu livro “Some thoughts concerning education” publicado em 1693 construiu a sua proposta de educação de forma linear. Conforme a criança se desenvolvia ela se tornava capaz de adquirir mais conhecimento. Seu manual de educação foi pensado principalmente para a educação dos meninos. No início do seu texto ele coloca o incentivo para pensar suas razões. 51 BADINTER, E. O mito do amor materno.Op.Cit.p.93 31 O educar de seus filhos faz parte do trabalho e diz respeito aos pais, e o bem-estar e a prosperidade da nação dependem disso, que todos deveriam levar a sério em seus corações;(…)52 Locke dispõe os conhecimentos como se estivessem atrelados uns aos outros, assim era necessário que a criança aprendesse aos poucos tudo aquilo que seria necessário para sua vida, porque um saber não era independente do outro. Assim um conceito fundamental de Locke é o da tábula rasa, onde a mente é como um papel em branco que pode ser preenchido pelos conhecimentos adquiridos pela criança através da experiência. Devido a isso o autor dispôs os conhecimentos de maneira que pudessem ser abarcados em sua totalidade pela criança. Ela deveria apreender aquilo que fosse adequado à sua idade. Locke afirmava que a educação transformava o homem no que ele era53, destacando o importante papel das experiências adquiridas desde a infância. Igualmente enfatizou a importância da família na educação da criança, pois os pais não só deveriam cuidar de seus filhos, mas deveriam também atentar para os cuidados excessivos. Ao mimá-los corrompiam os princípios da natureza. Outra função importante da família seria os exemplos dados às crianças, uma vez que elas imitavam tudo o que viam, então “você não deve fazer nada em frente a ele, que você não gostaria que fosse imitado.” 54 Assim, Locke afirmava a autoridade paterna e a submissão da criança em relação ao pai. “Esteja certo de estabelecer a autoridade de pai, assim que ele seja capaz de submeter-se e possa entender sob o poder de quem ele está submetido.” 55 O tutor exercia um papel de fundamental importância, pois ele deveria ter cuidados com a formação da criança, transformar o menino em homem e incutir nele as boas maneiras. Assim os pais deveriam ter muita atenção sobre quem escolhiam para guiar a educação de seus filhos. Deveriam preocupar com a influência exercida sobre a criança, assim como das suas companhias, ou seja, as pessoas que estavam 52 LOCKE, John. Some thoughts concerning education.p.24. “The well educating of their children is so much the duty and concern of parents, and the welfare and prosperity of the nation so much depends on it, that I would have every one lay it seriously to heart.”N.T – Tradução Livre 53 Ibidem.p.25 54 Ibidem.p.55. “You must do nothing before him, which you would not have him imitate.” N.T. – Tradução Livre 55 Ibidem.p.32 “Be sure then to establish the autority of a father, as soon as He is capable of submission, and can understand in whose power he is.” N.T – Tradução Livre 32 envolvidas em seu universo, pois os exemplos eram importantes na educação das crianças, uma vez que é através dele que se demonstra o que é certo e o que é errado para a ela. Em seguida a criança deveria aprender a ler, escrever, desenhar e após adquirir esses conhecimentos aprender francês e latim. Gramática, história e geografia viriam na seqüência. Essa era a maneira de educar as crianças linearmente, como Locke expõe. Com relação a educação das mulheres, ele não se preocupa diretamente com esse assunto. Eu disse ele aqui, porque o principal objetivo do meu discurso é como um jovem rapaz deveria ser elevado de sua infância, que em todas as coisas não vai perfeitamente preencher a educação das meninas; embora a diferença de sexo exija diferença de tratamento, até não ter dificuldades para distinguir.56 Através do entendimento da proposta de Locke, podemos tratar de algumas idéias de Rousseau que se aproximam de seu predecessor. Dois dos mais remarcáveis tratados de educação do século XVIII, o Émile de Rousseau (1762) e o Ensaio da Educação Nacional (1763) de La Chalotais, adotaram os ensinamentos de Locke sobre a gênese do conteúdo mental e os aplicaram em seus temas.57 Jean-Jacques Rousseau em seu tratado da educação “Emílio ou Da Educação” aborda todos os cuidados necessários para educar um cidadão, visando formar um homem livre que deveria estar submetido às leis da natureza. O Emílio está dividido em cinco livros, onde apenas o último foi dedicado à educação das mulheres, pois é quando seu personagem estaria pronto para o casamento. A educação que cabe ressaltar aqui é aquela que Rousseau pensou para os homens, a maneira como construiu seu tratado. Nessa obra Rousseau escreve diretamente para as mulheres, para que elas cuidem de seus filhos, pois segundo o autor “um homem abandonado a si mesmo 56 Ibidem.p.26 “I have said he here, because the principal aim of my discourse is, how a Young gentleman should be brought up from his infancy, which in all things will not so perfectly suit the education of daughters; though, where the difference of sex requires different treatment, ‘twill be no hard matter to distinguish.”N.T – Tradução Livre 57 Ibidem.p.11 “Two of the most remarkable educational treatises of the eighteenth century, Rousseau’s Emile (1762) and the Essai d’Éducation Nationale (1763) of La Chalotais, adopt Locke’s teaching on the genesis of mental content and apply it to their theme.”N.T- Tradução Livre 33 desde o nascimento entre os outros seria o mais desfigurado de todos.”58. Ele valorizou a importância das mães como educadoras de seus filhos, valorizando-as por exercerem tal função. Ele pensou na educação do Emílio desde os seus primeiros anos até a idade adulta. Ele construiu um indivíduo que pudesse ser educado perfeitamente, sem qualquer tipo de questionamento, “tomei o partido de tomar um aluno imaginário, de supor em mim a idade, a saúde, os conhecimentos e todos os talentos convenientes para trabalhar em sua educação e conduzi-la desde o momento do seu nascimento até que, já homem, não precise de outro guia que não ele mesmo.”59 Sua preocupação estava em formar o homem para que pudesse realizar o que pretendia e educá-lo para a vida. De todas as maneiras esse homem deveria ser livre e ter sua educação guiada pelos princípios da natureza. No primeiro livro Rousseau se dedica aos cuidados iniciais com os bebês, desde os cuidados com a amamentação, as funções das mães, pais e preceptores, além de ensinar a essas pessoas como lidar com a criança, pois ela jamais deveria dominar seus pais. Nesse livro Rousseau ensina principalmente aos pais como cuidar fisicamente de seus filhos, como dar banho, como vesti-los, pois tudo isso influenciava naquilo que o bebê iria se tornar. Já no segundo livro ele se preocupou com a infância da criança, ensinando que não se devia satisfazer todas as vontades da criança, pois isso a tornaria um ser sem limites. Rousseau foi um grande incentivador dos exercícios físicos. Ele chamou a atenção para os cuidados com o corpo da criança, pois seu corpo deveria ser fortalecido para que não adoecesse com facilidade. Preocupou-se também com a educação intelectual do Emílio, pois não bastava ter boa saúde precisava ter também moral e intelecto desenvolvidos. É sobre isso que trata o Livro Três, a educação propriamente dita das crianças, como se comportar, como agir em determinadas situações, e principalmente, que a criança deveria ser guiada a todo instante pelo seu preceptor, mas em nenhum 58 59 ROUSSEAU, Jean-Jacques . Emilio ou Da Educação. p.07. Ibidem p.29 34 momento ela deveria desconfiar disso. Ela deveria