referenciação em atividades de leitura com crônicas

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referenciação em atividades de leitura com crônicas
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Universidade Federal do Rio de Janeiro
REFERENCIAÇÃO EM ATIVIDADES DE LEITURA COM CRÔNICAS: UMA ANÁLISE
DOS LIVROS DIDÁTICOS DE PORTUGUÊS
Fabiana da Costa Gonçalo
Faculdade de Letras/ UFRJ
2013
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REFERENCIAÇÃO EM ATIVIDADES DE LEITURA COM CRÔNICAS: UMA ANÁLISE
DOS LIVROS DIDÁTICOS DE PORTUGUÊS
Fabiana da Costa Gonçalo
Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de
Pós-Graduação em Letras Vernáculas da Universidade
Federal do Rio de Janeiro como quesito para a obtenção
do Título de Mestre em Letras Vernáculas (Língua
Portuguesa).
Orientador: Profa. Doutora Leonor Werneck dos Santos
Rio de Janeiro
Fevereiro de 2013
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Referenciação em atividades de leitura com crônicas: uma análise dos livros didáticos de
português
Fabiana da Costa Gonçalo
Orientadora: Professora Doutora Leonor Werneck dos Santos
Dissertação de Mestrado submetida ao Programa de Pós-Graduação em Letras
Vernáculas da Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ, como parte dos requisitos
necessários para a obtenção do título de Mestre em Letras Vernáculas.
Examinada por:
_________________________________________________ - Orientadora
Presidente, Profa. Doutora Leonor Werneck dos Santos - UFRJ
_________________________________________________
Profa. Dra. Cláudia de Souza Teixeira - IFRJ
_________________________________________________
Profa. Dra. Eliete Figueira Batista da Silveira - UFRJ
_________________________________________________ - Suplente
Profa. Dra. Rosa Cuba Riche – CAp UERJ
_________________________________________________ - Suplente
Profa. Dra. Regina Souza Gomes - UFRJ
Rio de Janeiro
Fevereiro de 2013
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Gonçalo, Fabiana da Costa.
Referenciação em Atividades de Leitura com Crônicas: Uma Análise dos Livros
Didáticos de Português/ Fabiana da Costa Gonçalo. Rio de Janeiro: UFRJ/ Faculdade
de Letras, 2013.
x, 127f.: il.
Orientadora: Professora Doutora Leonor Werneck dos Santos
Dissertação (Mestrado) – UFRJ/ Faculdade de Letras/ Programa de PósGraduação em Letras Vernáculas, 2013.
Referências Bibliográficas: f. 98-103.
1. Referenciação. 2. Linguística Textual. I. Santos, Leonor Werneck dos. II.
Universidade Federal do Rio de Janeiro, Faculdade de Letras, Programa de PósGraduação em Letras Vernáculas. III. Referenciação em Atividades de Leitura com
Crônicas: Uma Análise dos Livros Didáticos de Português.
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SINOPSE
Análise da referenciação
em atividades de leitura
com crônicas nos livros
didáticos.
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RESUMO
REFERENCIAÇÃO EM ATIVIDADES DE LEITURA COM CRÔNICAS: UMA ANÁLISE
DOS LIVROS DIDÁTICOS DE PORTUGUÊS
Fabiana da Costa Gonçalo
Orientadora: Professora Doutora Leonor Werneck dos Santos
Resumo da Dissertação de Mestrado submetida ao Programa de Pós-graduação em
Letras Vernáculas, Faculdade de Letras, da Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ,
como parte dos requisitos necessários à obtenção do título de Mestre em Letras Vernáculas.
Este trabalho insere-se nos estudos atuais da Linguística do Texto, reunindo dois
temas de suma importância nessa área: referenciação e leitura. Nosso objetivo principal é
investigar a existência de atividades de leitura e interpretação que abordem o funcionamento
de processos referenciais em crônicas presentes em 14 coleções de livros didáticos do
segundo segmento do Ensino Fundamental aprovadas pelo Programa Nacional do Livro
Didático de 2011. Para atingir esse objetivo, buscamos observar, principalmente, se são e
como são tratadas as estratégias referenciais nessas atividades. Como hipóteses iniciais,
acreditamos que os livros didáticos costumam priorizar a abordagem de recursos referenciais
em exercícios de ordem gramatical, utilizando a crônica como pretexto, e que os exercícios
sobre referenciação são de localização de referentes, sem possibilitar uma leitura mais
amadurecida e crítica desses textos. Este trabalho mostra-se relevante ao pretender demonstrar
que, com o auxílio da referenciação, os alunos possam ler e interpretar, refletindo sobre as
possibilidades de escolha que a língua oferece para a construção de sentidos dos textos.
Assim, a compreensão de um texto também depende do domínio da referenciação: por meio
das estratégias referenciais empregadas, o aluno pode identificar as intenções comunicativas
dos textos, indo além do que está na superfície textual, o que evidencia uma leitura mais
aprofundada.
Palavras-chave: referenciação; leitura; crônicas; livro didático; intencionalidade.
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ABSTRACT
REFERENCIATION IN READING ACTIVITIES WITH CHRONICLES: AN ANALYSIS
OF PORTUGUESE LANGUAGE TEXTBOOKS
Fabiana da Costa Gonçalo
Guideline: Leonor Werneck dos Santos
Abstract of the Master’s dissertation submitted to Programa de Pós-Graduação em
Letras Vernáculas, Faculdade de Letras, Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ, as
part of requirements for obtaining the title of Master in Vernacular Letters (Portuguese
Language).
This work is part of the current studies of Textual Linguistics, bringing together two
issues of paramount importance in this area: referenciation and reading. Our main objective is
to investigate the existence of reading and interpretation activities that address the
referenciation processes in chronicles present at 14 collections of textbooks in the second
segment of Elementary Education approved by PNLD 2011. To achieve this goal, we seek to
observe especially if and how referenciation strategies are treated in these activities. As initial
hypotheses, we believe that textbooks tend to prioritize the use of referenciation resources in
grammatical exercises, using the chronicles as a pretext, and on exercises about the location
of referents without allowing a more mature and critique reading of these texts. This study is
relevant to show that, with the help of referenciation, students can read and interpret,
reflecting on the choice that the language provides for the construction of texts meaning.
Thus, the understanding of a text also depends on the referenciation: through referenciation
strategies employed, the student can identify the communicative intentions of the texts, going
beyond what is on the textual surface, which shows a further depth reading.
Keywords: referenciation; reading; chronicles; textbook; intentionality.
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Aos meus avós, Euza e Joaquim.
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AGRADECIMENTOS
Agradeço a Deus por ter me dado mais essa oportunidade e por ter me mantido forte
durante toda a caminhada.
Agradeço aos meus avós e a minha mãe, que sempre estão ao meu lado e me apoiam
incondicionalmente em tudo o que eu faço. São os meus amores, minha família. Devo tudo a
eles. Obrigada por todos esses anos de amor e de dedicação infinitos.
Agradeço ao meu pai e ao meu irmão por torcerem tanto por mim e por estarem
sempre presentes na minha vida, mesmo que não tenhamos um contato diário.
Agradeço ao Israel, pelo companheirismo, pela paciência e por sempre me animar
quando o desespero inevitável aparecia. Obrigada por ser tão carinhoso e tão cuidadoso
comigo desde sempre. Você nem imagina o quanto tem me ajudado.
Agradeço aos meus amigos, que me ouviram, me aconselharam e me deram momentos
de descontração para aliviar as preocupações com a dissertação.
Agradeço a minha orientadora, professora Leonor Werneck dos Santos. Tenho
aprendido muito com você e me sinto muito orgulhosa por ser uma das suas “meninas”.
Agradeço ao CNPq, por ter financiado esta pesquisa, o que foi indispensável.
Agradeço às editoras e, em especial, ao Welington, que forneceram os livros didáticos
analisados nesta pesquisa.
Agradeço a todos os professores que tive ao longo da minha vida e que contribuíram
para eu ser a professora que sou hoje.
Agradeço aos meus alunos, que dão sentido a isso tudo.
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SUMÁRIO
INTRODUÇÃO.....................................................................................................
11
1. A LINGUÍSTICA DO TEXTO.....................................................................
16
1.1 O texto como processo..............................................................................
16
1.2
Estrutura
argumentativa
e
estratégias
textuais-
discursivas...........................................................................................................
20
2. REFERENCIAÇÃO E CONSTRUÇÃO DOS SENTIDOS.......................
25
2.1 Uma atividade discursiva...........................................................................
25
2.2 Os processos referenciais atrelados à menção...........................................
31
3. LEITURA E ENSINO....................................................................................
41
3.1 As concepções de leitura............................................................................
41
3.2 A leitura e a interpretação nas aulas de língua portuguesa........................
43
3.3 A leitura e a interpretação nos LDP...........................................................
47
3.4 Aprofundando: a leitura e a interpretação associadas à Referenciação........
50
4. ANÁLISE DOS LIVROS DIDÁTICOS............................................................ 54
4.1 Metodologia...................................................................................................
54
4.2 Visão geral da referenciação nas atividades com crônicas dos LDP .............
58
4.3 Análise dos exercícios.....................................................................................
59
4.3.1 Repetição............................................................................................... 59
4.3.1.1 A repetição como um problema para o texto............................
59
4.3.1.2 A repetição e seus efeitos de sentido nos textos........................ 61
4.3.2 Identificação de referentes....................................................................
65
4.3.2.1 Sem interpretação......................................................................
65
4.3.2.2 Com interpretação......................................................................
69
4.4 Aprofundando a discussão.............................................................................
82
5. SUGESTÕES DE ATIVIDADES......................................................................
87
CONSIDERAÇÕES FINAIS................................................................................. 95
R EFERÊNCIAS..................................................................................................... 98
ANEXOS.................................................................................................................
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INTRODUÇÃO
Seguindo uma concepção sociocognitiva e interacional de linguagem, esta pesquisa
insere-se nos estudos atuais da Linguística do Texto sobre referenciação, pretendendo
contribuir para o ensino de leitura e compreensão textual nas aulas de língua portuguesa.
Nessa perspectiva, o presente trabalho tem por objetivo primordial investigar a existência de
atividades de leitura e interpretação que abordem o funcionamento de processos referenciais
com textos pertencentes ao gênero crônica, em 14 coleções de livros didáticos do segundo
segmento do ensino fundamental (6º a 9º anos), aprovadas pelo Programa Nacional do Livro
Didático (PNLD) de 2011.
A motivação para esse trabalho nasceu do interesse em estudar a referenciação,
processo relevante para a construção textual. A compreensão de um texto depende, dentre
outros fatores, do domínio das estratégias coesivas que permitem retomar informações já
mencionadas ou inferíveis no contexto e que fazem perceber as transformações pelas quais
passam os referentes ao longo do texto, de acordo com os propósitos comunicativos do
produtor textual. Nesse sentido, a referenciação é um importante processo cognitivo de
organização estrutural para a progressão temática do texto, com a construção, manutenção,
recuperação e transformação de referentes, contribuindo, assim, para a compreensão.
Apesar de já haver um tratamento textual nos estudos de língua, decorrente, em parte,
das diretrizes dos Parâmetros Curriculares Nacionais (BRASIL, 1998), a referenciação ainda é
abordada superficialmente, por ser um conceito relativamente recente e, por conta disso,
confundido com o conceito tradicional de coesão referencial. Devemos salientar, então, que a
opção por usar o termo referenciação em vez de coesão referencial decorre de este dizer
respeito apenas à recuperação de elementos linguísticos presentes na superfície textual,
enquanto aquele indica um processo mais amplo e interativo de escolhas, envolvendo fatores
extralinguísticos, tais como cultura, conhecimento de mundo, situação comunicativa entre os
interlocutores, dentre outros.
Por isso, assim como Koch (2002, 2004) e Cavalcante (2011), adotamos a concepção
não representacional de referência, entendendo-a dentro de uma perspectiva discursiva e
colaborativa entre os parceiros da enunciação, tratando a linguagem de modo flexível e
instável, e não como etiquetas prontas para serem distribuídas.
Conforme já mencionado em pesquisas anteriores (cf. TUPPER; GONÇALO;
CORTES, 2009) em que se observou a importância da referenciação no ensino, apesar de a
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Linguística do Texto conceber o texto como o “lugar de interação”, o ensino de língua
portuguesa continua priorizando a correção gramatical, em detrimento do estudo do texto, em
especial dos mecanismos de referenciação. As estratégias referenciais, que deveriam ser
utilizadas como um meio essencial de depreender o sentido, não têm sido contempladas
satisfatoriamente, principalmente no ensino fundamental, em que, salvo raras exceções, nem
são abordadas, deixando o “problema” para ser resolvido no ensino médio.
Ainda em relação à abordagem textual realizada pela tradição escolar, percebemos que
a leitura e a interpretação servem muitas vezes como pretexto para que o professor possa
introduzir algum assunto ligado a questões gramaticais, como ortografia e funções sintáticas
(cf. SANTOS, 2005). Como consequência dessas atividades, os alunos não sentem interesse
nem prazer pela leitura, não vendo função em uma prática que serve a fins puramente
didáticos. Dentro desse painel, conforme afirma Marcuschi (2008, p. 52), o problema do
ensino não é a ausência do trabalho através de textos, mas a inadequação com que esse
trabalho é realizado, com uma potencialidade restrita de exploração do tratamento linguístico.
Diante disso, verificamos que o texto deve ser tomado como unidade de ensino de língua
portuguesa. É preciso, principalmente, que se assuma uma concepção interacional (dialógica)
da língua, considerando a relação que há entre autor, texto e leitor.
Lembrando a noção de texto de Marcuschi (2008) – “evento comunicativo para o qual
convergem ações linguísticas, cognitivas e sociais” -, podemos associar os recursos
linguísticos aos sentidos que se pretende construir, o que torna mais dinâmico e produtivo o
estudo da gramática no texto, principalmente no âmbito referencial, e a intencionalidade tem
relação estreita com a argumentatividade. Partindo do princípio de que a argumentatividade
faz parte da língua, é essencial que consideremos a orientação argumentativa existente nas
estratégias referenciais. A seleção de um recurso referencial revela uma rede de implícitos, já
que não existe escolha neutra. É importante destacarmos, porém, que consideramos a
argumentação como atividade inerente às práticas sociais e discursivas, e não como um modo
de organização do discurso, assim como o são a narração, a descrição, a exposição e a
injunção.
Assim, unindo o estudo da referenciação ao ensino de leitura, escolhemos como
corpus para esta pesquisa as propostas de atividades relacionadas ao gênero textual crônica
nos livros didáticos de português (LDP). As crônicas são textos curtos, normalmente
considerados fáceis de ler, bastante contemplados e recorrentes nos LDP, que possibilitam a
abordagem de diversos aspectos relevantes para o ensino de língua portuguesa, como, por
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exemplo, pontos de vista, humor, conhecimento de mundo dos alunos, dentre outros (cf.
FERREIRA, 2008).
É um gênero que se origina no jornalismo, mas que, com o tempo, vai deixando de se
preocupar com a informação propriamente dita para dar espaço ao literário e, muitas vezes,
acaba trazendo uma reflexão crítica ao leitor. Por ser um gênero que se relaciona aos fatos do
cotidiano, mostra o funcionamento da língua em situações próximas da vida diária dos alunos,
provocando-lhes uma avaliação crítica do discurso dos cronistas e de como estes podem
intervir na formulação de opiniões, na transmissão ou ruptura de ideologias etc (ibidem).
Com relação à quantidade de crônicas que compõem nossa análise, temos um total de
39, sendo que sete delas também foram usadas para ilustrar os processos referenciais no
Capítulo 2. Devemos ressaltar que não é nossa preocupação, neste momento, fazer um estudo
sobre a crônica como gênero textual, mesmo que tenhamos que fazer algumas considerações a
respeito do gênero ao longo do trabalho.
Optamos por analisar as atividades com referenciação baseadas em crônicas que estão
inseridas nos LDP, pelo fato de que esses livros são um material importante no trabalho
docente, servindo como um guia e suporte teórico para os professores, bem como fonte de
estudo para os alunos. Contudo, nem sempre tais compêndios mostram-se eficazes no
tratamento linguístico, principalmente por legitimar um ensino de língua portuguesa preso a
regras do “falar e escrever corretamente” (cf. SANTOS, 2005, 2009).
Sabemos que há muitas pesquisas sobre o fenômeno da referenciação, porém ainda são
poucos os estudos que o associem às atividades de leitura e interpretação. Além disso, com
relação à argumentatividade das estratégias referenciais, é comum esse estudo em textos
predominantemente argumentativos, como os artigos de opinião, editoriais, textos
publicitários etc.
Assim, para a presente pesquisa com atividades de LDP, inicialmente, fizemos os
seguintes questionamentos: (1) Os recursos coesivos referenciais são explorados
especificamente nas atividades de leitura e interpretação com as crônicas?; (2) Como os
exercícios abordam os recursos referenciais nesses textos?
No intuito de responder a essas indagações, levantamos as seguintes hipóteses:
• Os LDP não costumam priorizar a abordagem de recursos referenciais nas atividades
com leitura e interpretação de textos, mas nos exercícios de ordem gramatical,
utilizando a crônica como pretexto;
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• Em geral, os exercícios sobre referenciação, nos LDP, são de localização de referentes,
sem provocar uma leitura mais aprofundada e crítica das crônicas.
Então, buscaremos observar, principalmente, se são e como são tratadas as estratégias
referenciais em atividades de leitura e interpretação de crônicas presentes nos LDP. Também
pretendemos sugerir algumas atividades, de elaboração própria, visando a contribuir para que
os professores tenham um suporte para tornar suas aulas de leitura e interpretação mais
produtivas, conseguindo despertar um maior interesse dos alunos. Assim, pretendemos, ainda,
contribuir para os estudos no campo da referenciação, incentivando novas pesquisas nessa
área, e também contribuir para um trabalho com mais qualidade em sala de aula, visto que,
atualmente, o ensino de língua materna tende a ter por foco os processos de leitura e produção
textual, seguindo os PCN.
Tendo em vista nossos objetivos, adotamos como alicerce teórico: a) estudos sobre a
referenciação, citando os trabalhos de Mondada, Apothéloz, Koch, Marcuschi, Marquesi e
Cavalcante; b) discussões em torno da argumentatividade, representados por Ducrot,
Charaudeau, Cortez, Pires e Giacomelli e Bakhtin; e c) estudos sobre a leitura, nas pesquisas
de Kleiman, Geraldi, Marcuschi, Travaglia e Koch.
De modo a organizar melhor esse arcabouço teórico, em termos de uma ordem
coerente, estruturamos esta dissertação em seis capítulos. No primeiro, faremos um panorama
geral da Linguística do Texto, mostrando como o conceito de texto foi se modificando ao
longo das décadas até chegar à visão sociocognitiva e interacional que temos hoje. Nesse
capítulo, também nos dedicaremos a refletir sobre o fato de que a linguagem é caracterizada
pela argumentatividade, pois todos nós somos sujeitos com determinadas intenções para
atingir nossos interlocutores.
O segundo capítulo dedica-se à abordagem da referenciação, partindo, brevemente,
dos seus estudos iniciais, que defendiam uma estabilidade entre o nome e seu referente no
mundo, até chegar à atual concepção, de uma atividade que se constrói no discurso e que é
construída pelo discurso. Além disso, nesse capítulo, ainda destacaremos que o uso de
expressões nominais é uma estratégia referencial com alto teor argumentativo.
Já o terceiro capítulo focará as questões ligadas ao ensino de leitura, tanto em relação
às aulas de língua portuguesa, quanto em relação aos livros didáticos dessa disciplina.
Adicionalmente, associaremos a leitura ao fenômeno da referenciação, considerando a
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importância da produção dos sentidos por meio da construção de referentes numa interação
constante com o texto.
O quarto capítulo será iniciado com a apresentação da metodologia e, posteriormente,
começaremos a análise dos cinquenta e seis livros didáticos, correspondentes a quatorze
coleções, com o intuito de verificar se e como o processo referencial é abordado nas
atividades de leitura e interpretação com crônicas. O modo como encaminhamos nossa análise
é qualitativo, mas também quantificaremos as ocorrências para verificar o número de
exercícios encontrados e as categorias de exercícios que são mais empregadas nas coleções.
No quinto capítulo, apresentaremos algumas propostas de atividades de leitura com o
uso de estratégias referenciais, buscando servir de subsídio para o trabalho docente em sala de
aula. Por fim, o sexto capítulo trará as últimas considerações a serem feitas sobre nossa
pesquisa, verificando a pertinência das hipóteses e objetivos postulados.
Sendo assim, este trabalho mostra-se relevante ao pretender que, com o auxílio da
referenciação, os alunos possam ler e interpretar, refletindo sobre as possibilidades de escolha
que a língua oferece para que determinados sentidos sejam atendidos.
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1. A LINGUÍSTICA DO TEXTO
1.1 - O texto como processo
Na década de 60, na Europa, surgiu a Linguística do Texto (LT), estabelecendo o texto
como a principal fonte de investigação dos fatos linguísticos, no lugar do então estudo da
palavra isolada e da frase descontextualizada. Até a primeira metade da década de 70, a
preocupação básica era em relação aos mecanismos interfrásticos, ou seja, componentes do
sistema gramatical, como correferência, pronominalização, artigo, ordem das palavras, dentre
outros usos que garantiam o estatuto de texto, visto como um produto. O objeto de estudo
principal era, então, a coesão, o que fez com que surgissem diversas gramáticas do texto.
A partir da segunda metade da década de 70, predominou, na LT, a perspectiva
pragmática (“virada pragmática”), defendendo o texto como a unidade básica de interação
humana, considerado no processo mesmo de sua constituição, e não mais um produto
acabado; por isso, os elementos que revelam as intenções dos falantes deveriam ser levados
em conta. Nesse momento, a língua deixa de ser encarada como um sistema autônomo e passa
a funcionar dentro das situações reais de comunicação de uma sociedade. São dessa época as
teorias dos Atos de Fala e da Atividade Verbal (cf. KOCH, 2004).
Na década de 80, o texto passa a ser visto como o resultado de processos cognitivos
(“virada cognitivista”), e a LT foi buscar explicações para as inferências por meio das
representações mentais. Nessa época, postula-se que se devem levar em conta os saberes
armazenados na memória dos parceiros da comunicação para explicar as operações
responsáveis pela forma como os textos são criados e utilizados. Esses saberes são de três
tipos: (i) linguísticos – noções gramaticais e lexicais; (ii) enciclopédicos – conhecimentos
gerais sobre o mundo e conhecimentos retirados de vivências pessoais e de eventos marcados
no espaço e no tempo; e (iii) sociointeracionais – conhecimentos que permitem reconhecer os
propósitos ou objetivos pretendidos pelo produtor de um texto, bem como tipos de atos de
fala, normas comunicativas gerais, tipos de ações linguísticas, gêneros e tipos textuais (cf.
KOCH e ELIAS, 2006).
A partir de 1980, discute-se, também, a dicotomia entre texto e discurso. Muitos
linguistas assumem uma perspectiva textual-discursiva, por considerarem que o texto não
deve ser visto simplesmente como uma superfície material que conduz ao discurso, mas como
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indissociável dele e definido pelo uso (cf. KOCH, 2002, 2004; MARCUSCHI, 2008;
CIULLA E SILVA, 2008).
A concepção atual da LT foi estabelecida a partir da década de 90 (“virada
discursiva”), baseando-se na perspectiva de Bakhtin (GOMES-SANTOS et al., 2010). O texto
começou a receber um tratamento de ordem sociocognitiva-interacional, pois não podia ser
entendido apenas como resultado de processos cognitivos. Segundo Koch (2004, p. 29-30),
fundamenta-se, nessa época, a ideia de que as operações não ocorrem apenas na mente do
indivíduo, mas são o resultado da interação de várias ações conjuntas praticadas por ele,
sendo, portanto, resultado de processos cognitivos e interacionais. Dessa forma, a partir da
concepção de base sociocognitiva-interacional, o texto passa a ser entendido como “lugar de
interação entre atores sociais e de construção interacional de sentidos” (KOCH, 2004, p. XII).
Dentro dessa perspectiva, a LT trouxe uma mudança para o estudo do texto,
considerando a interação humana pela linguagem (autor-texto-leitor), em que há uma coconstrução de sentidos. O processamento do texto acontece on-line e há um abandono da
concepção do texto como um resultado pronto e acabado, em uma relação de hierarquia autorleitor (cf. GOMES-SANTOS et al., 2010). Além disso, o contexto –, considerado por Van
Dijk (1997) como o conjunto de todas as propriedades da situação social que são
sistematicamente relevantes para a produção, compreensão ou funcionamento do discurso e
de suas estruturas –, passa a ser associado ao texto.
De acordo com essa nova abordagem, não devemos colecionar informações isoladas,
mas relacioná-las e tirar conclusões a respeito delas (PAULIUKONIS, 2007, p.242), isto é, no
lugar de somente entender qual o assunto de um texto, analisar as operações que a língua
oferece para estabelecer como e por qual motivo aquilo que se diz é dito. De acordo com
Koch (2002, p.19):
O processamento textual, quer em termos de produção, quer de compreensão,
depende, essencialmente, de uma interação (“inter-ação”) – ainda que latente – entre
produtor e interpretador. Esta atividade compreende, da parte do produtor do texto,
um projeto de dizer; e da parte do interpretador (leitor/ouvinte), uma participação
ativa na construção do sentido, por meio da mobilização do contexto, a partir das
pistas e sinalizações que o texto lhe oferece. Produtor e interpretador do texto são,
portanto, estrategistas, na medida em que, ao jogarem o jogo da linguagem,
mobilizam uma série de estratégias – de ordem sociocognitiva, interacional e textual
– com vistas à produção do sentido.
Nesse tratamento sociointeracional, o texto é um tecido formado de fios que, juntos,
formam uma unidade de sentido que transmite alguma informação num dado contexto, e não
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uma série de frases fragmentadas. Conforme Costa Val (2006, p. 3), o texto é uma “unidade
linguística comunicativa básica, já que o que as pessoas têm para dizer umas às outras não são
palavras nem frases isoladas”.
Assim, a interação faz parte de toda atividade linguística, verbal e não verbal, e
funciona sob uma série de regras entre os interlocutores: na interação verbal, os participantes
envolvidos buscam atingir determinados objetivos de acordo com um jogo de negociações.
Para Fávero, Andrade e Aquino (2011, p.16), toda comunicação interpessoal é uma relação
dialógica em que os parceiros adaptam, a todo o momento, seus diálogos às necessidades do
outro.
Sabendo que o texto é a linguagem colocada em uso, produzimos diversos textos no
nosso dia a dia para expressar as intenções e finalidades de nossos atos comunicativos. Tudo
dependerá de nossa escolha para um momento específico, do propósito comunicativo, para
suprir uma determinada necessidade nossa: pode ser um bilhete, uma carta, um e-mail, um
requerimento, uma lista de compras etc. Além de produzi-los, consumimos, porque somos
expostos a uma série de textos com formatos diferentes, com os quais temos que lidar durante
nossa vida: bula de remédio, notícia de jornal, manual de instrução, piada, charge, história em
quadrinhos, receita, dentre muitos outros que também existem para atender aos nossos
propósitos. Cada um desses textos cumpre uma finalidade social determinada e exige do leitor
várias habilidades para ser compreendido.
Desse modo, a leitura e a interpretação textuais são processos para reconstruir
sentidos, o que faz lembrar o Princípio de Interpretabilidade, de Charolles (1983, p. 189), que
postula que, quando apelamos para analisar os elementos contextuais, principalmente os de
natureza sociocognitiva e interacional, já estamos entrando no campo da coerência. Isso quer
dizer que a coerência está presente no próprio leitor, que interage com o autor e com o texto,
seguindo as pistas dadas e baseando-se nos conhecimentos de sua “bagagem cultural”, o que
significa que as incoerências são apenas aparentes, pois podem se desfazer na interação.
Desse modo, a coerência é “a unidade semântica do texto num contexto determinado
que toma corpo em sequências de enunciados” (GUIMARÃES, 2009, p.16), tendo uma
função de natureza cognitiva, comunicativa e de interação, e não só semântica e lógica.
Ressaltamos, porém, que há casos em que é justamente a ausência de coerência que dá o
sentido ao texto, atendendo a efeitos humorísticos, como é comum em piadas, charges e
tirinhas. Essa exceção é possível, pois trabalhamos com a concepção pragmática da coerência,
em que o comportamento automático e inconsciente do leitor é regido por princípios, fazendo
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com que a coerência não se limite mais a marcas textuais, mas a processos mentais existentes
entre enunciador e enunciatário.
O mesmo ocorre com as inferências, interpretações que misturam o que é dito
explicitamente com algo além desse dito. Diante disso, percebemos que os sentidos emergem
e são criados exclusivamente no discurso, fazendo com que a coerência também dependa da
interação com o leitor.
O produtor do discurso sabe da existência do interlocutor e conta com ele para se fazer
entender, podendo inclusive omitir certas informações que ele sabe que serão recuperadas,
seguindo a um Princípio de Economia. Por outro lado, o receptor supõe que o discurso seja
coerente e se esforça ao máximo para compreendê-lo. Dessa forma, há um acordo tácito de
cooperação entre os participantes da interação que permite que a comunicação se efetue com
sucesso. Para Costa Val (2006, p. 12), “essa cumplicidade do receptor para com o texto é que
possibilita que a produção não seja tarefa excessivamente difícil e tensa e, assim, viabiliza o
jogo comunicativo” [grifo da autora].
Como sinalizam Santos, Cuba Riche e Teixeira (2012, p. 16), um texto pode ser
coerente para um leitor e incoerente para outro, a depender das experiências de cada um.
Algumas pessoas têm mais facilidade em compreender determinados textos do que outras. É
mais fácil ler e interpretar quando se tem um contato mais frequente, quando aquilo faz parte
da experiência de mundo do indivíduo, pois ele já possui os conhecimentos prévios
necessários. Como por exemplo, uma dona de casa pode compreender uma receita mais
facilmente do que uma ata de reunião.
Portanto, atualmente, para a LT, o texto é uma unidade de análise considerada um
processo, uma “realidade incompleta, inacabada, sendo concretamente atualizada não só no
momento de sua produção, mas, principalmente, no momento de sua recepção” (BENTES;
RAMOS; ALVES FILHO, 2010, p.392). Para Marcuschi (2008), os três grandes pilares da
textualidade são o produtor/autor, o leitor/receptor e o próprio texto, que é visto como um
evento.
O texto é uma unidade sintático-semântico-pragmática e é preciso estudá-lo em
conjunto com as outras áreas, pois ele não tem sentido por si mesmo, só na interação. Em
especial, percebemos que a LT está intimamente relacionada à pragmática, pois aborda o
funcionamento do texto como atuação informacional e comunicativa, ressaltando o uso que o
indivíduo faz da língua.
20
De acordo com Cavalcante et al. (2010), a LT tem assumido abertamente a
necessidade de dialogar com diversas outras ciências, tais como a Filosofia da Linguagem, a
Neuropsicologia e a Literatura, sendo uma “ciência integrativa” (KOCH, 2002, p.157).
Conforme apontado por Koch e Marcuschi (1998), esse intercâmbio ocorre pelo fato de a LT
não conceber a língua como autônoma sob nenhum aspecto, fazendo com que adquira um
caráter multidisciplinar, dinâmico, funcional e processual. Sendo assim, segundo o autor, se o
texto é considerado uma entidade complexa, torna-se necessário um olhar multidisciplinar
para o entendimento dos fenômenos textuais.
1.2 - Estrutura argumentativa e estratégias textuais-discursivas
Diante dos nossos interesses nesta pesquisa, é importante ressaltar algumas noções
principais sobre a argumentação. Começamos, então, por duas importantes correntes teóricas:
a Teoria Semiolinguística do Discurso, de Charaudeau, e a Teoria da Argumentação na
Língua, de Ducrot. Essas duas teorias apresentam pontos de divergência, mas também trazem
aspectos comuns, como o fato de ambas privilegiarem a argumentação como objeto de estudo
e de terem se originado nas teorias da enunciação, partindo do princípio de que não é possível
estudar a língua em uso sem levar em conta o sentido, apreendendo-o pela perspectiva
enunciativa (BARBISAN et al., 2010).
De acordo com a Teoria Semiolinguística do Discurso, o discurso é visto como um
“jogo comunicativo” entre a sociedade e suas produções linguageiras. Essa teoria preocupa-se
em analisar o significado textual em função do projeto de influência e da ação persuasiva do
sujeito enunciador sobre o sujeito receptor/ destinatário em determinado contexto e em uma
situação de interação. Charaudeau (1983) afirma que argumentar é uma das funções da língua,
assim como narrar e descrever também o são.
Para a Teoria da Argumentação na Língua, há a concepção de que a própria língua é
argumentativa, ou seja, a argumentação é a função primordial da linguagem, e não a
informação, pois sempre se fala com a intenção de causar algum efeito no interlocutor, como
também assinala Koch (2011 [1983]). Ducrot (1983) desconsidera a objetividade na
constituição do sentido, mantendo a subjetividade e a intersubjetividade. Assim, o autor
importa-se com a argumentação apenas na microestrutura (enunciados, construções sintáticas,
articuladores argumentativos e léxico), com uma teoria que propõe a construção do sentido
pela interdependência entre dois segmentos que se encadeiam (teoria dos blocos semânticos).
21
Ao diferenciar essas duas teorias, Barbisan et al. (2010, p. 219) explicam:
Para Charaudeau, a argumentação é uma atividade complexa que parte de um sujeito
argumentante cuja experiência permite expressar uma convicção e uma explicação e
transmiti-la ao interlocutor, dirigindo-se à sua faculdade de raciocínio, com a
finalidade de persuadi-lo a mudar seu comportamento. Já para Ducrot, a língua
mesma é argumentativa, é da sua essência a argumentação. Considerando-se que o
sentido do enunciado é a representação de sua enunciação e que, pela enunciação, o
locutor, por intermédio da relação que estabelece com outros discursos, manifesta
seu ponto de vista sobre a realidade, recriando-a, não há possibilidade de
neutralidade e, em vista disso, todo uso da língua é argumentativo,
independentemente de seu modo de organização.
Conforme os postulados de Charaudeau (2010, p. 58-59), a argumentação é uma busca
por racionalidade – ideal de verdade – e uma busca de influência do eu sobre o tu, que tende a
um ideal de persuasão para que o outro compartilhe as suas ideias. Dentro desse aspecto, há o
estudo de conceitos de identidade e de alteridade, tendo em vista que não há um eu sem um tu
e vice-versa e que qualquer relação social é marcada por relações de influência, na qual todos
os indivíduos são atores.
Além da microestrutura, Charaudeau também considera, no estudo da argumentação, a
macroestrutura, composta por proposta, tese e argumentos, sendo que a tese é o espaço em
que se deve atribuir se algo é verdadeiro ou falso. Isso significa que o dispositivo
argumentativo não se limita a uma sequência de frases ou proposições ligadas por conectores
lógicos, pois o aspecto argumentativo de um discurso encontra-se frequentemente no que está
implícito. Para ele, o estudo da argumentação deve partir da macroestrutura para depois
atingir a microestrutura.
A partir da tese e dos argumentos que a sustentam, encontramos o ponto de vista, que
pode ocorrer por meio de estruturas linguísticas e textuais: estas dizem respeito à própria
organização do texto argumentativo na defesa dos argumentos; já aquelas se caracterizam
pelas escolhas sintático-semânticas – dentre as quais, está a referenciação, assunto desta
Dissertação.
Charaudeau e Ducrot
concordam que a linguagem
é caracterizada pela
argumentatividade, como forma de ação, que leva o outro a fazer X. Por trás de qualquer
discurso, há a intenção de transmitir ideologia(s), na acepção mais ampla do termo, uma vez
que tudo o que diz respeito à linguagem tem uma subjetividade inerente, pois todos nós somos
sujeitos com intenções e objetivos delimitados, que buscamos convencer o outro das nossas
ideias e fazer com que ele chegue às mesmas conclusões que nós.
22
Com relação a essas intenções dos sujeitos, Beaugrande e Dressler (1981), nos seus
princípios de textualidade, destacam a intencionalidade, em que todo produtor de um texto
atribui um propósito ao que escreve/fala. Porém, isso só terá efeito se for bem recebido por
parte do leitor/ouvinte, ou seja, se houver uma aceitabilidade, existindo uma interdependência
entre esses dois princípios. Seguindo esse raciocínio, se o sujeito sempre age para ser aceito
de modo que suas opiniões sejam mais bem recebidas do que as dos outros, não existe
neutralidade, haja vista que até o discurso que se declara “neutro” tem a intenção de ser o
mais objetivo possível, conforme evidencia Koch (2011, p.17):
O ato de argumentar, isto é, de orientar o discurso no sentido de determinadas
conclusões, constitui o ato linguístico fundamental, pois a todo e qualquer discurso
subjaz uma ideologia. A neutralidade é apenas um mito: o discurso que se pretende
“neutro”, ingênuo, contém também uma ideologia – a da sua própria objetividade.
Isso significa que admitimos as relações argumentativas dentro da própria língua, pois
“basta falar para argumentar” (PLANTIN, 1996). Cortez (2005) afirma que a argumentação
não deve ser encarada de forma homogênea, uma vez que há inúmeros recursos linguísticos
para o seu processamento e também porque a própria situação de uso da língua vai interferir
nesse processamento.
Para Guimarães (2009, p.98), o discurso é “um ato guiado por sujeitos que se
constituem em variados papéis sociais a partir de também variadas situações comunicativas”.
Como resultado disso, o texto é o espaço de interação usado pelo sujeito para expressar suas
ideologias e, à medida que o faz, ele se constrói e é construído.
Nesse âmbito, dentro do discurso, não existe um sujeito único, mas um sujeito
constituído socialmente, fruto de uma série de convenções sociais que guiarão o seu dizer.
Quando ele constrói o seu discurso, ele pode assumir vários papéis, de acordo com fatores
como contexto, emissor e destinatário.
Para Bakhtin (2000), em sua teoria dialógica da enunciação, a concepção dialógica da
linguagem evita um modo fechado de tratar as questões da língua, pois pressupõe a interação
sujeito-linguagem-história-sociedade, isto é, para ele, a fala não é individual, e sim social, por
sempre depender das condições de comunicação influenciadas pelas estruturas sociais.
Segundo essa teoria, há “um processo de intersubjetividade no qual a identidade torna-se o
reconhecimento do sujeito histórico através da alteridade, de outros seres sociais” (PIRES E
GIACOMELLI, 2008, p. 200). O autor ainda ressalta que todos os discursos apresentam uma
23
ideologia em maior ou menor escala. Esse enfoque dialógico pode ser observado no seguinte
fragmento:
[A palavra] nunca basta a uma consciência, a uma voz. Sua vida está na passagem de
boca em boca, de um contexto para outro, de um grupo social para outro, de uma
geração para outra [...]. Um membro de um grupo falante nunca encontra uma
palavra neutra na língua, isenta das aspirações e avaliações de outros ou despovoada
de vozes de outros. Absolutamente. A palavra ele a recebe da voz de outro e repleta
da voz de outro (BAKHTIN, 1929, p.203).
Com a língua, a ideologia surge numa sociedade, podendo se apresentar em qualquer
tipo de mensagem. Como efeito do uso da língua, o sujeito reconhece-se como tal e
compreende o seu papel dentro de um grupo de semelhantes, conseguindo tomar partido,
espelhar uma visão de mundo, levar à reflexão, emitir um juízo de valor positivo ou negativo
sobre determinado assunto ou situação e mobilizar pessoas. Logo, o indivíduo demonstra a
sua identidade social e ideológica pela linguagem, e não há um sujeito único produtor do
discurso, mas uma polifonia, um jogo de vozes diferenciadas na única voz do produtor do
texto, fazendo com que o discurso seja sempre construído em conjunto, à luz do contexto
social, da história, da época, da cultura, de discursos anteriores retidos na memória etc. É o
que se verifica no seguinte trecho:
A língua, bem como os indivíduos que a usam, está situada em um contexto sóciohistórico. Ao veicular concepções de mundo, a linguagem torna-se um lugar de
confrontos ideológicos, uma vez que carrega uma carga semântica de valores
culturais que exprimem as cizânias e as contradições da sociedade. Esta
característica de plurivalência social do signo linguístico deve-se ao seu valor
contextual, visto que a situação social imediata é responsável pelos sentidos
manifestos (PIRES E GIACOMELLI, 2008, p. 203) [grifos das autoras].
Nesse ponto, a leitura cumpre um papel fundamental, pois os leitores demarcam e
constroem suas representações sociais a partir do que leem, principalmente em jornais e
revistas, que usam seus discursos, muitas vezes, para enraizar, na sociedade, valores, crenças,
estereótipos e até preconceitos. Segundo Cortez (2005, p. 47), uma teoria da argumentação
como atividade construtiva deve levar em conta uma “teoria da leitura”, por não se preocupar
apenas com a produção textual, mas com seu reconhecimento por parte de quem a lê.
Podemos, então, afirmar que cada texto busca, de algum modo, levar o leitor à
aceitação ou ao repúdio em relação às representações sociais. Pela linguagem, um discurso do
24
senso comum pode ser mantido ou alterado, a depender, especialmente, do seu
condicionamento ideológico por relações de poder.
