Dossiê especial. Revista de Cultura Judaica
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Dossiê especial. Revista de Cultura Judaica
Ano AnoVIV- -número número2019- -Junho Fevereiro / Julho / Março / Agosto / Abril 2007 2007 - ISSN 1809-9793 Fábio Feldman e os caminhos do ambientalismo Em Darfur a história se repete como tragédia O que dizem os paulistanos sobre a Guerra do Líbano? Vilém Flusser Os Wolff: pioneiros Um Shabat Aracy Guimarães Rosa: da história inesperado no uma vida contra judaica no Brasil Rio Grande do Norte a injustiça Dossiê especial EDITORIAL Permanência de Vilém Flusser Conselho Editorial Ernesto Strauss, Flavio Mendes Bitelman, Luis S. Krausz, Michael Pinkuss, Raul Meyer, Yael Steiner Publisher: Flavio Mendes Bitelman Editor: Luis S. Krausz Direção de arte: Iaara Rosenthal Diretora de Relações Institucionais: Ana Feffer Executivo do Centro da Cultura Judaica: Giselle Tidei Administração: Adriane Oliveira Circulação: BrandMember Distribuição: Door to Door Gráfica: Ipsis Tiragem: 10.000 exemplares Colaboraram nesta edição: Alan Meyer (fotografia), Alfredo Schechtman, Anna Verônica Mautner, Bertrand Costilhes (ilustração), Carla Ogawa, David R. Krausz, Dov Bigio, Flávio Blasbalg, Graciela Karman (revisão), Heloísa Pait, Luis Dolhnikoff, Manuel da Costa Pinto, Márcia Zoladz, Márcio Seligmann-Silva, Marcos Alves (fotografia), Marleine Cohen, Nahum Sirotsky (Jerusalém), Nancy Rozenchan, Olívia Lerner (ilustração), Samuel Feldberg, Saul Kirschbaum, Susana Kampff Lages Capa: Vilém Flusser, foto: divulgação/Gustavo Bernardo Krause Impresso em papel Couché Reflex Matte 95 g/m2 (miolo) e 150 g/ m2 (capa) da Cia. Suzano, produzido com recursos renováveis. Cada árvore utilizada foi plantada para este fim. As matérias assinadas não necessariamente refletem a opinião da Revista 18 ou do Centro da Cultura Judaica Centro da Cultura Judaica – Casa de Cultura de Israel Rua Oscar Freire, 2500 São Paulo CEP 05409-012 Telefone (11) 3065 4333 E-mail: [email protected] Horário: de 2ª a 6ª feira, das 10h às 21h Sábados, domingos e feriados, das 14h às 19h Para receber nossa programação, envie um e-mail para divugaçã[email protected] 2 Revista 18 HÁ UMA VELHA E TRÁGICA LENDA segundo a qual, para ser reconhecido no Brasil, um intelectual, um artista, um cientista ou qualquer pessoa que se proponha a desbravar os próprios caminhos, precisa, primeiro, ser reconhecida na Europa ou nos Estados Unidos. Se a universalidade desta sabedoria proverbial é questionável, ela ao menos parece confirmar-se, uma vez mais, quando olhamos para a trajetória do filósofo Vilém Flusser, que veio de Praga para São Paulo, como refugiado, no início da 2ª Guerra Mundial e aqui permaneceu até completar 51 anos de idade, em 1972, quando se decidiu por um retorno à Europa. Flusser é hoje reconhecido no universo acadêmico – especialmente o de língua alemã – como um dos mais lúcidos teóricos da contemporaneidade, voltando-se sobre questões como a língua, a comunicação e a fenomenologia dos objetos. Como afirma Ricardo Mendes, um dos principais estudiosos brasileiros de Flusser, e responsável por um site dedicado à vida e à obra do filósofo, “a percepção sobre a obra de Vilém Flusser é radicalmente distinta na Europa e no Brasil”. Sua obra completa em alemão vem sendo publicada desde 1990 e seu pensamento é assunto de colóquios anuais, que são realizados com regularidade, na Europa, desde o começo dos anos 90. Pouco depois da morte de Flusser, em 1991, sua esposa, Edith e seus colaboradores mais próximos se empenharam na construção de um arquivo, que se tornou uma instituição alemã, intitulada Vilém Flusser Archive, primeiro instalada em Colônia e, desde janeiro de 2007, em Berlim. Entre nós, sua obra só aos poucos vai conquistando o espaço que merece. O recente lançamento de sua autobiografia filosófica Bodenlos, que foi escrita em português mas já existia em versão alemã há mais de quinze anos, é mais um passo na divulgação de uma obra que teve na vivência brasileira do autor, bem como na experiência do exílio, uma de suas mais importantes influências. Ao mesmo tempo, a realização de um colóquio na cidade alemã de Germersheim, no ano passado, que contou com a participação de vários estudiosos brasileiros, mostra a permanência e a relevância da obra de Flusser entre nós. Convidamos, por isto, alguns conhecedores e estudiosos do seu pensamento para comentarem e apresentarem, no dossiê especial desta 20ª edição da Revista 18, uma trajetória intelectual marcada pelo nomadismo, pela criatividade e pela percepção aguda dos paradoxos de nosso tempo. Esperamos, assim, poder divulgar o pensamento criativo de alguém que, nas palavras de Márcio Seligmann-Silva, “devorou” a cultura brasileira. Luis S. Krausz SUMÁRIO 38 Um diálogo cosmopolita com ENTREVISTA Ambientalismo e política, segundo FÁBIO FELDMAN 5 HAROLDO DE CAMPOS 41 BODENLOS, a autobiografia de um estrangeiro PERISCÓPIO LETRAS E ARTES 10 AL-QAEDA chega a Gaza, a sepultura de um herói, população israelense Os MUNDOS IMAGINÁRIOS de Alice Brill 44 OPINIÃO 12 Da arte de ser judeu, por ANNA VERÔNICA MAUTNER 48 O abandono da natureza, em novo romance de AMOS OZ 51 CONTOS DE BIALIK, em nova tradução do hebraico O REPÓRTER 14 A marcha de um GENOCÍDIO IGNORADO, 54 A política da inconsciência no pensamento de 20 Quarenta anos depois, os reflexos da 58 SERIEDADE JUDAICA, em Darfur GUERRA DOS SEIS DIAS 24 O que pensam os paulistanos sobre a GUERRA DO LÍBANO? HANNAH ARENDT em quadrinhos 61 Clássicos russos para o público infantil, por TATIANA BELINKY 28 A nova música das FESTAS JUDAICAS CULINÁRIA 62 O fio da memória, numa NO CENTRO Arte-educação e COEXISTÊNCIA 30 FORNADA DE BISCOITOS HUMOR 63 Surdo, EU??? DOSSIÊ INTERNET 34 Vilém Flusser viu o exílio como FORMA DE REDENÇÃO 65 O bom e o judaico, na seleção de DOV BIGIO Revista 18 3 CARTAS TENHO LIDO A REVISTA 18 de ponta a ponta. Há artigos de que gostei tanto que discuto com colegas, docentes univesitários. Um dos artigos de que gostei imensamente, pois até me indentifiquei foi “Uma biblioteca, muitos donos”. Outro de que gostei muito foi sobre o escritor Scholem Aleichem. Mas é difícil falar de um ou outro, pois todos estão muito interessantes. Parabéns! Anita Simis, Departamento de Sociologia, UNESP - Araraquara, SP FOI COM GRANDE SATISFAÇÃO que encontrei no número 19 da Revista 18 a brilhante matéria “Caçadores de passos esquecidos”, da jornalista Cláudia Altschüller. Cláudia soube sintetizar, de maneira clara e objetiva, o valioso trabalho desenvolvido pelos Wolff e em especial a vida de Frieda sem Egon. Quero também registrar, em nome do Memorial Judaico de Vassouras, o crédito que nos foi concedido. Prof. Dr. Luiz Benyosef, Presidente do Memorial Judaico de Vassouras - Rio de Janeiro, RJ GOSTARIA DE RESSALTAR a qualidade e a importância do conteúdo geral da Revista 18. Mônica de Souza Lopes, por e-mail ATRAVÉS DA PRESENTE, apresento o meu agradecimento pela gentileza do envio da Revista 18 e, nesta oportunidade, cumprimento-os pelo conteúdo e pela qualidade gráfica da publicação. Aproveito o ensejo para renovar a expressão de agradecimento e consideração e apreço. Ia´aqob Ben Iehochafat, por e-mail RECEBI A REVISTA 18 nº 19 e fiquei admirado com as mudanças, todas positivas. Ainda não terminei de lê-la. Ela deu um salto para melhor e eu não saberia dizer por quê, pois ainda não a confrontei com as outras. Os 4 Revista 18 artigos continuam formando e informando, mas tornaram-se mais leves no estilo. João Valença - Salvador, BA A NOTA PUBLICADA na Revista 18 nº19, na seção de cartas, não está correta. A informação correta segue abaixo: o fotógrafo Hans Gunter Flieg foi o primeiro a fazer calendários com motivos brasileiros. Foi ele também o primeiro a vestir o Papai Noel com roupas características ao nosso clima. Thea Joffe - São Paulo, SP COM RELAÇÃO AO ARTIGO de Luis Dolhnikoff, “Anti-sionismo, o anti-semitismo do século 21”, publicado na Revista 18 nº 18, seção Opinião, gostaria de observar que, de acordo com demógrafos e sociólogos, Israel vai enfrentar, nos próximos anos, uma “ameaça demográfica”: a população árabe dentro das fronteiras de 1967 fará com que, dentro de quinze ou vinte anos, os árabes se tornem a maioria da população num Estado que pretendia ser judeu. Se levarmos em conta os dados da migração negativa que está ocorrendo em Israel agora, a proporção de judeus na Terra Santa tende a diminuir ainda mais. De outro lado, a maioria dos judeus do mundo julga melhor ficar onde está do que ir para Israel. Ante esta situação, existem quatro alternativas: 1. Se Israel mantiver o sistema de democracia parlamentar, que Dolhnikoff menciona no seu artigo, será obrigado a estender o direito de voto à população árabe dos territórios ocupados. Nesse caso, os judeus se verão em minoria, e se diluirá a visão do fundador do sionismo, Theodor Herzl, de um Estado Judeu. 2. Se Israel negar o direito de voto aos árabes nos territórios, isso constituirá um apartheid, que não ajudaria em nada o sionismo, nem diminuiria o ódio ao sionismo, que Dolhnikoff afirma estar atingindo, em ondas crescentes, desde a esquerda ocidental até o fundamentalismo islâmico, e ameaça tomar o lugar do anti-semitismo no século 21. 3. Se Israel promover a “transferência” forçada dos árabes para fora das fronteiras israelenses, isso vai causar a expansão ainda maior dos campos de refugiados palestinos fora do Estado judeu, o que em nada vai contribuir para melhorar sua imagem. 4. A quarta opção, que consta de um manifesto publicado por doze artistas plásticos poucos meses depois do término da Guerra dos Seis Dias, em setembro de 1967, é a tese do fim da ocupação. Neste manifesto lia-se: “Nosso direito de nos defender não nos dá o direito de esmagar outros. A ocupação leva a um regime estrangeiro, o regime estrangeiro leva à revolta, a revolta leva ao esmagamento do povo revoltado, o esmagamento leva ao terror, que leva ao contraterror. As vítimas do terror são em geral pessoas inocentes. A manutenção dos territórios ocupados nos torna um povo de assassinos a serem assassinados. Vamos deixar os territórios imediatamente!” Na euforia que tomou conta de Israel com a vitória da guerra de 1967, este anúncio foi ignorado. Hoje, porém, um em cada três lares israelenses tem emoldurado este manifesto, como um ícone. Israel já teve dias gloriosos, em que o mundo inteiro o estava abraçando – em 1948 e em 1967. Desde a ocupação, a roda da história girou. David Grossman, um dos mais famosos escritores israelenses, que perdeu um filho no último dia da nova guerra no Líbano, disse que há um vazio na liderança e citou o profeta Neemias: “Não existe mais rei em Israel e os destruidores do país estão saindo dentre vocês mesmos”. Hannah Arendt afirmou: “Os sionistas se fecham em si mesmos, mergulhados permanentemente na sua defesa física, o que enevoa todas as suas aspirações e conquistas; sua cultura deixará de ser seu legado, eles abandonarão o seu progresso social, o pensamento político se reduzirá até a estratégia militar, o desenvolvimento econômico do Estado judeu será dirigido somente às necessidades de guerra, e mesmo que vençam na guerra, no final das contas, as conquistas sionistas estarão feridas e defeituosas, sem reparo. Seja qual for o número de imigrantes que Israel absorver, quanto mais o país se expandir e alargar as suas fronteiras, mais permanecerá uma nação pequena, isolada e rodeada de um número incontavelmente maior de pessoas hostis”.Parece que a visão dessa grande filósofa está se realizando. Gershon Knispel - São Paulo, SP ENTREVISTA Enquanto ainda há tempo... Fábio Feldmann acredita que ainda não seja tarde demais para superar as mudanças climáticas geradas pelo efeito estufa, embora as veja como inevitáveis. E afirma haver muita inércia por parte dos governos, enquanto o setor empresarial e a sociedade civil são os novos grandes vetores da discussão sobre o meio ambiente. Por Marleine Cohen Pedro Bicudo A mbientalismo, no Brasil, é quase sinônimo de Fábio Feldmann. Não há bandeira, legislação ou tratativa, no país, que não tenha despertado seu interesse: da política nacional de recursos hídricos à implantação de unidades de conservação; da poluição urbana à proteção da Mata Atlântica, foram mais de duas décadas de atuação política e gestão empresarial a serviço da causa ambiental. Militante desde os tempos em que ser verde era reivindicar a redemocratização do Brasil e repelir a energia nuclear e a fabricação da bomba atômica, Fábio Feldmann foi o primeiro deputado federal eleito no país graças a uma plataforma ambiental. Secretário do Meio Ambiente