crer que tudo que estava fazendo era devido ao seu esforço próprio. Os Livros Quatro e Cinco são voltados para “o despertar da consciência moral e religiosa de Emilio e Sophie”60, mas esse último livro será tratado mais adiante quando analisarmos a educação das mulheres. Assim como Locke, Rousseau construiu seu tratado de maneira linear para atender ao desenvolvimento da criança. Nada devia ser ensinado para a criança sem que ela estivesse apta para entender. Com seus ensinamentos Rousseau “logo se tornou a nova, mas controvérsia, autoridade na teoria da educação, particularmente no campo dos cuidados com as crianças e educação inicial. Foi bem sucedido ao trazer os métodos empíricos de Montaigne e Locke para o primeiro plano na educação.”61 O tratado de educação de Fénelon62 foi formulado de maneira diferente. Primeiro inovou ao se preocupar com a educação das mulheres e segundo que não foi construído de maneira linear. Ele trabalha com o porquê da importância de educar as mulheres e também de como fazê-lo. Fénelon, assim como Rousseau, chamou a atenção das mulheres para que tomassem conta de seus filhos, ressaltando a importância desse papel para a sociedade. “He ahí, pues, la ocupación de la mujer, de tanta importância para la sociedad como la del hombre, puesto que tiene a su cargo el gobierno y la dirección de la casa, la felicidad y el bienestar del marido y la buena educación de los hijos”63. Para ele, O objetivo era dotar as mulheres das classes superiores para guiar suas residências, em alguns casos, grandes propriedades, bem como torná-las educadoras de seus filhos.64 60 Ibidem .p. XVI BLOCH,Jean.Op.Cit. p.248 “soon became the new, but controversial, authority on educational theory, particularly in the field of childcare and early education. He succeeded in bringing the empirical teaching methods of Montaigne and Locke firmly to the fore.” N.T – Tradução livre 62 François de Salignac de La Mothe-Fenélon, bispo francês, nasceu em 1651 e faleceu em 1715. Com doze anos foi enviado para a Universidade de Cahors, onde demonstrou sua vontade de entrar para a Igreja Católica. Seu “Traité sur l’education des filles” foi escrito em 1687 para e duquesa de Beauvilliers, que o pediu conselhos para lhe ensinar a educar suas oito filhas. Enciclopédia Católica. 63 FENELON,François.La educación de las Jovenes. p.07 64 BLOCH,Jean. Op.Cit.p.244 “Fénelon’s aim was to equip upper-class women to run their households, in some cases large estates, as well as to make them serious educators of their children.” N.T – Tradução Livre 61 35 Podemos perceber na passagem citada qual seria, para Fénelon, o verdadeiro sentido da educação das mulheres: educá-las para ser mães e esposas. Semelhante a Rousseau, diferencia apenas na forma como o tratado é pensado, pois Fenélon construiu sua obra pensando primordialmente na educação das mulheres, enquanto Rousseau o fez pensando na educação dos homens. É a partir desses autores que vemos a importância que a mulher assumiu no século XVIII, pois a elas cabia o verdadeiro papel de educar os novos indivíduos para o bem-estar da sociedade. Pensando ainda na obra de Fénelon vemos o quão importante era educar as mães, pois, segundo o próprio autor, uma mulher desocupada e ignorante acabava tendo uma propensão às diversões e espetáculos, incitando-se para a curiosidade.65 A mulher deveria ocupar a sua mente com pensamentos que a despertassem para a virtude, o bem maior de uma mulher. Fénelon, assim como Locke e Rousseau, referiu-se também aos exemplos que as crianças recebiam, como as crianças podiam imitar tudo o que viam, então “por eso es de importância capital no presentarles sino Buenos modelos. No se les puede permitir juntarse sino com quien pueda darles ejemplos dignos de imitación.”66 Ao final de seu livro ele fala diretamente do que a mulher deve se ocupar está encargada de la educación de los hijos: de los niños hasta cierta edad, de lãs niñas, hasta que se casan o toman el hábito de religiosas; de vigilar la conduta de los sirvientes, sus costumbres y su servicio, de los gastos que deben hacerse, del modo de tratarlo todo economica y honrosamente (...).67 Podemos perceber que mesmo incentivando a educação das mulheres elas poderiam ter apenas dois caminhos, o casamento ou a vida religiosa. O autor ressalta em algumas passagens que mesmo voltadas para esses caminhos as mulheres deviam se sentir honradas, pois todos os cuidados que despendiam em seus lares e a educação de seus filhos exigia talento, querendo assim incentivar as mulheres em seus papéis. Qui talento necesita para conocer el genio y el carácter de cada uno de sus hijos, para encontrar el mejor médio de conducirse com ellos, de muedo que pueda descobrir su temperamento, sus inclinaciones y su capacidad, para 65 FENELON,Op.Cit.p.10-11. Ibidem.p.21 67 Ibidem.p.99 66 36 prevenir las pasiones incipientes, inspirarles buenas máximas y curar todos sus errores.68 Fénelon foi um importante autor em quem Madame d’Épinay pôde se inspirar, pois ele abriu uma porta que possibilitou o acesso para a educação das mulheres. Logicamente que não o fez sozinho, Rousseau também incentivou tal educação. Fénelon chegou a ser citado na obra d’Épinay, com isso vemos que ela foi uma leitora também do “Traité sur l’education des filles”, o que a possibilitou fazer algumas reflexões a respeito da educação das mulheres. Madame d’Épinay, grande amiga de Rousseau, abre uma nova era na história da mulher. Deixando a ciência aos homens, ela se apodera simbolicamente de um novo papel, deixado vago há muito tempo: o de mãe.69 Assim, pudemos ver como Locke e Fénelon influenciaram tanto Rousseau quanto Madame d’Épinay ao escreverem seus tratados pedagógicos. A partir disso podemos, no capítulo seguinte, partir para a análise das fontes e comparar as diferentes propostas pensadas para educar as mulheres. 68 69 Ibidem.p 99-100 BADINTER, E. O mito do amor materno.Op.Cit.p.97 3. O SABER FEMININO O objetivo deste último capítulo é analisar as duas fontes primárias para compará-las a fim de compreendermos as idéias sobre educação para as mulheres no século XVIII. A partir das fontes, percebemos que à mulher foi atribuída a responsabilidade de educadora de seus filhos, mas com significados e intensidades diferentes. No caso de Rousseau, a mãe deveria ser educada para que pudesse cuidar das crianças nos primeiros anos. Madame d’Épinay é o oposto pois para ela a mãe poderia educar os filhos em qualquer momento que fosse. São essas diferenças e também semelhanças que tratamos neste capítulo. 