Princípio da Precaução

Transcrição

Princípio da Precaução
COLEÇÃO DIREITO AMBIENTAL EM DEBATE
MARCELO DIAS VARELLA
ANA FLÁVIO BARROS PLATIAU
(Organizadores)
Princípio da Precaução
A numeração das páginas não corresponde à versão impressa
Editora Del Rey e Escola Superior do Ministério Público da União
Sumário
Prefácio
Marie-Angèle Hermitte
Capítulo 1 - Os direitos e interesses das futuras gerações e o princípio da
precaução
Alexandre Kiss
Capítulo 2 - O princípio da precaução
Rüdiger Wolfrum
Capítulo 3 - O princípio da precaução
Philippe Sands
Capítulo 4 – O Estatuto do Princípio da Precaução no Direito Internacional
Nicolas de Sadeleer
Capítulo 5 – Princípio de Precaução: uma nova postura face aos riscos e
incertezas científicas
Solange Teles da Silva
Capítulo 6 - Avaliação dos riscos e princípio da precaução
Marie-Angèle Hermitte e Virginie David
Capítulo 7 – O princípio da precaução frente ao dilema da tradução jurídica
das demandas sociais: Lições de método decorrentes do caso da vaca louca
Olivier Godard
Capítulo 8 – Implementando o Princípio da Precaução: Desafios e
Oportunidades
David Freestone e Helen Hey
Capítulo 9 – Implementando Cautelosamente o Princípio da Precaução: A
Abordagem Precautória no Acordo das Nações Unidas sobre a Conservação e
Ordenamento de Populações de Peixes Tranzonais e de Populações de Peixes
Altamente Migratórios
David Freestone
Capítulo 10 – Variações sobre um mesmo tema: O exemplo da implementação
do princípio da precaução pela CIJ, OMC, CJCE e EUA
Marcelo Dias Varella
Capítulo 11 – A adoção do princípio da precaução pela OMC
Hélène Ruiz Fabri
Capítulo 12 – Princípio da precaução e Organização Mundial do Comércio: da
oposição filosófica para os ajustes técnicos?
Christine Noiville
Capítulo 13 – Princípio da precaução no direito brasileiro e no direito
internacional e comparado
Paulo Afonso Leme Machado
Capítulo 14 – O princípio da precaução e a sua aplicação na justiça brasileira:
estudo de casos
Aurélio Virgilio Veiga Rios
Capítulo 15 – A legitimidade da governança global ambiental e o princípio da
precaução
Ana Flávia Barros Platiau
Prefácio
Marie-Angèle Hermitte
O lançamento de uma coleção de direito ambiental, o projeto de ter a participação
de juristas de língua francesa, assim como publicar a primeira obra que trata do princípio
da precaução não foram decisões tomadas irrefletidamente. Não é fruto do acaso ou da
conjuntura, mas a marca de um projeto intelectual dos diretores desta coleção.
Antes de tudo, tem a ver com a escolha do direito ambiental; ao contrário do que
crêem muitos juristas, este direito não pode reduzir-se a um ramo peculiar, mais ou
menos limitado ao campo da proteção da natureza. Sua primeira função, certamente, é a
de assegurar a proteção do meio ambiente, que é um objetivo político recente e de pouco
consenso, politicamente falando; todavia, acumula muitas outras características
importantes. Inicialmente, no plano teórico, observa-se que o direito ambiental está hoje
voltado tanto para a saúde humana quanto para o meio ambiente stricto sensu; ora, a
junção progressiva destes dois ramos do direito é a implementação jurídica de uma
filosofia do homem moldado pelo ecossistema que está construindo, numa sucessão sem
fim de causas e efeitos. É no direito ambiental que se observa a luta entre duas filosofias
políticas: uma que fundamenta a vontade do homem em livrar-se cada vez mais das
contingências naturais, por meio de uma moldagem tecnológica do meio ambiente; outra
que reconhece a necessidade de uma congruência entre o homem e uma natureza que ele
nunca poderá dominar totalmente, pois ela continua maltratando com suas reações
inesperadas e naturalmente autônomas às modificações que lhe são impostas. Num plano
mais prático, este amplo projeto de pesquisa da congruência conseguiu expressar-se no
universo jurídico, mediante o princípio da integração.
Assim, o direito ambiental tem por vocação a transformação de todos os outros
ramos do direito: existindo para si mesmo, existirá cada vez mais para reconstruir os
outros direitos, tendo em vista seus próprios objetivos. Todo direito aplicável à indústria
e à agricultura terá de tolerar modificações para integrar objetivos ambientais e sanitários;
então, mais que dele mesmo, o direito ambiental retira sua importância do conjunto da
ordem jurídica. Enfim, observa-se que é um dos ramos mais inovadores do direito e
inúmeras de suas inovações espalham-se no conjunto do sistema jurídico. É verdadeiro
num nível técnico, em que novos princípios foram elaborados; mas é também verdadeiro
num nível político, e a importância desta constatação é significativa. De fato, a
característica do direito ambiental é de ter surgido em decorrência de uma demanda da
sociedade civil, mais do que do universo político e, o que é muito importante, sua
implementação ocorre sob o controle e, de certa forma, sob a pressão da sociedade civil,
freqüentemente contra as autoridades do Estado, que são vistas como muito permissivas
pelos vizinhos de uma fábrica ou de outro problema qualquer. É por isto que, antes de
tudo, o direito ambiental é o molde em que se elabora o que se convencionou chamar de
nova governança, que eu definiria como um modo de governar compartilhado entre as
autoridades públicas tradicionais do modelo representativo e uma forma nova de
democracia direta.
Neste contexto, a escolha da primeira obra sobre o princípio da precaução é
lógica. Mais uma vez, não é somente porque este princípio é novo, porque se elabora
rapidamente e penetra o conjunto da ordem jurídica nacional e internacional. É também e
sobretudo, por causa de sua importância para esta nova governança. De fato, insistindo
sobre a necessidade de agir de forma racional durante as fases de incertezas cientificas e
técnicas, até então reservadas à expectativa, o princípio da precaução tem por vocação
reforçar a participação do público, dos leigos, no que concerne à decisão. Diante de uma
situação de incerteza e de ignorância, o sistema abala as hierarquias tradicionais.
Obviamente, os cientistas têm uma função peculiar, a de levar adiante as pesquisas que
permitirão vencer essa ignorância; no entanto, eles se deparam com a necessidade de
confessá-la, de deixar vir à tona suas controvérsias e suas hesitações muito mais que uma
imagem fictícia de verdade e de saber; assim, cientistas e leigos estão ficando mais
próximos uns dos outros. É evidente que serão as instituições tradicionais que tomarão
formalmente as decisões. Todavia, num contexto de risco coletivo, de ignorância e de
sacrifícios a serem consentidos, associar o público à decisão é um ato de prudência. Os
princípios de informação e participação do público, que são os menos aplicados dos
grandes princípios do direito ambiental, são também e talvez os mais importantes.
Mostrando que as elites científicas e políticas estão desarmadas, a idéia da precaução está
fundamentalmente ligada à renovação democrática que se tenta impor.
Contudo, interessar-se pela doutrina francesa parecia menos evidente. Por sua
posição geopolítica, seu tamanho, suas riquezas, a diversidade de sua população, o Brasil
pode pretender tornar-se independente intelectualmente e, de resto, será logicamente
atraído pela esfera americana, no sentido de um continente americano ainda por ser
construído. É justamente no âmbito desta invenção do mundo que a doutrina francesa,
restrita a uma audiência bastante reduzida, em razão dos poucos conhecedores da língua
francesa, pode apresentar interesse. Tradicionalmente ligada a inúmeros países do Sul,
relativamente ignorante ou indiferente aos modismos intelectuais, para o melhor assim
como para o pior, a doutrina francesa representa um pólo de diversidade cultural que
pode ser útil de se conhecer para aumentar as possibilidades de escolhas políticas e
jurídicas, com as quais o Brasil é confrontado. Trata-se de contrapeso, de contramoda, de
incentivo à aliança.
Que esta coleção provoque a aprendizagem recíproca de argumentações mais ricas
e mais diversas. Estes são meus votos.
Apresentação
Este primeiro volume, entre três programados para a “Coleção direito ambiental
em debate”, apresenta uma discussão sobre o princípio da precaução. A nossa maior
intenção consiste em trazer para a literatura brasileira, grandes nomes do direito
internacional, que atualmente são dificilmente acessíveis no Brasil. Este problema
decorre de inúmeros fatores: em primeiro lugar, os leitores brasileiros não têm
familiaridade com línguas estrangeiras, principalmente se não se tratar da língua inglesa,
sobretudo em função da grande influência norte-americana sobre nossa doutrina. Este
livro se focaliza sobretudo em grandes autores franceses, mas também alemães,
holandeses e outros. O segundo objetivo é promover o diálogo entre os principais
acadêmicos europeus e norte-americanos acerca da natureza do princípio da precaução e,
principalmente, sobre os desafios de sua implementação, o que os professores David
Freestone e Hellen Hey comentaram ser a “segunda geração” de estudos e pesquisas
sobre o tema. O debate pretende ajudar a tecer uma malha teórica capaz de auxiliar, em
grande medida, à parte do desenvolvimento da discussão sobre risco e precaução, a
disseminar o tema e seus desafios decorrentes no Brasil.
Tomamos a liberdade de convidar alguns autores brasileiros consagrados
como o Paulo Affonso Leme Machado e outros que estão se destacando por seus estudos
e atividades como Solange Teles da Silva e Aurélio Rios. Tais artigos tentam esboçar os
contornos do princípio da precaução no ordenamento jurídico brasileiro, assim como suas
formas de concretização.
A disposição dos artigos ao longo do volume naturalmente respeitou uma seqüência baseada nos vieses dados por cada autor a temas ou questões específicas. O primeiro grupo de artigos, por exemplo, inclui os textos dos Professores Alexandre Kiss, Rüdiger Wolfrum, Philippe Sands, Solange Teles da Silva, Marie-­‐Angèle Hermitte & Virginie David, e Nicolas de Sandeleer. Estes seis artigos possuem em comum o mesmo ponto de partida: a apresentação do estado do princípio da precaução no direito internacional. Entretanto, todos possuem metodologias distintas, apresentando o princípio da precaução a partir de diferentes roupagens. O professor Alexandre Kiss tem como principal alvo demonstrar a ligação entre equidade intergeracional e o princípio da precaução, tendo em vista a definição de o princípio do desenvolvimento sustentável. O artigo do professor Rüdiger Wolfrum, por sua vez, vele-­‐se da riqueza dos instrumentos jurídicos internacionais para comentar a evolução da abordagem precautória, levantando importantes pontos para debate tal como a construção de políticas e a tomada de decisão em contextos de incerteza, em contraposição à necessidade de prova de impactos negativos sobre o meio ambiente. De forma análoga, Philippe Sands desenvolve uma apresentação do status do princípio da precaução, bem como uma discussão acerca de seu significado. Em outras palavras, Sands estuda o status da consolidação do princípio da precaução, essencialmente nas cortes regionais e foros internacionais. O professor Nicolas de Sadeleer assinala que apesar da dificuldade própria do direito internacional do meio ambiente, a fragmentação, é possível estabelecer um valor jurídico para o princípio da precaução a partir das fontes tradicionais do Direito Internacional, aprofundando-­‐se nas raízes deste princípio, construindo sua tipologia jurídica e identificando de forma precisa seus contornos. A professora Solange Teles da Silva demonstra a ascensão do princípio da precaução no direito internacional. Finalmente, o texto da professora Marie-­‐Angèle Hermitte e de Virginie David apresentam uma análise clara dos elementos de difícil análise em se tratando do princípio da precaução, demonstram suas origens e fecham com brilhantismo o bloco, abrindo os olhos do leitor para abordagens que devem ser dadas para a melhor compreensão do princípio da precuação. O segundo bloco de artigos, em contraste ao primeiro que tinha na definição e
evolução do princípio da precaução seus focos, são construídos sob dilemas decorrentes
da epistemologia, da aplicação, interpretação, percepção e extensão da precaução. Tratase de um passo além, em consonância com o estado da arte do princípio no direito
internacional. O artigo de Olivier Godard, em suas próprias palavras, propõe que “O
dilema posto pela inscrição jurídica do princípio da precaução é de saber se ela será mais
fiel à concepção apurada e reflexiva do princípio da precaução que as idéias brutas que
levaram a sua aceitação pelo público.” Em seu texto, Godard utiliza o caso da vaca louca
como ponto de partida para uma reflexão sobre o posicionamento a ser dado ao princípio
da precaução. Já o texto de Freestone & Hey é construído sob o problema da incerteza
versus impactos negativos significativos, quando da aplicação do princípio da precaução
e revela bem uma visão setorial do princípio, em se tratando de direito marítimo. O artigo
de David Freestone fundamenta-se na dicotomia interesses nacionais versus interesses
comuns e transgeracionais, a partir de uma análise do Acordo sobre Conservação e
Ordenamento de Populações de Peixes Tranzonais e de Populações de Peixes Altamente
Migratórios e da Convenção sobre o Direito do Mar, que foi um dos primeiros e mais
importantes tratados internacionais a propor uma forma de concretização do princípio da
precaução no direito internacional. O artigo subseqüente de Marcelo Varella, por sua vez,
põe em contraste as diferentes abordagens para o princípio da precaução em diferentes
organizações internacionais, demonstrando o como o princípio ou abordagem precautória
é analisado em um mesmo momento por diferentes espaços de resolução de conflitos, e
como elementos políticos são inerentes a esta análise e podem influenciar a avaliação do
princípio da precaução. Os artigos de Hélène Ruiz Fabri e Christine Noiville encerram o
segundo “bloco” com um interessante aprofundamento da discussão sobre a aplicação e
evolução da consideração do princípio da precaução na Organização Mundial do
Comércio (OMC).
Finalmente, o terceiro bloco de artigos inicia-se com a apresentação dos artigos
dos professores Paulo Afonso Leme Machado e Aurélio Virgilio Veiga Rios cuja ênfase é
o estado e a implementação do princípio da precaução no ordenamento jurídico interno
brasileiro. A professora Ana Flávia Platiau retoma em seu artigo o ponto dos professores
Nicolas de Sandeleer e Olivier Godard para demonstrar, a partir do papel das
comunidades epistêmicas e da sociedade civil global em questões vinculadas à
biotecnologia, que os ordenamentos jurídico e político caminham em ritmos distintos.
O método de construção da obra ocorreu de modo a torná-la um conjunto
harmônico e integrado de textos. Os professores foram convidados a escrever artigos ou a
indicar um dos seus melhores textos sobre o tema. Em seguida, os organizadores fizeram
críticas e retornaram os textos para os autores, em conjunto com todos os outros textos da
obra. Assim, foi possível cada autor conhecer e discutir os demais textos, alterando seus
próprios trabalhos. A versão final, após novas discussões, foi traduzida para o português e
revisada pelos organizadores e pelos autores. Uma nova revisão de português então foi
realizada, por profissionais experientes e revisada novamente pelos organizadores.
Assim, trata-se de uma obra cuja coerência aproxima-se mais a de livro do que de uma
simples reunião coletânea de artigos. Para tornar a obra mais compreensível, os
organizadores adicionaram algumas notas de rodapé, explicando certos termos técnicos
que são raramente encontrados nos textos brasileiros. Acreditamos assim, trazer ao
público brasileiro, alguns trabalhos de qualidade sobre o princípio da precaução.
Gostaríamos de agradecer a todos que trabalharam para que esta empreeitada
fosse possível, aos técnicos Rafael Schleicher, Maria Edevalcy Marinho e Liziane Paixão,
pela uniformização de notas e estilos, e ajuda nesta apresentação e traduções; aos tradutor
Bruno Guérard. As revisoras de portugues Sandra Jacovini e especialmente à professora
Amabile, pela contribuição indispensável para a qualidade da obra. Enfim, aos editores
dos textos originais pela permissão concedida para a tradução.
Um agradecimento especial vai também a Sub-Procuradora Geral da República,
Sandra Cureau, Presidente da Escola Superior do Ministério Público da União, aos
Diplomatas Guillaume Ernst e Laetitia Daget, do Ministério das Relações Exteriores do
Governo Francês e ao Procurador da República Antônio Fonseca, Presidente da Fundação
Pedro Jorge, pelo apoio financeiro para a realização dos trabalhos.
Ana Flávia Platiau
Marcelo Dias Varella
Capítulo 1
Os Direitos e Interesses das Gerações Futuras e o Princípio da
Precaução
Alexandre Kiss*
O título deste capítulo propõe a análise de três elementos separados: direitos e
interesses, gerações futuras e princípio da precaução. Cada um dos elementos será
examinado separadamente, antes de uma tentativa de síntese. De qualquer modo, para
facilitar a análise, a ordem pela qual os três serão discutidos foi modificada no sentido de
priorizar o conceito-chave de gerações futuras.
1. O que são gerações futuras?
O conceito de eqüidade intergeracional surgiu nos anos 80. Sua origem está
relacionada com a ansiedade desencadeada pelas mudanças globais que caracterizaram a
segunda metade do século XX. O poder da humanidade de transformar as características
físicas da Terra alcançou um nível que dificilmente poderia ser imaginado há um século.
Ao mesmo tempo, a população mundial aumentou numa velocidade sem precedentes,
dobrando em algumas décadas. Esse crescimento ocasionou aumento no uso dos recursos
naturais e na conscientização sobre a escassez desses recursos.1 Como resultado, houve
uma crescente conscientização de que as mudanças globais podem ter como efeito a
redução da parte da riqueza global a que cada habitante do mundo tem acesso. A
pergunta, então, é se a mudança global deve ser feita para provocar uma redução da
parcela da riqueza global a que cada indivíduo tem direito - mesmo àqueles que vivem
atualmente na Terra.
Uma imagem impressionante dos anos 1970 - a Espaçonave Terra - ilustra tais
apreensões: nós, toda a humanidade, estamos a bordo de um veículo viajando pelo
espaço, a energia solar é o único recurso suplementar que teremos até o fim desconhecido
*
Professor Alexandre Kiss é diretor de pesquisas CNRS/França e professor emérito da Universidade de
Estrasburgo, França.
1
Os recursos naturais aqui mencionados incluem não somente minerais, água e ar, mas também a
diversidade biológica e o espaço.
da viagem. Assim, devemos conservar nossos recursos de forma sábia e compartilhá-los,
sem esquecer que os que ocuparem nossos lugares a bordo, no futuro, serão ainda mais
numerosos que nós.
Esses interesses são acompanhados e ampliados por uma crescente inquietude
pela situação do meio ambiente. Essas preocupações têm também uma dimensão
temporal embora não necessariamente coincidente. A preservação do meio ambiente está
obrigatoriamente focalizada no futuro. Uma decisão consciente para evitar o esgotamento
dos recursos naturais globais, em vez de nos beneficiarmos ao máximo das possibilidades
que nos são dadas hoje, envolve necessariamente pensar sobre o futuro. Entretanto, o
futuro pode ter uma dimensão de médio ou longo prazo, enquanto a preocupação
relacionada ao interesse das gerações futuras é necessariamente de longo prazo e, sem
dúvida, um compromisso vago.
Um outro aspecto motiva a preocupação com as gerações futuras. Mesmo sendo
verdade que, desde o início, a humanidade usou recursos naturais, algumas vezes
chegando a sua extinção, também desenvolveu uma riqueza cultural espiritual própria.
Como afirmou o pensador francês Paul Valéry: “Nós, civilizações, agora sabemos que
somos mortais”.2 De fato, muitas civilizações e culturas locais desapareceram no decorrer
da história da humanidade, mas nunca o ritmo de desaparecimento foi tão rápido como no
século atual.
Com isso, a mudança global que está ocorrendo no momento afeta não só os
recursos naturais, mas também os recursos culturais humanos que foram acumulados
durante milhares de anos. Esses recursos consistem, por exemplo, de conhecimentos de
povos indígenas, de registros científicos ou até mesmo de películas que se deterioraram
com o passar do tempo. Fatores psicológicos e éticos explicam nossas reações a tais
questões. Nossa primeira reação pode ser genética, instintiva. Todas as espécies vivas
procuram instintivamente assegurar sua reprodução, e os mais desenvolvidos entre elas
também fazem a provisão para o futuro bem-estar de seus descendentes. A história
humana é testemunha dos constantes esforços dos seres humanos para proteger não
somente suas próprias vidas, mas também para garantir o bem-estar e melhorar as
2
VALÉRY, P.. Regards sur le monde actuel et autres essais, p. 121.
oportunidades para sua prole. O cuidado instintivo com as crianças e netos faz parte da
natureza humana.
Considerações éticas reforçam e podem também expressar esses sentimentos
instintivos. Como disse um escritor francês, nós não somos os herdeiros de nossos pais,
mas os devedores de nossas crianças.3 Para haver justiça, a riqueza que nós herdamos das
gerações precedentes não deve ser dissipada para nossa própria conveniência e prazer,
mas passada adiante, na medida do possível, para aqueles que nos sucederão. Certamente,
não há nenhuma justificativa moral em privar o outro de receber o que recebemossem
esforço de nossa parte. O termo eqüidade intergeracional foi utilizado para representar
este conceito.4 Expressa o reconhecimento do que devemos a nossos antepassados e
nossa gratidão para com eles, assim como o que devemos à posteridade.
Uma vez reconhecidas nossas obrigações quanto ao futuro, permanece ainda uma
dificuldade maior – a definição do termo geração. Uma nota de advertência é necessária
com relação ao que pode parecer simplesmente uma questão terminológica. O uso atual
do termo geração serve freqüentemente para referir-se a uma série de produtos ou
conceitos que, em razão dos desenvolvimentos tecnológicos, podem ser substituídos por
novas séries de produtos ou conceitos. A implicação deste uso particular é que as
gerações se substituem e a geração substituída se torna antiquada e, conseqüentemente,
inútil. O uso do termo geração neste sentido, precisa ser tratado com cuidado.
Por exemplo, na lei dos direitos humanos, os direitos civis e políticos são tratados
freqüentemente como sendo direitos de primeira geração; os direitos sociais e
econômicos, como direitos de segunda geração e o desenvolvimento e os direitos
ambientais, como sendo direitos de terceira geração. Se o argumento anterior fosse
aplicado à lei dos direitos humanos, implicaria que os direitos humanos de segunda
geração tornariam obsoletos os direitos da primeira geração e a chamada terceira geração
de direitos teria o mesmo efeito sobre a segunda geração. Isto seria obviamente absurdo e
inaceitável.
Com relação aos direitos das gerações futuras, não existe certamente nenhuma
implicação de que, quando uma nova geração surgir, a existente deva desaparecer. De
3
SAINT-EXUPÉRY, A.. Vol de nuit, p. 29.
WEISS, E.. Fairness to Future Generations: International Law, Common Patrimony and
Intergenerational Equity, p.17.
4
qualquer modo, além dos problemas de terminologia, o conceito de geração é obscuro.
Historicamente, considerando a variada expectativa de vida no passado, a duração de uma
geração foi aceita com sendo de trinta anos. A relevância de tais estimativas, em vista de
uma maior expectativa de vida no mundo desenvolvido e as grandes diferenças entre
países desenvolvidos e países em desenvolvimento, é altamente questionável.
De forma conceitual, o principal problema é que não há nenhuma geração distinta.
Em cada duas centenas de seres humanos que nascem e morrem, mais de cinco bilhões de
pessoas de todas as idades coexistem. Seria mais exato falar não de gerações, mas de um
fluxo constante; a humanidade pode ser comparada a um enorme rio que flui
constantemente, torna-se cada vez maior e nele nenhuma distinção pode ser feita entre as
gotas de água que formam esse rio.
A conseqüência lógica de tal aproximação seria reconhecer a futura humanidade
como detentora de direitos. A compreensão de que a futura humanidade começa
novamente a cada segundo conduziria assim ao reconhecimento da totalidade da
humanidade, incluindo os membros atuais e futuros, como pessoa legal, sujeito de direito
e portadora potencial de direitos e deveres. Alguma sustentação conceitual para tal
enfoque pode ser encontrada no conceito legal existente de crimes contra a humanidade no qual a humanidade por inteiro é protegida contra atentados à vida e à integridade de
seus membros.
Finalmente, admitir que as gerações futuras têm direitos poderia conduzir ao
reconhecimento de que a humanidade, como tal, possui um status legal. Em princípio,
esta compreensão poderia ser reconhecida nas leis do Direito Internacional.5 Os
principais problemas a serem tratados estão relacionados ao estabelecimento de
procedimentos legais adequados através dos quais a representação de direitos e interesses
da humanidade seria assegurada.6
2. Os Direitos e Interesses das Gerações Futuras
5
No princípio do Direito Internacional, um dos principais direitos do Estado era a autopreservação que
poderia ser interpretada como sendo uma forma de cuidado futuro.
6
WEISS, E. op. cit., p.148-152. (propondo a criação da Comissão sobre o Futuro do Planeta, com os
seguintes membros: comissários, ombudsmen, um programa de monitoramento, uma unidade de
aconselhamento técnico e uma unidade educacional).
Os instrumentos legais internacionais freqüentemente fazem referência aos
"direitos das gerações futuras". Com base na variedade de instrumentos, incluindo
declarações e deliberações bem como cláusulas de tratados, é possível aceitar esses
direitos como sendo os que cada geração tem em beneficiar-se e em desenvolver o
patrimônio natural e cultural herdado das gerações precedentes, de tal forma que possa
ser passado às gerações futuras em circunstâncias não piores do que as recebidas. Isto
exige conservação e, onde for possível, melhoria da qualidade e da diversidade dessa
herança e, especificamente, a conservação dos recursos renováveis, dos ecossistemas e
dos processos de suporte à vida, assim como do conhecimento humano e da arte. Requer
ainda que sejam evitadas ações com conseqüências desastrosas e irreversíveis para a
herança natural e cultural, citadas em vários instrumentos internacionais.7
Diferentes expressões dos direitos das gerações futuras são encontradas em
diferentes textos. De acordo com a Declaração de Estocolmo de 1972, a primeira a
formular este princípio, encontramos: “O homem... tem a solene responsabilidade de
proteger e melhorar o meio ambiente para a atual e as futuras gerações”.8
O mesmo princípio foi reafirmado por diversos tratados internacionais e por
outros instrumentos.9 Particularmente significativo é o artigo 3(1) da Convenção-Quadro
das Nações Unidas sobre Mudanças Climáticas. Essa Convenção foi um dos principais
resultados da Conferência da ONU sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento
(CNUMAD): “As partes devem proteger o sistema climático para o benefício das atuais e
futuras gerações da humanidade”.10
Essa Convenção é uma continuação de diversas deliberações da Assembléia Geral
das Nações Unidas (AGNU), sendo a mais importante a que se refere à Proteção do
7 "Goa Guidelines on Intergenerational Equity", 15. 2. 1988, reproduzido por WEISS, op. cit., p. 293.
8 Princípio I, UN Conference A/Conf. 48/14/Rev. 1.
9 Princípio I, UN Conference A/Conf.48114/Rev 1. 9. Convention on International Trade in Endangered Species of Wild Fauna and Flora (CITES), Washington,
March 3, 1973,993 UNTS 243; Convention for the Protection of the Mediterranean Sea Against Pollution, Barcelona, February 16, 1976, (1976) 15 ILM290;
Convention on the Conservation of Nature in the South Pacific, Apia, June 12, 1976, UNEP, (1983) Selected Multilateral Treaties in the Field of the Environment, p.
463; Convention on the Prohibition of Military or Any Other Hostile Use of Environmental Modification Techniques, Geneva, May 18, 1977, (1977) 16 ILM 88;
Kuwait Regional Convention for Cooperation in the Protection of the Marine Environment from Pollution, Kuwait, April 24, 1978, (1978) 17 ILM 511; Convention
on the Conservation of Migratory Species of Wild Animals, Bonn, June 23, 1979, (1980) 19 ILM 15; Convention on the Conservation of European Wildlife and
Natural Habitats, Bern, September 19, 1979, European Treaty Series, no 104; Convention for the Protection and Development of the Marine Environment of the
Wider Caribbean Region, Cartagena de Indias, March 24, 1983, (1983) 22 ILM 227; ASEAN Agreement on the Conservation of Nature and Natural Resources,
Kuala Lumpur, July 9, 1985, (1985) 15 EPL p. 64; Convention on the Transboundary Effects of Industrial Accidents, Helsinki, March 17, 1992, UN E/ECE/ 1268.
10 Nova Iorque, 9. 5.1992, (1992) 31 ILM 849.
Clima Global para as Atuais e Futuras Gerações da Humanidade.11 Na Convenção sobre
Diversidade Biológica, as partes contratantes apresentam sua decisão "para conservar e
usar de forma sustentável a diversidade biológica para o benefício da geração atual e das
gerações futuras".12
De acordo com o terceiro princípio da Declaração do Meio Ambiente e
Desenvolvimento do Rio, “o direito ao desenvolvimento deve ser exercido de modo a
permitir que sejam atendidas eqüitativamente as necessidades de desenvolvimento e de
meio ambiente das gerações presentes e futuras”.13
A preocupação pelas gerações futuras também é inerente ao conceito de
desenvolvimento
sustentável.
A
Comissão
Mundial
de
Meio
Ambiente
e
Desenvolvimento (WCED) define desenvolvimento sustentável como "a capacidade
humana de assegurar que o desenvolvimento atenda às necessidades do presente sem
comprometer a capacidade das gerações futuras de atenderem a suas próprias
necessidades".14 A Comissão, além disso, concordou que :
o conceito de desenvolvimento sustentável implica limites, não
absolutos, mas limites impostos pelo atual estado da tecnologia e da
organização social, em recursos ambientais, e pela capacidade da biosfera
de absorver os efeitos das atividades humanas.15
Se for admitido que o direito das gerações futuras ou da futura humanidade foi
reconhecido como tal pela lei internacional costumeira, mediante tratados internacionais
assim como mediante instrumentos de soft law, dois pontos emergem como
significativos. O primeiro refere-se ao conteúdo desse direito e o segundo, a sua
execução.
O enfoque inicial do direito das gerações futuras levou à conclusão de que este
direito buscou proteger as opções que temos atualmente e procurou transmiti-las às
gerações futuras. Entretanto, essa abordagem não é necessariamente satisfatória porque
coloca excessiva ênfase nos deveres da geração presente. Não considera o fato de que a
própria natureza do conceito exige que seja aplicado através dos séculos. Como pode a
11 UNGA Res 43/53, 6. 12. 1988, UN Doc. A/Res/43/53.
12 Ultimo parágrafo do preâmbulo, Rio de Janeiro, 5.6. 1992, (1992) 31 ILM 818.
13 Rio de Janeiro, 14. 6. 1992, (1992) 31 ILM 874.
14 Our Common Future (1987), p. 43.
15 Ibid., p. 8.
mesma quantidade de espaço, de regiões naturais, de água limpa, de animais selvagens
ser garantida para infinitas gerações com número cada vez maior de indivíduos? Deve o
mundo ser transformado em um museu ocupado sempre com maior número de
monumentos, de artefatos e de locais históricos? Mesmo se a humanidade atual pudesse
aceitar essa abordagem, não poderia ser aceitável para as gerações futuras. Como
podemos saber as preferências das gerações futuras daqui a, por exemplo, cinqüenta ou
cem anos?
Uma relação mais concreta pode ser estabelecida com base no conceito de
desenvolvimento sustentável, conforme aparece no relatório do WCED.16 Nesse relatório,
desenvolvimento está ligado à obtenção de direitos econômicos, sociais e culturais. O
desenvolvimento sustentável procura assegurar que tais direitos sejam obtidos no futuro,
o que significa que as condições para sua obtenção também necessitam ser mantidas.
Estas condições são a disponibilidade de recursos naturais adequados. O direito das
gerações futuras pode conseqüentemente ser definido nos termos dos direitos aos
recursos naturais necessários para garantir, por um período indeterminado, direitos
econômicos, sociais e culturais básicos.
Entretanto, tal enfoque é totalmente antropocêntrico. Certamente, o conceito dos
direitos das gerações futuras ou da futura humanidade se refere somente aos seres
humanos. Não obstante, os recursos naturais, que são necessários para assegurar a
apreciação de direitos econômicos, sociais e culturais, incluem não somente recursos que
são essenciais à sobrevivência da humanidade, tal como a água e o ar; recursos que
servem para enriquecer a humanidade, como minerais, mas também ecossistemas e
processos essenciais à vida assim como à diversidade biológica.17 A apreciação de
direitos culturais inclui necessariamente a conservação de elementos básicos de nossa
civilização. Estes elementos não são somente sintéticos, mas abrangem também a flora e
fauna selvagem, tal como baleias, leões e serpentes, paisagens e locais naturais. É
necessária uma interpretação mais ampla dos direitos humanos para refletir os interesses
mais diversificados das gerações futuras.
16 Ibid., p. 8-9 e 43-66.
17 O rascunho da Declaração sobre os Princípios dos Direitos Humanos e o Meio Ambiente, incluídos no relatório final da Sra Fatma Zohra Ksentini, relatora
especial da subcomissão de Prevenção contra a Discriminação e da Proteção de Minorias (06. 7. 1994)) declara em seu Artigo 6: “Todas pessoas têm o direito à
proteção e preservação do ar, solo, água, geleiras, flora e fauna e aos processos essenciais e áreas necessárias para manutenção da diversidade biológica e de
ecossistemas”. (UN, E/CN.4/Sub.2/1994/9, Annex I, p. 75).
Assim, até onde se se refere ao direito das gerações futuras, aceita-se que ele
inclua direitos econômicos, sociais e culturais e a conservação das condições, abrangendo
a conservação da diversidade biológica, necessária para assegurar sua realização.
Com relação à segunda questão, a implementação dos direitos das gerações
futuras, os instrumentos internacionais fornecem pouca orientação. Contudo, alguns
indicativos podem ser encontrados na prática de sistemas legais domésticos,
particularmente em uma recente decisão da Suprema Corte da República das Filipinas e
em um recente decreto adotado na França.
O caso da Minors Oposa versus a Secretaria do Departamento de Meio Ambiente
e de Recursos Naturais18, na Suprema Corte da República das Filipinas, ilustra como os
direitos das gerações futuras podem ser protegidos. Nesse caso, trinta e cinco menores,
representados por seus pais e por uma associação, a Rede Ecológica Filipina (Philippine
Ecological Network), encaminharam uma intimação, exigindo que o governo
interrompesse as licenças de exploração de madeira existentes e restringisse a emissão de
novas licenças. Sua petição foi baseada na alegação de que os desflorestamentos
resultavam em danos ambientais. O julgamento em primeira instância desqualificou o
pedido, mas a Suprema Corte reverteu a decisão. Decidiu, entre outras coisas, que os
requerentes tinham o direito de representar seus filhos ainda não nascidos e que tinham
defendido adequadamente o direito deles a um meio ambiente equilibrado e saudável.
Sobre o locus standi dos requerentes, a Corte determinou o seguinte:
Os requerentes menores afirmam que representam sua geração
assim como as gerações ainda não nascidas. Não encontramos nenhuma
dificuldade em julgar que eles podem para si mesmos, para outros de sua
geração e para as gerações futuras, impetrar um processo judicial. Sua
capacidade para ingressar em juízo no interesse das sucessivas gerações
pode ser fundamentada no conceito de responsabilidade intergeracional,
assim como no direito a um meio ambiente sadio e equilibrado. A natureza
significa o mundo em sua totalidade como foi criado. Tal ritmo e harmonia
incluem indispensavelmente, inter alia, a cuidadosa disposição, utilização,
gestão, renovação e a conservação das florestas do país, dos minerais, da
18 (1994) 33 ILM 168.
terra, das águas, das indústrias de pesca, da vida selvagem, das áreas
costeiras e de outros recursos naturais a fim de que sua exploração,
desenvolvimento e utilização sejam eqüitativamente acessíveis à geração
presente, assim como às futuras gerações.19 Desnecessário dizer que cada
geração tem como responsabilidade preservar para a geração futura o
ritmo e a harmonia para um completo desfrute de uma ecologia equilibrada
e saudável. De forma um pouco diferente, a assertiva dos menores terem
direito a um ambiente em boas condições constitui ao mesmo tempo a
concretização de sua obrigação em assegurar a proteção daquele direito
para as gerações vindouras.20
Esta sentença é naturalmente fundamentada nos textos constitucionais e
legislativos que são aplicáveis nas Filipinas.21 A petição inicial foi considerada válida e o
direito de agir dos requerentes foi aceito pelo Tribunal, assim como o direito de defesa foi
garantido aos beneficiários das licenças de exploração de madeira.
A Corte Suprema não deu uma definição para o conceito gerações futuras.
Entretanto, sua decisão foi claramente fundamentada neste conceito. Certamente a Corte
poderia declarar que os menores, como os requerentes, poderiam somente reivindicar
seus próprios interesses futuros. Ao contrário, a Corte preferiu adotar um enfoque mais
abrangente e reconhecer os direitos dos menores em cumprir suas obrigações para as
gerações ainda por virem.
Na França, o direito das gerações futuras foi reconhecido de forma institucional.
Em janeiro de 1993, um Conselho de Gerações Futuras foi estabelecido por decreto.
22
Esse órgão independente pode ser consultado sempre que for identificado um problema
com impacto potencial sobre os direitos das gerações futuras. Está também autorizado,
por sua própria iniciativa, a oferecer aconselhamento em tais questões. Esta iniciativa
19 Title (Environmental Natural Resources), Book IV of the Administrative Code of 1987, B.D. No 292".
20 WEISS, E. Op cit, n. 18, p. 185.
21 A seção 16, do artigo II da Constituição de 1987, indica explicitamente que "O Estado deverá proteger e garantir o direito do povo a uma ecologia equilibrada e
saudável de acordo com o ritmo e harmonia da natureza". O ato de Reorganização do Departamento de Ambiente e Recursos Naturais, promulgado em 10. 6. 1987,
OE nº 192, autorizou esse Departamento, em conformidade com a Constituição, a garantir uma eqüitativa divisão dos benefícios advindos dos recursos naturais "para
o bem-estar das presentes e gerações futuras de filipinos”. Na seção 3, uma Declaração de Política do mesmo instrumento também menciona o uso eqüitativo dos
recursos naturais do país, "não somente para a geração presente, mas também para as gerações futuras". Essa Declaração de Política está substancialmente reafirmada
no Título XIV, Livro IV do Código Administrativo de 1987, Seção 1, EO No 292 (Ibid., p. 187 e 189).
22 Decreto n. 93-298, de 8. 3. 1993, Journal Officiel de La République Française.
francesa oferece importante exemplo de como pode ser tratado um dos principais
problemas que surgem com a implementação dos direitos das gerações futuras, ou seja,
como a questão da representação pode ser solucionada.
Resumindo, os direitos das gerações futuras, baseados na obtenção de direitos
econômicos, sociais e culturais, incluindo a conservação da diversidade biológica,
podem, ao menos em princípio, ser implementados por Cortes e por órgãos nacionais
independentes.
Entretanto, a história contemporânea ilustra a fragilidade de muitos Estados,
alguns dos quais são incapazes de impor sua autoridade sobre a população. Assegurar a
proteção dos direitos das futuras gerações supõe uma forma de continuidade que somente
pode ser alcançada com a participação de instituições internacionais. Além disso,
experiências com Estados totalitários demonstram também que o melhor estímulo para
alcançar a proteção dos direitos humanos é a existência de instituições internacionais
independentes, que podem avaliar sua efetiva implementação. Assegurar os direitos das
gerações futuras é uma tarefa muito mais difícil do que assegurar o respeito pelos direitos
humanos atuais. Isto deve ser outorgado a uma autoridade internacional, talvez a um Alto
Comissariado ou a uma Comissão Mundial, como a Comissão Brundtland.
3. O princípio da precaução Como indicam os diversos autores, várias formulações diferentes foram usadas
para definir ou descrever o princípio da precaução. Alguns consideraram que o princípio
15 da Declaração do Rio reflete o enfoque mais comumente aceito:
Com o fim de proteger o meio ambiente, o princípio da precaução
deverá ser amplamente observado pelos Estados, de acordo com suas
capacidades. Quando houver ameaça de danos graves ou irreversíveis, a
ausência de certeza científica absoluta não será utilizada como razão para
o adiamento de medidas economicamente viáveis para prevenir a
degradação ambiental.
O princípio da precaução pode ser considerado como a forma mais desenvolvida
da regra geral, impondo uma obrigação para impedir danos ao meio ambiente. Ele
constitui o ponto de partida para uma grande organização do direito ambiental e, em
particular, para o direito ambiental internacional. Com exceção de uma série de tratados
que tratam da compensação para os danos ambientais, a grande maioria das convenções
internacionais é baseada no princípio de que a degradação ambiental deve ser impedida evitando a poluição ou danos - em vez de se esperar que ela ocorra e, então, tentar
neutralizar seus efeitos negativos.
A diferença entre o princípio da prevenção e o princípio da precaução está na
avaliação do risco que ameaça o meio ambiente. A precaução é considerada quando o
risco é elevado - tão elevado que a total certeza científica não deve ser exigida antes de se
adotar uma ação corretiva, devendo ser aplicado naqueles casos em que qualquer
atividade possa resultar em danos duradouros ou irreversíveis ao meio ambiente, assim
como naqueles casos em que o benefício derivado da atividade é completamente
desproporcional ao impacto negativo que essa atividade pode causar no meio ambiente.
Nestes casos, é necessário um cuidado especial a fim de preservar o ambiente para o
futuro. Este é naturalmente o ponto comum entre os direitos das gerações futuras e o
princípio da precaução. Em determinadas situações, a aplicação do princípio da
precaução é uma condição fundamental para proteger os direitos das gerações futuras.
Uma das principais características deste princípio é que, naqueles casos onde há uma
incerteza científica, a obrigação real de tomar decisões passa dos cientistas para os
políticos, para aqueles cuja tarefa é governar.
Entretanto, não há uma identidade total entre os dois conceitos. O princípio da
precaução foi adotado somente no campo da proteção ambiental. Outras áreas
importantes que são abrangidas pelos direitos das gerações futuras - tais como a ciência, a
arte e a preservação de monumentos históricos - não foram beneficiadas por qualquer
obrigação internacional que imponha a aplicação do princípio da precaução. A
Convenção da UNESCO para a Proteção da Herança Cultural e Natural do Mundo, de 23
de novembro de 1972, proclama o dever de cada Estado de assegurar “...a identificação,
proteção, conservação, apresentação e transmissão às gerações futuras da herança cultural
e natural referidas nos artigos 1 e 2 e situadas em seu território.” 24
Entretanto, o artigo 5 (c) dessa Convenção menciona somente a necessidade de
estudos técnicos e científicos, de pesquisa e desenvolvimento dos meios pelos quais o
Estado poderá neutralizar os perigos que ameaçam sua herança cultural e natural. Não há
24 Art. 4 (1972) 11 ILM 1358.
nenhuma menção quanto à necessidade de se tomarem medidas em uma situação de
incerteza científica. Neste sentido, o regime legal para a proteção do meio ambiente pode
ser considerado como sendo mais avançado que o regime para a proteção da herança
cultural, preservação que pode ser parte crucial dos direitos das gerações futuras.
Um dos alvos no desenvolvimento do Direito Internacional deve ser a expansão
dos campos de aplicação do princípio da precaução ao campo de proteção da herança
cultural. Isto seria no sentido do interesse das gerações futuras ou, posto de maneira mais
simples, da humanidade. Desta forma, seria um avanço primordial a uma interpretação
mais abrangente dos conceitos de direitos humanos, para incluir direitos culturais assim
como o direito à diversidade biológica, apoiada por estruturas institucionais para garantir
sua aplicação.
Referências bibliográficas
VALÉRY, Paul. Regards sur le monde actuel et autres essais. Paris: Gallimard, 1945. SAINT-­‐ EXUPÉRY, A. de. Vol de nuit. Paris: Gallimard,1948. WEISS, E. Brown. Fairness to Future Generations: International Law, Common Patrimony and Intergenerational Equity. New York: Transnational, 1989.
Capítulo 2
O Princípio da Precaução
Prof. Dr. Rüdiger Wolfrum*
1. Introdução
Em novembro de 1990, o secretário-geral das Nações Unidas, em seu relatório
sobre direito do mar, enfatizou a importância do princípio da precaução nas futuras
abordagens para proteção do meio ambiente marinho e a conservação de recursos.
Relatou também que o princípio foi endossado praticamente em todos os recentes fóruns
internacionais.1 De fato, o princípio da precaução tornou-se uma parte intrínseca da
política ambiental internacional, especialmente com sua adoção, em 1992, como
princípio 15 da Declaração do Rio:
Com o fim de proteger o meio ambiente, o princípio da precaução
deverá ser amplamente observado pelos Estados, de acordo com suas
capacidades. Quando houver ameaça de danos graves ou irreversíveis, a
ausência de certeza científica absoluta não será utilizada como razão para
o adiamento de medidas economicamente viáveis para prevenir a
degradação ambiental.
Apesar da redação cautelosa, o princípio foi incluído em muitos tratados
internacionais ambientais, seja explícita ou implicitamente, como a Convenção sobre
Diversidade Biológica, em 19922; a Convenção de Helsinque sobre Proteção da Área do
Mar Báltico, em 19923; e a Convenção sobre a Proteção do Ambiente Marinho do
Nordeste Atlântico.4 Durante muitos anos, o princípio da precaução pertenceu aos
princípios do direito ambiental nacional; pois sua origem está no conceito alemão do
Vorsorgeprinzip, como mencionado no artigo 5 da lei federal sobre o controle de
*
Professor Wolfrum leciona na Universidade de Heidelberg e pesquisador do Instituto Max Planck de
Direito Público Comparado e Direito Internacional. Apresentação realizada no Conselho Europeu.
Conferência sobre direito ambiental: “Novas tecnologias e direito do ambiente marinho”, Lisboa, 18 e 19
de setembro de 1998.
1
UN Doc. A/45/721, 19 de novembro de 1990, p. 20, parágrafo 60.
2
International Environmental Law. Multilateral Treaties, 992: 42.
3
International Environmental Law. Multilateral Treaties, 992: 28.
4
International Environmental Law. Multilateral Treaties, 992:71.
emissões.5 Antes, havia apenas referências explícitas a certos instrumentos internacionais,
já que o conteúdo do princípio estava consagrado em vários documentos de política
internacional.6 Por exemplo, a Declaração de Estocolmo sobre Meio Ambiente Humano
reconheceu a necessidade de salvaguardar os recursos naturais, por meio de um
planejamento cauteloso e gerenciamento, para o benefício das futuras gerações.7 A Carta
Mundial para a Natureza declarou que as atividades “que podem trazer um risco
significativo à natureza” não deveriam continuar quando os “efeitos adversos potenciais
não são totalmente compreendidos”.8 A primeira referência internacional explícita ao
princípio da precaução está contida na Declaração Ministerial da Segunda Conferência
Internacional sobre a Proteção do Mar do Norte, de novembro de 1984:9
(...) a fim de proteger o Mar do Norte de possíveis efeitos danosos
da maioria das substâncias perigosas, uma abordagem de precaução é
necessária, a qual pode exigir ação para controlar os insumos de tais
substâncias mesmo antes que um nexo causal tenha sido estabelecido por
evidência científica clara e absoluta.10
O princípio tem sido aplicado particularmente com respeito à poluição marítima11
e, recentemente, ele se expandiu à pesca. Levando em consideração que o princípio da
5
Gerd Winter (ed.), German Environmental Law, Basic Texts and Introduction, 1994, p. 143-153.
Warwick Gullett, “Environmental Protection and the ‘Precautionary Principle’, A Response to Scientific
Uncertainty in Environmental Management, Environmental and Planning Law Journal, 1997, 52 (55).
7
Princípio 2.
8
Documento da ONU A/RES 37/7, 28 de Outubro de l982.
9
Declaração ministerial pedindo redução da poluição, 25 de novembro de 1987, International Legal
Materials (ILM) 27, 1988, 835 (838).
10
A colocação foi reiterada na Declaração Final da Terceira Conferência Internacional sobre Proteção do
Mar do Norte, 7-8 de março de 1990, Yearbook of International Environmental Law, 1990, n.1, p. 658 a
661. Lê-se:
“Os participantes ...... continuarão a aplicar o princípio da precaução, isso é, agir para evitar impactos de
danos potenciais de substâncias que são persistentes, tóxicas e passíveis de bioacumulação mesmo onde
não haja prova científica para provar um vínculo causal entre emissões e efeito...”. Na realidade, a
Declaração adotada na Primeira Conferência Internacional sobre Proteção do Mar do Norte, de 1984,
referiu-se ao princípio da precaução uma vez que o texto alemão da Declaração falou de
Vorsorgemassnahmen, uma noção que foi traduzida por “medidas preventivas oportunas”; veja David
Freestone e Elen Hey, “Origins and Development of Precautionary Principle” in D. Freestone e E. Hey
(eds.), The Precautionary Principle and International Law, The Challenge of Implementation, 1996, p. 3 a
5.
11
A parte da Declarção de várias conferências internacionais sobre o Mar do Norte. Veja as
Recomendações da Comissão de Partes 89/1 e 89/2, de 22 de junho de 1989, e a Decisão 89/1, de 14 de
junho de 1989, da Comissão de Oslo. Referências adicionais ao princípio da precaução foram inseridas na
Declaração 15/27, de 25 de maio de 1989, do Conselho Administrativo do PNUMA.
6
precaução se desenvolveu a partir do direito ambiental nacional,12 parece ser apropriado
identificar seu significado e suas implicações no direito nacional quando o conteúdo do
princípio precaução é interpretado a partir do direito internacional ambiental. Alguns dos
críticos13 deste princípio, em particular aqueles que defendem que a implementação do
princípio da precaução será prejudicial aos futuros desenvolvimentos econômicos e
tecnológicos, poderão descobrir, a partir da avaliação da experiência nacional com a
aplicação do princípio da precaução, que nenhum dos efeitos negativos esperados
ocorreram de fato.
O princípio da precaução possui várias características substantivas e
procedimentais. Estas devem ser consideradas como mecanismos para implementar as
primeiras. O princípio da precaução não requer medidas reguladoras particulares; seu
interesse está em quando as medidas conservadoras devem ser tomadas. No entanto, ao se
fazer assim, muda-se significativamente a abordagem para as atividades com um impacto
potencialmente negativo sobre o ambiente. Em vez de esperar até que haja prova de um
impacto negativo sobre o meio ambiente, deve-se agir antes que tal impacto se
materialize.14 Isso requer uma reconsideração de como as decisões políticas relativas ao
meio ambiente são tomadas em caso de incerteza científica.
2. O Princípio da Precaução requer medidas preventivas em casos de incerteza
científica.
A segunda sentença do princípio 15 da Declaração do Rio tenta especificar um
significado substantivo do princípio da precaução, embora combine aspectos substantivos
e procedimentais, e evoque a abordagem precaucionária em vez do princípio da
precaução. Do texto, é evidente que a implementação do princípio da precaução significa
tomar medidas antes que os danos ambientais se materializem. Com respeito a isso, a
introdução do princípio da precaução indica uma mudança substantiva da política no
direito ambiental internacional, uma vez que este, até agora, concentrou-se na obrigação
12
Veja, com referência a J. Cameron e J. Abouchar, “The Status of the Precautionary Principle in
International Law” in D. Freestone e E. Hey, (eds). The Precautionary Principle and International Law, The
Challenge of Implementation, 1996, p. 29-38 e ss.
13
Veja, por exemplo, Frank B. Cross, “Paradoxal Perils of the Precautionary Principle”, Washington and
Lee Law Review, 1996, n.53, p. 851 e ss.
14
Freestone e Hey , op. cit., p. 13.
que os Estados têm de não causarem danos ambientais significativos, ou propiciar a
restauração se tais danos ocorrerem.
Observe-se então, que o texto do Princípio 15 contém duas premissas: o dano tem
de ser irreversível e as medidas a serem tomadas devem ser economicamente viáveis.
Além disso, a obrigação de os Estados aplicarem a abordagem precaucionária é apenas
“de acordo com suas capacidades”. Isso quer dizer que as obrigações dispostas são de
uma natureza relativa, uma vez que elas dependem das capacidades econômicas e
financeiras do Estado em questão. Essas qualificações não são necessariamente partes da
definição do Princípio da Precaução contido em outros instrumentos internacionais.15
Na medida em que a substância do princípio da precaução está em questão, o
artigo 2, do parágrafo 2 (a) da Convenção para a Proteção do Ambiente Marítimo do
Nordeste Atlântico é mais avançado. De acordo com ele:
As partes contratantes aplicarão:
(a) o princípio da precaução, em virtude de quais medidas
preventivas devem ser tomadas quando há bases razoáveis para
considerar que substâncias ou energias introduzidas, direta ou
indiretamente, no ambiente marinho, possam trazer perigos à
saúde humana, prejudicar os recursos vivos e ecossistemas
marinhos, causar danos ou interferir em outros usos legítimos do
mar, mesmo quando não haja prova conclusiva de relação causal
entre os insumos e os efeitos
Aqui, novamente, o texto normativo deixa muito claro que a implementação do
princípio resultará em tomar medidas preventivas ou em levar a cabo atividades que
possam ser consideradas perigosas. A redação desta medida indica que a tomada das
medidas preventivas é obrigatória, enquanto o Princípio 15 fala somente que a
abordagem precaucionária deve ser amplamente aplicada. Além disso, no artigo 2,
parágrafo 2 da Convenção para Proteção do Ambiente Marinho do Nordeste Atlântico, as
medidas preventivas devem ser tomadas se houver possibilidades de dano aos direitos ou
interesses do homem, ou ao ambiente enquanto tal (ecossistema), resultado de um
15
Entretanto Alexandre Kiss, “Os direitos e os interesses das futuras gerações e o princípio da precaução”,
neste livro, considera que a formulação do Princípio 15 reflete o princípio da precaução na sua abordagem
mais amplamente aceita.
impacto ao ambiente marinho, considerando que de acordo com o Princípio 15, o dano
tem que ser irreversível.
O Artigo 2, parágrafo 5 (a) da Convenção sobre a Proteção e Uso de Cursos
d’Água Transfronteiriços e Lagos Internacionais, 1992, fornece uma outra definição do
princípio de precaução. De acordo com ele, as partes deverão ser guiadas, entre outras
coisas, pelo princípio da precaução:
(...) em virtude do qual, a ação de evitar o potencial impacto
transfronteiriço resultante da liberação de substâncias perigosas não deve
ser postergada sob a alegação de que a pesquisa científica não provou
totalmente um nexo causal entre essas substâncias, de um lado, e o
potencial impacto transfronteiriço, de outro (...)
Todas as três definições mencionadas exigem que certas atividades sejam
controladas, ou não sejam realizadas, ainda que não exista evidência científica nítida de
que tais atividades resultariam em danos ao meio ambiente. Em relação a isso, o princípio
da precaução assemelha-se ao princípio da prevenção, o qual é bem estabelecido no
direito internacional ambiental. No entanto, os dois princípios diferem significativamente,
e isso constitui a natureza inovadora do princípio da precaução.16 O princípio da
precaução impõe uma obrigação para os Estados, para que estes previnam danos
ambientais conhecidos ou cientificamente previsíveis fora de seus territórios.17 Esta
obrigação está contida em um grande número de tratados. Em comparação a isso, o
princípio da precaução reflete o reconhecimento de que as atividades humanas tendo um
impacto sobre o ambiente, muitas vezes têm conseqüências negativas que não podem ser
completamente previsíveis ou verificáveis antes da ação. Em sua aplicação, o princípio da
precaução requer que uma ação não deva ser executada se ela coloca um risco
desconhecido de dano. Procedimentalmente, o princípio da precaução impõe, sobre
aqueles que desejam empreender uma ação, o ônus da prova de que ela não prejudicará o
ambiente.
16
Diferente de D.Freestone e Z. Makuch, “The New International Environmental Law of Fisheries: The
1995 United Nations Straddling Stocks Agreement”, Yearbook of International Environmental Law, 1996,
v. 7 p. 3-13.
17
Por exemplo, artigo 194 da Convenção das Nações Unidas sobre Direito do Mar (UNCLOS).
Também a Resolução da Assembléia Geral 44/225, de 22 de dezembro de 1989,
sobre pesca de arrasto em larga escala em mar aberto, e seu impacto sobre os recursos
marinhos vivos, pode ser considerada uma aplicação do princípio da precaução.18 A
Resolução solicita a todos aqueles envolvidos na pesca de arrasto em larga escala em mar
aberto a cooperarem para o aumento da coleta e compartilhamento de dados científicos
estatisticamente relevantes. Ela recomenda medidas para eliminar a prática de atos sem
fundamentos científicos. A Resolução reflete o princípio da precaução, uma vez que ela
restringe uma atividade ainda que sem dados científicos concretos sobre o impacto
ambiental da atividade em questão. Além disso, ela inverte o ônus da prova, com respeito
ao impacto desta atividade sobre outras que procuram dar continuidade à pesca.
Finalmente, ela requer a intensificação das atividades de pesquisa a serem empreendidas
e a respectiva cooperação entre os Estados interessados. Este último aspecto representa
uma conseqüência lógica que flui do princípio da precaução.
Da mesma forma, a Convenção sobre Conservação e Gestão dos Recursos de
Bering, 1994,19 é baseada no princípio da precaução. Esta Convenção determina que os
Estados-parte se encontrarão anualmente para decidir níveis de pesca permissíveis e
estabelecer quotas. No entanto, a pesca não será permitida, a menos que a biomassa de
pesca na bacia das ilhas Aleutas seja determinada para exceder 1,67 milhões de
toneladas.* Os Estados Unidos e a Federação Russa parecem ter concordado que, se este
limite não for alcançado, eles também suspenderão a pesca em suas próprias zonas
econômicas exclusivas.20
A interpretação do princípio da precaução, como uma exigência de ação antes que
a possibilidade de danos ambientais possa ser cientificamente estabelecida, levanta pelo
menos duas questões, a saber, qual situação ou conjunto de fatos desencadeia o uso do
princípio da precaução, e se a restrição de uma atividade, com base no princípio da
precaução, garante que haverá posterior revisão de tal decisão.
18
A. Tahindro. “Conservation and Management of Transboundary Fish Stocks; Comments in the Light of
the Adoption of the 1995 Agreement for the Conservation and Management of Straddling Fish Stocks and
Highly Migratory Fish Stocks”, ODILA, 1997, n. 28, p. 14; D. Freestone e Z. Makuch, op. cit., p. 17.
19
Texto no Yearbook of International Environmental Law, 1994, 5, p. 821; para análise veja W.V. Dunlap,
International Journal of Marine & Coastal Law, 1995, n. 10, p. 114; D. Freestone e Z. Makuch, op. cit.,
p.18.
*
O autor utiliza a expressão metric tons. [nota dos organizadores]
20
D. Freestone e Z. Makuch, op. cit., p. 18 com as respectivas referências.
Qualquer atividade humana significante pode ter impacto sobre o meio ambiente.
Contudo, deve haver algum mecanismo desencadeador para restringir ou até mesmo
proibir uma dada atividade com base no princípio da precaução, caso contrário ele
sufocaria qualquer nova atividade. Sugeriu-se que o princípio da precaução deveria ser
aplicado apenas quando houver alguma prova de que a atividade considerada ameace
causar danos ao meio ambiente e se tal dano for irreversível. Outros sustentaram que
quanto mais sério for o dano, é provável que mais cedo o princípio da precaução tenha
que ser invocado. O princípio 15 segue a primeira abordagem, e a Declaração sobre o
Mar do Norte segue a última, enquanto o artigo 2 da Convenção do Nordeste Atlântico
aplica mais amplamente o princípio da precaução. No entanto, para as três interpretações
mencionadas deve haver pelo menos uma descoberta prima facie que uma dada atividade
possa resultar em dano considerável ao ambiente marinho. Apesar disso, ainda
permanece alguma incerteza de quando o princípio da precaução deve ser aplicado, de
forma que aquele que visa empreender uma determinada atividade tem que provar seu
impacto, ao contrário da visão na qual aquele que almeja restringir ou proibir aquela
atividade tem que provar que ela resultará em dano ambiental.
Se uma atividade foi proibida ou restrita com base no princípio da precaução, a
incerteza sob a qual esta decisão foi tomada deve ser reanalisada em intervalos regulares.
As novas descobertas, assim como os novos desenvolvimentos, devem ser levados em
consideração.
O Acordo das Nações Unidas sobre a Conservação e Ordenamento de Populações
de Peixes Tranzonais* e de Populações de Peixes Altamente Migratórios (artigo 6)21
fornece um procedimento que responde às duas perguntas levantadas. O Artigo 6 desta
Convenção exige que os Estados-parte apliquem a abordagem precaucionária para
conservação, gestão e exploração das populações de peixe tranzonais e de peixes
altamente migratórios, com o objetivo de preservar o ambiente marinho e proteger os
recursos marinhos vivos. Assim como em outros instrumentos internacionais já
mencionados, o Artigo 6 da Convenção enfatiza que a ausência de informação científica
*
Trata-se de cardumes de peixes que se deslocam entre as zonas de exploração exclusiva dos Estados e as
águas internacionais [nota dos organizadores].
21
Uma avaliação das respectivas regras foi dada por Tahindro (nota 19), 1 (p. 12 e ss.); D. Freestone e Z.
Makuch, op. cit., p. 26 et ss.
adequada não deverá ser usada como razão para adiar ou deixar de tomar medidas de
conservação e gerenciamento. Contudo, a Convenção não se satisfaz apenas com o
estabelecimento deste princípio abstrato. O Artigo 6 da convenção exige que os Estadosparte tomem medidas específicas para implementar a abordagem precaucionária. Os
Estados estão obrigados a melhorar o processo decisório sobre a pesca, especialmente
compartilhando as melhores informações científicas disponíveis e implementando
técnicas para lidar com os riscos e incertezas. Além disso, os Estados-partes usarão os
guias de boa conduta para aplicação dos pontos de referência*, estabelecidos dentro de
uma visão precaucionária para os padrões de conservação e gestão destes cardumes de
peixes tranzonais e altamente migratórios, assim como a determinação de pontos de
referência de determinados cardumes. Essas diretrizes estão especificadas no Anexo II do
Acordo e incluem uma descrição detalhada das ações preventivas e das modalidades de
aplicação de vários pontos de referência dentro do contexto das estratégias
precaucionárias de gestão de pesca. O Artigo 6, parágrafo 3 (d) da Convenção, em
conjunto com os guias de boas condutas, exige o estabelecimento de pontos de referência
sobre a conservação ou limitação e gestão ou escolha dos cardumes. Tais pontos de
referência precaucionários são específicos para cada população de peixes. Exige-se que
os Estados-parte tomem medidas para evitar ultrapassar os pontos de referência para
determinados cardumes que são objeto da Convenção e monitorem regularmente as
populações em estágio crítico, objeto ou não do Tratado, associadas ou dependentes das
espécies de que a Convenção cuida, a fim de rever o status desses cardumes ou espécies,
assim como a eficiência das medidas de conservação e gestão adotadas. Enquanto os
pontos de referência sobre limites podem ser abordados, eles não devem ser excedidos.
Se forem excedidos, os Estados devem tomar ação imediata, de acordo com as diretrizes.
Os Estados-parte também são instruídos a adotar medidas de conservação e de gestão
baseadas na abordagem precaucionária para atividades de pesca novas ou exploratórias
até que haja dados científicos suficientes para avaliar o impacto da pesca na
sustentabilidade a longo prazo dos estoques. Finalmente, onde um fenômeno natural ou
atividade de pesca tem um impacto adverso significativo sobre o status do cardume
*
Um ponto de referência de precaução é um valor estimado, calculado por meio de um procedimento
científico acordado, correspondente ao estado do recurso e da pesca e que pode ser usado como guia para o
ordenamento da pesca. [nota dos organizadores].
relacionado, solicita-se aos Estados-parte a adoção de medidas de conservação e gestão
temporárias, em base emergencial, com o objetivo de assegurar que as atividades
pesqueiras não intensifiquem tal efeito adverso. Tais medidas devem baseadas na melhor
evidência disponível.
3. O Princípio da Precaução e a Obrigação de Usar a Melhor Tecnologia
Disponível
Como pode ser notado a partir da aplicação do princípio da precaução no direito
nacional, exige-se o uso da melhor tecnologia disponível e das melhores práticas
disponíveis. Assim, o princípio da precaução constitui um incentivo para o
desenvolvimento tecnológico. Por exemplo, sob o Princípio da Precaução há a obrigação
de melhorar a tecnologia da pesca, para reduzir desperdícios ou reduzir as substâncias
prejudiciais ao meio ambiente marinho durante a rota usual de um navio. Embora os
acordos internacionais exijam que os Estados usem a melhor tecnologia disponível, a
conexão com o princípio da precaução não está sempre evidente. Este conceito tem sido
utilizado nos tratados sobre a poluição marítima e no regime de poluição aérea
transfronteiriça.22
Exemplos pertinentes de aplicação do princípio da precaução, para o primeiro
caso, que destaca a obrigação de usar a melhor tecnologia disponível, são a Convenção
sobre a Proteção do Meio Ambiente Marinho da Área do Mar Báltico, de 1992,23 e a
Convenção para a Proteção do Ambiente Marinho do Nordeste Atlântico, do mesmo
ano.24 De acordo com o Apêndice 1 deste último, o conceito é definido como: “o último
estágio do desenvolvimento (estado da arte) de processos, de recursos ou de métodos de
operação que indicam adequação de uma medida particular para limitar depósitos,
emissões e lixo. Ao determinar se um conjunto de processos, recursos e métodos de
operação constituem a melhor tecnologia disponível em casos gerais ou individuais, será
dada consideração especial para:
22
Artigo 6 da Convenção sobre Poluição Atmosférica de Longo Alcance, 1979; Artigo 2 parágrafo 2,
parágrafo 3 do Protocolo de Nox, 1988: artigo 2, parágrafo 3 do Protocolo de VOC, 1991 e, ainda que de
certa forma em redação diferente, no artigo 2, parágrafo 4 do Protocolo do Ácido Sulfúrico, 1994. Estes
não contêm a definição da noção de melhor tecnologia disponível, mas se referem aos anexos dispondo
diretrizes para concretização da noção.
23
Nota 3.
24
Nota 4.
a) processos comparáveis, recursos ou métodos de operação que foram recentemente
bem sucedidos;
b) avanços tecnológicos e mudanças no conhecimento e entendimento científico;
c) a viabilidade econômica de tais técnicas;
d) limites de tempo para instalação tanto de fábricas novas como daquelas
existentes;
e) a natureza e volume das descargas e emissões em questão” (tradução não oficial).
A noção da melhor tecnologia disponível possui diferentes facetas. Ela limita a
margem de liberdade dos Estados-parte, com respeito à implementação das suas
obrigações, sem aboli-las. Particularmente, a referência da viabilidade econômica contida
na Convenção do Nordeste Atlântico, de 1992, e a Convenção sobre Proteção do
Ambiente Marinho do Mar Báltico, de 1992, permite que os Estados-parte equilibrem
suas obrigações ambientais com as prerrogativas econômicas. Se a comunidade de
Estados desejar melhorar a tecnologia utilizada, existe a possibilidade de transferir
tecnologias apropriadas de conservação ou prevenção a Estados que não teriam acesso a
elas por questões econômicas.
A noção da melhor tecnologia disponível requer também que se tomem ações para a
proteção ambiental, com o uso dinâmico da tecnologia protetora moderna. No entanto, o
padrão de proteção é indicado pelo desenvolvimento técnico, ao invés das necessidades
ambientais, que podem ser melhor atingidos pela da proibição de certas atividades cujos
efeitos negativos, do ponto de vista do meio ambiente, não podem ser tecnicamente
mitigados.25
Da mesma forma, compreendido no âmbito da obrigação do uso da melhor prática ou
tecnologia disponível, é a obrigação dos Estados de substituirem atividades ou
substâncias prejudiciais por atividades ou substâncias menos poluentes.26 De acordo com
25
Um Crítico a esse respeito é Jonas Ebbesson, “Compatibility of International and National,
Environmental Law, 1996”, p. 126.
26
Agenda 21, seção 19.44.
a Agenda 21, este conceito constitui um dos vários elementos de boa prática ambiental,
um conceito mencionado em vários tratados internacionais.27
Ocasionalmente, a tarefa de definir qual é a melhor prática ou tecnologia a ser
utilizada não é deixada para cada Estado individualmente, mas para os Estados-parte de
um determinado acordo ambiental internacional, instituições particulares estabelecidas
sobre um determinado acordo internacional ambiental ou um grupo de especialistas.
Nesses casos, o conceito de melhor tecnologia e práticas disponíveis tem a intenção de
fornecer adaptações flexíveis de obrigações internacionais ambientais aos novos
desenvolvimentos, tecnologias ou padrões. Isso serve para tornar os respectivos regimes
mais efetivos. A Convenção para a Proteção do Nordeste Atlântico é um exemplo desta
abordagem, na medida em que se prevêem emendas para os anexos técnicos.
4. O Princípio da Precaução e o Princípio do Desenvolvimento Sustentável
Há uma ligação nítida entre o princípio da precaução e o princípio de que
qualquer desenvolvimento que tem um impacto sobre o meio ambiente deve ser
sustentável.28 A noção de desenvolvimento sustentável exige a perseguição de padrões de
crescimento que assegurem as necessidades da geração atual e não comprometam a
habilidade das gerações futuras em assegurar suas necessidades.29 O princípio da
precaução
reflete
a
tendência
crescente
no
direito
internacional
ambiental,
particularmente no tocante ao direito ambiental marítimo, de que o meio ambiente é
melhor protegido por meio da prevenção do que pela obrigatoriedade de recuperação ou
por meio medidas paliativas. Prevenir o dano ambiental ou a degradação, em si mesmo, é
um elemento decisivo em qualquer regime construído sobre o princípio do
desenvolvimento sustentável, uma vez que a sustentabilidade pressupõe o afastamento de
danos irreversíveis ou degradação.
Contudo, o princípio da precaução também desempenha um papel na definição de
quando um desenvolvimento é sustentável. Esta visão pode ser encontrada no Projeto das
Diretrizes para a Sustentabilidade Ecológica de Usos para Consumo e Não Consumo de
27
Convenção sobre o Nordeste Atlântico de 1992, Apêndice 1; Convenção sobre a Proteção do Ambiente
Marinho da Área do Mar Báltico, de 1992, Anexo II, regulação 2.
28
Veja em particular Kiss, (neste livro), p. 27 e ss., e também sobre o princípio de desenvolvimento
sustentável.
29
D. Dzidzornou, “Four Principles in Marine Environment Protection: A Comparative Analysis”, ODILA
29 (1991), p. 91-95; M. Young, “Inter-generational equity, the precautionary principle and ecologically
sustainable development”, Nature and Resources, 1995, n. 31, p. 16 e ss.
Espécies Selvagens, um projeto proposto durante a Assembléia Geral de 1994 da União
Internacional para Conservação da Natureza em Buenos Aires. De acordo com essas
diretrizes preliminares, é provável que o uso de espécies selvagens seja sustentável se
certas pré-condições forem respeitadas ou certos procedimentos forem adotados, como o
princípio da precaução. Ao aplicar o princípio da precaução sobre o conceito de uso
sustentável, estas Diretrizes preliminares determinam que “o princípio da precaução
requer a abordagem de questões de sustentabilidade do uso com o compromisso de agir
de forma que prejudique o menos possível a viabilidade das espécies ou a integridade do
ecossistema afetado.” Isso pode resultar em decisões de não usar as espécies ou o
ecossistema. A este propósito, o princípio da precaução é especialmente importante
quando se estimam os níveis de uso sustentáveis. A utilização dos pontos de referência
para a gestão sustentável como estabelecidos na Convenção sobre Conservação e
Ordenamento de Populações de Peixes Tranzonais e de Populações de Peixes Altamente
Migratórios representa uma forma de implementação desta abordagem.
5. Conclusão
O princípio da precaução, ou abordagem da precaução, no direito ambiental
internacional, reflete a necessidade de tomar decisões relacionadas ao meio ambiente ante
à incerteza científica sobre o potencial dano futuro de uma determinada atividade.
Requer, assim, que as respectivas decisões sejam tomadas com cautela e que as contraações ou a interrupção das atividades potencialmente prejudiciais não sejam adiadas
somente pela razão de não haver prova científica de que tal dano ambiental possível ou
degradação se materialize. Não há um consenso sobre todas as conseqüências da
continuidade da implementação deste princípio, exceto sobre a inversão do ônus da
prova, ou seja, que a entidade ou Estado interessado em empreender ou continuar uma
determinada atividade deve provar que ela não resultará em prejuízos, ao invés de se ter
que provar que haverá danos ambientais.
Levantou-se a questão se o princípio da precaução tornou-se parte do direito
internacional costumeiro.30 No entanto, deve-se dizer que a formulação geral, como
30
P. McIntyre e T. Mosedaele, “The Precautionary Principle as a Norm of Customary International Law”,
Journal of Environmental Law, 1997, n. 9, p. 221-235.
contida no Princípio 15 da Declaração do Rio, e que parece ser amplamente aceita,
recebeu mais refinamentos no direito dos tratados. As implicações práticas desses
refinamentos, como na Convenção sobre a Conservação e Ordenamento de Populações de
Peixes Tranzonais e de Populações de Peixes Altamente Migratórios são mais
significativas do que aquelas que fluem do princípio da precaução em sua forma genérica.
A incerteza científica é inerente a todas as atividades ambientais, e o direito
internacional ambiental tem que levar isso em consideração. Conseqüentemente, os
respectivos acordos internacionais tiveram que planejar instrumentos e mecanismos de
implementação que tivessem flexibilidade suficiente, a fim de permitir às partes a se
adaptarem a mudanças em nossas habilidades científicas de compreensão e
tecnológicas.31
Tem-se discutido que o princípio da precaução não é um conceito totalmente
novo. O princípio da prevenção já trouxe a necessidade de se prever uma possível
ameaça. Quanto maior for o dano possível, mais rigorosas serão as exigências de alerta e
de esforços precaucionários. Da mesma forma, ainda existem questionamentos sobre as
exigências de se considerar ou se avaliar um risco como significativo. um Estado deve ter
cuidado ou diligência convenientes em sua indagação sobre se é provável ou não que o
dano seja causado.
No entanto, as conseqüências advindas da aplicação do princípio da precaução são
significativas. Isso pode ser constatado ao se indicar o impacto que o princípio da
precaução tem sobre a conservação e gestão da pesca em alto mar, comparando-se as
provisões relevantes da convenção do direito do mar. De acordo com o artigo 116 da
UNCLOS, todos os Estados têm o direito de que seus filhos se engajem na pesca em alto
mar, desde que respeitem as obrigações dos tratados, incluindo aqueles da Parte VII,
seção 2 da UNCLOS, os direitos, assim como os interesses de Estados costeiros.32 Os
artigos 117 e 118 impõem a todos os Estados a obrigação individual e conjunta de tomar
medidas necessárias para a conservação de recursos marítimos em alto mar e de
cooperararem entre si para este objetivo. Mais especificações sobre a regra geral estão
contidas no artigo 119 da UNCLOS. De acordo com ele, os Estados têm a obrigação de
31
Edith Brown Weiss, “International Environmental Law: Contemporary Issues and the Emergence of a
New World Order”, Georgetown Law Journal, 1992/193, n. 81, p. 675 -688.
32
Veja, por exemplo, artigo 63, parágrafo 2 e 64 a 67 da UNCLOS.
“...preservar ou restabelecer as populações das espécies capturadas a níveis que possam
produzir o máximo rendimento sustentável...”, estas medidas devem ser baseadas na
melhor prova científica disponível e devem acomodar fatores específicos ambientais e
econômicos. Um dos fatores a ser levado em consideração é o efeito sobre espécies
relacionadas ou dependentes de espécies-alvo, que devem ser conservadas ou recuperadas
acima de níveis nos quais a reprodução possa estar seriamente ameaçada. Esse efeito tem
uma conotação ambiental, uma vez que essas espécies não são as espécies-alvo e podem
até mesmo não ser objeto de pesca.33 Entretanto, as regras, de forma geral,34 somente
obrigam os Estados a tomarem medidas, quando fundadas em descobertas científicas, se a
pesca resulta ou ameaça resultar em um declínio das populações de peixes abaixo dos
níveis máximos35 de produção sustentável. Isso quer dizer, na prática, que os Estados têm
apenas que intervir em caso de uma crise e somente se tal crise for bem definida pelas
descobertas científicas. A aplicação da abordagem da precaução, por sua vez, exige que
os Estados tomem ações antes de tais crises, isso é, onde há uma prova prima facie de
que tal crise possa ocorrer. Aqueles em favor de continuar a atividade em questão têm
agora que provar cientificamente que tal crise não existe e que a atividade em questão
não leva à crise.
A implementação do princípio da precaução requer a adoção e estabelecimento de
determinados procedimentos que assegurem institucionalmente que as descobertas
científicas e os novos desenvolvimentos tecnológicos estejam sendo canalizados para o
respectivo processo de tomada de decisão. A Convenção sobre Populações de Peixes
Tranzonais oferece tal procedimento. Um outro procedimento, neste âmbito, pode ser
encontrado na Convenção-Quadro sobre Mudanças Climáticas. Esta mantém, de maneira
oportuna, um corpo técnico permanente para suprir informações científicas e
tecnológicas.36 Este órgão fornece avaliações científicas sobre as mudanças climáticas e
seus efeitos, e o impacto da implementação das medidas da Convenção. Também
33
D. Freestone e Z. Makuch, op. cit., p. 9.
Para uma análise mais detalhada veja, especificamente, Ellen Hey.
35
Tem sido argumentado que o artigo 119 da UNCLOS devido a sua referência a fatores econômicos e
ambientais se refere ao resultado sustentável ótimo ao invés do resultado máximo, R. Wolfrum,
Internationalisierung Staatsfreier Räume, 1984, p. 662; D. Freestone e Z. Makuch, op. cit., p. 9.
36
Artigo 9.
34
identifica novas tecnologias relevantes, dá assistência para a capacitação para pesquisa
científica e avaliação e responde aos questionamentos científicos das Partes.
Referências bibliográficas
CAMERON, J. e ABOUCHAR, J. “The Status of the Precautionary Principle in International Law” in D. Freestone e E. Hey, (eds). The Precautionary Principle and International Law, The Challenge of Implementation, 1996. CROSS, Frank B. “Paradoxal Perils of the Precautionary Principle”, Washington and Lee Law Review, 1996, n.53. DUNLAP, W. V. “Bearing Sea” in International Journal of Marine & Coastal Law, 1995, n. 10. DZIDZORNOU, D. “Four Principles in Marine Environment Protection: A Comparative Analysis”, ODILA 1991, n. 29. EBBESSON, Jonas. “Compatibility of International and National, Environmental Law, 1996” FREESTONE, D. e HEY, E. “Origins and Development of Precautionary Principle” in D. Freestone e E. Hey (eds.). The Precautionary Principle and International Law, The Challenge of Implementation, 1996. FREESTONE, D. e MAKUCH, Z. “The New International Environmental Law of Fisheries: The 1995 United Nations Straddling Stocks Agreement”, Yearbook of International Environmental Law, 1996, v. 7. GULLETT, Warwick. “Environmental Protection and the ‘Precautionary Principle’, A Response to Scientific Uncertainty in Environmental Management, Environmental and Planning Law Journal, 1997, n. 52. KISS, A. “Os direitos e os interesses das futuras gerações e o princípio da precaução” in VARELLA, M. D. e PLATIAU, A. Princípio de precaução. Belo Horizonte: Del Rey, 2003. MCINTYRE, P. e MOSEDAELE, T. “The Precautionary Principle as a Norm of Customary International Law”, Journal of Environmental Law, 1997, n. 9. TAHINDRO, A. “Conservation and Management of Transboundary Fish Stocks; Comments in the Light of the Adoption of the 1995 Agreement for the Conservation and Management of Straddling Fish Stocks and Highly Migratory Fish Stocks”, ODILA, 1997, n. 28 WEISS, E. B. “International Environmental Law: Contemporary Issues and the Emergence of a New World Order”, Georgetown Law Journal, 1992/193, n. 81. WINTER, Gerd (ed.). German Environmental Law, Basic Texts and Introduction, 1994 YOUNG, M. “Inter-­‐generational equity, the precautionary principle and ecologically sustainable development”, Nature and Resources, 1995, n. 31. Capítulo 3
O princípio da precaução
Philippe Sands*
Enquanto o princípio da prevenção pode ser encontrado em tratados internacionais
ambientais e em outros atos internacionais, pelo menos desde os anos 1930, o princípio
da precaução começou a constar nos instrumentos legais internacionais, em meados dos
anos 1980. De qualquer forma, o princípio da precaução pode ser encontrado como
princípio em certos ordenamentos jurídicos nacionais, mais notadamente no da Alemanha
Ocidental.37 O princípio da precaução tem como objetivo orientar o desenvolvimento e a
aplicação do direito internacional ambiental, quando existe incerteza científica. Continua
gerando desentendimentos quanto a seu significado e efeitos, o que se reflete na opinião
dos Estados e na prática forense internacional. Alguns consideram que serve como base
para uma ação legal internacional inicial, nas questões ameaçadoras ao meio ambiente,
tais como a diminuição da camada de ozônio e as mudanças climáticas.38 Por outro lado,
seus oponentes criticam a capacidade que o princípio tem para regulamentar e limitar a
atividade humana. O núcleo do princípio, que ainda está evoluindo, é refletido no
princípio 15 da Declaração do Rio, que estabelece que:
Com o fim de proteger o meio ambiente, o princípio da precaução
deverá ser amplamente observado pelos Estados, de acordo com suas
capacidades. Quando houver ameaça de danos graves ou irreversíveis, a
ausência de certeza científica absoluta não será utilizada como razão para
*
Professor Sands é professor e diretor do University College de Londres, advogado perante a Corte
Internacional de Justiça. Retirado do capítulo 6 do livro ainda a ser publicado: Philippe Sands. Principles of
International Environmental Law. 2ª edição. Cambridge University Press.
37
K. von Moltke. “The Vorsorgeprinzip in West German Environmental Policy”. In Twelfth Report, Royal
Commission on Environmental Pollution, 1988, p. 57.
38
Ver, por exemplo, o apoio dado ao princípio da precaução pelos Estados insulares, pertencentes à
Aliança dos Pequenos Estados Insulares (AOSIS) e que estão ao nível do mar, que é colocado da seguinte
maneira: “Para nós, o princípio da precaução é muito mais que uma semântica ou um exercício teórico. Ele
é um imperativo moral e ecológico. Nós acreditamos que o mundo agora entende nossas preocupações. Nós
não podemos nos dar o luxo de esperar por provas conclusivas, conforme alguns sugeriram no passado. A
prova é nosso temor, irá matar-nos. Embaixador Robert van Lierop, Representante Permanente de Vanuatu
nas Nações Unidas e Co-presidente do Grupo de Trabalho 1 do Comitê de Negociação Internacional para
Estruturação da Convenção em Mudanças Climáticas, em declaração na sessão plenária desse mesmo
órgão, em 5 de fevereiro de 2001, p. 3.
o adiamento de medidas economicamente viáveis para prevenir a
degradação ambiental.39
O princípio da precaução (ou o enfoque de precaução, como os Estados Unidos e alguns outros preferem) tem sido adotado em muitos tratados internacionais ambientais, desde 1989. Embora sua formulação exata não seja idêntica em cada instrumento, a linguagem do Princípio 15 da Declaração do Rio recebe amplo suporte. O princípio encontra sua origem nos acordos ambientais mais tradicionais que solicitam aos participantes e às instituições por eles criadas agir e adotar decisões baseadas em “pesquisas cientificas” ou métodos40, ou “à luz dos conhecimentos disponíveis no momento”.41 Estes modelos sugerem que a ação deverá ser tomada somente quando existirem evidências científicas da ocorrência de danos ambientais significativos e que, na ausência de tais evidências, nenhuma ação é necessária42. Exemplos desse enfoque tradicional incluem a Convenção de Paris de 1974, que permite às partes adotarem medidas adicionais “se a evidência científica estabelecer que um risco sério pode ser criado por essa substância em questões marítimas e se for necessária uma ação urgente”; isto exige que a parte que deseja adotar as medidas “prove” o motivo para sua ação, baseando-­‐se na existência de evidência científica suficiente, o que pode ser difícil de se obter. A Convenção de Intervenção de 1969 foi um dos primeiros tratados internacionais
a reconhecer as limitações do enfoque tradicional, no que diz respeito às conseqüências
ambientais advindas de uma omissão do agir. Permite que medidas proporcionais sejam
tomadas para impedir, mitigar ou eliminar ameaça grave e iminente de poluição de óleo,
em regiões litorâneas, considerando “a extensão e a probabilidade de danos iminentes se
aquelas medidas não forem tomadas”.43 Em meados dos anos 1980, o desenvolvimento
de ações para a diminuição da camada de ozônio refletiu um crescente apoio à ação de
precaução. O primeiro tratado que faz referência ao termo é a Convenção de Viena de
39
Ver o plano de implementação do WSSD, parágrafos 22 e 103;].
Convenção Internacional da Pesca de Baleia, Art. V (2): Convenção sobre Focas da Antártica, Anexo
parágrafo 7 (b); Patrimônio Mundial, Preâmbulo; Convenção de Londres, Art. XV (2); Convenção de
Bonn, 1972, Art. III (2) e XI (3) (ação com base na “evidência confiável, incluindo a melhor evidência
científica disponível”).
41
Convenção sobre Radiação de 1960, artigo 3 (1)
42
Art. 4 (4)
43
Art. I e V (3) (a)
40
1985, que demonstrou o reconhecimento das partes às “medidas de precaução” tomadas
em nível nacional e internacional.8 Em 1987, os participantes do Protocolo de Montreal
mencionaram “as medidas de precaução” para controlar a emissão de determinados CFCs
que tinham sido aceitos em níveis nacionais e regionais (Comunidade Européia) e
declararam sua determinação em “proteger a camada de ozônio, tomando medidas de
precaução para controlar eqüitativamente todas as emissões globais de substâncias que
exaurem a mesma”.9
O enfoque da precaução foi baseado em medidas para proteger outros ambientes,
especialmente o ambiente marinho. O preâmbulo da Declaração Ministerial da
Conferência Internacional para a Proteção do Mar do Norte (1984) refletiu a
conscientização de que os Estados “não devem esperar por provas de efeitos prejudiciais
antes de entrarem em ação”, uma vez que os danos ao ambiente marinho podem ser
irreversíveis ou apenas remediáveis, após longos períodos de tempo, e as medidas
corretivas têm alto custo.10 Isto introduz a idéia de que a ação de precaução pode ser
justificada por questões econômicas.
A Declaração Ministerial da Segunda Conferência do Mar do Norte (1987) aceitou que “a fim de proteger o Mar do Norte de possíveis danos das substâncias mais perigosas, um enfoque de precaução se faz necessário”.11 Na Terceira Conferência Ministerial do Mar do Norte (1990), os ministros garantiram a continuidade da aplicação do princípio da precaução.12 A Declaração Ministerial de Bergen sobre Desenvolvimento Sustentável da Região da Comunidade Européia (1990) foi o primeiro instrumento internacional que considerou o princípio como de aplicação geral, ligado ao desenvolvimento sustentável. Estabelece que: A fim de obter o desenvolvimento sustentável, as políticas devem ser baseadas no princípio da precaução. Medidas ambientais devem antecipar, impedir e atacar as causas de degradação ambiental. Onde existirem ameaças de 8
Preâmbulo.
Preâmbulo.
10
Bremen, 1º de novembro de 1984.
11
Londres, 25 de novembro de 1987; também recomendação da PARCOM 89/1, de 1989 (apoiando a
“ação do princípio da precaução”).
12
Haia, 8 de março de 1990.
9
danos sérios ou irreversíveis, a falta de total certeza científica não deve ser usada como razão para retardar a tomada de medidas que visam impedir a degradação ambiental.13 O elemento da antecipação é fundamental nesse texto, refletindo a necessidade de
medidas ambientais eficazes, baseadas em ações que tenham um enfoque a longo prazo e
que possam predizer mudanças, na base de nosso conhecimento científico. Além disso,
para que o princípio da precaução seja aplicado, a ameaça ao meio ambiente deve ser
“séria” ou “irreversível”, mesmo que ainda não haja nenhuma limitação com base na
viabilidade econômica das medidas, que não devem ser adiadas. Enquanto as emendas ao
Protocolo de Montreal eram preparadas, o Conselho Administrativo do Programa das
Nações Unidas para o Meio Ambiente (PNUMA) reconheceu que “esperar por provas
científicas relativas ao impacto dos poluentes liberados no mar poderia resultar em danos
irreversíveis ao ambiente marinho e em sofrimento ao seres humanos”, e recomendou que
todos os governos adotassem o “princípio da ação de precaução” como base de suas
políticas relacionadas com a prevenção e a eliminação de poluição marinha.14
Desde então, vários tratados ambientais, incluindo alguns que são de aplicação global em matérias ambientais de interesse amplo e aplicáveis a quase todas as atividades humanas, adotaram o princípio da precaução ou sua razão lógica básica. Entre os primeiros estava a Convenção de Bamako de 1991, que solicita esforços de suas partes para adotar e executar o preventivo enfoque da precaução para poluição, que inclui inter alia impedir a liberação, no meio ambiente, de substâncias que possam causar dano aos seres humanos ou ao meio ambiente, sem esperar provas científicas a respeito de tal dano. As partes devem cooperar umas com as outras ao tomarem medidas apropriadas para implementar o princípio da precaução a fim de prevenir a poluição, por meio da aplicação de métodos de produção limpos15 13
Bergen, 16 de maio de 1990, parágrafo 7; I.P.E. (I/B/16-05-90).
Decisão do Conselho Administrativo 15/27, de 1989.
15
Art. 4 (3) (f).
14
Esta formulação está entre as de maior impacto. Ela cria um elo entre os enfoques de prevenção e de precaução, não exige que os danos sejam “sérios” ou “irreversíveis” e reduz os limites nos quais a evidência científica pode requerer ação. As partes da Convenção sobre Cursos de Água Transfronteiriços de 1992 concordaram em serem guiadas pelo princípio da precaução: em virtude do qual a ação para evitar potencial impacto transfronteiriço da liberação de substâncias perigosas não deveria ser adiada, com base no fato de que a pesquisa científica ainda não provou inteiramente a existência de um nexo causal entre aquelas substâncias, de um lado, e o potencial impacto transfronteiriço, de outro.16
Esta
formulação
limita
a
aplicação
do
princípio
a
somente
efeitos
transfronteiriços, muito embora o nível dos danos ambientais seja acima daquele
requerido pela Convenção de Bamako como “efeito adverso significativo”. A Convenção
sobre a Diversidade Biológica de 1992 não faz referência específica ao princípio da
precaução, embora o preâmbulo indique que “quando exista ameaça de sensível redução
ou perda de diversidade biológica, a falta de plena certeza científica não deve ser usada
como razão para postergar medidas a fim de evitar ou minimizar essa ameaça”.17 O nível
dos danos ambientais na Convenção da Diversidade Biológica está, portanto, abaixo do
nível “sério” ou “irreversível” requerido pela Declaração de Bergen de 1990. Seu
Protocolo de Biossegurança de 2000 apóia-se amplamente no enfoque de precaução. O
objetivo do Protocolo é declarado: estar “de acordo” com o princípio 15 (da Declaração
do Rio) e, com essa finalidade, o Protocolo afirma que “a falta de total certeza científica
devido à insuficiência de informações científicas e a falta de conhecimentos relevantes
relacionados à amplitude dos potenciais efeitos adversos de um organismo vivo,
modificado na conservação e no uso sustentável da diversidade biológica”, não impedirá
um Estado-parte de proibir importações.18 A referência ao princípio da precaução foi
matéria geradora de polêmica na Convenção sobre as Mudanças Climáticas de 1992, e o
texto, na versão final adotada, estabeleceu limites quanto à aplicação do princípio da
16
Art. 2 (5) (a). Veja também a Convenção do Danúbio, Art. 2 (4).
Preâmbulo.
18
Art. 10 (6). Ver também Art. 11 (8) e, com relação à avaliação de risco Art. 15 e Anexo 3.
17
precaução, ao requerer uma ameaça de danos “sérios ou irreversíveis” e por meio da
vinculação de compromissos com incentivos à tomada de medidas economicamente
viáveis.19
Além destas duas Convenções, atualmente muitas outras comprometem suas partes ao princípio da precaução ou a seu enfoque. A Convenção para Proteção dos Ambientes Marinhos do Nordeste do Atlântico (OSPAR) de 1992 vincula a prevenção à precaução: medidas de prevenção devem ser tomadas quando há “ motivo justo para preocupação (...) mesmo quando não há nenhuma evidência convincente de relações causais entre fontes e efeitos”.20 Neste caso, o limite é bastante baixo. O critério aplicado pela Convenção do Mar Báltico de 1992 introduz uma outra variante: medidas preventivas devem ser tomadas “quando há razão para supor” que o dano pode ser causado “mesmo quando não há nenhuma evidência conclusiva que existe um relacionamento causal entre as fontes e seus supostos efeitos.21 A Convenção sobre a Conservação e Gestão de Populações de Peixes Tranzonais de 1995 submete os Estados litorâneos e Estados que pescam em alto-­‐
mar a aplicar totalmente o enfoque da precaução, e exibe em detalhes as modalidades para sua aplicação.22 Um número crescente de outras Convenções -­‐ regionais e globais -­‐ também se referem ao enfoque da precaução com relação a uma série de assuntos diferentes.23 O Tratado de Maastricht emendou o artigo 130r(2) do Tratado da Comunidade Européia, de modo que a ação da Comunidade, no meio ambiente, fosse “baseada no princípio da precaução”, e o Tratado de Amsterdã de 1997 posteriormente emendou o Tratado da Comunidade Européia para aplicar o princípio à política da Comunidade no meio ambiente (artigo 174(2)). A Comissão Européia publicou um Comunicado sobre o Princípio da Precaução que resume o enfoque da Comissão a respeito do uso desse princípio, estabelece normas de 19
Art. 3 (3).
Art. 2 (2) (a).
21
Art. 3 (2).
22
Arts. 5 (c) e 6 e Anexo II (Normas para aplicação de pontos de referência de precaução na Convenção
sobre a Conservação e Gestão de Peixes Tranzonais e Peixes Altamente Migratórios).
23
Por exemplo, 1973 CITES, Res. Conf. 9.24 (1994); Tratado sobre Energia, de 1994, Art. 18; Protocolo
de 1996 á Convenção de Londres de 1972, Art. 3; Protocolo de Biossegurança de 2000, Art.1; Convenção
POPS de 2001 (“A precaução abrange os interesses de todas as partes e está contido nesta Convenção”,
Preâmbulo, ver também Art.1); Convenção sobre o Nordeste do Pacífico, de 2002, Art.5 (6) (a).
20
procedimento para sua aplicação e tem como propósito desenvolver a compreensão sobre levantamentos, avaliação e manejo de risco quando não há certeza científica.24 O Comunicado considera que o princípio foi “consolidado progressivamente no direito internacional ambiental, e desde então tornou-­‐se um princípio desenvolvido e geral do direito internacional”.25 O princípio foi aplicado pela Corte de Justiça das Comunidades Européias26 e pela Corte da Agência Ambiental Européia que, em casos de efeitos de determinados produtos sobre a saúde humana e onde possa haver incerteza prática e científica relacionada à questão considerada, regulamentou que a aplicação do princípio da precaução é justificada e “propõe, primeiramente, uma identificação das potenciais conseqüências negativas que podem surgir para a saúde, a partir de uma proposta de fortalecimento de suas ações e, em seguida, uma avaliação detalhada sobre o risco à saúde baseada na informação científica mais recente”. A Corte foi além: Quando a insuficiência ou a inconseqüência ou a natureza
imprecisa das conclusões a serem extraídas daquelas considerações
tornam impossível determinar com certeza o risco ou perigo, mas a
probabilidade de dano considerável ainda persiste onde a
eventualidade negativa pode ocorrer, o princípio da precaução
justificaria tomar medidas restritivas.27
24
COM
2000
(1),
2
de
fevereiro
de
2000
<http://europa.eu.int/comm/dgs/health_consumer/library/pub/pub07_en.pdf>
25
idem, p. 11.
26
Ver, por exemplo, o Caso C-180/96, Reino Unido versus Comissão Européia, 1998 ECR I-2265 (“ as
instituições podem tomar medidas de proteção sem ter que esperar que a realidade e a seriedade daqueles
riscos se tornem completamente aparentes”, parágrafos 99 e 100); ver também o caso T-70/99, Alpharma
Inc. versus Conselho da União Européia, Ordem de 30 de junho de 1999 (Medidas preliminares) 1999
ECR II-2027, o presidente da Corte da Primeira Instância, referindo-se ao princípio e afirmando que
“requerimento ligado à proteção da saúde pública deve incontestavelmente receber maior dedicação que
considerações econômicas”. Ver também o caso C-6/99, Association Greenpeace France et autres versus
Ministère de l’Agriculture et de la Pêche et autres, 2000 ECR I-1651 (Edição Francesa) (com relação à
Diretriz 90/220, o cumprimento do princípio da precaução é refletido na obrigação de notificação imediata
à autoridade competente de nova informação relacionada ao risco que o produto pode ter para a saúde
humana ou para o meio ambiente e a obrigação da autoridade competente de informar imediatamente à
Comissão e aos Estados-membros. Restringir provisoriamente ou proibir o uso ou a venda de produto
permitido em seu território onde tem razões justificáveis para considerar que constitua risco para a saúde
humana ou para o meio ambiente, parágrafo 44).
27
Caso E-3/00, EFTA Surveillance Authority versus Noruega, Julgamento de 5 de abril de 2001.
O princípio ou o enfoque da precaução tem recebido apoio difundido pela
comunidade internacional em relação a uma grande variedade de temas. O que o
princípio significa e que status ele tem no direito internacional? Não há consenso entre
Estados e outros membros da comunidade internacional quanto ao significado do
princípio da precaução. De modo geral, significa que os Estados concordam em agir com
cuidado e com previsão ao tomarem decisões que concernem a atividades que podem ter
um impacto adverso no meio ambiente. Uma interpretação mais apurada defende que o
princípio requer que atividades e substâncias que podem ser prejudiciais ao meio
ambiente sejam controladas e possivelmente proibidas, mesmo se nenhuma evidência
conclusiva ou predominante estiver disponível sobre o que o dano ou o provável dano
possam causar ao meio ambiente. Como a Declaração Ministerial de Bergen propôs, “a
falta de total certeza científica não deve ser usada como razão para adiar medidas para
impedir a degradação ambiental”. Na Declaração do Rio, a exigência foi considerada
obrigatória: a falta de total certeza científica “não será usada” para impedir a ação. O que
continua em debate é o nível em que a evidência científica é suficiente para sobrepujar
argumentos que adiam medidas ou em que proporção poderá ser requerida como matéria
do direito internacional.
Uma mudança mais significativa seria adotada com uma interpretação do
princípio da precaução de forma mais ampla, invertendo o ônus da prova. Sob a ótica
tradicional, atualmente encontra-se na pessoa contrária a uma determinada atividade a
obrigação de provar que essa atividade causa ou pode causar danos ambientais. Um novo
enfoque, apoiado pelo princípio da precaução, tenderia a inverter o ônus da prova e
exigiria que pessoas que desejam realizar uma atividade provem que ela não causará dano
ao meio ambiente. Esta interpretação exegiria que poluidores e Estados poluidores
estabelecessem que suas atividades e a liberação de determinadas substâncias não
afetariam adversa ou significativamente o meio ambiente, antes da concessão do direito
de liberar substâncias poluidoras ou realizar a atividade proposta. Esta interpretação pode
também requerer ação reguladora nacional ou internacional, quando a evidência científica
sugere que a falta de ação pode resultar em dano grave ou irreversível ao meio ambiente,
ou quando há pontos de vista diferentes quanto ao risco da ação.
Há uma evidência crescente que sugere que esta interpretação está começando a
ser apoiada pela prática dos Estados, mesmo sendo ainda insuficiente para ser
considerada uma regra de aplicação geral. Os exemplos incluem a Diretriz sobre Esgotos
Urbanos da Comunidade Européia de 1991, que permite que determinados tipos de
esgoto sejam objeto de um tratamento menos rigoroso do que aquele geralmente exigido
pela ordem oficial, fixando que “estudos detalhados indiquem que tais descargas não
afetarão desfavoravelmente o meio ambiente”.28 Na Convenção OSPAR de 1992, as
partes (França e Reino Unido), que, originalmente, queriam manter a opção de despejar
no mar lixos radioativos de níveis baixo e intermediário, foram obrigadas a informar à
comissão da OSPAR os “resultados de estudos científicos que comprovassem que
nenhuma operação de despejo resultaria em perigo para a saúde humana, danos a recursos
vivos ou ao ecossistema marinho, danos à infra-estrutura ou interferências em outros usos
legítimos do mar”.29
O exercício de cortes e tribunais internacionais, e dos Estados que neles litigam,
dá certo significado e efeitos ao princípio da precaução. Antes da Corte Internacional de
Justiça, o princípio foi supostamente posto em relevo na petição da Nova Zelândia em
1995, relacionada aos testes nucleares franceses. A Nova Zelândia confiou
extensivamente no princípio, descrevendo-o como “um princípio amplamente aceito e
operante do direito internacional” e encarregou a França de provar que os testes
propostos não causariam aumento do risco ambiental.30 Cinco Estados “intervenientes”
(Austrália, Micronésia, Ilhas Marshall, Samoa e Ilhas Salomão) também invocaram o
princípio. A França contestou que seu status no direito internacional era “tout à fait
incertain” e que, em nenhuma situação, o mesmo já fora aplicado, e que as obrigações
comprobatórias para os Estados, no direito internacional ambiental, não eram diferentes
das outras áreas do direito internacional.31 A decisão da Corte não fez referência a estes
argumentos, embora a discordância do Juiz Weeramantry apontasse que a “evolução do
princípio encontraria dificuldade comprobatória causada pelo fato de a informação poder
28
Decisão oficial da Comissão Européia 91/271, Art. 6 (2).
Anexo II, Art. 3 (3) (c).
30
Pedido da Nova Zelândia, parágrafo 105; ver também ICJCR/95/20, pp.20-1, 36-8 Pedido da Nova
Zelândia, parágrafo105 ; ver também ICJ CR/95/20, pp. 20-1, 36-8.
31
ICJ CR/95/20, pp. 71-2. 75.
29
estar nas mãos da parte ameaçadora ou causadora do dano”, e isto estava “ganhando um
crescente apoio por fazer parte do Direito Ambiental Internacional”.32
No caso Gabcikovo-Nagymaros, a Hungria e a Eslováquia também invocaram o
princípio da precaução. Novamente, a Corte não sentiu necessidade de recorrer ao
princípio, limitando-se a fazer uma referência à reivindicação da Hungria que justificava
o término do Tratado de 1977 e o reconhecimento das partes, acordo este relacionado à
necessidade de tratar seriamente os interesses ambientais e de tomar as medidas
necessárias de precaução.33 Particularmente, a falha da Corte foi não fazer referência ou
aplicar o princípio, em suas considerações sobre as condições em que a Hungria poderia
ter invocado o conceito de necessidade ecológica para impedir a injusta suspensão dos
trabalhos nas duas barragens, em 1989.34 Mesmo tendo reconhecido sem dificuldade “que
os interesses divulgados pela Hungria em seu ambiente natural, na região afetada pelo
projeto Gabcíkovo-Nagymaros, estava relacionado a um interesse essencial do “Estado”,
a Corte achou que a Hungria não provou o “real”, “grave” e “iminente” “perigo”
existente em 1989 e que as medidas tomadas pela Hungria foram a única resposta
possível.”35 A Corte considerou que havia sérias dúvidas quanto ao possível dano às
fontes e à biodiversidade da água doce, mas que estes:
(...) não poderiam, isoladamente, estabelecer a existência objetiva
de um perigo no sentido de elemento componente de um estado de
necessidade. A palavra ‘perigo’ invoca certamente a idéia de ‘risco’; o que
distingue precisamente ‘perigo’ dos danos materiais. Mas um estado de
necessidade
não
poderia
existir
sem
um
‘perigo’
devidamente
estabelecido, num determinado período do tempo; a simples apreensão de
32
Reportagem da CIJ de 1995,p.342; ver também Juiz ad hoc Palmer ( “a norma envolvendo o princípio
da precaução foi desenvolvida rapidamente e pode ser agora um princípio consuetudinário da lei
relacionada ao meio ambiente”, ibid, p.412). Ver ainda a decisão divergente do Juiz Weeramantry em
Threat or Use of Nuclear Weapons, 1996 ICJ Reps., 502.
33
1997 ICJ Reps, pp. 62 (parágrafo 97) e 68 (parágrafo. 113). Mas ver também as opiniões separadas do
julgamento Koroma, onde o princípio da precaução foi incorporado a um tratado em 1997, mas “não foi
provado que se violou a autorização de resolução unilateral do tratado: ibid., p. 152.
34
A Corte considerou, em caráter excepcional, que o estado de necessidade era reconhecido pelo direito
costumeiro por impossibilitar um erro de um ato que não estivesse em conformidade com uma obrigação
internacional, e confiou na forma do artigo 33 dos artigos esboçados pelo Comissão de Direito
Internacional (ILC) sobre responsabilidade do Estado: 1997 ICL Reps., p. (parágrafo.50-2)
35
Idem, parágrafo 54.
um possível ‘perigo’ não seria suficiente nesse sentido. Além disso, mal
poderia ser de outra maneira, quando o ‘perigo’ que constitui o estado de
necessidade vem a ser ao mesmo tempo ‘grave’ e ‘iminente’. ‘Iminência’ é
sinônimo de ‘imediação’ ou ‘proximidade’ e vai muito além do conceito
de possibilidade. (...) Isso não exclui, no ponto de vista da Corte, que um
‘perigo’ que apareça a longo prazo seja tratado como ‘iminente’ assim que
for estabelecido, num período de tempo relevante, apesar da distância a
que o perigo pode estar, o que não é nem menos evidente, nem menos
inevitável.36
Esse não é o sentido da precaução, estabelecida como premissa na necessidade de
estabelecer certeza e evitar danos graves. Entretanto, deve ser reconhecido que a Corte
esteve preocupada com a aplicação da lei em 1989, quando a Hungria suspendeu
injustamente (sob o ponto de vista da Corte) o trabalho, no projeto. Nessa época, o
princípio da precaução ainda não tinha sido desenvolvido como uma regra geral de
direito internacional, passível de aplicação. Talvez a Corte tenha pensado isto quando
indicou mais tarde em julgamento que o que “teria sido uma correta aplicação da lei antes
de 1989 ou de1992, poderia ser um erro judicial, se realizado em 1997.”37
O Tribunal Internacional para o Direito do Mar também apresentou argumentos que invocam a precaução, e mostrou estar de acordo com a aplicação do princípio, embora não demonstrasse segurança. Em 1999, no caso Atum*, a Austrália e a Nova Zelândia solicitaram ao tribunal que decidisse se “a atitude das partes, utilizando o princípio da precaução, para pescar atum, depende de um acordo final para a solução da controvérsia”. O Japão não perguntou sobre o status ou efeito do princípio. Em sua decisão, o Tribunal Internacional afirmou que as partes devem “agir com cautela e precaução para assegurar que medidas efetivas de conservação sejam tomadas para evitar danos sérios aos estoques de atum” (parágrafo 77); que houve “incerteza científica relativa a que medidas seriam tomadas para conservar o estoque desta espécie de atum” (parágrafo 79) e que, embora não pudesse definitivamente avaliar a evidência científica apresentada pelas partes, medidas 36
Ibidem
Ibidem, parágrafo 134.
*
O original fala em Southern Blue-Fin Tuna, uma espécie de atum (nota dos organizadores)
37
deveriam ser tomadas de forma urgente para preservar os direitos das partes e para evitar outra deterioração ao estoque destas espécies de atum (parágrafo 80). Ao ordenar que as partes parem de conduzir programas experimentais de pesca, o Tribunal estava claramente dando um enfoque de precaução, como o juiz Treves reconheceu em opinião própria.38 Em 2001, no caso MOX, a Irlanda reivindicou que o Reino Unido não tinha
aplicado o enfoque da precaução para a proteção do mar irlandês, no exercício de sua
autoridade, ao tomar decisões relacionadas às conseqüências diretas e indiretas da
operação da usina MOX e de movimentos transfronteiriços de materiais radioativos,
associados à operação da referida usina MOX.39 O princípio foi invocado pela Irlanda, na
fase de medidas temporárias para apoiar sua reivindicação de que o Reino Unido tinha
obrigação de demonstrar que nenhum dano surgiria das descargas e de outras
conseqüências da operação da usina MOX e informar a avaliação feita pelo Tribunal
quanto à urgência das medidas solicitadas para a operação da usina.40 Aceitando que é
necessária prudência e precaução em toda avaliação de risco, o Reino Unido argumentou
que, na ausência de evidência de risco de dano real de dano, a precaução não poderia ser
motivo para limitar os direitos do Reino Unido de autorizar a operação de uma usina.41 O
Tribunal não requereu a suspensão da das atividades da usina, como a Irlanda tinha
solicitado, mas ordenou que as partes cooperassem e trocassem informações sobre
possíveis conseqüências para o mar irlandês, levantadas fora da comissão da usina MOX
e adotassem apropriadamente medidas para impedir a poluição do ambiente marinho,
38
“No presente caso, parece-me que a exigência de urgência é satisfeita somente no aspecto da precaução.
Eu lamento que isso não esteja citado explicitamente na decisão”: Opinião separada do Juiz Treves,
parágrafo 8. Ver também a opinão separada do Juiz Lang (“não obstante, não é possível, com base nos
materiais disponíveis e nos argumentos apresentados para aplicação destas medidas provisórias, determinar
se, como os autores argumentam, o costume internacional reconhece um princípio da precaução”,
parágrafo. 15) e do Juiz ad hoc Shearer (“O tribunal não achou necessário entrar numa discussão referente
ao princípio/enfoque da precaução. Entretanto, eu acredito que as medidas solicitadas pelo Tribunal estão
corretamente baseadas em considerações derivadas de um enfoque de precaução”).
39
Capítulo 9; Ver Indicação de Reivindicação da Irlanda , 25 de outubro de 2001, parágrafo 34 (“O
princípio da precaução é uma regra de direito consuetudinário internacional que é obrigatório para o Reino
Unido e relevante à avaliação das ações do Reino Unido, com referência a LOSC “).
40
Decisão de 3 de dezembro de 2001, parágrafo 71
41
Resposta do Reino Unido, 15 de novembro de 2001, parágrafo 150.
resultante da operação da usina.42 Esta decisão, com caráter de precaução, foi
estabelecida com base em considerações de prudência e cautela.43
O princípio tratado também pelo Órgão de Apelação da OMC.44 Em 1998, no caso sobre os carne com hormônios, a Comunidade Européia invocou o princípio para justificar sua proibição das importações de carne produzida, nos Estados Unidos e no Canadá, com hormônios artificiais, em que os impactos sobre a saúde humana eram incertos. A Comunidade argumentou que o princípio era “uma regra geral e consuetudinária do direito internacional ou, no mínimo, um princípio geral do Direito”, que era aplicável tanto à avaliação quanto à gerência de um risco, e que informava o significado e efeito dos artigos 5.1 e 5.2 do acordo de medidas sanitárias e fitossanitárias da OMC.45 Os Estados Unidos negaram que o princípio representasse um princípio consuetudinário do direito internacional e preferiu caracterizá-­‐lo como um “enfoque” que varia de acordo com o contexto.46 O Canadá fez referência ao princípio da precaução como sendo “um princípio emergente do direito internacional, que pode, no futuro, ser transformado em um dos princípios gerais do Direito reconhecido pelas nações civilizadas”, conforme o artigo 38(1)(c) do Estatuto da CIJ”.47 O Órgão de Apelação concordou com os Estados Unidos e com o Canadá que o princípio da precaução não havia anulado os artigos 5.1 e 5.2 do acordo SPS, considerando, contudo, que o princípio era baseado no preâmbulo e nos artigos 3.3. e 5.7 do acordo SPS, que não esgotou a importância do princípio.48 42
Decisão de 3 de dezembro de 2001, parágrafo 89 (1).
Ibid., parágrafo 84. Conforme a opinião separada do Juiz ad hoc Szekely (O tribunal “ deve ter sido
responsável, em face de tal incerteza às demandas irlandesas relacionadas à aplicação do princípio da
precaução (ver os parágrafos 96 a 101 do pedido, pp. 43-46). É lamentável que não se tenha feito assim,
porque se tivesse agido de outra maneira poderia ter concedido a medida requisitada pela Irlanda, que pedia
a suspensão das atividades da usina”).
44
Veja T. Christoforou, “Science, law and precaution in dispute resolution on health and environmental
protection: what role for scientific experts?”, in J. Bourrinet & S. Maljean-Dubois (eds), Le Commerce
International des Organismes Génétiquement Modifiés (2002).
45
Relatório do Órgão de Apelação, 16 de janeiro de 1998, WT/DS48/AB/R, parágrafo 16.
46
Idem, parágrafo 43. Os Estados Unidos citaram que o Acordo SPS reconheceu um enfoque de precaução
(em seu Artigo 5.7)
47
Ibidem, parágrafo 60.
48
Ibidem, parágrafo 124 ( “um processo encarregado de determinar (…) se o critério “evidência científica
suficiente” está presente para possibilitar a manutenção da medida SPS de um membro, pode e, claramente,
deve levar em consideração que os representantes governamentais geralmente agem sob perspectivas de
pudência e de precaução, onde os riscos de irreversibilidade, e.g. extinção de espécies e danos à saúde
humana, são levados em consideração”). O Órgão de Apelação determinou que “os responsáveis e os
43
Reconhecendo que o status do princípio, no direito internacional, é assunto de debate aberto e foi considerado por alguns como princípio geral do direito consuetudinário ambiental internacional, o Órgão de Apelação disse: Aparece claramente que o princípio foi aceito pelos Membros como sendo um princípio geral ou consuetudinário do direito internacional. Nós consideramos, entretanto, que é desnecessário e provavelmente imprudente para o Órgão de Apelação tomar uma posição nesta importante, porém abstrata questão. Notamos que o próprio grupo não encontrou nenhuma posição definitiva do que vem a ser o status do princípio da precaução, no direito internacional, e que o princípio da precaução ainda necessita de uma formulação concreta, fora do âmbito do direito internacional ambiental.49 O princípio também foi questionado diante de outras Cortes, tais como a Corte Européia de Direitos Humanos. Em Balmer-­‐Schafroth versus Suíça, os requerentes reivindicaram que a falha da Suíça em fornecer revisão administrativa de uma decisão que autoriza a operação de uma usina nuclear violou o Artigo 6 da Convenção Européia.50 A reivindicação foi rejeitada pela maioria, porque a conexão entre a decisão do governo e o direito dos requerentes era demasiadamente remota e pouco importante. A Corte entendeu que os autores falharam ao estabelecer uma nexo direto entre as condições de operação da usina elétrica (...) e o direito de proteger a integridade física, como eles falharam em não mostrar que a representantes governamentais devem agir de boa-fé, com base nas opiniões divergentes, oriundas de fontes
qualificadas e respeitadas” (parágrafo 194), o que foi endossado pela decisão CE-Amianto (Relatório do
Órgão de Apelação, de 12 de março de 2001, parágrafo 178, que completou: “Para justificar uma medida,
no contexto do artigo XX (b) do GATT de 1994, um membro deve fundamentar-se na boa-fé, em fontes
que, numa determinada época, podem ser divergentes, mas que refletem opiniões qualificadas e respeitadas.
Um membro não é, para o estabelecimento de padrões de saúde pública, automaticamente obrigado a seguir
a opinião da maioria da comunidade científica”.
49
Idem, parágrafo 123. O Órgão de Apelação destacou que, no caso Gabcíkovo-Nagymaros, a CIJ não
considerou o princípio da precaução como uma norma recente, desenvolvida no campo do direito
ambiental, e declinou de seu direito de declarar tal princípio entre as obrigações do Tratado de 1977, ibid,
nota 93.
50
Julgado em 26 de julho de 1987, Eur.CtHR Reps-IV. O Artigo 6 da Convenção determina que “na
fixação de direitos civis e obrigações, todos são titulares de um julgamento justo... por um tribunal”
operação da usina elétrica Mühleberg os expôs pessoalmente a um perigo não somente sério mas também específico e, sobretudo, iminente. Na ausência de tal conhecimento, os efeitos das medidas sobre a população que o Conselho Federal poderia ter solicitado em casos instantâneos permaneceram conseqüentemente hipotéticos. Dessarte, nem os riscos ou ajustes foram estabelecidos em nível de probabilidade que fizesse o resultado dos procedimentos ser decisivo (...).51 A opinião divergente de sete juizes, entretanto, criticou esta decisão, ao acreditar que a mesma “ignorou toda a tendência das instituições internacionais e do direito internacional público que protege gerações presentes e futuras, como evidenciado [inter alia] (...) pelo desenvolvimento do princípio da precaução”.52 Várias decisões em nível nacional orientaram o status do princípio da precaução, no direito internacional. Em Vellore, por exemplo, a Suprema Corte indiana decidiu que o princípio da precaução era uma característica essencial de “desenvolvimento sustentável” e, como tal, parte do direito consuetudinário internacional.53 Contrariamente, a Corte Federal dos Estados Unidos surge mais contida quanto a seu enfoque, acreditando que o princípio ainda não foi estabelecido no direito consuetudinário internacional para levantar uma causa de ação sobre o Alien Tort Claims Statute.54 Como conclusão, podemos dizer que o status legal do princípio da precaução está evoluindo. Há suficientes evidências de práticas estatais na sentido de que o princípio, tal como elaborado no Princípio 15 da Declaração do Rio e em várias 51
Idem, parágrafo 40.
Opinião dissidente do Juiz Pettit, seguida pelos juízes Golcukul, Walsh, Russo, Valticos, Lopes Rocha
and Jambrek,
53
Vellore Citizens Welfare Forum v Union of India and Others, Petição (C) no 914 de 1991 (Kuldip Singh,
Faizanuddin JJ), julgamento de 28 de agosto de 1996, parágrafos 10, 11 e 15. Cf. Narmada Bachao
Andolan versus Union of India & Others, Sup. Ct. India, Julgamento de 18 de outubro de 2000
<http://www.narmada.org/sardar-sarovar/sc.ruling/majority.judgement.doc>.