do Estado de São Paulo (1995-1998), atraiu a ira dos insensíveis à causa ao instituir o rodízio na Capital – em vigor até os dias de hoje. E, por ser mais sério que polêmico, deu a volta por cima, conquistando uma cadeira como parlamentar por três mandatos consecutivos (1986-1998). Feldman: “Uma conferência de chefes de Estado para discutir a questão do clima é urgente, e pessoalmente eu defendo que o Brasil passe a sediar este encontro”. Revista 18 5 ENTREVISTA Sua vida pública também inclui inserções na Carta Magna e representações oficiais: um dos autores do capítulo de Meio Ambiente da Constituição Federal, foi relator da Política Nacional de Recursos Hídricos e da Convenção Quadro das Nações Unidas sobre Diversidade Biológica. Nos últimos anos, vem se dedicando à temática das mudanças climáticas, integrando a delegação brasileira nas Conferências das Partes da Convenção Quadro das Nações Unidas sobre Mudanças Climáticas, entre as quais a de Kyoto, que deu origem ao protocolo homônimo. Em 2000, ajudou a criar o Fórum Brasileiro de Mudanças Climáticas, do qual foi secretário executivo até 2004. Um ano depois, empenhouse em constituir o Fórum Paulista de Mudanças Climáticas Globais e Biodiversidade, à frente do qual ainda se mantém. Fundador da sos Mata Atlântica – matriarca das ongs nacionais –, também deu vida à Oikos, à Funatura e à Biodiversitas e se tornou conselheiro da The Nature Conservancy Brasil, da Akatu e do Greenpeace Internacional, entre outras. Gozando de uma sólida reputação internacional em defesa do meio ambiente, acumula, em seu extenso currículo, prêmios e honrarias como o prêmio Sarney de Ecologia (1989), o prêmio Global 500 das Nações Unidas (1990), o prêmio Trust - International Award For Conservation Achievement e o pnbe de Cidadania (2002). Em 1989, foi apontado pela revista Times como um dos mais importantes ambientalistas do mundo. Consultor, administrador de empresas e advogado, acredita que esgotou “a satisfação no exercício da vida pública” e quer “empreender em outros campos”. “É hora de abrir espaço para pessoas mais jovens”, anuncia, avaliando que o ambientalismo não morreu, mas “envelheceu em função de seu próprio sucesso”, e que “o ambientalista precisa se reinventar para atender às demandas da sociedade na complexidade em que elas existem”. Atualmente, Feldman dirige seu próprio escritório de consultoria em questões relacionadas à sustentabilidade e ao desenvolvimento sustentável. Nesta entrevista à Revista 18, ele fala do fantasma das mudanças climáticas que atemoriza o mundo e de suas perspectivas de carreira. 6 Revista 18 REVISTA 18 Se fosse dar as boasvindas a um recém-nascido neste exato momento, diria que os filhos dele poderão continuar vivendo neste planeta? Em outras palavras: o que esperar da mudança de clima na Terra? FÁBIO FELDMANN A mudança de clima é irreversível, é algo com que deveremos conviver daqui para a frente. A humanidade vai passar por maus momentos. As chuvas, as secas, a elevação do nível do mar ocorrerão com muita intensidade e este será um mundo muito diferente daquele em que vivemos. Isso significa que nossos filhos terão de desenvolver uma capacidade de adaptação que a humanidade nunca enfrentou antes. Mas eu sou otimista; sou daqueles que acreditam que ainda não ultrapassamos o sinal vermelho. Estamos entre o amarelo e o vermelho; há tempo de reverter. 18 Os eua se recusam a participar do grande esforço internacional para reverter a crise ambiental no planeta. Na sua opinião, a não-adesão dos americanos ao Protocolo de Kyoto esvazia este mutirão para amenizar as mudanças climáticas que se anunciam? FF Penso estar havendo uma clara mudança na postura norte-americana em relação ao problema. A posição de George Bush é insustentável a longo prazo. Há sinais perceptíveis de uma rápida mudança por parte dos eua. A Califórnia, que é um estado republicano, governada por Arnold Schwarzenegger, tem um programa ambiental muito avançado em relação ao aquecimento global. Por outro lado, a Suprema Corte dos eua anunciou recentemente que a Environmental Protection Agency (epa), o poderoso Ibama norteamericano, tem o dever de controlar o efeito estufa. Por isso, embora persistam dúvidas sobre se o Protocolo de Kyoto se manterá depois de 2012, quando deve ser revisto, acredito que até lá os eua assumirão outro papel – e deverá ser atualizado. Não creio que vão aderir ao Protocolo, mas penso que farão um grande esforço doméstico para lidar com o problema. 18 Em termos bem práticos, o que a humanidade pode esperar com a entrada em vigor do Protocolo de Kyoto? FF O Protocolo de Kyoto representa um espaço político um pouco reduzido. Com a confirmação da comunidade científica de quão grave é a situação, acho que devemos pensar em uma conferência de chefes de Estado para discutir questões de clima, como na Rio-92. Pessoalmente, defendo que o Brasil passe a sediar este encontro. 18 Recentemente, a ministra Marina Silva, do Meio Ambiente, declarou que os países ricos devem assumir sua cota de responsabilidade em relação às mudanças climáticas e que os países em desenvolvimento não podem ser bodes expiatórios. Está aí um esboço de como o mundo vai lidar com a questão: um empurra-empurra de culpas? FF De fato, eu critico muito esta posição: ela leva a um resultado de soma zero. As mudanças em curso no planeta representam um problema tão grave que todos os países deveriam se envolver. No Brasil, 70 por cento dos gases emitidos se devem ao desmatamento da Amazônia. O tema do clima exige uma visão de mundo diferente, e não marcada pela visão Norte-Sul. Esta posição, a do Itamaraty nos últimos 20 anos, pertence ao século 19, e não ao 21. 18 A primeira vez que se falou de Kyoto foi em 1992, 15 anos atrás. Não acha que está havendo descompasso entre a gravidade da crise ambiental, de um lado, e a adoção de medidas, de outro? Isto é, as negociações não deveriam ser mais céleres e a ação, mais efetiva diante da tragédia? FF Acho que 1992 foi importante porque, pela primeira vez na história, todos os conceitos foram colocados. Agora, há outro grande desafio: implementá-los. Não podemos ser ingênuos a ponto de achar que não haverá resistências muito fortes. O mundo mudou, a gente tem de levar em conta os avanços que estão em curso fora da esfera governamental. Para quem acompanha a questão ambiental, ter, por exemplo, uma Bolsa de Valores que associa seu nome à questão ambiental, como a de São Paulo, é um grande avanço. Grosso modo, está havendo, a meu ver, muita inércia de um lado – e os governos são os maiores devedores –, enquanto o setor empresarial e a sociedade civil como um todo são os novos grandes vetores da discussão sobre o meio ambiente. 18 Pelo Protocolo de Kyoto, as nações ricas que ratificaram o documento devem reduzir, até 2012, a emissão de gases de efeito estufa em 5 por cento abaixo dos ENTREVISTA níveis de 1990. Já os países em desenvolvimento não têm metas obrigatórias a atingir. Isso não exime o Brasil de rigor no trato da questão do desmatamento na Amazônia? FF Acho que a posição do Brasil é insustentável no que tange à questão da Amazônia. Temos tido, nos últimos vinte anos, um patamar de desmatamento suicida. A Amazônia tende a se transformar num cerrado. Isso foi suficientemente veiculado pela mídia e acabou ferindo negativamente a imagem do país. Seria preciso anunciar uma moratória em relação à expansão da fronteira agrícola – isto é, que se defina uma linha a partir da qual não se desmata mais. Aquém dela, que seja feito um esforço para melhorar a produção, para que o Brasil possa exportar suas commodities; e, além dela, que não se mexa. É o que chamamos de uso sustentado da terra, conceito que tem reunido adeptos fora da esfera governamental: a pressão dos ativistas do Greenpeace sobre o McDonald’s, por exemplo, é no sentido de que os vendedores de soja brasileira se certifiquem ambientalmente. Quem não incorporar a sustentabilidade no mercado de agrobusiness não avança. A longo prazo, acredito que a tônica será esta. 18 Diante da tragédia que se anuncia para a Amazônia, com as mudanças climáticas em curso, acha que a internacionalização não seria uma saída? FF Não acredito na internacionalização como hipótese factível. O Brasil tem lidado com a existência da Amazônia como um passivo, mas este poderia ser um ativo para o país, pois lhe conferiria uma posição privilegiada diante de seus parceiros internacionais. No entanto, para isso, o governo teria de firmar um compromisso com o mundo e com as futuras gerações. 18 O Brasil está entre os cinco maiores emissores de gases do mundo. Que soluções apontaria para diminuir a responsabilidade brasileira na geração do efeito estufa? FF De acordo com o Comunicado Nacional Inicial do Brasil à Convenção Quadro das Nações Unidas sobre Mudança do Clima, edição 2004, publicado pelo Ministério da Ciência e Tecnologia, 75 por cento do total das emissões brasileiras de gás carbônico são oriundas do Setor Mudança no Uso da Terra e Florestas. Deste total, 96 por cento são atribuídos à conversão de florestas em atividades de agricultura e pecuária, por desmatamentos e queimadas, o que torna nosso país o quarto maior emissor de gases efeito estufa no mundo. O que temos de fazer, enquanto sociedade civil, é exercer uma enorme pressão sobre o governo e os responsáveis, para reduzir o desmatamento. Esta é a questão-chave. O Brasil tem uma matriz energética baseada na hidroeletricidade. Tem o que chamo de uma zona de conforto ainda grande. Agora, o brasileiro, como todo cidadão do planeta, A mudança de clima é irreversível, é algo com que deveremos conviver daqui para a frente. A humanidade vai passar por maus momentos. As chuvas, as secas, a elevação do nível do mar ocorrerão com muita intensidade terá de fazer uma reflexão pessoal e coletiva para incorporar o impacto ambiental que se anuncia. É preciso diminuir esse impacto, como consumidor, como produtor, como cidadão, para legar um mundo minimamente possível às próximas gerações. 18 Qual sua opinião sobre o surgimento de uma nova consciência ambiental no país? E no mundo? Acha que o homem comum está preocupado com o futuro do planeta mais do que há dez, 15 anos atrás? Aumento da temperatura média e desaparecimento de espécies não são questões de cúpula ainda? FF A sociedade brasileira incorporou muito a questão ambiental nos últimos anos. Tanto que uma pesquisa da bbc de Londres aponta o brasileiro como o povo mais preocupado com a questão ambiental atual*. Mas o bom senso nos faz crer que a miséria e a violência estão tão presentes e são tão prementes que é só com relação a elas que ele externa preocupação. É como se estas questões estivessem encobrindo seu interesse pelo futuro do planeta. De qualquer forma, posso assegurar que a geração dos que estão na faixa dos trinta anos tem uma consciência ambiental radicalmente diferente dos que têm cinqüenta anos. 18 Ao longo de sua trajetória pessoal de envolvimento com as questões ambientais brasileiras, quais foram, a seu ver, os maiores avanços e os entraves mais graves do Brasil? FF Penso que o grande avanço no Brasil é de ordem legal; nossas leis são sérias e abrangentes; nossa Constituição é referência no mundo todo. Quanto aos entraves, consistem em conseguir inserir na agenda dos tomadores de decisões temas que sejam relevantes daqui dez, 15 anos. 18 O que tem a dizer sobre a revigoração do Pró-Álcool? FF O Pró-Álcool é uma boa iniciativa, mas faço uma advertência: não pode seguir o mesmo roteiro cinematográfico da soja brasileira. Isto é, os produtores de canade-açúcar não devem poder expandir suas lavouras a perder de vista, descontroladamente. Temos de aproveitar este know how, esta alternativa, mas com os cuidados necessários para que a cana não seja mais um vetor de destruição do Pantanal, da Mata Atlântica e de outras áreas verdes. 18 O que pensa da atuação do Partido Verde brasileiro? FF Quando me tornei candidato, em 1986, não existia a opção pelo pv. Saí do psdb porque os temas ambientais acabavam sendo moeda de troca nas grandes negociações. Hoje, acho que deve haver um partido político cujo principal objetivo seja levantar e defender determinadas bandeiras, e não se colocar necessariamente como alternativa de poder para a sociedade. Um partido com boa representação na Câmara, mais do que no Senado, pode fazer a diferença. O drama é que todos os partidos brasileiros se transformaram em máquinas eleitorais. O Revista 18 7 partido só aparece no momento da eleição, inclusive o pv – e ele ainda não disse a que veio no Brasil. É muito eleitoral e pouco político. Isto é, não está presente no dia-adia dos eleitores. Por isso, penso que seria promissor se propusesse uma radical mudança de atitude perante a sociedade, tomando como inspiração o modelo que se vê no Exterior. Eu, Gabeira e outros defendemos uma mudança radical de direcionamento; queremos que ele tenha uma atuação temática acentuada em torno do aquecimento global e contra o desmatamento da Amazônia, entre outras bandeiras. 