Além disso, nossa experiência cotidiana também tem um papel fundamental na
construção de nossos discursos, porque, com ela, podemos reconhecer que um sentido novo
sempre se apoia em sentidos já existentes. Por esse motivo, ocorre um confronto discursivo
cujo jogo linguístico pode ser surpreendente ou não, percebendo em que medida o uso da
linguagem pode contribuir para manter os problemas da sociedade, por exemplo, ou em que
medida ele pode retificá-los (cf. PIRES E GIACOMELLI, 2008).
Logo, entendemos que a argumentação é uma atividade interativa, presente na língua
como um todo e, portanto, não se restringe apenas a alguns textos, mas faz parte de todos eles.
25
2. REFERENCIAÇÃO E CONSTRUÇÃO DOS SENTIDOS
2.1 - Uma atividade discursiva
Dentro das abordagens da LT, o processo de referenciação é um dos temas mais
recorrentes e analisados, estando longe de ter uma discussão esgotada e sendo,
frequentemente, associado a diversos campos do conhecimento, como a filosofia, a
psicologia, a sociologia, a análise do discurso, dentre outros. Trata-se de uma das formas de
estabelecimento da coesão textual, destacando-se como importante estratégia para introduzir
novas entidades ou referentes no texto. Diante disso, é importante entender como se formou a
noção atual que temos desse fenômeno.
A referenciação existe porque sempre fazemos referência a algo quando nos
reportamos a pessoas, animais, objetos, sentimentos, ideias, emoções, qualquer coisa, enfim,
que se torne essência, que se substantive quando falamos ou quando escrevemos (cf.
CAVALCANTE, 2011). Para a autora, existe referência em qualquer enunciação: uma troca
conversacional, a leitura de um texto verbal ou multimodal, um filme ou programa de TV etc
(apud ELIAS, 2011). Segundo Marcuschi (2007a, p.105), a referência é aquilo que se
constrói, na atividade discursiva e no enquadre das relações interpessoais, em comum acordo
entre os atores sociais envolvidos numa determinada situação comunicativa.
Os referentes são entidades abstratas que construímos mentalmente, cada um de seu
modo, quando enunciamos um texto. No momento de interação, há uma instabilidade, porque
esses referentes não serão iguais para todos os participantes - cada um concebe e percebe as
coisas de um jeito - mas apresentarão muitos pontos em comum, permitindo a recuperação e
produção dos sentidos. Tudo dependerá da bagagem cultural dos enunciadores e da atenção
dada ao discurso (cf. CAVALCANTE, 2011). Sendo assim, os referentes não existem
sozinhos, e as escolhas feitas pelos falantes não são aleatórias.
Antes mesmo de esse assunto preocupar os linguistas, na Antiguidade Clássica, os
filósofos da linguagem e os lógicos já mostravam seu interesse pelo modo como as expressões
nomeavam as entidades, fazendo uma associação direta entre significado, significante e
referente. Platão e Aristóteles entendiam o referente como algo que subsistia exteriormente ao
texto materializado, enquanto que a referência era a relação entre um dizer e um não dizer.
Platão, que era de uma orientação realista e essencialista da significação, considerava
que a linguagem exigia que se pensasse o real como tendo existência própria. Nessa visão, a
26
função da linguagem seria descrever e representar o real. Por outro lado, havia os sofistas, de
uma orientação relativista, que incluíam a subjetividade na linguagem, considerando o que era
extralinguístico. Embora a visão atual de referência se aproxime mais da perspectiva dos
sofistas, devemos fazer a ressalva de que o que eles entendiam por extralinguístico não é
integralmente o mesmo que se entende hoje, pois, antigamente, apenas o entorno
sociocomunicativo era considerado extralinguístico.
Posteriormente, no entendimento de Santo Agostinho, a noção de referente confundiase com a de objeto denotado, uma vez que não haveria significado se não houvesse referente,
o que fez com que referência e denotação se tornassem sinônimos. Esse conflito conceitual,
nos dias de hoje, não faz sentido, tendo em vista que o significado denotativo do signo não é
suficiente para a interpretação e, por isso, a referência vai além do sentido concreto das
palavras. Somente a denotação pode tratar das palavras em sentido literal ou estado de
dicionário, pois a referência necessita obrigatoriamente de um contexto. Nas palavras de
Cavalcante (2011, p. 22): “a denotação pertence ao âmbito do sistema, ao passo que a
referência só se efetiva no uso”.
Então, percebemos que, durante muito tempo, a questão da referência foi entendida e
estudada como uma forma de representação do “mundo real” no cotexto, ou seja, as formas
linguísticas utilizadas para retomar ou antecipar algo, na superfície textual, deveriam ser
selecionadas de acordo com critérios de correspondência e veracidade em relação ao mundo
exterior que, por sua vez, estava pronto para ser espelhado (cf. CAVALCANTE et al., 2010).
É nessa perspectiva de reflexo da realidade que está a noção tradicional de coesão referencial,
que concebe a linguagem como transparente e considera os referentes como objetos do
mundo, excluindo o contexto e a construção de efeitos de sentido. Em outras palavras, a
noção de “fazer referência a algo” dizia respeito a algo estritamente linguístico: a relação
entre palavras isoladas e referentes do mundo real prontos para serem etiquetados e
manipulados de modo rígido.
Posteriormente, alguns estudiosos, como Mondada, Apothéloz & Reicher-Béguelin e
Koch, voltaram-se para a necessidade de considerar uma perspectiva sociocognitiva e
interacionista no que diz respeito à referência, entendendo que referentes são construtos
culturais que se dão na cena de enunciação e podem ser transformados dentro da situação
comunicativa. De acordo com essa concepção, as formas linguísticas selecionadas devem ser
avaliadas segundo a adequação aos propósitos e às ações em curso dos enunciadores, que
compartilham a mesma sociedade, isto é, trata-se a língua como uma negociação entre
27
indivíduos e exclui-se uma possibilidade de mundo excessivamente estabelecido e delimitado,
“pronto para receber uma etiqueta lexical incontestável e válida para todos os sujeitos”
(CORTEZ, 2005, p. 24).
Quando lemos, ouvimos ou produzimos textos, não estamos diante de referentes do
mundo real, pois não há uma relação natural entre palavras e coisas, mas estamos diante de
uma representação por um sistema simbólico, que é a língua. Dessa forma, o discurso
representa o referente segundo a subjetividade do sujeito, o que significa dizer que um
referente sempre será construído por um ponto de vista.
O nome que damos a um referente não serve para designá-lo por completo, mas
mostra como nós o concebemos e interagimos com ele. Mondada e Dubois (1995) declaram
que os referentes dependem muito mais dos múltiplos pontos de vista dos indivíduos em
relação ao mundo do que de um contrato imposto pela materialidade do mundo. Isso implica
dizer que podemos associar a referenciação à argumentação ao lidar com as escolhas lexicais
dos falantes para construir os sentidos pretendidos.
A presença do enunciador no discurso ocorre por meio dessas escolhas referenciais
que ele faz, isto é, ele se revela no texto pela referenciação, marcando o seu ponto de vista.
Mesmo quando se esforçam para ser isentos de posicionamento, tomam um determinado
partido. Conforme menciona Rabatel (2005a, p.121), “o modo de apresentação dos referentes
comporta saberes e marcas de um modo de falar, perceber e/ou pensar que aponta para
determinado enunciador”.
Desse modo, a língua deixa de ser observada como somente uma capacidade mental de
corresponder à realidade e passa a ser analisada em relação às práticas sociais e às situações
comunicativas, tendo em vista que os falantes estão a todo o momento fazendo negociações
para alcançar os sentidos pretendidos. Quando falamos e escrevemos fazendo referência a
pessoas, animais, objetos, sentimentos, ideias etc, levamos em conta a interação com o outro,
baseada nas nossas vivências socioculturais (cf. CAVALCANTE, 2011, p.15).
Essa
concepção
construtivista
da
referência,
em
oposição
à
concepção
representacional da tradição filosófica e epistemológica, demonstra a relação intersubjetiva
que re (cria) e ressignifica a realidade, bem como as avaliações em termos de adequação à
situação comunicativa vigente. Nas palavras de Cortez (2011, p.111), não interessa a
“apreensão exata do real e sua verificação, mas a forma como o real é problematizado,
conceituado, discursivizado ou textualizado na e para a defesa de posições”. Por isso, segundo
Marcuschi (2005) e Marquesi (2007), o mundo comunicado é fruto de um agir comunicativo
28
ou de uma ação discursiva, e não de uma identificação de realidades discretas, objetivas e
estáveis. A língua não pré-existe, visto que ela somente ocorre nas situações concretas de uso.
Nesse sentido, Mondada e Dubois (1995) e Mondada (2001) propõem a redefinição da
noção de referência, com a substituição dos termos referência e coesão referencial por
referenciação e, consequentemente, de referente por objeto-de-discurso, tendo em vista que o
foco passa a ser atribuído às atividades interativas entre sujeitos históricos e sociais, que
constroem objetos que não espelham fielmente a realidade extralinguística, mas são
construídos no e pelo próprio discurso. Entendemos que, ao falar de referenciação, não
estamos falando simplesmente de mais uma dentre as várias operações linguísticas existentes
e de um sujeito único, mas de um processo colaborativo entre os parceiros da interação.
Logo, a referenciação, dentro dos estudos atuais da Linguística do Texto, é um
processo muito mais complexo e amplo, não importando como nomeamos o mundo, mas
como interagimos com ele, fazendo com que o mesmo possa ser não só construído, como
também mantido e alterado. A respeito disso, Koch (2004, p. 57) afirma que a referenciação
constitui uma atividade essencialmente discursiva, o que implica uma visão não referencial da
língua e da linguagem, pois:
(...) nosso cérebro não opera como um sistema fotográfico do mundo, nem como um
sistema de espelhamento, ou seja, nossa maneira de ver e dizer o real não coincide
com o real. Ele reelabora dados sensoriais para fins de apreensão e compreensão. E
essa reelaboração se dá essencialmente no discurso [grifo da autora].
Considerando que os objetos-de-discurso não são elementos homogêneos, fixos,
estáveis e preexistentes à atividade cognitiva e interativa, mas produtos dela (APOTHÉLOZ;
REICHER-BÉGUELIN, 1995), devemos ressaltar que os sujeitos realizam uma série de
escolhas significativas, operando sobre o material linguístico de que dispõem, a fim de atingir
uma determinada intenção, fazendo com que o processamento do discurso seja estratégico
(KOCH, 2002, 2008). Desse modo, entendemos que interpretar uma expressão referencial é
muito mais do que localizar um antecedente explícito na superfície textual – como faz o
ensino tradicional nas escolas: é alcançar uma proposta de sentido do enunciador, captando a
informação veiculada no uso que ele faz das estratégias referenciais.
Os objetos-de-discurso não são entidades “estáticas, congeladas e registráveis em
dicionário”
(CAVALCANTE,
2011),
mas
representações
semióticas
instáveis
e
constantemente reformuláveis, podendo ser retomadas e servir de base para a introdução de
outros objetos. A manutenção, a desfocalização e a recategorização dos referentes ao longo do
29
texto ocorrem de acordo com diversos fatores externos, como crenças, cultura, conhecimento
de mundo etc.
Entendemos por manutenção o momento em que um objeto-de-discurso já introduzido
permanece em foco no texto, por meio de alguma estratégia referencial. Por outro lado,
quando um objeto até então em foco fica em stand by, abrindo espaço para a introdução de
um novo objeto-de-discurso, temos a desfocalização. O objeto também pode ser
transformado, recategorizado, se houver uma mudança de ponto de vista (cf. KOCH e ELIAS,
2006). Para Mondada e Dubois (1995), a instabilidade dos objetos está intimamente ligada à
multiplicidade de pontos de vista que os sujeitos exercem sobre o mundo.
Koch (2004) afirma que a compreensão dos sentidos de um texto requer a mobilização
de um conjunto de conhecimentos linguísticos, enciclopédicos e interacionais, cabendo ao
leitor construir a imagem retratada pelo produtor do texto e aderir ou não a ela.
Nota-se, pois, que o perfil do que hoje se entende como referente, em LT, sofreu
radical transformação: saiu da relação entre expressões referenciais e marcas
cotextuais explícitas para uma entidade construída da forma conjunta, negociada e,
ao mesmo tempo, representada na mente dos participantes da enunciação. A
dinamicidade dos fatores envolvidos nessa ação contínua, mesmo que gere uma
ilusão ou um efeito de estabilidade, torna os processos referenciais recategorizáveis
no transcurso da interação (CAVALCANTE et al., 2003, p. 235) [grifo das autoras].
Ao fazer uso de diversos processos referenciais para (re) construir um objeto-dediscurso, tem-se a progressão referencial do texto, com a introdução, a identificação, a
preservação, a continuidade e a retomada dos referentes. Essa progressão faz do texto um todo
significativo, ou seja, colabora não só para a construção de sentido pretendido pelo produtor –
coerência discursiva –, como também para a própria organização textual, dando continuidade
e estabilidade e, portanto, contribui para o desenvolvimento do tópico discursivo.
A nomeação de um referente envolve uma reflexão sobre o próprio dizer, o que faz
com que a seleção referencial mais apropriada ocorra com base no receptor, nos propósitos
comunicativos, no contexto, no gênero textual em questão etc. O produtor textual pode ter a
intenção de criticar algo, de ressignificar um termo em evidência, de causar humor, dentre
outras opções, fazendo com que haja uma grande instabilidade na nomeação dos referentes.
Como dissemos antes, a recategorização – transformação de um referente – nunca é isenta de
ideologia, no sentido de apresentar um ponto de vista. Com base nisso, verificamos que o
conceito de referenciação engloba o conceito de coerência.
Para que haja um controle entre o que já foi dito (informação velha), o que será dito
(informação nova) e o que é sugerido, é necessário fazer retomadas constantes, garantindo,
30
assim, que o texto progrida. Dessa forma, o texto tem um movimento projetivo e um
retrospectivo1, e a manutenção dos objetos-de-discurso pode realizar-se através de recursos de
ordem gramatical (pronomes, elipses, numerais, advérbios locativos etc.) e de ordem lexical
(reiteração de itens lexicais, sinônimos, hiperônimos, nomes genéricos, expressões nominais
etc.), que constituem as estratégias de referenciação, mostrando as escolhas do sujeitoenunciador no seu querer-dizer.
Concordamos com Koch (2006) quando ela diz que, dentre todas as estratégias
referenciais, o uso de expressões nominais é o mais produtivo para imprimir uma orientação
argumentativa nos enunciados em que se inserem, fazendo com que o leitor tenha um
“roteiro” de leitura condizente com a proposta enunciativa do seu produtor. Para Koch (2004,
p.139), tais expressões funcionam como uma “espinha dorsal do texto”, que fazem com que o
leitor construa um planejamento que irá orientar o seu entendimento.
De acordo com Koch (2005, 2006), as expressões nominais definidas e indefinidas,
além de apresentarem um alto teor argumentativo, contribuem para a progressão temática do
texto. As definidas são constituídas por, no mínimo, um determinante definido ou
demonstrativo, antecedendo um nome, enquanto as indefinidas são aquelas formadas por
artigos indefinidos precedendo um nome. Esses nomes também podem ser acompanhados de
modificadores, tais como adjetivos, locuções adjetivas e orações adjetivas.
Contudo, já que compartilhamos da visão de Koch (2004), Cavalcante (2011), dentre
outros, de que o objeto-de-discurso é uma construção discursiva, assumimos que ele não
precisa, obrigatoriamente, estar ligado a marcadores linguísticos específicos. Por exemplo, os
referentes são manifestados de modo mais próprio por certas formas disponíveis na língua,
mas isso não significa que eles tenham necessariamente que ser representados por uma
expressão referencial, embora a manifestação das expressões referenciais no cotexto seja
decisiva para a separação entre processos de introdução referencial e de anáfora
(CAVALCANTE, 2011, p. 53).
1
As abordagens mais tradicionais classificam a projeção como catáfora e a retrospecção como anáfora. Porém,
neste trabalho, com base em Cavalcante (2011), usaremos apenas o termo anáfora, mesmo que haja uma
antecipação. Para a autora, tudo é anáfora, porque não interessa a posição, mas o papel desempenhado no texto.
31
2.2 - Os processos referenciais atrelados à menção
Cavalcante (ibidem) considera a existência de dois grandes processos referenciais
atrelados à menção: a introdução referencial, que diz respeito à primeira vez em que as
entidades são introduzidas formalmente no texto; e a anáfora, que se estabelece quando os
referentes são retomados, dando continuidade referencial ao texto. Quando essa retomada é
realizada com a manutenção do mesmo referente em proporções variadas, gerando uma
correferencialidade, temos uma anáfora direta. Para exemplificar, segue um trecho do nosso
corpus, extraído da crônica “O nascimento da crônica” 2, de Machado de Assis:
Íamos em carros! Apeamo-nos à porta do cemitério e caminhamos um longo pedaço. O sol das onze
horas batia de chapa em todos nós; mas sem tirarmos os chapéus, abríamos os de sol e seguíamos a suar até o
lugar onde havia verificar-se o enterramento. Naquele lugar, esbarramos com seis ou oito homens
ocupados em abrir covas: estavam de cabeça descoberta, a erguer e fazer cair a enxada. Nós enterramos o
morto, voltamos nos carros, às nossas casas ou repartições. E eles? Lá os achamos, lá os deixamos, ao sol, de
cabeça descoberta, a trabalhar com a enxada. Se o sol nos fazia mal, que não faria àqueles pobres-diabos,
durante todas as horas quentes do dia?
Nesse fragmento, o termo em negrito “o lugar onde havia verificar-se o enterramento”
corresponde à introdução referencial, haja vista que ainda não havia aparecido esse referente
no cotexto. Trata-se de uma especificação do lugar do enterro propriamente dito, onde há as
covas, dentro do espaço do cemitério, e esse mesmo objeto-de-discurso é retomado e mantido
a seguir, pela expressão nominal “naquele lugar” e pelo advérbio “lá”, que são, portanto,
anáforas diretas.
Ainda nesse trecho, podemos observar outra introdução referencial, com o termo “seis
ou oito homens ocupados em abrir covas”; posteriormente, esse objeto-de-discurso é
recuperado, marcado correferencialmente pelo pronome pessoal do caso reto “eles”, pelo
pronome pessoal do caso oblíquo “os” e pela expressão nominal “aqueles pobres-diabos” –
outros casos de anáforas diretas. Com o uso da expressão nominal “aqueles pobres-diabos”,
podemos observar, de modo mais saliente, a intencionalidade do texto ao chamar a atenção
para o trabalho pesado dos coveiros debaixo do sol.
Entretanto, não são só as anáforas correferenciais que conferem progressão ao texto,
uma vez que expressões que não representam exatamente o mesmo referente em foco também
2
O texto integral e a referência desta e das demais crônicas utilizadas encontram-se no Anexo, na ordem em que
aparecem neste trabalho.
32
podem estar ligadas semanticamente a ele. Logo, esse tipo de anáfora, conhecida como
anáfora indireta, não se apresenta como retomada de um antecedente explícito na superfície
textual, mas como alguma relação decisiva para a interpretação, como a associação de
palavras pertencentes a um mesmo campo semântico, por exemplo.
Nas anáforas indiretas, não temos a recuperação do mesmo referente, e isso não causa
estranheza ao interlocutor, porque ele realiza um processo cognitivo inferencial, mobilizando
os conhecimentos armazenados na sua memória discursiva. Podemos relacionar itens do
vocabulário pertencentes a um mesmo esquema cognitivo. Por exemplo, se falamos de
viagem, podemos em seguida mencionar mala, passaporte, mapa, passagem de avião etc, e
esses termos serão facilmente interpretados como alusivos ao evento viagem.
Como afirma Marcuschi (2005), nesse caso, devemos abandonar a “clonagem
referencial”, com a identificação integral de referentes e atentar para a presença de uma
âncora em que o anafórico indireto se apoia. O autor salienta que a anáfora indireta relacionase a um processo de referenciação implícita, através de uma estratégia endofórica de ativação
de referentes novos, e não de uma reativação de referentes já conhecidos. A anáfora indireta
pode ser formada por expressões nominais definidas, indefinidas e pronomes, interpretados
referencialmente sem que lhes corresponda um antecedente ou subsequente explícito no texto,
o que implica uma atenção cognitiva conjunta dos interlocutores.
Em relação às atividades de leitura e interpretação na escola com a referenciação, é
bastante produtivo fazer com que o aluno observe as âncoras que podem servir de apoio às
anáforas indiretas. O estudante acostumado com exercícios mecânicos de “puxar uma seta”
para localizar geograficamente os referentes é surpreendido, pois não consegue encontrar
nada ao fazê-lo. Por isso, o professor deve alertar para o fato de que nem sempre há um
antecedente explícito no cotexto e que algumas palavras podem ser relacionadas por existir
uma dependência semântica entre elas. Porém, apesar de não ser o mesmo referente, não há
fuga ao tema do texto e, para o aluno perceber isso, ele precisa ativar seus conhecimentos
cognitivos.
Vejamos alguns exemplos, no fragmento da crônica abaixo, retirada do corpus:
33
Diálogo de festas (Stanislaw Ponte Preta)
Iam os dois sentados no banco da frente. O ônibus era desses que levam oitocentos em pé
e duzentos sentados. Pelo tempo que eu fiquei parado, junto ao poste, esperando-o, aquele devia ser
o último ônibus do ano. Mas isto não importa. O que me interessava – pelo menos naquele
momento – era a conversa dos dois, no banco da frente. Um era magrelinha, desses curvadinhos
para frente, vergado ao peso da vida. O outro parecia mais velho, mas era espigadinho. O cabelo
ralo, mais grisalho do que o do companheiro.
No momento, quem falava era o espigadinho: - Eu não cheguei a ver castanha, a não ser
em vitrina, é lógico.
- Eu vi! – disse o vergado: - Eu tenho um vizinho... o Alcides, você conhece. Aquele que a
filha fugiu com um sargento da Aeronáutica!
- Ainda está com ele?
- As castanhas?
- Não. O sargento da Aeronáutica, inda tá com a filha dele?
- Não. Com ela está é o filho que ele fez. Mas eu dizia: o Alcides comprou castanhas com
13º. Ele trabalha numa firma que paga certo.
- Estrangeira?
- Deve ser. O Alcides me mandou seis castanhas.
- Você que é feliz.
- Feliz nada. Tive que dar pra outro. Tenho sete filhos, seis castanhas ia causar
“probrema”.
O ônibus recebeu mais uns três ou quatro, que foram sentar lá na frente. A conversa entre
os dois continuou. Ainda desta vez, quem falou primeiro foi o espigadinho:
- A mulher do patrão me deu uma camisa.
- Tava boa?
- Tava larga.
- Eu ganhei um sapato, por causa do serviço que eu fiz pra Dona Flora.
- Tava bão?
- Tava apertado.
O curvado jogou o toco de cigarro pela janela e deu um suspiro. O companheiro sorriu:
(...)
Os elementos “banco da frente”, “lá na frente” e “pela janela” não retomam
exatamente o referente “ônibus”, mas se relacionam semanticamente a ele, pois marcam
localizações específicas que fazem parte do interior desse meio de transporte. O leitor, com
sua experiência de mundo, consegue interpretar facilmente esses novos referentes, reiterando
a imagem de que todo o diálogo entre os personagens se passa dentro de um ônibus. Então,
como a relação com “ônibus” é mais sutil, percebida por pistas cognitivas do cotexto,
classificamos os elementos destacados como anáforas indiretas.
Com base nesses exemplos, em consonância com Cavalcante (2011), entendemos que,
dentro do grupo das anáforas, há dois subgrupos – as anáforas diretas ou correferenciais e as
anáforas indiretas ou não correferenciais – e que progressão referencial não significa
necessariamente manutenção de um mesmo referente. Todavia, não podemos pensar que
apenas as anáforas indiretas são inferenciais, visto que, antes de concebermos exclusivamente
as informações pertencentes ao léxico, precisamos atentar para o fato de que tudo depende de
34
aspectos pragmáticos. Nas palavras de Cavalcante (2011, p. 137), “distinguir anáfora direta de
anáfora indireta, pela simples alegação de que a direta exige menos capacidade inferencial,
seria uma atitude reducionista”.
Em sua maioria, mesmo as recategorizações feitas com as anáforas correferenciais
exigem que o interlocutor mobilize um conjunto de conhecimentos prévios. Ciulla e Silva
(2008) acrescenta que, muitas vezes, há várias informações concorrentes para a construção da
referência, tal como ocorre com as anáforas indiretas. Assim, há uma tênue fronteira entre os
níveis de inferência: todas as anáforas são inferenciais, porém algumas inferências são mais
salientes por conta da relação entre campos semânticos.
No trecho abaixo, do nosso corpus, retirado da crônica “História de um nome”, de
Sergio Porto, podemos observar como as anáforas diretas também podem ser inferenciais:
(...) “Seu” Veiga ia passando pela nossa porta, levando a família para o banho de mar. Iam todos
armados de barracas de praia, toalhas etc. Papai estava na janela e, ao saudá-lo, fez a graça:
- Vai levar a biblioteca para o banho? “Seu” Veiga ficou queimado durante muito tempo.
Dona Odete – por alcunha “A Estante” – mãe dos meninos, sofria o desgosto de ter tantos filhos
homens e não ter uma menina “para me fazer companhia” – como costumava dizer. (...)
O termo “a biblioteca” é uma anáfora direta, pois retoma de modo correferencial o
objeto de discurso “a família”. O referente é o mesmo, mas para que o leitor consiga fazer
essa relação inferencial, é preciso atentar para o contexto em que reside o próprio humor da
crônica: um homem (Seu Veiga) obcecado por livros que, ao batizar seus filhos, deu-lhes
nomes como “Prefácio”, “Prólogo”, “Índice”, “Tomo”, “Capítulo” e “Epílogo”.
Pelo mesmo raciocínio, o elemento “a estante” é uma anáfora direta, que recupera o
objeto-de-discurso “Dona Odete”: se Seu Veiga é viciado em livros e batizou os filhos
daquela forma, não há nenhuma surpresa para o leitor que sua esposa seja designada por
“estante”. Como vemos, essas relações exigem maior esforço semântico, pois só fazem
sentido dentro do texto em questão. Fora dele, os termos “biblioteca” e “família” e “estante” e
“Dona Odete” não podem ser imaginados numa cadeia referencial.
Temos, nesse caso, ainda, uma operação de recategorização, pois esses termos não são
sinônimos e, num primeiro momento, parecem impossíveis de serem relacionados. A
“biblioteca” não é uma biblioteca qualquer, no sentido denotativo, de um local próprio para o
empréstimo e a consulta de livros, mas uma família, composta por vários filhos. Nesse mesmo
raciocínio, a “Estante” também não é um móvel que se destina ao armazenamento de objetos,
principalmente de livros, mas uma mulher, uma dona de casa. Como podemos observar, tudo
35
depende das circunstâncias, ou seja, o contexto pode fazer com que palavras e expressões
socialmente situadas e reconhecidas passem por um processo de reformulação, à medida que
compartilhem um significado. No caso dessa crônica, a associação metafórica só é possível
neste contexto.
Outro ponto discutido por Cavalcante (2011) é a ausência de limites bem definidos
entre as introduções referenciais e as anáforas indiretas. Prototipicamente, a introdução do
referente é marcada por um artigo indefinido, enquanto a retomada é marcada por um artigo
definido. Porém, isso não é uma regra, tendo em vista que algumas introduções referenciais
são feitas com artigo definido, indicando que o produtor textual espera que o receptor conheça
o objeto de discurso. Há, então, um conhecimento a ser buscado pelo interlocutor na sua
bagagem, o que faz com que haja uma semelhança com as anáforas indiretas, como podemos
ver com o trecho a seguir, retirado do nosso corpus, da crônica “O triste sono sem mãe”, de
Fritz Utzeri:
Na manhã fria de Ipanema, o menino dorme um sono profundo. Estaria sonhando? Enrolado numa
manta, encolhido para proteger-se do frio, falta algo àquele menino sem nome no dia de festa. O Dia das
Mães. Quem será a mãe do menino? Por que não estão juntos nesse dia, como tantos filhos e tantas mães, de
todas as idades, que brincam na praia e fazem grandes filas em churrascarias, exibindo presentes? Como ele,
centenas de meninos, milhares de meninos, em todo o Brasil, não tiveram a alegria de ver as mães em seu
dia.
A expressão “o menino”, apesar de ser marcada com o artigo definido, funciona como
uma introdução referencial, uma vez que esse referente é novo na crônica. Com a leitura desse
texto, o leitor precisa ativar seu conhecimento de mundo de que há muitas crianças no Brasil
na mesma situação em que se encontra esse menino: abandonadas, sem saberem nem quem
são suas mães. A semelhança do menino do texto com tantas crianças iguais nas ruas é o que
justifica o uso do artigo definido, como se o leitor já estivesse familiarizado com esse
referente.
No que diz respeito à remissão textual, além das anáforas diretas e das anáforas
indiretas, os estudos atuais de referenciação também têm abordado os encapsulamentos.
Todos esses três processos orientam o leitor na sua compreensão e estão intimamente ligados
à intencionalidade do produtor textual, especialmente se envolverem o uso de expressões
nominais que, conforme mencionamos, é o recurso linguístico que mais se destaca para emitir
36
juízos de valor. No entanto, no caso dos encapsuladores, essas formas nominais
desempenham um papel peculiar.
As expressões nominais também podem categorizar ou recategorizar segmentos
precedentes do cotexto, sumarizando-os e encapsulando-os, e atribuindo-lhes um rótulo, que é
um tipo específico de encapsulamento (KOCH, 2006). São, segundo Schwarz (2000, apud
KOCH, 2006), “anáforas complexas”, sendo, na sua maioria, anáforas definidas introduzidas
por um demonstrativo e representadas por substantivos genéricos e inespecíficos (estado, fato,
fenômeno, circunstância, condição, evento, cena, atividade, hipótese etc). Além de rotular
uma parte da superfície textual que as precede (x é um acontecimento, um fato, uma hipótese
etc), essas expressões criam um novo objeto-de-discurso que, por sua vez, passará a ser o
tema dos próximos enunciados. Assim, elas ativam a memória do interlocutor e, ao mesmo
tempo, efetuam a progressão textual, sendo formas híbridas: não só referenciadoras, como
também predicativas, pois transmitem informação dada e informação nova. Em outras
palavras, elas são instrumento de retomada referencial e fator de dimensão semântica do texto.
Essa também é a posição de Francis (1994), que analisa as expressões nominais
encapsuladoras como um recurso coesivo extremamente comum nos discursos de natureza
argumentativa, visto que elas rotulam, avaliam, predicam e orientam a interpretação de uma
porção antecedente ou de uma quantidade de informações anteriores. A autora sinaliza que os
grupos nominais realizam um papel de negociação entre autor e leitor, pois quando aquele
rotula uma parte do discurso, o faz de modo que a integrem e relacionem ao argumento que
desenvolve no seu projeto de dizer (writer’s plan). Dessa forma, tais expressões podem ser
usadas para destacar seus valores, suas crenças e suas opiniões. Conforme Conte (1996), essas
expressões são denominadas de paráfrases resumidoras de uma porção precedente do texto, e
o encapsulamento é visto como um poderoso meio de manipular o leitor.
Para Cavalcante (2011), as formas nominais definidas e indefinidas encapsuladoras
constituem um tipo peculiar de anáfora indireta, porque não retomam exatamente um objetode-discurso pontual na superfície linguística, mas se prendem a conteúdos ali presentes. Isso
quer dizer que são expressões não correferenciais, que têm o poder de resumir informações, e
exigem, por parte do interlocutor, um processo inferencial cognitivo. Elas são descritas apenas
em função da recuperação difusa de porções textuais.
Toda anáfora encapsuladora é uma espécie de anáfora indireta, por também
introduzir e mencionar no cotexto uma expressão referencial nova, apresentada
como se fosse dada, por resumir conteúdos explicitados (mas também implicitados)
em porções cotextuais anteriores e/ou posteriores (CAVALCANTE, 2011, p. 47-48).
37
As expressões remeterão a conteúdos ainda mais difusos quanto mais genéricas forem.
A diferença entre os encapsuladores e as anáforas indiretas propriamente ditas é que os
primeiros não remetem a âncoras bem pontuais do cotexto, mas a informações ali dispersas,
resumindo conteúdos inteiros (CAVALCANTE, 2011, p. 74).
Em relação à tessitura textual, as anáforas encapsuladoras desempenham uma função
eminentemente coesiva. Já no aspecto cognitivo-discursivo, têm a função de ativar referentes
novos, explicitando-os pela primeira vez e, ao mesmo tempo, reativando informações já dadas
no próprio cotexto (cf. KOCH, 2004). Essa dupla função (referencial e predicativa) é
nomeada de tematização remática por Schwarz (2000, apud KOCH 2006).
Quanto ao aspecto textual-discursivo, percebemos que os rótulos trazem uma
multifuncionalidade para a construção dos sentidos do texto. Conforme Koch (2006),
podemos destacar três importantes funções, a saber: (i) função cognitiva – sumarização/
encapsulamento e posterior categorização de um segmento textual –, com a ativação na
memória do leitor de um novo referente que ficará disponível para novas predicações; (ii)
função de organização textual, com o encadeamento de segmentos textuais, fazendo a
progressão; (iii) função de orientação argumentativa, com a condução e explicitação dos
pontos de vista do produtor em relação aos conteúdos transmitidos e ao próprio enunciador.
Com base na terceira função, Koch (ibidem) salienta que há graus de
argumentatividade, considerando que há rótulos mais impregnados de opinião do que outros,
porém todos eles contêm uma subjetividade que aponta para um juízo de valor. Logo, a
orientação argumentativa é uma importante função discursiva dos processos referenciais e não
pode deixar de ser explorada em sala de aula.
Vejamos, com exemplos do corpus, como ocorre o encapsulamento com expressões
nominais. A seguir, temos um trecho da crônica “A pechada”, de Luis Fernando Veríssimo:
38
(...) Um dia o Gaúcho chegou tarde na aula e explicou para a professora o que acontecera.
- O pai atravessou a sinaleira e pechou.
- O quê?
- O pai. Atravessou a sinaleira e pechou.
A professora sorriu. Depois achou que não era caso para sorrir. Afinal, o pai do menino atravessara
uma sinaleira e pechara. Podia estar, naquele momento, em algum hospital. Gravemente pechado. Com
pedaços de sinaleira sendo retirados do seu corpo.
- O que foi que ele disse, tia? – quis saber o gordo Jorge.
- Que o pai dele atravessou uma sinaleira e pechou.
- E o que é isso?
- Gaúcho... Quer dizer, Rodrigo: explique para a classe o que aconteceu.
- Nós vinha...
- Nós vínhamos.
- Nós vínhamos de auto, o pai não viu a sinaleira fechada, passou no vermelho e deu uma pechada
noutro auto.
A professora varreu a classe com seu sorriso. Estava claro o que acontecera? Ao mesmo tempo,
procurava uma tradução para o relato do gaúcho. Não podia admitir que não o entendera. Não com o gordo
Jorge rindo daquele jeito.
Nesse fragmento, verificamos que a expressão “o relato” encapsula todas as falas
anteriores do personagem Rodrigo, dentro do seu diálogo com a professora. Como esse
personagem era aluno novo na escola, vindo do Sul, a turma não estava acostumada com o
vocabulário dele, cheio de palavras regionais. Então, “o relato” rotula a tentativa de o Gaúcho
explicar o motivo do seu atraso para a aula naquele dia: o pai dele não viu o sinal vermelho e
bateu com o carro.
O mesmo pode ser verificado no trecho abaixo, da crônica “Quase doutor”, de Lima
Barreto, em que a expressão nominal “esse modo feio de falar” retoma toda a fala anterior do
personagem Senhor Falcote:
(...) O Senhor Falcote logo nos convidou a tomar qualquer coisa e fomos os três a uma confeitaria.
Ao sentar-se, assim falou o anfitrião:
- Caxero traz aí quarqué cosa de bebê e comê:
Pensei de mim para mim: esse moço foi criado na roça, por isso adquiriu esse modo feio de falar.
(...)
O narrador-personagem mostra-se indignado com a ausência de polidez do Senhor
Falcote e o julga de forma preconceituosa. Isso pode ser verificado na escolha do adjetivo
“feio”, que revela uma carga negativa sobre a fala do anfitrião. Nos dois exemplos,
percebemos, portanto, que não há a retomada de um referente pontual, como uma palavra ou
expressão, mas a recuperação dos conteúdos anteriores, de porções textuais, exigindo uma
leitura mais atenta.
39
Além das expressões nominais, os pronomes também podem encapsular partes do
texto. É o que acontece no trecho da crônica a seguir, de José Roberto Torero, em que o
pronome demonstrativo “isso” retoma não um termo anterior específico, mas exatamente toda
a porção textual antecedente. Ou seja, “isso” equivale ao fato de o narrador estar com a pulga
atrás da orelha:
Rex, o filósofo pulguento
Estou com uma pulga atrás da orelha. E isso não é uma metáfora. Estou mesmo com uma pulga
picando. E o pior é que nem posso coçar-me. Alguém na minha posição tem que manter a compostura.
(...)
Como síntese do que foi abordado, faremos uso do quadro de Cavalcante (2011, p.86)
em relação aos processos referenciais atrelados à menção:
Introdução
Anáfora (continuidade referencial)
referencial
Anáforas diretas
Anáforas indiretas
(correferenciais)
(não correferenciais)
AI (propriamente
Anáforas
dita)
encapsuladoras
Em suma, as anáforas encapsuladoras também são anáforas indiretas, não
correferenciais, por resumirem segmentos inteiros do cotexto. Assim como as anáforas diretas
(correferenciais), as indiretas também são responsáveis pela continuidade referencial e,
consequentemente, mantêm o tópico discursivo do texto, colaborando, assim, para a coerência
em torno de um eixo temático (cf. CAVALCANTE, 2011). Não há no cotexto um antecedente
explícito, mas um elemento inferível a partir daquilo que foi explicitado, sendo essencial para
a compreensão global do texto. Apenas movendo os nossos conhecimentos variados é que
podemos associar os referentes, que podem fazer parte de um mesmo campo semântico.
Ao estudar o fenômeno da referenciação, compreendemos um modo de utilizar a
linguagem para concretizar nossas intenções comunicativas, o que ajuda no tratamento
textual, principalmente em relação à leitura e à interpretação. Exigem-se do leitor
competências de leitura que lhe possibilitem relacionar elementos linguísticos e não
40
linguísticos para a construção de sentidos dos textos, tendo em vista que as escolhas feitas
pelos produtores textuais trazem para os leitores informações importantes sobre suas opiniões,
crenças e atitudes (cf. MARQUESI, 2007, p.231). Os processos referenciais, especialmente as
anáforas indiretas, guiam os leitores e fazem com que eles as “relacionem aos implícitos,
dentro do contexto maior em que os textos se inserem para as leituras possíveis, que a partir
dele se projetam” (ibidem). Desse modo, não faz sentido separar o linguístico do
extralinguístico.
Não pretendemos discutir a fundo a questão da anáfora, com todas as suas
particularidades. Neste capítulo, além de fazermos um panorama histórico para entender
melhor a referenciação, ressaltamos também o fato de que as expressões nominais podem
funcionar como anáforas diretas, anáforas indiretas (propriamente ditas) e anáforas
encapsuladoras, destacando-se na progressão referencial e contribuindo para formar a
intencionalidade, orientando argumentativamente o texto, por meio de aspectos diversos, tais
como cognitivos, pragmáticos, semânticos, interativos, dentre outros.
41
3. LEITURA E ENSINO
3.1 – As concepções de leitura
A concepção de leitura foi se modificando ao longo dos anos, passando por alguns
estágios. Primeiro, o foco recaía sobre o autor e suas intenções, isto é, o produtor textual era
tido como senhor absoluto de suas ações e de seu dizer, por isso eram comuns, nos livros
didáticos, perguntas de interpretação3 como “o que o autor quis dizer?”. O texto era
considerado, então, um produto do autor, e o leitor exercia um papel passivo, pois não se
levavam em conta as suas experiências e conhecimentos no momento da leitura (cf. KOCH e
ELIAS, 2006).
Depois, o foco passou a ser o próprio texto, com ênfase aos aspectos estruturais. Com
essa concepção, o texto era tido como um simples produto de codificação, pois o leitor
deveria ter o conhecimento eficaz do código para ser capaz de realizar uma atividade de
reconhecimento e de reprodução através do sentido das palavras e estruturas textuais (ibid.).
Desse modo, a leitura era considerada sinônimo do estudo da gramática, o que gerava ainda
mais descaso dos alunos.
Posteriormente, houve destaque para os aspectos cognitivos envolvidos. A partir da
década de 90, o processo de compreensão passa a ser ligado a esquemas cognitivos
internalizados, o que implica dizer que a leitura não é linear, pois precisamos fazer cálculos
mentais e inferências, lançar hipóteses e usar estratégias para entender determinado texto e
preencher as lacunas existentes, considerando não só as informações explícitas, como também
as que são sugeridas de modo implícito. Nosso sistema sociocultural armazenado, que
envolve nossas experiências de mundo, auxiliará a atividade de leitura.
Atualmente, atrelada à visão recente da LT, temos uma concepção sociocognitiva de
leitura, com foco na interação leitor-texto-autor, privilegiando os sujeitos envolvidos e seus
conhecimentos para a produção dos sentidos:
3
O conceito de interpretação que norteia todo o trabalho é o de atribuição de sentidos ao texto. A terminologia
atual sobre o ensino de leitura não é consensual, fazendo com que os termos interpretação e compreensão se
misturem ou se diferenciem, a depender do autor. Não faremos distinção entre esses dois termos, tratando-os
como sinônimos, assim como o faz Kleiman (2002).