54
Beanal v Freeport-Mcmoran, US District Court for Eastern District of Louisiana, de 9 de abril de 1997,
969 F. Supp. 362, p. 384 (“o princípio não constitui [um] parâmetro internacional sobre o qual existe
consenso universal, na comunidade internacional sobre seu status cogente e [seu] conteúdo); afirmado pela
Corte de Apelações do 5o Circuito, dos EUA em 29 de novembro de 1999, 197 F.3d 161.
52
convenções internacionais, tem recebido atualmente sustentação suficientemente ampla para permitir a afirmação de que se trata de direito costumeiro. Dentro do âmbito da União Européia, tem conseguido o status de costume internacional, mesmo com as diferentes definições adotadas. Todavia, deve ser reconhecido que algumas cortes e tribunais internacionais foram relutantes ao indicar que o princípio tem status de costume internacional, ainda que esta posição esteja cedendo espaço para aquela que defende seu reconhecimento. A relutância em aceitar o princípio da precaução pode ser compreendida, no contexto de sua consolidação; enquanto isso, as conseqüências práticas de sua aplicação continuarão a ser determinadas caso a caso.55 Referências Bibliográficas BODANSKY, D. “Scientific uncertainty and the precautionary principle”, 33 Envt 4 (1991). BOYDEN GRAY, C e RIVKIN, D. “A “No Regrets” Environmental Policy”, 83 Foreign Policy. 47 (1991). CAMERON, J. E ABOUCHAR, J. “The precautionary principle: a fundamental principle of law and policy for the protection of the global environment”, 14 B.C.Int”l. & Comp.L.Rev. 1 (1991). De SADELEER, N. Environmental Principles in an Age of Risk, 2003. De SADELEER, N., “Réfléxions sur le statut juridique du principe de précaution”, in E. Zaccai & J-­‐N Missa, Le principe de précaution, 2000 FABRA, A. “The LOSC and the Implementation of the precautionary principle”, 10 Yearbook of International Environmental Law, 1999, n. 15 FREESTONE, D. “Caution or precaution: “a rose by any other name…”?” 10 Yearbook of International Environmental Law 25 (1999) FREESTONE, D. “The Precautionary Principle”, in R. Churchill and D. Freestone (eds.), International Law and Global Climate Change. London : Graham &
Trotman/Nijhoff, 1991, 447 p. 55
Neste sentido, ver a opinião em separado do Juiz Treves, citado na nota xx, parágrafo 9
FREESTONE, D. e HEY, E. The Precautionary Principle and International Law. The
Hague : Kluwer Law International, 1996, 274 pg. GUNDLING, L.. “The status in international law of the principle of precautionary action” in International Journal of Estuarine & Coastal Law, 1990, n. 5, 23. HEY, E. “The Precautionary Concept in Environmental Policy and Law: Institutionalising Caution”, 4 Geo.Int”l.Envt”l.L.Rev. 303 (1992) HOHMANN, H. Precautionary Legal Duties and Principles of Modern International Environmental Law, 1994 MARR, S. The Precautionary Principle in the Law of the Sea -­‐ Modern Decision-­‐
Making in International Law, 2003 O´RIORDAN, T. e CAMERON, J. (eds.), Interpreting the Precautionary Principle. London : Earthscan, 1994, 315 p. REHBINDER, R. Das Vorsorgeprinzip in Internationalen Rechtsvergleich, (1991) TROUWBORST, A. Evolution and status of the precautionary principle in international law, The Hague ; London : Kluwer Law International, 2002, 378 p. Capítulo 4
O Estatuto do Princípio da Precaução no Direito Internacional
Nicolas de Sadeleer*
Apesar da presença de um grande número de declarações não cogentes
enunciando numerosos princípios, a Comunidade internacional ainda não tem um
instrumento obrigatório de aplicação universal que reúna os principais princípios do
direito ambiental. Essa lacuna é ainda mais lamentável porque o direito internacional do
meio ambiente é fortemente fragmentado. Não é, portanto, de se surpreender que diversos
autores tenham tentado, mediante contribuições doutrinárias, identificar, aliás, elaborar
diferentes princípios do direito internacional do meio ambiente, entre eles o princípio da
precaução. Alguns desses princípios doutrinários já foram consagrados como princípios
do direito consuetudinário pela Corte Internacional de Justiça. É o caso do princípio 21
da Conferência de Estocolmo (1972) sobre o Meio Ambiente Humano e do princípio da
Declaração do Rio de Janeiro de 1992, sobre o Meio Ambiente e o Desenvolvimento,
consagrado recentemente pela Corte Internacional de Justiça, na questão GabcikovoNagyramos. Outros, como o princípio da precaução, estão prestes a ascender a esse
patamar.
Conhecido há muitos anos por alguns especialistas em direito ambiental, o
princípio da precaução vive recentemente, no decorrer de crises alimentares e ecológicas
que permeiam a atualidade, uma oportunidade sem precedentes. Sobre seu significado,
falaremos apenas de que se trata de uma norma em virtude da qual a ausência de certeza,
levando em conta os conhecimentos científicos do momento, não deve nem se opor, nem
retardar a adoção de medidas destinadas a prevenir um risco que apresenta um certo grau
de gravidade1. Pretendendo ser a expressão de uma filosofia de ação antecipada, esse
*
Professor nas Faculdades Saint-Louis. Diretor do Centro de Estudo de Direito Ambiental. Pesquisador
qualificado pela Vrije Universiteit Brussel. Essa contribuição foi redigida no quadro de um projeto de
pesquisa SSTC (Pólos de Atração Interuniversitários, fase V 2002-2006) sobre as lealdades do saber.
1
Para um comentário aprofundado das diferentes definições desse princípio, nós recomendamos a leitura de
nossos trabalhos científicos Les principes du pollueur-payeur, de prévention, de précaution, collection
Universités francophones, Bruxelas. Paris: Bruylant, Agence universitaire francophone, 1999, 437 p; assim
como de Environmental Principles: from Political Slogans to Legal Rules. Oxford: Oxford University
Press, 2002, 500 p.
princípio, conseqüentemente, não exige que se reúna um conjunto de provas científicas
para se adotar uma decisão que evite um risco.
O sucesso fulminante que o princípio da precaução pôde encontrar nos cenários
internacionais, em menos de uma década, não nos deve fazer esquecer de que seus
contornos são tão difíceis de apreender quanto aqueles de outros princípios do direito
internacional. Tanto a diversidade de definições que lhe foram atribuídas nas diferentes
convenções internacionais, quanto a quantidade de aplicações que se tenta dar ao
princípio, realçam a heterogeneidade de suas facetas. Nem a doutrina nem a
jurisprudência chegaram até o momento a dissipar o mistério que permeia seu estatuto
jurídico. Como classificá-lo? Ele se reveste dos traços peculiares aos princípios gerais do
direito internacional? Trata-se de uma regra de direito consuetudinário, de um padrão
jurídico, de uma norma de conteúdo aberto? É suficientemente preciso para que se
possam deduzir as obrigações jurídicas que dizem respeito aos Estados? Reclama a
adoção de regras mais precisas? Quanto às modalidades de execução, apresentam
igualmente seu conjunto de questões. É preciso afastar um risco grave, significativo,
irreversível, coletivo? A adoção de uma medida de precaução requer um mínimo de
indícios quanto à consistência do risco sob suspeita ou está livre de todo e qualquer
elemento de prova? Sob qual forma convém aplicá-lo? Sob a forma de moratória, de
controle, de vigilância ou de autorização? E por quanto tempo?
Contudo, é possível fixar um certo número de pontos-chave para apreender esse
estatuto vago, uma norma totalmente orientada para se opor à dúvida. A questão do valor
jurídico do princípio da precaução merece ser abordada sob o ângulo das fontes
tradicionais do direito internacional. Convém, antes de mais nada, examinar o estatuto do
princípio quando é enunciado nos textos de direito não cogente (I). A partir do momento
em que o princípio é firmado nas convenções internacionais, é preciso verificar se ele
corresponde exatamente a um princípio jurídico de direito positivo convencional (II). Em
razão de sua constante reafirmação nos textos normativos, é necessário perguntar-se se é
ele desde então dotado de um valor comunitário (Comunidade européia - CE) (III) ou se
ele é filiado a um princípio apontado no artigo 38 § 1º, "c") do Estatuto da Corte
Internacional de Justiça (IV). A evolução da jurisprudência das jurisdições internacionais
é analisada na última seção (V).
1. A Consagração do Princípio da Precaução nas Regras de Direito Não
Cogente
Os instrumentos de soft norm, tais como as recomendações, as linhas diretrizes, as
declarações dos Chefes de Estado nas conferências internacionais, não substituem as
fontes tradicionais do direito internacional2. Ao contrário dos princípios normativos que
são encontrados nos dispositivos das convenções internacionais, os princípios enunciados
nesses instrumentos não são cogentes.
Utilizado em diferentes declarações ministeriais relativas à proteção do meio
ambiente, a partir de meados dos anos oitenta3, o princípio da precaução foi efetivamente
imposto internacionalmente em 1992, na Conferência do Rio de Janeiro sobre o Meio
Ambiente e o Desenvolvimento4. Instrumento jurídico não cogente, a Declaração de 13
de junho de 1992 sobre o Meio Ambiente e o Desenvolvimento o enuncia, tomando o
cuidado de enumerar as condições a serem respeitadas, no momento de sua aplicação:
“Com o fim de proteger o meio ambiente, o princípio da precaução deverá ser
amplamente observado pelos Estados, de acordo com suas capacidades. Quando
houver ameaça de danos graves ou irreversíveis, a ausência de certeza científica
absoluta não será utilizada como razão para o adiamento de medidas
economicamente viáveis para prevenir a degradação ambiental” (tradução não
oficial).
2
Uma extensa literatura é consagrada às fontes não obrigatórias em direito internacional. Ver P. Weil.
“Towards Relative Normativity in International Law”, American Journal of International Law, 1983, n. 77,
p. 413; T. Grtuchalla-Wesierki. “A Framework for Understanding soft law”, McGill Law Journal, 1984, n.
30, p. 37-88; C.M. Chinkin. “The Challenge of Soft Law: Development and Change in International Law”,
ICLQ, 1989, n. 38, p. 85-86; P.-M. Dupuy. “Soft Law and the International Law on the Environment”,
Mich. J Int'l L., 1991, n.12, p. 420; P. Birnie e A. Boyle, International Law and the Environment. Oxford:
Oxford University Press, 2002, p. 165; A. Boyle. “Some Reflections on the Relationship of Treaties and
Soft Law”, ICLQ, 1999, n.48, p. 901; O. Elias e C. Lim. “General Principles of Law”. “Soft Law” and the
“Identification of International Law”, 1997, n. 28/3, N.Y.I.L., p. 45; C.M. Chinkin. “Normative
Development in the International Legal System”, in D. Shelton (ed.), Commitment and Compliance.
Oxford: Oxford University Press, 2000, p. 21-42.
3
N. de Sadeleer, Les principes, op. cit., p.138.
4
O princípio é igualmente reconhecido em um outro documento não obrigatório, a Agenda 21, 16 de junho
de 1992, UN Doc. A/ Conf. 151/26, Vol. III (1992).
Na mesma época, o princípio foi citado na maioria das declarações internacionais
relativas à proteção ambiental ou ao desenvolvimento sustentável: em Berger, em 16 de
maio de 1990, pela Comissão Econômica das Nações Unidas para a Europa5; em 25 de
maio de 1989, pelo Conselho Executivo do Programa das Nações Unidas para o Meio
Ambiente (PNUMA)6; em Addis-Abeba, em julho de 1990, pelo Conselho dos Ministros
da Organização da Unidade Africana (OUA); em outubro de 1990, pela Comissão
Econômica e Social para a Ásia e o Pacífico (ESCAP)7 e, finalmente, pelo Conselho dos
Ministros da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE).
A profusão de atos enunciando assim o “princípio” ou a “abordagem da
precaução” não deve, entretanto, iludir. Seu estatuto depende em grande parte da natureza
dos textos que o enunciam. Apesar das intenções louváveis que defendem essas
numerosas declarações, o princípio da precaução não tem, nem de longe, os traços
necessários para seu reconhecimento como uma regra jurídica. Nesse estágio, o princípio
permanece desprovido de alcance cogente na medida em que esses diferentes
fundamentos jurídicos não têm por objetivo obrigar seus signatários.
Contudo, o fato de o princípio da precaução estar sendo regularmente formulado há
mais de uma década por esses instrumentos contribui para que esteja sendo
progressivamente inserido nos textos convencionais com caráter obrigatório8.
Consagrado num primeiro estágio nas declarações, o princípio faz agora o papel de
precursor de regras obrigatórias. Além disso, a reiteração dos compromissos assumidos
pelos Estados por meio de resoluções sucessivas pode ter importante repercussão sobre a
elaboração posterior de um princípio de direito costumeiro, utilizando notadamente a
evolução progressiva da opinio juris necessária à fixação de uma nova regra44. Em outras
5
Declaração Ministerial de Bergen sobre o Desenvolvimento Sustentável na Região ECE, para. 7.
Decisão do Conselho Executivo do PNUE 15/27 (1989) sobre a abordagem de precaução em matéria de
poluição marinha.
7
Declaração de Bangcoc de 1990 sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustentável na Ásia e no
Pacífico.
8
Sobre a integração de conceitos de soft law no direito convencional, ver . D. Shelton. “Law Non-Law and
the Problem of “ Soft Law” e A. Kiss. “Commentary and Conclusions”, in D. Shelton (ed.), Commitment
and Compliance, op. cit., p. 10, 229. Ver também C.M. Chinkin. “Normative Development in the
International Legal System “, in D. Shelton (ed.). Commitment and Compliance, op. cit., p. 31-34.
44
Licitude da ameaça ou do emprego de armas nucleares, parecer de 8 de julho de 1996, Rec, 1996,p. 254255, parágrafo 70.
6
palavras, a repetição do princípio da precaução, numa pletora de atos não cogentes, atesta
seu status nascendi45.
2. A Consagração Progressiva do Princípio da Precaução nas Convenções
Internacionais
i) Uma progressão espetacular
Logo no início da década de oitenta, o princípio da precaução foi inscrito na maior
parte dos atos internacionais bilaterais e multilaterais que dizem respeito à proteção do
meio ambiente11. A incerteza envolvendo as causas e os efeitos da poluição atmosférica e
marinha serviu-lhe como foro privilegiado, no final dos anos oitenta. Assim, as
convenções seguintes fazem referência tanto a uma abordagem quanto a um princípio da
precaução:
-
Convenção de Londres, de 30 de novembro 1990, sobre a preparação, a
luta e a cooperação quanto à poluição por hidrocarburetos12.
-
Convenção de Paris, de 22 de setembro de 1992, sobre a Proteção do
Ambiente Marinho do Atlântico13.
-
Convenção de Helsinque, de 17 de março de 1992, sobre a Proteção e a
Utilização de Cursos de Água Transfronteiriços e de Lagos Internacionais14.
45
Fr. Maes. “Environmental Law Principles and the Legislator: the Law of the Sea”, in M. Sheridan e L.
Lavrysen (eds.), Environmental Law Principles in Practice, Bruxelles, Bruylant, 2002, p. 59; M. Kamto.
“Les nouveaux principes du droit international de l'environnement”, Revue juridique de l'environnement,
1993/1, p. 11.
11
Sobre os desenvolvimentos recentes do princípio da precaução em direito internacional, ver. D. Freestone
e E. Hey. “Origins and Development of the Precautionary Principle”, in The Precautionary Principle and
International Law. Londres, La Haye, Boston, Kluwer Law Intl., 1996, p. 3; A. Kiss. “Chronique de droit
international”, R.J.E., 1996/1-2, p. 96; P. Birnie. “The Status of Environmental “soft law” : Trends and
Examples with Special Focus on IMO Norms, in Competing Norms”, in The Law of Marine Environmental
Protection. Londres, La Haye, Boston, Kluwer Law Intl., 1997, p. 51 ; T.O'Riordan, J. Cameron e A.
Jordan A. (eds.), Interpreting the Precautionary Principle, 2 ed.. Londres: Cameron & May, 2001.
12
Segunda consideração da Convenção de Londres.
13
O princípio é definido pela Convenção OSPAR como sendo aquele “segundo o qual medidas de
prevenção devem ser tomadas quando houver motivos razoáveis para inquietar-se com fato de que as
substâncias ou a energia introduzida no meio marinho possa trazer riscos para a saúde do homem,
prejudicar os recursos biológicos e os ecossistemas marinhos, ficar atento aos valores de concordância ou
criar obstáculos a outras utilizações legítimas do mar, mesmo se não existirem provas concludentes a
partir de um relatório de causalidade entre as contribuições e os efeitos” (artigo ponto 2, a). (tradução não
oficial).
-
Convenção de Helsinque, de 2 de abril de 1992, sobre a Proteção do
Meio Marinho, na Zona do Mar Báltico15.
-
Convenção de Charleville-Mezière, de 26 de abril de 1994, sobre a
Proteção do rio Escaut e do rio Meuse16.
-
Convenção de Sofia, de 29 de junho de 1994, sobre a Cooperação para a
Proteção Sustentável do rio Danúbio 17.
-
Protocolo de Barcelona, de 10 de junho de 1995, na Convenção de
Barcelona de 1976, sobre as Zonas Especialmente Protegidas e a Diversidade Biológica,
no Mediterrâneo19.
-
Convenção de Rotterdam, de 22 de janeiro de 1998, sobre a Proteção do
rio Reno20.
O princípio ganhou rapidamente o setor da pesca, sendo inserido em diversas
disposições do acordo de Nova Iorque, de 4 de dezembro de 1995, sobre a aplicação da
Convenção sobre o Direito do Mar, relativo à conservação e à gestão das populações de
peixes tranzonais e populações de peixes altamente migratórios. Quanto à poluição
atmosférica, a primeira norma internacional a consagrar o princípio foi a Convenção
sobre a Poluição Atmosférica de Longa Distância, adotada em Genebra, em 13 de
novembro de 1979, pela Comissão Econômica das Nações Unidas para a Europa22.
15
As Partes contratantes na convenção de Helsinque engajaram-se em aplicar o princípio da precaução, que
consiste: “em tomar medidas preventivas, uma vez que se basearam no pensamento de que as substâncias
ou a energia introduzida, direta ou indiretamente, no meio marinho possa colocar em perigo a saúde do
homem, prejudicar os recursos biológicos e os ecossistemas marinhos, impedir outras utilizações legítimas
do mar, mesmo quando o relatório de causalidade entre as contribuições e seus efeitos não está
estabelecido” (artigo 3, alínea 2)(tradução não oficial).
16
Os acordos Escaut-Meuse de Charleiville-Mezières definiram-no como o princípio “em virtude do qual a
aplicação de medidas destinadas a evitar que a rejeição de substâncias perigosas pudesse ter um impacto
transfronteiriço significativo não se difere do motivo de que a pesquisa científica não demonstrou
plenamente a existência de um espaço de causalidade entre a rejeição dessas substâncias, de um lado, e um
eventual impacto transfronteiriço significativo.” (artigos 2, a e 3,2 a).
17
”O princípio do poluidor-pagador e o princípio da precaução constituem o fundamento de todas as
medidas destinadas a proteger o Danúbio e as águas de sua bacia hidrográfica” (artigo 2.4).
19
Preâmbulo do Protocolo de Barcelona.
20
Artigo 4 da Convenção de Rotterdam.
22
As Partes contratantes da Convenção de Genebra sobre a Poluição Atmosférica de Longa Distância, de
13 de novembro de 1979, não apenas reconheceram “a possibilidade de que a poluição do ar, inclusive a
poluição atmosférica transfronteiriça, provoca a curto e longo prazo efeitos danosos”, mas também
tiveram receio de que “o fato de que o aumento previsto do nível de emissão de poluentes atmosféricos na
Mesmo não fixando nenhuma quota de redução de emissões de cloro na atmosfera, a
Convenção de Viena, de março de 1985, para a Proteção da Camada de Ozônio
estabeleceu um processo de regulação que rapidamente, em 1987, originou o Protocolo
Adicional de Montreal, que foi emendado várias vezes para, numa preocupação de
precaução, suprimir totalmente o uso dos gases CFC, em 199523. Nesse sentido, a
Convenção Quadro das Nações Unidas sobre as Mudanças Climáticas, assinada em Nova
Iorque, em 9 de maio de 1992, impõe às Partes que tomem “medidas de precaução”4.
Enfim, o Protocolo de Oslo, de 14 de junho de 1994, na Convenção Sobre a Poluição
Atmosférica de Longa Distância, relativo a uma nova redução de emissões de enxofre,
enuncia o princípio em seu preâmbulo.
O princípio não está ausente nas convenções relativas à conservação da
diversidade biológica. A Convenção Sobre a Diversidade Biológica, de 5 de junho de
1992, proclama de maneira implícita o princípio em seu preâmbulo25, enquanto a
resolução da conferência das partes à convenção CITES de Forte Lauderdale, de 18 de
novembro de 199426, e o Tratado de Haia, de 16 de setembro de 1995, sobre a Convenção
sobre Pássaros Aquáticos Migratórios Africanos27, apontam-no expressamente. O fato de
o princípio da precaução ser enunciado nessas convenções internacionais não revela seu
estatuto jurídico28. Para acordar o estatuto de regra de direito positivo convencional ao
princípio da precaução, é necessário primeiramente verificar se o estatuto está
região pudesse aumentar esses efeitos danosos”. O segundo protocolo dessa convenção reconhece
explicitamente o princípio da precaução (tradução não oficial).
23
Partindo da constatação de que efeitos nefastos resultam ou podem resultar de atividades humanas que
“modificam ou podem modificar a camada de ozônio”, as Partes do protocolo de Montreal disseram-se
“determinadas a proteger a camada de ozônio, tomando medidas de precaução para regulamentar
imparcialmente o volume mundial total de emissões de substâncias que a empobrecem, o objetivo final
sendo o de eliminá-los em função da evolução de conhecimentos científicos e levando em conta
considerações técnicas e econômicas” (segunda e sexta motivações do Protocolo de Montreal). A
convenção de Viena fez menos caso do princípio da precaução. Em virtude de sua sexta motivação, as
Partes estariam “cientes das medidas de precaução já tomadas em âmbito nacional e internacional,
visando à proteção da camada de ozônio”. (tradução não oficial).
25
O preâmbulo da CDB prevê que “no momento em que existe uma ameaça de redução sensível ou de
perda da diversidade biológica, a ausência de certezas científicas totais não deve ser invocada como razão
para postergar as medidas que permitem evitar o perigo ou atenuar os efeitos”. (tradução não oficial)
26
Resolução da nona conferência das Partes (Conf. 9.24). Ver B. Dickson. “ The Precautionary Principle in
CITES: A Critical Assessment “, 1999, n.39, Natural Resource Journal, p. 211.
27
Artigo 2, alínea 2, e) Tratado de Haia.
28
P. Martin-Bidou. “ Le principe de précaution au droit international de l’environnement”, R.G.D.I.P.,
1999/3, p. 660.
reincorporado de forma correta no dispositivo de um texto de alcance normativo (enfoque
formal) e até que ponto obriga seus destinatários (enfoque material).
ii) Enfoque formal
Num plano formal, no momento em que um princípio é enunciado por um tratado
ou uma convenção internacional, deveria adquirir o valor normativo que é fixado por seus
instrumentos. Nas ordens jurídicas nacionais em que o tratado ou a convenção
internacional alcançaram um valor superior àquele da lei nacional, o princípio deverá
impor-se ao legislador nacional. No entanto, o estatuto jurídico do princípio nas
convenções citadas é tudo, menos homogêneo. Ora se trata de uma “abordagem de
precaução”, ora de um “princípio”. Ora esse princípio figura no preâmbulo das
convenções29, ora ele se encontra inscrito no próprio dispositivo da Convenção, seja sob a
forma de uma obrigação geral30, seja sob a forma de um dispositivo mais preciso31.
Todavia, ele só é um princípio de direito positivo se for afirmado no próprio dispositivo
da convenção. Mencionado no preâmbulo, pode apenas inspirar as obrigações jurídicas
mais precisas que se encontram enunciadas, no dispositivo da convenção.
iii) Enfoque material
A questão do estatuto jurídico do princípio da precaução nas convenções
internacionais tende a tornar-se mais complexa no momento em que se examina sua
redação. Nem sempre é apresentado como uma regra de aplicação imediata que se impõe
diretamente aos Estados e que os juízes terão de levar em consideração em suas decisões.
No momento em que a Convenção prevê expressamente a adoção de normas de
execução, o princípio encontra-se desprovido de um caráter autônomo. Essa tese pode
encontrar fundamento, por um lado, na estrutura do direito internacional e, por outro,
numa interpretação literal de certas disposições que o enunciam.
29
Esse é o caso do princípio da precaução na Convenção sobre a Diversidade Biológica, de 5 de junho de
1992 e no Protocolo de Oslo, de 14 de junho de 1994, na Convenção sobre a Poluição Atmosférica
Transfronteiriça de Longa Distância, relativo a uma nova redução das emissões de enxofre.
30
Ver o artigo 3, alínea 3 da Convenção de 9 de maio de 1992, sobre a mudança climática.
31
Ver o artigo 4 da Convenção de Bamako, de 30 de janeiro de 1991, sobre a interdição de importar
resíduos perigosos e o controle de seus movimentos transfronteiriços, na África.
Constata-se que o princípio figura nas diversas convenções quadro, aquelas que
permitem recolher uma vasta participação dos Estados. Deverá ainda aparecer por meio
dos protocolos que serão adotados após a entrada em vigor da convenção que, além do
mais, só constitui uma primeira etapa na elaboração de regras obrigatórias32.
Ademais, o emprego dos termos “basear”, “guiar”, “inspirar”, “esforçar-se”
parecem tirar-lhe toda a aplicabilidade imediata e autônoma. A título de exemplo, a
Convenção de Bamako, de 30 de janeiro de 1991, sobre a interdição de importar resíduos
perigosos e sobre o controle dos movimentos transfronteiriços e a gestão dos resíduos
perigosos produzidos na África prevê que "cada parte encarrega-se de adotar e de
colocar em funcionamento medidas de precaução para confrontar-se com os problemas
da poluição, (...)" enquanto, segundo a Convenção de Helsinque, de 17 de março de
1992, sobre a Proteção e a Utilização de Cursos de Água Transfronteiriços e de Lagos
Internacionais, as partes “são guiadas” pelo princípio da precaução. A Convenção de
Sofia, de 29 de junho de 1994, sobre a Cooperação para a Proteção e a Utilização do rio
Danúbio prevê que esse princípio constitui “o fundamento” de todas as medidas
destinadas a proteger o Danúbio e as águas de sua bacia hidrográfica, enquanto a
Convenção de Rotterdam, de 22 de janeiro de 1998, sobre a Proteção do rio Reno enuncia
que “as partes contratantes inspiram-se” no princípio.
Apesar de tudo, em outras numerosas convenções, o princípio é redigido de maneira mais afirmativa e aplica-­‐se, portanto, aos Estados-­‐partes. Assim, a Convenção de Paris, de 22 de setembro de 1992, sobre a Proteção do Meio Marinho do Nordeste do Atlântico e a Convenção de Barcelona, de 16 de fevereiro de 1976, sobre o mar Mediterrâneo, prevêem que as “partes apliquem” o princípio da precaução. Nesse mesmo sentido, conforme a Convenção Quadro, de 9 de maio de 1992, sobre as Mudanças Climáticas, “as partes são incumbidas de tomar as medidas de precaução...”. Entretanto, a maior parte dessas disposições geralmente não se preocupa em definir o princípio ou em precisar as modalidades de sua aplicação. Convém, portanto, verificar caso a caso se os termos empregados para descrever o princípio são suficientemente cogentes para decidir se é passível de ser 32
G. Palmer. “New Ways to Make International Environmental Law”, American Journal of International
Law, 1992, vol. 86, n. 2, p. 259 ; L. Gehring. “International Environmental Regimes: Dynamic Sectoral
Legal Systems “, Yb Intl. Environmental Law, 1990, n. 1, p. 35.
aplicado diretamente no que diz respeito aos Estados, sem o intermédio de eventuais normas de execução. 3. O Princípio da Precaução, Regra do Direito Consuetudinário
A repetição do princípio da precaução em um grande número de convenções
conduz à questão de saber se ele se tornou um princípio de direito internacional
consuetudinário. Se a obrigação dos Estados de cuidar para que as atividades exercidas
nos limites de sua jurisdição ou sob seu controle não causem danos ao meio ambiente
pode ser considerada como um princípio de direito consuetudinário33, o valor habitual do
princípio da precaução permanece controverso.
Observar-se-á que o artigo 38 do Estatuto da Corte Internacional de Justiça
abstém-se de estabelecer uma hierarquia entre as fontes do direito internacional que estão
enumeradas; assim, não é possível postular se o tratado é superior ao costume ou o
inverso34. O fato de não haver hierarquia entre as diferentes fontes do direito
internacional não significa que, de um ponto de vista material, não haja hierarquia entre
as normas jurídicas. Com efeito, uma fonte pode sobrepor-se à outra em razão da
generalidade das regras em causa ou de sua respectiva posição cronológica.
A regra consuetudinária é a conjunção da opinio juris dos Estados – a aceitação
do caráter obrigatório da regra – e de uma prática efetiva35. Ora, apenas a aplicação
repetida de uma prática jurídica estatal é suscetível de transformar a precaução em norma
consuetudinária36. A prática deve ser “suficientemente embasada e convincente”37. As
declarações, os comentários dos projetos de tratados pelos governos, as correspondências
33
C.I.J., Licéité de la menace ou de l’emploi d’armes nucléaires, aviso consultivo de 8 de julho de 1996,
par. 29; Gabcikovo-Nagymaros, parágrafo. 53, 7 e 140.
34
N. K. Dinh et al., Droit international public, 6º ed. Paris : L.G.D.J., 1999, n. 223 e 224, p. 344-350.
35
C.I.J., Licéité de la menace ou de l’emploi d’armes nucléaires, Parecer Consultivo de 8 de julho de 1996,
p. 253, parágrafo 64.
36
Ver. A. D’Amato, The Concept of Custom in International Law. Londres: Cornell, Ithaca, 1971, p. 7487; H. Thirlway, International Customary Law and Codification, Leiden, Sijhoff, 1972, p. 145-146;G.J.H.
van Hoof, Sources of International Law, Deventer, Kluwer, 1983, p. 87; Hoggenmacher. “La doctrine des
deux elements du droit coutumier dans la pratique de la Cour internationale “, R.G.D.I.P., 1986, 90, 5, p.
114; M. Bos. “The identification of Custom in International Law “, German Yb. of Intl. Law., 1982, 25, p.
22.
37
C.I.J., Délimitation de la frontière maritime dans la région du golfe du Maine, 12 outubro de 1984, Rec.
1984, p. 2999, parágrafo 111.
diplomáticas, as legislações, as decisões jurisdicionais e administrativas, os argumentos
diante dos tribunais internacionais, as declarações das organizações internacionais e as
resoluções são também exemplos de práticas estatais que devem ser consideradas para
avaliar o estatuto consuetudinário do princípio da precaução38.
Conforme a maioria dos autores, não há dúvida de que o princípio da precaução
reveste desde já o estatuto da regra internacional costumeira39, mesmo que essa
interpretação permaneça ainda controversa, no âmbito da doutrina40. A tese do valor
consuetudinário do princípio da precaução choca-se, entretanto, com a atitude de diversas
instâncias jurisdicionais internacionais que se recusam a pronunciar-se claramente a favor
dessa solução41.
Tomemos posição nesse debate. As pesquisas que conduzimos nestes últimos
anos sobre o estatuto e o alcance do princípio da precaução, tanto em direito
internacional, quanto em direito comunitário ou em direito comparado nos permitem
afirmar que a prática estatal expressa, por sua repetição, a convicção da maioria dos
membros da comunidade internacional, de que aceitam que o princípio da precaução é
um princípio de direito costumeiro, ao aplicarem as medidas de precaução em diferentes
domínios, como a poluição atmosférica, a gestão dos recursos pesqueiros e a conservação
da biodiversidade42. A repetição desse princípio em cinqüenta protocolos e convenções,
no espaço de uma dezena de anos, constitui inegavelmente a prova da consolidação de
uma prática constante, imutável e efetiva, em um nível universal e regional, num
momento em que os riscos se revelam graves ou irreversíveis. A consagração recente do
princípio da precaução no direito internacional convencional não constitui um obstáculo
38
I. Brownlie, International Law, 5 ed.. Oxford: Oxford University Press, 1999, p. 5 ; N. Q. Dinh et al,
Droit international public, 6 ed.. Paris: L.G.D.J., 1999, p. 321-323.
39
Ver, por exemplo, P. Sands, Principes of International Environmental Law, vol. I, Manchester. Londres:
Cameron May, 1994, p. 283; J. Cameron e J. Abouchar. “The Status of the Precautionary Principle in
International Law”, in D. Freestone e E. Hey (eds.), The Precautionary Principle in International Law,
Kluwer Law Int’l. Londres, Boston, New York, 1996, n. 29, p. 52 ; O. Mcintyre e T. Mosedale “ The
Precautionary Principle as a Norm of Customary International Law “, Journal of Environmental Law, 1997,
N. 9/2, p. 221.
40
Ver, por exemplo, P. Birnie e A. Boyle, International Law and the Environment. Oxford: Clarendon
Press, 1992, p. 98; L. Gündling. “The Status in International Law of the Precautionary Principle”,
International Journal of Estuarine and Coastal Law, 1990, n. 25, p. 30.
41
Cf. infra, Seção V.
42
Ver particularmente nossa obra Environmental Principles, op.cit. No mesmo sentido, ver. D. Freestone.
“International Fisheries Law since Rio… “, in A. Boyle e D. Freestone (eds.), International Law and
Sustainable Development. Oxford: Oxford University Press, 1999, p. 135-164.
que o impedirá de vir a ser um princípio de direito consuetudinário. Ainda que um certo
lapso de tempo deva ocorrer para que uma prática estatal tome consistência suficiente,
nenhum prazo é fixado nem pela doutrina, nem pela jurisprudência43. Certos princípios de
direito consuetudinário surgiram muito rapidamente – é o caso, por exemplo, do regime
da plataforma continental – considerando que havia elementos suficientes que atestavam
uma prática estatal constante. A isso é necessário acrescentar que, se a prática estatal
deve ser suficientemente consistente, não deve, para isso, ser universal44. O fato de que
certos Estados ou grupos estatais não reconhecem expressamente o princípio da
precaução não constitui, portanto, um obstáculo para seu reconhecimento como princípio
de direito consuetudinário.
4. O Princípio da Precaução e os Princípios Gerais do Direito Reconhecidos
pelas Nações Civilizadas
O Estatuto da Corte Internacional de Justiça prevê que a mesma aplique, além das
convenções internacionais e do costume internacional, “os princípios gerais de direito,
reconhecidos pelas nações civilizadas”. Inseridos entre as fontes formais do direito
internacional, os princípios gerais de direito são diretamente aplicáveis pelo juiz
internacional. Por serem partes dos Estatutos da Corte Internacional de Justiça, todos os
Estados-membros da ONU são vinculados pelos princípios que podem ser enunciados por
essa jurisdição.
Entretanto, o estatuto reservado aos princípios gerais do direito previsto no artigo
38, § 1º, alínea “c” do estatuto da Corte Internacional de Justiça, permanece
controverso45.
43
C.I.J., Plataforma continental do Mar do Norte (Dinamarca e Países Baixos c. RFA), 20 de fevereiro de
1969, Rec. 1969 p. 43, parágrafo 74.
44
A adoção de tratados multilaterais pode fazer emergir novas regras comunitárias. Por exemplo,
Plataforma Continental do Mar do Norte, op. cit, Rec p. 41, parágrafo 71.
45
Ver. G. Fitzmaurice. “The General Principles of International Law Considered from the Standpoint of the
Rule of Law “, RCADI, 1957, II, n. 92, p. 5; M. Akehurst. “Equity and General Principles of Law “,
International and Comparative Law Quarterly, 1976, p. 801; W. Friedmann. “The Use of General
Principles in the Development of International Law “, American Journal of International Law, 1963, p.
279; C. Parry, The Sources and Evidences of International Law, Manchester, Manchester U.P., 1965, p. 8391; J.G. Lammers. “General Principles of Law Recognized by Civilized Nations “, in Essays on the
Development of the International Order (Panhuys), Alphen a/d Rijn, Sijthof & Noordhoff, 1980, p. 53-75;
De acordo com alguns autores, não se trataria de uma fonte formal do direito46.
Essa tese não merece apoio, pois se choca com o texto do artigo 38, § 1º, “c”, que,
analisando expressamente os princípios gerais ao lado das outras fontes do direito
internacional, consagra sem ambigüidade sua autonomia. Em compensação, outros
autores consideram que essa noção inclui os princípios comuns das ordens jurídicas
nacionais47. Uma terceira tese foi enunciada: os princípios gerais do direito seriam
específicos às relações internacionais (por exemplo, o princípio de não intervenção, de
reciprocidade, de igualdade entre os Estados)48. Enfim, certos autores consideram que
esse debate se reveste de contornos um pouco acadêmicos na medida em que, geralmente,
a Corte Internacional de Justiça não se preocupa em explicitar se os princípios que ela
cita estão ligados ao artigo 38, parágrafo 1º, alínea “c” ou se trata de princípios de direito
consuetudinário.
É incontestável que a inserção da alínea “c”, no parágrafo 1º do artigo 38, do
estatuto da Corte Internacional de Justiça, estava destinado a permitir a essa jurisdição
preencher as lacunas da ordem jurídica internacional com o objetivo de evitar qualquer
efeito non-liquet49. Essa técnica jurídica subscreve, além disso, uma visão moderna do
direito segundo a qual o sistema jurídico deve ser sempre completo e coerente. Em todo o
caso, os princípios visados no artigo 38, 1, “c” apresentam vantagens em relação aos
princípios do direito consuetudinário de que possam ser invocados pelo juiz
A. Vitanyi. “Les positions doctrinalçes concernant le sens de la notion de principes généraux de droit
reconnus par les nations civilisés”, R.G.D.I.P., 1982, n.86, p. 45-116; I. Brownlie, op. cit., p. 15-19; G.J.H.
van Hoof, op. cit., p. 131-150.
46
Ver. H. Kelsen, Principles of International Law, 2 ed.. New York: Holt, Rhinehart e Winston, 1956, p.
539-540; R.Y. Jennings. “The Identification of International Law “, in Bin Cheng (ed.), International Law:
Teaching and Practice. Londres: Stevens & Sons, 1982, p. 4; A. Cassese, International Law in a Divided
World. Oxford: Clarendon, 1986, p. 173-174; A. Cassese e J.H. Weiler (eds.), Change and Stability in
International Law-Making. Berlin: De Gruyter, 1988, p. 33-37.
47
Ch. de Visscher . “Contributions à l’étude des sources de droit international “, R.D.I.L.C., 1993, p. 406;
H. Lauterpacht, Private Law Sources and Analogies of International Law, Weesp Archon, 1970, p. 69-71;
H. Bokor-Szego. “General Principles of Law “, in M. Bedjaoui (ed.), International Law: Achievements and
Prospects. Paris, Dordrecht: Martinus Nijhof, 1991, p. 217; J. Combacau e S. Sur, Droit international
public, 2 ed.. Paris: Montchrestien, 1995, p. 46; N. Q. Dinh et al, Droit international public, 6 ed.. Paris:
L.G.D.J., 1999, p. 347-348. Além disso, as jurisdições internacionais desenvolvem os princípios gerais,
emprestando-lhes elementos que foram comuns a todos ou à maior parte dos regimes jurídicos nacionais ou
que foram transpostos no direito internacional (in dubio pro reo).
48
I. Brownlie, op. cit., p. 19; M. Virally. “Le rôle des principes dans le développement du droit
international”, in Recueil d'études de droit international en hommage de Paul Guggenheim, Genebra, 1968,
p. 533; J.G. Lammers. “General Principles of Law... “, op. cit., p. 57-59, 66-69.
49
I. Brownlie, Principles of Public International Law, 5 ed.. Oxford: Clarendon, 1998, p. 15; M. Shaw, op.
cit., p. 81.
internacional, mesmo na falta de uma prática estatal. Assim, os princípios gerais do
direito um pouco esquecidos pelos Estados e as organizações internacionais podem
sempre ressurgir, no contexto de uma decisão tomada por uma jurisdição internacional.
Apesar das vantagens que apresenta o reconhecimento de um princípio geral de
direito reconhecido pelas nações civilizadas, é forçoso constatar que os Estados
raramente fundamentam seus agravos sobre sua violação; nenhuma decisão da Corte faz
referência expressa a essa fonte formal do direito internacional50. Essa reserva por parte
da Corte Internacional de Justiça, assim como de outras jurisdições internacionais,
explica-se sem dúvida pelo fato de seu acionamento ser tributário do consentimento dos
Estados51 e de que, enunciando de maneira demasiado audaciosa os novos princípios,
colocariam em risco sua credibilidade. A consagração de um princípio como o da
precaução poderá desagradar bastante a certas pessoas em razão das controvérsias que
essa norma suscita.
No entanto, uma jurisdição poderia consagrar a precaução, considerando o
“princípio geral de direito”, sem referir-se expressamente ao artigo 38, § 1º, “c”, do
Estatuto da Corte. O caráter comum dos princípios gerais do direito tem a ver com seu
alto nível de abstração e sua extrema generalidade, que é declaradamente o caso do
princípio da precaução. Preenchendo as lacunas do direito positivo, tal princípio geral
poderia exercer uma função supletiva no momento em que os tratados ou o direito
consuetudinário não prevêem soluções, no propósito de garantir as coerências do sistema
jurídico. Poderia igualmente assumir uma função interpretativa, projetando uma nova luz
sobre o direito convencional52. Nas duas hipóteses, o princípio da precaução assumiria
um importante papel como fonte autônoma do direito.
5. O Cálculo Progressivo do Princípio da Precaução pelas Jurisdições
Internacionais
50
H. Thirlway, op. cit., p. 110-111; J.G. Lammers, 'General Principles of Law...', op. cit., p. 71.
W. Friedmann, The Changing Structure of International Law. Londres: Stevens & Sons, 1964, p. 189.
Ver, também, G.J.H. van Hoof, op. cit., p. 144-146; J. Combacau e S. Sur, op. cit., p. 46.
52
Observar que, na questão Gabcikovo-Nagyramos, a Corte Internacional de Justiça julgou que o
desenvolvimento sustentável não constitui um princípio e sim um “conceito” suscetível de exercer uma
função interpretativa a respeito de disposições convencionais.
51
Podemos questionar se o princípio da precaução constitui em direito internacional
um meta-princípio da mesma forma que o conceito de desenvolvimento sustentável53, se
se trataria de um padrão jurídico ou se constituiria desde já um princípio geral do direito,
tendo em vista o artigo 38, 1, “c”, ou um princípio de direito internacional
consuetudinário. Por diversas vezes, o princípio da precaução foi invocado diante de
diferentes jurisdições internacionais. Não obstante o dispositivo relativamente matizado
de certas decisões, a maior parte dessas jurisdições se mostrou até o presente fortemente
reservada quanto a uma aplicação direta e autônoma do princípio da precaução. Dessa
maneira, o princípio impõe-se progressivamente nos casos em que a incerteza científica é
significativa, como um princípio geral do direito internacional do meio ambiente.
i) O princípio da precaução na jurisprudência da Corte Internacional de
Justiça
Por duas vezes, o princípio da precaução foi invocado diante da Corte
Internacional de Justiça, que se recusou a estatuir sobre seu fundamento. Na questão dos
testes nucleares franceses de 1992, a Corte eludiu, por motivos de procedimento, a queixa
apresentada pela Nova Zelândia que se fundamentava no princípio da precaução54. Na
questão Gabcikovo-Nagyramos, a Corte evitou pronunciar-se diretamente sobre a
aplicação do princípio da precaução que fora invocado pela Hungria para livrar-se de
suas obrigações55.
A Hungria, neste caso particular, justificara sua recusa em seguir a construção da
infra-estrutura transfronteiriça sobre o Danúbio, invocando o estado de necessidade,
tendo em vista o risco que corria o meio ambiente em razão da construção da barragem.
Reconhecendo o caráter sério das preocupações ambientais apresentadas pela Hungria,
para justificar sua recusa em observar o tratado relativo à construção de obras hidráulicas
sobre o Danúbio, que ela havia concluído com a antiga Tchecoslováquia, a Corte
53
V. Lowe. “Sustainable Development and Unsustainable Arguments “, in A. Boyle e D. Freestone (eds.),
International Law and Sustainable Development . Oxford: Oxford U.P., 1999, p. 19-39.
54
C.I.J., Nova Zelândia e França., decisão de 22 de setembro de 1995.
55
C.I.J., Hungria c. Eslováquia, 25 de setembro de 1997, Rec. 1997, parágrafo 56.
Internacional de Justiça não admitiu, numa sentença de 25 de setembro de 1997, que
havia ali um risco grave e iminente em razão do caráter vago dos danos invocados pelas
autoridades húngaras56.
“O perigo alegado pela Hungria, por ser a longo prazo – elemento
mais importante - permanece vago. Como a própria Hungria reconhece, os
danos que ela iria sofrer deveriam resultar, antes de tudo, de processos
naturais relativamente lentos, cujos efeitos não poderiam ser muito
avaliados. (...). Ainda que o perigo alegado pudesse ser muito grave,
dificilmente, pelo exposto, poderia ser considerado como certo e,
conseqüentemente, como iminente em 1989” (§ 56). (tradução não oficial).
Esse raciocínio volta a excluir o longo prazo, tendo em vista que este comporta
demasiadas incertezas. Os riscos devem ser temidos com um mínimo de certeza.
Conseqüentemente, os riscos que poderiam causar a exploração da barragem a longo
prazo não permitem justificar a ruptura unilateral, por parte da Hungria, de suas
obrigações internacionais.
ii) O princípio da precaução na jurisprudência do Órgão de Solução de
Controvérsias da Organização Mundial do Comércio
O fim do século XX ficará marcado por duas evoluções paralelas sem precedentes
na história da humanidade: as crises ecológicas de uma amplitude sem igual (mudanças
climáticas, empobrecimento da biodiversidade, rarefação do ozônio estratosférico,..) que
emergiram ao mesmo tempo que uma liberalização progressiva do comércio mundial, que
encontrou sua saída em 1994, quando da conclusão da Rodada do Uruguai. Sustentando
esses desenvolvimentos paralelos, as regras jurídicas defrontam-se hoje em numerosos
aspectos, de maneira nitidamente mais acentuada que no passado. Assim, a abertura dos
mercados opõe-se à vontade de certos Estados de melhorar a proteção acordada à saúde e
à segurança de seus trabalhadores e de seus consumidores ou ao meio físico. Proibido
56
Ibidem.
pela Comunidade Européia em razão dos temores dos consumidores europeus, a carne
bovina com hormônios, por exemplo, é vendida livremente no outro lado do Atlântico.
Em todo o caso, o princípio da precaução conseguiu nessa questão aprofundar a
linha divisória entre os postulados, sustentando a liberalização do comércio mundial e a
imperiosa necessidade, reconhecida pela Comunidade Européia e por seus Estadosmembros, de adotar um alto nível de proteção do meio ambiente, dos consumidores e da
saúde pública57. Perseguindo um objetivo de proteção sanitária mais elevada que os
Estados Unidos e o Canadá, a Comunidade Européia interditou as importações de carne
bovina que continha substâncias hormonais, proveniente da América do Norte. Essa
medida de precaução, segundo as autoridades americanas, mascarava os desejos
protecionistas por parte dos europeus. A Comunidade Européia, no litígio contra os
Estados Unidos e o Canadá, defendeu vigorosamente que seu regime de interdição estava
amparado pelo princípio da precaução e que o mesmo era considerado uma regra
consuetudinária internacional. O Órgão de Apelação, por sua vez, deu uma resposta
menos comprometedora à questão58:
O estatuto do princípio da precaução em direito internacional
continua a ser o assunto de um debate entre os acadêmicos, os operadores
de direito, os regulamentadores e as jurisdições. O princípio da
precaução é tido por alguns como sendo uma metamorfose de um
princípio de direito geral de natureza consuetudinária do direito
internacional do meio ambiente. Não está claro se se trata aqui de um
princípio de direito geral ou de um princípio de direito consuetudinário.
Consideramos, entretanto, desnecessário, e provavelmente imprudente,
que o Órgão de Apelação tome posição no caso desta questão tão
importante quanto abstrata. Constatamos que a própria mesa-redonda
não tinha resolvido a questão do estatuto jurídico do princípio da
precaução no direito internacional e que tal princípio, fora do domínio do
direito internacional do meio ambiente, ainda espera uma formulação
mais qualificada.
57
Essa obrigação resulta dos artigos 95, § 3), 152, § 1º, 153, § 1º e 175, § 2 do tratado da C.E.
Relatório do Órgão de Apelação da OMC sobre a questão das medidas comunitárias no que concerne à
carne e a seus produtos derivados (hormônios), WT/DS26/AB/R , 1998.
58
A partir desta constatação, o Órgão de Apelação concluiu que os litígios
suscitados pela vontade de alguns Estados em se opor, por razões de saúde, à importação
de produtos provenientes de outros Estados, deveriam ser resolvidos pelos acordos
concluídos sob a égide da OMC. A referência implícita que é feita ao princípio da
precaução nos artigos 5.7 e 3.3, do Acordo sobre a Aplicação das Medidas Sanitárias e
Fitossanitárias (acordo SPS), não pode levar à afirmação de que esse princípio
prevaleceria sobre a obrigação imposta pelo artigo 5.1 e 2 do acordo de trazer uma prova
científica de um risco.
O segundo litígio, no decorrer do qual o princípio da precaução fora evocado na
OMC, concernia à validade de uma decisão de embargo pronunciada pela Austrália sobre
os salmões provenientes do Canadá. As medidas australianas foram baseadas em uma
avaliação de riscos, cujo rigor era duvidoso. Fundamentando-se no relatório referente aos
hormônios, o Órgão de Apelação decidiu, em seu relatório de 20 de outubro de 1998, que
“o risco avaliado no quadro de um procedimento de avaliação dos riscos deve ser um
risco verificável. A incerteza teórica não é o tipo de risco que deve ser avaliado
conforme o artigo 5.1 do acordo SPS. Isto não significa, no entanto, que uma parte não
possa determinar seu nível apropriado de proteção em conformidade com o objetivo do
risco zero”. O Órgão de Apelação julgou que a proibição australiana à importação do
salmão não estava fundamentada sobre um procedimento de avaliação de riscos, como o
requerido pelo artigo 5.1 do acordo SPS e, portanto, condenou a Austrália59. Finalmente,
em um relatório de 22 de fevereiro de 1999, o Órgão de Apelação baseou-se novamente
na jurisprudência Comunidades Européias – Hormônios para rejeitar a aplicação correta
do princípio da precaução para concluir que a medida proibitiva japonesa não estava
corretamente formulada sobre uma avaliação dos riscos60.
Colocando o princípio da precaução, seja sobre o regime da avaliação dos riscos
(artigo 3.3), seja sobre uma cláusula de salvaguarda ( artigo 5.7) prevista pelo acordo
SPS, o Órgão de Apelação o admite sob uma forma extremamente simplificada.
Certamente os Estados vêem reconhecida, em virtude desse acordo comercial, a liberdade
59
Relatório do Órgão de Apelação da OMC, no caso Medidas que afetam a importação de salmão,
WT/DS18/AB/R , 1998.
60
Relatório do Órgão de Apelação da OMC, no caso Japão – medidas visando aos produtos agrícolas, 22
de fevereiro de 1999.
de escolher o nível de proteção sanitária que julgam apropriado e podem,
conseqüentemente, “introduzir ou manter as medidas sanitárias (...) que implicam um
nível de proteção mais elevado”61. Entretanto, não resta dúvida de que essas medidas
devem ser “baseadas sobre os princípios científicos” e não podem ser “mantidas sem
provas científicas suficientes”62. Em outros termos, a justificação científica impõe-se
aqui como um verdadeiro paradigma.
Dito isto, o Órgão de Apelação chegou, no entanto, a reformular certas condições
citadas. Assim, o estudo dos riscos pode comportar os dados “qualitativos” além das
informações “quantitativas”63 e fundamentar-se em opiniões científicas minoritárias64.
Assim, a avaliação científica deve corresponder à realidade e não unicamente às práticas
laboratoriais65. Essas reformulações levaram diversos autores a considerar que o Órgão
de Solução de Controvérsias da OMC estava disposto a levar em conta certas facetas do
princípio da precaução. Entretanto, é necessário lembrar que o risco deve apresentar uma
certa consistência para que o cálculo de um risco teórico continue excluído66. Do ponto
de vista decisório, o Órgão de Apelação integrou igualmente certos elementos do
princípio da precaução, reconhecendo a um Estado a faculdade de alcançar o objetivo de
um risco zero67 e exigindo uma ligação lógica – e não de causa e efeito – entre os
resultados de avaliação científica dos riscos e a medida adotada68. Desta forma, mesmo
que uma medida de proteção sanitária não deva adaptar-se aos resultados da avaliação, a
justificação científica continua sendo a brecha do acordo SPS69.
Se essa jurisprudência ajuda de certa maneira a aplicar alguns elementos do
princípio da precaução, não resta dúvida de que exige das partes que procedam a uma
avaliação específica de riscos considerados “verificáveis”70. Assim, a avaliação não pode
tratar de uma classe de substâncias consideradas de risco – os hormônios, por exemplo –
61
Art. 3.3.
Art. 2.2 e 3.3.
63
Caso dos Hormônios, Órgão de Apelação, parágrafo 184-186; Austrália – Medidas visando às
importações de salmões, relatório do Órgão de Apelação, 20 de outubro de 1998, parágrafo 124.
64
Caso dos Hormônios, Órgão de Apelação, parágrafo 194.
65
Ibidem, parágrafo 187.
66
Caso dos Hormônios, Órgão de Apelação, para. 186; Caso Austrália – Medidas visando às importações
de salmões, parágrafo 129.
67
Caso Austrália – Medidas visando às importações de salmões, Órgão de Apelação, parágrafo 125.
68
Caso dos Hormônios, Órgão de Apelação, parágrafo 195.
69
C. Noiville. “Principe de précaution et OMC “, Journal de Droit International, 2000, p. 270-273.
70
Caso dos Hormônios, Órgão de Apelação, parágrafo 201.
62
mas deve visar aos supostos efeitos de cada substância71. Por outro lado, o princípio da
precaução permanece encurralado nos limites de uma cláusula de salvaguarda, o artigo
5.7, que deve ser interpretada de forma restritiva. Confrontada a uma situação de urgência
quando as “provas científicas pertinentes são insuficientes”, a Comunidade Européia
poderá sempre, se assim o desejar, adotar “provisoriamente”, em virtude do artigo 5.7 do
acordo SPS, medidas sanitárias “sobre a base de informações pertinentes disponíveis”,
mas, neste caso, a manutenção da medida de proteção sanitária que for mais severa que
aquela prevista pelo Codex Alimentarius, terá apenas valor provisório e deverá ser
retirada posteriormente, após a realização de pesquisas que as autoridades públicas
envolvidas deverão efetuar72. Enfim, se se pode compreender que o Órgão de Apelação
esteja inclinado a admitir que o princípio constitui uma regra consuetudinária no domínio
da segurança sanitária e fitossanitária, o mesmo deveria acontecer com os litígios
ambientais em que o princípio se impôs verdadeiramente, tanto nos atos de soft norm,
como nas convenções internacionais.
iii) O princípio da precaução na jurisprudência do Tribunal do Direito do
Mar
Primeira decisão tomada pelo Tribunal Internacional de Direito do Mar, em 27 de
agosto de 1999, a decisão “Atum*” constitui uma interessante aplicação do princípio da
precaução no direito das pescas73, mesmo o Tribunal não tendo utilizado em sua decisão
o termo “princípio”. Nesse caso, a Nova Zelândia e a Austrália contestaram um programa
de pesca experimental de atum, liderado pelo Japão. Tal programa permitia, em virtude
de uma convenção regional, que os pescadores japoneses capturassem uma quantidade
71
Ibidem, parágrafo 200.
A época transitória deve ser estabelecida caso a caso, em função das circunstâncias específicas. Cf.
Japão – Medidas que visam aos produtos agrícolas, relatório do Órgão de Apelação, 22 de fevereiro de
1999, parágrafo 92.
*
Literalmente, a tradução correta seria atum de nadadeiras azuis, do inglês bluefin tuna, mas que
preferimos traduzir simplesmente por atum. [nota dos organizadores].
73
Atuns, medidas provisórias, ordem de 27 de agosto de 1999 (caso nº 3 e 4). Ver. H.S.Schiffman. “The
Southern Bluefin Tuna Case: ITLOS Hears Its First Fishery Dispute “, J. Int'l.Wildlife L. & Pol'y, 1999,
n.3, p. 318; B. Kwiatkowska, American Journal of Interntional Law, 2000, n.24, p. 150; K. Leggett, 'The
Southern Bluefin Tuna Cases: ITLOS Order on Provisional Measures', R.E.C.I.E.L.,2000, n.9, p. 75 ; A.
Fabra. “The LOSC and the Implementaion of the Precautionary Principle “, YbIEL,, 1999, n.10, p. 17 ; D.
Freestone,’Caution or Precaution “ A Rose By Any Other Name…. “ ?’,YbIEL, 1999, n.10, p. 25-32.
72
maior de atum que o previsto, a título de subsídio das quotas de pesca. Essa decisão
unilateral tomada pelo Japão foi contestada com base nos artigos 64 e 116 a 119, da
Convenção de Montego Bay sobre o Direito do Mar e no direito consuetudinário, regras
que impõem a obrigação de cooperar diretamente, por intermédio das organizações
internacionais apropriadas, visando assegurar a conservação dos peixes altamente
migratórios e de promover sua exploração ideal.
Levado a se pronunciar sobre a adoção de medidas conservacionistas contrárias ao
programa experimental japonês, o Tribunal julgou que, em razão da incerteza científica
sobre os riscos que tal programa gerava para a sobrevivência da espécie de atum, “as
partes devem ... agir com prudência e precaução e cuidar para que medidas de
conservação eficazes sejam tomadas com o objetivo de impedir que a população desse
atum não sofra danos graves” 74.
A opinião separada dada pelo juiz Laing destaca que o Tribunal não aplicou como
tal o princípio da precaução, mas seguiu uma abordagem de precaução, sendo que este
conceito é mais flexível que a noção de princípio. Mesmo assim, uma abordagem de
precaução justifica a adoção de medidas conservacionistas para prevenir um risco de
“danos graves” e irreversíveis75.
Finalmente, no caso da usina MOX, a Irlanda solicitara ao Tribunal medidas
conservacionistas, objetivando obrigar o Reino Unido a suspender imediatamente a
autorização concedida à usina, em Sellfield, motivada pelo fato de que o Reino Unido
não observara diversas obrigações da Convenção sobre o Direito do Mar, notadamente as
resultantes dos artigos 123, 192 a 194, 197, 206, 207, 211, 212 e 21376. A Irlanda
questionava as conseqüências irreversíveis do despejo de plutônio no ambiente marítimo,
o risco de derramamentos e de emissões radioativas, tanto as resultantes da usina, como
em conseqüência de acidentes industriais ou de ataques terroristas. A Irlanda concluía
que o princípio da precaução impunha ao Reino Unido a responsabilidade de demonstrar
que nenhum dano resultaria dos derramamentos e das outras atividades da usina MOX, e
74
Para. 1777
J.P. Beurier e C. Noiville. “La Convention sur les droits de la mer et la diversité biologique”, in
Hommages à C. de Klemm. Estrasburgo : Conselho da Europa, , 2001, p. 107.
76
Mox, medidas provisórias, ordonnance de 3 de dezembro de 2001 caso nº 10.
75
que esse princípio deveria ser utilmente considerado pelo Tribunal na avaliação que ele
faria da urgência em se tomar medidas conservacionistas requeridas.
Ainda que não invocando como tal o princípio da precaução, o Tribunal obriga em
sua decisão de 3 de dezembro de 2001, a Irlanda e o Reino Unido a cooperarem e
fiscalizarem os riscos ou os efeitos que as operações da usina MOX poderiam resultar
para o mar da Irlanda:
84. Considerando que, na opinião do Tribunal, a prudência e a
precaução exigem que a Irlanda e o Reino Unido cooperem, trocando
informações relativas aos riscos ou efeitos que poderiam decorrer ou
resultar das operações da usina MOX e que elaborem, eventualmente,
meios de resolvê-las;
85. Considerando que a Irlanda e o Reino Unido deveriam, cada
um naquilo que lhes concerne, cuidar para não tomar nenhuma medida
que pudesse agravar ou aumentar a controvérsia submetida ao Tribunal
Arbitral, prevista no anexo VII;
86. Considerando que, em conformidade com o artigo 95,
parágrafo I, do Regimento, cada parte é obrigada a submeter ao Tribunal
um relatório e informações a respeito das disposições tomadas para
colocar em prática as medidas conservacionistas prescritas pelo
Tribunal;...
iv) Perspectivas
No momento em que aborda a questão do estatuto jurídico do princípio da
precaução em direito internacional, o juiz internacional, vê-se, de repente, diante de um
paradoxo. Do lado da Corte, esse princípio conhece um real sucesso, considerando-se seu
enunciado constante, na maioria dos atos de direito internacional, logo após a
Conferência do Rio sobre o meio ambiente e o desenvolvimento; por outro, nota-se uma
certa reticência da parte das jurisdições internacionais em reconhecer um valor
consuetudinário. O Órgão de Apelação da OMC recusa-se a se pronunciar sobre o
estatuto jurídico dessa norma, em sua decisão sobre os hormônios; na verdade, faz uma
aplicação extremamente simplificada, ao recordar a possibilidade de os membros da
OMC adotarem as medidas provisórias a título de precaução, em virtude do artigo 5.7, do
acordo SPS. Mesmo se as decisões tomadas pelo Tribunal Internacional do Direito do
Mar, nos casos do atum e da usina Mox, pareciam à primeira vista mais audaciosas, não
definiu o que entende por “precaução”. As opiniões isoladas parecem indicar que se
tratava aqui de uma abordagem e não de um princípio.
Essas reticências não podem ser explicadas de outro modo a não ser pela
dificuldade de pronunciar-se sobre o estatuto jurídico do princípio da precaução. Trata-se
de um princípio geral de direito, no sentido do artigo 38, 1, “c”, de uma categoria de
princípio sobre o gênero ou de um princípio de direito consuetudinário? Seja o que for,
esses diferentes processos demonstram o papel essencial que o princípio da precaução
pode ter nos litígios internacionais sobre a noção de ônus da prova.
6. Conclusões
No espaço de alguns anos, o princípio da precaução atingiu uma posição central,
no direito internacional do meio ambiente. Para nossas sociedades que se tornaram, sob
muitos aspectos, as “sociedades do risco”, este princípio é chamado a exercer um papel
emblemático. Se o princípio não deve submeter-se ao fantasma securitário, perseguindo o
sonho utópico do “risco zero”, seria irresponsabilidade, por outro lado, adotar a atitude do
apostador, ou ainda pior, a do cínico. Entre estes dois extremos, nossos sistemas jurídicos
devem retomar o caminho da prudência. Não seria lícito tentar ver este novo princípio
como um fenômeno passageiro com o qual é preciso simplesmente compor. Vilipendiado
ou enaltecido, ao princípio da precaução parece estar prometido um futuro brilhante.
Próprio de um contexto neo ou pós-moderno do direito, a afirmação por estilos
sucessivos do princípio da precaução no direito internacional assume diversas funções.
Metamorfoseada em um fator de revelação de incertezas, a avaliação científica deve ser
considerada pelo que realmente é, uma ferramenta, uma simples ferramenta de decisão.
Além disso, o princípio da precaução deveria reformular as exigências de prova, a serem
fornecidas pelas partes no tocante à gravidade do risco. Deveria igualmente servir de fio
condutor para a elaboração dos protocolos de execução das inúmeras convenções
internacionais que o consagram. A necessidade de reforma nessa área é real. Ainda que
sejam geralmente interligados, os riscos ecológicos são geralmente apreendidos por
convenções de natureza setorial com marcas sensivelmente diferentes, adotados de
maneira desordenada a fim de responder às crises pontuais.
Referências Bibliograficas
AKEHURST, M. “Equity and General Principles of Law”, International and
Comparative Law Quarterly, 1976.
BEURIER J.P. ;C. NOIVILLE. “La Convention sur les droits de la mer et la diversité
biologique”. In Hommages à C. de Klemm. Estrasburgo: Conselho da Europa, 2001.
BIRNIE, P. “The Status of Environmental "soft law”: Trends and Examples with Special
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Princípio da precaução: uma nova postura em face dos riscos e
incertezas científicas
Solange Teles da Silva
∗
O princípio da precaução afirma a necessidade de uma nova postura, em face dos
riscos e incertezas científicas. Fruto de pressões e de luta da sociedade civil, a
consagração deste princípio demonstra o dinamismo do direito internacional. O princípio
foi adotado durante a Conferência das Nações Unidas sobre o Ambiente e o
Desenvolvimento (CNUAD) de 1992 e incluído na Declaração sobre Meio Ambiente e
Desenvolvimento do Rio de Janeiro:
Com o fim de proteger o meio ambiente, o princípio da precaução
deverá ser amplamente observado pelos Estados, de acordo com suas
capacidades. Quando houver ameaça de danos graves ou irreversíveis, a
ausência de certeza científica absoluta não será utilizada como razão
para o adiamento de medidas economicamente viáveis para prevenir a
degradação ambiental. (princípio 15). 1
Na verdade, textos como este, que constituem a chamada soft law ou soft norm
(declarações, códigos de conduta, etc.), representam um instrumento precursor da adoção
de regras jurídicas obrigatórias, estabelecem princípios diretores da ordem jurídica
internacional que adquirem com o tempo a força de costume internacional, ou ainda
propugnam pela adoção de princípios diretores, no ordenamento jurídico dos Estados.
Diversas convenções internacionais na seara ambiental afirmaram a necessidade da
adoção de medidas de precaução – como, por exemplo, as convenções que se referem às
Doutora em Direito pela Universidade Paris I – Panthéon-Sorbonne, Professora de Direito Ambiental da
Universidade da Cidade de São Paulo – UNICID, Professora convidada do Curso de Especialização em
Engenharia Ambiental da Universidade de Campinas – UNICAMP.
1
O primeiro texto internacional que reconheceu o princípio da precaução foi a Carta Mundial da Natureza,
adotada pela Assembléia Geral das Nações Unidas, em 1982 (Declaração § 11). Posteriormente, este
princípio foi retomado em diferentes convenções internacionais sobre a proteção do ambiente. Dentre as
declarações e convenções internacionais onde há referências ao princípio da precaução, cite-se, por
exemplo: a) a Declaração Ministerial adotada na Segunda Conferência Internacional para a Proteção do
Mar do Norte (1987) (§ VII e XV.1) confirmada pela Declaração Ministerial adotada na Terceira
Conferência Internacional, em 1990, para a proteção do Mar do Norte (preâmbulo); b) o Protocolo de
Montreal referente a substâncias que destroem a camada de ozônio, em 1987 (preâmbulo e § 6 modificado
em 1990) c) Convenção-quadro das Nações Unidas sobre Mudanças Climáticas, de 1992 (artigo 3(3))
(preâmbulo); d) Convenção sobre a Diversidade Biológica, de 1992 (preâmbulo).
∗
substâncias destruidoras da camada de ozônio2 e às alterações climáticas3 – ou do próprio
princípio da precaução – convenção da diversidade biológica4. Aliás, o Brasil assinou e
ratificou as convenções que tratam dessas questões: a) o Protocolo de Montreal, referente
a substâncias que destroem a camada de ozônio de 19875; b) a Convenção-Quadro sobre
Mudanças Climáticas de 19926; c) a Convenção sobre Diversidade Biológica de 1992.7
Contudo, as diferentes ordens jurídicas – internacional, “comunitária” e interna – não
trazem uma única definição do princípio da precaução.
Este artigo se aterá à análise de um desses campos, ou seja, a ordem jurídica
interna, e buscará determinar os contornos do princípio da precaução, no ordenamento
jurídico brasileiro, e suas formas de concretização. Em um primeiro momento, caberá
distinguir ética, filosofia, atitude, enfoque ou abordagem de precaução do próprio
princípio da precaução. A filosofia da precaução, baseada em uma ética das relações
entre o homem, o meio ambiente, os riscos e a vida, encontra seu fundamento na
consciência da ambigüidade da tecnologia e do limite necessário do saber científico. Se,
por um lado, a pesquisa científica e as inovações tecnológicas trazem promessas, por
outro, também trazem ameaças ou, pelo menos, um perigo potencial. Neste sentido,
algumas indagações podem ser feitas: tudo o que é tecnicamente possível deve ser
2
As Partes do Protocolo de Montreal sobre Substâncias que Destroem a Camada de Ozônio afirmam que
estão “decididas a proteger a camada de ozônio mediante a adoção de medidas cautelatórias para
controlar de modo eqüitativo as emissões globais de substâncias que a destroem, com o objetivo final da
eliminação destas, a partir de desenvolvimentos no conhecimento científico, e tendo em conta
considerações técnicas e científicas”.
3
Dentre os princípios elencados no artigo 3º da Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre Mudanças
Climáticas, encontra-se o item 3 que afirma que “As Partes devem adotar medidas de precaução para
prever, evitar ou minimizar as causas da mudança do clima e mitigar seus efeitos negativos. Quando
surgirem ameaças de danos sérios ou irreversíveis, a falta de plena certeza científica não deve ser usada
como razão para postergar essas medidas, levando em conta que as políticas e medidas adotadas para
enfrentar a mudança do clima devem ser eficazes em função dos custos, de modo a assegurar benefícios
mundiais ao menor custo possível. Para esse fim, essas políticas e medidas devem levar em conta os
diferentes contextos socioeconômicos, ser abrangentes, cobrir todas as fontes, sumidouros e reservatórios
significativos de gases de efeito estufa e adaptações, e abranger todos os setores econômicos. As Partes
interessadas podem realizar esforços, em cooperação, para enfrentar a mudança do clima”.
4
No preâmbulo da Convenção sobre Diversidade Biológica, as partes declaram que “Observando também
que, quando exista ameaça de sensível redução ou perda de diversidade biológica, a falta de plena certeza
científica não deve ser usada como razão para postergar medidas para evitar ou minimizar essa ameaça”.
5
Decreto n° 99.280, de 6 de junho de 1990, promulga a Convenção de Viena para a Proteção da Camada de
Ozônio e o Protocolo de Montreal sobre Substâncias que Destroem a Camada de Ozônio.
6
Decreto n° 2.652, de 1° de julho de 1998, promulga a Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre
Mudanças Climáticas, assinada em Nova York, em 9 de maio de 1992.
7
Decreto n° 2.519, de 16 de março de 1998, promulga a Convenção sobre Diversidade Biológica, assinada
no Rio de Janeiro, em 5 de junho de 1992.
realizado? Há necessidade de se refletir sobre os caminhos da pesquisa científica e das
inovações tecnológicas. O princípio da precaução surge, assim, para nortear as ações,
possibilitando a proteção e a gestão ambiental, em face das incertezas científicas.
Explicitamente consagrado pelo ordenamento jurídico, como ocorre em direito
internacional ou, por exemplo, no direito alemão ou francês, ou implicitamente fazendo
parte da estrutura normativa, aflorando do artigo 225 da Constituição Federal do Brasil de
1988, o princípio da precaução busca responder aos objetivos de segurança reforçada e à
necessidade de regulamentação jurídica das dúvidas que advêm do desenvolvimento da
ciência. Estabelecidas estas distinções, analisar-se-á a concretização deste princípio, ou
seja, como ele é ou, ainda, como deve ser implementado, notadamente pela
Administração e pelos magistrados.
1. Princípios de direito ambiental
Antes de iniciar este estudo, é preciso preliminarmente apontar como os
“princípios de direito ambiental” são definidos, no ordenamento jurídico brasileiro.8 Os
princípios de direito ambiental constituem, como afirma Paulo Affonso Leme Machado,
seu alicerce ou seu fundamento, orientando a geração do direito ambiental e sua
implementação.9 Ou, ainda, como destaca Eckard Rehbinder, “os princípios guardam a
capacidade, quando compreendidos como princípios jurídicos gerais, de influenciar a
interpretação e a composição de aspectos cinzentos do direito ambiental”.10 Desta
maneira, será analisado o princípio da precaução neste trabalho, ou seja, como um
princípio geral do direito ambiental, que emerge do artigo 225 da Constituição Federal de
1988 e é dotado de um caráter de generalidade11. Para determinar as condições e a forma
de aplicação deste princípio, é necessário delimitar em primeiro lugar seus contornos.
8
Não será analisada neste artigo a discussão travada, há algumas décadas, entre juristas sobre princípios e
regras. Destacar apenas que tanto Ronald Dworkin quanto Robert Alexy procedem a uma separação
qualitativa entre regras e princípios, sustentando que não se trata apenas de uma distinção de grau de
generalidade. Cf. DWORKIN, Ronald. Levando os direitos a sério. São Paulo: Martins Fontes, 2002.
ALEXY, Robert. Teoria de los derechos fundamentales. Madrid: Centro de Estudios Constitucionales,
1993.
9
MACHADO, Paulo Affonso Leme. Direito Ambiental Brasileiro. 9a ed. rev. atual. e ampl. São Paulo:
Malheiros, 2001, p. 43.
10
REHBINDER, Eckard: “Alllgemeine Umweltrecht” in SALZWEDEL, J. (org.) Grundzuge des
Umweltrechts. Berlin, Erich Schmidt Verlag, 1982, p. 86 Apud DERANI, Cristiane, Direito ambiental
econômico. 2ª ed. rev. São Paulo : Max Limonad, 2001, p.161.
11
“Os princípios gerais são regras de direito objetivo, não de direito natural ou ideal, expressos ou não nos
textos, mas aplicados pela jurisprudência e dotados de um caráter suficiente de generalidade.” BERGEL,
1 – Da ética da precaução ao princípio da precaução
Como ressalta François Ewald, a distinção entre ética da precaução e o
próprio princípio da precaução é fundamental para que se possa precisar o conteúdo do
princípio.12 A ética da precaução pode ser definida como uma moral universal que
objetiva realizar um novo equilíbrio entre o homem e a terra: desenvolvimento
sustentável. Mesmo que as interpretações a respeito do que se entenda por
desenvolvimento sustentável sejam divergentes, é importante assinalar que ocorreu um
processo de institucionalização da problemática ambiental, e as políticas públicas
passaram a levar em conta a proteção ambiental.13 Alguns aspectos podem ser elencados
como necessários para alcançar o desenvolvimento sustentável: os aspectos qualitativos
do crescimento econômico, a interdependência do fluxo de matérias e energias, o ritmo
de renovação dos recursos naturais, o respeito ao papel da diversidade biológica e a
responsabilidade intergeracional.14 Esta filosofia da precaução não pode nem deve ser
concebida como um obstáculo ao desenvolvimento, cujo escopo seja, pura e
simplesmente, a abstenção de condutas e a condenação do poder tecnológico. Trata-se, na
realidade, de objetivar que o desenvolvimento seja implementado de outra maneira, tendo
como base o reconhecimento da própria relatividade do conhecimento científico. A
filosofia da precaução pode ser assim traduzida como “um ato de fé na ciência e na
tecnologia”15, buscando o conhecimento aprofundado do que já se sabe e desvendando o
que ainda não se sabe.
Não há a intenção de valorizar particularmente a incerteza, de privilegiar a
ignorância; entretanto, a aplicação de um enfoque baseado na precaução, em uma
filosofia da precaução, representa um convite a antecipar, conhecer e integrar esse
Jean-Louis (trad. : GALVAO, Maria Ermantina). Teoria geral do direito. São Paulo : Martins Fontes, 2001,
p. 109.
12
EWALD, François: “ Philosophie politique du principe de précaution” in EWALD, F./ GOLLIER, C. /
DE SADELEER, N. Le principe de précaution. Que sais-je ? PUF, 2001, p. 45 e sgts.
13
NOBRE, Marcos : « Desenvolvimento sustentável : origens e significado atual » in AMAZONAS,
Maurício de Carvalho/ NOBRE, Marcos (org.) Desenvolvimento sustentável: a institucionalização de um
conceito. Brasília: Ed. IBAMA, 2002, pp. 21-106.
14
PASSET, René: “Les imperatives du développement durable”, Pouvoirs Locaux n. 43, IV/1999, p.p. 6571.
15
(Nossa tradução, nosso grifo) EWALD, François: “ Philosophie politique [...]” in EWALD, F./
GOLLIER, C. / DE SADELEER, N., op.cit., p. 35.
conhecimento incerto em uma conduta atual.16 A atitude de precaução se dirige, portanto,
àqueles que têm um poder sobre o risco. Neste sentido, todos os atores políticos e sociais
– em particular o Poder Público, os empreendedores e os pesquisadores – são chamados a
refletirem sobre seus atos, sobre sua conduta17 e a integrarem não apenas em seu
discurso, mas em suas práticas uma abordagem de precaução.
A filosofia da precaução tem um duplo objetivo: a minimização e gestão dos
riscos, bem como a aceitação da inovação.18 Assim, a lógica da precaução é inserida no
processo de gestão dos riscos e também constitui uma condição da aceitação social desses
riscos, cabendo à coletividade distinguir as tecnologias que devem ser desenvolvidas
daquelas que devem ser vetadas. Daí a necessidade de um modelo de democracia
ambiental19, baseado na transparência e na informação, permitindo que os atores sociais e
políticos possam estabelecer um novo pacto social. Aliás, é importante assinalar que a
Lei n° 10.650, de 16 de abril de 2003, dispõe sobre o acesso público aos dados e
informações existentes nos órgãos e entidades integrantes do Sistema Nacional do Meio
Ambiente, possibilitando a qualquer indivíduo, independentemente da comprovação de
interesse específico, ter acesso às informações de que trata a lei, cabendo ao órgão ou
entidade estatal prestar a informação, no prazo de 30 (trinta) dias.
O princípio da precaução, de acordo com François Ewald, expressa a vontade
estatal na condução de determinada política em matéria de gestão de recursos ambientais
e de proteção contra os riscos. Este princípio descreve as condições para a ação, deixando
uma margem de escolha aos que devem implementá-lo. Ao analisar as políticas do meio
ambiente, Nicolas de Sadeleer aponta a existência de três modelos distintos: um modelo
curativo, um modelo preventivo e um modelo de antecipação.20 Este último é o chamado
16
Idem, p. 36.
François EWALD considera que a atitude de precaução se dirige a todas as pessoas que tenham um poder
sobre o risco em um sentido amplo, ou seja, “produtores, pesquisadores, peritos, poderes públicos, mas
também aqueles que tenham o poder de criar – artificialmente – riscos: a mídia em particular e, in fine, o
cidadão, cuja conduta pode ela mesma ser criadora de riscos”. (Nossa tradução) Idem, p. 40.
18
Idem, ibidem.
19
Philippe KOURILSKY e Geneviève VINEY afirmam que a construção de um modelo de democracia
ambiental é a melhor resolução para situações de crise, em particular para equacionar a problemática
referente aos organismos geneticamente modificados. KOURILSKY, Philippe e VINEY, Geneviève. Le
principe de précaution. Rapport au Premier ministre, 29 novembre 1999. Paris : Editions Odile Jacob – La
documentation française, 2000, p. 115.
20
DE SADELEER, Nicolas. Essaie sur la génèse et la portée juridique de quelques principes du droit de
l’environnement. Thèse de doctorat, Faculté universitaire Saint-Louis, Faculté de droit, Belgique, 1998.
17
modelo de precaução e traz um novo paradigma que não supõe mais um conhecimento
perfeito do risco, mas apenas a pressuposição de sua ocorrência.21 Tal modelo, como
afirma o autor, apresenta-se sob a forma de uma ação preventiva antecipada em razão da
incerteza e torna necessário que todos os riscos sejam apreciados, no processo
decisório.22 Trata-se de um novo modelo de gestão da incerteza que inspira não apenas a
política ambiental, mas também os campos de políticas públicas relacionadas à saúde e ao
consumo.23 Nestas três esferas, aliás, o que se pretende é a gestão dos riscos oriundos das
novas tecnologias. Poder-se-ia imaginar que se adota uma postura de desconfiança da
ciência, mas na realidade apenas constata-se que os cientistas não têm respostas a todas
as questões. Avaliar a incerteza na equação das decisões provoca a necessidade de
repensar o modelo preventivo, baseado não apenas em questões de perigo, mas de risco e
de um horizonte de longo prazo, levando-se em conta o direito das gerações futuras.24 Há
necessidade de se desenvolverem políticas públicas, ou seja, “processo ou conjunto de
processos que culmina na escolha racional e coletiva de prioridades, para a definição dos
interesses públicos reconhecidos pelo direito”25, que tenham como fundamento a
sustentabilidade. O conceito de sustentabilidade conduz à noção de uma gestão
ambiental não apenas no espaço, mas também no tempo.
É interessante ressaltar que Philippe Kourilsky e Geneviève Viney definem o
princípio da precaução estritamente ligado à própria filosofia da precaução. Para estes
autores, o princípio da precaução "define a atitude que devem tomar todos aqueles que
adotam uma decisão relacionada à atividade, que se suponha possa comportar
razoavelmente um perigo grave para a saúde ou para a segurança das gerações atuais ou
futuras, ou para o meio ambiente. Impõe-se especialmente aos poderes públicos que
devem fazer prevalecer os imperativos da saúde e da segurança sobre a liberdade
comercial entre particulares e entre Estados. Conduz à adoção de todos os dispositivos
21
Idem, p. 108.
Idem, pp. 108-109.
23
DE SADELEER : « Les avatars du principe de précaution en droit public : effet de mode au révolution
silencieise ? » in Revue Française de Droit Administratif nº 17 (3) mai-juin 2001, pp. 548-549.
24
Jean-Pierre Beurier e Alexandre Kiss analisam a expressão « gerações futuras » e constatam a imprecisão
da mesma. Como separar as gerações futuras das presentes? Como determinar quem faz parte da geração
futura e da geração presente? Concluem os autores que a melhor expressão jurídica seria, na realidade,
direito da humanidade. BEURIER Jean-Pierre/ KISS, Alexandre. Droit International de l’environnement.
2ème ed. Paris: Pedone, 2000, pp. 133-134.
25
BUCCI, Maria Paula Dallari. Op. cit, p. 264.
22
que permitam, por um custo econômica e socialmente suportável, detectar e avaliar o
risco e reduzi-lo a um nível aceitável e, se possível, eliminá-lo, informando as pessoas e
recolhendo suas sugestões sobre as medidas a serem implementadas. Este dispositivo de
precaução deve ser proporcional à amplitude do risco e pode ser revisado a qualquer
momento”. 26
Alguns autores brasileiros insistem em não fazer a distinção entre prevenção e
precaução, distinção já consolidada em direito internacional do meio ambiente27, bem
como em direito ambiental comparado28 e referem-se seja ao princípio de prevenção29,
seja ao princípio de cautela30, como fórmula simplificadora. Tal posição, todavia, não se
sustenta: o princípio da precaução, tal como foi consagrado no princípio 15 da
Declaração do Rio, como bem salienta Álvaro Luiz Valery Mirra, “deve ser reconhecido
como um dos princípios gerais do direito ambiental e integrante do ordenamento jurídico
brasileiro”. 31
Em realidade, o princípio da precaução emerge do disposto no artigo 225 do texto
constitucional de 1988, impondo aos operadores do direito a busca de respostas ao
imperativo de segurança reforçada e a regulamentação das dúvidas nascidas da ciência,
para que se possa garantir o direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, tanto
às presentes quanto às futuras gerações. Como assinala Norberto Bobbio, ao lado dos
princípios gerais expressos, podem ser identificados os não-expressos, que têm como
objetivo colher o espírito do sistema.32 É o caso do princípio da precaução, que decorre
do direito de todos, gerações presentes e futuras, a um meio ambiente ecologicamente
equilibrado. Portanto, o espírito da sistemática da proteção ambiental, consagrado no
26
(Nossa tradução). KOURILSKY, Philippe e VINEY, Geneviève Op.cit., p. 151.
BEURIER Jean-Pierre/ KISS, Alexandre.Op.cit., p. 121 e sgts.
28
Aplicação do princípio da precaução pela jurisprudência administrativa francesa cf.
ANDRIANTSIMBAZOVINA Joel : « Le Conseil d’Etat et le principe de précaution: l’affaire du maïs
transgénique », Droit Administratif – Editions du Juris-classeur nº 6, juin 1999, p. 4-8.
29
É a posição adotada por Edis MILARÉ que, apesar de não descartar a diferença possível entre o princípio
da prevenção e o princípio da precaução, prefere adotar a fórmula do princípio da prevenção, englobando a
precaução. MILARÉ, Edis. Direito do Ambiente: doutrina, prática, jurisprudência e glossário. São Paulo:
Editora Revista dos Tribunais, 2000, p.102.
30
Paulo de Bessa ANTUNES refere-se ao princípio da prudência ou da cautela, realizando uma confusão
entre os princípios da prevenção e da precaução. ANTUNES, Paulo de Bessa. Direito Ambiental 3ª ed. rev.
e ampl. Rio de Janeiro: Editora Lúmen Júris, 1999, p.28-29.
31
MIRRA, Álvaro Luiz Valery: “Direito Ambiental: o princípio da precaução e sua aplicação judicial” in
Revista de Direito Ambiental nº 21, jan.-mar/2001, p. 101.
32
BOBBIO, Norberto. Teoria do ordenamento jurídico. 10ª ed. (SANTOS, Maria Celeste C.J. – tradução)
Brasília: Editora UNB, 1999, p. 159.
27
texto constitucional, abriga este princípio, que se resume, como assinala Cristiane Derani,
“na busca do afastamento - no tempo e no espaço - do perigo, na busca também da
proteção contra o próprio risco e na análise do potencial danoso oriundo do conjunto de
atividades”.33 O objetivo do afastamento do próprio risco constitui o objetivo da proteção
e gestão ambiental, na medida em que o que se deseja é assegurar o meio ambiente
equilibrado para todos.
O risco representa uma “possibilidade de perigo”34, quer dizer, há um perigo mais
ou menos previsível. O perigo pode ser definido como uma “situação de fato da qual
decorre o temor de uma lesão física ou moral a uma pessoa ou uma ofensa aos direitos
dela”.35 Trata-se de uma situação que inspira cuidado, quer dizer, há uma ameaça ou
exposição da segurança ou da própria existência de uma pessoa ou mesmo de uma coisa.
O risco pode ser hipotético ou certo. A partir da caracterização do risco hipotético e do
risco certo é possível realizar a distinção entre os princípios da precaução e da prevenção.
Pode-se afirmar que “o conteúdo cautelar do princípio da prevenção é dirigido pela
ciência e pela detenção de informações certas e precisas sobre a periculosidade e o risco
fornecido pela atividade ou comportamento que, assim, revela situação de maior
verossimilhança do potencial lesivo que aquela controlada pelo princípio da
precaução”.36 Entretanto, não se trata de imaginar que os riscos hipotéticos sejam menos
plausíveis. Na verdade, são as probabilidades que não têm a mesma natureza: “no caso da
precaução, trata-se da probabilidade de que a hipótese seja exata; no caso da prevenção, o
perigo está estabelecido e trata-se da probabilidade do acidente”.37 É justamente a
determinação do risco hipotético que é delicada: “o risco é criado pela hipótese e não
pode teoricamente ser nulo, exceto se a operação intelectual que o declarou admissível
anule este risco, decidindo que a hipótese deva ser negligenciada”.38 Decidir que uma
33
DERANI, Cristiane. Direito ambiental econômico. 2ª ed. rev. São Paulo : Max Limonad, 2001, p.170.
Idem.
35
FERREIRA Aurélio Buarque de Holanda. Novo Dicionário Aurélio da Língua Portuguesa. Editora Nova
Fronteira, Rio de Janeiro, 1999.
36
AYALA, Patryck de Araújo/ LEITE José Rubens Morato. Direito Ambiental na Sociedade de Risco. Rio
de Janeiro: Forense Universitária, 2002, p. 62-63.
37
(Nossa tradução). KOURILSKY, Philippe e VINEY, Geneviève. Op.cit, p. 18.
38
(Nossa tradução) Idem, p. 17.
34
hipótese deva ser negligenciada é uma decisão que deve ser tomada pelo conjunto dos
atores da sociedade.39
A questão do princípio da precaução não se resume em determinar quais são os
riscos que determinada sociedade deseja correr. Na verdade, o princípio da precaução
está também intimamente ligado ao próprio questionamento da razão de determinada
atividade40, ou seja, os objetivos de toda e qualquer atividade só serão legítimos se
buscarem construir uma sociedade livre, justa e solidária; garantir o desenvolvimento
nacional; erradicar a pobreza e a marginalização; reduzir as desigualdades sociais e
regionais; promover o bem de todos.41
O princípio da precaução pode, portanto, ser definido como uma nova dimensão
da gestão do meio ambiente na busca do desenvolvimento sustentável e da minimização
dos riscos. Diante dos progressos tecnológicos das sociedades contemporâneas, o
princípio da precaução busca implementar uma lógica de segurança suplementar que vai
além da ótica preventiva e questiona a razão do desenvolvimento das atividades humanas,
em função de uma melhora qualitativa de vida para o homem, no presente e no futuro.
Ele constitui o fio condutor da lógica da proteção ambiental, da defesa e da preservação
do meio ambiente para as gerações presentes e vindouras.
2 – A concretização do princípio da precaução
O princípio e a ética da precaução podem ser concretizados, como afirma
François Ewald, mediante procedimentos de precaução que implementarão técnicas de
precaução, organizando as relações entre a administração e os atores da sociedade civil.42
Neste sentido, é interessante observar algumas pistas que pode fornecer a Comunicação
relativa ao princípio da precaução, adotada em 2 de fevereiro de 2000, pela Comissão
39
Ulrich BECK, ao analisar as sociedades contemporâneas, afirma que a produção social das riquezas é
sistematicamente acompanhada de uma produção social dos riscos. BECK, Ulrich. La société du risque.
Sur la voie d'une autre modernité (trad. de l'allemand par L. Bernardi). Paris : Aubier, 2001.
40
DERANI, Cristiane. Op. cit., p. 172
41
Os objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil: art. 3º, incisos I, II, III e IV da
Constituição Federal de 1988. “Ação Civil Pública de responsabilidade por danos causados ao meio
ambiente, considerando que o objetivo primordial do processo é o atingimento da Justiça Social. Nos casos
em que está em jogo o direito ambiental, não é preciso que se tenha demonstrado através de prova científica
e de precisão absoluta. Havendo indícios suficientes de que ocorrerá dano ambiental, bastando o risco de
que o mesmo seja irreversível para que não se deixem para depois as medidas efetivas de proteção ao meio
ambiente. Deve o julgador dar solução mais justa e favorável ao ambiente, em beneficio de todos os
jurisdicionados. (TJRJ - Apelação da Ação Civil Pública nº 1999.001.19840 – 18ª Cam. Civ. – rel. Jorge
Luiz Habib – j. 14.03.2000)
42
François EWALD: « Philosophie politique [...] », op.cit., p. 45.
Européia para a concretização do princípio da precaução. Essa Comunicação informa
como a Comissão pretende adotar o princípio e estabelecer diretrizes para sua aplicação,
em matéria de proteção do ambiente, abrangendo igualmente a proteção da saúde das
pessoas e dos animais, bem como a proteção vegetal.43 Tais medidas devem ser
proporcionais ao nível de proteção que foi escolhido e não devem ser discriminatórias em
sua aplicação. Elas também devem ser coerentes com medidas semelhantes já tomadas,
baseando-se numa análise das potenciais vantagens e encargos da ação ou da ausência de
ação. Não há previsão de um sistema estático, ou seja, estas medidas devem estar sujeitas
a uma revisão à luz de novos dados científicos. Em relação à responsabilidade da
produção de resultados científicos para uma análise de riscos mais detalhada, há
possibilidade de que ela seja atribuída, tanto ao empreendedor quanto às autoridades
administrativas.
O objetivo não é politizar a ciência, nem aceitar um nível zero de risco, mas
proporcionar uma base de ação sempre que a ciência não puder dar uma resposta clara e
precisa. Pode-se considerar que, no Brasil, a exigência constitucional de realização de
estudo prévio de impacto ambiental para obra ou atividade potencialmente causadora de
significativa degradação do meio ambiente vai nesse sentido.44 Em outras palavras, a
existência da possibilidade de obras e atividades causarem degradação ambiental submete
esses empreendimentos à realização de estudo prévio de impacto ambiental. A exigência
de estudo prévio de impacto ambiental, para instalação de obra ou atividade,
potencialmente causadora de significativa degradação do meio ambiente, é constitucional
– inciso IV do artigo 225 da Constituição Federal de 1988. Nesse momento, poderão ser
levantadas as dúvidas e incertezas quanto aos riscos dessa atividade ou dessa obra e aos
danos hipotéticos que poderia causar como também de sua real necessidade para a
melhoria das condições da qualidade de vida da população brasileira. O estudo de
impacto ambiental proporciona, portanto, uma base de ação para a administração pública.
43
Esta Comunicação relativa ao princípio da precaução completa o Livro Branco sobre a Segurança
Alimentar, bem como o acordo obtido em Montreal sobre o Protocolo de Cartagena relativo à
Biossegurança. Destaque-se que, normalmente, as referências, implícitas ou explícitas, ao princípio da
precaução são realizadas no campo da saúde, da alimentação e do meio ambiente.
44
Inciso IV do parágrafo 1º do artigo 225 da Constituição Federal de 1988 : “IV – exigir, na forma da lei,
para instalação de obra ou atividade potencialmente causadora de significativa degradação do meio
ambiente, estudo prévio de impacto ambiental”.
Pode-se indagar em que momento seria possível invocar o princípio da precaução.
A Comunicação da Comissão preconiza que isto é possível, desde que seja realizada uma
avaliação do risco, permitindo concluir que há possibilidade de impacto de um perigo
sobre o meio ambiente ou a saúde humana.45 A estruturação da análise dos riscos deverá
incluir três elementos: avaliação de riscos, gestão de riscos e comunicação de riscos.
Distingue-se a decisão, de natureza eminentemente política, de agir ou não agir, e as
medidas resultantes do recurso ao princípio da precaução, que devem respeitar os
princípios gerais aplicáveis a qualquer medida de gestão de riscos. É lógico que mesmo o
recurso às medidas de precaução dependerá de uma escolha política. Mas toda e qualquer
escolha política deve estar pautada nos objetivos da República Federativa do Brasil, ou
seja, deve buscar o desenvolvimento nacional e a promoção do bem de todos, ou seja, a
satisfação das necessidades básicas, a elevação do nível de vida de todos, a obtenção de
ecossistemas melhor protegidos e gerenciados e a construção de um futuro mais próspero
e seguro46.
Dentre as técnicas e dispositivos de avaliação, é possível citar:
a) a definição de padrões de precaução, quer dizer, a pesquisa dos riscos das
atividades que potencialmente impliquem riscos e adoção de parâmetros e
procedimentos diante desses riscos;
b) a adoção de uma atitude ativa em face dos riscos: a necessidade de
desenvolvimento de pesquisa científica e técnica aplicada, o que implica a
previsão orçamentária de verbas públicas para as instituições de ensino e pesquisa
e a ampliação da capacidade de pesquisa do país;
c) o desenvolvimento das perícias em matéria de riscos, passagem obrigatória para
decisões públicas, sobretudo em matéria ambiental, onde existem inúmeras
variáveis interativas; 47
d) o incremento de técnicas de controle, vigilância e “traçabilidade”, visto que a
própria sociedade se torna um grande laboratório.48
45
Commission des Communautés Européennes. Communication de la Commission sur le recours au
principe de précaution. Bruxelles 02.02.2000, COM(2000) 1 final, p.13.
46
Estes aspectos são elencados no Preâmbulo do Capítulo 1 da Agenda 21, como fundamentais para
alcançar o desenvolvimento sustentável.
47
MONEDIÈRE, Gerard: “Qualification matérielle et qualification juridique des faits: expertise et droit de
l’environnement” in Actes du Seminaire de l’Institut Fédératif “Environnement et Eau” – Limoges, 5 avril
2000: Incertitude juridique, incertitude scientifique. Limoges : PULIM, 2001, p.107-140.
A
implementação
deste
princípio
encontra-se
associada
à
proporcionalidade, à proteção ambiental e à determinação de escalas do risco. A
proporcionalidade pode ser definida como uma regra de interpretação e aplicação do
direito, que é utilizada especialmente em casos em que “um ato estatal, destinado a
promover a realização de um direito fundamental ou de um interesse coletivo, implica a
restrição de outro ou outros direitos fundamentais. (...) Para alcançar este objetivo, o ato
estatal deve passar pelos exames da adequação, da necessidade e da proporcionalidade,
em sentido estrito”.49 Isto significa que o primeiro exame deve ser o da adequação, ou
seja, devem-se buscar meios para que se alcance o desenvolvimento sustentável e para
que os riscos sejam minimizados. A avaliação científica fornece uma base para que o
princípio da precaução venha a ser implementado, pois são as conclusões desta avaliação
que determinarão o nível adequado de proteção. E mesmo que não haja prova científica
da existência de uma relação de causa e efeito, os atores políticos devem avaliar as
conseqüências potenciais da falta de uma determinada ação sobre o meio ambiente e a
saúde humana. A necessidade de atuação do poder público deve ser pautada em um
exame comparativo. E, finalmente, o exame da proporcionalidade em sentido estrito deve
pautar-se na dimensão do “peso”, isto é, do “valor” dos princípios que venham a colidir.
Deve-se ponderar entre os objetivos a serem alcançados por determinada atividade e as
escalas do risco, estabelecendo-se uma ordem de prioridades em função das incertezas
que caracterizam o próprio princípio da precaução. É evidente que serão os valores da
sociedade que determinarão a ordem de prioridades e, neste sentido, a proteção do meio
ambiente e da saúde humana, e da vida, em última análise, deve ser colocada como valor
absoluto, pois a vida não tem preço.
A implementação do princípio da precaução pelos magistrados requer que seja
assumida uma nova postura, visto que há “necessidade de decidirem com base em
48
“A precaução faz cair a barreira entre laboratórios e sociedade, experiência e experimentação. A
sociedade torna-se por si mesma um imenso laboratório. Nós experimentamos ao vivo e a cores. Nós somos
todos, em face do risco presumido, ao mesmo tempo experimentador e experimentados. Sábios e cobaias”.
(Nossa tradução). François EWALD: « Philosophie politique [...] », op.cit., p. 53.
49
Luís Virgílio Afonso da SILVA, ao realizar uma análise da regra da proporcionalidade, demonstra a
diferença quanto à origem e à estrutura das regras de proporcionalidade e razoabilidade. A regra da
proporcionalidade possui elementos de sua estrutura que são independentes (adequação, necessidade,
proporcionalidade em sentido estrito) e aplicados em uma ordem pré-definida. SILVA, Luís Virgílio
Afonso da: “O proporcional e o razoável”, Revista dos Tribunais nº 798, abril de 2002, p. 24.
probabilidades – na noção de probabilidade incluída a idéia de risco sério e
fundamentado – para impedir, fazer cessar ou reparar degradações ambientais,
abandonando-se o ideal de certeza na apuração da lesividade apontada”.50 Não se trata de
garantir o risco zero, ou seja, desde que haja uma mera suposição de um risco, deve-se
adotar uma moratória ou abster-se definitivamente, o que significaria pautar-se em uma
concepção radical deste princípio.51 Também não há que se defender uma concepção
minimalista que determina a aplicação do princípio da precaução apenas em presença de
um risco provável e de natureza a provocar danos graves e irreversíveis, reduzindo sua
utilidade.52 Uma posição intermediária requer que os magistrados identifiquem e
extraiam o princípio da precaução do artigo 225 do texto constitucional e o apliquem,
desde que uma hipótese de risco cientificamente plausível seja admitida por parte
significativa da comunidade científica, no momento em que a decisão esteja sendo
tomada. Como assinala Antonio Gordillo Canas, “a constitucionalização dos valores
básicos e dos princípios deles derivados não somente coloca o juiz no marco necessário
de uma jurisprudência de valores, senão que acolhe o fundamento básico e assinala o
sentido inspirador nos quais deverá desenvolver-se o exercício do poder legislativo”.53
Cabe, portanto, aos magistrados assegurarem a concretização do princípio da precaução,
para que seja assegurado a todos o direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado.
Por meio de levantamento jurisprudencial, Ana Carolina Casagrande Nogueira
constata, todavia, que a aplicação desse princípio pelos tribunais brasileiros ainda é
reduzida, sendo comuns decisões judiciais que não impõem a obrigação de fazer ou
negam a existência de responsabilidade com fulcro da inexistência da comprovação do
risco de lesão ou dano efetivo ao meio ambiente e à saúde. Mas isto não significa a total
ausência do princípio da precaução, nas decisões do judiciário brasileiro.54 Tal princípio
vem sendo utilizado na fundamentação de decisões judiciais que tratam de questões de
50
MIRRA, Álvaro Luiz Valery: “Direito Ambiental: o princípio da precaução e sua aplicação judicial” in
Revista de Direito Ambiental nº 21, jan.-mar/2001, p. 102.
51
KOURILSKY, Philippe e VINEY, Geneviève. Op. cit., p. 139.
52
Idem, p. 139-140
53
CANAS, Antonio Gordilho Apud BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. 12ª ed. São
Paulo: Malheiros, 2002, p. 262.
54
NOGUEIRA, Ana Carolina Casagrande: “O conteúdo do princípio da precaução, no direito ambiental
brasileiro” In BENJAMIN, Antonio Herman (org.) Anais do 6º Congresso Internacional de Direito
Ambiental, de 03 a 06 de junho de 2002: 10 anos da ECO-92: O Direito e o Desenvolvimento Sustentável.
São Paulo: IMESP, 2002, pp. 302-306.
incertezas e às vezes, mesmo sem referência expressa ao princípio, são determinadas
medidas de precaução.55 A titulo de ilustração, cite-se a ementa do Tribunal Federal da 1ª
Região, que consagra o princípio da precaução:
“DIREITO AMBIENTAL. HIDROVIA PARAGUAI-PARANÁ. ANÁLISE
INTEGRADA. NECESSIDADE DO ESTUDO DO IMPACTO AMBIENTAL
EM TODA A EXTENSÃO DO RIO, E NÃO POR PARTES. APLICAÇÃO DO
PRINCÍPIO DA PRECAUÇÃO.
1. O Projeto da Hidrovia Paraguai-Paraná, envolvendo realização de obras de
engenharia pesada, construção de novos portos e terminais, ampliação dos atuais,
construção de estradas de acesso aos portos e terminais, retificações das curvas
dos rios, ampliação dos raios de curvatura, remoção dos afloramentos rochosos,
dragagens profundas ao longo de quase 3.500 km do sistema fluvial, construção
de canais, a fim de possibilitar uma navegação comercial mais intensa, como o
transporte de soja, minério de ferro, madeira etc, poderá causar grave dano à
região pantaneira, com repercussões maléficas ao meio ambiente e à economia da
região. É necessário, pois, que se faça um estudo desse choque ambiental em toda
a extensão do Rio Paraguai até a foz do Rio Apa.
2. Aplicação do princípio que o intelectual chama da precaução, que foi elevado à
categoria de regra do direito internacional, ao ser incluído na Declaração do Rio,
como resultado da Conferência das Nações Unidas sobre o Meio Ambiente e
Desenvolvimento - Rio/92. “Mais vale prevenir do que remediar”, diz sabiamente
o povo.......”56
Conclusão
O princípio da precaução aflora do próprio artigo 225 do texto
constitucional de 1988 e constitui um princípio geral do direito ambiental que define uma
nova dimensão da gestão do meio ambiente, na busca do desenvolvimento sustentável e
da minimização dos riscos. O não respeito a este princípio, ou seja, o não afastamento do
perigo que um conjunto de atividades possa vir a causar, tanto para as gerações presentes
quanto para as gerações futuras, comprometendo o direito de todos ao meio ambiente
55
Idem, ibidem.
TRF 1ª Região – 29.03.2001 – rel. Tourinho Neto – PETIÇÃO 2001.01.00.001517-0/MT – Processo na
Origem: 200036000106495
56
ecologicamente equilibrado, constitui flagrante descumprimento ao mandamento
constitucional.
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Capítulo 6
Avaliação dos riscos e princípio da precaução
Marie-Angèle Hermitte e Virginie David*
A invenção do princípio da precaução é a manifestação contemporânea de uma
antiga tensão entre a exaltação da prudência e a do risco1, aplicada às sociedades
tecnológicas, quando se tornam capazes de engajar uma reflexão crítica sobre seu modo
de desenvolvimento. Um grande número de traços o caracterizam: capacidade de criar
riscos irreversíveis em série, cujos efeitos são sentidos muito tempo depois da causa;
vontade do público de gozar de toda sua esperança de vida, afirmação da saúde pública
como “interesse público peremptório”2; aversão ao risco criado por outrem, apesar do
gosto pelas “condutas arriscadas”. Deste conjunto ainda desorganizado, saiu a idéia de
que a preservação da saúde e as técnicas de gestão dos riscos tornaram-se um elemento
importante da ação política. Certos autores vêem na sociedade "um sistema de
distribuição de risco", espantosa recomposição do suum cuique tribuere de Aristóteles3.
Quando a precaução é acrescentada à prevenção, tenta-se não somente reduzir os riscos,
mas também assegurar uma partilha mais imparcial, assim como achar as técnicas
políticas que permitem decidir se vale a pena correr tais riscos e sob quais condições.
*
A presente contribuição, que vai além de uma simples transcrição da conferência de Marie-Angèle
Hermitte, é o fruto de um trabalho, efetuado no âmbito de uma pesquisa financiada pelo programa do
CNRS, Riscos coletivos e situações de crises , sob a direção de C. Gilbert. M.-A. Hermitte é Diretora de
Pesquisa no CNRS, Diretora de Estudos no EHESS; V. David prepara uma tese sobre “o conceito de
autorização de comercialização de acordo com o princípio de livre empreendimento”.
NDA : Originalmente, parecia simples evocar o que o direito poderia dizer da avaliação dos riscos. Ao
longo do processo de trabalho, o assunto mostrava-se muito abrangente e tudo parecia estar ainda em
andamento. É a razão pela qual este artigo só pode ter a ambição de abrir caminhos, embora cada um deles
merecesse um estudo próprio. Agradecemos a G. Canselier, D. Degroote, J.-M. Legay, V. Leroy e C.
Noiville suas releituras críticas do texto. [As autoras, neste texto, fazem referência a várias instituições
públicas. Deve-se levar em consideração que se tratam de instituições francesas].
1
B. Wynne mostra que o período em que os criadores do programa nuclear do Reino Unido admitiram ter
corrido riscos importantes permanece em suas memórias como “uma das idades de ouro do espírito de
decisão” in. Godard (dir.), Le principe de précaution dans la conduite des affaires humaines. Paris: MSH e
INRA, p. 152.
2
Decisão do Tribunal de Primeira Instância C.E, 15 de setembro de 1998, INFRISA, caso T-136/95, Rec.
II-3303 ; a saúde como imperativo é quase sempre ligada à proteção do meio ambiente, cuja diferenciação é
complicada. Ver M.-A. Hermitte. “Santé, environnement. Pour une deuxième révolution hygiéniste” in Les
hommes et l’environnement, Hommage à Alexandre Kiss, ed. Frison-Roche, 1998, p. 23.
3
G. Hériard-Dubreuil. “Action distribuée et risque”, Revue Risques, setembro de 1995.
O princípio da precaução é muito provavelmente a conseqüência jurídica de
quatro influências intelectuais. Referindo-se a H. Jonas, insiste-se sobre o princípio moral
de responsabilidade frente às futuras gerações, percebido, de acordo com J. Patocka, tanto
como um mecanismo que releva o Estado, quanto um mecanismo que implica o cidadãoindivíduo. J. Habermas está muito presente, na filosofia do debate público e permanente4
; finalmente, num plano epistemológico, insiste-se sobre a parte de incerteza que
permanece, apesar do desenvolvimento dos conhecimentos científicos, e também sobre a
contestação em detrimento da idéia de verdade científica e objetiva5. A partir dali,
tornava-se lógico perguntar-se como fundamentar uma decisão política que envolve a
vida das pessoas, num contexto de incerteza científica. Disso resultou uma reorganização
das instituições políticas ligadas a diversos comitês, comissões, agências, cujo papel é de
assegurar a preparação técnica da decisão política. Essas novas instituições exercem com
certeza uma atividade científica a serviço da decisão política, mas seu próprio
funcionamento é estruturado para escolhas políticas, das quais não se fala: modalidades
de designação dos peritos, regras de produção, difusão e conservação dos dados,
definição mais ou menos ampla do que vai ser avaliado. Mais precisamente, o risco de
transmissão do gene de uma planta geneticamente modificada para seus parentes naturais,
as conseqüências dessa transmissão sobre o uso de herbicidas, inseticidas, o impacto
sobre os lençóis freáticos, a liberdade dos agricultores em cultivar o que querem, sua
autonomia em relação à agroquímica6?
4
Sobre a função da argumentação, ver P. Breton e G. Gauthier, Histoires des théories de l’argumentation,
La Découverte, Repères, 2000 ; J. Elster, Argumenter et négocier dans deux Assemblées constituantes,
Rev. Fr. De sc. Pol., 44 no 4-1994, p. 579. Sobre a permanência do debate e o caráter sempre aberto das
decisões, pensar que todas as regulamentações que organizam a avaliação dos riscos institucionalizam “a
adaptação à mudança técnica” por um lado; por outro, a obrigação de levar ao conhecimento todo e
qualquer elemento novo e pertinente, uma vez que o produto foi colocado no mercado (sobre a análise
incorreta desta obrigação pela Corte Européia de Justiça, ver CJCE, 21 de janeiro de 1998, caso C-120/97,
Upjohn v. LCA, Rec. I-223). Enfim, a evolução da percepção dos riscos pelo público é outro fator de não
encerramento dos debates. Ver. M.Callon, Des différentes formes de démocratie technique, Annales des
mines, janeiro de 1998, p.63 ; O. Godard, Le principe de précaution, une nouvelle logique de l’action entre
science et démocratie, in. Philosophie politique, PUF, maio de 2000, p. 17, V e VI partes.
5
J.-M. Legay, L’expérience et le modèle, ed. INRA, 1997. Ele lembra como K. Popper obriga a sair “do
otimismo epistemológico de Descartes”, p. 14, ver também La vérité est-elle scientifique ? Seminário
interdisciplinar do Collège de France, Paris, 1991, Ed. Universitaires.
6
Foi assim que as reflexões, no que diz respeito à epidemia de listeriose, de janeiro de 2000, abordaram
superficialmente uma questão importante. Os operários acusados de terem feito greve no momento em que
o germe começou a desenvolver-se responderam que a falta de segurança podia muito bem ter vindo dos
cortes de pessoal que haviam sido decididos pela direção (de 135 para 90), assim como da terceirização de
Vamos discutir aqui o que se considera geralmente como a parte científica da
avaliação, para mostrar que, mesmo nessa aceitação reduzida, a avaliação dos riscos num
contexto de incerteza é uma questão política e jurídica e não tão somente uma
problemática de método e de ontologia científica. Aliás, foi o que afirmou o Órgão de
Solução das Controvérsias (OSC) da OMC, na questão dos hormônios: enquanto a
competência do OSC limita-se às questões de direito, estatuiu sobre a objetividade da
avaliação dos riscos conduzida pelas autoridades européias, fazendo da objetividade uma
questão de direito. Em relação à questão, ele estabelece que o problema é de saber se a
adoção desta ou daquela norma pelo Codex é uma questão de fato, assim como a
credibilidade de um elemento de prova e a importância que se deve dar-lhe. Mas a
“compatibilidade ou incompatibilidade de um fato ou de um determinado conjunto de
fatos com as prescrições de uma determinada disposição convencional é, entretanto, uma
questão de qualificação jurídica ou trata-se de uma questão de direito. A questão de saber
se um grupo especial procedeu ou não a uma avaliação objetiva dos fatos (…) é também
uma questão de direito” 7.
O sistema político, pois, está diante da necessidade de reconstruir um mecanismo
que permita avaliar os fatos científicos e técnicos, para que a avaliação possa permitir
uma decisão política conforme os padrões democráticos. É preciso chegar ao “conteúdo
decisório
dos
conhecimentos”8,
produzir
os
conhecimentos
científicos
com
9
procedimentos que permitam o julgamento de terceiros .
Em seu livro sobre a perícia judicial, D. Bourcier e M. de Bernis observaram até
que ponto suas perguntas sobre esta mistura da ciência com o direito pareceram
certos serviços, L’Humanité, de 11 de janeiro de 2000. Sabe-se que a terceirização de certas tarefas é
considerada como fator de insegurança.
7
Ponto 132. OSC, 16 de janeiro de 1998, WT/DS26/AB/R, WT/DS48/AB/R. Aliás, a OSC vai além,
afirmando “Ignorar, falsificar e deformar os elementos de prova (…) implica um erro fundamental que
coloca em dúvida a boa-fé de um grupo especial (…) ; (isto equivale) a alegar que o grupo especial recusou
para a parte que forneceu os elementos de prova a eqüidade elementar, ou o que é conhecido em muitos
sistemas jurídicos como os direitos de defesa ou justiça natural” ponto 133.
8
W. Dab, La décision en santé publique, ENSP ed., 1993.
9
Ver a maneira com a qual E. Cadeau constituiu, em sua tese, o medicamento como “objeto da ordem
pública”, in. Le médicament en droit public. Sur le paradigme de l’apothicaire, Tese, Nantes, 1997. Ele
fala, com justa razão, “de objetivação jurídica de um produto científico” e mostra que foi por causa da
existência do risco que o direito interveio.
subversivas e provocadoras para seus interlocutores10. Entretanto, o direito positivo já
consagrou a passagem do conhecimento de uma esfera metajurídica para uma esfera
jurídica. Os textos que organizam a avaliação dos riscos têm, em sua integralidade, um
valor jurídico obrigatório enquanto os aspectos técnicos estavam, há muito tempo,
contidos em textos sem valor jurídico: o direito francês era assim, pois estava inserido em
instruções ministeriais que estabeleciam que não podiam ser consideradas como textos
normativos, “os campos científicos, técnicos e tecnológicos, não podendo, por natureza,
ser objeto de regras rígidas e absolutas”11. Os anexos técnicos encontram-se hoje no
centro da obrigação jurídica. É por isto que a avaliação dos riscos, que é em princípio um
momento essencialmente científico, se fundamenta no princípio da precaução e em um
raciocínio jurídico. No entanto, o movimento não acabou: se a avaliação está por toda a
parte, ela não é muito bem definida e as escolhas que ela fundamenta repousam sobre
bases que permanecem freqüentemente implícitas12. Além do mais, ela supõe a existência
de dados considerados “disponíveis e confiáveis”, ainda que a produção desses dados
esteja pouco organizada, o que provoca vieses e lacunas que o tomador de decisões não
perceberá.
1. A avaliação dos riscos como elemento do sistema político
O dicionário define a avaliação como “a atribuição de um valor”, originalmente
em dinheiro, e estende-se à apreciação de uma quantia, distância, qualidade ou
oportunidade. A palavra aplica-se a operações que implicam uma aproximação, uma
subjetividade, um risco de erro ou um julgamento. A avaliação contemporânea dos riscos
permanece presa a esta subjetividade. Por causa desta parte incompreensível de
julgamento, distinta do ato político que constitui a decisão de correr riscos, não é estranho
que a avaliação dos riscos seja uma atividade de serviço público, mesmo que ela possa
ser repassada, em parte, para a iniciativa privada. E. Cadeau enuncia a idéia de que a
reorganização dessa atividade cria novas relações entre os cidadãos, os operadores, os
10
D. Bourcier e M. de Bernis, op. cit., p. 97 ; ver também, num formato mais técnico, G. Bourgeois, P.
Julien e M. Zavaro, La pratique de l’expertise judiciaire, Litec, 1999.
11
Instrução de 1978 sobre as práticas corretas em matéria de medicamentos, citada por C. Maurain e G.
Viala, in Droit Pharmaceutique, fasc. 31-10.
12
O raciocínio sobre esta parte implícita encontra-se no centro do pré-citado artigo de B. Wynne.
poderes públicos e as mídias, levando a um novo “contrato social”13. A responsabilidade
da avaliação e da gestão dos riscos é, efetivamente, da responsabilidade dos poderes
executivos que se apóiam, para isto, sobre várias instituições técnicas e científicas,
públicas e privadas, o que permite assegurar a preparação da decisão14. Após ter
mostrado a diversidade das funções, atribuída à avaliação dos riscos em relação ao
princípio da precaução e seu posicionamento ambíguo em relação à gestão, observar-se-á
que os textos evitam, muitas vezes, tomar posição frente às escolhas políticas que
estruturam a operação e contentam-se em enumerar os elementos que devem ser
caracterizados para proceder à avaliação.
i) Avaliação e precaução
Se o princípio da precaução é um modo de decisão que pesa sobre o cálculo de
risco em situação de incerteza científica, parece razoável apoiá-lo sobre uma avaliação
prévia da situação, avaliação teórica e experimental que permite reduzir a incerteza,
assim como situar a incerteza residual de forma a calculá-la. A idéia de que o princípio da
precaução implica um “princípio prévio de avaliação” é objeto de um acordo bastante
amplo15. Todavia, as funções atribuídas a este princípio prévio são diversas, até mesmo
divergentes. Com efeito, para alguns, é uma exigência de racionalidade de uma decisão
que pode permanecer elitista; para outros, a evidência das incertezas permite efetuar uma
escolha clara, consciente, talvez democrática. Enfim, para outros ainda é um simples
meio de confiar a uma instância científica a resolução dos conflitos ligados ao
desenvolvimento do livre comércio, sendo que essas funções não excluem umas às
outras.