18 Qual sua opinião sobre a forma como o governo aborda a questão das reservas nacionais de água? FF A questão da água é um dos três temas mais importantes no mundo desde 1992. O Brasil tem de ter uma estratégia mais presente e definida na questão dos seus recursos hídricos: isso é estratégico e é inclusive o que vai poder definir a competitividade nacional nos próximos tempos. O Brasil deveria cuidar de não matar a galinha dos ovos de ouro. 18 De que maneira sua formação humana, como judeu, o influenciou a se engajar na defesa do meio ambiente? Houve ou há pontos de convergência entre as duas coisas ou são características que caminham em paralelo? FF Estas são duas questões interdependentes. Toda minha vivência judaica liberal sempre me estimulou a ser um cidadão engajado. 18 Como pensa sua atuação como ecologista para os próximos 5, dez anos? FF Eu tomei uma decisão na vida: atuar no campo da sociedade civil em defesa do meio ambiente. Este é o meu esforço pessoal. Acredito que tenho pela frente grandes oportunidades pessoais na questão do aquecimento global. Pessoalmente, me considero muito realizado por estar aqui. O aquecimento é um ponto de inflexão no sentido de se reinventar: estou fazendo esta transição há bastante tempo. Marleine Cohen é jornalista * Pesquisa realizada entre 14.220 pessoas de 21 países, em abril de 2007, pelo canal de tv bbc World em parceria com o Instituto Synovate, mostrou que 87 por cento dos brasileiros ouvidos estão preocupadas com as mudanças climáticas no planeta. 8 Revista 18 Fotos: Luciana Napchan ENTREVISTA SEÇÃO Em paz com a natureza Novo livro retrata paisagens intocadas da América T ratar da natureza latino-americana num livro é um desafio e tanto. Enquanto a retórica do progresso ou, mais recentemente, a obsessão pelo “crescimento econômico”, domina o discurso e a praxis política em todas as regiões do continente, são muito poucos os que se preocupam em ver o que se encontra por trás dos índices econômicos, alardeados obsessivamente pelos condutores dos destinos dos diferentes países que compõem o continente. De Norte a Sul, a marcha da devastação segue incólume, enquanto políticos de todos os matizes insistem em sua devoção incansável ao PIB e outras estatísticas macroeconômicas. Nada parece conter o fascínio das quimeras que se escondem atrás dos números, e assim, cada vez mais, o nível quantitativo de produção e de consumo tornase o único parâmetro a ser considerado, tanto do ponto de vista da condução da política quanto da vida privada. Já a natureza, assim como os reais valores humanos, não se deixam quantificar. E os únicos índices que lhe dizem respeito são a cada tanto mais trágicos: quantificam a marcha de sua destruição. A avassaladora riqueza natural do continente tem sido sistematicamente negligenciada e espoliada desde a chegada do homem branco à América. E os resultados estão aí: devastações maciças, cujas conseqüências desastrosas apenas começam a se fazer sentir. Embora o Brasil viva voltado para o Oceano, sempre olhando – e quase sempre invejando – o que se passa na Europa ou nos Estados Unidos, às nossas costas está o mais rico continente do mundo em termos de diversidade biológica e geológica. Um continente cuja verdadeira riqueza ainda espera por ser descoberta. Felizmente a sociedade civil tem se envolvido, com intensidade crescente, com a causa da preservação da natureza latinoamericana, e dentre as muitas iniciativas realizadas que têm como objetivo a conscientização da população, realizadas nos últimos anos, merece atenção o livro que a fotógrafa Luciana Napchan e o ambientalista Walter Behr lançarão este mês, que trata de oito parques nacionais do continente. Estes territórios preservados, ilhas de natureza intacta, ou tratada sempre com o devido respeito, são exemplos de como pode o homem viver em harmonia e em paz com seu ambiente original. E são a prova de que a maior de todas as riquezas do homem está aí, na criação. Mais do que isto, o livro propõe-se a lembrar ao homem moderno, isolado de suas raízes e de sua origem, e mergulhado no frenesi das grandes cidades, que a natureza tem muito a lhe ensinar, e que a artificialidade das construções humanas, que não se sustentam por si mesmas, é muitas vezes uma ilusão autodestrutiva. Ao selecionarem oito parques nacionais da América Latina, Luciana e Walter quiseram enfatizar que, ao contrário do que ocorre com as nações, criadas pela vontade do homem, a natureza não tem fronteiras nem descontinuidades. Assim, ao longo de cinco anos, eles pacientemente percorreram o continente em busca de regiões preservadas, e em busca de imagens que pudessem se tornar lembranças de que a natureza está ameaçada e necessita de nossa urgente atenção. No alto, a perereca-de-olhos-vermelhos, animal extremamente sensível às mudanças climáticas e cuja presença atesta a integridade da natureza no Parque Nacional Vulcão Areal, na Costa Rica. Ao lado, uma cachoeira no Parque Nacional da Chapada dos Veadeiros: viagem de Luciana e Behr buscou mostrar a continuidade da natureza do continente americano “Nesse curto espaço de tempo chamado modernidade”, escrevem os autores na página inicial deste livro, “apostamos que a Terra deveria ser mais humana que qualquer outra coisa. As leis do ‘progresso’ diziam que dominar era preciso; deixar viver, apenas secundário. Ou, talvez, supérfluo. Agora, boquiabertos, descobrimos o quanto nos esvazia viver sem essa biodiversidade perdida.” Luciana e Walter viajaram por parques no Panamá, Costa Rica, Equador, Peru, Chile, Brasil e Argentina, e realizaram um trabalho que fala de paisagens, de árvores e de bichos, mas que também toca nossos afetos por meio de uma beleza de tirar o fôlego. Para capturar estas imagens tão comoventes, a fotógrafa passou a ver seu trabalho como uma espécie de oferenda: “A natureza é tão perfeita que não necessita de interferências. No momento em que a estou fotografando, cria-se uma relação como de devoção. Eu me prostro diante da natureza: ela é minha mestra e estou lá para aprender. Assim, sempre ao adentrar uma floresta, eu silenciosamente peço permissão. Parques nacionais e outras áreas protegidas, últimos recônditos preservados do planeta, são redutos sagrados. Cada milímetro de uma floresta milenar é sagrado. Ao fotografar esta natureza sagrada, desejo aproximá-la das pessoas.” Cativar o olhar do homem, deixar que estes reflexos de uma natureza majestosa atinjam nossas emoções – esta é a contribuição de Luciana e Walter para um despertar da consciência de que uma mudança de rumo radical se impõe em nossos dias. Para saber mais sobre o livro: [email protected] Revista 18 9 PERISCÓPIO Reprodução Herói sepultado Liviu Librescu, o professor universitário de 76 anos que foi morto quando tentava proteger seus alunos no recente massacre na Universidade Técnica da Virgínia, foi sepultado em Israel no último dia 20 de abril. Librescu, que deixou a Romênia em 1978, viveu em Israel por muitos anos e mais tarde mudou-se para os Estados Unidos. Novas estatísticas Nos últimos 12 meses, a população de Israel aumentou em 1,8%, chegando a 7.150 milhões de habitantes. Dos 121 mil novos habitantes do país, 18.400 são imigrantes. Vinte e quatro mil israelenses deixaram o país por mais de 12 meses, e 10 mil retornaram depois de ausências prolongadas. Aproximadamente 80% da população do país é composta de judeus, sendo os restantes 20% árabes e drusos. Há também 310 mil imigrantes da ex-União Soviética, cujo status judaico é indeterminado. Holocausto esquecido? Algumas escolas britânicas estão evitando mencionar o Holocausto em suas aulas de História para evitar ofender os alunos muçulmanos, segundo notícia divulgada pelo jornal Daily Mail. Segundo o tablóide, outro tema que não vem sendo mencionado, para evitar controvérsias, são as Cruzadas. Al-Qaeda chega à Palestina De Israel, Nahum Sirotsky observa a escalada da violência em Gaza, onde facções rivais se enfrentam num quotidiano sangrento, e servem como laboratório de movimentos fundamentalistas islâmicos D eve ser muito difícil para o leitor brasileiro entender por que há tantas matanças entre irmãos na atual etapa da história do islã. No entanto, devemos lembrar que o cristianismo viveu e sobreviveu a uma longa fase de guerras entre o catolicismo e as crenças derivadas do protestantismo. A luta entre irmãos complica-se cada vez mais na Palestina. Apenas no domingo, 13 de maio, Dia das Mães, os choques resultaram em dezenas de vítimas na Faixa de Gaza. A tropa do Fatah, o grupo herdeiro da Organização de Libertação da Palestina, olp, confrontase com o Hamas, Movimento Islâmico de Resistência, vencedor das últimas eleições na região autônoma palestina, fundamentalista, e que quer aplicar as leis religiosas à vida social. Os palestinos são muçulmanos em sua absoluta maioria, mas o Fatah não quer um futuro Estado palestino governado por fundamentalistas religiosos. A briga começou em 2006 e chegou perto da guerra civil, só evitada porque ambos os lados concordaram em criar um Governo de União Nacional. Criaram, só que ainda não funciona. As duas facções não se entendem no que diz respeito à divisão dos poderes de governar. Gaza é uma cidade sem lei. Dá para ver nos noticiários. O Fatah, partido do presidente palestino, mandou sua tropa 10 Revista 18 policial tentar estabelecer a ordem. O resultado foram as matanças nessa região em que não há um cidadão sem armas. A tropa palestina também tem como missão impedir que continuem os ataques com mísseis Qassam, possivelmente lançados pelo Hamas ou afins, contra Israel, cujo território é colado ao de Gaza. A população das cidades israelenses alvejadas por esses mísseis – inclusive a cidade onde vive a família do Ministro da Defesa israelense – exige medidas radicais. No caso, uma invasão maciça de Gaza por tropas israelenses, que custaria muitas vidas de ambos os lados, além dos reflexos políticos negativos sobre Israel. O governo evita tomar tal decisão. Existem versões diferentes sobre quem arma o Hamas. Uns dizem que é o Irã, como no caso do Hezbolá xiita. Porém o Hamas é dirigido por uma seita oposta à que governa o Irã. Outros dizem que é a Al-Qaeda, conforme foi noticiado pelo diário árabe londrino Al Quds al Arabi, que publicou uma entrevista de um parlamentar palestino do Hamas, dizendo que o movimento está infiltrado em grupos resistentes, inclusive aquele que raptou um correspondente da bbc. O objetivo da Al-Qaeda é a criação de um Oriente Médio governado por religiosos muçulmanos. É sempre irresponsável opinar sobre o futuro. Mas parece óbvio que existem probabilidades de mais confusões entre o Fatah e o Hamas. E de se chegar a um confronto maior entre israelenses e o Hamas que, segundo consta, vem recebendo os mais modernos armamentos e tem estudado as táticas do Hezbolá para uma eventual guerra contra Israel. Os movimentos islâmicos têm em comum, em seus programas, o objetivo de lutarem até acabarem com o Estado judeu, o que, diga-se, não significa posições imutáveis.Antes de firmarem acordos de mútuo reconhecimento, o Fatah chegou a realizar 2.432 ataques guerrilheiros contra Israel num só ano. Uma antiga tradição diz que o centro do mundo fica em Jerusalém. Num certo sentido é uma verdade. Daí o Ocidente tanto perseguir o projeto de uma paz para a região por meio da concretização da teoria dos dois Estados, um judeu e um árabe-palestino, lado a lado. A idéia existe desde 1947, quando a antiga Palestina Britânica foi dividida, com tais propósitos, pelas Nações Unidas. Como diz o povo, esperança é a ultima que morre. Nahum Sirotsky, jornalista, é correspondente da RBS e do IG em Israel. Ex-diretor de Visão, Manchete, Diário da Noite do Rio, foi o criador da revista Senhor Por que será? A psicanalista Anna Verônica Mautner vê na história do judaísmo uma série de respostas para os desafios que a modernidade globalizada impõe ao homem e percebe o nomadismo judaico como um paradigma para a crise contemporânea de identidade P or incrível que pareça, ser judeu entrou na moda; não tenho a respeito disso nenhuma dúvida, pelo contrário: o noticiário, as fofocas vivem confirmando. Até meados do século passado, quando um judeu se casava com alguém “de fora”, como