42
A leitura é, pois, uma atividade interativa altamente complexa de produção de
sentidos, que se realiza evidentemente com base nos elementos linguísticos
presentes na superfície textual e na sua forma de organização, mas requer a
mobilização de um vasto conjunto de saberes no interior do evento comunicativo
(KOCH e ELIAS, 2006, p.11)
Marcuschi (2008, p. 228) afirma que “só tomamos conhecimento de algo e
identificamos algo como sendo determinada coisa quando temos categorias ou esquemas
cognitivos para isso”. Por isso os leitores não são iguais, ou seja, uns entendem aquilo que
outros não entendem ao ler um mesmo texto. A divergência de compreensão é motivada pela
divergência dos conhecimentos armazenados na memória de cada um deles.
Além disso, a concepção sociocognitiva de leitura, por prever a interação leitor-textoautor, faz com que as categorias cognitivas não sejam elaborações individuais, mas coletivas.
Estamos a todo instante ouvindo pessoas e tentando entender o que elas nos dizem, e é essa
interação que faz a nossa inserção em uma sociedade. Os problemas de compreensão que
existem, quando interpretamos de modo equivocado o que o outro disse, mostram que há,
antes de tudo, um “exercício de convivência sociocultural” (cf. MARCUSCHI, 2008, p. 231).
Assim como Marcuschi (2008) e Kleiman (2012), defendemos que compreender é
inferir. Se concordamos que a língua é uma atividade sociointerativa e cognitiva, e não um
instrumento, e a coerência e a referência são produzidas interativamente, logo o texto é um
evento construído na relação situacional. Cada leitor participa do processo de maneira
decisiva numa ação colaborativa, fazendo com que o texto esteja em permanente elaboração, e
não pronto. Portanto,
O sentido não está no leitor, nem no texto, nem no autor, mas se dá como um efeito
das relações entre eles e das atividades desenvolvidas. Nesse caso, ele apresenta um
alto grau de instabilidade e indeterminação por ser um sistema complexo e com
muitas relações que se completam na atividade enunciativa. Assim, pode-se dizer
que textos são sistemas instáveis e sua estabilidade é sempre um estado transitório
de adaptação a um determinado objetivo e contexto (MARCUSCHI, 2008, p. 242243)
Com base nisso, a concepção de leitura que adotamos neste trabalho diz respeito a
uma atividade de produção dos sentidos que considera as experiências e conhecimentos que o
leitor traz em sua bagagem cultural, superando apenas o conhecimento do código linguístico.
Cabe ao leitor participar ativamente da compreensão dos textos, mobilizando estratégias, e
não somente extrair as informações através da decodificação de letras e de palavras. Então,
conforme destacam Koch e Elias (2006), o sentido do texto não é dado a priori, e somente se
constrói na interação.
43
3.2 - A leitura e a interpretação nas aulas de língua portuguesa
Como já foi mencionado, defendemos que o texto deve ser tomado como prioridade
nas aulas de língua portuguesa. De acordo com Marcuschi (s/data, apud TRAVAGLIA 2012),
“o texto é o melhor ponto de partida e chegada para o tratamento da língua em sala de aula”.
Porém, ainda há uma grande dificuldade no seu tratamento, principalmente por estar
vinculado, na maioria das vezes, somente aos aspectos gramaticais, isto é, ao ensino de
metalinguagem, fazendo com que ele seja um pretexto, e não tomado como unidade de
ensino. Isso significa que, apesar de existir a defesa atual de uma leitura sociointerativa e
cognitiva, nas escolas, ainda é comum o trabalho com concepções tradicionais de leitura.
Ainda hoje, geralmente, as aulas de leitura e compreensão tratam da extração de
conteúdos literais e explícitos presentes na superfície textual (cf. ANTUNES, 2003), como se
a linguagem fosse uma cópia fiel da realidade. Nem sempre o professor leva em conta o fato
de que o autor, depois de produzir um texto, não tem mais o controle total sobre o que
produziu. Ao contrário, considera-se que o autor é o dono do texto, como se o aluno
dependesse de uma única possibilidade de interpretação.
Essa abordagem da leitura e da interpretação textual, no ensino básico, ocorre,
principalmente, porque ainda é complicado para o professor entender a noção de leitura com a
qual ele deve lidar. Para Santos, Cuba Riche e Teixeira (2012, p. 39), “nem sempre fica claro
para os professores o que abordar nos textos, quais analisar, ou até mesmo o que é texto”.
Almeida (2005) considera que, no ambiente escolar, não se leva em conta a dimensão
discursiva do texto, o que acaba refletindo no modo como a interpretação é trabalhada, pois o
aluno-leitor não se coloca numa posição de interação com o texto. Segundo a autora:
A contradição, no ambiente escolar, ocorre porque, apesar de a leitura ser esta
interação, nem sempre se proporciona ao aluno a possibilidade de se sentir coautor
do texto. Ainda que seja difícil criar uma metodologia precisa para trabalhá-la, é
possível estabelecer o que ela é, para que não se trilhem caminhos que vão afastar o
aluno do texto em vez de aproximá-lo (p. 19).
Kleiman (2012, p. 25-26) critica as concepções de texto ainda sustentadas pela prática
escolar: (i) o texto como conjunto de elementos gramaticais, com o professor que desenvolve
atividades analisando a língua enquanto conjunto de classes e funções gramaticais; e (ii) o
texto como repositório de mensagens e informações, com a crença de que os significados
devem ser retirados um por um, de forma gradual, para chegar à mensagem final do texto, ou
44
seja, uma soma de significados. O resultado dessas duas concepções é, por conseguinte, a
formação de um pseudoleitor.
A autora ainda critica as concepções de leitura nas escolas, associadas às de texto. Para
ela, a leitura é vista: (i) como decodificação, em que, para responder a uma pergunta sobre o
texto, o aluno apenas precisa “passar o olho pelo texto à procura de trechos que repitam o
material já decodificado da pergunta” (p.30), numa verdadeira atividade de mapeamento; (ii)
como avaliação, prática que inibe a formação de leitores, desmotivando os alunos com a
prática da leitura em voz alta ou com a insistente cobrança de resumos, relatórios e fichas, o
que os fazem associar leitura ao dever, e não ao prazer; e (iii) de modo autoritário, partindo do
pressuposto de que há apenas uma interpretação para o texto, dispensando a contribuição do
aluno e de suas experiências.
Como resultado dessas concepções tradicionais de texto e de leitura, Kleiman (2012)
cita o seguinte roteiro como método de abordagem do texto, ainda bastante utilizado por
muitos professores:
1. Motivação do aluno, através de uma conversa sobre o assunto geral do texto;
2. Leitura silenciosa, sublinhando as palavras desconhecidas;
3. Leitura em voz alta, por alguns alunos, ou por todos os alunos, em grupo;
4. Leitura em voz alta, pelo professor;
5. Elaboração de perguntas sobre o texto, por parte do professor como “Onde ocorreu
a estória?”, “Quando?”, “A quem?” e outras perguntas sobre elementos explícitos;
6. Reprodução do texto (ou outra atividade de redação ligada ao tema do texto).
(ibidem, p. 35)
O quadro teórico atual em que nos baseamos prevê que devemos ir além do texto para
compreendê-lo de maneira bem sucedida. Assim, nos apoiamos nas seguintes considerações
realizadas por Marcuschi (2008, p. 233-234):
Entender um texto não equivale a entender palavras ou frases; entender as frases ou
as palavras é vê-las em um contexto maior; entender é produzir sentidos e não
extrair conteúdos prontos; entender o texto é inferir numa relação de vários
conhecimentos; os textos são em geral lidos com motivações muito diversas;
diferentes indivíduos produzem sentidos diversos com o mesmo texto; um texto não
tem uma compreensão ideal, definitiva e única; mesmo que variadas, as
compreensões de um texto devem ser compatíveis; e, por fim, em condições
socioculturais diversas, temos compreensões diversas do mesmo texto.
45
Com base nesses apontamentos, observamos que ler é o mesmo que compreender de
modo efetivo, o que faz com que a memorização e a paráfrase de um texto não sejam o
mesmo que compreensão. Além disso, nosso sistema cognitivo está sempre agindo,
desenvolvendo inferências e acionando conhecimentos prévios vários: linguísticos,
enciclopédicos, pessoais, institucionais, culturais, sociais e lógicos. Por inferência,
entendemos “a geração de informação semântica nova a partir de informação semântica velha
num dado contexto” (RICKHEIT, SCHNOTZ e STROHNER, 1985, p. 8). Os falantes partem
da informação que está no texto e constroem uma nova representação semântica. É comum
que as inferências tragam informações mais salientes do que as do texto em questão. Logo,
não devemos entender a produção textual como uma atividade de codificação e a leitura como
um processo de decodificação.
Além do que já foi discutido aqui, a leitura deve ser entendida como uma prática
social, uma forma de ação. Essa perspectiva busca formar leitores ativos e críticos, que
estejam preparados para ler qualquer gênero textual – que sejam competentes
metagenericamente (cf. KOCH e ELIAS, 2006) – e possam atuar na sociedade em que vivem,
pois “o gênero é um instrumento específico para a ação na sociedade por meio da
comunicação, da interação linguística” (GOMES-SANTOS et al., 2010, p. 345).
Quando o aluno lê, não interessa somente a decodificação mecânica do código
linguístico, mas sua própria experiência de mundo, o que facilita a significação daquilo que
está escrito. Ele deve ser, então, um verdadeiro estrategista, que cumpre com as seguintes
funções: (i) posicionar-se ativamente diante do texto; (ii) produzir inferências para o
preenchimento de lacunas que possam existir; (iii) seguir as orientações do autor manifestadas
na materialidade linguística do texto; (iv) estabelecer a relação de unificação entre o verbal e
o não-verbal; (v) definir um objetivo para a leitura; e (vi) construir um sentido para o texto
(cf. ELIAS, 2011, p. 180). Assim, conforme assinalam Koch e Elias (2006), o estudante deve
seguir as pistas e sinalizações do texto, estabelecendo um roteiro de leitura.
A noção de leitura que defendemos é abrangente, ou seja, inclui também os gêneros
orais – raramente abordados em sala de aula –, assim como os textos não verbais, estando de
acordo com os PCN (BRASIL, 1998) de Língua Portuguesa. Além da preocupação com os
gêneros textuais envolvidos, também é necessário destacar as tipologias predominantes e os
suportes onde circulam.
Mais especificamente, em relação à oralidade, é essencial que o professor trabalhe a
escuta e compreensão de textos orais (de preferência, espontâneos) em suas aulas, com
46
situações “ao vivo” ou gravações. Os PCN salientam a importância desses gêneros no
cotidiano escolar para que os alunos não criem uma dicotomia entre fala e escrita, ao pensar
que a fala é desorganizada. Além disso, o professor também pode orientar seus educandos
para a preparação de seminários e entrevistas, o que será de muita utilidade na vida pósescolar deles:
Não se trata de ensinar o aluno a falar, mas mostrar-lhe como a fala se organiza e
ensiná-lo a usar as formas orais em situações que nem sempre ele vivencia no seu
cotidiano: debate, entrevista, jornal falado, por exemplo. (SANTOS, CUBA RICHE
e TEIXEIRA, 2012, p. 98)
Com essa ampliação, fica mais fácil superar os obstáculos encontrados pelos discentes,
aprofundando os seus conhecimentos. É nessa perspectiva global que um aluno desenvolve
sua competência linguística, tornando-se letrado, e não apenas alfabetizado. Não é com a
decodificação que eles se tornarão leitores, mas a partir da apropriação do que é lido,
aprofundando-se no texto.
Segundo Cintra (2011, p.199), o modo de trabalhar a leitura faz com que o aluno não a
reconheça como lazer, como possibilidade de alimentar a imaginação e como lugar de
produção de conhecimento. Os estudantes tendem a ignorar a leitura ou a tratá-la como
obrigação, pois sabem que deverão ser avaliados, tendo que responder a perguntas
irrelevantes depois. O que ainda não ficou claro para eles é o objetivo do leitor, o “para que
ler”, que, ao contrário do que eles pensam, não é responder as questões de interpretação feitas
pelo professor ou presentes no livro didático.
Por isso, Geraldi (2011) defende que nenhuma cobrança deve ser feita, pois, antes de
mais nada, deve-se buscar desenvolver o gosto pela leitura. O ato de ler não deve ser um
martírio para o aluno, com o preenchimento de fichas, roteiros de leitura ou resumos no final.
Muitas escolas ainda fazem uso das chamadas “provas do livro paradidático”, que são,
geralmente, bimestrais, transformando essas leituras em algo extremamente burocrático, o que
também contribui para a rejeição dos alunos.
Se o trabalho com a leitura buscasse uma dinamicidade, levando à expressão
individual e a discussões interessantes para o universo deles, talvez a realidade fosse outra.
Nesse sentido, para entender o ato de ler como algo prazeroso, e não imposto, vale também a
criatividade do professor em criar algumas alternativas como contação de histórias, feira do
livro usado, elaboração de murais, gibiteca, dentre outras.
47
Por mais que ainda haja um longo caminho a ser trilhado, cabe à escola desafiar a
leitura produtiva, substituindo a cobrança de detalhes pouco significativos para os alunos.
Assim como a leitura não deve servir de pretexto para o estudo de itens gramaticais, o tempo
destinado às atividades de leitura e interpretação também não deve ser menor do que o
destinado às atividades de gramática. Cintra (2011, p. 200) afirma que:
Prevaleceu e prevalece ainda uma formação gramatical que focaliza regras
descontextualizadas do processo de comunicação, talvez por ser mais fácil trabalhar
com regras, já que elas permitem o certo e o errado. A leitura, pelo contrário, oferece
situações inesperadas, nas quais o professor tem de ouvir o estudante e,
eventualmente, até mesmo descobrir, ele mesmo, novas possibilidades emanadas da
leitura de um texto, graças à intervenção de um aluno.
Isso significa que, para o universo docente, trabalhar com a leitura é quase sempre
uma situação que foge do previsto e, por isso, há professores que não se “atrevem” muito a
explorar com profundidade esse campo. Porém tal atividade prevê uma mediação: a
intervenção direta do professor é essencial e deve ser realizada em todas as etapas. Em acordo
com Geraldi (2011), acreditamos que o professor, no processo de leitura, deve ser um
interlocutor presente, que responde e pergunta sobre as questões levantadas.
Dentro dessas concepções, ao planejar e desenvolver as atividades, o professor precisa
de uma organização, fazendo uso de algumas estratégias básicas. Ele deve ter, antes de tudo, o
cuidado com a escolha dos textos/livros que serão lidos. Para isso, ele deve conhecer os
alunos, saber a realidade dos mesmos, seu nível de maturidade, suas dificuldades e
competências para avaliar o que será mais indicado naquele momento. Segundo Perini (2007,
p. 158), “ler um texto inacessível é sempre uma perda de esforço e tempo, e às vezes uma
experiência em desaprendizagem”, e quanto mais o texto se apoiar em conhecimentos que o
leitor já tem, confirmando suas expectativas, maior será o sucesso na atividade de leitura.
3.3 - A leitura e a interpretação nos LDP
Sabemos que a realidade da escola brasileira dificulta ainda mais o trabalho eficiente
da leitura em sala de aula. Sempre que se aborda o tema em questão, o primeiro passo a ser
dado deve ser da escola, que deve possibilitar o contato dos alunos com os livros, seja
promovendo salas de leitura, saraus, encontros, projetos e oficinas, seja incrementando a
biblioteca e disponibilizando profissionais capacitados para trabalhar nesses locais. Para
Cintra (2011, p. 202), “não deixa de ser louvável que se comprem livros e mandem para as
48
escolas, mas muito pequeno será sempre o resultado colhido, se a biblioteca continuar
trancada e sem pessoal preparado para o trabalho”.
Além da falta de recursos que possibilitem uma biblioteca satisfatória em cada escola,
ainda há o problema da falta de interesse pelos livros e a dificuldade de compreensão e
apropriação do que é lido. Como já mencionamos anteriormente, isso tudo exige do professor
uma formação que dê conta de minimizar o distanciamento dos alunos em relação ao hábito
da leitura. Por isso, muitas vezes, o caminho mais curto e rápido encontrado para que eles
entrem em contato com a leitura são os textos inseridos nos livros didáticos de português, que
são o material de ensino/aprendizagem mais importante na maioria das escolas brasileiras.
Todavia, é necessário atentar para as atividades que são desenvolvidas pelos LDP. Geraldi
(2011, p. 90) afirma que, na escola, não se leem textos; só se fazem exercícios de
interpretação e análise de textos, e isso nada mais é do que simular leituras.
Para Marcuschi (2008), os exercícios de “copiação” que usam o texto como pretexto
para o ensino gramatical, do tipo “retire”, “copie” e “transcreva”, não fazem o leitor sair da
superfície textual e devem ser deixados de lado, em prol de exercícios efetivos de
compreensão, que permitam a apreensão de ideias. O mesmo vale para os exercícios do tipo
perguntas e respostas, com perguntas padronizadas e repetitivas (O quê? Quem? Quando?
Onde? etc.), que são realizadas na mesma ordem do texto, fazendo com que o aluno leia as
perguntas primeiro para, em seguida, procurar as respostas no texto. Tais exercícios não são
errados, porém não condizem com o que entendemos por compreensão textual, pois priorizam
os aspectos formais e a identificação de informações muito objetivas e superficiais. Conforme
assinala Marcuschi (ibidem), trabalhar com a leitura e com a compreensão textual não deve
ser uma “atividade de garimpagem”.
Sobre as atividades de leitura nos LDP, Marcuschi (2008, p. 266-267) identifica os
seguintes problemas: (i) compreender um texto se resume a uma atividade de identificação e
extração de conteúdos; (ii) as questões de compreensão se misturam a outras que não estão
ligadas ao assunto; (iii) os exercícios não se relacionam com o texto ao qual se referem, sendo
indagações de ordem genérica e subjetiva; e (iv) os exercícios raramente levam a um reflexão
crítica, não permitindo expandir o sentido. Assim, não se exercitam o raciocínio, o
pensamento crítico, a argumentação e a formação de opinião nos estudantes.
Além disso, o trabalho com os usos linguísticos deve ser atrelado aos sentidos
pretendidos pelo texto, ou seja, o professor deve orientar seus alunos para observar as
escolhas lexicais e gramaticais e sua relação com a intencionalidade do texto. Os PCN,
49
especialmente os de ensino fundamental, defendem essa perspectiva quando propõem que os
alunos devem ser estimulados a refletir sobre sua língua no uso, como coautores do
conhecimento, no lugar-comum de reproduzirem nomenclaturas gramaticais.
Seguindo a mesma linha de raciocínio, Travaglia (2003) defende uma abordagem
gramatical reflexiva, em que um determinado recurso é analisado de acordo com os seus
efeitos de sentido e com o contexto, não destacando a metalinguagem. A respeito disso, como
observam Santos, Cuba Riche e Teixeira (2012, p. 23):
Não é copiando e repetindo partes do texto lido como resposta às questões de
“interpretação” – técnica comumente usada na sala de aula – que se formarão
leitores competentes e críticos capazes de ler e produzir textos de qualidade:
formamos leitores quando mostramos como os elementos presentes no texto
colaboram para a construção de sentido.
Em outras palavras, nos LDP, deve haver uma associação entre marcas linguísticas e
compreensão textual, e nunca um trabalho fragmentado e descontextualizado. Exemplos
soltos são pseudotextos, que não formam um todo significativo e não fazem do aluno um
leitor (cf. SANTOS, CUBA RICHE E TEIXEIRA, 2012, p. 40), aquele que constrói sentidos,
mas um “ledor” (SILVA, 1988, p. 4), aquele que reproduz o que lê, como se verifica na
maioria dos exercícios.
Os PCN postulam que os conteúdos abordados nos LDP devam partir de textos de
gêneros variados, para enfatizar suas semelhanças e diferenças, a fim de que o aluno possa
discutir essas especificidades e se sentir, de fato, usuário da língua e participante do processo
de ensino-aprendizagem. A respeito disso, Santos (2009) afirma que são poucos os livros
didáticos que elaboram atividades voltadas para os gêneros. Apesar de trazerem uma boa
coletânea de textos, realizam um trabalho superficial ou recaem no estudo gramatical. Bunzen
(2007, p. 22) alerta que “o trabalho com gêneros (e não sobre gêneros) deveria estar
fundamentado em uma concepção de língua menos formal ou normativa” [grifos do autor].
Isso quer dizer que, em muitos materiais didáticos, o texto ainda não atingiu a sua dimensão
textual-discursiva, porque o ensino se dilui com tantas teorias pouco compreendidas e malaplicadas (cf. GOMES-SANTOS et al., 2010).
Perini (2007) acredita que a falta da discriminação de gêneros é uma das muitas causas
para o ensino deficiente de leitura, porque o estudante pode tentar aplicar a textos de um
gênero específico as estratégias de processamento de outro. É importante, então, que o aluno
perceba que a compreensão muda de acordo com o gênero textual em questão. Não lemos um
50
poema da mesma forma que lemos uma notícia de jornal, por exemplo. O nível de linguagem
muda e precisamos estar preparados e atentos para isso:
Ler um texto poético em função das informações que ele traz é errar o alvo. Não
podemos achar que Drummond escreveu para falar de uma pedra que estava no meio
do caminho, e ficar por aí. E o oposto – ler um texto informativo utilizando as
estratégias apropriadas à leitura de um texto literário – é igualmente inadequado
(PERINI, 2007, p.154).
Podemos concluir, portanto, que a proposta de ensino de leitura realizada pelos LDP
deve enfatizar a tríade uso>reflexão>uso (cf. TRAVAGLIA, 2003), integrando aspectos
linguísticos aos seus gêneros textuais, com suas características, estrutura e intencionalidade.
Aliado a isso, é preciso que haja a percepção de que o processo de leitura depende da
interação, porque necessita de um interlocutor e apresenta uma finalidade.
Assim, o objetivo principal do ensino de língua materna deve ser desenvolver a
competência comunicativa dos alunos, capacitá-los a produzir e compreender textos
adequados à produção de determinados efeitos de sentido em determinada situação concreta
de interação comunicativa (cf. TRAVAGLIA, 2005). Para ajudar a desenvolver essa
competência, o professor precisa, então, fazer com que os alunos desmistifiquem a ideia que
têm de leitura, passando a ler de modo autônomo, seja por prazer, seja para terem mais
conteúdo.
3.4 - Aprofundando: a leitura e a interpretação associadas à Referenciação
Para uma leitura mais eficiente, o educando precisa ser levado à apreensão da
significação profunda dos textos com que ele se deparar, isto é, perceber que, por trás da
organização de letras, palavras e frases, existe uma gama de significações, tanto explícitas
quanto implícitas. Estas últimas exigem uma maior atenção, pois são mais discretas e sempre
atreladas à intencionalidade de quem escreveu o texto. Em suma, ler é uma atividade
complexa e as atividades dos livros didáticos devem levar em conta o texto em sua dimensão
discursiva.
Como assinala Koch (2011, p. 156), todo querer dizer abarca um querer fazer, porque
a intencionalidade é inerente à própria língua. Cada texto traz uma rede múltipla de
interpretações que devem estar condizentes com o objetivo do texto; para apreendê-las, é
importante atentar para as marcas linguísticas que servem como pistas a guiar uma
compreensão mais adequada – como as estratégias de referenciação.
51
Em cada atividade de interpretação, o professor pode fazer com que o educando seja
despertado para uma atitude crítica e comece a perceber que, na verdade, também é um coautor que pode reconstruir e reinventar qualquer texto, porque não há uma interpretação
fechada, única e exclusiva. Segundo Marcuschi (2008, p. 228), “ler é um ato de produção e
apropriação de sentido que nunca é definitivo e completo”, o que faz com que a leitura não
seja uma experiência individual, mas coletiva. O autor produz parcialmente os sentidos que
serão parcialmente completados pelo leitor. Além disso, é possível trabalhar a
argumentatividade que os processos referenciais podem veicular, em grau maior ou menor em
cada texto, contribuindo para a construção dos seus sentidos.
Os sentidos não aparecem no texto de modo objetivo, e a cada nova leitura do mesmo
texto, sempre haverá novas possibilidades de interpretação que podem ter passado
despercebidas em leituras anteriores. Sobre essas leituras possíveis, Fonseca e Geraldi (2011,
p. 108 apud GERALDI, 2011) consideram:
A multiplicidade de leituras que um mesmo texto pode ter não nos parece resultado
do próprio texto em si, produzido em condições específicas, mas sim resultado dos
múltiplos sentidos que se produzem nas diferentes condições de produção de leitura.
Em cada leitura, mudadas as condições de sua produção, temos novas leituras e
novos sentidos por elas produzidos. Assim, ainda que o interlocutor-leitor seja o
mesmo, mudados os objetivos de sua leitura, estarão alteradas as condições de
produção e, portanto, o processo.
Contudo, apesar de o texto propiciar muitas leituras, elas não são infinitas, porque há
algumas que simplesmente não são possíveis. Como diz Marcuschi (2008), a compreensão
não é um vale-tudo e devemos preservar o valor-verdade dos textos. Para Koch (2011, p.157),
se o aluno perceber que pode recriar o texto, participando do que lê, ele terá mais chances de
se sentir motivado e de despertar o gosto pela leitura mais facilmente, tornando-se um leitor
maduro.
Isso só será possível se for considerada a concepção não representacional de
referência, como vimos nas seções anteriores. Somente teremos sujeitos atores, se tratarmos o
referente como objetos-de-discurso e a referenciação como um processo discursivo. A leitura,
por ser uma atividade igualmente construtiva, prevê um leitor atualizador de sentidos que seja
capaz de construir as referências, de acordo com sua interação com o texto (cf. CORTEZ,
2005, p.20), lendo nas entrelinhas, acionando conhecimentos prévios e fazendo associações e
inferências.
52
Na crônica, um texto tipicamente ficcional, os referentes não estão descrevendo
integralmente a realidade, mas construindo essa realidade, de acordo com o modo como o
cronista a compreende, que pode ser diverso do nosso e, neste caso, cabe ao cronista nos
convencer de que há outras maneiras possíveis de enxergar o universo em que vivemos. Por
conseguinte, é a leitura que permite a elaboração dinâmica dos referentes, tornando-os
notórios, tendo em vista que as palavras não referem por si mesmas, fora de um contexto
maior. Nesse ponto, concordamos com Cortez (2005), que considera a atividade de leitura
uma (re)construção de realidades e não mera descrição do real ou transmissão de informação.
Por causa disso, o aluno deve ser capaz de observar a seleção lexical do cronista, pois
este designa os objetos de discurso pelo modo como apreende algum fato do cotidiano. Por
exemplo, a operação de recategorização de referentes pode relacionar palavras que talvez
fossem impossíveis de ser imaginadas juntas, a fim de recategorizar um referente,
principalmente para retratar um personagem, ressignificando-o. Isso nos lembra Cavalcante
(2011, p. 29), quando afirma que “dizer algo e nomear os referentes envolve um contínuo
processo de desestabilização do que poderia parecer comum ou inquestionável para qualquer
pessoa”, uma vez que os objetos de discurso têm uma natureza instável.
Em outras palavras, a recategorização surpreende o leitor. Ao longo do texto, pode
aparecer o mesmo referente com significados diferentes, pois as mesmas entidades podem ser
compreendidas e imaginadas de maneiras diversas e também receberem nomes diferentes.
Termos que não são sinônimos nem compartilham um campo semântico comum podem
passar a ser correferenciais, não só conferindo progressão textual e mantendo o tópico
discursivo, mas também predicando e atualizando as impressões que o leitor deve ter sobre
determinado referente. Um exemplo é o caso dos encapsuladores, mencionados anteriormente
que, como intenção comunicativa, podem transmitir humor e pontos de vista. Assim, como
evidenciam Cavalcante e Santos (2012, p. 679), “trabalhar com referenciação em sala de aula
significa formar leitores e produtores críticos e envolvidos com a importância sociocognitiva
e histórica das estratégias textual-discursivas”.
Ao contrário dos textos prototipicamente argumentativos, como artigos de opinião, por
exemplo, a crônica não apresenta uma tese explicitamente marcada, nem argumentos que a
comprovem. No entanto, observando algumas particularidades das crônicas, como os recursos
referenciais, construímos em nossa mente os fatos e os personagens de acordo com as
designações realizadas pelo cronista, e tais designações são repletas de juízos de valor. Cortez
(2003, p. 52-53) evidencia que a crítica realizada pelo cronista em seus objetos de discurso
53
pode levar o leitor a: i) reforçar sua própria versão do real, se concordar com o cronista; ii)
reformular essa versão, se a crônica trouxer uma visão diferente da dele; ou iii) construir uma
nova versão do real, se a crônica despertar nele uma visão inédita sobre aquele assunto.
Vale ressaltar, ainda, que, no capítulo 4, verificaremos se as atividades de leitura e
interpretação associadas aos processos referenciais são escassas nos LDP, considerando que a
própria abordagem desse tema também é escassa. Pesquisas anteriores observaram que o
conceito de referenciação não é adotado na maioria dos livros publicados, em prol de se usar
apenas o termo “coesão” ou “coesão referencial”. Segundo Santos e Tupper (2011), por
exemplo, ao trabalhar a “coesão”, os LDP, em sua maioria, não a atrelam à leitura, à produção
e à análise linguística e usam a nomenclatura em capítulos teóricos destinados às aulas de
redação, enfatizando a ligação textual com o uso de conectivos de maneira
descontextualizada.
54
4. ANÁLISE DOS LIVROS DIDÁTICOS
4.1 – Metodologia
Na presente seção, apresentaremos o corpus detalhadamente e mostraremos de que
modo conduzimos a análise, indicando cada etapa por que passou a pesquisa. Com isso,
buscamos demonstrar como desenvolvemos o trabalho com as atividades dos LDP e como
essa análise pode dar conta de responder às hipóteses lançadas inicialmente, que motivaram a
realização deste estudo.
Primeiramente, devemos ressaltar a importância dos livros didáticos no cenário das
escolas brasileiras, principalmente na rede pública. Sabemos que, atualmente, o professor
pode utilizar materiais variados em suas aulas, como recursos visuais e midiáticos. Todavia,
em muitas escolas, o docente conta apenas com o livro didático como ferramenta de ensinoaprendizagem. Para Choppin (1992, p. 16), é fundamental a presença dos manuais ou livros
didáticos, os “utilitários da sala de aula”, obras que auxiliam o ensino de uma determinada
matéria por meio de um conjunto de conteúdos organizados progressivamente.
No caso da disciplina língua portuguesa, com o LDP, o professor ministra os
conteúdos teóricos sobre aspectos linguísticos e promove o contato dos alunos com uma série
de textos pertencentes aos mais diversos gêneros. Segundo os PCN (BRASIL, 2001, p. 25),
“para boa parte das crianças e dos jovens brasileiros, a escola é o único espaço que pode
proporcionar acesso a textos escritos”.
Dessa forma, o livro didático tem o papel fundamental de colaborar com o professor
na construção dos conhecimentos dos alunos. Tendo em vista essa funcionalidade, em 1985,
foi criado o Programa Nacional do Livro Didático (PNLD) pelo Fundo Nacional de
Desenvolvimento da Educação (FNDE) e pela Secretaria de Educação Básica (SEB),
entidades ligadas ao Ministério da Educação (MEC).
O PNLD tem por objetivos principais a aquisição e a distribuição universal e gratuita
de livros didáticos para alunos de escolas públicas. Para garantir a qualidade desses livros, o
Programa conta, desde 1996, com um processo de avaliação pedagógica das obras,
coordenado pela COGEAM (Coordenação Geral de Avaliação de Materiais Didáticos e
Pedagógicos), da SEB. Desde 2001, a avaliação das obras vem sendo realizada sob
responsabilidade direta das Universidades públicas brasileiras. Com base nessa avaliação, a
SEB elabora um Guia de Livros Didáticos, contendo as resenhas das obras recomendadas, que
55
é divulgado para as escolas públicas, a fim de que os professores escolham os livros a serem
adotados.
Basicamente, os critérios adotados para a avaliação dos livros pelo MEC são de três
naturezas: (a) conceitual – as obras não devem conter erros; (b) política – devem ser isentas
de preconceito ou discriminação de qualquer tipo; e (c) metodológica – devem propiciar
situações de ensino-aprendizagem adequadas e coerentes, levando em consideração o
emprego de diferentes procedimentos cognitivos. Obras que não cumprem com algum desses
critérios são excluídas dos Guias de Livros Didáticos e não são distribuídas nas escolas.
O programa vem sendo modificado constantemente, desde 1996, com vias ao seu
aperfeiçoamento. Atualmente, a distribuição gratuita já atende a todo o Ensino Fundamental
(1º e 2º segmentos), ao Ensino Médio e à Educação de Jovens e Adultos. Por enquanto, o
PNLD não atende a Educação Infantil4.
Apresentadas essas informações sobre o PNLD, verificamos que é essencial o uso dos
livros didáticos no âmbito escolar. Ao escolhermos o corpus, que compreende quatorze
coleções de LDP aprovadas pelo PNLD referente ao Ensino Fundamental de 2011 (PNLDEF-2011), estamos lidando com obras consideradas de qualidade e, por isso, ressaltamos que
não temos a intenção de reavaliá-las, mas de verificar se elas estão afinadas com as pesquisas
acadêmicas recentes sobre referenciação. Escolhemos livros de segundo segmento do Ensino
Fundamental (EF), do 6º ao 9º anos, pois um trabalho com os LDP de todos os ciclos da
educação básica seria muito extenso nesse momento.
Mais especificamente, dentro desses LDP, analisaremos as propostas de atividades
relacionadas às crônicas ali presentes. A escolha pela crônica se deve a alguns fatores: (i)
esses textos costumam aparecer com frequência, sendo bastante explorados pelos autores de
LDP; (ii) por ser um gênero híbrido (entre a literatura e o jornalismo), aparece em outros
suportes textuais, como jornais, revistas, internet etc., o que facilita o contato dos alunos com
esse texto também fora da sala de aula; (iii) a crônica pode contribuir para o incentivo à
leitura, por ser, geralmente, um texto curto, com poucos personagens (ou até nenhum), que
relata um fato do cotidiano com reflexão, humor e lirismo, e que contém uma linguagem mais
próxima do registro informal, estabelecendo uma intimidade com os leitores. Concordamos,
4
As informações aqui utilizadas sobre o PNLD estão disponíveis em http://www.fnde.gov.br/index.php/pnldhistorico, acessadas em 05/11/2012; e em BRASIL, Ministério da Educação. Materiais Didáticos: escolha e uso.
Boletim 14, 2005.
56
portanto, com Silveira (2009, p. 238), que afirma que “a crônica se presta muito bem ao uso
de oficinas de leitura e, se o professor fizer uma boa seleção de crônicas, ela poderá despertar
no aluno o tão desejado prazer do texto”.
Logo, o corpus sob análise constitui-se dos exercícios sobre as crônicas encontradas
em quatorze das dezesseis coleções avaliadas positivamente pelo PNLD-EF-2011: Viva
Português, Tudo é Linguagem e Língua Portuguesa: Linguagem e Interação, da Editora
Ática; A aventura da linguagem, da Editora Dimensão; Diálogo, da Editora FTD; Linguagem
– Criação e Interação, Português – Ideias & Linguagens e Português: Linguagens, da
Editora Saraiva; Para ler o mundo, Projeto Radix e Trajetórias da Palavra, da Editora
Scipione; Para viver juntos, da Editora SM; Português: a arte da palavra, da Editora AJS;
Português: uma proposta para o letramento, da Editora Moderna; e, por fim, Projeto ECO,
da Editora Positivo.
Devemos justificar a ausência de duas coleções em nossa análise. A princípio, nossa
intenção era analisar as dezesseis coleções aprovadas pelo PNLD-EF-2011, porém as coleções
Língua Portuguesa: linguagem e interação e Trabalhando com a linguagem estavam
indisponíveis nas suas respectivas editoras (Ática e FTD), que não tinham os livros no
estoque para o fornecimento e também não puderam disponibilizar as escolas que adotaram
tais coleções. Por isso, nossa análise conta com oito livros a menos do que pretendíamos
inicialmente.
Dessa forma, analisamos 56 livros, num total de 39 crônicas e 63 exercícios sobre elas.
É importante destacar que somente contabilizamos as crônicas a partir das quais foram criados
exercícios de análise linguística e/ou textual; as que serviram unicamente para exemplificar
determinado conceito ou como leitura suplementar não foram contabilizadas neste trabalho,
uma vez que nosso objetivo era justamente analisar os exercícios propostos pelos LDP.
A partir do levantamento desse corpus de exercícios nas crônicas, buscamos verificar
se a referenciação é abordada nesses exercícios e, em caso positivo, como essa abordagem é
realizada pelos livros didáticos. Para isso, a pesquisa se desenvolveu em duas etapas.
Primeiramente, realizamos uma análise quantitativa, ilustrada com tabelas e quadros, para
mostrar as ocorrências das atividades com referenciação em relação ao número total de
exercícios baseados nas crônicas. Desse modo, podemos fazer um panorama, em termos
estatísticos, da situação geral do trabalho que é realizado nos LDP com atividades que
retratem a referenciação.
57
A segunda etapa, mais específica, diz respeito à análise qualitativa, de cunho analíticodescritivo, buscando observar como, nas atividades, associa-se a referenciação à contribuição
para uma leitura mais produtiva por parte do aluno, principalmente em relação à consideração
de um projeto de dizer presente nos textos. Buscamos verificar, então, quais são as estratégias
referenciais abordadas nas atividades e se estas solicitam ao aluno um aprofundamento no uso
da referenciação para uma melhor compreensão das crônicas ou se elas se restringem à
superfície textual, sem considerar os sentidos pretendidos com a utilização dos recursos
referenciais.
Nessa segunda etapa, não pretendemos observar atividades que mencionem o termo
referenciação em seus enunciados, pois, como demonstram Santos e Tupper (2011), essa
nomenclatura ainda é bastante escassa nos LDP. Desse modo, objetivamos mostrar a
diferença entre atividades superficiais de coesão referencial e atividades mais aprofundadas,
que promovem a reflexão nos alunos ao trabalhar, de modo implícito, o conceito que
entendemos por referenciação, associando-o à leitura.
Classificamos os 63 exercícios encontrados nas coleções em dois grupos: (i) exercícios
que tratam da repetição, seja visando à sua eliminação, considerando-a um erro, seja
solicitando que o aluno reconheça os efeitos de sentido desse recurso referencial,
considerando a existência de uma intencionalidade; e (ii) exercícios para que o aluno
identifique referentes retomados, atentando ou não para a interpretação que envolve a
intencionalidade presente nessa estratégia.
Na tabela a seguir, podemos observar de modo geral como ocorre essa divisão dos
exercícios encontrados nas coleções:
Tipo de Exercício
Quantidade
de exercícios
Peso
Percentual
3
8
12
40
63
4,8%
12,7%
19,0%
63,5%
100,0%
Repetição como problema
Repetição como efeito de sentido
Identificação de referente sem interpretação
Identificação de referente com interpretação
Total de exercícios
Tabela 1: Tipos de exercício com referenciação nas coleções.
Desse modo, em termos percentuais, percebemos que 63,5% dos exercícios
encontrados que tratam da referenciação correspondem a atividades que trabalham com a
identificação de referentes, associando-as à interpretação das crônicas em que se baseiam.
58
Como essa quantidade é mais significativa, haverá mais questões analisadas com relação a
esse tipo de exercício.
De todas as 63 atividades encontradas, reproduziremos, neste trabalho, 45 (10 sobre
repetição e 35 sobre identificação de referentes), que podem servir para demonstrar o que tem
sido solicitado pelos LDP em termos de atividades com estratégias referenciais. Como as 18
restantes eram muito semelhantes, preferimos não as comentar neste momento para não tornar
a análise muito repetitiva.
Portanto, essa análise pretende comprovar as hipóteses iniciais formuladas para este
trabalho, além de funcionar como uma amostra do que tem sido produzido nos LDP em
relação à referenciação e à leitura, associando as discussões do âmbito acadêmico ao que tem
sido sugerido para a prática em sala de aula de língua portuguesa.
4.2 – Visão geral da referenciação nas atividades com crônicas dos LDP
Nessa seção, apresentaremos a quantidade de crônicas e de exercícios que
encontramos em cada coleção, comparando a quantidade geral de propostas de atividades
sobre as crônicas com o número de atividades que exploram aspectos referenciais, conforme
observamos no quadro a seguir:
COLEÇÃO
Português - Linguagens
Português - A arte da
Palavra
Tudo é Linguagem
Viva Português
Português, Ideias &
Linguagens
Para ler o mundo
Diálogo - edição renovada
Projeto Radix
A aventura da linguagem
Para viver juntos
Linguagem: Criação e
Interação
Projeto ECO
Uma proposta para o
letramento
Trajetórias da palavra
TOTAL
11
Total de
exercícios sobre
crônicas
157
9
82
1
9
5
80
44
5
5
15
175
2
12
9
13
23
10
165
71
130
207
75
4
2
5
5
1
4
47
2
29
261
9
19
215
20
3
171
21
1.730
0
63
Total de
crônicas
Total de exercícios
sobre referenciação
2
Quadro 1: Análise quantitativa dos exercícios sobre referenciação nas crônicas das quatorze coleções de
LDP.