(a) Avaliação e racionalidade da decisão
13
É um ponto importante, tanto em relação à organização do sistema que contrata os serviços de empresas
públicas e, cada vez mais, do modelo da Agência, quanto ao regime jurídico de direito público ao qual são
submetidos aqueles que colaboram nesta tarefa, assim como ao particularismo do direito da
responsabilidade que resulta dele. Ver J.-F. Narbonne, Evaluation et gestion des risques pour la sécurité des
aliments, in Préventique, março-abril de 2000, p.42, Guide de fonctionnement de l’AFSSPS, junho de 2000.
14
Se estamos falando “dos” poderes executivos é porque há uma complexidade de articulação dos níveis
nacional, regional e internacional da decisão.
15
D. Tabuteau, La sécurité sanitaire, une obligation collective, un droit nouveau, Rev. Fr. des aff. soc.,
número 3-4-1997 ; M.-A. Hermitte, in O. Godard, p. 189 e s. ; D. Bourcier e M. de Bonis dizem, de forma
bonita, que a colaboração entre o perito e o juiz, longe de resolver as “as falhas a julgar”, tem por efeito
“estigmatizar as controvérsias em torno do que seria a verdade. Neste jogo, a justiça procurou manter sua
verdade por meio das incertezas do saber”.
O relatório Kourilsky-Viney resume bem uma opinião comumente compartilhada:
a avaliação dos riscos é “a etapa essencial da racionalização dos riscos que deve levar a
separar os riscos potenciais do delírio e da simples apreensão”16. Com um ponto de vista
mais crítico que aquele de Kourilsky, M. Callon e P. Lascoumes observam também que o
princípio da precaução leva a um retorno ao racionalismo por causa da solidificação do
modelo da avaliação clássica dos riscos, da perícia e da contraperícia17. Entretanto, a
ligação entre atividade científica e racionalidade não é evidente, como o sugerem D.
Bourcier e M. de Bonis, para as quais a perícia, no caso judiciária, seria somente um ato
de interpretação, enquanto o magistrado solicitaria, sobretudo, uma “formatação
científica de suas intuições”. A observação é exagerada, mas não é incorreta.
Em sua essência, o direito positivo não vai além da idéia de que o conhecimento
é, de forma geral, a fundamentação da decisão racional. A OMC, cujo objeto é proibir as
medidas de estado que visam restringir a liberdade do comércio, reconhece que tais
medidas podem ser legítimas, caso se apóiem “sobre a base de uma avaliação dos
riscos”18. Para o Órgão de Solução das Controvérsias (OSC) da OMC, “os resultados da
avaliação dos riscos justificam suficientemente – quer dizer que sustentam de forma
razoável – a medida SPS que está em jogo. A prescrição que pretende que uma medida
SPS seja estabelecida sobre a base de uma avaliação dos riscos é uma prescrição
relacionada com a substância, pois deve haver uma relação lógica entre a medida e a
avaliação dos riscos19. Com a mesma lógica, afirma que o risco sobre o qual se quer
16
P. Kourilsky e G. Viney, Le principe de précaution, rapport au Premier ministre, O. Jacob et la
Documentation française, p. 41 ; mede-se o caminho percorrido desde o apelo de Heidelberg (Natures,
Sciences, sociétés, número 1-1993, p. 70), mesmo se o conjunto da ciência oficial está longe de
compartilhar a idéia de que este princípio possa ser racional ; ver C. Hervé que afirma, sem esforço
demonstrativo, preferir o “princípio de vigilância” no lugar do princípio da precaução, que levaria “à
paralisia. Pois se tem medo de um risco que não se pode anular, então decide-se não corrê-lo. É irracional
(…). Mais vale adotar o princípio de vigilância baseado na racionalidade: sabe-se que o controle não é
total, calculam-se os riscos, então instalam-se pontos de referência, sistemas de vigilância…”. Assim, ele
descreve bem o que é instalado em nome do princípio da precaução! L’Usine Nouvelle, hors série, junho de
2000. O debate entre a ciência e a racionalidade é melhor esclarecido por E. Husserl, La crise des sciences
européennes et la phénoménologie transcendantale, Paris, Gallimard, 1976, e J. Habermas, La technique et
la science comme idéologie, Paris, Gallimard, 1973.
17
M. Callon e P. Lascoumes, Décider sans trancher, incertitudes et contreverses, Seuil, 2000 ; O.
Thébault, Les choix collectifs de conservation des ressources marines vivantes – récifs coralliens et grands
cétacés – These EHESS, 1998. O autor questiona o modelo de gestão científica das pescas como
representação pertinente da realidade dos processos de decisão e mostra como, de fato, a decisão é
construída.
18
Ver, por exemplo, os artigos 2-2 e 5 do acordo SPS sobre as medidas fitossanitárias.
19
OSC, Japão – Medida visando aos produtos agrícolas, WT/DS18/AB/R, 22 de fevereiro de 1999.
apoiar uma medida restritiva para importações deve ser um risco “averiguável, não sendo
a incerteza teórica um tipo de risco que deva ser avaliado nos termos do artigo 5-1”20.
Entretanto, é possível mostrar que não existe equivalência entre risco teórico, que resulta
de uma modalidade científica, e risco ‘fantasmagórico’21. A adesão das jurisdições, em
virtude da avaliação científica dos riscos, levou-as a suspender certas atividades enquanto
a lei não instalasse procedimentos de avaliação. Foi o caso da construção de uma fábrica
de produtos geneticamente modificados, na Alemanha22, assim como a realização de
testes a respeito do algodão geneticamente modificado da Monsanto, na Índia (decisão do
23 de fevereiro de 1999).
Da mesma forma, ter o conhecimento e não tomar as medidas necessárias
constitui um erro; a lógica da jurisprudência da transfusão de sangue afirma esta
responsabilidade do Estado, caso haja um atraso na publicação de uma norma de saúde
pública (tratava-se, então, de um conhecimento já estabelecido, mesmo que parcial)23. Na
oportunidade do caso do amianto, o Tribunal Administrativo de Marselha acaba de
confirmar esta jurisprudência, embora sua explanação não tenha sido plenamente
convincente. De fato, a culpa do Estado parece limitada ao período que passou entre o
voto das diretrizes européias e sua transposição para o direito francês. Durante este
período, o Tribunal admite que: “considerada a existência das ditas diretrizes, não pode
ser sustentado que (…) os poderes públicos franceses não tinham conhecimento do risco
que corriam as pessoas expostas, em razão da permanência da regulamentação em vigor”.
Sendo o conhecimento do risco, de fato, o elemento que gera a responsabilidade do
Estado, esta apreciação parece significar que a única fonte de informação do Estado
francês era constituída pelas diretrizes européias. Ora, elas só foram votadas em razão da
disponibilidade de conhecimentos científicos que confirmavam incessantemente o caráter
perigoso do amianto. Os funcionários franceses dispunham desses conhecimentos, no
mínimo, desde a fase de negociação e até antes. O Tribunal esclarece ainda que, “apesar
do caráter vital do referido risco, a defesa não comunicou, antes de 1995, data da
20
Decisão Austrália – medidas que visam às importações de salmões, WT/DS18/AB/R, 20 de outubro de
1998, ponto 125. Esta afirmação é criticável pois, na ocasião de inúmeras crises, dentre as quais a da
transfusão de sangue é o melhor exemplo, a possibilidade de contaminação pelo vírus da AIDS, percebido
numa época em que não existia teste, pareceu, durante um certo tempo, ser um risco teórico.
21
M.-A. Hermitte e D. Dormont, op. cit., p, 349 e s.
22
C. Noiville, Ressources génétiques et droit, Pédone, 1997, p. 57 e s.
23
M.-A. Hermitte, Le sang et le droit – Essai sur la transfusion sanguine, Le Seuil, 1996, p. 306 e s.
solicitação pelo INSERM de um relatório de perícia, nenhum estudo que teria sido
solicitado aos serviços competentes do Estado ou a autoridades científicas, com o
objetivo de averiguar a existência do elo de causalidade entre o câncer e a inalação das
fibras de amianto; resulta disto que, pelo menos durante os períodos citados (entre o voto
das diretrizes e sua transposição), o atraso do Estado quanto à adaptação da
regulamentação de proteção dos assalariados, relacionada com os riscos corridos, é
culposo e capaz de responsabilizá-lo a partir do momento em que compete a ele não tão
somente tomar as medidas necessárias para a indenização das doenças de origem
profissional, mas também tomar todas as medidas úteis para prevenir as referidas
doenças”.
A referência ao relatório do INSERM é de difícil interpretação. O fato de não ter
solicitado estudos antes de 1995, levaria a compartilhar da responsabilidade do Estado
por não ter procurado informar ou, ao contrário, implicaria sua responsabilidade somente
a partir do momento em que Bruxelas o informa, via voto da diretriz? Parece que a
segunda interpretação está mais em conformidade com o texto do julgamento e,
obviamente, isto é muito simplista. Os conhecimentos publicados existiam há muito
tempo. A primeira crise do amianto em Jussieu data do ano de 1977 e o Tribunal não
examinou esses dados, nem seu andamento na Direção Geral da Saúde (DGS) ou o
comportamento muito criticado do Comitê permanente do amianto, estrutura paritária
garantindo um papel de conselheiro junto ao Estado24.
Resta dizer que o conhecimento – já bastante consolidado no caso – e a avaliação
dos riscos são realmente, para o direito positivo, o fundamento das escolhas coletivas
cuja legitimidade pode ser contestada nos tribunais.
(b) Avaliação, livre escolha e aceitabilidade dos riscos
O Protocolo de Cartagena sobre a prevenção dos riscos biotecnológicos, nos
movimentos internacionais de OGM, analisa as coisas de forma diferente : “a avaliação
dos riscos deve permitir uma decisão de acordo com o conhecimento” (Anexo III) ;
24
Para maior análise, ver F. Chateauraynaud e D. Torny, Les sombres précurseurs, ed. Da EHESS, 1999, p.
101 e s., e J.-Y. Le Déaut e H. Revol, L’amiante dans l’environnement de l’homme : ses conséquences et
son avenir, OPECST, números 329 e 41, 1997.
então, não há mais certeza da racionalidade da decisão, porém existirá informação, nos
limites dos conhecimentos disponíveis25.
O ponto de vista conforma-se com a idéia de que o público aceita correr riscos
com a condição de ser informado, de tirar uma vantagem considerada como importante e
de conservar uma liberdade de escolha26, idéia explorada pelo direito do consumidor, no
quadro da obrigação de etiquetagem ou, sob outra forma, no quadro do contrato médico;
decerto é a livre escolha do paciente, no que diz respeito ao cálculo de risco, que impõe
ao médico a obrigação da informação que inclui, de agora em diante, os riscos mais
incomuns e até, de acordo com uma decisão da Corte de Apelação de Paris, os riscos cuja
realidade é objeto de debate27. Saiu-se da idéia de racionalidade da decisão e trata-se
antes de permitir que se corra o risco que, para ser livre e consciente, implica uma
avaliação prévia.
Se for seguido o raciocínio sobre a avaliação, chega-se a um questionamento cuja
resposta permanece pouco clara, mas que tem mais a ver com a gestão : quem deve ser
informado e quem pode aceitar o risco para a coletividade? D. Mac Namee, que publicou
um glossário da avaliação dos riscos, define a aceitação do risco como “uma decisão
clara de sofrer as conseqüências de acontecimentos prováveis”, e esclarece que as
25
Este conceito de “decisão de acordo com o conhecimento” ampliou seu espaço, no direito internacional
público, onde se estão estruturando campos tão diferentes quanto os movimentos internacionais de lixos e
as transferências de recursos biológicos. Ele regulamenta as relações entre os Estados e as pessoas físicas,
de acordo com o modelo do consumidor informado.
26
Então, causa espanto a afirmação do COMETS, Comitê de Ética para as Ciências do CNRS : “A
sociedade está preparada para escutar certos discursos e outros menos. Em vez das interrogações, ela
prefere as certezas, em vez das dúvidas, as afirmações, em vez das declarações incertas, as notícias
tranqüilizantes…”, in Communication et diffusion du savoir scientifique, número 1, janeiro de 1997. Ao
contrário, nos campos jurídicos mais clássicos, a ligação entre a liberdade de escolha e a informação está
bem protegida. Pode pensar-se no exemplo das obras de arte. Um comprador, tendo pedido a anulação de
uma venda por falta de autenticação da obra, o juiz nomeou um perito que reconheceu a impossibilidade de
concluir por um lado ou por outro. Isto levou a Corte de Apelação a deixar as coisas como estavam e a
recusar-se a anular a venda. A Corte de Cassação informou a decisão de acordo com os seguintes termos:
“sendo que é decidido sem pesquisa se a autenticidade da obra não constituía uma qualidade substancial e
se a Sociedade D. não havia firmado o contrato, na convicção errônea desta autenticidade, a Corte de
Apelação não deu base legal para esta decisão”, Cass., 13 de janeiro de 1998, D.2000, número 3, 54. Se
esta decisão aplica-se ao caso que nos interessa, pode-se perguntar se o direito de responsabilidade do
fabricante não é concebido com o mesmo embasamento intelectual, a certeza da inocuidade de um produto
que é a base de qualquer compra de produtos que não são perigosos por natureza. Isto merece ser
considerado para poder raciocinar sobre a maneira pela qual o direito pensa a aceitabilidade dos riscos, no
sentido da sociologia.
27
Christine Noiville, Petites affiches n. 89 de 5 de maio de 1999; M.-A. Hermitte e C. Noiville,
L’obligation d’information en matière de santé publique à la lumière de la loi du 1 juillet 1998, Gazzette du
Palais., 23-24 de outubro de 1998, p. 42 e s.
técnicas de gestão do risco devem “permitir à direção de uma empresa ponderar o custo
da gestão dos riscos em relação às vantagens de suas reduções; aceitar o risco é uma
questão que concerne à cúpula dirigente dos executivos superiores”. Ele deixa a decisão
recair sobre os únicos grupos dirigentes cuja legitimidade para aceitar o risco em lugar do
outro é implicitamente reconhecida28. Transpondo para a coletividade, este ponto de vista
refere-se ao Estado, sem a participação do público. No entanto, já mais adiante, a aposta
aparece claramente: a informação, o conhecimento são realmente as ferramentas de um
cálculo de risco consciente; ainda é preciso saber como o conhecimento é compartilhado,
quem dispõe dele, quem participa da avaliação? (ver II)
(c) Avaliação e resolução dos conflitos no quadro do livre comércio29
No contexto do livre comércio, intra-europeu ou internacional, estima-se que os
produtos devem circular sem que os Estados possam instalar barreiras técnicas, a pretexto
da saúde pública ou da proteção do meio ambiente; as “medidas” nacionais são
encaradas, às vezes com razão, como armas da guerra econômica, que também é uma
guerra de normas, sendo esta uma guerra das culturas jurídicas e das escolhas políticas.
Neste contexto, o exercício da soberania tende a mudar, posto em evidência pelo acordo
sobre as medidas sanitárias e fitossanitárias (SPS) da OMC, quando estabeleceu um
“direito dos Estados-membros no que diz respeito à fabricação das normas
internacionais”, sob vigilância, claro, do Comitê das Medidas Sanitárias (artigo 3-4)30.
A realização do livre comércio implicaria, de forma idealizada, que todos os
Estados tivessem a mesma visão da segurança dos produtos, do que é a saúde dos homens
e do meio ambiente, do nível de proteção que convém assegurar-lhes. Juridicamente isto
se traduz por um esforço parcial de harmonização das regulamentações e dos níveis de
proteção, articulado com o postulado do reconhecimento mútuo da validade dos sistemas
de proteção instalados pelos Estados expedidores. Esses dois métodos, harmonização e
28
Entretanto, começa-se a admitir que a participação dos assalariados, no que diz respeito à prevenção dos
riscos, é pertinente. Ver C. Lagabrielle e J. Vannereau, Évaluation des risques et management (psychologie
du travail), Préventique, março-abril de 2000, p. 32.
29
M.-A. Hermitte, Droit du marché, territoire et précaution, in La Communauté Européenne et
l’environnement, Colloque d’Anger sob a direção de J.-C. Masclet, La Documentation française, 1997, et
L’illicite dans le commerce des marchandises, in L’illicite dans le commerce international, sob a dir. de P.
Kahn, Litec, trabalhos do CREDIMI, 1996.
30
Sobre este tema, ver L. Thévenot, Un gouvernement par les normes. Pratiques et politiques des formats
d’information, in B. Conein et L. Thévenot (ed), Cognition et information en société, Paris, EHESS, 1997.
reconhecimento mútuo, baseiam-se, um como o outro, sobre procedimentos de avaliação
dos riscos. Se, no entanto, surgir um conflito, a análise científica é convocada como meio
de resolução. Assim, o texto fundador da Agência Européia de Medicamentos prevê que,
em “caso de desacordo entre Estados-membros quanto à qualidade, segurança ou eficácia
do medicamento (…), o problema seja resolvido por meio de uma decisão comunitária
obrigatória, baseada em uma avaliação científica das referidas questões”31. Para a OMC,
os métodos de avaliação dos riscos fazem parte das medidas nacionais passíveis de
constituir bloqueios dos fluxos, o que é suficiente para mostrar a função jurídica da fase
de avaliação (Anexo A do Acordo SPS). Um Estado-membro não pode prolongar
eternamente uma proibição de importação se for incapaz de fornecer uma justificação
científica para isto32. A incerteza científica oficialmente reconhecida refere-se à avaliação
discricionária e à soberania nacional33; o consenso da comunidade científica internacional
e a ausência de justificativa científica dos Estados-membros restabelecem o livre
comércio (ou melhor, as sanções econômicas). Mesmo assim, é a instância científica que
arbitra o texto da OMC, não permitindo que se considerem escolhas econômicas e sociais
como a estrutura das propriedades agrícolas que, mais que as considerações relativas à
saúde, originaram a recusa de importação da carne com hormônios.
ii) Avaliação e gestão
Conforme a comunicação da Comissão34, “o princípio da precaução deveria ser
considerado no quadro de um enfoque da análise do risco, baseado em três elementos: a
avaliação do risco, a gestão do risco e a comunicação do risco”. A precaução seria o
conceito pertinente no quadro da gestão do risco e não deveria ser confundida com “o
31
Regulamentação n. 2309/93/CEE do Conselho do 22 de julho de 1993, JOCE, n. L. 214 do 24 de agosto
de 1993.
32
P. Kourilsky e G. Viney, op. cit., p. 159 e s., sobretudo a idéia de “lugar justo” a ser dado para o princípio
da precaução, nos relatórios internacionais, e C. Noiville, Principe de précaution et OMC, Le cas du
commerce alimentaire, Clunet n. 2, 2000.
33
Aliás, não se trata somente da controvérsia científica. É possível referir-se à decisão da CEDH que
declara o direito inglês que, em razão da controvérsia sobre este assunto, está recusando o acesso à
procriação artificial para um transexual, compatível com a Convenção Européia dos Direitos Humanos.
34
COM (2000), 2 de fevereiro de 2000 ; trata-se de uma afirmação clássica, conforme os princípios
colocados pela OMC e, particularmente, o Codex Alimentarius; sobre a passagem da cultura da prevenção
para a cultura da precaução, ver os artigos de F. Ewald, Le retour du malin génie, in O. Godard e J.-J.
Salomon, Pour une éthique de la science. De la prudence au principe de précaution, Futuribles, n. 246,
setembro de 1999, p. 5. No que diz respeito à ordem jurídica, ver a tese de N. De Sadeleer, Essai sur la
genèse et la portée juridique de quelques principes du droit de l’environnement, Tese da Faculdade de
Direito de Saint Louis, setembro de 1998.
elemento de prudência que os cientistas aplicam na avaliação dos dados científicos”.
Assim, a Comissão distingue claramente a gestão, momento político e jurídico que
implica a “responsabilidade eminentemente política” de fixar o nível de risco aceitável
para a sociedade e se apóia sobre o princípio da precaução, da avaliação, atividade
científica que obedece às regras de prudência definidas pela comunidade científica35. Do
mesmo modo, o quadro de peritos, tendo analisado o caso dos hormônios para o Órgão de
Solução das Controvérsias da OMC tentara destacar esta ruptura entre a gestão, momento
político, e a avaliação dos riscos, definida como uma “análise científica dos dados e dos
estudos factuais; não é um modo político que se refere a julgamentos de valores de
caráter social que seriam estabelecidos por organismos políticos” (ponto 8-94). Essas
afirmações são passíveis de crítica.
Distinguir a avaliação e a gestão dos riscos é prático, mas o exercício deixa a
desejar. Não há como separar essas atividade no tempo – a avaliação é permanente e a
gestão também36. Por outro lado, não seria necessário acreditar que, de fato, a avaliação
concerne a dados científicos “objetivos”e a gestão considera os aspectos políticos,
econômicos e sociais: o risco que se deve avaliar, sendo definido como “interação entre
um perigo e uma exposição a este perigo”, é permeável aos elementos sociais, como
mostra o exemplo de um risco de contaminação radioativa; os hábitos alimentares ou os
lugares de passeio são aspectos sociais que determinam a exposição ao perigo, própria de
cada indivíduo. As modalidades são as mesmas no que diz respeito às obrigações
econômicas ou aos procedimentos de fabricação: trata-se de fatos que precisam ser
integrados à avaliação.
O acordo sobre os riscos fitossanitários da OMC o reconhece em seu artigo 5-3,
pois estabelece que “para avaliar o risco (…) e determinar a medida a ser aplicada para
obter o nível apropriado de proteção sanitária ou fitossanitária contra este risco, os
membros deverão calcular, como fatores econômicos pertinentes: o dano potencial em
termos de perda de produção ou de vendas, no caso da entrada, a instalação ou a
disseminação de um parasita ou de uma doença; custos da luta ou da erradicação no
território do importador; e a relação custo-eficácia de outras possibilidades que
35
R. Encinas de Munagorri, La communauté scientifique est-elle un ordre juridique ? RTD Civ. 2-1998 e
La recevabilité d’une expertise scientifique aux Etats-Unis, RIDC 3-1999.
36
M. Callon e P. Lascoumes tornam evidentes as constantes idas e voltas entre os dois, op. cit.
permitiriam limitar os riscos”. No caso dos hormônios, o Órgão de Apelação justificou
esta visão mais sutil das coisas: por um lado, afirma que o estudo dos riscos deve ser um
“processo caracterizado por uma análise e um exame rigorosos, sistemáticos e objetivos”,
mas que isto não deve levar à exclusão das questões que não permitem “uma análise
quantitativa por intermédio dos métodos laboratoriais empíricos ou experimentais
geralmente associados às ciências físicas”. O OSC acrescenta que é fundamental “não
perder de vista que o risco que deve ser avaliado (…) não é apenas o risco verificável
num laboratório científico, funcionando sob condições rigorosamente controladas, mas
também o risco para as sociedades humanas em condições de existência real. Dito de
outra forma, os efeitos negativos que poderiam efetivamente existir em relação à saúde
humana, num mundo real onde as pessoas vivem, trabalham e morrem”37. A avaliação é
uma operação que se realiza num contexto social, econômico e político.
Além disso, esquece-se freqüentemente de que a avaliação não concerne somente
aos riscos, mas também às vantagens, à eficácia de um produto ou de uma técnica frente
aos problemas a serem resolvidos.
Enfim, a avaliação produz efeitos sobre a gestão e vice-versa. Assim, a incerteza
recorrente que está afetando certas avaliações, a partir do momento em que se aproxima
dos efeitos ditos estocásticos, quando ligada à filosofia da ação que leva a “minimizar o
arrependimento”, no caso da possível resolução da dúvida, conduz a uma estratégia de
redução das exposições, cujo caráter potencialmente excessivo é considerado como “a
pedra angular do edifício da radioproteção” em relação à gestão38. De outra forma, a
incerteza persistente evidenciada pela avaliação implicaria uma estratégia de gestão
específica. Ao contrário, as regras de gestão do risco influenciam o conteúdo da
avaliação. De fato, a prática da avaliação comparativa que obriga a comparar os riscos
associados a um produto com aqueles do produto que se pretende substituir, não seria
uma regra de gestão39. Finalmente, mais a decisão entende calcular o contexto do perigo,
mais os elementos a serem avaliados são diversos e numerosos.
37
Ponto 187.
J. Lochard, Évolution de la notion de limite en radioprotection, Annales des mines, julho de 1996, p. 89.
39
A escolha favorável ao escapamento catalítico tinha como objeto a supressão do chumbo, que já é muito
prejudicial, nos controles realizados na atmosfera das cidades. No entanto, assiste-se ao aumento das taxas
de metais pesados, como o cádmio. O impacto dessas escolhas sobre a saúde teria sido avaliado de forma
correta?
38
Todavia, é preciso ir mais além: mesmo em relação aos aspectos mais
rigorosamente técnicos da avaliação, como a produção dos dados, a forma de obtenção e
difusão dos resultados está diretamente ligada ao princípio da precaução e modifica as
regras de “prudência” que os cientistas aplicam para seus próprios fins. De fato, os
“resultados científicos” aqui servem finalidades que não são as mesmas da ciência – uma
decisão – dentro de uma temporalidade que não é a mesma desenvolvida pela ciência,
visto que não se deixa tempo para terminar a demonstração científica. A implementação
do princípio da precaução provocará pesquisas que não teriam sido feitas sem ele, de
acordo com métodos que teriam sido diferentes e, sobretudo, apresentará resultados que
permitem que os responsáveis entendam as limitações. A precaução tem por vocação a
produção de regras de um sistema coerente que se aplica tanto à fase de avaliação quanto
à fase de gestão.
Entretanto, é preciso resguardar o princípio da precaução de uma distinção entre
avaliação e gestão, pois se limita precisamente à escolha da medida. Assim, as instâncias
de avaliação devem analisar o risco, colocando em evidência diferentes cenários que
incluem diferentes decisões de gestão, cujas conseqüências devem ser avaliadas. Mas, ao
contrário do que está previsto em numerosos textos, não deveriam “propor medidas a
serem tomadas pelas autoridades”40 e somente transmitir esses diferentes cenários
avaliados; a instância política permanece no controle da escolha, desde que represente o
nível de risco aceito.
iii) Definição da avaliação dos riscos
Os textos que prevêem uma avaliação dos riscos não permitem estabelecer uma ou
várias definições para esta operação. Trata-se, evidentemente, de identificar
características nocivas para o homem ou o meio ambiente, assim como avaliar os
impactos. Todavia, será que existem princípios diretores comuns que permitiriam
determinar a extensão, a metodologia e o contexto de estudo da análise do risco, qualquer
que fosse o perigo a ser analisado? Não. Cada objeto é avaliado em função de suas
próprias características. Na melhor das hipóteses, pode-se mostrar a existência dos
diferentes tipos de avaliação, às vezes alguns critérios que ajudam o avaliador a definir os
40
Consoante a fórmula utilizada ainda num texto recente, o Decreto 99-841, de 28 de setembro de 1999,
sobre a toxicovigilância.
contornos de seu trabalho, outras vezes um tipo de escala dos perigos, e, ao que parece,
uma série de etapas idênticas a todos os tipos de perigos.
(a) Os tipos de políticas de avaliação
Sem dúvida, seria interessante tentar estabelecer uma tipologia completa das
políticas de avaliação aplicadas a cada tipo de produto. No entanto, isto iria além dos
objetivos deste trabalho41. Aqui, serão apenas confrontados os sistemas em que uma real
autorização de comercialização foi dada por uma instância política, após avaliação prévia
e complexa realizada por instâncias científicas independentes, com sistemas mais
corporativistas, onde os industriais avaliam por eles mesmos e atestam ter avaliado seus
produtos de acordo com as normas preestabelecidas. Essas diferenças trazem uma
conseqüência importante, pois elas se calculam em termos de números de produtos
existentes no mercado e, então, em termos de capacidade do sistema em acompanhá-los e
em avaliar as conseqüências.
No primeiro caso, cujo tipo está sendo ilustrado pelo regime do medicamento, a
indústria realiza uma avaliação (mobilização dos conhecimentos adquiridos e
experimentações novas), sendo este trabalho reavaliado por uma autoridade central. O
número de produtos colocados à venda é importante, apesar do custo do procedimento e
da limitação de tempo. Quando o produto é comercializado, ele é bastante conhecido e as
informações são relativamente transparentes.
No segundo caso, o dos produtos químicos, muitos produtos já presentes no
mercado nunca foram avaliados. Para os outros, a indústria faz uma auto-avaliação, de
acordo com regras precisas fixadas pela lei, e notifica, mas a autoridade central, após ter
analisado o trabalho, dá a autorização de comercialização num prazo muito curto,
equivalente a uma presunção de licitude, salvo a exercer seu direito de oposição. Estimase que somente 7 % dos produtos químicos tenham sido objeto de uma avaliação. A
diferença em relação ao medicamento permanece no que concerne à vigilância. O efeito a
41
Por exemplo, podem ser confrontados os sistemas que organizam uma avaliação interna dos riscos,
realizada pela agência ou pela comissão dispondo de funcionários próprios, com sistemas que contratam
peritos independentes. Ver D. Tabuteau que dá muita ênfase para esta distinção em termos de
independência da perícia, o que ainda deve ser demonstrado. Por uma parte, os avaliadores internos não são
insensíveis; em relação à cultura industrial; por outra parte, os peritos independentes são submetidos a
diferentes sistemas de declaração de interesses. Ver ainda, Renforcer la sécurité sanitaire en France, Claude
Huriet, Les rapports du Sénat, n. 196, 1996-1997, p. 97.
longo prazo de um medicamento termina sempre por ser conhecido enquanto as coisas
continuam mais incertas com os produtos químicos.
Eles são classificados em função do tipo de perigo que podem representar :
substâncias inflamáveis, tóxicas, nocivas, corrosivas, irritantes, etc.42; a classificação do
produto numa categoria ou em outra implicará condições de utilização e uma
etiquetagem, de forma mais rara, a retirada do mercado e, há alguns anos, a
implementação de estratégias denominadas de redução dos riscos. Mas as conseqüências
difusas dos produtos químicos permanecem vagas. Decerto, foi constatada uma
deterioração da qualidade dos solos, do ar e das águas por causa do produtos químicos
presentes no meio ambiente. Obviamente, existe a suposição de que o aumento mundial
da mortalidade por câncer poderia ter uma relação com este fato; no entanto, a ligação de
causalidade entre os dois não foi estabelecida e parece pouco pesquisada. Esta incerteza e
a importância econômica da indústria química, que já existe há muito tempo, levaram
para o mercado dezenas de milhares de produtos químicos não avaliados por autoridades
independentes. Conseqüentemente, este número traz a impossibilidade material de uma
avaliação43 e a incerteza sobre seus efeitos, o que fecha o círculo. A avaliação realizada,
seja ela pesada ou leve, tem uma conseqüência direta sobre o número de produtos
presentes no mercado e sobre o conhecimento que se pode ter quanto a seus efeitos.
Do mesmo modo, as formas de avaliação podem estar em oposição em função do
lugar que dão à demonstração das vantagens do produto em questão. De fato, certas
avaliações vêm acompanhas de um cálculo dos riscos e das vantagens, o produto sendo
comercializado somente se demonstrar eficácia (é o caso das sementes ou dos
medicamentos). Em outros casos, o fabricante pode colocar seu produto no mercado se a
autoridade competente estimar que não há riscos, e isto sem se preocupar com sua
utilidade. É o caso dos OGM e é certamente o que originou a dificuldade encontrada por
este setor. De fato, os opositores recebem apoio de grupos maiores, que concordariam em
correr certos riscos se houvesse alguma vantagem; enquanto estas não se destacarem, o
42
Diretriz do Conselho n. 67/548 CEE, de 27 de junho de 1967, modificada em 1992 e 1996. Ver Code
permanent environnement et nuisances.
43
As autoridades sanitárias estão cientes da situação, porém uma evolução imediata é pouco provável. A
estratégia utilizada consiste em trabalhar para a elaboração de uma lista de produtos muito suspeitos que,
então, serão indicados como produtos prioritários para uma avaliação. Na Europa, isto levou à designação
de um país como responsável para a avaliação de vários produtos. Depois, as informações são
compartilhadas e uma estratégia de retirada do comércio ou de redução do risco é iniciada, infra, p. 30.
risco é dificilmente justificável. A princípio, nos setores que não precisam demonstrar
nada, as comercializações são mais numerosas, o que leva às dificuldades de fiscalizações
já encontradas. Aliás, o sistema implementado para os OGM é pouco coerente; a
obrigação de assegurar a biovigilância e o acompanhamento dos produtos foi finalmente
imposto, o que se tornaria impensável com a multiplicação das comercializações
originalmente previstas.
Então, existe um paradoxo assumido entre o sistema de produção que, por
natureza, leva ao aumento dos produtos colocados no mercado e uma certa perda de
controle que o sistema de gestão dos riscos procura recuperar, impondo avaliações
prévias e vigilâncias.
(b) As linhas diretrizes da avaliação
Em certos casos, a análise dos riscos está sendo feita num contexto científico já
bastante estabelecido ou considerado como tal: os textos, então, fixam as “normas e
protocolos”, lista dos elementos a serem obrigatoriamente analisados, natureza dos riscos
esperados, métodos de testes obrigatórios. Uma escala de gravidade é fixada, com
atenção particular para os riscos de câncer e de mutações genéticas ou para a patogênese
conhecida dos organismos biológicos. Este sistema tem eficácia dentro de seus próprios
limites, mas oferece uma falsa segurança. A primeira limitação vem da determinação dos
perigos. No caso dos hormônios, a atenção foi direcionada para o câncer, existindo a
preocupação com uma possível feminização ou baixa fertilidade dos homens por causa da
presença de estrogênios, na alimentação. No caso das radiações ionizantes, Franco
Romerio observa que as instâncias de avaliação só haviam inicialmente calculado
leucemias, câncer e malformações genéticas, enquanto outros elementos foram
considerados posteriormente, como tumores benignos, problemas gastrointestinais,
respiratórios e cardíacos; esta ampliação das observações transformou profundamente a
análise do risco, neste ramo da ciência44. Em segundo lugar, os perigos levados em conta
são aqueles revelados por experimentações bastante simples (dosagem letal mediana,
concentração letal média, dosagem sem efeitos indesejáveis observados,…) que não
autorizam um relato das poluições difusas, das adições de produtos, dos efeitos de
sinergia, etc.
44
F. Romerio, Gérer les risques des radiations ionisantes, Librairie Droz, Genève, Paris 2000, p.33, 147.
Em outros casos, o contexto científico mais recente torna o objeto da avaliação
ainda mais vago. É o caso dos OGM, embora importantes progressos tenham sido
realizados em relação ao texto da Diretriz 90/220, que está atualmente revisado. Além da
lista dos pontos a serem analisados, os textos trazem a identificação “de efeitos
negativos” de forma mais ampla que aqueles que tinham sido imaginados originalmente,
como a alteração da sensibilidade a agentes patógenos, diminuição da eficácia dos
tratamentos médicos, modificação das práticas agrícolas…(Anexo II, C, JOCE. C 64/20).
Todavia, nenhuma identificação de gravidade está sendo fornecida, assim como nenhum
método de avaliação, sugerido. Entretanto, o Parlamento europeu acaba de inovar,
solicitando que “uma avaliação específica” seja efetuada, tendo em vista o grau de risco
existente para o meio ambiente. O mínimo que se pode dizer é que a proposta não é
precisa; no entanto, aponta para uma falha importante, que é a das indicações sobre o que
é considerado como nocivo45. Até o momento, a posição comunitária, assim como a
Diretriz 90-220 sobre a disseminação dos OGM no meio ambiente obrigavam a fornecer
múltiplas informações sobre o OGM, como a disseminação, o ambiente de receptação, as
interações entre eles, mas não era preciso dar nenhum elemento de avaliação da
nocividade dos efeitos levados em conta.
Enfim, é preciso observar que a avaliação dos riscos se complica mais ainda, pois
ela deve realizar-se, calculando os efeitos das medidas de gestão levadas em conta, visto
que estas devem ser avaliadas para apreciar a proporcionalidade entre os riscos e as
vantagens de cada solução possível46.
É muito difícil, a partir dos textos atuais, mostrar as falhas que tornam a gestão
tão controvertida. Ora, várias oposições aos OGM mostraram as conseqüências de
avaliações insuficientes: a possibilidade de que o consumo de uma planta geneticamente
modificada aumente a resistência contra um antibiótico seria um perigo? Para alguns é
um perigo não averiguado e, sobretudo, sem gravidade, visto que as bactérias do intestino
já são suficientemente resistentes. Além do mais, são sensíveis a outros antibióticos
existentes e o impacto deste consumo está muito aquém dos problemas bem reais trazidos
pelo uso desordenado de antibióticos. Para outros, tudo isto está correto, mas não vale a
45
Artigo 4, parágrafo 2 bis novo, modificando o posicionamento comunitário (C.E) no 12/2000, ainda não
publicado.
46
OSC, Austrália, Medidas visando às importações de salmões, WT/DS18/AB/R, 20 de outubro de 1998.
pena continuar num caminho errado enquanto a utilização desse gene pode ser evitada e a
planta não tem uma utilidade evidente47. O ataque a um inseto é prejudicial para alguns,
não para aqueles que questionam que são igualmente atacados pelos inseticidas químicos.
Para uns, a transferência de um gene de resistência a herbicidas para as plantas naturais
tem efeito grave, enquanto a Comissão estima que isto não pode ser definido assim, visto
que existem outros herbicidas capazes de eliminar essas plantas resistentes. Vários desses
questionamentos foram resolvidos (num sentido favorável à comercialização) pelo
princípio da avaliação comparada. Conforme ela, “as características identificadas do
OGM e de sua utilização que podem ter efeitos negativos deveriam ser comparadas
àquelas apresentadas pelo organismo não modificado que o originou, assim como à
utilização deste em situações semelhantes” (Anexo II, B)48.
Nem todos os produtos se encontram nesta situação. Os grandes princípios da
avaliação dos medicamentos são claros: deve fornecer a prova (válida, amparada
cientificamente) do efeito terapêutico e da inocuidade de uso em condições normais de
utilização, além de revelar os efeitos indesejáveis associados; a avaliação concerne a três
critérios: eficácia, qualidade, segurança. Isto traz uma relação risco-benefício que não é
estática e poderá modificar-se em função dos efeitos indesejáveis constatados
ulteriormente, levando à suspensão ou ao fim da comercialização do medicamento. Pelo
menos na teoria, existe um balanço relativamente simples das vantagens e desvantagens:
para tratar de uma doença grave, efeitos colaterais importantes serão tolerados, o que não
será o caso em uma doença sem gravidade. O guia das boas práticas clínicas da
International Conference on Harmonisation (ICH) prevê que nenhum teste será aplicado
em seres humanos, se não houver a antecipação dos benefícios susceptíveis de justificar
os riscos potenciais (ponto 2.2). Inúmeras dificuldades permanecem, como as associações
imprevistas de medicamentos, os efeitos colaterais cumulativos e coletivos ou a aparição
de resistências aos antibióticos.
47
Mas acabaria sendo demonstrado experimentalmente, Le Monde, 30 de maio de 2000.
A Diretriz 98/81, modificando a 90/219 relativa à utilização em confinamento dos microorganismos
geneticamente modificados, está mais adiantada. O artigo 5 prevê uma avaliação que deve levar à
classificação em classes de riscos, implicando níveis de confinamento adaptados. O Anexo III, intitulado
“Princípios a serem seguidos para a avaliação,…” fornece uma lista dos “efeitos potencialmente nocivos”.
Da mesma forma, estabelece um procedimento (identificação das propriedades nocivas, identificação do
nível de risco, escolha da medida de confinamento). Esses elementos, ainda sumários, devem ser
completados.
48
De fato, a principal falha dos textos vem de sua indiferença quanto ao caráter
implícito das opiniões. Todavia, é importante que as escolhas feitas por instâncias de
gestão não sejam baseadas em critérios implícitos, como no exemplo tirado do grupo das
sementes. Uma semente só pode ser comercializada se for inscrita no Catálogo das
Variedades (trata-se de proteger os agricultores contra a má qualidade das sementes que
prejudicam a safra anual). Para fazer a inscrição, o avaliador deve constatar que o produto
é “superior” àqueles que já estão comercializados. Os critérios desta superioridade estão
cuidadosamente descritos em termos de “valor agronômico e técnico” (VAT) e são muito
influenciados pelo caráter intensivo da agricultura (rendimento, prematuridade,
resistência às pragas, etc.). O sistema teve efeitos perversos, pois levou à proibição de
venda de antigas variedades procuradas por suas qualidades gustativas ou ornamentais,
mas que não cumpriam os critérios do VAT. Então, foi preciso criar outro catálogo que
incluísse outros critérios de avaliação; o que era relativamente simples, uma vez que a
opinião original não estava implícita.
A reflexão mais evoluída no que diz respeito a isso veio do Escritório Americano
de Administração e Orçamento que, no Executive Order 12866, de 11 de janeiro de 1996,
forneceu uma metodologia para conduzir a avaliação econômica e científica de um
problema. A avaliação, que é caracterizada pela incerteza, precisa dar um motivo às
escolhas efetuadas. Além do princípio clássico do uso dos melhores conhecimentos
científicos e técnicos, a avaliação deve ser guiada por princípios de transparência,
divulgação e justificação das escolhas (que, de fato, se tornam discutíveis, no momento
da decisão). O resultado é que todas as informações, modelos, hipóteses, convicções
devem ser identificados como tais, assim como devem ser avaliadas as conseqüências das
escolhas efetuadas. As teorias e hipóteses divergentes ou alternativas devem ser expostas,
avaliadas e discutidas, todas as incertezas devem ser identificadas e explanadas. Esses são
os elementos que permitem tornar evidente o que M. Callon e M. Lascoumes estabelecem
como sendo a segunda etapa da avaliação dos riscos, o “momento de apreciação objetiva
e completa da ameaça, levando à construção racionalizada do risco”49. Entretanto, até o
momento atual, a maioria dos textos permanece muda e os organismos franceses
49
Op. cit.
envolvidos na avaliação dos riscos são incapazes de descrever as escolhas fundamentais
que estruturam seus parâmetros de análise dos riscos.
(c) As definições disponíveis
“Fazer a perícia de um objeto, um produto ou um procedimento equivale a atribuir
um valor global, positivo ou negativo, de acordo com uma escala pré-determinada e no
quadro de princípios independentes e razoáveis que são respeitados”50. Para D. Mc
Namee, a identificação do risco, sua medição e o processo de “priorização dos riscos”
permitem entender a avaliação. Essas duas definições podem ser criticadas, mas têm a
vantagem de colocar em evidência o lado contextual da operação científica de avaliação,
as escolhas de valores que ela implica. Mesmo assim, os textos jurídicos não estão muito
interessados em definir as prioridades, destacar esses valores. Entretanto, deveria ser seu
papel.
Todavia, a Comissão da União Européia, em sua comunicação sobre o recurso
para o princípio da precaução, esforçou-se para dar uma definição, o que poderia surtir
importantes efeitos se fosse sistematicamente respeitada. Inspirando-se em sua própria
prática, na experiência do Codex Alimentarius, nas reflexões da OSC51, retoma a idéia
dos “quatro itens da avaliação do risco”. O primeiro tem a ver com a identificação do
perigo e consiste em descobrir os agentes de toda e qualquer natureza52 suscetíveis de ter
efeitos, reais ou potenciais, sobre a população ou o meio ambiente; ou, ao contrário, em
identificar um efeito negativo e procurar suas causas, a caracterização do perigo (natureza
e gravidade dos efeitos desfavoráveis53), a avaliação da exposição54, assim como a
50
P. Mainguy, Réflexions à propos de l’expertise dans le domaine agroalimentaire, documento não
publicado e destinado à Academia de Ciências.
51
Ela retoma amplamente os ganhos da doutrina, das instituições técnicas como a do Codex Alimentarius,
assim como seus próprios esforços anteriores. Um exemplo entre outros, a Diretriz 93/67 da Comissão, de
20 de julho de 1993, estabeleceu os princípios de avaliação dos riscos, para o homem e para o meio
ambiente, das substâncias notificadas conforme a Diretriz 67/548 do Conselho. A avaliação inclui a
identificação dos perigos (efeitos indesejáveis que uma substância pode intrinsecamente provocar), a
medição da relação dosagem-resposta, da exposição e caracterização dos riscos (estimativa da incidência e
da gravidade dos efeitos indesejáveis).
52
A Comissão parece restringir-se às substâncias químicas, físicas ou biológicas, o que é um pouco
limitativo. Os campos magnéticos podem ser suspeitos, ou ainda, pode-se suspeitar do barulho, e eles não
são substâncias.
53
Os efeitos das fortes dosagens de radiações iônicas são bem conhecidos, porém os efeitos das leves
dosagens são objeto de debates, pois parecem distribuídos de forma aleatória, dependendo dos modelos
utilizados, etc.
54
B. Wynne fornece vários exemplos de erros de avaliação dos riscos quanto às radiações iônicas ligadas a
uma análise incorreta da exposição efetiva: em se tratando da contaminação aérea ou do consumo de carne
caracterização do risco (probabilidade, freqüência, gravidade dos efeitos)55. No entanto,
alguns desses elementos – a definição do que deve ser considerado um perigo, de sua
gravidade, da maneira como deve ser considerado – são precisamente os elementos-chave
da avaliação que, geralmente, não é tratada nos textos jurídicos.
O recente Acordo de Cartagena, sobre os movimentos transfronteiriços de OGM,
é decepcionante, pois deveria apresentar um interesse peculiar, visto que foi afirmado que
se baseava no princípio da precaução e incluía um anexo especificamente direcionado
para a análise do risco. Mas a idéia é muito clássica: a avaliação deve ser feita “segundo
métodos comprovados” e seguir “métodos de avaliação dos riscos reconhecidos” (artigo
15 e Anexo III) e “outras provas científicas disponíveis” (artigo 15), assim como opiniões
técnicas e diretrizes das organizações internacionais competentes (Anexo III), o que é
conforme a estrutura dos acordos da OMC. O protocolo requer a identificação das “novas
características” que podem ter efeitos indesejáveis. Requer também a avaliação da
probabilidade para que esses efeitos indesejáveis aconteçam de acordo com o grau e o
tipo de exposição do meio receptor, a avaliação das conseqüências desses efeitos, a
estimativa do risco global. Aqui, não há nada de original, pois não existe nenhuma
indicação a respeito do que é um efeito indesejável ou grave, quando, na verdade, é sobre
este ponto que surgirão conflitos. Talvez, em outros tipos de documentos em que se
notem esforços para caracterizar a hierarquia dos perigos, por exemplo, do “documento
de consenso”, elaborado pela direção do meio ambiente da OCDE sobre as plantas
resistentes aos vírus. De imediato, ele indica que seu trabalho vai focalizar os dois core
issues – a criação de dois novos vírus por mecanismos de recombinação genética, a
possibilidade de sinergias involuntárias quando a planta geneticamente modificada está
infectada por vírus não controlados. Tal documento designa dois riscos como
particularmente graves. Este tipo de exercício não é muito comum, nos textos jurídicos.
de ovelha contaminada, “as vias de contaminação” não foram entendidas no Reino Unido, in O. Godard,
p.156 e s.
55
Observa-se que, em certos sistemas de organização total da segurança, a idéia de avaliação dos riscos
termina por permitir a organização obrigatória dos procedimentos destinados à contenção. É o caso, por
exemplo, da decisão do 16 de dezembro de 1998 (J. O. de 30 de dezembro de 1998), que trata da
homologação das regras de uso correto das células-troncos hematoporéticas, tiradas do corpo humano.
Encontra-se aqui num sistema de segurança de qualidade que organiza totalmente cada gesto de coleta,
transformação e controle. Então, não é mais a atividade quotidiana que está submetida à avaliação dos
riscos, mas a organização desta atividade que está sendo avaliada e regularmente validada ou modificada.
Quanto ao Acordo de Cartagena, ele suspeita, de forma mais geral, da simples
novidade56, das novas características e dos indícios de riscos (ver as definições do artigo
3). Além disso, deixa claro que a ausência de conhecimentos ou de consenso científico
não significa que há ausência de risco ou que existe um risco aceitável : esta afirmação é
dificilmente conciliável com a maior parte dos textos jurídicos que fazem da ciência uma
instância de solução dos conflitos.
Enfim, o protocolo obriga a respeitar o princípio da avaliação comparativa, que
implica uma comparação dos riscos associados com o produto litigioso, no caso um
OGM, e dos riscos associados com os mesmos organismos não modificados. Então, é
preciso fazer não apenas uma avaliação, mas avaliações comparadas. Este princípio,
também chamado de princípio da coerência, deve ser visto com circunspecção. Por um
lado, ele é indispensável, pois haveria o risco de não se usar qualquer produto novo sob
pretexto de que ele apresenta um risco potencial, nunca avaliado totalmente por causa de
sua própria novidade; além do mais, é indispensável para evitar a substituição de um
produto cujo risco é conhecido por outro produto que, na realidade, é mais perigoso que o
primeiro. Entretanto, seu manuseio parece delicado. De fato, é talvez possível comparar
os efeitos de dois produtos químicos que são utilizados há muito tempo. Ao contrário,
comparar um risco químico conhecido com um risco genético, apenas potencial, é mais
complicado, pois eles não têm a mesma natureza. Se uma comparação bruta é feita, será
decidido sempre a favor do risco que é potencial. Então, é preciso ponderar – mas como?
Se o critério da irreversibilidade for aplicado, a química sempre sairá como campeã. A
idéia de coerência não é mais fácil de se manusear em nível global. Para ser coerente,
seria preciso arbitrar a difícil questão dos meios: é necessário aplicar tanto o recurso na
avaliação dos riscos dos 100.000 produtos químicos quanto em algumas centenas de
OGM? Se a coerência fosse procurada, seria possível tratar os OGM como os produtos
químicos, o que equivaleria a avaliar apenas alguns produtos prioritários por causa de sua
56
A novidade como elemento de equivalência de um fator de risco tem uma correspondência no que diz
respeito à noção de familiaridade ou de uso médico estabelecido, que permitem avaliações simplificadas. A
decisão de 3 de março de 2000 (J. O. de 9 de março de 2000) fornece os critérios de uso estabelecido : grau
de uso de uma substância, grau de interesse científico do uso de acordo com seu reflexo na literatura
científica publicada, coerência das avaliações científicas e, pelo menos, dez anos documentados de uso
sistemático.
periculosidade. Mas, fazendo isto, o sistema de gestão dos riscos estaria estagnando no
nível em que se encontrava no início do século XX!
2. O regime jurídico dos dados científicos
Embora esta exigência seja encontrada na maioria dos textos, para a Comissão da
União cada uma das etapas da avaliação implica o uso de dados “disponíveis” e
“confiáveis”. Às vezes vai-se além, exigindo que a expressão desses conhecimentos
mostre o estado das incertezas ainda existentes e os limites dos conhecimentos.
Descobre-se aqui a principal utilidade da intervenção do direito, na organização da
avaliação dos riscos: ela concerne à forma de produção e circulação dos dados, não para
assegurar o desenvolvimento científico57, mas para que a decisão política seja facilitada.
Desta forma, constata-se que o esforço de racionalização e pluralismo decorrente leva, ao
mesmo tempo, a uma melhoria de qualidade da produção científica.
i) Dados disponíveis
A existência de dados58 é a condição da avaliação dos riscos; a limitação de sua
disponibilidade é um instrumento de poder: para assuntos militares ou econômicos é a
“inteligência”. Sua difusão condiciona a eficácia da avaliação, mas também a renovação
das formas de democracia59 – foi por causa da divulgação do estado de saúde em que se
encontrava o proletariado urbano que o direito social nasceu. Em se tratando do direito
econômico, a obrigação de informação é reconhecida sem dificuldade como estratégia
política, amplamente utilizada para reduzir as desigualdades (direito do consumo) ou
evitar abusos de poder (uso indevido de informações sigilosas)60. Ora, no campo da
avaliação dos riscos, os textos falam muito freqüentemente dos dados “disponíveis”, sem
realmente precisar em que estado se encontra essa disponibilidade.
57
Sobre a distinção duvidosa entre normas técnicas e normas jurídicas, ver A. Supiot e I. Vacarie, Santé,
sécurité et libre circulation des marchandises, règles juridiques et normes techniques, Droit social n. 11993, p. 38. Poderão ser consultadas, com muito proveito, as análises de E. Cadeau sobre a criação das
agências, vistas como modelo conceitual, tendo por objeto assegurar uma ponte entre técnica e política,
Tese, p. 281.
58
Aqui, a palavra está sendo utilizada no sentido mais abrangente possível, que compreende simples
indicadores, resultados de experimentações, conhecimentos teóricos e publicações. Um trabalho mais
cuidadoso seria necessário para dissociá-los.
59
Secret et démocratie, Association Droit et démocratie, La Documentation française, 1997.
60
C. Kieff-Verbaere, Les obligations d’information dans le droit penal des affaires, l’information vecteur
d’égalité et principe actif de la fraternité, RTD Com., n o 3-1999.
(a) A insuficiente organização da produção dos dados
A expressão “dados disponíveis” engana, pois a produção de dados não é
espontânea61. Um Estado deve criar uma rede de instituições capazes, tendo por
obrigação a produção de informações sob forma utilizável para a decisão pública.
i. A origem dos dados
Os dados úteis à avaliação dos riscos não são espontaneamente produzidos por
aqueles que engendram o risco. O industrial trabalhará para lançar um produto cuja venda
vai assegurar a volta de seus investimentos; a pesquisa sobre a segurança do produto não
faz parte de seus cálculos. Então, precisa-se de instituições sem fins lucrativos, com
orçamento para adquirir esses conhecimentos ou que uma obrigação seja imposta ao
industrial que integrará o custo da segurança no preço final: a implementação do
princípio da precaução pelo Estado passa por uma organização de produção dos dados.
Mesmo assim, se o Estado cria múltiplas comissões e agências encarregadas da avaliação
dos riscos, muitas vezes deixa no escuro a questão de saber quem vai produzir os dados a
serem avaliados e quem vai financiar tal produção. Na realidade, as situações são muito
diversas, pois os dados provêm de três fontes: instituições acadêmicas, instituições
especializadas e produtores de riscos62.
As instituições acadêmicas têm por missão ensinar e pesquisar. De fato, seu papel
na produção e conservação dos dados é essencial, mas não faz parte da missão que o
Estado lhes confiou. Para elas, a produção de dados é somente uma ferramenta a serviço
de uma determinada pesquisa. Logo, existem regras de produção e coleta de dados
reforçadas pela comunidade científica e pelas exigências de novas avaliações, mas é
61
Sabendo que o Voluntariado tem seus limites. Assim, W. Dab observa que a possibilidade de um impacto
negativo dos campos eletromagnéticos foi suspeitada pela primeira vez após pesquisas sobre as reações
psicológicas em famílias onde havia crianças gravemente doentes. Assim mesmo, os epidemiologistas
céticos começaram pesquisas que não conseguiram até hoje fornecer uma avaliação coerente, in O. Godard,
p. 201.
62
Todos são profissionais; entretanto, os sociólogos insistem sobre a importância das observações
espontâneas, mas nada está previsto para calculá-las. No sistema de vigilância dos efeitos das plantas
geneticamente modificadas, o artigo 364 bis do Código de Direito Rural prevê, entretanto, que “toda e
qualquer pessoa que constate uma anomalia ou efeitos indesejáveis suscetíveis de serem ligados à
disseminação ou à comercialização dos produtos mencionados, no presente artigo, informe imediatamente
os serviços encarregados da proteção dos vegetais”.
preciso dizer que elas são menos respeitadas do que se poderia pensar, o que cria
problemas de coerência quando alguém quer reuni-las e usá-las para uma perícia63.
Certos institutos de pesquisa estão diretamente implicados na produção de dados.
O INSERM tem, entre outras missões, o papel de “recolher e centralizar as informações
que tratam de seu campo de atividade, informar o governo e poderes públicos sobre os
conhecimentos adquiridos” (artigo 3, do Decreto de 10 de novembro de 1983). O
Instituto desenvolveu um pólo de pesquisas em epidemiologia e por isto mantém bases de
dados sobre várias doenças ou causas da morbidade e mortalidade; tem ainda uma missão
oficial de perícia e pode ser ativado no que diz respeito à avaliação de certos riscos. Neste
quadro, não produz dados, mas especializou-se na mobilização deles, a partir das bases de
dados existentes. A situação se repete com o Instituto Pasteur que, tradicionalmente, é
responsável pela produção de dados e de perícias sobre vários assuntos. Isto vai da gripe
(GROG) até a listeriose (responsabilidade do acervo das fontes de comparação). Em
todas essas hipóteses, a produção de dados é muito mais profissional, porque é realizada
com objetivo preciso, bem próximo da perícia, da qual os poderes públicos necessitam.
Certas instituições que não têm diretamente como objeto a produção e ou a
reunião de dados devem, entretanto, utilizá-los para ter êxito em sua missão. Assim é que
os centros de luta contra os venenos têm por principal missão responder às situações de
urgência, em cooperação com os estabelecimentos de saúde (artigo L. 711-9 do Código
da Saúde Pública, CSP), mas, para isto, gerenciam um banco de dados que é uma fonte
importante no que diz respeito à toxicologia e serve para as investigações de vigilância
toxicológica (artigo D. 711-9-11 do CSP)64.
Entretanto, comissões especialmente encarregadas da avaliação dos riscos não têm
suporte particular que lhes permita dispor de dados, o que é uma grave falha da
regulamentação. Por exemplo, a Comissão de Engenharia Biomolecular, encarregada dos
riscos de disseminação dos OGM, não recebeu até agora a verba que permitiria
63
J.-J. Duby mostra os elos, mas também as diferenças, entre pesquisa e perícia, in L’expertise scientifique,
une nouvelle mission pour les chercheurs et les organismes? Annales des mines, janeiro de 1998, p. 80 ;
sobre essas dificuldades no momento da crise da vaca louca, ver D. Dormont e M.-A. Hermitte, op. cit. e G.
Mégie, sobre as dificuldades que resultam da localização das equipes de detecção do ozônio, somente no
hemisfério norte, In O. Godard, p. 231.
64
Foi, ao que tudo indica, um centro deste tipo que indicou que o petróleo do Érika era cancerígeno; isto
permite constatar que a disponibilidade de um dado não leva automaticamente à comunicação para o
público.
centralizar os dados disponíveis, num banco de dados65. Esta situação deveria resolver-se
racionalmente com as reformas da segurança sanitária que estão empurrando as múltiplas
comissões, criadas no decorrer dos anos, para organismos mais centrais. De agora em
diante, existe o Comitê Nacional de Segurança Sanitária que está encabeçando tudo.
Analisa os acontecimentos suscetíveis de afetar a população, compara as informações
disponíveis e coordena as políticas do Instituto de Vigilância Sanitária dos Produtos da
Saúde que, atualmente, agrupa todos os produtos ligados à saúde66 e as da Agência de
Segurança Alimentar que está, por sua vez, dirigindo várias comissões preexistentes67. As
novas agências têm tarefas mais definidas e bem mais hierarquizadas, desde os servidores
locais passando pela Rede Nacional de Saúde Pública, até o topo da pirâmide com o
Instituto de Vigilância Sanitária que é, a princípio, um elemento central que deve
“participar da coleta e tratamento dos dados sobre o estado de saúde da população para
fins epidemiológicos; agrupar, analisar e atualizar os conhecimentos sobre os riscos
sanitários, suas causas e evoluções; detectar todo e qualquer evento que modifica ou é
suscetível de alterar o estado de saúde da população; alertar os poderes públicos (…);
concluir com sucesso toda e qualquer ação necessária para identificar as causas de uma
modificação do estado de saúde da população, sobretudo numa situação de urgência”.
Trata-se aqui de um exemplo perfeito da articulação entre produção e coleta dos dados,
análise dos conhecimentos, função de alerta e gestão do risco sanitário (ver também o
artigo L. 792-2-I sobre o sistema de informação nacional e internacional e L. 792-2-II
prevendo que o Instituto é o destinatário das perícias e outros relatórios). Com concepção
recente, o Instituto de Vigilância Sanitária dispõe, em virtude do artigo L. 792-2-III, de
65
Apesar da circulação das informações entre as autoridades competentes e a Comissão, o projeto de
diretriz sobre a disseminação dos OGM não consegue ser organizado em verdadeira base de dados (artigo
10).
66
A Agência Francesa de Segurança Sanitária dos Produtos da Saúde está encarregada da “avaliação dos
benefícios e dos riscos ligados à utilização destes produtos” (artigo L. 793-I do CSP). Para isto, cuida da
perícia e de informações diversas, além de poder fazer perícias ou mandar fazê-las ( artigo 793-2-2o do
CSP). Então, tem o poder de produzir ou mandar produzir novos dados.
67
A Agência Francesa de Vigilância Sanitária dos Alimentos “avalia os riscos sanitários e nutricionais que
podem apresentar os alimentos destinados aos homens ou animais…” (artigo L. 794-1), “2) fornece para o
governo a perícia e apoio científico e técnico necessários…3) coordena a cooperação científica européia e
internacional da França, 4) faz a coleta dos dados científicos e técnicos necessários para o cumprimento das
missões; 5) tem acesso aos dados coletados pelos serviços do Estado ou pelos estabelecimentos públicos
sob tutela. Além do mais, recebe seus relatórios de perícia no que diz respeito…a seu campo de atuação;
faz ou manda fazer todas as perícias, análises ou estudos necessários (…) 6) (…) conduz programas de
pesquisas” (artigo L. 794-2).
um raro poder de injunção que lhe permite obrigar toda e qualquer pessoa a fornecer
dados pertinentes: “a pedido do Instituto, quando houver necessidade de prevenir ou
dominar riscos para a saúde humana, toda e qualquer pessoa física ou jurídica tem por
obrigação comunicar todas as informações relativas a tal ou qual risco das quais tenha
posse”. Um poder um pouco semelhante é encontrado com a Comissão de Biovigilância,
que assegura a “vigilância biológica do território” com a ajuda de agentes habilitados. O
responsável pela comercialização de um OGM deve comunicar todas as informações e
materiais necessários para a identificação e acompanhamento de eventuais efeitos não
intencionais desses organismos, dentro dos ecossistemas agrícolas ou naturais; além do
mais, a autoridade administrativa pode sob decisão “tomar todas as previdências para
coletar os dados e informações…”. Assegura também que os agentes têm acesso às
instalações e a todos os lugares de disseminação (artigo 364 bis e ter do Código Rural).
Então, o poder político está começando a entender a distância que existe entre as pesadas
tarefas de avaliação e a fragilidade dos meios disponíveis, nas comissões encarregadas do
assunto.
Múltiplos organismos públicos ou encarregados de missões de serviço público
produzem dados, desde a meteorologia nacional até o Instituto Francês do Meio
Ambiente (IFEN) ou o Instituto Nacional do Meio Ambiente Industrial e dos Riscos
(INERIS). Apesar de sua extensão, o sistema tem várias falhas: não existe uma
organização sistemática dos registros do câncer, quando isto deveria ser uma operação
prioritária, tendo em vista a importância da doença. Outro exemplo foi na ocasião de uma
crise como aquela do excesso eventual de leucemia ao redor de Hague, em que os
epidemiologistas constataram uma ausência de acompanhamento epidemiológico nas
proximidades de um equipamento que era objeto de contestação há muitos anos68!
Enfim, os dados estão sendo fornecidos pela iniciativa privada, que tem por
obrigação produzi-los no quadro dos procedimentos de autorização de comercialização,
estudos de impacto, de periculosidade, de prevenção dos riscos, etc. De fato, o fabricante
deve fornecer um dossiê, recapitulando o estado dos conhecimentos existentes a partir da
literatura publicada e os novos resultados que vêm das experimentações que a
68
A. Spira e O. Bouton, Rayonnements ionisants et santé : mesure des expositions à la radioactivité et suivi
de la santé, Relatórios oficiais, La Documentation française, 1999.
regulamentação está impondo. Os sistemas são muito diversos. De modo geral, o
fabricante só deve fornecer um dossiê em que houver “todos os elementos que permitam
avaliar o impacto desta disseminação sobre a saúde pública e o meio ambiente”, sabendo
que várias informações devem ser obrigatoriamente fornecidas e que a comissão
encarregada da avaliação pode pedir informações complementares69. De outra forma, o
fabricante propõe dados e sua visão de avaliação dos riscos. Em alguns sistemas, a
comissão apenas verifica a conformidade formal da avaliação do fabricante; em outros,
realiza sua própria avaliação a partir de dados fornecidos. As regulamentações sobre os
produtos farmacêuticos, os produtos fitossanitários ou os produtos químicos oferecem, de
fato, uma grande quantidade de dados toxicológicos70, os procedimentos necessários para
colocar no mercado um carro ou um avião trazem inúmeros dados sobre os materiais, a
resistência, os choques, etc.
Apesar de toda essa parafernália, constata-se que, em caso de grave crise, não
existem, muitas vezes, dados disponíveis ou utilizáveis (caso de Hague) ou as revelações
são feitas pelas ONGs e pela mídia: após o naufrágio do Érika, em 12 de dezembro, a
Total deveria ter comunicado de imediato para os Ministérios do Meio Ambiente e da
Saúde o conteúdo exato da carga. Estes deveriam ter pedido uma análise dos riscos para o
meio ambiente e a saúde. Todavia, em 27 de dezembro, foi a associação Robin des Bois
que chama a atenção, extrapolando o caráter perigoso do petróleo a partir de um estudo
britânico que fora efetuado após um naufrágio, datando de 1980! Esta primeira
extrapolação teórica foi confirmada por um pesquisador do Muséum, em 19 de janeiro, e
foi amplificada por um laboratório privado. Somente em 11 de fevereiro, ou seja, dois
meses depois do naufrágio, o Ministério do Meio Ambiente acionou a comissão de
perícia, INERIS, que confirmou o caráter cancerígeno do produto e avaliou o risco como
sendo muito pequeno.
ii. A obrigação de aquisição de novos dados
Existe um amplo consenso para dizer que um risco reconhecido como plausível,
apesar da ausência de provas experimentais, deveria, em virtude do princípio da
69
A exemplo do Decreto de 28 de abril de 1998 (J.O. de 29), relativo ao controle dos produtos fertilizantes
e dos suportes compostos inteiramente ou em parte de OGM, para cultivo.
70
Em seu relatório para um reforço da segurança sanitária ambiental, O. Grzegrzulka e A. Aschiéri
deploram, com razão, o fato desses conhecimentos não serem constituídos como ciências que são objeto de
ensino.
precaução, levar a uma obrigação de pesquisa, ou melhor, a uma obrigação de produção
de dados. Aliás, o fato de conceber um programa de pesquisas que traz uma melhor
avaliação deveria ser a primeira decisão de gestão do risco71.
O procedimento de AMM72 tem como objeto obrigar o solicitante a experimentar
e, então, a produzir novos dados.
O direito de responsabilidade tem também uma incidência quanto à produção dos
dados. De fato, o caráter defeituoso de um produto se mede em relação à segurança
legitimamente esperada pelo consumidor. Esta esperança legítima remete, no caso dos
medicamentos que não são isentos de riscos, aos efeitos indesejáveis que foram
detectados no momento do procedimento AMM e durante a fase de farmacovigilância73.
De fato, se o fabricante74 conhece bem seus produtos e informou satisfatoriamente o
usuário com um rótulo bem feito, poderá ser exonerado da responsabilidade. A. Laude
cita várias decisões da justiça que exoneraram da responsabilidade o fabricante que
informara os riscos conhecidos ou possíveis (bula e dicionário Vidal), enquanto, em caso
contrário, a responsabilidade é reconhecida. Além do mais, pode recair sobre o Estado se
o fabricante informou às autoridades sanitárias que existiam elementos novos e que a
agência não autorizara ainda a modificação dos rótulos75. Este sistema de
responsabilidade regulamenta a aceitação, pela vítima, dos riscos de um produto,
71
P. Kourilsky e G. Viney, op. cit. p. 43. Além do mais, é preciso que a preocupação em produzir dados
não leve a criar o risco. B. Wynne afirma que o Chefe do Serviço de Física Médica da fábrica de Windscale
teria admitido que “os níveis de rejeição de inúmeros isótopos radioativos haviam sido escolhidos com
valor muito elevado, de modo a realizar uma experiência real” in O. Godard, p. 201.
72
Autorização de Comercialização
73
J.-M. Aubry, F. Coustou, C. Mamain, M. Baumevieille, Droit pharmaceutique, fasc. 33; questiona-se se
a seriedade dos estudos clínicos realizados sob a responsabilidade dos grandes grupos farmacêuticos
continuaram com as pequenas start-up que prestam serviços de pesquisa para esses grandes grupos. Ver Le
Monde, de 29 de novembro de 1997.
74
Aqui, estamos falando do fabricante no que se refere a sua responsabilidade. No entanto, no direito de
autorização de comercialização aplicável aos produtos, o pedido de AMM é freqüentemente feito por uma
pessoa física que não é o fabricante. Por exemplo, o importador para a União Européia, pois ele “é o
responsável pela comercialização”. Ver, por exemplo, a definição dos dados na Diretriz n. 92/32/CEE, de
30 de abril de 1992, artigo 2.1.d).
75
A. Laude, Droit pharmaceutique, fasc. 44; Rennes, 12 de abril de 1994, Juris-data no 053394 e
Versailles, 25 de junho de 1992, Juris-data 0442381; J. Calvo, La responsabilité du fait des effets
secondaires des produits de santé, Petites affiches de 16 de fevereiro de 1999. Por outro lado, os
conhecimentos disponíveis são constituídos por verdadeiras obrigações do direito da responsabilidade. É o
caso de quando uma Corte de Apelação considera a responsabilidade de um hospital por falta de
organização, afirmando que um médico não poderia, nessas condições, estar presente em menos de três
minutos depois do nascimento de uma criança, quando depois deste prazo o recém-nascido sofre de graves
seqüelas. Este prazo foi fixado de acordo com o estado dos conhecimentos e das técnicas. Ele fixa também
o conteúdo da obrigação do hospital, Cass. Civ., 15 de dezembro de 1999, D. 1999, no 4, inf. rap. 28.
reconhecido como hipoteticamente perigoso e, conseqüentemente, obriga a produzir e
difundir dados precisos sobre o risco de um produto.
Quanto à avaliação dos riscos, pode levar ao pedido de produção de novos dados.
É o caso, por exemplo, da avaliação das substâncias químicas ditas prioritárias. Após ter
sido avaliado, o produto torna-se objeto de uma “estratégia de redução dos riscos”, que
estuda os casos peculiares dos trabalhadores expostos, do consumidor e do meio
ambiente. Segundo os casos, os avaliadores estimam que não é necessário ter
conhecimentos suplementares ou, então, que uma pesquisa é necessária76.
(b) Os obstáculos jurídicos quanto à disponibilidade dos dados
O fato do conhecimento existir não é suficiente. É preciso ainda que esteja
disponível. O problema é saber: para quem ? Certos dados são públicos – mas não são
necessariamente mobilizados – outros são privativos e, por fim, outros são disponíveis
somente para as instâncias de avaliação77. Nem é preciso falar da questão específica da
transmissão dos dados para o público, pois ela se refere mais a uma decisão de gestão do
risco.
i. Os dados de vocação pública
Em primeiro lugar, pensa-se em todas as pesquisas acadêmicas78. Efetivamente,
os universitários e os pesquisadores têm por missão publicar: a lei de orientação para a
programação da pesquisa prevê que os estatutos dos servidores trabalhando na pesquisa
“devem favorecer a livre circulação das idéias” (Lei nº 82-610 de 15 de julho de 1982, e
para o ensino superior, Lei nº 84-52 de 26 de janeiro de 1984 e Decreto de 6 de julho de
1984). Mas são eles que devem decidir se sua pesquisa está baseada em resultados
76
Ver, por exemplo, o caso dos alcanos n C 10 (minus) 13, cloro. O Reino Unido, como avaliador,
recomenda uma continuação das pesquisas sobre os riscos para os sedimentos resultantes da produção da
substância e de seu uso nas borrachas, nos fluidos de tratamento dos metais e nos produtos de acabamento
do couro. Ele afirma que “as necessidades em matéria de informação têm a ver com a determinação
experimental do Koc, o controle do estado do solo e dos sedimentos, a proximidade das fontes de emissão,
dos testes de toxicidade sobre os organismos que vivem no solo”, Recomendação da Comissão de 12 de
outubro de 1999, JOCE no L. 292 de 13 de novembro de 1999, p.42.
77
Sobre este assunto, ver X. Strubel, La protection des oeuvres scientifiques en droit français, CNRS Droit,
1997.
78
C. Blaizot-Hazard, Les droits de propriété intelectuelle des personnes publiques en droit français, LGDJ,
1991; ver as análises de M. Vivant, in Le travail du chercheur – Les institutions scientifiques et les
associations, in Cahiers du Comets – CNRS, junho de 1997. M. Vivant dá muita importância ao elo de
dependência entre o CNRS e os pesquisadores e pouca, ao princípio de liberdade da pesquisa. Talvez isto
se explique pelo fato de que ele se interessa, sobretudo, pela questão das patentes, muito pouco pela
liberdade de expressão e, de maneira alguma, pela proteção da saúde pública.
suficientemente abalizados para que um artigo possa ser publicado. Eles têm um tipo de
direito de divulgação comparável ao direito do autor em relação a sua obra. A partir deste
ponto, surgem vários problemas.
O primeiro tem a ver com o conflito que poderia existir entre o público, que exige
algo como um direito de publicação dos resultados de uma pesquisa contra a vontade de
seu autor, que poderia querer não publicá-la, baseado no direito de divulgação amparado
pelos direitos autorais. Ora, o direito de divulgação, proveniente do direito de
propriedade literária e artística, é um conceito pouco adaptado às produções científicas
que divulgam os dados, resultados brutos que revelam um fato de natureza, um trabalho,
mas também, às vezes, uma abordagem original de um problema ou, no caso de um
artigo, que é quase sempre sem nenhuma originalidade : observa-se aqui quase uma
inversão de categorias do direito autoral – é o conteúdo que pode ser original, a forma
que tem a ver com um exercício obrigatório. Então, talvez não se justifique atribuir ao
direito de divulgação do científico o mesmo caráter discricionário que tem o direito
autoral79.
De fato, tensões surgiram no quadro dos testes de moléculas ativas contra Aids.
Frente à urgência, pesquisadores e revistas admitiram publicar resultados de testes
clínicos pela metade, quando deixavam presumir que poderia haver um progresso
terapêutico importante. Isto levou, seguindo a mesma lógica, à disponibilidade das
moléculas enquanto o procedimento AMM não estava concluído. O princípio da
precaução impõe um prazo demorado para colocar um produto no mercado. No entanto,
isto atrasa a disponibilidade de produtos essenciais para a saúde. É a razão pela qual um
procedimento dito de autorização temporária de utilização pode vir temperar esse efeito
perverso80.
79
Na seqüência de outros autores, X. Strubel afirma que “os fatos ou os dados experimentais necessários
para o trabalho do cientista só podem ser apropriados como bens pertencentes ao domínio público. O
tratamento pode ser diferente com os trabalhos científicos ou a fortiori com as explicações teóricas sobre os
ditos trabalhos, a partir do momento em que o autor for capaz de apresentá-los de forma original”, p. 55.
Não se pode colocar no mesmo plano os fatos, que são de livre acesso para todos, as observações que
refletem esses fatos, mas que existem no mundo somente depois de terem sido divulgadas pelo observador,
os resultados provenientes de um trabalho que vem da experimentação, ou pelo menos da perspectiva de
várias observações e, finalmente, os artigos, hipóteses que subentendem um trabalho intelectual como
sendo em parte criativo.
80
D. Degroote, as ATU, Dissertação de mestrado da Universidade Paris I.
Ao contrário, acontece de o pesquisador encontrar empecilhos ao querer publicar.
As revistas podem recusar publicações, alegando que os dados ou o protocolo de pesquisa
não estão em conformidade com as normas da disciplina. Este argumento é indispensável,
mas complica a publicação de resultados espantosos, sem explicação, e pode sofrer
pressões variadas81.
Também podem existir conflitos com o empregador, público ou privado, e o
assalariado. Em todos os casos em que um dado litígio interessa à saúde pública e à
proteção do meio ambiente, uma proteção deveria ser assegurada para o assalariado que
decidiu revelar o fato, que vai contra a vontade de seu empregador. Por exemplo, o
direito belga reconhece, a partir de uma decisão de abril de 1994, que o responsável pelos
lixos tóxicos de uma empresa tem um status de assalariado protegido. O direito
americano reconhece um regime geral de proteção para quem deu o alerta e leis especiais
para a atividade nuclear, por um lado, e aeronáutica, por outro82. O direito trabalhista
francês, que ignora essa instituição83, tornou uma decisão da Corte de Apelação de
Nancy, confirmada pela Corte de Cassação, particularmente interessante. A. Cicolella,
servidor do INRS, fora suspenso por insubordinação após um conflito quanto à
divulgação de resultados que mostravam o caráter teratogênico e cancerígeno dos éteres
de glicol, família de produtos encontrados em produtos de consumo de massa, como as
pinturas ou produtos de limpeza para os vidros, assim como em várias técnicas de
81
Poderia ser citada a publicação feita pelo Le Lancet (16 de outubro de 1999) sobre a experiência de A.
Puztsaï que dava resultados preliminares quanto à baixa do sistema imunológico de ratos que consumiram
batatas inglesas geneticamente modificadas. Embora a revista tenha julgado a pesquisa em inconformidade
com as regras do gênero, ela a publicou para não ser acusada de ter ocultado resultados que interessam à
saúde pública. É preciso dizer que o pesquisador perdeu de imediato seu laboratório e que as experiências
não parecem ter sido repetidas! Podem também ser citados os resultados provisórios sobre o uso dos
telefones celulares de Sir W. Stewart, responsável pela pesquisa encomendada pelo governo inglês. Julgou
interessante aconselhar, de imediato, que era preferível que as crianças não usassem esse tipo de aparelhos.
82
Esta proteção estende-se para todos os assalariados das prestadoras de serviços, o que é muito
importante.
83
Ver a proposta de A. Aschieri, em seu relatório parlamentar sobre a segurança ambiental, de 16 de
novembro de 1998 ; M.-A. Hermitte e C. Noiville, L’Obligation d’information en matière de santé
publique, op. cit ; e M.-A. Hermitte e D. Dormont, op. cit. p. 375. X. Strubel considera que o pesquisador
da iniciativa privada deve manter o sigilo, de acordo com seu contrato de trabalho, mas que poderia chocarse com a liberdade de expressão se não estivesse limitado no tempo. Infelizmente não existe jurisprudência
sobre este assunto. A única coisa que poderia ser dita é que os autores que contestam o eletronuclear não
perderam seus empregos. Os pesquisadores públicos podem, de acordo com o Decreto de 1984, “publicar
os resultados de seus trabalhos, sob reserva dos interesses da coletividade nacional e do respeito dos
direitos de terceiros que participaram desses trabalhos”. Neste caso, a sanção aparece mais pelo
intermediário do “afastamento”, supressão de grupos de pesquisa ou de créditos.
fabricação. A Corte declarou a demissão como sendo abusiva, pois, “apesar de uma
relação de subordinação inerente a todo e qualquer contrato de trabalho, o empregador
deveria, no caso, exercer seu poder de hierarquia nos limites compatíveis com a natureza
das responsabilidades confiadas ao interessado e dentro do respeito à independência dos
profissionais da saúde, em seu ambiente de trabalho”84. De fato, o alerta por razão de
saúde pública deveria ser objeto de uma verdadeira obrigação de denúncia, como ocorre
em outros setores85.
Publicada, uma pesquisa deve proporcionar livre acesso para todos. Mas é preciso
deixar claro que isto não resolve totalmente a problemática da disponibilidade. O volume
dos artigos científicos publicados é tão grande que é necessário ter meios importantes
para poder mobilizá-los para fins de avaliação: reunir os artigos pertinentes, apreciá-los,
tendo em vista os diferentes protocolos, analisá-los. Por outra parte, a publicação em
revistas científicas não implica necessariamente uma transferência de dados para as
autoridades sanitárias. No caso da transfusão de sangue, o Conselho de Estado só
reconheceu a responsabilidade do Estado a partir do momento em que os dados
publicados foram oficialmente transmitidos à DGS.
Enfim, é preciso insistir sobre a diferença que existe entre resultados, que são
dados construídos dentro dos limites que isto implica, e a disponibilidade de dados brutos
que permitem uma discussão quanto à avaliação de outros organismos, que poderia ser
feita a partir deles86. Ora, é cada vez mais freqüente o não fornecimento desses dados
intermediários (economia de papel, de espaço nas revistas, sentimento de propriedade…).
ii. Os dados privativos
84
Caso Cicollella, Nancy, 17 de junho de 1998, e Cass. Soc., 11 de outubro de 2000. Depois, a questão foi
objeto de uma perícia coletiva realizada pelo INSERM, a pedido do Ministério do Emprego. Ela mostra
claramente a pouca vontade de estudar a toxicidade dessas moléculas bastante difundidas. Enquanto
estavam sob suspeita há muito tempo, a toxicidade de duas dentre elas foi estudada e estabelecida nos anos
1980, apenas. A França só reagiu em 1997, com decisões de proibições e com uma solicitação de perícia
sobre as outras moléculas. Esta perícia é disponibilizada pelo INSERM , sob pedido ou em sua página da
internet.
85
Na lei sobre a segurança sanitária, o Instituto de Vigilância Sanitária tem o poder de solicitar informações
a qualquer um, então obrigado a fornecê-las, mas não há nada previsto no que diz respeito à obrigação de
denúncia espontânea. Se ela existisse, seria preciso controlar os inevitáveis deslizes! O direito já conhece o
equilíbrio entre a obrigação de denúncia e a denúncia caluniosa, Paris, 15 de maio de 1996, D. 1998. II.
196, e Cass. Crim., 3 de fevereiro de 1998, inf. rap. 107.
86
Este ponto é muito importante para a gestão do risco. Um industrial pode informar quanto à qualidade
ecológica de seu funcionamento ou transmitir dados brutos que podem ser trabalhados pelas associações.
Eles podem ser produzidos pela iniciativa privada ou pelo serviço público, agindo
sob contrato de pesquisa, na medida em que o contrato prevê, na maioria das vezes, uma
cláusula de confidencialidade que atribui ao responsável pelo financiamento da operação
o poder de controlar e de proibir a divulgação dos resultados87. Em princípio, os
conhecimentos produzidos por uma empresa pertencem-lhe a título de propriedade
privada. Além do mais, certos dados técnicos têm a ver com o segredo industrial, certos
dados econômicos com o segredo das finanças, e todos os que têm acesso a esses dados
por causa de suas profissões (desde o contador até o cientista que avalia os riscos) estão
obrigados a guardar segredo profissional. Entretanto, o direito de segurança dos produtos
fixa limites quanto a essas afirmações. Em primeiro lugar, existe a obrigação de
etiquetagem que fornece um certo número de informações. Há, sobretudo, a obrigação,
para o industrial, de produzir e transmitir certos dados para as autoridades encarregadas
da avaliação e da gestão dos riscos (e, em certos casos, torná-los públicos: em matéria de
OGM existem informações sumárias proibidas de continuarem secretas, por ordem do
legislador, e o relatório público deve ser transmitido ao público em virtude do artigo 23
da posição comum, mas nada diz o que ele deve conter).
Esses dados não foram produzidos de forma espontânea pelo industrial, para seu
interesse pessoal, mas elaborados a suas custas, sob obrigação, para assegurar a proteção
da saúde pública. Então, têm uma dupla natureza: são de interesse geral, o que levaria a
pensar que deveriam ser públicos ou amplamente compartilhados, porém têm valor
econômico, o que obriga a proteger o produtor contra a concorrência desleal. Isto foi
inscrito no artigo 39-3 do Acordo ADPIC, que considera que esses dados só devem ser
divulgados em caso de necessidade para proteger o público, sob condição de serem
resguardados contra uma exploração desleal. Então, não se trata aqui da proteção de uma
propriedade, mas da proteção de um investimento, de uma posição de concorrente88, o
87
Uma cláusula-padrão foi publicada por M. Fontaine, in Les clauses de confidentialité dans les contrats
internationaux, Rev. De la dir. des aff. Internationales, n. 1-1991, p.41. Observa-se nas revistas científicas a
freqüência de queixas contra as proibições de publicação e as recusas de defesa de tese, que resultam do elo
cada vez mais estreito entre a pesquisa pública e a iniciativa privada. Consoante um estudo feito em 1997
por D. Blumenthal, as empresas que financiam pesquisas exigem, em 58% dos casos, que os resultados
permaneçam secretos durante seis meses. Este prazo é necessário para que se escolha o que pode ser
publicado, o que deve permanecer secreto e o que deve ser patenteado.
88
Federal disclosure statute and the fifth amendment, the new statues of trade secrets, The University of
Chicago Law Review, 1987, vol. 57, 334, e P.O Mc Garty e S. Shapiro, The trade secret status of health
que foi confirmado pela jurisprudência da Corte de Justiça de Luxemburgo, que vê “um
direito exclusivo de explorar os resultados dos testes farmacológicos, toxicológicos e
clínicos contidos no dossiê durante um período de seis ou dez anos, a partir da primeira
AMM deste produto, dentro da Comunidade”89. Pode-se pensar esta questão a partir do
exemplo de dados produzidos no quadro dos procedimentos de AMM, seja no momento
do teste de inocuidade do produto, seja quando executa sua obrigação de vigilância,
sendo esses dois regimes jurídicos bem distintos.
Os dados provenientes dos testes clínicos são custeados pelo promotor do teste.
Em princípio, são propriedade do industrial90 que, quando os transmite para as agências
de avaliação dos riscos, o faz amparado pelo segredo profissional, aplicado a toda uma
cadeia de interventores em aplicação do artigo R. 5120 : “(…) os experimentadores, os
investigadores e todas as pessoas chamadas para colaborar com os testes devem manter o
segredo profissional no que diz respeito, notadamente, à natureza dos produtos testados,
aos testes, às pessoas que os fazem, assim como aos resultados obtidos. Eles podem, sem
a anuência do promotor, dar informações relativas aos testes somente para o ministro
encarregado da pasta da saúde, para os fiscais da farmácia, para o diretor geral e fiscais
da Agência de Medicamentos. Os testes não podem ser objeto de nenhum comentário
escrito ou oral sem a anuência conjunta do experimentador ou do investigador e do
promotor”. As informações privativas sobem na pirâmide da vigilância sanitária, mas não
têm por vocação chegar até o público, salvo os procedimentos de alerta.
Então, existe uma produção clara de dados, pela indústria, que participam
efetivamente da busca de segurança, mas que só garantem a segurança de um produto
sem tornar-se um conhecimento comum ou reutilizável, o que pode prejudicar a eficácia
and safety testing information, reforming agency disclosure policies, Harvard Law review, vol. 93 march
80, n. 5, p. 837.
89
CJCE, 3 de dezembro de 1998, caso C-368/96, The Queen v. LSA, ex parte Generics UK, rec. I 8028;
esta expressão de direito exclusivo temporário deixa dúvida, pois trata-se da definição dos direitos de
propriedade intelectual!
90
Aliás, são fragmentados e somente a AFSSPS dispõe da totalidade deles. De fato, o solicitante de AMM,
muitas vezes, não é o fabricante do princípio ativo. Em sua solicitação, refere-se aos dados ditos DMF,
produzidos por esse fabricante, mas não tem domínio sobre eles. Da mesma forma, os dados obtidos pelo
investigador são transmitidos para o industrial em envelope lacrado para arquivamento, de maneira a
proteger o segredo médico, assim como os dados de laboratório, que foram obtidos pelo próprio industrial,
sob cobertura do segredo médico.
do objetivo de proteção procurado pela saúde pública91. Existem diferentes mecanismos
de divulgação desses dados. O primeiro deles consiste na publicação dos resultados dos
estudos clínicos realizados pelos investigadores, no quadro hospitalar universitário, o que
requer a autorização do proprietário dos dados. No entanto, existe outro mecanismo, não
desprovido de interesse, que vem do procedimento simplificado de solicitação de AMM.
Com o duplo objetivo de facilitar a tarefa dos fabricantes de genéricos e de “economizar”
sujeitos de experimentação, homens e animais, as agências encarregadas da avaliação
foram convidadas, por meio da Diretriz 87/21 a reutilizar os dados fornecidos pelo titular
de AMM originário, para o beneficio do segundo solicitante, com a condição de que os
dois produtos sejam semelhantes. De imediato, violentos conflitos opuseram fabricantes
de genéricos e “inovadores”, que se encontram em posição delicada uns em relação aos
outros. Os inovadores são indispensáveis para assegurar o progresso técnico. Eles
patenteiam suas invenções, o que lhes assegura uma primeira proteção contra a
concorrência; a duração desta proteção é prorrogada por um certificado complementar,
tendo por objeto uma compensação do tempo perdido por causa dos testes clínicos.
Durante este período, os inovadores podem fixar preços muito elevados. Depois, dispõem
não mais da invenção, mas dos dados AMM por um prazo de 6 a 10 anos, de acordo com
cada caso, dos quais eles são os únicos que se beneficiam, embora a invenção possa ser
reproduzida. O fabricante de um genérico, com a patente sendo de domínio público,
gostaria de lançar-se nessa fabricação; deveria recomeçar os testes para não beneficiar-se
de forma desleal do trabalho feito por seu concorrente. Teria que vender o produto
incluindo no preço final o custo da fabricação aumentado pelos custos dos testes clínicos.
Ao contrário, no final desse prazo, ele poderia começar a fabricação sem precisar refazer
os testes; só incluiria os custos de fabricação em seu preço final. A saúde pública se
beneficiaria da inovação a custos elevados, enquanto a generalização do medicamento
seria feita a preços muito menores. No caso, não existe nem divulgação da informação no
meio do público, nem compartilhamento da informação entre os concorrentes, mas
91
Será notado, por exemplo, o esforço da Comissão da União Européia para autorizar os industriais a
usarem os conhecimentos coletivos disponíveis nas publicações, assim como nas fontes de dados, para
evitar a repetição de experimentações, de fato inúteis, mas nada está especificado para que os resultados de
tais experimentações ou da farmacovigilância estejam incluídos numa base de dados coletiva e acessível
para todos, uma vez que as patentes são obtidas e os remédios, comercializados; ver Diretriz n.
1999/83/CE, de 8 de setembro de 1999.
apenas o uso pela autoridade nacional dos dados fornecidos por um concorrente para o
beneficio de outro.
Em contrapartida, os conhecimentos em matéria de toxicologia, que são
compartilhados no âmbito do grupo informal, criado na Europa em 1995 (MRFG), tendo
como objetivo a melhoria da coordenação do procedimento de reconhecimento mútuo
entre os Estados-membros, têm um tratamento diferenciado. Para isto, este grupo emite
recomendações resultantes de posicionamentos consensuais, não em relação a assuntos
precisos, mas sobre sínteses (break out sessions), o que é uma maneira de compartilhar o
conhecimento entre as autoridades competentes. Quanto ao público, terá somente uma
“síntese dos dossiês de autorização do novo medicamento” e da organização de “reuniões
regulares de informação com as associações de pacientes e usuários da medicina sobre os
problemas de vigilância sanitária” (artigo L. 793-1). No quadro do procedimento europeu
centralizado de avaliação dos medicamentos, o relatório de avaliação encontra-se
disponível na página da internet da agência européia, uma vez que a AMM foi atribuída.
No entanto, este relatório é uma versão especial, destinada à publicação, diferente do
relatório interno92.
O esquema é um pouco diferente com os dados provenientes do desenvolvimento
das “vigilâncias”, com o acompanhamento a longo prazo da evolução dos produtos e dos
efeitos indesejáveis criados por eles: farmacovigilância para os remédios, hemovigilância
para os derivados do sangue, vigilância sobre as instalações médicas, reatovigilância para
os reativos dos laboratórios de análise, biovigilância para os organismos geneticamente
modificados… De novo, não existe neste caso reflexão jurídica geral. As soluções são
diferentes para cada caso.
No que diz respeito aos medicamentos, trata-se de dados privativos que tramitam
por um duplo circuito. Por um lado, partem do corpo médico para as instituições de
Estado, européias e depois internacionais, entre as quais existe uma troca de informações
(Comissões Regionais e Nacional de Farmacovigilância, Agência Européia, OMS). Por
outro lado, vão das mais diversas fontes, incluindo os próprios pacientes, até a indústria
que os integra em sua base de dados e os transmite para as agências habilitadas, a
Agência Francesa de Segurança Sanitária dos Produtos da Saúde (AFSSPS), no caso da
92
Regulamento 2309/93 CE, artigo 12-4.
França; a Agência Européia do Medicamento para a Europa; a Federal Drug
Administration (FDA) para os Estados Unidos. Ora, de um lado esses dados têm um
status privativo e são protegidos pelo segredo profissional; do outro, toda e qualquer
pessoa pode solicitar à FDA que transmita essas informações em virtude do Freedom
Information Act. Além do mais, guides lines exigem estudos sintéticos regulares desses
efeitos, que se tornarão públicos, e a Agência Européia do Medicamento tem, dentre suas
missões, a de fornecer uma assistência técnica para o funcionamento de uma base de
dados de informação sobre os efeitos indesejáveis dos remédios (artigo 51-c). No caso da
toxicovigilância, os produtores de dados são os profissionais da saúde e os centros de luta
contra os venenos. Esses dados são confidenciais, embora sintetizados e colocados em
comum no nível de um comitê técnico de toxicovigilância (Decreto 99-841, de 28 de
setembro de 1999). Os dados recolhidos no âmbito da Comissão de Biovigilância dos
OGM são, ao contrário, públicos e compartilhados por todos os membros da comissão, o
que inclui representantes das ONGs.
Então, o direito positivo está tentando conciliar a tradição do segredo e do caráter
privativo com a reivindicação de transparência. Algumas empresas têm por escolha a
publicação de dados que, até então, diziam respeito a sua esfera privativa. É o caso, por
exemplo, das medidas de radioatividade da região de Hague, famosa zona de conflitos. A
nova diretora da empresa criou uma página na internet (www.cogemalahague.fr) na qual
se encontra uma rubrica “Tudo sobre o meio ambiente”, onde são publicados a cada dia
para alguns, a cada mês para outros, dados sobre o meio ambiente. Eles são classificados
em níveis de rejeições, níveis de medidas e níveis de impactos, resultados que são
publicados após amostragens, medições, verificações e cálculos específicos. Tal iniciativa
permite que os grupos de oposição discutam a apresentação das medições, o que é um
progresso considerável. Pergunta-se se esta iniciativa não é uma prefiguração do que se
poderiam tornar, daqui para a frente, os dados sobre o meio ambiente e a saúde, que são
obtidos na esfera pública ou na esfera privada da empresa. O sistema institucionalizado
das auditorias voluntárias é também uma prefiguração93.
93
Sobre a vigilância sanitária e a transmissão dos dados individuais de certos pacientes, ver J.-S. Cayla,
Revue de droit sanitaire et social, 1999, p. 718. Para E. Derieux, o direito à informação, nascido no âmbito
do direito da imprensa, é uma extensão da liberdade de expressão e de comunicação. No entanto, ele não se
O que é transmitido para as únicas instâncias de avaliação situa-se entre o que é
público e o que privado.
iii. Os dados mobilizáveis para as instâncias de
avaliação
As autoridades competentes, submetidas ao segredo profissional, detêm os dados
produzidos pelas empresas para e no interesse do público, o que explica que possam
tornar pública uma informação em caso de alerta (protegendo na medida do possível os
dados resguardados pelo segredo).
Para isto, elas têm acesso a todos os dados publicados, com a condição de ter os
meios de mobilizá-los e de organizá-los, o que é um trabalho considerável e para o qual
nem sempre há meios materiais.
Além do mais, beneficiam-se de um trânsito de informações especialmente
organizado no quadro da lei sobre a segurança sanitária, dados, perícias94. É difícil saber
se os industriais cumprem sua tarefa com todo o rigor necessário. Parece que não é o
caso, no âmbito dos produtos fitossanitários, consoante o grupo Monsanto, julgado nos
Estados Unidos, onde a lei obriga o industrial a assinalar os efeitos cancerígenos de seus
produtos e prevê uma multa significativa para cada dia que passa entre a disponibilidade
do conhecimento e sua divulgação para as autoridades, no caso a Agência de Proteção
Ambiental (EPA). Ora, o Monsanto soube em 1981 que seu pesticida Santogard
provocava câncer em ratos. Foi somente em 1986 que a EPA entrou na justiça e, em
1990, que o Monsanto foi condenado a pagar uma multa por não ter respeitado a
obrigação de repassar os dados científicos em questão. Infelizmente, a multa foi
consideravelmente reduzida após negociatas. A rodada de negociações realizadas pela
EPA com o conjunto das empresas químicas parece ter levado à conclusão de que há uma
subdeclaração realmente dramática95.
satisfaz mais com opiniões e pontos de vista. O público reivindica um “direito dos fatos, dos dados, do
conhecimento”, Bases de données et droit à l’information, Petites Affiches, de 18 de fevereiro de 1998.
94
M.-A. Hermitte e C. Noiville, L’obligation d’information en matière de santé publique, Gazzette du
Palais, outubro de 1998, número especial de Droit de la Santé.
95
Neste caso, ver M. Lavelle, EPA’s amnesty has become a mixed blessing, The national law journal, 24
de fevereiro de 1997; tais acontecimentos raramente são revelados embora ocorram freqüentemente.
Convém lembrar de um pesquisador da Universidade da Pensilvânia que não dera resultados desfavoráveis
num protocolo de teste de terapia genética em ratos. Isto acabou de forma suficientemente lógica com a
morte de pacientes que aceitaram a experimentação! L’Usine Nouvelle, junho de 2000, hors serie, p. 9.
No plano internacional, esse trânsito de informação em direção às autoridades, de
uma forma ou de outra encarregadas da segurança, gera também um problema. O que
pensar, por exemplo, do testemunho de um perito na questão dos hormônios, visto que
afirmou que se limitara aos dados publicados, mas que citou os “dados privativos”,
dizendo não ter intenção de usá-los96!
Uma instância como o Instituto de Vigilância Sanitária da França tem o poder de
solicitar todos os dados úteis à saúde pública, qualquer que seja o regime jurídico do
dado: “a pedido do Instituto, quando houver necessidade de prevenir ou controlar riscos
para a saúde humana, toda e qualquer pessoa física ou jurídica tem por obrigação
comunicar-lhe todas as informações referentes a tais riscos que estão a seu alcance. O
Instituto, após a solicitação, terá acesso às informações protegidas pelo segredo médico
ou industrial, dentro de condições que preservam o caráter confidencial desses dados,
quando relacionados a terceiros. Essas condições são definidas pelo Conselho de Estado”
(artigo L. 792-III).
Então, existem os dados públicos para todos, os dados privativos obrigatoriamente
transferidos e os dados privativos transferidos, após injunção especial. Em relação a isto,
as comissões ad hoc, encarregadas da gestão de uma crise, encontram-se em situação
bem menos confortável, visto que elas não têm nenhum poder para pedir informações,
nem junto à iniciativa privada, nem mesmo junto aos pesquisadores antes que publiquem
seus resultados. Isto criou certas dificuldades no caso da Comissão Dormont, na perícia
do caso da vaca louca. Essas dificuldades foram maiores pelo fato de a maior parte do
material biológico encontrar-se na Grã-Bretanha97.
Então, é possível constatar que a questão da disponibilidade dos dados nunca foi
pensada de forma global, no intuito de permitir uma avaliação racional dos riscos.
Quando, como, sob qual forma e em quais limites produzir dados? Para quem devem ser
disponibilizados – para as instâncias de avaliação sob condição de sigilo, para a
contraperícia que deve também manter o sigilo, deveriam ser públicos para serem
discutidos em fóruns interativos? São tais perguntas que a divisão canadense de avaliação
96
Grupo especial WT/DS26/R/USA, 18 de agosto de 1997, testemunha de M. Ritter, p. 332.
Propositions pour le principe de précaution à la lumière de l’affaire de la vache folle, M.-A. Hermitte et
D. Dormont, in P. Kourilsky et G. Viney. Le principe de précaution, Odile Jacab. La Documentation
française, 2000.
97
dos produtos químicos tenta responder quando ela nomeia um “responsável” para cada
substância química e o encarrega da organização das relações com “o grupo de contato”,
composto pelos representantes dos ministérios que nomeiam os peritos, com o “grupo de
recursos”, que reúne os peritos, e com o “grupo de ligação”, que reúne pessoas
interessadas no procedimento de avaliação. O esboço da avaliação torna-se, então, objeto
de um exame público que permite que qualquer pessoa alheia ao processo traga novos
dados científicos.
ii) A organização jurídica da confiabilidade dos dados
Parece evidente que a avaliação deva ser realizada a partir de dados exatos.
Todavia, D. Bourcier e M. de Bonis observam que, em muitos casos, a questão do certo e
do errado permanece insolúvel na ciência, sobretudo se este saber não avalia nem as
relações de dependência, nem as formas de criação dos conceitos98. Conseqüentemente, o
trabalho dessas relações de dependência e essas criações constituem uma tarefa
considerável e serão dados, aqui, apenas alguns elementos necessários para iniciar-se
uma reflexão em nível jurídico. Em primeiro lugar, é preciso que os dados tenham sido
obtidos de forma leal, sem fraude ou sem negligências culposas. Depois, é necessário que
a produção respeite várias regras de prática correta, que assegurem a qualidade dos
resultados99. Esses dois elementos fazem parte da deontologia científica. No entanto,
quando uma produção científica é levada para a avaliação dos riscos, deve além do mais
permitir que terceiros debatam e decidam sobre ela. Esses objetivos, alheios ao objetivo
científico clássico, constituem uma obrigação suplementar que recai sobre o trabalho
científico.
(a) A lealdade dos resultados
Um certo número de falsos documentos mostraram que alguns cientistas
falsificavam seus resultados. Isto pode ir de uma falsificação pura e simples, constitutiva
de uma verdadeira fraude, até o descuido com os diários laboratoriais. Entretanto, um
trabalho rigoroso implica que tudo deve ser anotado, o que se torna obrigatório no direito
farmacêutico, por causa das práticas laboratoriais ou práticas de boa conduta que exigem
98
Op.cit. , p. 86.
Ver circular sobre as práticas clínicas corretas que datam de 1987. O artigo L. 513 do CSP considera que
as práticas laboratoriais corretas devem garantir a integridade dos resultados dos testes.
99
anotações e discussões não somente sobre os acontecimentos indesejáveis, mas também
sobre os simplesmente “anormais”.
Embora este fenômeno seja antigo, as reações são recentes. Os Estados Unidos
começaram a implementar uma “polícia científica” ao instituir o Office of Research
Integrity, assim como alguns países europeus, a Grã-Bretanha e a Alemanha em
particular. A França adotou uma recente missão do INSERM, que delineou um tipo de
programa de trabalho, que se tornou público, em 17 de julho de 1998. Nele afirma-se que
“as agressões à integridade prejudicam a ciência”. Então, é importante detectá-las, tratálas e, eventualmente, sancioná-las. A missão descreve os vários níveis de agressão à
integridade, desde “a falta de rigor na estimativa das condições de aquisição ou de
apresentação dos dados” até a “vontade deliberada de esconder os fatos científicos ou as
condições de suas descobertas”. Em seguida, afirma-se que “se uma agressão importante
à integridade não se deu de forma deliberada; ela é reveladora de uma incapacidade que
deve ser analisada e tratada”.
Observa-se que a missão encontrou de maneira espontânea as categorias jurídicas,
fraude, negligência, caráter voluntário ou involuntário; aliás, afirma a importância do
diário laboratorial, “meio de controle interno dos erros ou fraudes, fundamento de toda e
qualquer instrução de presunção de fraude” e insiste sobre a enorme importância da
conversão dos dados brutos e da estratégia escolhida.
Da mesma forma, esses problemas são abordados pelos códigos de ética
elaborados pelos cientistas de um determinado ramo e nas cartas de enquadramento dos
estudantes de doutorado, por exemplo100 ; lê-se no Manual de Ética do Microbiologista
que “a integridade implica a integridade científica, a ausência de ingerência nas decisões
profissionais (…); em todas as circunstâncias, a realidade do fato científico deve ser
respeitada. Na produção científica ter certeza da qualidade dos dados utilizados e permitir
que outros verifiquem esta qualidade constituem o fundamento da ética cientifica (…) A
falsificação é o erro mais grave”. O direito farmacêutico procura responsabilizar os
produtores de dados, obrigando-os a registrar os dados “de forma indelével”, datando-os
e assinando-os. A instrução de 1983 prevê que qualquer modificação dos dados crus deve
ser feita de forma a não esconder o registro original.
100
Ver Carta da Sociedade Francesa de Microbiologia, disponível na Internet, GPCharte Ethique.htlm
Sem dúvida, não é preciso exagerar quanto à originalidade da questão da
falsificação dos resultados científicos em relação à fraude em geral. Entretanto, nos
campos referentes à saúde pública e ao meio ambiente, o direito francês talvez não tenha
definido um delito específico que vise à falsificação dos dados ou até mesmo à omissão
voluntária dos mesmos101. De fato, a disposição do Código Penal, que parece ser a mais
apropriada, consiste no artigo 434-20, cuja formulação muito geral parece poder ser
aplicada aos peritos que agem no âmbito da decisão política: “É punido o fato de um
perito falsificar de qualquer forma seus relatórios escritos ou orais, os dados ou os
resultados da perícia (…)”. Todavia, o artigo encontra-se num título do Código Penal que
trata do desrespeito à autoridade do Estado, no Capítulo IV, sobre o desrespeito à ação da
justiça, e foi concebido apenas para os peritos judiciais ; ora, o princípio da legalidade
dos delitos e das penas traz uma interpretação restritiva da disposição. Pode-se pensar,
em caso de divulgação na imprensa, no artigo 27 da Lei de 29 de julho de 1881. No
entanto, ele só reprime a divulgação de fatos concretos, ainda não divulgados, cuja
inexatidão é certa. Isto acontecerá raramente nos campos que nos interessam. O caráter
restritivo da disposição protege a quem deu o alerta, como o perito imprudente que,
passando por cima das incertezas, apresentou uma verdade truncada em vez de uma
mentira. O direito apresenta uma lacuna, a deontologia coloca-se em seu lugar.
É preciso parabenizar o Protocolo de Cartagena; ele prevê que o Estado-membro
da parte exportadora do OGM fique com a responsabilidade jurídica quanto à inexatidão
das informações comunicadas pelo exportador (artigo 8), e o Anexo I obriga-o a declarar
que as informações que forneceu são exatas.
(b) A qualidade dos resultados
A qualidade dos resultados depende da pessoa que os produziu e das condições de
suas produções. Ela deve ser independente, dispor de bons equipamentos, respeitar
protocolos pertinentes de pesquisa.
Objetividade e independência102
A objetividade, noção denegrida, situa-se entre os objetivos de lealdade e
qualidade. Em primeiro lugar, depende da neutralização dos elos de dependência nos
101
D. Dormont e M.-A. Hermitte, op. cit., p. 365 e 386.
Este ponto foi desenvolvido por M.-A. Hermitte, in L’expertise scientifique à finalité politique,
réflexions sur l’organisation et la responsabilité des experts, Revue Justices, n. 8, outubro de 1997, p. 79.
102
quais se encontram os avaliadores. No campo da farmácia, as precauções foram
organizadas com maior cuidado. Em matéria de OGM, a quarta emenda à disposição
comum integrou uma consideração, segundo a qual “é necessário que seja efetuada uma
avaliação sistemática e independente dos riscos; recursos suficientes devem ser previstos
para este fim e os pesquisadores independentes devem poder dispor de todo o material
necessário”.
Em direito farmacêutico, tanto no nível europeu quanto no nível francês103, a idéia
é de afastar, na medida do possível, o perito que está tendo interesse no que diz respeito
ao produto a ser analisado, embora se reconheça que é impossível afastar os peritos mais
competentes, sabendo que, freqüentemente, eles têm vínculos com a indústria. O
instrumento que permite administrar a dependência é a declaração de interesse que torna
públicos os vínculos do perito, de forma a excluí-lo ou a situar o contexto de seus
posicionamentos. Ela se refere ao perito e aos membros de sua família, e visa a todos os
elos diretos ou indiretos que ele possa ter com o objeto da perícia, modulando soluções
em função do “posicionamento arbitrário” que pode resultar do conflito de interesse104.
Assim, tentar-se-á conhecer tudo que poderia influenciar o perito, participação no capital
de uma empresa, remuneração pessoal, vínculos resultantes de uma participação em
testes clínicos ou em qualquer forma de trabalhos científicos, perícia científica ou
atividades de assessoria para uma empresa, pagamento para o grupo de pesquisa da qual
o perito faz parte, financiamento da tese, etc. A declaração de interesse público permite,
de acordo com os casos, proibir que um perito participe das deliberações e debates, da
votação, da realização de um relatório de avaliação, até mesmo obriga um perito a sair da
sessão.
103
É a lei de 1o de julho de 1998 sobre a segurança sanitária que previu, para os membros das comissões e
conselhos da AFFSSPS e seus peritos, a obrigação de endereçar uma declaração de interesse, pública e
regularmente atualizada (artigo L. 793-8 do CSP). Todas as declarações de interesse estão consignadas num
processo verbal de relato de sessão.
104
Será consultado, para maior proveito, o recente Guide de fonctionnement des comissions et conseils,
estabelecido pela AFSSPS, que se tornou público, em junho de 2000. A definição anglo-saxã do
posicionamento arbitrário é, sem dúvida, a mais convincente. Trata-se de uma opinião pré-concebida, uma
escolha arbitrária ou, ainda para alguns, “uma inclinação do temperamento ou uma maneira de encarar as
coisas, uma distorção do julgamento muito pessoal e não racional” (p. 5). Na França, a versão mais severa
da repressão desses comportamentos encontra-se na tomada ilegal de interesse dos artigos 432-12 e 13 do
Código Penal.
Entretanto, todas essas precauções parecem insuficientes, consoante o New
England Journal of Medecine, de 18 de maio de 2000105. Ele denuncia os vieses dos
estudos clínicos de certos medicamentos e cita uma pesquisa que teria mostrado que 38%
dos estudos não financiados pela indústria apresentavam efeitos indesejáveis de
anticancerígeno, enquanto só se encontrava menção desses efeitos em 5% dos estudos
financiados pela indústria. Da mesma forma, a Direção da Prevenção à Poluição e aos
Riscos do Ministério do Meio Ambiente francês apresentou, no dia 11 de maio de 2000,
relatório bastante negativo, no que diz respeito ao direito das instalações registradas:
“pressionados pelos políticos locais e chantageados pelos pecuaristas, os inspetores são
freqüentemente responsáveis por setores incompatíveis com seu papel de fiscal; muitas
vezes, um inspetor é encarregado ao mesmo tempo da promoção da pecuária e da
fiscalização dos lixos de matadouros”106. Então, cogita-se redigir um código de
deontologia para garantir a independência e a transparência.
Qualidade técnica dos dados
Não é suficiente resolver os problemas de dependência. Ainda é preciso acertar a
metodologia que permite obter uma boa qualidade técnica dos resultados. A reflexão
sobre este tema já é antiga, mas ela tende a aprofundar-se, alguns até propondo que o
registros de laboratórios estejam conforme as normas internacionais, como, por exemplo,
a norma de qualidade ISO 9002107. Ela é sintetizada no conceito das práticas corretas,
essencialmente nas práticas laboratoriais corretas e testes clínicos, duas fases do sistema
de experimentação, integradas num dispositivo mais amplo, que compreende também as
práticas de fabricação e vigilância corretas108. No direito farmacêutico, a Instrução de 31
de maio de 1983 já indicava com clareza os objetivos das práticas laboratoriais corretas:
“assegurar-se da qualidade dos estudos de toxicologia experimental”, garantir “a
105
www.jama.ama-assn.org
Le Monde, quinta-feira, 13 de maio de 2000.
107
As jurisdições americanas trabalham a questão de saber sob quais condições um conhecimento científico
produzido no momento de um processo poderia ser considerado como científico ou não. Ver as análises de
R. Munagorri, p. 628 e, mais particularmente, o papel da publicação e da avaliação pelos pares. Observarse-á que a contribuição essencial dos últimos julgamentos é a de ter dissociado o caráter científico de uma
perícia da possibilidade de afirmar que há certeza quanto ao resultado.
108
Poderia citar-se também o Guide des Bonnes Pratiques de Publication, fornecido pela Agence du
Médicament para aqueles que publicam estudos sobre os efeitos indesejáveis dos medicamentos, no quadro
da farmacovigilância; este se destina também aos responsáveis editoriais das revistas médicas “afim de
assegurar, numa visão de saúde pública, uma qualidade otimizada dessas publicações”.
106
qualidade e a integridade dos resultados” (artigos L. 51301 e R. 5118 do CSP). São a
“tradução moderna da pesquisa de qualidade, constante preocupação para qualquer
experimentador competente”. Apresentam-se como um conjunto de recomendações de
“procedimentos” que criam um padrão capaz de garantir a concepção e realização dos
testes clínicos, de tal forma a tornarem os dados válidos, precisos e fiéis (guia do ICH).
O respeito a estas regras permite assegurar a qualidade dos resultados109, uma
proteção mínima para os sujeitos de experimentação e a harmonização internacional das
obrigações que pesam sobre a indústria (é o objeto da tripartite guideline do ICH, acordo
entre os Estados Unidos, o Japão e a União Européia sobre as práticas corretas em
matéria farmacêutica, que “facilita o reconhecimento mútuo dos dados clínicos pelas
autoridades competentes”, nessas três regiões do mundo e, de fato, muito além delas)110.
As regras do ICH não têm nenhum valor jurídico dentro de um plano formal ; entretanto,
na medida em que são as diferentes autoridades que autorizam a comercialização e que
exigem seu respeito, sua efetividade é importante111.
Um dos pontos mais importantes para a avaliação reside nas condições de
extrapolação de um resultado. O poder político, as mídias, o público raciocinam a partir
de resultados que utilizam de forma bruta, sem precisar o contexto de hipóteses que os
validam e os limitam. Ora, freqüentemente é neste nível que os erros são cometidos.
Então, torna-se importante verificá-los constantemente. De certa forma é o que sugere o
relatório do Conselho Superior de Higiene Pública da França sobre o impacto das
instalações nucleares, quando em funcionamento normal112. Faz um certo numero de
recomendações no intuito de melhorar a qualidade dos dados que precedem a avaliação
do impacto dessas instalações sobre a saúde. Por exemplo, preconiza verificar a
representatividade das populações testemunhas, escolhidas para avaliar o impacto da
109
Aliás, a empresa pode integrá-los num verdadeiro sistema de controle de qualidade, garantindo que a
implementação do teste, a obtenção dos dados e seus registros estejam conforme as exigências dos guias de
boas práticas, reconhecidos por tal ou tal regulamentação.
110
O acordo está estabelecendo as condições de qualidade dos testes, a integridade científica, a duplicação
dos testes aleatórios, as estatísticas aleatórias, os procedimentos de dosagem, etc., pt 6-4. As mesmas idéias
encontram-se no Manual de Ética do Microbiologista em que a negligência é definida pela ausência de
reação de amostras-bases, de controle dos reativos, de reprodução dos resultados, todos conceitos que
certos cientistas consideram como ultrapassados, em alguns campos.
111
M. Sanson, L’expérimentation sur l’homme en situation internationale, le pluralisme des sources,
Dissertação de mestrado de direito internacional Paris II, 1999.
112
Estudo sobre o impacto radiológico das instalações nucleares sobre o público, quando funcionam
normalmente, Ed. Tec & Doc, 1999.
exposição; de fato, um viés nesta escolha prejudica a comparação. Pede que as diferentes
fontes radioativas, artificiais ou naturais, sejam melhor estabelecidas. É importante, pois
as reflexões sobre as dosagens “admissíveis” são sempre organizadas ao redor das
comparações entre fontes, sem que os autores pareçam imaginar que, na realidade, elas se
cumulam. Também, é preciso conseguir enquadrar os preconceitos intelectuais que estão
presidindo a orientação inicial das pesquisas e podem originar importantes vieses. M.
Bonneau mostra claramente, num artigo sobre o papel das “chuvas ácidas”, na
degradação do estado das florestas, como os pesquisadores partiram das hipóteses alemãs
quanto à responsabilidade da poluição atmosférica (preconceitos) para, finalmente,
definir um conjunto de causas que interagem umas com as outras. Para chegar a este
resultado, utilizou-se a doutrina alemã como hipótese de encontrar outras pistas113. A
qualidade dos resultados é, então, organizada de maneira a tornar obrigatórios certos
procedimentos técnicos. Lastima-se que nenhuma síntese jurídica tenha sido feita, uma
vez que essas questões de métodos surgem regularmente diante dos tribunais, como
mostra o direito do meio ambiente que estigmatiza a insuficiência dos estudos de
impacto, quando não integram uma análise dos métodos utilizados para avaliar os efeitos
do projeto sobre o meio ambiente, citando “as eventuais dificuldades de natureza
científica ou técnica encontradas para estabelecer esta avaliação”114.
Entretanto, o direito não está totalmente ausente. Assim, o direito farmacêutico
atribui responsabilidades específicas para cada um dos atores da experiência, tendo todos
por obrigação atestar e assinar sua contribuição. Esta responsabilidade individual não
impede a responsabilidade global do realizador do teste; mesmo que o promotor possa
confiar a responsabilidade e a realização do teste a um terceiro, fica com “a última
responsabilidade” da qualidade e integridade dos dados provenientes do teste115.
Boa organização científica e técnica, autonomia ou independência dos
interventores são as bases da qualidade dos dados úteis para a avaliação. Diante das
dificuldades para obter a independência da perícia, existe hoje uma tendência de deslocar
113
M. Bonneau, D’une problématique sociale à une problématique scientifique, le cas des pluies acides,
NSS n. 1-1993, p. 221; entretanto, nota-se que quando evoca de forma rápida as influências que podem
recair sobre os peritos, sustenta que a França foi poupada, ao contrário de outros países.
114
Trib. Adm. Nice, 29 de janeiro de 1997, JCP 1998, n. 26, p. 1153.