se diz, era ele que ia para o outro clã, não era o outro que vinha para a comunidade. Claro que, como sempre, havia honrosas exceções. Isso era tão verdadeiro que as famílias às quais acontecia “esta desgraça” faziam shivah (cerimônia de luto) direitinho pela alma perdida. Nem se precisava ser muito ortodoxo para tanto. A tradição judaica sempre propôs que, diante de um casamento misto, fosse o judeu o excluído. Apesar de continuar biologicamente vivo, não contaria mais no “entre nós”. De repente, nos últimos tempos, adensase a discussão sobre qual a conversão aceitável e qual não, e para quem o é. Será que basta ser filho de mãe judia? Será que conversão realizada para casar vale? A coisa se complica porque não dispomos de uma tradição religiosa para proselitismo, isto é, inclusão. Estamos despreparados para a moda de conversão ao judaísmo. Além da modernidade, da aproximação dos judeus orientais, ashkenazim e sefaradim, os três grandes grupos de judeus, da facilidade que os novos meios de transporte trouxeram para encontros e reencontros, temos, ainda, o desencontro entre as inúmeras seitas de ortodoxia, que apresentam infinitas formas de interpretar o Talmude. No meio desta confusão, felizmente todos no fim acabam tendo razão. Existem dogmas discutíveis e outros indiscutivelmente sagrados. O shabat, a 12 Revista 18 kashrut, o bar mitzvá, a circuncisão, por exemplo, estão entre os sagrados. Mas não é sobre isso que eu quero falar aqui e sim sobre o fato de estarmos na moda: isso é novo e o Talmude ajuda pouco. E não é só ser judeu que ficou atraente; a própria ortodoxia se tornou sedutora. Os até então menos ortodoxos vêm se transformando em severos defensores da ortodoxia e muitos outros vêm se tornando interessados em passar a ser membros dessa ortodoxia. Vou arriscar algumas hipóteses, que talvez não passem de uma, que engloba variações em torno de um mesmo tema. Há um desencontro entre as inúmeras seitas de ortodoxia, que apresentam infinitas formas de interpretar o Talmude. No meio desta confusão, felizmente todos no fim acabam tendo razão Há milênios vimos desenvolvendo técnicas de sociabilidade que acabaram por garantir a sobrevivência dos judeus como uma identidade claramente definida e automaticamente auto percebida. Temos milênios de experiência de vida nômade, isto é, de sermos sem terra, unidos apenas por esta tal identidade auto percebida. Não importa por onde estejamos espalhados, os dogmas talmúdicos nos ajudam a encontrar o prumo. A exigência de dez homens adultos para realizar cultos é uma perfeição de regra para inibir o isolamento: dez homens adultos são, pelo menos, dois núcleos familiares. Um rabino, um chazan (cantor sinagogal), um shochet (encarregado do abate ritual de animais para consumo) para uma ou duas famílias é, senão anti-econômico, pelo menos muito difícil. Assim como uma mikvah (estabelecimento para banho ritual), um cheder (casa de estudos), um mohel (responsável pela circuncisão). Também a kashrut (conjunto de leis dietéticas judaicas) é complicada no isolamento. Nossa sobrevivência dependeu sempre de existirem famílias judias em comunicação constante, mesmo que esporádica, e com uma distância entre elas pelo menos razoável para encontros rituais. Não que seja necessário viver num gueto, mas é preciso estar próximo o suficiente para manter-se em comunicação. E, para cuidar de nosso destino de viventes, foram geradas nossas instituições tradicionais. Nascimento, vida e morte são reguladas e seus rituais, garantidos por organizações não governamentais: educação – na Yeshivah; enterros – Chevrah Kadisha (Sociedade Santa, encarregada dos rituais fúnebres); fertilidade – Mikvot; cuidado com a terceira idade – Moshav Zkenim (Lar de Velhos); cuidado das crianças – Gan; manutenção das tradições, Nahamat, Wizo, Unibes, Sochnut etc. O centro do culto comunitário pode ser uma sala ou uma enorme sinagoga, conforme o tamanho da comunidade. A própria Ilustração: Olívia Lerner OPINIÃO © Hanan Isachar/Corbis/LatinStock Há milênios, os judeus vêm desenvolvendo técnicas de sociabilidade que acabaram por garantir sua sobrevivência como uma identidade claramente definida e automaticamente percebida retomada recente de Eretz Israel foi montada, concebida e financiada pelas nossas ongs: Keren Kaiemet, Keren Hayesod, Magbit etc. É longa nossa prática de manter nossa identidade sem Terra, sem Pátria, sem Governo, sem Estado. E, se estamos aqui, é porque temos sido sempre bastante bem-sucedidos, tanto que estou aqui a escrever a respeito desta nossa longa experiência. Há milênios funcionamos globalizados – antes do telefone, antes do telegrama, antes da internet que re-insere os novos nômades no mundo – nós realizamos isso só com a fidelidade às nossas práticas ortodoxas. Agora que o mundo todo se globaliza, ongs, ongs e mais ongs vão surgindo para cuidar dos sem família, dos sem médico, dos sem teto, dos excluídos, dos sem escola etc., assim como nós fizemos nos cinco mil anos de nossa história. Nossas instituições protegeram nossa comunidade – ricos, pobres, recém-chegados, já enraizados, perseguidos ou tolerados. Hoje a humanidade inteira está procurando, fora do âmbito estatal, e com a força da solidariedade, maneiras de proteger seus desvalidos. Nossas ongs viviam da contribuição de todos que podiam contribuir, nunca contaram com ajuda governamental, que não existia. Era a riqueza de uns fluindo, sustentando instituições às quais cabia cuidar de todos. Foi neste fluxo contínuo que criamos um universo virtual no qual reconhecíamos uns aos outros. Ser homem hoje é poder existir à margem das estruturas governamentais sufocantes. Esta é a modernidade que vem a bordo das ongs, nossas velhas conhecidas. Cabe às ongs a defesa do planeta, cabe a elas proteger seus habitantes, defender os direitos dos humanos, gerar a consciência, não mais de nacionalidades, mas de humanidade. No planeta Terra, a questão que se coloca é cada um de nós se reconhecer e perceber como humano, cuidando dos outros e da natureza. Os movimentos pela proteção da água são organizados globalmente assim como o são os relativos a todas as formas de vida animal ou vegetal. Talvez, partindo do pressuposto da existência de um conhecimento inconsciente, uns tantos não-judeus sentem que há certa sabedoria entre estes eternos marginais da civilização ocidental. Claro que somos aptos a dar aulas de ong, pois foi em torno do funcionamento delas que sobrevivemos como eternamente globalizados. Começamos nômades em alguma região do Oriente Médio, dispersamo-nos por essa mesma região, sobrevivemos na Galut (exílio) porque nos mantivemos eternamente nômades enquanto estrutura social. O homem moderno, ocidental ou não, dotado de existência virtual, aproximou-se estruturalmente de nós que sempre assim fomos. Toda nossa vida pessoal, familiar, grupal, organizase como se fôssemos nômades. Hoje o mundo é nômade e pede por ongs, se quiser se manter humano. Anna Verônica Mautner é psicanalista Revista 18 13 O REPÓRTER Darfur: a história se repete como tragédia Luis Dolhnikoff discute o sanguinário assassinato em massa promovido no Sul do Sudão, que já vitimou mais de 300 mil pessoas, enquanto o mundo, mais uma vez, se cala; os países desenvolvidos não se manifestam, e a mídia finge ignorar o que se passa D iz um velho adágio que a verdade é a primeira vítima da guerra. Há guerras, porém, em que a verdade não morre, porque não chega a nascer. A verdade, aqui, significa a consciência de certos fatos que, por suas próprias características, se impõem à consciência justamente como fatos, apesar de toda opinião ou interpretação. É, enfim, a consciência de tais fatos que a propaganda de guerra elimina, ao substituí-la pela interpretação e a opinião interessadas. Quando, porém, uma guerra é travada sem que este fato seja sequer conhecido, não é preciso que a propaganda política mascare de que guerra se trata. A verdade, indiscutível em mais de um sentido, torna-se uma questão restrita aos algozes e às vítimas. É esse, grosso modo, o caso do conflito na província sudanesa de Darfur. Conflito, e não guerra civil, pois não se trata de grupos políticos armados disputando o poder deixado vago por um governo fraco ou inexistente, ou mesmo de grupos armados rebeldes confrontando o governo central, mas de uma disputa em que o governo luta contra parte da população do país. Luta, aqui, é força de expressão: pois o governo, no caso sudanês, na verdade massacra parte da população do país. O conflito de Darfur é, enfim, mais massacre do que conflito. Sendo, porém, conflito ou massacre, é 14 Revista 18 virtualmente ignorado pela opinião pública mundial (o termo genocídio é excluído pela maioria dos analistas, por não se tratar de tentativa deliberada de extermínio de um povo). Não obstante, trata-se de uma das Em função da necessidade de manter tropas no sul para garantir a trégua e os royalties do petróleo, assim como por razões étnicas e religiosas, em lugar de fazer uso do exército, o governo árabeislâmico de Cartum optou por armar e apoiar milícias árabes locais mais graves crises humanitárias da atualidade. Dois números bastam, ou deveriam bastar: 300 mil mortos e 2 milhões de refugiados (para não falar das multidões de mulheres estupradas) desde 2003. O conflito de Darfur tem causas tanto locais quanto não-locais, tanto econômicas quanto culturais, tanto religiosas quanto políticas. Tentar entendê-las é a razão deste texto. O Sudão, antiga Núbia, localiza-se no nordeste da África, diretamente ao sul do Egito. Maior país africano em extensão, tem população de cerca de 40 milhões de habitantes, dos quais 75 por cento são muçulmanos sunitas, 17 por cento são animistas e 8 por cento são cristãos. Os dois últimos grupos concentram-se no sul do país. O nordeste é uma planície banhada pelo Nilo e seus afluentes, enquanto o centro-oeste é terra árida, nas bordas orientais do Saara. Darfur significa terra dos furs. Os furs são uma das etnias que habitam a região [oeste], junto com os massaleets e os zagawas. Os três são grupos de fazendeiros sedentários. A disputa entre eles e os Brian Steidle Vilarejos incendiados por bombas lançadas por aviões da Força Aérea sudanesa: massacres perpetrados pelos janjaweeds, as temidas milícias muçulmanas, são precedidos por ações militares nômades árabes se tornou tensa desde que uma seca prolongada nos anos 1980 empobreceu os campos de Darfur. Ficou difícil alimentar o gado dos nômades nas terras dos fazendeiros, como era usual. A tensão se transformou em conflito aberto em 2003. (Marcelo Musa Cavallari, “Sudão: ninguém para evitar um genocídio”, http://www. mre.gov.br/portugues/noticiario/nacional/ selecao_detalhe.asp?ID_RESENHA=28383) A origem imediata do conflito é, portanto, econômico-ambiental, além de local. Na verdade, econômico-ambientalétnico-cultural, com perdão da expressão. Pois envolve uma seca e dois grupos principais que se distinguem tanto étnica quanto economicamente, ou seja: os fur, agrários e sedentários, e os árabes, pastoris e nômades. O conflito local, porém, já nasceu nacional. Pois o Sudão passou por uma guerra civil (esta sim, merecedora do nome) nos anos 80 e 90, opondo o governo central, árabe e islâmico, ao sul negro, animista e cristão, iniciada pela tentativa do governo de impor a shariá, a lei islâmica, a todo o país, e exacerbada pela descoberta de petróleo na região (o que instigou os grupos separatistas assim como a reação do governo). A mesma descoberta de petróleo teve, porém, o condão de levar à mesa de negociações rebeldes e governo. Com [...] a exploração [se] iniciando no ano 2000, o governo buscou uma negociação com os guerrilheiros do Exército Popular de Libertação do Sul, [...] havendo desde então uma certa calma. A guerra civil no sul causou 1 a 2 milhões de mortos (a maioria pela fome) e 4 milhões de pessoas deslocadas. A prospecção petrolífera foi concedida à estatal sudanesa de petróleo e companhias da China, Malásia, Catar, Canadá, França, Áustria e uma joint venture sueco-americana. Mas quando tudo parecia caminhar para a normalização, ocorreu a crise de Darfur. A região foi esquecida durante a guerra entre o governo e os rebeldes sulistas, mergulhando no caos, com enfrentamentos tribais. (“O Sudão e a catástrofe humanitária de Darfur”, http://educaterra.terra. com.br/vizentini/artigos/artigo_168.htm). Revista 18 15 O REPÓRTER manter tropas no sul para garantir a trégua e os royalties do petróleo, assim como por razões étnicas e religiosas, em lugar de fazer uso do exército, o governo árabe-islâmico de Cartum optou por armar e apoiar milícias árabes locais. Essas