59
Observando as quatorze coleções conjuntamente, verificamos que Uma proposta para
o letramento foi a que teve um número mais significativo de exercícios com o uso de
estratégias referenciais, com 20 questões, enquanto a coleção Trajetórias da palavra não
apresentou nenhuma atividade com referenciação, sendo, portanto, a menos significativa em
termos estatísticos.
Diante desse panorama geral das coleções, podemos perceber que a quantidade de
exercícios sobre referenciação em crônicas ainda é bem pequena nos LDP. De um total de
1730 exercícios utilizando crônicas, há somente 63 que envolvem recursos referenciais,
correspondendo a 3,6% do total de exercícios dos 56 livros das quatorze coleções analisadas.
4.3 – Análise dos exercícios
Conforme mencionamos na seção 4.1, a análise baseia-se na classificação do tipo de
exercício.
4.3.1 – Repetição
4.3.1.1 – A repetição como um problema para o texto
A coleção Português, Ideias & Linguagens apresenta uma atividade, no livro do 6º
ano, sobre a crônica “História de um nome”, de Sérgio Porto (Stanislaw Ponte Preta). Essa
atividade aborda a questão da repetição, tratando-a como um problema, como algo que
prejudica a progressão textual e que, portanto, devemos evitar:
Imagine que o autor tivesse escrito o quarto e o quinto parágrafos da seguinte forma:
Seu Veiga, amante da boa leitura e cuja cachaça era colecionar livros, embora colecionasse
também filhos, levou sua mania ao extremo de batizar os filhos com nomes que tivessem relação
com livros. Assim, os filhos receberam os nomes de Prefácio, Prólogo, Índice, Tomo, Capítulo e
Epílogo.
Lembro-me bem dos filhos de Seu Veiga, principalmente quando passava levando os
filhos à praia.
Você notou como a excessiva repetição da palavra filhos atrapalha a fluência do texto? Sempre que
isso ocorrer em seus textos, procure substituir a palavra repetida por outra de sentido equivalente.
Vamos treinar?
Experimente substituir as palavras repetidas, no texto do quadro acima, por equivalentes. Depois
compare seu trabalho com o de um colega.
Lembrete: Releia sempre, cuidadosamente, os textos que produz. Se notar que um termo aparece
muitas vezes, substitua-o por outro de sentido equivalente ou por pronomes.
Gabarito: rebentos/ garotos; a família
60
A atividade enfatiza, de modo radical, a ideia de que não se pode repetir uma palavra,
alertando o aluno que ele deve consertar o problema “sempre que isso ocorrer em seus
textos” (grifo nosso). Diante disso, de acordo com o gabarito, a sugestão de solução é a
substituição por palavras de sentido equivalente (sinônimos) ou por pronomes. Assim, há uma
generalização nessa questão, pois nem sempre a repetição é um problema para o texto.
No livro do 7º ano do Projeto Radix, com base na crônica “Rex, o filósofo pulguento”,
de José Roberto Torero, encontramos o seguinte exercício sobre a repetição:
Na frase abaixo, o pronome lhes substitui a palavra torcedores:
“Daquele dia em diante, esta foi minha rotina: observar torcedores, latir-lhes de vez em quando para que não
pulem a cerca e, algumas vezes, dar-lhes umas mordidas para que não ataquem uns aos outros”.
Fazendo as modificações que julgar necessárias, reescreva essa frase, utilizando a palavra torcedores no
lugar do pronome lhes. Em seguida, avalie as duas frases (a original e a que você reescreveu). Qual fica
melhor? Por quê?
Gabarito: Professor, espera-se que os alunos concluam que a repetição da palavra torcedores não é
expressiva, tornando o texto desagradável e cansativo, e que o uso do pronome no lugar do nome evita
repetições, tornando o texto mais elegante.
Há a solicitação para o aluno reescrever o trecho, substituindo o pronome “lhes” pelo
próprio referente que ele recupera (“torcedores”), a fim de que haja o reconhecimento de que,
nesse caso, é melhor manter a repetição dos pronomes do que a repetição do próprio referente.
Como assinala a orientação de gabarito ao professor, a repetição do referente “torcedores”,
nesse caso, não apresenta um efeito de sentido, sendo considerada, então, um erro de coesão,
que torna o texto “desagradável e cansativo”, ao contrário do uso do pronome oblíquo, que o
torna “elegante”. Não se assinala, porém, a repetição do próprio pronome “lhes” no texto.
No livro do 9º ano do Projeto ECO, apresenta-se a atividade a seguir sobre a crônica
“Pipocas”, de Rubem Fonseca:
Em vários momentos do texto é perceptível o cuidado que o autor teve para evitar repetições de termos.
a) No primeiro parágrafo da crônica, procure palavras empregadas pelo narrador para substituir o
vocábulo milho.
Gabarito: gramínea, planta, cereal, dito.
b) Faça o mesmo com a palavra sal, situada no nono parágrafo.
Gabarito: cloreto de sódio, tempero.
c) Além de pipoca, que outro termo foi usado para substituir o vocábulo?
Gabarito: O autor empregou o vocábulo grão.
61
Como podemos notar, novamente, é um exercício que pretende mostrar ao aluno que a
repetição deve ser evitada, inclusive considerando, no enunciado, o cuidado do próprio autor
do texto em fazer isso. Nesse sentido, a solução proposta pelo exercício é que os jovens sejam
capazes de identificar na crônica as palavras que foram utilizadas para retomar os referentes
“milho”, “sal” e “pipoca”.
Assim, percebemos que, por trás dessas questões, há a concepção tradicional de que
devemos aprender a usar sinônimos e pronomes para que os textos não fiquem repetitivos e
com a progressão prejudicada. Essas atividades mostram-se mecânicas, pois não trazem
nenhuma reflexão para o aluno em termos de leitura crítica do texto e o induzem a fazer
generalizações equivocadas de que a repetição é algo negativo. De fato, a repetição pode ser
um problema, mas deve ser discutida. Conforme verificaremos a seguir, em outras atividades,
muitas vezes essa estratégia é necessária e enfatizada no texto para servir a fins expressivos.
4.3.1.2 – A repetição e seus efeitos de sentido nos textos
No 8º ano da Coleção Português – Linguagens, há o seguinte exercício, que aborda a
repetição, sobre a crônica “A turma”, de Domingos Pelegrini:
Releia este trecho:
“A turma ri como só na turma se ri. A turma julga quando erramos. A turma castiga com silêncios e ironias.
A turma te chama, te reprime...”.
a) Evidentemente, o autor poderia ter evitado a repetição da expressão “A turma”. Caso fizesse essa opção,
que recursos linguísticos poderia utilizar para conseguir esse objetivo?
Gabarito: Poderia substituir a expressão pelo pronome ela e poderia também empregar outra pontuação,
como por exemplo, o ponto e vírgula.
b) O emprego da repetição tem uma finalidade. Que efeitos de sentido a repetição provoca?
Gabarito: Além de criar ritmo no texto, a repetição destaca a turma, como se ela fosse tudo, e acentua suas
ações e seus valores – ri, julga, castiga, chama, reprime, etc. – como se eles fossem inevitáveis.
No item (a) do exercício, temos a concepção tradicional de como a repetição deve ser
evitada, induzindo o aluno à substituição por pronomes ou ao uso da elipse. Se a atividade
terminasse aí, teríamos um exercício menos aprofundado em termos de leitura e compreensão.
Porém, o item (b) faz com que o aluno perceba que, em alguns casos, a repetição tem uma
motivação, ou seja, há a escolha dessa estratégia referencial de propósito, a fim de alcançar
62
determinados efeitos de sentido, como, por exemplo, conferir ritmo e enfatizar um termo que
sirva para a compreensão global do texto.
No caso em questão, repete-se o termo “a turma”, confirmando o próprio título da
crônica, reiterando para o leitor a ideia de que o coletivo se destaca muito mais do que o
individual, pois cabe à “turma”, isto é, a todas as pessoas do grupo, as ações representadas no
texto: elas fazem e decidem tudo juntas, numa relação de dependência mútua. Desse modo,
pela presença do item (b), consideramos que essa questão pode auxiliar o aluno a entender
melhor o efeito de sentido da repetição nessa crônica.
O mesmo ocorre com o exercício do livro do 7º ano do Projeto ECO, sobre a crônica
“O incêndio de cada um”, de Affonso Romano de Sant’Anna:
Observe este período: “[...] o jardineiro que ao ser jardineiro é jardineiro como só o jardineiro sabe e pode
ser”. Nesse trecho, pode-se dizer que a palavra jardineiro foi usada em dois sentidos: a profissão e o efetivo
exercício da função.
a) Considerando esses dois sentidos, como esse período poderia ser reconstruído, evitando-se a
repetição da palavra jardineiro? Escreva no caderno.
Sugestão: O jardineiro, ao exercer sua função, consegue realizá-la como ninguém mais, além dele, saberia
fazer.
b) Em sua opinião, por que no texto, o autor optou por repetir essa palavra?
Gabarito: Para ressaltar por meio da palavra o sentido de único, aquilo que só o jardineiro pode fazer, mais
ninguém.
Mais uma vez, trata-se de uma atividade sobre repetição. Se houvesse apenas o item
(a), pedindo que o aluno reescrevesse a sentença, desfazendo a repetição, seria reiterada a
ideia de que esse recurso não é legítimo. Porém, o item (b) torna a atividade colaborativa em
termos de compreensão textual, por mostrar que houve uma opção ao usar quatro vezes a
palavra “jardineiro”, empregada com dois sentidos, destacando os dois “jardineiros” que
existem: o que atua nessa profissão sem nenhum prazer e o que se dedica ao máximo, sendo
único. Então, a repetição é justificada justamente para criar esse jogo significativo.
Na coleção Português – Linguagens, no livro do 9º ano, a atividade com a repetição
baseia-se na crônica “Aos jovens”, de Danuza Leão:
Geralmente as repetições de palavras são vistas como problemas de construção do texto. Entretanto, às vezes,
elas são intencionais e atendem a uma necessidade de estilo ou de expressão do autor. Observe as palavras
destacada nestes fragmentos do texto:
“E respire fundo, muito fundo, pensando em tudo que pode e ainda vai poder fazer durante muito tempo,
isto é, qualquer coisa. Ache graça em tudo, ria de tudo”.
Como você justificaria as repetições existentes nesse trecho?
Gabarito: As repetições tornam as ideias mais enfáticas, o texto mais expressivo e a linguagem mais
coloquial.
63
Novamente, já no enunciado da questão, destacam-se as funções da estratégia
referencial da repetição, tratando-a não como um problema de construção, mas como uma
possibilidade de enriquecer o texto, sendo, portanto, intencional por parte do cronista.
Na coleção Tudo é Linguagem, encontramos mais uma atividade sobre a crônica “A
atitude suspeita”, de Luis Fernando Veríssimo, no livro do 9º ano:
Que efeito produz para o sentido do texto essa escolha de linguagem com o uso repetido de pronomes
pessoais e demonstrativos?
Gabarito: Essa escolha repetitiva aumenta o caráter de humor e crítica no texto, pois exagera a indefinição do
que pode significar uma “atitude suspeita”, tornando ridículo (caricatural) o comportamento dos policiais.
Nessa questão, destaca-se a intenção em usar a repetição dos pronomes no texto, uma
escolha para conferir efeitos de sentido como humor e crítica. Mais uma vez, observamos que
a questão valoriza o entendimento da crônica, realçando que o uso repetido dos pronomes é
uma ferramenta eficaz na descaracterização dos policiais, desconstruindo o papel esperado
por eles dentro de uma sociedade e até mesmo servindo para desmoralizá-los.
De acordo com o conhecimento de mundo que temos, esperamos que policiais tenham
o preparo adequado a fim de que saibam realmente reconhecer o que é uma atitude/pessoa
suspeita, o que não se cumpre na crônica em questão. Logo, essa é uma atividade que também
mostra como a intencionalidade aliada ao uso de estratégias referenciais pode ajudar o aluno a
entender um texto.
A coleção Para ler o mundo traz, no livro do 8º ano, uma questão sobre a crônica “Ela
tem a alma de pomba”, de Rubem Braga, que diz respeito às mudanças ocorridas na rotina das
pessoas com a introdução da televisão, destacando seus aspectos positivos e negativos:
Observe e explique o uso das repetições nos trechos abaixo:
a) “Agora todo mundo fica em casa vendo uma novela, depois outra novela”.
Gabarito: Com a palavra da repetição “novela”, o autor mostra que muitas pessoas assistem a todas as
novelas transmitidas pela televisão.
b) “[...] é máquina de amansar doido, distrair doido, acalmar, fazer doido dormir”.
Gabarito: “doido” seria o próprio telespectador.
Essa questão, assim como as questões analisadas anteriormente, busca fazer com que o
aluno identifique alguns efeitos de sentido que a repetição pode conferir ao texto, como, por
exemplo, enfatizar a argumentação do texto. O item (a) critica a influência da TV na vida das
pessoas, pois elas deixam de fazer outras atividades para assistir às novelas. Já o item (b)
64
pretende reiterar essa crítica através da escolha lexical do termo “doido” ao se referir aos
telespectadores, porém o gabarito fornecido pelo livro não responde à questão, já que não
explica efetivamente o uso da repetição. A sugestão de resposta não contempla o valor
negativo delineado nesta crônica, a respeito da televisão: as pessoas já criaram uma relação de
dependência com o aparelho, dependem dele para se distrair, para se acalmar e até para
dormir.
Na coleção Diálogo – edição renovada, temos uma atividade que explora o recurso da
repetição, no livro do 7º ano, sobre a crônica “A carta”, de Luís Fernando Veríssimo:
As ações dos personagens são concentradas em tempo e espaço bem determinados. A expressão “no dia
seguinte” é usada para marcar o tempo e se repete ao longo do texto.
Que efeito essa repetição pretende produzir nas ações narradas?
Gabarito: A expressão imprime um ritmo mais rápido e dinâmico às ações narradas, produzindo um efeito
semelhante à ansiedade sentida pela personagem em busca da carta.
Conforme observamos em exercícios de coleções anteriores, esse é um exercício que
auxilia o aluno a compreender melhor o texto, pois pretende fazer com que ele perceba o
efeito de sentido que uma expressão repetida (“no dia seguinte”) pode causar nessa crônica.
Espera-se, com essa questão, que o aluno entenda que a personagem se encontra ansiosa, e a
repetição da expressão temporal confere um ritmo acelerado ao texto, confirmando tal
ansiedade. Por conta disso, há no texto esse recurso – a estratégia referencial da repetição –,
com o uso de uma forma linguística que realça e valoriza o conteúdo.
Finalmente, sobre a crônica “O sol nasce para todos”, de Elke Servaes, presente no
livro do 8º ano da coleção A aventura da linguagem, encontramos o seguinte exercício que
trata da repetição:
No trecho a seguir:
A felicidade não espera no porto, não tem forma definida, nem dono absoluto. A felicidade não tem conta no
banco, carro do ano, nem casa própria.
A autora poderia ter evitado o emprego da palavra felicidade no 2º período. Por que não o fez?
Gabarito: Para separar o que pode ser considerado como itens não materiais de itens materiais.
De modo semelhante aos anteriores, a repetição não é taxada como algo desfavorável
pelo enunciado. Nesse caso, vai mais além, ao sinalizar que houve uma intencionalidade por
parte do produtor do texto em optar justamente por repetir o referente “a felicidade”, para
65
criar uma separação lógica no conteúdo da crônica, ao trazer à tona o conceito tão abstrato e
subjetivo de felicidade.
Portanto, verificamos que as atividades analisadas nesta seção colaboram para a
compreensão do texto por parte do aluno, ao atentar para a funcionalidade da repetição,
evidenciando que é uma escolha dentre tantas outras para ressaltar efeitos de sentido. Dessa
forma, nessas atividades, essa estratégia referencial não é vista como um problema, ou como
algo que empobrece o texto, mas como um recurso expressivo legítimo.
Além disso, em relação aos processos anafóricos, convém observar que todos os
exemplos analisados até aqui são de anáforas diretas, pois todas as retomadas envolvem uma
correferencialidade.
4.3.2 – Identificação de referentes
4.3.2.1 – Sem interpretação
A coleção Tudo é linguagem traz dois exercícios, no livro do 9º ano, com base na
crônica “A atitude suspeita”, de Luis Fernando Veríssimo:
O pronome este (1) faz referência a que termo do texto?
Gabarito: Ao termo “cidadão”.
Reescreva a frase a seguir, substituindo o pronome ele (3) pela expressão que, no texto, está sendo
substituída por esse pronome.
“Bom trabalho, rapazes. E o que é que ele alega?”
Gabarito: Bom trabalho, rapazes. E o que é que o suspeito alega?
Ambos os exercícios são bem pontuais e mecânicos, objetivando a localização de um
referente na superfície textual. No primeiro, o pronome demonstrativo substitui um nome
(“cidadão”), mas o exercício não tem um aprofundamento com a leitura propriamente dita
dessa crônica. Na segunda atividade, a diferença é que, além de só localizar no texto o
referente, o aluno também deve reescrever a frase, efetuando a devida substituição do
pronome pessoal “ele”.
No livro do 7º ano da coleção Viva Português, sobre a crônica “Te”, de Marilene
Felinto, há uma questão sobre o uso do pronome demonstrativo “isso”. Nesse exercício, é
66
exigido apenas que o aluno seja capaz de localizar pontualmente, na superfície textual, a
expressão anterior que foi retomada:
No trecho abaixo, o pronome demonstrativo isso se refere a qual termo anterior a ele?
Chorava alto, sentada no chão da sala escura. A casa de taipa tinha três cômodos pequenos. Isso que
chamei de sala não passava de um espaço de 2 m por 2 m, sem janelas.
Gabarito: sala escura.
Na coleção Para ler o mundo, no 6º ano, com base na crônica “Peladas”, de Armando
Nogueira, há o seguinte exercício:
Observe os pronomes e os artigos destacados nas frases a seguir, retiradas da crônica que você leu, e
responda às perguntas que estão entre parênteses:
a) “[...] o outro joga sem camisa”. (Quem é o outro?)
Gabarito: O time.
b) “[...] ela rola e quica com um ar dramático”. (Quem é ela?)
Gabarito: A bola.
c) “[...] lambe a canela de um”. (Quem é um?)
Gabarito: Um dos jogadores.
d) “[...] uma número cinco”. (Uma o quê?)
Gabarito: Uma bola.
e) “[...] acertam-lhe um bico”. (Acertam em quê?)
Gabarito: Na bola.
f) “[...] como aquele do Tona”. (Aquele o quê?)
Gabarito: Aquele “sem-pulo” de um craque.
Como podemos notar, tais exercícios são de ordem mais gramatical, visando ao
emprego dos pronomes, artigos, advérbios e locuções adverbiais para substituir referentes.
Contudo, não há nenhum comentário teórico sobre isso na questão nem na parte teórica dos
livros, ou seja, não há uma indicação para o estudante, no enunciado mesmo, a respeito da
funcionalidade dessas classes gramaticais no texto, para que a atividade não se torne tão
mecânica e sem reflexão.
No Projeto ECO, no livro do 7º ano, também encontramos um exercício que não vai
além da superfície textual, com base na crônica “O incêndio de cada um”, de Affonso
Romano de Sant’Anna:
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Considere esta frase: “Isto é o que mais importa: o incêndio de cada um”.
a) Que palavra antecipa a expressão “o incêndio de cada um”?
Gabarito: Isto
b) Reescreva a frase, iniciando-a por: O incêndio [...].
Gabarito: O incêndio de cada um: isso é o que importa. Professor, leve os alunos a perceber o uso do
pronome demonstrativo quando alude ao que ainda será mencionado e ao que já foi mencionado.
Essa atividade explora a distinção entre catáfora e anáfora com o uso dos pronomes
demonstrativos “isto” e “isso”: no item (a), é solicitado ao aluno que ele reconheça o pronome
demonstrativo “isto” como antecipador do que será dito (“o incêndio de cada um”),
configurando uma catáfora; já no item (b), solicita-se que o aluno reescreva a frase, trocando a
sua ordem, de modo que o pronome “isso” seja empregado de forma anafórica. Podemos
perceber que essa atividade preocupa-se em chamar a atenção para um aspecto gramatical e
não se vincula muito ao processo de leitura e interpretação da crônica.
Ainda nessa coleção, também no livro do 7º ano, sobre a crônica “Selvagem é o
vento”, de Julio Emílio Braz, encontramos uma questão que também aproveita o estudo dos
pronomes para tratar do fenômeno referencial. Assim como a anterior, é pouco aprofundada
em relação à leitura, pois diz respeito à identificação dos referentes, não colaborando para que
o aluno reflita sobre os significados que a crônica pretende transmitir. O jovem deve ser capaz
de retornar ao texto – mais especificamente, ao primeiro parágrafo, como indica o enunciado
– e procurar os referentes solicitados. No item (a), devem-se retomar os referentes dos
pronomes oblíquos “lá” e “a”, enquanto no item (b), deve-se recuperar o referente do
pronome “se” de valor reflexivo:
Leia novamente o primeiro parágrafo da crônica. Depois, responda às questões propostas a seguir:
a) Quais termos são retomados pelos pronomes oblíquos empregados em: “levá-la”, “manobrou-a”;
“trazendo-a” e “liberando-a”?
Gabarito: “pipa”, “linha”; “pipa” e “linha” respectivamente.
b) Observe:
Agarrou-se com força à linha e puxou.
Navegou o azul, ora trazendo-a para perto de si, ora afrouxando...
A quem se referem os pronomes destacados?
Gabarito: Ao menino que estava brincando com a pipa.
68
No livro do 7º ano da coleção Uma proposta para o letramento, encontramos
exercícios sobre o estudo dos pronomes, com base na crônica “Maravilha”, de Luis Fernando
Veríssimo:
Releia a pergunta que o cronista propõe, no 2º parágrafo da crônica:
“[...] se fosse possível trazer uma comissão de pessoas da antiguidade para lhes mostrar o mundo hoje, e se
elas pudessem levar apenas uma coisa desta época para a sua, o que escolheriam?”.
a) “... para lhes mostrar...”: mostrar a quem?
Gabarito: Mostrar às pessoas trazidas da antiguidade.
b) “... se elas pudessem levar...”: elas quem?
Gabarito: As pessoas trazidas da antiguidade.
A resposta que o cronista dá à pergunta que ele propôs é que nada mais impressionaria a comissão de pessoas
trazidas da antiguidade do que a escada rolante.
Reescreva essa frase em seu caderno, substituindo a “comissão de pessoas trazidas da antiguidade” por um
pronome pessoal – escolha abaixo. (Há dois pronomes que podem ser usados: escolha apenas um ou escreva
a frase duas vezes, variando o pronome).
Pronomes pessoais: o, os, a, as.
Gabarito:
Nada a impressionaria mais do que a escada rolante. (antecedente: a comissão)
Nada as impressionaria mais do que a escada rolante. (antecedente: as pessoas)
Como podemos verificar, o primeiro deles é bastante mecânico, visando à recuperação
do mesmo referente – tanto no item (a) quanto no item (b) – presente na superfície textual.
Tanto o pronome oblíquo “lhe” quanto o pronome reto “elas” retomam o referente “pessoas
trazidas da antiguidade”.
O segundo exercício assemelha-se ao anterior, priorizando não a identificação de um
referente, mas a substituição do mesmo pelo devido pronome oblíquo. Nesse caso, o exercício
considera duas possibilidades de referentes a serem substituídos – “a comissão” e “as
pessoas” –, o que faz com que o estudante tenha que adequar o pronome de acordo com o que
ele escolher como antecedente. Mais uma vez, é uma questão gramatical.
No livro do 9º ano dessa mesma coleção, com base na crônica “O relógio”, de Rubem
Alves, há a atividade a seguir, que solicita a identificação de um referente explícito que está
sendo recuperado pelo pronome possessivo “seus”:
Localize esta frase na crônica:
“Já havia visto alguns dos seus sinais imobilizados [...]’.
“... seus sinais” – sinais de quem?
Gabarito: Sinais da estória passada, que a criança não conhecia.
69
Na coleção A arte da palavra, no livro do 9º ano, há um exercício sobre o texto “O
nascimento da crônica”, de Machado de Assis, que menciona uma expressão nominal,
pedindo ao aluno que perceba a quem ela se refere. Nesse caso, o aluno precisa ter uma
atenção maior para retomar o objeto de discurso “pobres-diabos”, mas não há aprofundamento
quanto à interpretação, pois o exercício não verifica que o emprego dessa expressão mostra
solidariedade com aqueles coveiros debaixo do sol e reforça o ponto de vista de que existem
pessoas que reclamam demais sem motivo:
Quem eram os “pobres-diabos” e o que eles faziam?
Gabarito: Eram os seis ou oito homens sem chapéu que abriam as
covas.
Assim, percebemos que os exercícios analisados nessa seção dizem respeito ao uso de
expressões nominais e de pronomes. São exercícios que, basicamente, restringem-se à
localização de referentes, não contribuindo para uma leitura e compreensão mais
aprofundadas das crônicas. Novamente, os exemplos desta seção são todos de anáforas
diretas.
4.3.2.2 – Com interpretação
Na coleção Tudo é linguagem, no livro do 9º ano, há uma questão relacionada à
crônica “A atitude suspeita”, de Luis Fernando Veríssimo:
No texto, foram destacados os pronomes pessoais e demonstrativos que aparecem com mais frequência.
Observe os momentos em que eles foram utilizados. O uso recorrente dessas palavras dá maior grau de
precisão ou de imprecisão ao que as personagens entendem por “atitude suspeita”? Explique.
Gabarito: Aumenta o grau de imprecisão, de indefinição, pois não se referem a ideias ou nomes específicos.
No texto, aparecem destacados os pronomes pessoais e demonstrativos. Ao enfocar o
uso desses pronomes, os autores da coleção Tudo é linguagem optaram por relacioná-los
diretamente à crônica, fazendo com que o aluno perceba que as formas linguísticas escolhidas
por Veríssimo servem para confirmar o conteúdo do texto, trazendo um tom de vagueza,
imprecisão e mistério, pelo fato de os pronomes não especificarem ideias ou nomes,
contribuindo para a atitude suspeita de que trata o texto.
70
Desse modo, percebemos que, apesar de os autores se valerem do texto para o estudo
de um item gramatical, os pronomes, o exercício traz um nível de complexidade maior por
trabalhar o emprego dessa classe de palavras de modo efetivo no texto, colaborando para a
compreensão, e não por reduzir a atividade a uma questão de metalinguagem, com
classificações ou apenas localização na crônica.
A coleção Viva Português, no livro do 6º ano, trabalha com a crônica “Diálogo de
festas”, de Stanislaw Ponte Preta. Encontramos a seguinte atividade sobre o uso de expressões
nominais:
Os interlocutores do diálogo presenciado pelo narrador não foram nomeados. Trata-se de pessoas humildes,
conformadas com a vida que levam, mas cada um tem seu jeito de ser, que o narrador deixa claro na forma
como se refere a eles. Um deles é o espigadinho, ou seja, o que anda direito, com a cabeça erguida. E o outro,
com que palavras e expressões é caracterizado ao longo do texto?
Gabarito: “magrelinha, desses curvadinhos para frente, vergado ao peso da vida”, “o vergado”, “o curvado”,
“o curvado pelo peso da vida”.
Os dois personagens do texto, que conversam durante uma viagem de ônibus na
véspera do Ano Novo, não são nomeados. Ambos são trabalhadores, mas o que eles ganham é
insuficiente para o seu sustento e, mesmo assim, eles não perdem a força de vontade e se
mostram até otimistas diante da vida difícil que levam. Apesar de os dois serem bastante
conformados e de não se revoltarem com a situação escassa, um deles tem uma postura
curvada, de quem já está muito cansado e passou por muitas dificuldades, enquanto o outro
não.
É exatamente isso que o exercício traz para os alunos, sendo uma atividade que pode
gerar boas discussões em sala de aula, porque o próprio texto quebra a expectativa dos
leitores, principalmente nos dias de hoje, quando não acreditamos que pessoas tão pobres
materialmente podem se sentir satisfeitas.
Na coleção A aventura da linguagem, encontramos um exercício no livro do 7º ano,
sobre a crônica “A pechada”, de Luis Fernando Veríssimo:
No antepenúltimo parágrafo do texto, quem é “o novato”? Por que o autor se refere a ele assim?
Gabarito: É Rodrigo, o gaúcho. O autor fala assim, retomando a ideia de “o aluno novo” que aparece no
primeiro parágrafo.
É uma questão em que o aluno precisa recuperar o referente da expressão nominal “o
novato”. O personagem principal é Rodrigo, recém-chegado do Sul, que é estranhado pelos
71
amigos da escola por seu falar gaúcho. Mesmo defendendo o menino, até a professora
encontra dificuldade para entendê-lo, principalmente quando ele relata o porquê de ter
chegado atrasado à aula, precisando ser “traduzido” para a turma. Nesse sentido, além de
identificar a retomada solicitada nessa questão, discute-se que a palavra “novato” tem uma
carga semântica pejorativa e foi empregada para reforçar o assunto abordado pela crônica: o
preconceito linguístico.
Também nessa coleção, no livro do 8º ano, há o seguinte exercício sobre a crônica
“Quase doutor”, de Lima Barreto:
A quem Falcote se refere quando diz que “o véio ta í”?
Gabarito: Ao pai.
O aluno precisa ter atenção ao contexto para conseguir recuperar que o “véio” é o pai
do personagem. Ele só perceberá isso fazendo uma inferência, pois não há menção explícita
de quem seja o referente. O senhor Falcote diz que não consegue dinheiro pessoalmente com
o “véio”, quando ele vem visitá-lo, mas só quando pede através de cartas, quando o “véio”
está longe. Assim, o aluno precisa usar seu conhecimento de mundo para depreender que se
trata do pai do personagem, pois, geralmente, são os pais que costumam dar dinheiro aos
filhos e, além disso, “véio” (“velho”) é uma gíria, uma denominação carinhosa para “pai”.
Então, é uma questão que trabalha com a compreensão do texto, pois não há um referente
explícito.
A coleção Para viver juntos, no livro do 9º ano, apresenta um exercício com a crônica
“A hora e a vez da mulher”, escrita pelo jornalista José Geraldo Couto, da Folha de S. Paulo,
a propósito da vitória da seleção brasileira feminina de futebol na semifinal da Copa do
Mundo, realizada em Xangai, em setembro de 2007:
A afetividade do enunciador em relação ao tema abordado revela-se pela escolha do vocabulário. Exemplo
disso são os substantivos usados para fazer referência às atletas. Quais são eles?
Gabarito: “moças”, “meninas”, “garotas”.
Podemos observar que o enunciado da atividade acima destaca a afetividade presente
na seleção lexical referente às atletas da seleção, contribuindo para mostrar a
intencionalidade: elas não são retomadas de maneira técnica, distante, mas de maneira
próxima, amigável (“moças”, “meninas”, “garotas”). Sendo assim, essa atividade pode ser
72
considerada produtiva no sentido de colaborar para que o aluno associe o uso de uma
estratégia referencial de retomada ao sentido que se pretende veicular com ela que, no caso,
conforme o enunciado, é a “afetividade”.
Podemos observar essa consideração da intencionalidade também com duas atividades
sobre a crônica “Ela tem alma de pomba”, de Rubem Braga, presentes no livro do 8º ano da
coleção Linguagem: Criação e Interação:
Em sua opinião, qual o significado do título do texto? (Para responder, considere a que se refere o pronome
ela e o que a pomba costuma simbolizar).
Gabarito: O pronome ela se refere à TV. Quando o autor sugere que a televisão tem alma de pomba, deseja
expressar que ela representa para algumas pessoas paz e tranquilidade.
O autor emprega uma metáfora para se referir à televisão. Encontre-a no texto e explique a relação existente
entre a expressão empregada e a tevê.
Gabarito: A metáfora é “corujinha da madrugada”. A relação está no fato de a coruja ter hábitos noturnos e a
televisão fazer companhia a muitas pessoas durante a madrugada.
O primeiro exercício trata da interpretação do referente do pronome “ela”, expresso no
título, que só poderá ser depreendido com a leitura integral da crônica, associando ao sentido
de “pomba”. O assunto do texto é o advento da televisão, com suas vantagens e desvantagens
na vida das pessoas, evidenciando uma grande mudança nos costumes daquela época. Por
isso, somente após a leitura desse texto, o aluno será capaz de compreender que o pronome
pessoal reto “ela” antecipa “a televisão”. Além disso, ao apresentar os aspectos positivos que
a TV traz, o texto menciona o fato de que muitas pessoas solitárias e doentes encontram nesse
aparelho uma companhia, ou seja, a televisão pode ser um alento, pode trazer calma para
quem necessita. Isso também justifica o uso do termo “pomba” no título, pássaro reconhecido
socialmente como o símbolo da paz.
Essa é uma atividade que prevê a leitura atenta do texto logo pelo título, despertando a
curiosidade no aluno para descobrir a quem esse “ela” se refere, isto é, quem será que tem
alma de pomba. Adicionalmente, é preciso que o aluno ative seus conhecimentos de mundo,
associando as vantagens que o texto enumera sobre a TV à figura da pomba, para que possa
responder adequadamente ao que a questão solicita.
Por sua vez, o segundo exercício trabalha com a identificação de uma expressão
nominal metafórica. Nesse caso, além de procurar a expressão e transcrevê-la no caderno, o
estudante deve refletir sobre o significado que ela assume nesse contexto. De forma
semelhante ao exercício anterior, cabe ao aluno realizar uma inferência, ativando a
73
informação de que a coruja é um animal que troca o dia pela noite, assim como as pessoas que
sofrem de insônia e recorrem à televisão por não conseguirem dormir. Ainda, o uso do
diminutivo em “corujinha” pode revelar afetividade, expressando um ponto de vista favorável
a esse meio de comunicação. Verificamos que essa questão também colabora para que uma
estratégia referencial seja depreendida em conjunto com a bagagem cultural trazida pelos
alunos, contribuindo para o processo de leitura e compreensão textual da crônica como um
todo.
No livro do 8º ano do Projeto ECO, encontramos uma atividade baseada na crônica “O
repórter policial”, de Stanislaw Ponte Preta. É um exercício que busca fazer com que o aluno
reflita sobre o uso de uma expressão nominal como estratégia referencial:
O cronista caracterizou o repórter policial como “um entortado literário”. Por que ele usou essa expressão
para se referir aos repórteres policiais?
Gabarito: Porque o cronista acha que as notícias escritas pelos repórteres são repletas de expressões
antiquadas, não usuais. Assim, segundo o texto, a linguagem que empregam faz com que os textos percam a
beleza e a naturalidade.
O exercício preocupa-se em mostrar as intenções que existem por trás de uma escolha
referencial, o que auxilia na construção do sentido da crônica. Na retomada de “repórteres
policiais” pela expressão “um entortado literário”, percebemos a existência de um ponto de
vista, de uma avaliação negativa nesse texto, já que a palavra “entortado” vem de “torto” que,
por sua vez, remete a algo que não é direito, certo etc.
O repórter policial é designado dessa forma pelas notícias que escreve, o que significa
uma inadequação literária, pois se trata de um texto que é produzido com uma linguagem
excessivamente elaborada, que não condiz com a linguagem dos nossos dias atuais, tornando
a compreensão difícil, confusa por parte dos leitores. Nesse sentido, a expressão “um
entortado literário” reitera tudo que se disse antes sobre esses repórteres, e tudo que será dito
no decorrer do texto, principalmente em um dos últimos períodos da crônica: “Como os
locutores esportivos, a Delegacia do Imposto de Renda, os guardas de trânsito, as mulheres
dos outros, os repórteres policiais nasceram para complicar a vida da gente”.
Em Uma proposta para o letramento, no livro do 6º ano, há um exercício sobre o uso
dos pronomes demonstrativos com a crônica “Menino”, de Fernando Sabino. O exercício
busca fazer com que o próprio aluno crie os termos ou expressões a que esses pronomes se
referem, de acordo com os sentidos da crônica.
74
O assunto do texto é a relação entre mãe e filho, sendo representada por uma série de
“broncas” que a mãe dá no filho. Somente ela tem voz no texto, e essa voz é de repreensão a
todo o instante: “Para com isso!”; “Joga isso fora!” etc. Contudo, não sabemos exatamente o
que o filho faz de errado para ser tão repreendido, justamente pelo uso do pronome “isso”.
Desse modo, o exercício instiga os alunos a construírem esses referentes, de acordo com seu
próprio conhecimento de mundo, como podemos observar abaixo:
Há frases em que a mãe usa a palavra isso, e nós, os leitores, ficamos sem saber: isso o quê?
Responda as perguntas, imaginando uma situação em que a frase poderia ser usada:
a) “Onde é que aprendeu isso, menino?”
- Isso o quê?
Sugestão : A dizer palavrão, a beliscar os irmãos, a rodar pião etc.
b) “Para com isso!”
- Com isso o quê?
Sugestão: Com a gritaria, com o choro, com a correria dentro de casa etc.
c) “Joga isso fora!”
- Isso o quê?
Sugestão: Um brinquedo quebrado, uma bala que caiu no chão, um sapato furado etc.
d) “Uma boa surra dava jeito nisso”.
- Nisso o quê?
Sugestão: Na teimosia de não querer ir para o banho, na briga com os irmãos, na reclamação que vem da
escola etc.
e) “Isso é conversa de gente grande”.
- Isso o quê?
Sugestão: Conversa sobre negócios, sobre brigas de família, sobre sexo etc.
f) “Por causa disso é preciso gritar?”
- Disso o quê?
Sugestão: Por causa da água fria do banho, do brinquedo que o irmão quebrou, do pequeno machucado no
joelho etc.
Os itens não apresentam um gabarito, uma resposta única, pois tudo vai depender da
interpretação da turma e do que eles acharem conveniente, partindo até mesmo da própria
relação que têm com suas mães em casa. Então, esse é um exercício que coloca o aluno para
refletir sobre a crônica, pois ele só irá escolher os referentes adequados se atentar para o
contexto. Assim, há uma boa ligação entre a referenciação e o processo de leitura e
compreensão do texto.
Ainda no livro do 6º ano dessa coleção, encontramos duas propostas de atividades com
a crônica “O triste sono sem mãe”, de Frietz Utzeri:
75
Por que o cronista chama o menino de “menino sem nome’”?
Gabarito: Ninguém sabe quem é, ninguém dá atenção a ele.
O cronista pergunta: “O que vamos fazer todos, a começar pelo governo das estatísticas sem alma?”
Por que as estatísticas são “sem alma”?
Gabarito: Porque só mostram números, não mostram as pessoas reais, sofredoras, discriminadas,
injustiçadas, que estão atrás dos números.
O primeiro exercício associa uma expressão nominal à intencionalidade, fazendo com
que os alunos realmente compreendam o que a crônica pretende denunciar: mães que
abandonam seus filhos nas ruas, deixando-os entregues à própria sorte. A expressão “menino
sem nome”, portanto, reforça o ponto de vista que permeia o texto – a vida dessas crianças é
repleta de ausências, e o nome é uma delas: não têm identidade, e as pessoas passam por elas
e nem reparam na sua existência.
De modo semelhante, o segundo exercício procura retratar o descaso dos governantes
diante da situação dos menores abandonados, com o uso da expressão nominal “estatísticas
sem alma”. Novamente, esse recurso referencial traz uma intencionalidade: criticar o governo,
acusando-o apenas de mostrar números, mas não fazer nada para modificar a situação
apresentada. No texto, não adianta o governo apresentar uma série de estatísticas, já que esses
números são distantes da realidade e permanecem no papel. Ou seja, há uma ausência de
sensibilidade, uma ausência de “alma” nos representantes do nosso país. Nessas questões,
então, o aluno é levado a refletir sobre as escolhas lexicais, partindo das denúncias que a
crônica faz sobre uma situação real que assola o Brasil.
Nessa mesma coleção, no livro do 7º ano, temos uma proposta de atividade que
trabalha com a crônica “História estranha”, de Luís Fernando Veríssimo:
Recorde estas frases do texto e responda:
“Ajoelha-se, põe as mãos nos seus ombros [...]”
a) Nos ombros de quem?
Gabarito: Nos ombros da criança, que são os ombros dele mesmo, do homem quando criança.
“[...] e olha nos seus olhos”.
b) Nos olhos de quem?
Gabarito: Nos olhos da criança, que são os olhos dele mesmo, do homem quando criança.
“Seus olhos se enchem de lágrimas”.
c) Olhos de quem?
Gabarito: Os olhos do homem que vê a criança que ele foi.
76
Em todos os três itens, a questão pretende tratar do uso do pronome possessivo “seus”
como forma de retomar um referente. O texto relata um “encontro”, em um parque, de um
homem de quarenta e poucos anos com a sua criança interior, com o que ele foi quando era
criança. O aluno precisa entender a crônica como um todo para fornecer as respostas corretas.
Por exemplo, nos itens (a) e (b), não basta que o estudante responda que “seus” retoma o
referente “a criança”; ele tem que ir além, buscando o sentido maior que o texto estabelece: o
referente é o próprio homem, que se aproxima da sua infância, da criança que está adormecida
dentro dele. O mesmo raciocínio vale para o item (c).