115
ICH, pontos 5-2. O Guia de Funcionamento das Comissões e dos Conselhos da AFSSPS analisa de
forma interessante a responsabilidade dos peritos e do Estado, quando este não conseguiu organizar de
forma decente o procedimento da perícia, p. 35 e seguintes.
o problema e pedir que certos procedimentos possam ser conduzidos de forma
contraditória ou, no mínimo, que os procedimentos de aquisição dos dados possam ser
objeto de discussões.
3. A necessária contestação dos dados116
Nos casos que interessam ao princípio da precaução, o caráter central das
incertezas traz duas conseqüências: por um lado, um perito deverá saber relatar o estado
das controvérsias existentes117; por outro, a perícia deve ser organizada de tal forma que
as controvérsias e contradições apareçam e que o responsável pela decisão possa
trabalhar com elas. Ora, isto não é feito naturalmente. Se a contestação e a dúvida
encontram-se no centro da estratégia científica interna, os cientistas que trabalham nas
“proximidades da decisão” aprenderam a funcionar de forma consensual, a vulgarizar
seus discursos, a apagar suas incertezas, a omitir os debates, quando estão falando com os
políticos ou com o público. Da mesma forma, alguns admitem que os riscos potenciais
amparados deveriam ser expostos para os políticos, ao contrário do que é somente
plausível, o que deveria apenas levar a uma obrigação de pesquisa118. Tal atitude protege
as políticas e fragiliza os peritos e a administração, que serão acusados de não terem
transmitido os elementos necessários à tomada de decisão. É mais razoável transmitir o
conjunto desses elementos junto com os elementos contextuais.
Entretanto, a importância da contradição no debate científico é reconhecida pelo
direito científico. No quadro do procedimento centralizado organizado pela Agência
Européia de Medicamentos, existe somente, e de forma geral, apenas um único relator
por assunto, mas é possível nomear um co-relator, quando o caso implica debates
científicos119. Da mesma forma, a jurisprudência reconhece que, em caso de perigo,
116
B. Latour, Le métier de chercheur. Le regard d’un anthropologue, Paris, INRA ed. 1995; a Academia
das Ciências, em sua função pericial, admite esta necessidade de pluralismo, mas sob forma
multidisciplinar, NSS n. 1-1993, p. 234.
117
É o ponto 17 do Código de Deontologia dos Peritos Judiciais.
118
B. Chevassus-au Louis, L’analyse du risque alimentaire: quels principes, quels modèles, quelles
organisations pour demain? Conferência da OCDE sobre a segurança sanitária dos alimentos provenientes
de OGM, Edimburgo, 1o de março de 2000.
119
Na mesma ordem de idéias, o guia ICH promove o sistema da auditoria, exame sistemático e
independente das atividades e documentos provenientes dos testes, para determinar sua boa condução e se
os dados foram obtidos, assim como analisados corretamente. Ele prevê também a possibilidade de
implementar um IDMC, Comitê Independente de Vigilância e Aquisição de Dados.
aqueles que são favoráveis a uma das duas opiniões científicas divergentes estão
cometendo delito de imprudência ao não consultarem um terceiro perito120. Enfim, o
Órgão de Solução de Controvérsias da OMC destacou o pluralismo científico,
reconhecendo que a avaliação dos riscos não deve necessariamente levar a “uma
conclusão monolítica que coincide com a conclusão ou opinião científica que subentende
implicitamente a medida SPS. A avaliação dos riscos poderia priorizar, ao mesmo tempo,
a opinião mais comum, que representa a corrente científica dominante, assim como as
opiniões de cientistas que têm um ponto de vista divergente (…). Às vezes, a própria
existência de opiniões dissidentes, expostas por cientistas competentes que pesquisaram
sobre o assunto, pode revelar uma incerteza da comunidade científica (…). Na maioria
dos casos, os governos responsáveis e representativos tendem a basear suas medidas
legislativas e administrativas sobre a opinião científica dominante. Em outros casos,
governos tão representativos e responsáveis quanto os outros podem agir de boa-fé sobre
a base do que, num determinado momento, pode ser uma opinião divergente que vem de
fontes competentes e respeitadas. Por si mesmo, isto não demonstra necessariamente a
ausência de uma relação razoável entre a medida SPS e a avaliação dos riscos,
notadamente quando o risco em questão pode ser mortal e está sendo percebido como
uma ameaça evidente e iminente para a saúde e a segurança pública”121. Não se pode
reconhecer mais claramente o pluralismo científico, mesmo se, no caso, o Órgão de
Solução de Controvérsias não chegou a uma conclusão, as opiniões marginais foram
julgadas insuficientes para fundamentar a decisão européia, na recusa da carne com
hormônios.
No entanto, esta idéia não está sendo levada até o fim. Para que o debate
contraditório possa nascer, é preciso que os dados sejam compartilhados entre os
cientistas de forma mais livre do que aquela que é praticada hoje. Deve ocorrer não
somente sobre os resultados, mas sobre os dados brutos e os protocolos de pesquisa. Por
exemplo, pode ser constatado que, em matéria de ESB, experimentações que só podiam
ser feitas na Grã-Bretanha, pois exigiam o acompanhamento de um grande numero de
animais doentes, tinham sido concebidas de forma incorreta desde o início; nenhuma
120
121
Dalloz 1998, n o 18, II, 236.
Decisão Hormônios, pré-citada, ponto 194.
conclusão firme podia ser tirada a partir dos resultados registrados, o protocolo de
pesquisa tendo sido criticado. Então, em caso de crise, seria oportuno que os cientistas
juntassem seus protocolos antes de começar a pesquisa, de forma a abrir um debate para
melhorar sua qualidade122.
De um modo geral, constata-se que uma comissão de avaliação composta de
forma muito disciplinar e estreita emite opiniões diferentes do que aquelas que podem ser
elaboradas num contexto mais democrático. O estudo de Y. Barthe e G. Decrop a respeito
das conseqüências da lei Bataille (1991) sobre a percepção científica da questão do
aterramento do lixo nuclear, nas camadas profundas da terra, demonstra de forma
contundente este fenômeno. Tornando obrigatório o acompanhamento de pistas de
pesquisas abandonadas pelos primeiros peritos, a lei deu chance para outsiders na
pesquisa sobre o lixo nuclear que, tendo atingido progressivamente os cargos de
comando, após uma decisão de François Mitterrand em 1981, dispuseram de
financiamentos abertos às comunidades científicas, geólogos, físicos e químicos do
CNRS que, até aquele momento, não haviam trabalhado sobre o assunto. “A abertura do
círculo dos atores” levará à recomposição das vias de pesquisa e à produção de novos
conhecimentos123. A comunidade dos geólogos que se envolveu maciçamente (200
pessoas) reformulara suas questões e problemáticas de pesquisa. Questionou o dogma
inicial segundo o qual as “barreiras naturais”, em oposição aos critérios técnicos restritos,
eram confiáveis e mostra que a geologia não tem capacidade de predição, porque sempre
é construída ao redor de uma explicação do passado. A controvérsia sobre o destino do
lixo, que tinha acabado, volta à tona numa perspectiva estrutural que, em termos de
gestão, leva a encarar o armazenamento debaixo da superfície como uma opção que
permite esperar e, conseqüentemente, empreender novas pesquisas ligadas a esta opção.
Esta abertura da perícia pode ser concebida em termos disciplinares, mas também
na relação com as ONGs e o público. B. Wynne observa que as experimentações
realizadas em Sellafield não criaram mudança dos níveis de rejeições autorizadas, até o
momento do “aparecimento das controvérsias externas, a realização de contraperícias e a
122
D. Dormont e M.-A. Hermitte, op. cit., p. 367; uma página na internet, como aquela do Doutor P. Lavie,
sobre a vaca louca pode revelar-se de preciosa ajuda, perso.infonie.fr/vetolavie/bse.htm, Le Monde, de 24
de junho de 2000.
123
II parte do relatório; ver a respeito do tema as análises de P. Roqueplo sobre as controvérsias intra e
interdisciplinares ao redor do efeito estufa, in Climat sous surveillance, Economica, 1993, p. 61 e seguintes.
formação de movimentos públicos de oposição”, pois a primeira análise experimental
“havia se transformado rapidamente em uma defesa cognitiva e prática de uma hipótese
que se tornara dogma”; então, não foram a análise cientifica interna e a aprendizagem
experimental que, finalmente, impuseram a realização de investimentos destinados a
reduzir consideravelmente a taxa de rejeição (p. 154).
Constata-se que o Canadá pratica cada vez mais uma articulação da avaliação –
gestão que permite uma ampliação máxima do leque dos autores de dados. Um exemplo,
entre outros, pode ser constatado na gestão das conseqüências da existência da mina
Giant, que libera, entre outros, resíduos de arsênio. Uma primeira avaliação “não
invasiva” (sem perfuração) fora feita por peritos e seus resultados levados a público. Ela
levou à criação de uma lista de prioridades para a limpeza, assim como possibilitou as
pesquisas a serem empreendidas e as avaliações aprofundadas. Além do mais, duas
pessoas “responsáveis” foram nomeadas, encarregadas de reunir todas as sugestões
vindas de fora do processo, para que participassem das fases seguintes, tanto de avaliação
quanto de gestão.
É preciso ainda definir a real função deste pluralismo, pois me parece dupla. Por
um lado, é uma garantia na constituição dos saberes, por outro, um fator de
democracia124. A primeira conscientização da necessidade de discutir os dados oficiais
data, na França, da criação do CRII-Rad, associação fundada por M. Rivasi, após a
catástrofe de Tchernobyl. Hoje, ela é incrementada pelo CRII-Gen que deverá ocupar a
mesma posição no que diz respeito à engenharia genética. Trata-se de dispor de dados
obtidos de forma autônoma ou de dispor de competências científicas necessárias para
discutir os dados obtidos por outros meios.
Esta necessidade do contraditório, no âmbito da perícia, está no centro do
pensamento jurídico, como o mostram as decisões de justiça que obrigam um empregador
a financiar contraperícias para que o Comitê de Higiene e Segurança possa ter uma
opinião própria, no que diz respeito ao risco que os trabalhadores correm. Isto foi
reconhecido pela Corte de Apelação de Paris, no dia 13 de fevereiro de 1998, na ocasião
do conflito entre assalariados e GEC Alsthom quanto à presença de amianto, nas
124
Não confundir isto com um meio de levar à aceitação do risco, como o assinalam M. Callon e P.
Lascoumes, p. 31.
instalações da empresa. Alsthom refutava, com o pretexto de que uma perícia fora feita e
trabalhos de reforma tinham começado. A Corte de Apelação reconheceu a legitimidade
de um ponto de vista independente, assim como admitiu que os trabalhadores
continuavam a ser expostos a um risco de inalação e levou em consideração “a
complexidade do problema”, assim como reconheceu a impossibilidade de fixar um
limite para o perigo, “no atual estado dos dados da ciência”125.
Quaisquer que sejam os esforços dispendidos para conseguir dados de qualidade,
incertezas e debates continuam. Então, o método da apresentação substitui as técnicas de
produção dos dados para que ocorra uma decisão abalizada. De fato, não é suficiente que
os dados sejam confiáveis, do ponto de vista técnico. É preciso que eles sejam utilizáveis
para fins de avaliação e de gestão e, então, de decisão: “as informações fornecidas por
ocasião de cada teste clínico devem ser apresentadas para permitir um julgamento
objetivo”126. Então, é preciso trazer à tona o contexto da produção dos dados para que
surjam seus limites.
O primeiro limite vem das hipóteses que, inelutavelmente, presidiram a concepção
do método de observação ou de produção dos dados. No quadro de seu léxico de
avaliação dos riscos, D. Mc Namee definiu a hipótese como “crença ou conceito lógico
subjacente em relação a um plano ou uma decisão. Muitas vezes as hipóteses são
implícitas. Os cenários estratégicos tentam tornar todas as hipóteses explícitas”. Vários
outros limites afetam os resultados ou até mesmo as medições: confiabilidade dos
equipamentos, níveis de detecção, localização dos aparelhos de detecção127, escolha dos
objetos a serem medidos128, coerência das medições129, limites dos cenários constitutivos
125
Não publicado. Ver também Cass. Soc., 12 de janeiro de 1999, EDF v. CNHST, Dalloz 1999, n. 9, inf.
rel. 64, e comparar com Cass. Soc., 1o de dezembro de 1993, D. 1994, inf. rel., p. 20.
126
Droit Pharmaceutique, fasc. 33-05.
127
G. Mégie in O Godard, op. cit, p. 231.
128
O Laboratório interuniversitário dos sistemas atmosféricos, tendo analisado um pedaço de rede nas
árvores dos Champs-Elysées, no período natalino, mostrou uma poluição totalmente anormal em relação ao
esperado, tanto na qualidade quanto na quantidade das medições, pois partículas muito finas encontravamse nas redes. Isto ia contra o diagnóstico de Airparif (Le Monde, de 21 de dezembro de 1999); ver também
a observação de A. Tauveron; São bem e sistematicamente medidos certos efluentes gasosos vindos de
incineradores, mas não necessariamente as dioxinas e metais pesados (NSS, n o 1-1992, p. 247). Ora, os
pediatras aconselham que as mulheres amamentem seus filhos, quando a concentração de dioxina no leite
materno é muitas vezes superior às taxas autorizadas, e bem superior àquelas dos leites artificiais.
129
O exemplo do amianto. A OMS fixou um método único de medição das concentrações de amianto no ar,
sem o qual nenhuma comparação é possível.
do eixo dos acontecimentos130, reconhecimento imprudente de uma correlação imaginária
entre dois elementos não contestáveis, modelos demasiadamente simplificados, em
relação à realidade, extrapolações lineares131. O protocolo do estudo é um elemento
determinante do alcance dos resultados132. Deveria ser discutido e, então, ser público.
Esta incerteza constitutiva sobre o alcance de um resultado implica uma grande
prudência, no momento de sua transmissão a terceiros. É o que reconhece o Manual de
Ética do Microbiologista que estabelece que “todo e qualquer resultado de perícia deve
indicar o método utilizado e ajudar a interpretação dos resultados. Se, por razões técnicas,
o resultado for duvidoso ou de interpretação ambígua, esta dúvida aparecerá na resposta
escrita”; o tratamento é o mesmo numa publicação, devendo o pesquisador, na teoria,
fornecer detalhes experimentais suficientes para permitir que o leitor avalie o trabalho
intelectual, reproduza as experiências e aprecie a interpretação, assim como as
conclusões. Algumas autoridades esforçam-se de forma significativa para se adaptar a
essas regras, como o mostra o exemplo da mina Giant, no Canadá, caso em que os
resultados foram apresentados com os limites de sua obtenção: não houve nenhuma
pesquisa invasiva, nenhuma análise química. Utilizaram-se somente documentos escritos
e testemunhos.
130
Método de identificação do risco e de avaliação das conseqüências em que todos os eventos ulteriores
possíveis são avaliados quanto a seus riscos. Eles são utilizados nos cenários de riscos, D. Mc Namee, précitado.
131
J.-M. Legay, L’expérience et le modèle, un discours sur la méthode, INRA ed 1997. Sobre a escolha de
um modelo experimental, p. 44 ; sobre os pontos diversos quanto a um mesmo objeto, ver o exemplo da
bilharziose que pode ser encarada num contexto exclusivamente médico ou zoológico ou ecológico, p. 48;
sobre os limites, p. 53 ; ver também P. Roqueplo, Climats sous surveillance, p. 107 e seguintes.
132
O direito farmacêutico o reconhece, pois assimila o protocolo a um dado bruto que deve ser arquivado
para poder ser consultado em caso de problema (Instrução de 31 de maio de 1983, ponto 8.1.2).
Capítulo 7
O princípio da precaução frente ao dilema da tradução jurídica das
demandas sociais
Lições de método decorrentes do caso da vaca louca
Olivier Godard*
O que é fascinante, em se tratando do princípio da precaução, é acompanhar a
evolução de um conjunto de idéias constitutivas de uma nova atitude intelectual e moral,
quando elas penetram o campo das normas sociais e dos ordenamentos jurídicos. As
transcrições normativas, processuais e práticas que, aos poucos, permeiam essas idéias,
continuam fiéis a elas, enriquecendo-as? Ou observa-se um fenômeno de deformação, de
esmagamento e de redução de equilíbrios sutis em proveito de exageros cuidadosos,
porém arbitrariamente seletivos, de proibições securitárias e medidas mais protecionistas
que protetoras para a saúde e o meio ambiente ?
As idéias que fundamentam o princípio da precaução não vêm de um
mundo indeterminado. Num texto desafiador, Isabelle Stengers sublinha com vigor tal
fato, pedindo que a história das idéias seja inscrita de uma forma melhor em sua história
social conflituosa e não se deixe levar pelas ilusões de uma reconstrução posterior que
veria nas transformações do direito somente um movimento endógeno da razão:
Esta questão dos riscos corresponde, no passado, a uma história
ritmada muito mais por lutas que por demonstrações. (…) entretanto, o
caráter conflituoso desta história é freqüentemente esquecido: quando a
exatidão de uma preocupação é finalmente reconhecida, as medidas
tomadas são, na maioria das vezes, apresentadas como o resultado
dedutível e consensual de um progresso do saber racional (como na
história do direito, em que os novos direitos e outras mutações são
apresentados como ‘desenvolvimento’ e ‘aprofundamento’ e não como
repercussão, no âmbito dos textos jurídicos de eventos que obrigaram à
*
Diretor de Pesquisa no CNRS, Laboratório de Econometria, unidade mista 7657 do CNRS e da Escola
Politécnica, Paris. e-mail: [email protected] . Publicado em C. Leben e J. Verhoeven (dir.) O
princípio da precaução : aspectos de direito internacional e de direito comunitário. Paris: Panthéon-Assas,
2002, p. 29-63.
mudança, freqüentemente forçada e tendo enfrentado inicialmente a
oposição dos melhores argumentos doutrinários).2
Mas conhecedora das problemáticas da complexidade e da autoorganização, Isabelle Stengers não crê que o sistema das normas jurídicas possa ser
apenas um local de registros dos conflitos sociopolíticos, ignorando o trabalho de
elaboração, próprio da reflexão acadêmica ou perita em prevenção dos riscos e o trabalho
que caracteriza as transformações do direito.
Com o intuito de compreender o processo de elaboração intelectual do
princípio da precaução é, pois, útil distinguir três momentos lógicos que, juntos,
desenham o que se pode chamar de triângulo da precaução: (a) o surgimento de
expectativas, no seio da coletividade frente à gestão pública dos riscos; essas expectativas
expressam-se, então, sob forma de idéias básicas, em estado bruto; eu as chamarei de
“idéias brutas”; (b) aquilo em que se torna o princípio da precaução após a intervenção da
reflexão crítica, da lapidação das idéias e da elaboração doutrinária em textos oficiais,
como um relatório para o Primeiro Ministro francês, um Comunicado da Comissão
Européia ou uma Resolução do Conselho Europeu; (c) os modos de tradução na ordem
jurídica que são propostos, provenientes de diferentes lados, indo ao encontro de
implicações variadas e de uma mobilização dos recursos da doutrina ou dos costumes
jurídicos.
O Triângulo do princípio da precaução
Idéias brutas provenientes do público
2
Idéias apuradas
Idéias fixadas e colocadas
pela reflexão doutrinal
em prática pela ordem jurídica
I. Stengers, ‘‘Et si l’opinion avait parfois raison?” in Zaccaï e J.-N. Missa (dir.). Le principe de
précaution. Signification et conséquences. Bruxelles: Universidade de Bruxelas, 2000, p. 197.
O dilema posto pela inscrição jurídica do princípio da precaução é de saber se ela
será mais fiel à concepção apurada e reflexiva do princípio da precaução que as idéias
brutas que levaram a sua aceitação pelo público. A posição de Stengers, lembrada
anteriormente, permite entrever a possibilidade de conflitos, dando uma expressão
jurídica normativa a idéias que, embora recebendo momentaneamente uma ampla adesão
da opinião pública, não correspondem às idéias testadas no momento da elaboração
doutrinária em articulação com as instituições políticas. Tais disfunções podem, entre
outras coisas, ocorrer quando essas idéias brutas têm uma estrutura formal mais próxima
das formas usuais da intervenção jurídica que as idéias apuradas, cuja tradução jurídica
pareceria mais delicada em promover.
É o caso da vaca louca que servirá de ponto de partida para uma reflexão
sobre o posicionamento a ser dado ao princípio da precaução. Isto se justifica de várias
maneiras. A Corte de Justiça Européia, com relação a um dos episódios desse caso, a
contestação das decisões de embargo tomadas em março de 1996 pela Comissão
Européia, contra os produtos bovinos provenientes do Reino Unido, estendeu de forma
espetacular o campo de aplicação do princípio da precaução em relação à saúde pública e
à segurança alimentar. Em sua decisão de maio de 1998, contra os queixosos britânicos,
considerava com efeito que: “quando as incertezas subsistem quanto à existência ou
extensão dos riscos para a saúde das pessoas, as instituições podem3 tomar medidas sem
ter de esperar que a realidade e a gravidade destes riscos sejam plenamente
demonstradas” (decisão 99, caso C 180/96). Por outro lado, para muitos observadores,
alheios ao mundo médico, este caso simboliza um conjunto de erros aos quais o princípio
da precaução deverá supostamente pôr fim, no futuro. Aliás, dispõe-se de distanciamento
suficiente para se iniciarem análises retrospectivas, porém as análises começam num
momento em que esses conhecimentos ainda não estão nem completos, nem
estabilizados.
Esta situação permite colocar o problema daquilo que se pode chamar de
ilusão retrospectiva, consistindo em uma releitura dos momentos cruciais da história, a
partir dos conhecimentos adquiridos ex post sobre as ligações de causa e efeito e,
sobretudo, a partir da rejeição de seu desfecho. Um dos caminhos, com base na
3
Sublinhado pelo autor.
experiência, consiste, por exemplo, em procurar identificar como o princípio da
precaução poderia ter evitado a propagação dessa epidemia. Este caminho é instrutivo.
Entretanto, eu o submeteria a uma questão. Não está ele, apesar de tudo, contra sua
própria vontade, exposto a essa ilusão retrospectiva? A análise crítica não invalida a
justificação do princípio da precaução, mas seria ingênuo esperar que este consiga
impedir toda e qualquer evolução nociva. Mais ainda, não é porque acontecimentos
nefastos são constatados ex post, que as decisões tomadas, na incerteza, ex ante podem
ser consideradas ruins ou culposas, mesmo num caminho de precaução. A precaução tem
suas próprias exigências, porém seu objetivo não é fazer com que toda evolução
prejudicial, historicamente constatada, não aconteça. Sem entender tal fato com clareza
suficiente, aqueles que gostariam de mobilizar o princípio da precaução para identificar
as responsabilidades e caracterizações dos erros passados se arriscariam a cair em uma ou
outra forma de ilusão retrospectiva.
Faço questão, antes de tudo, de especificar o contexto histórico no qual o
princípio da precaução emergiu e encontrou um amplo respaldo no meio do público, das
organizações da sociedade civil e dos meios dirigentes. Depois, procuro dar uma forma
explícita a certas “idéias brutas” sobre o princípio da precaução, que afloram nas fases de
crise ou de casos relacionados à gestão pública dos riscos coletivos. Em contrapartida,
defino os contornos do núcleo intelectual que, elaborado pela reflexão doutrinária, foi
institucionalmente validado pelas instâncias dirigentes. Este núcleo se distingue, ao
mesmo tempo, das “idéias brutas” em circulação e da tradução operacional que o direito
pode dar ao princípio da precaução, sob a forma de conceitos e regras jurídicas. A seção
seguinte procura tirar certas lições de método do caso da vaca louca. Estudo inicialmente
as diferentes formas de ilusão retrospectiva a respeito dos fatores de propagação dessa
epidemia e a maneira de qualificar as ações dos administradores do assunto. Em seguida,
abordo o conflito entre a França, a Comissão e o Reino Unido, por ocasião da recusa
francesa em levantar o embargo sobre o boi britânico, no outono de 1999. A reflexão
termina num questionamento no que diz respeito às formas mais apropriadas de tradução
jurídica que podem ser dadas ao princípio da precaução.
1. Elementos do contexto histórico
O princípio da precaução não vem do planeta Marte. Está enraizado na
experiência histórica da modernidade contemporânea. Casos dramáticos abalaram as
instituições de saúde pública: sangue contaminado, amianto, entre outros. Após duas
guerras mundiais e a descolonização, conflitos passados ressurgiram na Europa, embora
as aspirações tenham se fixado na idéia de “guerra nunca mais”. Acidentes industriais
(Seveso, Bhopal, Chernobyl), acidentes de navegação marítima (do Torrey-Canyon em
1967 ao Érika em 2000), catástrofes naturais (a tempestade de dezembro de 1999, que
assolou as florestas francesas e destruiu inúmeros telhados) e evoluções inquietantes a
longo prazo (a mudança do clima, a rápida erosão da biodiversidade) mostram tanto o
poder destruidor dos fenômenos que envolvem as forças da natureza, quanto o peso do
desenvolvimento humano sobre as condições físicas do planeta. Um amplo desencanto
tomou conta do público, frente aos grandes temas que formavam a massa ideológica do
funcionamento da sociedade francesa desde que ela forjara para si um futuro industrial: o
progresso econômico e social para todos; a modernidade libertadora graças ao progresso
científico e técnico; um estado forte garantindo interesses superiores e, a longo prazo, da
nação, a igualdade dos cidadãos e a solidariedade em relação aos mais pobres; um quadro
político de alta qualidade, preocupado, antes de tudo, com o bem comum; uma paz
civilizada entre as nações.
O princípio da precaução surge num panorama de crenças abaladas, de temores
renovados, no âmbito do qual se difunde o sentimento de que todas estas coisas vão
transcorrer com dificuldade e que isto vai acabar mal. Com efeito, os anúncios das novas
proezas da pesquisa científica são sacudidos enquanto as técnicas são submetidas a
mudanças contínuas. Os vendedores de sonhos tecnológicos redobram as promessas
quanto à potência e à facilidade advindas das perspectivas de biotecnologias e novas
tecnologias da informação e da automação. Entretanto, com o passar dos anos, cada um
vê o surgimento crescente, lento e regular, quase que inelutável, de problemas
considerados de sociedade (precariedade de emprego e exclusão social, insegurança
urbana, violência nas escolas, crise do ensino, etc.) e de perigos de natureza distinta (o
integralismo islâmico expande sua zona de influência geográfica; a AIDS não pára de
crescer e de afligir, em primeiro lugar, as populações africanas; a pressão das
organizações mafiosas aumenta, nutrindo-se da miséria e do desespero que reinam em
certas regiões da Europa e em vários outros países do mundo e da corrupção das elites
dirigentes; tempestades e inundações catastróficas pairam, como a espada de Dámocles,
acima das cabeças, em numerosas regiões habituadas a um clima relativamente
temperado, etc.).
Tudo isto, tanto para o melhor como para o pior, testemunha a crescente
impotência política para dominar o curso das coisas, sejam as inovações científicas que se
difundem em larga escala antes que se tenha tempo para analisá-las, seja o surgimento,
que parece inexorável, dos problemas que afetam o “viver junto”. Nenhum elo forte está
firmado entre os dois fenômenos: nenhum discurso verdadeiramente consistente mostra
como os progressos técnicos anunciados vão resolver os mais graves problemas da
sociedade, aqueles que dizem respeito à cobertura das necessidades essenciais das
populações, nos quatro cantos do mundo, a manutenção dos laços sociais e a preservação
da máquina ecológica do planeta. Ao contrário, as novas tecnologias são amplamente
percebidas, às vezes com excesso, como fatores de transtorno que, longe de resolver os
problemas, vão ampliá-los ou criar novos, ainda desconhecidos.
A perplexidade aumenta e a confiança tranqüila se esvanece (em quem confiar hoje
em dia?). A crença de que a técnica resolveria os problemas da sociedade
desmoronou em meio ao público, o que, no entanto, não apaga seus encantos; não
há como garantir que a técnica do amanhã será capaz de resolver os problemas
criados pela técnica de ontem e de hoje! Apenas a comédia do poder procura ainda
dar crédito a uma mitologia da bondade da técnica, enaltecendo suas incontestáveis
vantagens, porém parciais do ponto de vista do bem-estar material e da
produtividade econômica. Além do mais, nos tempos de hoje, a preocupação voltase muito rápido para a suspeita e a denúncia. Quando as coisas vão mal é preciso
achar responsáveis, melhor, culpados e sanções. Não é por acaso que o princípio da
precaução foi inscrito na ordem jurídica, mesmo sem saber muito bem ainda com
que status! Muitos são aqueles que querem ver no princípio da precaução uma nova
cartada da responsabilidade jurídica, trunfo da revanche dos que foram deixados de
lado pelo progresso e das vítimas da arrogância dos dirigentes.
2. As idéias brutas que circulam sobre a precaução
No buquê da precaução, crescendo sobre este húmus social que fede a
decomposição, existem flores belas e sãs, mas também plantas venenosas, das quais é
preciso preservar o espaço democrático da decisão pública. A vontade de reencontrar ou
preservar as condições de um controle próprio, não delegado, da estrutura do quotidiano,
parece forte. Isto vem acompanhado por um questionamento sobre as relações dos
poderes e dos mecanismos existentes de distribuição dos riscos. Segue-se, então, em
decorrência disto, uma recusa crescente em delegar, sem o controle de uma elite dirigente
política e econômica, as decisões que levam à criação de riscos coletivos que podem ter
conseqüências identificáveis sobre as pessoas. Além do mais, cada vez que há uma
controvérsia em relação a um projeto, a uma preocupação ou a um problema sanitário
surge uma forte demanda, formulada por organizações da sociedade civil ou de coletivos
ad hoc, quanto a uma perícia independente e transparente que não sirva somente aos
tomadores de decisões ou administradores, mas que seja organizada e concebida para
dirigir-se, de maneira prática e efetiva, ao público. A demanda pede também novas
formas de associação quanto à decisão, com grupos que se constituíram no âmbito da
sociedade civil, com o intuito de compartilhar preocupações ou defender interesses
coletivos considerados como mal solucionados pelo funcionamento usual da democracia
representativa.
Querer dominar os riscos, assim como a experiência ensinou para cada um de nós,
implica dominar o momento de correr riscos. O princípio da precaução traz, antes de
tudo, uma exigência de cálculo precoce dos potenciais perigos para a saúde ou para a
atividade de cada um, quando o essencial ainda não surgiu. Esta demanda opõe-se
frontalmente à lógica da ação tardia ou do balanço estabelecido a posteriori, com certeza
cientificamente rigoroso, mas de impotência avassaladora. Aliás, durante muito tempo, a
exigência do rigor científico que, por si mesmo, não está nem mesmo em questão, fora
interpretada como uma exigência de provas garantidas da existência dos perigos antes de
os responsáveis assumirem o controle. Assim camuflada, ela serviu de cortina para todos
aqueles que apostam no desenvolvimento das situações para tornar inelutáveis as
evoluções que lhes convêm ou das quais tiram algum proveito, mas que não seriam
escolhidas conscientemente pelos cidadãos, se a escolha lhes tivesse sido oferecida ex
ante, de forma clara.
Entretanto, querer agir de forma antecipada sobre riscos cuja existência não está
nem comprovada e cujas conseqüências potenciais são ainda mal compreendidas,
equivale a defrontar-se com um difícil exercício de julgamento, que está sob a ameaça de
dois riscos: (a) comprometer inutilmente custos elevados e impor um considerável
desgaste para as pessoas, os grupos particulares e, ainda, para a coletividade inteira; ou,
simples variável, fechar as portas a vias de desenvolvimento, que podem trazer uma
notável contribuição para a resolução dos problemas ou do bem-estar; é o caso da
renúncia a uma técnica capaz de curar um certo tipo de doença ou de outra, obtendo
economias necessárias de energia fóssil a fim de aproximar-se, de maneira geral, de um
desenvolvimento sustentável; (b) deixar evoluir de maneira pouco reversível situações
lastimáveis, até mesmo catastróficas, objeto de todas as lamentações ulteriores, como o
ilustram os temores suscitados pela epidemia de encefalopatia espongiforme bovina
(ESB), suscetível de afetar a espécie humana sob forma de uma nova variação da doença
de Creutzfeldt-Jakob.
Ora, algumas das idéias que germinaram no terreno precedentemente descrito
poderiam conduzir a precaução, que se tornou princípio, para impasses ainda mais
temíveis que entrariam em sinergia uns com os outros. Eis alguns deles:
•
A novidade do princípio da precaução viria da imposição de novas obrigações de
resultado, pressionando as autoridades e todas as pessoas públicas e privadas que
criam riscos para os outros; o princípio da precaução pediria que “todas as
precauções” fossem tomadas para evitar a realização de um dano e se definiria por
uma escalada nas medidas precautórias4; todo e qualquer deslize deveria ser
sancionado pelos tribunais e responsabilizaria os faltosos e o Estado; os
responsáveis pela prevenção dos riscos deveriam prestar contas de sua gestão
diante dos tribunais; tratar-se-ia de acabar com o estado de irresponsabilidade dos
dirigentes e de castigar violentamente aqueles que expõem outrem a perigos,
fossem eles potenciais, no momento dos fatos.
4
Esta interpretação manifestou-se na língua por meio da adjunção de diversos adjetivos. Assim, a
precaução será dita alternativamente estrita, absoluta ou extrema.
•
O princípio da precaução seria uma nova arma jurídica, permitindo às vítimas
estigmatizar as escolhas ou ações passadas dos dirigentes públicos e privados – ou
melhor, suas inações – julgados como culpados; seria para o direito um novo
princípio de busca retrospectiva de responsabilidade em situações em que os
danos já ocorreram; contrariamente às aparências, o princípio da precaução seria
mais uma ferramenta para uma melhor busca no passado e para a descoberta dos
culpados do que uma ferramenta de gestão atenta às potencialidades do futuro.
•
A precaução consistiria em reler os encadeamentos passados de decisões e de
acontecimentos à luz dos conhecimentos obtidos ex post quanto a suas
conseqüências danosas e em caracterizar como faltas os atos e decisões que
contribuíram objetivamente para a produção dessas conseqüências, embora se
saiba que, no momento dos fatos, aquele conhecimento não estava disponível.
•
O princípio da precaução instauraria uma leitura binária das atividades lícitas: só
autorizaria atividades e produtos “seguros”; a partir do momento em que houvesse
uma dúvida sobre sua segurança ambiental ou sanitária (a prova da inocuidade
não fora trazida), ele os proibiria5; a redução binária é realmente dupla, visto que
a precaução se situaria na divisória da alternativa autorização/proibição e
segurança (entendida como ausência total de risco)/insegurança (qualquer risco
coletivo potencial não nulo, sendo julgado como inaceitável).
Obviamente, explicadas de maneira clara, essas idéias serão julgadas como
inaceitáveis por numerosos analistas que protestarão com razão: mas o princípio da
5
Esta interpretação do princípio da precaução, como uma exigência da prova da inocuidade, antecipando-se
a toda e qualquer autorização, fora regularmente alegada pela associação Greenpeace, tanto para os lixos
industriais no mar do Norte quanto para os OGM. Ela não pode ser razoavelmente defendida: num universo
de conhecimentos científicos imperfeitos e em mudança, a exigência da prova científica da inocuidade
definitiva, a longo prazo, de um produto ou de uma técnica, é uma demanda logicamente inconsistente,
sobre a qual nenhuma comissão de peritos consegue opinar. Os cientistas podem somente mostrar os
resultados de seus trabalhos e dos conhecimentos disponíveis. Isto não elimina nem todas as possibilidades
de danos ainda desconhecidos, nem todas as incertezas. A demanda de prova da inocuidade é um passo
retórico que, tomado ao pé da letra, levaria a impor moratórias reconduzidas periodicamente, até
transformar-se de fato em proibição definitiva. Ver O. Godard, “L’ambivalence de la précaution et la
transformation des rapports entre science et décision” in O. Godard (dir.). Le Principe de precaution dans la
conduite des affaires humaines. Paris: Maison des Sciences de l’Homme e Inra, 1997, p. 37-83, e “ De
l’usage du principe de précaution en univers controversé », Futurtbles, n. 239-240, fevereiro-março de
1999, p. 37-60.
precaução não se resume a isto! Claro, mas será que não podemos reconhecer essas
idéias, implementadas de maneira mais ou menos explícita, no posicionamento deste ou
daquele agente (militante de ONG, ministro, jornalista, perito…)? Assim, cada um
alegará a seu favor que o risco zero não existe; no entanto, em certos casos comentados
de forma exagerada, os responsáveis serão vistos, comportando-se como se fosse
necessário fazer de tudo para alcançá-lo de forma assintomática, como se fosse a
obrigação decorrente do princípio da precaução. Não foi um jornalista do Le Monde,
Rafaël Rivais, que, num comentário sobre a decisão suspensiva do Conselho de Estado
em relação à autorização de plantar milho geneticamente modificado da sociedade
Novartis, definia o princípio da precaução nos seguintes termos: “princípio que leva um
responsável a tomar uma atitude política somente se tiver certeza da ausência absoluta
de risco ambiental ou sanitário”6? Não foram os relatores do Conselho de Estado que,
em suas reflexões sobre o direito da saúde, apresentadas no Relatório Anual do Conselho
em 1998, caracterizavam o princípio da seguinte maneira: “este novo conceito define-se
pela obrigação, que recai sobre o responsável público ou privado, obrigando-o a se
decidir ou não por uma ação em função do risco possível. Neste sentido, adequar sua
conduta ao cálculo dos riscos conhecidos não é suficiente. Além disso, ele deve, tendo em
vista o atual desenvolvimento científico, trazer a prova da ausência de risco”7? A
exigência de “prova da ausência de risco” é aqui definida como constitutiva do princípio
da precaução! Ora, trata-se de uma formulação característica do que chamei de regra da
abstenção, bem diferente do princípio da precaução8. O fato de que esta infeliz
formulação tenha sido escolhida pelos Conselheiros de Estado como repulsiva, levandoos à conclusão de que não havia lugar para que o direito, no que dizia respeito à
responsabilidade, se enriquecesse com um novo fundamento - “a ausência de precaução”
- colocado ao lado da falta e do risco, não modifica nada o fato de se ter oficialmente
pego uma falsa pista quanto à compreensão coletiva das exigências desse princípio.
6
R. Rivais, ‘‘Le commerce de maïs transgénique suspendu au nom du principe de précaution” , Le Monde,
27-28 de setembro de 1998.
7
Conseil d’Etat, Rapport public 1998. Réflexions sur le droit de la santé. Paris: La documentation
française, (coll. “ Etudes et documents n°49 »), 1998. p.256.
8
O. Godard, op. cit., 1997.
Em contrapartida, ainda há tempo para caracterizar o núcleo intelectual da
precaução para a reflexão doutrinária que foi validada institucionalmente pelos órgãos
dirigentes.
3. O núcleo intelectual do princípio da precaução para a reflexão doutrinária
institucionalmente validada
Mediante a pluralidade das definições dadas ao princípio da precaução, nos textos
de direito internacional ou nos comentários que os acompanharam, pode-se identificar um
núcleo de temas comuns: (a) o comprometimento prematuro de uma prevenção frente aos
riscos cuja existência não está cientificamente comprovada, sem esperar certezas sobre a
existência do perigo, da extensão dos danos ou das relações de causa-efeito que estão em
jogo; (b) a gravidade dos riscos visados freqüentemente, completada pela
irreversibilidade dos danos; qualquer perigo potencial não é visado por este princípio; (c)
a modificação das obrigações dos diferentes agentes para o aporte das informações
científicas necessárias para o bom exercício da gestão pública dos riscos, o que não pode
ser confundido com a chamada inversão do ônus da prova9.
A extensão jurisprudencial do princípio para o campo da saúde pública, dada pela
Corte de Justiça Européia, complicou certamente o debate no que diz respeito a seu
conteúdo. No direito francês, seu alcance e seu significado exato neste novo campo não
podem apoiar-se sobre um texto de lei equivalente àquele da Lei 95-101, chamada lei
Barnier para o meio ambiente, que tornava mais clara a definição seguinte: “princípio
segundo o qual a ausência de certezas, levando em consideração os conhecimentos
científicos e técnicos do momento, não deve postergar a adoção de medidas efetivas e
proporcionais, visando prevenir um risco de danos graves e irreversíveis para o meio
ambiente, com um custo economicamente aceitável”. Serão destacados dois pontos-chave
desta definição. Inicialmente, o princípio da precaução consiste, sobretudo, em modificar
o momento do cálculo dos riscos, em pedir um controle antecipado sem esperar a
obtenção de certezas científicas. Em segundo lugar, longe de exigir um excesso de
9
Nos contextos de decisórios marcados ao mesmo tempo pela preconização da incerteza científica e por um
novo olhar menos positivista sobre os conhecimentos científicos, o princípio da precaução não consiste em
inverter o ônus da prova, concepção paradoxalmente marcada por um cientificismo arcaico, mas em
organizar a prevenção dos riscos em relação à evidência de prova, esta podendo ser a favor ou contra.
medidas precautórias extremas, faz da procura da proporcionalidade das medidas sua
referência central.
Para orientar a reflexão das autoridades públicas e dos cidadãos sobre a
implementação deste princípio, dispõe-se de três textos de referência que, embora sem
alcance jurídico direto, propõem uma doutrina geral com legitimidade institucional.
Trata-se do relatório preparado por Philippe Kourilsky, professor no Colégio da França, e
Geneviève Viney, professora de Direito Privado na Universidade de Paris I, entregue ao
Primeiro Ministro, em novembro de 199910; da Comunicação da Comissão Européia
sobre o princípio da precaução, publicado em fevereiro de 200011, e da Resolução do
Conselho Europeu de Nice, de dezembro de 200012, especificamente dedicada ao
princípio da precaução.
Estes textos (ver o quadro 1) têm vários aspectos em comum. O princípio da
precaução procede da gestão prospectiva dos riscos e é introduzido a longo prazo, o que
marca particularmente a referência do desenvolvimento sustentável. O papel
indispensável da identificação e da análise científica dos riscos, assim como o necessário
reexame das medidas em função da evolução dos conhecimentos são destacados. Isto
significa claramente que não se poderia esperar do princípio da precaução que ele levasse
a tomar, logo no início, as medidas que pareceriam como as mais justificadas, tendo em
vista os conhecimentos que serão adquiridos ulteriormente: os conhecimentos são
evolutivos e o curso da ação deve ser concebido de maneira que possa sofrer revisão,
numa perspectiva de aprendizagem que associe experiência e desenvolvimento dos
conhecimentos.
A cada momento, um conjunto de exigências pesa sobre as medidas a serem
tomadas. Elas devem ser proporcionais ao nível de proteção desejado, no estado dos
conhecimentos disponíveis e reversíveis para que as autoridades estejam em condições de
10
P. Kourilsky e G. Viney. Le principe de précaution. Rapport au Premier Ministre. Paris: Odile Jacob,
2000.
11
Comissão das Comunidades Européias, Comunicação da Comissão sobre o princípio da precaução.
Bruxelas, 02 de fevereiro de 2000, COM (2000)1.
12
Conselho Europeu, Resolução do Conselho sobre o princípio da precaução, Anexo III das Conclusões da
Presidência, Conselho Europeu de Nice, 7 a 9 de dezembro de 2000.
calcular a evolução dos conhecimentos. Devem também ser coerentes com aquelas que
foram adotadas para a gestão de riscos similares, o que implica a adoção de avaliações
comparativas. Ao contrário do que se diz às vezes, esta última exigência não é um
obstáculo para o progresso das iniciativas de precaução. Uma vez definido, como o fez a
Resolução de Nice, este princípio de coerência deve entender-se, considerando a
evolução do nível de proteção procurado entre as diferentes datas em que decisões de
prevenção dos riscos foram tomadas.
A avaliação das medidas deve incluir um quadro completo sobre as vantagens e os
custos de qualquer natureza das ações geradoras dos riscos e medidas de precaução
concebidas, reconhecendo também o caráter prioritário das exigências de proteção da
saúde pública. Trata-se, então, de um leque de medidas que pode ou deve ser considerado
a título da precaução, sem reduzir-se às únicas medidas de proibição.
No plano político, esses textos trazem de forma mais clara a responsabilidade
específica das autoridades públicas. O princípio da precaução é seu problema13. Isto leva
a várias afirmações: (a) o princípio da precaução concerne à ação das autoridades
públicas, sejam elas comunitárias ou nacionais; (b) essas autoridades devem adotar um
quadro de pesquisa apropriado para avaliar os riscos, sendo também responsáveis pela
organização dessa avaliação; (c) as autoridades devem implicar a sociedade civil e
consultar as partes interessadas; (d) as medidas de gestão do risco devem ser tomadas
pelas autoridades públicas responsáveis, com base numa apreciação política do nível de
proteção procurado.
Quadro 1: As exigências do princípio da precaução para a doutrina validada 1° Os dez mandamentos do relatório Kourilsky-Viney (2000, p.56)
1. Todo risco deve ser definido, avaliado e graduado.
2. A análise dos riscos deve comparar as diferentes hipóteses de ação e inação.
13
Para uma apresentação dos argumentos favoráveis a uma concepção que preserva a responsabilidade
política dos governantes, na efetivação do princípio da precaução, Ver O. Godard “O princípio da
precaução, um princípio político de ação” Revue juridique de l’environnement, Número especial 2000 ‘O
princípio da precaução’, maio de 2001, p. 127-144.
3. Toda análise de risco deve comportar uma análise econômica que leve a um
estudo custo/benefício (no sentido amplo), previamente à decisão.
4. As estruturas de avaliação do risco devem ser independentes, porém
coordenadas.
5. As decisões devem, na medida do possível, ser revisáveis e as soluções
adotadas, reversíveis e proporcionais.
6. Sair da incerteza impõe uma obrigação de pesquisa.
7. Os circuitos de decisão e os dispositivos de segurança devem ser, ao mesmo
tempo, apropriados, coerentes e eficazes.
8. Os circuitos de decisão e os dispositivos de segurança devem ser confiáveis.
9. As avaliações, as decisões e seus acompanhamentos, assim como os
dispositivos que contribuem para isto devem ser transparentes, o que impõe a
etiquetagem e o rastreamento.
10. O público deve ser informado da melhor forma possível e seu grau de
participação, ajustado pelo poder político.”
2° As orientações da Comissão Européia (2000)14
1. O princípio da precaução deveria ser considerado no contexto de um
tratamento estruturado da análise do risco (avaliação, gestão, comunicação), e
se revela particularmente pertinente para a gestão do risco.
2. O recurso ao princípio da precaução pressupõe que os efeitos potencialmente
perigosos foram identificados, mas a avaliação científica não permite
determinar o risco com suficiente certeza.
14
Não se trata aqui do texto em sua íntegra, nem de citações, mas de uma apresentação resumida,
mostrando a substância da obra original.
3. Seria preciso começar pela mais completa das avaliações possíveis,
mencionando para cada estágio o grau de incerteza científica.
4. Julgar o nível “aceitável” do risco para a sociedade é uma responsabilidade
eminentemente política.
5. Um amplo leque de iniciativas é disponível em caso de ação, desde uma
medida de obrigação legal até um projeto de pesquisa ou uma recomendação.
6. O procedimento da decisão deveria ser transparente e envolver, desde o início,
a totalidade das partes interessadas.
7. As medidas fundadas sobre o princípio da precaução deveriam:
•
ser proporcionais ao nível de proteção procurado (o risco é raramente
o risco zero; em certos casos, uma proibição total pode tornar-se a
única resposta possível para um determinado risco);
•
não
introduzir
discriminação
em
suas
aplicações
(situações
comparáveis não tratadas de forma diferente);
•
ser coerentes com medidas similares já adotadas (as medidas deveriam
ter um alcance e uma natureza comparáveis às medidas já tomadas em
campos equivalentes, em que todos os dados científicos estão
disponíveis);
•
estar baseadas num exame das vantagens e das implicações potenciais
da ação e da ausência de ação (este exame é mais amplo que uma
análise de rentabilidade econômica e inclui, por exemplo, a
aceitabilidade pela população; deve levar em consideração a prioridade
dada à proteção da saúde em relação às considerações econômicas);
•
ser reexaminadas à luz de novos dados científicos;
•
ser capazes de atribuir a responsabilidade de produzir provas
científicas necessárias para permitir uma avaliação mais completa do
risco (a responsabilidade recai sobre as empresas nas quais existem
procedimentos de autorização prévia; no caso da inexistência destas,
pode recair sobre os poderes públicos ou sobre os usuários, mas
também sobre o produtor ou importador, sem que isto se torne regra
geral).
3° A Resolução do Conselho Europeu de Nice sobre o princípio da precaução (2000)
(Esta Resolução compartilha as principais orientações da comunicação da
Comissão. Apenas os pontos de destaque foram aqui retomados para a
continuação do estudo)
1. O princípio da precaução é aplicável no âmbito do meio ambiente e também
no da saúde humana; assim como nos campos zoo e fitossanitários; coloca-se
na perspectiva do desenvolvimento sustentável.
2. O princípio da precaução aplica-se às políticas e à ação da Comunidade e de
seus Estados-membros; refere-se à ação das autoridades públicas, tanto na
esfera das instituições comunitárias quanto na dos Estados-membros.
3. Vale recorrer ao princípio da precaução, logo que a possibilidade de efeitos
nocivos sobre a saúde ou o meio ambiente estiver identificada e que uma
avaliação científica preliminar, embasada em dados disponíveis, não permita
concluir, com total certeza, o nível de risco.
4. Para proceder à avaliação dos riscos, a autoridade pública deve dotar-se de um
quadro de pesquisa apropriado, apoiando-se notadamente sobre comitês e
trabalhos científicos pertinentes; a autoridade pública é responsável pela
organização e avaliação do risco, que deve ser conduzida de forma
multidisciplinar, contraditória, independente e transparente.
5. A avaliação dos riscos deve ressaltar as eventuais posições minoritárias.
6.
As medidas de gestão do risco devem ser tomadas pelas autoridades
responsáveis, com base numa apreciação política do nível de proteção
procurado.
7. No momento da escolha das medidas a serem tomadas para a gestão do risco,
deve-se estudar todo o leque das medidas que permitem que o nível de
proteção procurado seja atingido.
8. A sociedade civil deve ser envolvida e um cuidado especial deve ser dado à
opinião de todas as partes interessadas, no estágio mais prematuro possível.
9. As medidas tomadas devem respeitar o princípio de proporcionalidade,
calculando os riscos a curto e longo prazos, assim como visando a um nível
elevado da proteção procurada.
10. Quando há várias possibilidades de atingir o mesmo nível de proteção da
saúde ou do meio ambiente, as medidas menos restritivas para os fluxos
devem ser buscadas.
11. As medidas deveriam ser coerentes com medidas já tomadas em situações
similares ou usar enfoques similares, considerando os mais recentes
desenvolvimentos científicos e a evolução do nível de proteção procurado.
12. As decisões tomadas a título do princípio da precaução devem ser revisadas
em função da evolução dos conhecimentos científicos. Para este fim, o
acompanhamento dos efeitos dessas decisões deve ser assegurado e pesquisas
complementares devem ser conduzidas para reduzir o nível de incerteza.
As implicações destas reivindicações são importantes. A princípio, os
agentes da sociedade civil, empresas ou pessoas físicas não têm por obrigação procurar
por si mesmos as interpretações do que poderiam ser as exigências que lhes caberiam
diretamente, a título do princípio da precaução. Apesar de tudo, esses agentes devem
trazer com diligência sua contribuição para uma política de precaução definida pelas
autoridades, no contexto normativo que estas autoridades definirão e respeitar estas
regras. Em seguida, tratando-se da apreciação das medidas a serem tomadas em função
da idéia central de proporcionalidade, o tipo de responsabilidade reivindicada para o
benefício
das
autoridades
públicas
está
explicitamente
definido
como
uma
responsabilidade política. Se estas palavras têm um sentido, significam que esta
responsabilidade só pode ser sancionada pelos meios políticos e não pelos tribunais. A
competência do juiz concerne, como de praxe, às faltas e falhas na aplicação das medidas
decididas (procedimentos, regulamentos) e aos prejuízos e danos atribuídos à ação de
outrem, no quadro dos regimes de responsabilidade existentes.
Para usar um exemplo tirado do caso da vaca louca, decidir ou não pela
comercialização de farinhas animais ou autorizá-las apenas sob condições restritivas
devidamente especificadas releva a responsabilidade política do governo; ao contrário, o
exame das falhas do cumprimento das proibições editadas, dos casos de fraudes ou da
falta de respeito das incumbências é da competência do juiz. É, pelo menos, o conceito
doutrinário colocado em prática pelos órgãos políticos europeus.
Tudo isto bate de frente com as “idéias brutas”, mencionadas na seção 2.
O princípio da precaução não inclui uma obrigação de resultado, tampouco uma
exigência de redobramento de precauções, mas pede o empenho precoce de diferentes
procedimentos de cálculo dos riscos potenciais, principalmente no que diz respeito à
pesquisa científica e à avaliação dos riscos. Longe de aceitar uma redução binária do
universo das escolhas, estes procedimentos devem guiar a busca de medidas apropriadas
num leque de ações possíveis, indo da vigília científica, passando por recomendações, até
chegar às medidas provisórias de proibição. A responsabilidade da apreciação final das
medidas é política. No essencial, o princípio da precaução não modifica os regimes de
responsabilidade jurídica em vigor. A contrapartida de um cálculo precoce em relação
aos riscos potenciais é o reconhecimento da necessidade de ajustar as medidas em função
da evolução dos conhecimentos. Isto afeta a maneira de entender a exigência de
proporcionalidade que deve calcular, ao mesmo tempo, o leque dos cenários possíveis e o
grau de consistência científica das hipóteses que as subentendem. Exigir dos tomadores
de decisões que eles decidam o que apareceria ex post como o melhor, em função de um
conhecimento mais completo dos riscos ou da constatação ulterior de danos causados,
seria contrariar a lógica da precaução. O princípio da precaução não tem por objetivo
garantir o impedimento último de todo e qualquer dano, mas contribuir para o
estabelecimento ex ante de um alto nível de proteção. Em particular, deve-se evitar tornálo instrumento de ilusão retrospectiva.
4. O caso da vaca louca: lições para a precaução
Do ponto de vista da gestão pública, a doença da vaca louca começa em
1985, no Reino Unido, com a identificação de animais atingidos por uma nova patologia
cuja natureza seria identificada um ano mais tarde: a ESB, vinculada à família das
encefalopatias espongiformes subagudas transmissíveis (ESST). Seu desenvolvimento
depende de agentes de transmissão não convencionais (ATNC). No caso, um papel ativo
é majoritariamente atribuído pelos cientistas a uma proteína, o príon, cuja deformação da
estrutura molecular, transmitida gradualmente, teria o efeito patológico que se sabe sobre
o sistema nervoso central. Desde dezembro de 1987, o principal fator de transmissão da
doença entre os bovinos é identificado: trata-se das farinhas de carne e de osso fabricadas
a partir do reaproveitamento dos restos de vários animais (cavalos, ovelhas, porcos e
também bois).
De 1986 a 1996, essa doença vai ser vista pelos meios profissionais e pelas
autoridades como uma epizootia e não como um problema de saúde pública, embora o
risco teórico de afetar o homem não estivesse descartado, ainda que parecesse pouco
provável. Durante esses dez anos, o governo do Reino Unido articulou seu discurso ao
redor de três idéias: não havia nenhuma prova da transmissão da ESB para o homem; era
altamente improvável que a ESB causasse qualquer risco para os humanos; o boi era um
alimento seguro. Todavia, as autoridades britânicas tomaram desde logo, antes mesmo
que fosse julgada a hipótese da possível transmissão para o homem, as mais importantes
medidas para proteger o público do risco que a ESB podia representar para a saúde
humana: abate obrigatório e destruição dos animais doentes, decisão de agosto de 1988;
retirada total da cadeia alimentar humana as partes dos animais suscetíveis de conter o
agente infeccioso (os materiais com riscos específicos), em novembro de 1989. Melhor
dizendo, trata-se aqui de uma autêntica política da precaução, ou melhor, de um cálculo
antecipado dos riscos potenciais não confirmados, mesmo que várias falhas e erros
tenham maculado sua aplicação.
Apenas a partir de 1996 a probabilidade de conseqüências para a saúde
humana, sob forma de uma nova variação da doença de Creutzfeldt-Jakob, foi anunciada
pelas autoridades britânicas, gerando, então, de 1996 até 2001, uma série de crises
econômicas e políticas, baseadas no medo dos consumidores em relação a sua saúde.
Em sua contribuição para o relatório Kourilsky-Viney15, que foi redigido
em 1998-1999, Marie-Angèle Hermitte e Dominique Dormont fazem uma releitura
precisa e estimulante desse caso, tendo em vista uma reflexão sobre a precaução. Desde
então, dispõe-se de um importante acervo de documentos sobre o caso: o relatório da
comissão de investigação, nomeada no Reino Unido para esclarecer a gestão do caso
entre 1986 e 1996. Presidida por Lord Phillips, um dos magistrados mais importantes do
país, a comissão tornou público seu relatório em outubro de 200016. Dispõe-se também
do relatório da comissão de inquérito do senado francês, de maio de 200117, sem falar de
outras obras18. Não é possível citar aqui, mesmo em suas linhas gerais, as diferentes
etapas da gestão desse caso. Gostaria apenas de fazer duas coisas: de um lado, introduzir
uma reflexão que mostra os diferentes caminhos que levam a uma análise retrospectiva,
em seu princípio inteiramente essencial à realização de uma aprendizagem coletiva,
talvez vítima de ilusões e de viés – seria perigoso que eles contaminassem as
providências jurídicas quando recorressem ao princípio da precaução; de outro, gostaria
também de voltar a um acontecimento peculiar do caso: o embargo, pelo governo francês,
sobre a carne de boi britânico, no outono de 1999, que permitiu medir na prática o
alcance operacional do princípio, num contexto onde a soberania nacional foi colocada
em oposição às regras comunitárias.
15
M.-A. Hermitte e D. Dormont, “Annexe 3,. Proposition pour le principe de précaution à la lumière de
l’affaire de la vache folle” in P. Kourilsky e G. Viney, op. cit., p. 341-386.
16
Lord Phillips of Worth Matravers, Mrs June Bridgeman and Professor Malcom Ferguson-Smith, The
BSE Inquitry. Vol. I Findings and Conclusions. London: The Stationery Office, October 2000.
17
Comissão de Inquérito do Senado, “Relatório sobre as condições de uso das farinhas animais na
alimentação dos animais na pecuária e as conseqüências resultantes para a saúde dos consumidores”,
Relatório 321, Diário Oficial, 11 de maio de 2001.
18
Ver, por exemplo, P.-M Lledo, Histoire de la vache folle. Paris: PUF, Coll. “Science, histoire et société”,
2001.
As armadilhas das leituras retrospectivas
Se fosse necessário utilizar o princípio da precaução como uma nova marca para
apreciar os eventuais erros cometidos no passado pelos diferentes gestores do risco, a
medida ficaria muito exposta aos diferentes vieses da ilusão retrospectiva. As tentações
são grandes, como observam Marie-Angèle Hermitte e Dominique Dormont:
Diante das imperfeições da gestão da crise relativa a essas
farinhas, fica-se evidentemente tentado a querer voltar às decisões que
levaram a alimentar os bovinos com proteínas vindas de cadáveres animais –
tomando-se o cuidado de evitar anacronismos: não se trata de identificar os
responsáveis de uma época em que a idéia da precaução não estava ainda
formulada, mas de compreender hoje como conceber e pôr em prática este
princípio19.
A ilusão retrospectiva pode tomar várias formas, algumas grosseiras, outras mais
sutis, porém igualmente errôneas.
Querer julgar erros do passado à luz de conhecimentos posteriores
A mais grosseira das ilusões consiste evidentemente em julgar o caráter falível de
decisões passadas em função dos conhecimentos que só foram obtidos posteriormente.
Não apenas injusto, este caminho é perigoso, pois amarra a qualificação das ações
passadas à evolução dos conhecimentos ulteriores, o que pode reservar inúmeras
surpresas. Assim, no caso da vaca louca, os interesses estavam voltados para o Reino
Unido e, depois, para a França, quanto à mudança dos procedimentos da fabricação das
farinhas animais destinadas aos ruminantes, como se essa mudança tivesse sido o
principal fator de surgimento e aumento da ESB. Os príons eram destruídos nos antigos
procedimentos por meio da temperatura utilizada. Nos novos procedimentos, não mais
ocorria tal destruição, conforme explicação dada. Esta explicação tinha sido reformulada
no final de 1987 por John Wilesmith, chefe do departamento de epidemiologia do
laboratório veterinário central das autoridades britânicas. Foi retomada ainda por Marie19
M.-A. Hermitte e D. Dormont, op. cit., p. 355.
Angèle Hermitte e Dominique Dormont, em 1999, por Pierre-Marie Lledo em 200120,
assim como pelo relatório de inquérito senatorial de 2001. Ora, esta explicação foi
firmemente descartada pelo relatório Phillips, o inquérito mais bem documentado já
conduzido e cujos resultados estavam disponíveis a partir de outubro de 2000, após três
anos de investigações21. O relatório diz o seguinte:
As conclusões propostas pelo Sr. Wilesmith eram razoáveis,
considerando os dados de que ele dispunha naquela época, mas estavam
distantes da verdade. [parágrafo 189] (…) As mudanças nos procedimentos
de fabricação das farinhas puderam ter um efeito sobre a inativação do
agente da ESB, mas não foram nem decisivas, nem mesmo significativas.
[parágrafo 190] (…) As conclusões propostas pelo Sr. Wilesmith foram
amplamente aceitas. Levaram a concepções equivocadas, algumas das
quais sobreviveram até hoje [parágrafo 191].
Essas conclusões são indiscutíveis: os antigos procedimentos de
fabricação das farinhas teriam também difundido a ESB, no rebanho bovino, pois não
tinham propriedade de inativação dos príons significativamente e diversas dos novos
procedimentos majoritariamente utilizados. Tais conclusões invalidam toda e qualquer
ação que visa imputar aos donos de fábricas dessas farinhas a responsabilidade de terem
procedido a essas mudanças que teriam deslanchado a epidemia.
A atribuição aos agentes do passado de uma visão clara dos conhecimentos
aceitos que só será obtida posteriormente
Mais sutil é a imputação retrospectiva de uma visão clara e comumente
compartilhada dos conhecimentos que ainda estavam trilhando um caminho e que,
embora tenham sido objeto de publicação científica, não eram, de modo geral,
conhecidos e aceitos por todos os cientistas e, muito menos, pelos gestores. Depois de
20
Este último afirma, em seu capítulo de conclusão: “Esta epidemia foi claramente provocada, como se
sabe, por uma modificação imprudente dos modos de transformação dos restos de ovelhas em alimentos
assimiláveis pelos bovinos” (p.145).
21
Como comparação, a Comissão de Inquérito senatorial francesa teve, por razões estatutárias, que pôr fim
a sua missão em menos de seis meses.
tudo, a teoria do príon patológico pode parecer muito evidente e certa para a opinião
pública. Ela foi e ainda é objeto de severas controvérsias redobradas em razão de
conflitos pessoais muito difíceis e com conseqüências financeiras22. De fato, depois de
tudo ter passado, observações ou resultados, vindos de diferentes campos geográficos ou
temáticos, são considerados como se fizessem parte do mesmo contexto depois que certas
aproximações se revelaram como pertinentes em meio a outras tentativas menos
proveitosas. Assim, hoje, considera-se como evidente ligar uma espécie de tremedeira
∗
dos visons do Wisconsin à doença do kuru que atinge tribos de antropófagos da Nova
Guiné à ESB, que afeta o rebanho bovino do Reino Unido, e à doença de CreutzfeldtJakob. A evidência desta aproximação é o fruto da ilusão retrospectiva que cria o
desenvolvimento dos conhecimentos.
A releitura seletiva dos eventos e ações passadas a partir de seu desfecho histórico
Outra ilusão cognitiva resulta de uma releitura dos acontecimentos e ações
passadas a partir de seu ponto de desfecho histórico. Este procedimento lhes confere o
status do momento, num desenvolvimento singular cujo significado é dado por seu
desfecho. Obviamente, este significado não estava presente quando tais fatos ocorreram e
as ações começaram: no momento em que as coisas acontecem, a situação mergulha num
conjunto de virtualidades, das quais a maior parte permanece escondida, sem ser atraída
por um desfecho único. A releitura dos acontecimentos a partir dos temores da saúde
pública em relação à ESB molda o olhar retrospectivo quanto às decisões tecnológicas e
industriais tomadas no passado (utilização das farinhas animais para alimentar os
bovinos; extensão de práticas de reciclagem endógena para uma mesma espécie;
mudança dos procedimentos de fabricação, etc.). Neste caso, existe um princípio de
22
Em seu prefácio à obra de P.-M Lledo, op. Cit., D. Carleton Gajdusek, que recebeu o premio Nobel em
1976, por ter resolvido a doença do kuru na Nova Guiné e por suas descobertas sobre a transmissibilidade
dessas neuropatologias de uma espécie para outra, evoca “a amplidão dos conflitos, tanto no que concerne
às pessoas quanto no que concerne à política científica, que dominaram o campo das encefalopatologias
espongiformes transmissíveis. (…) não houve realmente controvérsias científicas em relação aos
resultados experimentais e suas interpretações (…) A história da pesquisa sobre a doença gira muito mais
em torno de ambições, créditos e ciúmes que em volta de observações e idéias.” E Gajdusek conclui : “
infelizmente, fui apenas testemunha da lenta deterioração das relações entre os especialistas da época e de
uma relativa cegueira frente à verdade histórica. Então, tudo acontece como se essa doença
neurodegenerativa, caracterizada por uma lenta, porém irreversível deterioração das faculdades mentais,
houvesse encontrado seu correlato nas sociedades científicas” (p. XVI).
Em francês, tremblante. No Brasil, esta doença denomina-se hipocalcemia, nos ovinos e febre vitular, nos
bovinos. (Nota da revisora).
∗
hierarquização da importância dos acontecimentos que não podia ocorrer na época,
mesmo numa cultura de decisão que teria tido toda sua importância para o princípio da
precaução. Na época, os gestores teriam de considerar ao mesmo tempo milhares de
outros riscos potenciais.
Assim, quando as técnicas de fabricação de farinhas foram modificadas, no início
dos anos 1980, na maioria das vezes em benefício do procedimento americano Anderson
Carver-Greenfield, foi para economizar produtos, como os solventes utilizados para
extrair as gorduras, caros demais depois dos dois choques do petróleo. Além da economia
dos produtos, outros fatores significativos para tal mudança foram os acidentes de
trabalho que ocorreram em decorrência da utilização desses solventes e o fato de as
medidas de segurança do trabalho terem sido reforçadas23; a eliminação desses solventes
suscitaria também problemas relativos à luta contra a poluição. Em outros termos, os
solventes eram portadores de diferentes riscos potenciais e a adoção de um procedimento
que os eliminava melhorava objetivamente a segurança de todos os trabalhadores e do
meio ambiente. Se o recurso ao princípio da precaução tivesse sido prioritariamente
direcionado para essa perspectiva, teria confirmado e acelerado o movimento de mudança
de procedimentos.
Eis a razão para examinar com atenção a idéia, defendida por MarieAngèle Hermitte e Dominique Dormont, segundo a qual uma avaliação científica mais
completa dessa mudança de procedimento teria permitido identificar o novo risco ligado
à ESB e evitar seu desenvolvimento:
Utilizando
matérias-primas
parcialmente
tiradas
de
animais doentes, teria sido necessário efetuar um balanço dos
riscos e das vantagens. Se isto tivesse sido feito, o conjunto dos
conhecimentos que acabam de ser descritos teria sido descoberto.
Seria possível calcular o fato de que, reciclando-se deste modo
animais atingidos pela tremedeira, a via oral poderia ser um
23
Esta indicação contradiz formalmente uma idéia, comum na França, segundo a qual o governo Thatcher
teria imposto um desrespeito geral às normas de segurança na fabricação das farinhas, o que seria a origem
da epidemia.
caminho eficaz de contaminação, de que os ATNC não estavam
desativados pelos novos procedimentos e de que, em certas
circunstâncias, uma doença a princípio limitada a uma espécie
poderia passar para outra.24
Tudo isto continua sendo muito hipotético e pede uma análise detalhada.
Teria sido plausível imaginar e levar em conta esse cenário? É preciso pensar na pior das
situações, de forma totalmente especulativa, construída a partir das hipóteses mais
desfavoráveis, em relação a cada um dos elementos citados (transmissão da tremedeira
dos ovinos para os bovinos, por via oral, por intermediário das farinhas; falha de
inativação dos agentes patológicos pelas técnicas; transmissão para o homem da
“tremedeira do bovino” por via oral) para dar consistência a um risco potencial junto à
saúde pública. Teria sido possível prever este cenário antes mesmo da identificação
empírica de uma nova patologia chamada ESB? Isto teria ido contra o fato de que a
tremedeira da ovelha era conhecida desde o século XVIII, que ovinos e bovinos com
essa doença coexistiam desde então sem nenhuma transmissão observada, que as farinhas
animais foram regularmente utilizadas para alimentação animal, no Reino Unido, desde
os anos 20 e que a tremedeira da ovelha não se transmite para o homem por via oral,
entretanto. Admitindo-se que tal cenário tenha sido imaginado, o que teria pedido uma
abordagem de precaução? Que seja colocado na balança, com outros cenários de riscos,
com suas infinitas vantagens excluídas, sob vários aspectos, no que diz respeito à
modernização da fabricação das farinhas. Mesmo num enfoque de precaução, não teria
tido razões válidas para concentrar-se no cenário indicado, indo contra uma aproximação
de prevenção de outros riscos, cujas conseqüências, em termos de saúde humana, eram
menos especulativas.
Tudo isto leva a duas conclusões que não impedem de aprovar a idéia
geral, proposta por Hermitte e Dormont, segundo a qual as mudanças técnicas dos
procedimentos de fabricação devem ser avaliadas sob o ponto de vista de seus impactos
sanitários e ambientais. Primeiramente, pode-se duvidar de que a adoção do princípio da
precaução, no início dos anos 1980, tenha razoavelmente levado os tomadores de decisão
24
M.-A Hermitte e D. Dormont, op. cit. , p.348.
da época a decidir exclusivamente enfocados sobre um cenário extremo, construído a
partir de hipóteses que não eram comprovadas por nenhum elemento empírico
proveniente do campo interessado, ou seja, o da pecuária e o da indústria agroalimentar,
que está a ele ligada. Se porventura o cenário científico indicado tivesse refletido a
realidade que iria confirmar-se, o princípio da precaução não teria impedido a propagação
da epidemia!
Todavia, o cenário indicado não é aquele que se delineou, ao contrário do
que se acreditava em 1998-1999. A avaliação científica da mudança de técnicas, feita no
início dos anos 1980, normalmente deveria ter levado a validar os novos procedimentos,
tendo em vista as vantagens criadas sob o ponto de vista do meio ambiente, das
economias de energia, do crescimento da segurança do trabalho e da diminuição dos
custos de produção ou deveria ter levado a conservar os antigos procedimentos. Em
ambos os casos, a epidemia de ESB se teria propagado e a abordagem de precaução,
fundamentada nesse cenário, teria sido inoperante e não a deteria. Para que tivesse sido
diferente, teria sido necessário ir além da delimitação do problema, circunscrito à escolha
dos procedimentos de fabricação das farinhas, e discutir outras opções, até o próprio fato
da utilização das farinhas animais. Ademais, teria sido necessário considerar outras
hipóteses de risco, além da possibilidade de transmissão da tremedeira da ovelha para os
bovinos.
Trata-se aqui da segunda importante asserção do relatório Phillips:
contrariamente às conclusões provisórias de M. Wilesmith, a origem da ESB não é
atribuível à contaminação oral dos bovinos pela tremedeira da ovelha. A origem exata é
certamente desconhecida, mas a nova doença provavelmente vem, segundo o relatório, de
uma mutação genética que se produziu num animal, no início dos anos 1970. Desde o
início, a ESB é uma doença típica da espécie bovina, o que não exclui que ela seja
transmissível para outras espécies. No entanto, a prática da reciclagem dos restos bovinos
na alimentação dos mesmos tem sido o principal fator de propagação da epidemia.
Continuaremos nosso exercício de prospecção retroativa, baseados nisto. No início dos
anos 1980, numa perspectiva de precaução, o eventual cálculo da hipótese de transmissão
da tremedeira da ovelha para os bovinos por via das farinhas poderia ter gerado várias
medidas de exclusão dos produtos ovinos, na fabricação das farinhas destinadas aos
bovinos. Essas medidas de precaução teriam, elas também, errado de alvo e não teriam
impedido a propagação da epidemia.
De um modo geral, o princípio da precaução não teria, com eficácia, detido nem o
cenário de propagação da epidemia, que foi definido por Hermitte e Dormont e do qual
pensam que poderia ter sido imaginado e calculado, no início dos anos 1980, nem o
cenário real de desenvolvimento dessa epidemia, cujas causas eram de fato diferentes.
Uma única ação teria sido totalmente eficiente: teria sido necessário tomar medidas tão
extremas e radicais quanto repentinas, consistindo em proibir totalmente as farinhas
animais, antes mesmo que a nova patologia tivesse sido descoberta e identificada. É o
paradoxo observado por Hermitte e Dormont:
o princípio da precaução implica, sempre que for possível,
uma ação ainda mais extensa que a força da incerteza, mesmo que
isto obrigue a afrouxá-la à medida que os resultados científicos o
permitirem – embora sem ilusões – nas crises que implicam fortes
inércias. A ação prematura é tardia, a epidemia já está correndo.
Todavia, ao agir com largueza, portanto, de forma custosa, quando
os indícios de desregramento ainda são muito frágeis, corre-se o
risco de ser mal interpretado por aqueles que terão de aplicar
estas medidas e que podem começar a resistir25.
Entende-se o interesse deste preceito “Agir de forma mais extensa que a
grandeza da incerteza”, pois ele é, do ponto de vista retrospectivo, o único que poderia ter
sido operante, atacando a raiz comum da classe de riscos sobre a qual a atenção se fixou.
No entanto, este preceito também sofre de ilusão retrospectiva: ex ante ele não teria de
ser aplicado somente às bases de riscos as quais se sabe ex post levaram a evoluções
nefastas e lastimáveis, mas também ao conjunto dos riscos potenciais para a saúde e o
meio ambiente ligado a uma tecnologia ou atividade. Seria preciso agir amplamente sobre
todas as bases de riscos virtuais, visto que não se sabe antecipadamente quais delas
25
M.-A Hermitte e D. Dormont, op. cit. , p.350.
poderiam concretizar-se. Afinal de contas, a palavra de ordem levaria à paralisia geral da
atividade ou tropeçaria, da forma mais prosaica, sobre impossíveis26 arbitragens de
“riscos contra riscos”. Em ambos os casos, a idéia de ação ampla deve ser contida,
limitada, relativizada por um princípio superior que é o princípio da proporcionalidade.
Mas ela perde, então, uma boa parte de seu interesse, que era de dar a segurança da
eliminação preventiva do risco.
Essas conclusões, um tanto devastadoras em relação à possibilidade que
uma política de precaução teria tido em impedir o desenvolvimento da ESB, são ligadas
às mais formais conclusões do relatório Phillips. É possível que sejam, por sua vez,
questionadas no futuro. Então, um novo quadro apareceria e modificaria ainda mais os
cenários que os responsáveis dos anos 1980 deveriam ter considerado, numa perspectiva
de precaução, para impedir o surgimento da ESB. De fato, uma reviravolta aparente na
questão da origem da ESB aconteceu na primavera de 2001, como conseqüência dos
trabalhos experimentais realizados sob a direção do professor Mattews. Eles provaram
que a tremedeira da ovelha era transmissível para os bovinos após injeção intracerebral
de tecidos cerebrais de ovelhas mortas, em decorrência da doença. Entretanto, esses
trabalhos não são suficientes para que as conclusões do relatório Phillips sejam colocadas
em dúvida, visto que a via de contaminação comprovada não é a da contaminação oral.
Ora, outros trabalhos sobre outras espécies, como o porco, revelaram a coexistência de
uma transmissibilidade da infecção por injeção direta no sistema nervoso e de uma
ausência de contaminação por via oral. Há de se esperar, então, os resultados das
tentativas de contaminação dos bovinos por via oral, antes de revisar mais uma vez a
compreensão que se pode ter da origem da doença. Tudo isto torna ainda mais necessária
a prudência com a qual estratégias de pesquisa retrospectiva de responsabilidades
pretendiam mobilizar o princípio da precaução, no intuito de caracterizar os erros
cometidos.
Os anacronismos ligados às mudanças de ponderação dos valores normativos e
ao jogo do sentimento de lástima
26
Impossíveis de se realizar numa cultura de eliminação do risco, não numa cultura de prevenção pensada
sobre os riscos coletivos, que aceita como referência um nível de risco aceitável, tendo em vista as
vantagens de toda e qualquer natureza fornecidas pelas atividades geradoras de risco.
A ilusão retrospectiva pode também afetar a estrutura normativa do julgamento. É
o que acontece com a projeção sobre o passado do estado presente das sensibilidades, de
preferência coletivas, e das normas sociais que não correspondiam aos equilíbrios que
prevaleciam na época das decisões examinadas. Ora, é legítimo que diferentes
preferências manifestem-se sob a forma de diferentes arbitragens: os responsáveis
públicos do ano de 1980 não precisavam determinar-se em função das preferências
coletivas e das inquietações da opinião pública que prevalece em 200027.
Então, o que se pode dizer sobre aquelas que teriam sido as “boas”
decisões de precaução, tendo em vista os equilíbrios normativos, os conhecimentos e
informações disponíveis no momento da consideração dessas decisões? É preciso aceitar
a idéia de que, sob o ponto de vista da precaução, decisões possam ser julgadas como
“boas”, embora se perceba mais tarde que contribuíram para uma evolução prejudicial
dos fatos, de tal modo que essas decisões possam levar posteriormente à lástima em
função do conhecimento ex post de suas conseqüências: num universo de incerteza, as
melhores arbitragens podem, no final das contas, levar a conseqüências prejudiciais que
se queria evitar, escolhendo outra decisão, se fosse possível saber por meio da ciência que
isto levaria a tal desfecho. Todavia, seria infantilidade transformar este sentimento de
lástima, que aparece à medida que uma história singular revela o que a decisão inicial
podia conter, o princípio de julgamento de decisões que tiveram de ser tomadas, num
contexto diferente. Isto porque tal princípio teria que englobar uma diversidade de
possibilidades. O princípio da precaução não pode ser entendido como a escolha da
lástima, no decorrer peculiar dos acontecimentos, como princípio de decisão, visto que,
precisamente ex ante, os responsáveis não poderiam ter evitado a ponderação de
inúmeras lástimas, reflexos de encadeamentos diversos e variados, julgados como
possíveis28.
27
Eu não quero dizer que os responsáveis de 1980 eram indiferentes aos interesses da população de 2000 e
do destino das gerações futuras. Entretanto, seus interesses só podiam ser levados em conta por meio da
mediação dos julgamentos e preferências provenientes do sistema de decisão e do governo atuando no
momento em que as decisões foram tomadas. A responsabilidade política se exerce diante dos cidadãos
“aqui e agora”.
28
Um dos critérios-padrão identificado pela teoria da decisão frente à incerteza é aquele do minimax regret
: escolher a decisão que, diante das conseqüências possíveis, permitiria tornar mínima a lástima de tê-la
escolhido, em vez de outra, se o pior dos resultados potencialmente ligado a esta decisão viesse a realizarse. Este critério, inventado pelo estatístico L. Savage em 1951, é muito sensível à descrição exaustiva das
Há que, a partir desse ponto de vista, interrogar-se quanto à estratégia
escolhida pela Comissão de Inquérito senatorial sobre as condições de utilização das
farinhas animais, na alimentação dos animais, em 2001. A Comissão estava totalmente
consciente dos riscos de ilusão retrospectiva, visto que escreveu: “julgar as decisões
tomadas no passado de acordo com as certezas científicas do momento presente é uma
exercício particularmente difícil (…) Também a Comissão de Inquérito não deseja
posicionar-se como censora do passado”29. Isto não foi suficiente para impedir que a tal
Comissão agenciasse uma releitura da ação pública passada a partir de um julgamento
normativo ex post, dando suporte à posição adotada pelo Presidente de República, no
outono de 2000, e colocada como evidência política: as farinhas animais deviam ser
totalmente proibidas para a alimentação de todas as espécies de animais. Como esta
decisão pareceu ser boa para a mais alta autoridade do Estado, em 2000, será que ela era
boa antes e deveria ter sido tomada de maneira antecipada! Esta é uma das linhas
diretivas deste relatório, junto com a denúncia da pérfída Inglaterra, da inércia culposa
das autoridades de Bruxelas e do comportamento muito pouco europeu de vários Estadosmembros que se opuseram, até outubro de 2000, às medidas de segurança mais
importantes, como a retirada completa dos materiais de riscos específicos.
Assim, o relatório começa seu processo das farinhas animais afirmando,
após uma análise sumária, “no plano nutricional, o uso das farinhas animais na
alimentação dos ruminantes não era justificado”30, pois existiam substitutos de origem
vegetal. Estranha concepção da justificação. As diversas opiniões de peritos convergem
para o fato de as vacas leiteiras precisarem de complementos protéicos para atingirem os
rendimentos para os quais foram selecionadas e, além de qualquer consideração sobre a
ESB, as proteínas animais serem de melhor qualidade ( de equilíbrio mais fácil na
composição dos aminoácidos, de digestão mais fácil e mais ricas, entre outras coisas, em
fósforo) e de baixo custo. O fato de que as tortas oleaginosas ou de proteínas possam
também ser utilizadas (importadas, tratando-se da soja) não basta em si para anular a
ações possíveis e às conseqüências que podem ter : retirar uma ação dominada, em toda e qualquer
circunstância, pode modificar a classificação relativa das outras ações. Ora, o exaurimento da descrição é
uma condição difícil de satisfazer em circunstâncias onde a incerteza científica pesa sobre inúmeros
aspectos dos problemas estudados.
29
Comissão de Inquérito do Senado, op. cit., p.131.
30
Comissão de Inquérito do Senado, op. cit., p.49.
justificação do uso das farinhas animais, na alimentação animal, inclusive no caso dos
ruminantes, uma vez que tal prática remonta ao início do século XX. Além do mais, é
preciso contar com elementos próprios ao contexto histórico recente no âmbito das
relações entre os Estados Unidos e a Europa. Conforme Daniel Sauvant:
No momento do embargo das exportações de soja pelos
Estados Unidos, em 1973, a Europa tomou consciência da fragilidade de
suas estruturas pecuaristas e decidiu criar uma política que visasse à
redução de sua dependência protéica. Em inúmeros relatórios publicados
naquela época, a produção das farinhas animais era considerada como
uma das principais formas de melhorar essa autonomia31.
Mais adiante, o relatório do Senado julga a abordagem da Comissão como
sendo “minimalista”, porque a proibição comunitária em relação às farinhas, decidida em
2000, era apenas temporária – ora, ao contrário, isto pode ser visto como uma decisão em
conformidade total com o espírito do princípio da precaução – e também porque a
Comissão faz questão de relembrar, em seus documentos, que uma proibição permanente
aplicável para outras espécies além dos ruminantes (porcos, aves, peixes) seria
“cientificamente injustificada”, pois essas espécies não são sensíveis à ESB. Diante disso,
um dos argumentos curiosamente usado pelos senadores é o seguinte: “os cidadãos não
entenderiam, por causa da imagem muito negativa das farinhas animais, na opinião
pública, que se autorize novamente seu uso. Isto não contribuiria para tranqüilizar o
consumidor”32! Assim, uma decisão política de suma importância, como a da proibição
total das farinhas animais, até então apresentada como inscrita nas necessidades da saúde
pública, teria somente como justificativa o desejo de tranqüilizar o consumidor,
espelhando-se nas imagens negativas ou positivas que teria criado? O reinado da
precaução razoável seria apenas o quebra-vento do reinado da opinião?33
31
D. Sauvant, “ Les pratiques de l’alimentation animale au ban de la société », Le courrier de
l’environnement de l’INRA, n. 42, fevereiro de 2001, p.72.
32
Comissão de Inquérito do Senado, op. cit., p. 130.
33
Preocupei-me em identificar os principais regimes políticos da precaução para caracterizar seus traços
essenciais, girando em torno das categorias do Príncipe esclarecido, do reino da opinião, do governo dos
profetas e do regime da deliberação. Apenas este último parece-me dar uma base satisfatória para o
princípio da precaução, como vetor da gestão dos riscos coletivos potenciais. Ver O. Godard, “Le principe
Mais adiante, os relatores interrogam-se quanto ao calendário das decisões
francesas “sobre as razões que levaram a esperar quase quatro anos para proibir
totalmente o uso de farinhas animais, na alimentação animal, enquanto o risco de
contaminação entre espécies era conhecido, identificado, averiguado”34, como se o
reconhecimento de um risco de funcionamento imperfeito de uma decisão regulamentar
devesse, sozinho, deslanchar uma estratégia de erradicação, sem passar por uma análise
do próprio risco sanitário ou por uma avaliação das implicações práticas de uma
proibição total35! E a Comissão de Inquérito revelou seus sentimentos e seu andamento
teórico: “A Comissão de Inquérito faz questão de insistir sobre o fato de vários ‘agentes’,
e dos mais importantes, terem exagerado as conseqüências e a proibição de farinhas
animais e de terem contribuído para o atraso de uma decisão inelutável36
37
. Para que
ninguém duvide da necessidade da medida em 2000, não há nada melhor do que
apresentá-la como inelutável desde 1989 e analisar as medidas tomadas como atrasos em
relação a sua instalação, enquanto o relatório da Comissão de Inquérito da Assembléia
Nacional, sobre a transparência e a segurança sanitária do ramo alimentício na França38,
publicado em março de 2000, tinha a opinião de que a proibição total das farinhas teria
mais desvantagens que vantagens.
Esta forma de raciocinar e de qualificar ações e atitudes torna os
responsáveis por decisões culpados presumíveis, não importa o que se diga, isto porque
não tomaram a medida de proibição mais cedo. Ora, o argumento pode ser contestado de
duas maneiras: (a) a justificativa da medida em 2000 para a França, país em que a
de précaution, une nouvelle logique de l’action entre science et démocratie”, Philosophie politique, ‘Le
risque’, n. 11, PUF, 2000, p. 17-56, e O. Godard, op. cit., RJE, 2001.
34
Comissão de Inquérito do Senado, op. cit., p. 143.
35
Se as farinhas animais comercializadas são confiáveis, o fato de haver ligeiras contaminações cruzadas
entre farinhas destinadas para os ruminantes e outras destinadas a outros animais não é em si um fator de
risco sanitário. Desde 1996, os materiais de riscos especificados e os restos duvidosos são retirados da
fabricação das farinhas; desde 1998, a França transpôs a diretiva européia de harmonização das condições
de tratamento térmico aplicável à fabricação das farinhas para melhorar a segurança : tratamento a 133 C e
3 bars durante 20 minutos, ou qualquer tratamento equivalente. Isto dá duas proteções, o que racionalmente
deve ser levado em conta quanto aos efeitos sobre os riscos decorrentes das farinhas : não se trata mais das
mesmas farinhas de 1989, quando importadores franceses multiplicaram suas importações de farinhas
britânicas que podiam estar contaminadas, mas de um produto de uso exclusivo dos não-ruminantes,
insensíveis à ESB.
36
Sublinhado pelo autor.
37
Comissão de Inquérito do Senado, op. cit., p. 143.
38
Relatório n 2297, março de 2000, p. 101-102.
prevalência da ESB no rebanho está muito mais fraca que no Reino Unido39, não foi
estabelecida pela Comissão senatorial que a vê como evidência; como decorrência do
conjunto das medidas de precaução já tomadas, esta decisão chegou no momento em que
a medida era a menos justificada, no período começado em 1985, visto que essas farinhas
atingiram um grau de segurança nunca alcançado; cria também custos e riscos novos,
obrigando ao mesmo tempo a recorrer, de forma improvisada, a novas soluções de
transporte, armazenamento e destruição de quantidades maciças de farinhas e a substituir
as proteínas animais por outros aportes; (b) o fato desta decisão ser boa ou não, em 2000,
não quer dizer que tinha a mesma qualidade há cinco, dez ou quinze anos.
Julgar ações passadas com base num a priori normativo, mas não
discutido e colocado no momento do desfecho histórico, é ainda menos defensável, no
caso específico em que os senadores tornam sua a estimativa apresentada como a mais
pessimista quanto ao risco sanitário para a França, de 300 casos de doentes portadores da
nova variação da doença de Creutzfeldt-Jakob, nos próximos 60 anos. Nesse período,
quase 40 milhões de franceses terão morrido por diferentes causas, inclusive naturais.
Seria melhor dizer que não se trata de um verdadeiro problema de saúde pública! O que
aconteceu, então, com a idéia de proporcionalidade ?40
O episódio da permanência do embargo francês sobre o boi britânico, no outono de 1999
39
A prevalência média conhecida no rebanho francês era, em 1999, trezentas vezes inferior àquela do
rebanho britânico. Atenção: este número não reflete a incidência relativa do risco para os consumidores,
pois estes dependem sobretudo do conjunto das medidas tomadas para garantir a segurança da carne
(retirada dos materiais de riscos especificados, retirada dos animais de mais de trinta meses, etc.). Eis a
razão pela qual, apesar desta diferença, o Reino Unido estava, em 1999, em condições de apresentar para a
exportação uma carne com um risco “na pior das hipóteses comparável” aos produtos bovinos consumidos
em outros países europeus, como a Alemanha, a Espanha ou a Itália, que não haviam tomado as mesmas
medidas ou, até mesmo, em certos casos, nenhuma medida.
40
O professor Claude Got, especialista em saúde pública, comentava nos seguintes termos o episódio da
crise de desconfiança do outono de 2000 : “No país onde a esperança de vida é uma das mais altas do
mundo, a loucura das vacas e dos homens leva ao regresso de nossa capacidade de gerência dos riscos.
Neste tipo de crise de segurança sanitária, um déficit antigo nas decisões (bloqueio tardio da importação
de carnes e de farinhas inglesas), não pode ser recuperado, pois, como no caso do amianto, os futuros
doentes já estão, em sua maioria, sofrendo. Os responsáveis perderam uma batalha e estão tentados a
adotar novas decisões para recuperar sua credibilidade (…). Na gestão do risco local, é preciso ter
prudência, mas conservar uma racionalidade mínima na relação entre os custos e a eficácia. O último
encontro interministerial relacionado à segurança rodoviária anunciou recursos suplementares de
algumas centenas de milhões, destinados ao equipamento da policia civil e militar. Se são destinados entre
12 e 18 bilhões para a retirada das vacas da cadeia alimentar, é preciso que eu mude de profissão. De um
lado, a primeira causa de mortalidade entre os jovens, milhares de famílias na tristeza a cada ano e um
sistema de controle-sanção que está indo à falência por falta de recursos; por outro, um risco frágil para o
qual se destinam bilhões!”, Libération, 15 de novembro de 2000.
Freqüentemente, prevalece a idéia de que as autoridades francesas aplicaram, de
forma exemplar, o princípio da precaução quando resolveram, no outono de 1999, manter
o embargo sobre o boi britânico, que fora decidido no dia 27 de março de 1996, após o
anúncio da transmissibilidade da doença para o homem. Aplicando uma decisão do
Conselho dos Ministros Europeus sobre as condições do fim do embargo, a Comissão
Européia pedira aos membros, em julho de 1999, que pusessem fim ao embargo a partir
do dia 1º de agosto, considerando que a última versão do plano inglês (Date-based Export
Scheme) satisfazia, em seu princípio assim como na prática, as condições postas.
A reforma da perícia em matéria sanitária, adotada pela França em 1998,
com a criação da AFSSA, na primavera de 1999, obrigava o governo a seguir um
procedimento, solicitando uma opinião pública para essa agência, o que foi feito. O
diretor da agência dirigiu-se ao Comitê Interministerial sobre os ESST, presidido por
Dominique Dormont, que estava funcionando desde 1996, para realizar a perícia
científica que iria esclarecer a opinião com relação ao projeto de decreto que autorizava a
retomada das importações.
Esse comitê expôs diferentes hipóteses e conjecturas (ver mais adiante)
que não foram formalmente descartadas sob o ponto de vista científico, mas que não
eram fortalecidas por elementos empíricos precisos e dos quais o grupo não propunha
avaliação quantificada. Concluía, considerando que o risco de que a carne importada da
Grã-Bretanha viesse de um animal portador da ESB não parecia “totalmente dominado”.
Diante dessa apreciação, o diretor da AFSSA emitia, no dia 30 de
setembro de 1999, uma opinião negativa em relação ao fim do embargo. O governo
seguia essa opinião, recusando-se a obtemperar a decisão comunitária, provocando uma
crise política tanto com as autoridades britânicas quanto com as autoridades comunitárias.
Com efeito, as regras referentes à circulação dos animais vivos e da carne no território da
União, tendo sido objeto de uma harmonização européia, era da competência exclusiva da
Comissão tomar medidas de restrição. A priori, a França não tinha o direito de tomar
medidas unilaterais. Entretanto, uma negociação começou entre as três partes. Nas
semanas que se seguiram, as garantias suplementares propostas pelo governo britânico
foram objeto de uma segunda decisão da AFSSA, no dia 6 de dezembro, que permanecia
reservada, e o embargo foi mantido. A Comissão entrou com uma ação contra a França,
na Corte de Justiça Européia, em janeiro de 2000…
Estava-se diante de uma atitude exemplar de responsabilidade e de firmeza
da parte das autoridades francesas, no que diz respeito à precaução? Talvez fosse difícil
para o governo reagir de outra forma, a partir do momento em que a nova AFSSA tomara
uma decisão negativa, a despeito da reafirmação ulterior da doutrina segundo a qual a
opinião dos peritos não implicava as autoridades gestoras e era preciso separar muito bem
as responsabilidades da avaliação do risco e de sua gestão. Entretanto, essa solução
involuntariamente preparou as condições da crise de desconfiança, no mercado da carne
bovina, no outono de 2000, apresentando a ameaça ligada à ESB como sendo externa ao
país (o boi britânico estando nas fronteiras francesas desde o outono de 1999), enquanto a
doença já era interna há mais de dez anos, certamente em proporções muito mais
modestas que no Reino Unido. Isto é mais uma razão para se considerar a maneira como
as coisas ocorreram, no campo da perícia.
Nesse campo, tudo aconteceu para que a decisão a ser tomada pelo
governo41 ficasse mais clara. Foi o que mostrou a divergência que se manifestou entre o
grupo francês e o Comitê Científico Diretor Europeu (CSD). Para não responder às
perguntas precisas das autoridades francesas, os peritos consultados pela AFSSA
escolheram, de fato, responder à seguinte pergunta: existia um risco residual ligado ao
consumo de boi britânico ? A resposta foi afirmativa. Mas o risco ligado à ESB não era
totalmente controlado nem na França, nem nos outros países da Europa, como cada um
sabia e como disse o CDS, em outubro de 1999, que julgou que o risco ligado à carne
britânica seria “o pior comparável” àquele que prevalecia nos diferentes países europeus,
caso o plano inglês fosse perfeitamente aplicado.
De fato, mesmo se fosse mais fácil de tratar, a questão examinada pelos
peritos franceses não era a mais indicada, tendo em vista o problema de decisão. Para dar
uma opinião que ajudasse as autoridades públicas, esses peritos deveriam ter considerado
41
Propus uma análise completa em: “Embargo or not embargo?”, La Recherche, n. 339, fevereiro de 2001,
p.50-55.
outra questão: o nível de risco relacionado ao consumo de boi britânico, colocado no
mercado de exportação, era significativamente diverso daquele resultante do consumo de
produtos bovinos, na França? Se o risco tivesse sido julgado comparável, a permanência
do embargo não podia mais ser justificada sob o ponto de vista da segurança alimentar.
Então, o princípio da precaução não teria passado de um álibi.
Além disso, a divergência não deixa de ser instrutiva quanto às
dificuldades da perícia, num contexto de incerteza, e quanto aos papéis assumidos por
tais comitês. Os peritos franceses deram sua opinião sob a forma de um conjunto de
argumentos relativos a hipóteses que não podiam ser descartadas, pois não tinham sido
invalidadas por trabalhos científicos. Essas hipóteses diziam respeito à epidemiologia da
doença:
-
a possibilidade de encontrar príons infecciosos em outros tecidos além
dos tecidos nervosos e glândulas linfáticas dos animais não estava
descartada; a localização da infecção no organismo continuava
bastante desconhecida “para que as medidas adotadas pudessem ser
consideradas a priori como totalmente eficazes”;
-
a transmissão da infecção poderia tomar rumos diferentes das duas
formas que haviam sido identificadas; as farinhas contaminadas de
origem animal e transmissão da vaca para o bezerro; uma diminuição
mais lenta da epidemia no Reino Unido, em 1997-1998, poderia ser o
indício da presença de uma terceira forma;
-
a ausência de casos entre os bezerros recentemente nascidos, após
dezembro de 1995, não significava que alguns deles não estivessem
infestados, pois o prazo admitido de incubação média era de 54 a 60
meses. Ora, o plano de controle britânico negociado com a Comissão
Européia só autorizava a exportação de animais com mais de 30 meses.
O fato destes não estarem doentes podia ser explicado pelo fato de
estarem sadios, mas estarem em período de incubação, sem que sua
infecciosidade latente estivesse se manifestando.
-
enfim,
a
confiabilidade
do
sistema
de
identificação
e
de
acompanhamento no Reino Unido não fora demonstrado; este
acompanhamento seria particularmente impraticável para produtos
derivados da carne bovina, o que devia provocar a exclusão desses
produtos do regime de exportação.
O CSD adotou uma postura inversa quanto à maneira de argumentar sobre os
riscos:
-
a eventual presença não confirmada de príons no caso dos bovinos,
numa pequena proporção, em outros tecidos além daqueles
identificados até então, não seria um elemento suficiente para concluir
sua infecciosidade (problema da dose mínima); apesar de inúmeras
experiências, jamais foi possível comprovar experimentalmente que
tecidos musculares provenientes de animais doentes pudessem
contaminar;
-
uma terceira via de contaminação não podia ser descartada a priori,
mas a hipótese de sua existência, tratando-se dos bovinos, não se
baseava sobre nenhum elemento empírico disponível; mesmo que
fosse confirmada, só poderia ter uma incidência pouco significativa,
tendo em vista a estimativa razoável da diminuição da epidemia,
obtida por modelos de previsões, baseados nas duas formas admitidas
(farinhas contaminadas e transmissão materna);
-
a diminuição da epidemia ocorria certamente, de acordo com o valor
máximo dos modelos de previsão utilizados, mas não estava fora dos
limites; portanto, um questionamento dos modelos de previsão não se
justificava;
-
considerando o risco apresentado pelas farinhas animais contaminadas
sendo regulado de forma segura pelas medidas de proibição total do
uso destas farinhas, decidida em março de 1996, para os ruminantes
assim como para outros animais (porcos, aves, peixes), o estudo
epidemiológico de risco máximo por eventual transmissão da vaca
para o bezerro fazia aparecer, para um volume anual previsto de 75
000 unidades exportadas, um risco máximo de 1,3 animal em
incubação indo para o matadouro, em vias de exportação; mesmo neste
caso, esses animais seriam submetidos às medidas de proteção no
momento de seu corte (separação dos materiais de riscos especificados,
etc.);
-
a organização dos controles e do acompanhamento não era uma
questão científica, mas tinha a ver com a gestão dos riscos; desta
forma, esta questão não era da competência do Comitê.
Em conclusão, fora a discussão sobre a avaliação estatística da evolução da
epidemia no Reino Unido que, depois, se teria esgotado no âmbito do Grupo ad hoc
Europeu sobre a ESB, do qual participava o presidente do Comitê Francês, não existiam
divergências científicas significativas quanto à apreciação do estado dos conhecimentos e
dos fatos epidemiológicos. As diferenças eram de outra natureza e encontravam-se num
campo que poderia ser denominado como normativo: os pontos de vista adotados, tanto
de um lado como do outro, sobre as hipóteses e as incertezas eram opostos; além do mais,
o trabalho dos peritos e a forma de argumentação foram estruturados por questões que
não eram as mesmas.
O Comitê Francês apegou-se às incertezas residuais e hipóteses ainda não
invalidadas, enquanto o Comitê Europeu se recusou a dar um crédito prático a
hipóteses que não podiam apoiar-se sobre um esquema teórico admitido, em se
tratando do modo de contaminação, nem sobre elementos científicos de natureza
experimental ou estatística. Este debate indireto em relação às provas a serem
reunidas (é preciso tratar como averiguadas todas as hipóteses que ainda não foram
invalidadas por um trabalho científico, ou é preciso reter apenas aquelas cuja
plausibilidade – e não validade – é suficientemente amparada por trabalhos
científicos? Como determinar uma graduação dentro da plausibilidade?) não pode
ser, evidentemente, decidido apenas num único plano científico. Isto tem a ver com
uma orientação especificamente normativa que, em seu princípio, releva uma
responsabilidade política.
Os peritos do CSD explicaram seu método de abordagem: de acordo com a
demanda da Comissão, analisaram os riscos a partir de uma hipótese de aplicação
“meticulosa” do plano definido pelo governo britânico para garantir a qualidade da carne
exportada. Foi em função dessa hipótese que o Comitê concluiu que o risco sanitário
ligado às exportações de boi britânico era “no pior dos casos, comparável àquele dos
outros países europeus”. Então, o CSD resolveu avaliar o risco assintomático42, aquele
que está associado à aplicação sem falhas de um plano de ação determinado, o que não
lhe permitiria pronunciar-se quanto aos níveis de riscos ligados às diferentes hipóteses em
vigor para a realização do plano. Ao contrário, os peritos franceses estavam muito
sensibilizados com as condições reais de realização do plano britânico e com a possível
incidência de negligências, falhas e fraudes variadas nos níveis de riscos, sem dispor,
entretanto, de meios de investigação a respeito das questões. A estratégia do CSD era
coerente, ajustando o modo de raciocínio escolhido de acordo com as competências
reunidas, mas precisava ser completada por outra perícia, implicando outros tipos de
peritos, para que fossem entendidos os níveis de risco associados a diferentes tipos de
eventuais falhas práticas do plano de ação. A postura do Comitê Francês era justificada
pela natureza do problema submetido pelas autoridades francesas (a aprovação ou
desaprovação de uma medida regulamentar do fim do embargo), mas era deslocada em
relação à natureza das competências e das informações reunidas pelo Comitê.
Enfim, a perícia prestada pelos dois Comitês não pretendia responder às mesmas
perguntas. A Comissão Européia fizera três perguntas ao CSD: (1) Havia novos
elementos científicos entre os elementos fornecidos pela AFSSA? (2) Esses eventuais
elementos novos eram válidos a ponto de levar ao requerimento de reexame das decisões
anteriores do CSD? (3) O CSD podia confirmar o caráter satisfatório das condições
formuladas no plano de exportação inglês, a respeito da segurança da carne, se tais
condições eram respeitadas? Acionado apenas para um projeto de decisão, o Comitê
42
A expressão é de B. Chevassus-au-Louis, presidente da AFSSA, “L’analyse du risque alimentaire : quels
príncipes, quels modèles, quelles organisations pour demain?”, Conferência da OCDE sobre a segurança
alimentar dos alimentos provenientes de OMG, Edimburgo, 28 de fevereiro a 1º de março de 2000.
Francês respondeu à seguinte pergunta: existe um risco residual associado à importação
da carne britânica? E respondeu afirmativamente, considerando que o risco “não estava
totalmente dominado”.
Primeira conclusão: as conseqüências práticas provenientes das duas opiniões de
peritos e usadas pelas respectivas autoridades foram, com certeza, totalmente opostas;
entretanto, apesar da história de um importante conflito entre peritos, foi a ausência de
contradição formal entre suas respectivas conclusões que espantou o observador: sim, o
risco associado à carne britânica colocada para exportação não era nulo, mas era
comparável àquele dos outros países europeus!
Se não era a ciência que separava os dois Comitês e as duas decisões, européia e
francesa, seria o princípio da precaução? Os franceses o teriam considerado, ao contrário
dos britânicos e da Comissão? Esta questão teria a vantagem de ser simples, porém é
equivocada. A opinião desfavorável dada pela AFSSA podia, com todo o direito, valer-se
do princípio da precaução, visto que o risco residual não aparecia para os peritos, nem
nulo, nem totalmente dominado. Todavia, a Comissão Européia estava em seu direito de
estimar como suficientes as medidas de precaução tomadas, pois o risco residual de
entrada de carne contaminada na cadeia alimentar (1,3 casos por ano para as exportações
para a França), para uma carne cujo caráter contaminador jamais pôde ser demonstrado,
parecia-lhe tão frágil que deveria poder ser aceito. Ora, o princípio da precaução não
poderia ser confundido com a chegada ao risco zero, visto que ele pede “medidas
proporcionais para um custo econômico aceitável”.
Apesar de tudo, o princípio da precaução pode aclarar a maneira de exercer a
perícia? Em seu relatório para o Primeiro Ministro a respeito deste princípio, Philippe
Kourilsky e Geneviève Viney43 sublinharam a necessidade de graduar as respostas de
precaução em função do grau de consistência científica das hipóteses sobre o risco. A
idéia-chave a seus olhos é a plausibilidade científica e eles definiram suas condições: a
simples suspeita não pode ser suficiente para deslanchar a prevenção; somente as
hipóteses plausíveis que resultam de um método científico amplamente aceito podem
43
P. Kourilsky e G. Viney, op. cit., p. 41-43 e 61-63.
legitimamente ser consideradas para definir o que são os riscos potenciais. Entre estes
últimos, seria preciso ainda distinguir os riscos potenciais plausíveis e os riscos
potenciais sustentados, cuja plausibilidade se apóia na experiência. De maneira geral, os
primeiros deveriam levar para ações de pesquisa enquanto os segundos deveriam ser
resolvidos por medidas de precaução que visam a produtos ou técnicas. A validade geral
deste critério da prova experimental pode ser obviamente colocada em dúvida, como
sugere, por exemplo, o caso de risco climático planetário ligado ao aumento do efeito
estufa, tendo em vista a considerável inércia dos fenômenos em jogo, tanto do lado do
sistema climático quanto do lado dos determinantes tecnológicos e econômicos das
emissões de gases causadores do efeito estufa44. Todavia, a idéia de uma plausibilidade
amparada permanece como uma referência essencial.
Sobre este critério de plausibilidade, os dois Comitês adotaram atitudes muito
diferentes. O CSD permaneceu ligado às recomendações do relatório Kourilsky-Viney
enquanto o Comitê Francês se afastou sensivelmente dele quando pediu às autoridades
para que tomassem medidas draconianas (a proibição), tendo em vista as suspeitas
especulativas de infecciosidade que não estão amparadas por resultados experimentais.
Segunda conclusão: o princípio da precaução não permite decidir entre as duas
decisões (retomada das importações ou manutenção do embargo), nem a prática dos dois
Comitês, visto que a linha divisória se estabelece entre duas maneiras de conceber as
exigências desse princípio. Daí a interrogação final: era da competência de peritos
científicos escolher uma ou outra dessas interpretações e decidir indiretamente sobre o
nível de risco que a coletividade quer assumir? Com certeza, compete a esses Comitês de
peritos implementar o tipo de graduação desejada pelo relatório Kourilsky-Viney, afim de
qualificar a plausibilidade das hipóteses, mas a própria definição dos pontos de referência
dessa graduação e a determinação dos tipos de decisões que podem corresponder-lhes
(vigília científica, programas de pesquisa, programas de vigilância e de retorno de
experiência, informação dos profissionais, informação para o público, instrumentos
44
Ver O.Godard, “ Les enjeux économiques des politiques de prévention du risque climatique », Revista La
Météorologie, 8 serie, n. 24, dezembro de 1998, p. 54-66.
incitativos, restrições de praxe, suspensões de autorizações, proibições ou renúncias
definitivas) têm uma dimensão normativa que não lhes compete decidir.
A responsabilidade política, no desencadear do princípio da precaução, não
termina no julgamento sobre a natureza das medidas a serem tomadas. Ela se estende à
forma de qualificação dos diferentes estados de conhecimentos suscetíveis de justificar a
adoção de um ou outro tipo de medida de precaução. Por exemplo, seria conveniente dar
conseqüências práticas mais extremas (a proibição de atividades ou de técnicas) para
hipóteses de perigo não invalidadas, porém não confirmadas, ainda que sustentadas não
sobre uma compreensão teórica precisa, nem sobre um modelo, nem sobre elementos
empíricos ou experimentais? Hoje, olhando os conhecimentos disponíveis e as incertezas
científicas disponíveis, seria preciso proibir totalmente os telefones celulares,
regulamentar os lugares admissíveis de implantação para as antenas necessárias a uma
boa cobertura do território em relação a esse serviço, ou somente financiar programas de
pesquisa e vigilância sanitária? Obviamente, para elaborar tal análise, os políticos
precisam estabelecer um estreito diálogo com os cientistas e precisam apoiar-se sobre a
participação de peritos especialistas em disciplinas com orientação normativa (ciências
morais, ciências econômicas, ciências jurídicas e políticas). Mas a definição de tal
controle e o estabelecimento de escalas de correspondência entre diferentes estados dos
saberes e diferentes modos de ação têm realmente a ver com uma responsabilidade
política, no sentido reivindicado pela resolução do Conselho Europeu de Nice.
5. Conclusão: uma tradução jurídica em questão
De forma unânime, os comentaristas da matéria jurídica sublinharam a
importância da jurisprudência da Corte de Justiça Européia, estendendo o campo de
aplicação do princípio da precaução para a saúde pública. A resolução de maio de 1998,
suscitada pelo conflito intracomunitário sobre a justificativa do embargo sobre o boi
britânico, decretado pela Comissão, em março de 1996, deveria “acabar de vez com a
discussão sobre a ausência de caráter jurídico do princípio, no direito europeu”45: o
princípio pode ser de aplicação direta e pôr legitimamente em xeque, por exemplo, o
45
M.-A Hermitte e D. Dormont, op. cit., p. 343.
princípio da liberdade de circulação das mercadorias. Todavia, resta determinar quem
pode aproveitar-se disso legitimamente. Na Europa, quais são as autoridades habilitadas
para tomar medidas de precaução? Quais são as instituições politicamente legitimadas
para aplicar um regime de precaução e proceder às arbitragens normativas, cujas várias
faces acabam de ser destacadas? O conflito do outono de 1999, que concerne à
manutenção do embargo pela França, não foi arbitrado pela Corte de Justiça Européia e
esta não pode, então, responder às perguntas.
É significativo que a resolução do Conselho Europeu de Nice tenha atribuído a
responsabilidade do início da aplicação do princípio da precaução ao mesmo tempo à
Comunidade Européia e Estados-membros (ponto 2) e reivindica o direito, tanto destes
quanto daquela, em estabelecer o nível de proteção que estimam como apropriado no
quadro da gestão do risco (ponto 5). É melhor dizer que as possibilidades de conflito
entre as iniciativas dos Estados e as da Comissão Européia não foram resumidas por este
texto. Aliás, haveria alguma incoerência para a Comissão em defender, diante das
instâncias internacionais, como a OMC, o direito soberano das comunidades políticas de
escolher o nível de proteção que desejam e contestá-lo aos Estados-membros da União
Européia. Então, é preciso esperar, na Europa, um regime misto de precaução,
combinando procedimentos e gestões comunitárias assim como procedimentos e gestões
nacionais, sem um contexto uniforme de implantação.
O problema colocado atinge os liames entre precaução e soberania política. O
paradoxo do período vem do fato de serem instituições que não se encontram no topo da
hierarquia da legitimidade democrática. Tais instituições querem delimitar, até mesmo
contestar, o direito daquelas que ocupam o topo dessa hierarquia, isto é, os governos dos
Estados nacionais, que tomam as medidas que estimam necessárias para assegurar o nível
de proteção para suas populações. Este controle do “pequeno” sobre o “grande”, na
ordem da legitimidade, causa um abalo para o qual, logicamente, só se podem encontrar
duas saídas: (a) elevar o grau democrático das instâncias que pretendem exercer uma
regulação e um controle sobre as decisões dos Estados soberanos; (b) reconhecer o direito
soberano desses Estados, no que diz respeito à gestão dos riscos coletivos, organizando-o
de forma a evitar desvios manifestos de seu objeto e submetendo-o a regras mínimas
comumente aceitas quanto aos procedimentos a serem seguidos para atestar a seriedade
das solicitações, particularmente em matéria de perícia dos riscos. Enquanto a opção (a)
não progredir o suficiente, é a opção (b) que se impõe.
Tratava-se, ainda, nestas observações, de apreciar somente os poderes de
precaução de diferentes instituições políticas nacionais ou supranacionais. Como ficam as
obrigações que incumbem a estas instituições? A resolução da Corte Européia, de maio
de 1998, tem uma forma viável: afirma que as instituições podem tomar medidas (…);
não disse nada além e, sobretudo, que as instituições devem tomar medidas de proteção
identificadas com precisão. Entretanto, uma indicação geral é fornecida pela consideração
K da Resolução de Nice, reforçando as formulações dos Tratados de Maastricht e de
Amsterdã: “As autoridades públicas têm a responsabilidade de assegurar um alto nível
de proteção da saúde e do meio ambiente”. Todavia, esta obrigação geral de proteção é
traduzida nesta Resolução por obrigação de procedimentos: dotar-se de um quadro de
pesquisa; organizar a avaliação do risco; considerar um leque de medidas; apreciar
politicamente as medidas a serem tomadas, e outros procedimentos.
Neste pano de fundo, alguns comentaristas46 acreditam discernir na jurisprudência
comunitária uma evolução suplementar: de agora em diante, o princípio da precaução
seria uma regra jurídica de aplicação direta e geral, tanto para as pessoas físicas quanto
para as pessoas jurídicas, na totalidade do território europeu. Entendem por isto que o
princípio da precaução seria gerador de obrigações novas para todas as pessoas, qualquer
que seja sua situação, fora de toda e qualquer prescrição legal e regulamentar particular, a
partir do momento em que estes atores – todos pensam nas empresas, mas por que
limitar-se a elas? – poderiam contribuir para a criação de riscos potenciais, podendo
causar danos à saúde e ao meio ambiente. De fato e desde já, o juiz poderia sancionar
desrespeitos às obrigações gerais instituídas pelo princípio da precaução. Se me
permitirem, queria dizer que espero com impaciência o primeiro processo contra a
empresa de Cimentos Lafarge, grande emissora de gases de efeito estufa diante do
ETERNO, – ou a outra empresa da indústria da construção civil – por não ter tomado de
46
Ver L. Boy, “La nature juridique du principe de précaution”, Natures, Sciences, Sociétés, 7, n. 3, 1999,
pp 5-11.
forma preventiva medidas que visam cessar essas emissões que, ao que tudo indica,
prejudicam o clima do planeta (a demonstração científica do risco não foi feita ainda,
embora exista um feixe convergente de elementos teóricos e factuais que abalizam a
hipótese), e por ter esperado que o governo francês queira realmente taxar essas emissões
ou fixar um limite… Ou aquele motorista qualquer, usuário de um veículo a gasolina ou
óleo diesel, e culpado deste fato, ainda que em escala menor, culpado do mesmo crime.
Não escapa a ninguém que a tese da aplicação direta e geral opõe-se frontalmente
às reivindicações contidas na Resolução do Conselho Europeu de Nice, que fez do
princípio da precaução uma responsabilidade e uma prerrogativa das autoridades públicas
nacionais e comunitárias. Sem retomar aqui uma argumentação sobre os fundamentos,
apresentada em outras obras47, as análises desenvolvidas no presente artigo, enriquecidas
pelo estudo do caso emblemático da vaca louca, só podem confortar-me na extrema
reserva que é a minha, tanto no que diz respeito a esta tese da aplicação direta e geral48
quanto às ações que confiam ao juiz o cuidado de dizer ex post quais eram ex ante as
obrigações dessas pessoas, enquanto os poderes públicos não teriam criado nenhuma
organização e nenhum quadro regulamentar e não teriam, por hipótese, fixado nenhuma
referência precisa para uma gestão, sob a proteção da precaução, dos riscos coletivos em
causa.
Não seria melhor satisfazer-se em confiar ao juiz o controle do respeito dos
procedimentos decididos pelas autoridades responsáveis, mantendo-se nos limites do erro
manifesto de apreciação, sem aventurar-se a querer traduzir em termos de falta de
decisões ou ausência de decisões por parte das autoridades, quando se tratou de apreciar o
que era para ser feito ou não? Entretanto, em seu comentário do caso da vaca louca,
Marie-Angèle Hermitte e Dominique Dormont acreditaram encontrar “uma oposição
cultural entre o princípio da precaução e a limitação do controle de legalidade para o
erro manifesto de apreciação”49. Conseqüentemente, posicionaram-se a favor de um
controle reforçado das decisões da administração pelo juiz, levando-o a sondar os
motivos das decisões e a pesar a proporcionalidade das medidas de precaução. Maneira
47
O.Godard, op. cit., RJE, 2001.
Ao contrário, não contesto a tese da aplicação direta para as únicas autoridades públicas responsáveis.
49
M.-A. Hermitte e D. Dormont, op. cit., p. 382.
48
curiosa de reforçar a autonomia do político do qual disseram estes autores que “serve
justamente para integrar os diferentes pontos de vista e para separar a função de
identificação e avaliação dos riscos daquela que consiste em determinar qual é o risco
aceitável, tendo em vista as diferentes obrigações que são exercidas sobre este setor”50.
Ousaremos uma conjectura: se porventura a evolução jurídica andasse no sentido
de um controle pleno e completo do juiz sobre a oportunidade das medidas de gestão dos
riscos potenciais, a vaga ameaça que plana sobre os tomadores de decisões os levaria
rapidamente a posicionarem-se sobre critérios simples, assegurando sua própria proteção
jurídica contra o exercício das liberdades individuais, os recursos públicos e a melhoria
da saúde pública, o que passa freqüentemente por um cálculo de riscos razoáveis. Não se
importando com as sutilezas da elaboração doutrinal, a tradução jurídica do princípio da
precaução levaria este belo princípio para o lado dessas “idéias brutas” que a razão não
defende, mas que têm a virtude de uma simplicidade binária.