38 3.1- MADAME D’ÉPINAY:MÃE, AVÓ E PRECEPTORA, UMA RIVAL SEGUIDORA DE ROUSSEAU. Após tratarmos do lugar das mulheres na sociedade francesa do século XVIII, bem como refletir acerca do papel da mulher escritora podemos então falar de Louise d’Esclavelles, mais conhecida como Madame d’Épinay. Louise foi uma mulher escritora que possuiu um salão nos moldes de sua época e que foi submetida a várias críticas por tudo que fez no campo literário, assim como outras mulheres do mesmo período. Ela tentou tomar para si o papel de mãe no momento em que ainda era incomum para as mulheres fazê-lo. Tentou também se dedicar pessoalmente à educação de seus filhos. Poder-se-ia dizer que Madame d’Épinay estava um pouco à frente das idéias de seu tempo, mas não se pode negar que foi uma mulher notável e que de alguma forma inspirou mudanças no processo educacional, principalmente das mulheres. Após anos de uma péssima educação que lhe fora fornecida no convento, Louise retornou à casa de sua tia onde acabou estreitando relações com seu primo La Live d’Épinay, que veio a se tornar seu marido. Reflexo de sua educação, Louise buscou ao máximo ser a esposa ideal para seu marido, dedicou-se ao seu casamento e tentou fazer seu esposo feliz. O que ela não sabia era que ambos possuíam visões diferentes de casamento, Através da influência de sua mãe, Louise acreditava no ideal cristão de fidelidade conjugal e no novo e envolvente ideal burguês de domesticidade (...) Seu marido, por outro lado, pertencia a geração dos financistas da alta burguesia (…) ele havia adotado a concepção de casamento vigente na nobreza, a qual aceitava e até esperava a infidelidade por parte de ambos os cônjuges.70 Assim, seu casamento foi sua primeira frustração, mas mesmo assim engravidou o que resultou numa felicidade imensa. Nesse momento decidiu que tomaria para si os cuidados com o seu bebê. Esse ato a fez perceber qual era o seu 70 TROUILLE, Mary. La Femme Mal Mariée: Mme d’Epinay’s challenge to Julie and Emile “Trough her mother’s influence, Louise fervently believed in the Christian ideal of conjugal fidelity and the newly evolving bourgeois ideal of domesticity (…). Her husband, on the other hand, belonged to the generation of financers of the haute bourgeoisie (…) he had adopted the conception of marriage prevailing among the court nobility, who accepted and even expected infidelity on the part of both spouses.” N.T. – Tradução Livre 39 lugar, pois tanto sua mãe quanto seu marido foram contra essa idéia, uma vez que pertencia à alta classe e portanto não seria bem aceito a uma mulher de sua posição dedicar-se aos filhos. (...) percebe-se que não cabe à futura mãe decidir, mas ao marido. Só ele sabe o que é bom para a família. Ou, sobretudo, para ele. Neste assunto que concerne à mãe e à criança, o marido se insinua entre os dois e decide em função de seus interesses de homem. 71 Seu filho Louis-Joseph logo que nasceu, foi confiado a uma ama-de-leite no campo, de onde só retornou aos braços de sua mãe nove meses depois. Madame d’Épinay teve ainda mais três filhos; uma menina, Suzanne-Thérese, que faleceu antes de completar dois anos de idade e dois filhos adulterinos com seu amante, Francueil, Angélique e Monsenhor de La Blanc de Belieu. A respeito deste último pouco se sabe. Seu filho mais velho só lhe trouxe problemas e infelicidade, enquanto que sua filha Angélique lhe proporcionou anos de alegria. Foi através dela que d’Épinay exercitou sua função de mãe e pedagoga, mas devido ao destino não pôde concluir sua obra dedicando-se a esta tarefa posteriormente com a filha de Angélique, Émilie. Foi à sua educação que ela se dedicou e foi através dos diálogos com sua neta que escreveu “Les Conversations d’Emilie”. É a respeito dessa obra que falaremos a seguir, pois é a partir dela que realizaremos a comparação com a obra de Rousseau, o livro “Emilio ou Da Educação” que foi publicado no ano de 1762 e demonstra as maneiras como o preceptor, Rousseau, pode educar um menino, Emílio72. Ao longo do tratado, conforme Emilio se desenvolve, vai sendo educado de acordo com os princípios de Rousseau. Toda a sua educação está pautada na natureza onde a criança deveria ser criada livremente sob os cuidados de um preceptor. A educação proposta por Rousseau visava o afastamento da civilização conforme ela se constituiu historicamente e de seus males sociais, além do desenvolvimento das capacidades naturais da criança. No que se refere à educação das 71 BADINTER, Elisabeth, Emilie, Emilie.Op.Cit. p.112 Devemos ressaltar que os personagens são fictícios, frutos da imaginação de Rousseau, não há registros da existência nem de Emilio e nem de Sophie. 72 40 mulheres ele defendeu a subordinação da mulher ao homem e o personagem que representa tal papel é Sophie, que teve sua educação voltada para ser uma boa companheira para Emílio. Por outro lado “Les Conversations d’Emilie”, foi publicado no ano de 1776 e pensado de uma forma que garantisse uma melhor educação para as mulheres. O tratado está proposto na forma dialógica, composto por uma série de conversações entre mãe e filha, que na realidade eram avó, Madame d’Epinay, e neta, Emilie. Também nessa obra podemos perceber o desenvolvimento da criança. Conforme o tempo passa, Emilie torna-se mais instruída. Foi através dos diálogos diários com sua neta que Madame d’Epinay demonstrou a possibilidade do saber feminino. Ambos os tratados são propostas pedagógicas que buscavam a formação do cidadão a partir da infância, ou seja, educar as crianças para que essas viessem a ser bons cidadãos para o Estado. Assim como Locke, Madame d’Épinay e Rousseau também acreditavam numa educação que respeitasse as idades das crianças, ou seja, ensinar à criança apenas aquilo que ela fosse capaz de assimilar, tanto o aluno de Rousseau, Emilio quanto a aluna de Madame d’Épinay, Emilie, tiveram sua educação planejada de maneira a respeitar suas capacidades intelectuais. Devemos agora explicar de que maneira as duas fontes se constituem. Rousseau em seu livro “Emílio ou Da Educação” apresenta a forma de educar um homem, para isso ele se utiliza do personagem Emílio, um ser extremamente passivo, que corresponde a todas as expectativas de seu preceptor, que não tem atitude diante dos ensinamentos e que acata todas as decisões do mestre. Desde pequeno Emílio foi enviado por seus pais para ter sua educação guiada por um preceptor, no seu caso o escolhido foi Rousseau, que guiou os passos de seu aluno até quando este se casou, assim, os quatro primeiros livros do “Emílio ou Da Educação” foram voltados para a formação física e moral do personagem principal. Emílio foi um aluno exemplar que seguiu todos os ensinamentos que lhe foram dados, o tempo todo ele foi dominado por Rousseau, demonstrando ser um aluno extremamente tranqüilo. Emilie, a aluna de Madame d’Épinay e também sua neta, é uma criança ativa, que exibe seus descontentamentos e questionamentos a todo instante. Pelo texto se apresentar na forma dialógica percebemos o quão perspicaz é 41 Emilie, pois tudo que sua avó lhe ensina não fica imune aos seus questionamentos, demonstrando assim o conhecimento adquirido por ambas. O diálogo como afirma Melinda Caron73 possibilita o retorno dos interlocutores, permite incluir conhecimento a partir da relação que se estabelece entre as pessoas que estão dialogando. O diálogo era também a forma como se constituíam as conversações nos salões iluministas, permitindo a participação de todos e o debate de idéias, o que dava a possibilidade de enriquecimento para os interlocutores. É exatamente isso que ocorre na obra de Madame d’Épinay, uma troca de conhecimentos entre mãe e filha, pois a mãe também acaba adquirindo experiência, e a interlocução com sua filha lhe permite conhecer o outro a quem se está ensinando. A forma de apresentação dos textos indica uma grande diferença entre as propostas, Rousseau apresenta alguns raros momentos de diálogo com o próprio leitor, que permite a ele que tome parte do texto. É como se o autor chamasse a atenção do leitor em alguns momentos e em outros ele utilizasse esse “diálogo” para se justificar de algo. A educação tanto de Emílio quanto de Sophie, personagem feminina do livro é uma imposição, pois é Rousseau quem manipula os acontecimentos; é o preceptor quem cria os fatos e o aluno acaba correspondendo. É por esses e outros meios semelhantes que, durante o pouco tempo que estive com ele, consegui fazer com que fizesse tudo o que eu queria, sem lhe ordenar nada, sem lhe proibir nada, sem sermões, sem exortações, sem aborrecê-lo com aulas inúteis.74 Ao contrário, Madame d’Épinay apresenta seus ensinamentos para Emilie através de uma conversa e que conforme surgem dúvidas Emilie questiona a sua mãe que deve respondê-la. Em alguns questionamentos a mãe percebe que a criança pode responder suas próprias dúvidas. Madame d’Épinay devolve a questão para que a criança reflita e seja capaz de responder por si própria. Assim ela incentiva a reflexão e demonstra a capacidade que a criança tem de sanar suas próprias dúvidas. 