Na análise do livro do 8º ano dessa mesma coleção, encontramos uma atividade sobre
a crônica “A morcega”, de Walcyr Carrasco. Esse texto compara a juventude de épocas
passadas com a juventude atual, tentando comprovar que, por mais ousadas e rebeldes que
fossem as gerações antigas, elas não conseguem atingir o grau exagerado de ousadia e
rebeldia da geração atual. Há um ponto de vista negativo, mostrando que essa geração causa
espanto até mesmo nos adultos de hoje que foram aqueles adolescentes considerados
inovadores do passado. Esse espanto está diretamente relacionado ao próprio visual desses
jovens: roupas pretas, cabelos estranhos e piercings.
Sobre essa crônica, a atividade a seguir trata o uso da expressão nominal que dá título
ao texto:
Por que a adolescente é chamada de morcega e seus amigos são chamados de morcegos?
Gabarito: Porque ela e eles se vestem de preto.
De forma semelhante às atividades analisadas anteriormente, essa é uma atividade que
colabora para que o aluno compreenda melhor o texto ao tratar da escolha lexical utilizada de
modo a revelar uma intenção. A expressão “a morcega” (ou “os morcegos”), ao se referir aos
jovens dos dias de hoje, caracteriza-os pelo estilo dark e rock ‘n’ roll nas roupas pretas, pela
seleção de um vocábulo que traz uma depreciação, confirmando o sentido do texto sobre o
exagero da juventude atual. O produtor do texto poderia ter usado outros termos, mas optou
por “morcega”, animal associado ao sombrio, ao medo, etc.
No livro do 9º ano da coleção Para ler o mundo, encontramos uma proposta de
atividade sobre mecanismos referenciais baseada na crônica “A amizade”, de Rubem Alves:
77
Leia: “Lembrei-me dele e senti saudades”.
O pronome em negrito antecipa o que vai ser desenvolvido pelo cronista. A que se refere o termo destacado
acima? Justifique e reescreva a frase no caderno.
Gabarito: Pelo título da crônica, pelo contexto e pelo trecho: “Tanto tempo que a gente não se vê!”, “dele”
refere-se a um amigo: “Lembrei-me de um amigo e senti saudades”.
Essa atividade diz respeito ao uso de pronomes, porém não para retomar um referente,
mas para antecipá-lo. É uma questão de compreensão que possibilita ao aluno realizar
inferências para descobrir qual é o referente, considerando o contexto e o próprio título da
crônica, tendo em vista que o texto é sobre uma amizade antiga, sobre lembranças e saudades
de duas pessoas que não se veem há muito tempo.
O Projeto Radix apresenta, no livro do 7º ano, um exercício com a crônica “Rex, o
filósofo pulguento”, de José Roberto Torero, objetivando trabalhar com aspectos de
gramática. Como é sinalizado no enunciado da questão, trata-se do uso de pronomes para
substituir um referente já mencionado anteriormente no cotexto:
Uma das funções do pronome é retomar um nome que já apareceu antes, funcionando como elemento de
coesão textual. Leia esta frase:
“Acho que vou me distrair olhando as pessoas se apertando contra a grade. Aliás, até hoje não entendi por
que elas fazem isso. E já faz anos que os vejo assim, contorcendo-se, grunhindo, pulando”.
a) Indique, no caderno, qual elemento da frase é retomado pelo pronome elas.
Gabarito: As pessoas.
b) No trecho “[...] faz anos que os vejo assim...”, se o autor fosse retomar o elemento as pessoas, deveria
utilizar o pronome as. Por que então o autor utilizou o pronome os neste trecho?
Gabarito: Provavelmente, o autor preferiu utilizar a forma masculina do pronome para ressaltar que as
pessoas eram do sexo masculino.
No item (a), cabe ao aluno localizar, no próprio trecho destacado da crônica, o
referente do pronome “elas”. Como já mencionamos anteriormente, exercícios de localização
como esse não se vinculam a uma melhor compreensão do texto, ainda mais nesse caso, em
que ele não precisa nem retornar à crônica, pois basta observar o trecho que foi transcrito para
a proposta.
No entanto, o item (b), que também trabalha com a substituição pronominal, faz com
que a questão se torne mais produtiva para o entendimento textual, por solicitar ao aluno um
raciocínio baseado na intencionalidade dessa estratégia referencial. Ele deve inferir sobre a
escolha referencial, o que evidencia uma reflexão sobre as possibilidades que a língua oferece
78
para dar conta das intenções de quem escreve. Logo, é preciso que se atente para o contexto
da crônica, a fim de compreender o uso do pronome oblíquo “os”, em vez de “as”, para
retomar o referente “as pessoas”.
O mesmo pode ser observado no exercício com a crônica “Maravilha”, de Luis
Fernando Veríssimo, no livro do 7º ano da coleção Uma proposta para o letramento:
Ao usar o pronome os, o cronista já não está pensando na comissão de pessoas trazidas da antiguidade. Em
quem ele estará pensando: nada impressionaria quem?
Gabarito: Resposta pessoal, mas deve ser mencionado como antecedente um substantivo no masculino
plural; os homens trazidos da antiguidade, os seres humanos, os habitantes da antiguidade etc.
Ao discutir as respostas, levar os alunos a perceber que o cronista passa a referir-se a um antecedente
masculino não presente no texto provavelmente por influencia do uso, na língua do masculino para designar
os seres humanos em geral, como em: o homem é mortal (o homem = o ser humano).
Essa atividade também enfoca uma escolha do produtor da crônica. Se ele utilizou o
pronome “os”, em vez de “a” ou “as”, é porque ele tinha em mente outro referente, não
mencionado no texto, envolvendo um substantivo masculino: os homens/ seres humanos de
modo geral. Assim, a questão considera a intencionalidade do cronista na escolha de um
referente e conduz o aluno a essa reflexão, o que se faz presente na própria orientação da
questão para o professor: “Ao discutir as respostas, levar os alunos a perceber que o cronista
passa a referir-se a um antecedente masculino não presente no texto (...)”.
Além desses exercícios, que envolvem anáforas diretas, encontramos, nas coleções,
uma série de atividades sobre encapsuladores em forma de pronomes ou de expressões
nominais. Também consideramos esses exercícios produtivos para a leitura, pois ajudam na
interpretação ao exigirem uma inferência maior por parte do aluno, já que o pronome ou a
expressão nominal sumariza uma ideia, e não um termo explícito na superfície textual.
Podemos verificar isso no livro do 7º ano da coleção Viva português, com relação à
crônica “Te”, de Marilene Felinto. No exercício abaixo, o pronome “isso” funciona como um
encapsulador, sumarizando uma ideia anterior, então o aluno não deve localizar ou substituir
um elemento correferencial, mas identificar a que porção do texto o pronome se refere:
Com base no texto, diga a que o pronome demonstrativo isso se refere na frase: “Isso aconteceu na semana
passada, num distrito de Sertânia, cidade a 350 km de Recife, no sertão de Pernambuco”.
Gabarito: À menina que chorava sozinha, nua e suja, no meio de uma pequena sala, num casebre.
79
Ainda nesse livro, há a crônica “Estranhas gentilezas”, de Ivan Ângelo, que traz um
exercício com uma expressão nominal encapsuladora (“coisas estranhas”). É uma atividade
que também exige maior atenção do estudante, por não solicitar uma transcrição direta, ou
seja, ele tem que realmente ler o texto para responder com as próprias palavras o que
entendeu:
Releia a primeira frase do texto e responda no caderno:
A que coisas estranhas se refere o cronista?
Gabarito: O cronista observa que as pessoas o têm tratado com delicadeza; todos, de repente, tornaram-se
gentis com ele.
Na coleção Português, Ideias & Linguagens, na atividade do 8º ano, sobre a crônica
“A descoberta do mundo”, de Clarice Lispector, também verificamos a recuperação de uma
informação anterior por meio da expressão nominal encapsuladora “os fatos da vida”, que não
aponta para um item lexical em particular, mas para uma parte do texto. Vejamos:
No texto, a narradora rememora fatos que aconteceram em sua adolescência.
A que ela se refere quando menciona “os fatos da vida”?
Gabarito: Refere-se à relação amorosa entre um homem e uma mulher.
Já no livro do 7º ano do Projeto Radix, encontramos dois exercícios sobre a crônica
“As aventuras de um ciclista”, de Lourenço Diaféria. Ambas tratam do uso de expressões
nominais como encapsuladores de partes do texto, como podemos observar em seguida:
Em certa passagem do texto, o autor afirma: “Só quem passou por essa experiência sabe o que é isso”. A que
experiência ele se refere?
Gabarito: À experiência de ter a impressão de que se está prestes a fazer xixi.
Em outro trecho, afirma-se: “Esse expediente trouxe-lhe algum conforto...”.
A que expediente o autor se refere?
Gabarito: Assobiar o Hino Nacional.
Cabe ao aluno perceber que as expressões nominais “essa experiência” e “esse
expediente”, respectivamente, não recuperam referentes pontuais e explícitos na superfície
80
textual, porque rotulam e sumarizam porções textuais anteriores. É preciso que o estudante
depreenda as ideias retomadas para explicá-las sem transcrever do texto.
No livro do 9º ano da coleção A aventura da linguagem, encontramos a crônica “Entre
outras palavras, o amor”, de Affonso Romano de Sant’Anna, que traz a seguinte proposta:
Ao dar a etimologia da palavra trabalho, o autor diz que passou a entender tudo. A que se refere “tudo”?
Gabarito: Ao fato de, para a maioria das pessoas, o trabalho ser considerado um fardo, penoso, uma tortura a
que nos submetemos para sobreviver.
Essa atividade visa à retomada do referente que é encapsulado pelo pronome
indefinido “tudo”. Assim como outras questões já analisadas, esta faz com que o aluno
interprete para identificar o referente, tendo em vista que ele não consegue encontrar nenhum
item lexical expresso no cotexto. Para responder o exercício, ele precisa observar que “tudo”
remete às informações anteriores, retomando uma parte do texto, e não uma palavra ou
expressão pontual.
Por sua vez, em Uma proposta para o letramento, no livro do 9º ano, com base na
crônica “Os jornais”, de Rubem Braga, encontramos um exercício que trata do uso de
pronomes demonstrativos (“isso” e “nisso”) como encapsuladores:
Localize as frases na crônica e responda às questões:
a) “Você acredita nisso que os jornais dizem?”
Nisso: em que não se deve acreditar?
Gabarito: Que no mundo só acontecem desastres e desgraças.
b) “Eu não afirmo que isso seja mentira”.
Isso: o que não é mentira?
Gabarito: O crime do sapateiro ou, mais genericamente, os fatos que o jornal noticia.
Ainda no livro do 7º ano dessa coleção, há a crônica “Olhador de anúncio”, de Carlos
Drummond de Andrade. O texto retrata o universo das propagandas que se utilizam do
erotismo feminino para conseguir vender seus produtos. Há uma crítica a esse apelo
comercial, que faz com que sentimentos como o amor e a atração pelo sexo oposto sejam
usados como ferramentas de venda material. Sobre esse texto, encontramos duas atividades
que exploram o recurso referencial da expressão nominal encapsuladora de modo a realçar a
81
crítica negativa que se faz na crônica, isto é, um posicionamento desfavorável a esse tipo de
anúncio publicitário:
Releia o 4º parágrafo da crônica e, seguindo a análise que o cronista faz nesse parágrafo, explique:
a) Qual a “decepção” que o anúncio do cobertor causa?
Gabarito: A linda mulher não faz parte do cobertor.
b) Qual é a “sugestão erótica” do anúncio do cobertor?
Gabarito: O cobertor daria oportunidade a situações de amor, de paixão, de sexo.
c) “Operada a transferência, fecha-se o negócio”. No anúncio do cobertor, que transferência é feita
pelo olhador do anúncio?
Gabarito: O interesse pela mulher se transfere para o cobertor.
Releia o início do 5º parágrafo, aquele que começa assim: “Mas sempre é bom...”.
A que frustração o cronista se refere?
Gabarito: A frustração de a linda mulher não acompanhar o cobertor.
No primeiro exercício, os itens (a), (b) e (c) dizem respeito a um exemplo citado na
crônica sobre o anúncio de um cobertor que trazia uma mulher sensual em destaque. A
questão se valida desse exemplo, discutindo as relações que são feitas na mente dos homens
ao olhar tal propaganda. Há uma “sugestão erótica”, pois, de imediato, o que chama a atenção
é a mulher, que leva o espectador a se sentir envolvido, como se o cobertor viesse
acompanhado dela para esquentá-lo melhor nas noites de inverno; depois, ocorre “a
decepção”, em que ele percebe que aquilo é só uma propaganda e, por conseguinte, há “a
transferência”, porque ele já sabe que não conseguirá obter aquela mulher, então transfere o
desejo nela para o desejo no cobertor, fechando o negócio com a compra desse produto.
Na segunda questão, mais que decepcionado, o espectador sente-se frustrado, o que
novamente destaca que esse tipo de propaganda não faz bem às pessoas (no caso, aos
homens). Diante disso, percebemos que essas duas propostas trabalham a ênfase nas
expressões nominais que encapsulam partes anteriores do texto, revelando uma
intencionalidade. Para os alunos, isso é importante, pois eles depreendem o sentido da
crônica, interpretando o aspecto negativo da propaganda para o qual o texto converge.
82
Podemos observar que as questões analisadas nesta seção apresentam um
aprofundamento maior no que tange à compreensão textual. São atividades que tratam o uso
de pronomes e de expressões nominais, atentando para a intencionalidade dessas duas
estratégias referenciais, seja como anáforas diretas, seja como encapsuladores. Nesse último
caso, exige-se do aluno uma leitura mais atenta, sem se preocupar com a cópia integral de
termos do texto. Apesar de serem questões de identificação referencial, elas fazem com que o
aluno reflita, explicando com as próprias palavras a porção textual recuperada, em vez de
retirar do texto um referente pronto e escrevê-lo em seu livro, o que mostra uma leitura ainda
mais aprofundada.
4.4 – Aprofundando a discussão
Nos LDP analisados, verificamos que ainda são poucos os exercícios que tratam da
referenciação, associando-a à interpretação textual com relação às crônicas (3,6%). Embora
haja exercícios que tratam a interpretação com os recursos referenciais empregados nesses
textos, ainda há exercícios mecânicos que não exploram a leitura crítica.
Inicialmente, acreditávamos que os recursos referenciais seriam explorados em
atividades de ordem gramatical, que usassem as crônicas como pretexto para o estudo de itens
linguísticos, como pronomes, sinônimos, advérbios etc. Desse modo, pensamos que as
questões com crônicas serviriam para tirar trechos que exemplificassem aspectos gramaticais,
não vinculando com a leitura e a interpretação, tendo em vista que todas as coleções
apresentam duas seções para estudar os textos: uma de leitura propriamente dita, e outra de
uso da língua.
Como forma de confirmar essa hipótese, organizamos o seguinte quadro, a fim de
mostrar como a divisão dos exercícios foi realizada nas seções de cada coleção dos LDP
analisados:
83
Coleção
Português,
Ideias
&
Linguagens
Projeto Radix
Projeto ECO
Português-Linguagens
Tudo é linguagem
Para ler o mundo
Diálogo-edição renovada
A aventura da linguagem
A arte da palavra
Viva português
Uma proposta para o
letramento
Para viver juntos
Linguagem: criação e interação
Trajetórias da palavra
TOTAL DAS COLEÇÕES
Seção de
Gramática
Seção de
Leitura
Total
1
1
2
2
6
2
5
2
0
1
0
3
3
3
0
0
2
2
4
1
2
5
9
2
5
4
2
5
1
5
5
15
20
1
0
0
0
2
0
1
2
0
28
35
63
Quadro 2: Tratamento dado aos exercícios sobre referenciação nas crônicas pelas coleções quanto
à seção temática.
Com esse quadro, observamos que a diferença no tratamento das coleções é bastante
pequena. Porém, descobrimos que essa classificação gramática/ leitura que os autores de LDP
usam nem sempre leva em conta essa divisão de modo tão sistemático. Como vimos na tabela
1, percebemos a existência de 48 atividades relevantes para o processo de leitura em nosso
corpus (8 exercícios de repetição com efeitos de sentido e 40 exercícios de identificação de
referentes com interpretação). Confrontando com os resultados do quadro 2, há 35 atividades
consideradas de leitura, o que significa que existem 13 exercícios que os LDP inseriram na
parte destinada ao tratamento gramatical, mas que o superam, não tratando o texto como
pretexto, já que associam conhecimentos linguísticos à leitura.
Assim, há nos LDP exercícios que solicitam reescritura, identificação etc, sem a
preocupação em refletir sobre a criação dos sentidos nos textos, porém, ao contrário do que
imaginávamos, há o predomínio de atividades que solicitam ao aluno explicar o uso da
estratégia empregada, indo além da superfície textual.
Devemos destacar também, com o quadro 2, que há uma oposição nas duas coleções
que mais apresentaram atividades. Enquanto o Projeto ECO apresentou um maior número de
84
questões na seção de gramática, a coleção Uma proposta para o letramento destacou-se com a
maioria das questões na seção de leitura.
Com relação a nossa outra hipótese, como podemos observar na análise das atividades,
há um predomínio de questões que associam a identificação de referentes à interpretação das
crônicas, incitando o aluno a ir além da mera localização, ao refletir sobre as escolhas
referenciais empregadas. De todos os 63 exercícios, 40 deles encontram-se nesse grupo,
conforme mencionamos anteriormente. Além disso, as questões que trabalham com a
estratégia referencial da repetição também apresentam um destaque para a interpretação
textual, por priorizarem os efeitos de sentido criados com o uso desse recurso.
Esses resultados não correspondem ao que tínhamos imaginado anteriormente. Como
foi esclarecido na introdução deste trabalho, esperávamos encontrar nessas coleções um maior
número de atividades de identificação de referentes, mas sem que se fizesse uma relação com
a compreensão do texto. Em outras palavras, acreditávamos que houvesse, nos LDP, um
predomínio de atividades mecânicas, que solicitassem a localização dos referentes, não
aprofundando para o estudo do texto propriamente dito. Assim, do modo como a análise foi
dividida (por grupo de exercícios), há mais exercícios que colaboram para uma leitura mais
crítica e produtiva por meio da referenciação que o contrário.
Além dessas considerações, achamos necessário verificar qual a situação de cada
coleção individualmente, com relação às categorias de exercícios explorados. Para isso,
usamos o quadro a seguir:
85
Categoria de Exercício
Coleção
Português,
Linguagens
Projeto Radix
Ideias
Repetição
como
problema (A)
&
Total
Identificação
Identificação
Subtotal (Subtotal
Subtotal
Repetição
de referente com
de referente sem
2
1+
1
com efeitos
interpretação
interpretação
(A) + (B) de sentido (C)
(C) + (D) Subtotal
(D)
(B)
2)
1
0
1
0
1
1
2
1
0
1
0
4
4
5
Projeto ECO
1
3
4
1
4
5
9
Português-Linguagens
0
0
0
2
0
2
2
Tudo é linguagem
0
2
2
1
2
3
5
Para ler o mundo
0
2
2
1
1
2
4
Diálogo-edição renovada
0
0
0
1
1
2
2
A aventura da linguagem
0
0
0
2
3
5
5
A arte da palavra
0
1
1
0
0
0
1
Viva português
Uma proposta para o
letramento
Para viver juntos
Linguagem: criação e
interação
Trajetórias da palavra
0
1
1
0
4
4
5
0
3
3
0
17
17
20
0
0
0
0
1
1
1
0
0
0
0
2
2
2
0
0
0
0
0
0
0
3
12
15
8
40
48
63
TOTAL DAS COLEÇÕES
Quadro 3: Quadro comparativo dos exercícios sobre referenciação, por categoria, nas crônicas das coleções analisadas.
86
Com esse quadro, verificamos que uma mesma coleção pode ter atividades mais
superficiais e outras mais aprofundadas. Dentre as quatro categorias de exercícios com as
quais trabalhamos, observamos que a de repetição como problema e a de identificação de
referente sem interpretação são as que menos contribuem para uma leitura mais proficiente
das crônicas. Há, no total, 3 exercícios do primeiro grupo, e 12 do segundo, mas,
especificamente, a coleção que apresenta a maior quantidade dessas atividades é o Projeto
ECO.
Por outro lado, as categorias de exercícios que se destacaram em nossa análise como
produtivas para a associação entre referenciação e leitura foram repetição com efeitos de
sentido, com 8 atividades, e identificação de referente com interpretação, com 40 atividades.
Mais especificamente, a coleção que se destacou, ao fazer uso dessas categorias, foi Uma
proposta para o letramento.
Por fim, especificamente em relação aos processos anafóricos, outro ponto que
chamou nossa atenção na análise dos dados e que vale destacar foi o predomínio de anáforas
diretas nos exercícios. Elas aparecem tanto nas questões que não aprofundam a leitura do
texto quanto nas questões que colaboram para uma leitura mais produtiva. Em menor escala,
também houve casos de anáforas encapsuladoras nas atividades, mas todas associadas a uma
compreensão textual mais aprofundada, como observamos na seção 4.3.2.2. Não houve
nenhum caso de anáfora indireta propriamente dita nos exercícios do nosso corpus, o que
pode ser explicado pelo fato de esse tipo de anáfora exigir um nível maior de inferência por
parte do aluno. Esses dados podem ser desenvolvidos em pesquisas futuras.
87
5 – SUGESTÕES DE ATIVIDADES
Nesse capítulo, elaboramos algumas atividades que podem exemplificar as nossas
discussões acerca da associação entre as estratégias referenciais e a leitura e interpretação das
crônicas, servindo de material extra para contribuir com o trabalho em sala de aula.
Como vimos, a coleção Trajetórias da Palavra foi a única que não apresentou
nenhuma proposta de exercícios sobre referenciação com suas crônicas. Por esse motivo,
resolvemos sugerir questões a serem trabalhadas especificamente com as três crônicas
encontradas nessa coleção: “Nunca deixe seu filho mais confuso que você”, de Lourenço
Diaféria, presente no livro do 6º ano; e “Rápido”, de Luis Fernando Veríssimo, e “O menino
do dedo roxo”, de Lourenço Diaféria, presentes no livro do 8º ano.
Seguem as crônicas e suas respectivas atividades:
CRÔNICA 1
Nunca deixe seu filho mais confuso que você
De manhã, na copa. O pai mexe o café na xícara. O filho caçula vem da sala, dispara:
— Pai, o que é genitália? O homem volta-se:
— Ge... o quê?
— Genitália.
— Onde é que você tirou isso, da sua cabeça?
— Tá no jornal, pai.
— Genitália, no jornal? Bem, esse assunto não é comigo agora. Já estou atrasado pro trabalho. Cadê sua
mãe? Rita! Ritinhaaaaa! Onde é que essa mulher se enfiou? Rita,venha ouvir aqui o que seu filho está
aprontando.
Dona Rita desce esbaforida:
— Algum problema, Gervásio?
— Problema nenhum. O garoto está apenas querendo saber o que é genitália. Explique pra ele. Estou de
saída.
— Genitália? Eu? Isso é conversa de homem pra homem. Vai dizer que você não sabe?
— Saber eu sei, lógico. Mas há coisas que a gente sabe o que é na teoria, mas fica difícil de explicar na
prática.
— Deixa de bobagem.
— Tá bom. Depois, se eu pegar trânsito, quero só ver.
— Pode deixar, pai. Não precisa ficar discutindo você e a mamãe por causa de uma palavra. Eu
pergunto pra tia da escola.
— Tá louco? A tia pode pensar mal da gente. Deixa comigo. Presta atenção: genitália é o mesmo que
partes pudendas. Genitália é uma coisa muito antiga. Já existia no tempo do seu bisavô. No século passado,
quando seu bisavô estava vivo, as pessoas tinham pudor. Elas ocultavam do público certas partes do corpo.
Chegavam até ao exagero. As partes que ficavam mais resguardadas formavam, exatamente, a genitália. A
genitália eram as partes pudendas.
— O umbigo era genitália, pai?
— Não. Na verdade, não era. Vou tentar explicar melhor. As pessoas tinham vergonha de mostrar o
corpo. E uma certa parte do corpo era reservada ao extremo. Não aparecia nem em filme francês. As pessoas
chamavam esse território misterioso de vergonhas. Isso é que é a genitália moderna.
— Bumbum é genitália, pai?
— Não. Acho que não estou sendo muito claro. Ritinha, você não quer dar uma mão?
88
— Não. Assuma.
— Bom, vou pras cabeças. Ahnnn. Hummmm. Abaixe as calças. Mais. Até os tornozelos. Isso. Pronto,
tá aí a genitália.
— O umbigo?
— No térreo do umbigo. Que é que você vê embaixo do umbiguinho?
— Pô, pai. Vai dizer que o senhor não sabe o que é isso? É meu bingolim, pai.
— Ta aí. O bingolim é a genitália do homem.
— Puxa, o senhor podia ter falado antes.
— Na vida, às vezes é preciso usar eufemismos. Por exemplo, a genitália da mulher tem um nome
delicado, leve, ágil. Sabe o que estou querendo dizer, não sabe? Começa com b.
— Barata da vizinha?
— Não, filho. Borboleta.
(DIAFÉRIA, Lourenço. O invisível cavalo voador - Falas contemporâneas. Editora
FTD, 1990)
1. Na crônica acima, os personagens passam por um dilema: como explicar para o filho o
significado da palavra genitália. Segundo o pai, para resolver isso, é necessário o uso de
eufemismos. Observe, então, o quadro abaixo e responda ao que se pede a seguir:
Eufemismo: s. m. Figura de estilo com que se disfarçam as ideias desagradáveis por meio
de expressões mais suaves*.
*fonte: dicionário Aurélio da Língua Portuguesa
a) Com base na sua leitura da crônica, por que seria desagradável explicar para o filho, de
maneira clara e objetiva, o significado da palavra genitália?
Sugestão de resposta: Porque o garoto é muito pequeno e, na nossa sociedade, palavras como
essa envolvem tabus, ou seja, são consideradas inaceitáveis ou proibidas nas conversas.
b) Procure, no texto, palavras e expressões usadas pelo pai do menino que serviram como
eufemismos para retomar o termo genitália.
Sugestão de resposta: “certas partes do corpo”; “parte(s) pudenda(s)”; “esse território
misterioso”; “bingolim”; “vergonhas”; “barata da vizinha” e “borboleta”.
2. As anáforas encapsuladoras são aquelas que não recuperam um referente específico, e sim
conteúdos inteiros do texto, anteriores e/ou posteriores, a fim de resumi-los. Com base nisso,
observe a seguinte fala do pai do menino e responda ao que se pede:
- Onde é que você tirou isso, da sua cabeça?
a) Qual termo está funcionando como uma anáfora encapsuladora nesse trecho?
Resposta: O pronome demonstrativo isso.
b) O que essa anáfora está recuperando?
Sugestão de resposta: O pronome isso retoma o fato de o menino querer saber o que significa
a palavra genitália.
3. Na crônica, percebemos que o pai se esquiva de responder à pergunta do filho, passando tal
responsabilidade à sua esposa, como se o filho fosse só dela. Diante disso:
89
a) Copie do texto a expressão usada pelo pai que revela a responsabilidade exclusiva da mãe.
Resposta: “seu filho”.
b) Há uma gradação no modo pelo qual o marido se refere à sua esposa, ausentando-se da
obrigação de responder o filho. Identifique tal gradação.
Sugestão de resposta: “sua mãe”, “Rita!”, “Ritinhaaaaa!”, “essa mulher”.
4. Releia o seguinte trecho do texto:
- Bom, vou pras cabeças. Ahnnn. Hummmmm. Abaixe as calças. Mais. Até os tornozelos.
Isso. Pronto, tá aí a genitália.
A que se refere o pronome “isso”?
Sugestão de resposta: O pronome refere-se ao fato de o menino ter tirado a calça e revelado
suas partes íntimas (a genitália).
5. Releia o texto e responda: em que lugar se passa o fato narrado? Que elementos do texto
permitem essa identificação?
Sugestão de resposta: O fato narrado se passa na casa da família. Podemos identificar essa
informação a partir das palavras “copa” e “sala”.
CRÔNICA 2
Rápido
Acho que era o Marcel Marceau que tinha uma pantomima em que ele representava a vida de um
homem, do berço ao túmulo, em menos de um minuto. Shakespeare, claro, tem seu famoso solilóquio sobre as
idades do homem que também é uma maravilha de sintetização poética. Nossas vidas, afinal, comparadas com a
idade do Universo, se desenrolam em poucos segundos. Cabem numa pagina de diálogo.
-Quer dançar?
-Obrigada!
-Você vem aqui sempre?
-Venho!
-Vamos namorar firme?
-Bom... Você tem que falar com o papai...
-Já falei com seu pai. Agora é só marcar a data.
-26 de julho?
-Certo.
-Não esqueça das alianças...
-Você me ama?
-Amo.
-Mesmo?
-Sim.
-Sim.
-Parece mentira. Estamos casados. Tudo está acontecendo tão rápido...
-Sabe o que foi que disse o noivo nervoso na noite de núpcias?
-O quê?
-Enfim, S.O.S.
-Você estava nervoso?
-Não. Foi bom?
-Mmmm. Sabe de uma coisa?
-O quê?
90
-Eu estou grávida.
-É um menino!
-A sua cara...
-Aonde é que você vai?
-Ele está chorando.
-Deixa... Vem cá.
-Meu bem...
-Hmm?
-Estou grávida de novo.
-É menina!
-O que é que você tem?
-Por quê?
-Parece distante, frio...
-Problemas no trabalho.
-Você tem outra!
-Que bobagem.
-É mesmo... Você me perdoa?
-Vem cá.
-Aqui não. Olha as crianças...
-O Junior saiu com o carro. Ia pegar uma garota.
-Você já falou com ele sobre...
-Já. Ele sabe exatamente o que fazer.
-O quê? Você deu instruções?
-Na verdade ele já sabia melhor que eu. Essa geração já nasce sabendo. Só precisei mostrar como se usa o
macaco.
-O quê?!
-Ah, você que dizer...Pensei que fosse o carro. E a Beti?
-Parece que é sério.
-Ela e o analista de sistemas?
-É. Aliás...
-Estão vivendo juntos. Eu sabia!
-Ela está indo para o hospital.
-Já?!
-São gêmeos!
-Sabe que você até que é uma avó bacana?
-Quem diria...
-Vem cá...
-Olha as crianças.
-Que crianças?
-Os gêmeos. A Beti deixou eles dormindo aqui.
-Ai.
-Que foi?
-Uma pontada no peito.
-Você tem que se cuidar. Está na idade perigosa.
-Já?!
-Sabe que a Beti está grávida de novo?
-Devem ser gêmeos outra vez. O cara trabalha com o sistema binário.
-Esse conjunto do Junior precisa ensaiar aqui em casa? Que inferno.
-E o nome do conjunto? Terror e Êxtase.
-Vão acordar os gêmeos.
-Ai.
-Outra pontada?
-Deixa pra lá. Olha, essa musica até que eu gosto. Não é um rock-balada?
-Não. Eles estão afinando os instrumentos.
-Quer dançar?
-Não! Você sabe o que aconteceu da última vez.
(In VERISSIMO, Luis Fernando. Comédias para se ler na escola. Rio de Janeiro: Editora Objetiva, 2000)
1. Releia as duas últimas falas do diálogo:
91
- Quer dançar?
- Não! Você sabe o que aconteceu da última vez.
A expressão “a última vez” não retoma um referente explícito no texto, mas toda uma ideia
presente ao longo do diálogo. Identifique a ideia que é retomada por essa expressão, levando
em consideração o motivo da recusa para a dança.
Sugestão de resposta: O convite para dançar é recusado, pois a última vez em que o casal
dançou foi justamente no dia em que se conheceram e, a partir desse dia, o tempo passou de
modo tão rápido sem que pudesse ser percebido por ambos.
2. Observe a seguinte frase do diálogo e responda ao que se pede:
- Parece mentira. Estamos casados. Tudo está acontecendo tão rápido...
Por que expressão poderíamos substituir o pronome destacado, mantendo o sentido de
surpresa que ele transmite? Você poderá reescrever toda a frase para melhor adequá-la à
expressão escolhida.
Sugestão de resposta: - Parece mentira. Estamos casados. Nossa história/ Nossa relação/
Nossa vida está acontecendo tão rápido...
CRÔNICA 3
O menino do dedo roxo
O menino estourou o dedo na porta da cozinha. Foi um corre-corre.
De noite, quando o pai chegou em casa, o dedo estava amarrado com gaze, vermelha de mertiolato.
- Que foi isso? – pergunta o pai pegando a mão do filho.
A mãe se desculpa:
- A brincadeira, ora essa. Não pára um minuto o capeta. Desta vez prendeu o dedo na porta. É o que dá
não ouvir a gente.
Até aí o menino estava só fungando. Agora abre o berreiro.
- Não chora que dói mais – ameaça ela com bondade.
O pai torce o nariz. A mulher coloca a panela de arroz na mesa e apaga o gás que esquentava o feijão.
Levanta a toalha do cesto de pão, destampa o pirex com machucho e carne moída.
- O papai janta e depois vê isso. Me passa a pimenta.
O guri continua a gemer.
- Já falei pra tomar cuidado. Qualquer hora arrebenta a cabeça, quero ver.
A mulher coloca os dois cotovelos sobre a mesa e fica olhando o televisor. O pai mistura bem a comida
e dá a primeira garfada. A mãe aumenta o volume do televisor. O menino aumenta o volume do choro. O pai
engole sem mastigar.
Mesmo cenário, mesmos personagens. 21h45. No vídeo, os comerciais ensinam a maneira mais prática
de cortar a nicotina e o alcatrão do cigarro. O pai aproveita para desenrolar devagar, quase sem tocar, a gaze do
dedo do menino. Torce o nariz.
- Tá feio isso, seu!
Sob a unha lacerada a mancha preta e grossa de sangue pisado.
- Esse roxo não tinha antes – observa a mãe.
O garoto aproveita para gritar e dobrar as pernas de desespero.
- Calma, filho. Fica quietinho que o papai enrola e a dor passa.
92
O filho senta no sofá de curvim e geme, sentido. 22h15. O pai faz um esforço para prestar atenção na
televisão mas está lembrando que o Bar do Sanches deve estar cheio de pilantra, cada um contando sua lorota. A
sinuca de sempre. Giz no taco. Copos de cerveja no balcão de granito.
- Tá preocupado com quê? – quer saber a mulher.
Ele fica em silêncio. Ela também. O pai tem vontade de sair, tomar uma brisa, esquecer o chorinho
agora mais manso do menino, a aporrinhação da fábrica.
A mulher que está a seu lado lhe parece o avesso da moça fresca da seção de embalagem. Flor de vaso
murcha queimada de sol. Suspira, inquietação.
- Arruma lá a vertical – reclama a mulher.
Ele levanta, arruma, senta.
- O menino dormiu, ainda bem.
- Televisão é bom para dormir. 22h30.
- Acho que a unha vai cair.
- Bom. Nasce outra mais forte.
- Já falei pra tomar cuidado com esse moleque.
- E eu não tomo? Quem fica com ele em casa sou eu, não é você. Eu que sei.
- E eu não trabalho?
- Tou reclamando, não. Falar nisso, me deixa o dinheiro da feira.
- Tá brincando? O que tem está no armário.
- Estamos sem mistura.
- Faz ovo. Omelete não é desaforo. Não vou roubar.
- Nem uns trocados?
- Estou com o certo pros bilhetes de ônibus e metrô.
- Segura o rebolado, nega. Pior são os outros que estão indo pra rua.
- Não sei como o povo não se revolta.
- O brasileiro é carneiro. O culpado é aquele cara ali, ó. E desliga essa nojeira, que estou cansado de ver
essas figurinhas em preto-e-branco. Me dá uma raiva!
- Vamos dormir que amanhã é dia de branco. Você traz o Tico?
- Trago. Vai que eu já vou.
O pai abre a geladeira, retira a garrafa de água. 2h00 da manhã.
Tico desperta chorando, senta na cama.
- Tá doendo, pai.
- Dorme, filho
- Tá doendo, pai.
- Fica quietinho que passa. Olha, encosta aqui. Pronto. Tá vendo? Vai passar. Não mexe o dedinho,
filho. Fica assim e dorme.
- Dói muito, pai.
O rosto de barba de lixa se volta para a mulher, de olhos abertos.
- Devia ter visto isso de dia. Com machucado não se brinca.
- Sempre eu a culpada.
- Capaz até de estar quebrado.
- Imagina!
- Imagina por quê? Levar uma porta no dedo.
- Experimenta dobrar o dedo, filho.
- Dói, pai.
- Esse dedo não está me cheirando bem.
- Isso já passa, homem. Fica bonzinho, amor. Mamãe abraça você.
Tico bate as pernas e empurra as cobertas. O pai salta da cama. Eta vida! A fábrica, o ônibus, o metrô, a
cangalha, o salário, a feira, as contas, o cansaço, o chefe-de-turma implicando, o sapato furado, e agora esse
dedo. Pula dentro das calças.
- Que você vai fazer?
- Acha que vou ficar olhando? Vou é levar esse garoto no pronto-socorro.
- Mas a esta hora? 2h45 da manhã.
No ponto do ônibus o pai segura o filho no colo. Um galo canta. Nos baldios os grilos trilam debaixo da
mamona. Tico encosta a cabeça no ombro do pai, espia o dedo que pica, arde, pulsa.
- Está batendo de dor, pai.
- É pus. Tomara que não inflame.
Um táxi passa, diminui a marcha.
- Condução?
- Estou esperando o ônibus.
93
- Esta hora não tem ônibus.
- Eu espero. Não estou com pressa.
Durinho da silva. O táxi parte devagar, luz acesa na capota como um olho de cíclope no arrabalde.
No ponto de ônibus, o homem espera, braços começando a doer com o peso de seu menino de dedo em
chamas. A luz do mercúrio ilumina o asfalto, daqui a pouco o homem vai começar a sentir sono, imaginará que
está na sala de espera, enfermeira de branco perguntando:
- Particular ou instituto?
Tico, receoso, mostrará o dedo, o médico fará um bom curativo, pai e filho voltarão para casa onde a
mulher terá acabado de coar um café quente. Ligará o rádio, Zé Béttio* e suas vaquinhas o confortarão.
Mas o ônibus não vem.
O menino geme no ombro do pai. O homem troca de pé de descanso e se sente tão pequeno, tão só, tão
imundo, que começa a sentir inveja dos personagens de Gil Gomes**.
*Zé Béttio: apresentador de um programa de rádio com músicas e assuntos relacionados à vida no campo.
**Gil Gomes: radialista de um programa com notícias sobre casos de violência e crime.
(DIAFÉRIA, Lourenço. Imitador de Gato. São Paulo: Editora Ática, 1998)
1. Na crônica acima, com a exceção de Tico, os personagens não são nomeados, porém há
expressões que nos permitem deduzir quem são os outros envolvidos na história. Sabendo
disso, identifique os personagens através das expressões empregadas para se referir a eles.
Sugestão de resposta: A mãe de Tico (“a mãe”/ “a mulher”) e o pai de Tico (“o pai”/ “o
homem”).
2. A expressão o menino aparece repetida algumas vezes durante a narrativa, mas também é
substituída por outras. Compare os dois grupos a seguir e explique a diferença de sentido
existente nas expressões que foram empregadas no lugar de o menino.
A. “O guri continua a gemer”;
“O garoto aproveita para gritar e dobrar as pernas de desespero”.
B. “Não para um minuto o capeta”;
“Já falei pra tomar cuidado com esse moleque”.
Sugestão de resposta: Nas expressões do grupo A, os termos empregados são mais genéricos
e brandos, retomando diretamente o referente menino, enquanto que as expressões do grupo
B, além de retomarem esse referente, também apontam para uma repreensão por parte dos
pais ao menino, por ele ser bagunceiro e ter prendido o dedo na porta.
3. Com relação à passagem “E desliga essa nojeira, que estou cansado de ver essas figurinhas
em preto-e-branco”, responda:
a) A que se referem as expressões sublinhadas?
Sugestão de resposta: As expressões referem-se à televisão e aos políticos que são mostrados
nela, respectivamente.
b) Nessa passagem, pode-se dizer que há uma crítica com o uso dessas expressões?
Justifique sua resposta.
94
Sugestão de resposta: Sim, a crítica consiste no fato de a televisão servir para promover os
políticos, enquanto as condições de vida da população brasileira estão cada vez piores, pois
esses políticos não fazem nada. A escolha do termo “nojeira” e o uso do diminutivo
depreciativo em “figurinhas” reforçam essa crítica.
4. As anáforas indiretas são aquelas que não retomam o mesmo referente citado, mas que
estão ligadas a ele por alguma associação de sentido. Sendo assim, responda:
a) No fragmento abaixo, quais as anáforas indiretas que recuperam, por uma relação de
sentido, o referente grifado?
“O pai faz um esforço para prestar atenção na televisão, mas está lembrando que o Bar do
Sanches deve estar cheio de pilantra, cada um contado sua lorota. A sinuca de sempre. Giz no
taco. Copos de Cerveja no balcão de granito”
Sugestão de resposta: “a sinuca”; “giz no taco”; “copos de cerveja”; “balcão de granito”.
b) Identifique, no texto, as anáforas indiretas que são usadas para retomar o termo “prontosocorro”.
Sugestão de resposta: “sala de espera”, “enfermeira”, “médico” e “curativo”.