Referências Bibliográficas
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Implementando o Princípio da Precaução:
Desafios e Oportunidades
David Freestone e Ellen Hey*
Como ponto de partida para este livro, é evidente que, como princípio de política
ambiental, o princípio da precaução veio para ficar. Emergindo como o fez com tamanha
rapidez, no contexto internacional das deliberações das Conferências Internacionais sobre
a Proteção do Mar do Norte, tem sido tão amplamente aceito em instrumentos
internacionais e, de forma crescente, em nacionais, que poucos, atualmente, tentariam
negar sua importância. Ainda é uma questão em debate entre os juristas internacionais se
ele adentrou os portais sagrados do direito costumeiro internacional1. Mas, para a maioria
das intenções e propósitos, este debate não é mais de fundamental importância. Como nós
e outros autores já demonstramos detalhadamente, ele já é um dos princípios norteadores
de um grande número de instrumentos ambientais globais e regionais, e suas principais
diretrizes são cada vez mais utilizadas, nos regimes legais nacionais e internacionais.
Este livro buscou colocar o debate um passo adiante, fornecer uma contribuição
para o que nós estamos chamando de “segunda geração” de pesquisas sobre o princípio
da precaução, mediante o exame de alguns dos temas mais complexos acerca de sua
implementação2. É verdadeiramente o desafio da implementação. Como muitos artigos
demonstraram, o desafio é modificar as instituições e os mecanismos técnicos. É um
desafio para nosso modo de ver o mundo e para nosso entendimento sobre o papel da
ciência e do ônus da prova.
* David Freestone é professor de direito internacional e diretor da Unidade de Direito Internacional do Banco Mundial, nos Estados Unidos. Ellen Hey é professora de direito internacional dos recursos naturais, na Universidade de Erasmus, Holanda. 1
Ver, por exemplo, P. W. Birnie e A.E. Boyle. International Law and the Environment. Oxford: Claredon
Press, 1992, p. 98, que questionam o seu estatuto no direito internacional costumeiro. Ver. Cameron e
Abouchar. “The status of the precautionary principle in international law”, In Freestone, David e Ellen Hey.
The Precautionary Principle and International Law: The Challenge of Implementation. Boston : Kluwer
Law International, 1995; Freestone. “The Road from Rio: International Environmental Law after the Earth
Summit”, Journal of Environmental Law, n. 6, 1994, p. 193-218; H. Hohmann, Precautionary Legal
Duties and Principles of Modern International Environmental Law, The Precautionary Principle:
International Environmental Law Between Exploitation and Protection, 1994.
2
Ver tambem T. O'Riordan and J. Cameron. Interpreting the Precautionary Principle, 1993, p. 3.
Handl frisou que nossas preocupações ambientais globais modificaram nossa
percepção sobre a natureza da soberania e nosso entendimento sobre a vulnerabilidade de
nosso planeta3. Os rápidos avanços em ciência e tecnologia podem ter-nos dado o motor
de combustão interna, o condicionamento do ar e a viagem espacial, assim como avanços
incomparáveis em medicina, mas esses avanços têm seu custo. O buraco na camada de
ozônio, a poluição marítima, a destruição de habitats e possivelmente (ou talvez,
provavelmente) a mudança climática global são os custos que nós pagamos ou ainda
teremos que pagar. O paradoxo adicional é que são também os cientistas que nos estão
alertando sobre os novos riscos. E estes novos riscos para os sistemas globais que
mantêm a vida nos conduzem a uma visão diferente das demandas que a humanidade
pode legitimamente fazer ao planeta.
Também não é fácil aceitar que os Estados podem fazer o que bem entenderem
em seus próprios territórios ou em alto-mar, quando sabemos que certos tipos de
atividades (como os químicos que empobrecem a camada de ozônio ou a queima de
combustíveis fósseis) causarão danos adicionais aos sistemas ambientais globais.
Portanto, cada vez mais o direito internacional ambiental admite que uma visão rígida do
território e da soberania estatal, ou seja, que as atividades de um Estado são
incontestáveis por outros Estados, não podem mais ser compatíveis com as tentativas de
abordar os problemas ambientais globais. Como Handl diz, “a soberania não implica mais
um status negativus, uma base legal para a exclusão, mas tornou-se uma base legal para a
inclusão, ou um comprometimento para cooperar, visando ao bem da comunidade
internacional como um todo; souveraineté oblige”4.
A emergência do princípio da precaução é parte desse movimento. Aliado a
conceitos como desenvolvimento sustentável e eqüidade intergeracional, seu endosso por
organismos nacionais e internacionais implica aceitar que restrições sejam impostas a
todas as atividades que tenham impactos negativos significativos, no meio ambiente. De
fato, o princípio da precaução coloca restrições a atividades que podem ter “impactos
negativos significativos”, mesmo quando a ciência não pode prever precisamente se eles
3
Gunther Handl. “Environmental Security and Global Change: the Challenge to International Law”, 1990,
n. 1 Yearbook of International Environmental Law p. 3-33, p. 32.
4
Ibid.
ocorrerão ou como serão. No entanto, como Fleming5 afirma, o conceito de impactos
negativos significativos não é absoluto, pois a “conseqüência inaceitável” de uma pessoa
pode ser uma “necessidade vital” para outra.
1. Problemas Conceituais Apresentados pelo Princípio da Precaução
Uma vez que o princípio da precaução é visto em termos "não absolutistas", não
como uma regra dogmática absoluta de regulação, sua implementação e conseqüências
trazem problemas nos níveis conceitual e prático. Conceitualmente, um princípio que
pretende fornecer uma agenda para reagir a incertezas cria um grande número de
problemas para o pensamento jurídico tradicional. Abouchar e Cameron6 oferecem uma
análise detalhada de até que ponto o princípio da precaução, em forma e conteúdo,
começou a passar para o direito costumeiro internacional, mediante a prática dos Estados.
Kiss7 relaciona o princípio com os direitos humanos emergentes das gerações futuras,
destacando as formas pelas quais alguns sistemas nacionais, especificamente França e
Filipinas, tiveram um papel pioneiro em chegar a conclusões jurídicas, com as incertezas
filosóficas e práticas sustentando ambas as idéias.
Dada a natureza de longo alcance das ameaças ambientais que o princípio da
precaução busca evitar e os tipos de soluções que as políticas precautórias podem abarcar,
é claro que os temas não podem ser satisfatoriamente avaliados exclusivamente pelos
juristas. Assim como muitas das abordagens políticas, Konrad von Moltke nos lembra
que as contribuições dos cientistas, tecnólogos e economistas, bem como a dos juristas,
são fundamentais para o desenvolvimento de estratégias de implementação de sucesso.
Também é verdade que, em sua formulação mais extrema, o princípio da precaução pode
ser usado para justificar a prevenção de qualquer forma de atividade que não possa ser
comprovadamente considerada inofensiva – o que é uma impossibilidade científica
virtual. Todavia, uma vez que o conceito de equilíbrio e outros fatores são introduzidos
5
J. S. Gray. “The economics of taking care: an evaluation of the precautionary principle”. In Freestone,
David e Ellen Hey. The Precautionary Principle and International Law: The Challenge of Implementation.
Boston : Kluwer Law International, 1995.
6
K. von Moltke. “The relationship between policy, science, technology, economics and law in the
implementation of the precautionary principle”; J. Gupta. “Glocalization: the precautionary principle and
public participation, with special reference to the UN framework convention on climate change”. In
Freestone, David e Ellen Hey. The Precautionary Principle and International Law: The Challenge of
Implementation. Boston : Kluwer Law International, 1995, p. 236.
7
Ver o artigo de Alexandre Kiss, neste livro.
no princípio, a ação precautória pode ser vista como uma escala de opções – algumas
mais precautórias que outras. Não se procura controlar o impacto da precaução, pois o
principal fator desencadeador é a incerteza e as conseqüências prováveis. Se estas últimas
são conhecidas, deve ser tomada uma medida preventiva e não, precautória. Entretanto, o
princípio por ele mesmo não dita necessariamente qual forma de medida precautória deve
ser tomada.
Se este enfoque for adotado, a ciência e os cientistas não serão adversários dos
tomadores de decisão; ainda que somente como aliados, eles têm um papel essencial no
processo de busca e aplicação das opções políticas “apropriadas”. A questão de
desenvolver uma resposta precautória apropriada, de achar um equilíbrio político
apropriado está também no cerne do artigo de Nollkaemper, refletido em seu título8. A
análise econômica de Fleming, destaca, entre outras coisas, o valor do pressentimento na
avaliação dos valores envolvidos na proteção do meio ambiente, complementa bem a
discussão de Nollkaemper sobre o modo pelo qual temas políticos podem ser, têm sido e
devem continuar sendo utilizados para mitigar as tendências “absolutistas” do princípio
da precaução. O simples fato de o princípio da precaução ser um princípio, significa que
não implica obrigações absolutas. Simplesmente estabelece uma política para a
implementação por outros meios regulatórios. Portanto, a questão sobre o que se quer
dizer com “significativo” ou ainda “negativo” ou “impacto” em avaliar um “impacto
negativo significativo” é tão incerto quanto a introdução de fatores de equilíbrio como
questões de viabilidade econômica (como aqueles inscritos no princípio da Declaração do
Rio)9. O artigo de Nollkaemper demonstra as várias formas pelas quais a prática pode
mitigar a abordagem “absolutista” da aplicação mais extrema do princípio da precaução,
cruamente satirizado como “na dúvida, não o faça”, mas obviamente visto em
procedimentos, tais como o procedimento de justificação prévia (PJP) da comissão de
Oslo.10
8
“What you risk reveals what you value', and other dilemmas encountered in the legal assaults on risks”. In
Freestone, David e Ellen Hey, The Precautionary Principle and International Law: The Challenge of
Implementation. Boston: Kluwer Law International, 1995.
9
O texto do Princípio 15 foi citado por Freestone e Hey em “Origins and development of the
precautionary principle”. In Freestone, David e Ellen Hey, The Precautionary Principle and International
Law: The Challenge of Implementation. Boston : Kluwer Law International, 1995.
10
Decisão da OSCOM 89/1, 14 de junho de 1989, reimpressa em David Freestone e Ton Ijlstra (eds.). The
North Sea: Basic Legal Documents on Regional Environmental Co-operation. London: Graham & Trotman
A necessidade de um equilíbrio dos interesses envolvidos é também um tema que
deve ser discutido. Von Moltke salienta que o princípio da precaução não é em si mesmo
um mandato juridicamente vinculante; ele é o que Von Moltke chama de “um guia para o
desenvolvimento de políticas” e Moltke ainda cita a necessidade de introduzir alguma
forma de avaliação econômica, na equação. Na Holanda, por exemplo, as políticas de
controle da poluição atmosférica vêm há muito incluindo um elemento de equilíbrio entre
o que é ecologicamente necessário e o que é economicamente possível. Os fatores
econômicos são apenas uma parte da equação, mas não a dominante – por exemplo, no
caso do Clean Air Act, subsídios são fornecidos às empresas que necessitam adotar
medidas particularmente onerosas. Todavia, como Moltke argumenta, sem as condições
econômicas limitadoras, o princípio da precaução não faz sentido: “Apenas com a
introdução da dimensão econômica é criada a tensão apropriada entre as demandas
humanas sobre o meio ambiente e a necessidade de o meio ambiente ser protegido contra
tais demandas”.11
Em nível local, o conceito desafiador de Gupta de “glocalização” faz sentido
para a mitigação e substituição de políticas “de cima para baixo” por agendas
desenvolvidas em nível local, para o envolvimento de comunidades locais em avaliação
de valores. Assim, como ela diz, “evidência científica só pode gerar autoridade social
para a ação política em problemas ambientais complexos, quando há um consenso
cultural no seio da sociedade sobre a natureza do problema”.12 O problema de equilibrar
os valores e as exigências políticas também implica a tentativa de aplicar o princípio da
precaução diretamente, no campo da responsabilidade do Estado. Como Tinker13
demonstra, a incerteza que está no cerne do princípio da precaução parece chocar-se com
a necessidade de certeza que a lei exige para o estabelecimento da responsabilidade.
Ltd., 1990, p. 119. O PJP consiste em um procedimento prévio de consulta que requer que o Estado
desejoso de emitir uma permissão para o despejo de dejetos industriais no mar deve demonstrar à Comissão
que não há alternativas de descarga em terra e que nenhum dano será causado ao ambiente marinho
(parágrafo 1). O PJP reverte, assim, o ônus da prova.
11
op. cit., p. 107.
12
Gupta, J. “Glocalization: The Precautionary Principle and Public Participation, with special reference to
the UN Framework Convention on Climate Change”. In Freestone, David and Ellen Hey. The
Precautionary Principle and International Law: The Challenge of Implementation. Boston : Kluwer Law
International, 1995, p. 236.
13
C. Tinker. “State responsibility and the precautionary principle”. In Freestone, David e Ellen Hey, The
Precautionary Principle and International Law: The Challenge of Implementation. Boston: Kluwer Law
International, 1995, p. 71.
Entretanto, conforme defendemos em outra ocasião,14 nestes setores em que a precaução
se tornou obrigatória, o conceito de “dano previsível” pode incluir um conceito mais
amplo de risco com o passar do tempo. Então, qualquer Estado que falhar em sua
obrigação de adotar uma ação precautória reparadora, quando o dano possível é definido,
o risco de ser responsabilizado é assumido exclusivamente por ele e não pela
Comunidade Internacional. Entretanto, Tinker prefere enxergar o significado do princípio
como fornecendo um vínculo procedimental entre as regras materiais do direito ambiental
e o direito sobre responsabilidade do Estado. A relevância do princípio da precaução,
pois, seria no desenvolvimento de um conjunto de normas relacionadas às regras
procedimentais, caracterizadas por Cameron e Abouchar como medidas precautórias
“indiretas”15. Estas incluiriam normas como as que exigem a avaliação prévia de impacto
ambiental, o dever de alertar ou notificar outros Estados, o papel de mitigar e socorrer em
emergências, bem como o de facilitar o acesso à informação. Tinker sugere que a nãoobservância destas normas procedimentais pode então suscitar responsabilidade estatal.16
Entretanto, é importante frisar que, na definição de Von Moltke, o princípio da
precaução é mais um guia para o desenvolvimento de políticas que um mandato
juridicamente vinculante. É importante de se ter em mente a diferença em nível legal
entre uma regra e um princípio, desenvolvida por Tinker e Nollkaemper17, entre outros.
Como um princípio, ele tem sido reconhecido por muitos instrumentos jurídicos e os
observadores começaram a discutir as formas pelas quais cada conjunto normativo pode
ser desenvolvido para implementar a filosofia do princípio. Ao lado do princípio da ação
preventiva, o princípio da precaução insiste em que o dano deveria, como uma prioridade,
ser reparado na fonte e o poluidor, pagar, de acordo com o Tratado de Maastricht da
União Européia de 1992.18 Como Hancher19 destaca, e eventos subseqüentes parecem ter
confirmado sua visão preliminar:20
14
Ver D. Freestone, “The Precautionary Principle”; Robin Churchill e David Freestone (Eds.). International
law and global climate change. London : Graham & Trotman/Nijhoff, 1991, p.21-39, p.37.
15
op. cit. , p. 50-51.
16
op. cit., p. 71.
17
op.cit.
18
Ver Artigo 130r do Tratado da União Européia, 1991.
19
L. Hancher. “EC Environmental policy – a pre-cautionary tale?”. In Freestone, David and Ellen Hey, The
Precautionary Principle and International Law: The Challenge of Implementation. Boston: Kluwer Law
International, 1995.
20
Ver o caso de Duddridge, infra, nota 36.
É improvável que (...) aos princípios ambientais (...) serão
atribuídos efeitos diretos (...), de modo que um indivíduo poderia
peticionar perante uma corte nacional que a ação de um Estadomembro ou legislação em conflito com o artigo de um tratado seja
ignorada ou declarada inaplicável. Entretanto, o princípio poderia
ser confiado aos Estados-membros para justificar uma medida
nacional, tanto em procedimentos colocados contra ele pela
Comissão como em uma ação local, envolvendo um desafio para a
validade de uma regra do Direito Comunitário.21
No entanto, fora da União Européia, um grande número de Estados endossou o
princípio da precaução como direito nacional22. Em 1993, por exemplo, foi considerado
como um princípio constitucional na Lei Colombiana no 99.23 Em um nível legal prático,
há uma diferença importante entre um princípio e uma regra. Enquanto aplicar uma regra
aparenta ser superficialmente uma ação mecânica, direta e justa (como, por exemplo, a
aplicação pelas Cortes de regras de direito penal relacionadas ao furto), um princípio, ao
contrário, tem um conteúdo mais aberto e informa como as regras serão aplicadas.24
A simples incorporação do princípio da precaução no direito nacional – ou ainda
sua incorporação como um princípio para políticas, como no Reino Unido, com a
publicação do relatório de políticas Our Common Inheritance25, pelo Governo em 1990 –
não quer dizer que o princípio terá grande influência sobre outras normas conflituosas e
mais precisas. Todavia, a partir do momento em que o princípio é formulado como um
direito, os tribunais se sentem mais confortáveis em aplicá-lo. Certamente, na tradição do
direito continental, os tribunais estão mais acostumados ao desenvolvimento e à aplicação
de tais direitos de grande alcance. Kiss cita a importante decisão do Minors Oposa vs
21
L. Hancher, op. cit.,1995, p. 202-203.
Por exemplo, o Australian Protection of the Environment Administration Act, 1991, e os casos citados
baixo.
23
Ver Manuel Rodriguez Becerra. La Politica Ambiental del Fin de Siglo, Cerec: Bogota, 1994, p. 63-64.
24
A falta de definição não é um obstáculo insuperável para a emergência de um princípio legal. Por
exemplo, trinta anos após a Resolução da Assembléia Geral das Nações Unidas sobre autodeterminação
(Declaration on the Granting of Independence to Colonial Countries and Peoples, UN Gen. Ass Res. 1514
(XV), 14 de dezembro de 1960. G.A.O.R. 15th Sess., Suppl 16, p. 66.), os juristas internacionais e os juízes
da Corte Internacional de Justiça continuam debatendo seu conteúdo e definição exatos. Poucos, todavia,
duvidaram que a autodeterminação era um princípio de direito internacional.
25
Our Common Inheritance: Britain's Environmental Strategy, HMSO, 1990, Cm. 1200. No Reino Unido,
os White Papers (Livros Brancos) são elaborados como posições para futuras políticas governamentais.
22
Secretary of the Department of Environment and Natural Resources26, na qual um
tribunal nas Filipinas levantou o princípio dos direitos das gerações futuras. Como
Cameron e Abouchar salientam, decisões importantes também foram tomadas sobre o
direito a um meio ambiente sadio por uma gama de cortes nacionais, incluindo
Colômbia27, Costa Rica28, Argentina29, Chile30, Equador31, Peru32, Índia33 e Paquistão34.
Processos também foram iniciados sobre direitos humanos, em níveis local e global, e
Kamminga mostra claramente a importante contribuição fornecida pelos direitos
humanos ao desenvolvimento de princípios jurídicos ambientais, incluindo o da
precaução, assim como as lições que os casos de direitos humanos podem fornecer ao
“errar para o lado da cautela”, quando lidam com a incerteza.35
Nos países do common law a situação é muito diferente. Os legisladores,
particularmente na tradição inglesa, tradicionalmente procuraram evitar interpretações
amplas do princípio, e é digno de nota que as Cortes inglesas ainda têm dificuldade em
aplicar princípios, particularmente para se sobreporem a regras claras. Na Inglaterra, por
exemplo, requisitou-se à Suprema Corte a aplicação do princípio da precaução para o
embargo da construção de um cabo de energia suspenso em uma área residencial, em
26
G.R. No 101083 ,30 de julho de 1993, reproduzido em, 1994, International Legal Materials 33, 168.
Note-se que um número de tribunais nacionais na América Latina e em outros lugares reconheceram
direitos ambientais executáveis. Ver Cameron e Abouchar, op. cit., e também J. Cameron, P. Pevato e J.
Abouchar. Sustainability - Principle to Practice, Background Paper on the International Implementation of
Principles for the Fenner Conference on the Environment, Canberra, 13 a 16 de novembro de 1994.
27
Fundepublico v Mayor of Bugalagradne e outros, Corte Constitucional, Expediente T-1O1, junho de
1992, Cameron et al., ibid.
28
Sala Constitutional de la Corte Suprema, Voto. No. 3705, 30 de julho de 1993, ibid.
29
Bustos Miguel y otros y Dirección de Fabricas Militares, S/Acción de Amparo o Juzgado Federal de
Primera Instancia No 2, La Plata, 30 de dezembro de 1986.
30
Juan Pablo Orrego Siva et al. y Empresa Electrica Pangue S. A., 29 de setembro de 1992.
31
Arco Iris y Instituto Ecuatoriano de Minaria Ministerio de Agricultura y Ganaderia, Tribunal de
Garantias Constitucionales Caso No 224/90, Resolución No.054-93-CP.
32
Sociedad Peruana de Derecho Ambiental y Direción Regional del Ministerio de Pesqueria Unidad
Agraria Departmental de Tumbes del Ministerio de Agricultura y Concejos Provinciales de Zarumilla y
Tumbes, Corte Suprema de Justicia, expediente No. 1058-92, Dictamen Fiscal No 1476-92, 17 de fevereiro
de 1993.
33
Rural Litigation and Entitlement Kendra and Others v State of Uttar Pradesh and Others, Supreme Court
Journal 337, 1987, ; M. C. Mehta v Union of India and Others, 1988, All India Reports 1037 (SC);
Subhash Kumar v State of Bihar, citado em Human Rights and the Environment: Second Progress Report
(by Mrs Fatma Zohra Ksentini: Special Rapporteur) UN Doc.E/CN/Sub.2/l993/7, 26 de julho de 1993, p.
18.
34
Cameron et al, op. cit., nota 26, p. 70.
35
M.T. Kamminga. “The precautionary approach in international human rights law: how it can benefit the
environment”. In Freestone, David and Ellen Hey. The Precautionary Principle and International Law:
The Challenge of Implementation. Boston : Kluwer Law International, 1995, p. 184.
virtude do risco (ainda não comprovado) que tais cabos causariam câncer, nas crianças.
Apesar de a Corte ter reconhecido que o Tratado de Maastricht continha o princípio da
precaução e que o direito da União Européia era vinculante para o Reino Unido e
superior ao direito inglês, não se sentiu capaz de utilizar o princípio para impedir uma
atividade outrora legal.36 Isso contrasta nitidamente com a decisão de uma Corte na
Austrália, na qual o princípio da precaução foi utilizado para recusar a aprovação do
projeto de uma estrada que teria destruído o habitat de espécies ameaçadas e poderia
contribuir para sua extinção.37
Isto não significa, é claro, que os tribunais nacionais não estão acostumados com
o tema da incerteza científica. Conforme Shelton38 demonstra, quanto à prática, nos
Estados Unidos, tanto os agentes públicos como os tribunais têm feito avaliações de risco
em face da incerteza científica: o agente público, com o objetivo de equilibrar o benefício
público contra o risco (ainda que remoto) de dano privado, e os tribunais “de forma a
determinar quem deveria arcar com o custo do dano causado”.39 Estas práticas
demonstram que não é incomum aplicar a abordagem precautória ainda que o termo
“precaução” possa não ter sido utilizado.40
Muito tempo antes de ser sacramentada em princípio ambiental, a precaução já
era importante. Como Freestone observou em outra ocasião, quanto mais alguém analisa
o conceito de precaução, mais nota - como Monsieur Jourdain, o mercador da peça Le
Bourgeois Gentilhomme, de Molière, que descobriu que, por mais de quarenta anos, ele
utilizou a prosa sem sabê-lo41 - que a precaução esteve presente por muitos anos, como
36
R v Sec of State for Trade and Industry, ex parte Duddridge and others, 9 de outubro de 1994.
Leach v National Parks and Wildlife Service [1994] 81 LGERA 270 (NSW). Em uma decisão mais
recente, entretanto, outro tribunal australiano levantou dúvidas sobre esta decisão, Nicholls v Director
General, National Parks and Wildlife Service, the Forestry Commission of New South Wales and the
Minister for Planning, decisão de 29 de setembro de 1994 Land and Environment Court of New South
Wales (NSW). Nós somos gratos ao Dr Ronnie Harding, da University of NSW, por trazer este caso para
nossa apreciação.
38
Shelton?
39
L. Hancher, op. cit., 1995, p. 213.
40
Notar que a importante exceção, à qual Shelton se refere, de um clássico julgamento do Juiz Learned
Hand que, em 1847, se referiu ao “ao ônus de precauções adequadas”. US v Carroll Towing C, 159 F. 2d
173,173, ibid.
41
“Par ma foi! II y a plus de quarante ans que je dis de la prose sans que j'en susse rien” Le Bourgeois
Gentilhomme, Ato II, cena IV. Citado em Freestone, op. cit., n. 1, p. 215.
37
parte da gestão ambiental informal e do comportamento humano.42 De fato, isto pode ser
facilmente relacionado a um número de conceitos e obrigações legais existentes. Em seu
comentário quanto ao código proposto sobre “princípios legais para a proteção ambiental
e o desenvolvimento sustentável”, o Grupo de Especialistas em Direito Ambiental da
Comissão Mundial sobre Desenvolvimento Sustentável (o Grupo de Especialistas da
WCED) sugere, em relação a uma obrigação geral para prevenir e combater a
interferência ambiental transfronteiriça, que a obrigação
(...) existe apenas na medida em que é razoavelmente
observável que o dano substancial [itálicos originais] é causado, ou
que há risco significativo [ênfase adicionada] que tal dano será
causado (...) à natureza e o alcance das medidas a serem tomadas, é
claro, dependem da natureza e do grau do dano extraterritorial que
deve ser prevenido ou reduzido.”43
O Grupo de Especialistas da WCED concluiu que o direito internacional existente
exige atenção, precaução e empenho, indo além da simples prevenção onde há um “risco
significativo” de dano extraterritorial. Quanto maior o dano potencial, mais rigorosas
devem ser as exigências de alerta, precaução e empenho. De forma similar, a exigência
de previsão ou de avaliação se o risco é ou não significativo não é uma obrigação passiva.
A investigação da probabilidade do dano, de forma justa e diligente, deve ser uma
exigência objetiva imposta ao Estado. Isto deve incluir investigação dentro do contexto
do princípio de desenvolvimento sustentável, dos possíveis impactos ambientais, da
notificação prévia aos Estados envolvidos sobre as atividades planejadas e da troca de
informação ambiental.44
42
Kaminga comenta também que isto aconteceu durante anos, “muito embora os ambientalistas acreditem
que foram eles que inventaram o princípio da precaução”. op. cit., 1995, p. 184.
43
Relatório do Grupo de Especialistas de Direito Ambiental da Comissão Mundial de Meio Ambiente e
Desenvolvimento (Experts Group on Environmental Law of the World Commission on Environment and
Development, WCED), publicado como MUNRO, R. D. e LAMMERS, J. G. (ed.). Environmental
Protection and Sustainable Development: Legal Principles and Recommendation. London e Boston:
Martinus Nijhoff, 1987. p. 80.
44
Estas obrigações e outras estão dispostas nos Artigos 15-17 dos princípios desenvolvidos pelo Grupo de
Especialistas da WCED, ibid.
Também não deve ser nenhuma novidade a descoberta que já existem diversas
regras e procedimentos, tanto em nível nacional quanto internacional, que podem
contribuir para a implementação do princípio da precaução. Podem-se distinguir
instrumentos que se referem especificamente ao princípio e outros que simplesmente
reconhecem seu conteúdo.45 De forma similar, em nível procedimental, pode-se distinguir
entre o que Cameron e Abouchar chamaram de medidas precautórias “diretas”, que
impõem padrões precautórios de jure, e medidas “indiretas” que “criam um ambiente de
incentivos e desincentivos que tenderão a gerar adesão comportamental ao princípio da
precaução.”46 Um exemplo do primeiro pode ser a decisão sobre Estados Costeiros do
Mar do Norte em 1990, na Conferência de Haia, para reduzir em 50% os insumos das
substâncias perigosas (isto é, aquelas que são “persistentes, tóxicas ou passíveis de
bioacumulação”).47 Também cobririam quaisquer restrições sobre certas atividades ou
produtos, tais como aqueles proibidos pelo Protocolo de Montréal ou pela ConvençãoQuadro das Nações Unidas sobre Mudanças Climáticas. Um exemplo de precaução
indireta pode ser a exigência do estudo de impacto ambiental ou certos tipos de processos
de tomada de decisão que encorajariam abordagens precautórias, a serem discutidas mais
adiante.
Os dois autores estiveram envolvidos na preparação de relatórios para
organizações internacionais, explorando as implicações da adoção do princípio da
precaução.48 Certos temas comuns emergiram de suas considerações, como as formas
pelas quais o princípio poderia ser implementado, no contexto de uma organização
internacional ou em nível setorial ou regional. Em seu relatório para o Secretariado da
45
Ver a discussão das ações “operacionais” precautórias de facto in L. Gündling. “The Status in
International Law of the Principle of Precautionary Action”. In David Freestone e Ton Ijlstra (eds.), The
North Sea: Perspectives on Regional Environmental Co-operation, 1990, p. 23-30 e Freestone op. cit. n. 9,
p. 33.
46
op. cit., 1995, p. 50-51.
47
Ver a Declaração da Haia, parágrafos 1 e 2, reproduzida em Freestone e Ijlstra, op. cit. n. 6, p. 3.
48
Ellen Hey foi a consultora que preparou o relatório para a Convenção de Londres (Despejo): The
Application of the Precautionary Approach to Environmental Protection within the Framework of the
Convention: Dealing with Uncertainty,10 de outubro de 1991, Doc. LDC 14/INF.9, 1991. David Freestone
(com a assistência de Kristina Gjerde) forneceu um papel similar para o UNEP Caribbean Environment
Programme: The Relevance and Application of the Principle of Precautionary Action to the Caribbean
Environment Programme, UNEP (OCA)/CAR WG.IO/INF.4, 9 de novembro de 1992. Ver também
Freestone. The Burden of Proof for Conservation in High Seas Fisheries, paper para o escritório jurídico da
UN FAO, 1992 e Hey. “The Precautionary Principle: where does it come from and where does it lead in
case of Radioactive Releases to the Environment?”, IAEA Symposium on the EnvironmentalImpact of
Radioactive Releases, Viena, 8 a 12 de maio de 1995.
Convenção de Londres, Hey iniciou, buscando identificar um número de elementos
comuns que podem ser encontrados virtualmente em quase todos os instrumentos que
endossam o princípio da precaução. Esses fatores, que tem sido utilizados por outros,49
foram a vulnerabilidade do meio ambiente, as limitações da ciência em predizer de forma
precisa ameaças ao meio ambiente e as medidas necessárias para prevenir tais ameaças, a
disponibilidade de alternativas práticas (ambos métodos de produção e produtos) que
tornam possível o extermínio ou minimização dos impactos negativos no meio ambiente;
a necessidade de considerações econômico-holísticas de longo prazo, que internalizam,
entre outras coisas, o custo real da degradação ambiental e os custos de tratamento do
lixo.
Resumindo, quando esses fatores foram agrupados pareceu que a abordagem
precautória poderia ser caracterizada pela suposição de que a ciência nem sempre fornece
a a informação necessária para proteger o meio ambiente de forma efetiva e efeitos
indesejáveis podem ser causados se medidas forem tomadas apenas quando a ciência
propicia tais informações. Ressalte-se a necessidade de alternativas práticas para
pesquisas complexas e procedimentos de monitoramento que nem sempre captam os
sinais da degradação ambiental, em virtude da dificuldade técnica e do custo de monitorar
mais do que um número limitado de parâmetros.
Além disto, constatou-se que os custos das medidas de reconstituição do meio
ambiente podem ser proibitivos, ou que os serviços biológicos essenciais de suporte à
vida podem ser insubstituíveis se a ação para proteger o meio ambiente é desencadeada
apenas quando a certeza científica está disponível. Deve-se argumentar ainda que os
métodos de cálculo econômico não reconhecem adequadamente os verdadeiros custos de
exaurimento dos recursos, freqüentemente subestimando os custos ambientais futuros da
substituição dos sistemas naturais danificados pelos sistemas artificiais criados pelo
homem e enfatizando por demais os custos econômicos das medidas de recuperação, a
curto prazo.
Revisando os instrumentos internacionais para determinar como tal abordagem
poderia ser percebida a partir das evidências nacionais, ficou claro, como os autores neste
49
Ver UNEP(OCA)/CAR WG.lO/INF.4, 9 de novembro de 1992. Ver também Bob Earl (ed.), The
Precautionary Principle: Putting it into Practice, 1993.
livro amplamente demonstraram, que a implementação desta abordagem envolve um
número de escolhas políticas: mais importante, a escolha do nível de perigo ao meio
ambiente, antes que as medidas precautórias sejam levadas a cabo. As diferentes
abordagens assumidas para esta questão crucial estão refletidas nas várias formulações
adotadas pelos diferentes instrumentos: os Estados “não devem esperar por provas de
efeitos danosos”,50 eles devem tomar “ação (...) mesmo antes que um nexo causal seja
estabelecido por evidência científica clara e absoluta”;51 ou “quando há razão para
assumir que certos danos ou efeitos danosos (...) podem ser causados (...) mesmo quando
não haja evidência científica para provar um nexo causal (...)”;52 eles devem “evitar
efeitos potencialmente danosos (...) mesmo quando não há evidência científica para
provar um nexo causal”;53 e estão comprometidos em “eliminar e prevenir emissões onde
não há razão para acreditar que o dano ou efeitos danosos são prováveis, mesmo quando
há evidência científica inconclusiva ou inadequada para provar o nexo causal”54 e
“prevenir o lançamento no meio ambiente de substâncias que podem causar dano aos
humanos ou ao meio ambiente, sem esperar provas científicas a respeito de tal dano”.55
2. O Desenvolvimento dos Procedimentos e Técnicas Precautórias
A implementação material pode, portanto, ser abordada nos níveis institucional e
procedimental. Em nível procedimental, a idéia-chave será a inversão do tradicional ônus
da prova. Se o conceito de sustentação é que a falta de certeza científica não deve ser
utilizada como razão para o adiamento de medidas para prevenir o dano ao meio
ambiente, então, as abordagens tradicionais, que presumem um nível aceitável de
atividades potencialmente danosas até que o dano seja de fato demonstrado, requerem
reavaliação e mudança.
Desta forma, o desenvolvimento do pensamento precautório, em relação ao direito
internacional da pesca, pode ser utilizado. Ainda que específico, fornece um exemplo
50
Declaração de Bremen de 1984 sobre a Proteção do Mar do Norte, reimpressa em Freestone e Ijlstra,
op.cit. n.6, p. 61.
51
Declaração de Londres de 1987 sobre a Proteção do Mar do Norte, reimpressa em ibid, p. 40.
52
Para XVI. 1, Parcom Recommendation 89/1, reimpressa em ibid, p. 119.
53
Declaração de Haia de 1990 sobre a Proteção do Mar do Norte, reimpressa em ibid, p. 3. (Nota 47)
54
Declaração de Copenhague de 1989, da Conferência Parlamentar, citada em Freestone, op. cit., n. 9, p.
27.
55
A Convenção de Bamako sobre a Proibição da Importação para a África e o Controle do Movimento
Transfronteriço e Gerenciamento de Materiais Perigosos na África, de 29 de janeiro de 1991, 1991,
International Legal Materials 773.
interessante da forma pela qual a abordagem precautória, originalmente desenvolvida no
contexto do controle da poluição antropogênica, pode ser estendida para uma área
totalmente diferente, a de exploração de recursos vivos. Pode-se afirmar também que,
como princípio, ele é passível de aplicação em todos os temas ambientais. O princípio da
precaução foi inicialmente introduzido no setor de pesca em relação ao debate sobre a
alegada não seletividade das técnicas de pesca, como a pesca de arrasto. A imposição de
uma moratória na pesca de arrasto em alto-mar foi discutida em outro capítulo, neste
livro56. Convém lembrar que a resolução 44/225 da ONU, intitulada “Pesca pelágica de
arrasto de larga escala e seu impacto nos recursos marinhos vivos dos oceanos e mares do
mundo”57, convoca a “todos aqueles envolvidos na pesca pelágica de arrasto de larga
escala para cooperarem no aumento da coleta e compartilhamento de dados científicos
estatisticamente concretos (...) ” e recomenda uma série de medidas para eliminar a
prática, incluindo uma moratória sobre toda pesca de arrasto de larga escala, nos altos
oceanos, até junho de 1992. Foi, entretanto, acordado que a moratória:
(...) não irá ser imposta a uma região ou, se implementada,
pode ser retirada; medidas de gestão e conservação efetiva devem
ser tomadas com base em análises estatisticamente concretas ..
.para prevenir o impacto inaceitável de tais práticas de pesca
naquela região e para assegurar a conservação dos recursos
marinhos vivos, na região.58
Esta medida é precautória em dois sentidos: em primeiro lugar, porque propõe
uma ação para abordar uma ameaça grave ao meio ambiente, enquanto há alguma
incerteza científica relacionada ao impacto da pesca de arrasto e, por último, porque ela
inverte o ônus da prova para aqueles que continuam a prática para demonstrar, utilizando
“análise estatística concreta”, que medidas foram tomadas “para prevenir o impacto
inaceitável” da pesca de arrasto e para “assegurar a conservação dos recursos marinhos
vivos”. Esta medida tem sido fortemente criticada como sendo uma das piores aplicações
56
Ver capítulo de David Freestone, neste livro.
Reimpressa em The Regulation of Drift Net Fishing on the High Seas: Legal Issues, FAO Legislative
Study, n 47, Rome 1991, Anexo 2. Note-se que o cronograma para a moratória foi revisado pela AGNU
Res. 46/215, 20 de dezembro de 1991.
58
Ver, por exemplo, os argumentos citados pelo Professor Kazuo Sumi. “International legal issues concerning the use of drift nets with special emphasis on Japanese practices and responses”. In FAO Legislative
Study No. 47, ibid.
57
da abordagem absolutista do princípio da precaução.59 Há naturalmente elementos
altamente subjetivos nos conceitos de “impactos inaceitáveis” e de “análise concreta”;
entretanto, como nossa discussão prévia já alertou, os temas de avaliação e risco e de
juízo de valor são dificuldades intrínsecas na implementação da abordagem precautória.
Muitos dos problemas do desenvolvimento de tal abordagem no contexto global se
cristalizam em torno da dificuldade de alcançar consenso, nesses mesmos temas.
O exemplo da pesca de arrasto representa um fato interessante, porque é exemplo
de uma aplicação da precaução fora do tema poluição. É tão interessante quanto alguns
cuidados para a transferência da abordagem precautória em bloco para um novo setor.
Ficou claro que muitos dos instrumentos existentes podem ser repensados ou
reinterpretados à luz de tal abordagem. Para analisar o exemplo da pesca de arrasto é
possível utilizar alguns dos argumentos relacionados a outras áreas muito próximas da
questão em causa, especificamente o da utilização do princípio da precaução, no campo
geral da conservação e manejo de peixes e, particularmente, sua aplicação para a captura
de peixes em alto-mar.
Os artigos da Convenção das Nações Unidas sobre o Direito do Mar (UNCLOS),
de 1982, impõem uma obrigação primária de conservação para um Estado pescar em altomar60 e a UNCLOS propõe que, quando “determinado o limite permissível e
estabelecidas outras medidas de conservação para os recursos vivos do alto mar”61, tal
Estado dever agir “de acordo com a melhor evidência científica disponível”. Enquanto
uma interpretação tradicional de tal frase poderia sugerir que, na ausência de prova de
que há um “excesso de pesca”, a pesca deve continuar, em contraste com uma
interpretação precautória derivada da obrigação principal de conservação, exige-se que a
evidência científica deve estar disponível para que os estoques atuais de peixe possam
sustentar a continuidade da pesca, antes que se continue pescando. Portanto, o tema
59
Ver W.M. Burke. “Unregulated High Sea Fishing and Ocean Governance”; James Carr e Matthew
Gianni. “High Sea Fisheries, Large Scale Driftnets and the Law of the Sea” ambos na obra de Jon Van
Dyke, Durwood Zaelke e G. Hewison (eds.). Freedom for the Seas in the 21st Century: Ocean Governance
and Environmental Harmony, 1993, ; e Kazua Sumi, ibid. Ver também G. Hewison. “The Precautionary
Approach to Fisheries Management: an Environmental Perspective”, 1996, 11 IJMCL (em lançamento); S.
M. Garcia. “The Precautionary Principle: its Implications in Capture Fisheries Management”, Ocean and
Coastal Management. 1994, n.22, p. 99-125, p. 108.
60
Artigo 116, UNCLOS.
61
Artigo 119, UNCLOS.
central seria que, na ausência de evidência científica convincente (isto é, utilizar a melhor
evidência científica disponível – mesmo se ela continuar não convincente)62, medidas
devem ser definidas para assegurar exploração contínua ou assegurar a conservação.
Deve o ônus da prova ser a favor da exploração ou da conservação? Deve o requisito de
evidência científica atuar em favor da conservação, ao invés de, como possivelmente
ocorreria no passado, ir contra ela. Uma abordagem similar, talvez para as exigências
modernas de Melhor Tecnologia Disponível (MTD), é encontrada em muitas legislações
nacionais sobre poluição, em vigor.
Na pesca, assim como em áreas de monitoramento ambiental, os cientistas
trabalham com base em probabilidades. Portanto, em casos de incerteza científica, se a
obrigação primária é a conservação e manutenção dos estoques, a exigência de utilizar a
melhor evidência científica disponível parece ser uma regra em vez de um padrão de
prova. Assim como a palavra “melhor” não pode realisticamente ser usada para significar
que a evidência para uma visão ou outra é intrinsicamente melhor, então também parece
difícil sugerir que a palavra “científica” seja usada de uma forma partidária. Deve ser
correto dizer que a palavra “científica” significa a coleta de dados de acordo com um
critério rigoroso – o que daria a ela um “padrão mínimo” requerido. “Disponibilidade”,
entretanto, continua um conceito essencialmente pragmático. Como conseqüência, se a
evidência adequada não está simplesmente disponível, as obrigações gerais da
Convenção ainda permanecem e a obrigação primária é aquela da conservação.
Em tal situação, portanto, o pensamento precautório utiliza os procedimentos
existentes. Mas será provavelmente necessário que novas técnicas e procedimentos sejam
desenvolvidos. Alguns já podem ser identificados. A Comissão para a Conservação dos
Recursos Marinhos Vivos da Antártida (CCRMVA), que coordena as pesquisas sobre
esses recursos e adota medidas de conservação e gestão,63 tem desenvolvido limites
precautórios para as populações de peixe, dentro de sua jurisdição, para garantir que o
aumento da pesca não danifique a cadeia alimentar. Em 1991, por exemplo, a Comissão
62
Ver Garcia, op. cit. n. 59, p. 106.
Ver também R.R. Churchill. EEC fisheries law Dordrecht; Lancaster: Nijhoff, 1987, p. 188. Seus
poderes incluem o estabelecimento das quantidades a serem produzidas, designação das espécies protegidas
e estações de defeso, assim como a regulação de equipamentos.
63
estabeleceu uma limitação da pesca de Euphasia superba64; um grupo de trabalho e um
comitê científico foram estabelecidos para desenvolver “medidas precautórias para a
pesca do Krill”, de forma a prevenir a “expansão desregulada da pesca em um momento
em que a informação disponível para prever o potencial dano [era] muito limitada.”65
Outro exemplo é a abordagem adotada em 1994 pela Convenção sobre
Conservação e Gerenciamento de Recursos de Euphasia superba, no Mar Central de
Bering.66 Este tratado foi concluído para tratar da superexploração de Euphasia superba
aleutiano, no enclave da região central do Mar de Bering (conhecido como o donut hole).
No início dos anos 90, a pesca desregulada nesses enclaves causou um colapso da pesca
de Euphasia superba.67 Esta Convenção altamente inovadora dispõe que os Estados
signatários se encontrarão anualmente para decidir os níveis permissíveis de produção e
para estabelecer as quotas de pesca. Endossa uma abordagem precautória de facto para a
conservação das populações de peixe, segundo a qual nenhuma pesca irá ser permitida ao
menos que a biomassa da Bacia Aleutiana esteja apta a exceder os 1,67 milhões de
toneladas métricas.68 Esta determinação deve ser feita pelas partes em conjunto ou,
64
CCAMLR Conservation Measure 32/X on Precautionary Catch Limitations on Euphasia superba in
Statistical Area 48.
65
Relatório do Grupo de Trabalho, parágrafo. 6.34. O ímpeto para este trabalho foi a declaração no Nono
Encontro da Comissão pela URSS, Japão e Coréia que eles não eram, a princípio, opostos à idéia de um
limite precautório de pesca de krill, mas que “the quantitative basis for such a precautionary limit on
fishing should have scientific justification based on assessments performed by the Scientific Committee”
(CCAMLR-lX, para. 8.7).
66
Reproduzido em, IJMCL, 1995, n.10, p. 127, como um apêndice para William V. Dunlap. “The Donut
Hole Agreement”, ibid., p. 114-126. Ele foi assinado em Washington DC em 16 de junho de 1994, pela
China, Coréia, Federação Russa, Estados Unidos. Japão (em 4 de agosto) e Polônia (em 25 de agosto)
assinaram depois. O acordo entrará em vigor 30 dias depois que ambos os estados costeiros e dois estados
pesqueiros distantes o ratificarem (Art XVI(2).
67
Em 1989, foi relatado que 1.447.614 toneladas foram pescadas no donut hole; em 1990, 917.371 e em
1991 apenas 293.399. Os Estados costeiros: os Estados Unidos e (o que é agora) a Federação Russa foram
capazes de utilizar esta evidência para estabelecer uma série de Conferências sobre Conservação e
Gerenciamento dos Recursos Marinhos Vivos do Mar Central de Bering, no qual ambos os Estados
costeiros participaram, assim como o Japão, Coréia do Sul, a República Popular da China e a Polônia.
Cinco edições da Conferência ocorreram entre fevereiro de 1991 e agosto de 1992, na época em que o
colapso da pesca de Euphasia superba era aparente. No encontro de agosto de 1992, a Conferência
concordou em uma moratória na pesca de Euphasia superba na Bacia Aleutiana em regiões centrais do Mar
de Bering, para 1993 e 1994. Ver mais detalhes em David Freestone. “The Effective Conservation and
Management of High Seas Living Resources: Towards a New Regime?”, Canterbury Law Review, 1994,
n.5, p. 341-362.
68
Ver Alex G. Oude Elferink. Fisheries in the Sea of Okhotsk High Seas Enclave: Towards a Special Legal
Regime. London: Martinus Nijhoff: 1994; Gerald H. Blake, William J. Hildesley, Martin A. Pratt, Rebecca
J. Ridley e Clive H. Schofield (eds.). The Peaceful Management of Transboundary Resources, Haya:
Kluwer Law International, 1995, p. 467. Ver anexo para a Convenção de 1994, reimpresso como um
apêndice em Dunlap. op. cit., n. 66, p. 134.
quando não for possível, pelos EUA e Federação Russa conjuntamente, ou quando ainda
não for possível, pelos EUA unilateralmente. Os EUA e a Federação Russa
aparentemente concordaram (como mostra uma gravação da discussão, analisada em
conjunto com o anteprojeto da Convenção)69 que se a biomassa não atingisse a meta de
1,67 milhões de toneladas, eles também suspenderiam a pesca em suas próprias Zonas
Econômicas Exclusivas (ZEE) de 200 milhas e iriam levar em consideração o nível de
pesca no enclave, para estabelecer suas quotas anuais de pesca em suas ZEEs.
Um exemplo final é retirado das negociações da Conferência das Nações Unidas
de sobre Populações de Peixes Tranzonais e de Populações de Peixes Altamente
Migratórios, realizada em resposta a uma demanda do Capítulo 17 da Agenda 21 da
Convenção das Nações Unidas sobre Desenvolvimento e Meio Ambiente (1992) que, em
termos gerais, pediu “novas abordagens para a gestão e desenvolvimento de áreas
marinhas e costeiras (...) abordagens que fossem integradas em conteúdo e que fossem
precautórias e antecipatórias em natureza.”70 Em 1994, o Secretário-Geral preparou um
acordo preliminar,71 revisto em 1995,72 que endossa a abordagem precautória (no Artigo
6) para o gerenciamento de tais estoques e fornece como Apêndice orientações para o
estabelecimento de pontos de referência precautória para conservação e gerenciamento de
tais estoques.73 O acordo dispõe que os Estados levem em consideração “a melhor
informação científica disponível”, que sejam cautelosos quando a informação for pobre e
que não utilizem a falta de uma adequada informação científica como razão para o
adiamento ou a não adoção de medidas de conservação e gestão. Dispõe também sobre a
melhoria no processo de tomada de decisão, a coleta e disseminação da melhor
69
Dunlap, op. cit., n. 66.
Parágrafo 17.3 da Agenda 21. Reimpresso em Stanley P. Johnson. The Earth Summit : the United
Nations Conference on Environment and Development (UNCED). London : Graham & Trotman/Nijhoff,
1993, p. 307. Parágrafos 17.44-69, especialmente 17.50, relembra a Conferência das Nações Unidas de
sobre Populações de Peixes Tranzonais e de Populações de Peixes Altamente Migratórios. A Conferência
foi autorizada pela Resolução 47/192, da Assembléia Geral das Nações Unidas.
71
Acordo preliminar para a Implementação das Provisões da Convenção das Nações Unidas sobre o Direito
do Mar, 1982, relacionada à Conservação e Gerenciamento de Estoques de Peixe Tranzonais e Populações
de Peixes Altamente Migratórios (Draft Agreement on Straddling and Highly Migratory Fish Stocks).
(preparado pelo Presidente da Conferência) A/CONF.164/22, 23 de agosto de 1994.
72
Ver A/Conf/164/22/Rev.l, 11 de abril de 1995.
73
O Anexo 2 visa a dois tipos de pontos de referência precautória: pontos de referência e gestão para a
conservação ou limite, pontos de referência relativos a objetivos. Os primeiros pontos determinam limites
em função das populações para manter a produção dentro de limites biológicos seguros, onde se almeja que
os pontos-alvo de referência atinjam os objetivos de administração. Ver também Justin Cooke and Michael
Earle. “Towards a Precautionary Approach to Fisheries Management”, RECEIL, 1993, n. 2 p. 252-259.
70
informação científica e o desenvolvimento de técnicas melhoradas para lidar com o risco
e a incerteza, o estabelecimento de pontos precautórios de referência em função de cada
população de peixes, a consideração do impacto da pesca nos ecossistemas e as espécies
ecologicamente relacionadas. Em relação à pesca nova ou exploratória, medidas
conservacionistas relacionadas à coleta e limites de esforços serão estabelecidas o quanto
antes e continuarão em vigor até que haja dados suficientes para permitir a avaliação,
fundamentada na sustentabilidade das populações de peixes, a longo prazo.
Este exemplo do “transbordamento” da abordagem precautória para novos setores
de gestão da pesca demonstra de forma clara a idéia levantada anteriormente, de que o
conceito precautório está tão relacionado à forma de pensar quanto à forma de agir.
Alguns dos procedimentos examinados implementam mudanças no ônus da prova, mas
também visam a um papel mais pró-ativo para a informação científica, assim como
mudanças nos processos de tomada de decisão. A implementação em nível procedimental
envolverá essas modificações técnicas, mas também podem estar representadas em
desenvolvimentos procedimentais mais gerais. Um exemplo óbvio é que os juristas
ambientais internacionais freqüentemente argumentaram que as decisões técnicas
deveriam ser tomadas por voto majoritário em vez de consenso.74 Isto evitaria o que foi
chamado de “regra do retardatário”, no sentido de que um regime convencional tem que
se desenvolver no ritmo da parte mais relutante. Muitos regimes ambientais já refletem
esta abordagem75, apesar de ter havido um movimento geral em nível procedimental, no
sentido de adotarem procedimentos consensuais, mesmo quando não estritamente
requeridos. É notório que o Protocolo de Montreal, de 1987, sobre Substâncias que
Exaurem a Camada de Ozônio – amplamente considerado como um dos regimes
ambientais mais dinâmicos e inovadores e cuja postura precautória sobre o exaurimento
do ozônio foi mais que justificada – prevê que, se não se conseguir chegar a um
consenso, a decisão sobre a emissão de substâncias que exaurem o ozônio será decidida
74
Peter H. Sand. Lessons Learned in Global Environmental Governance. Washington: World Ressources
Institute, 1990; Ellen Hey. “The Precautionary Concept in Environmental Law and Policy:
Institutionalizing Caution”, Georgetown International Environmental Law Review, 1992, n.4, p. 303-318,
312-314.
75
Por exemplo, o procedimento da Emenda Anexa da UNEP Regional Sea Conventions, geralmente
visando ao voto da maioria. Ver, por exemplo, como no Artigo 19 da Convenção de Cartagena.
por dois terços dos Estados-partes.76 Uma estrutura institucional que reflita uma
abordagem precautória deve ser desenhada para permitir um papel privilegiado para a
informação científica, talvez por meio da criação de um comitê científico e de um
conselho ou algo similar. Para assegurar, por exemplo, que decisões de gestão sejam
tomadas com base na melhor informação científica disponível em vez de critérios
políticos, as decisões originadas de recomendações científicas podem exigir uma maioria
menos qualificada que aquela proposta pelos próprios Estados.77
Outros procedimentos, que talvez distorçam o sistema de tomada de decisão em
favor da conservação quando a informação científica é incerta, podem ser precautórios. O
exemplo do Procedimento de Justificação Prévia, dentro da Convenção de Oslo, já foi
citado: tais procedimentos invertem o ônus da prova tradicional em casos de poluição
ambiental, para que o ônus seja sobre aquele que propõe uma atividade possivelmente
danosa, que deve demonstrar que nenhum dano será causado. A incerteza científica,
portanto, trabalha a favor e não contra o meio ambiente. Um resultado similar também
pode ser obtido de outras formas, como, por exemplo, o uso da “lista reversa”. Na
abordagem tradicional, as atividades proibidas são listadas; uma lista reversa, por sua
vez, dispõe que as atividades permitidas sejam listadas, e todas as outras atividades sejam
proibidas. O procedimento pode ser utilizado para regulação de despejo de lixo, isto é,
somente podem ser despejados detritos, no meio ambiente, se eles estiverem listados;
todos os outros estão proibidos. Cameron e Abouchar relatam que, na Resolução das
partes da Convenção CITES, a listagem precautória é explicitamente reconhecida,78 mas
a proteção somente pode ser reduzida às espécies listadas se a parte que requer a
mudança puder justificar à Conferência das Partes que as espécies não serão
comercializadas ou colocadas em risco com a mudança.79
76
Artigo 2 (9). Reproduzido em Churchill e Freestone, op. cit. n. 14. p. 224.
Por analogia, no Tratado da CE, as propostas da Comissão que têm o papel de promover a integração
entre os Estados-Membros gozam do benefício de uma maioria menor do que as propostas feitas por
membros do próprio Conselho, na estrutura de votos de maioria ponderada do Conselho da União. Ver
Artigo 149 do Tratado da Comunidade Européia.
78
Cameron e Abouchar, op. cit., 1995, p. 59-50. Notar também que sobre o “Berne Criteria”, há muito foi
permitido listar as espécies semelhantes como medidas precautórias “if some of their species are threatened
and identification of individual species within the genus is difficult”. Simon Lyster. International wildlife
law : an analysis of international treaties concerned with the conservation of wildlife. Cambridge : Grotius,
1985, p. 384-406.
79
Cameron e Abouchar, op. cit., 1995, p. 59-50.
77
Considerações similares se aplicam a procedimentos, tais como as auditorias para
a prevenção contra resíduos, sob as quais todos os novos pedidos de permissão para
despejo de lixo serão negados e as permissões em vigor serão revisadas a menos que o
requerente tenha explicitamente abordado a questão da redução dos resíduos. Mais
familiar são as exigências impostas pelo órgãos de licença ou planejamento sobre o uso
da Melhor Tecnologia Disponível (MTD) ou Melhor Prática Ambiental (MPA), em todos
os novos avanços industriais para implementar tecnologias limpas. Em algumas regiões,
um qualificador econômico é geralmente adicionado a essas exigências. Melhor
Tecnologia Disponível Não Acarretando em Custos Excessivos (a tão falada
MTDNACE). Este qualificativo, imposto na União Européia pela Grã-Bretanha, ainda
que tente adicionar um caráter de proporcionalidade à exigência em debate, pode ser
difícil de ser demonstrado em um litígio, em função da subjetividade da expressão
“custos excessivos”, e muitos advogados experientes aconselham as empresas que seria
difícil defender sua visão sobre o que é ou não excessivo para utilização da melhor
tecnologia disponível em um determinado empreendimento.
Em um nível de planejamento mais amplo, O’Riordan desenvolveu o conceito de
“espaço ecológico” derivado da precaução: o conceito básico é que, no gerenciamento de
recursos ambientais, sempre deverá haver certa margem de manobra. O papel do
planejador, portanto, é o de estabelecer padrões mínimos de segurança para que se possa
dar “espaço à natureza, não a compelindo para os limites da tolerância ecológica”. Ele
reconhece que a mudança das formas de uso da terra ou de outros recursos naturais pode
requerer outras medidas, incluindo a possível compensação para aqueles cujos atuais
direitos de propriedade permitem a exploração até os (ou além dos) limites ecológicos.80
Para completar este conceito, também cria um outro, que chama de “poder da vítima”.
Este conceito reconhece que os empreendedores81 precisam apenas demonstrar que
adotaram medidas de salvaguarda razoáveis no delineamento de seus projetos de
desenvolvimento. Na verdade, este requisito pode ser satisfeito com um bom estudo de
impacto ambiental. Uma abordagem precautória sugere que a vítima potencial dos efeitos
prejudiciais de um desenvolvimento deveria ter o direito de levantar questões sobre as
80
81
T. O'Riordan. The Politics ofthe Precautionary Principle, CSERGE Working Paper, 1993.
O autor utiliza a expressão developers. [nota dos organizadores].
possibilidades de dano – mesmo se estão relacionadas a incertezas científicas. Poder-se-ia
requerer dos empreendeores que os mesmos criassem fundos de compensação como uma
garantia para lidar com danos ambientais adversos não previstos e para cobrir o custo
potencial da reconstituição. Tal sistema já demonstrou sua eficácia em pequena escala, na
Austrália, na grande área coberta pela Autoridade Marinha do Parque da Grande Barreira
de Corais (GMPGBC). Os empreendedores que desejam construir instalações tanto na
terra quanto na água, no Parque Marinho, devem obter uma permissão. Os portadores de
permissão devem contribuir para um seguro de desempenho a fim de cobrir os custos de
manutenção das estruturas e instalações, custos de prêmios de seguros, custos de remoção
das estruturas do local, que deve ser reconstituído. O seguro, neste caso, é uma garantia
de uma instituição financeira aprovada (coberta por seguro) ou simplesmente um
depósito em dinheiro. Isto garante que os fundos estarão disponíveis para a limpeza e
remoção se os operadores falharem por alguma razão, no cumprimento de suas
obrigações (por exemplo, por falência). Eles também garantem os custos dos programas
ambientais de monitoramento e do programa do código de práticas ambientais. Podem,
além disso, ter autorização de considerar o custo de sobrevida do seguro, após a
permissão ter expirado. Os valores das apólices vão de A$1.000 para pequenos locais de
mergulho até A$1.000.000 para a construção de um hotel flutuante.82 O que está sendo
feito, de fato, é a criação de um procedimento explícito para internalizar os custos
ambientais mais amplos do desenvolvimento, para que se estendam aos danos a sistemas
ecológicos em vez da simples exploração humana desses sistemas.83 Tal abordagem é
também implicitamente precautória na medida em que busca impor um valor ecológico
82
O sistema parece dar certo. Em 1988 a Townsville Entrepreneur construiu uma nova instalação chamada
de Ilha da Fantasia – um barco largo de concreto em forma de anel. Era um hotel flutuante grande o
bastante para fornecer serviços diários para 600 pessoas, bares, restaurantes e observatórios submarinos
bem como uma área central para natação. Ele foi construído para o Brewer Reef; mas, após dez dias, ele foi
afundado por fortes ventos e ondas. O GBRMPA requereu remoção de acordo com a permissão. Quando
isto não foi feito, o seguro forneceu o financiamento para a companhia seguradora limpar os destroços. J.
Craik. Resorting to Tourism: Cultural Policies for Tourist Development in Australia, 1990. Para mais
exemplos, ver David Freestone. “International and National Legal Instruments Required to Regulate Land
Based Sources of Marine Pollution in the Wider Caribbean and to Facilitate Socio-Economic Assistance to
Sustainable Tourism in the Region”, UNEP/ACOPS Conference on Sustainable Tourism in the Wider
Caribbean, Cidade do México, abril de 1995.
83
Ver também o exemplo fornecido por J. S. Gray. “Integrating precautionary scientific methods into
decision-making”. In Freestone, David e Ellen Hey, The Precautionary Principle and International Law:
The Challenge of Implementation. Boston : Kluwer Law International, 1995. sobre os procedimentos
introduzidos no processo decisório para a construção de uma ponte em volta do Great Belt, na Dinamarca.
sobre os recursos tradicionalmente considerados como gratuitos. Isto nos traz de volta ao
artigo de Nollkaemper – “Quanto mais você valoriza algo, tanto menos você o põe em
risco”. Se é dado um valor ecológico aos recursos naturais em lugar de um valor de
exploração, simplesmente, então os empreendedores e os exploradores terão que incluir
os custos de tais riscos no capital de seu empreendimento.
O que nós buscamos demonstrar é que, apesar do princípio da precaução ser novo
como imperativo de política ambiental, para nós ele não é um novo conceito humano.
Earll coloca isto de forma mais contextual:
A ação precautória para evitar eventos perigosos é
uma faceta universal facilmente entendida e amplamente
praticada do comportamento humano. Nós tomamos todas
as precauções em nossa vida diária: checamos nossos
espelhos do carro antes de dirigir; usamos preservativos
para evitar infecções de HIV; colocamos o cinto de
segurança para evitar lesões em acidentes. A precaução toca
um acorde comum, se não surgir uma outra forma que
facilite o entendimento, é provável que nós continuemos a
discutir o princípio da precaução.84
Da mesma forma, ainda que um grande número de novas técnicas e instrumentos
tenha exigido e continue a exigir legalmente a implementação das políticas e regras
precautórias, já existe um vasto corpo de técnicas que podem ser facilmente adaptadas.
Nos sistemas normativos nacionais, o desenvolvimento das regras de direito criminal de
responsabilidade estrita e absoluta, desencadeadas para a proteção da saúde e segurança,
tem sido facilmente adaptado tanto para a proteção ambiental85 como para a proteção de
recursos.86 A legislação nacional altera o ônus da prova por razões similares de políticas
84
R.C. Earll. “Common-sense and the Precautionary Principle - an Environmentalist's Perspective”, 1992,
24 Marine Pollution Bulletin, 1992, n.24, p. 182.
85
O caso principal na Grã-Bretanha é Alphacell v Woodward, [1972] 2 All ER 475, no qual a House of
Lords (a mais alta Corte Inglesa de apelação) se posicionou que o réu poderia ser culpado pela ofensa de
“causing poisonous, noxious and polluting matter to enter a stream” (contrário ao s. 2(1) Rivers Act
(Prevention of Pollution) sem o requerimento normal do mens rea ou da intenção culposa.
86
Um grande número de exemplos são estudados por David Freestone. The Burden of Proof in Natural
Resources Legislatian UN FAO Legal Office, 1995.
públicas com mais freqüência do que se poderia esperar.87 Dentro dos sistemas de direito
privado, deveres legais e padrões relevantes de cuidado podem também ser modificados
para considerarem frágeis os ecossistemas, da mesma forma que, no passado, levaram em
consideração os indivíduos frágeis.88
Concluindo, o fato de que muitas dessas técnicas e procedimentos são familiares e
podem ser adaptados, a abordagem precautória não deve cegar-nos para o fato de que o
impacto do princípio da precaução sobre regimes internacionais de regulação tem sido de
fundamental importância. Como os capítulos deste livro demonstraram, o princípio nos
levou a reexaminar muitos dos diversos conceitos básicos de política de gestão ambiental
assim como muitos daqueles do sistema internacional legal. A emergência do princípio
da precaução modificou definitivamente a face do direito e da política internacional
ambiental. O desafio de implementar o princípio da precaução com a força de sua visão
original não pode ser facilmente subestimado. Acreditamos que as consideráveis idéias
coletadas nos artigos deste livro contribuíram para nosso entendimento desse processo.
Referências Bibliográficas
BIRNIE, P. W. e BOYLE, A.E. International Law and the Environment. Oxford: Claredon Press, 1992 BLAKE, Gerald H. et alii (eds). The Peaceful Management of Transboundary Resour-­‐
ces. Haya: Kluwer Law International, 1995 87
Ver, por exemplo, Indian Forestry Act de 1927que determina que qualquer procedimento legal no qual se
uma questão emerge como a propriedade da produção florestal, é presumido (até que o contrário seja
provado) que a produção é propriedade do Governo; o Canadian Fisheries Act de 1979, s. 25 determina que
em todos os julgamentos sobre o ato, o ônus da prova recaia sobre a pessoa que compra, obtém ou tem
posse sobre o peixe à mostra: onde os peixes foram capturados; por quem eles foram capturados; como eles
foram capturados; e de quem eles foram comprados ou obtidos.
88
Notar os tão falados casos egg-shell skull, envolvendo obrigações para queixosos altamente sensitivos na
lei inglesa. Nos Estados Unidos, as Cortes estão começando a levar em consideração o dano aos
ecossistemas em litígios privados. Veja Commonwealth of Puerto Rico v Zoe Colocotroni, 456 F.Supp
1327, 1978, ; 628 F. 2d 652, 1980. Em primeira instância, a Corte permitiu a alegação de perda de
organismos marinhos, bem como o replantio de um mangue atingido por um derramamento de óleo; a
alegação foi reduzida no apelo a medidas “razoáveis” de restauração. Para uma discussão mais ampla, ver
Birnie e Boyle op. cit., n. 1, p. 205.
CAMERON e ABOUCHAR. “The status of the precautionary principle in international law”, In FREESTONE, David e HEY, Ellen. The Precautionary Principle and International Law: The Challenge of Implementation. Boston : Kluwer Law International, 1995 EARLL, R. C. “Common-­‐sense and the Precautionary Principle -­‐ an Environmentalist's Perspective”, Marine Pollution Bulletin, 1992, n.24 , p. 182-­‐186. ELFERINK, Alex G. Oude. Fisheries in the Sea of Okhotsk High Seas Enclave: Towards a Special Legal Regime. London e Boston: Martinus Nijhoff, 1994 FREESTONE, D. e HEY, E. “Origins and development of the precautionary principle”. In FREESTONE, David e HEY, Ellen, The Precautionary Principle and International Law: The Challenge of Implementation. Boston : Kluwer Law International, 1995. FREESTONE, David. “The Precautionary Principle”; Robin Churchill e David Freestone (Eds.). International law and global climate change. London : Graham & Trotman/Nijhoff, 1991. FREESTONE. “The Road from Rio: International Environmental Law after the Earth Summit”, Journal of Environmental Law, n. 6, 1994, p. 193-­‐218 GRAY, J. S. “The economics of taking care: an evaluation of the precautionary principle”. In FREESTONE, David e HEY, Ellen. The Precautionary Principle and International Law: The Challenge of Implementation. Boston : Kluwer Law International, 1995. GUPTA, J. “Glocalization: the precautionary principle and public participation, with special reference to the UN framework convention on climate change”. In FREESTONE, David e HEY, Ellen. The Precautionary Principle and International Law: The Challenge of Implementation. Boston : Kluwer Law International, 1995 HANCHER, L. “EC Environmental policy – a pre-­‐cautionary tale?”. In Freestone, David and Ellen Hey, The Precautionary Principle and International Law: The Challenge of Implementation. Boston: Kluwer Law International, 1995. HANDL,Gunther. “Environmental Security and Global Change: the Challenge to International Law”, Yearbook of International Environmental Law, 1990, n.1 p. 3-­‐33 HEY, Ellen. “The Precautionary Concept in Environmental Law and Policy: Institutionalizing Caution”, Georgetown International Environmental Law Review, 1992, n.4, p. 303-­‐318. HOHMANN,H. Precautionary Legal Duties and Principles of Modern International Environmental Law, The Precautionary Principle: International Environmental Law Between Exploitation and Protection, 1994. KAMMINGA, M. T. “The precautionary approach in international human rights law: how it can benefit the environment”. In Freestone, David and Ellen Hey. The Precautionary Principle and International Law: The Challenge of Implementation. Boston : Kluwer Law International, 1995. KISS, A. Os direitos e interesses das futuras gerações e o princípio da precaução in VARELLA, Marcelo e PLATIAU, A. Princípio da precaução. Belo Horizonte: Del Rey, 2003. MOLTKE, K. von. “The relationship between policy, science, technology, economics and law in the implementation of the precautionary principle” In FREESTONE, David e HEY, Ellen. The Precautionary Principle and International Law: The Challenge of Implementation. Boston : Kluwer Law International, 1995 MUNRO, R. D. e LAMMERS, J. G. (ed.). Environmental Protection and Sustainable Development: Legal Principles and Recommendation. London e Boston: Martinus Nijhoff, 1987. NOLLKAEMPER, A. “What you risk reveals what you value', and other dilemmas encountered in the legal assaults on risks”. In FREESTONE, David e HEY, Ellen, The Precautionary Principle and International Law: The Challenge of Implementation. Boston: Kluwer Law International, 1995. O'RIORDAN e J. CAMERON. Interpreting the Precautionary Principle. Londers: EarthScan, 1993 O'RIORDAN, T. The Politics ofthe Precautionary Principle, CSERGE Working Paper, 1993. SAND, Peter H. Lessons Learned in Global Environmental Governance. Washington: World Ressources Institute, 1990 TINKER, C. “State responsibility and the precautionary principle”. In FREESTONE, David e HEY, Ellen, The Precautionary Principle and International Law: The Challenge of Implementation. Boston: Kluwer Law International, 1995. Capítulo 9
Implementado Cautelosamente a Precaução
A Abordagem Precautória no Acordo das Nações Unidas sobre a
Conservação e Ordenamento de Populações de Peixes Tranzonais e de Populações
de Peixes Altamente Migratórios
David Freestone*
1. Introdução
O artigo 6 do Acordo para a Implementação das Cláusulas da Convenção das
Nações Unidas sobre Direito do Mar, de 10 de dezembro de 1982, relacionado com o
Acordo das Nações Unidas sobre a Conservação e Ordenamento de Populações de
Peixes Tranzonais1 e de Populações de Peixes Altamente Migratórios exige o uso de uma
abordagem cautelosa na gestão das populações de peixes tranzonais e de populações de
peixes altamente migratórios. O Anexo II determina uma metodologia para a aplicação
de tal abordagem de precaução. O significado da introdução da precaução na agenda
reguladora da pesca global não deve ser subestimado. Como sugerimos em outro artigo,
esta característica, juntamente com outras do Acordo, pode ser compreendida como a
primeira introdução de uma dimensão verdadeiramente ambiental, na lei internacional da
pesca2.
O final do século XX, especialmente a última década, foi extremamente
turbulento para a gestão da pesca e, conseqüentemente, para os regimes legais que
procuram regular a pesca3. Em 1994, a Organização das Nações Unidas para a
* David Freestone é professor de direito internacional e diretor da Unidade de Direito Internacional do Banco Mundial, nos Estados Unidos 1
Trata-se de populações de peixes que se deslocam entre as zonas de exploração exclusivas dos Estados e
as águas internacionais [nota dos organizadores]. O texto pode ser encontrado em International Legal
Materials (1995) 34 ILM1542. [utilizaremos o acrônimo ILM para o periódico International Legal
Materials – nota dos organizadores]
2
Ver D. Freestone and Z. Makuch. “The International Environmental Law of Fisheries: The 1995
Straddling Stocks Agreement”. Yearbook of International Environmental Law, 1996, n. 7, p. 3-49. Como
complemento à introdução da metodologia da precaução, ver em especial as referências a espécies
dependentes e conservação ecossistêmica, assim como o uso de procedimentos de aumento da eficácia,
como as relacionadas à jurisdição estatal dos portos, desenvolvida para o aumento da eficácia das
obrigações ambientais, na Parte 11 da Convenção sobre o Direito do Mar.
3
Ver, por exemplo, B. Kwiatkowska. “The High Seas Fisheries Regime: At a Point of No Return?”. The
International Journal of Marine and Coastal Law, 1993, n. 8, p. 327-358 and D. Freestone. “The Effective
Conservation and Gestão of High Seas Living Resources: Towards a New Regime?”. The Canterbury Law
Review, 1994, n. 5, p. 341-362.
Alimentação e Agricultura (FAO) constatou que, nos anos 90, houve o primeiro declínio
da pesca global, à exceção de uma pequena queda ocorrida nos anos 70.4 A pesca anual
de mais de 80 milhões Mt ao ano representou um aumento de 400% em relação aos anos
50. Os cientistas sugeriram que o limite ecológico da pesca mundial poderia ser de 100
milhões Mt. ao ano, havendo margens de erro consideráveis em todos esses dados
(podendo chegar a 20%). O declínio deve ser visto como resultado dos altos
investimentos de capital na atividade pesqueira e da introdução de novas tecnologias. A
FAO sugeriu que, talvez tenhamos alcançado os limites de produção da “pesca
selvagem” e que o desenvolvimento sustentável do setor de pesca não pode, parece, ser
atingido com os regimes atuais de “acesso aberto”.5 O resultado foi uma abundância de
novos instrumentos internacionais que tentam considerar a nova realidade. Como Hey
salientou, esses instrumentos tentaram direcionar quatro questões legais cruciais que não
foram tradicionalmente consideradas precauções do direito internacional, mas questões
sob a jurisdição dos Estados. As questões são: o exercício da jurisdição efetiva sobre as
populações de peixes; o exercício de jurisdição sobre as populações de peixes dentro de
zonas econômicas exclusivas que sofreram declínios súbitos (como, por exemplo, do
Atlântico Noroeste e Mar do Norte); o exercício efetivo de jurisdição dos Estados sobre
as embarcações com suas próprias bandeiras e pescando em alto-mar e até que ponto os
regimes legais devem incorporar questões sobre a conservação e o uso sustentável da
diversidade biológica marinha.6
Dentre os novos instrumentos, o mais importante é o Acordo das Nações Unidas
sobre a Conservação e Ordenamento de Populações de Peixes Tranzonais7 e de
Populações de Peixes Altamente Migratórios. Cabe ressaltar também: o Capítulo 17 da
Agenda 218; o Acordo de 1993, que promove a Eficácia das Medidas de Gestão e
4
FAO. “Review of the state of world marine fishery resources”. FAO Technical Paper, Roma, 1994, n.355.
FAO. “Review of the state of world marine fishery resources”. FAO Technical Paper, Roma, 1994, n.
355.
6
E. Hey. “Global Fisheries Regulations in the first half of the 1990s”. The International Journal of Marine
and Coastal Law, 1996, n. 11, p. 459-490.
7
United Nations, Report ofthe United Nations Conference on Environment and Desenvolvimento, UN Doc
A/CONF/151/26, 1992, n. 2.
8
(1994) 33 ILM 968. Especificamente sobre o Acordo sobre a eficácia ver D. A. Balton. The Compliance
Agreement. in E. Hey. Developments in International Fisheries Law. Boston: Kluwer Law International,
1995. and G. Moore. “The Food and Agriculture Organisation of theUnited Nations Compliance
5
Conservação Internacional pelos Barcos Pesqueiros em alto-mar9 (Acordo de
Submissão); o Código de Conduta de 1995 para a Pesca Responsável (Código de
Conduta) e o Mandato da Convenção de Jacarta sobre Diversidade Biológica10. Esses
textos adicionaram uma série de novos comentários interpretativos para a Convenção
sobre o Direito do Mar das Nações Unidas, de 1982
11
(UNCLOS).12 Essa Convenção
confere poderes exclusivos aos Estados costeiros para controlar a pesca dentro de zonas
econômicas exclusivas de 200 milhas náuticas, mas pouco contribui para regular
efetivamente aqueles recursos que não são ou nem sempre são encontrados, dentro
daquelas zonas jurisdicionais. Na verdade, como já foi mencionado, a evidência sugere
que mesmo os cardumes que estão dentro das zonas de 200 milhas sofreram
superexploração. O futuro dos recursos pesqueiros mundiais tem-se tornado
progressivamente uma questão de preocupação da comunidade internacional, não
simplesmente por causa do impacto econômico da diminuição desses recursos, mas em
função do potencial significado ecológico de tal diminuição para os ecossistemas
marinhos.13
A rápida evolução do direito de pesca internacional, nos anos 90, trouxe em
contraste mais forte o regime legal que existia antes da Convenção sobre o Direito do
Mar. Outros salientaram que as Convenções de Genebra de 1958 refletiam a visão geral
de que a pesca era um recurso ilimitado e que a grande maioria da pesca acontecia em
alto-mar, fora, portanto, das três milhas de mar territorial.14 O interesse público em
Agreement”. The International Journal of Marine and Coastal Law, 1995, n. 10, p. 412-426. (Annexing the
text of the Agreement.)
9
Especificamente sobre o Código de Conduta, ver G. Moore. The Code of Conduct for Responsible
Fisheries. in E. Hey. Developments in International Fisheries Law. Boston: Kluwer Law International,
1995 and W. M. Edeson. “The Code of Conduct for Responsible Fisheries: An Introduction”. The
International Journal of Marine and Coastal Law, 1996, n. 11, p. 233-238.
10
Further discussion ver E. Hey, a este livro nota 6, p. 485; e também M. Goote. “The Jakarta Mandate”.
The International Journal ofMarine and Coastal Law, 1997, n. 12, p. 377-395 which reproduces the text of
the SBSTTA Recommendation 1/8 (parágrafos. 10-19) assim como o seu apêndice .
11
(1982) 21 ILM 1261 . Especificamente sobre as profissões da Convenção sobre o Direito do Mar sobre
Pesca, ver E. Hey. Developments in International Fisheries Law. Boston: Kluwer Law International, 1995.
12
A importância de novas espécies e da pesca regional em certos acordos internacionais será discutida
adiante.
13
Ver, por exemplo. D. Freestone. “The Conservation of Marine Ecosystems under International Law”. in
M. Bowman and C. Redgwell (eds.). International Law and the Conservation of Biological Diversity, 1996.
p. 91-107, assim como as fontes citadas nele.
14
D.H. Anderson. “The Straddling Stocks Agreement of 1995 - An Initial Assessment”. International and
Comparative Law Quarterly, 1996, n. 45, p. 463-475.
relação aos recursos pesqueiros era simplesmente para exigir o exercício do direito à
pesca – uma das liberdades fundamentais do alto-mar – que deveria ser exercido com
uma “atenção equilibrada em relação aos interesses dos outros Estados sobre o exercício
da liberdade em alto-mar”.15 Este teste de “atenção equilibrada” foi, de certa forma,
concretizado nas obrigações gerais da Convenção de 1958 sobre Pesca e Conservação
dos Recursos Marinhos em Alto-Mar16 (Convenção de Pesca de 1958), exigindo que um
Estado que pesque em alto-mar leve em consideração as obrigações desse tratado, os
interesses e direitos dos Estados costeiros e (de maneira limitada) as exigências de
conservação.17 Impôs também uma taxa para os Estados adotarem ou para cooperarem
adotando de medidas de conservação da pesca para seus nacionais.18 Todavia, a
definição de “conservação”, na Convenção de Pesca de 1958, tem um caráter
inteiramente antropocêntrico e relacionado com a garantia do máximo fornecimento de
alimentos e outros produtos marinhos para o consumo humano.19
A Convenção sobre o Direito do Mar reflete uma preocupação mais ampla com a
dimensão regulatória do ambiente marinho. Contudo, a mudança primária introduzida no
regime de pesca foi permitir a inclusão de zonas de 200 milhas e boa parte da energia
despendida nas negociações parece ter sido direcionada para assegurar que os Estados
costeiros gerenciem esse recurso, de maneira efetiva. Em compensação, o regime de
pesca em alto-mar está muito menos desenvolvido. Brown resume seu principal objetivo
como o de “produzir o máximo de rendimento sustentável definido por uma grande
quantidade de fatores vagos.”20 Da mesma forma, o regime que trata das populações de
peixes que transitam entre zonas econômicas exclusivas e em alto-mar é tão vago quanto
a Convenção. Suas cláusulas são essencialmente incitativas e foram caracterizadas como
15
Art. 2 da Convenção sobre o Alto-Mar, HMSO, de 1958 (CMND, 584)
Idem.
17
Art. 1(1) da Convenção sobre a Pesca, de 1958. Para uma definição de “conservação de recursos vivos no
alto-mar”. ver art. 2 da mesma Convenção, como indicado abaixo, na nota 19
18
Art. 1(2), da Convenção sobre a Pesca, de 1958.
19
A definição no artigo 2° da Convenção sobre a Pesca, de 1958 é “o agregado de medidas que tornam
possível o uso máximo sustentável destes recursos, para garantir o máximo de alimento e outros produtos
marinhos. Os programas de conservação devem ser formulados com o objetivo de assegurar em primeiro
lugar o suprimento de alimento para o consumo humano”. Comparar este com as exigências ambientais do
artigo 119 da Convenção, conforme discutido no texto da nota 56, mais adiante.
20
E.D. Brown. “The International Law of the Sea, Dartmouth”. 1994, n. 1, p. 319.
16
parte da “agenda incompleta” da Convenção sobre o Direito do Mar.21 Esses dispositivos
refletem uma visão tradicional, segundo a qual o interesse comunitário é alcançado com
a mínima interferência nos direitos em alto-mar.
A emergência de um conjunto normativo de direito jurídico internacional
ambiental revela uma preocupação um tanto diferente. Isto está refletido no argumento
de que a comunidade internacional tem um interesse na proteção de certos recursoschave compartilhados – o então chamado patrimônio comum da humanidade - as pescas
em alto-mar, a atmosfera, a camada de ozônio e alguns aspectos da diversidade
biológica, que não podem simplesmente se defender por si próprios. Como nós
discutimos em outros textos, “cada vez mais, o direito internacional ambiental está ...
aceitando que a tradicional visão rígida de soberania do Estado, na qual as atividades sob
controle estatal são imutáveis, não pode ser compatível com as tentativas sérias de
abordar problemas globais.”22
O princípio da precaução é parte desse desenvolvimento. Tem sido respaldado
por um grande número de órgãos nacionais e internacionais, que o definem como um
conceito-chave, a que o juiz Weeramantry chamou recentemente de princípio jurídico de
desenvolvimento sustentável.23 A aceitação do princípio da precaução vincula à
aceitação do fato de que restrições devem ser impostas a atividades que têm impactos
negativos significativos no ambiente, mesmo que a ciência seja incapaz de prever de
maneira exata quais serão essas conseqüências. Não é ou necessariamente não é uma
doutrina absolutista, visto que o próprio conceito de “impactos negativos significativos”
envolve um julgamento de valor considerável24, assim como o termo “restrições”. No
entanto, a inclusão da precaução no Acordo sobre Conservação e Ordenamento de
Populações de Peixes Tranzonais e de Populações de Peixes Altamente Migratórios,
assim como o reconhecimento da importância da conservação dos ecossistemas e da
21
Ver B. Kwiatkowska, e D. Freestone, nota 3.
D. Freestone and E. Hey. “Implementando o Princípio da Precaução: desafios e oportunidades” in M. D.
Varella; A. F. Platiau. Princípio da Precaução. Belo Horizonte: Del Rey, 2003. This develops the argument
by G. Handl. “Environmental Security and Global Change: the Challenge to International Law”. Yearbook
of International Environmental Law, 1990, n.1, p. 3-33.
23
Opinião em separado no caso Gabcikovo-Nagymaros (Hungria v. Eslováquia), julgado em 5 de setembro
de 1997, ICJ Reports, 1997.
24
Como D. Fleming colocou: “one person's `unacceptable consequence' is another person's `regrettable
necessity”' ver “The Economics of Taking Care: an Evaluation of the Precautionary Principle” in Freestone
e Hey (eds.), p. 147.
22
biodiversidade são partes de um reconhecimento legal importante de que existem
interesses comuns mais amplos, na questão da conservação e gestão dos recursos
pesqueiros. Enquanto a Convenção de Pesca de 1958 fixou o objetivo primário de pesca
em alto-mar como a maximização de alimentos para o consumo humano, a Convenção
sobre o Direito do Mar instituiu um conceito de rendimento máximo sustentável,
qualificado por uma variedade ampla de “fatores vagos”, entre os quais alguns
ambientais25. O Acordo sobre Conservação e Ordenamento de Populações de Peixes
Tranzonais e de Populações de Peixes Altamente Migratórios completa estes fatores
ambientais, colocando-os como importantes para a defesa do meio ambiente per se.26
Com a abordagem da precaução, também introduz uma metodologia para lidar com a
questão da informação científica.27 As exigências do uso de informação científica sempre
estiveram presentes28; a questão tem sido o que fazer quando mesmo a melhor evidência
científica é incompleta ou não é conclusiva.
Apesar dos piores temores de alguns negociadores do Acordo, uma abordagem de
precaução não impõe uma moratória completa sobre as operações de pesca em tais
situações, mas o que se pode fazer é transferir o ônus da prova ou mesmo as exigências
de prova (isto é, os padrões ou princípios), antes que determinadas medidas de
conservação sejam colocadas em prática. O significado disto é que, em vez do ônus da
prova recair sobre aqueles que defendem a conservação, que deveriam de forma absoluta
provar que as populações de peixes estão ameaçadas para que depois medidas de
conservação fossem implementadas (como foi no passado), um número de parâmetros de
gestão de populações de peixes é estabelecido ab initio e, se houver desrespeito a esses
parâmetros, as medidas de conservação serão automaticamente aplicadas. Aqueles que
desejarem continuar a pescar nos mesmos níveis de exploração, devem provar, usando a
25
E.D. Brown, supra nota 20. Os fatores vagos são que as medidas devem ser fundamentadas na “melhor
evidência científica disponível” e devem acomodar tanto fatores econômicos como ambientais”. Estes
fatores são listados, de forma não-exaustiva, para incluir as exigências especiais dos Estados em
desenvolvimento e devem levar em consideração padrões de pesca, interdependência das populações de
peixes e qualquer recomendação geral para padrões mínimos internacionais.
26
Ver em particular art. 5, Acordo sobre Populações de Peixes Tranzonais e Altamente Migratórios.
27
J. Cooke and M. Earle. “Towards a Precautionary Approach to Fisheries Gestion”. RECIEL, 1993, n. 2,
p. 252-259.
28
Por exemplo, art. 7 da Convenção de Genebra de 1958, obriga os Estados costeiros a tomarem atitudes se
“existir uma necessidade para as medidas de conservação, com base no conhecimento existente sobre a
pesca” e se elas forem “fundamentadas nos conhecimentos científicos apropriados”. Ver também o artigo
119 da Convenção sobre o Direito do Mar.
melhor evidência científica disponível, que suas atividades não trarão impactos
inaceitáveis sobre os cardumes. Isto constitui a inversão do ônus da prova, como
concebida normalmente, em favor da conservação e em detrimento da exploração, mas
essa inversão apenas se aplica quando se excedem os parâmetros de gestão
predeterminados. De fato, como será discutido a seguir, essa metodologia e as medidas
de resposta determinadas pelo Anexo II certamente não são draconianas e podem ser
dadas como exemplo de uma aplicação relativamente cautelosa da abordagem
precautória. Somente o tempo irá dizer se elas são suficientes, mas é importante não
subestimar o significado de tal mudança para a abordagem conservacionista.
Este capítulo examinará a evolução do princípio da precaução, abordagem mais
importante de uma nova política, na cooperação ambiental internacional.29 Será
apresentada a maneira pela qual o conceito foi desenvolvido desde suas origens, no
controle da poluição até na esfera do controle da pesca, nas negociações que levaram à
Convenção sobre Peixes Tranzonais e Altamente Migratórios. Descreveremos em
seguida a maneira pela qual o conceito foi incorporado nesse tratado e a importância
disto para a utilização do princípio, no futuro.
2. A Evolução do Princípio da Precaução
O Princípio 15 da Declaração do Rio 1992, adotado na Conferência das Nações
Unidas sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento (CNUMAD), afirma que:
Com o fim de proteger o meio ambiente, o princípio da precaução
deverá ser amplamente observado pelos Estados, de acordo com suas
capacidades. Quando houver ameaça de danos graves ou irreversíveis, a
ausência de certeza científica absoluta não será utilizada como razão para
o adiamento de medidas economicamente viáveis para prevenir a
degradação ambiental.30
As origens e o desenvolvimento do princípio da precaução foram bem
documentados e analisados em outros artigos.31 Todavia, algumas breves determinações
29
D. Freestone. “The Precautionary Principle” in R. Churchill and D. Freestone (eds.). International Law
and Global Climate Change. Boston: Kluwer Law International. 1991, p. 36.
30
Sobre os documentos adotados na CNUMAD ver UN Doc. A/Conf.151/26 (v. 1-5), 12 de agosto de
1992.
31
Freestone, supra nota 29, p. 22-23; P. Ehlers. The History of the International North Sea Conferences. in
D. Freestone and T. Ijltra (eds.). The North Sea Perspectives on Regional Environmental Co-operation,
podem ser úteis para identificar a maneira pela qual o princípio se tornou um princípioguia na maioria das normas e jurisprudência modernas, nacionais e internacionais,
relacionadas à conservação de recursos naturais e ambientais. Quando o princípio surgiu
no contexto da poluição marinha, nos últimos dez anos, observou-se que foi aplicado em
diversos temas relacionados à exploração de recursos naturais e ambientais: da
diminuição da camada de ozônio e mudanças climáticas à conservação da diversidade
biológica, ao transporte de resíduos tóxicos e às modalidades de pesca em escala
comercial.
O princípio da precaução iniciou seu caminho na política e no direito
internacional, a partir dos resultados obtidos pelas propostas alemãs feitas nas
Conferências Interministeriais Internacionais do Mar do Norte.32 As propostas
baseavam-se no Vorsorgeprinzip do direito alemão. Do Fórum Ministerial do Mar do
Norte, o conceito encontrou seu caminho nos trabalhos das Comissões de Paris e Oslo33,
nos regimes ambientais marinhos globais, tais como foram desenvolvidos na Convenção
de Prevenção da Poluição Marinha por Operações de Imersão de Resíduos e outros
Produtos34 (Convenção de Londres, 1972)35, nos regimes ambientais globais e, a partir
1990, p. 3-14. Lothar Giindling. The Status in International Law of the Principle of Precautionary Action.
in Freestone and Ijlstra (eds.). The North Sea Perspectives on Regional Environmental Co-operation, p.
24; D. Freestone and E. Hey. Origins and Development of the Precautionary Principle¸ op. cit.
32
O texto alemão da Declaração da primeira Conferência Internacional do Mar do Norte, realizada em
Bremen, em 1984, contém o termo Vorsorgemassnahmen, enquanto o texto em inglês faz referência as
“medidas tempestivamente preventivas”. Para o texto da Declaração de Bremen, ver D. Freestone and T.
Ijltra (eds.). The North Sea: Basic Legal Documents on Regional Environmental Co-operation. 1991, p. 61.
A primeira referência explícita ao conceito precautório surgiu na Declaração da Segunda Conferência do
Mar do Norte, realizada em Londres, em 1987. Os participantes declararam que eles aceitavam que “com o
objetivo de proteger o Mar do Norte de possíveis efeitos danosos de substâncias mais perigosas, um
enfoque precautório é necessário, que deve requerer ações para controlar os lançamentos dessas
substâncias, mesmo antes da prova do nexo causal por evidências científicas claras”. Parágrafo VII,
Declaração de Londres. Sobre o texto da Declaração de Londres, ver Freestone and Ijlstra (eds.). The North
Sea Perspectives on Regional Environmental Co-operation. 1991, p. 3.
33
Ver, por exemplo, Recomendação 89/1 da PARCOM, 22 de junho de 1989, sobre o princípio da ação
precautória, e Decisão 98/1 da OSCOM, de 14 de junho de 1989, sobre o procedimento de justificação
prévia, reimpresso em Freestone and Ijlstra (eds.). The North Sea Perspectives on Regional Environmental
Co-operation, respectivamente nas páginas 152 e 119.
34
(1972) 11 ILM 1291 .
35
Resolução LDC 44(14) sobre a Aplicação da Abordagem Precautória na Proteção Ambiental, no quadro
legal da Convenção de Londres, em seu anexo 2, ,doc. LDC 14/16, de 30 de dezembro de 1990. Ver
também o relatório de E. Hey. The Precautionary Approach and the London Dumping Convention, de 4 de
setembro de 1991, LDC 14/4.
daí, continuou em um amplo leque de negociações internacionais36 , incluindo aquelas
sobre a Convenção de Peixes Tranzonais e Altamente Migratórios.
O princípio básico da abordagem da precaução37, que a distingue das abordagens
de “prevenção” mais tradicionais é que a ação positiva para proteger o ambiente deve ser
exigida antes que a prova científica de dano seja fornecida.38 Está claro que o princípio
da precaução (pensamento ou ação precautória) cobre uma ampla variedade de
obrigações e ações possíveis.39 Numa formulação mais sutil,40 seria difícil distinguir do
36
Em novembro de 1990, o Secretário-Geral da ONU, em seu Relatório sobre o Direito do Mar
expressamente reconheceu o “significado importante” do princípio da precaução para os futuros enfoques
sobre a proteção do meio ambiente marinho e a conservação dos recursos; ele relatou que o princípio tem
sido endossado “por todos os fóruns recentes” (UN Doc. A/45/721, 19 de novembro de 1990, p. 20,
parágrafo 60) Exemplos específicos de instrumentos recentes endossando o princípio ou enfoque da
precaução incluem os seguintes: Declaração Ministerial para a Proteção do Mar Negro de 1993
Environmental Policy and Law, p. 235 (para maiores informações ver E. Hey and L. D. Mee. “Black Sea,
The Ministerial Declaration: An Important Step” id., p. 215-220); Convenção-Quadro das Nações Unidas
sobre Mudanças Climáticas, de 1992, Convenção sobre a Diversidade Biológica, Convenção sobre a
Proteção da Região do Mar Báltico, de 1992, Yearbook of International Environmental Law; The
International Journal of Marine and Coastal Law, p. 215, com comentários de P. Ehlers, p. 191; A
Convenção sobre a Proteção e o Uso de Rios Transfronteiriços (Watercourses and Lakes, (1992) 31 ILM
1312); o Tratado de Maastricht da Comunidade Européia 31 1141247, 1992; o Protocolo da Convenção
sobre a Prevenção da Poluição Marinha pelo dejetos de lixos e outras matérias, de 1992., 36 ILM 1 (1997)
(para maiores informações, ver René Coenen. “Dumping of Wastes at Sea: Adoption of the 1996 Protocol
to the London Convention 1972”. RECIEL, 1997, n.6, p. 54-61); A Convenção para a Proteção do
Ambiente Marinho no Nordeste do Atlântico, de 1992, International Journal of Marine and Coastal Law,
p. 50 (para maiores informações ver E. Hey, T. Ijlstra and A. Nollkaemper. “The 1992 Paris Convention for
the Proteção of the Marine Environment of the North-East Atlantic: A Critical Analysis”. International
Journal of Marine and Coastal Law, 1993, n.8, p. 1-49).
37
Para estudos mais profundos, ver, por exemplo, Gundling, supra nota 31; J. Cameron and Juli Abouchar.
“The Precautionary Principle: A Fundamental Principle of Law and Policy for the Proteção of the Global
Environment”. Boston College International Law Review, 1991, n. 14, p. 1-27; Freestone, supra nota 29, p.
21-40; E. Hey. “The Precautionary Approach : Implications of the Revision of the Oslo and Paris
Conventions” Marine Policy, 1991, n. 15, p. 244-254; E. Hey. “The Precautionary Concept in
Environmental Law and Policy: Institutionalizing Caution”. Georgetown International Environmental Law
Review, 1992, n. 4, p. 303-318; Timothy O'Riordan and J. Cameron (eds.). Interpreting the Precautionary
Principle. Earthscan, 1994.
38
Para uma discussão mais ampla, ver o artigo de Freestone e Hey, neste livro.
39
O conceito pode ser encontrado em documentos legais sobre conceitos e obrigações preexistentes. Ver,
por exemplo, Report of Experts Group on Environmental Law of the World Commission on Environment
and Development (WCED), published as Environmental Protection and Sustainable Desenvolvimento:
Legal Principles and Recommendations, R. D. Monroe and J.G. Lammers (eds.). Graham
&Trotman/Martinus Nijhoff, 1987. O grupo de peritos sugeriu que: “a obrigação do Estado de prevenir ou
evitar a interferência ambiental transfronteiriça existe apenas se for razoavelmente previsível [itálicos
originais] que o dano substancial [ênfase nossa] seja causado, ou que exista um risco significativo (ênfases
nossa) que tal dano seja causado a natureza e a extensão das medidas a serem tomadas, logicamente,
dependem da natureza e da extensão do dano extraterritorial que deve ser prevenido ou evitado” (p. 79-80).
De forma similar, a exigência da previsibilidade, ou a avaliação de quanto um risco é ou não significativo
não é uma obrigação passiva. É preciso que seja uma exigência objetiva que o Estado deva ter o devido
cuidado nas suas investigações independentemente se o dano está ou não prestes a ser gerado. Isso deve
incluir a investigação dentro da lógica do princípio do desenvolvimento sustentável, ,dos impactos
princípio da prevenção que é bem conhecido pelo direito internacional ambiental.41
Numa formulação mais consistente, poderia ser visto como uma inversão do ônus da
prova, tal como concebido normalmente,42 para que um agente potencial deva provar que
a atividade proposta não causará danos antes que a atividade seja aprovada. O
entendimento mais comum do princípio parece estar em algum lugar entre esses
extremos.
Apesar de sua ampla aceitação, um número de problemas operacionais
importantes permanecem: o que constitui um caso onde prima facie um dano
significativo é provável? Que nível de risco é significativo para esses propósitos? Algum
tipo de teste de equilíbrio está implícito na formulação discutida: quanto maior for o
risco possível para o meio ambiente, maior será o nível de incerteza científica que pode
ser aceitável para que se reclame o princípio da precaução. Como Nollkaemper
salientou: “o fato de que o princípio da precaução é um princípio significa também que
não impõe obrigações absolutas. Princípios servem como guias de conduta em vez de
imposição de obrigações concretas. O princípio da precaução estabelece racionalidades
que levam a uma conduta com precaução, ainda que não garanta que uma decisão
particular assegure proteção total.”43
Assim, muitas questões somente podem ser resolvidas em nível de tratados, ou
em um nível regional ou setorial, empregando uma variedade de métodos, mas sem
desvirtuar a essência fundamental do princípio. Todavia, se a análise for aceita como o
ambientais possíveis, da notificação prévia das atividades planejadas aos Estados interessados e a troca de
informação ambiental. Art. 15-17 of WCED Experts Principles in id. 40 bem como a Declaração
Ministerial sobre Desenvolvimento Sustentável na Comunidade Econômica Européia (Declaração de
Bergen), Conferência sobre a Ação para um Futuro Comum da UNECE, Bergen, 15 de maio de 1990
A/CONF.151/PG10.
40
Ver a Declaração Ministerial sobre Desenvolvimento Sustentável na Declaração Ministerial sobre
Desenvolvimento Sustentável na Comunidade Econômica Européia (Declaração de Bergen), Bergen, 15 de
maior de 1990. A/CONF.151/PG10
41
O princípio da prevenção, que impõe a obrigação dos Estados de prevenir um dano previsível fora do seu
território, está presente no princípio 2 da Declaração do Rio e no mais conhecido princípio 21 da
Declaração de Estocolmo de 1972, ,assim como em um grande número de tratados. Esta obrigação não é
geralmente observada de forma estrita, mas depende de um conceito de previsibilidade. Então, o princípio
da prevenção é visto como a prevenção dos danos e riscos que são conhecidos e foram provados
cientificamente.
42
Como no Procedimento de Justificação Prévia da Convenção de Oslo, ver OSCom Decision 89/1, nota 33
.
43
A. Nollkaemper. What you risk reveals what you value', and Other Dilemmas Encountered in the Legal
Assaults on Risk. in Freestone e Hey (eds.). The Precautionary Principle and International Law. Boston:
Kluwer Law International, 1995. p. 73-94.
núcleo do princípio da precaução, então pode-se constatar que não somente foi aceito
explicitamente em um número de afirmações políticas e instrumentos legais
internacionais importantes,44 mas foi aceito implícita ou operacionalmente em uma
variedade ampla de instrumentos internacionais45 existentes, incluindo alguns relativos à
pesca em alto-mar.46
Os juristas discordam ainda se esse princípio, já aceito pela ampla maioria das
nações em diversos fóruns, constitui um princípio obrigatório do direito internacional
ambiental.47 Foram levantados argumentos questionando que a falta de precisão do
princípio acarreta um padrão tão alto de cuidado com o meio ambiente, que o torna
impraticável.48 Todavia, nós argumentamos que:
O reconhecimento internacional e o endosso do princípio da
precaução pode ter começado a mudar as exigências puramente preventivas
de diligência e de previsibilidade que existiam. No presente momento, isto
será provavelmente discutido em uma análise caso a caso, mas, se a evolução
atual [da precaução] continuar, ele se tornará uma exigência geral do direito
ambiental em um futuro não muito distante.49
Todavia, como Nollkaemper sugere50 e outros reconhecem,51 a característica
distintiva da abordagem / princípio da precaução não é que dita medidas regulatórias
específicas. Muitos tipos diferentes de medidas podem ser usados para implementá-lo. A
característica distintiva é a maneira pela qual e o tempo no qual as medidas são adotadas.
Como dissemos em outro artigo, “é um desafio para o modo de ver o mundo tanto quanto
44
Incluindo aquelas citadas nas notas 32 a 36, acima como em muitas outras; para fontes, ver a literatura
citada na nota 37, anterior.
45
Ver, por exemplo, Freestone, supra nota 29; isso inclui vários tratados sobre a vida selvagem: Convenção
de RAMSAR de 1971, Convenção de Bonn, de 1979 sobre Conservação de Espécies Migratórias,
Convenção de Berna de 1979, sobre a Conservação da Vida Selvagem Européia e os Protocolos sobre
Habitats Naturais e Mares Regionais, em áreas especialmente protegidas e vida selvagem (Protocolo de
Genebra de 1982, Protocolo de Nairobi, de 1985, Protocolo de Kingston, de 1990). O pensamento
precautório tem sido encontrado no Ato Unido Europeu, de 1986, bem como nas decisões da Convenção de
Londres, na Comissão sobre Pesca à Baleia, e na CITES
46
Notoriamente a Resolução da Assembléia Geral das Nações Unidas sobre pesca de arrasto, ver nota 106.
47
Ver fontes em Cameron and Abouchard, nota 37.
48
D. Bodansky. “Scientific Uncertainty and the Precautionary Principle” Environment, 1991, n.33, p. 4.
49
Freestone, nota 29, p. 37.
50
Nota 43 .
51
Freestone, nota 29, p. 37; ver Freestone e Hey, neste livro.
para nossa percepção sobre o papel da ciência ou do ônus da prova.”52 Justamente por
isso, também surge uma nova ótica pela qual identificamos as obrigações existentes. É
instrutivo reexaminar a linguagem cautelosa da Convenção sobre o Direito do Mar em
suas cláusulas de pesca para ver como os elementos essenciais de uma abordagem
precautória podem ser encontrados de forma relativamente fácil.
3. Gestão e Conservação da Pesca em Alto-mar na Convenção sobre o Direito
do Mar
Apesar da existência de um certo número de medidas radicais que podem ser
encontradas no Acordo sobre as Populações de Peixes Tranzonais e Altamente
Migratórios, é importante ter em mente que o acordo objetiva essencialmente
implementar a Convenção sobre o Direito do Mar.53 Por esta razão, a Convenção deve
ser vista como a base para o Acordo. A seção seguinte procura mostrar que, embora não
sejam sempre explícitos, muitos valores realçados e desenvolvidos no regime de 1995
podem estar enraizados na Convenção sobre o Direito do Mar.
A Seção 2 da Parte VII da Convenção intitula-se “Conservação e Gestão dos
Recursos Vivos de Alto-Mar.” O artigo 116 reconhece que todos os Estados têm o direito
de que seus cidadãos pesquem em alto-mar. Todavia, o artigo submete especificamente o
direito a três fatores: obrigações existentes em tratados, direitos e deveres, assim como
interesses dos Estados costeiros (como disposto inter alia nos artigos 63 (2) e 64-67) e
artigos da Parte VII, Seção 2, da Convenção sobre o Direito do Mar.54
O artigo 117 impõe a todos os Estados o dever individual e coletivo de tomar as
medidas necessárias para a conservação de recursos vivos do alto-mar. O artigo 118
impõe aos Estados o dever de cooperar na conservação e na gestão dos recursos vivos
de alto-mar. Pode ser argumentado que a posição do dever de conservação na seção
tanto quanto sua natureza inequívoca tornam-no um dever primário.55 A partir disso, o
52
Freestone e Hey, neste livro
Ver, por exemplo, M. Hayashi. “The 1995 Agreement on Straddling Stocks and Highly Migratory Fish
Stocks: Significance for the Law of the Sea Convention”. Ocean and Coastal Gestão,1995, n. 29, p. 51-69.
54
Deveríamos ressaltar que estes fatores diferem daqueles contidos na Convenção sobre a Pesca de 1958
ver texto na nota 17.
55
Esta visão é apoiada claramente pelos títulos da Seção 2, da Parte VII, da Convenção sobre o Direito do
Mar. Em seu artigo 199, Seção 2, intitulado “Conservação e Gestão dos Recursos Vivos em Alto- mar”.
Art, 119. “Conservação dos Recursos Marinhos em Alto-mar”.
53
artigo 119 pode ser considerado como provedor dos meios e das modalidades para que
os Estados cumpram essa obrigação primária. Embora o artigo 119 estabeleça a
implementação de medidas para “manter ou restaurar as populações das espécies
dizimadas, em níveis que possam produzir o rendimento máximo sustentável”, são
medidas que devem ser baseadas “na melhor evidência científica disponível” e nos
fatores um tanto vagos56 do professor Brown, ou seja, “nos relevantes fatores
ambientais e econômicos”, incluindo as exigências especiais de Estados desenvolvidos,
de padrões de pesca, de interdependência de populações de peixes e de padrões57
mínimos internacionais geralmente recomendados.
De forma similar, ao fixar tais medidas, o artigo 119 (1) (b) obriga os Estados a
levarem em consideração “os efeitos sobre as espécies associadas ou dependentes de
espécies pescadas, objetivando a manutenção ou restauração de tais espécies associadas
ou dependentes em níveis que a reprodução delas não possa tornar-se seriamente
ameaçada. Esta medida pode ser considerada como puramente ambiental, uma vez que
tais espécies não são pescadas ou mesmo passíveis de pesca.
A formulação do artigo 119 do rendimento máximo sustentável como qualificado
por fatores econômicos e ambientais tem sido considerada como uma descrição do
conceito de “utilização ótima” e as expressões “manter e restaurar populações de
espécies capturadas em níveis que possam produzir [tal utilização] ...” têm sido
interpretadas como possibilidades em lugar de obrigações. Em outras palavras, isto
significa que, embora os Estados cujos cidadãos estejam pescando em alto-mar não
estejam ativamente obrigados a observar o objetivo de utilização ótima para eles
mesmos, são obrigados a não impedir o alcance deste objetivo por outros Estados.58 Na
verdade, em contraste com o artigo 62 da Convenção sobre o Direito do Mar, que obriga
os Estados costeiros a promoverem o objetivo de utilização ótima de recursos vivos
56
Brown, nota 20.
Art. 119(1)(a), da Convenção sobre o Direito do Mar.
58
E. Hey. “The Provisions of the United Nations Law of the Sea Convention on Fisheries Resources and
Current International Fisheries Gestão Needs”. FAO, The Regulation of Driftnet Fishing on the High Seas:
Legal Issues, FAO Legislative Study 47, 1991, p. 4. Isto contrasta com a obrigação de Estados costeiros em
relação aos recursos vivos nas suas zonas econômicas exclusivas “para promover o objetivo de utilização
ótimo”. no artigo 62(1), a Convenção do Direito do Mar, ver também artigo 61(3), da Convenção sobre o
Direito do Mar. Ver também E. Hey. “The Regime for the Exploitation of Transboundary Marine Fisheries
Resources”. Martinus Nijhoff, 1989, p. 50.
57
dentro de suas próprias zonas econômicas exclusivas, as cláusulas de alto-mar não
parecem exigir que a pesca em alto-mar seja realizada em níveis máximos de rendimento
sustentável, mas simplesmente exige que os Estados engajados na pesca em alto-mar
assegurem que as populações de peixes sejam mantidas ou restauradas em níveis que
possam produzir (isto é, com potencial de produzir) o rendimento máximo sustentável. A
não obrigatoriedade para os Estados de explorar esses recursos em alto-mar, visando ao
rendimento máximo sustentável, contrasta dolorosamente com a obrigação inequívoca e
primária de conservação de tais populações, imposta aos mesmos Estados, pelo artigo
117.
Outras cláusulas da Convenção sobre o Direito do Mar que se relacionam com a
pesca de populações de peixes tranzonais e espécies altamente migratórias tratam a
conservação da mesma forma, embora como já foi constatado, as obrigações sejam
amplamente incitativas – impondo obrigações de negociar de boa-fé mais do que de se
chegar a um acordo.59 O artigo 63 (2) que trata das populações de peixes tranzonais,
stricto sensu, que ocorrem dentro de uma ou mais zonas econômicas exclusivas e áreas
adjacentes ao alto-mar, dispõe que “o Estado costeiro e os Estados que pescam tais
peixes em áreas adjacentes devem procurar, tanto diretamente como por meio de
organizações sub-regionais ou regionais apropriadas, aplicar as medidas necessárias para
a conservação dessas populações de peixes, nas áreas adjacentes”.60
O artigo 64 sobre espécies altamente migratórias como o atum, também impõe
uma obrigação incitativa de cooperação. Embora tenha havido uma certa controvérsia
sobre a interpretação do artigo 6461, não se referiu ao seu objetivo geral, que é “cooperar
... com vistas a assegurar a conservação e promover o objetivo de utilização ótima de tais
espécies em toda a região, tanto dentro como fora da zona econômica exclusiva.”62
59
Ver ainda Freestone, nota 3 .
Ênfases nossas. Ver também D. Ponzoni. “The International Legal Framework for the Conservation and
Gestão of Living Marine Resources” FAO Legislative Study 47, nota 58, p. 34-37.
61
Ver W.T. Burke. “Highly Migratory Species in the New Law of the Sea”. Ocean Development and
International Law, 1984, n. 14, p. 281
62
Em relação aos mamíferos marinhos, o regime tratado pelos art.. 65 e 120 é sui generis, porque a
utilização não aparece no texto em nenhum lugar. Conservação e gestão são as únicas obrigações. Não
apenas não existe nenhuma obrigação de utilização ótima nem na zona econômica exclusiva nem no altomar, mas em ambas as áreas a sua exploração pode ser proibida, ou delimitada ou regulada em função de
outras espécies. Em complemento, os Estados são obrigados a “cooperar com o objetivo de conservação
das populações de mamíferos marinhos e, no caso de cetáceos, obrigados a cooperar em particular com o
60
Normalmente, a pesca de cardumes anádromos63 não pode ocorrer em alto-mar.
O artigo 66 (2) da Convenção sobre o Direito do Mar impõe ao Estado de origem a
obrigação de “assegurar sua conservação mediante a adoção de medidas apropriadas” e
proíbe a pesca de tais cardumes, fora da zona econômica exclusiva, “nos casos em que
esta disposição possa acarretar perturbações econômicas para outro Estado que não o
Estado de origem”. Em tais casos excepcionais, onde a pesca em alto-mar é permitida,
deve ser precedida por “os Estados interessados procederão a consultas com vista a
chegarem a um acordo sobre modalidades e condições de tal pesca, levando em devida
consideração as exigências da conservação e as necessidades do Estado de origem no que
se refere a tais populações.”64
Um ponto de partida alternativo para essa discussão também podem ser as
normas da Convenção sobre o Direito do Mar, relacionadas à proteção do ambiente
marinho, encontradas na Parte XII da Convenção. O artigo 192 dessa Convenção impõe
a todos os Estados a obrigação geral de “proteger e preservar o meio ambiente marinho”.
Esta obrigação vai além do que simplesmente evitar o dano óbvio e ou deliberado, e visa
incluir medidas ativas para manter ou melhorar a condição atual do meio ambiente
marinho65 e cooperar para isto.66 Ainda que seja verdade afirmar que os dispositvos do
artigo 192 e dos artigos seguintes trazem tanto a responsabilidade para conservar os
ecossistemas marinhos quanto para prevenir a poluição no mar, é preciso também admitir
que a Convenção sobre o Direito do Mar contém menos instrumentos detalhados para a
trabalho desenvolvido pelas organizações internacionais competentes pela sua conservação, gestão e
estudo” (art. 65, Convenção sobre o Direito do Mar). Enquanto a Comissão Internacional da Pesca à Baleia
é a organização primária para este objetivo, ,é notório que a Convenção sobre o Direito do Mar usa o termo
“organizações”. ver P.W. Birnie. “The International Regulation of Whaling”. Oceana Publications, 1985,
n.2. Especificamente sobre este tópico ver P. W. Birnie. The Conservation and Managment of Marine
Mammals and Anadromous and Catadromous Species. in E. Hey. Developments in International Fisheries
Law. Boston: Kluwer Law International, 1995.
63
I.e. . populacões que vivem no mar e se reproduzem em água fresca. Especialmente populações
anádromas P. W. Birnie. The Conservation and Managment of Marine Mammals and Anadromous and
Catadromous Species. in E. Hey. Developments in International Fisheries Law. Boston: Kluwer Law
International, 1995.
64
Art. 66(3)(a), ver também (b), Convenção sobre o Direito do Mar. Note-se que, mesmo nestes casos, o
Estado de origem ainda mantém o direito de estabelecer o nível total de captura.
65
M. Nordquist (gen. ed .). “The 1982 Law of the Sea Convention: A Commentary”. V. iv, S. Rosenne and
B . Yankov (eds.), Martinus Nijhoff, 1990, p. 40.
66
Art. 197, Convenção sobre o Direito do Mar.
conservação de ecossistemas marinhos do que para a prevenção da poluição.67 Hey
defendeu que, na falta de instrumentos detalhados para a conservação de ecossistemas
marinhos68, pode-se pressupor que medidas relevantes serão implementadas por meio de
outros instrumentos legais existentes ou ainda a serem criados. Especificamente, a base
legal para as medidas necessárias para a conservação de ecossistemas marinhos devem
ser os dispositivos sobre a pesca da Convenção sobre o Direito do Mar. Assim, os
objetivos das normas de pesca devem ser elaborados em função das obrigações de
proteger e preservar o meio ambiente marinho.69
Como já foi discutido, o direito internacional ambiental impõe obrigações cada
vez mais rígidas aos Estados para impedir o dano sobre áreas de patrimônio comum da
humanidade e sobre recursos de interesse de toda a comunidade. Tais obrigações incluem
os recursos de alto-mar.70 Por essa razão, a obrigação primária de conservação por esses
Estados que estão envolvidos em pescas em alto-mar, como o disposto no artigo 117 e
nos dispositivos relacionados da Convenção sobre o Direito do Mar, tem uma dimensão
ambiental importante. Por exemplo, isto é reconhecido no texto do artigo 119.71 Todavia,
tanto para as pescas em alto-mar tanto quanto para outras atividades que influenciam o
meio ambiente marinho, as obrigações e conceitos de direito internacional ambiental têm
um significado considerável para o desempenho de outros direitos e deveres, dentro do
regime da Convenção sobre o Direito do Mar. Como já foi visto, uma parte intrínseca
desse corpus envolvente do direito internacional ambiental consiste claramente no
princípio da precaução. A forma pela qual o princípio da precaução foi aplicado às
questões de gestão da pesca serão discutidos na seção seguinte.
4. O Desenvolvimento de uma Abordagem Precautória na Conservação e
Gestão das Pescas
Esta seção considerará a maneira pela qual a abordagem precautória – mesmo
que seja essencialmente implícita - pode ser vista em um número de regimes de pesca
existentes, anteriores ao Acordo sobre Populações de Peixes Tranzonais e Altamente
67
A única referência do significado está no artigo. 194 (5) que convida os Estados a adotarem essas
medidas “necessárias para proteger e preservar os ecossistemas raros ou frágeis assim como os habitats
destruídos, ameaçados e outras formas de vida marinha”
68
Hey in FAO Legislative Study 47, nota 58
69
Idem.
70
Ver princípio 21 da Declaração de Estocolmo de 1972, agora princípio 2 da Declaração do Rio, nota 41 .
71
Ver art. 119(1)(a) and (b), Convenção sobre o Direito do Mar.
Migratórios. Como mostrará a seção subseqüente, alguns desses desenvolvimentos
abriram o caminho para a metodologia adotada após as negociações da CNUMAD
(Conferência das Nações Unidas sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento, em 1992).
Um exemplo interessante, realizado relativamente cedo, pode ser encontrado na
Convenção Internacional para Pesca em alto-mar do Oceano Pacífico Norte - Convenção
sobre a Pesca no Pacífico Norte72, de 1952, que estabeleceu um sistema fundamentado
ostensivamente nos critérios de conservação, baseados no princípio da abstenção73. A
Comissão do Pacífico Norte, estabelecida pelo tratado, foi um dos poucos órgãos de
pesca internacionais com poder de monitorar os cardumes designados, para decidir as
medidas de conservação e alocar a Captura Permitida Total (para eles)74. Para apoiar o
regime, desenvolveu-se o conceito que um ou dois Estados-partes se absteriam de pescar
as espécies designadas75, enquanto a Comissão não fosse capaz de determinar três
condições a serem alcançadas anualmente76, com base em evidência científica. De
acordo com esses mesmos critérios, a Comissão recebeu também poderes para
determinar se os Estados deveriam ou não se abster da pesca de novas espécies de
peixes.77
O significado mais amplo da doutrina de abstenção, para a qual os Estados
Unidos, por um tempo, procurou obter suporte da comunidade internacional a fim de
elevá-la ao status de lei geral, é que sua implementação está apoiado em aspectos
72
9 de maio de 1952, 205 UNTS 80.