73 CARON, Melinda. Conversations intime e pédagogie dans Les Conversations d’Emilie de Louise d’Épinay. p.86 74 ROUSSEAU. Op.Cit. p.147 42 Mãe – Mas o que é o mundo? Emilie – Mas, mamãe, é tudo isso. É Paris, é Bologne é Sant-Cloud. Assim tudo. Mãe – Assim tudo? Nesse caso esse mundo não é muito vasto. Seus quatro elementos devem ir de Saint-Cloud a Bologne? E como é isto? Emilie – Ah, eu não sei. Mãe – Bom, nossa ciência está um pouco distante. Vamos voltar ao nosso caminho. Veja o que está no mundo que você conhece. De que ele é composto? O que é que você vê? Emilie – Os campos, as casas, os rios, os homens, os animais, (...)75 Podemos perceber que Emilie num primeiro momento simplifica a resposta como toda criança, mas quando instigada acaba demonstrando que possui conhecimento para responder a pergunta feita por sua mãe. Outra questão de fundamental importância é o fato de Madame d’Épinay trazer suas próprias experiências como mãe e educadora (...), d’Epinay sublinha o fato de que sua aproximação com a educação foi a partir da sua experiência diária como mãe e educadora de uma criança real, o que a permitiu unir teoria e prática e trazer seus métodos e suas metas para o mundo real. A própria experiência de d’Epinay como mãe e avó a fez desconfiar de tratados pedagógicos escritos por homens como Rousseau que nunca criaram um filho.76 Esse é o ponto que mais os diferencia, pois Madame d’Épinay foi mãe e avó o que a permitiu sentir e viver coisas que Rousseau jamais imaginou, já que este teve cinco filhos e não criou nenhum deles. A criação de um filho propicia responsabilidade e experiência. A proximidade e os sentimentos são maiores se compararmos a uma criança cuja educação não tem qualquer relação afetiva. Este é o triunfo de Madame d’Épinay, pois ela imprime em seu texto a experiência de sua vida e como mãe. Ela 75 EPINAY. Madame. Les Conversations d’Emilie.p.91 “Mère – Mais qu’est ce que c’est Le monde? Emilie – Mais, Maman, c’est tout cela. C’est Paris, c’est le bois de Boulogne, c’est Sant-Cloud. Voilà tout. Mère – Voilà tout? En ce cas ce monde n’est pas trop vaste. Vos quatre élémens font donc aller Saint-Cloud et le bois de Bologne? Et comment cela? Emilie – Ah, je ne sais pas. Mère – Bom, voilà deja notre science um peu défaut. Tâchons de nous remettre sur la voie. Voyons ce qu’il y a dans le monde que vous connaissez. De quoi est-il composé? Qu’est-ce que vous y voyez? Emilie – Mais des champs, des maisons, des rivieres, des hommes, des animaux. (...).” N.T. – Tradução Livre 76 TROUILLE, Mary.op.cit. “d’Epinay underlines the fact that her own approach to education was drawn from her daily experience as the mother and educator of real children , wich enable her to join theory with practice and to gear her methods and goals to the real world. D’Epinay’s own experience as a mother and grandmother made her wary of pedagogical treatises written by men like Rousseau who never raised children of their own.” N.T. – Tradução Livre 43 não molda uma criança perfeita e nem constrói apenas teorias a respeito, ela articula teoria aquilo que aprendeu na prática com aquilo que viveu. Contrariamente as afirmações de Rousseau no livro cinco do Emilio, d’Epinay afirma a igualdade intelectual das mulheres e o seu direito a uma educação igual. Ela insiste que o desenvolvimento intelectual das mulheres é essencial para sua felicidade e bem-estar. Contrastando com a cega submissão a autoridade na Sophie de Rousseau, d’Epinay encoraja sua neta a pensar por si mesma.77 É claro que as obras não são completamente opostas em todos os assuntos. Em alguns pontos podemos notar a semelhança entre elas. É onde percebemos a influência de Rousseau na obra de Madame d’Épinay. Sabe-se que ambos conviveram em determinados momentos de suas vidas e chegaram a estabelecer amizade, bem como trocar idéias. Quaisquer que tenham sido os segredos e as conseqüências do caso do Ermitage, é inegável que Madame d’Épinay acreditava prestar serviço a Rousseau ao lhe emprestar aquela pequena casa. Já não suportando Paris e já não sabendo como viver em Genebra, Rousseau se sentia perdido e desamparado. Madame d’Épinay pensava ajudá-lo a sair deste dilema propondo o Ermitage, (...). Naquela época, Rousseau, que ela conhecia havia quase dez anos, não poupava declarações de amizade.(...) Os equívocos e as mentiras recíprocas, que porão fim a esta amizade, deram lugar a uma das mais célebres polêmicas da história da literatura. É preciso não esquecer, no entanto, que antes de trocar estes gritos de raiva por interpostas confissões, Madame d’Épinay amou muito Rousseau e tudo fez para provar-lhe seu sentimento. Se é verdade que ela soube tirar proveito desta relação de amizade, é certo que ele nunca lhe dedicou sentimentos tão ternos quanto os que nutria por ele.78 Devido a essa amizade, Madame d’Épinay pode aproveitar algumas das idéias pedagógicas de Rousseau. A mais fundamental delas é a idéia do retorno a natureza, pois ambos incentivaram a educação de seus alunos conforme as leis da natureza. A criança deveria ser educada ao ar livre, correr e brincar com liberdade. Defendiam a saúde da criança, que não deveria mais ser enfaixada e presa, pelo contrário deveria ficar mais livre em seus movimentos e utilizar roupas adequadas para isso. 77 Ibidem. “Contrary to Rousseau’s assertions in Book V of Emile, d’Epinay affirms the intellectual equality of women and their right to an equal education. She insists that the intellectual development of women is essential to their happiness and well-being. In contrast to the blind submission to authority instilled in Rousseau’s Sophie, d’Épinay encourages her granddaughter to think for herself.” N.T. – Tradução Livre 78 BADINTER, Elisabeth. Émilie, Émilie.Op.cit.p.90-91 44 Em vez de deixá-lo estragar-se no ar corrompido de um quarto, que seja levado diariamente até o prado. Ali, que corra, se divirta, caia cem vezes por dia, tanto melhor, aprenderá mais cedo a se levantar. O bem-estar da liberdade compensa muitos machucados. Meu aluno muitas vezes terá contusões; em compensação estará alegre.79 Madame d’Épinay também defende que sua Émilie faça exercícios físicos e se fortaleça. Mãe – Caminhando habitualmente, você adquire força para fazer cada dia um pouco mais de seu caminho, e você pode então fazer grandes caminhadas sem se cansar, porque você fortifica seu corpo com um exercício contínuo.80 Um aluno saudável é um aluno que apreende melhor as lições e torna-se um cidadão fortalecido para cumprir suas tarefas futuras, quaisquer que sejam elas. Outra semelhança entre os autores é a valorização da figura materna, pois atribuíram às mães o papel de educadora de seus filhos. Devemos ressaltar que ambos pensam esta questão diferentemente, uma vez que Rousseau pensou na educação moral através da mãe apenas nos primeiros anos de vida da criança. Assim que cessavam os cuidados necessários a mãe se afastava e dava lugar ao preceptor e à governanta. É a ti que me dirijo, terna e previdente mãe (a primeira educação é mais importante e cabe incontestavelmente às mulheres) , que soubeste afastar-te da estrada principal e proteger o arbusto nascente do choque das opiniões humanas! Cultiva, rega a jovem planta