95
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Nesta pesquisa, analisamos o uso das estratégias referenciais em propostas de
atividades de leitura e interpretação com crônicas dos LDP. Objetivamos relacionar
referenciação e leitura, dois temas de suma relevância para a Linguística do Texto.
Como imaginávamos inicialmente, encontramos um número muito pequeno de
exercícios sobre referenciação nas crônicas (3,6%), se comparados à quantidade total de
exercícios propostos com esse mesmo gênero (96,4%). Isso pode ser explicado pelo fato de a
referenciação ainda ser um assunto explorado timidamente no ensino fundamental, embora
esteja sendo bastante discutido no meio acadêmico atualmente.
Observamos que, de modo geral, os LDP costumam dividir as atividades com os
textos em, pelo menos, duas seções, uma destinada ao estudo do texto propriamente dito, e
outra destinada ao estudo de itens linguísticos específicos que aparecem nesses textos. Ao
contrário do que pensávamos, as questões envolvendo recursos referenciais com as crônicas
estão mais presentes nas seções dedicadas à leitura desses textos, e não nas seções que
pretendem usar trechos para exemplificar conteúdos gramaticais. Esse fato mostra o
tratamento que as próprias coleções de LDP estão dando aos fenômenos referenciais,
indicando um avanço por já considerarem a associação possível e eficaz da referenciação com
o processo de leitura e interpretação textual.
Além disso, inicialmente, esperávamos encontrar um predomínio de atividades de
identificação de referentes que não atentassem para os sentidos das crônicas, isto é, atividades
mais mecânicas que se reduzissem à superfície textual e que não exigissem um
aprofundamento maior nesses textos. Todavia, apenas 19% das questões encontradas
pertencem a essa categoria, pois a maioria dos exercícios com estratégias referenciais
explorou a identificação de referentes, mas associando-a à leitura e interpretação, o que
corresponde a 63,5% do corpus. Ainda em relação aos tipos de exercícios encontrados, outro
resultado que obtivemos com a nossa análise que também não esperávamos foi sobre a
estratégia da repetição. Apesar de termos encontrado poucas questões sobre essa estratégia,
mais da metade delas realça os efeitos de sentido que ela proporciona, compreendendo 12,7%
do nosso corpus, enquanto as demais (4,8%) a consideram um problema para a construção do
texto.
Desse modo, nas coleções de LDP, ao nos concentrarmos nas crônicas, verificamos
que elas são relacionadas a atividades de leitura com uso da referenciação e que essas
atividades envolvem o uso da repetição e da identificação de pronomes e expressões nominais
96
para recuperarem os referentes. Indo mais além, há o predomínio dessas estratégias associadas
à leitura e interpretação, enquanto as que não se dedicam a essa associação ocupam um
percentual reduzido.
Podemos, então, confirmar que os mecanismos referenciais podem servir de
instrumento para um trabalho mais produtivo nas aulas de língua portuguesa, tendo por foco a
leitura crítica dos textos. Através das estratégias referenciais empregadas, o aluno pode
identificar as intenções comunicativas dos textos, indo além do que está na superfície textual,
o que evidencia uma leitura mais crítica.
Sabemos que todos os textos apresentam uma série de elementos implícitos, que
somente são revelados quando os leitores mobilizam o contexto sociocognitivo, isto é, quando
interagem com os textos. Para construir os sentidos de modo compatível com a proposta
apresentada pelo produtor textual, os leitores devem seguir as pistas deixadas no texto, e a
Referenciação é uma dessas pistas. Isso significa que a compreensão de um texto também
depende do domínio da referenciação: não importa somente o que é dito, mas o modo como é
dito, que indica sinalizações para a interpretação.
A construção dos objetos-de-discurso envolve conhecimentos linguísticos e
extralinguísticos, fazendo com que o leitor precise se validar de uma competência para
construir os sentidos pretendidos com uma determinada escolha lexical, bem como entender a
cadeia referencial que confere progressão ao texto. Como salienta Morais (2012), identificar e
compreender as formas de referenciação empregadas é descobrir os sentidos do texto, pois
requer a articulação entre conhecimentos culturais, contextuais e linguísticos.
Como observamos nesta pesquisa, muitas vezes podemos perceber a orientação
argumentativa dos textos através do emprego de um recurso referencial, o que é bastante
importante para a compreensão. Não queremos dizer que a intencionalidade seja marcada
exclusivamente pelos processos de referenciação, mas comprovamos aqui que tais processos
também colaboram para a percepção desse aspecto nas crônicas.
Neste trabalho, também observamos o predomínio de exercícios com anáforas diretas.
Houve casos de encapsulamento, mas nenhum de anáfora indireta propriamente dita nas
atividades. Por isso, no capítulo 5, procuramos desenvolver sugestões de atividades que
contemplassem todos os processos referenciais atrelados à menção. Assim, seria interessante,
no desenvolvimento de uma pesquisa futura, aprofundar as relações entre esses processos
anafóricos (anáforas diretas, indiretas propriamente ditas e encapsuladoras) e as atividades
com crônicas nos LDP. Nesta pesquisa, esse não foi o nosso foco e apenas mencionamos
97
pontualmente o que observamos com o nosso corpus, sinalizando que tais relações podem ser
estudadas posteriormente.
Além disso, também seria pertinente a associação entre o nível de complexidade dos
exercícios e a série em que eles são abordados. Outro aspecto que também poderia ser
abordado futuramente é a comparação entre as atividades com crônicas e as atividades com
outro(s) gênero(s), a fim de verificar se o tratamento dos LDP é o mesmo.
Assim, este trabalho proporcionou o estudo das formas referenciais tendo por foco a
leitura e a interpretação das crônicas, sendo relevante ao ensino por mostrar como a
referenciação pode revelar projetos de dizer e contribuir para a produção dos sentidos dos
textos. Esperamos ter cumprido nossos objetivos e avançado nas pesquisas sobre os processos
referenciais, ressaltando que ainda há muitos desdobramentos possíveis a serem realizados a
partir deste trabalho, uma vez que não pretendemos esgotar a discussão.
98
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104
ANEXOS
Crônicas trabalhadas nos LDP
O nascimento da crônica
Há um meio certo de começar a crônica por uma trivialidade. É dizer: Que calor! Que desenfreado
calor! Diz-se isto, agitando as pontas do lenço, bufando como um touro, ou simplesmente sacudindo a
sobrecasaca. Resvala-se do calor aos fenômenos atmosféricos, fazem-se algumas conjeturas acerca do sol e da
lua, outras sobre a febre amarela, manda-se um suspiro a Petrópolis, e La glace est rompue; está começada a
crônica.
Mas, amigo leitor, esse meio é mais velho ainda do que as crônicas, que apenas datam de Esdras. Antes
de Esdras, antes de Moisés, antes de Abraão, Isaac e Jacó, antes mesmo de Noé, houve calor e crônicas. No
paraíso é provável, é certo que o calor era mediano, e não é prova do contrário o fato de Adão andar nu. Adão
andava nu por duas razões, uma capital e outra provincial. A primeira é que não havia alfaiates, não havia sequer
casimiras; a segunda é que, ainda havendo-os, Adão andava baldo ao naipe. Digo que esta razão é provincial,
porque as nossas províncias estão nas circunstâncias do primeiro homem.
Quando a fatal curiosidade de Eva fez-lhes perder o paraíso, cessou, com essa degradação, a vantagem
de uma temperatura igual e agradável. Nasceu o calor e o inverno; vieram as neves, os tufões, as secas, todo o
cortejo de males, distribuídos pelos doze meses do ano.
Não posso dizer positivamente em que ano nasceu a crônica; mas há toda a probabilidade de crer que
foi coetânea das primeiras duas vizinhas. Essas vizinhas, entre o jantar e a merenda, sentaram-se à porta, para
debicar os sucessos do dia. Provavelmente começaram a lastimar-se do calor. Um dia que não pudera comer ao
jantar, outra que tinha a camisa mais ensopando que as ervas que comera. Passar das ervas às plantações do
morador fronteiro, e logo às tropelias amatórias do dito morador, e ao resto, era a coisa mais fácil, natural e
possível do mundo. Eis a origem da crônica.
Que eu, sabedor ou conjeturador de tão alta prosápia, queira repetir o meio de que lançaram mãos as
duas avós do cronista, é realmente cometer uma trivialidade; e, contudo, leitor, seria difícil falar desta quinzena
sem dar à canícula o lugar de honra que lhe compete. Seria; mas eu dispensarei esse meio quase tão velho como
o mundo, para somente dizer que a verdade mais incontestável que achei debaixo do sol é que ninguém se deve
queixar, porque cada pessoa é sempre mais feliz do que outra.
Não afirmo sem prova.
Fui há dias a um cemitério, a um enterro, logo de manhã, num dia ardente como todos os diabos e suas
respectivas habitações. Em volta de mim ouvia o estribilho geral: que calor! Que sol! É de rachar passarinho! É
de fazer um homem doido!
Íamos em carros! Apeamo-nos à porta do cemitério e caminhamos um longo pedaço. O sol das onze
horas batia de chapa em todos nós; mas sem tirarmos os chapéus, abríamos os de sol e seguíamos a suar até o
lugar onde devia verificar-se o enterramento. Naquele lugar esbarramos com seis ou oito homens ocupados em
abrir covas: estavam de cabeça descoberta, a erguer e fazer cair a enxada. Nós enterramos o morto, voltamos nos
carros, c dar às nossas casas ou repartições. E eles? Lá os achamos, lá os deixamos, ao sol, de cabeça descoberta,
a trabalhar com a enxada. Se o sol nos fazia mal, que não faria àqueles pobres-diabos, durante todas as horas
quentes do dia?
MACHADO DE ASSIS, Joaquim Maria. Obras completas. v. 24. Rio de Janeiro: W.C.Jackson, 1955. p. 282-4.
Diálogo de festas
Iam os dois sentados no banco da frente. O ônibus era desses que levam oitocentos em pé e duzentos
sentados. Pelo tempo que eu fiquei parado, junto ao poste, esperando-o, aquele devia ser o último ônibus do ano.
Mas isto não importa. O que me interessava – pelo menos naquele momento – era a conversa dos dois, no banco
da frente. Um era magrelinha, desses curvadinhos para frente, vergado ao peso da vida. O outro parecia mais
velho, mas era espigadinho. O cabelo ralo, mais grisalho do que o do companheiro.
No momento, quem falava era o espigadinho: - Eu não cheguei a ver castanha, a não ser em vitrina, é
lógico.
- Eu vi! – disse o vergado: - Eu tenho um vizinho... o Alcides, você conhece. Aquele que a filha fugiu
com um sargento da Aeronáutica!
- Ainda está com ele?
- As castanhas?
105
- Não. O sargento da Aeronáutica, inda tá com a filha dele?
- Não. Com ela está é o filho que ele fez. Mas eu dizia: o Alcides comprou castanhas com 13º. Ele
trabalha numa firma que paga certo.
- Estrangeira?
- Deve ser. O Alcides me mandou seis castanhas.
- Você que é feliz.
- Feliz nada. Tive que dar pra outro. Tenho sete filhos, seis castanhas ia causar probrema.
O ônibus recebeu mais uns três ou quatro, que foram sentar lá na frente. A conversa entre os dois
continuou. Ainda desta vez, quem falou primeiro foi o espigadinho:
- A mulher do patrão me deu uma camisa.
- Tava boa?
- Tava larga.
- Eu ganhei um sapato, por causa do serviço que eu fiz pra Dona Flora.
- Tava bão?
- Tava apertado.
O curvado jogou o toco de cigarro pela janela e deu um suspiro. O companheiro sorriu:
- A gente devia fazer faxina pra dona que tem marido do nosso tamanho, assim o que a gente ganhasse
delas no Natal pelo menos cabia na gente.
- Ganhar coisa larga é melhor que apertada.
- Ah é!!! Largo é melhor que apertado!
Ficaram calados, ruminando essa verdade natalina durante algum tempo. Depois um deles – já não me
lembro qual dos dois – ponderou:
- Diz que esse ano o comércio levou uma fubecada.
- Conversa. Tinha mais gente nas loja que no ano passado. Eles sempre se queixa.
- Ué! Pra mim tanto faz. Quem não ganha já perdeu. Eu num tenho pra dar, num posso ganhar.
Era um raciocínio honesto, cheio de experiência. Tanto que o outro balançou a cabeça, concordando.
Mas advertiu o companheiro de que não podia se queixar do natal. Afinal ganhara um cesta de festas.
- Todo ano eu consigo uma. Minha mulher gosta muito dessas cestas de Natal, pra guardar roupa limpa
e fazer entrega pra freguesia. Eles ganham elas cheias de garrafas e latas de conserva. Depois de esvaziar até
gostam quando a gente leva a cesta vazia pra nós.
O curvado pelo peso da vida ficou olhando pela janela e argumentou:
- Natal é bom por causa dessas novidades. Sempre sobra uma coisinha.
- Eu dei a cesta pra minha mulher. E tu? O que é que deu pra tua?
- Dei o sapato. Tava apertado ni mim, mas ela corta atrás e faz chinela.
Um deles fez sinal para o ônibus parar: - Eu salto aqui.
Deu um tapinha nas costas do outro e disse com a maior sinceridade, sem um laivo de ironia:
- Um feliz 1968 pra você.
- Obrigado. Pra você também.
PONTE PRETA, Stanislaw. Stanislaw Ponte Preta et alii. Febeapá 1,2 e 3. Rio de Janeiro: Agir, 2006.
História de um nome
No capítulo dos nomes difíceis têm acontecido coisas das mais pitorescas. Ou é um camarada chamado
Mimoso, que tem físico de mastodonte, ou é um sujeito fraquinho e insignificante chamado Hércules. Os nomes
difíceis, principalmente os nomes tirados de adjetivos condizentes com seus portadores, são raríssimos, e é por
isso que minha avó a paterna - dizia:
- Gente honesta, se for homem deve ser José, se for mulher, deve ser Maria!
É verdade que Vovó não tinha nada contra os joões, paulos, mários, odetes e - vá lá - fidélis. A sua
implicância era, sobretudo, com nomes inventados, comemorativos de um acontecimento qualquer, como era o
caso, muito citado por ela, de uma tal Dona Holofotina, batizada no dia em que inauguraram a luz elétrica na rua
em que a família morava.
Acrescente-se também que Vovó não mantinha relações com pessoas de nomes tirados metade da mãe e
metade do pai. Jamais perdoou a um velho amigo seu - o "Seu" Wagner - porque se casara com uma senhora
chamada Emília, muito respeitável, aliás, mas que tivera o mau-gosto de convencer o marido de batizar o
primeiro filho com o nome leguminoso de Wagem - "wag" de Wagner e "em" de Emília. É verdade que a vagem
comum, crua ou ensopada, será sempre com "v", enquanto o filho de "Seu" Wagner herdara o "w" do pai. Mas
isso não tinha nenhuma importância: a consoante não era um detalhe bastante forte para impedir o risinho
gozador de todos aqueles que eram apresentados ao menino Wagem.
106
Mas deixemos de lado as birras de minha avó - velhinha que Deus tenha, em Sua santa glória - e
passemos ao estranho caso da família Veiga, que morava pertinho de nossa casa, em tempos idos.
"Seu" Veiga, amante de boa leitura e cuja cachaça era colecionar livros, embora colecionasse também
filhos, talvez com a mesma paixão, levou sua mania ao extremo de batizar os rebentos com nomes que tivessem
relação com livros. Assim, o mais velho chamou-se Prefácio da Veiga; o segundo, Prólogo; o terceiro, Índice e,
sucessivamente, foram nascendo o Tomo, o Capítulo e, por fim, Epílogo da Veiga, caçula do casal.
Lembro-me bem dos filhos de "Seu" Veiga, todos excelentes rapazes, principalmente o Capítulo, sujeito
prendado na confecção de balões e papagaios. Até hoje (é verdade que não me tenho dedicado muito na busca)
não encontrei ninguém que fizesse um papagaio tão bem quanto Capítulo. Nem balões. Tomo era um bom
extrema-direita e Prefácio pegou o vício do pai - vivia comprando livros. Era, aliás, o filho querido de "Seu"
Veiga, pai extremoso, que não admitia piadas. Não tinha o menor senso de humor. Certa vez ficou mesmo de
relações estremecidas com meu pai, por causa de uma brincadeira. "Seu" Veiga ia passando pela nossa porta,
levando a família para o banho de mar. Iam todos armados de barracas de praia, toalhas etc. Papai estava na
janela e, ao saudá-lo, fez a graça:
- Vai levar a biblioteca para o banho? "Seu" Veiga ficou queimado durante muito tempo.
Dona Odete - por alcunha "A Estante" - mãe dos meninos, sofria o desgosto de ter tantos filhos homens
e não ter uma menina "para me fazer companhia" - como costumava dizer. Acreditava, inclusive, que aquilo era
castigo de Deus, por causa da idéia do marido de botar aqueles nomes nos garotos. Por isso, fez uma promessa:
se ainda tivesse uma menina, havia de chamá-la Maria.
As esperanças já estavam quase perdidas. Epílogozinho já tinha oito anos, quando a vontade de Dona
Odete tornou-se uma bela realidade, pesando cinco quilos e mamando uma enormidade. Os vizinhos
comentaram que "Seu" Veiga não gostou, ainda que se conformasse, com a vinda de mais um herdeiro, só
porque já lhe faltavam palavras relacionadas a livros para denominar a criança.
Só meses depois, na hora do batizado, o pai foi informado da antiga promessa. Ficou furioso com a
mulher, esbravejou, bufou, mas - bom católico - acabou concordando em parte. E assim, em vez de receber
somente o nome suave de Maria, a garotinha foi registrada, no livro da paróquia, após a cerimônia batismal,
como Errata Maria da Veiga.
Estava cumprida a promessa de Dona Odete, estava de pé a mania de "Seu" Veiga.
PORTO, Sérgio. Sérgio Porto. São Paulo: Abril Educação, 1981. p.75. Coleção Literatura Comentada.
A Pechada
O apelido foi instantâneo. No primeiro dia de aula, o aluno novo já estava sendo chamado de "Gaúcho".
Porque era gaúcho. Recém-chegado do Rio Grande do Sul, com um sotaque carregado.
– Aí, Gaúcho!
– Fala, Gaúcho!
Perguntaram para a professora por que o Gaúcho falava diferente. A professora explicou que cada
região tinha seu idioma, mas que as diferenças não eram tão grandes assim. Afinal, todos falavam português.
Variava a pronúncia, mas a língua era uma só. E os alunos não achavam formidável que num país do tamanho do
Brasil todos falassem a mesma língua, só com pequenas variações?
– Mas o Gaúcho fala "tu"! – disse o gordo Jorge, que era quem mais implicava com o novato.
– E fala certo - disse a professora. – Pode-se dizer "tu" e pode-se dizer "você". Os dois estão certos. Os
dois são português.
O gordo Jorge fez cara de quem não se entregara.
Um dia o Gaúcho chegou tarde na aula e explicou para a professora o que acontecera.
– O pai atravessou a sinaleira e pechou.
– O que?
– O pai. Atravessou a sinaleira e pechou.
A professora sorriu. Depois achou que não era caso para sorrir. Afinal, o pai do menino atravessara uma
sinaleira e pechara. Podia estar, naquele momento, em algum hospital. Gravemente pechado. Com pedaços de
sinaleira sendo retirados do seu corpo.
– O que foi que ele disse, tia? – quis saber o gordo Jorge.
– Que o pai dele atravessou uma sinaleira e pechou.
– E o que é isso?
– Gaúcho... Quer dizer, Rodrigo: explique para a classe o que aconteceu.
– Nós vinha...
– Nós vínhamos.
107
– Nós vínhamos de auto, o pai não viu a sinaleira fechada, passou no vermelho e deu uma pechada
noutro auto.
A professora varreu a classe com seu sorriso. Estava claro o que acontecera? Ao mesmo tempo,
procurava uma tradução para o relato do gaúcho. Não podia admitir que não o entendera. Não com o gordo Jorge
rindo daquele jeito.
"Sinaleira", obviamente, era sinal, semáforo. "Auto" era automóvel, carro. Mas "pechar" o que era?
Bater, claro. Mas de onde viera aquela estranha palavra? Só muitos dias depois a professora descobriu que
"pechar" vinha do espanhol e queria dizer bater com o peito, e até lá teve que se esforçar para convencer o gordo
Jorge de que era mesmo brasileiro o que falava o novato. Que já ganhara outro apelido: Pechada.
– Aí, Pechada!
– Fala, Pechada!
VERÍSSIMO, Luis Fernando. Nova Escola, maio 2001.
Quase doutor
A nossa instrução pública cada vez que é reformada, reserva para o observador surpresas admiráveis.
Não há oito dias, fui apresentado a um moço, aí dos seus vinte e poucos anos, bem posto em roupas, anéis,
gravatas, bengalas, etc. O meu amigo Seráfico Falcote, estudante, disse-me o amigo comum que nos pôs em
relações mútuas.
O Senhor Falcote logo nos convidou a tomar qualquer coisa e fomos os três a uma confeitaria. Ao
sentar-se, assim falou o anfitrião:
- Caxero traz aí quarqué cosa de bebê e comê.
Pensei de mim para mim: esse moço foi criado na roça, por isso adquiriu esse modo feio de falar.
Vieram as bebidas e ele disse ao nosso amigo:
- Não sabe Cunugunde: o véio tá i.
O nosso amigo comum respondeu:
- Deves então andar bem de dinheiros.
- Quá ele tá i nós não arranja nada. Quando escrevo é aquela certeza. De boca, não se cava... O véio óia,
óia e dá o fora.
Continuamos a beber e a comer alguns camarões e empadas. A conversa veio a cair sobre a guerra
européia. O estudante era alemão dos quatro costados.
- Alamão, disse ele, vai vencer por uma força. Tão aqui, tão em Londres.
-Qual!
- Pois óie: eles toma Paris, atravessa o Sena e é um dia inguelês.
Fiquei surpreendido com tão furioso tipo de estudante. Ele olhou a garrafa de vermouth e observou:
- Francês tem muita parte..-. Escreve de um jeito e fala de outro.
- Como?
- Óie aqui: não está vermouth, como é que se diz "vermute"? Pra que tanta parte?
Continuei estuporado e o meu amigo, ou antes, o nosso amigo parecia não ter qualquer surpresa com tão
famigerado estudante.
- Sabe, disse este, quase fui com o dotô Lauro.
- Por que não foi? perguntei.
- Não posso andá por terra.
- Tem medo?
- Não. Mas óie que ele vai por Mato Grosso e não gosto de andá pelo mato.
Esse estudante era a coisa mais preciosa que tinha encontrado na minha vida. Como era ilustrado! Como
falava bem! Que magnífico deputado não iria dar? Um figurão para o partido da Rapadura.
O nosso amigo indagou dele em certo momento:
- Quando te formas?
- No ano que vem.
Caí das nuvens. Este homem já tinha passado tantos exames e falava daquela forma e tinha tão firmes
conhecimentos!
O nosso amigo indagou ainda:
- Tens tido boas notas?
- Tudo. Espero tirá a medáia.
BARRETO, Lima. Careta, 8-5-1915.
O triste sono sem mãe
108
Na manhã fria de Ipanema, o menino dorme um sono profundo. Estaria sonhando? Enrolado numa
manta, encolhido para proteger-se do frio, falta algo àquele menino sem nome no dia de festa. O Dia das Mães.
Quem será a mãe do menino? Por que não estão juntos nesse dia, como tantos filhos e tantas mães, de todas as
idades, que brincam na praia e fazem grandes filas em churrascarias, exibindo presentes? Como ele, centenas de
meninos, milhares de meninos, em todo o Brasil, não tiveram a alegria de ver as mães em seu dia.
Dorme o menino alheio a trabalhos de especialistas que registram aumento do consumo de cola de
sapateiro entre os menores de rua nesses dias de festa. A droga-cola, que alivia, ajuda a fugir do triste dia-a-dia e
acaba por matar.
O que esperar desse menino que dorme? O que cobrar dele mais tarde? Provavelmente a sociedade lhe
reserva repulsa e repressão e, se tiver sorte, chegará a ser um adulto. Que tipo de adulto? Inocente e indefeso,
dorme o menino. Está só, todos passamos indiferentes por ele quando o vemos em sinais, vendendo doces,
limpando vidros, pedindo esmola.
Por que tem de ser assim? Que tipo de vida e de sociedade leva uma mãe a abandonar sua cria à própria
sorte? Nem os animais fazem isso, mas as circunstâncias, muitas vezes, obrigam o ser humano a ser mais
insensível do que os bichos. O que vamos fazer todos, a começar pelo governo das estatísticas sem alma? Esse
menino não seria conseqüência de um modo de conduzir a sociedade? Não seria melhor que os políticos e
governantes prestassem mais atenção nele e na legião de sem-mãe que assolam nossas ruas? E nós o que vamos
fazer a respeito? Não seria a hora de, pelo menos no dia das mães, pensar um pouco a respeito disso?
Dorme o menino, na frieza dura da pedra, e se pudesse sonhar, sonharia com o calor macio do regaço
materno, com uma canção de ninar, cheia de carinho. Dorme o menino, dorme com frio.
UTZERI, Fritz. Jornal do Brasil, 1º caderno. 15 maio 2000, p. 20.
Rex, o filósofo pulguento
Estou com uma pulga atrás da orelha. E isso não é uma metáfora. Estou mesmo com uma pulga
picando. E o pior é que nem posso coçar-me. Alguém na minha posição tem que manter a compostura.
Acho que vou me distrair olhando as pessoas se apertando contra a grade. Aliás, até hoje não entendi
por que elas fazem isso. E já faz anos que os vejo assim, contorcendo-se, grunhindo, pulando.
Tudo começou quando eu ainda era pequeno. Vivia no canil da Polícia Militar e conversava muito com
os outros cachorros sobre o que queríamos ser quando crescêssemos: "Farei carreira como farejador de drogas",
dizia um. "Serei rastreador de marginais", falava outro. Eu, jovem e sonhador,
tinha certeza de que iria ser um Rin-tin-tin moderno. Nunca imaginei que acabaria aqui.
Não esqueço o meu primeiro dia. Corria atrás do meu próprio rabo, feliz e despreocupado, quando um
PM pôs uma coleira em torno do meu pescoço, deu-me um tapinha na cabeça e disse: "Vem, Rex, vamos nos
divertir um pouco". Daí fui para um caminhão onde já havia uma dúzia de colegas. Um, com pelos já brancos,
cumprimentou-me abanando o rabo serenamente e disse: "Bem-vindo ao manicômio".
Descemos em frente a uma construção gigantesca. Ali dentro vimos um grande gramado que tinha uns
arcos retangulares pintados de branco, de onde pendiam uns trançados parecidos com redes de pesca. Pensei:
"Oba, que lugar bacana para brincar!" Mas qual o quê ... Nos levaram para diante de um alambrado. Atrás dele
havia grandes degraus de cimento cinza. E aí aconteceu.
Aos poucos os degraus começaram a ser tomados por estranhos humanos (eis aí um pleonasmo, pois
não há humano que não seja estranho). Alguns vestiam camisas iguais, outros tocavam cornetões e uns outros
tinham radinhos colados ao ouvido. Era impressionante o quanto engoliam de cerveja e amendoim. E como
faziam barulho! Naquele instante descobri que minha audição canina não era uma bênção, mas uma maldição.
Minutos depois, às minhas costas, dois grupos de homens uniformizados começaram a correr atrás de uma bola.
Pareceu-me um espetáculo monótono. Era inacreditável, porém, o efeito que aquela momice tinha sobre
as pessoas atrás da cerca: elas suavam, gritavam, riam, choravam, rezavam, mordiam os lábios, roíam as unhas,
arrancavam os cabelos e, em momentos de cólera, atiravam objetos ao gramado.
Certa vez um tênis fedorento acertou-me o focinho. Nem sei o que foi pior, a dor ou o odor.
Terminado o jogo, saíram pela rua gritando e uivando como selvagens que tinham participado de uma
luta mortal. Daquele dia em diante, esta foi minha rotina: observar torcedores, latir-lhes de vez em quando para
que não pulem a cerca e, algumas vezes, dar-lhes umas mordidas para que não ataquem uns aos outros.
Tantos podem ser os destinos de um cão e o meu foi este: olhar humanos atrás de grades enquanto eles
assistem a um ritual estranho e assustador. Durante anos tentei entendê-los. Hoje, porém, quando já rói o osso da
experiência, não me incomodo mais em tentar explicá-los. Deixo para os mais jovens a tarefa de decifrar a
tortuosa lógica dos humanos. Se é que há alguma.
Essa, sim, é uma pulga que não me sai de trás da orelha.
109
TORERO, José Roberto. Folha de São Paulo, 12/03/2002.
Pipocas
O milho – ainda não estou falando da pipoca – é originário das Américas. O nome científico dessa
gramínea, zea mays, foi tirado da língua dos taianos, um povo indígena das Antilhas, já extinto. Colombo teria
levado essa planta para a Europa, e os portugueses a espalharam pelo resto do universo. Hoje é o terceiro cereal
mais produzido no mundo, depois do trigo e do arroz. O nosso vocábulo milho é, possivelmente, uma derivação
de mil, em razão da quantidade de grãos da espiga fêmea do dito.
A pipoca é o grão de uma variedade de milho, que levado ao fogo com algum tipo de gordura arrebenta
aumentando de volume. O vocábulo, em nossa língua, vem do tupi, pipóka, que significa "estalando a pele".
Sim, os índios comiam pipoca. Na verdade, o ser humano comeu milho pela primeira vez em sua história na
forma de pipoca. Espigas encontradas numa caverna do Novo México teriam 5.600 anos de idade. Os índios
punham a espiga em areia aquecida pelo fogo, e a mexiam até que estourasse. A pipoca foi o primeiro uso do
milho como alimento.
O seu consumo foi se difundindo pelo mundo. A partir do final do século XIX, tornou-se extremamente
popular nos Estados Unidos. Em 1885, Charlie Cretors inventou uma maneira de fazer pipoca em um utensílio
que podia ser empurrado a pé, puxado por um cavalo ou veículo motorizado e levado até onde estavam os
consumidores. A parafernália de Cretors acabou sendo transferida da porta para dentro do recinto dos cinemas e
até hoje a sua invenção continua sendo usada, com pequenas modificações, tanto nas casas de espetáculos quanto
nas carrocinhas.
Os americanos comem mais pipoca que todos os povos do planeta. Durante a Grande Depressão, como
a pipoca era muito barata, esse era o único "luxo" que as famílias dos americanos pobres podiam usufruir. Com a
crescente propagação do cinema o consumo da pipoca aumentou ainda mais. Cinema e pipoca fizeram um
casamento perfeito, no mundo inteiro.
Nos anos 1950, quando a televisão se tornou corriqueira, causando forte diminuição na frequência aos
cinemas, o consumo da pipoca caiu de maneira acentuada. Mas aos poucos o público habituou-se a comer pipoca
em casa vendo TV e o grão voltou a tornar-se popular. Nos Estados Unidos são consumidos anualmente milhões
de metros cúbicos de pipoca.
Para os americanos, tempo é dinheiro e o trabalho doméstico enlouquece as donas de casa. Por isso, não
demoraram a inventar e difundir pelo mundo o micro-ondas, que foi originalmente criado para fazer pipoca. Em
1945 um sujeito chamado Percy Spencer descobriu que o grão desse milho especial estourava quando era
submetido à energia de ondas curtas. Isso levou a experiências com outros alimentos e ao surgimento do forno de
micro-ondas.
Como se deve fazer e comer pipoca?
O micro-ondas deve ser evitado. Esse aparelho perverte o gosto do grão, tornando-o mais uma festifude
(ainda não existe no dicionário) de gordura hidrogenada. Os infelizes, preguiçosos ou muito ocupados, que só
provaram a microwave popcorn, podem achá-la palatável. Mas qualquer outra é melhor que ela, até mesmo essas
de carrocinha, feitas com óleos de origem suspeita. Que esses pobres diabos façam nos micro-ondas os seus ovos
estralados de gemas perfuradas, mas não corrompam a pipoca, que deve ser preparada de maneira artesanal, em
um fogão, utilizando recipientes adequados fáceis de encontrar entre as panelas de qualquer cozinha. Há
apreciadores intransigentes que afirmam que a melhor pipoca é aquela feita em fogão de lenha, mas não
precisamos chegar a tanto.
Existem pipocas com centenas de sabores diferentes, assim como existem pizzas de banana e salsichas
de carne de galinha. Não aceite invencionices, pipoca tem que ser pura e pode ser preparada em casa,
artisticamente, usando em quantidade suficiente a substância correta para ajudá-la a estourar, de preferência
manteiga. A pipoca, depois de pronta, não deve sair engordurada do recipiente, mas sim seca, crocante, clara,
permitindo vislumbrar a leve coloração amarelada do seu interior. O sal deve ser posto depois, ao gosto do
consumidor, mas ele não é imprescindível. Quem não quer usar o cloreto de sódio, por motivos medicinais ou
outros, habitua-se facilmente a degustar a pipoca sem esse tempero. Em seguida, você deve saboreá-la assistindo
a um filme (na TV, em VHS, antes que ele acabe, ou em DVD) em boa companhia ou mesmo desacompanhado
– a pipoca alivia a solidão. Comer pipoca lendo um livro é também agradável, mas deve ser evitado, pode sujar
os dedos e as páginas do volume, um pecado sem perdão. E não encha a boca de grãos, pegue um ou dois e
mastigue devagar, pipoca não é mata-fome, é para ser apreciada com requinte epicurista.
O melhor é mesmo comer pipoca vendo um filme em tela grande. Os índios provavelmente gostavam de
comer as suas pipókas contemplando o voo de pássaros canoros durante o pôr do sol, um espetáculo com som,
cores e movimento – o cinema é isso.
110
Cinema e pipoca: não existe uma união mais perfeita. Vá comer pipoca no cinema, é um procedimento
universal. Mas não faça barulho, cuidado com os sacos de papel, eles podem emitir um ruído desagradável, se
forem mal manipulados. Cinema é para ser visto em silêncio.
Conforme a minha lembrança, os cinemas da cidade onde vivo há muitos anos – estou falando do Rio
de Janeiro e cercanias, mas aí na sua cidade a história talvez seja igual – sempre tiveram pipoca para oferecer aos
seus frequentadores.
Os bons cinemas metropolitanos de antigamente, locais enormes e imponentes, com largos saguões,
platéia e balcões, forneciam pipoca em sacos de papel. Você precisava usar paletó e gravata para ingressar no
São Luiz, por exemplo, até mesmo nas matinês. Hoje nem o Teatro Municipal, não importa se o espetáculo é de
ópera, música sinfônica ou balé, exige essa formalidade. Os grandes cinemas, como o São Luiz original,
acabaram; outros, como o Roxy, em Copacabana, o Palácio, no centro, o Leblon, no bairro do mesmo nome,
transformaram-se em várias salas menores. Mesmo assim, a sala 1 do Palácio é a maior do Rio, com 974 lugares.
Muitas salas pequenas surgiram no Rio, parte localizada em shoppings ou centros culturais. A menor
sala é a da Casa França-Brasil, no Centro, com 53 lugares, e funciona apenas de terça a domingo. Outras salas
com poucos lugares, como a do Instituto Moreira Salles, na Gávea, e a do Centro Cultural Banco do Brasil, no
Centro, funcionam, como a França-Brasil, em centros culturais que oferecem inúmeras atrações aos seus
visitantes, mas não pipoca. Essa falta pode ser notada ainda em algumas novas salas, mas felizmente outras,
como as do Estação Ipanema, que antes vendiam apenas cafezinho, balas e guloseimas, passaram a oferecer
também pipoca, certamente sabendo que os cinéfilos sofisticados que as frequentam gostam de pipoca da mesma
maneira que o espectador simplório. Mas a maioria dos cinemas ainda tem pipoca. Às vezes ela é feita numa
máquina automática, como nas salas do Nilópolis Square, ou nas do Estação Botafogo. Você coloca uma ficha,
aperta um botão e a pipoca já sai ensacada, mas o produto tem um gosto medíocre. Pipoca não pode ser feita sem
um mínimo de intervenção direta da vontade e da inteligência humanas, inexistentes nos processos estritamente
mecânicos.
Os novos complexos de exibição cinematográfica, na Barra da Tijuca, em Botafogo e outros bairros,
com suas dezenas de salas, vendem a pipoca em recipientes de vários tamanhos, mas ela é amarela e enjoativa,
em nada compatível com a excelência do som e da imagem dos filmes que exibem. Das quatro salas do Fashion
Mall, em São Conrado, apenas uma delas, creio que a sala 3, a maior, tem uma boa pipoca; todas exibem bons
lançamentos, mas precisam de algum refinamento na projeção e no som.
Atualmente, a melhor pipoca dos cinemas do Rio me parece ser a do cinema Leblon, hoje dividido em
duas salas. Já fiz o teste várias vezes, e a qualidade tem se mantido inalterada há bastante tempo.
Tenho medo de que um dia o Leblon, que tem projeção e som de aceitável qualidade, abandone a
pipoca e em seu lugar passe a oferecer café expresso aos frequentadores, para ser consumido na sala de espera –
tente assistir a um filme bebendo cafezinho – e que outros cinemas também sigam este mau exemplo de
exclusão. Café expresso é uma delícia que pode ser provada em inúmeros lugares da cidade, até mesmo em
açougues, como o Talho Capixaba. Mas pipoca boa, fora de casa, já que as das carrocinhas decaíram muito, só
existe nos cinemas, o lugar ideal para ser desfrutada. É preciso preservar essa tradição.
FONSECA, Rubem. Pipocas. São Paulo: Companhia das Letras, 2003.
A turma
Eu também já tive uma turma, ou melhor, fiz parte de turma e sei como é importante em certa idade
essa entidade, a turma.
A gente é um ser racional, menos quando em turma. Existe, por exemplo, alguma razão para um grupo
de pessoas sentar todo o dia numa escadaria ou meio-fio e passar horas conversando?
Você pode falar a um filho, por exemplo, que refrigerantes engordam e chocolates dão mais espinhas
em quem já está na idade das espinhas. Ele nem ouvirá. Mas, se um dia a turma resolver, ele passará a tomar só
água com limão e pegará nojo de chocolate.
Você pode falar que cabelo tão comprido é incômodo, calorento, atrapalha, mas que nada, ele te pedirá
dinheiro para comprar mais xampu. Agora, se a turma resolver cortar careca, ele aparecerá de repente careca no
café da manhã e nem quererá falar do assunto - Qual o problema em cortar careca?
Você pode dizer que bossa nova é bom, e mostrar jornais e revistas, provar que só "Garota de Ipanema"
já recebeu centenas de gravações em todo o mundo, mas ele aumentará o volume do rock pauleira ou tecno-bost.
Até o dia em que alguém da turma aparece com um CD de bossa nova e ele troca Axel Rose por Tom Jobim de
um dia pro outro.
A turma tem modas, como quando resolvem todos arregaçar as barras das calças, que usavam
arrastando pelo chão.
A turma tem traumas, como quando o namoradinho de uma se apaixona pela namoradinha do outro e...
111
A turma tem linguagem própria, uma variante local de um ramal regional da vertente adolescente da
língua. A turma adora sentar na calçada e na praça e falar sobre o que viram em casa e na televisão.
A turma tem duplas de amigos e amigas mais chegados, e trios, e quartetos, que num grande minueto
anarquista se misturam nas festas de aniversário.
Ninguém da turma dança até que alguém da turma começa a dançar, aí dançam todos trocando de par até
acabarem dançando todos juntos como turma que são.
Um da turma se tatua, todos da turma querem se tatuar.
Um bota uma argola no nariz, os outros, para variar, botam no lábio, na sobrancelha e na orelha e...
A turma é isso ai, cara, uma reunião diária de espinhas e inquietações, habilidades e temperamentos, o
baralho das personalidades se misturando, o jogo das informações e dos sentimentos rolando nas conversas sem
fim, nas andanças sem cansaço, nas musicas compartilhadas, no refri com três canudos e uma empadinha pra
quatro.
Na turma pouco dá pra todos, todo mundo divide, cada um contribui, a turma se une partilhando e
repartindo.
A turma ri como só na turma se ri.
A turma julga quando erramos.
A turma castiga com silêncios e ironias.
A turma te chama, te reprime, te liberta, te revela, te rebela, te maltrata, te orgulha, te ama e te envolve,
te afasta e te atrai, mas a turma é assim por que a turma é a turma.
Até o dia em que - disse a todos os meus filhos - cansamos de ter turma e passamos a ser gente.
Mas, aqui entre nós, como dá saudade!
PELEGRINI, Domingos. Ladrão que rouba ladrão. São Paulo: Ática, 2004.
O incêndio de cada um
A cena foi simples. Ia eu passando de carro pela Lagoa quando vi na calçada uma moça esperando o
ônibus com seu jeans e bolsa a tiracolo. Nada demais numa moça esperando o ônibus. Mas eis que passou um
caminhão de som tocando uma lambada. Aí aconteceu. Aconteceu uma coisa quase imperceptível, mas
aconteceu: os quadris da moça começaram a se mexer num ritmo aliciante. Já não era a mesma criatura antes
estática, solitária, esperando o ônibus na calçada. Ela havia se coberto de graça, algo nela se incendiara.