A Convenção tem sido muito criticada como um veículo para perpetuar a noção de que o “primeiro a
chegar tem a vantagem especial de reclamar os recursos pesqueiros que já foram pescados, no nível ótimo
de pesca” Ver H.N . Scheiber. “Origins of the Abstention Doctrine in Ocean Law: Japanese-US Relations
and Pacific Fisheries 1937- 1958”. Ecology Law Quarterly, 1989, n. 16, p. 23-99.
74
A.W. Koers. “International Regulation of Marine Fisheries”. Fishing News, 1973, p. 97-100.
75
Parágrafo 1 do Anexo dispõe que os japoneses irão se abster da pesca de halibute, arenque e salmão em
áreas específicas do alto-mar, em troca de um entendimento com os Estados Unidos e o Canadá de que eles
irão “continuar a adotar as medidas necessárias de conservação”. Com base no parágrafo 2 do Anexo,
Japão e Canadá concordaram de se absterem da pesca do salmão em regiões determinadas em troca de um
compromisso dos Estados Unidos de adotar as medidas de conservação necessárias.
76
“(i) Prova baseada em pesquisa científica indica que uma exploração mais intensa dos cardumes não
acarretará um aumento substancial na produção que pode ser sustentada ano após ano; (ii) Que a
exploração dos cardumes é limitada ou então regulada por meio de medidas jurídicas por cada parte que
está comprometida com sua exploração, com vistas à manutenção ou ao aumento da sua produtividade
máxima sustentável. Essa limitações e regulações estão de acordo com os programas de conservação
baseados na pesquisa científica; e (iii) Os cardumes serão estudados por cientistas para se descobrir se estão
sendo totalmente utilizados e têm as condições necessárias para a manutenção de sua produtividade
máxima sustentável.” (Art IV (1), Convenção sobre a Pesca no Pacífico Norte).
77
Art. III(1)(b) da Convenção sobre a Pesca no Pacífico Norte.
73
científicos. Para que a pesca de certos peixes fosse liberada, a evidência “baseada na
pesquisa científica” deveria estar disponível.78 Assim, o ônus da prova deveria ser da
parte a favor da pesca, estando-se, portanto, a favor da conservação. Na falta de tal
evidência científica, não seria possível autorizar qualquer exploração.
Virtualmente, todos os tratados de pesca em alto-mar têm a conservação como
objetivo, mas nenhum parece elevar o status da evidência científica à posição que foi
dada na Convenção sobre a Pesca no Pacífico Norte, de 1952. Por exemplo, a Convenção
Internacional de 1966 para a Conservação de Atum79 do Atlântico simplesmente dá
poder à Comissão para fazer recomendações “com base em evidências científicas” para
manter os níveis máximos sustentáveis de exploração da pesca.80 A Comissão
Interamericana de Atum Tropical (IATTC) somente teve poder para recomendar a
captura permitida total com base em pesquisas científicas.81
A Comissão Internacional sobre Baleias, que foi estabelecida pela Convenção
Internacional para a Regulamentação da Pesca à Baleia (ICRW)82, desenvolveu um
sistema de classificação de Populações de Baleias, baseado em evidências científicas e
em conselhos do Comitê Científico.83 Todavia, a decisão de 1982 da Comissão para
impor uma moratória indefinida na pesca de baleia comercial84 tornou a conservação o
objetivo primário da Convenção (ICRW). De fato, embora haja evidência de declínio da
população, levando algumas espécies maiores de baleias ao status de espécies ameaçadas
de extinção, a moratória para algumas espécies menores (incluindo a controvertida
Minke) pode ser vista como uma medida operacional de precaução. A Comissão
78
Para manter o sistema de abstenção funcionando, o beneficiário tinha que manter o programa de
conservação “baseado em pesquisa científica” art. w(1)(b)(i) e (ii), Convenção sobre a Pesca no Pacífico
Norte.
79
UN/LEG/SER.B/16, p. 483. A expressão original é blue fin tuna (atum de nadadeiras azuis), que se trata
de uma espécie de atum [nota dos organizadores].
80
Art. VIII(1)(a), Convenção Internacional para a Conservação do Atum no Atlântico.
81
80 UNTS 4, ver Também Koers, nota 74, p. 95-97 e Hey, 1989, nota.
58, p. 217-219.
82
161 UNTS 72, reproduzido em Birnie, 1985, nota 62, n. 11, p. 689.
83
Art. 10(2), ICRW e Art. 10, Schedule ICRW, Birnie, supra nota 82, p. 713 and Hey, 1989, nota 58, p.
241-242.
84
Isso foi feito com uma emenda ao cronograma, no art. V da Convenção para incluir que “os limites da
pesca comercial da baleia para a estação costeira de 1986 e pelágica de 1985/6 e as subseqüentes deverão
ser zero.” S. Lyster. “International Wildlife Law”. Grotius, 1985, p.19.
estabeleceu recentemente novos procedimentos que incorporam os limites precautórios
de captura para algumas espécies.85
Há também evidência de que, na interpretação da obrigação geral de conservar e
gerenciar recursos vivos em alto-mar, o pensamento precautório está sendo mais
amplamente aceito como o verdadeiro caminho a ser seguido, em caso de falta de
evidências científicas adequadas. Por exemplo, a Comissão para a Conservação de
Recursos Vivos Marinhos da Antártica (CCAMRL), criada no âmbito da Convenção86 de
1980, para coordenar a pesquisa de recursos marinhos antárticos e para adotar medidas
apropriadas de conservação e gestão87, tem desenvolvido limites “precautórios” de
captura de populações de peixes, dentro de sua jurisdição.88
De forma clara, o pensamento precautório também pode ser detectado nas
Resoluções da Assembléia Geral de 1989, sobre Pesca com Redes de Arrasto, na
Resolução da Assembléia Geral da ONU 44/225, intitulada “Pesca oceânica com rede de
arrasto em grande escala e seu impacto nos recursos marinhos vivos dos oceanos e mares
mundiais89” que invoca a “todos aqueles envolvidos na pesca pelágica em grande escala
para cooperar para o aumento da coleta e da divulgação de dados científicos estatísticos
...” A Resolução recomenda um número de medidas para eliminar a prática, incluindo
85
Para uma discussão detalhada, ver M. C. Maffei. “The International Convention for the Regulation of
Whaling” The International Journal of Marine and Coastal Law, 1997, n.12, p. 287-305 e Patricia Birnie.
“Are Twentieth-Century Marine Conservation Conventions Adaptable to Twenty-First Century Goals and
Principles?” The International Journal of Marine and Coastal Law, 1997, n.12, parte 1, p. 307-340 e parte
2 p. 488-532 .
86
Convenção para a Conservação dos Recursos Vivos Marinhos da Antártida, Camberra, 20 de maio de
1980, (1980) 19 ILM 837.
87
Essa é uma das mais novas comissões internacionais de pesca, e de acordo com R.R. Churchill, EEC
Fisheries Law, 1987, p. 188, uma das mais avançadas em função de sua abordagem por ecossistema. Seus
poderes incluem a fixação de quantidades a serem pescadas, designação das espécies a serem protegidas,
temporadas de defesa, bem como regulamentação dos equipamentos.
88
Em 1991 ele estabeleceu, por precaução, um limite de pesca para Euphausia superba (CCAMLR
Conservation Measure 32/X on Precautionary Catch Limitations on Euphasia superba in Statistical Area
48.) Um Grupo de Trabalho do Comitê Científico foi estabelecido para desenvolver “medidas precautórias
para pesca do krill” com vistas a evitar a “expansão desregulada da pesca quando a informação disponível
para a previsão da produção potencial era muito limitada”.Relatório do Grupo de Trabalho, para. 6.34. A
iniciativa para esse trabalho foi a afirmação, na nona reunião da Comissão, pelo Japão, Coréia e a União
Soviética que eles não se opunham, em princípio, à idéia de um limite precautório para a pesca do krill,
mas que “a base quantitativa para um limite precautório sobre a pesca deveria ter justificativa científica
baseada em estudos do Comitê Científico” (CCAMLR-IX, para. 8.7).
89
Reproduzido no texto FAO Legislative Study, No 47, supra nota 58, Anexo 2. Isso também condiz com o
texto de outras Resoluções da Assembléia Geral da ONU e ações regionais contra redes de arrasto,
incluindo a Convenção de Wellington. Ver também UNGA Res.46/215; Hey, nota 6, p. 465-467, e Brown,
nota 20, p. 323-325.
moratória em toda a pesca de arrasto em grande escala, a partir de 30 de junho de 1992.
Todavia, tal medida:
“não será imposta em uma região ou, se implementada, poderá ser
revogada, sendo que as medidas de conservação efetiva e gestão devem ser
tomadas sob análise de dados estatísticos. . . para prevenir o impacto
inaceitável de tais práticas de pesca nessas regiões e assegurar a
conservação dos recursos marinhos vivos dessas regiões.”
Esta medida é precautória no sentido de que propõe ação para uma ameaça séria
para o meio ambiente, enquanto existe ainda alguma incerteza científica como os
impactos da pesca com rede de arrasto90. Mas é também precautória porque inverte o
ônus da prova sobre aqueles que procurariam continuar a prática para demonstrar,
usando uma “análise examinada estatisticamente”, que as medidas foram tomadas “para
prevenir o impacto inaceitável” da pesca com redes de arrasto e para “assegurar a
conservação de recursos marinhos vivos”. Neste sentido, seu efeito não é diferente do
princípio da abstenção discutido anteriormente, no qual inverte o ônus de prova e
também as exigências de prova (isto é, “usando análises estatísticas” em favor da
conservação).
Um grande marco na evolução de tais medidas foi a conclusão da Convenção de
1994 sobre Conservação e Gestão de “Recursos de Bacalhau”, no Mar de Bering Central
(Convenção sobre o Mar de Bering)91. Esta convenção altamente inovadora provê que as
partes se encontrarão anualmente para decidir os níveis de pesca permitidos e estabelecer
quotas de captura. Também endossa uma abordagem precautória para a conservação da
pesca, pois não permite pesca a não ser que a biomassa de Bacalhau da Bacia Aleutiana
90
Ver, por exemplo, os argumentos usados pelo Professor K. Sumi, no artigo “International Legal Issues
Concerning the Use of Driftnets with Special Emphasis on Japanese Practices and Responses”. no FAO
Legislative Study n. 47, id. Também W. Burke, M. Freeberg e E. Miles. “United Nations Resolutions on
Driftnet Fishing: An Unsustainable Precedent for High Seas and Coastal Fisheries Gestão” Ocean
Develpment and International Law, 1994, n.25, p. 127-186.
91
Assinada em Washington DC , em 16 de junho de 1994 pela China, Coréia, Federação Russa e os
Estados Unidos. Japão(4 de Agosto) e Polônia (25 de Agosto) assinaram depois. Entrou em vigor no dia 08
de dezembro para a federação Russa, Polônia, China e Estados Unidos. Em 21 de dezembro de 1995, para o
Japão e 04 de janeiro de 1996, para a Coréia. Para ver o texto, buscar The International Journal of Marine
and Coastal Law, 1995, n. 10, p. 127. Para saber o contexto e comentários, ver também W.V. Dunlap. “The
Donut Hole Agreement”. The International Journal ofMarine and Coastal Law, 1995, n. 10, p. 114-135.
exceda 1.67 milhões Mt.92 Esta determinação deve ser cumprida conjuntamente pelas
partes; será cumprida pelos Estados Unidos e a Federação Russa e, caso não seja assim,
pelos Estados Unidos unilateralmente. Aparentemente, os Estados Unidos e a Federação
Russa também concordaram, segundo o registro de uma discussão acompanhando o
Plano da Convenção93 que, se a biomassa não chegar à meta de 1,67 Mt., eles também
suspenderão a pesca em suas próprias zonas econômicas exclusivas e, de qualquer modo,
levarão em consideração o nível de pesca no enclave ao estabelecer suas quotas de
capturas anuais para as zonas econômicas exclusivas deles.
5. O desenvolvimento da precaução dentro das negociações sobre populações de
peixes tranzonais e altamente migratórios
Apesar dos exemplos isolados de regimes existentes, incorporando a precaução já
discutida, o grande avanço para a inclusão de uma abordagem precautória para a
conservação e gestão da pesca pode ser relacionado ao processo da CNUMAD94.
Hewison mapeou habilmente a maneira pela qual a abordagem precautória chegou até a
agenda de pesca, focalizando a forte oposição que encontrou em certos momentos.95 A
FAO realizou uma Consultoria Técnica sobre Pesca em Alto-Mar, em setembro de 1992,
após o endosso da abordagem precautória para a pesca com redes de arrasto pela
Assembléia Geral, bem como sua inclusão explícita na Declaração da Rio 1992 e no
capítulo 17 da Agenda 21. A conservação e a gestão da pesca em alto-mar foram
questões conflituosas, nas negociações do CNUMAD96. Logo após a CNUMAD, uma
92
Ver Anexo à Convenção do Mar de Bering reproduzido por Dunlap, id., p. 134. Ver também A. O.
Elferink. “Fisheries in the Sea of Okhotsk High Seas Enclave: The Russian Federation's Attempts at
Coastal State Control”. The International Journal of Marine and Coastal Law, 1995, n. 10, p. 1-18, p. 14.
93
A. O. Elferink. “Fisheries in the Sea of Okhotsk High Seas Enclave: The Russian Federation's Attempts
at Coastal State Control”. The International Journal of Marine and Coastal Law, 1995, n. 10, p. 14.
94
Para a opinião do autor sobre o processo diplomático que conduziu à CNUMAD e uma análise
preliminar do seu significado, ver D. Freestone. “The Road from Rio : International Environmental Law
after the Earth Summit”. Journal of Environmental Law, 1994, n. 6, p. 193-218. Para uma análise mais
detalhada do processo que levou ao Acordo sobre Populações de Peixes Tranzonais e Populações
Altamente Migratórias, ver Freestone, nota 3.
95
G. J. Hewison. “The Precautionary Approach to Fisheries Gestão: an Environmental Perspective”. The
International Journal of Marine and Coastal Law, 1996, n. 11, p. 301-332.
96
Para um debate geral sobre as questões pertinentes, ver Kwiatkowska, nota 3 . Kwiatkowska diz que as
questões de populações tranzonais e altamente migratórias foram colocadas, após sua inclusão na agenda da
CNUMAD, pela Resolução 44/228 de 1989 da Assembléia Geral da ONU, sob a competência do Grupo de
Trabalho II do Comitê Preparatório da CNUMAD. Em sua Decisão 1/20 de 1990, por exemplo, o Comitê
Preparatório da CNUMAD esclareceu áreas de ação relativas aos problemas da pesca em alto-mar,
incluindo a necessidade de identificação de lacunas nos mecanismos existentes para a proteção e
desenvolvimento de recursos marinhos vivos, mas também o impacto de novas tecnologias de pesca e
Conferência Internacional sobre Pesca Responsável, com a presença de representantes,
de aproximadamente, 49 Estados com 70% da capacidade de pesca mundial, foi
presidida pelo Governo do México em Cancún, em maio de 1992. A Declaração de
Cancún sobre Pesca Responsável97 solicitou que a FAO começasse o trabalho de
desenvolvimento de um Código de Conduta Internacional para a Pesca Responsável.
Apelou também para os Estados resolverem suas diferenças sobre uma proposta feita na
quarta Prepcom da CNUMAD, em relação a uma Conferência internacional sobre pesca
em alto-mar. Essa proposta tornou-se efetivamente o Parágrafo 17.49 do Capítulo 17 da
Agenda 21, delegando a convocação de uma Conferência das Nações Unidas sobre
Populações de Peixes Tranzonais e Altamente Migratórios. A consultoria técnica da
FAO deveria preparar os papéis técnicos para a Conferência98 e isto iniciou as discussões
sobre o papel da precaução, na gestão da pesca em alto-mar. Depois de vigoroso debate99
e apesar do fato de a FAO considerar a posição que a abordagem precautória para a
gestão da pesca estava compatível com a UNCLOS100, o Relatório do Projeto da
Consultoria Técnica101 adotou uma interpretação mais modesta da abordagem
precautória do que a que foi advogada, por exemplo, pelas ONGs..102 Ao fazer isto,
refletiu as preocupações de Estados pesqueiros que estavam com medo de que um
endosso indiscriminado do princípio da precaução levaria à suspensão de muitas
atividades de pesca até que elas se mostrassem sustentáveis. Embora repleto de sofismas,
o Relatório realmente mostrou que a Consultoria concordara em que a pesca deveria ser
gerenciada com precaução, que a superexploração de recursos renováveis poderia ter
sérias conseqüências sobre a população de peixes e sobre os ecossistemas oceânicos e
técnicas de pesca em larga escala. Tratava do desenvolvimento de medidas apropriadas para a conservação,
uso racional e desenvolvimento sustentável de pesca em alto mar. Em julho de 1991, uma reunião do Grupo
de Peritos Técnicos sobre Pescas em Alto-Mar, sob os auspícios do Oficial da ONU para Questões
Oceânicas e Direito do Mar (UNOALOS), produziu algumas orientações para ajudar os Estados a
melhorarem o nível de cooperação, na conservação e gestão dessa atividade.
97
Anexo 2 dos Papers apresentados na Consulta Técnica sobre Pesca em Alto-Mar, FAO Fisheries Report,
Roma, 1992, n. 484, p. 70.
98
Ver UN Docs. FAO F1/HSF/I'C/92/INF1-2 e TC/92/1-8, 1992.
99
No qual, por exemplo, Japão, Coréia, Noruega e a Federação Russa apresentaram “graves reservas sobre
o uso de precaução como um instrumento de gestão da pesca” enquanto a Suécia ressaltou que ela tinha
sido adotada na CNUMAD. Citado com referências detalhadas Hewison, nota 95.
100
“Legal Issues Concerning High Seas Fishing” FI/HSF/fC/92/8, FAO, June 1992.
101
Draft Report II, Consultas Técnicas sobre Pesca em Alto-Mar, FAO, 7-15 de setembro 1992.
102
Por exemplo, Hewison relatou que o Greenpeace recomendou que o Draft Report fosse rejeitado, pois
não refletia a evolução das práticas dos Estados, nota 95, p 310.
que a gestão precautória poderia incluir, mas não necessariamente exigir, uma moratória
sobre a pesca. Aceitou-se, também, que as decisões de gestão deveriam ser baseadas nas
melhores informações científicas, como foi determinado pela Convenção sobre o Direito
do Mar, e que as medidas precautórias de gestão tomadas sem dados científicos
suficientes deveriam ser revisadas ou revogadas, quando novas informações se tornassem
disponíveis.103
Após as primeiras sessões de negociação sobre Conservação e Ordenamento de
Populações de Peixes Tranzonais e de Populações de Peixes Altamente Migratórios, em
julho de 1993, ficou mais claro que seria possível adotar uma visão da abordagem
precautória, o que não significaria a imposição de moratória às operações de pesca,
exceto em circunstâncias excepcionais. Esta visão refletiu-se nas considerações finais do
diretor, embaixador Satya Nandam104, tanto quanto no texto da negociação, que surgiu da
reunião. Como resultado, a FAO foi incumbida de preparar um Relatório sobre a
aplicação da abordagem precautória para a segunda sessão da Conferência, realizada em
março de 1994. O documento da FAO, “Abordagem Precautória para a Pesca com
Referência às Populações de Peixes Tranzonais e Populações de Peixes Altamente
Migratórios105 formou a base para as discussões subseqüentes. Apesar do teor real ter
sido continuamente atualizado, até a aprovação do acordo em agosto de 1995,
fundamentou a abordagem precautória, como contida no artigo 6 e Anexo II do Acordo.
6. O Acordo sobre as Populações de Peixes Tranzonais e Altamente Migratórios
de 1995
O texto final do Acordo tem 50 artigos e dois anexos.106 Como foi visto, o
Acordo é relevante para a interpretação e a aplicação de um número de cláusulas-chave
da Convenção sobre o Direito do Mar, principalmente seus artigos 63 (2), 64 e 116-120.
Todavia, como Anderson salienta, o Acordo é um documento “independente” no sentido
de que o Estado pode tornar-se uma parte do Acordo sem se tornar uma parte da
103
Draft Report, nota 101, parágrafo. 65-67.
Declaração Final, 30 de julho de 1993, citada por Hewison, nota 95, p. 310.
105
A/CONF.164/INF/8, 26 de janeiro de 1994, mencionado por Jean-Pierre Levy e Gunnar G. Schram
(eds.) “United Nations Conference on Straddling Fish Stocks and Highly Migratory Fish Stocks, Selected
Documents”. 1996, p. 555.
106
O Acordo foi adotado pelas partes negociadoras sem votação (ou seja, por consenso) no dia 4 de agosto
de 1995 .
104
Convenção sobre o Direito do Mar e vice-versa107 Todavia, o Acordo e a Convenção
sobre o Direito do Mar estão fundamentalmente inter-relacionados, de forma que um
pode ser usado para informar a interpretação do outro.108 De fato, a conclusão do Acordo
constitui uma vitória diplomática considerável para aqueles Estados que pressionaram
por um tratado cogente em vez de uma declaração ou código109. Contudo, embora o
Acordo formule princípios básicos e introduza um número de conceitos inovadores
importantes, seu sucesso ainda dependerá de como e até que ponto será implementado
por regimes de pesca regionais e de espécies específicas.’
7. As Novas Abordagens no Acordo
As novas abordagens do Acordo são claras no Preâmbulo tanto quanto as
cláusulas iniciais relacionadas à conservação e gestão (Partes I e II). A linguagem do
preâmbulo liga sua origem não apenas à Convenção sobre o Direito do Mar110, mas ao
capítulo 17 da Agenda 21.111 Essa última é essencial para a análise atual porque o caput
para todo o capítulo 17 e o parágrafo 17.1, inter alia, exigem abordagens que estão
“integradas no conteúdo e são precautórias e antecipatórias no âmbito”.
Após reconhecer a necessidade de mais medidas efetivas para a conservação e
gestão de populações de peixes tranzonais e altamente migratórios, o Preâmbulo indica
que a gestão de pescas em alto-mar é inadequada em muitas áreas: alguns recursos são
superexplorados, existem problemas de pesca não regularizada, problemas de
supercapitalização, frotas excessivamente grandes, uso de bandeiras diferentes para
escapar do controle, equipamentos insuficientes de pesca seletiva, banco de dados não
confiável (e, presumidamente, os dados também) e uma cooperação insuficiente entre os
Estados.
Embora uma discussão detalhada de cada uma dessas questões já tenha sido
tratada por outros textos, uma abordagem de questões mais amplas é necessária para
apreciar o contexto no qual uma abordagem precatória poderia ser examinada. Como já
107
Ver Anderson, nota 14.
Todas as referências abaixo são do Acordo de 1995 sobre Populações Tranzonais e Altamente
Migratórias, exceto nos casos indicados. O Art. 4 confirma que o Acordo deve ser interpretado e aplicado
de maneira consistente com o Direito do Mar e, portanto, não enfraquece a Convenção sobre o Direito do
Mar.
109
Houve pressões para adotar esta posição até a sessão final
110
Parágrafo 1°, Preâmbulo.
111
Parágrafo 5°, Preâmbulo.
108
foi discutido, e como também indica a evolução da abordagem no contexto da
Conferência de Populações de Peixes Tranzonais e Altamente Migratórios, a precaução
não é um conceito independente. Ele exige o estabelecimento de certos parâmetros
definidos e a identificação de riscos definitivos e de valores.112 Em particular, é
importante lembrar que os objetivos do Acordo não estão definidos em termos da
maximização do alimento para consumo humano, mas, pela primeira vez em um Acordo
internacional desse tipo, a conservação está definida em termos de proteção do
ecossistema e proteção da diversidade biológica. Na exposição número sete foi
encontrada a primeira e mais significativa afirmação da importância ambiental das
questões de pesca internacional. Declara uma aspiração para melhorar os tratados prévios
de gestão da pesca, reconhecendo a necessidade independente de proteger o meio
ambiente marinho por meio da proteção de sua biodiversidade, manutenção da
integridade de ecossistemas marinhos e minimização de risco de longo prazo ou os
efeitos irreversíveis de atividades de pesca. Esta afirmação, embora preambular, de que o
Acordo de Populações de Peixes Tranzonais e Altamente Migratórios é o primeiro
acordo de pesca global a reconhecer, em nível primário, o significado ambiental de
atividades de pesca: não como uma questão para ser considerada, por exemplo, o cálculo
de Pesca Total Permitida (TACs), mas uma questão independente em seu direito próprio.
As implicações do reconhecimento desses conceitos-chave são detalhadas no Acordo.
Todavia, é esta afirmação e o desenvolvimento das obrigações substantivas do Acordo
que fornecem o contexto para nossa compreensão da maneira pela qual a abordagem
precautória será aplicada pelo Acordo.
O artigo 2 indica que o objetivo do Acordo é “assegurar a conservação a longo
prazo e o uso sustentável de Populações de Peixes Tranzonais e Altamente Migratórios
por meio da implementação efetiva das cláusulas relevantes da Convenção”. O uso
sustentável – consoante a Agenda 21 – é um desenvolvimento significativo do
“rendimento ótimo sustentável”, no artigo 2 da Convenção sobre a Pesca em alto-mar, de
112
Essa idéia foi muito bem elaborada por Nollkaemper, nota 43.
1958, e pode ser visto como uma leve modificação do termo “rendimento máximo
sustentável”, no artigo 119 (1) (1) da Convenção sobre o Direito do Mar113 .
Essencialmente, no curso de uma abordagem holística do ecossistema, o artigo 3
indica não somente que o Acordo se aplica à conservação e à gestão de Conservação e
Ordenamento de Populações de Peixes Tranzonais e de Populações de Peixes Altamente
Migratórios em Alto-Mar, mas também que os artigos 6 e 7 serão aplicados para a
conservação e a gestão das medidas relacionadas a tais populações de peixes, enquanto
estiverem em águas sob jurisdição nacional. Os Estados costeiros também são
obrigados a utilizar os princípios do Acordo, como foi fixado no artigo 5, quando
estiverem gerenciando os cardumes dentro de tais águas. O artigo 5 contém os
princípios gerais de gestão de populações de peixes; o artigo 6, o princípio da
precaução e o artigo 7 estabelece as exigências para a compreensão entre os Estados
costeiros e Estados pesqueiros em águas distantes sobre a implementação de
metodologias de conservação e gestão dentro das áreas de jurisdição nacionais e, além
delas, em todas as pescas regionais.
O artigo 5 identifica a estrutura de princípios gerais que os Estados costeiros e
Estados pesqueiros em águas distantes (DWFNs), pescando em alto-mar, devem
respeitar, agindo em base cooperativa. Aqui, a ênfase está em um equilíbrio próprio entre
a sustentabilidade e a utilização dos recursos. O que é importante sobre esta cláusula
central do Acordo é que, como pode ser visto a partir do texto114, sete dos doze
parágrafos se relacionam com a sustentabilidade ambiental e a proteção do ecossistema,
baseados na precaução e na melhor evidência científica, enquanto um parágrafo lida com
113
Embora isso não seja tão importante, pois o máximo de pesca sustentável é usado no art. 5 do Acordo,
como uma “utilização ótima.”
114
Conforme art. 5 do Acordo sobre Populações de Peixes Tranzonais e Altamente Migratórias, é exigido
dos Estados: (a) adotar medidas para assegurar a sustentabilidade a longo prazo e promover o objetivo de
sua utilização ótima; (b) assegurar que tais medidas sejam baseadas na melhor evidência científica
disponível e sejam estabelecidas para restaurar os níveis da população capazes de trazer a melhor produção
sustentável, definida em função de fatores econômicos e ambientais relevantes; (c) aplicar o princípio da
precaução; (d) adotar, quando necessário, medidas de conservação e de gestão para outras espécies do
mesmo ecossistema, ou dependentes ou associadas com as populações em questão, com vistas a manter ou
restaurar populações dessas espécies acima dos níveis nos quais sua reprodução pode ser seriamente
ameaçada; (e) adotar, quando necessário, medidas de conservação e gestão para espécies do mesmo
ecossistema; (f) desenvolver e usar equipamento e técnicas seletivas e medidas que sejam seguras em
termos ambientais economicamente viáveis; (g) proteger a biodiversidade marinha; (h) tomar medidas para
prevenir ou eliminar a superpesca e a capacidade de exercer a superpesca e assegurar que os níveis da
atividade pesqueira não excedam os níveis do uso sustentável de recursos da pesca; (1) implementar
medidas de conservação e gestão mediante um monitoramento de controle efetivo e vigilante.
pescadores de subsistência e artesanais, dois, com coleta de dados e apenas um trata da
implementação. A preocupação central deixou de ser o consumo humano, tão fortemente
expresso na Convenção sobre a Pesca, de 1958.115
O artigo 6 elabora o princípio da precaução, ou, como é chamada, a “abordagem
precautória”116. Como foi observado, é a primeira vez em que a precaução foi
especificamente mencionada em uma Convenção sobre a pesca internacional ou aplicada
à Conservação e Ordenamento de Populações de Peixes Tranzonais e de Populações de
Peixes Altamente Migratórios. O conceito já foi bem aceito em uma ampla variedade de
tratados ambientais marinhos117. Foi aceito, na prática, em acordos recentes, tais como
no Acordo do Mar de Bering de 1994118 e na implementação de Acordos, tais como
CCAMRL119 e a Comissão Internacional de Baleias120. O teor do artigo 6 é coerente com
a aplicação do princípio conforme a Agenda 21 e a Declaração do Rio, embora
represente um compromisso das exigências iniciais de alguns Estados costeiros. O artigo
6 exige que a abordagem precautória seja aplicada às medidas de conservação, gestão e
exploração, com vistas a preservar o meio ambiente marinho e a proteger seus recursos
vivos. Por razões anteriormente discutidas, não pode ser dito, como numa
interpretação121 mais extrema, que a invocação da precaução no artigo 6 conduz à
inversão do ônus da prova em favor da conservação. Seria politicamente inaceitável para
os Estados pesqueiros acatar uma definição de precaução que vincula a suspensão da
pesca até que os dados científicos permitam uma exploração dos recursos em questão. O
temor de certos Estados pesqueiros de que a aceitação do princípio da precaução
resultasse numa moratória ficou patente nas discussões das Consultas Técnicas da FAO
em 1992 e nas Rodadas de Negociação da Conferência. A formulação existente
115
Art. 2, 1958 Convenção sobre a Pesca, nota 19.
O texto usa a palavra “abordagem” e não “princípio”. Isso segue a terminologia do Princípio 15 da
Declaração do Rio de1992. Ver E. Hey, supra nota 37, que sugere que a abordagem só pode ser definida
com relação ao Princípio. Essa opinião foi defendida por outros autores, incluindo A.C. Kiss, em “Will the
Necessity To Protect the Global Environment Transform the Law of International Relations?” Josephine
Onoh Memorial Lecture, University of Hull Press, 1993. Para o histórico dessa questão, ver Freestone, nota
94.
117
Para um debate sobre a importância disso, ver, por exemplo, Freestone e Hey, neste livro. Ver também
Hewison, nota 95, e as demais fontes citadas por ele.
118
Ver texto nota 91 .
119
Ver texto nota 86.
120
Ver texto supra nota 82.
121
Ver, por exemplo, o Procedimento de Justificação Prévia, da Convenção de Oslo, analisado em
Freestone, nota 29, p. 30-33 .
116
estabelece, entretanto, que os “Estados devem ser mais cautelosos quando a informação
for vaga, não confiável ou inadequada” e que “a falta de informação científica adequada
não deve ser usada como uma razão para adiar ou deixar de tomar medidas de
conservação e gestão.”122
O artigo 6(3) do Acordo sobre Populações de Peixes Tranzonais e Altamente
Migratórios fixa a maneira como os Estados implementarão a abordagem precautória.
Devem:
(a) melhorar o processo decisório para a conservação e gestão da pesca,
obtendo e compartilhando as melhores informações científicas e implementando
as técnicas melhoradas para lidar com riscos e incertezas;
(b) aplicar as diretrizes fixadas no Anexo II e determinar, com base nas
melhores informações científicas disponíveis, pontos referenciais específicos ao
cardume e à ação a ser tomada, se eles aumentarem demais;
(c) levar em consideração, inter alia, incertezas relacionadas ao tamanho
e produtividade das populações de peixes, pontos referenciais, condição do
cardume em relação a esses pontos, níveis e distribuição da mortalidade dos
peixes, e o impacto das atividades sobre outras espécies não desejadas e
associadas ou dependentes, tanto quanto as condições socioeconômicas,
oceânicas e ambientais existentes ou previstas;
(d) desenvolver os programas de coleta de dados e pesquisa para
determinar o impacto da pesca sobre outras espécies não desejadas e associadas
ou dependentes e seu meio ambiente, e adotar os planos necessários para
assegurar a conservação de tais espécies e proteger os habitats que merecem
preocupação especial.
Estas exigências, mesmo que não anulem o ônus normal da prova, têm um
impacto considerável na maneira que tais questões serão percebidas no futuro. É útil
explorar algumas das questões de prova que surgem. Os artigos 61 (2) e 119 (1) (a) da
Convenção sobre o Direito do Mar demandam o uso da “melhor evidência científica
disponível”, enquanto o artigo 6 (2) refere-se à “melhor informação científica
disponível” e o artigo 6 (3) (b) utiliza a expressão “melhor informação científica
122
Art. 6(2), Acordo sobre Populações de Peixes Tranzonais e Altamente Migratórios.
disponível”. Existem claramente alguns desejos deliberados de evitar o uso do termo
“evidência”, talvez para evitar uma abordagem de ônus da prova. Todavia, visto que o
Acordo sobre Conservação e Ordenamento de Populações de Peixes Tranzonais e de
Populações de Peixes Altamente Migratórios declara estar preocupado com a
implementação das cláusulas da Convenção sobre o Direito do Mar 123, de que modo as
cláusulas do novo Acordo mudam nossa percepção sobre como as cláusulas de
conservação e gestão da pesca em alto-mar, nessa Convenção, deveriam ser
interpretadas? Argumentou-se que a obrigação primária de conservação está presente no
artigo 116 da Convenção sobre o Direito do Mar. Essa obrigação de conservação deve
ser relembrada na análise do artigo 119 da mesma Convenção, segundo a qual um Estado
está individual ou conjuntamente “determinando a pesca permitida e estabelecendo
outras medidas de conservação para os recursos vivos de alto-mar”. Então, a obrigação
correspondente para agir “com a melhor evidência científica disponível124 não pode
realmente operar como um padrão de prova, pois a “disponibilidade” é um conceito
muito flexível. Entretanto, pode operar como uma exigência de prova para assegurar que
as decisões sejam guiadas pela ciência. Essa exigência talvez seja similar às exigências
modernas da Melhor Tecnologia Disponível, na legislação sobre poluição.
No passado, uma questão-chave da interpretação foi se, na falta de evidência
científica convincente (ou seja, usando a melhor evidência científica disponível – que
pode não ser convincente), as medidas deveriam ser elaboradas para assegurar a
continuação da exploração ou a conservação. Deveria o ônus da prova estar a favor da
exploração ou da conservação? Argumentei no passado que uma análise dos artigos da
Convenção sobre o Direito do Mar, que ditam que a obrigação primária é a conservação,
mostra que as cláusulas dessa Convenção deveriam ser lidas para colocar o ônus da
prova sobre o agente125. Conseqüentemente, os Estados seriam obrigados a tomar
medidas para manter ou restaurar populações em níveis que possam produzir o máximo
rendimento sustentável. Então, a evidência científica deve ser usada para mostrar que a
pesca satisfaz esses objetivos e não o contrário.
123
O título refere-se explicitamente à natureza implementatória do Acordo frente a frente com a Convenção
sobre o Direito do Mar.
124
Art 119(1)(a), Convenção sobre o Direito do Mar.
125
D. Freestone. “Requirements of Proof for Conservation in High Seas Fisheries”. Paper for Legal Office,
FAO, 1992; Freestone e Hey, neste livro
Na pesca, como em áreas de monitoramento ambiental, os cientistas trabalham
com base em probabilidades. Todavia, em casos de incerteza científica, se a obrigação
primária for a conservação e a manutenção de populações de peixes em lugar da simples
exploração não-sustentável, então a exigência para utilizar a melhor evidência científica
disponível parece ser uma regra de evidência e não de um padrão de prova – haja vista
que a palavra “melhor” não pode significar que a evidência por uma visão ou outra é
intrinsecamente melhor.
126
Também parece difícil sugerir que a palavra “científico” seja
usada de maneira parcial. Deve ser correto dizer que a palavra “científico” significa a
coleta de dados, de acordo com critérios objetivos rigorosos que corresponderiam a uma
exigência de “padrão mínimo”. A “disponibilidade”, todavia, permanece um conceito
essencialmente pragmático. Conseqüentemente, mesmo se a evidência adequada não for
disponível, as obrigações gerais da Convenção sobre o Direito do Mar permanecem e a
obrigação primária aplicável seria a conservação.
Como podemos ver agora com o Acordo de Conservação e Ordenamento de
Populações de Peixes Tranzonais e de Populações de Peixes Altamente Migratórios, é
mais do que um interesse acadêmico que tal posição esteja independentemente
sustentada, com base no teor do texto da própria Convenção sobre o Direito do Mar.
Pode ser argumentado que a própria Convenção já forneceu apoio significativo para a
crescente e ampla aceitação do princípio da precaução, em questões de pesca em altomar. Todavia, o impacto do Acordo de Conservação e Ordenamento de Populações de
Peixes Tranzonais e de Populações de Peixes Altamente Migratórios pode ser
questionado por ser uma confirmação dessa interpretação de cláusulas relevantes da
Convenção sobre o Direito do Mar. No entanto, seria difícil argumentar que as cláusulas
existentes na Convenção detectariam um curso particular da ação precautória.126 Então,
concluímos também que o Acordo de Conservação e Ordenamento de Populações de
Peixes Tranzonais e de Populações de Peixes Altamente Migratórios não adota uma
abordagem “absolutista” para a precaução (nenhuma atividade seria permitida até que a
ciência fosse clara). Ela apresenta, no entanto, uma agenda precautória na qual o sistema
126
Claro que a exceção pode ser uma decisão de impor uma moratória onde um colapso total de uma
população específica já ocorreu. Mas tal ação deve ser discutida para ser preventiva, antes de ser
precautória.
de valores está explicitamente determinado (artigo 6) e uma metodologia, para
estabelecer as estratégias precautórias de gestão (Anexo II).
Todavia, o significado da introdução da precaução, mesmo não estando em sua
acepção mais forte, não deve ser menosprezado. Existe a obrigação para que os Estadospartes sejam cautelosos e utilizem os procedimentos presentes no Anexo II. Isto
representa uma mudança maior na abordagem tradicional da gestão da pesca que até
recentemente era reativa, quando os problemas atingiam níveis sérios.127 O novo regime
permitirá aos Estados pesqueiros, organizações de pesca regionais e internacionais
justificarem mais facilmente medidas pró-ativas. Na verdade, a partir daí, tais medidas
seriam embutidas no sistema deles. Os padrões de gestão de cardumes devem ser
tratados com precaução, levando em conta fatores, como incertezas relativas ao tamanho
e produtividade de cardumes, níveis e distribuição da mortalidade de peixes e o impacto
de atividade de pesca em espécies associadas ou dependentes, incluindo condições128
oceânicas socioeconômicas e ambientais, existentes e previstas.
A aplicação da abordagem precautória para capturar peixes representa um
verdadeiro desafio129. A metodologia de precaução no Acordo de Conservação e
Ordenamento de Populações de Peixes Tranzonais e de Populações de Peixes Altamente
Migratórios está centrada no uso de pontos de referência. Os pontos referenciais estão
identificados como necessários para assegurar a conservação e a gestão de espécies e
estão baseados na coleta de dados e nos programas de pesquisa mencionados no artigo 6º
(3) (d) e nas Diretrizes para Aplicação dos Pontos Referenciais Precautórios na
Conservação e Gestão de Populações de Peixes Tranzonais e Populações de Peixes
Altamente Migratórios, presentes no Anexo II do Acordo. Essas estratégias que
prescrevem os limites biológicos para a pesca reduzem o risco de que tais limites sejam
ultrapassados e lidam com situações nas quais a informação sobre espécies específicas é
insuficiente, mediante pontos referenciais provisórios. Caso os pontos de precaução
sejam alcançados, não devem ser excedidos. Se forem excedidos, então os Estados
devem adotar ação imediata de acordo com o Anexo II do Acordo de Conservação e
127
Freestone e Hey, neste livro
Art. 6(3)(c), Acordo sobre Populações de Peixes Tranzonais e Altamente Migratórias.
129
Ver, por exemplo, S. Garcia. “The Precautionary Principle: Its Implications in Capture Fisheries
Management”. Ocean and Coastal Management, 1994, n.22, p. 99-126; Hewison, nota 95
128
Ordenamento de Populações de Peixes Tranzonais e de Populações de Peixes Altamente
Migratórios. À luz desses critérios, se a pesca for realizada acima do limite da precaução,
quando a informação for vaga ou inadequada, então deve ser caracterizada como
superpesca.130 O mesmo se aplica quando os pontos referenciais da precaução forem
alcançados e a pesca não for interrompida. Naturalmente, até que sérios esforços sejam
envidados para estabelecer e implementar tais pontos de referência, será difícil estimar a
utilidade prática do Anexo II. Todavia, a especificidade da linguagem do Anexo II e a
variedade de circunstâncias nas quais ele poderia teoricamente ser aplicado dão razão
para o otimismo que o regime do Anexo II trará melhoras significativas para regimes
comparáveis existentes, a partir de uma perspectiva de gestão e conservação. Deve ser
dito, no entanto, que o Acordo sobre Conservação e Ordenamento de Populações de
Peixes Tranzonais e de Populações de Peixes Altamente Migratórios não esclarece as
implicações quando os pontos referenciais são excedidos; tais questões, juntamente com
a fixação dos pontos referenciais, são deixadas para que o Estado aja por meio de
organizações regionais de pesca.
As duas questões devem ser consideradas como sérias críticas para a inovadora
metodologia da precaução que o Acordo apresenta. Davies e Redgwell131 retrataram a
metodologia como semáforos. Dá sinal verde e amarelo, mas não dá sinal vermelho – ou
seja, o sistema indica quando tudo vai bem ou quando os perigos são ameaçadores, mas
não proíbe automaticamente a pesca quando os pontos referenciais são alcançados. A
interrupção ou suspensão das operações de pesca – a ação com “sinal vermelho” - ainda
tem de ser determinada em uma base ad hoc pelo Órgão132 regional próprio da pesca. As
razões disso são baseadas na preocupação de alguns negociadores de que o
reconhecimento da abordagem precautória resulte em moratória automática em alguns
casos de pesca, como já foi discutido.
Em relação ao estabelecimento dos pontos referenciais da precaução, o Anexo II
deixa uma grande parte para ser definida pelo Órgão regional da pesca. Além da
abordagem da FAO apresentada, diversos autores desenvolveram estruturas teóricas para
130
Esta é a opinião de Freestone e Makuch, nota 2.
P.R. Davies e C . Redgwell. “To Conserve or to Exploit: The International Regulation of Straddling Fish
Stocks”. British Yearbook of International Law, 1996, n. 67, p. 199-275.
132
As agências regionais têm liberdade para adicionar esse elemento.
131
abordagens precautórias para a pesca.133 Hewison analisou os principais pontos de
contraste. Eles relacionam um número de questões-chave para as quais Acordo sobre
Conservação e Ordenamento de Populações de Peixes Tranzonais e de Populações de
Peixes Altamente Migratórios provê uma metodologia básica. Incluem: a ação para ser
adotada na falta de dados134 suficientes, um procedimento135 de gestão baseado
cientificamente, o cálculo de níveis136 referenciais de populações de peixes, cláusulas137
ecológicas protetoras (safeguards) e processos138 decisórios abertos e participativos.
Trabalhos de cooperação entre a FAO e a Comissão de Pesca Sueca para o
Desenvolvimento de Diretrizes na Abordagem Precautória Para Pescas139 desenvolveram
uma abordagem de gestão compatível com as cláusulas do Acordo.
8. Conclusão
Pode-se argumentar que o maior significado do Acordo de Conservação e
Ordenamento de Populações de Peixes Tranzonais e de Populações de Peixes Altamente
Migratórios é sua aceitação inequívoca de uma dimensão ambiental para o direito de
pesca internacional. Isso já foi defendido aqui, como em outros textos.140 A metodologia
da precaução que o Acordo desenvolve é uma parte importante dessa agenda. Tal
metodologia também é extremamente importante para a operacionalização do próprio
princípio da precaução. Escrevendo, três anos atrás, Freestone e Hey defenderam que
depois da ampla aceitação do princípio, o maior desafio para o direito ambiental seria
operacionalizar o princípio em metodologias operacionais e que “o desafio de
133
Ver Garcia, supra nota 129; Cooke e Earle, nota 27 .
Ver o debate no texto nota 122. Também o art. 6(2): “A ausência de informação científica adequada não
deve ser usada como razão para adiar ou deixar de tomar medidas de conservação e gestão” e o art. 6(3) (d)
sobre o desenvolvimento da coleta de dados e de programas de pesquisa. Note-se também que o art. 6(6)
“Para pescas novas ou exploratórias, os Estados devem adotar, o mais cedo possível, medidas cautelosas de
conservação e gestão [as quais] devem vigorar até que haja dados suficientes para permitir análise do
impacto das pescarias na sustentabilidade das populações a longo prazo ”
135
Ver Hewison, nota 95, p. 323-325 .O Art. 6(3) procura exigir o uso da melhor informação científica. Ver
também art. 14 e o FAO Guidelines citado nota 139.
136
Aqui também há uma certa discrepância entre aqueles que defendem uma produção dentro da “variação
natural” da abundância e a abordagem tradicional da “produção máxima sustentável”. consagrada no
parágrafo 7 do Anexo II, mas outras espécies dependentes e fatores do ecossistema também são parte da
equação. (ver art. 6(3) (c)).
137
Ver arts. 6(1) e 6(5), e também os impactos de um “fenômeno natural”. no art. 6(7) .
138
Aqui o Acordo traz inovações; ver art. 12 sobre “Transparency in activities of sub-regional and regional
fisheries management organisations and arrangements”
139
Abordagem Precautória para a Pesca. FAO Fisheries Technical Paper 350/1, 1995.
140
Freestone e Makuch, nota 2.
134
implementar o princípio da precaução com a mesma força de sua visão original não pode
ser facilmente subestimado”141
A metodologia da precaução do Acordo sobre Conservação e Ordenamento de
Populações de Peixes Tranzonais e de Populações de Peixes Altamente Migratórios é um
passo importante na expansão do princípio e se aplica a um novo campo da atividade
humana. Não é a precaução em sua forma mais radical e absolutista.142 Não proíbe a
atividade até que a ciência seja clara nem transfere o ônus da prova da exploração para a
conservação. Pelas razões políticas que já foram discutidas, o Acordo nem mesmo
menciona o uso de moratória como resposta quando os pontos referenciais de gestão são
ultrapassados. Na verdade, talvez esteja aberto a críticas por não fazê-lo. Todavia, isso
significaria não ter entendido a natureza radical da metodologia que adota. Em vez de ser
puramente reativo, tornou-se pró-ativo. Os pontos referenciais foram estabelecidos de
antemão (e ajustados à luz da melhor informação científica). As estratégias de gestão de
pesca foram então fixadas, para assegurar que os pontos referenciais não serão
excedidos.143 Se forem alcançados, medidas de conservação serão adotadas “para
facilitar a recuperação144 dos cardumes. Estas poderiam, é claro, incluir a moratória
(como aconteceu no Mar de Bering e do Noroeste Atlântico), mas não estão limitadas
por nenhuma medida específica ou nenhum outro tipo de medida.
O desafio último para o sistema prescrito no Acordo sobre Conservação e
Ordenamento de Populações de Peixes Tranzonais e de Populações de Peixes Altamente
Migratórios é o fato de que deve ser implementado por organizações das espécies de
peixes e regionais, bem como em acordos em todo o mundo. Se houver uma falha no
Acordo, será uma falha endêmica em todo o sistema para a regulação de populações de
peixes em alto-mar. A este respeito, o Acordo fornece uma orientação importante para o
futuro. O reconhecimento da importância da dimensão ambiental nas questões de pesca
em alto-mar pode ser vista como um reconhecimento do interesse da comunidade
ambiental, na manutenção de ecossistemas marinhos e de sua diversidade biológica. O
direito internacional evoluiu muito desde a década de 1950, quando a maximização do
141
Freestone e Hey, neste livro, p. 268 .
“Absolutista” no sentido que Nollkaemper usou o termo, ver nota 43.
143
Ver Anexo II, Acordo sobre Populações de Peixes Tranzonais e Altamente Migratórios.
144
Para 5, Anexo II, idem.
142
alimento foi vista como uma questão-chave para o reconhecimento da importância dos
ecossistemas marinhos e de sua diversidade biológica. Essas preocupações refletem os
verdadeiros interesses da comunidade. Seria irreal afirmar que a conservação e a gestão
atual de populações de peixes poderiam ser formalmente classificadas como questões de
“preocupação comum da humanidade”, como, por exemplo, foram consideradas as
mudanças climáticas globais em 1988, pela Resolução145 da Assembléia Geral das
Nações Unidas. Todavia, como Boyle salientou em relação à atmosfera, a importância
dessa designação foi por ter sido assinalada como uma área “sobre cuja proteção todos os
Estados têm um interesse legal e todos os Estados têm um dever de preservar contra
qualquer dano sério146 e sobre um regime com base no tratado precisava ser
desenvolvido. Num sentido mais restrito, o Acordo sobre Conservação e Ordenamento
de Populações de Peixes Tranzonais e de Populações de Peixes Altamente Migratórios
assumiu essa importância porque redefiniu o papel dos interesses de comunidades nas
populações de peixes em alto-mar ou, pelo menos, expandiu os interesses que a
Convenção sobre o Direito do Mar conjeturou. A liberdade de pesca não é mais o
interesse dominante da comunidade, sujeito a certas condições ambientais mal definidas.
A conservação de ecossistemas marinhos assumiu agora o status independente como
uma consideração básica, nas atividades de pesca.147
A abordagem precautória é um componente essencial desse novo paradigma. Ela
permanecerá se os órgãos regionais encarregados de sua implementação forem capazes
de “manter a força de sua visão original”. Todavia, esse novo instrumento constitui um
avanço significativo nas modalidades disponíveis para equilibrar as exigências
conflitantes de utilização e conservação. A própria sobrevivência de muitas pescas
comerciais pode depender disso. Embora muitos argumentem que uma formulação mais
radical da abordagem seria mais apropriada148, o mais importante é que as orientações
básicas da abordagem acontecem na prática de regimes de gestão de pesca em todo o
mundo, para que estes regimes possam reagir adequadamente às ameaças presentes e
145
Assembléia Geral da ONU Res. 43/53 “Protection of Global Climate For Present and Future
Generations of Mankind”. reproduzido por Churchill e Freestone (eds .). nota 29, p. 240
146
Alan E. Boyle. “International Law and the Proteção of the Global Atmosphere: Concepts, Categories
and Principles”. in Churchill e Freestone (eds.). nota 29, p. 7-19, p. 19.
147
Essa opinião foi melhor desenvolvida em Freestone e Makuch, nota 2.
148
Ver argumentos acima e de Hewison, nota 95.
futuras. Tal objetivo não seria talvez mais bem servido por um regime global
excessivamente proibitivo, que poderia excluir a participação de muitos Estados.
Decisões firmes terão ainda de ser tomadas, mas isto acontecerá dentro das organizações
regionais de pesca. Há, contudo, mais do que uma simetria intelectual no fato de que, no
texto do instrumento global, os negociadores do Acordo sobre Conservação e
Ordenamento de Populações de Peixes Tranzonais e de Populações de Peixes Altamente
Migratórios decidiram esboçar a abordagem precautória, cautelosamente.
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Variações sobre um mesmo tema: O exemplo da implementação
do princípio da precaução pela CIJ, OMC, CJCE e EUA
Marcelo Dias Varella*
O princípio da precaução foi geralmente apresentado como uma ferramenta de
conciliação entre o direito ambiental e o desenvolvimento. Como Kiss, Freestone e Hey,
Sadeleer e outros demonstraram em seus capítulos neste livro, o princípio da precaução
não é uma norma dogmática, imposta diretamente, mas um princípio, que guia formas de
agir, tanto dos administradores públicos, quanto dos operadores jurídicos. Além de ser
um princípio, é um princípio recente do direito ambiental, que está em processo de
expansão e consolidação rápida, já tendo sido inclusive positivado em diversas normas
nacionais e internacionais, mas que ainda luta por sua aceitação nas mais diversas esferas
de ação jurídica e política.1 Como vimos, certos tratados internacionais o consideram
apenas como uma “abordagem”. Ainda que não existe uma definição precisa de
abordagem ou enfoque, estes seriam conceitos mais amenos em relação ao de princípio.
O princípio precaução, que trataremos por princípio ambiental, existente tanto na
ordem jurídica brasileira, está ainda em consolidação no direito internacional público. Ele
está inserido no princípio do desenvolvimento sustentável, como bem afirma Kiss2. Ele se
apresenta como um instrumento conciliador entre o direito internaiconal ambiental e o
direito internacional econômico. É um ponto de resistência e de embates entre os diversos
atores internacionais, principalmente entre os países exportadores de alimentos e de
produtos para o consumo humano, como o Brasil e os Estados e a União Européia. Sua
implementação no plano jurisdicional mostra o quanto a conciliação entre estes dois
ramos praticamente herméticos do direito internaiconal é espinhosa do ponto de vista
material.
A análise da sua consideração por diferentes atores contribui para a identificação
da evolução do seus status jurídico, assim como da sua concretização em diferentes
* Marcelo
Varella é Doutor em Direito da Universidade de Paris I, Panthéon-Sorbonne. É professor do
Centro Universitário de Brasília, onde coordena o Curso de Mestrado em Direito das Relações
Internacionais. Pesquisador do CNPq. 1
Ver os capítulos de Ana Platiau e Olivier Godard ao presente livro.
2
Ver o capítulo de Alexandre Kiss ao presente livro.
tribunais. O objetivo do presente capítulo é portanto analisar comparativamente a
construção jurisdicional do conteúdo do princípio da precaução em diferentes instâncias
internacionais. A questão da aceitabilidade do princípio da precaução pela Organização
Mundial do Comércio é um bom indicador, quando se pretende comparar a coerência
entre as normas comerciais e ambientais, sobretudo se nós a confrontamos com a
interpretação que se dá ao mesmo princípio pela Corte Internacional de Justiça, pela
Corte de Justiça das Comunidades Européias e pelo direito de países mais resistentes à
implementação do princípio no direito internacional ambiental, como os Estados Unidos3.
A Organização Mundial do Comércio, a Corte Internacional de Justiça e a Corte
de Justiça das Comunidades Européias já tiveram a oportunidade de se pronunciarem
sobre a aplicabilidade do princípio da precaução. Interessante dizer que os objetos
discutidos são perfeitamente comparáveis. O que se pretende analisar neste capítulo é
saber se as três organizações internacionais incluíram ou não o princípio na sua
interpretação do direito internacional e, em caso positivo, como se considera o princípio
da precaução. Em seguida, pretendemos observar como os Estados Unidos entendem o
princípio da precaução, para observar que muito embora este país seja resistente ao
avanço do princípio da precaução no direito internacional econômico, no direito norteamericano, ele é um princípio que vem se consolidando há vários anos.
Com este propósito, nós examinaremos algumas decisões das organizações
internacionais, começando pela Organização Mundial do Comércio, para em seguida
analisar a Corte Internacional de Justiça, estudando em seguida a Corte de Justiça das
Comunidades Européias, buscando uma análise comparativa. Em uma segunda etapa,
veremos alguns casos do direito norte-americano, nos quais o princípio da precaução é
claramente reconhecido, para então tecer algumas considerações sobre a implementação
do princípio no direito internacional4.
1. O princípio da precaução no direito internacional
3
Uma análise da situação brasileira é feita neste livro por Rios.
Poderíamos também tratar de outros princípios ambientais, como o princípio da prevenção ou poluidorpagador. No entanto, estes outros princípios já estão consolidados na teoria jurídica, assim como nos
tratados e na jurisprudência internacional, logo, não são interessantes para uma análise jurisprudencial
comparativa.
4
1.1. O Órgão de Apelações da Organização Mundial do Comércio
O Órgão de Apelações teve três ocasiões para emitir suas considerações sobre o
princípio da precaução, nos casos: Austrália – medidas que afetam a importação de
salmão (salmão)5; Comunidades Européias – medidas concernentes à carne e aos
produtos da carne (hormônios)6e Japão - medidas que afetam os produtos agrícolas
(produtos agrícolas).7 A evolução da percepção deste princípio pela Organização
Mundial do Comércio pode ser encontrada no interessante capítulo de Hélène Ruiz-Fabri
neste livro. O princípo de precaução foi invocado, a cada vez, no âmbito do acordo sobre
a aplicação de medidas sanitárias e fitossanitárias (Acordo SPS).8 Para analisar estas
decisões, nós vamos distinguir dois problemas, o reconhecimento do princípio da
precaução e o seu conteúdo.
i) O reconhecimento indireto do princípio da precaução
As primeiras discussões trataram do reconhecimento ou não do princípio da
precaução como princípio jurídico, depois como princípio presente nos textos da
Organização Mundial do Comércio.9 No caso salmão, o Brasil foi um dos países que
sustentou a inexistência do princípio no direito internacional. No caso hormônios, que
opôs a Comunidade Européia aos Estados Unidos e ao Canadá, a Comunidade Européia
defendeu que o princípio da precaução fazia parte do direito internacional público,
enquanto regra costumeira geral, ou, ao menos, que ele era um princípio geral do direito.
Os Estados Unidos defendiam a teoria da inexistência do princípio da precaução no
direito costumeiro10 e eram apoiados pela posição do Canadá, que introduziram uma idéia
de princípio em emergência (mas não consolidado), logo não ainda válido para ser
aplicado a uma situação concreta.
O Órgão de Apelações absteve-se de tecer comentários sobre o estatuto do
princípio da precaução, alegando que se tratava de um tema ainda controverso, objeto de
5
WT/DS18/AB/R
WT/DS26/AB/R e WT/DS48/AB/R
7
WT/DS76/AB/R
8
Ver também o capítulo de Hélène RUIZ FABRI, neste livro
9
WT/DS18/AB/R, parágrafo 56
10
P. SANDS “Environmental protection in the twenty-first century : sustainable development and
international law”. In : Revesz, Sands e Stewart. Environmental law, the economy and sustainable
development. Cambridge: Cambridge University Press, 2000, p.385-386.
6
debate entre os universitários, os profissionais do direito, os homens de leis e os juízes,11
mas ele não hesitou em considerar que o conteúdo do princípio da precaução também está
presente no acordo SPS e deveria ser observado, ainda que seja insuficiente para
justificar, por si só, medidas SPS definitivas, conforme o que prescreve o Acordo.12 O
princípio da precaução estaria portanto, de acordo com o Órgão de Apelações, presente
nos artigos 2.2., 3.3. e 5.7:
Artigo 2.2. Os membros se comprometem a que qualquer medida sanitária
ou fitossanitária somente seja aplicada quando for necessária para proteger a saúde
e a vida das pessoas e dos animais ou para preservar os vegetais, que ela seja
fundamentada nos princípio científicos e que não seja mantida sem os
testemunhos científicos suficientes, salvo o disposto no parágrafo 7º do artigo 5º.
(...)
Artigo 3.3. Os Membros podem introduzir ou manter medidas sanitárias ou
fitossanitárias que resultem num nível de proteção sanitária ou fitossanitária
mais elevado que o que seria conseguido por meio de medidas baseadas nas
normas, diretrizes ou recomendações internacionais aplicáveis, se existir uma
justificação científica ou se tal for conseqüência do nível de proteção sanitária
ou fitossanitária que um Membro considere adequado em conformidade com
as disposições aplicáveis dos nºs 1 a 8 do artigo 5.º (ver nota 2). Não obstante o
que precede, nenhuma medida que resulte num nível de proteção sanitária ou
fitossanitária diferente do que seria conseguido por meio de medidas baseadas nas
normas, diretrizes ou recomendações internacionais será incompatível com
qualquer outra disposição do presente Acordo (...)
Artigo 5.7. Quando as provas científicas pertinentes foram insuficientes,
um Membro pode adotar provisoriamente medidas sanitárias ou fitossanitárias
com base nas informações pertinentes disponíveis, incluindo as provenientes das
organizações internacionais competentes e as que resultem das medidas sanitárias
ou fitossanitárias aplicadas por outros Membros. Nessas circunstâncias, os
11
12
WT/DS26/AB/R e WT/DS48/AB/R, parágrafo 123.
WT/DS26/AB/R e WT/DS48/AB/R, parágrafo 124.
Membros esforçar-se-ão por obter as informações adicionais necessárias para
proceder a uma avaliação mais objetiva do risco e examinarão, em conseqüência,
a medida sanitária ou fitossanitária num prazo razoável.
A mesma intepretação do texto do acordo foi apresentada nos casos salmão e
produtos agrícolas, o que demonstra a formação de uma linha jurisprudencial pela OMC.
É interessante notar que a OMC tem a forte tendência de repetir suas interpretações
anteriores sobre os mesmos pontos jurídicos analisados, o que pode justificar a afirmação
de que há uma posição consolidada sobre o assunto. É sobretudo no último caso
analisado – produtos agrícolas – que o Órgão de Solução de Controvérsias detalha
melhor sua interpretação de aplicação do princípio. O que faz o Órgão de Apelações, a
propósito do reconhecimento do princípio da precaução nos acordos, é internalisar a
discussão sobre o princípio e dar-lhe um conteúdo. Uma vez identificada a existência
deste princípio e uma vez precisados os dispositivos legais sobre o tema, torna-se mais
fácil preencher o seu conteúdo.
De acordo com o próprio Órgão de Apelações:
Parece-nos importante, contudo, ressaltar certos aspectos da relação
entre o princípio da precaução e o Acordo SPS. Primeiramente, o
princípio não foi ainda incorporado ao Acordo SPS como motivo
justificador de uma medida SPS, o que é ainda incompatível com as
obrigações dos membros enunciadas em disposições específicas do referido
acordo. Em segundo lugar, o princípio da precaução é efetivamente
considerado no artigo 5:7 do Acordo SPS. Ao mesmo tempo, nós
compartilhamos a posição das Comunidades Européias, segundo a qual não
é necessário discutir a priori se o artigo 5:7 é exaustivo no tocante à
pertinência do princípio da precaução. Este princípio é igualmente
considerado na sexta alínea do preâmbulo e no artigo 3:3.
O princípio da precaução é reconhecido, porque ele permite a um país-membro
adotar restrições sanitárias e fitossanitárias mais elevadas, ainda que sem provas
concretas sobre a necessidade da medida restritiva. Então, cada país pode fixar seu “nível
zero” de aceitabilidade.13 Todavia, a margem de manobra dos países-membros é limitada
por condições de implementação da medida, previstas pelos artigos 2º, 3º e 5º do Acordo
SPS. Este tema foi objeto de discussões pelo órgão de solução de controvérsias, que
confirma a possibilidade de adoção de um risco nulo, mas exige a demonstração concreta
do risco:
O “risco” avaliado no contexto de uma avaliação de riscos
deve ser um risco verificável; a incerteza teórica não é sobre o
gênero de risco que deve ser avaliado de acordo com os termos
do artigo 5:1. Isso não significa, no entanto, que um Membro
não possa determinar se seu nível de proteção apropriado
corresponde a um “risco zero”14
ii) O conteúdo do princípio da precaução, conforme o Órgão de Apelações
O artigo 2.2 prevê que um país-membro não pode tomar uma medida de proteção
sem ter “provas científicas suficientes”. A primeira dificuldade reside na necessidade de
identificar o conteúdo da expressão “suficiente”, encontrada no artigo. Conforme o Órgão
de Apelações, no caso produtos agrícolas, suficiente é um palavra relacional. Ela deve
ser interpretada de acordo com a relação entre o nível de restrição imposto pela medida
tomada pelo país e a evidência científica. Assim, o grau de consolidação do nexo causal
entre a medida e as provas científicas torna-se o aspecto mais importante do debate. Por
conseqüência, é uma expressão que deve ser verificada caso a caso. Ela refere-se também
à última frase do artigo, então, a palavra suficiente inclui os artigos 3.3 e 5.7.15
Para a concretização do princípio da precaução, o Órgão de Apelações,
fundamentando-se no artigo 5.7, coloca condições. A medida deve ser :
1. imposta em uma condição onde as informações científicas pertinentes são
insuficientes ;
2. baseada na informação científica disponível ;
13
WT/DS18/AB/R, parágrafo 125. De acordo com o Anexo A, do Acordo SPS, parágrafo 5:“o nível de
proteção considerado como apropriado por um Membro que estabelece uma medida sanitária ou
fitosanitária para proteger a saúde, a vida das pessoas e dos animais ou preservar os vegetais sobre o seu
território.”
14
WT/DS18/AB/R, parágrafo 125. Ver também WT/DS26/AB/R-WT/DS48/AB/R, parágrafo 186
15
O artigo 3.3. é também citado em função da sua relação estreita com o artigo 5.7, ainda que ele não seja
citado pelo artigo 2.2. WT/DS76/AB/R, parágrafos 73 e 74
3. seguida de um esforço para obter informações adicionais necessárias a uma
avaliação mais objetiva do risco ;
4. condicionada a um reexame dentro de um prazo razoável.
Identificamos uma quinta condição, enquanto o Órgão de Apelações explicita
apenas quatro, considerando que ele exige também que a medida seja provisória e não
considera seu critério provisional como uma condição de análise, com o que nós
discordamos. Se ele exige que a medida seja considerada condição, esta é, na prática,
uma condição de aceitabilidade da medida. Transcorrido determinado período de tempo,
caso sejam encontradas provas científicas, a medida se consolida, tornando-se definitiva.
Caso contrário, descobrindo-se que a medida não tinha razão de existir, ela é cancelada.
Essas condições são cumulativas e igualmente importantes para determinar a
consistência do dispositivo. Como indica o Órgão de Apelações, no caso produtos
agrícolas, se faltar uma destas condições, a medida de proteção será considerada
contrária ao direito da OMC.16
A determinação da insuficiência de provas científicas disponíveis é feita pelos
países, de forma separada. Embora não seja necessário unanimidade científica em favor
da medida, é preciso pelo menos haver uma dúvida, ou melhor, uma controvérsia
científica. Se não há controvérsia, não há base que permita a adoção de uma medida
SPS.17 A periodicidade da revisão do exame é determinada caso a caso, de acordo com a
natureza da medida, os produtos em questão e os avanços científicos.
Pela análise realizada, percebe-se então que a OMC reconhece o princípio da
precaução e da-lhe um conteúdo concreto, ainda que esta análise limite a margem de
manobra dos Estados.
1.2 Corte Internacional de Justiça
A Corte Internacional de Justiça teve igualmente a oportunidade de avaliar a
aplicação do princípio da precaução, no caso relativo ao Projeto Gabcíkovo-Nagymaros,
que opôs a Eslováquia à Hungria, e cujo veredito foi dado em 25 de setembro de 1997.18
16
WT/DS76/AB/R, parágrafo 89
Ver Relatório do Grupo Especial : Estados Unidos, parágrafos 8.157 et 8.158 ; relatório do Grupo
Especial Canadá, parágrafos 8.160 et 8161, citados também por WT/DS26/AB/R e WT/DS48/AB/R,
parágrafo 120
18
Sobre a consideração das questões ambientais pela Corte Internacional de Justiça, ver também P. Sands.
“Cour internationale de justice”. Bulletin de droit nucléaire, 1996, 58 (décembre), p.56-72. e P. Sands.
17
Trata-se de uma decisão recente, posterior a um grande número de normas internacionais
estabelecidas sobre a existência do princípio da precaução. Ela é apenas dois meses
anterior à decisão emitida no caso hormônios da OMC. Embora a relação entre os dois
temas seja quase inexistente, eles se aproximam precisamente no tocante à consideração
do princípio da precaução. Estudaremos, portanto, a alegação do princípio da precaução
em face da CIJ e a interpretação desta sobre a aplicação do princípio.
i) A alegação do princípio da precaução
A Hungria evocou o princípio da precaução e a defesa do meio ambiente para
romper com um tratado internacional, a saber o acordo bilateral para a construção de um
sistema de barragens Gabcíkovo-Nagymaros. Conforme a Hungria, as normas do direito
internacional emergentes após a conclusão do acordo, como as normas de direito
ambiental, e justamente a emergência do princípio da precaução como princípio geral do
direito, tornavam impossível a execução do tratado:
97. A Hungria sustentou, enfim, que as normas do direito
internacional que se impuseram posteriormente, em matéria de
proteção do meio ambiente, tornavam impossível a execução do
tratado. A obrigação que existia previamente de não causar dano
substancial ao território de um outro Estado tornou-se com o tempo, nas
palavras da Hungria, uma obrigação erga omnes de prevenção de danos
conforme o “princípio da precaução”. Sobre esta base, a Hungria
defende que ela foi obrigada a terminar o tratado ‘em função da recusa da
outra parte de suspender os trabalhos relativos à variante C.
A Eslováquia, por sua vez, defendeu que os novos desenvolvimentos do direito
internacional ambiental não constituiam normas cogentes ao ponto de criar uma obrigação
para a Hungria de não cumprir seus compromissos contratuais. Identificam-se, assim,
duas formas de compreender a questão:
a) De acordo com uma primeira interpretação, as normas posteriores do direito
internacional ambiental instituindo o princípio da precaução, como a
Convenção sobre a Diversidade Biológica, seriam convergentes a tal ponto
Enforcing environmental security. In : P. Sands. Greening international law. London, Earthscan, 1993, p.
61-62. Outros casos ambientais importantes podem ser lembrados como o parecer sobre o emprego ou
ameaça de emprego de armas nucleares.
que o tratado em questão poderia ser considerado revogado e as obrigações da
Hungria estariam anuladas. Existe, então, uma anulação de obrigações, em
relação à construção da barragem em função dos efeitos potencialmente
desfavoráveis ao meio ambiente;
b) De acordo com uma segunda hipótese, a proteção do meio ambiente, ainda
que fundamentada sobre a incerteza científica (princípio da precaução), era
uma razão suficiente para justificar o não-cumprimento pela Hungria de suas
obrigações internacionais. Existe, então, uma razão para o não-cumprimento
do acordo.
ii) A interpretação pela Corte internacional de Justiça
A Corte Internacional de Justiça preferiu julgar o caso inscrevendo-o na teoria da
responsabilidade civil e, mais especificamente, no tocante à consideração do estado de
necessidade como uma causa de não-cumprimento das obrigações da Hungria na
execução de um tratado internacional, e não no direito ambiental propriamente dito,
muito embora a Corte tenha feito diversas considerações sobre as diversas convenções
internacionais de direito ambiental aplicáveis ao caso concreto. Utilizando a teoria
avançada pela Corte, existiria, segundo a Hungria, um estado de necessidade ambiental,
fundamentado no princípio da precaução. O objeto do tratado seria a realização de um
investimento
econômico
compatível
com
a
proteção
ambiental
e
explorado
conjuntamente pelas duas partes contratantes. Uma vez que a compatibilidade com a
proteção ambiental não mais existia, a realização do objeto do tratado era impossível, de
acordo com os artigos 61 e 62 da Convenção de Viena.19
19
Art. 61. Impossibilidade Superveniente de Cumprimento.
1. Uma parte pode invocar a impossibilidade de cumprir um tratado como causa para extinguir o tratado ou
dele retirar-se, se esta possibilidade resultar da destruição ou do desaparecimento definitivo de um objeto
indispensável ao cumprimento do tratado.
Art. 62. Mudança Fundamental de Circunstâncias
1. Uma mudança fundamental de circunstâncias, ocorrida em relação às existentes no momento da
conclusão de um tratado, e não prevista pelas partes, não pode ser invocada como causa para extinguir um
tratado ou dele retirar-se, salvo se:
a) a existência dessas circunstâncias tiver constituído uma condição essencial do consentimento das partes
em obrigarem-se pelo tratado; e
b) essa mudança tiver por efeito a modificação radical do alcance das obrigações ainda pendentes de
cumprimento em virtude do tratado.
A Corte20 não considerou que os avanços em matéria ambiental eram um
elemento
imprevisível,
inscrevendo
o
processo
no
contexto
da
teoria
da
imprevisibilidade. Logo, os impactos ambientais eram previsíveis, e o fato de o ambiente
ter se tornado um elemento mais importante para a sociedade mundial nos anos 90 do que
quando o tratado foi firmado não era um elemento que devesse ser levado em
consideração. Ela mesmo reconheceu que os impactos ambientais dos projetos eram
consideráveis.21 A evolução científica, tanto quanto o desenvolvimento sustentável, são
citados como elementos importantes da discussão.22
Todavia, a partir do momento em que a Corte Internacional de Justiça julga a
matéria sob a ótica do direito da responsabilidade, ela exige que o perigo seja “grave e
iminente” e completa afirmando que as dúvidas evocadas pela Hungria não eram
suficientes para caracterizar um perigo. Além do mais, não havia provas do caráter grave
e iminente da situação concreta, e, ao exigir um perigo grave e iminente, a Corte impede
a aplicação do princípio da precaução, o qual por definição é incapaz de demonstrar
perigos graves e iminentes, sob a ótica tradicional do direito civil.
O texto da decisão é claro:
A Corte considera, no entanto, que, por mais sérias que
sejam as incertezas, elas não seriam, por si só, suficientes para
determinar a existência objetiva de um “perigo” enquanto
elemento constitutivo de um Estado de Necessidade. A palavra
“perigo” evoca certamente a idéia de ‘risco’ ; é precisamente nisso
que o “perigo” se distingua do dano materializado, mas não houve
um estado de necessidade sem um ‘perigo’ claramente identificado
no momento pertinente; a única apreensão de um “perigo”
20
Parágrafo 104
Ver parágrafo 140
22
“ Ao longo dos anos, o homem nunca cessou de intervir sobre a natureza por razões de ordem econômica
ou outra. No passado, ele sempre o fez, sem considerar os efeitos sobre o meio ambiente. Graças as novas
perspectivas que a ciência oferece e a uma consciência crescente dos riscos que a busca destas intervenções
a um ritmo impensado e duradouro podem representar para a humanidade – seja em relação às gerações
presentes ou futuras -, novas formas [de agir] e exigências foram aperfeiçoadas, e foram enunciadas por
um grande número de normas jurídicas nos decorrer das duas últimas décadas. Estas novas normas devem
ser levadas em consideração e estas novas exigências apreciadas de forma adequada, não apenas quando os
Estados procuram realizar novas atividades, mas também quando eles procuram realizar as atividades a que
eles se comprometeram no passado. O conceito de desenvolvimento sustentável traduz bem esta
necessidade de conciliar o desenvolvimento econômico e a proteção do meio ambiente”, in parágrafo 140
21
possível não seria, para tanto, suficiente. Além disso, dificilmente
poderia ser de outra forma, uma vez que o ‘perigo’ constitutivo do
estado de necessidade deve ser ao mesmo tempo “grave” e
“iminente”.23
A
“iminência”
é
sinônima
de
“imediação”
ou
de
“proximidade” e ultrapassa em muito o conceito de eventualidade.
Como ressaltou a Comissão de Direito Internacional no seu
comentário, o perigo “extremamente grave e iminente” deve ser
encontrado no momento exato do interesse ameaçado”.
Em resumo, a Corte Internacional de Justiça não considerou, no caso GabcíkovoNagyramros, que o princípio da precaução era suficiente para permitir o reconhecimento
dos elementos para demonstrar o estado de necessidade em uma situação concreta. Ela
perdeu, assim, uma oportunidade importante de fazer avançar o direito internacional, por
meio da incorporação do princípio da precaução na doutrina do estado de necessidade.24
1.3. A Corte de Justiça das Comunidades Européias
O princípio da precaução foi evocado em vários casos ante à Corte de Justiça das
Comunidades Européias (CJCE). As posições da Corte Européia, sobre o tema, não são
tão vagas quanto a posição da Corte Internacional de Justiça nem tão rígidas quanto a
posição do Órgão de Solução de Controvérsias da Organização Mundial do Comércio.25
Esta terceira postura em face do princíio de precaução contribui para a elaboração de uma
conclusão construída a partir de diferentes interpretações a propósito da implementação
do princípio da precaução. Entre os diferentes casos pertinentes, notamos Safety Hi-Tech
Srl26 contra S&T Srl., Gianni Bettati contra Safety Hi-Tech Srl e o caso da vaca louca,
23
Grifos nossos.
Ver sobre este ponto P. SANDS, P. Vers une transformation du droit international? Institutionnaliser le
doute. Paris, Pedone, 2000, p.211 et ss.
25
A CJCE começou cedo a se preocupar com a proteção ambiental, desde o início dos anos oitenta.
26
Casos C-284/95 e C-341/95. A discussão do princípio da precaução é presente na medida em que se
discute a necessidade da medida restritita de CFC, na qual a Corte aceita a adoção do princípio. A
discussão do princípio da proporcionalidade é também importante, porque o Conselho da Europa havia
tomado medidas restritivas para determinadas substâncias e não para outras, mais perigosas. A
argumentação do Conselho se fundamentava que não havia substâncias para substituir aquelas utilizadas e
que o uso das substâncias ditas perigosas era em pequena escala e que, portanto, não havia riscos globais se
estas substâncias continuassem a ser permitidas. O argumento foi aceito pela Corte. Ver também
NOIVILLE, C. “Principe de précaution et gestion des risques en droit de l'environnement et en droit de la
santé.” Petites affiches, 2000, 239 (30 de novembro), p.46.
24
que opôs a França à Comissão européia,27 sobre a suspensão do embargo da carne
inglesa; eles são interessantes com relação aos princípios de precaução e da
proporcionalidade, mas é o caso Mondiet (C-405/92) que se mostra o mais ilustrativo da
posição da Corte.
i) Alegação do princípio da precaução pelo Conselho de Ministros
Em 1983, o Conselho da Europa publicou um regulamento sobre o controle da
pesca, o regulamento 170/83, que foi modificado várias vezes, interessando-nos o
regulamento (CEE) 3094/96 e o regulamento (CEE) 345/02, que previram certas medidas
técnicas de conservação dos recursos pesqueiros. O regulamento de 1992 interditava a
pesca com certos tipos de redes, cujo comprimento individual ou acumulado fosse
superior a 2,5 km. Somente os pescadores que utilizavam redes maiores nos dois anos
imediatamente anteriores à norma poderiam continuar a utilizá-las durante mais dois
anos, com a condição que estas redes não ultrapassassem 5 Km.
Logo antes da edição da norma, um grupo de pescadores franceses tinha
comprado redes de 7 km de um fabricante, mas por causa da nova norma, eles queriam
anular a compra, fundamentando-se em fato princípe e em questão de força maior, o que
foi a base jurídica inicial do processo. O juiz francês pediu então a análise da legalidade
da medida tomada pelo Conselho, perante a Corte de Justiça das Comunidades Européias.
Um dos argumentos avançados junto à Corte questionava o poder do Conselho de
Ministros de estabelecer uma norma jurídica, sem base científica concreta, indo mesmo
contra certos pareceres científicos favoráveis à continuidade da pesca. O argumento dos
pescadores era que o Conselho havia ultrapassado seu poder discricionário, com desvio
de poder e, se quisesse utilizar o princípio da precaução, ele deveria fixar quotas de
pesca, de forma a tornar possível a atividade produtiva, ainda que de maneira limitada,
mas preservando o meio ambiente.
O advogado-geral defendia a posição do Conselho, afirmando que os artigos
científicos já publicados sobre o tema não estavam diretamente ligados à proteção de
27
Casos C-157/96, C-180/96 e principalmente o caso C-1/00. Neste último processo, a França recusou-se
de aceitar a comercialização de carnes bovinas originárias do Reino Unido, mesmo com o posicionamento
científico favorável à comercialização, do Comitê Científico Diretor da Comunidade Européia. A França
foi condenada a aceitar a posição do órgão científico comunitário, em detrimento da posição científica das
autoridades francesas. Este processo é interessante por tratar da imposição comunitária de padrões de
segurança alimentar aos Estados membros.
todas as espécies afetadas, e também que ainda não existiam estudos sobre as espécies
específicas que se pretendia proteger, como sobre a mortalidade dos golfinhos. Havia,
portanto, uma falta de certeza científica que não poderia ser utilizada como justificativa
para a ausência de medidas concretas, configurando-se o princípio da precaução.
Segundo o Conselho, a dúvida que subsistia sobre o efeito que poderia ter a utilização de
grandes redes sobre as outras espécies serviu de base para a utilização do princípio da
precaução e, então, fundamentava o poder discricionário do Conselho de produzir
normas, justamente o que se havia feito.
A segunda questão que interessa à presente análise tratava da necessidade de uma
revisão periódica desta decisão do Conselho, quando estudos mais concretos fossem
realizados e concluíssem pela desnecessidade da medida de proteção. Este ponto é
particularmente importante, para fins comparativos, se compararmos a presente decisão
com a decisão do Órgão de Solução de Controvérsias da Organização Mundial do
Comércio, que exige uma revisão periódica, condição sine qua non para a implementação
do princípio da precaução.
Nesse caso preciso, o Conselho havia arguido, para se defender, que tinha
acordado um prazo de dois anos a certos pescadores para a implementação da resolução.
Ainda que esta medida fosse muito restritiva, e ainda que ela se limitasse a redes com até
5 km de cumprimento, em vez dos 7 km utilizados até então pelos pescadores, já se
tornava possível a utilização de redes com um comprimento superior a 2,5 km, nos dois
anos seguintes. Este prazo seria justamente utilizado para realizar os estudos científicos
desejados. Se, no fim deste prazo, estudos científicos se mostrassem favoráveis à
anulação da medida, o Conselho poderia estabelecer uma outra norma jurídica, modificar
a restrição e seguir a posição científica concreta. Percebia-se então, na prática, que uma
medida restritiva estava em vigor desde a publicação da norma, ou seja, uma redução
máxima de 5 km para alguns pescadores e a 2,5 km para todos os outros pescadores, que
não utilizavam este instrumento nos dois anos anteriores à norma.
O princípio da precaução seria utilizado desde já e mantido enquanto não
houvesse um estudo científico concreto contrário à medida aplicada. Uma vez
transcorridos os dois anos, se não houvesse ainda um estudo, mesmo os pescadores que
podiam utilizar redes de até 5 km perderiam o direito de utilizá-las. Na verdade, não se
tratava de um prazo estabelecido para permitir uma investigação científica, mas para
implementar gradualmente uma norma jurídica em defesa do ambiente.
ii) A posição da Corte
A corte analisou o caso à luz do princípio da precaução. Ela compreendeu que não
havia verdadeiros estudos científicos precisos sobre as conseqüências da utilização das
redes sobre todas as espécies ameaçadas e que, portanto, o Conselho havia agido na
esfera do seu poder discricionário, sem ter cometido o excesso invocado, apoiando-se no
princípio da precaução. A Corte considerou então que não havia desvio de poder, como
argumentavam os pescadores. 28
31. Resulta da interpretação desta disposição que as medidas de
conservação dos recursos pesqueiros não devem ser plenamente
conformes os pareceres científicos e que a ausência ou o caráter
não-conclusivo de um tal parecer não deve impedir o Conselho
de adotar as medidas que ele julgue indispensáveis para realizar
os objetivos da política comum de pesca.
32. É o momento de acrescentar que a Corte já julgou (ver decisão
de 13 de novembro de 1990, Fedesa, C-331/88 Rec. P. I-4023, ponto
8), a propósito da consideração pelo Conselho de dados
científicos, que o controle jurisdicional deve se limitar,
considerando o poder discricionário reconhecido ao Conselho na
implementação da medida da política agrícola comum, à
verificação se a medida em questão não está viciada por um erro
claro ou por desvio de poder, ou se a autoridade em questão não
ultrapassou os limites do seu poder de apreciação.
33. Tratando-se da regulamentação em causa, importa
constatar, antes de tudo, que os pareceres científicos disponíveis
se limitaram a examinar os estoques de atum branco, assim
como a interação entre os diferentes materiais de pesca, sem no
entanto se preocupar com o problema da exploração equilibrada
28
Para uma análise da posição restritiva da CIJ ver DUPUY, P.-M. “Où en est le droit international de
l'environnement à la fin du siècle?” Revue Générale de Droit International Public, 1997, 101(4), p.890, nota
de rodapé 54.
do conjunto de recursos biológicos marítimos, de forma
sustentável, e em condições econômicas e sociais apropriadas, que
constitui um dos objetivos da política comum da pesca, mencionado
no artigo 1o. do regulamento 170/83, pré-citado.
No tocante ao segundo ponto, a Corte também aceitou a posição do Conselho, que
defendia o poder de mudar a norma jurídica no caso em que houvesse novos estudos
contrários à restrição adotada. Isso torna a posição da Corte de Justiça das Comunidades
Européias completamente distinta da decisão conferida pelo Órgão de Solução de
Controvérsias da Organização Mundial do Comércio, porque nenhuma obrigação foi
colocada ao Conselho, como a de realizar estudos científicos posteriores para justificar a
medida restritiva ou a de praticar novas análises periódicas sobre a medida. A posição da
Corte mantém o Conselho em uma posição confortável e fortalece seu poder
discricionário de utilizar o princípio da precaução, sem obrigações concretas futuras em
relação à manutenção de uma norma restritiva.
2. Estados Unidos
Entre os diversos processos interessantes que reconhecem o princípio da
precaução, preferimos escolher um específico, que trata da saúde humana e animal. O
processo é interessante porque alega claramente o princípio da precaução, mostrando a
interface entre a proteção da saúde humana, compreendida na proteção dos ecossistemas.
O processo é também valioso porque demonstra as dificuldades das organizações nãogovernamentais norte-americanas de agir em juízo, no caso específico o Sierra Club, uma
das maiores e mais antigas organizações não-governamentais do planeta, sendo obrigada
a demonstrar o seu interesse de agir específico por meio de seus membros.
i) A alegação do princípio da precaução pelo Sierra Club e a posição contrária
No processo Sierra Club c. Environment protection agency29 (EPA) e General
Eletric e outros c. EPA, na Corte de Apelações do 5o Circuito, o que estava em disputa
era a interpretação da norma sobre substâncias perigosas. No mesmo processo havia a
defesa de três posições distintas. As empresas General Eletric e diversas outras grandes
29
98-60804. Este processo deu origem a outros processos em instâncias superiores, como o processo 9860642, The General Electric company c. United States Environment Protection Agency e o processo 9860495 Central and South West Services, Inc.; Entergy Services Inc.; Mississippi Power Company; Utility
Solid Waste Activities Group c. United States Environment Protection Agency.
empresas argumentavam que a norma da EPA era muito restritiva e impediria o seu
direito de livre comércio. Sierra Club considerava que a norma não era suficientemente
restritiva para a proteção da saúde humana e do meio ambiente. A EPA, por sua vez,
defendia que a sua norma era suficiente para proteger o meio ambiente e a saúde humana,
e que estava no seu direito de restringir o livre comércio, ainda que sem provas científicas
claras.
O tema central do processo era a utilização de policlorinato bifenil (PCB). A
organização não-governamental Sierra Club considerava o alto grau de periculosidade do
produto e que a agência pública deveria proibir a sua utilização. O silêncio sobre a
restrição dada ao uso de certos tipos de PCB era, de fato, uma autorização ao seu uso.
Uma vez que o direito americano não dispõe de uma modalidade de ação similar à
ação civil pública brasileira, a ONG não foi admitida no processo por falta de interesse de
agir. No entanto, dois de seus membros foram aceitos, porque demonstraram que podiam
ser afetados, devido à possibilidade de contaminação. Segundo a ONG, os PCBs eram
utilizados na fabricação de estradas, em particular na 71 e 290 West, no Texas. A água da
chuvas era contaminada quando caía sobre as estradas e em seguida infiltrava no solo e
entrava em contato com o lençol freático que dá origem ao lago que abastece a cidade de
Austin. Os membros da ONG bebiam esta água e às vezes nadavam em um lago que
ficava próximo destas estradas onde o material havia sido empregado.
A General Eletric e as outras empresas, por sua vez, defendiam que não havia
estudos demonstrando onde o material havia sido utilizado ou ainda qualquer prova que
demonstrasse que os produtos podiam causar danos ao meio ambiente. No entanto, por
conseqüência, a falta de informação científica deveria servir de justificativa para a inércia
do Poder Público. Os membros do Sierra Club, por sua vez, argumentavam que a agência
ambiental deveria demonstrar que os produtos autorizados eram inofensivos para a saúde
humana, exigindo uma inversão do ônus da prova, em favor do princípio da precaução. A
agência ambiental argumentava que não precisava demonstrar que o produto causava mal
a saúde e ao meio ambiente, cabendo às empresas apresentar tais provas.
ii) A consideração do enfoque precaucionário pela Corte
A corte aceitou a arguição do enfoque de precaução, como um princípio racional
de condução das atividades humanas. Neste caso, a abordagem precaucionária foi
utilizada em defesa não apenas do meio ambiente, mas principalmente em proteção à
saúde humana. A migração do princípio entre as normas de proteção da saúde e dos
direitos humanos para o direito ambiental é freqüentemente observada em vários direitos
nacionais, como lembra Freestone30.
Além de aceitar a inversão do ônus da prova, a Corte exigiu também a interdição
dos produtos até que fosse demonstrado que não havia impactos negativos ao meio
ambiente. Não se impõe um nível de risco sempre zero, mas um risco em função do bem
jurídico tutelado e dos perigos de dano, ainda que não-demonstrados. Como bem
salientam Freestone, Hermitte e David,31 o cálculo do nível de aplicação do princípio de
precaução varia de acordo com o bem jurídico tutelado, não sendo princípio jurídico
absoluto. Como os bens em questão eram a vida de milhares de pessoas e o meio
ambiente, os níveis de exigência deveriam ser estabelecidos em um patamar elevado.
A Corte centrou sua resposta na disputa entre a agência ambiental e as empresas,
analisando a obrigatoriedade legal de proibir produtos perigosos, ainda que sem base
científica concreta (TSCA), posicionando-se a favor de uma abordagem precaucionária.
Na posição da Corte:
As partes discordam sobre como o padrão de evidência substancial
se aplica ao legislador neste caso. De acordo com a EPA, o único
elemento do TSCA, § 6(e) que geralmente proíbe a fabricação ou o uso de
PCB, a menos que a EPA tenha autorizado o seu uso, reflete o pensamento
do legislador de que os PCBs impõm um risco não-razoável de dano à
saúde. No entanto, EPA arguementa que o TSCA, § 6(e) cria um
presunção duvidosa de que todos os usos de PCBs representam um risco
não-razoável de dano ao meio ambiente. Então de acordo com EPA, ainda
que um requerente como o USWAG ou a GE [General Eletric] aleguem
que EPA recusou de forma indevida a permissão de uso de um tipo de
PCB em particular, a EPA [considera que] não precisa provar com
evidências científicas que os o uso desejável dos requerentes expõe a
saúde ou o meio ambiente a um risco excessivo. Nós concordamos”
30
31
Ver o texto de Freestone ao presente livro
Ver capítulos dos autores neste livro.
3. Considerações finais
O Órgão de Solução de Controvérsias da Organização Mundial do Comércio
aceita uma forma de princípio da precaução, o que é deveras positivo, mas sua
compreensão do que é o princípio da precaução não é ampla o bastante, para que seja
possível inserirmos as concepções do princípio presentes em outros tratados
internacionais importantes, como a Convenção sobre a Diversidade Biológica e a
Declaração da Conferência do Mar do Norte de 1987, dentre outros. O princípio da
precaução é aceito no âmbito da OMC de forma genérica, semelhante às disposições da
Convenção sobre a Diversidade Biológica, descrito na fórmula “a incerteza científica não
pode servir de base para uma omissão”, mas a OMC adiciona outras cinco condições
específicas e restritivas, estudadas acima, que limitam bastante o princípio, a ponto de
poder tirar sua importância no julgamento de um caso concreto.
A Corte Internacional de Justiça não é objeto de críticas das organizações
ambientalistas. Por pertencer ao sistema onusiano, que por sua vez é mais susceptível de
participação popular do que a OMC, sua antiguidade lhe garante, em face das
organizações ambientais, uma legitimidade superior àquela da OMC. Todavia, no tocante
ao meio ambiente, e sobreudo ao princípio da precaução, constata-se um paradoxo: a
Corte Internacional de Justiça revelou-se mais fechada do que o Órgão de Solução de
Controvérsias da OMC. No único caso em que foram discutidos a proteção ambiental e o
princípio da precaução, a Corte Internacional de Justiça não reconheu a eficácia do
princípio e a falta de provas científicas concretas foi uma das causas para a recusa em
considerar lícitos os atos de proteção ambiental efetuados por um país contratante. Em
outras palavras, muito embora o reconhecimento a priori do princípio da precaução no
texto do processo, sua aplicação foi considerada inoportuna.
A Corte de Justiça das Comunidades Européias, por sua vez, aceita o princípio da
precaução no caso de incerteza científica e quando se trata da preservação ambiental.
Estas são as duas condições identificadas para a implementação do princípio pelas
autoridades européias. Ela é importante, na medida em que a Europa representa o grupo
de países mais aberto à adoção do princípio da precaução, mesmo se a decisão discutida
tratava de uma norma comunitária, portanto já uniformizada. Todavia, contrariamente ao
Órgão de Solução de Controvérsias da Organização Mundial do Comércio, ela não impõe
à autoridade pública o dever de realizar estudos científicos constantes, para dar respostas
mais objetivas sobre a avaliação do risco, nem mesmo de condicionar a restrição da
atividade a reexame em um prazo razoável.
Estas organizações internacionais baseiam-se, portanto, em normas e princípios
do direito internacional. O reconhecimento do princípio da precaução como um princípio
internacional, ou uma regra de direito costumeiro, ainda não está consolidado. A posição
de diversos países nos fóruns internacionais, sobretudo a dos Estados Unidos, principais
atores econômicos e Estado ativo em todas as negociações internacionais relevantes –
ainda que não seja parte legítima em muitos casos, como nas negociações sobre a
Convenção sobre a Diversidade Biológica, na qual, mesmo sem terem ratificado, foram
atores importantes nas negociações internacionais dos textos derivados32 _ contribue
bastante para o reconhecimento ou não-reconhecimento do princípio da precaução no
direito internacional. Como vimos, os Estados Unidos alegaram na OMC que este
princípio não existia no cenário internacional. No entanto, internamente, o princípio
parece estar bem consolidado internamente nos Estados Unidos.
A posição estadunidense é antagônica até mesmo entre suas posições em
diferentes fóruns de negociação internacional. Nas negociações do regime das mudanças
climáticas, o princípio da precaução foi amplamente defendido pelos Estados Unidos e
por outros países desenvolvidos. A divergência de posições de um mesmo Estado
demonstra que, além das diferenças de interpretação jurídica que normalmente existem na
construção de um novo princípio jurídico, elementos de ordem política são muito
relevantes, e podem variar conforme os interesses específicos em adotar ou não um
acordo internacional ou uma determinada interpretação jurídica. As diferentes posições
dos
tribunais
internacionais
revelam
as
diferenças
técnico-jurídicas
sobre
o
reconhecimento do princípio da precaução. As diferentes posições de um mesmo país –
os Estados Unidos –, entre o seu direito nacional e suas posições internacionais
demonstram o elemento político do reconhecimento deste novo princípio, de acordo com
os interesses econômicos e ambientais norte-americanos.
32
Como o Protocolo de Cartagena, sobre organismos geneticamente modificados.
A concretização rápida deste princípio, que estreou no direito internacional no
final dos anos setenta e início dos anos oitenta, demonstra que as preocupações
ambientais globais crescentes estão sendo suficientes para contornar os obstáculos
jurídicos e políticos que têm sido encontrados. No entanto, como analisado nos diversos
capítulos deste livro, ainda há um longo caminho a ser percorrido.
Referências bibliográficas
DUPUY, P.-M. “Où en est le droit international de l'environnement à la fin du siècle?”
Revue Générale de Droit International Public, 1997, 101(4)
NOIVILLE, C. “Principe de précaution et gestion des risques en droit de l'environnement
et en droit de la santé.” Petites affiches, 2000, 239 (30 de novembro), p.46.
SANDS, P. “Cour internationale de justice”. Bulletin de droit nucléaire, 1996, 58
(décembre), p.56-72. e P. Sands. Enforcing environmental security. In : P. Sands.
Greening international law. London, Earthscan, 1993, p. 61-62.
SANDS, P. “Environmental protection in the twenty-first century : sustainable
development and international law”. In : Revesz, Sands e Stewart. Environmental law,
the economy and sustainable development. Cambridge: Cambridge University Press,
2000.
SANDS, P. Vers une transformation du droit international? Institutionnaliser le doute.
Paris, Pedone, 2000, p.211 et ss.
Capítulo 11
A adoção do princípio da precaução pela OMC
Hélène Ruiz Fabri1
O princípio da precaução está na moda. A Organização Mundial do Comércio
(OMC) também. Os dois não podiam deixar de se encontrar. Um desses encontros foi
bastante relatado pela mídia: trata-se do caso da Carne com hormônios1 e poderia-se
deduzir que o princípio da precaução não tem muitas possibilidades de expandir-se no
quadro da OMC. Mas é preciso, sem dúvida, não fazer julgamentos precipitados e
calcular, mais particularmente, a inversão de perspectiva em relação a outras análises,
visto que não se trata de encarar a precaução como princípio de ação da OMC, mas de
avaliar o policiamento que a organização exerce sobre o uso desse princípio pelos
Estados-membros em relação a fluxos comerciais normalmente liberalizados. Além do
mais, a questão é ambivalente. Por um lado, o princípio da precaução, ou seja, um
princípio em nome do qual podem ser tomadas medidas que visam prevenir um risco
mesmo que esse não seja ainda cientificamente comprovado (portanto não há certeza
científica), não é mencionado em nenhum lugar nos textos que formam o direito da
OMC. Por outro lado, o uso do princípio da precaução inscreve-se em uma problemática
mais global, que já era conhecida do Acordo Geral de Tarifas e Comércio (GATT) e, em
conseqüência, não é novidade para a OMC. Ela corresponde à idéia de que podem existir
preocupações que levam a tomar medidas de precaução onde o GATT (e agora a OMC)
queria a livre circulação.
O GATT sempre admitiu que existia um certo número de objetivos não
comerciais que deviam ser considerados preocupações legítimas dos Estados e que
podiam justificar medidas de proteção. Para isso, implementara um regime de exceções
(artigos XX e XXI) que substitui e forma, por assim dizer, a interface entre o direito da
1
Professora da Universidade de Paris I – Panthéon Sorbonne. Membro do Institut Universitaire de France.
Agradecemos à Revue Juridique de l’Environnement, na pessoa do Professor Michel Prieur, pela
autorização para publicar esse artigo.
1
Comunidade Européia – Mesures concernant les viandes et les produits carnés (hormones)
(WT/DS26/AB/R ; WT/DS48/AB/R). Relatório de apelação comum aos dois casos introduzidos pelo
Canadá e pelos Estados Unidos, posto em circulação em 16 de janeiro de 1998 e adotado em 13 de
fevereiro de 1998. Ver Ruiz Fabri, «Chronique du règlement des différends de l'O.M.C.», J.D.I. 1999/2.
OMC e as preocupações não comerciais. É um regime que impõe, evidentemente, um
certo número de condições, visando beneficiar-se com elas. Essas condições foram
precisadas no tratamento contencioso de dois casos: o da Gasolina e o dos Camarões.
Trata-se de garantir que as medidas tomadas não visem, na realidade, um objetivo
protecionista e que elas não sejam aplicadas de forma discriminatória. Porém, não foi
simultaneamente a essas oportunidades que o princípio da precaução apareceu no
contencioso (seria possível e concebível, mas não aconteceu ainda). Ele foi citado em
controvérsias, colocando em causa um novo acordo do direito da OMC, o Acordo sobre
as medidas sanitárias e fitossanitárias (SPS), o que não é muito surpreendente, na medida
em que esse acordo atinge um dos domínios prediletos do princípio da precaução: a
segurança sanitária2.
Esse acordo funciona segundo a mesma lógica que o regime das exceções. Com
efeito, foi negociado por causa do medo de ver os Estados abusarem do artigo XX no que
tange à agricultura. Ele teve, notadamente, como objetivo, desenvolver critérios para
facilitar a avaliação da necessidade de uma medida do ponto de vista sanitário. As
obrigações de forma e de matéria que pesam sobre os Estados são, de fato, maiores.
Porém, esse acordo só atinge as medidas necessárias para proteger a saúde e para evitar
graves danos, e não todas as medidas que dizem respeito aos consumidores, o que leva a
duas deduções. Surgido em casos do Acordo SPS, o princípio da precaução poderia, sem
dúvida, ser invocado em outros acordos (por exemplo no Acordo sobre os obstáculos
técnicos ao comércio - Acordo OTC - citado no caso do amianto3). Mas, na medida em
que o acordo SPS é particularmente exigente, o estudo do espaço criado para o princípio
da precaução pode, sem dúvida, ser considerado indicativo de um nível mínimo para ele
(que é sem dúvida bastante baixo)4.
Mais precisamente, o princípio da precaução foi invocado em dois casos
(conhecidos como da Carne com hormônios e dos Produtos agrícolas5), e o Acordo SPS
2
Ver o artigo de Christine Noiville, nesse livro.
Entretanto, o caso foi essencialmente tratado no campo do artigo XX b) do GATT pelo Grupo Especial.
Comunidades Européias - , WT/DS 135. O caso está atualmente em apelação.
4
G. Goh, A.R. Ziegler, « A Real World Where People Live and Work and Die – Australian Measures After
the WTO Appellate Body’s Decision in the Hormones Case », J.W.T. 1998/5, pp. 271-290.
5
Japão – Medidas visando os produtos agrícolas (WT/DS76/1/AB/R). Relatório de apelação do 22 de
fevereiro de 1999. Ver H. Ruiz Fabri, « Chronique du règlement des différends de l'O.M.C.», J.D.I. 2000/2,
pp. 392-396.
3
foi aplicado em três (os dois citados e o caso dos Salmões6). O interesse, nesses casos,7
vem do fato de eles fazerem referência a medidas anteriores à OMC, algumas delas muito
antigas, ou seja, a resistências muito sedimentadas. É particularmente o caso dos Salmões
e Produtos agrícolas nos quais medidas tomadas há mais de 20 anos foram questionadas.
O caso da Carne com hormônios é simbólico do que se poderia chamar de “novas
recusas” de métodos amadores, justificados por uma preocupação de produção de uma
sociedade superabastecida. Além do mais, esses casos atingem quase todo o leque das
medidas sanitárias, visto que o caso da Carne com hormônios concerne à saúde dos
homens, o caso dos Salmões à dos animais e o caso dos Produtos agrícolas à dos vegetais.
Nesses
diferentes
casos,
as
medidas
questionadas
foram
consideradas
incompatíveis com as obrigações da OMC. Quais conclusões podem ser tiradas no que
diz respeito à implementação do princípio da precaução? É impossível, proteger-se em
uma situação de incerteza? É, sem dúvida, inútil pensar no quadro da implementação do
princípio da precaução sem antes ter avaliado seu alcance.
1. O contexto da consideração do princípio da precaução
Em que circustância o princípio da precaução é ou pode ser implementado pela
OMC? Na medida em que ele não é, por si próprio, objeto de nenhuma afirmação, são
possíveis três opções. Uma delas consistiria em solicitar uma interpretação autêntica da
Conferência Ministerial ou do Conselho Geral sobre a fundamentação do artigo IX da
Carta da OMC, mas esse caminho, que implicaria em conseguir uma maioria de três
quartos ou um consenso, nunca foi praticado até o presente momento. Ele supõe uma
vontade política, idéias suficientemente claras, e suas chances de realização são
hipotéticas. A perspectiva do seu uso é apenas teórica.
As duas outras possibilidades são aquelas que foram submetidas ao Grupo
Especial e ao Órgão de Apelação no caso da Carne com hormônios. Uma consiste em
uma regra autônoma, a outra, em uma regra incorporada materialmente no direito da
6
Austrália – Medidas visando as importações de salmão (WT/DS18/AB/R). Relatório de apelação de 20 de
outubro de 1998, adotado em 6 de novembro de 1998. Ver H. Ruiz Fabri, « Chronique du règlement des
différends de l'O.M.C.», J.D.I. 1999/2, pp.
7
J. Pauwelyn, « The WTO Agreement on Sanitary and Phytosanitary (SPS) Measures as Applied in the
First Three SPS Disputes, EC – Hormones, Australia – Salmons and Japan – Varietals », J.I.E.L. 1999, pp.
641-664.
OMC. Porém, a ausência de regra autônoma aparece rapidamente na análise, e a análise
se remete em definitivo para a consideração material do princípio no texto dos acordos.
i) A ausência de autonomia do princípio da precaução
A avaliação da implementação do princípio da precaução supõe como ponto de
partida o direito aplicável aos órgãos de solução de controvérsias: consoante o artigo 3: 2
do Memorando de entendimento sobre as regras e procedimentos relativos à solução de
controvérsias (Memorando), eles devem decidir as controvérsias baseadas nos “acordos
visados”, por conseqüência de diferentes textos que compõem o direito da OMC.
Segundo tais acordos, não se trata de aplicar o conjunto do direito internacional. Um
Estado que faz uma reclamação deve invocar uma violação do direito da OMC (ou de
uma regra para qual um acordo da OMC remete, como no caso do Acordo sobre os
direitos de propriedade intelectual ou do Acordo SPS que se refere às normas
internacionais, como aquelas tiradas do Codex Alimentarius). Contudo, os órgãos que
intervêm na decisão das controvérsias têm também como tarefa esclarecer as disposições
desses acordos conforme as regras costumeiras de interpretação do direito internacional
público. É nesse contexto que regras do direito internacional de origem externa podem
ser implementadas. Então, não se trata de uma aplicação direta, mas de uma aplicação
mediada.
Assim, a título de regra de interpretação do Acordo SPS, o princípio da precaução
fora invocado pela Comunidade Européia no caso da Carne com hormônios: ela defendia
que se tratava de uma regra consuetudinária, ou pelo menos, de um princípio geral do
direito, à luz do qual era preciso interpretar as obrigações contidas no Acordo SPS. Ela
desejava que essas medidas de proibição de importação de carne bovina com hormônios,
provenientes dos Estados Unidos e do Canadá, fossem consideradas medidas de
precaução. O desafio desse argumento era a autonomia do princípio da precaução em
relação ao Acordo SPS; o objetivo de influenciar a determinação do alcance das
obrigações contidas nesse acordo. O dilema era evidente: era impossível desconsiderar
esse princípio, por razões políticas, mas então como implementá-lo?8
8
O Órgão de Apelação mostrou sua preocupação em relação “ao equilíbrio frágil...cuidadosamente
negociado no Acordo SPS, entre os interesses compartilhados, embora às vezes divergentes, que consistem
em promover o comércio internacional e em proteger a vida e a saúde dos seres humanos” (par. 177).
Assim, o Órgão de Apelação foi levado a estabelecer sobre essa autonomia. O
Grupo Especial a evitara usando um raciocínio duplo. De acordo com o Grupo Especial,
não era necessário pronunciar-se, pois, admitindo uma autonomia do princípio da
precaução, esse não teria o propósito de se sobrepor ao enunciado explícito das
disposições do Acordo SPS. O Grupo Especial fundamentava notadamente sua asserção
sobre a consideração de que esse princípio estava incorporado, num sentido específico, a
um dispositivo do Acordo SPS (não invocado no caso), o que significava que, quando
quiseram, os negociadores souberam muito bem recorrer a tal princípio. Deduzira que, no
momento em que não fora incorporado no dispositivo em causa, não podia prevalecer
sobre o texto do Acordo9. O Órgão de Apelação aprofundou o raciocínio sem colocá-lo
em questão e, com isso, negou-se a classificar o princípio da precaução como regra de
interpretação. Sua recusa é prudente, pois a questão parecia mesmo uma armadilha. De
fato, esse caso mostra que os órgãos de solução de controvérsias, em particular o Órgão
de Apelação, podem ser confrontados com questionamentos jurídicos fundamentais e não
definidos como esse caso do princípio da precaução. A sensibilidade dos Estados corre
então o risco de se expressar diretamente contra os rigores do mecanismo de solução das
controvérsiass e a questão do alcance do controle encontra-se presente. Isso explica, sem
dúvida, a prudência do Órgão de Apelação que deve dosar as obrigações tanto
procedimentais, quanto materiais10.
Quando o princípio da precaução é proposto como referência de interpretação, a
sua utilização pelo Órgão de Apelação esbarra no estatuto jurídico desse princípio. Em
primeiro lugar, ele sublinha que esse princípio é atualmente objeto de debates. Depois,
após lembrar diversos pontos de vista, e estudar as qualificações de regra consuetudinária
ou de princípio geral, e interrogar-se de forma dubitativa sobre a existência de uma
opinio juris, constata que esse princípio, “pelo menos fora do direito internacional do
meio ambiente, não foi ainda objeto de uma formulação que se imponha”11. Aliás, referese, para confortar sua posição, ao fato da Corte Internacional de Justiça não mencionar
Trata-se claramente de conjurar os riscos de deturpações protecionistas sem desconhecer as finalidades
legítimas das medidas visadas.
9
Relatório do Grupo Especial, parágrafo 8.157.
10
Ruiz Fabri, «L'appel dans le règlement des différends de l'O.M.C., trois ans après, quinze rapports plus
tard...», Revue Générale de Droit International Public, 1999/1, pp. 49-127.
11
Relatório Carne com hormônios, parágrafo 125.
esse princípio entre as novas normas do direito ambiental, conforme a sua decisão então
recente no caso Gabcikovo-Nagymaros e que, no mesmo, não declarou que tal princípio
devia sobrepor-se às obrigações convencionais que ligam os Estados-partes12. O Órgão de
Apelação explora também abundantemente a doutrina.
A partir do momento que considera não poder dar conclusões quanto à
positividade do princípio, o jogo está quase decido. O princípio da precaução não é mais
visto como princípio geral nem como regra autônoma. Ele não tem a “força” suficiente
para substituir as regras consuetudinárias de interpretação consolidadas, o que o Órgão de
Apelação qualifica como “princípios normais”13. Remete-se então para a segunda
solução, ou seja, considerar que o princípio da precaução está implementado no conteúdo
do Acordo SPS, porém sem se sobrepor às disposições desse acordo14.
ii) A presença ou a articulação do princípio da precaução com o Acordo SPS
O Órgão de Apelação estima “importante… observar certos aspectos da relação
entre o princípio da precaução e o Acordo SPS”15. A respeito disso, ele faz sucessivas
considerações:
a) O princípio não foi incorporado ao Acordo como um motivo que justifica
medidas por outras partes incompatíveis com o dito acordo. Então, ele não pode ter como
efeito a exoneração do respeito às obrigações fundamentais ou de procedimentos que o
Acordo enuncia. É a réplica à argumentação européia segundo a qual, mesmo na ausência
de provas científicas suficientes, ela conservaria o direito de tomar uma medida de
proibição. A mesma afirmação está presente no caso dos Produtos agrícolas.
b) O Princípio “está efetivamente computado no artigo 5:7 do Acordo SPS”.
Porém, o Órgão de Apelação concorda em considerar “que não é necessário pôr em
princípio que o artigo 5:7 é exaustivo no que tange à pertinência do princípio da
precaução”. De fato, estima que o princípio está “também previsto na sexta alínea do
caput do artigo 3:3”. Esse posicionamento corresponde a uma concepção extensiva da
precaução, essas últimas disposições se aproximando mais da obrigação de segurança e
da lógica de prevenção.
12
H . Ruiz Fabri, J.-M. Sorel, « Chronique de jurisprudence de la Cour internationale de Justice », J.D.I.
1998/3, pp. 773-801.
13
Relatório Carne com hormônios, parágrafo 124.
14
Idem, § 125.
15
Idem, § 124.
c) O Órgão de Apelação indica que o Grupo Especial deveria ter lembrado que os
governos agem por precaução.
O conjunto é bastante ambíguo: não é um princípio geral, mas deve-se partir do
princípio de que os Estados agem por precaução. Para entender, é importante explicitar os
mecanismos visados do Acordo SPS. O artigo 5:716 autoriza os Estados a tomarem
medidas provisórias. Trata-se notadamente de permitir que se encarem situações de
urgência ou de crise, no momento em que “as provas científicas serão insuficientes”. Os
Estados podem adotar suas medidas provisórias “com base nas informações pertinentes
disponíveis,”mas, então, devem se esforçar “para obter informações adicionais
necessárias para proceder a uma avaliação mais objetiva do risco” e reexaminar,
conseqüentemente, suas medidas. Entende-se que esse mecanismo possa ser considerado
o campo de atuação preferido do princípio da precaução, visto que dá lugar à incerteza
científica. Aliás, o Grupo Especial do caso da Carne com hormônios considerou que essa
expressão específica do princípio da precaução era a única presente no Acordo SPS.
O Órgão de Apelação tem uma visão mais flexível. Além do sistema das medidas
provisórias, considera que o princípio da precaução está também incluído no artigo 3:3 do
Acordo e no seu preâmbulo. Essas disposições colocam em questão o princípio da livre
escolha, pelos Estados, do nível de proteção que julgam apropriado. Decerto, a idéiadiretora do Acordo SPS é a de obter uma harmonização internacional das normas de
referências no que tange à matéria. É verdadeiramente o caminho para transpor as
dificuldades. Mas sabe-se, também, que qualquer empreendimento de harmonização leva
alguns atores a temer um nivelamento por baixo, e outros ao medo de níveis
demasiadamente elevados. O preâmbulo17 traz, nesse contexto, uma bolha de ar no
16
“7 - Quando as provas científicas pertinentes forem insuficientes, um Membro pode adotar
provisoriamente medidas sanitárias ou fitossanitárias com base nas informações pertinentes disponíveis,
incluindo as provenientes das organizações internacionais competentes e as que resultem das medidas
sanitárias ou fitossanitárias aplicadas por outros Membros. Nessas circunstâncias, os Membros esforçar-seão para obter as informações adicionais necessárias para proceder a uma avaliação mais objetiva do risco e
examinarão, em conseqüência, a medida sanitária ou fitossanitária num prazo razoável.”
17
“Os Membros, reafirmando que nenhum Membro deveria impedir a adoção ou aplicação das medidas
necessárias à proteção da saúde e da vida das pessoas e animais ou à preservação dos vegetais, sob reserva
de que essas medidas não sejam aplicadas de maneira a constituir ou um meio de discriminação arbitrária
ou injustificável entre os Membros onde as mesmas condições existem, ou, uma restrição disfarçada contra
o comércio internacional.,
almejando melhorar a saúde das pessoas e dos animais, assim como a situação fito-sanitária entre todos os
seus Membros;
sistema, colocando o princípio da livre escolha, pelos Estados, do nível de proteção que
julgam apropriado. O artigo 3:318 vê a possibilidade de um nível de proteção mais
elevado que aquele alcançado pelo viés das normas internacionais, na ocorrência do
Codex Alimentarius.19 Essa possibilidade está aberta “se há uma justificativa científica” e
se for “a conseqüência do nível de proteção” que o Estado julga “apropriado”conforme o
artigo 5:1. Esse artigo é relativo à avaliação dos riscos e à determinação do nível
apropriado de proteção.20 O Órgão de Apelação é, claramente, o elo entre a livre escolha
do nível de proteção e a precaução.
Finalmente, uma vez que as disposições do Acordo SPS fazem muitas referências
umas às outras e se complementam, o conjunto como um todo deve ser considerado
observando que as medidas sanitárias e fitossanitárias são freqüentemente aplicadas na base de acordos ou
protocolos bilaterais;
almejando ver estabelecer-se um quadro multilateral de regras e disciplinas para orientar a elaboração, a
adoção e a aplicação das medidas sanitárias e fito-sanitárias, a fim de reduzir para o mínimo seus efeitos
negativos sobre o comércio;
reconhecendo a contribuição importante que as normas, diretivas e recomendações internacionais podem
trazer em relação a isso;
almejando favorecer a utilização de medidas sanitárias e fitossanitárias harmonizadas entre os Membros,
sobre a base de normas, diretivas e recomendações internacionais elaboradas pelas organizações
internacionais competentes, entre as quais a Comissão do Codex Alimentarius, o Escritório Internacional
das Epizootias, e as organizações internacionais e regionais competentes operando no quadro da
Convenção internacional para a proteção dos vegetais, sem exigir de nenhum membro que modifique o
nível de proteção da saúde e da vida das pessoas e animais ou de preservação dos vegetais que considera
como apropriado;
reconhecendo que os países Membros em desenvolvimento podem encontrar dificuldades especiais para
conformar-se às medidas sanitárias ou fitossanitárias dos Membros importadores e, conseqüentemente, para
aceder aos mercados, assim como formular e aplicar medidas sanitárias ou fitossanitárias em seus próprios
territórios, e desejando ajudá-los nos seus esforços em relação a isso;
em conseqüência, almejando elaborar regras para aplicação das disposições de 1994 do GATT, que se
referem à utilização das medidas sanitárias ou fitosanitárias, em particular das disposições do artigo XX b)
(1),
decidem o seguinte…”. (tradução não oficial).
18
“3 - Os Membros podem introduzir ou manter medidas sanitárias ou fitossanitárias que resultem num
nível de proteção sanitária ou fitossanitária mais elevado que o que seria conseguido através de medidas
baseadas nas normas, diretrizes ou recomendações internacionais aplicáveis, se existir uma justificação
científica ou se tal for conseqüência do nível de proteção sanitária ou fitossanitária que um Membro
considere adequado em conformidade com as disposições aplicáveis dos n.os 1 a 8 do artigo 5.º (ver nota
2). Não obstante o que precede, nenhuma medida que resulte num nível de proteção sanitária ou
fitossanitária diferente do que seria obtido por meio de medidas baseadas nas normas, diretrizes ou
recomendações internacionais será incompatível com qualquer outra disposição do presente Acordo”.