antes que ela morra; um dia, seus frutos serão tuas delícias. Forma desde cedo um cercado ao redor da alma de teu filho; outra pessoa pode marcar o seu traçado, mas apenas tu podes colocar a cerca.81 Assim, Rousseau atribui um papel importante às mães a partir do qual Madame d’Épinay aproveitou para fortalecer sua pedagogia materna. Mas Madame d’Épinay é a primeira mãe de sua condição a apresentar as duas características da nova maternidade. Mãe, ela cuida pessoalmente de seus filhos; pedagoga,definiu o conteúdo de sua educação e refletiu sobre seus fundamentos e objetivos.82 79 ROUSSEAU, Jean-Jacques. Op.cit.p.71 ÉPINAY,Op.cit.p.117 “Mère – C’est qu’em vous promenant habituèlement, vous acquiérez la force de faire tous les jours um peu plus de chemin, et vous parvenez enfin à faire de tres grandes courses sans vous fatiguer, parce que vous fortifiez votre corps par um exercice continuel.” N.T. – Tradução Livre 81 ROUSSEAU.Op.Cit.p.07-08 82 BADINTER, Elisabeth.Emilie, Emilie. Op.cit.p.196 80 45 Devido a esta responsabilidade as mulheres puderam ambicionar melhor opinião da sociedade, pois delas dependia os primeiros cuidados segundo Rousseau, ou então os cuidados com toda a educação de sua prole. A partir de tal entendimento podemos, então, analisar as duas propostas pretendidas pelos autores para a educação das mulheres. 46 3.2 – EMILIE A ANTI-SOPHIE Não que Madame d’Épinay nunca tenha tido a audácia de pensar que se igualaria ao seu Mestre em pedagogia, o pai do Émile. Mas do que está segura no momento é que sua Émilie será infinitivamente superior à Sophie de Rousseau.Pouco importam as maledicências de Jean-Jacques, se madame d’Épinay venceu sua empreitada: oferecer a suas descendentes e as suas contemporâneas uma pedagogia das mulheres que não as condene mais à submissão, mas lhes assegure a autonomia. Que os Emílios futuros não tenham muitas ilusões. As Sophies que sonham ter como esposas correm o risco de ser, na realidade, Émilies. É a mais doce vingança de Madame d’Épinay. 83 Elisabeth Badinter É assim que entendemos o papel fundamental da educação das mulheres, ir além da figura da esposa ideal e torná-las agentes de mudança. Esse foi o triunfo de Madame d’Épinay ao nos mostrar a possibilidade das mulheres adquirirem o “saber pelo saber”. Abriu-nos portas para que as mulheres das gerações posteriores pudessem atingir a felicidade através da educação. Em suas Conversações articula as contradições de Rousseau, pois para Madame d’Épinay os obstáculos impostos à educação das mulheres provinham de diferenças sociais e principalmente de diferenças educacionais. Os homens não permitiam que as mulheres demonstrassem suas capacidades e foi a partir dessa compreensão que d’Épinay se colocou contra seu mestre. Diferentemente de Rousseau, Madame d’Épinay propôs uma outra forma de educar as mulheres, primeiramente através do diálogo e em seguida ensinando-lhes tudo que teriam direito a saber. Devemos ressaltar que se a educação de Emilie não é completa, é devido à má instrução recebida por sua avó, que buscou de todas as maneiras compreender aquilo que acontecia ao seu redor para que então pudesse educar sua filha. A educação proposta por Rousseau para as mulheres é mínima, pois, para ele, a função principal delas era como companheira do homem, consolo e alívio de seus males, enquanto ele deveria ser o chefe provedor da família.84 Ao contrário das idéias de Louise d’Épinay, pois para ela todos estão ao lado uns dos outros e toda criatura 83 84 Ibidem.p.42-43 ROUSSEAU.Op.Cit.p.652 47 humana merece a benevolência.85 Não distingue raça e nem sexo, pois todos devem ser tratados igualmente, é isso que ela ensina a Emilie - o amor ao próximo. Ela ressalta que cada pessoa ocupa uma posição diferente, mas que todos devem ser respeitados. Ela se iguala com o pai de Emilie no comando da casa “Seu pai e eu. Nós somos os chefes da casa; eu sou sua mãe, e aqui tenho pessoas que seguem minhas ordens.” 86 Um ponto fundamental para Madame d’Épinay é que para ela a fraqueza física e intelectual das mulheres não era determinada pela natureza mas sim pela sociedade que excluiu as mulheres das esferas do conhecimento. Não foi a única dizer que uma má educação enfraquecia a mulher, mas ao invés de permanecer nesta constatação ela partiu para ação e através da sua obra pedagógica chamou a atenção para o fato de que se as mulheres tivessem chances de serem educadas poderiam mudar muitas coisas ao seu redor, a começar por si próprias. “Les Conversations d’Emilie”, segundo Mary Trouille foi uma forma encontrada por Madame d’Épinay de não somente se reconciliar com seus sentimento de culpa como mãe, com as suas ambições como escritora e pedagoga, mas também, e acima de tudo, foi uma resposta ao desafio do Emílio.87 Por essa razão é que escolhemos essas duas obras para dialogar entre si, pela proximidade temporal, 1762 e 1776, e pelo fato de ambos os autores terem se conhecido e trocado afetos e desafetos publicamente. O nome escolhido por Madame d’Épinay para sua neta é apenas um indicativo da proximidade das obras. A questão é que ambos trataram da educação, pensaram maneiras de educar, mas o fizeram para indivíduos diferentes, de uma constituição de gênero diferente, mas, segundo d’Épinay, não eram diferentes no intelecto, pois Emilie não deixava nada a desejar em relação a Emilio. A educação de Emilie vai quase em sentido oposto ao de Sophie, Emilie foi ensinada a ler e escrever antes dos cinco anos de idade, com dez anos, já havia aprendido sobre uma gama enorme de sujeitos, seguindo um plano ambicioso de educação para o período. Entretanto, a verdadeira originalidade de Les Conversations d’Emilie recai menos no método que o estudo propõe (que de fato lembra mais a educação iluminista dedicada aos 85 ÉPINAY.Op.Cit.p.146 Idem. “Votre pere et moi. Nous sommes les chefs de la maison; je suis votre mere, et j’en tiens lieu à tous ceux qui sont sous mes orders.” N.T – Tradução livre 87 TROUILLE, Mary.Op.Cit. 86 48 meninos da época) do que nas metas distintamente feminocêntricas que desejou ter alcançado, acima de tudo na auto-confiança e na autosuficiência destinada às mulheres.88 Rousseau diferencia homens e mulheres para reafirmar porque não devem possuir a mesma educação “Um deve ser ativo e forte, o outro passivo e fraco; é preciso necessariamente que um queira e possa; basta que o outro resista pouco.”89 E mais adiante continua “Uma vez que se demonstrou que o homem e a mulher não são nem devem ser constituídos da mesma maneira, nem quanto ao caráter, nem quanto ao temperamento, segue-se que não devem ter a mesma educação”90 Madame d’Epinay procurou educar Emilie para que fosse livre, mas que soubesse respeitar as convenções, pois não se pode negar o fato de que as mulheres vivem em sociedade e para isso devem seguir algumas regras, (…), d’Epinay procura dar a Emilie uma educação que equilibre o sentimento de liberdade interior e seu juízo crítico respeitando os papéis sociais e as convenções. Seu objetivo principal é assegurar que sua neta seja feliz e adaptada, ela também ensina habilidades sociais e cuidados com a casa.91 Na obra podemos constatar que realmente Emilie aprendeu algumas dessas funções, o que demonstra que ela não busca somente aprendizado intelectual, mas também saber tomar as devidas providências em relação aos cuidados com sua residência “Emilie – Eu já aprendi a costurar, a alinhar tecidos, a cuidar dos meus afazeres, trabalhar um pouco com bordado, a fazer meus ajustes, aqueles na minha boneca.”92 88 Ibidem. “Emilie was taught to read and write before the age of five and, by the age