Osmose - Simplicíssimo

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Osmose - Simplicíssimo
Osmose - Simplicíssimo
Escrito por Marcos Claudino
Seg, 27 de Junho de 2005 19:03 - Última atualização Sáb, 01 de Dezembro de 2007 05:07
São Paulo, 27 de junho de 2005.
OSMOSE
Foi um solavanco, na rua Direita. Alguém mais apressado que ele esbarrou mais forte,
assustando-o, e aconteceu. Sua cabeça caiu. Rolou pelo calçadão, parando próximo ao
camelô que vendia pilhas a um real. Por sorte não caiu virada para o muro.
O certo é que pôde observar seu corpo indo em direção ao metrô. Gritou, chamou,
mas lembrou-se que ele não poderia ouvi-lo, pois suas orelhas estavam com ele, ou melhor,
com sua cabeça.
Deu sorte, pois com simples movimentos dos olhos, podia observar tudo o que se
passava na rua. Acalmou-se. Lá ia seu corpo sem cabeça, descendo a escada rolante da
Estação da Sé, pela mais pura e absoluta osmose. Imperceptível. Passavam por ele, e até
davam bom dia. Pivetes olhavam seus bolsos, engraxates miravam os pisantes, donzelas
olhavam o terno barato, mas a falta da cabeça não chamava a atenção de ninguém. Coisas de
cidade grande, muitas loucuras a pensar... Ou não...
O certo é que passou o dia todo a olhar o movimento nauseante do final da Rua
Direita. Rapas agitavam a gritaria dos ambulantes, atropelavam senhorinhas que tentavam
chegar ao Poupa Tempo, era a farra dos pivetes mais espertos que todos. A polícia passava a
pé, a cavalo, armada, em seu trabalho de colocar ordem no inordenável. Tudo aconteceu,
menos sua cabeça, sozinha num canto, perdida nos pensamentos, seu único bem nestes
momentos, foi notada. Passou até uma equipe de TV, que teve sua câmera roubada por uma
quadrilha conhecida... Mas, nada de perceberem uma cabeça só, sem corpo, sem sustento,
sem destino...
As horas passaram. Não sentia fome, pois isso é problema do corpo. Não sentia frio,
nem mesmo saudades ou amores, pois o coração estava em outro canto da cidade,
trabalhando por obrigação, por costume, por necessidade...
Ao final da tarde, já quase anoitecendo, olhou em direção à escada rolante. Lá vinha
ele, seu corpo, o terno amassado, a maleta marrom, os sapatos surrados. Chamou, gritou,
esgüelou-se, tentando chamar a atenção daquele corpo surdo e desleixado. Nada. Lá se foi o
corpo, e seus movimentos instintivos, em direção ao ponto de ônibus, na Praça Ramos de
Azevedo, encontrar a família, assistir TV, jantar, tomar um banho, fazer amor com a esposa
distante, virar-se para o lado e dormir...
A cabeça foi recolhida por um gari distraído, em meio aos outros lixos da rua. Hoje
encontra-se enterrada junto ao aterro sanitário, sem luz, sentindo o cheiro do gás metano
produzido incessantemente, ouvindo as máquinas trabalharem em torno dos catadores
famintos...
Seu corpo aposentou-se há dois anos, e hoje leva o cachorro para passear todas as
manhãs, recolhe o lixo à noite, dorme sempre às dez horas da noite, logo após a novela das
oito...
Marcos Claudino
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