(tradução não oficial).
19
Comissão comum da FAO e OMS elaborando normas no campo alimentício.
20
“1 - Os Membros assegurarão que as suas medidas sanitárias ou fitossanitárias sejam estabelecidas com
base numa avaliação, realizada de forma adequada às circunstâncias, dos riscos para a saúde e a vida das
pessoas e dos animais ou para a proteção vegetal, tendo em conta as técnicas de avaliação de riscos
desenvolvidas pelas organizações internacionais competentes”. (tradução não oficial).
(como se desenrolassemos um novelo de lã). Então, é preciso adotar uma perspectiva
sistêmica para verificar a verdadeira brecha aberta para o princípio da precaução.
2. O conteúdo da consideração do princípio da precaução
O Acordo SPS foi inteiramente desenvolvido em torno da idéia de prova ou de
justificativa científica. Desse ponto de vista, é muito mais exigente que todos os outros
dispositivos suscetíveis de fundamentar medidas de proteção e, então, no âmbito do qual
o princípio da precaução pode ser invocado, como o acordo OTC ou o artigo XX. Na
medida em que o Acordo SPS é, até o momento presente, o único que foi analisado pelo
Órgão de Solução de Controvérsias, pode-se chegar à hipótese de que o que é admitido
no seu contexto valeria a fortiori para sistemas menos exigentes.
A avaliação do alcance da implementação do princípio da precaução nesse acordo
supõe o exame do espaço deixado para a incerteza científica e os efeitos jurídicos que ela
pode produzir. É nesse nível que será identificado o que foi considerado vitórias da
Comunidade Européia no caso da Carne com hormônios. Com efeito, o Órgão de
Apelação escolheu uma interpretação do Acordo SPS que deixa uma certa margem de
manobra aos Estados, notadamente no que tange a um certo número de noções-chave,
como aquela de risco ou de prova científica e sobre o alcance das obrigações que pesam
efetivamente sobre os Estados. Todavia, a margem de manobra não é ilimitada. O Acordo
SPS mistura obrigações materiais com obrigações procedimentais e é de acordo com
essas combinações que será avaliado o verdadeiro espaço deixado para o princípio da
precaução.
i) As noções-chave
O domínio de ação do princípio é o dispositivo relativo às medidas provisórias.
Com efeito, é ele que deixa o maior espaço para a incerteza científica, visto que se refere
à hipótese em que as provas científicas pertinentes são insuficientes. Porém, como
também foi analisado, o Órgão de Apelação considerou que o princípio da precaução não
se esgotava nesse único dispositivo do acordo. Então, convém examinar também outras
informações a serem deduzidas do acordo como um sistema geral. Nos dois casos,
encontra-se uma referência à prova científica (suficiente num caso, insuficiente no outro)
e à avaliação do risco. O espaço deixado para a prova científica não significa ipso facto
uma exclusão do princípio da precaução, da mesma maneira que a invocação do princípio
da precaução não exclui ou não justifica a ausência de trabalho científico. Ao contrário,
supõe freqüentemente a multiplicação das investigações científicas para apreciar o risco.
Isso vem do próprio funcionamento dos mecanismos.
No contexto do sistema geral, os Estados têm a livre escolha do nível de proteção.
Então, esse pode ser superior em relação àquele implicado pelas normas internacionais.
Simplesmente, isso conduz a obrigações materiais e procedimentais. De fato, enquanto
um Estado cumpre somente as normas internacionais, as medidas que adota beneficiam
de uma presunção de compatibilidade com o Acordo SPS. Ao contrário, logo que ele quer
ir além delas, deve justificar sua escolha trazendo provas científicas suficientes, o que
supõe que tenha procedido a uma avaliação dos riscos. Trata-se de uma obrigação, antes
de tudo, de procedimento. No entanto, é importante revelar que o direito de escolher o
nível de proteção apropriado (ou o nível aceitável de risco de acordo com o anexo A do
Acordo SPS) é, segundo o Órgão de Apelação, “um direito autônomo e não uma
‘exceção’ de uma ‘obrigação geral’consoante o artigo 3:1.”21 As implicações dessa
afirmação situam-se notadamente no campo do ônus da prova, tendo o Estado-autor que,
pelo menos, fornecer um início de prova de violação do Acordo SPS.
No sistema das medidas provisórias, o Estado deve, mesmo assim, apoiar-se sobre
as informações disponíveis. Além do mais, ele deve esforçar-se para obter informações
complementares para desenvolver uma avaliação mais objetiva do risco e poder
reexaminar a medida provisória dentro de um prazo razoável.
Sobre as noções-chave de risco e de prova científica, o Órgão de Apelação trouxe
um certo número de precisões que tornam relativo o teor do Acordo SPS. No que tange à
noção de risco, tal Órgão considera que o Acordo não contém indicação quantitativa
mínima, mas somente indicações qualitativas. Assim, infirma o raciocínio do Grupo
Especial, que parecia indicar que a avaliação dos riscos devia permitir “estabelecer para o
risco uma ordem de grandeza mínima”. Para ele, “a imposição de tal prescrição
quantitativa não se apóia sobre nenhuma disposição do Acordo SPS.”22 As implicações
dessa precisão são claras. Não se trata de refazer a avaliação do risco e de procurar se o
risco estabelecido pelo Estado existe realmente. Em outros termos, o Grupo Especial não
21
22
Relatório do caso da Carne com hormônios, parágrafo 172.
Id., § 186.
se pode questionar se teria feito a mesma avaliação e não pode, nem deve, sobre esse
ponto, substituir sua apreciação por aquela do Estado. Isso não é o objeto de controle.
Esse é a medida colocada em causa e trata de apreciar não se o Estado fez a avaliação
certa, mas se a avaliação que fez pode, de forma válida e razoável, fundamentar a medida
que ele tomou. A exigência de provas “suficientes” não remete à idéia de que as provas
sejam em si suficientes para amparar o risco, mas se refere à relação entre a medida SPS
e as provas (o caráter “suficiente” é um “conceito relacional”23). A avaliação dos riscos é,
por assim dizer, o passaporte que permite estabelecer e manter uma medida SPS. No caso
dos Produtos agrícolas, o Órgão de Apelação confirmou que essa avaliação não deve ser
necessariamente fundada sobre um ponto de vista científico majoritário (muitos pontos de
vista visionários são inicialmente minoritários, por uma parte, e, por outra, o Órgão de
Apelação quer situar seu raciocínio na realidade, cuja prova laboratorial pode não ser
suficiente). Todavia, deve tratar-se de uma verdadeira avaliação, quer dizer, de uma
avaliação que não estabelece somente a possibilidade de um risco, mas que mede a sua
probabilidade e traduz, então, esse famoso nexo entre provas científicas e medida SPS.
Essa idéia, segundo a qual trata-se de avaliar a “probabilidade” do risco e não
simplesmente sua possibilidade, já aparecera no caso dos Salmões.24
Em outros termos, a tarefa do Grupo Especial consiste em avaliar a qualidade da
ligação entre a avaliação dos riscos e a medida tomada para preveni-los e determinar se
essa medida está “suficientemente amparada ou razoavelmente justificada” pela avaliação
dos riscos. É precisamente a prova que faltava, da parte da Comunidade Européia, no
caso da Carne com hormônios, pois essa avaliação dos riscos cobria substâncias não
dispostas em causas no caso enquanto hormônios não incluídos na proibição foram objeto
de uma análise científica. Trata-se do que o Órgão de Apelação qualifica de “relação
lógica” ou ainda de “elo racional,”25 o qual só pode ser apreciado caso a caso.
Esse ângulo de análise é bem entendido quando relacionado à posição tomada que
concerne à prova científica, cujo Órgão de Apelação torna relativo tanto o lugar quanto o
alcance. Em primeiro lugar, tratando-se dos elementos de prova necessários, o Acordo
SPS visa, a um certo número de métodos e meios que remetam todos a uma avaliação de
23
Relatório Produtos agrícolas, parágrafo 73.
Relatório, parágrafo 123.
25
Relatório Produtos agrícolas, parágrafo 79.
24
tipo científico (art. 5:226). Entretanto, o Órgão de Apelação torna relativo, precisando que
é essencial não perder de vista que o risco que deve ser avaliado (consoante o artigo 5:1)
não se restringe unicamente ao risco verificável num laboratório científico que funciona
em condições rigorosamente sob controle, mas também torna relativo o risco para as
sociedades humanas tais como existem na realidade, ou para dizê-lo de outra forma, os
efeitos negativos que poderiam efetivamente existir quanto à saúde das pessoas no mundo
real, onde as pessoas vivem, trabalham e morrem.”27 Podemos considerar que os produtos
não serão necessariamente consumidos em condições laboratoriais. É uma resposta à
posição que os Estados Unidos queriam ter visto prevalecer. Ou seja, só são calculadas
provas científicas (ponto de vista que já haviam sustentado no momento da negociação
do Acordo SPS e que retomaram frente ao Grupo Especial). O Órgão de Apelação deixou
muito claro: a prova laboratorial não é a prova real. É uma maneira de afirmar a
contingência da prova científica. Segundo alguns, pode-se ver outra expressão da
precaução. Ao menos ela realça uma relativação do recurso à perícia científica.28
Em segundo lugar, essa afirmação é completada por uma análise profundamente
relativista da prova científica, tomando posição de que ela não traz automaticamente uma
certeza absoluta.29 As incidências sobre a própria concepção de avaliação dos riscos,
obrigatória para o Estado, são evidentes. Essa avaliação não reflete necessariamente um
ponto de vista monolítico, nem mesmo majoritário. Se os governos têm a tendência de se
fundamentar mais sobre a opinião majoritária, também pode-se conceber que eles
escolhem, de boa fé, basear-se sobre um ponto de vista minoritário. O fato de que um
ponto de vista seja minoritário não cria obstáculo para que uma avaliação, apoiada sobre
esse ponto de vista, possa razoavelmente fundamentar a medida tomada. O Órgão de
Apelação nota que é particularmente o caso “quando o risco em questão pode ser mortal e
que é percebido como criando uma ameaça evidente ou iminente para a saúde e a
26
“2 - Na avaliação dos riscos, os Membros terão em conta provas científicas disponíveis, processos e
métodos de produção pertinentes, métodos de inspecção, amostragem e ensaio aplicáveis, ocorrência de
doenças ou parasitas específicos, existência de zonas indenes de parasitas ou doenças, condições ecológicas
e ambientais pertinentes e regimes de quarentena ou outros.” (tradução não oficial).
27
Relatório Carne com hormônios, parágrafo 187.
28
O problema da imparcialidade dos peritos aparece em outros lugares. Ficou claro no caso do amianto no
qual, tendo em vista o pequeno número de peritos na matéria, tornou-se bastante complicado designar
peritos que não fossem suspeitos de ligações com as indústrias envolvidas.
29
Relatório Carne com hormônios, parágrafo 194.
segurança pública.”30 Não se pode admitir de forma melhor uma certa subjetividade na
escolha. A própria existência de opiniões dissidentes pode ser reveladora e pode haver
matéria para medida SPS, se não houver unanimidade dos peritos.
Então, por que os Estados, cujas medidas eram colocadas em causa nos casos
julgados, perderam sistematicamente? Será que o desfecho não se encontra em outro
lugar ?
ii) Os limites
Eles resultam de princípios gerais que valem para toda situação de gestão dos
riscos. As medidas de precaução são, na verdade, apreciadas de vários pontos de vista, e é
aqui que se encontra a lógica comercial e os “desfechos”.
a) Em primeiro lugar, a constatação de que a ciência não resolve tudo tem duas
reservas. Por uma parte, essa relatividade tem um “mínimo”, mesmo que isso deva ser
apreciado caso a caso. Nesse “mínimo” deduz-se, no Acordo SPS, dois sistemas, um das
medidas provisórias e outro das medidas permanentes. Cada um deles tem sua razão de
ser e deve conservá-la. Na visão do Órgão de Apelação, “uma interpretação ampla e
flexível demais” do dever de não fazer uso de medidas SPS sem provas científicas
suficientes “privaria de sentido o artigo 5:7”, tornando inócuo um sistema de medidas
provisórias.31 Em outros termos, para que esse mecanismo tenha um efeito útil e o
recurso a medidas provisórias tenha um sentido, não é preciso uma interpretação
demasiado laxista das obrigações gerais. Por outra parte, o Acordo SPS não permite
calcular outras considerações, além de considerações científicas, como justificativa das
medidas restritivas.
b) Em segundo lugar, a aplicação do conceito de nível apropriado das proteções
está submetida a uma exigência de coerência. Essa é colocada pelo artigo 5:5 do Acordo
SPS, que prevê que cada Estado-membro há de evitar “criar distinções arbitrárias ou
injustificáveis em níveis que considera apropriados em situações diferentes, se tais
distinções levam a uma discriminação ou uma restrição disfarçada para o comércio
internacional.” Trata-se, aqui, de detectar a ‘instrumentalização’ das normas sanitárias
para fins protecionistas, comparando o comportamento do Estado na situação em causa
30
31
Idem, § 194.
Relatório Produtos agrícolas, parágrafo 80.
com aquele adotado em campos diferentes, mas onde existe um risco do mesmo tipo.
Consoante a lógica inerente ao direito da OMC, procura-se o uso de discriminações
injustificadas.
Assim, a exigência de coerência não foi considerada satisfatória no caso dos
Salmões. É verdade que a Austrália aplicava suas medidas SPS para o salmão, mas não
para o peixe dourado*, mesmo se a situação desses peixes é tida como semelhante. O
comportamento australiano não foi então considerado coerente e resultou numa dúvida
quanto às suas intenções. A problemática dessa apreciação reside evidentemente na
escolha do âmbito de apreciação da coerência e na determinação das comparações
possíveis. Se o Órgão de Apelação admite que situações devem ser comparáveis, ele, no
entanto, ficou com uma análise compreensiva da comparação. Assim, no caso da Carne
com Hormônios, estima que situações são comparáveis quando apresentam um ou vários
elementos comuns suficientes para torná-los comparáveis32. Não é necessário que todos
os elementos sejam idênticos. No caso dos Salmões, a Austrália sustentava que as
situações comparáveis deviam comportar, ao mesmo tempo, um risco de entrada, de
estabelecimento ou de disseminação de uma doença idêntica ou similar, assim como um
risco de conseqüências biológicas e econômicas idênticas ou similares. De acordo com o
Órgão de Apelação, basta que uma situação apresente um ou outro risco para tornar-se
comparável.
Entretanto, permanece-se com uma visão estritamente “sanitária”, enquanto pode
haver outros motivos para a diferença de tratamento entre situações consideradas
comparáveis. Assim, o aspecto “cultural” não é suscetível de ser implementado no quadro
dessa apreciação de coerência. É ainda menos surpreendente que a receptividade para
essa variável seja, de forma geral, muito fraca.33 Contudo, o debate está sendo reativado
pelos movimentos anti-OMC ou anti-globalização, com, notadamente, a denúncia da
“comida ruim.”
c) Em terceiro lugar, as medidas de precaução estão submetidas a uma exigência
de proporcionalidade. Esse debate, que trata da ponderação das controvérsias imperativas
*
A comparação no painel é feito com o arenque e com peixes ornamentais. [nota dos organizadores]
Relatório parágrafo 217, confirmado no Relatório Salmões, parágrafo 146.
33
Ver, por exemplo, o caso Canadá – Certas medidas concernindo os periódicos (WT/DS31/AB/R),
Relatório de apelação do 30 de junho de 1997, e caso Coréia - Taxas sobre as bebidas alcoólicas
(WT/DS75/1, WT/DS84/1), Relatório de apelação de 18 de janeiro de 1999.
32
presentes, é inerente ao princípio da precaução. A análise feita na OMC não apresenta,
então, antinomia em relação à visão habitual. A exigência de proporcionalidade significa
que as decisões escolhidas só devem ser aplicadas “na medida necessária para proteger a
saúde e a vida das pessoas e dos animais ou preservar os vegetais” (art. 2:234 do Acordo
SPS). A indicação vale também para as medidas provisórias. Ela pode, nesse último
caso, parecer complicada de se aplicar, visto que, por definição, encontra-se numa
situação na qual o risco não pode ser avaliado com precisão. Porém, é preciso ir atrás das
intenções discriminatórias. Para isso, há de se verificar se não existia uma medida de
substituição que fosse ao mesmo tempo:
-
razoavelmente aplicável, tendo em vista as possibilidades técnicas e econômicas,
-
que permitisse obter o nível de proteção julgado apropriado; e
-
que seja sensivelmente menos restritiva para o comércio.
Em todos os casos julgados até o presente momento, as medidas de proibição em
estudo mostraram-se das mais draconianas possíveis. Como tais, elas suscitaram a
desconfiança.
d) Enfim, se é possível ler a lógica da precaução nos dispositivos do Acordo SPS,
ela funciona dentro sentido das obrigações impostas por este acordo. Em outras palavras,
ela se ajusta à filosofia do acordo. A proteção é essencialmente de procedimento, com
obrigações rigorosas. Vale aqui relembrar que o Acordo SPS abrange também as medidas
que já estavam sendo aplicadas quando ele entrou em vigor. Isso significa que os Estados
envolvidos deveriam ter implementado os procedimentos requeridos para suas medidas já
em curso, o que não fizeram. Assim, no caso da Carne com hormônios, a Europa não
perdeu pelo fato de que os hormônios não eram considerados perigosos. Ela perdeu
porque não tinha feito uma avaliação do perigo para todos os produtos que ela colocou
em causa.
No caso dos Produtos agrícolas, o Japão tropeçou nas exigências de
procedimentos em matéria de medidas provisórias. O benefício desse regime supõe que
quatro condições cumulativas sejam satisfeitas:
34
“2 - Os Membros assegurarão que qualquer medida sanitária ou fitossanitária só seja aplicada na medida
necessária à proteção da saúde e da vida das pessoas e dos animais ou à proteção vegetal, seja baseada em
princípios científicos, e não seja mantida sem provas científicas suficientes, com exceção do previsto no
número 7 do artigo 5.º” (tradução não oficial).
-
as informações científicas pertinentes devem ser insuficientes;
-
a medida deve ser adotada com base nas informações pertinentes disponíveis;
-
o Estado deve esforçar-se para obter informações complementares a fim de
proceder a uma avaliação mais objetiva do risco; e
-
em conseqüência, deve examinar a medida num prazo razoável.
Essas condições indicam que prevalece uma concepção dinâmica. Em outros
termos, não se pode ficar no provisório. O Órgão de Apelação considera que essas quatro
condições são “cumulativas por natureza e…de igual importância.”35 Em outros termos,
elas não são hierarquizadas, nem suas verificações submetidas a qualquer ordem. A falta
de uma é suficiente para excluir a aplicabilidade do artigo 5:7. A averiguação para qual
procede o Grupo Especial pode então, conseqüentemente, ser limitada, como o fez em
espécie, o que é uma forma de economia jurisprudencial (bastou constatar que uma
condição não era satisfeita). Na ocasião, o Grupo Especial interessou-se pela condição
segundo a qual o Estado envolvido deve esforçar-se para obter, num prazo razoável,
informações complementares para proceder a uma avaliação mais objetiva do risco.
Tendo em vista a interpretação escolhida, trata-se aqui de uma obrigação de meios, ou
seja, sem precisão dos “resultados efetivos a serem obtidos.” O Estado deve provar que
pelo menos tentou obter informações adicionais, mesmo não conseguindo-as. Entretanto,
é preciso que as informações buscadas estejam adequadas ao objetivo de avaliação dos
riscos, o que não era o caso relativo ao Grupo Especial. Em outros termos, foi a
passividade do Japão que foi condenada. Ela é suspeita, ainda mais por ter durado 20
anos. Esse prazo não é, no entanto, qualificado como fora do razoável. Trata-se, aqui
também, do caso a caso. Deve-se, notadamente, computar as dificuldades de obtenção das
informações adicionais necessárias.36 Além do mais, a obrigação procedimental começou
a existir em 1995. Contudo, mesmo com essas considerações, o Japão não respeitou o
prazo razoável. O Órgão de Apelação estimou, em particular, que as informações
requeridas eram facilmente averiguáveis e que a ausência de qualquer esforço, nesse
caso, é significativa.
35
36
Relatório Produtos agrícolas, parágrafo 89.
Relatório Produtos agrícolas, parágrafo 92.
Isso excluiria a possibilidade de utilização desse procedimento para incertezas
duradouras? A pergunta poderia, notoriamente, ser feita em relação aos organismos
geneticamente modificados (OGM). É difícil concluir com certeza, o que explica porque
os Estados mais reticentes preferem tentar resolver o problema fora da OMC. Contudo,
os textos recentemente negociados em nível internacional não excluem expressamente
que a OMC possa tomar medidas de proibição ou de restrição. Ora, no seu âmbito, para
justificar tais medidas, é preciso, no mínimo, assumir duas obrigações. A primeira é uma
obrigação de comportamento, que consiste em ajustar a medida em função do
conhecimento científico sobre o risco. E a segunda é uma obrigação de procedimento,
que implica reexaminar a medida num prazo razoável e, se quisermos que ela seja
prolongada, analisá-la periodicamente.
Então, não se pode concluir nem que seja uma antinomia, nem que se trata de um
desconhecimento da precaução pela OMC. As limitações das quais é objeto não são nada
além do reflexo da desconfiança dos Estados no que diz respeito a um uso abusivo de um
princípio tão facilmente conversível para a legitimação do protecionismo.
Referências bibliográficas
GOH, G., ZIEGLER, A. R. “A Real World Where People Live and Work and Die – Australian Measures After the WTO Appellate Body’s Decision in the Hormones Case” in Journal of World Trade, 1998, n. 5, pp. 271-­‐290. RUIZ FABRI, H. “Chronique du règlement des différends de l'O.M.C.” in Journal du Droit International. 1999, n. 2. RUIZ FABRI, H. “L'appel dans le règlement des différends de l'O.M.C., trois ans après, quinze rapports plus tard...” in Revue Générale de Droit International Public, 1999, n.1, pp. 49-­‐127. RUIZ FABRI, H.
E SOREL, J.-M. “Chronique de jurisprudence de la Cour
internationale de Justice” in Journal de Droit International, 1998, n.3, pp. 773-801.
PAUWELYN, J. “The WTO Agreement on Sanitary and Phytosanitary (SPS) Measures as Applied in the First Three SPS Disputes, EC – Hormones, Australia – Salmons and Japan – Varietals” in Journal of International Economic Law, 1999, p. 641-­‐
664. Capítulo 12
Princípio da precaução e Organização Mundial do Comércio:
da oposição filosófica para os ajustes técnicos?
Christine Noiville*
Em se tratando do meio ambiente e da saúde, o risco ecológico e sanitário nunca
dividiu tanto os Estados. Mesmo que o risco os una em uma mesma “comunidade de
destino” e os leve, às vezes, a construir um direito comum1, este aparece como um
motivo de tensão crescente nas relações internacionais, de um modo geral2, e comerciais,
em particular. Analisemos melhor: em cinco anos, o direito do comércio internacional foi
o palco de quatro processos baseados na mesma preocupação de um Estado – ou grupo de
Estados – em restringir o comércio de um produto para prevenir o risco sanitário ou
ecológico a ele relacionado3. Os contenciosos relativos às proibições comunitárias de
importação de produtos de amianto ou de carne bovina norte-americana tratada com
hormônios foram apenas os primeiros de uma longa série prevista. Para certos Estados, a
segurança desses produtos para o consumidor não está comprovada. Os alimentos
geneticamente modificados ou outros hormônios de aumento de produção do leite são de
fato objeto de medidas restritivas ao comércio4, sendo também consideradas passíveis de
serem levadas ao Órgão de Solução de Controvérsias (OSC) da Organização Mundial do
* Pesquisadora
do CNRS. Co-coordenadora do Centro de Pesquisa em Direito das Ciências e Técnicas,
UMR 8056, Universidade Paris I, Panthéon-Sorbonne. 1
M. Delmas-Marty e M.-L. Izorche, “Marge nationale d’appréciation et internationalisation du droit :
réflexions sur la validité formelle d’un droit commun pluraliste”, Revue de Droit de McGill, agosto de
2001, v. 46, n. 4, p. 926.
2
Ver, por exemplo, o Tribunal Internacional do Direito do Mar, Irlanda v. Reino-Unido, caso da fábrica
MOX, 3, dezembro de 2001.
3
Comunidades Européias – Medidas sobre a carne e produtos contendo carne, relatório do Grupo
Especial, 18 de agosto de 1997 e relatório do Órgão de Apelação, 16 de janeiro de 1998 ; Austrália –
Medidas visando às importações de salmão, relatório do Grupo especial, 12 de junho de 1998 e relatório do
Órgão de Apelação, 20 de outubro de 1998 ; Japão – Medidas visando aos produtos agrícolas, relatório do
Grupo especial, 27 de outubro de 1998 e relatório do Órgão Especial, 22 de fevereiro de 1999 ;
Comunidades Européias – medidas afetando o amianto e os produtos contendo amianto, relatório do
Grupo Especial, 18 de setembro de 2000 e relatório do Órgão de Apelação, 12 de março de 2001. A
respeito destes casos citados como hormônios, salmão, produtos agrícolas, e amianto, ver infra.
4
A proibição da comercialização deste produto na União, Com (99) 544 final do 27 de outubro de 1999,
JOCE C21 E/70, 25 de janeiro de 2000.
Comércio (OMC)5. Como esses produtos são mercadorias destinadas a circular no
mercado internacional, a maior parte dos contenciosos comerciais que suscitam também
será resolvida no mesmo mercado internacional6. Então, é na OMC que, por sua vez, será
decidido o confronto entre duas “filosofias de risco”.
Existem duas lógicas opostas de consideração do risco que colocam em questão
cada uma dessas controvérsias. Uma delas encontra-se traduzida, na ordem jurídica, pelo
princípio da prevenção: somente obriga a se preocupar com os riscos e a procurar
preveni-los se sua existência for constatada7. O risco não é estabelecido pela experiência
ou pela demonstração científica. Então, a liberdade de pesquisa e a de empreendimento
ficam com a razão. A outra lógica provém do famoso princípio da precaução. A ausência
de certezas científicas não constitui uma razão para adiar a adoção de medidas que
poderiam permitir a prevenção de um eventual dano8. Assim, o princípio autoriza, até
mesmo obriga, a não esperar que um risco se confirme para retirar do mercado ou proibir
a comercialização de um produto cuja segurança é duvidosa.
Prevenção por um lado, precaução pelo outro: o precipício entre estes dois
“modelos” de gestão dos riscos ecológicos e sanitários, lamentava o Delegado europeu
Pascal Lamy, é um dos mais graves que já existiram entre o direito norte-americano e o
direito comunitário9. A afirmação é exagerada10, mas concordemos em uma evidência: no
5
Sobre esta jurisdição da qual se sabe que as decisões são de agora em diante executórias, ver J. Cameron e
K. Campbell, Dispute Resolution in the WTO, Cameron May, Londres, 1998 e E. Canal-Forgues, “La
procédure d’examen en appel de l’OMC”, Annuaire Français de Droit International, XIII, 1996, p. 845 e
seguintes.
6
Incluindo, sem dúvida, para certos produtos como os OGM, cujo comércio internacional é, no entanto,
regulamentado por um acordo multilateral de meio específico, o Protocolo de Cartagena. Sobre este ponto,
atualmente debatido no âmbito do “Comitê Comércio e Meio Ambiente” da OMC, ver M.-A. Hermitte e C.
Noiville, “Marrakech et Carthagène comme figures opposées du commerce international”, in J. Bourrinet e
S. Maljean-Dubois (dir.), Le commerce international des organismes génétiquement modifiés, 2002, p. 317
e seguintes, E.-U. Petersman, International and European trade Law after The Uruguay Round, Kluwer
Law, 1997, e J.-L. Nissen, “Achieving a balance between trade and the environment : the need to amend
WTO/GATT to include multilateral environmental agreements”, Law and Policy in International Business,
1997, v. 28, n. 3, p. 901 e seguintes.
7
Ver M.-A. Hermitte (dir.), La liberté de la recherche et ses limites. Approches juridiques, Romillat, droit
et technologie, Paris, 2001, p. 19 e seguinte e Ch. Noiville, Ressources génétiques et droit, op. cit., p. 27 e
seguintes e 199 e seguintes.
8
Sobre a variação das definições de um texto para outro, ver infra.
9
Ver sobre este ponto S. Charnovitz, “The supervision of Health and Biosafety Regulation by World Trade
Rules”, Tulane Environmental Law Journal, 2000, n 13, p. 295.
10
Com efeito, devemos evitar a oposição de dois “modelos” exclusivos, característicos do único direito
americano e europeu. Quem, além das autoridades americanas, decidia recentemente “por razões de
precaução”, excluir das doações de sangue todos os indivíduos que permaneceram mais de seis meses no
direito comunitário, o princípio da precaução não pára de ganhar terreno11, constituindo
uma fonte inegável de medidas restritivas ao comércio e, conseqüentemente, de
contenciosos comerciais que podem ser levados diante da OMC.
Ora, de acordo com um discurso dominante, o direito da OMC e o princípio da
precaução seriam inconciliáveis. Os Órgãos de Solução de Controvérsias se recusaram a
considerar o princípio como de direito costumeiro internacional, no caso dos hormônios
bovinos, porque não havia uma definição jurídica consolidada, e a doutrina ainda
batalhava em relação a seu valor normativo.
12
Assim, julgam as medidas de precaução
em litígio, fundamentados apenas sobre as regras do comércio internacional. Todavia,
movidas por um reforço da lógica de expansão do comércio internacional, estas regras
foram reforçadas, em 1994, por novos acordos cujo objetivo prioritário é o de conseguir
evitar, particularmente em matéria de segurança sanitária, o uso de medidas unilaterais,
escondendo barreiras disfarçadas contra as trocas comerciais13. Assim, nasce a idéia de
que a OMC consideraria qualquer tentativa de precaução como uma nova forma
disfarçada de protecionismo, o que, de fato, pode ser verdade. Não admitiria que o
princípio da precaução pudesse produzir o menor efeito jurídico e, por sua vez, imporia
ao consumidor europeu correr riscos alimentares, confiscando-lhe a faculdade de escolher
o nível de risco que ele julga como aceitável. Tal constatação tornaria mais urgente do
Reino-Unido, durante a crise da vaca louca ? Ver para isto M. Setbon e B. Dufour, “Sécurité virale en
transfusion saguine. Du test de l’antigène p24 au dépistage génomique viral” in Comité national de la
sécurité sanitaire, Risque et sécurité sanitaire. Critères, méthodes et procédures utilisés dans les processus
de décision de sécurité sanitaire, Relatório para o Diretor geral da saúde, Paris, novembro de 2001, p. 15 e
seguintes.
11
Progressivamente ampliado, do campo do meio ambiente (art. 174 do Tratado C. E.), para aqueles da
saúde e da alimentação (ver a jurisprudência da Corte de Justiça das Comunidades Européias, em particular
National farmers’Union, caso C-157/96 de 5 de maio de 1998, Recurso 1998-5, I-2236 ; Reino-Unido v.
Comissão européia, caso C-180/96 de 5 de maio de 1998 , Recurso 1998-5, I-2269 ; Pfizer Animal Health
S.A, caso T 13/99 do dia 11 de setembro de 2002 e Alpharma Inc., caso T 70/99 do dia 11 de setembro de
2002), hoje não seria mais permitido duvidar de seu valor como princípio geral do direito comunitário. Ver,
notadamente Artegadon v. Comissão, caso T 74/00 do dia 26 de novembro de 2002, pontos 182 e seguintes.
“Embora seja somente mencionado no tratado com a política do meio ambiente, o princípio da precaução
tem (…) um campo de aplicação mais amplo. Tem por vocação aplicar-se, visando assegurar um nível de
proteção elevado da saúde, da segurança dos consumidores e do meio ambiente, no conjunto dos campos de
ação da Comunidade Européia. (…) Disso resulta o fato de que o princípio da precaução pode ser definido
como um princípio geral do direito comunitário”.
12
Ch. Noiville, “Principe de précaution et Organisation mondiale du commerce. Le cas du commerce
alimentaire”, Journal du Droit Internatonal, 2000/2, p. 263 e seguintes.
13
Campo fértil em medidas potencialmente protecionistas, como o mostram D. Bureau e J.-C Bureau,
Agriculture et négociations commerciales, relatório para o Primeiro Ministro, Conselho de Análise
Econômica, 1999.
que nunca o necessário retorno a uma escolha democrática, seja por meio de um novo
legislativo planetário, que deveria ser instituído de forma urgente14, seja pelo viés da
soberania nacional15, quadro mais clássico, reforçado na ocasião, por um “direito dos
povos de escolher livremente seus modos alimentares”16.
Hoje, entretanto, a questão das ligações entre o princípio da precaução e o direito
da OMC deve ser formulada de forma mais sutil. De fato, quem negaria hoje que, com o
passar do tempo, uma nova articulação se estabelece, na qual as modalidades “técnicas”
estão em fase de ajuste? Pois ela é evidente, sobretudo em se tratando do Acordo sobre as
medidas sanitárias e fitossanitárias (SPS), que discutiremos aqui. (I). Nessas condições,
não se trata mais de observar para deplorar a oposição filosófica entre os princípios da
precaução e de livre comércio; trata-se de se concentrar nas modalidades técnicas
concretas das combinações entre estes dois princípios e de se aprender a dominar, até
mesmo a modelar, o uso destas combinações, pois é a partir delas que, de agora em
diante, depende o alcance da articulação, que trataremos na segunda parte do capítulo
(II).
1. Uma certeza : a possível articulação do livre comércio e da precaução
É importante partir do acordo sobre medidas sanitárias e fitossanitárias, porque a
jurisprudência fundamentada neste acordo demonstra claramente a amplitude dos ajustes
realizados e, em última análise, do caminho percorrido: a possibilidade, ao menos teórica,
de uma conciliação entre o livre comércio e a precaução não parece mais ser colocada em
dúvida (B), ainda que um conflito lógico pareça ser intransponível, à primeira vista (A).
14
J. Attali, Libération, 4-5 de dezembro de 1999, p. 4.
« William Abitbol e José Bové, deux visions du souverainisme », Le Monde, 17 de novembro de 1999, p.
14 e Courrier International, n° 75, 9-15 de dezembro de 1999, p. 13. Ver ainda os artigos de M.
Chemillier-Gendreau e S. George em « Jusqu’où démanteler la souveraineté des Etats ? », Le Monde
Diplomatique, 8 de julho de 1999.
16
Le Monde, 4 de setembro de 1999. Se este direito, remetendo ao famoso direito dos povos a disporem
deles mesmos, é entendido por alguns como o direito para um Estado de apresentar suas posições no
concerto internacional, outros o vêem em sua vertente “direito de secessão” e defendem, por meio dele, a
auto-suficiência alimentar, até mesmo a renúncia da filosofia do livre comércio. Ver, por exemplo, os
artigos de P. Nicholson e Y. Jadot em La sécurité alimentaire face à l’OMC, Coopération internationale
pour la démocratie, n°8, dezembro de 1998, p. 99 e s. e 105 e s. Ver mais em geral o medo, ancestral, mas
de agora em diante nutrido pela ideologia antiamericana, de depender de países estrangeiros no campo da
alimentação, assim como a negação do desafio que constitui para Europa a exportação de produtos
agroalimentares. Ver Scherrer, Le Monde, 3 de dezembro de 1999, p. 18.
15
i) Um conflito de lógica aparentemente intransponível
Lembremos como se inicia exatamente tal conflito: de um lado, o princípio da
precaução autoriza a adoção de medidas protetoras em caso de incerteza cientifica (1a );
do outro, o teor do acordo SPS só parece admitir tais medidas se estiverem amparadas
pela prova científica (2a), realidade que torna a articulação, a priori, impossível (3a).
1a) Precaução e incerteza científica
Se seus contornos exatos sempre foram objeto de debates múltiplos17, pelo menos
o projeto geral do princípio da precaução é sem ambigüidades: em caso de risco potencial
para a saúde, a precaução preconiza a ação, sem esperar que a existência do risco seja
confirmada pela prova científica. O objetivo é ir além da lógica clássica, por meio do
princípio da prevenção, inscrito há muito em nosso direito positivo, em favor de uma
nova cultura do risco. Na lógica clássica, apenas um risco provado justifica a adoção de
medidas de prudência: somente após a produção do dano ou que o mesmo se tenha
tornado muito provável, é que se torna legítimo buscar os meios de canalizá-lo e prevenir
sua realização. Ora, como se sabe, o princípio da precaução visa justamente inverter esta
proposição. A experiência mostrou que, no que diz respeito aos campos científico e
técnico, os balanços a longo prazo, às vezes, são contraditos pelo progresso a curto prazo.
Trata-se de se criarem os meios de antecipar o surgimento de eventuais danos antes
mesmo de se ter certeza de que correm o risco de serem produzidos. A dúvida e a
incerteza sobre a segurança de um produto provocam, de agora em diante, efeitos
jurídicos e justificam a adoção de medidas protetoras18. Compreende-se, então, que, na
lógica da precaução, a incerteza científica suponha ou pelo menos autorize a restrição
para o comércio sob forma de proibição de comercialização, de retirada do mercado ou
de avaliação obrigatória dos efeitos de um produto sobre a saúde.
2a) Acordo SPS e prova científica
Se se considera o acordo SPS, parece que a incerteza científica, em vez de
autorizar a restrição do comércio, justifica a manutenção da livre circulação dos produtos.
É preciso refletir alguns instantes sobre a arquitetura geral do texto para entendê-lo.
17
18
Ou constitui, em si, uma regra de direito de aplicação direta ?
No que concerne a estas questões, ver Ch. Noiville, Ressources génétiques et droit, Pédone, Paris, 1997.
Seu objetivo é claro: trata-se de desenvolver, em nível mundial,19 a harmonização
das medidas sanitárias e fitossanitárias. A forma de conseguir isto também é clara, uma
vez que um certo número de organizações internacionais de normalização já contribui
consideravelmente para isto; convém incitar os Estados a se ajustarem às normas dessas
organizações. Assim, no campo dos alimentos, qualquer medida sanitária conforme as
normas do Codex Alimentarius – organização competente para a normalização do
comércio alimentar – está presumidamente compatível com as regras da livre circulação.
Com certeza, é bom não se enganar sobre os objetivos do acordo SPS: não se trata
de nivelar por baixo as políticas sanitárias e, assim, impedir os Estados de adotarem todas
as medidas de proteção da saúde que julgariam necessárias, no plano interno. Então, os
Estados têm a reconhecida liberdade de escolher o nível de proteção sanitária que julgam
apropriado e podem, conseqüentemente, “introduzir ou manter medidas sanitárias (…)
que levam a um nível de proteção mais elevado (…)”20. Assim, as Comunidades
Européias que queiram, de agora em diante, tornar a segurança alimentar uma prioridade
absoluta, podem escolher, neste campo, a aplicação de regulamentações mais severas que
as normas do Codex21. Contudo, se estas regulamentações conduzem a um conflito
comercial frente aos órgãos de solução de controvérsias da OMC, as Comunidades
deverão justificar sua severidade pela prova científica: a medida sanitária deve ser
“fundada sobre princípios científicos” e não deve ser “mantida sem provas científicas
suficientes”22.
19
Preâmbulo, 6o alínea e art. 3(1). O acordo SPS aplica-se para toda medida definida em função de seu
objetivo (proteger a vida ou a saúde das plantas, animais e homens), do tipo de produtos para o qual se
aplica (animais, plantas, aditivos, contaminadores, alimentos, etc.) e de sua natureza (lei, decreto,
regulamentação, procedimento de AMM, etc.).
20
Art. 3(3).
21
Ver a respeito o Art. 13 do regulamento 178/2002/CE pré-citado : “Sem prejuízo dos seus direitos e
obrigações, a Comunidade e os Estados membros (…) contribuem para elaboração das normas técnicas
internacionais relativas aos produtos alimentares e alimentos para os animais, e das normas sanitárias e
fitosanitárias (…), promovem a coerência entre as normas técnicas internacionais e a legislação alimentar
fazendo com que o nível elevado de proteção adotado na Comunidade não seja abaixado”.
22
Art. 2 (2) e 3(3) Se a carga de prova incumbir primeiramente a parte requerente, ela é rapidamente
transferida, na realidade, para o Estado que adotou a medida. Pois o que se espera do Estado requerente é
um ou vários elementos de natureza a levar a presumida contrariedade da medida frente ao acordo SPS (é a
regra prima facie), obrigação fácil de satisfazer num contexto científico pouco claro, figura que aqui nos
interessa. Ver os relatórios de Órgão de Apelação em Hormônios, § 98 e seguintes, Salmões, § 8.40 e
Produtos Agrícolas, § 118 e seguintes e J. Pauwelyn, « Evidence, proof and persuasion in WTO dispute
settlement. Who bears the burden?», Journal of International Economic Law, n° 1, 1998, p. 227 e
seguintes.
O conceito de “princípio científico”, pouco familiar para os juristas, remete para
duas exigências ligadas entre si. Em primeiro lugar, o Estado tem por obrigação, antes de
adotar uma medida sanitária, avaliar o risco que está em jogo. Determinada substância
química, presente num alimento, é fonte de perigo? Qual é a dosagem de consumo a
partir da qual pode ser causado um efeito nefasto para o consumidor? Todo e qualquer
questionamento deste tipo deve ser objeto de uma avaliação específica23. Em segundo
lugar, a avaliação deve ter confirmado que o risco existe realmente e, depois, ter
confirmado a necessidade de uma medida de proteção. Somente a existência de “provas
científicas suficientes” do risco torna legítima a medida sanitária.
Entretanto, os redatores do acordo SPS sabiam que era difícil manter essa
interpretação rígida. Pois, quando uma epidemia começa, quando surge uma doença que
parece estar ligada ao consumo de um alimento específico ou à importação de um tipo de
gado, o Estado deve agir rapidamente. Antes mesmo de ter diligenciado as perícias
necessárias e ter a certeza de que o incidente sanitário está realmente ligado a tal
alimento, deve poder retirar provisoriamente o produto do mercado ou bloquear sua
entrada, nas fronteiras. Neste caso, o tempo é, antes de tudo, usado para a adoção de
medidas de urgência. É a razão pela qual, em seu artigo 5 (7), o Acordo autoriza os
países,
mesmo
que
“as
provas
científicas
(sejam)
insuficientes”,
a
adotar
“provisoriamente” uma medida sanitária “com base nas informações pertinentes
disponíveis”. No entanto, o texto determina que eles deverão esforçar-se “em obter as
informações adicionais necessárias para proceder a uma avaliação mais objetiva do risco”
e reexaminar a medida adotada na urgência, “num prazo razoável”. O artigo 5 (7)
reconhece que os Estados têm a capacidade de restringir o comércio de um alimento
quando, mesmo sem provas contundentes, duvidam de sua segurança. Mas esta
capacidade, que remete ao que nosso direito interno conhece sob a forma de deixar de
quarentena, de consignações ou de retiradas de produtos do mercado24, é apenas
provisória. Além disso, a exigência de uma prova científica retoma a frente. Portanto,
adotar uma medida na incerteza é possível; todavia, mantê-la por mais que um “prazo
23
Art. 5(1) Cada medida sanitária deve ser estabelecida “sobre a base de uma avaliação (…) dos riscos para
a saúde e a vida das pessoas (…)”. A avaliação deve ser “suficientemente específica” (ver, por exemplo,
Hormônios, Órgão de Apelação, § 201) e tomar conta “das técnicas de avaliação dos riscos elaboradas
pelas organizações internacionais competentes”.
24
Ver, por exemplo, Art. L. 221-1 e seguintes do Código do consumo.
razoável” supõe que a existência de um risco seja estabelecida por meio de provas
suficientes.
No entanto, o teor do acordo SPS não traz nenhuma dúvida: a justificativa
científica impõe-se como a espinha dorsal do texto25. Aliás, é interessante constatar que
ela constitui também uma especificidade dele. Com efeito, de todos aqueles que foram
regulamentados em 1994 pelos novos acordos do GATT, somente o campo sanitário e
fitossanitário foi pensado, tendo em vista essa exigência de racionalidade científica. O
acordo sobre os obstáculos técnicos para o comércio, por exemplo, no que concerne ao
conjunto dos regulamentos técnicos que não são sanitários ou fitossanitários26 – normas
de segurança para os brinquedos, motores, etc. – prevê, embora as medidas adotadas
pelos Estados-membros não sejam mais restritivas para o comércio, o que é necessário
para que se proteja a saúde ou o meio ambiente. Por outro lado, constituem a alternativa
menos restritiva para o comércio, o que implica, é claro, que estas regras não sejam
arbitrárias e tenham uma justificativa científica. Mas, enquanto o acordo SPS é
inteiramente construído sobre esta lógica, o acordo sobre os obstáculos técnicos ao
comércio insiste mais sobre os objetivos perseguidos, sobre as circunstâncias que levaram
à medida. A exigência de prova científica parece ser ainda menor no contexto do Acordo
Geral (GATT): baseado nesse texto, um Estado pode teoricamente proibir a importação
de um produto que considera ser potencialmente perigoso, se o tratamento severo for
dado também aos produtos nacionais similares; sobretudo, beneficia-se de uma última
exceção de saúde pública, permitindo-lhe restringir o livre comércio27. Se esta condição
levar o Estado a ter de reforçar seu posicionamento, nenhum teste de validade científica é
expressamente requerido. Caso se saia do campo de aplicação do acordo SPS, caso uma
restrição nacional vise não a um alimento ou a uma bebida, mas, por exemplo, a um
brinquedo ou ao amianto, a prova científica deixa manifestamente de constituir um
25
Ver para isto W.-H. Maruyama, « A new pilar of WTO : sound science », The International Lawyer,
1998, vol.32, n°3, p.651 e seguintes, assim como D. Wirth, op.cit. e M. Iynedjian, L’Accord de
l’Organisation Mondiale du Commerce sur l’application des mesures sanitaires et phytosanitaires : une
analyse juridique, L.G.D.J., Paris, 2002.
26
O acordo OTC, que visa ao combate às “entravas técnicas ao comércio”, é aplicável a todas as
mercadorias. Então, os produtos do setor agroalimentício entram em seu campo de aplicação (tratando-se
das normas e regulamentos técnicos relativos à informação dos consumidores ou aos aspetos nutricionais
dos alimentos), com a exclusão, todavia, dos aspectos de segurança sanitária, que são ligados ao acordo
SPS.
27
GATT, art. III. 4 e XX b).
conceito tão decisivo. Por sua vez, a precaução parece a priori encontrar, nos outros
acordos da OMC, maior ressonância que no acordo SPS. É que no campo no qual
intervém a segurança sanitária e fitossanitária, a experiência mostrou, nestas últimas
décadas, que as medidas sanitárias adotadas pelos Estados divergiam até chegarem a
constituir o terreno preferido de obstáculos à livre circulação das mercadorias, no
mercado internacional. Isto justifica a arquitetura do Acordo, inteiramente construído em
torno do conceito de prova científica, critério julgado como o mais universal e mais
confiável para criar a divisão das águas entre, de um lado, as medidas sanitárias
necessárias e legítimas e, do outro, aquelas que dificultam de maneira ilegítima o
comércio. Mas, de repente, a oposição entre livre comércio e precaução parece ainda
mais intransponível.
3a) Os termos da oposição
É necessário, logo de início, destacar esta oposição.
Assim, as disposições relativas à avaliação dos riscos não são diretamente
antinômicas com a lógica da precaução. Tais disposições, no acordo SPS, convidam os
Estados a sistematizarem as perícias e, definitivamente, a assentarem sua política
sanitária sobre o rigor científico e não sobre o empirismo. Nascido realmente das crises
ecológicas ou sanitárias, das dúvidas sobre a aptidão da ciência em trazer respostas
certas, o princípio da precaução trata com uma certa restrição os dados científicos, não
esperando certezas totais. Mesmo assim, não quer dizer que desconsidera a ciência.
Colocar em ação o princípio da precaução é, ao contrário, não se contentar com
investigações científicas sumárias. É também multiplicar os controles e perícias, rodearse do máximo de opiniões antes de colocar este ou aquele outro produto no mercado ou
quando uma dúvida existe sobre a segurança do outro28. Então, a exigência de rigor
científico requerido pelo acordo SPS não constitui em si um problema.
Outro conceito que ocupa um lugar de destaque neste texto é a noção de medida
de urgência, que também constitui um aspecto da precaução. Viu-se que, na urgência,
quando existe uma dúvida e faltam os dados científicos objetivos, o acordo SPS autoriza
28
Ponto de partida amplamente compartilhado em direito interno pela doutrina. Ver Ph. Kourilsky e G.
Viney, Le principe de précaution, Odile Jacob/La Documentation Française, Paris, 2000. Ver também as
contribuições de M.-A. Hermitte, O. Godard et Ch. Noiville in « Le principe de précaution », Les Petites
Affiches, n° especial, 30 novembro de 2000.
os países a procederem à retirada de um produto do mercado ou ao fechamento provisório
de suas fronteiras. Ora, é evidente que tais medidas de polícia sanitária constituem
fragmentos do princípio da precaução. Quando aparecem indícios de contaminação das
aves, da carne bovina ou da Coca-Cola, o fato de um Estado adotar tais medidas sem
esperar ter certezas, conforme a autorização do artigo 5 (7) do acordo SPS, denota
claramente uma cultura de precaução e confirma, se preciso, que tal cultura já subtende
certas disposições jurídicas antigas.
Convém, portanto, matizar a oposição. Trata-se, ao mesmo tempo, de
compreender que a precaução não poderia ser reduzida às medidas provisórias de
urgência, adotadas num contexto de crise. Tratando-se das aves ou da Coca-Cola, separar
os produtos, retirá-los do mercado ou realizar perícias paralelas destinadas a identificar as
causas da contaminação constituem, afinal, medidas clássicas de policiamento
administrativo, que revelam uma concepção não menos clássica que a noção de interesse
geral. Vale insistir sobre o fato de que uma gestão de precaução engloba e ultrapassa
essas medidas provisórias. Inicialmente, existem incertezas duradouras quanto aos efeitos
de certos produtos. Estas incertezas não são dissipadas em apenas alguns meses de
pesquisas e necessitam, então, de uma manutenção das medidas, além do prazo
provisório. Basta pensar simplesmente na encefalopatia espongiforme bovina : quase
quatro anos depois da adoção das primeiras medidas de urgência, a ligação entre esta
patologia e a doença de Creutzfeldt-Jacob ainda não foi estabelecida com segurança e
sabemos até que ponto durou a controvérsia sobre ser conveniente e em que condições
suspender o embargo sobre a carne britânica29. No entanto, uma vez passada a crise
sanitária, uma incerteza sanitária deve ser gerenciada. Além disso, e de forma mais
profunda, o princípio da precaução supõe não esperar as crises, e sim preveni-las e, então,
agir antes que se chegue a uma situação de urgência. As regras de desenvolvimento de
alimentos geneticamente modificados constituem, por este lado, um exemplo
emblemático dessa estratégia. Antes mesmo de terem causado o menor dano, mas com o
único motivo de serem advindos de técnicas inéditas e esta novidade gerar uma incerteza
sanitária, a Comissão Européia escolheu esperar antes de difundir os produtos em grande
29
Ver, por exemplo, Corte de Justiça das Comunidades Européias, Comissão v. França, caso C-1/00 do 13
de dezembro de 2001, Rec. p. 9989.
escala, no meio ambiente e na alimentação30. A precaução não está aqui reduzida à gestão
de uma crise ou de uma urgência. É concebida como uma ferramenta de
acompanhamento de um novo desenvolvimento tecnológico: trata-se de avaliar os
produtos antes de sua colocação no mercado, de acompanhar seus efeitos, de constituir
um tipo de “jurisprudência científica” e, conseqüentemente, de estabelecer um prazo para
uma reflexão prévia e para uma aprendizagem obrigatoriamente progressiva sobre os
efeitos de um novo modo de produção. Mais de dez anos depois dos primeiros
desenvolvimentos das plantas geneticamente modificadas, uma parte da comunidade
científica diz que precisa ainda aprender a formular as questões de segurança pertinentes.
Incertezas ligadas não a uma crise, mas à novidade de um produto, incertezas
duradouras; no que diz respeito ao teor do acordo SPS, não existem incertezas deste tipo,
que duram e necessitam da gestão de um risco a longo prazo, mas somente situações
temporárias de incerteza, rapidamente redutíveis, se houver um aprimoramento de
pesquisa.
Em suma, vê-se muito bem onde se encontra, pelo menos aparentemente, o
principal ponto de conflito entre o acordo SPS e o princípio da precaução. No acordo
SPS, a precaução parece reduzir-se ao regime jurídico único das medidas provisórias
adotadas em caráter de urgência. Uma vez passado o prazo, a alternativa é simples: os
dados científicos objetivos confirmam claramente a necessidade de manter as medidas ou
estas não são amparadas por “provas científicas suficientes” e, portanto, devem
desaparecer .
A este ponto do conflito é preciso acrescentar outro, não tão obviamente
perceptível, que se origina na exigência de proporcionalidade das medidas de precaução.
Com efeito, o acordo SPS impõe que toda regulamentação sanitária seja aplicada apenas
para proteger a saúde e a vida das pessoas e que não seja restritiva ao comércio mais do
que o necessário para a obtenção do nível de proteção sanitário apropriado31. Esta
exigência é clássica no que concerne ao direito do comércio internacional. Ora, o
princípio da precaução pode articular-se com esta exigência? Como estabelecer a
30
31
Ver as diretivas e regulamentações pré-citadas.
Acordo SPS, art. 2(2) e 5(6).
necessidade de uma medida de precaução para um risco vago e, conseqüentemente,
dificilmente quantificado ?
Prova científica e proporcionalidade: eis duas exigências que, aparentemente,
tornam intransponível o conflito da lógica entre o princípio da precaução e o acordo SPS.
É, pois, ainda mais notável que apareça, de agora em diante, uma possibilidade de
articulação real.
ii) Uma articulação
Tal articulação, da qual se tornou possível definir os termos principais, é fruto de
um duplo caminhar: por um lado, as Comunidades Européias não pararam de precisar o
sentido do princípio da precaução e de submeter sua aplicação a uma série de referências
parcialmente inspiradas no acordo SPS (1o) ; quanto à jurisprudência da OMC, ela
entendeu, de forma clara, que devia deixar difundir-se, em sua interpretação deste acordo,
uma idéia real de precaução (2o).
1o) As referências trazidas para o princípio da precaução
O princípio da precaução deve ser “considerado no contexto de uma aproximação
estruturada da análise dos riscos (…)”. Sua aplicação necessita de “dados confiáveis e
raciocínio lógico”, segundo o enunciado da Comunicação da Comissão Européia sobre o
recurso para o princípio da precaução32. O princípio da precaução somente tem futuro,
acrescenta o advogado-geral J. Mischo, se “longe de abrir um espaço imenso para a
irracionalidade, ele se afirma como elemento de uma gestão racional dos riscos, visando
não a chegar ao risco zero, como se pensasse que ele não existe, mas a limitar os riscos
aos quais estão expostos os cidadãos, no menor nível razoavelmente possível”33.
O conjunto resume bem a idéia essencial que se sobressai em direito comunitário
e que pode resumir-se da seguinte forma: se for necessário que a incerteza científica
produza efeitos jurídicos, convém ainda estabelecer referências, de forma a não diluir o
princípio da precaução em aplicações que poderiam mostrar-se inúteis, até mesmo
perigosas, multiplicando os atrasos de inovação, paralisando as atividades econômicas e o
comércio internacional. Selecionar os esforços de precaução para fazer com que a
32
Ver a Communication de la Commission sur le recours au principe de précaution, Com(2000)1 final, do
qual um dos objetivos consiste em evitar todo e qualquer recurso injustificado para o princípio da
precaução, como forma disfarçada de protecionismo.
33
National Farmers’ Union c. Secrétariat Général du Gouvernement, caso C-241/01, conclusões J.
Mischo, 2 de julho de 2002, n° 76.
aplicação do princípio não seja nem perigosa, nem tão limitada a ponto de toda utilidade
ser reduzida, leva a concordar, por uma parte, com as condições de adoção das medidas
de precaução e, por outra, com critérios de concepção e de aplicação destas mesmas
medidas34. Lembrar-se-á, entre essas condições e critérios, apenas aqueles que são
realmente suscetíveis de criar problema, no âmbito de um contencioso comercial para a
OMC.
A princípio, trata-se, evidentemente, da condição relativa ao próprio risco. Que
tipo de risco justifica exatamente a adoção de uma medida de precaução? Uma simples
dúvida é suficiente ou é preciso que o risco seja muito provável? Certamente neste ponto
se concentra uma grande parte dos debates doutrinários ou judiciários. Todavia, num
plano comunitário, uma lógica de pensamento se destaca ao redor de dois critérios:
somente um risco plausível, posto em relevo por uma avaliação científica séria, justifica
a adoção de uma medida de precaução35. Primeiramente, o recurso para o princípio da
precaução pressupõe que os efeitos potencialmente perigosos de um fenômeno, de um
produto ou de procedimento tenham sido identificados por uma avaliação científica. Em
seguida (e acima de tudo), uma medida de precaução só pode ser tomada se o risco for
“suficientemente documentado sobre base de dados científicos disponíveis”. Não poderia
ser motivada por uma abordagem puramente hipotética, baseada em simples suposições,
ainda não verificadas, de um ponto de vista científico36. Aqui, já há uma indicação
importante : a incerteza científica deve ter o poder de produzir efeitos jurídicos, mas com
a condição de não residir num simples fantasma de risco, numa construção puramente
intelectual. Ela não dispensa a necessidade de uma avaliação séria dos riscos temidos;
muito ao contrário, reforça-a e obriga, por esta razão, as Comunidades Européias e os
34
Ch. Noiville, « Principe de précaution et gestion du risque en droit de l’environnement et en droit de la
santé », Les Petites Affiches, n° especial, 30 de novembro de 2000, p. 39 e seguintes.
35
Ver la Communication sur le recours au principe de précaution : “ O recurso para o princípio da
precaução pressupõe que os efeitos potencialmente perigosos de um fenômeno, de um produto ou de um
procedimento foram identificados e que a avaliação cieníifica não permite determinar o risco com certeza
suficiente. A aplicação de uma aproximação fundada sobre o princípio da precaução deveria começar por
uma avaliação científica tão completa quanto possível e, se for possível, determinando para cada estágio o
grau de incerteza científica (…). O apelo ou não para o princípio da precaução é uma decisão tomada
quando as informações científicas estão incompletas, pouco conclusivas ou vagas e quando indícios levam
a pensar que os efeitos possíveis sobre o meio ambiente ou a saúde humana, animal ou vegetal poderiam
ser perigosos e incompatíveis com o nível de proteção escolhido” ( introdução e ponto 5.1).
36
Comunicação da Comissão sobre o recurso para o princípio da precaução, Ponto 4 do exposto sobre os
motivos e, sobretudo, decisão Pfizer Animal Health pré-citado, pontos 143 e 144.
Estados a saírem do modo muitas vezes informal, às vezes empírico, dispensado por
muito tempo ao tratamento dos riscos37. Se as Comunidades Européias, na questão da
carne com hormônios – como também o Japão, no caso dos produtos agrícolas e a
Austrália, no conflito concernente ao salmão – foram condenadas, em parte foi por causa
de suas posturas, geralmente de espera, em relação à prova: a medida tinha sido adotada
sem avaliação científica séria38, sem procurar “documentar o risco sobre base de dados
científicos”.
Uma outra referência afirma-se ainda como essencial e concerne, desta vez, à
concepção das medidas de precaução. Como toda medida adotada pela autoridade
pública, deve ser proporcional em relação ao que se sabe do risco. De fato, quaisquer que
sejam as formulações do princípio da precaução, enuncia o advogado-geral Jean Mischo,
a aplicação deste princípio não tem como efeito o afastamento de outros princípios
essenciais, entre os quais o princípio da proporcionalidade, “do qual pode afirmar-se que
é inseparável do princípio da precaução”39. De fato, é nessa perspectiva que se colocam o
juiz e o legislador comunitários40. Assim, o princípio da precaução não tem por vocação
ser aplicado da mesma forma se o caso tenha uma hipótese de risco rigorosa, mas ainda
amplamente teórica, ou haja indícios de risco corroborados por um certo número de
dados científicos confiáveis. Há diferenças consideráveis entre as situações. Daí a
necessidade da proporcionalidade: menos a hipótese de um risco é plausível, menos é
justificado tomar medidas severas de precaução. No leque dos meios a sua disposição –
37
Ver a respeito deste ponto Heyvaert, « The Changing Role of Science in Environmental DecisionMaking in the European Union », Law and European Affairs, 1999/3 & 4, p. 426 e seguintes. Ver também
Ch. Noiville e N. de Sadeleer, « La gestion des risques écologiques et sanitaires à l’épreuve des chiffres. Le
droit, entre enjeux scientifiques et politiques », Revue du Droit de l’Union Européenne, 2/2001, p. 389 e
seguintes.
38
Ver, por exemplo, Salmões, Órgão de apelação, § 119 e seguintes.
39
Caso C-241/01, conclusões pré-citadas, n°78.
40
Ver, por exemplo, Pfizer Animal Health, pré-citado, pontos 411 e seguintes : quando uma escolha
aparece entre várias medidas apropriadas, convém recorrer para a menos constrangedora e fazer com que os
inconvenientes causados não sejam desproporcionais em relação aos objetivos almejados. Também, “o
Tribunal examinará (…), primeiramente, se o regulamento colocado em questão constitui uma medida
manifestamente inapropriada em relação ao objetivo desejado; segundamente, se medidas alternativas
menos constrangedoras poderiam ter sido tomadas; depois, se os inconvenientes causados pelo regulamento
questionado estão desproporcionais em relação ao objetivo desejado e, enfim, se, no contexto de uma
avaliação custos/benefícios, estes inconvenientes estariam excessivos em relação às vantagens que
resultariam de uma ausência de ação (e)”. Ver também o regulamento 178/2002/CE pré-citado que, no seu
artigo 7(2), disse que as medidas de precaução estão proporcionais e não impõem mais restrições para o
comércio do que o necessário para obter o nível de proteção da saúde, escolhido pela Comunidade.
avaliações prévias, informação às populações, moratória, proibição definitiva, etc. – o
Estado deve escolher aquele que permita chegar ao objetivo e que seja o menos restritivo
possível para o comércio41. Então, não se trata, na primeira dúvida, de retirar
definitivamente um produto do mercado, mas de submetê-lo a uma obrigação de
avaliação prévia ou de retirá-lo por um tempo, acompanhando esta retirada com
pesquisas que, progressivamente, vão levar à redução das incertezas e à adaptação da
medida, em direção a maior severidade ou maior flexibilidade42. O desafio é importante
em relação ao direito do comércio internacional: a configuração geral da decisão do
Órgão de apelação no caso Hormônios deixa perceber que um elemento essencial da
condenação foi, de um lado, a desproporção entre a medida geral e definitiva de proibição
da carne com hormônios na Europa e, do outro, a fragilidade da argumentação científica
desenvolvida pelas Comunidades Européias43.
Caráter verificável de risco, proporcionalidade das medidas de precaução: esses
critérios, consignados na Comunicação da Comissão sobre o princípio da precaução,
constituem de agora em diante uma codificação do estado de direito comunitário44, do
qual a Corte de Justiça das Comunidades Européias fiscaliza o cumprimento. Fazendo
isto, tenta também prevenir todo e qualquer contencioso, no âmbito da OMC. Pois,
examinando cuidadosamente as três decisões tomadas pelos Órgãos de Solução de
Controvérsias sobre o fundamento do acordo SPS, parecem ter avalizado, por sua vez, as
referências que acabam de ser expostas.
2a ) Uma interpretação do acordo sanitário favorável à precaução
Tal afirmação pode, sem dúvida, surpreender, pois entre estas três decisões –
Hormônios, Salmões e Produtos Agrícolas - nenhuma admite que o risco, sempre
41
Ibid : a implementação do princípio pode traduzir-se por um vasto leque de iniciativas, indo da adoção de
medidas legalmente obrigatórias até um projeto de pesquisa ou um simples aviso, a exigência sendo de
reter a alternativa ao mesmo tempo menos restritiva para o comércio e que permita atingir um nível de
proteção equivalente (ponto 6.3).
42
Ver a Communication de la Commission sur le recours au principe de précaution : “(As) vantagens
cientificas devem ser perseguidas, visando a uma avaliação cientifica mais avançada ou mais completa.
Neste contexto, é importante também que as medidas sejam submetidas a um acompanhamento
(monitoramento) cientifico regular, permitindo a reavaliação destas medidas frente a novas informações
cientificas” (ponto 6.3.5).
43
Neste sentido, P. Doussin, « L’accord sur les mesures sanitaires et phytosanitaires. Etat des lieux cinq ans
après les accords de Marrakech », coloque Des espaces aux produits, regards croisés du Mercosur et
d’Europe, Nantes, 3-5 de novembro de 1999.
44
Ver a decisão Pfizer pré-citado, pontos 118 e seguintes e 149.
alegado, justifique a restrição ao comércio. Então, do que se tratava? Em cada uma dessas
três questões, a medida restritiva tinha sido adotada contra produtos com suspeita de
provocar intoxicações ou epidemias. A carne bovina com hormônios, definitivamente
proibida pelas Comunidades Européias por causa dos riscos de câncer que lhe eram
imputados; o salmão canadense, submetido pela Austrália a uma exigência de tratamento
severo para prevenir risco de patogenicidade para os salmonídeos australianos; as frutas
americanas rejeitadas nas fronteiras do Japão, exceto se os exportadores americanos
garantissem, variedade por variedade, a ausência de pragas. Unicamente as Comunidades
européias, no caso Hormônios, invocavam expressamente o princípio da precaução para
sustentar sua proibição; entretanto, cada um desses três litígios tentava, mesmo assim,
responder à mesma pergunta: as medidas sanitárias litigiosas eram fundadas sobre
“princípios científicos”, conforme exigência do acordo SPS? Embora o Órgão de
Apelação tenha sempre respondido negativamente, conserva uma interpretação do
conceito de “princípios científicos” sensivelmente diferente daquela que a leitura do
acordo propõe. Se cada uma das três medidas – comunitária européia, australiana,
japonesa – foi julgada como incompatível com as regras do comércio internacional, foi
muito mais por razões formais – notadamente o empirismo ou inexistência das
avaliações, o que conferiu um caráter arbitrário às medidas adotadas – do que por algum
fundamento que tem a ver com a ausência de prova científica do risco temido. Porque, no
que concerne a esse conceito-chave do acordo SPS, a jurisprudência da OMC se distancia
consideravelmente, a respeito do teor do texto.
Na realidade, tudo vem da concepção que o Órgão de Apelação diz conservar da
ciência, que se afasta um pouco daquela, quase idílica, que expressa a priori o acordo
SPS : se a ciência constitui a principal ferramenta de solução dos conflitos comerciais é
porque ela é portadora de verdades, capaz de trazer provas objetivas. No caso Hormônios
e depois, nas duas decisões Salmões e Produtos Agrícolas, o Órgão de Apelação constrói,
ao contrário, sua estratégia sobre um raciocínio bem distinto: raramente a ciência reduz
totalmente as incertezas. Quando um país se confronta com uma epidemia ou teme os
efeitos alergênicos de um alimento, deve com certeza começar a fazer pesquisas
científicas, pois constituem o necessário acompanhamento de sua política sanitária. No
entanto, estas pesquisas não levam necessariamente a um resultado preciso, nem mesmo a
uma conclusão monolítica. Podem deixar incertezas perdurarem ou apresentar, além de
uma corrente científica dominante, opiniões divergentes. Tendo em vista que a avaliação
científica não constitui uma ferramenta de confiabilidade absoluta ou o meio de obter
respostas universais, não se pode esperar que os resultados predeterminem por si só a
política sanitária dos Estados. Então, uma medida sanitária não tem de ser “conforme” os
resultados de avaliação. Assim, quando “certos governos (terão) a tendência de criar suas
medidas legislativas e administrativas sobre a opinião científica dominante, (outros), tão
responsáveis e representativos, (poderão) agir de boa-fé, baseados no que pode ser, num
dado momento, uma opinião divergente, proveniente de fontes competentes e
respeitadas”45. A ausência de força jurídica de imposição das normas do Codex
Alimentarius e a liberdade reconhecida para os Estados em derrogar e, de modo mais
geral, fixar de forma autônoma o nível de proteção que lhes parece apropriado
encontram-se mais que reforçadas.
Mais concretamente, todo esse desenvolvimento sobre os limites da análise
científica leva a modificar o alcance de certas disposições-chave do acordo SPS e, mais
particularmente, o conteúdo de duas delas : primeiramente a obrigação da “justificação
científica”, requerida pelos artigos 2 (2) e 3 (3), e o artigo 5 (7) , relativo às medidas
provisórias.
Se a ciência nem sempre puder trazer respostas confiáveis e universais, a noção da
prova científica torna-se eminentemente contingente. Assim, a jurisprudência da OMC
contribui para desestabilizar essa noção a tal ponto que seu teor se encontra modificado.
De fato, o conceito de prova científica é substituído por outro, aquele do “vínculo
razoável” ou de “relação lógica” : a exigência requerida não é a prova de uma ligação de
causalidade certa, de uma correlação científica comprovada entre o produto
regulamentado e o dano temido, segundo enunciado do Órgão de Apelação, mas aquela
de uma ligação razoável, de uma relação lógica entre os resultados da avaliação e a
medida finalmente adotada46. Não é preciso, para adotar uma medida sanitária,
demonstrar pela prova científica que um produto apresenta um risco sanitário. Isto
significa que seu consumo constitui, sem nenhuma dúvida, um risco. É preciso, na
45
46
Sobre esses diferentes pontos, Hormônios, Órgão de apelação, § 172, 194 nota 12 e § 213.
Ibid, § 192 e s.
verdade, que os resultados da avaliação “justifiquem de forma suficiente”. Quer dizer,
“amparem razoavelmente” a medida SPS47. Então, se convier, há de se verificar a
possibilidade ou a probabilidade do risco pelo método científico48 – ou o Estado poderia
sustentar que um risco é sempre possível, visto que o risco zero não existe49 – nenhum
consenso, nem mesmo de “grau mínimo” de risco50 é requerido a partir do momento em
que uma corrente científica séria, mesmo que minoritária, formule a hipótese de um risco.
O que se encontra aqui, a não ser o que, em direito comunitário, mostra-se precisamente
como uma das condições essenciais de adoção de medidas de precaução ?
Em seguida, a jurisprudência traz uma indicação fundamental no que diz respeito
às medidas provisórias. Sabe-se que, na incerteza científica, o acordo SPS autoriza os
Estados a adotarem provisoriamente medidas restritas, impondo, todavia, adaptá-las
“num prazo razoável” à luz de uma avaliação científica objetiva. Ora, a decisão relativa
aos produtos agrícolas traz indicações preciosas sobre essa noção de “prazo razoável”. É
preciso relembrar que, no caso, o Japão tinha adotado, provisoriamente, uma
regulamentação destinada a limitar os efeitos potencialmente nefastos de um inseto
geralmente presente nas frutas importadas. Mas, na realidade, esta medida estava em
vigor há mais de 20 anos51. Então, foi declarada contrária ao acordo SPS, por duas
razões. De um lado, a postura de espera do Japão, que não buscara saber mais sobre os
riscos reais em jogo e contentava-se em esperar que os exportadores de frutas fizessem
por si mesmos a demonstração da inocuidade de seus produtos. De outro, a duração da
aplicação da medida sanitária, datando de mais de 20 anos. Embora a aplicação de
examiná-lo num prazo razoável date somente de 1o de janeiro de 1995, data de entrada
em vigor do acordo SPS, o Órgão de Apelação considerou que esse prazo razoável
estava, no caso, ultrapassado. Entretanto, simultaneamente o Órgão de Apelação
enunciou que “o que constitui um prazo razoável deve ser estabelecido para cada caso e
depende das circunstâncias próprias para cada tipo de caso, incluindo a dificuldade de
47
Ibid, § 193.
O Órgão de Apelação prende-se, com efeito, à formulação do acordo SPS que, em se tratando de
alimentos, fala de “possibilidade de risco” e não de “probabilidade”, ver anexo A § 4.
49
Ver em particular Salmões, Órgão de apelação, § 125: o risco puramente teórico não justifica a adoção de
uma medida de precaução.
50
Salmões, Órgão de Apelação, ponto 124 e Hormônios, Órgão de Apelação, ponto 186.
51
Para este ponto ver Produtos Agrícolas, Grupo Especial, § 8.57.
48
obter as informações adicionais para o exame e as características da medida SPS”52. No
caso do Japão, era fácil recolher as informações pois, como observavam todos os peritos
convidados pela OMC, existiam numerosos estudos sobre o assunto53. Mas, numa
situação em que informações pertinentes só podem ser obtidas depois de longas
avaliações ou com experiência progressiva sobre um produto54, o prazo razoável parece
poder durar além de um prazo considerado curto, para o qual remete a priori. Portanto, é
permitido pensar que, nessas condições, a novidade de um alimento ou das técnicas pelas
quais ele é obtido poderia justificar a manutenção do tempo necessário para obter dados
epidemiológicos confiáveis de uma medida sanitária, tal é a obrigação de avaliação
sistemática dos riscos.
Justificação científica, prazo razoável: não é preciso insistir mais sobre a
importância de que se revestem as precisões trazidas sobre o sentido desses dois
conceitos, núcleos do acordo SPS. Obrigam a admitir que a precaução não se limita à
versão muito simplificada que o teor do texto conserva. Enquanto o acordo se dedica a
buscar a prova científica do risco, único critério de derrogação para o livre comércio, a
jurisprudência parece resistir à tentação de tal comodidade e substituir suas condições
mais sutis. Mas a sutileza tem reversos, com os quais é preciso contar de agora em diante.
2. Uma questão aberta: as modalidades técnicas de ajuste
Podemos afirmar concretamente: logo que as condições binárias de derrogação
para o comércio – prova/ausência de prova, certo/incerto – são substituídas por critérios
mais sutis, porém menos fixos – plausível, lógico, razoável, etc. – a perenidade do
sistema e também seu alcance cabem mais do que nunca nas modalidades precisas de
controle das medidas de precaução pela OMC. Dois desafios parecem decisivos em
relação a isso. Primeiramente, o controle de perícia científica, cuja utilização e
interpretação no contexto dos contenciosos comerciais permanecem como um pontochave: uma coisa é contentar-se com uma “ligação lógica” entre a avaliação do risco e a
medida litigiosa, outra é saber o que encobre tal noção. Em seguida, o controle de
oportunidade política das medidas: tal controle é uma apreciação pertencente, em
52
Produtos Agrícolas, Órgão de Apelação, § 93.
Produtos Agrícolas, Grupo Especial, §. 8.56.
54
Ver sobre este ponto ibid, § 8.60 onde o Grupo Especial enuncia que a experiência é um meio legítimo de
juntar informações, assim como a decisão do Órgão de Apelação, neste mesmo caso, § 93.
53
princípio, ao único julgamento do Estado, mas que a OMC, em situação de incerteza
científica, parece estar querendo controlar de forma intrusiva. Perícia científica (A),
oportunidade política (B): é ao redor desses dois pólos que a vigilância deve aplicar-se,
pois é ali que reside, de facto, a possibilidade de limitar o alcance de uma estratégia de
precaução, no campo do comércio internacional.
i) A perícia científica em questão
Aparentemente a exigência parece simples : a medida sanitária deve, como se
sabe, ser “razoavelmente amparada” pela avaliação dos riscos. Mas cada um entenderá
que este critério, por ser uma referência mais que um limiar preciso, dá margem a uma
discussão sem fim (1a). Tal fato é uma realidade que exacerba a questão das regras e
métodos de perícia, no contexto dos contenciosos comerciais internacionais (2a).
1a) Que “limiar” de risco?
Toda faculdade de derrogação para uma norma internacional depende
necessariamente, na prática, de um “limiar”. Para o que nos interessa aqui, será preciso
determinar o grau de persuasão requerido para derrogar ao livre comércio a quantidade e
a qualidade dos indícios do risco. Qual é exatamente o “grau mínimo de risco” aquém do
qual uma medida sanitária seria, por princípio, julgada como ilegítima ? Enquanto expõe
que a existência de um risco estritamente teórico não poderia justificar a adoção de uma
medida de precaução, o Órgão de Apelação tem o cuidado de estabelecer que nenhum
limiar predeterminado seja requerido55 e que o Grupo especial fique mais atento, por
meio de uma avaliação objetiva dos fatos, para verificar se o Estado pode razoavelmente
adotar a medida litigiosa. Então, o Grupo Especial fica com a apreciação, caso a caso, do
peso, do valor, da credibilidade dos elementos científicos que lhe são submetidos, alguns
podendo hipoteticamente parecer-lhe mais importantes e mais convincentes que outros56.
Por sua vez, a questão do conteúdo da prova ou do nível de prova – isso é, o que
deve ser demonstrado em cada um dos casos para convencer o grupo especial – aparece
como sendo mais importante. Ora, as coisas ficam bem pouco claras em relação a isto.
Com efeito, que a medida seja “suficientemente amparada” pelos dados científicos
disponíveis remete a uma graduação possível do estado dos conhecimentos : certos riscos
55
Salmões, Órgão de Apelação, § 124 e Hormônios, Órgão de Apelação, § 186.
Com efeito, a apreciação dos elementos de prova consiste nisso. Ver Amianto, Órgão de Apelação, précitado, § 161.
56
serão no mínimo amparados pela experiência, enquanto em outros casos a hipótese do
risco terá sido objeto de uma modelação teórica, mas de nenhuma confirmação empírica.
Poderá ela ser recebida no contexto da OMC ? Notar-se-á que uma mesma incerteza
caracteriza o sentido do termo “temporário”. O temporário pode certamente durar, mas
até quando? A manutenção de uma medida de precaução depende, é claro, da evolução
dos conhecimentos científicos, mas em que condições serão julgados como conclusivos?
Enfim, uma boa parte dos contenciosos vai inicialmente ser analisada sob este
ponto crucial. Daí a importância da perícia científica, no contexto desses contenciosos.
2a) Organização da perícia e controvérsias comerciais internacionais
A aposta é dupla. A princípio tem a ver com a utilização e interpretação da
perícia, no âmbito da solução de controvérsias, visto que cabe aos Grupos especiais
decidirem os litígios nos quais a dimensão científica é, ao mesmo tempo, decisiva e em
movimento. Em segundo lugar, concerne à montagem da perícia no contexto dos
organismos internacionais de normalização cujas normas técnicas são, de agora em
diante, oponíveis aos Estados- membros da OMC. Em relação a esses dois pontos,
parecem necessários os importantes meios de controle, essencialmente processuais.
Primeiramente, no que trata da utilização e da interpretação da perícia científica
pelos Órgãos de Solução de Controvérsias da OMC, cada um concorda com algumas
evidências. Certamente, em primeiro lugar, convém garantir a imparcialidade desses
órgãos: não somente devem ser compostos por cidadãos de Estados que não fazem parte
do litígio e que não têm os mesmos interesses comerciais de uma ou outra das partes, mas
em relação aos procedimentos de seleção e recusa das personalidades vistas como peritos
científicos que devem ser chamados57. Por enquanto, são os próprios Grupos Especiais
(após consulta – e não acordo – das Partes), que decidem a respeito do número, da
qualidade e da nacionalidade dos peritos a serem chamados58. Acrescentemos que, visto
que qualquer opinião científica pode ser solicitada pelos Grupos Especiais, tornar-se-á
57
Ph. Kourilsky, G. Viney, Le principe de précaution, op. cit., p. 163.
Ver a liberdade relativa que lhes é de fato deixada pelo art. 11.2 do Acordo SPS e pelos art. 12 e 13 do
Memorando do Acordo de Solução de Controvérsias. Sobre essas questões, ver também T. Christoforou,
«Science, Law and Precaution in Dispute Resolution on Health and Environmental Protection : What Role
for Scientific Experts ? », in J. Bourrinet e S. Maljean-Dubois (dir.), Le commerce international des
organismes génétiquement modifiés, op. cit., p. 312 e s., especialmente p. 254 e s. Ver também J.
Pauwelyn, « The Use of Experts in WTO Dispute Resolutions », International and Comparative Law
Quarterly, n°51, 2002 p. 325 e s.
58
inevitável definir para onde remete a qualificação “científica”, num sistema de liberdade
da prova. É o caso da jurisprudência americana, que foi obrigada a adaptar-se59. Enfim, é
essencial que um forte controle se exerça sobre a apreciação dos elementos científicos
pelos Grupos Especiais: autorizaram a si mesmos refazer sua avaliação ou afastar certos
dados, quando deveriam apenas avaliar objetivamente os fatos60? Tudo isto deve ser
incluído no campo do exame de apelação, o que hoje não está claro61.
Mas a aposta da perícia científica não se reduz à solução de controvérsias.
Concerne também, como já foi dito, à montagem da perícia científica, no âmbito dos
organismos
internacionais
de
normalização
técnica,
por
exemplo,
o
Codex
Alimentarius62. Pois, se tais normas só tinham, até então, valor jurídico se o Estado
manifestasse expressamente sua vontade de adaptar-se a elas, hoje podem ser
contrapostas umas às outras, tendo ou não sido aceitas pelo Estado63. O acordo SPS
reconhece a elas o valor de normas de referência, tendo sido adotadas com ampla ou
pequena maioria64. Assim que a norma foi adotada “por um organismo reconhecido da
59
R. Encinas de Munagorri, « La recevabilité d’une expertise scientifique aux Etats-Unis », Revue
Internationale de Droit Comparé, 1999/3, p. 621 e s.
60
Ver Hormônios, Órgãos de Apelação, § 100 até 119, 133 e s. E 253 b), assim como Produtos Agrícolas,
§ 129 e s. Nesses dois casos, o Grupo Especial tinha-se auto-autorizado, num caso de afastar de vez certos
elementos científicos, no outro, de constatar fatos cuja existência não era alegada pela parte autora,
dispensando esta em dar o início da prova. Em ambos os casos, o Órgão de Apelação considera que,
fazendo isso, o Grupo Especial cometeu um erro e deve, no futuro, proceder a um “exame objetivo dos
fatos”.
61
Ver Hormônios, Órgão de Apelação, § 132 e s., Salmões, Órgão de Apelação, § 117 e s., 141 e s. e 261 e
Produtos Agrícolas, Órgão de Apelação, § 98. A questão de saber se o Grupo Especial fez uma avaliação
objetiva dos fatos é uma questão de direito – cujo Órgão de Apelação pode conhecer – mas a questão da
credibilidade de um elemento de prova e da importância que lhe deve ser acordada releva os fatos.
62
Sobre esta organização, J.-P. Dobbert, « Le Codex Alimentarius. Vers une nouvelle méthode de
réglementation internationale », Annuaire Français de Droit International, 1969, p.701. Ver sobretudo o
Manuel de procédure, 10 a edição, Rome, 1997. Muitas vezes foi a própria indústria alimentar que interveio
para suscitar o desenvolvimento de estandartes para o Codex , ou elaborando anteprojetos de normas, ou
intervindo na qualidade de conselheiro técnico, no âmbito das delegações governamentais. Um estudo
realizado em 1993 indicava que 80% das participações não governamentais para o Codex vinham da
indústria, somente 1% de organizações de interesse público. Ver L. Sikes, « FDA’s consideration of Codex
Alimentarius standards », Food and Drug Law Journal, 1998, vol. 53, n°2, p.330.
63
Neste ponto, G. Stanton, « Codex standards in the context of SPS and TBT – how it may be expected to
work», Bulletin of the IDF, n°310, p.8 e s. ; J.-L. Angot, « Le Codex Alimentarius dans le nouveau contexte
international », Revue Française des Affaires Sociales, n°1, janeiro – março de 1999. Sobre a normalização
técnica, ver L. Bois, « La valeur juridique de la normalisation », in Les transformations de la régulation
juridique, LGDJ, Droit et Société, n°5, 1998, p. 183 e s.
64
Ver ,por exemplo, as normas adotadas no âmbito do Codex Alimentarius, autorizando o uso, na carne, de
certos hormônios proibidos pela União Européia: uma dentre elas tinha sido adotada por 35 votos a favor,
27 contra e 9 abstenções. Ver D.-E. McNeil, « The first case under the WTO’s SPS agreement », Virginia
Journal of International Law, 1998, vol. 39, n°1, p. 122. Ver também os debates suscitados pela avaliação
comunidade internacional com atividade normativa”, conforme enunciado do Órgão de
Apelação, não há por que questionar-se até que ponto ela é fruto de um consenso ou se
ela teria suscitado conturbados debates científicos65. Por serem apenas normas técnicas,
as normas do Codex Alimentarius predeterminam não só o resultante, mas também a
existência dos conflitos comerciais. Daí a necessidade de enquadrar também a perícia
científica, neste nível de elaboração das normas.
Isto só foi percebido há muito pouco tempo pelos autores – sendo que não diz
respeito aos trabalhos do Codex a ausência de força jurídica que obriga a aplicar as
normas e a natureza técnica dos assuntos tratados66 – e pelos Estados – para quem o
princípio da precaução é um princípio de decisão política. Tais trabalhos consistem em
realizar avaliações científicas sobre assuntos determinados (água, queijos, OGM, etc.) e
em transcrever os resultados sob forma de normas técnicas67. Ora, trata-se aqui de um
grave erro de perspectiva, visto que o objetivo da precaução é de melhor prevenir os
riscos, sendo que as recentes crises sanitárias têm, se não revelado, pelo menos
confirmado a importância da perícia para a qualidade das decisões políticas que
constituem um desafio para a coletividade pública. É grande a necessidade de reorganizar
esta atividade para que ela seja independente, rigorosa ou, ainda, que ela não negue as
opiniões científicas minoritárias. Em resumo, que não vá contra os princípios de
independência, de excelência, de transparência e de objetividade que devem, de agora em
diante, guiar a perícia científica no direito comunitário68.
da somatotropina bovina pelo JEFCA, um dos comitês de peritos do Codex. Doc. « Point 7.2, CRD 9 »,
Comité des principes généraux, Paris, 19-20 abril de 1999.
65
Communautés européennes - désignation commerciale des sardines, Rapport de l’Organe d’appel, 26 de
setembro de 2002, WT/DS31/AB/R, ponto 227. Notar-se-á mesmo assim que o Órgão de Apelação se
pronuncia aqui sobre o fundamento do acordo sobre os obstáculos técnicos para o comércio e não do
acordo SPS.
66
No entanto, ver J.-P. Doussin, « Le Codex Alimentarius à l’heure de l’Organisation Mondiale du
Commerce », Annales de Falsification de l’Expertise Chimique et Toxicologique, 1995, 88, n°933, p.281 e
s., assim como Ph. Kourilsky e G. Viney, op.cit.
67
Os Estados tendo, além do mais, a faculdade de demarcarem as normas do Codex, é no plano nacional
que seria conveniente restringir as aplicações do princípio da precaução. Ver, neste ramo, Comitê do Codex
Alimentarius sobre os princípios gerais, 14a sessão, Paris, 19-23 de abril de 1999, Alinorm 99/33A, ponto
30 e U.S. Council for Responsible Nutrition, Statement on the Precautionary Principle, Comitê dos
princípios Gerais, Paris, 19-23 abril de 1999.
68
Ver, por exemplo, a decisão n°97/579/CE do 23 julho de 1997, o regulamento 178/2002/CE pré-citado
(art. 6.2) e decisão Pfizer Animal Health precitado, (ponto 158).
Mas é preciso ir além, pois o alcance do princípio da precaução na ordem
comercial internacional não se reduz à perícia científica e técnica. Também depende
diretamente do controle da OMC sobre a escolha política, operada pelo Estado.
ii) A escolha política “sob controle”
Toda medida de gestão dos riscos sanitários compromete irredutivelmente
escolhas políticas : uma vez os dados científicos na mão, a esfera política deve
necessariamente cumprir sua parte. Assim, o Estado-membro deve posicionar-se melhor
para decidir entre os riscos que lhe parecem aceitáveis e aqueles que quer prevenir a
qualquer custo. Eis a razão pela qual o acordo SPS reconhece ao Estado o direito de fixar,
de forma autônoma, o “nível de proteção sanitária” que considera apropriado.
Aparentemente, as coisas parecem delinear-se de forma mais clara. O Estado, uma vez
identificado o risco, tem de decidir a aceitabilidade de tal risco, ainda que manifeste uma
atitude de “tolerância zero” em relação a ele. Os Órgãos de Solução de Controvérsias hão
de controlar a justificativa científica.
Ciência e técnica, de um lado, arbitragem política, de outro: resta saber se esta
dissociação essencial (1a) pode ser cumprida, quer dizer, se a OMC conseguirá
verdadeiramente tornar o risco sanitário stricto sensu o único arbítrio do livre comércio
(2a).
(1a) A gestão dos riscos como escolha política
É quase um clichê. Qualquer regulamentação do risco supõe uma escolha política.
Isso porque os cálculos, não podendo ser substituídos em seu contexto político,
econômico e social, não são necessariamente significativos. Uma vez os dados científicos
na mão, o responsável não está livre do compromisso de medir, arbitrar e, então, escolher
entre hipóteses mais ou menos aceitáveis69. O risco envolve arbitragens complexas, tem
várias vezes enunciado a Corte de Justiça das Comunidades Européias. Supõe as
autoridades de decisão que fazem escolhas rápidas, mas também delicadas, colocando os
riscos em perspectiva com considerações muito diversas e fixando prioridades70. Arbitrar,
69
Neste ponto ver Ch. Noiville, « Du bon gouvernement des risques. Le droit et la question du ‘risque
acceptable’ », Les Voies du droit, P.U.F., lançamento previsto em 2003.
70
Sobre esses diferentes pontos ver as decisões J.C.E. Denkavit, aff. C-14/78, 5 de dezembro de 1978, Rec.
p. 2897, Roquette Frères, caso C-138/79, 29 de outubro de 1980, Rec. p. 3333, Laboratoires Norbrook,
caso C-127/95, 2 de abril de 1998, Rec. 1998 p. I-1531, Upjohn Ltd, caso C-120/97, 21 de janeiro de 1999,
Rec. p. I-223 e as conclusões do Advogado geral Léger. Ver sobretudo Fedesa, caso C-331/88, 13 de
pesar, hierarquizar: esta tarefa política vai necessariamente além das opiniões
científicas71.
Ora, a escolha política é ainda mais inevitável quando a dimensão objetiva, que
pode ser medida, é móvel e contestável. A partir do momento em que os dados científicos
estão vagos e incompletos, não podem ocupar uma situação de monopólio na decisão
política, a qual necessariamente tira uma parte de sua racionalidade em campos que vão
além dos únicos dados científicos72. O risco potencial ligado à utilização de antibióticos
na pecuária, ao consumo de alimentos geneticamente modificados é aceitável, útil,
necessário ? Merece ser conhecido? Como um incentivo, o princípio da precaução
interroga-se, não tão somente sobre o risco, mas, de forma mais ampla, sobre a
possibilidade de expor-se a ele, assim como sobre a aceitabilidade dos produtos. Daí a
fisionomia particular das controvérsias comerciais relativas à segurança alimentar, onde
se misturam tanto as considerações políticas quanto os dados estritamente científicos73.
Levado pela filosofia da precaução a se interrogar não só sobre os riscos – ligados ao
consumo dos alimentos, disseminação dos OGM, etc. – mas, de forma mais geral, sobre a
aceitabilidade de um modo de desenvolvimento, o Estado não se preocupa apenas, no
caso de contencioso na OMC, em justificar o uso de seu poder repressor por razões
estritamente sanitárias, mas também pela preferência de seus consumidores, por
imperativos econômicos e pela defesa de um modelo cultural nacional.
novembro de 1990, Rec. p. I-4023 e as conclusões do Advogado geral Mischo, assim como Bettati, caso C341/95, 14 de julho de 1998, Rec. I-4358 e as conclusões do Advogado geral Léger : “o termo
‘político’utilizado no artigo 130 R ( que se tornou desde então o artigo 174.3) supõe tomar conta de um
conjunto de fatos, práticas ou ações. Razão pela qual se a escolha de uma ação pontual pode às vezes
mostrar-se delicada, a escolha de uma política implica necessariamente a avaliação de situações complexas
e geralmente antagonistas”.
71
Ver assim Fedesa, caso pré-citado : “tendo em vista (…) as divergências de apreciação que se tinham
manifestado (tratando-se da regulamentação dos hormônios pelas comunidades européias), os operadores
econômicos não estavam no direito de esperar que uma proibição administrativa das substâncias em causa,
para animais, pudesse ser fundada sobre dados científicos”. Era normal que a autoridade tomasse conta da
angústia dos consumidores ou os riscos de desabamento dos mercados. Da mesma forma, ver National
Farmer’Union, caso pré-citado : a Corte justifica a decisão comunitária de embargo sobre a carne de boi
britânica, pelo cuidado em evitar o risco e as preocupações ligadas a este caso, sendo essencial que ela não
tenha como único objetivo ou determinação tranqüilizar os consumidores.
72
O. Godard, « Principe de précaution et responsabilité », in Qu’est-ce qu’être responsable ?, Carré SeitaSciences humaines, J.-C. Ruano-Barbolan (Dir.), p. 97 e seguintes.
73
Ver sobre este ponto Agence Europe, n° 7145, 24 de janeiro de 1998, p.7.
Em situação de precaução, conforme a Comunicação da Comissão sobre o recurso
para o princípio da precaução, “a escolha da resposta de dar prosseguimento a uma
situação de risco resulta de uma decisão eminentemente política, função que é aceitável
pela sociedade”74. Uma coisa é a legitimidade científica do comitê consultado, acrescenta
o Tribunal de Primeira Instância da Corte de Justiça das Comunidades Européias, em sua
recente decisão Pfizer, outra é a responsabilidade política e a legitimidade democrática
que supõem necessariamente o exercício da autoridade pública75.
O problema todo é saber se esta escolha política que, teoricamente, pertence a
cada Estado-membro, não está na prática, sob efeito de um controle intrusivo feito pelos
órgãos da OMC, mantida sob estreita vigilância.
2a) O risco “plausível”, único arbítrio do livre comércio?
Daremos dois exemplos:
Primeiramente, qualquer proibição de importação, qualquer regulamentação de
um produto potencialmente perigoso é submetida a um “teste de necessidade”, tanto pelo
Acordo SPS, como pelo acordo do GATT. Tradicionalmente, esta exigência geral
encobre duas outras: é preciso assegurar-se, por um lado, que a natureza da medida
permita atingir o objetivo procurado – a proteção à saúde; por outro, que o objetivo
sanitário perseguido não possa ser atingido por outra medida menos restritiva do
comércio internacional76. Ora, qual é aqui o lugar deixado pelos valores de toda a ordem
que levaram à escolha política? Parece, na realidade, muito reduzido. Uma medida severa
só é justificável se houver obrigações técnicas ou econômicas77: por exemplo, os
europeus são grandes consumidores de doces e comem grande quantidade de queijo; isto
justifica que a “dose admissível” de aditivos nesses produtos seja reduzida nesses países,
fique aquém do previsto pelas normas internacionais; ou ainda, um sistema de controle de
determinado hormônio usado na pecuária não permitiria evitar, por si só, as fraudes; daí a
74
Comunicado da Comissão sobre o recurso para o princípio da precaução, ponto 5. Ver também a
Resolução do Conselho Europeu de Nice sobre o recurso para o princípio da precaução, 8 de dezembro de
2000, anexo III, ponto 19 e decisão Pfizer, pré-citado, ponto 161.
75
PfizerAnimal Health precitado, ponto 201.
76
Acordo SPS, art. 2(1), 2(2) e 5(6), que enuncia que a medida não deve ser mais restritiva para o comércio
que o requerido para obter o nível de proteção sanitária e fitossanitária julgado como apropriado.
77
A nota de rodapé da página 3 que precisa o artigo 5(6), enuncia que, para julgar se uma medida não está
mais restritiva para o comércio que o requerido, é preciso considerar a possibilidade de realização técnica
ou econômica.
necessidade de proibir o produto, em vez de administrar o risco. Além desse tipo de
considerações, a dimensão cultural e social não parece ser muito suscetível a cálculos. O
fato de os OGM serem culturalmente mal aceitos e suscitarem reticência da parte dos
consumidores é uma coisa; no entanto, enquanto seu perigo não for comprovado, em que
essa realidade justifica a decisão do embargo? Sobretudo outra etapa deve ser realizada,
deve ser ultrapassada, em que aparece como um poderoso instrumento de requalificação
das escolhas políticas nacionais.
Trata-se do “teste de coerência”, presente no artigo 5 (5) do Acordo SPS78 e do
qual um simples caso de figura permitirá sua existência. Admitamos que as autoridades
belgas sobretaxem severamente o vinho em nome da proteção à saúde, sem taxar a
cerveja. Desta forma, regulamentariam diferentemente dois produtos, apresentando,
entretanto, riscos semelhantes. Tal diferença não é arbitrária ou injustificável ? Sem
dúvida, visto que, do ponto de vista da saúde, o vinho é menos prejudicial que a cerveja.
Sobretaxando severamente o vinho, a Bélgica não procurou o favorecimento dos
produtores nacionais de cerveja, prejudicando os exportadores estrangeiros de vinho? Isto
não seria improvável. Nota-se assim que, comparando a medida litigiosa com as outras
medidas nacionais, aparece um meio suplementar de descobrir as contradições e, por trás
delas, surgem as medidas de protecionismo disfarçadas. Por isso torna-se necessário o
teste de coerência: complementar da não discriminação79, ele visa evitar que os Membros
fixem um nível de proteção muito elevado, num caso, e muito baixo em outro,
apresentando riscos, no entanto, comparáveis80, sem outra justificativa que a preocupação
de proteger seus próprios interesses comerciais. Toda a questão é, evidentemente, saber
como esta comparação necessária pode ser utilizada pelos Órgãos de Solução de
Controvérsias. Primeiramente, o que se entenderá exatamente por “situações
78
Artigo 5(5) do Acordo SPS: “tendo em vista assegurar a coerência na aplicação do conceito do nível
apropriado de proteção sanitária ou fitossanitária contra os riscos pela saúde ou a vida das pessoas, para a
dos animais ou para a preservação dos vegetais, cada Membro evitará fazer distinções arbitrárias ou
injustificáveis nos níveis que ele considera apropriados em situações diferentes, se tais distinções levarem
para uma discriminação ou a restrição camuflada para o comércio internacional. Os Membros cooperarão
com o comitê, conforme § 1, 2 e 3, do artigo 12, para elaborar diretivas favorecendo a realização desta
disposição, na prática. Para elaborar essas diretivas, o comitê tomará conta de todos os fatores pertinentes,
inclusive o caráter excepcional dos riscos para a saúde das pessoas expostas voluntariamente”.
79
Com efeito, o artigo 2(3) proíbe as medidas SPS que estabelecem desigualdades arbitrárias ou
injustificáveis entre países onde condições idênticas ou similares existem.
80
Hormônios, Órgão de Apelação, § 217.
comparáveis”? As Comunidades Européias fazem uma distinção arbitrária ou
injustificável entre “situações comparáveis”, ao regulamentarem a comercialização da
soja transgênica modificada de forma mais rígida que a comercialização da soja
convencional? Os indícios de risco apresentados pela soja transgênica serão suficientes
para impedir toda e qualquer comparação com a soja convencional? Depois, e sobretudo,
a comparabilidade das situações impõe uma similaridade das regulamentações? Talvez
não. Não é necessariamente incoerente o fato de que dois riscos comparáveis, em termos
de mortalidade ou de morbidade, sejam regulamentados de forma diferente. Queijos de
leite cru, álcool, vaca louca, hormônios, etc.: toda uma série de dados técnicos, sociais,
culturais pode levar ao não-tratamento destes riscos de forma idêntica. Por exemplo, não
se vê muito bem como poderiam ser os perigos do álcool ou do famoso peixe japonês
tóxico, o fugu, se fossem colocados em perspectiva com os riscos apresentados pela
adjunção de antibióticos para a pecuária. O fato de que os primeiros sejam
voluntariamente aceitos pelos consumidores e os segundos, apenas suportados, impede
qualquer comparação razoável das regulamentações. Sobretudo, e da mesma forma, a
evolução das mentalidades pode explicar como dois riscos comparáveis são tratados de
maneira distinta. Os riscos de um hormônio hoje utilizado na pecuária poderão parecer
inaceitáveis, enquanto, há dez anos, outro hormônio que apresentasse riscos comparáveis
teria sido colocado no mercado. A harmonização das duas normas será necessária, com
certeza, mas não pode ser feita da noite para o dia.
Manifestadamente receptivos a este tipo de realidades, os órgãos da OMC
parecem querer proibir-se de fazer qualquer tipo de comparação muito binária82. Todavia,
o conteúdo exato da obrigação de coerência deve ainda ficar mais preciso e, por meio
dele, constatar-se até que ponto os Órgãos de Solução de Controvérsias dispõem de uma
potente ferramenta de interpretação e de hierarquização dos julgamentos de valores
nacionais.
Do risco plausível até a derrogação admissível, o caminho a ser percorrido
continua repleto de empecilhos. Perícia científica, necessidade, coerência: por esses
82
Primeiramente, o artigo 5(5) não proíbe todas as incoerências, mas apenas aquelas que são “arbitrárias ou
injustificáveis” e que “causam uma discriminação ou uma restrição disfarçada ao comércio internacional”,
as três condições sendo cumulativas. Depois, a comparação só é possível após preencher certas condições,
tendo a ver com as substâncias e seus efeitos sobre a saúde. Ver notadamente OMC, Comitê SPS,
“Diretivas para o favorecimento da aplicação prática do artigo 5(5)”, G/SPS/15, 18 de julho de 2000.
diversos vieses, a OMC dispõe de uma margem ampla para implicar-se nos julgamentos
com valores nacionais, decifrar as razões pelas quais um Estado considera este ou aquele
risco como inaceitável e até mesmo hierarquizar ou eliminar os argumentos que o
levaram à qualificação. Então, é ali, no que poderia parecer uma simples série de
“detalhes técnicos”, no que concerne ao direito do comércio internacional, que se
realizará o verdadeiro alcance do princípio da precaução.
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Paris, 2
Capítulo 13
Princípio da Precaução no Direito Brasileiro e no Direito
Internacional e Comparado
Paulo Affonso Leme Machado*
1. A prevenção e a introdução do princípio de precaução no Direito Ambiental
Prevenir a degradação do meio ambiente no plano nacional e internacional é
concepção que passou a ser aceita no mundo jurídico especialmente nas últimas três
décadas. Não se criaram todas as regras de proteção ao ambiente humano e natural nesse
período. A preocupação com a higiene urbana, um certo controle sobre as florestas e a
caça já datam de séculos. Inovou-se no tratamento jurídico dessas questões, procurando
interligá-las e sistematizá-las, evitando-se a fragmentação e até o antagonismo de leis,
decretos e portarias.
A Lei de Política Nacional do Meio Ambiente no Brasil (Lei 6.938, de 31.8.1981)
inseriu como objetivos dessa política pública a compatibilização do desenvolvimento
econômico-social com a preservação da qualidade do meio ambiente e do equilíbrio
ecológico e a preservação dos recursos ambientais, com vistas à sua utilização racional e
disponibilidade permanente (art. 4o, I e VI). Entre os instrumentos da Política Nacional
do Meio Ambiente colocou-se a “avaliação dos impactos ambientais” (art. 9o, III). A
prevenção passa a ter fundamento no Direito Positivo nessa lei pioneira na América
Latina. Incontestável tornou-se a obrigação de prevenir ou evitar o dano ambiental
quando o mesmo pudesse ser detectado antecipadamente. Contudo, no Brasil, em 1981,
ainda não havíamos chegado expressamente a introduzir o princípio da precaução.
O princípio da precaução (vorsorgeprinzip) está presente no Direito alemão desde
os anos 70, ao lado do princípio da cooperação e do princípio poluidor-pagador. Eckard
Rehbinder acentua que “a Política Ambiental não se limita à eliminação ou redução da
poluição já existente ou iminente (proteção contra o perigo), mas faz com que a poluição
* Professor de Direito Ambiental na Universidade Metodista de Piracicaba e na Universidade Estadual Paulista. Professor Convidado na Universidade de Limoges (França). Autor dos livros Direito Ambiental Brasileiro e Recursos Hídricos – direito brasileiro e internacional. Prêmio Internacional de Direito Ambiental Elizabeth Haub (1985). seja combatida desde o início (proteção contra o simples risco) e que o recurso natural
seja desfrutado sobre a base de um rendimento duradouro”.1
Gerd Winter diferencia perigo ambiental de risco ambiental. Diz que, “se os
perigos são geralmente proibidos, o mesmo não acontece com os riscos. Os riscos não
podem ser excluídos, porque sempre permanece a probabilidade de um dano menor. Os
riscos podem ser minimizados. Se a legislação proíbe ações perigosas, mas possibilita a
mitigação dos riscos, aplica-se o ‘princípio da precaução’, o qual requer a redução da
extensão, da freqüência ou da incerteza do dano”.2
Os riscos são “reais e irreais ao mesmo tempo. De um lado, existem ameaças e
destruições que são já bem reais: a poluição ou a morte das águas, a desparição de
florestas, a existências de novas doenças, etc. Do outro lado, a verdadeira força social do
argumento do risco reside justamente nos perigos que se projeta para o futuro. Na
sociedade do risco, o passado perde sua função determinante para o presente. É o futuro
que vem substituí-lo e é, então, alguma coisa de inexistente, de construído, que se torna a
“causa” da experiência e da ação no presente” assinala Ulrich Beck.3 “O princípio da
precaução é atualmente uma referência indispensável em todos as abordagens relativas
aos riscos” afirma Michel Prieur.4
A implementação do princípio da precaução não tem por finalidade imobilizar as
atividades humanas. Não se trata da precaução que tudo impede ou que em tudo vê
catástrofes ou males. O princípio da precaução visa à durabilidade da sadia qualidade de
vida das gerações humanas e à continuidade da natureza existente no planeta.
2. Princípio da precaução na Declaração do Rio de Janeiro/92
A Conferência das Nações Unidas para o Meio Ambiente e o Desenvolvimento,
reunida no Rio de Janeiro em 1992, votou, por unanimidade, a chamada “Declaração do
Rio de Janeiro”, com 27 princípios.
1
. REHBINDER, Eckard. Ambiente, Economia, Diritto. Rimini: Maggioli, 1988.p. 205-221.
. WINTER, Gerd. European Environmental Law: A Comparative Perspective. Aldershot: Dartmouth,
1996. p. 41.
3
BECK, Ulrich. La Société du Risque: sur la voie d´une autre modernité. Paris: Auto-Aubier, 2001. p.61.
4
PRIEUR, MICHEL. Droit de l’Environnement, 4 .Ed., Paris: Dalloz, 2001. p. 145.
2
O Princípio 15 diz: “De modo a proteger o meio ambiente, o princípio da
precaução deve ser amplamente observado pelos Estados, de acordo com suas
capacidades. Quando houver ameaça de danos sérios ou irreversíveis, a ausência de
absoluta certeza científica não deve ser utilizada como razão para postergar medidas
eficazes e economicamente viáveis para prevenir a degradação ambiental”.5
O Princípio 15 utiliza expressões como “precaução” e “ameaça de danos sérios e
irreversíveis”, que merecem conceituação, como, também, a pesquisa dos termos
empregados em diferentes línguas. Precaução é “cautela antecipada”, do Latim precautioonis.6 “Precaution: 1. An action taken in advance to protect against possible failure or
danger; a safeguard. 2. Caution practiced in advance; forethought; circunspection”.7
“Precaution: Action de prendre garde. Disposition prise par prevoyance pour eviter un
mal. Circonspection, ménagement, prudence”.8 “Precaución: Reserva, cautela para evitar
o prevenir los inconvenientes, dificultades o daños que pueden temerse”.9 “Precauzione:
Atto e comportamento diretto ad evitare un pericolo imminente o possibile”.10
Não há divergência de conceituação nas cinco línguas mencionadas: a precaução
caracteriza-se pela ação antecipada diante do risco ou do perigo.
O mundo da precaução é um mundo onde há a interrogação, onde
os saberes são colocados em questão. No mundo da precaução há uma
dupla fonte de incerteza: o perigo ele mesmo considerado e a ausência de
conhecimentos científicos sobre o perigo. A precaução visa a gerir a espera
da informação. Ela nasce da diferença temporal entre a necessidade
5
BRASIL. Conferencia das Nações Unidas sobre Meio Ambiente: Relatório da Delegação Brasileira,
1992. Brasil: FUNAG, 1993. No original : “In order to protect the environment, the precautionary approach
shall be widely applied by States according of their capabilities. Where there are threats of serious or
irreversible damage, lack of full scientific certainty shall not be used as a reason for postponing costeffective measures to prevent environmental degradation”.
6
. CUNHA, Antônio G. Dicionário Etimológico Nova Fronteira da Língua Portuguesa. Rio de Janeiro:
Nova Fronteira, 1982. No mesmo sentido: FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Novo Dicionário da
Língua Portuguesa. 1. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, s/d.; SILVA, António M. Diccionário da Língua
Portugueza. v. II. Lisboa: Joaquim Germano de Sousa Neves, 1878.
7
. The American Heritage Dictionary of The English Language. Nova Cork: American Heritage, 1970.
8
. Petit Larousse Illustré. Paris: Larousse, 1978.
9
. Real Academía Española. Diccionario de la Lengua Española. Madri: Espasa Calpe, 1997.
10
. DEVOTTO, Giacomo;OLI, Gian Carlo. Vocabolario della Lingua Italiana. Florezca: Felice Le
Monnier,1994.
imediata de ação e o momento onde nossos conhecimentos científicos vão
modificar-se.11
A versão em língua portuguesa da Declaração do Rio de Janeiro/92 deve ter
tomado por base o texto em Inglês quando escreveu “ameaça” de danos. Em Inglês
empregou-se threat. Na versão francesa empregou-se risque;12 e na versão espanhola,
peligro.13
Os termos “precaução” e “prevenção” guardam semelhanças nas definições dos
dicionários consultados. Contudo, há características próprias para o princípio da
precaução, conforme o texto da Declaração do Rio de Janeiro/92 e de convenções
internacionais que mencionaremos abaixo.
A Declaração do Rio de Janeiro/92 foi menos exigente em relação à Carta
Mundial da Natureza, oriunda da Resolução 37/7, de 1982, da Assembléia Geral das
Nações Unidas, como nota Tullio Scovazzi. Afirma também que, “diante das atividades
humanas, dois comportamentos são tomados: ou se privilegia a prevenção do risco – se
eu não sei que coisa sucederá, não devo agir; ou se privilegia (de modo francamente
excessivo) o risco e a aquisição de conhecimento a qualquer preço – se eu não sei que
coisa acontecerá, posso agir, e, dessa forma, no final, saberei o que fiz”. Acrescenta o
acatado internacionalista: “Um desenvolvimento muito interessante do moderno Direito
Internacional do Meio Ambiente está representado no princípio da precaução. Este
princípio não se apresenta como uma genérica exortação à precaução com o fim de
proteger o ambiente. Ao invés, ele tem um significado mais específico, querendo fornecer
indicação sobre as decisões a tomar nos casos em que os efeitos sobre o meio ambiente
de uma determinada atividade não sejam ainda plenamente conhecidos sob o plano
científico”.14
As declarações internacionais, ainda que oriundas das Nações Unidas, não são
transpostas automaticamente para o Direito interno dos países, pois não passam pelo
11
. TREICH, Nicolas; GREMAQ. Vers une théorie économique de la précaution? Acesso em: 28 de abril
de 1997.
12
. Revue Juridique de l’Environnement 1/112, Limoges, 1993.
13
.MATEO, Ramón Martín. Tratado de Derecho Ambiental. v. II. Madri: Trivium, 1992, p. 770.
14
. SCOVAZZI, Tullio. Sul il pricipio precauzionale nell Diritto Internazionale dell’Ambiente. Rivista di
Diritto Internazionale v. 3. Milão: Giuffrè, 1992.
procedimento de ratificação perante o Poder Legislativo. Diferentemente, as convenções
ou tratados passam a ser obrigatórios no Direito interno após sua ratificação e entrada em
vigor.
3. O Brasil e o princípio da precaução nas convenções internacionais
Duas convenções internacionais assinadas, ratificadas e promulgadas pelo Brasil
inseriram o “princípio da precaução”.
A Convenção da Diversidade Biológica15 diz, entre os considerandos de seu
“Preâmbulo”: “Observando também que, quando exista ameaça de sensível redução ou
perda de diversidade biológica, a falta de plena certeza científica não deve ser usada
como razão para postergar medidas para evitar ou minimizar essa ameaça .”...16
A Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre a Mudança do Clima17 diz em seu
art. 3o: “Princípios – 3. As Partes devem adotar medidas de precaução para prever, evitar
ou minimizar as causas da mudança do clima e mitigar seus efeitos negativos. Quando
surgirem ameaças de danos sérios ou irreversíveis, a falta de plena certeza científica não
deve ser usada como razão para postergar essas medidas, levando em conta que as
políticas e medidas adotadas para enfrentar a mudança do clima devem ser eficazes em
função dos custos, de modo a assegurar benefícios mundiais ao menor custo possível”.18
Vemos que as duas Convenções mencionadas diferem na redação do princípio da
precaução.
Na Convenção da Diversidade Biológica, basta haver ameaça de sensível redução
de diversidade biológica ou ameaça sensível de perda de diversidade biológica. Não se
exigiu que a ameaça fosse de dano sério ou irreversível, como na Convenção de Mudança
do Clima. A exigência fundamental para a conservação da diversidade biológica é a
conservação in situ dos ecossistemas e dos habitats naturais e a manutenção de
populações viáveis de espécies no seu meio natural.
15
Assinada no Rio de Janeiro em 5.6.92, ratificada pelo Congresso Nacional pelo Decreto Legislativo nº2
de 3.2.94, tendo entrado em vigor para o Brasil em 29.5.94.
16
.BRASIL. Decreto n. 2.519, de 16.3.98, promulgando a Convenção (DOU 17.3.98).
17
Assinada em Nova York em 9.5.92, ratificada pelo Congresso Nacional pelo Decreto Legislativo n. 1, de
3.2.94, passou a vigorar para o Brasil em 29.5.94.
18
.BRASIL, Decreto n. 2.652, de 1.7.98, promulgando a Convenção (DOU 2.7.98).
A Convenção da Mudança do Clima preconiza que as medidas adotadas para
enfrentar a mudança do clima devem ser eficazes em função dos custos. A Convenção da
Diversidade Biológica silencia acerca dos custos das medidas.
As duas Convenções apontam, da mesma forma, as finalidades do emprego do
princípio da precaução: evitar ou minimizar os danos ao meio ambiente. Do mesmo
modo, as duas Convenções são aplicáveis quando houver incerteza científica diante da
ameaça de redução ou de perda da diversidade biológica ou ameaça de danos causadores
de mudança do clima.
É interessante trazer ao conhecimento uma convenção de que o Brasil não faz
parte, mas que conceitua o princípio da precaução. Trata-se da Convenção de Paris para a
Proteção do Meio Marinho do Atlântico Nordeste de 22 de setembro de 1992. Para essa
Convenção, em consonância com o princípio de precaução, “medidas de prevenção
devem ser tomadas quando existam motivos razoáveis de se inquietar do fato de a
introdução, no meio marinho, de substâncias ou energia, direta ou indiretamente poder
acarretar riscos para a saúde humana, prejuízo aos recursos biológicos e aos ecossistemas
marinhos, representar atentado contra os valores de lazer ou entravar outras utilizações
legítimas do mar, mesmo se não existam provas indicando relação de causalidade entre as
causas e os efeitos”.19
4. O princípio da precaução na jurisprudência
4.1 O princípio da precaução e as radiações nucleares
Na vizinhança da usina nuclear Krümmel, perto de Hamburgo, na Alemanha, foi
constada a doença conhecida como leucemia. Quando nova e suplementar autorização foi
solicitada, uma pessoa, vivendo a 20km, apresentou queixa dizendo que foi atingida pela
doença referida, provavelmente, pela radiação da usina nuclear. A Administração Pública
contestou, afirmando que os limites e condições de funcionamento da instalação nuclear
tinham sido cumpridos. O Tribunal Administrativo de Schleswig-Holstein rejeitou a
queixa. Houve recurso para o Supremo Tribunal Administrativo, que deu provimento ao
recurso. O Supremo Tribunal determinou que a Administração Pública constatasse se a
19
.CANS, Chantal. Grande et petite histoire des principes généraux du Droit de l’Environnment dans la Loi
du 2 février 1995. Revue Juridique de l’Environnement 2, 1995.
radiação da usina nuclear estava ou não nos limites da “precaução” exigida pela Lei de
Energia Atômica. Se as novas descobertas científicas indicarem que as normas fixadas
anteriormente não são mais suficientes, a Administração deve fixar padrões de precaução
mais altos. A investigação e a ponderação dos riscos é tarefa da Administração.20
4.2 O princípio da precaução e a captura e caça ou a extinção de habitats de
animais em perigo de extinção
Na Austrália pediu-se autorização para a captura e caça de espécies em extinção.21
O Juiz J. Stein decidiu que “o princípio de precaução é uma avaliação de bom senso e ela
sempre foi aplicada pelos que tomam as decisões nas circunstâncias apropriadas, antes de
o princípio ser descoberto. O princípio está voltado para a prevenção de prejuízo
ambiental sério ou irreversível nas situações de incerteza. A premissa é de que, onde
exista incerteza ou ignorância concernente à natureza ou extensão do prejuízo ambiental
(se isto resulta de políticas, decisões ou atividades), os que decidem devem ser
cautelosos”. A autorização foi negada, afirmando o Juiz que o princípio da precaução
deveria ser aplicado, pois no caso havia “escassez de conhecimentos científicos sobre a
população das espécies, sobre o habitat e sobre os impactos”. “O Juiz, ao fazer a
aplicação do princípio da precaução, enfatizou a insuficiente análise das rãs no Estudo de
Impacto Ambiental”.22
Nos EUA a Suprema Corte decidiu impedir a continuidade da construção de uma
hidrelétrica porque poderia haver a destruição do habitat do molusco snail darter. Disse o
Tribunal: “O valor desse patrimônio genético é incalculável (...). É interesse da
humanidade limitar as perdas das variações genéticas. A razão é simples: aí se encontram
as chaves dos enigmas que somos incapazes de resolver e elas podem fornecer as
20
. Bundesverwaltungsgericht, 21.8.1996 (BverwG 11 C 9.95), apud DOUMA, Wybe Th., “The
precautionary principle”, T.M.C. Asser Institute, The Hague, Netherlands (o artigo consta da Internet, no
arquivo Principle of Precaution, sendo que seu autor o publicou, de forma semelhante, no Iceland Legal
Journal. Úlfjótur 49/417-430, ns. 3 e 4, 1996).