of ten, had been introduced to a broad range of subjects, following a plan of studies quite ambitious for the period. However, the true originality of Les Conversations d’Emilie lies less in the plan or method of studies it proposed (which in fact resembled the more enlightened educations given to boys of the period) than in the distinctly feminocentric goals it sought to achieve and, above all, in the self-confidence and self-sufficiency it aimed to foster in women.” N.T. – Tradução Livre 89 ROUSSEAU.Op.Cit.p.516 90 Ibidem.p.524 91 TROUILLE, Mary.Op.Cit. “d’Epinay seeks to give Emilie an education that balances this sense of inner freedom and critical judgment with respect for social roles and conventions. Since her primary goal is to assure that her granddaughter is happy and well adjusted, she also teaches her basic social and housekeeping skills.” N.T. – Tradução Livre 92 ÉPINAY.Op.Cit.p.250 Emilie “J’ai déja appris à coudre, à racomoder mes mouchoirs, à avoir soin de mes nipes, à travailler um peu de broderie, à faire aussi um peu mes ajustemens et ceux de ma poupée.” N.T. – Tradução Livre 49 A educação de Emilie, muito diferente da de Sophie, não fica apenas nesse terreno dos cuidados com a casa, mas vai além. Emilie tem um aprendizado mais completo, pois sabe a respeito da biologia, como observar as estações do ano, sabe também ler algumas fábulas e contá-las a sua avó, e mais do que isso foi educada moralmente. A ela foram ensinados princípios morais, como ter cuidado com a curiosidade, pois não se deve querer saber a respeito da vida alheia, uma vez que não cabe a uma dama ficar se dando ao desfrute de comentar a respeito do que acontece com os outros. Mãe – Então o nosso pensamento é nossa propriedade mais secreta, a mais íntima. Ler um pedaço de papel, como você diz, que não nos pertence, que contém pensamentos que não se dirigem a vós, é cometer algo que pode ser considerado uma traição, uma infâmia, enfim é o que há de mais vil e desonroso no mundo.93 A educação de Emilie é tudo aquilo que Épinay sonhou para si mesma e para seus próprios filhos Mãe – Digo-lhe a verdade. Não posso permitir-me a fixar os limites do conhecimento para as pessoas do nosso sexo; Talvez não devesse sequer ter uma regra geral a este respeito, mas no tempo da minha infância não se costumava ensinar as meninas. Ensinamos-lhes mais ou menos os deveres de religião, para que pudessem fazer a primeira comunhão. Dávamos um bom mestre para lhes ensinar dançar, um mestre para ensinar música, e um péssimo mestre de desenho. Com isso um pouco de história e geografia, mas sem muito interesse; Não precisava guardar nomes e datas, que nos esquecíamos facilmente. Era a isso que se reduzia a educação sonhada. Sobre tudo não chamávamos jamais de razão; e quanto à ciência, nós a achávamos muito deslocada para pessoas do nosso sexo e evitávamos cuidadosamente qualquer tipo de instrução. Emilie – E como você fez mamãe? Porque afinal você sabe quase tudo, e de qualquer coisa de que a gente fale, eu nunca a vejo desconcertada, nós a encontramos sempre em casa, como diz o Senhor de Perseuil. Mãe – É que os temas da conversa quotidiana não têm uma grande amplitude de conhecimentos, a razão, a reflexão, a experiência, a utilização do mundo e a instrução são mais que suficiente para isso. Quanto ao pouco que sei que se reduz a pouca coisa, é para você, Emilie, que eu tenho a obrigação de saber.94 93 Ibidem.p.211 “Ainsi notre pensée est notre proprieté la plus sacrée, la plus intime. Et lire un chiffon de papier, comme vous disiez, qui nous apartient pas, qui renferme des pensées qui ne s’adressent pas à nous, c’est faire une chose qui peut avoir toute La difformité d’une trahison, d’une bassesse, d’une infamie; enfin de ce qu’il y a plus vil et de plus désohonorant au monde.” N.T. – Tradução Livre 94 Ibidem.p.239 “Mère – Je vous dis La vérité. Je ne me permets point de fixer lês bornes du savoir aux persones de notre sexe; peut-être ne faut-il pás même une regle générale à cet égard; mais du temps de mon enfance ce 50 Entendendo como uma obrigação das mães se educarem para que seus filhos possam ser felizes com a educação que receberam, Madame d’Epinay chama a atenção para mais uma função das mães Mãe – Eu acredito que na França uma mãe tem a obrigação de se formar, para poder estar à altura de cuidar da educação de seus filhos, que ela terá que esperar menos por ajuda das pessoas com quem ela deveria partilhar esses cuidados.95 A posição de Rousseau em relação à educação das mulheres é diferente, pois desejava que as mulheres estivessem sob o domínio do intelecto masculino Assim, toda educação das mulheres deve ser relativa aos homens. Agradarlhes, ser-lhes útil, fazer-se amar e honrar por eles, educá-los quando jovens, cuidar deles quando grandes, aconselhá-los, consolá-los, tornar suas vidas agradáveis e doces: eis os deveres da mulher em todos os tempos e o que lhes deve ser ensinado desde a infância. 96 Para o mestre de Madame d’Epinay as mulheres devem se preocupar acima de tudo com os cuidados da casa, primeiro seu marido e seus filhos, ou seja, em primeiro lugar a felicidade do homem “A obediência e a fidelidade que deve ao marido, a ternura e as atenções que deve aos filhos são conseqüências tão naturais e tão visíveis de sua condição, (...)”97 Se as mulheres podem estudar devem fazê-lo para melhor atender os desejos dos homens, devem acatar acima de tudo a opinião masculina à qual estão submetidas n’était pás l’usage de rien appendre aux filles. On leur enseignait lês devoirs de religion tant bien que mal, pour lês mettre em état de faire leur premiere communion. On leur donnait um fort bom maître à danser, um fort mauivais maître de musique, et tout au plus um medíocre maître de dessin. Avec cela um peu d’histoire et de géographie, mais sans aucun attrait; Il ne s’agissait que de retenir des noms et des dates, qu’on oubliat dês que Le maître était reforme. Voilà à quoi se réduidaient lês éducations soignées. Sur-tout on ne nous parlait jamais raison; e quant à La science , on La trouvait très-deplacée dans les persones de notre sexe, et l’on évitait avec soin toute espece d’instruction Emilie – Comment aves-vous donc fait, Maman? Car enfin vous savez-à-peu-près tout, et de quelque chose que l’on parle, je ne vous vois jamais embarassée, on vous trouve toujors au logis, comme dit Monsieur de Perseuil. Mère – C’est que les sujets de La conversation journaliere n’exigent pás une grande étendue de connaissances; La raison, La réflexion, l’expérience, l’usage Du monde ET l’instruction La plus légere suffisent pour cela. Quanta u peu que je puis savoir ET qui se réduit à très-peu de chose, c’est à vous, Emilie, que j’en ai l’obligation.” N.T – Tradução Livre 95 Ibidem.p.188 “Mére – Je crois qu’en France une mere a une obligation d’autant plus étroite de se former ellemême, pour être en état de veiller sur l’éducation de ses enfans, qu’elle a moins de scours à atendre des persones avec qui elle voudrait partager ce soin.” N.T – Tradução Livre 96 ROUSSEAU.Op.Cit.p.527 97 Ibidem.p558 51 (...): é preciso, portanto, que ela estude a fundo o espírito do homem, não, por abstração, o espírito do homem em geral, mas sim o espírito dos homens a quem está sujeita, quer pelas leis, quer pela opinião.98 Sophie é a encarnação da mulher ideal para Rousseau, pois além de ser imaginária, ela corresponde a todos os desejos de seu criador. Ela é um ser próprio de seu sexo, sabe tudo que lhe é necessário saber. Assim como Emílio não questiona qualquer decisão tomada por outro a seu respeito e é extremamente polida. “O que Sophie conhece melhor e que a fizeram aprender com mais esmero são os trabalhos de seu sexo, (...), tais como cortar e coser seus vestidos.”99 Rousseau expressa as idéias sobre o casamento na fala do pai de Sophie. Para ele A felicidade de uma moça de bem é proporcionar a felicidade de um homem de bem; é preciso, então, pensar em te casar; é preciso pensar cedo nisso, pois o destino da vida depende do casamento, e nunca temos muito tempo para pensar nisso.100 Rousseau defendeu a educação feminina voltada para os cuidados com o marido, pois além de acreditar que “é da ordem da natureza que a mulher obedeça ao homem.” 