milícias, os temidos janjaweeds (“cavaleiros do diabo armados”), passaram a lutar contra os rebeldes fur fazendo uso da limpeza étnica. Dois coelhos com uma só cajadada: a destruição de aldeias fur e a fuga em massa da população eliminam a base dos rebeldes, assim como resolvem a favor dos árabes locais a antiga disputa econômico-ambiental com os fur. O governo central debela a crise separatista, os árabes locais conquistam uma vitória definitiva por um rearranjo econômicodemográfico, e o mesmo rearranjo econômico-demográfico garante para o governo central uma província definitivamente calma, pois sua aliada. Império Otomano, antes da entrada em cena dos ocidentais. Como se não bastasse, a isso se soma a questão do petróleo: As hierarquias árabes de Cartum querem evitar uma brecha pela qual os negros do oeste se aliariam, no futuro, a um sul negro independente e dotado de reservas de petróleo. Conseqüentemente, torna-se estratégico domar a revolta de Darfur. (idem) O que explica o empenho do governo, não apenas em armar as milícias janjaweeds, como em apoiá-las em termos, portanto, estratégicos. Sobreviventes contam que, nos piores momentos da guerra, todos os ataques dos janjaweeds eram precedidos por ataques aéreos da Força Aérea sudanesa. Com as cabanas e a vegetação em chamas, A razão se liga a fatores de raça e cultura. Os assustados e dispersos pelo ataque aéreo, os habi- árabes são minoria no Sudão. E o regime islamita tantes de Darfur caíam vítimas dos janjaweeds. A é a última encarnação histórica de sua dominação cavalo ou em carros de combate fornecidos pelo étnico-regional. (Gérard Prunier, “Investigação sobre governo sudanês, os janjaweeds invadiam as aldeias o massacre de Darfur”, Le Monde Diplomatique, destruindo o que ainda restasse de pé, matando http://diplo.uol.com.br/2007-03,a1530) indiscriminadamente civis, estuprando mulheres e roubando gado, grãos e tudo o que pudesse ter A questão colonial africana, mais uma vez. Mas, para complicar definitivamente as coisas para os que adotam as simplificações maniqueístas, tão ao gosto da esquerda, a questão colonial envolvendo, como agente, o antigo império árabe do Califado e seus sucessores islâmicos até o © Human Rights Watch, 2005 Mas não apenas o abandono liga o conflito de Darfur à guerra no sul, pois o conflito na província tomou proporções maiores quando parte dos grupos que lutavam no sul contra o governo central, em lugar de aderir aos acordos de paz, tomou para si a defesa das aldeias fur, por razões étnicas e religiosas (os fur são muçulmanos, mas da corrente mística sufi, considerada herética pela ortodoxia sunita). O resultado foram ataques a instalações governamentais em Darfur, com o objetivo de iniciar um movimento separatista. A autonomia parecia aos habitantes da província sua melhor – ou menos pior – opção (não por acaso, isto tem razões históricas: Darfur foi um sultanato independente entre 1600 e 1916, quando foi integrado ao Sudão pelo Império Britânico – a história colonial também tem sua parte no conflito, como não poderia deixar de ser, ainda que não detenha toda a explicação, como pretendem certas análises tão simplistas quanto ideológicas). O conflito de Darfur, portanto, se insere num quadro maior, que só pode ser referido como a tragédia sudanesa, a qual, somando as vítimas da guerra no sul, dos anos 80 e 90, às atuais, chega a mais de 2 milhões de mortos e a cerca de 6 milhões de deslocados/refugiados. Números insuficientes para comover ou mover a opinião pública mundial, governos ocidentais e onu. O mesmo quadro ajuda a explicar a opção do governo central para combater os rebeldes de Darfur. Em função da necessidade de alguma utilidade. (Marcelo Musa Cavallari, “Sudão: ninguém para evitar um genocídio”, http://www. mre.gov.br/portugues/noticiario/nacional/ selecao_detalhe.asp?ID_RESENHA=28383) Em todo esse quadro de enorme complexidade e não menor crueldade, o mais difícil, se não de explicar, mas de justificar, MUSEU JUDAICO DE BERLIM DENUNCIA MASSACRE EM DARFUR Caderno com desenhos de criança que sobreviveu a um massacre: a presença dos assassinos permanece, para sempre, na memória de toda uma geração 16 Revista 18 De 15 a 22 de março último o Museu Judaico de Berlim realizou uma Semana Darfur, sob o patronato de Kofi Annan, Secretário Geral da ONU . Fotografias de Brian Steidle, Lynsey Addario, Mark Brecke, Hélène Caux, Ron Haviv, Ryan Spencer Reed, Paolo Pellegrin e Michal Ronen Safdie foram projetadas sobre a fachada do museu, enquanto uma exposição de desenhos de crianças de Darfur, que testemunharam os massacres perpetrados pelos janjaweeds, se realizou no interior do museu. A Semana Darfur contou também com uma apresentação da West-Eastern Divan Orchestra, dirigida por Daniel Barenboim. As fotografias reproduzidas neste artigo são parte desta mostra berlinense, e foram cedidas à Revista 18 pelo Museu Judaico de Berlim. Hélène Caux SEÇÃO Refugiados à espera de resgate por parte de organismos internacionais: conflitos criaram gravíssima situação humanitária, que não vem sendo resolvida de maneira satisfatória talvez seja a inação externa. Essa inação é feita de três vértices: a inação das grandes potências; a inação da mídia, e a inação da esquerda – em outros casos um elemento importante de influência junto à opinião pública, como ficou patente nas reações à invasão do Iraque pelos eua. A inação das grandes potências não é difícil de aclarar. Ou elas não têm interesses na região, ou elas têm interesses na região. Se não têm interesses não se envolverão; se têm, se envolverão, mas no sentido de atender aos seus interesses, e não de acabar com a barbárie. É o caso, por exemplo, da França, cuja inação responde ao objetivo de dar a seus aliados tempo para combater o governo do Sudão, e da China, esta, aliada desse mesmo governo por razões econômicas. Os militantes do regime [sudanês] tentam desestabilizar, a partir de Darfur, os aliados da França: o presidente chadiano, Idriss Deby, e seu colega centro-africano, François Bozizé. [Quanto à China], Cartum é seu segundo parceiro comercial no continente africano: o comércio bilateral gerou us $ 2,9 bilhões, em 2006, e Pequim compra 65% do petróleo 18 Revista 18 sudanês. A China é também o primeiro fornecedor de armas do regime de Beshir. São chineses os fuzis que matam em Darfur. (Gérard Prunier, “Investigação sobre o massacre de Darfur”, Le Monde Diplo- Resta a inação da onu. Mas esta não carece de explicação. A inação da onu segue a inação das grandes potências, assim como sua crônica impotência histórica. matique, http://diplo.uol.com.br/2007-03,a1530). Altos dirigentes do governo sudanês me disseram A inação da mídia segue a inação das grandes potências. Além disso, a complexidade da situação e a falta de qualquer apelo direto para o público ocidental não ajudam. A inação da esquerda segue um padrão histórico, de viés, não por acaso, ideológico. A esquerda mundial, senso lato, desde a queda do Muro e a perda de seu projeto de poder alternativo, reduziu-se a um criticismo maniqueísta das ações americanas. Repete, portanto, com o genocídio do Sudão o que fez, entre outros, com o genocídio de Ruanda nos anos 90 e com o genocídio do Timor Leste nos anos 70 e 80: dedica toda sua rubra indignação e todas suas pálidas ações ao Oriente Médio e à guerra do Iraque, porque há aí o envolvimento americano. Indignação seletiva, então – que ao ser seletiva é menos indignação do que adequação à própria agenda político-ideológica. mais de uma vez terem comparado os riscos que havia para eles em obedecer às ordens do Conselho de Segurança aos riscos de rejeitá-las. A desobediência implicava arriscar o confronto com a comunidade internacional. Mas obedecer representava outro risco, o de aumentar o poder da oposição interna, com o perigo de perda do próprio poder. Eles me disseram ter avaliado as opções e concluíram que os riscos que corriam ao obedecer às normas eram bem maiores que os riscos que corriam ao recusar. Eles tinham razão. (Jan Pronk, ex-representante especial do secretário-geral da onu Kofi Annan no Sudão, em seu blog, citado em http://diplo.uol.com.br/2007-03,a1530). A população de Darfur, como outras na história recente, jaz entregue à própria (má) sorte. Luis Dolhnikoff é escritor e ensaísta OSEÇÃO REPÓRTER Sob o impacto da guerra, quatro décadas depois Passados quarenta anos da Guerra dos Seis Dias, Samuel Feldberg recapitula as causas e as conseqüências do conflito que mudou a face do Oriente Médio, e vê no pragmatismo político a única resposta possível para um conflito pautado pela ideologia e pela fé O ano de 2007 marca décadas de alguns dos mais importantes eventos ocorridos no Oriente Médio no século passado. Há noventa anos o império britânico emitia a Declaração Balfour, documento que, nos trinta anos seguintes, assombraria seguidos governos ingleses, já que seu conteúdo foi entendido pela liderança sionista como a promessa de criação de um Estado judeu independente na Palestina. Há sessenta anos, a Assembléia Geral das Nações Unidas votou a partilha da Palestina que, no ano seguinte, permitiria o surgimento do Estado de Israel como nação independente em parte do território sob mandato britânico. E talvez o acontecimento de conseqüências mais evidentes nos dias de hoje seja a guerra travada em junho de 1967 entre Israel e três de seus vizinhos, o Egito, a Jordânia e a Síria. O evento será celebrado por uns e pranteado por outros, e esta divisão deixará do mesmo lado árabes e judeus, israelenses e palestinos. Alguns comemorarão a unificação de Jerusalém, o direito de voltar a rezar junto ao Muro das Lamentações e à tumba dos patriarcas, o retorno às bíblicas Judéia e Samaria, a aquisição de uma profundidade estratégica, sonhada, mas nunca seriamente contemplada. Para outros, as conquistas militares passariam a representar um pesadelo demográfico e um peso administrativo, uma penosa ocupação que impediria Israel de concentrar-se em seus verdadeiros problemas, transformando os judeus em 20 Revista 18 algozes da população palestina nos territórios ocupados. Levaria, ainda, a uma mudança na doutrina militar israelense, estabelecendo linhas de defesa estáticas e um relaxamento que culminaria na surpresa dos ataques de outubro de 1973. E para grande parte dos palestinos a vitória israelense representaria uma segunda catástrofe (conhecida como Al Nakba), uma repetição dos infortúnios de 1948 e a ampliação do número de refugiados gerados naquele ano, mas também o embrião que levaria ao ressurgimento do nacionalismo palestino, sufocado por jordanianos e egípcios durante décadas. A Guerra dos Seis Dias, como veio a ser conhecida, representa apenas um elo, ainda que dos mais importantes, numa longa cadeia de eventos iniciada com as primeiras imigrações de judeus da Europa Oriental para o que era então uma região do Império Otomano, e a mudança dos primeiros habitantes judeus de Jerusalém para a região fora dos limites das muralhas da cidade velha, na segunda metade do século 19. A partir deste momento, palestinos árabes e cristãos por um lado, e judeus por outro, trilharam caminhos às vezes paralelos, mas freqüentemente em rota de colisão. Ambos os povos cortejaram o sultão otomano até a 1ª Guerra Mundial e viveram as dúvidas geradas pelos alinhamentos durante o conflito. E ambos compartilharam a frustração com a “traição” representada pelo acordo Sykes-Picot, que dividiu a antiga região otomana entre franceses e ingleses, ao fim da guerra, com o estabelecimento de mandatos das duas potências vencedoras. As relações somente se complicaram no período entre guerras, com as acusações e a violência intensificando-se de lado a lado. A rebelião árabe de 1936 levou ao exílio a liderança palestina, e a ameaça alemã, na 2ª Guerra Mundial, conduziu à publicação do Livro Branco, que restringia severamente a imigração judaica para a então Palestina britânica, num momento em que as portas de praticamente todas as nações do mundo se fechavam para os refugiados judeus da Europa. NÃO SE DISCUTE O FATO de o Holocausto ter representado um fator de enorme peso na decisão da onu que levou à criação do Estado de Israel. Seja por questões humanitárias, seja para eliminar o incômodo problema gerado por centenas de sobreviventes judeus apátridas vagando no centro da Europa, as Nações Unidas, com o apoio das duas novas grandes potências, decidiram pela partilha do território conhecido como Palestina, e pela criação de dois estados independentes, um judeu e um palestino. Os palestinos e os países árabes vizinhos, por diversos motivos, decidiram rejeitar a partilha e, logo após a