21
. “Leatch vs. National Parks and Wildlife Service and Shoalhaven City Council (1993) 81 LGERA 270 at
281-285 Stein J. of Land and Environment Court”, apud Wybe Th. Douma, “The precautionary principle”,
cit. As espécies em questão são the yellow-bellied glider and the giant burrowing.
22
. GIRAUD, Catherine. Le Droit et le principe de precaution: leçons d’Australie. Revue Juridique de
l’Environnment. v.1. Limoges: SFDE, 1997. p. 21-36.
respostas às questões que nós não aprendemos a colocar. O mais simples egocentrismo
nos ensina a sermos prudentes”.23
4.3 O princípio da precaução e a Engenharia Genética
Na França, o Conselho de Estado24 concedeu medida liminar (sursis à exécution)
em processo movido pela Association Greenpeace France contra a empresa Norvartis,
suspendendo a portaria do Ministro da Agricultura de 5 de fevereiro de 1998 que permitia
o cultivo do “milho transgênico” ou obtido através de manipulação genética. O Tribunal
francês acolheu a argumentação de que o processo estava incompleto no referente “à
avaliação de impacto sobre a saúde pública do gene de resistência à ampicilina contido
nas variedades de milho transgênico”, como, também, o não-respeito ao “princípio da
precaução”, enunciado no art. L. 200-1 do Código Rural.
A ex-Ministra do Meio Ambiente, jurista Corinne Lepage, afirmou que o
posicionamento do Conselho de Estado “ultrapassa o caso do milho transgênico, pois o
princípio deverá ser aplicado para todos os organismos geneticamente modificados
(OGMs)”.25 O art. L. 200-1 do Código Rural, mencionado no julgado, diz que o princípio
da precaução é aquele “segundo o qual a ausência de certeza, levando em conta os
conhecimentos científicos e técnicos do momento, não deve retardar a adoção de medidas
efetivas e proporcionais visando a prevenir o risco de danos graves e irreversíveis ao
meio ambiente, a um custo economicamente aceitável”.
Martine Remond-Gouillod, comentando a referida decisão, afirma: “Longe de
paralisar o progresso, a precaução disciplina a inovação, assegurando-lhe um lugar
legítimo em nossa civilização tecnológica. A precaução ensina a resistir à pressão da
conjuntura imediata, podendo-se extrair-se da decisão do Conselho de Estado a seguinte
mensagem: pode ser urgente esperar”.26
23
. MACHADO, Paulo A. L. Estudos de Direito Ambiental. São Paulo: Malheiros,.1994. p. 98. A decisão
da Suprema Corte norte-americana é a “Tenessee Valley Authorithy vs. Hill, 98, S.Ct 2279 (1978)”.
24
. Seção contenciosa do Conselho de Estado da França (julgamento 194.348, relator M. Derepas, leitura do
julgado em 25.9.98 ). Jornal O Estado de S. Paulo, ed. 26.9.1998.
25
. Jornal Le Figaro, 26.9.1998, p. 10.
26
.REMOND-GOUILLOD, Martine, Les OGMs au Conseil d’État. Gazette du Palais, 22.1.99, p. 13- 14.
No Brasil intentou-se medida cautelar, ajuizada27 pelo Instituto Brasileiro de
Defesa do Consumidor-IDEC contra a União Federal, Monsanto do Brasil Ltda. e Monsoy
Ltda. visando a impedir a autorização para qualquer pedido de plantio da soja transgênica
round up ready antes que se proceda à devida regulamentação da matéria e ao prévio
Estudo de Impacto Ambiental. O parecer do Ministério Público Federal é da autoria do
Dr. Aurélio Veiga Rios.
O Juiz Federal titular da 6a Vara da Seção Judiciária do Distrito Federal, Antônio
Souza Prudente, decidiu,28 entre outras medidas, que: 1) as empresas rés, Monsanto do
Brasil Ltda. e Monsoy Ltda., apresentem Estudo Prévio de Impacto Ambiental como
condição indispensável para o plantio, em escala comercial, da soja round up ready; 2)
ficam impedidas as referidas empresas de comercializar as sementes da soja
geneticamente modificada até que sejam regulamentadas e definidas, pelo Poder Público
competente, as normas de biossegurança e de rotulagem de
OGMs;
3) sejam intimados,
pessoalmente, os Sr. Ministros da Agricultura, da Ciência e Tecnologia, do Meio
Ambiente e da Saúde, para que não expeçam qualquer autorização às promovidas antes
de serem cumpridas as determinações judiciais, ficando suspensas as autorizações que,
porventura, tenham sido expedidas nesse sentido. O Juiz do processo acolheu
expressamente o princípio da precaução. O Tribunal Regional Federal da 1ª Região, com
sede em Brasília, em erudito e independente julgamento manteve a decisão de primeira
instância, sendo Relatora Juíza Assusete Magalhães, participando os Juiz Jirair Aram
Meguerian e Carlos Fernando Mathias.29
5. Intervenção do Poder Público aplicando o princípio da precaução
O Governo da França, com relação à alimentação e à fabricação de alimentos
destinados aos animais das espécies, cuja carne ou produtos sejam destinados ao
consumo humano, suspendeu a fabricação e a utilização das “farinhas de carne, farinhas
de osso, farinha de carne com osso e todas as proteínas de origem animal, com exceção
27
Advogadas Andrea Lazzarini Salazar e Flávia Lefèvre Guimarães
.Brasília (DF), 18 de junho de 1999.
29
Tribunal Regional da 1° Região -AC 2000.01.00.014661-1. Julgamento aos 08.8.2000.
28
das proteínas oriundas do leite e de ovos e o uso das gorduras oriundas da transformação
de ossos destinados à produção de gelatina”.30
O Governo solicitara o parecer da Agência francesa de segurança sanitária
alimentar, em 31.10. 2000 sobre os riscos eventualmente ligados ao uso dessas farinhas.
Antes da apresentação do referido parecer, aos 14.11.2000, foram determinadas por ele
“medidas de precaução”.31
Há indícios de que o uso dessas farinhas provoque o surgimento de “encefalopatia
espongiforme bovina”, chamada vulgarmente de doença da “vaca louca”. A ingestão
pelos seres humanos de carne, oriunda de animal atacado por essa doença, tem provocado
o surgimento da moléstia chamada “Creutzfeldt-Jakob”.32 Na incerteza científica e,
mesmo tendo que fazer grandes despesas na apreensão das farinhas animais e sua
posterior incineração, o Governo francês foi levado a proceder à interdição referida, na
tentativa de evitar a propagação da moléstia e a generalização do pânico.
6. Características do princípio da precaução
6.1 Incerteza do dano ambiental
“Durante muito tempo, os instrumentos jurídicos internacionais limitavam-se a
enunciar que as medidas ambientais a serem adotadas deveriam basear-se em posições
científicas, supondo que este tributo à Ciência bastava para assegurar a idoneidade dos
resultados. Esta filosofia inspirou a maioria dos convênios internacionais celebrados até o
final da década de 80, momento em que o pensamento sobre a matéria começou a mudar
para uma atitude mais cautelosa e também mais severa, que levasse em conta as
incertezas científicas e os danos às vezes irreversíveis que poderiam decorrer de atuação
fundada em premissas científicas, que logo poderiam mostrar-se errôneas”.33
A primeira questão versa sobre a existência do risco ou da probabilidade de dano
ao ser humano e à natureza. Há certeza científica ou há incerteza científica do risco
30
Le Journal Officiel, França, Lois et Décrets. n. 264. 15.11.2000. p. 18081.
Le Journal Officiel. Ob.cit.
32
A doença “Creutzfeldt-Jakob” é geralmente mortal. É uma doença cerebral, transmissível, sem ser
contagiosa, de longa incubação, mas de desenvolvimento rápido, quando os sinais clínicos aparecem. De
1985 a 2000 já morreram 80 pessoas na Inglaterra, com essa doença. (La vache folle:le mea-culpa
britannique. Le Monde eléctronique, França, 27.10.2000).
33
.JUSTE RUIZ. José. Derecho Internacional del Medio Ambiente. Madri: McGraw, 1999. p.479.
31
ambiental? Há ou não unanimidade no posicionamento dos especialistas? Devem,
portanto, ser inventariadas as opiniões nacionais e estrangeiras sobre a matéria. Chegouse a uma posição de certeza de que não há perigo ambiental? A existência de certeza
necessita ser demonstrada, porque vai afastar uma fase de avaliação posterior. Em caso
de certeza do dano ambiental, este deve ser prevenido, como preconiza o princípio da
prevenção. Em caso de dúvida ou de incerteza, também se deve agir prevenindo. Essa é a
grande inovação do princípio da precaução. A dúvida científica, expressa com
argumentos razoáveis, não dispensa a prevenção.
“O princípio da precaução consiste em dizer que não somente somos responsáveis
sobre o que nós sabemos, sobre o que nós deveríamos ter sabido, mas, também, sobre o
que nós deveríamos duvidar”34
Aplica-se o princípio da precaução ainda quando existe a incerteza, não se
aguardando que esta se torne certeza.
6.2 Tipologia do risco ou da ameaça
O risco ou o perigo serão analisados conforme o setor que puder ser atingido pela
atividade ou obra projetada. Por exemplo, como já se mencionou, a Convenção da
Diversidade Biológica não exige que a ameaça seja “séria ou irreversível”, mas que a
ameaça seja “sensível”, quanto à possível redução ou perda da diversidade biológica.
Ameaça sensível é aquela revestida de perceptibilidade ou aquela considerável ou
apreciável.
A Convenção-Quadro sobre a Mudança do Clima refere-se à ameaça de danos
“sérios ou irreversíveis”. A seriedade no dano possível é medida pela sua importância ou
gravidade. A irreversibilidade no dano potencial pode ser entendida como a
impossibilidade de volta ao estado ou condição anterior (constatado o dano, não se
recupera o bem atingido).
6.3 Da obrigatoriedade do controle do risco para a vida, a qualidade de vida e o
meio ambiente
O risco para a vida, a qualidade de vida e o meio ambiente não é matéria que
possa ser relegada pelo Poder Público. A Constituição Federal foi expressa no art.225, §
34
. LAVIEILLE, Jean-Marc .Droit International de l’Environnement. Paris: Ellipses, 1998
1º. Para assegurar a efetividade desse direito, incumbe ao Poder Público: V – controlar a
produção, a comercialização e o emprego de técnicas, métodos e substâncias que
comportem risco para a vida, a qualidade de vida e o meio ambiente”.
A Constituição Federal manda que o Poder Público não se omita no exame das
técnicas e métodos utilizadas nas atividades humanas que ensejem risco para a saúde
humana e o meio ambiente.
O inciso V do §1º necessita ser levado em conta, juntamente com o próprio
enunciado do art. 225 da Constituição Federal, onde o meio ambiente é considerado
“essencial à sadia qualidade de vida”. Controlar o risco é não aceitar qualquer risco. Há
risco inaceitável, como aquele que coloca em perigo os valores constitucionais
protegidos, como o meio ambiente ecologicamente equilibrado, os processos ecológicos
essenciais, o manejo ecológico das espécies e ecossistemas, a diversidade e a integridade
do patrimônio biológico, incluído o genético e a função ecológica da fauna e da flora.
6.4 O custo das medidas de prevenção
A terceira questão a ser enfrentada é o custo das medidas de prevenção em relação
ao país, à região ou ao local. A Convenção-Quadro sobre a Mudança do Clima preconiza
que “as políticas e medidas adotadas para enfrentar a mudança do clima devem ser
eficazes em função dos custos, de modo a assegurar benefícios mundiais ao menor custo
possível”. A lei francesa também aponta que as medidas de prevenção, aplicadas em
razão do princípio da precaução, devam ser tomadas “a um custo economicamente
aceitável”. O Reino Unido tem adotado a abordagem “BAT” (Best Available Technology”
– melhor tecnologia disponível), inserida na Lei de Proteção do Meio Ambiente de 1990
(seção 7, § 4), se bem que balizada pelas considerações de custo (Best Available
Technology not entailing excessive cost).35 O custo excessivo deve ser ponderado de
acordo com a realidade econômica de cada país, pois a responsabilidade ambiental é
comum a todos os países, mas diferenciada.
“As opiniões dos cientistas e dos economistas são freqüentemente divergentes na
matéria, especialmente quando se trata de avaliar os danos evitados e aqueles que ficam
35
WINTER, Gerd. European Environmental Law: A Comparative Perspective. Aldershot: Dartmouth,
1996. p. 41.
sob a responsabilidade das gerações futuras, como, por exemplo, no caso do aumento
possível do número de câncer, devido ao empobrecimento da camada de ozônio”.36
“A participação do Poder Público não se direcionaria exatamente à identificação e
posterior afastamento dos riscos de determinada atividade. À pergunta ‘causaria A um
dano?’ seria contraposta a indagação ‘precisamos de A?’. Não é o risco, cuja
identificação torna-se escorregadia no campo político e técnico-científico, causado por
uma atividade que deve provocar alterações no desenvolvimento linear da atividade
econômica. Porém, o esclarecimento da razão final do que se produz seria o ponto de
partida de uma política que tenha em vista o bem-estar de uma comunidade. No
questionamento sobre a própria razão de existir de uma determinada atividade colocar-seia o início da prática do princípio da precaução”.37
6.5. Implementação imediata das medidas de prevenção: o não-adiamento
Os documentos internacionais citados entendem que as medidas de prevenção não
devem ser “postergadas” (Declaração do Rio de Janeiro/92, Convenção da Diversidade
Biológica e Convenção-Quadro sobre a Mudança do Clima).
“Postergar” é adiar, é deixar para depois, é não fazer agora, é esperar acontecer. A
precaução age no presente para não se ter que chorar e lastimar no futuro. A precaução
não só deve estar presente para impedir o prejuízo ambiental, mesmo incerto, que possa
resultar das ações ou omissões humanas, como deve atuar para a prevenção oportuna
desse prejuízo. Evita-se o dano ambiental, através da prevenção no tempo certo.
O princípio da precaução, para ser aplicado efetivamente, tem que suplantar a
pressa, a precipitação, a improvisação, a rapidez insensata e a vontade de resultado
imediato. Não é fácil superar esses comportamentos, porque eles estão corroendo a
sociedade contemporânea. Olhando-se o mundo das Bolsas, aquilata-se o quanto a
“cultura do risco” contamina os setores financeiros e os governos, jogando, na maior
parte das vezes, com os bens alheios. O princípio da precaução não significa a prostração
36
KISS, Alexandre-Charles; SHELTON Dinah. Traité de Droit Européen de l’Environnmen. Paris:FrisonRoche,1995, p. 554.
37
WINTER, Gerd. Brauchen wir das? – Von der Riskominimierung zur Bedarfsprüfung, p 390. Apud:
DERANI, Cristiane. Direito Ambiental Econômico. São Paulo: Max Limonad, 2001. p. 171.
diante do medo, não elimina a audácia saudável, mas se materializa na busca da
segurança do meio ambiente e da continuidade da vida.
A necessidade do adiamento das medidas de precaução em acordos
administrativos ou em acordos efetuados pelo Ministério Público deve ser
exaustivamente provada pelo órgão público ambiental ou pelo próprio Ministério
Público. Na dúvida, opta-se pela solução que proteja imediatamente o ser humano e
conserve o meio ambiente (in dubio pro salute ou in dubio pro natura).
6.6. O princípio da precaução e os princípios constitucionais da
Administração Pública brasileira
O princípio da precaução, abraçado pelo Brasil com a adesão, ratificação e
promulgação das Convenções internacionais mencionadas, com a adoção do art. 225 da
Constituição Federal e com o advento do art. 54, § 3o, da Lei 9.605, de 12.2.1998, deverá
ser implementado pela Administração Pública, no cumprimento dos princípios expostos
no art. 37, caput, da CF.
Contraria a moralidade e a legalidade administrativas o adiamento de medidas de
precaução que devam ser tomadas imediatamente. Violam o princípio da publicidade e o
da impessoalidade administrativas os acordos e/ou licenciamentos em que o cronograma
da execução de projetos ou a execução de obras não são apresentados previamente ao
público, possibilitando que os setores interessados possam participar do procedimento
das decisões.38
“O princípio da precaução entra no domínio do direito público que se chama
“poder de polícia” da administração. O Estado que, tradicionalmente, encarrega-se da
salubridade, da tranqüilidade, da segurança, pode e deve para este fim tomar medidas que
contradigam, reduzam, limitem, suspendam algumas das grandes liberdades do homem e
do cidadão: expressão, manifestação, comércio, empresa. O princípio da precaução
estende este poder de polícia. Em nome desse princípio, o Estado pode suspender uma
grande liberdade, ainda mesmo que ele não possa apoiar sua decisão em uma certeza
38
.Ao aplicar-se a Medida Provisória 1.710/98 poderemos encontrar a concessão de prazos administrativos
sem a devida motivação, o que provocará adiamento da implementação de medidas de prevenção e de
precaução. Cresce a necessidade de o Ministério Público, as pessoas e as associações ambientais
fiscalizarem esses acordos e buscarem junto ao Poder Judiciário a anulação das ilegalidades cometidas.
científica” afirma François Ewald.39 Acrescenta o autor, que o legislador, segundo a
lógica do balanço custo-vantagem, abre a possibilidade para a interposição de recurso por
excesso de poder (desde que as disposições tomadas pela administração tenham sido
desproporcionais). .
Ao aplicar o princípio da precaução, “os governos encarregam-se de organizar a
repartição da carga dos riscos tecnológicos, tanto no espaço como no tempo. Numa
sociedade moderna, o Estado será julgado pela sua capacidade de gerir os riscos”40
Deixa de buscar eficiência a Administração Pública que, não procurando prever
danos para o ser humano e o meio ambiente, omite-se no exigir e no praticar medidas de
precaução, ocasionando prejuízos, pelos quais será co-responsável.
6.7. A inversão do ônus da prova
Em certos casos, em face da incerteza científica, a relação de
causalidade é presumida com o objetivo de evitar a ocorrência de dano.
Então, uma aplicação estrita do princípio da precaução inverte o ônus
normal da prova e impõe ao autor potencial provar, com anterioridade, que
sua ação não causará danos ao meio ambiente.
Ensinam Alexandre Kiss e Dinah Shelton.41 Citam o exemplo da Lei alemã sobre
Responsabilidade Ambiental. No Brasil, pela Lei de Política Nacional do Meio Ambiente
aplica-se a responsabilidade civil objetiva (art. 14, § 1o).
Jean Malafosse diz que “a dúvida aproveita ao ‘poluído’. O princípio da
precaução traduz-se por um inversão do ônus da prova em proveito da proteção do meio
ambiente”.42 Cita Christian Huglo, que afirma: “Quando a prova da inocuidade de uma
substância não é demonstrada, é necessário abster-se de agir”.43 Sérgio Marchisiso afirma
que “o princípio da precaução emergiu nos últimos anos como um instrumento de política
39
La précaution, une responsabilité de L’ État. Le Monde, França. 10. 3. 2000.
EWALD, François et KESSLER. Les noces du risque et de la politique. Le Débat:Gallimard. n.109.
mar/abril, 2000
41
. KISS, Alexandre-Charles; SHELTON Dinah. Traité de Droit Européen de l’Environnmen. Paris:FrisonRoche,1995, p. 42
42
. MALAFOSSE, Jean. Sursis `a l’exécution de l’arrêté ministériel introduisant en France trois variétés
de ‘maïs génétiquement modifié. JCP-La Semaine Juridique- Générale n. 52, 23.12.1998, p. 2273-2276.
43
. La Lettre Juris-Classeur de l’Environnment 3/1, setembro de 1997.
40
ambiental baseado na inversão do ônus da prova: para não adotar medida preventiva ou
corretiva é necessário demonstrar que certa atividade não danifica seriamente o ambiente
e que essa atividade não causa dano irreversível”.44
“A inversão do ônus da prova tem como conseqüência que os empreendedores de
um projeto devem necessariamente implementar as medidas de proteção do meio
ambiente, salvo se trouxerem a prova de que os limites do risco e da incerteza não foram
ultrapassados” – afirma Cathérine Giraud. Essa autora cita D. Freestone, “que focaliza o
procedimento de justificação prévia (prior justification procedure) como uma expressão
da inversão do ônus da prova. Aplicado ao problema específico da imersão dos rejeitos
industriais no mar do Norte, este procedimento exige a prova de que nenhum efeito
nefasto será causado ao meio ambiente, como condição para a expedição da autorização
de imersão”.45
7. A Lei 9.605/98 e a incriminação da ausência de precaução
A Lei 9.605, de 12.2.1998, diz, no art. 54: “Causar poluição de qualquer natureza
em níveis tais que resultem ou possam resultar em danos à saúde humana, ou que
provoquem a mortandade de animais ou a destruição significativa da flora: Pena –
reclusão, de um a quatro anos, e multa”.
O § 3o do referido art. 54 diz: “Incorre nas mesmas penas previstas no parágrafo
anterior quem deixar de adotar, quando assim o exigir a autoridade competente, medidas
de precaução em caso de risco de dano ambiental grave ou irreversível”.
A conceituação de “medidas de precaução” não é dada pela lei penal, devendo-se
procurá-la nos entendimentos referidos nos textos internacionais, aqui interpretados, e na
doutrina. Não se trata de outro tipo de precaução senão aquele inserido no princípio ora
estudado, tanto que as medidas a serem exigidas serão cabíveis “em caso de risco de dano
ambiental grave ou irreversível”.
8. O Estudo de Impacto Ambiental e a aplicação do princípio da precaução:
diagnóstico do risco ambiental
44
. MARCHISISO, Sérgio. Gli atti di Rio nel Diritto Internazionale. Rivista di Diritto Internazionale v.3.
Milão: Giuffrè,1992.
45
. GIRAUD, Cathérine, Le Droit et le principe de péecaution: leçons d’Australie. Revue Juridique de
l’Environnmen. Limoges: SFDE, 1997. p. 33.
A aplicação do princípio da precaução relaciona-se intensamente com a avaliação
prévia das atividades humanas. O “Estudo de Impacto Ambiental” insere na sua
metodologia a prevenção e a precaução da degradação ambiental. Diagnosticado o risco,
pondera-se sobre os meios de evitar o prejuízo. Aí entra o exame da oportunidade do
emprego dos meios de prevenção.
A Declaração do Rio de Janeiro/92 preconizou também o referido Estudo de
Impacto Ambiental, dizendo no Princípio 17: “A avaliação de impacto ambiental, como
instrumento nacional, deve ser empreendida para atividades planejadas que possam vir a
ter impacto negativo considerável sobre o meio ambiente, e que dependam de uma
decisão de uma autoridade nacional competente”.
Na Austrália, as recomendações do Relatório Young de 199346 contêm
mecanismos de aplicação do princípio de precaução. “O instrumento especial proposto é
o Estudo de Impacto Ambiental. Este instrumento deverá, segundo o relatório, ser
adaptado e conter uma etapa de fiscalização mais importante, como, da mesma forma, os
padrões a serem respeitados devem ser mais estritos, levando-se em conta os fenômenos
da irreversibilidade”.47
O Brasil já havia adotado em sua legislação esse instrumento jurídico de
prevenção do dano ambiental.
A Constituição Federal diz no § 1o do art. 225: “Para assegurar a efetividade desse
direito, incumbe ao Poder Público: IV – exigir, na forma da lei, para instalação de obra
ou atividade potencialmente causadora de significativa degradação do meio ambiente,
Estudo Prévio de Impacto Ambiental, a que se dará publicidade”..
Nesse estudo avaliam-se todas as obras e todas as atividades que possam causar
degradação significativa ao meio ambiente. A palavra “potencialmente”48 abrange não só
o dano de que não se duvida, como o dano incerto e o dano provável.
46
YOUNG, M. “For our children’s children: some pratical implications of inter-generational equity and the
precaucionary principle”, Resource Assesment Commission Commonwelth of Australia, occasional
publication 6, november 1993.
47
GIRAUD, Cathérine. Le Droit et le principe de precaution: leçons d’Australie. Revue Juridique de
l’Environnment. Limoges: SFDE, 1997. p. 33.
48
FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Novo Dicionário da Língua Portuguesa. 1. ed. Rio de
Janeiro: Nova Fronteira, s/d. e Dicionário de Lingua Portugesa, Mirador Internacional, 1976.
“A implementação do princípio de precaução pode ser olhada como exigências
que os Estados incorporam, entre outras, no planejamento e na legislação, através do
procedimento do estudo de impacto ambiental” afirma Catherine Tinker.49
A Resolução 1/86-CONAMA diz que o Estudo de Impacto Ambiental desenvolverá
“a análise dos impactos ambientais do projeto e de suas alternativas, através de
identificação, previsão da magnitude e interpretação da importância dos prováveis
impactos relevantes, discriminando: ... os impactos positivos e negativos (benéficos e
adversos), diretos e indiretos, imediatos e a médio e longo prazo; temporários e
permanentes; seu grau de reversibilidade; suas propriedades cumulativas e sinérgicas; a
distribuição dos ônus e benefícios sociais” (art. 6o, II).
Determinar o grau de perigo, ou seja, apontar a extensão ou a magnitude do
impacto, é uma das tarefas do Estudo de Impacto Ambiental, como se vê da
regulamentação acima referida. É também objeto da avaliação o grau de reversibilidade
do impacto ou sua irreversibilidade. Como se constata, a legislação do Estudo de Impacto
Ambiental contempla, também, uma avaliação de risco.
É preciso ressaltar a necessidade de os consultores do Estudo de Impacto
Ambiental serem “competentes e independentes para avaliar os riscos”.50 Falando da
“crise da perícia”, diz Axel Kahn: “Assiste-se, às vezes, ao fenômeno singular e humano
da confusão entre perícia e promoção da técnica examinada, pela razão de que os peritos
(ou especialistas), sendo experientes no terreno que examinam, são levados, às vezes, a
defendê-lo em vez de avaliar verdadeiramente”.51
No caso da aplicação do princípio da precaução, é imprescindível que se use um
procedimento de prévia avaliação, diante da incerteza do dano, sendo este procedimento
o já referido Estudo Prévio de Impacto Ambiental. Outras análises, por mais
aprofundadas que sejam, não podem substituir esse procedimento.
49
TINKER, Catherine. State Responsability and the Precautionary Principle. In: FREESTONE, David;
HEY, Ellem. International Environmental Law and Policiy. Boston: Kluwer International, 1996.
50
. Conférence de Citoyens sur l’Utilisation des OGMs en Agriculture et dans l’Alimentation Office
Parlemantaire d’Évaluation des Choix Scientifiques et Téchnologiques, Paris. Communiquès à la Presse.,
20-21.6.98.
51
. KAHN, Axel. Le progrès de la Génétique,Futuribles, 27.9.97, p. 5.
Decidiu o egrégio TRF da 5a Região, com sede em Pernambuco, que “o Relatório
de Viabilidade Ambiental não é idôneo e suficiente para substituir o Estudo de Impacto
Ambiental e respectivo relatório”.52 Muito acertada a decisão judicial, pois a
multiplicidade de procedimentos não só geraria confusão, como enfraqueceria as
garantias jurídicas de seriedade, de amplitude e de publicidade já inseridas no Estudo de
Impacto Ambiental.
A prática dos princípios da informação ampla e da participação ininterrupta das
pessoas e organizações sociais no processo das decisões dos aparelhos burocráticos é que
alicerça e torna possível viabilizar a implementação da prevenção e da precaução para a
defesa do ser humano e do meio ambiente.
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Capítulo 14
O Princípio da Precaução e a sua aplicação na Justiça Brasileira:
Estudo de Casos
Aurélio Virgilio Veiga Rios*
1. Introdução
Este artigo pretende abordar o conteúdo político e jurídico do Princípio da
Precaução e sua efetividade junto aos tribunais, a partir da análise de casos concretos, que
permitem algumas conclusões a respeito das dificuldades de se dar a um princípio
internacional do meio ambiente1 a importância que ele merece em situações específicas
levadas à apreciação da Justiça Brasileira, mais precisamente da Justiça Federal.
Não é intenção deste texto arrolar todos os casos em que o princípio da precaução
foi invocado na Justiça Brasileira, mas algumas ações paradigmáticas referentes à
biossegurança, com repercussão política e jurídica no meio ambiente, com o propósito de
fazer um exame, ainda que precário e provisório, da eficácia do princípio da precaução,
quando questionadas, na via judicial, as ações de governo na área ambiental.
Por igual, neste trabalho se buscará checar como o princípio da precaução vêm
sendo aplicado pelo Poder Judiciário, quando confrontado com a política ambiental a ser
adotada pelo governo federal, especialmente com relação à biodiversidade e à
biossegurança, de modo a verificar se as medidas de prevenção a danos ambientais
incertos estão, de fato, sendo aplicadas pelo poder público, para que não sejam apenas
retórica vazia, sem conteúdo prático. Dito de outro modo, este estudo visa perquirir em
* Procurador
Regional da República, lotado em Brasília, Mestre em Direito Público pela Universidade de
Bristol – Inglaterra e Professor da Universidade do Distrito Federal. 1
Este autor assume que o princípio da precaução faz parte do direito internacional do meio ambiente e que
não é uma simples declaração de intenção, uma soft law dirigida aos Estados e sem eficácia quanto a sua
incidência, mas que, ao contrário, dele derivam conseqüências legais para os Estados e, em particular, para
a ação governamental. Por suposto, não se aceita aqui a expressão “abordagem precautória” como
substituta ou similar àquela destinada ao princípio da precaução, pelo direito internacional. No entanto, há
vários e renomados autores que preferem considerar que o princípio da precaução é norma de direito
internacional não cogente e que, sozinho, não seria capaz de gerar um princípio internacional (como
Sadeleer). Outros consideram um princípio em construção (Freestone). A propósito dessa controvérsia
quanto ao sentido e ao alcance do princípio da precaução, recomenda-se a leitura dos capítulos de Kiss,
Freestone e Varella, publicados neste livro.
que extensão pode o princípio da precaução ser usado eficazmente, como instrumento de
proteção ambiental perante o Poder Judiciário.
Para enfrentar esses dois objetivos, aqui se tratará dos casos judiciais em que se
discute a delicada questão dos transgênicos, com ênfase ao processo de liberação, em
escala comercial, da soja round up ready; os experimentos autorizados pela CTNBio em
relação ao arroz liberty link, no Rio Grande Sul, e às plantas que funcionam como
bioinseticidas, sem o Registro Especial Temporário (RET); por último, o caso da
importação de milho da Argentina, sem os testes de detecção de transgenia e sem prévio
licenciamento ambiental.
2. O Princípio da Precaução
De início, convém lembrar em poucas palavras o que vem a ser o princípio da
precaução e sua importância crescente para o direito internacional do meio ambiente,
mais precisamente para a biossegurança.
O princípio da precaução não nasceu do nada. Ele é conseqüência e também uma
derivação do princípio da prevenção ao dano ambiental, que sugere sejam tomadas pelos
Estados e empreendedores as medidas necessárias para se evitar a ocorrência de danos
ambientais. Ele é fruto da urgência e da prudência, numa combinação de instrumentos
para se lidar com as causas e conseqüências dos danos ambientais causados pelos mais
diversos fatores: contaminação dos recursos naturais, poluição do ar, desmatamento etc.
O princípio da precaução difere do da prevenção, quando os riscos e danos que se
quer evitar são incertos e o conhecimento científico, escasso ou controvertido sobre os
efeitos de um dado produto ou substância no meio ambiente. Sabe-se que nem todos os
malefícios causados ao meio ambiente são conhecidos, mensurados e certos quanto a suas
conseqüências. Alguns danos podem ser hoje medidos em relação a sua intensidade,
como aqueles ocasionados pelo enchimento de uma barragem para aproveitamento
hidrelétrico, em um determinado curso d’água, mas outros permanecem incertos quanto a
seus efeitos a médio e longo prazo no ambiente ou em relação à saúde humana, como é o
caso dos organismos geneticamente modificados.
Ulrich Beck, ao analisar a sociedade de risco, afirma que “a velha sociedade
industrial, baseada na distribuição de bens, foi sendo substituída por uma nova sociedade
de risco, estruturada na distribuição de males”2. De fato, na sociedade de risco a
distribuição dos danos ambientais causados aflora indistintamente, sem discriminação
geográfica ou social, e também não está delimitada no tempo, acentuando essa incerteza
quanto aos efeitos da incorporação de novas tecnologias na agricultura, na indústria e na
produção de medicamentos.
A transição de uma era industrial para uma época de riscos ocorre de
forma invisível e inconsciente, no curso do processo de modernização. Neste
sentido, a sociedade de risco não pode ser vista como uma opção que poderia ser
escolhida ou rejeitada, no curso do debate político. Os riscos que acompanham as
novas tecnologias decorrem automaticamente da modernização, em um processo
autônomo que é surdo e mudo quanto a suas conseqüências e perigos3.
Em razão da inevitabilidade dos riscos que acompanham a sociedade moderna e
como medida essencial de prevenção quanto a danos ambientais ainda incertos, o
princípio da precaução foi elevado à categoria de regra do direito internacional, ao ser
incluído na Declaração do Rio, como resultado da Conferência das Nações Unidas sobre
Meio Ambiente e Desenvolvimento-RIO/92, sendo considerado por muitos autores como
um princípio fundamental do direito ambiental internacional4, assim redigido:
Princípio 15: Com a finalidade de proteger o meio ambiente, os Estados
devem aplicar amplamente o critério da precaução conforme suas capacidades.
Quando houver perigo de dano grave ou irreversível, a falta de uma certeza
absoluta não deverá ser utilizada para postergar-se a adoção de medidas eficazes
para prevenir a degradação ambiental.
As duas convenções internacionais, nascidas da Conferência do Rio, também
fazem menção explícita à importância do princípio da precaução como norma balizadora
da atuação dos Estados-partes, na defesa do meio ambiente. A Convenção-Quadro sobre
Mudanças Climáticas expressamente adere ao princípio da precaução, ainda que de forma
limitada, conclamando os países a tomarem as medidas de prevenção para se evitar a
2
Ulrick Beck. “Risk Society and the Provident State” in Risk, Environment and Modernity - Towards a
New Ecology. London : Scott Lash, Branislaw Szersynsky and Brian Wynne, Sage Publications, 1996.
Tradução livre do texto em inglês.
3
Op. cit, p. 15.
4
Entre os autores que consideram a importância do princípio da precaução para o direito internacional do
meio ambiente estão Sands, Machado e Rios, entre outros.
emissão de gases que possam provocar o aquecimento do planeta, conhecido como efeito
estufa.
A Convenção da Diversidade Biológica recomenda às partes, como medida para a
conservação ìn situ dos recursos naturais, que estabeleçam ou mantenham os meios para
regulamentar, administrar ou controlar os riscos associados à utilização e liberação de
organismos vivos modificados, resultantes da biotecnologia que, provavelmente,
provoquem impacto ambiental negativo que possa afetar a conservação e a utilização
sustentável da diversidade biológica, levando também em conta os riscos para a saúde
humana (art. 8, alínea g).
Recentemente e de modo mais enfático, o princípio da precaução foi incorporado
ao Protocolo de Cartagena sobre Biossegurança, firmado em Montreal, Canadá, em 28 de
janeiro de 2000, dentro da Convenção sobre
Diversidade Biológica. O Protocolo
representa um avanço significativo na tentativa de se fixarem normas-padrão de
biossegurança, servindo como referência internacional para a proteção da diversidade
biológica e da saúde humana, em relação a eventuais danos que possam advir da
liberação no meio de OGM ou da ingestão de produtos ou alimentos transgênicos.
A definição do princípio da precaução, como base para a tomada de decisões
sobre importação de sementes, alimentos ou produtos transgênicos, protege por igual
todos os países importadores contra possíveis acusações de discriminação comercial ou
de imposição de barreiras não alfandegárias e, em tese, até mesmo de eventuais
reclamações por parte dos países exportadores de biotecnologia junto à Organização
Mundial do Comércio – OMC 5.
Assim, parece fácil a conclusão de que, em relação à biossegurança, nenhum
princípio é tão importante quanto o princípio da precaução. Ele é a base que sustenta o
Protocolo de Cartagena sobre Biossegurança, que torna obrigatória a análise de risco de
qualquer OGM, é ele que obriga o empreendedor a realizar o prévio Estudo de Impacto
Ambiental – EIA/RIMA, previsto no art. 225, inciso IV, da Constituição Federal, e
também serviu como fundamento para a sentença judicial que determinou a rotulagem de
5
Sem embargo da importância do princípio da precaução, no Protocolo de Cartagena, há fundada
divergência quanto a sua aplicação junto à OMC. Ver os capítulos de Noiville e Varella, publicados neste
livro.
produtos transgênicos, proibindo o plantio, em escala comercial, da soja round up ready 6,
que veremos a seguir.
3. Estudo de Casos
3.1 O caso da soja transgênica
O caso em questão é certamente o processo judicial mais importante, ocorrido no
país, relacionado com a aplicação in concreto do princípio da precaução. Trata-se de uma
ação civil pública, precedida de medida cautelar, em que o Instituto Brasileiro de Defesa
do Consumidor – IDEC questionou o “Parecer Técnico Prévio Conclusivo” (sic) da
Comissão Técnica Nacional de Biossegurança – CTNBio 7, que aprovou o plantio, em
escala comercial, pela CTNBio, da soja geneticamente modificada round up ready, que
torna o grão naturalmente resistente ao glifosato, princípio ativo largamente utilizado
como herbicida, nas mais diversas lavouras.
A autorização dada pela CTNBio, encarregada pela Lei nº 8974/95 de examinar
os aspectos de biossegurança de organismos geneticamente modificados (OGM) para a
desregulamentação (liberação) da soja round up ready, por ser o primeiro OGM a obter
um Parecer Técnico favorável a sua comercialização pela Comissão Técnica Nacional de
Biossegurança - CTNBio, revelou-se um bom teste para verificar o cumprimento da
Constituição e das normas regulamentares de biossegurança, em concreto.
Como a controvérsia entre ambientalistas, cientistas e a indústria foi judicializada,
torna-se relevante confrontar o referido Parecer da CTNBio com o objeto de duas ações
civis públicas ajuizadas, respectivamente pela associação civil Greenpeace, em dezembro
de 1997, e pelo Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor - IDEC, em junho de 19988.
As referidas ações têm em comum a mesma argumentação contrária à introdução
de organismo geneticamente modificado no país, baseada no princípio da precaução e na
aplicação do código de defesa do consumidor. Ambas pretendem impedir o ingresso de
soja transgênica no país. Na primeira delas, iniciada pelo Greenpeace, pediu-se a
proibição da importação de soja round up norte-americana pela empresa Monsanto e,
6
Processo nº 1998.34.00027682-0/DF, referente à ação civil pública proposta pelo IDEC contra a
Monsanto e a União, que tramitou perante a 6ª Vara Federal da Seção Judiciária do Distrito Federal.
7
Comunicado nº 54/1998 da CTNBio.
8
Processo nº 97.34.00036170-4 (Greenpeace v. Presidente da CTNBio) e 98.34.00027681-8 (Medida
Cautelar) e 98.00.027682-0 (ação civil pública), ambas propostas pelo IDEC contra a União Federal.
alternativamente, caso admitida a importação, que fosse ordenada a rotulagem dos
produtos derivados de OGM.
Na outra ação civil pública, ajuizada pelo IDEC, pleiteia-se a suspensão da
autorização para o cultivo da soja geneticamente modificada, com base na ausência de
prévio Estudo de Impacto Ambiental (EIA) para autorizar a liberação da soja transgênica
e na falta de norma específica sobre segurança alimentar e de informação adequada do
novo produto aos consumidores.
Observa-se que o princípio da precaução foi firmemente invocado nas duas ações
para dar fundamento aos pedidos de suspensão e ou proibição do plantio, em escala
comercial, da soja geneticamente modificada, sob o argumento de que não havia estudos
e pesquisas científicas suficientes para embasar o Parecer Técnico expedido pelo órgão
responsável pela condução da política nacional de biossegurança.
Paulo Affonso Leme Machado, que foi advogado do IDEC neste caso, sustentou
a inconstitucionalidade do ato de dispensa do EIA/RIMA pela CTNBio ou por qualquer
outro órgão do governo. Aliás, o mencionado mestre do direito ambiental teve a
oportunidade de se expressar nos autos, por meio de artigo juntado às fls. 498/512, onde
destaca o seguinte trecho 9:
No caso da aplicação do princípio da precaução, é imprescindível que se
use o procedimento de prévia avaliação, diante da incerteza do dano, sendo este
procedimento o já referido prévio Estudo de Impacto Ambiental. Outras análises,
por mais apropriadas que sejam, não podem substituir esse procedimento.
Em junho de 1999, o Juiz Federal da 6ª Vara da Seção Judiciária do Distrito
Federal, Antônio de Souza Prudente, concedeu a liminar requerida pelo IDEC, ao acolher
o pedido formulado pelo Ministério Público Federal, para determinar em caráter
mandamental inibitório, sem prejuízo das medidas de natureza cautelar já adotadas pelo
ilustre Juiz Substituto da 6ª Vara, que:
I - as empresas promovidas MONSANTO DO BRASIL LTDA e
MONSOY LTDA apresentem prévio Estudo de Impacto Ambiental, na forma
preconizada pelo art. 225, IV, da Constituição Federal, como condição
indispensável para o plantio, em escala comercial, da soja round up ready;
9
Paulo Affonso de Leme Machado. “ O princípio da Precaução e o Direito Ambiental”, artigo doutrinário
juntado às fls. 498/512 dos autos do « Caso da soja transgênica ”.
II - ficam impedidas as referidas empresas de comercializarem as
sementes da soja geneticamente modificada, até que sejam regulamentadas e
definidas pelo poder público competente as normas de biossegurança e de
rotulagem de organismos geneticamente modificados;
III - fica suspenso o cultivo, em escala comercial, do referido produto,
sem que sejam suficientemente esclarecidas, no curso da instrução processual, as
questões técnicas suscitadas por pesquisadores de renome, a respeito das
possíveis falhas apresentadas pela CNTBio em relação ao exame do pedido de
desregulamentação da soja round up ready; (...)
VI - sejam intimados pessoalmente os Sr. Ministros da Agricultura, da
Ciência e Tecnologia, do Meio Ambiente e da Saúde, para que não expeçam
qualquer autorização às promovidas, antes de serem cumpridas as determinações
judiciais aqui contidas, ficando suspensas as autorizações que, porventura,
tenham sido expedidas nesse sentido;
VII - fica estabelecida a multa pecuniária de 10 (dez) salários-mínimos
por dia, a partir da data do descumprimento destas medidas, a ser aplicada aos
agentes infratores, públicos ou privados (Lei nº 7.347/85, art. 11).
Posteriormente, em agosto de 1999, a 6ª Vara Federal de Brasília-DF julgou
procedente a Medida Cautelar ajuizada pelo IDEC, determinando que as empresas
Monsanto do Brasil Ltda e Monsoy Ltda apresentassem prévio Estudo de Impacto
Ambiental, como condição indispensável para o plantio, em escala comercial, da soja
round up ready, ficando impedidas de comercializarem as sementes de soja transgênica,
até que sejam regulamentadas e definidas pelo poder público competente as normas de
biossegurança e de rotulagem de OGM.
O Juiz Federal de Brasília, Souza Prudente10, também determinou a suspensão do
cultivo do referido produto até que fossem suficientemente esclarecidas, no curso da
instrução processual, as questões técnicas suscitadas por pesquisadores de renome a
respeito das possíveis falhas apresentadas pela CTNBio em relação ao exame do pedido
de liberação da soja round up ready. Enquanto não for concluído tal Estudo, o plantio da
soja transgênica será restrito ao necessário, para realização de testes e do próprio
10
Atualmente exercendo o cargo de desembargador federal junto ao Tribunal Regional Federal da 1ª
Região.
EIA/RIMA, em regime monitorado e em área de contenção, delimitada e demarcada, com
a proibição de serem comercializados os frutos obtidos com os aludidos testes, nas
diversas fases que integram a feitura do EIA/RIMA.
Verifica-se da leitura da sentença proferida na ação civil pública que o Juiz Souza
Prudente visualizou no princípio da precaução a base teórica para exigir estudos
complementares da CTNBio, além do EIA/RIMA, como condição essencial à liberação,
em escala comercial, de toda e qualquer semente geneticamente modificada no país, por
entender que havia perguntas sem respostas apropriadas quanto ao risco de uma liberação
ampla, geral e irrestrita de OGMs no país, e sem o processo regular de licenciamento
ambiental e sem prévias audiências públicas que atestassem a legitimidade do processo
decisório que aprovou a desregulamentação da soja round up ready.
Contra a sentença proferida na Medida Cautelar acima mencionada, a União
Federal e a empresa Monsanto recorreram, pleiteando a suspensão de seus efeitos, não
tendo elas obtido, até então, êxito junto ao Tribunal Regional Federal da 1ª Região que,
ao julgar o mérito das apelações da União e da empresa interessada, negou provimento
aos recursos e manteve intacta a notável sentença da 6ª Vara Federal do Distrito Federal,
que determinou a obrigatoriedade do EIA/RIMA como condição indispensável para a
liberação da soja transgênica no meio ambiente ou para seu plantio, em escala comercial,
e também a necessidade de se proceder à rotulagem plena de todos os produtos oriundos
de OGM.
Paralelamente foi julgada procedente pela 6ª Vara Federal da Seção Judiciária de
Brasília a ação civil pública ajuizada pelo IDEC, cuja parte dispositiva está assim
lavrada:
Com estas considerações, julgo procedente a presente ação
para condenar a União Federal a exigir a realização de prévio Estudo de
Impacto Ambiental da MONSANTO DO BRASIL LTDA, nos moldes
preconizados nesta sentença, para liberação de espécies geneticamente
modificadas e de todos os outros pedidos formulados à CTNBio, nesse sentido;
declaro, em conseqüência, a inconstitucionalidade do inciso XIV do art. 2º do
Decreto nº 1.752/95, bem assim a das Instruções Normativas nº 03 e 10 CTNBio, no que possibilitam a dispensa do EIA/RIMA, na espécie dos autos.
Condeno, ainda, a União Federal a exigir da CTNBio, no prazo
de 90 (noventa) dias, a elaboração de normas relativas à segurança alimentar,
comercialização e consumo dos alimentos transgênicos, em conformidade com
as disposições vinculantes da Constituição Federal, do Código de Defesa do
Consumidor ( Lei nº 8.078/90) e da legislação ambiental, na espécie, ficando
obrigada a CTNBio a não emitir qualquer parecer técnico conclusivo a nenhum
pedido que lhe for formulado, antes do cumprimento das exigências legais aqui
expostas. (....)
Desta decisão, a Monsanto e a União apelaram ao TRF da 1ª Região, tendo a
União interposto a suspensão de segurança, que foi indeferida pelo Presidente do
Tribunal em 6/7/2000.
Posteriormente, em fevereiro de 2003, a desembargadora federal Selene Maria de
Almeida proferiu extenso voto, dando provimento aos apelos da União e da Monsanto.
Atualmente, encontram-se os autos aguardando os votos dos demais juízes que compõem
a 5ª Turma do TRF da 1ª Região.
Convém ressaltar que esta decisão judicial inovadora provocou o primeiro caso,
de que se tem notícia no Brasil, de suspensão judicial do plantio de sementes
transgênicas, sendo um teste importante para verificar em concreto o descumprimento da
legislação em vigor e também para apontar a inconstitucionalidade do Art. 2º, inciso
XIV, do Decreto nº 1752, que regulamenta a Lei nº 8974/95, que permitia à CTNBio
dispensar a seu alvedrio o EIA, no processo de liberação de sementes geneticamente
modificadas, no meio ambiente.
Além disso, é importante notar que todos os pressupostos jurídicos apontados pelo
Ministério Público Federal - e expressamente afirmados na sentença de lavra do eminente
Juiz Dr. Antônio de Souza Prudente - foram posteriormente incorporados ao Protocolo de
Cartagena sobre Biossegurança, a saber: a) obrigatoriedade de Estudos de Impacto
Ambiental ou Estudos de Avaliação de Riscos como condição à liberação de OGM, no
meio ambiente; b) identificação e rotulagem de organismos transgênicos; e c) respeito ao
direito dos Estados soberanos (como é o caso do Brasil) de fixarem normas ambientais de
prevenção de riscos mais rígidas do que aquelas admitidas no Protocolo.
Mais ainda. Ao julgar as apelações da Monsanto e da União Federal contra a
sentença da 6ª Vara de Brasília, a 2ª Turma do Tribunal Regional Federal da 1ª Região
negou provimento aos recursos, em que se destaca o seguinte trecho da ementa:
(...) V – A existência do fumus boni iuris ou da probabilidade de tutela,
no processo principal do direito material invocado, encontra-se demonstrada
especialmente: a) pelas disposições dos arts. 8º, 9º e 10, § 4º, da Lei nº 6.938, de
31/08/81 – recepcionada pela CF/88 – e dos arts. 1º, 2º, caput e § 1º, 3º, 4º e
Anexo I da Resolução CONAMA nº 237/97, à luz das quais se infere que a
definição de “obra ou atividade potencialmente causadora de significativa
degradação do meio ambiente”, a que se refere o art. 225, § 1º, IV, da CF/88,
compreende “a introdução de espécies exóticas e ou geneticamente modificadas”,
tal como consta do Anexo I da aludida Resolução CONAMA nº 237/97, para a
qual, por via de conseqüência, é necessário o estudo prévio de impacto ambiental;
b) pela relevância da tese de que o parecer conclusivo da CTNBio não tem o
condão de dispensar o prévio Estudo de Impacto Ambiental para o plantio, em
escala comercial, e a comercialização de sementes de soja geneticamente
modificadas. Precedente do STF (ADin nº 1.086-7/SC, Rel. Min. Ilmar Galvão,
in DJU de 16/09/94, pág. 24.279); c) pela vedação contida no art. 8º, VI, da Lei
nº 8.974/95, diante da qual se conclui que a CTNBio deve expedir previamente a
regulamentação relativa à liberação e descarte, no meio ambiente, de organismos
geneticamente modificados, pelo que, até o momento presente, juridicamente
relevante é a tese de impossibilidade de autorização de qualquer atividade relativa
à introdução de OGM no meio ambiente (...);
VI – A existência de uma situação de perigo recomenda a tutela
cautelar, no intuito de se evitar – em homenagem aos princípios da
precaução e da instrumentalidade do processo cautelar – até o deslinde da
ação principal, o risco de dano irreversível e irreparável ao meio ambiente e
à saúde pública, pela utilização de engenharia genética no meio ambiente e
em produtos alimentícios, sem a adoção de rigorosos critérios de segurança
(grifamos). (...)
Da leitura atenta do referido acórdão, constata-se que, no dia 08 de agosto de
2000, a 2ª Turma do TRF da 1ª Região, em inspirado voto da Juíza relatora Assusete
Magalhães, criou um precedente extraordinário para a invocação do princípio da
precaução junto aos tribunais brasileiros. A importância do precedente foi de tal ordem
que o governo federal, à época, editou a Medida Provisória nº 2137-1, modificando o art.
7º da Lei nº 8974/95, que atribuía equivocadamente à CTNBio o poder de dispensar o
EIA/RIMA do processo de liberação de OGM no país.
Sobre esse ponto, vale ponderar o seguinte: em primeiro lugar, a Medida
Provisória aludida não introduziu nenhuma alteração substancial no que já tinha sido
exaustivamente discutido nos autos; depois, ainda que ela contivesse tal alteração, tal fato
não produziria o efeito de modificar o acórdão embargado, na medida em que o
fundamento constitucional nele adotado afasta qualquer possibilidade de se admitir a
dispensa do Estudo Prévio de Impacto Ambiental da soja transgênica pela CTNBio, que
não faz parte do SISNAMA e não tinha - e não tem - atribuição legal para tanto.
Posteriormente, a Lei nº 9.960, de 28/01/2000, veio colocar uma pá de cal sobre a
matéria relativa à competência do órgão ambiental para licenciamento de sementes
transgênicas, quando acrescentou à Lei nº 6.938/81 o art. 17-L, que estabelece:
Art. 17-L. As ações de licenciamento, registro, autorizações,
concessões e permissões relacionadas à fauna, à flora e ao controle
ambiental são de competência exclusiva dos órgãos integrantes do
Sistema Nacional do Meio Ambiente. (AC)
Como argumentou a sentença, em face das disposições da Lei nº 6.938/81 e da
Resolução CONAMA nº 237/97, a definição de “obra ou atividade potencialmente
causadora de significativa degradação no meio ambiente”, a que se refere o art. 225,
§ 1º, IV, da CF/88, compreende a introdução de espécies geneticamente modificadas,
para a qual, por via de conseqüência, é necessário o estudo prévio de impacto
ambiental (Anexo I da Resolução CONAMA nº 237/97).
O plantio da soja round up ready, no Brasil, insere-se no conceito de “atividade” e
a rigor estaria submetido às regras da legislação ambiental, que exige a obtenção do
competente licenciamento ambiental junto aos órgãos federais de meio ambiente,
mediante apresentação de prévio estudo de impacto ambiental, apto a permitir o
deferimento ou não do pedido, nos termos da Lei nº 6.938/81 e da Resolução CONAMA
nº 237/97, sem prejuízo das demais atribuições previstas no art. 7º da Lei nº 8.974/95 e de
competência dos Ministérios da Saúde, da Agricultura e do Abastecimento, do Meio
Ambiente e da Amazônia Legal”.
Mais recentemente, em junho de 2002, foi finalmente editada pelo CONAMA a
Resolução nº 305/2002, que cuida especificamente do processo de licenciamento de
OGM, tanto em caráter experimental como em escala comercial, exigindo o EIA como
condição de validade do processo administrativo de liberação de sementes transgênicas,
no meio ambiente.
Essa resolução significou um grande passo do governo federal, notadamente do
Ministério do Meio Ambiente, em favor da efetivação das medidas de controle de OGMs,
de modo a dar eficácia e conteúdo substantivo ao princípio da precaução. É imperioso
ressaltar que, tanto a sentença judicial de primeira instância, no caso da soja transgênica,
como o acórdão do TRF da 1ª Região que a confirmou, foram elementos fundamentais no
processo de decisão política, que resultou na edição da Resolução nº 305 do CONAMA.
Ainda que a polêmica a respeito da soja transgênica esteja longe de acabar e que o
atual governo continue a tratar o tema com uma notável ambigüidade, como se constata
da leitura do texto da Medida Provisória nº 113/200311, o certo é que cada vez menos
vozes discordantes se levantam contra a aplicação do princípio da precaução na
biossegurança, embora não esteja claro o que cada um dos atores envolvidos nesta
controvérsia entende como medidas necessárias para a aplicação efetiva do princípio.
Hoje, não há dúvida de que foi, na melhor das hipóteses, precipitada a aprovação
pela CTNBIO do plantio, em escala comercial, da soja round up ready, sem as normas de
segurança alimentar e de rotulagem, sem um regime de segregação dos grãos orgânicos,
convencionais e geneticamente modificados e sem licenciamento ambiental.
3.2 O caso dos experimentos com plantas bioinseticidas
Outro caso judicial de grande significação para o princípio da precaução foi
apresentado pelo Ministério Público Federal, em Brasília, por meio de ação civil pública
contra a União Federal por não exigir o Registro Especial Temporário (RET) das
empresas de biotecnologia, autorizadas a realizar plantio, em regime de contenção ou
caráter experimental, de OGMs que funcionem como bioinseticidas 12.
11
12
A MP nº 113/2003 foi convertida na Lei nº 10688/03.
Processo nº 2001.34.00.010329-1/DF – 14ª Vara Federal da Seção Judiciária de Brasília/DF
A Procuradoria da República, no Distrito Federal13, questionou à Justiça Federal
se as plantas que metabolizam, por meio da engenharia genética, bacilo, bactéria ou
fungo e, com isso, adquirem características novas que possam exterminar insetos
considerados nocivos à lavoura, como o bacilus thurigiensis (BT), poderiam ou não ser
consideradas como bioinseticidas, nos termos da Lei 7.802/8914.
No curso da instrução do processo, foi juntado ofício do Instituto Brasileiro do
Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (IBAMA), entendendo que o milho
guardian caracteriza-se como um afim “por constituir um agente de processo biológico
destinado a preservar uma cultura agrícola da ação danosa de seres vivos considerados
nocivos”, informação esta ratificada pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária
(ANVISA).
No entanto, a Coordenação de Fiscalização de Agrotóxicos, do Ministério da
Agricultura e Abastecimento, em resposta a ofício do Ministério Público, afirma nos
autos que o milho transgênico guardian, resistente a insetos, não possui Registro
Especial Temporário para pesquisa e experimentação em campo, conforme exigência
constante no Decreto 98.816/90 15, ressaltando o próprio Órgão que o “milho transgênico
com ação bioinseticida deverá sofrer o mesmo processo de análise e registro dos
agrotóxicos e afins”.
O mais interessante desse caso é que o Ministério Público Federal não sugeriu ou
interpretou nada de novo para exigir o RET das empresas interessadas em realizar
experimentos com plantas bioinseticidas. De fato, ao instruir um Inquérito Civil Público
(ICP), foram requisitadas informações ao IBAMA, Secretaria de Defesa Agropecuária e à
ANVISA, a respeito de dois pontos: a) se o milho guardian ou qualquer planta que
funcione como bioinseticida poderia ser considerado um agrotóxico ou afim, na forma da
13
A ação civil pública foi proposta pelos Procuradores da República Aurélio Virgílio Veiga Rios e
Alexandre Camanho de Assis.
14
A lei define, em seu artigo 2º, inciso I, alínea a, como agrotóxicos e afins “os produtos e os agentes de
processos físicos, químicos ou biológicos, destinados ao uso nos setores de produção, no armazenamento e
beneficiamento de produtos agrícolas, nas pastagens, na proteção de florestas, nativas ou implantadas, e
de outros ecossistemas e também de ambientes urbanos, hídricos e industriais, cuja finalidade seja alterar
a composição da flora ou da fauna, a fim de preservá-las da ação danosa de seres vivos considerados
nocivos” (grifamos).
15
Art.18. “O Registro Especial Temporário será exigido para novos agrotóxicos, seus componentes e afins
destinados à pesquisa e experimentação, quando ainda não registrados para os fins de produção,
comercialização e utilização no País."
Lei nº 7802/89 e Decreto nº 98816/90; b) e, em caso positivo, se era ou não obrigatório o
RET como condição para liberação dessas plantas geneticamente modificadas.
Em razão dos três Órgãos terem respondido SIM às duas questões apresentadas
pelo Ministério Público Federal, foi enviada Recomendação à CTNBio, a fim de que
somente expedisse, editasse e publicasse Comunicado ou Parecer Conclusivo sobre a
liberação planejada de organismos geneticamente modificados que pudessem ser
considerados biopesticidas, após o pesquisador ou entidade proponente demonstrar
possuir o Registro Especial Temporário. Além disso, foi solicitado na recomendação que
a Secretaria de Defesa Agropecuária (SDA) e o IBAMA promovessem a interdição dos
cultivos experimentais em andamento, até sua regularização.
Como não foi atendida a recomendação do parquet, nem houve qualquer
justificativa por parte da CTNBio para não cumpri-la, tornou-se indispensável a
proposição da ação civil pública para sanar as irregularidades identificadas nos cultivos
de sementes transgênicas que funcionam como agentes biológicos para controle de
pragas, tendo sido expressamente requerida a condenação da União, por meio da
Secretaria de Defesa Agropecuária do Ministério da Agricultura, a proceder o imediato
cancelamento das autorizações de cultivos já expedidas em caráter experimental, no
país, que tenham sido ou não autorizadas pela CTNBio, de sementes geneticamente
modificadas que pudessem ser consideradas agrotóxicos ou afins, sem que o pesquisador
ou entidade proponente estejam de posse do Registro Especial Temporário.
Sob a alegação de que tais plantas geneticamente alteradas produziam riscos
incertos a uma grande variedade de insetos, que não necessariamente sejam considerados
nocivos a lavouras ou que poderiam criar resistência a bacilos e bactérias, tornando-se
superpragas, novamente evocou-se o princípio da precaução para fundamentar as
medidas necessárias para exigir mais estudos para se conhecer melhor os efeitos dessas
plantas, no meio ambiente e na saúde humana, mediante exigência de registro especial
para utilização de bioinseticidas, considerados pela lei brasileira como agrotóxicos.
O Ministério Público Federal requereu que fosse determinado à CTNBio que não
procedesse a nenhuma análise referente à biossegurança de cultivares geneticamente
modificados (entre outros, milho, soja, algodão e cana-de-açúcar) que receberam o gene
de resistência a insetos, transportado da bactéria denominada Bacillus thurigiensis, que
pudessem ser assim considerados agrotóxicos ou afins, segundo os ditames estabelecidos
pela Lei 7.802/89 e pelo Decreto 98.816/90, sem que tenham previamente obtido o
Registro Especial Temporário, sob pena de multa diária de dez mil reais.
Por fim, foi solicitado ao Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos
Naturais Renováveis – IBAMA que procedesse à fiscalização dos locais que contivessem
cultivares geneticamente modificados (entre outros, milho, soja, algodão e cana-deaçúcar), adotando as medidas administrativas de sua alçada, nos termos da Lei nº.
9.605/98 e do Decreto nº. 3.179/99, àqueles plantios sem o devido registro.
Ao examinar a ação civil pública, o Juiz Federal Charles Renaud Frazão de
Moraes deferiu a liminar e depois julgou-a procedente em parte, condenando a União
Federal a suspender todas as autorizações para cultivo de quaisquer sementes
geneticamente modificadas, com características de agrotóxicos ou afins, em que os
interessados não detenham o RET, bem como não sejam mais emitidos Pareceres por
parte da CTNBio sobre a biossegurança de cultivares que receberam o gene de resistência
a insetos, transportado da bactéria Bacillus thurigiensis.
Para que não haja dúvida de que o Juiz Charles Frazão de Moraes, ao apreciar o
pedido de liminar, invocou o princípio da precaução como fundamento de sua decisão,.
deve ser lembrada a seguinte passagem de seu despacho:
Igualmente faz-se presente o periculum in mora, ainda mais quando a
questão subjacente ao objeto do processo tenha relação direta com a
incolumidade física dos seres humanos e a salvaguarda do meio ambiente, já que
não se sabe a real dimensão dos efeitos advindos da manipulação de organismos
geneticamente modificados na saúde das pessoas e seu efeito nos demais
organismos vivos.
Nota-se que a referida sentença judicial, que incorpora ao direito aplicado o caso
do princípio da precaução, encontra-se ainda em vigor, em que pese a existência de
recurso junto ao Tribunal Regional Federal da 1ª Região por parte da União e da empresa
Monsanto, esta na qualidade de assistente.
No caso em questão foi levantada a polêmica sobre a natureza jurídica do
“parecer técnico prévio conclusivo”, emitido pela CTNBio
16
16
, quando da apreciação do
A Comissão Técnica Nacional de Biossegurança é um órgão composto por especialistas de notório saber
científico, criada como instância colegiada multidisciplinar, com a finalidade de prestar apoio técnico
agravo de instrumento que a União Federal interpôs contra o despacho que concedeu a
liminar solicitada pelo Ministério Público.
O Tribunal Regional Federal de Brasília teve, então, a oportunidade de enfrentar a
nova MP 2137/2000 e suas reedições, por meio de decisão monocrática do Dr. João
Batista Moreira
17
, que ratificou a posição do Ministério Público Federal, no sentido de
que a CTNBio é um órgão consultivo que não integra o SISNAMA, sendo apenas porta
de entrada dos pedidos de autorização de cultivo de sementes transgênicas:
(...) Não se vê como o parecer técnico da CTNBio (indispensável, aliás,
para a emissão, pelo órgão competente, do Registro Especial Temporário) possa
em si mesmo constituir ilegalidade. O parecer técnico ainda não é o ato de
liberação do cultivo, a menos que seja distorcida sua finalidade. Nas palavras
de Paulo Affonso Lema Machado, “o parecer não subordina imperativamente os
demais Ministérios, tanto que conservam eles a competência para conceder ou
negar autorizações, e o parecer da CTNBio não se transforma juridicamente
em autorização “ (Direito ambiental brasileiro, 9 ed., São Paulo: Malheiros,
2001, p. 916). ... “As autorizações mencionadas só poderão ser expedidas após ter
sido ouvida a CTNBio, a qual deverá emitir parecer prévio conclusivo. Os
Ministérios deverão levar em conta na motivação das autorizações o referido
parecer, mas não estão vinculados ao mesmo. Para não seguir o parecer da
CTNBio, a Administração Federal deve apresentar razões fundamentadas no
interesse da vida e da saúde do homem, dos animais, das plantas, bem como do
meio ambiente (art. 1º da Lei 8.974/95)” (Ibid., p. 920).
Acrescenta o renomado autor: “Os atos administrativos - registro e
autorizações - a serem realizados pelos Ministérios, são atos complexos, pois
exigem a juntada do parecer da CTNBio. Os Ministérios - desde que
fundamentem de forma satisfatória suas decisões - podem decidir contra os
consultivo e de assessoramento ao Governo Federal, na formulação, atualização e implementação da
Política Nacional de Biossegurança relativa a OGM, bem como no estabelecimento de normas técnicas de
segurança e pareceres técnicos conclusivos referentes à proteção da saúde humana, dos organismos vivos e
do meio ambiente, para atividades que envolvam a construção, experimentação, cultivo, manipulação,
transporte, comercialização, consumo, armazenamento, liberação e descarte de OGM e derivados", à qual
compete "emitir parecer técnico prévio conclusivo, caso a caso, sobre atividades, consumo ou qualquer
liberação no meio ambiente de OGM, incluindo sua classificação quanto ao grau de risco e nível de
biossegurança exigido, bem como medidas de segurança exigidas e restrições a seu uso, encaminhando ao
órgão competente para as providências a seu cargo" (art. 1º. -ª caput. E art. 1º. D, XIV, da Lei n.º 8.974/95,
com redação dada pela MP n.º 2.137-3/2001).
17
Despacho proferido no AI nº 2001.01.023273-6/DF -- 5ª Turma.
pareceres da Comissão, mas não podem decidir sem que os pareceres
conclusivos estejam anexados ao procedimento administrativo” (Ibid., p.
928).
É verdade que o art. 7º., § 1º., da Lei n.º 8.974/95, com redação dada pela
MP n.º 2.137-3/2001, estabelece que “o parecer técnico prévio conclusivo da
CTNBio vincula os demais órgãos da administração quanto aos aspectos de
biossegurança do OGM por ela analisado, preservadas as competências dos
órgãos de fiscalização de estabelecer exigências a procedimentos adicionais
específicos às suas respectivas áreas de competência legal”. Todavia, não se
pode olvidar que o objetivo do parecer é a proteção da saúde humana, dos
organismos vivos e do meio ambiente (art. 1º.) Logo, mesmo se admitida a
vinculação dos demais órgãos da administração, interpretação teleológica leva
a concluir que se limita aos aspectos destinados àquela proteção, ou seja, aos
pontos em que o parecer impede ou restringe o exercício de atividade
relacionada com OGM, não na parte em que libera o mesmo exercício”
(grifamos).
Esse importante precedente marca uma posição precautória da Justiça em relação
às plantas geneticamente modificadas, resistentes a insetos, e ainda serve como um
marco na definição dos poderes da CTNBio que, lamentavelmente, tem procedido com
pouca cautela, no exame dos pedidos de autorização para plantio experimental de
sementes transgênicas 18, como se verifica novamente, no processo da liberação do arroz
liberty link, no Rio Grande do Sul, em regime de contenção.
3.3 O caso do arroz liberty link
Neste caso, a Procuradora da República no Município de Rio Grande/RS, Anelise
Becker, propôs ação civil pública, impugnando o Comunicado da CTNBio que permitiu a
realização do cultivo experimental do arroz transgênico liberty link, de propriedade da
empresa AVENTIS, em face da ausência de autorização por parte dos três Ministérios
18
Em alentada Monografia para conclusão do Curso de Direito da Universidade de Brasília- UnB, sobre “A
Incorporação do Princípio da Precaução no Ordenamento Jurídico Brasileiro e sua Aplicabilidade ao Caos
de Liberação de Organismos Geneticamente Modificados no Ambiente”, Flávia Cristina Rodrigues
Barbosa, após analisar quatro pareceres da CTNBio sobre pedidos de liberação de OGM no ambiente,
afirma que as regras de precaução não foram observadas em nenhum deles e as “decisões foram tomadas
sem um estudo adequado, colecionando-se apenas informações disponibilizadas pelo próprio
interessado...baseadas nos argumentos de equivalência substancial e no fato de alguns países consumirem
transgênicos sem conseqüências negativas”. (UnB, 2002)
com competência para liberar sementes transgênicas. A Ação foi proposta em 22 de
março de 2000 e tinha por objeto a interdição do plantio de 0,8 ha do organismo
geneticamente modificado conhecido como arroz liberty link, desenvolvido pela Aventis
em sua Unidade Experimental do Arroz, situada no Distrito do Taim, Rio Grande.
O Ministério Público Federal questionou o parecer conclusivo favorável à
empresa AVENTIS, alegando que a mesma não poderia desenvolver qualquer atividade
com o arroz transgênico liberty link, porque tal documento constituiria mera peça técnica
que deveria estar acompanhada do pedido de autorização e de registro pelo interessado
aos órgãos de fiscalização dos Ministérios da Saúde, da Agricultura e do Meio Ambiente,
o qual não supriria a ausência de licenciamento ambiental, mais precisamente da
elaboração de prévio Estudo de Impacto Ambiental, nos moldes preconizados pela
Constituição Federal.
A ação civil pública reporta-se a precedentes do Tribunal de Justiça do Rio
Grande do Sul, lembrando que há situações de urgência e perigo que reclamam a adoção
de medidas de pronto, quando envolvem risco à vida e à saúde humana, dos animais e
das plantas e do meio ambiente, casos em que se recomenda a interdição, de plano, do
experimento de arroz transgênico, especialmente no que concerne à possibilidade de
surgirem problemas mais sérios com espécies aparentadas, que já são invasoras (arroz
vermelho e preto), por meio da aquisição de genes da cultura transgênica.
A ausência de um estudo de impacto ambiental imparcial e prévio a sua liberação
faria incidir, na espécie, o princípio da precaução, segundo o qual a ignorância quanto
às conseqüências exatas de certas ações, a curto ou longo prazo, tal como se dá no caso
da utilização de organismos geneticamente modificados, não deve servir de pretexto para
retardar a adoção de medidas, visando prevenir a degradação do meio ambiente, ou seja:
diante da incerteza ou da controvérsia científica atual, é melhor adotar medidas protetivas
severas a título de precaução do que correr riscos com a liberação incauta de sementes
transgênicas.
Em razão desses fatos e da possibilidade de danos imprevisíveis ao ambiente, o
Ministério Público requereu a antecipação liminar dos efeitos da tutela jurisdicional
pretendida, para que a ré Aventis Cropscience do Brasil Ltda., antes do amadurecimento
fisiológico das sementes de arroz transgênico e de arroz daninho e no prazo de 24 (vinte e
quatro) horas, eliminasse totalmente o experimento envolvendo arroz geneticamente
modificado que vinha desenvolvendo em sua Unidade Experimental do Arroz, situada na
rodovia BR 471, km 449, no Distrito de Taim, Município de Rio Grande/RS, sob pena de,
em não o fazendo no prazo fixado, “seja determinado por esse MM. Juízo que o IBAMA
o faça, incontinenti, às expensas da empresa ré.”
Por igual, foi requerido que a empresa Aventis Cropscience do Brasil Ltda. se
abstivesse de liberar o OGM arroz liberty link no meio ambiente, antes do atendimento a
todas as disposições legais aplicáveis à atividade, notadamente autorizações dos
Ministérios da Saúde, da Agricultura e do Meio Ambiente e licenciamento ambiental,
mediante elaboração de prévio Estudo de Impacto Ambiental, restringindo o plantio do
OGM arroz liberty link a áreas de contenção, definidas pela Instrução Normativa no 6 da
CTNBio, com o exclusivo fito de elaboração de EIA/RIMA, na forma preconizada pelo
artigo 225, § 1o, inciso IV, da Constituição Federal.
Por último, foi pedido na ação que a União Federal não autorizasse, pelos
Ministérios com competência de atuação na matéria , qualquer liberação do OGM arroz
liberty link no meio ambiente, fosse com finalidade experimental ou comercial, bem
como suspendesse as autorizações que, porventura, já tivessem sido expedidas, até que
seja elaborado o EIA correspondente e licenciada a atividade pelo IBAMA.
Embora o experimento tenha sido concluído, com a colheita do arroz
geneticamente modificado, a Justiça Federal declarou sua ilegalidade, com o argumento
de que o plantio foi realizado sem autorização dos Ministérios da Agricultura, do Meio
Ambiente e da Saúde, sem registro do Organismo Geneticamente Modificado (OGM) e
da empresa perante os mesmos Ministérios, sem licenciamento ambiental, sem Estudo de
Impacto Ambiental e sem Registro Especial Temporário do agrotóxico Glufosinato de
Amônio, associado ao OGM.
A Justiça Federal acolheu o pedido do Ministério Público Federal, determinando
que a empresa Aventis não liberasse no meio ambiente o OGM arroz liberty link, obtido a
partir do experimento, sem prévia autorização dos Ministérios da Saúde, da Agricultura e
do Meio Ambiente e licenciamento ambiental, mediante elaboração de prévio Estudo de
Impacto Ambiental, sob pena de aplicação de multa no valor de dez milhões de reais.
Quanto à União Federal, a Justiça exigiu que ela não mais autorizasse qualquer
liberação do OGM arroz liberty link no meio ambiente, seja com finalidade experimental
ou comercial, bem como suspendesse as autorizações que, porventura, já tivessem sido
expedidas, até que fosse elaborado o prévio Estudo de Impacto Ambiental (EIA),
correspondente e licenciada a atividade pelo IBAMA, sob pena de aplicação de multa, no
valor de dez milhões de reais.
Uma passagem de grande relevância para o tema deste artigo há de ser encontrada
no voto da ilustre Juíza Maria de Fátima Labarrére, ao justificar no Agravo Regimental
interposto pelo Ministério Público o alcance do princípio da precaução em relação ao
plantio experimental de sementes transgênicas:
(...) No caso em exame, a parte agravante conta tão-somente com a
licença do Ministério da Agricultura, inexistindo o estudo de impacto ambiental
prévio. O mero parecer favorável do CTNBio não supre a licença da autoridade
ambiental, notadamente nas atividades que importem na liberação de OGM, no
meio ambiente.
Neste sentido, cumpre enfatizar que o arroz liberty link se constitui
organismo geneticamente modificado que não está sendo plantado em regime de
contenção, importando em liberação, no meio ambiente, de resíduo de herbicida
Glufosinato de Amônio, gerando interação de organismos geneticamente
modificados (OGM) com o ecossistema e, conseqüentemente, a perda de controle
por dispersão, no meio ambiente.
Tampouco se tem conhecimento dos efeitos de toda esta gama de
alterações genéticas para a saúde humana. Decorre daí a imperiosa observância
ao princípio da precaução, basilar ao Direito Ambiental, traduzindo-se na
adoção de medidas protetivas ao meio ambiente, em face de situações cujo
potencial lesivo ainda seja ignorado pelos órgãos competentes.
Na verdade, as informações existentes a respeito do arroz liberty link revelam
que o fator de resistência ao herbicida gera maior produtividade. Evidencia-se,
portanto, o caráter nitidamente econômico das pesquisas, bem como a
ausência de provas no sentido de que este fator de resistência não acarretará
sérios gravames ao meio ambiente e à saúde humana e, ainda, a complexidade
da matéria que envolve questionamentos de ordem sanitária e efeitos a longo
prazo, tanto para o homem quanto para a natureza. (os grifos são nossos)
O êxito parcial do Ministério Público Federal, no caso do plantio experimental de
arroz transgênico, remete a questão ainda não resolvida da deficiência da análise técnica
por parte da CTNBio e da ausência de cumprimento dos princípios que regem as boas
práticas em biossegurança, dentre as quais se destaca a aplicação do princípio da
precaução.
3.4 O caso da importação de milho transgênico da Argentina
Por último, serão agora examinadas duas ações propostas pelo Ministério Público
contra a possibilidade de liberação de milho importado da Argentina, sob suspeita de ser
transgênico. A primeira ação civil pública foi proposta pelo Ministério Público Federal
em Brasília, por ocasião do polêmico caso da importação de milho transgênico da
Argentina, a fim de abastecer o mercado de frangos, no Nordeste. O propósito da ação era
declarar a nulidade do parecer técnico conclusivo emitido pela CTNBio19, favorável à
importação de grãos de milho geneticamente modificados, e para que dele não mais se
produzisse nenhum efeito.
Embora esta ação tivesse sido extinta em razão de uma conexão com outra ação
coletiva proposta em Pernambuco e toda a carga de milho ter sido desembarcada e
distribuída pelas empresas avícolas pernambucanas, é interessante repisar os argumentos
levantados pelo Ministério Público, para pedir a nulidade do Comunicado nº 113/2001,
da CTNBio.
A primeira crítica referia-se ao fato de que a decisão impugnada foi tomada por
iniciativa de um órgão público, mais especificamente do representante do Ministério da
Agricultura na CTNBio, que não poderia ter qualquer interesse na importação de grãos
geneticamente modificados, e não consta ter sido provocado por qualquer empresa
interessada na importação de uma variedade específica de milho transgênico.
Se não bastasse isso, o pedido formulado pelo representante do Ministério da
Agricultura, em nome dos importadores de milho, absolutamente genérico e abstrato, não
19
Comunicado nº 113/2001 da CTNBio
especificava a variedade de milho transgênico cuja liberação pleiteava, o que é
inaceitável no que se refere a produtos da engenharia genética.
Nessa hipótese, sustentou o Ministério Público que o pedido deveria ser feito caso
a caso, conforme determina expressamente o inciso XIV, do art. 1º-B, da MP nº
2137/2000, pois cada uma das variedades de milho transgênico existentes é produzida por
procedimento único, a partir da inserção, em um cromossomo do milho, de um gene
alienígena específico, que pode ter sido retirado de uma bactéria, de uma planta ou
mesmo de um animal, ativando no milho propriedades exclusivas do organismo em
questão.
Desse modo, uma avaliação genérica da segurança de um OGM, ou seja, a análise
de uma categoria abstrata de organismos erroneamente considerados como equivalentes,
e não de uma variedade específica, não pode ser considerada uma análise rigorosa, haja
vista que cada uma das variedades existentes exibe características próprias que impedem
sua equiparação às demais variedades e conseqüente classificação conjunta em uma
categoria uniforme.
De outro modo, é dizer que não existe propriamente uma categoria “milho
transgênico”, mas variedades do mesmo, cada uma com propriedades únicas que as
tornam substancialmente diferentes de todas as outras, assim como do milho
convencional. A CTNBio utilizou, assim, o conceito contestável cientificamente da
“equivalência substancial” para a avaliação de variedades transgênicas sem comparação
possível entre si ou com as variedades convencionais.
O parecer da CTNBio sugere ser o Ministério da Agricultura e do Abastecimento
o órgão responsável pela emissão de autorização para a importação de milho transgênico,
o que não se conforma como a Lei de Biossegurança (Lei nº 8.974/95), que exige a
autorização daquele Ministério tanto quanto dos Ministérios da Saúde e do Meio
Ambiente.
Em outras palavras, no ordenamento jurídico brasileiro, o poder de autorizar a
importação de OGM é ato complexo, conferido em conjunto aos Ministérios da
Agricultura, Saúde e Meio Ambiente, avaliando cada um deles os aspectos que lhe
concernem, sendo absolutamente indispensável que esses três órgãos estejam de acordo
com relação à segurança biológica e ambiental do organismo ou produto potencialmente
capaz de afetar negativamente a saúde da população, o meio ambiente ou o setor agrícola,
se admitido no território nacional.
Antes mesmo da entrada em vigor do Comunicado nº 113/CTNBio, as empresas
Avipal S.A. Avicultura e Agropecuária e Companhia Minuano de Alimentos importaram,
respectivamente, nove mil trezentas e nove toneladas e duas mil toneladas de milho de
procedência da Argentina, que se destinavam à alimentação animal e, indiretamente, à
alimentação humana, com forte suspeita de que se tratava de milho transgênico .
Em razão deste fato, a Procuradora da República Anelise Becker ingressou com
uma ação civil pública, na Vara Federal de Rio Grande/RS20, requerendo que a União
Federal se abstivesse de autorizar a internalização do produto, sua entrega aos
importadores ou sua utilização no território nacional, sob qualquer forma, antes da
realização, às expensas daqueles, de pelo menos três testes de detecção de transgenia, em
laboratórios distintos, como, por exemplo, o Laboratório de Fitopatologia Molecular Laboratório de Clínica Vegetal da Universidade Federal do Rio Grande do Sul; o
Laboratório de Biologia Molecular do Centro Nacional de Milho e Sorgo - EMBRAPA Sete Lagoas, MG; o Laboratório de Bioquímica da Universidade Federal do Paraná; e o
Centro de Pesquisa de Recursos Genéticos e Biotecnologia - CENAGEN/EMBRAPA,
Brasília, DF.
A liminar foi concedida pela Justiça Federal para que fosse impedido o
desembarque da carga de milho possivelmente transgênico, importado da Argentina, sob
o fundamento de que era justificável o receio do Ministério Público de que o ingresso de
grãos transgênicos no país poderia causar danos à saúde humana e ao meio ambiente.
Neste caso, houve um pedido de suspensão de segurança pelas empresas
interessadas ao então Presidente do TRF da 4ª Região, que foi deferido no sentido de
suspender os efeitos da decisão que embargou o desembarque da carga do milho
importado da Argentina, ao argumento de que o Superior Tribunal de Justiça e o governo
federal não estariam se opondo à importação de milho transgênico, em virtude da crise de
abastecimento que ameaçava o país.
20
Processo nº 2000.71.002767-5
Interessante e, até de certo modo, inusitado foi o fato de que, ao julgar o agravo
contra decisão do Presidente do Tribunal, a quase totalidade dos membros da Corte21
dissentiu de seu Presidente, dando provimento ao recurso do Ministério Público, sob o
fundamento de que era necessária a realização dos testes para a comprovação de eventual
transgenia no milho transportado pelas empresas e que, caso o resultado fosse positivo,
não seria possível a liberação ao meio ambiente sem o EIA/RIMA, expressamente
previsto pela legislação do estado do Rio Grande do Sul.
Vale lembrar que vários juízes que participaram do referido julgamento fizeram
menção explícita ao princípio da precaução para afastar o argumento, levantado pela
União Federal e pelas empresas do ramo, de que não haveria risco à saúde ou ao meio
ambiente com a liberação da carga de milho e que ela seria necessária a fim de evitar uma
grave crise de desabastecimento de grãos no país.
Em cumprimento à decisão judicial, os navios voltaram ao porto de origem, mas
lamentavelmente a grande parte da carga de milho, reconhecidamente atestada como
transgênica, já tinha sido desembarcada no porto de Rio Grande/RS. De qualquer modo,
este importante precedente oriundo do TRF da 4ª Região ocorreu, em boa parte, pela
atuação firme do Ministério Público Federal, no Rio Grande do Sul, e também pela força
atrativa do princípio da precaução, no caso concreto.
Não obstante terem sido, em parte, acolhidos os pedidos de suspensão da
importação de milho de países sem nenhuma restrição à biotecnologia pelo Ministério
Público, não houve ainda a revogação tácita ou expressa do Comunicado nº 113/200, não
tendo a Justiça ainda se pronunciado sobre seu mérito.
A análise acurada dos casos judiciais aqui estudados atesta a ausência da
precaução e da necessária imparcialidade por parte dos membros da CTNBio,
especialmente quando há fortes interesses econômicos em jogo, como circunstâncias
recorrentes nos diversos processos de liberação de OGM. As omissões procedimentais e
as opções técnicas ou políticas adotadas pela Comissão são firmemente questionadas em
todos os processos referidos neste artigo.
21
Agravo na Suspensão de Execução da Liminar nº 2000.04.01.13912-9/RS – Relator para o Acórdão o
Juiz Volkmer de Castilho, cujo voto foi acompanhado por 19 (dezenove) juízes contra 04 (quatro) que
negaram provimento ao agravo.
Recentemente, a 5ª Turma do TRF da 1ª Região teve a oportunidade de julgar o
Agravo Regimental interposto pelo IDEC, Greenpeace e Ministério Público Federal, no
caso da soja transgênica, ficando consignado no voto do Dr. João Batista Moreira,
Desembargador Federal, que “a Comissão Técnica Nacional de Biossegurança se
ressente de suficiente legitimidade democrática e não possui independência para
decidir a matéria em caráter conclusivo e vinculante, uma vez que composta de membros
designados discricionariamente pelo Ministro de Estado da Ciência e Tecnologia, sem
controle do Poder Legislativo” 22 (grifamos).
4. Considerações Finais
Antevejo nas decisões já tomadas pela Justiça, em especial pelos Tribunais
Regionais Federais, uma tendência forte e dirigida no sentido de incorporar o princípio da
precaução, mediante a obrigatoriedade do EIA e do licenciamento ambiental, como
condição para o cultivo de sementes transgênicas.
Ainda que seja considerada precipitada e até premonitória essa impressão aqui
relatada, uma vez que não houve ainda pronunciamento sobre a questão por parte do
Supremo Tribunal Federal ou do Superior Tribunal de Justiça, esta convicção se baseia
em dois fatos. O primeiro, o da existência de uma sociedade de risco que demanda
medidas de precaução contra ameaças incertas e ainda não mensuradas de danos ao meio
ambiente e à saúde humana, aliada à crescente preocupação planetária com os efeitos
diretos e colaterais da poluição química e biológica.
O segundo fato é que um número cada vez maior de operadores do direito, em
especial promotores, procuradores e juízes de todas as instâncias, se interessa pelas
questões ambientais e pelo estudo dos princípios gerais do direito ambiental, dos quais o
princípio da precaução, por estar em permanente processo de construção e consolidação,
22
Na referida decisão proferida no Agravo Regimental, na Apelação Civil nº 1998.34.00.027682-0/DF
(caso da soja transgênica), em 08 de setembro de 2003, que revogou o despacho da Juíza Selene Almeida,
que emprestava efeito suspensivo à apelação da União e da Monsanto, o Dr. João Batista Moreira afirmou,
enfaticamente, que “é evidente a vulnerabilidade dessa entidade decisória (CTNBIO) às pressões políticas e
econômicas. Seus membros estão humanamente sujeitos, mais que nas agências reguladoras, à cooptação
por grupos de interesses, justamente num setor econômico que envolve vultosos investimentos e lucros
transnacionais. Não é preciso ir longe para constatar essa vulnerabilidade. Basta ver que, no governo
anterior, era ostensivo o interesse da União, por meio do Poder Executivo - que designa os membros da
entidade -, na liberação do cultivo da soja geneticamente modificada. Lembre-se de que até houve
veemente sustentação oral em favor da manutenção do ato da CTNBio, ao início do julgamento, pelo ilustre
Procurador-Geral da União”.
é um dos mais fascinantes e, por isso, tem sido objeto de constantes pesquisas e de
debates instigantes, na comunidade acadêmica.
A insistência em negar essa evidência, recusando o governo a proceder ao
licenciamento ambiental, significará mais atraso e inútil protelação para a própria
biotecnologia, ampliando os prejuízos que algumas empresas já sofrem em decorrência
da indefinição do governo em assumir claramente as regras para a futura liberação, em
escala comercial, de organismos geneticamente modificados no ambiente e nos
supermercados.
Se nem a crise sem precedentes de geração de energia elétrica foi capaz de
dispensar o licenciamento ou afastar a competência do CONAMA para regulamentar os
novos prazos e processos simplificados de EIA/RIMA, por que seria diferente com as
plantas geneticamente modificadas? E qual a razão de não se dar a um princípio do
direito ambiental o valor a ele expresso em sucessivas convenções internacionais e a
eficácia de que necessita todo o princípio, para que não seja retórica política vazia e sem
conteúdo prático ?
Está na hora de meditarmos sobre quem, de fato, está postergando a biotecnologia
no Brasil. Serão o Ministério Público, as Organizações não-governamentais, a Justiça que
exigem o licenciamento ambiental de OGM ou o governo e as empresas que se negam a
fazê-lo, postergando a possibilidade de uma liberação futura, planejada e condicionada
aos termos da lei, de OGM no país?
Referências Bibliográficas
BECK, Ulrick in “Risk Society and the Provident State” in Risk, Environment and Modernity -­‐ Towards a New Ecology. London : Scott Lash, Branislaw Szersynsky and Brian Wynne, Sage Publications, 1996. RODRIGUES, Flávia Cristina. A Incorporação do Princípio da Precaução no Ordenamento Jurídico Brasileiro e a sua Aplicabilidade aos Casos de Liberação de Organismos Geneticamente Modificados no Ambiente. Trabalho apresentado na Universidade de Brasília, para obtenção do título de Bacharel em Direito. Brasília: UnB, 2002. Capítulo 15
A Legitimidade da Governança Global Ambiental e o Princípio da
Precaução
Ana Flávia Barros Platiau*
1. Introdução
O sistema internacional tem evoluído rapidamente, imprimindo importantes traços
na evolução do direito internacional ambiental. O principal deles talvez seja a maior
participação de atores cada vez mais livres do jugo do Estado soberano na regulação de
problemas ambientais1. O segundo é a difícil convivência com vizinhos/concorrentes
comerciais à medida que as fronteiras são paulatinamente atravessadas pelos fluxos
internacionais e transnacionais que geram impactos ambientais desconhecidos pela
ciência. O terceiro é a conscientização desses atores de que suas atividades precisam ser
reguladas, para o bem comum, numa perspectiva construtivista das relações
internacionais.
Dessarte, o direito internacional em geral, e o direito internacional ambiental em
particular, evoluem num contexto tecnológico complexo, que põe em questão a
necessidade de uma governança ambiental global e o estatuto do princípio de precaução.
Em outros termos, a consagração do princípio de precaução parece evoluir em função das
apreensões que o progresso tecnológico suscita. Como bem explicou Hans Jonas na obra
Le Principe Responsabilité, o homem reage em função dos poderes que adquire sobre a
natureza e das grandes mudanças ambientais que pode causar, ao passo que antigamente
apenas as forças da natureza tinham grande impacto sobre a própria natureza.
Todas essas considerações nos conduzem a uma só questão: como organizar a
profunda interdependência entre atores, entre diferentes setores de atividades, entre meio
ambiente e atividades antrópicas, entre o Norte e o Sul do planeta, e entre interesses
* Ana Flávia Barros-Platiau é Professora do Instituto de Relações Internacionais da Universidade de
Brasília e pós-doutoranda em direito internacional ambiental, com o Dr. Alexandre Kiss, Presidente do
Conselho Europeu de Direito Ambiental. Pesquisadora do CNPq. 1
O que tem alimentado debates sobre a privatização do direito internacional público e novos tipos de
regulação internacional, principalmente extrajudiciais.
transgeracionais?2 Dessa questão surgiu a necessidade de se pensar a regulação
internacional para a proteção ambiental, fundamentada em princípios jurídicos. É
exatamente nesse contexto de grandes inovações jurídicas3 e políticas4 que se
desenvolveu o princípio da precaução.
Dessarte, o objetivo do presente texto é o de explicar os limites da aplicação do
princípio da precaução no contexto internacional em função da difícil governança global.
Por motivos de foco da pesquisa, esse texto preocupa-se exclusivamente com questões
vinculadas à biotecnologia, partindo da hipótese de que o princípio da precaução oscila
entre os campos jurídico e político5, refletindo dinâmicas incongruentes de diferentes
tipos de atores. Nesse sentido, toma-se o caso de dois tipos de atores, a saber:
comunidade científica6 e sociedade civil global. Nota-se a intenção de não se distinguir
entre os setores público e privado, haja vista a profunda interação dos dois7. A escolha
dos atores fundamenta-se no interesse de demonstrar que cientistas e sociedade civil
global muito contribuíram para o debate inicial sobre o princípio em questão, mas o
direito e a política necessitam de um longo período de amadurecimento para incorporar
as demandas sociais aos seus respectivos desenvolvimentos, como ressaltaram Olivier
Godard e Nicolas de Sadeleer ao longo de suas reflexões sobre o princípio da precaução8.
Dessarte, a primeira parte do texto versa sobre a emergência do princípio da
precaução em função da pressão de atores internacionais, principalmente da comunidade
científica e depois a jurídica, refletindo demandas sociais difusas, enquanto a segunda
parte analisa os limites à efetividade do princípio por causa da fragilidade institucional
2
Ver contribuição do professor Alexandre Kiss nessa obra “Os Direitos e Interesses das Gerações Futuras e
o Princípio da Precaução”.
3
Dentre as quais o direito das gerações futuras ao meio ambiente sadio, o princípio de desenvolvimento
sustentável, o dever de informar e dar assistência em caso de catástrofe ambiental, a responsabilidade
objetiva, a penalização de crimes ambientais em certos países e a humanidade como destinatária das
normas ambientais.
4
Como por exemplo a participação de atores não-estatais na política ou em parceria com o Governo.
5
Ver Nicolas de Sadeleer, Environmental Principles: from Political Slogans to Legal Rules, Oxford,
Oxford University Press, 2002, 500 p.
6
Caberia aqui utilizar o conceito de “comunidades epistêmicas” de P. Haas, International Organization,
46, 01, Winter 1992. Ele analisou a comunidade de crenças e a influência dessas comunidades nos
processos decisórios em função da sua autoridade técnica.
7
Tal divisão entre o setor público e o privado seria interessante para o debate filosófico sobre quem é o
melhor garante da proteção do interesse comum, por exemplo. Entretanto, essa questão foge ao escopo do
texto.
8
Ver as suas respectivas contribuições nessa obra.
específica de questões ambientais e o peso atual do paradigma de competitividade
econômica-tecnológica, que mitiga as condições de possibilidade da governança global.
2. O Princípio da Precaução
O Princípio de precaução foi uma das mais ousadas inovações jurídicas do século
XX9, mas a sua efetividade permanece comprometida em função das diferentes
percepções que a sociedade civil global, a comunidade científica, os juristas e os
tomadores de decisão têm sobre o seu conteúdo e a sua aplicação. Contudo, à primeira
vista, o princípio é simples porque inscreve-se na lógica da evolução do direito
ambiental, de privilegiar a reparação e a prevenção de danos no lugar da tradicional fase
de repressão de condutas lesivas ao meio ambiente. Além disso, é um princípio
fundamentado no bom senso, como defendeu o matemático Peter Saunders, pois orienta
que as atividades potenciais causadoras de riscos ambientais graves devem ser evitadas,
mesmo que ainda não haja certeza científica acerca dos riscos envolvidos.
Assim, em 1992, o princípio da precaução foi consagrado na Declaração do Rio
de Janeiro sobre o Meio Ambiente e o Desenvolvimento:
Princípio 15: “De modo a proteger o meio ambiente, o princípio da precaução
deve ser amplamente observado pelos Estados, de acordo com suas capacidades. Quando
houver ameaça de danos sérios ou irreversíveis, a ausência de absoluta certeza científica
não deve ser utilizada como razão para postegar medidas eficazes e economicamente
viáveis para prevenir a degradação ambiental”.10
Entre os grandes entraves à sua compreensão e uma subseqüente criação de
consenso internacional, estão, em primeiro lugar, a diversidade de interpretações quanto
ao seu sentido, como demonstra a sua utilização em diversos diplomas legais
multilaterais ou bilaterais, sobre temas como a pesca, a poluição, a biossegurança e
outros. A própria definição do princípio gera controvérsias entre doutrinadores. Se para
alguns o princípio de precaução é similar ao princípio da prevenção11,12, como foi
9
Kiss, A.; Beurier, J.P. Droit International de l’environnement, Paris, Pedone, 2000, p.121.
<http://www.sds.sc.gov.br/Legislacao/DeclaracaoRio.doc>.
11
Freestone, D. “International Fisheries Law Since Rio”, in: Boyle, A. e Freestone, D. International Law
and Sustainable Development, 1999, 377 p, p. 135-164.
12
São exemplos Sirvinskas, L. Manual de Direito Ambiental, São Paulo, Saraiva, 2003 e Fiorillo,C. Curso
de Direito Ambiental Brasileiro, São Paulo, Saraiva, 2003.
10
formulado na Declaração de Bergen13, de 15 de maio de 1990, para outros ele foi criado
justamente para completar lacunas do princípio da prevenção14, podendo, inclusive,
implicar a inversão do ônus da prova segundo as interpretações mais extremistas15. Ou
seja, o princípio da precaução pode ser considerado como um princípio pouco efetivo
para os menos entusiasmados e até como um princípio legitimador de moratórias à
atividade inovadora para os mais eufóricos. Além disso, Weintraub16, por exemplo,
defende que não se trata de inversão do ônus da prova porque ela já é estabelecida para o
ator que propõe a atividade, e não para as potenciais vítimas.
Certo é que a definição do princípio de precaução ainda alimenta debate entre
políticos, jurisconsultos e filósofos. Bruno Latour já havia alertado, em 2000, que o
princípio de precaução era uma invenção útil, mas frágil, e estaria arriscada à banalização
e a ser confundida com a sabedoria milenar da prudência, como defendeu J.J. Salomon17.
Dizia ele que precaução era uma versão moderna de prudência aristotélica. Mas há uma
dimensão inovadora do princípio da precaução que o distinguiu da prudência: é a noção
da incerteza do saber sobre um risco não demonstrado. Daí a diferença entre princípio da
precaução e da prevenção, pois esse último é relativo a um risco certo, que pode ser
assegurado. Para Lecourt, a necessidade de utilização do termo “precaução” adveio
porque a “base da relação moderna entre a ciência e a ação está em perigo, do fato da
situação de incerteza dos tomadores de decisão quanto à realidade e à gravidade dos
riscos corridos”.
Entretanto, grande parte dos doutrinadores o consideram hodiernamente como um
princípio complementar ao princípio da prevenção, cuja maior diferença é a questão da
natureza do risco, que não necessita ser cientificamente provado no caso da precaução
13
A Declaração Ministerial de Bergen Sobre o Desenvolvimento Sustentável foi o primeiro ato
internacional a utilizar o princípio de precaução na sua aplicação geral. Ver Tinker, C. “State responsibility
and the Precautionary Principle” in: FREESTONE, D. ; HEY, E., op. cit., 1996, p. 53-71.
14
Daillier, P.; A. Pellet, (Nguyen Quoc Dinh) Droit international public, 6 ed., Paris: LGDJ, 2000, 1455 p.
15
Como a convenção de Oslo “Prior Justification Procedure”. Ver OSCOM decision 89/1 de 14/06/1989
sobre depósito de lixo no mar.
16
“Science, International Environmental Regulation and the Precautionary Principle: setting Standars and
Defining Terms”, in: 1 New York University Environmental Law Journal, 173, 1992, p. 204-209.
17
Survivre à la science: une certaine idée du futur - apud Lecourt, p. 26.
para que medidas protetivas sejam tomadas. Assim, a definição consagrada nesse texto é
a de Kourilsky e Viney18.
Segundo, a sua consagração em regimes internacionais ambientais ainda é tímida,
porque o debate acerca do princípio e de sua utilização é muito complexo, como ficou
claramente demonstrado nas negociações multilaterais para a elaboração do Protocolo de
Cartagena sobre Biossegurança. Isso porque o Grupo de Miami, por exemplo, aceitou que
o princípio fosse consagrado, mas não que ele fosse utilizado como um argumento para a
recusa de importação de transgênicos19. Ademais, as instituições internacionais que lidam
com questões ambientais são frágeis e limitadas pela vontade política dos Estados.
Terceiro, o princípio de precaução insere-se no contexto de regulação
internacional sob a égide de um paradigma dominante que não é ambiental, mas sim
econômico e tecnológico, no qual a interação entre atores públicos e privados é tão
intensa que não nos autoriza mais a fazer uma clara distinção entre as duas esferas
sociais20. Conseqüentemente, os regimes ambientais possuem uma grande quantidade de
normas declaratórias (soft norms), com baixo grau de precisão, de obrigação e de
delegação21. Além disso, há divergências sobre a aceitação do princípio de precaução
como direito costumeiro.
Nesse sentido, o princípio de precaução foi consagrado no direito internacional
ambiental com a missão de dotar legisladores e líderes políticos de um instrumento de
regulação internacional da inovação tecnológica e da atividade antrópica de uma maneira
geral. Porém, foi criado dentro de um contexto jurídico que evolui lentamente em
18
Le principe de précaution, Odile Jacob 2000 (Rapport remis au Premier Ministre le 15/10/1999).
Segundo o Relatório, trata-se um novo princípio de responsabilidade que se aplica a toda pessoa que tem o
poder de iniciar ou parar uma atividade suscetível de trazer um risco para outrem.
19
Maljean-Dubois, S. “La régulation du commerce internationale des organismes génétiquement modifiés:
entre le droit international de l’environnement et le droit de l’Organisation mondiale du commerce”. In:
Bourrinet, J.; Maljean-Dubois, S. (dirs.) Le commerce international des organismes génétiquement
modifiés, Paris, La documentation française, 2002, p.
20
Edith BROWN-WEISS trata da evolução do direito internacional no sentido da convergência dos setores
públicos e privados. Ver também a apresentação de P. SANDS e D. KESSEDJAN no Colóquio do Centro
de Direito Internacional da Universidade de Paris X, França, 2 e 3 de março de 2001. Gherari, H. ; Szurek,
S. (dirs)"L'émergence de la société civile internationale. Vers la privatisation du droit international?
CEDIN - Cahiers Internationaux, tome 18, 2001, 350 p.
21
ABBOTT, K.; SNIDAL, D. “Hard and Soft Law in International Governance”. In: International
Organization, 54,3, summer 2000, pp. 421-456. Os autores definem três dimensões da legalização das
relações internacionais: obrigação, a precisão e a delegação, que são interdependentes.
comparação ao progressos da biotecnologia e da demanda social por certezas científicas
sobre essas questões.
3. O papel dos cientistas e da sociedade civil global
Apesar de os cientistas serem do que chamamos de sociedade civil global, eles
foram tratados à parte em função do papel estratégico que desenvolvem dentro da questão
da regulação internacional dos riscos biotecnológicos. Marion LEOPOLD fez um
interessante estudo sobre a percepção pública da biotecnologia22. Em 1974, os cientistas
publicaram uma carta na Revista Science23 sobre a necessidade de uma regulação pública
da atividade tecnológica. Assim, consideramos que a comunidade científica foi o
primeiro grupo a se mobilizar para a regulação pública de suas próprias atividades em
biotecnologia, a partir dos anos 1970, nos Estados Unidos. Essa iniciativa foi
extremamente importante porque marcou a irrupção definitiva da organização de experts
no debate político, e depois no jurídico, tanto no âmbito internacional como no nacional
de vários países ao mesmo tempo.
Em 1992, alguns cientistas assinaram uma Declaração sobre a regulação dos
riscos tecnológicos24. Nesse sentido, ficou patente uma das características do que se
considera aqui a “sociedade do risco” para falar como Ulrich Beck, qual seja, quando o
progresso tecnológico parece fugir do controle público. Portanto, o princípio ambiental
da precaução incorpora essa dimensão de temporalidade com vistas a evitar danos
ambientais sérios ou irreparáveis antes mesmo que eles possam ser comprovados pela
ciência.
Todavia, é de bom alvitre ressaltar que o progresso tecnológico atual não suscita
mais as mesmas dúvidas que há trinta anos atrás25, gerando uma verdadeira mudança do
papel da comunidade científica sobre o tema. Em relação à engenharia genética, essa
22
“Public Perception of Biotech”, in TZOTZOS, G. (ed.) Genetically Modified Organisms”, Walling Ford:
CAB international e UNIDO, 1995, 213 p.
23
BERG, P. et al “Potential Biohazards of Recombinant DNA Molecules”, Science, 1974, 185, 148, p. 303.
24
Ver, por exemplo, a análise de Philippe LEPRESTRE acerca da questão. Ecopolítica Internacional. São
Paulo: Senac, 2000.
25
CHRISTOFOROU, T. “Science, Law and Precaution in Dispute Resolution on Health and
Environmental Protection: What Role for Scientific Experts?”, In: BOURRINET, J.; MALJEAN-DUBOIS,
S. (dirs.) Le commerce international des organismes génétiquement modifiés, Paris, La documentation
française, 2002, p. 213-284.
mudança é clara26. Hoje em dia a comunidade científica de uma maneira geral tem um
discurso mais moderado sobre os riscos, e grande parte dela empenha-se em desmistificar
a produção de OGMs, pois faz duas décadas que são consumidos e até hoje não foram
comprovados riscos para a saúde humana27. Todavia, os riscos ambientais foram
deixados em segundo plano perante uma lógica comercial global cada vez mais forte.
Outra razão da grande importância da participação da comunidade científica no
debate público é explicada por Daniel Bodansky28. Ela tem um papel crucial na
legitimação do processo decisório, que ainda é muito frágil para as questões ambientais
globais. Porém, as decisões técnicas apresentam limites que o autor reconhece, pois
questões importantes relativas a conflitos socioambientais requerem julgamentos de
valor. Por exemplo, no caso de clonagem de seres vivos, as considerações morais, éticas e
filosóficas têm um peso importante no debate29.
Quanto à sociedade civil global, conceito emprestado a Paul WAPNER30, ela
engloba as interações acima do indivíduo e abaixo do Estado, ultrapassando fronteiras
nacionais e políticas. O papel do terceiro setor foi reforçado com a irrupção de questões
como a ambiental na agenda internacional, com o aval da ONU e de outras organizações
internacionais. Isto implica que atores antigamente nacionais passam a ser atores
internacionais no século XX, defensores do interesse público no cenário internacional,
principalmente quando esse interesse está intimamente ligado à sobrevivência da
humanidade. O maior exemplo dessa evolução são as ONGs, o que levou autores
contemporâneos a escrever sobre “redes trasnacionais”, como Keck e Sikkink31.
O papel da sociedade civil global também foi importante para o desenvolvimento
do princípio da precaução e a sua consagração em 1992, apesar de alguns autores
refutarem essa idéia argumentando que os atores do terceiro setor levaram anos para
26
BOURRINET, J. “De la hystérie anti OGM à la recherche d’une biovigilance internationale – Em deçà et
au-delà du commerce international d’orgaismes génétiquement modifiés”, In: BOURRINET, J.;
MALJEAN-DUBOIS, S. (dirs.) Le commerce international des organismes génétiquement modifiés, Paris,
La documentation française, 2002, p. 5-26.
27
Eduardo VIOLA, comunicação pessoal, Buenos Aires, 02 de agosto de 2003.
28
“The Legitimacy of International Governance: a Coming Challenge for International Environmental
Law?”, in: The American Journal of International Law, vol. 93, 596-624, 1999, p. 600.
29
Philippe LEPRESTRE defende a mesma idéia, op.cit.
30
"Global Civil Society". In: YOUNG, O. (ed.) Global Governance. Drawing Insights from the
Environmental Experience. Cambridge, Massachusetts, London, The MIT Press, 1997, 364 p, p 65-84.
31
Activists Beyond Borders: Advocacy Networks in International Politics. Ithaca: Cornell University Press,
1998.
entender o debate sobre a natureza do princípio, ou seja, que eram apenas representantes
de uma demanda amorfa de regulação internacional. Em todo o caso, há um certo
consenso sobre a imensa apreensão inicial da sociedade civil global com relação ao
progresso biotecnológico e o fato de atualmente o debate ter evoluído para termos mais
racionais, admitindo, inclusive, que muito do que foi questionado não é atinente aos
riscos da biotecnologia, mas sim como ela é apropriada por poderosos grupos
econômicos em detrimento do resto do mundo32. Contudo, a sociedade civil global acatou
o princípio da precaução como uma resposta jurídica, ou a “tradução de demandas sociais
para o campo jurídico” para falar como Olivier Godard, que poderia contribuir para a
regulação das atividades oriundas da biotecnologia.
De qualquer forma, a apreensão, pelo direito, do universo biológico, faz com que
as negociações sejam travadas em um “universo controverso”, para falar como Olivier
Godard33. A sua conclusão foi esquematizada na Tabela abaixo.
Tomada de Decisão em
Percepção
Tomada de Decisão em
Universo Estável (clássico)
Universo Controverso (ambiental)
Os agentes têm uma percepção
Predominância da construção
direta dos efeitos externos ou
científica e social dos problemas
de bens coletivos. Suas
sobre a percepção direta dos
preferências são bem
agentes.
informadas.
Interesses
Apenas os interesses ou
A representação separada dos
preferências dos agentes
interesses de terceiros (e ausentes)
presentes são pertinentes.
está em questão: outros Estados,
espécies ameaçadas, gerações
futuras, etc...
Procedimentos
Os agentes dispõem de
Os porta-vozes são contraditórios
procedimentos sociais
ou até inexistentes
adequados para exprimir suas
32
Esse debate é pertinente no Brasil para o caso das sementes transgênicas e na França, para o caso da
recusa de importação de carne bovina com hormônios dos Estados Unidos.
33
“Stratégies industrielles et conventions d’environnement: de l’univers stabilisé aux univers
controversés”, Environnement, Economie, INSEE, Méthodes, n. 39-40, p. 145-174.
preferências: mercados, votos,
manifestações, conflitos.
A ciência se estabilizou sobre
Ainda subsistem inúmeras
Conhecimento
aspectos de problemas
controvérsias sobre os aspectos
científico
pertinentes para a ação: cadeias essenciais do problema pertinente
causais elucidadas, danos bem
para a ação.
definidos, imputação clara de
responsabilidades.
Reversibilidade
São reversíveis : podemos
Por causa de uma potencial
esperar um desenvolvimento
irreversibilidade, e da própria
dos fenômenos em suficiente de conhecimento
natureza das questões ambientais,
causa
para tomar decisões conformes
alguns estimam que é necessário
às exigências do modelo de
agir imediatamente, sem esperar a
racionalidade substancial
estabilização do conhecimento
(análises custo-benefício).
(consenso ou certeza científica).
Isso explica a criação do Princípio
de precaução.
Os conhecimentos científicos
Teorias Científicas estabilizados constituem um
As “visões do mundo e do futuro”
são variáveis estratégicas que
mundo comum para todos os
engendram novas formas de
atores, de modo precedente à
competição.
ação.
A eficácia econômica e a
O “enjeu” é a apropriação e a
O que está “em
equidade, baseadas em
utilização com menor custo dos
jogo”
interesses bem constituídos.
recursos naturais no âmbito de
uma regulação internacional em
vias de consolidação.
Finalmente, se a atuação da comunidade científica e da sociedade civil global foi
essencial para que o princípio da precaução fosse consagrado pelo direito ambiental
internacional, a efetividade desse princípio encontrou limites no contexto político
institucional do final do século XX. Prova disso são as diferentes interpretações dadas ao
princípio em regimes internacionais ambientais34, o que dificulta a governança global
relativa às questões ambientais35.
4. A legitimidade da governança global
Governança global é um conceito que tem sido debatido há décadas pelos grandes
intelectuais da área internacional, e no entanto, não há um único entendimento acerca do
conceito. O conceito implica a transparência e um bom tratamento das políticas públicas,
assegurando a participação de diversos tipos de atores sociais. Em fato, duas grandes
interpretações coexistem para a governança global. A primeira foi desenvolvida por
autores como James Rosenau36, que a define como o resultado da conscientização dos
indivíduos na esfera nacional de que a sua mobilização pode ter resultados políticos
importantes, portanto nem sempre um governo é necessário para a boa regulação de
questões internacionais, à condição de que haja consenso e comunidade de expectativas
das partes engajadas. Wapner, no mesmo sentido, defende que atores interessados criam
regras de conduta em nome da coexistência social harmoniosa, inspirada em mecanismos
de mercado além das práticas políticas. A segunda, como bem desenvolve Senarclens37,
ao contrário, entende governança global como mais uma inovação das Organizações
Internacionais reguladoras, notadamente o Banco Mundial e o Fundo Monetário
Internacional, para legitimar a ingerência nas políticas de Estados menos desenvolvidos.
Entretanto, o presente texto privilegia a primeira definição do conceito, que supõe uma
participação ampliada de atores preocupados com o bem público, nesse caso, a proteção
ambiental.
34
Ver o capítulo de Marcelo VARELLA sobre diferentes tratamentos ao princípio por cortes
internacionais.
35
BARROS-PLATIAU, A. F, VARELLA, M. D. – “O Princípio da Precaução e sua aplicação comparada
nos regimes da Diversidade Biológica e de Mudanças Climáticas”. Revista de Direitos Difusos, Instituto
Brasileiro de Advocacia Pública-IBAP/ADCOAS,vol. 12, 2002, p. 1587-1597.
36
Governança sem governo. No capítulo “ A Cidadania em uma ordem mundial em mutação”, ROSENAU
defende que uma demanda democrática conduz a uma ordem global cooperativa, e que a sociedade global
não apresenta uma estrutura dominante de cooperação e conflito, pois Estados, grupos sub-nacionais,
comunidades e grupos de interesses transnacionais disputam o apoio dos indivíduos. Além disso, os
indivíduos desenvolveram uma capacidade analítica das questões internacionais a ponto de permitir uma
ação coletiva quando as instituições sociais não são capazes de responder às suas demandas. Essas são as
micro-regulações que alimentaram o debate sobre governança global.
37
Mondialisation, souveraineté et théorie des relations internationales. Paris, Armand Collin, 1998, 218 p.
Nesse sentido, Bodansky38 considera que a Convenção de Aarhus sobre Acesso à
Informação, Participação Pública no Processo Decisório e Acesso à Justiça nas Questões
Ambientais de 1998 como uma vitória das organizações não-governamentais para
assegurar sua participação na política e no direito internacional público. Em outros
termos, seria um passo do direito no reconhecimento do que chamamos aqui de
governança global ambiental. Todavia, a participação das ONGs não significa a
participação da sociedade civil global, pois as primeiras não são necessariamente
representativas de um “interesse geral”, haja vista que muitas vezes as ONGs
representam apenas interesses de grandes setores produtivos, como no caso das normas
ISO. Com esse comentário, Bodansky derruba o “mito da participação” e impõe um sério
limite à governança global, revestida na questão da legitimidade dos representantes da
sociedade civil global.
Quando Bodansky alerta sobre o problema da legitimidade da governança global
para o direito internacional ambiental, ele está constatando a fragilidade das instituições
internacionais em matéria ambiental e a permanência de um direito internacional
ambiental profundamente tributário da vontade dos Estados soberanos. Caberia
complementar seu raciocínio com a natureza inovadora dos princípios ambientais.
Conseqüentemente, os princípios ambientais, como o princípio da precaução, são
limitados por esse contexto. Outra questão importante é a fraca participação de atores da
sociedade civil global nos processos decisórios, o que agrava o problema da legitimidade
da governança global.
Assim, à medida que a regulação das questões ambientais passa do ordenamento
nacional ao internacional, os regimes ambientais são criados mas são fracos, como as
instituições que os sustentam, e a falta de legitimidade faz com que tais instituições sejam
ineficientes, provocando uma observância das normas internacionais muito aquém das
expectativas. Em outros termos, há um círculo vicioso que condena as instituições
internacionais a uma posição de fragilidade nas questões ambientais. Se as fontes de
legitimidade para Bodansky são a democracia, a participação pública e decisões
38
Ele não ofereceu uma definição clara do que seria a governança global, mas considera que ela implica a
mudança de comportamento dos Estados soberanos em função das instituições internacionais, p. 618. Oran
Young defendeu uma idéia semelhante quando trata da eficácia das instituições internacionais em: “A
eficácia das instituições internacionais”,Governança sem governo. (Trad. Sérgio Bath). Brasília: Editora
Universidade de Brasília, 2000.
fundamentadas em parecer técnico, então o direito ambiental tem uma questão grave para
resolver. Primeiro, ele alerta que uma democracia global é inviável. Ademais, os
princípios de governança global, como transparência e acesso às informações são
importantes, mas não resolvem a questão de quem deve decidir e com deve fazê-lo. E
terceiro, o papel dos experts tem um limite no fato de que as incertezas científicas são
patentes quanto aos impactos da biotecnologia. Esses são os limites da legitimidade da
governança global, e enquanto não houver outra fonte de legitimidade, o direito
internacional ambiental continuará baseado no consentimento dos atores, na
reciprocidade entre eles e no interesse próprio. Conseqüentemente, o princípio da
precaução sofre os efeitos dessa difícil governança global.
5. Considerações Finais
O princípio da precaução foi criado dentro de um contexto internacional
complexo e em rápida evolução. Além dos grandes avanços tecnológicos, políticos e
jurídicos, a sociedade civil global testemunhou a maior participação de atores não-estatais
para a regulação das relações internacionais, e de questões ambientais especificamente.
Entretanto, esse contexto fértil para a consagração de grandes princípios ambientais
tornou-se, no final da década de 1990, o palco da mais profunda competição tecnológica
e comercial em termos globais. Conseqüentemente, o direito internacional ambiental
desenvolve-se em função da demanda social por um papel do Estado e das Organizações
internacionais como garantidores do interesse geral, mas também sob a pressão das
incertezas científicas causadas pelo próprio avanço tecnológico.
Nesse sentido, o princípio da precaução foi consagrado pela comunidade
científica e a sociedade civil global ao longo do século XX, mas o contexto tecnológico
do final do mesmo século fez com que o medo da biotecnologia de muitos de seus mais
ardentes defensores arrefecesse. Assim, o princípio parece estar alcançando, finalmente,
um status equilibrado entre moratória e controle público, e entre a prudência e a
confiança no progresso.
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