101 Ele primava pela educação masculina, e para isso era de extrema necessidade o mínimo de educação para as mulheres, pois “De resto, como uma mulher que não tenha nenhum hábito de reflexão educará seus filhos? Como discernirá o que lhes convém?”102. Mas em relação à educação intelectual ele foi profundamente contrário, pois não concordava em que as mulheres freqüentassem os salões e demonstrassem o seu saber Mas eu preferiria ainda cem vezes uma moça simples e educada rudemente a uma moça erudita e intelectual que viesse estabelecer em minha casa um tribunal de literatura de que se faria presidenta. Uma mulher intelectual é o flagelo de seu marido, de seus filhos, de seus amigos, de seus empregados, de todo mundo. Da altura sublime de seu belo gênio, ela desdenha todos os deveres de mulher e sempre começa por se fazer homem, à maneira da senhorita de l’Enclos. De fora, ela é sempre ridícula e criticada com muita justiça, porque não se pode deixar de ser ridículo quando se sai de sua condição e não se foi feito para aquela que se quer adquirir.103 98 Ibidem.p.566 Ibidem.p.577-578 100 Ibidem.p.585-586 101 Ibidem p598 102 Ibidem.p.600 103 Idem.p.600 99 52 Para chamar a atenção das mulheres ele cobrava dos esposos e dava exemplos de como era muito melhor ter uma mulher envolvida com os cuidados da casa do que ter uma mulher ridícula que se preocupava apenas com o conhecimento Leitores, remeto-me a vós, tende boa-fé; o que vos dá melhor opinião sobre uma mulher ao entrar em seu quarto, o que vos faz abordá-la com mais respeito, vê-la ocupada com os trabalhos femininos, com os afazeres do lar, cercada das roupas dos filhos, ou encontrá-la escrevendo versos na penteadeira, rodeada de livros de todos os tipos e de bilhetinhos pintados de todas as cores? Toda moça letrada permanecerá solteira a vida toda quando só houver homens sensatos na terra.104 Para finalizar ele reforça sua opinião e exemplifica através de Sophie, que é um exemplo para seu sexo e que ao final do livro terá um “final maravilhoso” casando-se com o homem que ama. A arte de pensar não é alheia às mulheres, mas elas só devem tocar de leve nas ciências de raciocínio. Sophie compreende tudo, mas não retém muita coisa. Seus maiores progressos acontecem na moral e nas coisas do gosto; quanto à física, só retém alguma idéia das leis gerais e do sistema do mundo.105 Sobre à educação citamos Michèle Crampe-Casnabet que disse que “A instrução possui uma finalidade política clara: a ignorância sempre favoreceu a tirania, o único meio para assegurar a liberdade e a igualdade no povo é dar-lhes instrução.”106 Foi isso que Madame d’Épinay compreendeu brilhantemente ao lutar pela causa da educação das mulheres, para que essas não ficassem submetidas aos mandos masculinos. Mãe- Quando você cultiva sua razão, você abre tantas novas fontes de prazer e satisfação que você está prestes a embelezar a sua vida, tantos recursos contra o tédio, tanto consolo nas adversidades, quando você adquire talentos e conhecimentos. Esses são os bens que nenhuma pessoa pode retirar de você, que te livra da dependência de outros, porque você não precisa se preocupar e apenas ser feliz; e coloca os outros sob sua dependência: porque quanto mais talentos e luzes nós temos, mais necessárias nos tornamos para a sociedade. Sem contar que é o remédio mais eficaz e mais certo contra a ociosidade, que é o inimigo da felicidade e da virtude.”107 104 Ibidem.p.601 Ibidem.p.627 106 CRAMPE-CASNABET,Michèle. Op.cit.pp.400 107 ÉPINAY, Madame. Op.cit. p.249 “Losque vous portez vos soins à cultiver votre raison, et l’orner de connaissances utiles e solides, vous vous ouvrez autant de sources nouvelles de plaisir et de satisfaction; vous vous préparez autant de moyens d’émbelir votre vie, autant de ressources contre l’ennui, autant de consolations 105 53 Em relação à vida de Emilie, esta se casou em março de 1786 com o conde de Bueil, e por conseqüência da Revolução de 1789 a França tornou-se insuportável para viver, assim tiveram que deixar Paris o que fez com que “Emilie assumisse a educação de seus filhos.” 108 Percebemos o quão importante para sua vida foi a educação que obteve através de sua avó, pois pôde garantir a seus filhos a educação, dando continuidade ao trabalho iniciado com ela por Madame d’Épinay. dans l’adversité, que vous acquérez de talens et de connaissances. Ce sont des biens que persone ne peut vous enlever, qui vous afranchissent de la dépendance des autres, puisque vous n’en avez pas besoin pour vous occuper et pour être heurese; qui mettent au contraire les autres dans votre dépendance: car plus on a de talens et de lumieres, plus on devient utile et nécessaire dans la société. Sans compter que c’est le remede plus efficace et le plus sûr contre le désoeuvrement, qui est l’ennemi le plus redoubtable du bonheur et de la vertu.” N.T. – Tradução Livre. 108 Ibidem.p.29. “Ce fut Emilie qui assura l’education de sés enfants.” N.T – Tradução Livre CONCLUSÃO O trabalho aqui apresentado buscou através da história das mulheres, resgatar a memória de Madame d’Épinay e também fazer uma comparação entre as propostas de educação pensadas para as mulheres por Jean-Jacques Rousseau e Madame d’Épinay. Ao tratarmos deste tema poderíamos ter analisado outros autores que também discorreram a respeito da educação das mulheres. Analisamos John Locke e François Fenelon pelo fato de tanto Rousseau quanto d’Épinay terem referenciado esses autores em suas obras. Devemos ressaltar que não foram apenas eles que trataram a respeito da educação, tanto de homens quanto de mulheres, mas é que pela abrangência do período e pelo motivo pelo qual o trabalho se propôs é que tivemos que fazer algumas escolhas. O importante é compreender que as mulheres mesmo sendo dominadas seguiram em frente e conquistaram seus espaços, sejam na educação, em casa ou na política. Cada conquista individual da mulher era uma conquista para todas. Tomamos aqui o exemplo de Madame d’Épinay, que ao lutar por uma educação igualitária não o fez pensando apenas em si mesma, mas sim pensando na condição das mulheres na sociedade de sua época. O reflexo pode não ter sido sentido por todos imediatamente à publicação de sua obra, mas a sua voz não ficou silenciada, e cada escritora que combatia pela igualdade dos direitos femininos de certa forma homenageava a memória de Madame d’Epinay. A sua maior contribuição foi o desejo por igualdade no terreno da educação feminina e o fato de ter argumentado em favor das mulheres contra um dos maiores teóricos a respeito da educação, Rousseau. Assim, buscar o papel da mulher escritora, o lugar das mulheres nos salões nos revela o quão importante e complexo é o estudo acerca do universo feminino. Na história, para compreendermos algo é necessário procurar outros fatores que estão relacionados com aquilo que se investiga, pois os fatos e as circunstâncias nunca são isolados e transparentes. Estudarmos a obra de Madame d’Épinay nos levou a compreender o século XVIII, o Iluminismo, além do mais importante, analisar o papel das mulheres que 55 estavam envolvidas nesse contexto e também o papel da mulher escritora. Todos esses entendimentos fizeram parte dessa pesquisa para que pudéssemos analisar as propostas pedagógicas de Rousseau e Madame d’Épinay. FONTES ÉPINAY, Madame de. Les Conversations d’Emilie. Oxford: Voltaire Foundation, 1996. ROUSSEAU, Jean-Jacques. Emilio ou Da Educação. São Paulo: Martins Fontes. 