retirada dos ingleses em maio de 1948, e a declaração de independência de Israel, iniciaram uma guerra cujas conseqüências se fariam sentir durante as décadas seguintes. Os armistícios de 1949 deixaram abertas feridas que, como um câncer, se alastrariam ao longo dos vinte anos seguintes. O problema dos refugiados palestinos transformou-se numa bola de neve, tornando-se a chave da questão para a solução do conflito israelo-palestino nos dias de hoje, mas a ocupação dos territórios da Margem Ocidental por parte da Transjordânia, e da Faixa de Gaza por parte do Egito, congelou as aspirações nacionalistas palestinas, que talvez não tivessem sido reacendidas não fossem os eventos de 1967. Ao longo da década seguinte, apesar das infiltrações de refugiados e guerrilheiros fedayin ao longo das porosas fronteiras do novo Estado, os principais confrontos travaram-se entre o exército israelense e as forças regulares de seus vizinhos. As retaliações às incursões no território israelense eram quase sempre dirigidas contra os exércitos da Jordânia (o nome adotado pelo reino hachemita após a incorporação da Cisjordânia), das O REPÓRTER forças egípcias na Faixa de Gaza e da Síria, nas Colinas de Golan. Em situações específicas, grandes ações foram deflagradas contra núcleos de população civil, principalmente na Cisjordânia, de onde partiam os guerrilheiros para ataques ao território israelense. A Guerra de Suez, em 1956, determinaria as condições para a eclosão do conflito em 1967. A desmilitarização da Península do Sinai e a recomposição das forças armadas egípcias foram acompanhadas de um sentimento de frustração entre os palestinos, enquanto a introdução do componente soviético no Oriente Médio e a ideologia do pan-arabismo foram elementos extremamente importantes no novo jogo de forças, mas cuja abordagem extrapola os limites deste artigo. Em junho de 1967 as fronteiras israelenses mantinham-se em ebulição, com exceção, justamente, da fronteira com o Egito, onde uma força dos Capacetes Azuis das Nações Unidas mantinha a trégua desde a retirada das tropas israelenses do Sinai. Mas no norte, as tentativas sírias de desviar as nascentes do rio Jordão, e as disputas em torno do cultivo, por parte de Israel, das áreas desmilitarizadas ao longo da fronteira, mantinham alta a temperatura e já não se podia determinar o que era provocação e o que era retaliação. Quase diariamente os dois países se enfrentavam, fazendo as manchetes dos jornais de todo o mundo. Na longa e indefensável fronteira entre Israel e a Jordânia, apesar dos velados interesses comuns do rei Hussein e do governo israelense, a escalada de infiltrações e retaliações fazia parte da dinâmica do mundo árabe, o que contribuiu para envolver a Jordânia na guerra. Os fatos envolvendo o confronto e suas causas são amplamente conhecidos. O Secretário de Estado norte-americano à época, Dean Rusk, descreveu com precisão a atmosfera às vésperas da Guerra: segundo ele, a psicologia árabe da Guerra Santa havia colidido com a psicologia apocalíptica de um Estado israelense temeroso por sua sobrevivência. Por um lado, havia uma ampla coincidência da opinião pública do mundo árabe, insuflada por suas lideranças que preconizavam a destruição do Estado de Israel e o lançamento dos judeus ao mar. Israel representava para os árabes o Ocidente e 300 anos de humilhação, frustração e ressentimento. E aqueles judeus, que sempre tiveram um Uzi Narkiss, Moshe Dayan e Itzhak Rabin caminham pela cidade velha de Jerusalém, ainda durante o conflito: reação inesperada das Forças Armadas transformou Israel em “fato consumado” status inferior nas sociedades árabes, foram massacrados pelos europeus ao longo dos séculos e quase aniquilados pelos nazistas, haviam surgido das cinzas para instalar-se no seio do mundo árabe e derrotar seus vizinhos ao longo dos últimos vinte anos. Este erro seria agora corrigido. Do lado israelense, conviviam duas percepções: por um lado a fragilidade e vulnerabilidade, herança dos pogroms e do Holocausto, por outro a mentalidade criada pela nova geração, nascida e educada em Israel, que estabeleceu as brigadas combatentes, os núcleos das forças armadas israelenses e as unidades especiais tão bemsucedidas ao longo dos anos anteriores. Na escalada que leva ao início das hostilidades, nas escaramuças entre sírios e Revista 18 21 O REPÓRTER Oficiais da Aeronáutica inspecionam caça francês pouco antes de sua partida para uma missão sobre o Egito: destruição da aviação inimiga foi um dos trunfos de Israel para a rápida resolução do conflito armado israelenses, a força aérea israelense derruba seis dos mais modernos aviões russos fornecidos à Síria. O envolvimento das superpotências tem de ser visto à luz dos alinhamentos da Guerra Fria; os Estados Unidos estavam cada vez mais atolados no Vietnã e a União Soviética ampliava sua penetração junto aos Estados árabes radicais. A derrubada de aviões soviéticos pelos caças israelenses fornecidos pela França representava uma afronta ao prestígio russo e estes revidaram, insuflando os ânimos e falsamente alertando os sírios para uma planejada invasão israelense. Nasser foi compelido a apoiar os sírios e “deixar de se esconder por trás das tropas da onu”. Em poucos dias, as forças de paz das Nações Unidas abandonaram suas posições no Sinai e na Faixa de Gaza, colocando 100 mil soldados egípcios e mil tanques na fronteira sul de Israel. Em 17 de maio, o estreito de Tiran foi fechado à navegação israelense, bloqueando o porto de Eilat e o acesso ao petróleo iraniano. Menos de três décadas após a capitulação de Munique, um ditador enfrentava 22 Revista 18 A Guerra dos Seis Dias, como veio a ser conhecida, representa apenas um elo, ainda que dos mais importantes, numa longa cadeia de eventos iniciada com as primeiras imigrações de judeus da Europa Oriental para o que era então uma região do Império Otomano, e a mudança dos primeiros habitantes judeus de Jerusalém para a região fora dos limites das muralhas da cidade velha uma organização internacional, revertia os acordos selados ao final do conflito anterior, e o mundo não reagia. A resposta israelense foi devastadora. Em um ataque preventivo lançado contra os campos de aviação egípcios, a quase totalidade dos aviões foi destruída no solo, eliminando sua capacidade de proteger as forças terrestres no Sinai. Estas foram destruídas pelos israelenses em poucos dias, estabelecendo ao longo do Canal de Suez a nova fronteira que vigorou até a guerra de outubro de 1973. A Jordânia se envolveu na guerra por razões completamente diferentes: o rei Hussein mantinha uma relação ambígua com Israel, mas temia ser visto como traidor da causa árabe. Colocou suas forças sob o comando de um general egípcio, envolvendo a Jordânia na guerra logo no primeiro dia. Os israelenses decidiram não repetir a hesitação de 1948; em sangrentas batalhas derrotaram o exército jordaniano que se retirou para a outra margem do rio Jordão, deixando nas mãos dos israelenses uma Jerusalém reunificada (incluído o terceiro O REPÓRTER lugar mais santo do Islã), as antigas comunidades do bloco de Etzion e Hebron, abandonadas vinte anos antes, e uma população de mais de dois milhões de palestinos. Na fronteira norte, apesar do constante bombardeio pela artilharia síria, a guerra somente se iniciaria no quinto dia; em dois dias de brutais batalhas os israelenses ocupam as colinas de Golan, único território anexado a Israel além da parte leste de Jerusalém. A GUERRA DOS SEIS DIAS TRANSFORMARIA ISRAEL em “fato consumado”; e o Oriente Médio jamais voltaria a ser o mesmo. Os Estados Unidos passaram a considerar Israel como um “ativo estratégico” no Oriente Médio e, ao lado do Irã, parte integrante da Doutrina Nixon1. Os líderes árabes descobriram que Israel não poderia ser erradicado pela força das armas, o que abriu a porta para a chamada opção demográfica. Renasceu, neste momento, o conceito do Estado binacional, derivado da aspiração do sionismo messiânico de incorporar ao estado israelense as áreas conquistadas na Cisjordânia. Do lado palestino, a frustração das esperanças depositadas em Nasser levou a uma reformulação de sua liderança. Arafat se firmou, em 1968, como líder da Organização para a Libertação da Palestina (olp) que, em 1972, foi reconhecida como o legítimo representante do povo palestino. O abandono desta função por parte do rei Hussein foi contraposto pela rígida postura de Golda Meir, herdeira política do primeiro ministro Levi Eshkol, que negava a existência de um “povo palestino”. Quarenta anos é um longo período, simbolizado na Bíblia pelo tempo passado no deserto, da saída do Egito até a formação de uma nova geração. Que lições foram aprendidas ao longo deste período? A guerra de outubro de 1973, também conhecida como Guerra do Yom Kipur foi necessária para convencer os israelenses de que Nietzsche2 tinha razão quando, depois da vitória alemã na guerra franco-prussiana, alertou seus compatriotas dizendo que “a vitória militar não constitui prova de superioridade cultural”. Após 1967, os israelenses se agarraram a seus louros, fortificaram suas linhas de frente e entrincheiraram-se em uma nova “Linha Maginot”, somente para sucumbir às levas de sírios e egípcios no ataque-surpresa que iniciou a guerra. A mudança de doutrina estratégica, causada também pelo enorme aumento de suas linhas de suprimento, foi acompanhada da necessidade de continuar uma guerra assimétrica, de atrito, contra as forças da olp que a partir da Jordânia se infiltravam nos territórios ocupados. Quase que imediatamente iniciouse a discussão em relação ao destino dos territórios: os radicais, apoiados por uma crescente parcela de elementos religiosos que viam na vitória um milagre divino, não hesitavam em propor a anexação da Cisjordânia e, em alguns casos, a expulsão de seus habitantes. Uma população palestina conformada com sua sorte, uma Jordânia Em um ataque preventivo lançado contra os campos de aviação egípcios, a quase totalidade dos aviões foi destruída no solo, eliminando sua capacidade de proteger as forças terrestres no Sinai. Estas foram destruídas pelos israelenses em poucos dias, estabelecendo ao longo do Canal de Suez a nova fronteira que vigorou até a guerra de outubro de 1973 imersa em seus próprios problemas e o surgimento de um forte movimento pela colonização, baseado nos “ideais messiânicos de redenção”3, levou à criação dos assentamentos, ao plano Allon e ao conceito da retenção do Vale do Jordão, aprofundados após a eleição do Likud em 1977. Do outro lado colocaram-se líderes como o moderado Levi Eshkol e David Ben Gurion, que reconheceram desde o inicio a impossibilidade de manter um Estado judaico democrático incorporando aquela população hostil. Hoje, passados quarenta anos e outras quatro guerras4, uma rápida olhada no mapa mostra um Golan ocupado e que assim continuará enquanto os sírios não derem sinais de que estão dispostos a uma acomodação de longo prazo (ainda que o aprofundamento da ligação Irã - Síria - Hezbolá possa estimular os sírios a se lançarem em uma aventura bélica de trágicas conseqüências). A Faixa de Gaza, apesar de abandonada por Israel, tornou-se um ninho de terrorismo suicida e lançamento de foguetes, que por hora somente tem sido neutralizado pela artilharia israelense e pela disputa entre o Hamas e o Fatah por seu controle. E na Cisjordânia, além da construção da barreira de separação, consolida-se a anexação da parte leste de Jerusalém com os novos bairros construídos a partir de 1967. Mas assim como Yamit foi abandonada em 1982, para atender aos acordos de Camp David, podemos vislumbrar também o abandono de cidades como Ariel e Maale Adumim, apesar das dezenas de milhares de israelenses que hoje lá habitam. Em algum momento, uma liderança palestina pragmática assumirá que optará pelo mesmo critério assumido por Ben Gurion em 1947: o de aceitar aquilo que podia ser conseguido, ainda que com o objetivo de mudar o mapa por outros meios no futuro. Caberá, então, ao governo israelense assumir o risco de acomodar-se ao lado de um vizinho independente e irredentista (e ter seu líder assassinado por radicais judeus, como no caso de Itzhak Rabin), ou perpetuar uma relação de conquista que talvez venha a tornar-se intolerável. Talvez sejam necessários outros quarenta, ou oitenta anos para que a face da região se transforme de maneira definitiva. Samuel Feldberg é doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo, professor de Relações Internacionais das Faculdades Rio Branco, pesquisador do Núcleo de Pesquisa em Relações Internacionais da USP e autor de Israel e Estados Unidos - uma aliança em questão (no prelo) 1 A nova política de intervenção norte-americana, derivada da guerra do Vietnã, que se apoiava em aliados locais armados pelos Estados Unidos. 