A fotógrafa veio fazer umas fotos. Estava com o pescoço envolto num pano, pois tinha torcicolo. E eu
ali posando meio frio, fingindo naturalidade, e ela cautelosa com seu pescoço meio duro, tirando uma foto aqui,
outra ali, quase burocraticamente. De repente, ela descobriu um ângulo, e pronto: se incendiou
profissionalmente, jogou-se no chão, clic daqui, clic dali, vira para cá, vira para lá, este ângulo, aquele, enfim,
desabrochou, o pescoço já não doía. Ela havia detonado em si o que mais profundamente ela era.
Estamos numa festa. Aquele bate-papo no meio daquelas comidinhas e bebidinhas. Mas de repente
alguém insiste para que outro toque violão. Aparentemente a contragosto ele pega o instrumento. E começa a
dedilhar. Pronto, virou outra pessoa. Manifestou-se. Elevou-se acima dos demais, está além da banalidade de
cada um. Achou o seu lugar em si mesmo. Assim também ocorre quando vemos no palco o cantor dar seus
agudos invejáveis, o bailarino dar seus saltos ou o atleta no campo disparar seus músculos e fazer aquilo que só
ele pode fazer melhor que todos nós. Isto é o que ocorre quando o instrumentista pega o sax e sexualiza todo o
ambiente com seu som cavernoso e erótico. Isto é o que se dá até quando um conferencista ou um professor
entreabre o seu discurso e põe-se como uma sereia a seduzir a platéia, como um maestro seduz todo o teatro. Há
um momento de sedução típico de cada um. Quando o indivíduo está assentado no que lhe é mais próprio e
natural. E isto encanta. Claro, esses são exemplos até esperados. Mas há outros modos de o corpo de uma pessoa
embandeirar-se como se tivesse achado o seu jeito único e melhor de ser. Digo, o corpo e a alma. Mas nem todos
podemos ser tão espetaculares. Nem por isso o pequeno acontecimento é menos comovente. De que estou
falando? De algo simples e igualmente comovente. Por exemplo: o jardineiro que ao ser jardineiro é jardineiro
como só o jardineiro sabe e pode ser. E que ao falar das flores, ao exibi-las cercadas de palavras, percebe-se, ele
está em transe. Igualmente o especialista em vinhos, que ao explicar os diversos sabores nos quatro cantos da
boca faz seus olhos verterem prazer e embalam a quem o ouve com sua dionisíaca sabedoria. Feita com amor,
até uma coleção de selos se magnifica. Se torna mais imponente que uma pirâmide se a pirâmide for descrita ou
feita por quem não a ama. É assim que pode entrar pela sala alguém e servir um cafezinho, mas sendo aquele o
cafezinho onde ela põe sua alma, ela se torna de uma luminosidade invejável. Cada um tem um momento, um
gesto, um ato em que se individualiza e brilha. Nisto nos parecemos com os animais e peixes ou quem sabe com
as nuvens. Animais e peixes têm isto: têm trejeitos raros e sedutores, cada um segundo sua espécie. Até as
nuvens, como eu dizia, tem seu momento de glória. Uma vez vi um pintor em plena ação, pintando. Meu Deus!
O homem era um incêndio só, uma alucinação. Sua face vibrava, havia uma febre nos seus gestos. Era uma
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erupção cromática, um assomo de formas e volumes. Então é disso que estou falando. Dessa coisa simples e
única, quando o que cada um tem de mais seu relampeja a olhos vistos. Quando isto se dá, quebra-se a
monotonia e o indivíduo se transcendentaliza. Pode parecer absurdo, mas já vi uma secretária transcendentalizarse ao disparar seus dedos no teclado da máquina de escrever. Era uma virtuose como só o melhor violinista ou
pianista sabem ser. E as pessoas achavam isto mais sensacional que se ela estivesse engolindo fogo na esquina.
lsto é o que importa: o incêndio de cada um. Cada qual deve ter um jeito de deflagrar sua luz aprisionada. As
flores fazem isto sem esforço. Igualmente os pássaros. Todos têm seu momento de revelação. É aguardar, que o
outro alguma hora vai se manifestar.
SANT’ANNA, Affonso Romano de. Porta de colégio. São Paulo: Ática, 2002.
Aos jovens
Você, que tem 20, 30 ou 40 anos, fique alerta: essa idade vai passar, e mais depressa do que imagina.
Não perca tempo, por favor, sofrendo porque a mãe ou o pai sei lá o quê.
Nada importa; quem tem 25 anos deve aproveitar a vida a cada segundo. Talvez seja inútil dizer isso,
porque quem tem 25 não ouve os mais velhos, mas é muito bom ter 25. Não importa se o dinheiro está curto, se
foi abandonada pelo namorado, se o futuro é incerto. Nessa idade, não há futuro certo ou incerto, há muito mais:
há futuro.
Aproveite; se estiver triste em casa nesse domingo, sem amigos, nem amores nem dinheiro, pense: sou
jovem, tenho uma vida pela frente. Isso é melhor do que todas as glórias do mundo, só que ninguém diz isso aos
que têm 25. A mim, ninguém nunca disse.
Não dizem talvez por inveja; é mais fácil mostrar que a vida é dura, que é preciso estudar, trabalhar -o
que também é verdade; mas ninguém pega uma menina ou um garoto de 25 pelos ombros, sacode, e diz: "Você
tem 25, não se esqueça disso um só minuto, viva sua juventude. Aproveite e viva, porque ela vai passar".
E passa. Não que aos 50 não se tenham outras alegrias, outras compensações; mas saber que os de 25
não se dão conta do que estão vivendo é quase revoltante. Seria preciso que eles pensassem, de hora em hora, a
cada minuto: "Tenho 25 anos".
Nessa idade não temos obrigação de nada, a não ser a de sermos felizes. Se o seu time perdeu o
campeonato, se os juros estão altos, se o Waldomiro não foi preso, olhe para seu joelho, bote uma saia bem curta
e vá dar uma volta no quarteirão. Coma um sanduíche bem engordativo, beba um refrigerante não-diet, deite
num banco de praça, de preferência debaixo de uma árvore, e olhe o céu através das folhas, mais lindo do que a
mais linda renda francesa. E respire fundo, muito fundo, pensando em tudo que pode e ainda vai poder fazer
durante muito tempo, isto é: qualquer coisa.
Ache graça em tudo, ria de tudo. O dinheiro está curto, o namorado sumiu, a melhor amiga fez uma
falseta? E daí? O dinheiro pode pintar, namorado é o que não vai faltar, e a amiga, esqueça. Tome um sorvete de
casquinha, pegue aquele biquíni do ano passado -o único que você tem-, vá para uma praia, e, quando mergulhar,
tenha a consciência de que não existem diamantes nem rubis que façam alguém mais feliz do que a sensação de
mergulhar no mar.
Quando, à noite, for para a cama com sono, pense na felicidade que é botar a cabeça no travesseiro e
dormir sem precisar de comprimido para esperar o sono vir; e, quando acordar e se olhar no espelho, pense em
outra felicidade, que é não ter que pintar o olho, botar um blush nem fazer uma escova, pois, por menos bonita
que se seja, sempre se é linda aos 25 anos.
E, se alguma coisa te aborrecer, tire da cabeça e pense: "Sou jovem, e isso ninguém pode tirar de mim".
E viva, e sonhe, e seja feliz, porque um dia a juventude vai passar, e será uma tristeza se você não tiver
aproveitado todos os minutos dela, ou os de quando tiver 30, 40, 50, 60, 70, 80 ou 90.
Para que nunca passe pela sua cabeça a pior de todas as coisas: "Eu não aproveitei a minha vida".
LEAO, Danuza. Folha de S. Paulo, 13/3/2005.
A atitude suspeita
Sempre me intriga a notícia de que alguém foi preso “em atitude suspeita”. É uma frase cheia de
significados. Existiriam atitudes inocentes e atitudes duvidosas diante da vida e das coisas e qualquer um de nós
estaria sujeito a, distraidamente, assumir uma atitude que dá cadeia!
— Delegado, prendemos este cidadão em atitude suspeita.
— Suspeita.
— Compreendo. Bom trabalho, rapazes. E o que é que ele alega?
— Diz que não estava fazendo nada e protestou contra a prisão.
113
— Hmm. Suspeitíssimo. Se fosse inocente não teria medo de vir dar explicações.
— Mas eu não tenho o que explicar! Sou inocente!
— É o que todos dizem, meu caro. A sua situação é preta. Temos ordem de limpara cidade de pessoas
em atitudes suspeitas.
— Mas eu não só estava esperando o ônibus!
— Ele fingia que estava esperando um ônibus, delegado. Foi o que despertou a nossa suspeita.
— Ah! Aposto que não havia nem uma parada de ônibus por perto. Como é que ele explicou isso?
— Havia uma parada sim, delegado. O que confirmou a nossa suspeita. Ele obviamente escolheu uma
parada de ônibus para fingir que espera o ônibus sem despertar suspeita.
— E o cara-de-pau ainda se declara inocente! Quer dizer que passava ônibus, passava ônibus e ele ali
fingindo que o próximo é que era o dele? A gente vê cada uma…
— Não senhor, delegado. No primeiro ônibus que apareceu ela ia subir, mas nós agarramos ele
primeiro.
— Era o meu ônibus, o ônibus que eu pego todos os dias para ir pra casa! Sou inocente!
— É a segunda vez que o senhor se declara inocente, o que é muito suspeito. Se é mesmo inocente, por
que insistir tanto que é?
— E se eu me declarar culpado, o senhor vai me considerar inocente?
—Claro que não. Nenhum inocente se declara culpado, mas todo culpado se declara inocente. Se o
senhor é tão inocente assim, por que estava tentando fugir?
— Fugir, como?
— Fugir no ônibus. Quando foi preso.
— Mas eu não tentava fugir. Era o meu ônibus, o que eu tomo sempre!
— Ora, meu amigo. O senhor pensa que alguém aqui é criança? O senhor estava fingindo que esperava
um ônibus, em atitude suspeita, quando suspeitou destes dois agentes da lei ao seu lado. Tentou fugir e…
— Foi isso mesmo. Isso mesmo! Tentei fugir deles.
— Ah, uma confissão!
— Porque eles estavam em atitude suspeita, como o delegado acaba de dizer.
— O quê? Pense bem no que o senhor está dizendo. O senhor acusa estes dois agentes da lei de estarem
em atitude suspeita?
— Acuso. Estavam fingindo que esperavam um ônibus e na verdade estavam me vigiando. Suspeitei da
atitude deles e tentei fugir!
— Delegado…
— Calem-se! A conversa agora é outra. Como é que vocês querem que o público nos respeite se nós
também andamos por aí em atitude suspeita? Temos que dar o exemplo. O cidadão pode ir embora. Está solto.
Quanto a vocês…
— Delegado, com todo o respeito, achamos que esta atitude, mandando soltar um suspeito que
confessou estar em atitude suspeita é um pouco…
— Um pouco? Um pouco?
— Suspeita.
VERISSIMO, Luis Fernando. Histórias divertidas. São Paulo: Ática, 2003.
Ela tem alma de pomba
Que a televisão prejudica o movimento da pracinha Jerônimo Monteiro, em todos os Cachoeiros de
Itapemirim, não há dúvida.
Sete horas da noite era hora de uma pessoa acabar de jantar, dar uma volta pela praça para depois pegar
a sessão das 8 no cinema.
Agora todo mundo fica em casa vendo uma novela, depois outra novela.
O futebol também pode ser prejudicado. Quem vai ver um jogo do Cachoeiro F.C. com o Estrela F.C. se
pode ficar tomando cervejinha e assistindo a um Fla-Flu, ou a um Internacional x Cruzeiro, ou qualquer coisa
assim?
Que a televisão prejudica a leitura de livros, também não há dúvida. Eu mesmo confesso que lia mais
quando não tinha televisão.
Rádio, a gente pode ouvir baixinho, enquanto está lendo um livro. Televisão é incompatível com livro –
e com tudo mais nesta vida, inclusive a boa conversa, até o making love.
Também acho que a televisão paralisa a criança numa cadeira mais que o desejável. O menino fica ali
parado, vendo e ouvindo, em vez de sair por aí, chutar uma bola, brincar de bandido, inventar uma besteira
qualquer para fazer. Por exemplo: quebrar o braço.
114
Só não acredito que televisão seja “máquina de amansar doido”.
Até acho que é o contrário: ou quase o contrário: é máquina de amansar doido, distrair doido, acalmar
doido, fazer doido dormir.
Quando você cita um inconveniente da televisão, uma boa observação que se pode fazer é que não
existe nenhum aparelho de TV, a cores ou em preto e branco, sem um botão para desligar. Mas quando um pai
de família o utiliza isso pode produzir o ódio e o rancor no peito das crianças e até de outros adultos.
Quando o apartamento é pequeno, a família é grande, e a TV é só uma – então sua tendência é para ser
um fator de rixas intestinais.
- Agora você se agarra nessa porcaria de futebol...
- Mas você não tem vergonha de acompanhar essa besteira de novela?
- Não sou eu não, são as crianças!
- Crianças, para a cama!
Mas muito lhe será perdoado, à TV, pela sua ajuda aos doentes, aos velhos, aos solidários. Na grande
cidade – num apartamentinho de quarto e sala, num casebre de subúrbio, numa orgulhosa mansão – a criatura
solidária tem nela a grande distração, o grande consolo, a grande companhia. Ela instala dentro de sua toca
humilde o tumulto e o frêmito de mil vidas, a emoção, o “suspense”, a fascinação dos dramas do mundo.
A corujinha da madrugada não é apenas a companheira de gente importante, é a grande amiga da pessoa
desimportante e só, da mulher velha, do homem doente... É a amiga dos entrevados, dos abandonados, dos que a
vida esqueceu para um canto... ou dos que estão parados, paralisados, no estupor de alguma desgraça...ou que no
meio da noite sofrem o assalto das dúvidas e melancolias... mãe que espera filho, mulher que espera
marido...homem arrasado que espera que a noite passe, que a noite passe...
BRAGA, Rubem. 200 crônicas escolhidas. São Paulo: Circulo do Livro, 2008.
A carta
Esta outra história é de dois namorados, ele chamado Haroldo e ela, por coincidência, Marta. Os dois
brigaram feio, e Marta escreveu uma carta para Haroldo, rompendo definitivamente o namoro e ainda dizendo
uma verdade que ele precisava ouvir. Ou, no caso, ler. Mas se arrependeu do que tinha escrito e no dia seguinte
fez plantão na calçada em frente do edifício de Haroldo, esperando o carteiro. Precisava interceptar a carta de
qualquer jeito. Quando o carteiro apareceu, Marta fingiu que estava chegando ao edifício e perguntou:
– Alguma coisa para o 702? Eu levo.
Mas não tinha nada para o 702. No dia seguinte tinha, mas não a carta de Marta. No terceiro dia, o
carteiro desconfiou, hesitou em entregar a correspondência a Marta, que foi obrigada a fazer uma encenação
dramática. Não era do 702. Era a autora de uma carta para o 702. E queria a carta de volta. Precisava daquela
carta. Era importantíssimo ter aquela carta. Não podia dizer por quê. Afinal, a carta era dela mesma, devia ter o
direito de recuperá-la quando quisesse! O carteiro disse que o que ela estava querendo fazer era crime federal,
mas mesmo assim olhou os envelopes do 702 para ver se entre eles estava a carta. Não estava. No dia seguinte –
quando Marta ficou sabendo que o carteiro se chamava Jessé e, apesar de tão jovem, já era viúvo, além de
colorado* – também não. No outro dia também não, e o carteiro convidou Marta para, quem sabe, um chope. Na
manhã depois do chope, a carta ainda não tinha chegado e Marta e Jessé combinaram ir ver Titanic juntos. No
dia seguinte – nem sinal da carta – Jessé perguntou se Marta não queria conhecer sua casa. Era uma casa pobre,
morava com a mãe, mas, se ela não se importasse… Marta disse que ia pensar.
No dia seguinte chegou a carta. Jessé deu a carta a Marta. Ela ficou olhando o envelope por um longo
minuto. Depois a devolveu ao carteiro e disse:
– Entrega.
E, diante do espanto de Jessé, explicou que só queria ver se tinha posto o endereço certo.
VERÍSSIMO, Luis Fernando. Festa de criança. São Paulo: Ática, 2000. Col. Para Gostar de Ler Júnior.
O sol nasce para todos
Um novo ano se inicia e com ele nossas promessas e sonhos. Vestimo-nos de branco, tomamos
espumantes, brindamos a chegada de uma nova esperança. Infelizmente, o ritual que acorda o nosso sentimento
de fraternidade parece ser enterrado por muitos no dia seguinte.
Meu desejo é para que neste ano de 2008 a solidariedade, o respeito às diferenças e o prazer de celebrar
a vida estejam presentes em todos os seus dias. A felicidade não espera no porto, não tem forma definida, nem
dono absoluto. A felicidade não tem conta no banco, carro do ano, nem casa própria.
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A experiência parecia nova. A cada novo movimento, um sorriso e o apoio dos pais. A menina, agora
sentada na areia sobre uma grande toalha vermelha, balançava-se de alegria
A felicidade habita os olhos de uma mãe, mulher, esposa, gente. Eu vi. Na praia, debaixo da barraca, ela
acompanhava a filha com paralisia cerebral que do carrinho admirava os reflexos do sol, ainda tímido naquela
manhã. A filha brincava com o chaveiro pendurado. Enquanto a criança, que devia ter uns 7 anos, sorria para a
luz, a mãe preparava-lhe o ninho na areia. O pai cavava fundo até o frescor do trono que a criança ocuparia. Fez
um muro, um castelo.
A experiência parecia nova. A cada novo movimento, um sorriso e o apoio dos pais. A menina, agora
sentada na areia sobre uma grande toalha vermelha, balançava-se de alegria. Os pés ficaram de fora para receber
baldes e baldes daquela água densa e gelada. Isso, depois de a mãe lhe fazer provar com uma gota o gosto
salgado do diferente. O pai ainda tentou demover a mãe de tal idéia. Afinal, poderia lhe fazer mal. Mas, como
viver é correr riscos, a mãe o convenceu de que a aventura valeria a pena para que a menina pudesse ter pleno
conhecimento do mar. Depois, ela aprenderia sobre picolé de chocolate.
Assim foi. Jogaram frescobol, nadaram, comeram queijo coalho no espeto, conversaram e se
lambuzaram de sorvete, areia e alegria. E como o tempo avançava tanto quanto o sol, chegava a hora de ir pra
casa e levar a festa para outro lugar. Bolsas, barraca, carrinho e carinho aos baldes deixaram na praia um vazio e
em mim, uma certeza: a felicidade habita cada um de nós e desperta todos os dias com o sol.
Que o vazio deixado por 2007 seja preenchido com novos sabores, novos relacionamentos, novas
paisagens e muito sol. Que o diferente habite seus dias e lhe traga muitas alegrias.
SERVAES, Elke. In WWW.bolsademulher.com/autor/291
Te
De todas as coisas pequenas, estava ali a menor de todas que eu já tinha visto. Não porque ela sofresse
dessas severas desnutrições africanas -embora passasse fome-, mas pelo que eu saberia dela depois.
Teria uns 4 anos de idade, estava inteiramente nua e suja, o nariz catarrento, o cabelo desgrenhado
numa massa disforme, liso e sujo. Chorava alto, sentada no chão da sala escura. A casa de taipa tinha três
cômodos pequenos. Isso que chamei de sala não passava de um espaço de 2 m por 2 m, sem janelas. Apenas a
porta, aberta na parte de cima, jogava alguma luz no ambiente de teto baixo e chão batido.
Isso aconteceu na semana passada, num distrito de Sertânia, cidade a 350 km de Recife, no sertão de
Pernambuco. A mãe e os outros seis filhos ficaram na porta a nos espreitar, os visitantes estranhos. O marido,
carregador de estrume, ganhava R$ 20 por semana, o que somava R$ 80 por mês. Essa a renda do casal
analfabeto. Nenhum dos sete filhos frequentava a escola. Não havia água encanada. Compravam a R$ 4 o tambor
de 24 litros. O choro da menina seguia atrapalhando a conversa.
-Ei, por que você está chorando? perguntei, enfiando a cabeça no vão da porta. A menina não ouviu,
largada no chão.
-Ei! Vem cá, eu vou te dar um presente -repeti. Ela olhou para mim pela primeira vez. Mas não se
mexeu, ainda chorando.
-Como é o nome dela? -perguntei à mulher.
-A gente chama ela de Te -disse, banguela.
-Te? Mas qual o nome dela? -insisti.
-A gente chama ela de Te, que ela ainda não foi batizada não.
-Como assim? Ela não tem nome? Não foi registrada no cartório?
-Não, porque eu ainda não fui atrás de fazer.
Te. Olhei de novo para a menina. Era a menor coisa do mundo, uma pessoa sem nome. Um nada. "Te"
era antes da sílaba -era apenas um fonema, um murmúrio, um gemido. Entendi o choro, o soluço, o grito
ininterrupto no meio da sala. A falta de nome impressionava mais do que a falta de todo o resto.
Te chorava de uma dor, de uma falta avassaladora. Só podia ser. Chorava de solidão, dessa solidão dos
abandonados, dos que não contam para nada, dos que mal existem. Ela era o resultado concreto das políticas
civilizadas (as econômicas, as sociais) e de todo o nosso comportamento animal: o de ir fazendo sexo e filhos
como os bichos egoístas que somos, enfim.
Era como se aquele agrupamento humano (uma família?) vivesse num estágio qualquer pré-linguagem,
em que nomear as coisas e as pessoas pouco importava. Rousseau diz que o homem pré-histórico não precisava
falar para se alimentar. Não foi por causa da comida que surgiu a linguagem. "O fruto não desaparece de nossas
mãos", explica. Por isso não era necessário denominá-lo.
As primeiras palavras foram pronunciadas para exprimir o que não vemos, os sentimentos, as paixões, o
amor, o ódio, a raiva, a comiseração. "Só chamamos as coisas por seus verdadeiros nomes quando as vemos em
suas formas verdadeiras." Só quando Te viu a coisa na minha mão se calou.
116
-Ei, Te, olha o que eu tenho para te dar!
Ela virou-se na minha direção. Fez-se um silêncio na sala. Era uma bala enrolada num papel verde, com
letras vermelhas. Então ela se levantou, veio até a porta e pegou o doce, voltou para o mesmo lugar e recomeçou
seu lamento.
Nem a bala serviu de consolo. Era tudo amargura. Só restava chorar, chorar e chorar por essa morte em
vida, por essa falta de nome, essa desolação.
FELINTO, Marilene. Folha de São Paulo, 30/1/2001.
Peladas
Esta pracinha sem aquela pelada virou uma chatice completa: agora, é uma babá que passa,
empurrando, sem afeto, um bebê de carrinho, é um par de velhos que troca silêncios num banco sem encosto.
E, no entanto, ainda ontem, isso aqui fervia de menino, de sol, de bola, de sonho: "eu jogo na linha! eu
sou o Lula!; no gol, eu não jogo, tô com o joelho ralado de ontem; vou ficar aqui atrás: entrou aqui, já sabe."
Uma gritaria, todo mundo se escalando, todo mundo querendo tirar o selo da bola, bendito fruto de uma suada
vaquinha.
Oito de cada lado e, para não confundir, um time fica como está; o outro jogo sem camisa.
Já reparei uma coisa: bola de futebol, seja nova, seja velha, é um ser muito compreensivo que dança
conforme a música: se está no Maracanã, numa decisão de título, ela rola e quiçá com um ar dramático,
mantendo sempre a mesma pose adulta, esteja nos pés de Gérson ou nas mãos de um gandula.
Em compensação, num racha de menino ninguém é mais sapeca: ela corre para cá, corre para lá, quiçá
no meio-fio, pára de estalo no canteiro, lambe a canela de um, deixa-se espremer entre mil canelas, depois
escapa, rolando, doida, pela calçada. Parece um bichinho.
Aqui, nessa pelada inocente é que se pode sentir a pureza de uma bola. Afinal, trata-se de uma bola
profissional, uma número cinco, cheia de carimbos ilustres: "Copa Rio-Oficial", "FIFA - Especial." Uma bola
assim, toda de branco, coberta de condecorações por todos os gomos (gomos hexagonais!) jamais seria barrada
em recepção do Itamarati.
No entanto, aí está ela, correndo para cima e para baixo, na maior farra do mundo, disputada, maltratada
até, pois, de quando em quando, acertam-lhe um bico, ela sai zarolha, vendo estrelas, coitadinha.
Racha é assim mesmo: tem bico, mas tem também sem-pulo de craque como aquele do Tona, que
empatou a pelada e que lava a alma de qualquer bola. Uma pintura.
Nova saída.
Entra na praça batendo palmas como quem enxota galinha no quintal. É um velho com cara de guardalivros que, sem pedir licença, invade o universo infantil de uma pelada e vai expulsando todo mundo. Num
instante, o campo está vazio, o mundo está vazio. Não deu tempo nem de desfazer as traves feitas de camisas.
O espantalho-gente pega a bola, viva, ainda, tira do bolso um canivete e dá-lhe a primeira espetada. No
segundo golpe, a bola começa a sangrar.
Em cada gomo o coração de uma criança.
NOGUEIRA, Armando. Peladas. In: _____et al. O melhor da crônica brasileira. Rio de Janeiro: José Olympio,
1980. P. 29-30.
Maravilha
Breve estaremos todos fazendo listas. Não apenas dos melhores ou piores do século, mas dos destaques
do milênio. Comecei a pensar no assunto com alguma antecedência para, ao contrário dos fabricantes de
computadores, não ser surpreendido com a chegada do ano 2000 e já estou com as minhas listas quase prontas,
só faltando uma pequena decisão entre Madame Curie e Patrícia Pillar. E depois de muito pensar cheguei à
conclusão que a maior invenção do homem neste século, talvez neste milênio, é a escada rolante.
Não usei apenas os critérios subjetivos de um preguiçoso. Meu raciocínio foi o seguinte: se fosse
possível trazer uma comissão de pessoas da antiguidade para lhes mostrar o mundo hoje, e se elas pudessem
levar apenas uma coisa desta época para a sua, o que escolheriam? Aposto que seria a escada rolante. Nada os
impressionaria mais do que a escada rolante. Nada lhes pareceria mais prático e revolucionário.
Ficariam, claro, de boca aberta com o automóvel e o avião, mas o automóvel seria apenas um
aperfeiçoamento de uma conveniência que eles já tinham, só que com os cavalos do lado de fora, e para apreciar
as vantagens da viagem de avião eles teriam que adaptar a sua experiência de tempo e distância de uma forma
radical demais. Muita coisa teria que acontecer na cabeça deles antes para que pudessem aproveitar o avião. Mas
a serventia de uma escada rolante seria evidente. O que não faltava na antiguidade era escada. E ali estaria aquela
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maravilha, uma escada que, em vez de você subir de degrau em degrau, os degraus é que sobem! Uma escada em
que o degrau leva você! Outra coisa que faria grande sucesso em qualquer época seria o zíper. Está em segundo
lugar na minha lista das maiores invenções do milênio.
(Acho que vou aumentar minha lista das grandes mulheres do milênio para 11, assim Madame Curie
não fica de fora).
VERISSIMO, Luis Fernando. Jornal do Brasil, 1º caderno, Rio de Janeiro, 29 nov. 1998.
O relógio
Eu tinha medo de dormir na casa do meu avô. Era um sobradão colonial enorme, longos corredores,
escadarias, portas grossas e pesadas que rangiam, vidros coloridos nos caixilhos das janelas, pátios calçados com
pedras antigas… De dia, tudo era luminoso. Mas quando vinha a noite e as luzes se apagavam, tudo mergulhava
no sono: pessoas, paredes, espaços. Menos o relógio… De dia, ele estava lá também. Só que era diferente.
Manso, tocando o carrilhão a cada quarto de hora, ignorado pelas pessoas, absorvidas por suas rotinas. Acho que
era porque durante o dia ele dormia. Seu pêndulo regular era seu coração que batia, seu ressonar, e suas músicas
eram seus sonhos, iguais aos de todos os outros relógios. De noite, ao contrário, quando todos dormiam, ele
acordava, e começava a contar estórias. Só muito mais tarde vim a entender o que ele dizia: “Tempus fugit“. E
eu ficava na cama, incapaz de dormir, ouvindo sua marcação sem pressa, esperando a música do próximo quarto
de hora. Eu tinha medo. Hoje, acho que sei por quê: ele batia a Morte. Seu ritmo sem pressa não era coisa
daquele tempo da minha insônia de menino. Vinha de muito longe. Tempo de musgos crescidos em paredes
húmidas, de tábuas largas de assoalho que envelheciam, de ferrugem que aparecia nas chaves enormes e negras,
da senzala abandonada, dos escravos que ensinaram para as crianças estórias de além-mar “dinguele-dingue que
eu vou para Angola, dingue-ledingue que eu vou para Angola“ de grandes festas e grandes tristezas,
nascimentos, casamentos, sepultamentos, de riqueza e decadência… O relógio batera aquelas horas – e se
sofrera, não se podia dizer, porque ninguém jamais notara mudança alguma em sua indiferença pendular. Exceto
quando a corda chegava ao fim e o seu carrilhão excessivamente lento se tomava num pedido de socorro: “Não
quero morrer…“ Aí, aquele que tinha a missão de lhe dar corda – (pois este não era privilégio de qualquer um.
Só podia tocar no coração do relógio aquele que já, por muito tempo, conhecesse os seus segredos) – subia numa
cadeira e, de forma segura e contada, dava voltas na chave mágica. O tempo continuaria a fugir… Todas aquelas
horas vividas e morridas estavam guardadas. De noite, quando todos dormiam, elas saíam. O passado só sai
quando o silêncio é grande, memória do sobrado. E o meu medo era por isto: por sentir que o relógio, com seu
pêndulo e carrilhão, me chamava para si e me incorporava naquela estória que eu não conhecia, mas só
imaginava. Já havia visto alguns dos seus sinais imobilizados, fosse na própria magia do espaço da casa, fosse
nos velhos álbuns de fotografia, homens solenes de colarinho engomado e bigode, famílias paradigmáticas,
maridos assentados de pernas cruzadas, e fiéis esposas de pé, ao seu lado, mão docemente pousada no ombro do
companheiro. Mas nada mais eram que fantasmas, desaparecidos no passado, deles, não se sabendo nem mesmo
o nome. “Tempus fugit“. O relógio toca de novo. Mais um quarto de hora. Mais uma hora no quarto, sem
dormir… Sentia que o relógio me chamava para o seu tempo, que era o tempo de todos aqueles fantasmas, o
tempo da vida que passou. Depois o sobradão pegou fogo. Ficaram os gigantescos barrotes de pau-bálsamo
fumegando por mais de uma semana, enchendo o ar com seu perfume de tristeza. Salvaram-se algumas coisas.
Entre elas, o relógio. Dali saiu para uma casa pequena. Pelas noites adentro ele continuou a fazer a mesma coisa.
E uma vizinha que não suportou a melodia do “Tempus fugit“ pediu que ele fosse reduzido ao silêncio. E a alma
do relógio teve de ser desligada.
Tenho saudades dele. Por sua tranqüila honestidade, repetindo sempre, incansável, “Tempus fugit“.
Ainda comprarei um outro que diga a mesma coisa. Relógio que não se pareça com este meu, no meu pulso, que
marca a hora sem dizer nada, que não tem estórias para contar. Meu relógio só me diz uma coisa: o quanto eu
devo correr, para não me atrasar. Com ele, sinto-me tolo como o Coelho da estória da Alice, que olhava para seu
relógio, corria esbaforido, e dizia: “Estou atrasado, estou atrasado…“
Não é curioso que o grande evento que marca a passagem do ano seja uma corrida, corrida de São
Silvestre?
Correr para chegar, aonde?
Passagem de ano é o velho relógio que toca o seu carrilhão.
O sol e as estrelas entoam a melodia eterna: “Tempus fugit“.
E porque temos medo da verdade que só aparece no silêncio solitário da noite, reunimo-nos para
espantar o tenor, e abafamos o ruído tranqüilo do pêndulo com enormes gritarias. Contra a música suave da
nossa verdade, o barulho dos rojões…
Pela manhã, seremos, de novo, o tolo Coelho da Alice: “Estou atrasado, estou atrasado…“
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Mas o relógio não desiste. Continuará a nos chamar à sabedoria:
Quem sabe que o tempo está fugindo descobre, subitamente, a beleza única do momento que nunca
mais será…
ALVES, Rubem. Tempus fugit. São Paulo: Paulus, 2005. p. 8-11.
A hora e a vez da mulher
No filme "Quanto Mais Quente Melhor", Jack Lemmon e Tony Curtis, vestidos de mulher para fugir de
gângsteres, observam fascinados o andar bamboleante de Marilyn Monroe, de saltos altos, na plataforma de uma
estação de trens. Mal conseguindo se equilibrar sobre os saltos, Lemmon pergunta: "Como é que elas
conseguem? Devem ter um sistema especial de molejo embutido".
Por mais incongruente que pareça, lembrei dessa cena memorável ao assistir ao baile que as moças
brasileiras deram nas americanas na semifinal da Copa do Mundo feminina de futebol. Foi o maior espetáculo
futebolístico -de qualquer sexo- que vi nos últimos tempos.
Não foi por acaso que a CBF se curvou e o próprio Dunga se encantou com o jogo das meninas. Já é
tempo de deixarmos de olhar o futebol feminino com uma condescendência superior e reconhecermos que elas
podem ter sobre nós algumas vantagens dentro de campo.
Pois, se todos admitem que uma grande virtude num futebolista é o jogo de cintura, as mulheres estão
muitos pontos à nossa frente nesse quesito. Cabrochas de escola de samba, bailarinas de dança do ventre... Que
homem é capaz de requebrar como elas? Já que no futebol masculino predominam cada vez mais a força bruta e
o condicionamento físico, a ponto de Tostão ter observado que o último grande atacante baixinho foi Romário, é
possível que num futuro próximo tenhamos mais chance de encontrar a arte do futebol entre mulheres do que
entre homens.
Um exemplo evidente: é muito mais bonito ver jogar a seleção feminina alemã, que amanhã faz a final
contra o Brasil, do que a masculina. E não me refiro apenas à beleza das pernas, mas ao jogo em si.
Um lance como o drible de Marta, que, de costas para a adversária, deu um toque de calcanhar, girou o
corpo e foi buscar a bola do outro lado, é de fazer inveja até a um Ronaldinho ou a um Messi. Vai jogar bem
assim na China (de preferência amanhã).
Dunga enfatizou o "espírito de sacrifício" das garotas. Tudo bem. Mas Marta, Cristiane, Formiga e
companhia estão mostrando muito mais do que isso. Estão mostrando talento, ousadia, invenção e prazer de
jogar. É isso o que as torna únicas. Sacrifício por sacrifício, qualquer brasileira da classe média para baixo
também faz, e não é de hoje.
E bem feito para o técnico dos EUA. Um sujeito que magoa, deixando no banco uma mulher tão linda
quanto a goleira Hope Solo, merece o pior dos castigos.
COUTO, José Geraldo. Folha de S. Paulo, 29 set. 2007, p. D6.
O repórter policial
O repórter policial, tal como o locutor esportivo, é um camarada que fala uma língua especial.
Imposta pela contingência: quanto mais cocoroca, melhor.
Assim como o locutor esportivo jamais chamou nada pelo nome comum, assim também o repórter policial é um
entortado literário. Nessa classe, os que se prezam nunca chamariam um hospital de hospital. De jeito nenhum. É
nosocômio. Nunca, em tempo algum, qualquer vítima de atropelamento, tentativa de morte, conflito, briga ou
simples indisposição intestinal, foi parar num hospital. Só vai pra nosocômio.
E assim sucessivamente. Qualquer cidadão que vai à policia prestar declarações que possam ajudá-la
numa diligência (apelido que eles puseram no ato de investigar), é logo apelidado de testemunha-chave. Suspeito
é Mister X. Advogado é causídico, soldado é militar, marinheiro é naval, copeira é doméstica e, conforme esteja
deitada a vítima de um crime - de costas ou de barriga pra baixo - fica numa destas duas incômodas posições:
decúbito dorsal ou decúbito ventral.
Num crime descrito pela imprensa sangrenta, a vítima nunca se vestiu. A vítima trajava. Todo mundo
se veste, tirante a Luz del Fuego, mas basta virar vitima de crime, que a rapaziada sacha ignora o verbo comum e
mete lá: a vítima trajava terno azul e gravata do mesmo tom. Eis, portanto, que é preciso estar acostumado ao
metier para morar no noticiário policial. Como os locutores esportivos, a Delegacia do Imposto de Renda, os
guardas de trânsito, as mulheres dos outros, os repórteres policiais nasceram para complicar a vida da gente. Se
um porco morde a perna de um caixeiro de uma dessas casas da banha, por exemplo, é batata... a manchete no
dia seguinte dá lá: Suíno atacou comerciante.
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Outro detalhezinho interessante: se a vítima de uma agressão morre, tá legal, mas se - ao contrário em vez de morrer fica estendida no asfalto, está indefectivelmente prostrada. Podia estar caída, derrubada ou
mesmo derribada, mas um repórter de crime não vai trair a classe assim à toa. E castiga na página: "Naval
prostrou desafeto com certeira facada". Desafeto - para os que são novos na turma devemos explicar que é
inimigo, adversário etc. E mais: se morre na hora, tá certo; do contrário, morrerá invariavelmente ao dar entrada
na sala de operações.
De como vive a imprensa sangrenta, é fácil explicar. Vive da desgraça alheia, em fotos ampliadas.
Um repórter de polícia, quando está sem notícia, fica na redação, telefonando pras delegacias distritais ou para os
hospitais, perdão, para os nosocomios, onde sempre tem um cumpincha de plantão. O cumpincha atende lá, e ele
fala: "Alô, é do Quinto? Fala Fulano. Alguma novidade? O quê? Estupro? Oba! Vou já para aí. Ou então é pro
pronto-socorro: Alô. É Fulano, da Luta. Sim. Atropelamento? Ah... mas sem fratura exposta não interessa. E há
também a concorrência entre os coleguinhas da crônica sangrenta, primo Altamirando, quando trabalhou nesse
setor, se fez notar pela sua indiscutível capacidade profissional para o posto. Um dia, ele telefonou para o
secretario do jornal:
- Alô, quem está falando é Mirinho. Olha, manda um fotógrafo aqui na estação de Cordovil, pra
fotografar um cara.
- Que é que houve?
- Foi atropelado pelo trem, está todo esmigalhado. Vai dar uma fotografia linda para a primeira
página.
- O cadáver está sem cabeça?
-Não.
- Então não vale a pena.
-Não diga isso, chefe. Mande o fotógrafo que, até ele chegar, eu dou jeito de arrancar a cabeça do
falecido.
PONTE PRETA, Stanislaw. Dois amigos e um chato. São Paulo: Moderna, 1986.
Menino
Menino, vem pra dentro, olha o sereno! Vai lavar essa mão. Já escovou os dentes? Toma a benção a seu
pai. Já pra cama!
Onde aprendeu isso menino? – coisa mais feia. Toma modos. Hoje você fica sem sobremesa. Onde é
que você estava? Agora chega, menino, tenha santa paciência.
De quem você gosta mais, do papai ou da mamãe? Isso, assim que eu gosto: menino educado,
obediente. Está vendo? É só a gente falar. Desce daí, menino! Me prega cada susto...para com isso! Joga isso
fora. Uma boa surra dava jeito nisso. Que é que você andou arranjando? Quem te ensinou esses modos? Passe
pra dentro. Isso não é gente para ficar andando com você.
Avise seu pai que o jantar tá na mesa. Você prometeu, tem de cumprir. Que é que você vai ser quando
crescer? Não, chega: você já repetiu duas vezes. Por que você está quieto aí? Alguma coisa está tramando...não
anda descalço, já disse! – vai calçar o sapato. Já tomou remédio? Tem de comer tudo, você tá virando um palito.
Quantas vezes já te disse para não mexer aqui? Esse barulho, menino! – teu pai tá dormindo. Para com essa
correria dentro de casa, vai brincar lá fora. Você vai acabar caindo daí. Pede licença a seu pai primeiro. Isso é
maneira de responder à sua irmã? Se não fizer, fica de castigo. Segura o garfo direito. Põe a camisa pra dentro da
calça. Fica perguntando, tudo você quer saber! Isso é conversa de gente grande. Depois eu te dou. Depois eu
deixo. Depois eu te levo. Depois eu conto. Agora não, depois!
Deixa seu pai descansar – ele está cansado, trabalhou o dia todo. Você precisa ser muito bonzinho com
ele, meu filho. Ele gosta tanto de você. Tudo que ele faz é para seu bem. Olha aí, vestiu essa roupa agorinha
mesmo, já está toda suja. Fez seus deveres? Você vai chegar atrasado. Chora não filhinho, mamãe está aqui com
você. Nosso Senhor não vai deixar doer mais.
Quando você for grande, você também vai poder. Já disse que não, e não, e não! Ah, é assim? – pois
você vai ver só quando seu pai chegar. Não fale de boca cheia. Junta a comida no meio do prato. Por causa disso
é preciso gritar? Seja homem. Você ainda é muito pequeno pra saber essas coisas. Mamãe tem muito orgulho de
você. Cale essa boca! Você precisa cortar esse cabelo.
Sorvete não pode, você tá resfriado. Não sei como você tem coragem de fazer assim com sua mãe. Se
você comer agora, depois não janta. Assim você se machuca. Deixa de fita. Um menino desse tamanho, que é
que os outros hão de dizer? Você queria que fizessem o mesmo com você? Continua assim que eu te dou umas
palmadas. Pensa que a gente tem dinheiro pra jogar fora? Toma juízo menino!