2004. REFERÊNCIAS BADINTER, Elisabeth. Émilie, Émilie. A ambição feminina no século XVIII. São Paulo: Discurso Editorial: Duna Dueto: Paz e Terra, 2003. ________________. Um Amor conquistado: o mito do amor materno. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1985 BARRE, Poullain de La. De l’egalité des deux sexes. Paris.1676 BLOCH, Jean. Discourses of female education in the writings of eighteenth-century French women. In: KNOTT, Sarah; TAYLOR, Barbara. Women, Gender and Enlightenment. Nova York: Palgrave Macmillan. 2007 BOCK, Gisela. Querelle des femmes: a european gender dispute. In: Women in european history. Oxford: Blackwell Publishers.2002. CARON, Melinda. Conversations intime e pédagogie dans Les Conversations d’Emilie de Louise d’Épinay. On line http://www.theses.ulaval.ca/cocoon/meta/2003/20994.xml acessado em 20/03/2009 CRAMPE-CASNABET, Michele. “A mulher no pensamento filosófico do século XVIII”. In: História das Mulheres no Ocidente: do Renascimento à Idade Moderna. Coimbra: Afrontamento. 1990 57 D’ARAGONA, Tullia. Sobre a infinidade do amor. São Paulo: Martins Fontes. 2001 DAVIS, Natalie; FARGE, Arlette. Introdução. In: História das mulheres no ocidente: do Renascimento à Idade Moderna. Coimbra: Afrontamento. 1990 Enciclopédia Católica (on line) http://www.newadvent.org/cathen/06035a.htm acessado em 20/05/2009 FÉNELON, François de la Mothe. La educación de las Jovenes. Argentina : Editorial Difusion. 1945. GODINEAU, Dominique. A mulher. In: Vovelle, Michel. (org) O Homem do Iluminismo. Lisboa: Editorial Presença. 1997 JAHPIASSÚ, Hilton; MARCONDES, Danilo. Dicionário básico de filosofia. Rio de Janeiro: Zahar. 2006 LOCKE, John. Some thoughts concerning education. Nova York : Dover Publications. 2007 MASON, Amelia Gere. The women of the french salons. 1891. (on line) www.worlwideschool.org. acessado em 29/03/2009 MOI, Toril. Sexual/Textual Politics – Feminist literary theory.Londres: Routledge.1985 OLIVEIRA, Adriana Vidal de; Pilatti, Adriano (Orientador). A expressão constituinte do feminismo: por uma retomada do processo liberatório da mulher.2007 (on line) http://www2.dbd.pucrio.br/pergamum/tesesabertas/0510776_07_cap_03.pdf acessado em 11/05/2009 PERROT, Michelle. Minha história das mulheres. São Paulo: Contexto. 2007 SCOTT, Joan. Gênero: uma categoria útil de análise histórica. (on line) http://www.dhnet.org.br/direitos/textos/generodh/gen_categoria.html 58 ___________. “La querelle des femmes” no final do século XX. Revista de estudos feministas. Vol.9 nº2. Florianópolis.2001. (on line) http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S0104-026X2001000200004&script=sci_arttext acessado em 24/03/2009 ROSS, Sarah. Her father’s daughter: Cassandra Fedele, woman humanist of the Venetian Republic. (on line) http://www.helsinki.fi/collegium/eseries/volumes/volume_2/002_11_ross.pdf acessado em 10/03/2009 ROSSI, Aparecido. Seria a pena uma metáfora para o falo? Ou a inquietante presença da mulher na literatura. (on line) http://www.nee.ueg.br/seer/index.php/icone/article/viewFile/46/73 acessado em 29/03/2009 SILVA, KalinaV.; SILVA, Maciel H. Dicionário de conceitos históricos. 2ª edição.São Paulo: Contexto. 2008 SONNET, Martine. “Uma filha para educar”. In: História das mulheres no Ocidente. Do Renascimento à Idade Moderna. Tradução de Maria Carvalho Torres. Lisboa: Edições Afrontamento, 1991. TROUILLE, Mary. La Femme Mal Mariée : Mme d’Épinay’s challenge to Julie and Emile. (on line) http://muse.jhu.edu/demo/eighteenthcentury_life/v020/20.1trouille.html acessado em 25/05/2009 VOVELLE, Michel. (org) O Homem do Iluminismo. Lisboa: Editorial Presença. 1997 WOOLF, Virgínia Um teto todo seu. São Paulo : Círculo do Livro.1929 59 OBRAS CONSULTADAS ALMEIDA, Lélia. Mulheres que escrevem sobre mulheres que escrevem. Disponível em:<www.unisc.br/cursos/pos_graduacao/mestrado/letras/anais_2coloquio/mulheres_ que_escrevem.pdf Acesso em 28/04/2008. ARIÈS, Philippe. A história social da criança e da família. Rio de Janeiro: Jorge Zahar.1978. BENOIT, Lelita Oliveira. Feminismo Gênero e Revolução (on line) http://www.unicamp.br/cemarx/criticamarxista/05lelita.pdf BOSCHILIA, Roseli. Da mulher ao gênero: a elaboração de um conceito. (on line) http://www.cidadedoconhecimento.org.br/cidadedoconhecimento/sep/arquivo/100.pdf CHARTIER, Roger. Leituras e leitores na França do Antigo Regime. Tradução de Álvaro Lorencini. São Paulo: Editora UNESP, 2004. _______________ A história cultural entre práticas e representações. Lisboa/Rio de Janeiro, DIFEL/Editora Bertrand Brasil, 1990 DULONG, Claude. “Da conversação à criação”. In: História das mulheres no Ocidente. Do Renascimento à Idade Moderna. Tradução de Maria Carvalho Torres. Lisboa: Edições Afrontamento, 1991. pp. 467-495. DUBY, Georges (org.); PERROT, Michelle (org.) História das Mulheres no Ocidente: Antiguidade. Coimbra: Afrontamento, 1990 v. I DUBY, Georges. PERROT, Michelle. História das Mulheres no Ocidente: do Renascimento à Idade Moderna. Coimbra: Afrontamento, 1990 v. 3. ELIAS, Norbert. A sociedade de corte. Lisboa: Editora Estampa, 1987. FORTES, Luiz Roberto Salinas. Rousseau: o bom selvagem. São Paulo: FTD, 1989. 60 KELLY, Joan. Early feminist theory and Querelle des Femmes, 1400-1789 in:Signs: Journal of Women in Culture and Society (Chicago: University of Chicago Press, 1975-). 8:1 (1982): 3-28. MARTINS, Ana Paula Vosne. Da amizade entre homens e mulheres: cultura e sociabilidades nos salões iluministas. História: Questões e Debates. Curitiba: UFPR.2007. ________________. Os salões iluministas e a produção da escrita de mulheres. . PEDRO, Joana Maria. Traduzindo o debate: o uso da categoria gênero na pesquisa histórica. 2006 . (on line) http://www.scielo.br/pdf/his/v24n1/a04v24n1.pdf PERROT, Michelle. Os excluídos da história. São Paulo: Paz e Terra.1988 ____________ e FARGE, Arlette. “Debate”. In: DUBY, Georges e PERROT, Michelle. As mulheres e a história. Tradução de Miguel Serras Pereira. Lisboa: Publicações Dom Quixote, 1995. RIBEIRO, Arilda Ines Miranda. Vestígios de educação feminina no século XVIII em Portugal. São Paulo: Arte e Ciência.2002 SOIHET, Rachel. “História das mulheres”. In: CARDOSO, Ciro Flamarion e VAINFAS, Ronaldo (orgs). Domínios da história: ensaios de teoria e metodologia. Rio de Janeiro: Campus, 1997 SONNET, Martine. “Uma filha para educar”. In: História das mulheres no Ocidente. Do Renascimento à Idade Moderna. Tradução de Maria Carvalho Torres. Lisboa: Edições Afrontamento, 1991. pp. 142-179. TRINDADE, Etelvina Maria de Castro. Clotildes ou Marias : mulheres de Curitiba na Primeira República. Curitiba : Fundação Cultural.1996.
Documentos relacionados
Jean-Jacques Rousseau
Jean-Jacques Rousseau Jean-Jacques Rousseau foi um dos mais considerados pensadores europeus no século XVIII. Sua obra inspirou reformas políticas e educacionais, e tornou-se, mais tarde, a base do...
Leia maisManuais de civilidade e tratados sobre a educação portugueses
para estimular a criatividade e a imaginação, coisas tidas como perigosas. Jean Jacques Rousseau, já no século XVIII, depois de discutir a melhor forma de educação para o homem, na figura de Emílio...
Leia mais