2 F. Nietzsche, The Twilight of the Idols (Harmondsworth, Middlesex: Penguin, 1968). 3 A. Ravitzky, Messianism, Zionism, and Jewish Religious Radicalism (Chicago, The University of Chicago Press, 1996). 4 A Guerra de Atrito de 1970, do Yom Kippur em 1973, a primeira Guerra do Líbano de 1982 e a segunda, em 2006. Revista 18 23 O REPÓRTER Cidadãos globais ou espectadores eventuais? Paulistanos falam sobre o conflito do Líbano Heloisa Pait conversa com seus concidadãos, escolhidos aleatoriamente entre passantes do Conjunto Nacional ou de uma fila de cinema, e observa a perplexidade do homem comum ante guerras causadas por forças desconhecidas © Roney C Paulistanos caminham diante do Conjunto Nacional, ícone da arquitetura metropolitana, escolhido por Heloísa Pait como campo de provas para sua pesquisa acerca da percepção de seus concidadãos sobre o recente conflito no Oriente Médio 24 Revista 18 omo os paulistanos viram o conflito do Líbano de 2006? Até que ponto se envolveram com as notícias que chegavam aqui? De onde tiraram recursos para compreendê-las e como formaram suas opiniões? Entre julho e outubro de 2006, saí a campo por São Paulo com estas perguntas impressas numa folha de sulfite azul e uma enorme curiosidade na cabeça. A vontade de saber o que meus concidadãos viam em todas aquelas histórias e cenas de guerra vinha de meu envolvimento pessoal com os destinos do Estado de Israel, que se por um lado não fazia de mim um interlocutor neutro, por outro garantia a atenção genuína que favorece a construção de narrativas ricas e complexas. O pano de fundo para minhas entrevistas, entretanto, era uma investigação sobre meios de comunicação, espaços públicos e globalização. Existe hoje uma sociedade civil global em construção, com narrativas e celebrações comuns, linguagens e valores intercambiáveis, preocupações e objetivos passíveis de negociação? Ou, apesar de toda a integração econômica, das facilidades de locomoção e comunicação globais, as discussões de caráter público ainda são delimitadas por fronteiras nacionais? O REPÓRTER De modo concreto, será que ao brasileiro importa o que se passa no planeta, ou seus esforços se voltam apenas para compreender e debater problemas locais e nacionais? Podemos falar hoje de um cidadão global, que se vê como parte de uma sociedade mais ampla e quer participar de deliberações de caráter global? Sendo esse o contexto das entrevistas, estive mais atenta ao modo como os entrevistados se relacionavam com as notícias e formavam suas opiniões do que propriamente às suas posições políticas em relação aos envolvidos no conflito. Fiz um total de 42 entrevistas, cuja duração variou entre quarenta minutos e quatro horas. Na última semana de julho, falei com 24 pessoas que passavam pelo Conjunto Nacional à hora do almoço. Esse público médio acompanha os principais acontecimentos nacionais e internacionais pela tv ou em jornais diários e revistas semanais, e mostrou enorme receptividade à conversa. Falei, também, com participantes do debate com Demétrio Magnoli e Paulo Farah, realizado na Casa de Cultura de Israel, que acabou tendo como tema o conflito no Líbano, e que foi um dos raros debates públicos sobre o tema naqueles meses. Falei, ainda, com espectadores de dois filmes exibidos na 30a Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, que retratavam o Oriente Médio, já em outubro. Não pude analisar o público da internet como ele merece. Todos os meus entrevistados sabiam que um conflito importante acontecia no Oriente Médio. Um disse Líbia ao invés de Líbano, e vários não sabiam o nome do movimento armado libanês envolvido no conflito. Mas, de um modo geral, todos sabiam que Israel havia atacado o Hezbolá, no Líbano. Muitos citaram como causa aparente do conflito o seqüestro de soldados israelenses, mas buscavam causas mais profundas para um conflito daquela extensão. Poucos tinham críticas aos meios de comunicação, que os entrevistados julgavam – acertadamente, em minha opinião – estarem fazendo uma boa cobertura, bem informativa e relativamente isenta. “Quem quiser saber mais pode ir atrás” foi algo que ouvi muitas vezes. Ao mesmo tempo, os entrevistados pareciam satisfeitos com o que os meios de comunicação de massa lhes traziam. Raros foram os que disseram ter consultado alguma enciclopédia ou comprado a edição especial de uma revista para compreender melhor o que se passava. Uma professora universitária evangélica, pró-Israel, que lê todos os dias, na internet, os principais jornais mundiais, relacionou o Hezbolá com a retórica crescentemente belicista de Ahmadinejad, mas foi uma exceção. Mesmo um engenheiro que trabalha na indústria bélica brasileira, e que esteve prestes a ir ao Iraque nos anos 80, mostrou pouco conhecimento a respeito das cisões entre muçulmanos, quase nada além do que é mostrado nos jornais televisivos nacionais. Transpira em quase todas as entrevistas uma enorme preocupação com as vidas perdidas e colocadas em risco, com as separações e os transtornos causados por uma guerra cujas razões não estão claras Se o grau de interesse era relativamente homogêneo, as opiniões divergiam. Há desde aquela cabeleireira que acredita que ainda se trata daquelas perseguições que vêm “desde o tempo do Hitler” até os que acham que Israel e os Estados Unidos estão sempre invadindo alguém. As associações entre o conflito e os problemas brasileiros variaram conforme as posições tomadas, mas não apareceram espontaneamente. Entre as exceções, um técnico de laboratório que teve medo de estarmos vendo o começo da 3ª Guerra Mundial e um administrador de empresas que temia os transtornos de uma alta no petróleo. De modo geral, no entanto, o conflito parecia acontecer em um lugar remoto: “Eles estão sempre brigando”. Transpira em quase todas as entrevistas uma enorme preocupação com as vidas perdidas e colocadas em risco, com as separações e os transtornos causados por uma guerra cujas razões não estão claras. Senti nas falas de meus entrevistados uma dor genuína ao falar de vítimas da guerra dos dois lados, além da tendência de culpar os “governos” (e não os povos, as culturas ou religiões) por não saberem resolver suas diferenças com diálogo e negociação. Se aparece um bode expiatório, este tende a ser os Estados Unidos, culpados por ação ou omissão. Se Condoleezza vai a Beirute é péssimo, se não vai é pior ainda. Quando pedia aos entrevistados que contassem o que estava acontecendo no Líbano como se falassem com alguém desinformado a este respeito, eles raramente conseguiam. Além do artificialismo da situação e do possível constrangimento em pronunciar errado nomes de pontos geográficos, há aí algo mais profundo, pois a cultura narrativa brasileira é rica e peçachave de nossa compreensão do mundo, mais que o raciocínio analítico ou o pensamento contemplativo, por exemplo. De onde o “branco”, então? Falta a grande parte de meus entrevistados a experiência de narrar eventos internacionais, que eles certamente têm em discutir outros assuntos. Além disso, a compreensão de eventos internacionais exige um acervo de informações mais extenso e menos acessível no dia-a-dia: conhecimentos detalhados de história, geografia, línguas, política e culturas. Com a exceção de cursos muito especializados e de debates marginais – uma discussão sobre sionismo durante um jogo de truco, por exemplo – a escola e a universidade não aparecem como lugar onde esse acervo pode ser obtido ou como lugar de debates. Já o cursinho foi lembrado, com entusiasmo, como espaço de discussão e descoberta de um mundo além de nossas fronteiras. É um quebra-cabeça complexo: existe preocupação com os acontecimentos, Revista 18 25 O REPÓRTER especialmente quanto ao seu lado humano. Há um nível de informação corrente satisfatório. Há vontade de encontrar interlocutores, o que me foi dito por vários entrevistados. Foi muito comum, aliás, que as pessoas se mostrassem felizes com a oportunidade dada pela pesquisa de falar sobre a guerra. Mas não há conhecimento suficiente para dar conta da complexidade dos fatos, nem espaços onde tal saber possa ser gerado coletivamente. Por que a universidade não cumpre esse papel, que é dela em primeiro lugar, é um mistério. Recorrer a fatos históricos remotos pode ser visto, então, como um modo de engatar uma narrativa com um interlocutor com quem não se compartilha um conjunto de suposições. Se pergunto a uma amiga o que aconteceu na novela, ela compreende que quero saber apenas os últimos fatos. Quando eu perguntava o que havia acontecido no Líbano nas últimas semanas, a ausência desse corpo compartilhado de conhecimento levou muitos entrevistados a buscar um ponto de fuga para sua narrativa, como a fundação de Israel ou até eventos bíblicos. Notei que os entrevistados com maior escolaridade buscaram ir além da visão concreta da guerra, da preocupação com a destruição e com as vidas postas em risco, mas de dois modos distintos. Um advogado contou que amigos de diferentes posições o acusam de ficar eternamente “no muro”, sendo que esse papel ponderado é exatamente o que ele busca. Uma engenheira disse que o Brasil pode contribuir com a solução dos conflitos no Oriente Médio, aproveitando nossa capacidade de diálogo e criando espaços onde distintas posições são acolhidas. Aí a escolaridade serviu para trazer uma complexidade maior à narrativa do conflito e abriu espaço para a atuação individual. Mas veja essas outras análises: para um pequeno empresário, a mídia brasileira não pode dar versões corretas do conflito devido à influência de bancos israelenses. E um mestrando em direito relacionou a visão do conflito em cada país ao tamanho de sua comunidade judaica. Esdrúxulas ou com aparência racional, asserções deste tipo aparentemente dão conta de qualquer fenômeno e livram os entrevistados da tarefa de compreender o conflito ou de aceitar que ainda não o fazem. Mas mesmo nesse grupo 26 Revista 18 surgiu o interesse em conhecer como outros entrevistados reagiriam às mesmas perguntas, o que mostra abertura intelectual. Três conversas com jovens paulistanos me marcaram muito, iluminando a relação entre nossas identidades mais pessoais e o modo como nos relacionamos com questões globais. Uma simpática administradora de empresas, que estudou numa tradicional faculdade privada, sabia quase nada sobre o conflito, apesar de bastante articulada. Depois da breve entrevista, pediu que eu lhe contasse o que se passava no Líbano. A cultura narrativa brasileira é rica e peça-chave de nossa compreensão do mundo, mais que o raciocínio analítico ou o pensamento contemplativo. De onde o “branco”, então? Dei minha versão, que ela escutou atenta, a partir da qual começou a questionar por que não estava informada, já que na época da faculdade gostava de debater com as amigas esse tipo de assunto. Por que sua vida tinha se resumido ao trabalho, happy hour e fim-de-semana com o namorado? “Obviamente você gosta do que faz. E eu?”, ela me perguntou. Um office-boy, com o segundo grau incompleto, mostrou-se preocupadíssimo com a tragédia que acontecia no Oriente Médio: “Se a gente pudesse fazer alguma coisa…” Ele lê a Folha ou o Estadão na hora do almoço, mas tem pouco tempo. Com os colegas, não pode discutir, pois só falam de futebol e diversão. Ouve os advogados da firma para a qual trabalha discutindo no elevador, mas pelo status inferior não pode entrar de pára-quedas na conversa. Eu perguntei se havia tentado alguma vez, e ele respondeu que caso o fizesse seria tratado com polidez e condescendência, e depois a conversa morreria. “Eles nem olham para mim. Só estou ali para cumprir um papel. Se estivesse na escola, os professores pediriam trabalhos, eu estaria discutindo, iria pesquisar.” O terceiro entrevistado, que encontrei na Mostra de Cinema, fez uma boa faculdade privada e hoje trabalha com produção de vídeo. Não conseguia compreender os ódios étnicos do Oriente Médio, uma vez que na periferia violenta onde cresceu o luto era acompanhado de resignação. Na adolescência, via filmes comerciais no centro, e depois passou a freqüentar o cinema de arte exatamente pela curiosidade a respeito de outros lugares e pessoas: “Então Londres é assim! Como serão os xiitas? Queria estar naquelas fronteiras do filme Free Zone”. Ele viu no cinema a chance de se inserir num mundo mais amplo, que seu ambiente social e educação formal não lhe dariam. “A escola é muito ruim, mas muito ruim mesmo”, me disse com