Ganhou agora mesmo e já acabou de quebrar. Que é que você vai querer no dia de seus anos? Agora
não, depois, tenho mais o que fazer. Não fica triste não, depois mamãe te dá outro. Você teve saudades de mim?
120
Vou contar só mais uma, tá na hora de dormir. Vem que a mamãe te leva pra caminha. Mamãe te ama, viu! Dá
um beijo aqui. Dorme com Deus meu filho!
SABINO, Fernando. As melhores crônicas de Fernando Sabino. Rio de Janeiro: Record, 1997. p. 86-69.
História Estranha
Um homem vem caminhando por um parque quando de repente se vê com sete anos de idade. Está com
quarenta, quarenta e poucos. De repente dá com ele mesmo chutando uma bola perto de um banco onde está a
sua babá fazendo tricó. Não tem a menor dúvida que é ele mesmo. Reconhce a sua própria cara, reconhece o
banco e a babá. Tem uma vaga lembrança daquela cena. Um dia ele estava jogando bola no parque quando de
repente aproximou-se um homem e...
O homem aproxima-se dele mesmo. Ajoelha-se, põe as mãos nos seus ombros e olha nos seus olhos.
Seus olhos se enchem de lágrimas. Sente uma coisa no peito. Que coisa é a vida. Que coisa pior ainda é o tempo.
Como eu era inocente. Como os meus olhos eram limpos. O homem tenta dizer alguma coisa, mas não encontra
o que dizer. Apenas abraça a si mesmo, longamente. Depois sai caminhando, chorando, sem olhar para trás.
O garoto fica olhando para a sua figura que se afasta. Também se reconheceu. E fica pensando,
aborrecido: quando eu tiver quarenta, quarenta e poucos, como eu vou ser sentimental!
VERISSIMO, Luis Fernando. Comédias para se ler na escola. Rio de Janeiro: Objetiva, 2002, p. 43.
Olhador de anúncio
Eis que se aproxima o inverno, pelo menos nas revistas, cheias de anúncios de cobertores, lãs e malhas.
O que é o desenvolvimento! Em outros tempos, se o indivíduo sentia frio, passava na loja e adquiria os seus
agasalhos. Hoje são os agasalhos que lhe batem à porta, em belas mensagens coloridas.
E nunca vêm sós. O cobertor traz consigo uma linda mulher, que se apresta para se recolher debaixo de
sua “nova textura antialérgica”, e a legenda: “Nosso cobertor aquece os corpos de quem já tem o coração
quente”. A mulher parece convidar: “Venha também”. Ficamos perturbados. Faz calor, um calor daqueles. Mas a
página aconchegante instala imediatamente o inverno, e sentimo-nos na aflita necessidade de proteger o irmão
corpo sob a maciez desse cobertor, e...
Não. A mulher absolutamente não faz parte do cobertor, que é que o senhor está pensando? Nem adianta
telefonar para a loja ou para a agência de publicidade, pedindo o endereço da moça do cobertor antialérgico de
textura nova. Modelo fotográfico é categoria profissional respeitável, como outra qualquer. Tome juízo, amigo!
E leve só o cobertor.
São decepções de olhador de anúncios. Em cada anúncio uma sugestão erótica. Identificam-se o produto e
o ser humano. A tônica do interesse cai sobre este último? É logo desviada para aquele. Operada a transferência,
fecha-se o negócio. O erotismo fica sendo agente de vendas. Pode Eros! Fizeram-no auxiliar de Mercúrio!
Mas sempre é bom tomar conhecimento das mensagens, passada a frustração. É o mundo visto através da
arte de vender. “As lojas tal fazem tudo por amor”. Já sabemos, pela história do cobertormulher (uma palavra só)
que esse tudo é muito relativo. “Em nossas vitrines, a japona é irresistível”. Então, precavidos, não passaremos
diante das vitrines. E essa outra mensagem é mesmo de alta prudência: “Aprenda a ver com os dois olhos”.
Precisamos deles para navegar na maré do surrealismo que cobre outro setor da publicidade: “Na liquidação
nacional, a casa X tritura preços”. Os preços virando pó, num país inteiramente líquido: vejam a força da
imagem. Rara espécie animal aparece de repente: “Comprar na loja Y é supergalinha morta”.
Prosseguimos, invocados, sonhando “o sonho branco das noites de julho”: “Ponha uma onça no seu
gravador”. “A alegria está no açúcar”. “Pneu de ombros arredondados é mais pneu”. “Tip-tip tem sabor de céu”.
“Use nossa palmilha voadora”. “Seus pés estão chorando por falta das meias Rouxinol, que rouxinolizam o
andar”. “Nesse relógio, você escolhe a hora”. “Ponha você nesse perfume”. “Toda sua família cabe neste
refrigerador e ainda sobra lugar para o peru de Natal”. “Sirva nossa lingerie como champanhe, é mais leve e mais
espumante”.
O olhador sente o prazer de novas associações de coisas, animais e pessoas; e esse prazer é poético. Quem
disse que a poesia anda desvalorizada? A bossa dos anúncios prova o contrário. E ao vender-nos qualquer
mercadoria, eles nos dão de presente “algo mais”, que é produto da imaginação e tem serventia, como as coisas
concretas, que também de pão abstrato se nutre o homem.
ANDRADE, Carlos Drummond de. O poder ultrajovem. Rio de Janeiro: Record, 1998.
121
A morcega
Quando era adolescente, eu andava com a franja do cabelo batendo no nariz. Parecia um cachorro lulu,
mas me achava o máximo. Meu pai resistiu a tudo: ao som de Janis Joplin, à minha mania de desenhar girassóis
nos cadernos, e só entregou os pontos quando me viu desbotando um jeans novinho com cândida. Em nocaute
por pontos, suspirou:
- Nada mais me espanta.
Reagi dedicando boa parte da minha vida a defender lances de vanguarda, como o uso de brinquinhos
em orelhas masculinas quando isso era tabu. Sempre achei que nada me surpreenderia. Pois fui visitar uma
amiga cuja filha adolescente, de 14 anos, tem o rosto de um anjo de catedral, mas se veste de preto, come um
morcego. Encontro as duas brigando.
- Quero fazer uma tatuagem e ela não deixa.
Sorrio, pacificador. Aconselho:
- O ruim da tatuagem é que, se você se arrepender mais tarde, não sai.
A morcega explica: será inscrita em um lugar do corpo só possível de ser visto se ela mostrar.
Tremo, pergunto onde.
A resposta alegre:
- Dentro da boca.
Repuxa os lábios como um botocudo e mostra sítio designado: a parte frontal das gengivas.
A mãe lacrimeja:
- Não, não. A bandeira do Brasil...
Eu e a mãe nos olhamos aparvalhados. Descubro ¬que o símbolo pátrio virou moda. A morcega
continua: quer porque quer ir a uma rua que reúne morcegos, mariposas e outros bichos nos fins de semana.
Arbitro:
- Lá vão punks da pesada!
Ela zumbe, hostil, porque se considera punk da pesada. Reage:
- O movimento punk quer liberdade, só isso.
- Prendi você? -lamenta-se a mãe inutilmente.
Fico sabendo que os punks de bom-tom até andam, na tal rua, com cartazes dizendo: "Não quero briga"
ou "Sou paz". Também elegeram um templo: a danceteria Morcegóvia, no bairro Bela Vista. É lá que se
encontram vestidos preferencialmente de escuro, com bijuterias de metal pesado, brinqui¬nhos de crucifixo e
uma enorme alegria de viver - só preenchida pelo som de rock pauleira. Digo, para me fazer de moderno:
- Sabe que fui ao show do Michael Jackson?
Ela torce o nariz. Odeia. Led Zeppelin, Sepultura, isso sim! Arrisco:
Quem
sabe
você
fica
rica
montando
um
conjunto
chamado
Crematório.
- Vocês (nós, adultos) só pensam em coisas materiais. A gente (eles, os punks) quer é saber do espírito.
Já ouvi isso em algum lugar. Eu dizia a mesma coisa e ficava furioso quando ouvia meus pais dizerem
que, quando eu fosse mais velho, entenderia tudo que estavam passando comigo. Explico que concordo com as
teses morcegas. Tenho apenas problemas em relação ao estilo. Olho para ela, de camiseta preta e jeans rasgado, e
penso como ficaria bonitinha num vestido de debutante. Lembro de sua festa de aniversário: o bolo era em forma
de guitarra, cinza. Em certo momento, a turma se divertiu atirando pedaços de doces uns nos outros, para horror
das mães e avós presentes.
Subitamente desperto, descubro que a onda punk se espraia muito mais do que o eu pensava. Um dia
desses vi um garoto pintado de três cores. O filho de uma vizinha usa dois brincos dourados, um rubi no nariz e
cabelos tão cacheados que noutro dia o cumprimentei pensando que fosse a mãe dele.
A morcega me encara, pestanas rebaixadas, farta. Nervoso, reflito que devo estar ficando velho.
Adoraria estar do lado da filha, para me sentir rejuvenescido. Toca a campainha, ela vai até a porta. Um
rapaz alto, de cabeça inteiramente raspada, sorri, rebelde. Observo um dragão tatuado em seu couro cabeludo. A
mãe range os dentes, enquanto a filha sai nos braços de seu príncipe motoqueiro. Eu e a mãe nos olhamos, tão
nocauteados como foi meu pai. Sei que o rapaz trabalha, como a maioria dos punks. Mas onde? Não consigo
imaginar o gerente do banco com um alfinete espetado nas bochechas. São rebeldes apenas nas horas vagas,
quando voam em seus trajes escuros pela noite? O careca bota peruca na hora da labuta? A mãe me oferece um
café. Exausta com o rodopiar das gerações. Já sabemos: vem mais por aí.
Olho para a noite e penso em todos os morcegos zunindo por São Paulo. Ser adolescente é difícil, mas...
que saudade!
CARRASCO, Walcyr. O golpe do aniversariante e outras crônicas. São Paulo: Ática, 2003.
122
A amizade
Lembrei-me dele e senti saudades... Tanto tempo que a gente não se vê! Dei-me conta, com uma
intensidade incomum, da coisa rara que é a amizade. E, no entanto, é a coisa mais alegre que a vida nos dá. A
beleza da poesia, da música, da natureza, as delícias da boa comida e da bebida perdem o gosto e ficam meio
tristes quando não temos um amigo com quem compartilha-las. Acho mesmo que tudo o que fazemos na vida
pode se resumir nisto: a busca de um amigo, uma luta contra a solidão...
Lembrei-me de um trecho de Jean-Christophe, que li quando jovem, e do qual nunca me esqueci.
Romain Rolland descreve a primeira experiência com a amizade do seu herói adolescente. Já conhecera muitas
pessoas nos curtos anos de sua vida. Mas o que experimentava naquele momento era diferente de tudo o que já
sentira antes. O encontro acontecera de repente, mas era como se já tivessem sido amigos a vida inteira.
A experiência da amizade parece ter suas raízes fora do tempo, na eternidade. Um amigo é alguém com
quem estivemos desde sempre. Pela primeira vez, estando com alguém, não sentia necessidade de falar. Bastava
a alegria de estarem juntos, um ao lado do outro.
“Christophe voltou sozinho dentro da noite. Seu coração cantava ‘Tenho um amigo, tenho um amigo!’
Nada via. Nada ouvia. Não pensava em mais nada. Estava morto de sono e adormeceu apenas deitou-se. Mas
durante a noite foi acordado duas ou três vezes, como que por uma idéia fixa. Repetia para si mesmo: ‘Tenho um
amigo’, e tornava a adormecer.”
Jean-Christophe compreendera a essência da amizade. Amiga é aquela pessoa em cuja companhia não é
preciso falar. Você tem aqui um teste para saber quantos amigos você tem. Se o silêncio entre vocês dois lhe
causa ansiedade, se quando o assunto foge você se põe a procurar palavras para encher o vazio e manter a
conversa animada, então a pessoa com que você está não é amiga. Porque um amigo é alguém cuja presença
procuramos não por causa daquilo que se vai fazer juntos, seja bater papo, comer, jogar ou transar. Até que tudo
isso pode acontecer. Mas a diferença está em que, quando a pessoa não é amiga, terminado o alegre e animado
programa vem o silêncio e o vazio – que são insuportáveis. Nesse momento o outro se transforma num incômodo
que entulha o espaço e cuja despedida se espera com ansiedade.
Com o amigo é diferente. Não é preciso falar. Basta a alegria de estarem juntos, um ao lado do outro.
Amigo é alguém cuja simples presença traz alegria independentemente do que se faça ou diga. A amizade anda
por caminhos que não passam pelos programas.
Uma estória oriental conta de uma árvore solitária que se via no alto da montanha. Não tinha sido
sempre assim. Em tempos passados a montanha estivera coberta de árvores maravilhosas, altas e esguias, que os
lenhadores cortaram e venderam. Mas aquela árvore era torta, não podia ser transformada em tábuas. Inútil parra
os seus propósitos, os lenhadores a deixaram lá. Depois vieram os caçadores de essências em busca de madeiras
perfumadas. Mas a árvore torta, por não ter cheiro algum, foi desprezada e lá ficou. Por ser inútil, sobreviveu.
Hoje ela está sozinha na montanha. Os viajantes se assentam sob a sua sombra e descansam.
Um amigo é como aquela árvore. Vive de sua inutilidade. Pode até ser útil eventualmente, mas não é
isso que o torna um amigo. Sua inútil e fiel presença silenciosa torna a nossa solidão uma experiência de
comunhão. Diante do amigo sabemos que não estamos sós. E alegria maior não pode existir.
ALVES, Rubem. A amizade. In: ______ O retorno e terno – crônicas. 4.ed. Campinas:Papirus, 1994. p. 11-3.
Estranhas gentilezas
Estão acontecendo coisas estranhas. Sabe-se que as pessoas nas grandes cidades não têm o hábito da
gentileza. Não é por ruindade, é falta de tempo. Gastam a paciência nos ônibus, no trânsito, nas filas, nos
mercados, nas salas de espera, nos embates familiares, e depois economizam com a gente.
Comigo dá-se o contrário, é o que estou notando de uns dias para cá. Tratam-me com inquietante
delicadeza. Já captava aqui e ali sinais suspeitos, imprecisos ventinhos de asas de borboleta, quase nada. A
impressão de que algo estranho tomou corpo mesmo foi na semana passada. Um vizinho que já fora meu amigo
telefonou-me desfazendo o engano que nos afastava, intriga de pessoa que nem conheço e que afinal resolvera
esclarecer
tudo.
Difícil
reconstruir
a
amizade,
mas
a
inimizade
morria
ali.
ÂNGELO, Ivan. O comprador de aventuras e outras crônicas. S.Paulo: Ática, 2000.
A descoberta do mundo
O que eu quero contar é tão delicado quanto a própria vida. E eu queria poder usar delicadeza que
também tenho em mim, ao lado da grossura de camponesa que é o que me salva.
Quando criança, e depois adolescente, fui precoce em muitas coisas. Em sentir um ambiente, por
exemplo, em aprender a atmosfera íntima de uma pessoa. Por outro lado, longe de precoce, estava em incrível
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atraso em relação a outras coisas importantes. Continuo, aliás, atrasada em muitos terrenos. Nada posso fazer:
parece que há em mim um lado infantil que não cresce jamais.
Até mais que treze anos, por exemplo, eu estava em atraso quanto ao que os americanos chamam de
fatos da vida. Essa expressão se refere à relação profunda de amor entre um homem e uma mulher, da qual
nascem os filhos. Ou será que eu adivinhava, mas turvava minha possibilidade de lucidez para poder, sem me
escandalizar comigo mesmo, continuar em inocência a me enfeitar para os meninos? Enfeitar-me aos onze anos
de idade consistia em lavar o rosto tantas vezes até que a pele esticada brilhasse. Eu me sentia pronta, então.
Seria minha ignorância um modo sonso e inconsciente de me manter ingênua para poder continuar, sem culpa, a
pensar nos meninos? Acredito que sim. Porque eu sempre soube coisas que nem eu mesma sei que sei.
As minhas colegas de ginásio sabiam de tudo e inclusive contavam anedotas a respeito. Eu não
entendia, mas fingia compreender para que elas não me desprezassem e à minha ignorância.
Enquanto isso, sem saber da realidade, continuava por puro instinto a flertar com os meninos que me
agradavam, a pensar neles. Meu instinto precedera a minha inteligência.
Até que um dia, já passados os treze anos, como se só então eu me sentisse madura para receber alguma
realidade que me chocasse, contei a uma amiga íntima o meu segredo: que eu era ignorante e fingira de sabida.
Ela mal acreditou, tão bem eu havia fingido. Mas terminou sentindo minha sinceridade e ela própria encarregouse ali mesmo na esquina de me esclarecer o mistério da vida. Só que também ela era uma menina e não soube
falar de um modo que não ferisse a minha sensibilidade de então. Fiquei paralisada olhando para ela, misturando
perplexidade, terror, indignação, inocência mortalmente ferida. Mentalmente eu gaguejava: mas por quê? Mas
por quê? O choque foi tão grande – e por uns meses traumatizante – que ali mesmo na esquina jurei alto que
nunca iria me casar. Embora meses depois esquecesse o juramento e continuasse com meus pequenos namoros.
Depois, com o decorrer de mais tempo, em vez de me sentir escandalizada pelo modo como uma mulher
e um homem se unem, passei a achar esse modo de uma grande perfeição. E também de grande delicadeza. Já
então eu me transformara numa mocinha alta, pensativa, rebelde, tudo misturado a bastante selvageria e muita
timidez.
Antes de me reconciliar com o processo da vida, no entanto, sofri muito, o que poderia ter sido evitado
se um adulto responsável se tivesse encarregado de me contar como era o amor. Esse adulto saberia como lidar
com uma alma infantil sem martirizá-la com a surpresa, sem obrigá-la a ter toda sozinha que se refazer para de
novo aceitar a vida e os seus mistérios.
Porque o mais surpreendente é que, mesmo depois de saber de tudo, o mistério continua intacto.
Embora eu saiba que de uma planta brota uma flor, continuo surpreendida com os caminhos secretos da natureza.
E se continuo até hoje com pudor não é porque ache vergonhoso, é pudor apenas feminino.
Pois juro que a vida é bonita.
LISPECTOR, Clarice. A descoberta do mundo. Rio de Janeiro, Rocco. p. 113-115.
As aventuras de um ciclista
Sensível ao apelo do governo para economizar gasolina e, no íntimo, coagido pela insuficiência da
verba para combustível (nesta altura do orçamento já plenamente comprometida), não lhe restou outro recurso
senão adotar a bicicleta.
Chamou a mulher de lado, confidenciou: - Prepara minha sunga esportiva; amanhã vou trabalhar de
selim e guidão.
Estava um pouco destreinado. Faltava-lhe o equilíbrio dos velhos tempos e, para evitar o fiasco diante
dos vizinhos, saiu de casa às 5 da matina.
Cruzou com o leiteiro. Quis fingir que não viu, mas sem resultado: - Força, doutor. No começo a gente
padece mesmo. No fim é moleza.
Ficou em dúvida se pegava a Avenida Heitor Penteado ou se descia pela Água Branca. Lembrou-se da
subida da Pompéia, não ia agüentar o repuxo. Melhor não arriscar. Escolheu as ruas mais planas, no sexto
quarteirão já bufava. Respirou fundo, enchendo os peitos. Desembocou a custo nas Perdizes em frente ao
Elevado Costa e Silva - o tal de Minhocão. Mentalmente mediu o percurso, nem lhe passou pela idéia que é
proibido o trânsito de ciclistas no elevado. Quando deu fé, já estava nele. Atrás de si, a fila de carros. Por cautela,
conservava a direita, mas a providência não lhe poupou o dissabor de algumas diatribes. Um sujeito barbudo,
dirigindo um fusca, chamou-o de molenga. Outro lhe mostrou a língua, em atitude altamente obscena. E até uma
mulher se julgou no direito de desacatá-lo: - Folgado, hem, cara!
Por um momento sentiu a tentação de saltar lá de cima, com bicicleta e tudo, mas o senso do dever, o
espírito cívico e o apelo governamental estimularam-no a prosseguir pedalando. Na altura da Praça Marechal
Deodoro encarou a estátua de Pereira Barreto, e a copa verde das árvores onde os pardais pareciam acompanhar
seu esforço hercúleo. Pouco a pouco suas pernas amoleciam. Uma dor aguda percorria-lhe o cangote, descia até
o tendão-de-aquiles, e ele teve a impressão de que ia fazer xixi.
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Só quem passou por essa experiência sabe o que é isso.
Lembrou-se dos filhos, da família, de seus antepassados. E súbito, ocorreu-lhe a idéia: pôs-se a assobiar
o Hino Nacional. Esse expediente trouxe-lhe algum conforto, mas os pedais - certamente mal lubrificados opunham crescente resistência ao movimento de suas juntas.
- Vai, ciclista das arábias!
O berro ecoou no Minhocão como uma afronta. Era demais. Mesmo considerando sua fina educação,
forçoso responder à altura:
- Das arábias é a mãe!
Aliviado, percebeu o desvio à direita. Tomou o rumo do Arouche, pegou a Vieira de Carvalho - onde há
aquele índio de cócoras - e saiu triunfalmente na Praça da República. Olhares intrigados fixavam-no. Crianças
acenavam os lenços.
O semáforo estava vermelho; ele aproveitou para descansar o pé direito no asfalto e adivinhou que
estava prestes a desmaiar. Iria cair ali mesmo, como um pedaço de chumbo. E não o arrancariam dali nem
amarrado. Uma velhinha de preto chegou-se delicadamente, indagando onde ficavam os Correios e Telégrafos:
queria pôr uma carta para Botucatu, urgente.
Ele tentou explicar, mas as palavras engrolavam como um bolo na garganta. Tentou cuspir, mas não
havia saliva. Do nariz escorria lama grossa, dessas que os barbeiros usam para massagear o rosto dos fregueses e
evitar rugas. Seu coração palpitava. Ardiam-lhe os pulmões. Suas nádegas estavam adormecidas.
A velhinha percebeu seus olhos vidrados, condoeu-se, ofereceu-lhe uma balinha de hortelã-pimenta.
Quando o semáforo abriu, ele tentou arrancar na bicicleta, mas o ar escureceu. Relâmpagos cruzavam o
espaço, explodiram trovões em sua cabeça, ele rodopiou, caiu sentado perto do bueiro. Um rato saltou de banda,
lépido. Ninguém se aproximou, pensando tratar-se de um caso comum de morte natural. O guarda de trânsito
trilou o apito, ordenando que se levantasse, estava atrapalhando o livre escoamento dos veículos. Ofegante,
garganta áspera, sentia-se um perfeito miserável entregue às baratas.
Só emergiu da névoa quando recebeu das mãos do homem-da-lei a notificação de multa por
estacionamento em local proibido. Em vão procurou explicar que não tinha estacionado: tinha pifado.
Com a lei não se argumenta.
Montou novamente na bicicleta, trôpego, sonado, à deriva: desguiou pela direita, entrou na São Luís,
bateu num ônibus, atropelou uma galinha, subiu na ilha, derrapou na calçada, trombou com um poste, rasgou a
saia de uma garota, tirou uma fina no carro-tanque do corpo-de-bombeiros, atrapalhou uma ambulância,
desacatou um guarda-rodoviário que estava largando o serviço, e entrou num bar da Praça João Mendes. Tudo
sem desmontar da bicicleta.
Foi posto para fora a pescoções, caiu no buraco da estação do metrô da Praça Clóvis, um fiscal autuou-o
por poluir a cidade com o suor que escorria pelas pernas - mas felizmente conseguiu chegar a seu destino na
Rangel Pestana, a tempo de assinar o ponto na repartição competente.
Como, porém, estivesse com a camisa rasgada, o paletó sem a manga direita, ligeiras escoriações por
todo o corpo e de sunga, recebeu ordem superior para retirar-se, sob pena de abertura de inquérito administrativo
de acordo com os estatutos em vigor.
Desagradável, sem dúvida. Mas um ciclista não se faz num dia. De qualquer forma, solicita aos
cidadãos desta cidade que, se algum encontrar suas calças (que devem ter ficado no trajeto entre a Rua das
Palmeiras e o Edifício da Fazenda), queira por obséquio entregá-las na Rua da Alegria.
Dependendo do estado das calças, estuda-se módica gratificação.
DIAFÉRIA, Lourenço. Para gostar de ler – crônicas. São Paulo: Ática, 2008. p. 41-4. v.7.
Entre outras palavras, o amor
Quem sabe o significado das palavras vive mais densa e duplamente. Vive quando vive e vive quando
palavreia.
E se amar é bom, saber o sentido da palavra amor é amar mais finamente. Por isto dou um doce a quem
me disser de onde vem a palavra amor. Já sei, você vai pensar: vem do latim amorem, significando afeição,
simpatia e carinho. Ou, então, vai dizer: não me interessa. O que conta é amar. Amar como minha amiga, com
um sorriso incontrolável sobre o mundo, tendo que comprar leques para disfarçar a ostensiva alegria.
Eu morro de inveja de quem sabe o conteúdo das palavras. Sou como a Macabéa de A Hora da Estrela,
quero saber o que está dentro dos nomes. Os displicentes usam as palavras inflacionariamente. E isso é mau,
atrapalha a economia verbal e existencial. Os linguistas dizem que a palavra é uma "moeda" comum.
Saber usar as palavras, portanto, pode levar alguém a ficar rico. Rico, pelo menos, de significados.
Tenho uns amigos assim como Antônio Houaiss, Aurélio Buarque e Junito Brandão. A gente lhes serve
uma palavra no prato do instante. Eles a tomam na boca e começam a degustá-la. Parecem provadores de vinho:
as sílabas percorrem os cantos da boca, sobem ao palato e eles sentem o aroma e a densidade do vocábulo. E
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assim como os bons degustadores podem dizer a safra e a região de um vinho, eles nos dizem a raiz do vocábulo
e suas transformações.
Um dia, por exemplo, aprendi que ''trabalho" vem de tripalium, instrumento de tortura composto de três
paus, uma espécie de cruz. Passei a entender tudo. Já haviam me ensinado que "negócio" era a "negação do ócio"
e, enfim, descobri que "escravo" vem de "eslavo", desde quando Carlos Magno subjugou muitos "eslavos".
Essas coisas os leitores mais espertos já sabiam. Mas talvez não saibam que a palavra "segredo" tem
uma origem escusa. No francês surgiu referindo-se ao quarto secreto (chambra segreta) onde as pessoas iam
aliviar seus intestinos e bexigas. Daí talvez essa sensação de que certos segredos não cheiram bem aos outros,
devendo estar mesmo guardados separadamente.
E "bordel"? Está ligado a "borda", limite da cidade, espaço fora da cidade onde o sexo enfim é liberado.
Se aplicarmos isto a "motel", teremos apenas acrescentado o automóvel para que os amantes se liberem além dos
limites permitidos pela cidade convencional.
Até pouco tempo não sabia que "absurdo" significa "dissonante". Absurdo também é o que não
"ressoa", e é daí que vem "surdo". Não quero parecer "erudito", mas essa palavra vem de "erudite" (ex e rudis)
que significa "desbastar", cortar o que é "rude". Um erudito, portanto, deveria ser sempre um sujeito finíssimo.
Muitos sabem que "desastrado" qualifica aquele que está sob os auspícios de um "mau astro". Mas
poucos se dão conta de que "cretino" vem da mesma raiz de "cristão". O cristão era aquele que assumia a
"loucura" do evangelho fugindo às normas do mundo convencional. E o amor, que deflagrou essa crónica?
Aprendo em Bent Paroli que a raiz da palavra amor é egípcia e não latina. Também nada tem a ver com o "ama"
grego, embora este signifique "juntos". Os gregos também falam de "eros", mas a raiz dessa palavra indica
"atividade".
O vocabulário egípcio traz a raiz MR, MRJ. Parece estranho. Os egípcios não usavam vogal. Mas eles
escreviam assim e na hora de pronunciar a vogal aparecia. E o fato é que MR se pronunciava "amer", "amor".
Escrita com hieróglifos a palavra MR era representada por uma espécie de pá ou cavadeira de camponês abrindo
a terra. Há um sentido agrário de fecundação cósmica. Amor, então, era como um ato de cultivar a terra.
Não parece, portanto, que seja um ato aleatório. Uma semente jogada ao acaso pode até brotar. É forte a
vontade de vida e fértil o imaginário de cada um.
Mas o ato de amar, mais produtivo e fecundante, implica a ação, o investimento, o semear cavando e
movendo a terra. E para grafar a palavra amor, os egípcios usavam seu alfabeto especial e não o popular, porque
sabiam também que o amor é coisa para os iniciados.
SANTANNA, Affonso Romano de. Entre outras palavras, o amor. In: O homem que conheceu o amor. 2.ed. Rio
de Janeiro: Rocco, 1994.
Aquele folheto perdido
Um tanto cansado das coisas de hoje, compro o Jornal do Comércio para me engolfar na leitura do
jornal de um século atrás.
Estamos em 1857 e talvez esse mesmo sudoeste espanque as espumas desse mesmo oceano verde-cinza.
Onde estará a esta hora o pardo Januário? Ele fugiu há mais de três anos da casa do Comendador Barroso, que
todavia não cessa de procurá-lo. Deve valer alguma coisa o pardo escravo, comendador promete 300 mil-réis a
quem o prender, e ameaça, pois, quem lhe tenha dado homizio e escapula. Esconde-te bem, pardo Januário!
Quem chegou foi o Braguinha, e chegou botando falação pelos jornais, o Braguinha da Fama do Café
com Leite. Trouxe para vender novos aparelhos e máquinas, maravilhoso café, chá superior, belo chocolate, mas
é desagradável o Braguinha ao chamar os fregueses e dizer: "Aqui se encontra tudo do bom e do melhor,
contanto que tragam os cobrinhos porque vales não se recebem cá. "E ainda nos adverte que "quanto aos 20 réis
só haverão em noite de espetáculo, e isto afamados sorvetes de 3, quando não chover; e quem os quiser saborear
nos camarotes deve prevenir com antecedência para não haver falta. Da vontade de ir lá, bater à porta do
Braguinha e perguntar: "Hoje haverão sorvetes?".
O jornal reclama contra a demora na saída das mercadorias da Alfândega, que dá prejuízos ao comércio,
e diz candidamente: "estamos certos de que o governo não deixará de prestar a devida atenção". Pois sim, colega,
até hoje não prestou.
Há outras notas - uma reunião de conservadores para estudar a resposta á Fala do Trono, o anúncio de
um professor de caligrafia, "inventor da letra corrida comercial", leilão de bens incluindo dois escravos, um bote
e um oratório de ouro e prata, e que tudo pode ser visto da casa do finado, na Praia Pequena. - Mas triste, triste
me parece este aviso: "Perdeu-se ou roubaram, na noite de 15 do corrente, a uma preta embriagada, uma trouxa
de roupa suja, em que havia também uma panela de barro e um folheto."
Penso nessa remota negra embriagada, nessa humilde trouxa de roupa suja, nessa panela de barro e
nesse famoso folheto. Que dizia o folheto? Ah, negra cachaceira, que fizeste do folheto? Cem anos depois de tua
bebedeira eu fico cismando nesse folheto; e olhando o mar e pensando na vida e na minha impossível amada, e
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na tristeza das tempos que vão, imagino que talvez esse folheto trouxesse a palavra essencial; ali devia estar
escrita a explicação das coisas, ali o consolo de nosso peito, ali a senha de nosso destino.
Perdeu-se, perdeu-se para sempre o folheto escondido numa panela de barro dentro da trouxa de roupa
suja, nas mãos de uma negra bêbada. Venta, sudoeste frio, venta, acabrunha esse mar e este país tristonho, que se
perdeu o folheto; e como encontrá-lo agora, cem ano; depois, o folheto que seria a salvação do povo; que traria a
última palavra de esperança, e se perdeu na noite?
BRAGA, Rubem. A traição das elegantes. 7ª ed. Rio de Janeiro: Record, 2008.
Os jornais
Meu amigo lança fora, alegremente, o jornal que está lendo e diz:
- Chega! Houve um desastre de trem na França, um acidente de mina na Inglaterra, um surto de peste na
Índia. Você acredita nisso que os jornais dizem? Será o mundo assim, uma bola confusa, onde acontecem
unicamente desastres e desgraças? Não! Os jornais é que falsificam a imagem do mundo. Veja por exemplo
aqui: em um subúrbio, um sapateiro matou a mulher que o traía. Eu não afirmo que isso seja mentira. Mas
acontece que o jornal escolhe os fatos que noticia. O jornal quer fatos que sejam notícias, que tenha conteúdo
jornalístico. Vejamos a história desse crime "Durante os três primeiros anos o casal viveu imensamente feliz..."
Você sabia disso? O jornal nunca publica uma nota assim: "Anteontem, cerca de 21 horas, na rua Arlinda, no
Méier, o sapateiro Augusto Ramos, de 28 anos, casado com a senhora Deolinda Brito Ramos, 23 anos de idade,
aproveitou-se de um momento em que sua consorte erguia os braços para segurar uma lâmpada para abraçá-la
alegremente, dando-lhe beijos na garganta e na face, culminando em um beijo na orelha esquerda. Em vista
disso, a senhora em questão voltou-se para o seu marido, beijando-o longamente na boca e murmurando as
seguintes palavras: "Meu amor", ao que ele retorquiu: "Deolinda".
Na manhã seguinte Augusto Ramos foi visto saindo de sua residência às 7:45 da manhã, isto é, dez
minutos mais tarde do que o habitual, pois se demorou, a pedido de sua esposa, para consertar a gaiola de um
canário-da-terra de propriedade do casal".
A impressão que a gente tem, lendo os jornais - continuou meu amigo - é que "lar" é um local destinado
principalmente, à pratica de "uxoricídio". E dos bares, nem se fala.
Imagine isto: "Ontem, certa de 10 horas da noite, o indivíduo Ananias Fonseca, de 28 anos, pedreiro,
residente à rua Chiquinha, sem número, no Encantado, entrou no bar "Flor Mineira", à rua Cruzeiro, 524, em
companhia de seu colega Pedro Amância de Araújo, residente no mesmo endereço. Ambos entregaram-se a
fartas libações alcoólicas e já se dispunham a deixar o botequim quando apareceu Joca de tal, de residência
ignorada, antigo conhecido dos dois pedreiros, e que também estava visivelmente alcoolizado. Dirigindo-se aos
dois amigos, Joca manifestou desejo de sentar-se à sua mesa, no que foi atendido. Passou então a pedir rodadas
de conhaque, sendo servido pelo empregado do botequim, Joaquim Nunes. Depois de várias rodadas, Joca
declarou que pagaria toda a despesa. Ananias e Pedro protestaram, alegando que eles já estavam na mesa antes.
Joca, entretanto insistiu, seguindo-se uma disputa entre os três homens, que terminou com a intervenção do
referido empregado, que aceitou a nota que Joca lhe estendia. No momento em que trouxe o troco, o garçom
recebeu uma boa gorjeta, pelo que ficou contentíssimo, o mesmo acontecendo aos três amigos que se retiraram
do bar alegremente, cantarolando sambas. Reina a maior paz no subúrbio Encantado, e a noite bastante fresca,
tendo dona Maria, sogra do comerciante Adalberto Ferreira, residente à rua Benedito, 14, senhora que sempre foi
muito friorenta, chegando a puxar o cobertor, tendo depois sonhado que seu netinho lhe oferecia um pedaço de
goiabada".
E meu amigo:
- Se um repórter redigir essas duas notas e levá-las a um secretário de redação, será chamado de louco.
Porque os jornais noticiaram tudo, tudo, menos, uma coisa tão banal de que ninguém se lembra: a vida...
BRAGA, Rubem. 200 crônicas escolhidas. Rio de Janeiro: Record, 2008. p. 229-230.
Selvagem é o vento
A pipa rodopiou furiosamente, e o vento soprando forte, querendo levá-la para bem longe. Agarrou-se
com força à linha e puxou. Manejou a linha com vontade de aceitar o desafio do vento. Manobrou-a para a
direita e mais um pouco para a esquerda. Navegou o azul, ora trazendo-a para perto de si, ora afrouxando a
pressão da linha e liberando-a apenas por um instante de sua prisão ao asfalto quente da avenida barulhenta e
movimentada.
Volta e meia, sorria, feliz. Felicidade era um pedaço de papel brilhante confinado aos limites de uma
armação de bambu, refletindo a luz mágica do sol. O vento soprando-os para longe e a batalha gostosa de
enfrentá-lo, de brigar para manter a pipa ao seu alcance, dominadas pelo cordão umbilical da linha [...].
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Felicidade grandiosa era a que conseguia equilibrando-se na mureta que separava as pistas da avenida, por meio
de pequenas coisas.
Não tinha olhos para mais nada. Provavelmente foi esse o motivo por que só os percebeu quando a
mulher sentada ao volante do enorme carro branco tocou a buzina várias vezes com impaciência e soltou um
palavrão. Outros carros enfileiravam-se à sua frente. Avançavam lentamente. Mais adiante, um caminhão jazia
atravessado na pista, as rodas girando no vazio, um mar de cacos de vidro escorrendo como um líquido
espumante na maré brilhante do asfalto negro.
Ela tocou a buzina novamente e um dos policiais que gesticulavam de maneira nervosa abriu os braços
numa indagação muda mas incisiva. Outro palavrão estrondou na confusão e as três crianças louras amontoadas
no banco de trás gargalharam.
Achou engraçado. A mulher vermelha e muito suada, as veias grossas em seu pescoço longo
aparecendo, pulsando, como se estivessem prestes a explodir. As crianças se empurrando, socando e repetindo os
palavrões que ouviam. A mulher xingando e a bagunça aumentando dentro do carro branco. O menor dos três
meninos louros choramingando e reclamando do maior. A mulher, tentando alcançá-los com a mão espalmada da
raiva crescente, atinge o menino do meio, o maior rindo e sendo empurrado por ele. Os empurrões se
multiplicando, o menor chorando, as buzinas dos outros carros soando, os guardas apitando feito loucos, a
mulher pondo um dos braços para fora e fazendo gestos com um dos dedos.
Sorriu. Realmente era muito engraçado. Em muito pouco tempo, dividia-se entre a pipa e aquela gente,
o vento soprando forte mas quente, abrasador, tentando arrancá-la de suas mãos, aquela gente enlouquecendo a
olhos vistos dentro do carro.
Aproximou-se. Uma das crianças reclamou, dizendo que estava com sede. O maior vasculhava uma
sacola quase do seu tamanho em busca de algo para comer. O do meio ainda choramingava, resmungando que a
mãe só batia nele. A mulher olhava para a frente e depois se virava para os três, cada vez mais desorientada. Sem
saber o que fazer, pressionava a buzina com força e ficava tocando por bastante tempo.
-Oi! – disse, agachando-se, ainda empoleirado na mureta.
Fez-se um silêncio repentino e a surpresa cobriu o rosto de todos com uma máscara pálida e brilhante de
suor. Estranhou. Notou a súbita transformação no olhar de todos. Viu o medo em seus olhares. Primeiro o receio
e logo depois o medo.
- Olhe, se vocês...
- Iiiihhhhh, não!
A mulher arremeteu apressadamente e por um instante acreditou que ela fosse saltar de dentro do carro.
- Fechem os vidros! Fechem os vidros!
Todos os vidros foram fechados. O calor era forte. Todos os vidros foram fechados e quase ao mesmo
tempo. As crianças pararam de gritar, reclamar e choramingar. A mulher estava ainda mais nervosa e não tirava
os olhos dele. Os quatro fecharam os vidros bem depressa e suando, os rostos muito vermelhos, as roups
grudando nos corpos, ficaram entrincheirados atrás do vidro, espreitando-o com olhos amedrontados, pálidos.
Viu seu corpo magro e negro refletido no vidro. O medo crescia de modo insuportável naqueles olhares.
A mulher enervava-se ainda mais e ficava tocando a buzina. Tocava e olhava receosamente para ele. Tocava e
parecia querer sair dali o mais depressa possível.
Encarou-os sem entender muito bem.
Vidros fechados. Olhares amedrontados. O silêncio reunindo e empurrando as três crianças para o outro
lado do banco de trás do carro. Amontoadas. Caladas. Incapazes de outra coisa que não fosse olhá-lo, vigiá-lo,
espreitá-lo. A mulher parecia querer chorar.
Medo.
Estavam com medo. Medo dele.
Endireitou-se sem saber o que dizer ou fazer.
- Eu, hem!...
Virou-se para a pipa, o vento forte querendo arrancá-la de suas mãos.
Um vento selvagem, que soprava para qualquer direção, para onde bem entendesse, tão selvagem
quanto aqueles olhares perpassados de medo que continuaram espreitando-o do outro lado dos vidros fechados.
Fazia um calor infernal. Dezembro prometia um verão assustador. Ele sorri. Divertia-se com aquela
gente. Ainda estava numa idade em que conseguia achar apenas que era uma gente engraçada. Afinal de contas,
aos sete anos, felicidade é uma pipa no ar e um vento forte para enfrentar. Selvagem é o vento que nos desafia e
nos afasta para bem longe de coisas ruins e igualmente selvagens.
BRAZ, Júlio Emílio. Cenas urbanas. São Paulo: Scipione, 2004.

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