lágrimas que não tinham aparecido até então. Saber o que se passa com gente como nós em outras partes do mundo não se resume a estar informado. Também vai além do desejo de participação numa nova sociedade civil global, que é o que imaginei encontrar no início da pesquisa. Para alguns de nós, novos cidadãos globais, a relação com o mundo lá fora é parte da imagem mais profunda que temos de nós mesmos. Se perdemos o desejo de saber como andam os outros, ficamos desfalcados; se não temos com quem falar sobre isso, sentimo-nos banidos; e se, de algum jeito, encontramos uma janela a partir da qual se abre a experiência de gente tão distante, nós vencemos. Heloisa Pait ([email protected]) é doutora em Sociologia da Comunicação pela New School for Social Research e professora da Faculdade de Ciências e Letras da Unesp O REPÓRTER O peixe cantador Líder da banda que acompanhou o show de Matisyahu em São Paulo, Eduardo Faigemboim, ou o Peixe, está renovando, com sua Sensacional Orquestra Sonora, o cansado cenário de músicas para festas. Por Flavio Blasbalg Rod rigo Ros ent hal /Im ã M ais um casamento está por acontecer. Homens de ternos azul marinho, mulheres de pretinho básico, borrifadas com perfume adocicado. Na entrada da cerimônia, aqueles que esqueceram sua kipá em casa podem se servir das oferecidas pelos noivos, que ainda tiveram o cuidado de gravar seus nomes e a data da união na parte interna do solidéu. O roteiro todos já Para o Peixe, caminho da música não foi um acaso: “sinto-me privilegiado por poder transmitir as belezas e a alegria da música judaica” 28 Revista 18 conhecem, sabem que logo depois do copo ter sido quebrado é hora de se posicionar, quase como uma largada de maratona em busca da melhor mesa do salão de festas. É ali que a família, amigos e um semnúmero de convidados deverão ouvir as mesmas músicas tocadas em casamentos nas últimas cinco décadas. Clássicos como It’s Raining Man, La Bamba, Biquini de Bolinha, Hava Naguila e a indefectível New York, New York serão fatalmente interpretadas, seja pela banda, seja pelo dj. A música, tida como alma de qualquer festa, tornou-se uma commodity. Pelo menos até a chegada de um músico que até pouco tempo era mais um executivo de marketing frustrado, preso em um escritório e longe dos palcos, seu verdadeiro habitat. Eduardo Faigemboim, ou Peixe, como é conhecido, está provando que nem todos os casamentos precisam ser iguais. Tudo começou por acaso, meio sem querer, quando um amigo decidiu se casar e o nomeou padrinho. Todos sabem que o padrinho é aquele que dá bons presentes, em geral caros. Como o mar não estava para peixe, o então gerente de uma grande marca esportiva teve uma idéia brilhante: dar de presente a música da festa! Rafael Terpins, o noivo, conhecia e apostava no talento do padrinho. O acordo estava fechado. A festa não só rasgou a noite como também alguns paradigmas. Peixe fez questão de tocar os hits necessários de qualquer festa, só que de maneira diferente, com arranjos e ritmos pouco usuais. A mistura de rock, disco e ska, passando por bolero com pitadas de ritmos judaicos, frevo e reggae, foi o tempero que faltava para que aquele casamento ficasse marcado na lembrança de todos os presentes. Teve até “canja” de convidado que também era músico e acabou dividindo o pequeno palco que marcou o início da carreira artística deste paulistano de 31 anos. De lá pra cá o telefone não parou mais, incluindo aquele convite para abrir o show da maior estrela pop judaica da atualidade: Matisyahu, compositor e cantor americano que mistura reggae clássico com judaísmo ortodoxo e que concorre ao prêmio Grammy deste ano, espécie de Oscar da música mundial. Cerca de quatro mil pessoas lotaram o ginásio do clube A Hebraica, em São Paulo, no final de janeiro para cantar e dançar ao ritmo da Sensacional Orquestra Sonora (sos), nome da banda do Peixe, e, claro, de Matisyahu. “Vocês fizeram um bom trabalho”, sentenciou o músicodublê de rabino. Antes de batizar como sos, Peixe criou um nome bem sugestivo para a primeira formação de sua banda que chega a ter até dez músicos: The Iídiche Mamas & The Papas. Como todo bom negociante, o ex-marqueteiro percebeu que pouca gente fora da comunidade perceberia o trocadilho e decidiu O REPÓRTER mudar; afinal o mercado de festas de casamentos e outras comemorações é muito maior do que se imagina. Peixe já foi contratado para as mais diferentes situações, desde os tradicionais casamentos, sejam eles judaicos ou não, batizados, bar-mitzvás, aniversários e até celebração de morte. “A família queria algo especial para lembrar os dez anos de morte de um ente querido. Só que eles queriam celebrar as passagens felizes, as boas memórias”, explica. “Minha maior gratidão é saber que levo alegria para as pessoas, que sou parte de um momento muito especial na vida daqueles que me chamaram. Sou um privilegiado.” Em setembro de 2005, Peixe mergulhou na emoção de inaugurar uma sinagoga, o Centro Religioso Bait, localizado no tradicional bairro de Higienópolis. Quem imaginou protocolos, formalidades e pessoas falando baixo, está enganado. A convite do rabino Isaac Michaan, Peixe subiu em um trio elétrico e circulou pelas ruas da vizinhança com uma horda de mais de três mil foliões cantando e dançando ao som do primeiro trio elétrico judaico de que se tem história. Até o atual governador de São Paulo, José Serra, caiu na festa. Para o rabino, o que vale é a mensagem, independente da forma. “Ele toca o coração das pessoas”. O resultado musical foi tão bom que Michaan chamou-o novamente para comemorar o primeiro ano do Bait, durante a festa de Simchat Tora, data que festeja a existência do mais sagrado dos livros judaicos. As tradicionais hafkafot, sete voltas que os fiéis fazem ao redor da sinagoga carregando a Torá, foram embaladas pela interpretação hassídica em ritmos que passaram do reggae ao bolero, do rock ao forró. “O judaísmo é uma religião que celebra a vida. O Peixe é um jovem vibrante que conseguiu criar uma nova forma de transmitir essa alegria judaica para as pessoas”, diz Michaan. “No dia do trio elétrico, um senhor de quase setenta anos veio falar comigo, dizendo que nunca se imaginaria dançando na rua com a Torá nas mãos. E foi exatamente o que aconteceu”, lembra o rabino. Para Peixe, que não se considera religioso, o caminho da música não foi um acontecimento ao acaso. “Isso me marcou muito, nunca imaginei que pudesse ter um retorno sentimental tão grande. Sinto-me privilegiado em poder transmitir para várias partes da sociedade as belezas e a alegria da música e das tradições judaicas. Tenho descoberto que esta é a minha missão”. De nada vale a forma sem conteúdo. Peixe faz questão de explicar tudo o que acontece aos sete músicos da Sensacional Orquestra Sonora que não são judeus. Baseado no aprendizado adquirido nos anos em que estudou no colégio I.L. Peretz, o líder da banda explica o significado de cada acontecimento, celebração e simbologia. Paulinho, o trompetista da orquestra, que também se apresenta em cultos de igreja, é um dos mais interessados. O guitarrista Fabio Pinczowski, seu sócio na sos, e a vocalista Helena Rosenthal ajudam na troca de informações interculturais. O que todos concordam é que a mais básica das tradições é tocar New York, New York nos casamentos. O único que não sabia disso era o próprio Peixe. “Da primeira vez que pediram, não sabia o que fazer. Não tinha a letra, nunca tinha sequer tocado”. O jeito foi ensaiar para que nem os convidados e nem os músicos da banda pudessem fazer chacotas novamente. Letra memorizada, arranjo feito, o gostinho da vitória estava por chegar. Lá pelo meio do casamento seguinte, os pais da noiva se aproximaram do palco e, como se estivessem no Rockfeller Center, pediram a mais clássica canção de Albert Francis Sinatra. Sorriso maroto no canto da boca, Peixe respirou fundo, deu aquela olhada para os companheiros e... caiu na gargalhada. O descontrole durou quase dois minutos, uma eternidade para quem está sendo observado por quinhentos conviTudo começou por acaso, dados. “Apesar da meio sem querer, quando um saia justa, ficou um clima bom, todos amigo decidiu se casar e o riram juntos e eu nomeou padrinho consegui, finalmente, cantar a música”, relembra. Àqueles que nunca foram a uma festa comandada por ele, Peixe promete lançar seu primeiro cd ainda este ano. Além das canções judaicas com arranjos mais modernos e inusitados, o músico também compõe peças inéditas e próprias. Sua inspiração vem de viagens, praia, surf (esporte que pratica há anos) e até das influências latinas, vindas Colômbia, país de origem de sua mãe. Ainda em 2007, Peixe fará sua segunda apresentação no segundo casamento do amigo Rafael Terpins, aquele que marcou o início de sua carreira. “A primeira festa deu tão certo que eu vou repetir a dose, só que com outra noiva”, brinca Terpins. Romântico e um tanto tímido fora do palco, Peixe sonha em tocar em seu próprio casamento. Enquanto não encontra a felizarda, o músico já faz promessas: “eu não tenho muito a oferecer, mas a banda é de graça”. Flavio Blasbalg é jornalista Revista 18 29 SEÇÃO NO CENTRO Projeto COEXISTENCE de Arte-Educação vai à escola: mais de 3 mil alunos da rede municipal de ensino foram atendidos COEXISTENCE O setor de Arte-Educação desenvolve monitorias que pretendem promover o debate e a reflexão acerca da temática da coexistência entre professores e alunos em São Paulo D ando continuidade às atividades, de 28 de agosto a 26 de setembro de 2006, na Praça da Paz do Parque do Ibirapuera, do projeto coexistence, o Centro da Cultura Judaica estabeleceu importante parceria com a Secretaria Municipal de Educação e contato com escolas do Estado, escolas particulares e organizações não governamentais de São Paulo, para viabilizar a participação de alunos e professores no projeto coexistence vai às escolas em 2007. Alunos e professores do Ensino Fundamental foram convidados a participar deste projeto até novembro. No mês de abril, os monitores foram recebidos por 34 grupos do Ensino Fundamental, ou seja, cerca de 1.360 alunos. Até o final de maio teremos atendido 71 escolas, um total de 3 mil alunos. Diariamente, diferentes escolas recebem uma dupla de monitores que levam consigo dez reproduções autorizadas dos painéis, de diversos artistas do mundo, que estavam expostos no Ibirapuera. Os alunos discutem suas idéias e sentimentos frente às imagens e participam de uma oficina prática de artes plásticas, onde fazem uma pintura em grupo. No agendamento, os professores, são orientados a implantar as ações e projetos de coexistence em suas escolas com os painéis produzidos durante a oficina, possibilitando a realização de uma exposição interna e discussões sobre esta experiência. Até a data da publicação deste artigo já tínhamos reservas até meados de outubro, mostrando o enorme sucesso do coexistence vai às escolas. Acreditamos que esta é uma experiência muito rica, já que as imagens do coexistence trazem conteúdos importantes a serem assimilados pelos alunos, promovendo o conhecimento sobre a diversidade das culturas em uma perspectiva inclusiva. Um grande estímulo para que os alunos se tornem cidadãos informados, capazes de argumentar e, ainda, socialmente responsáveis. Uma experiência proveitosa para todos os envolvidos: monitores, professores, coordenadores e alunos. “A iniciativa de virem até a escola e conhecer a nossa realidade foi sensacional” emef Maria Rita de Cássia Pinheiro Simões Braga “Excelente iniciativa que contribui para a reflexão e o desenvolvimento do aluno como cidadão” ee Toledo Barbosa Aconteceu no Centro da Cultura Judaica Cida Moreira apresenta o show Aos que estão por vir, com canções de Kurt Weill e Bertolt Brecht Raul Meyer conduz a celebração do Seder de Pessach, ao qual compareceram representantes das principais religiões e personalidades do mundo da cultura e da política O prefeito Gilberto Kassab ao lado de David Feffer na celebração do Seder de Pessach Inauguração da exposição COEXISTENCE 30 Revista 18 O grupo Alia Musica, que se apresentaria no dia 13/05/2007, cancelou sua vinda ao Brasil devido ao adiamento do projeto da ii Mostra Brasileira de Música Antiga SEÇÃO A célebre Ponte de Carlos, de Praga: para Flusser, geografia física e psicológica da cidade encontra em Kafka sua mais exata cartografia Um judeu que militou contra as pátrias: Vilém Flusser e as marcas do exílio Nascido na Praga de Kafka, uma cidade de pontes entre culturas e línguas, Vilém Flusser refugiou-se da barbárie nazista no Brasil, e aqui criou uma das obras mais instigantes da filosofia do século 20, calcada sobre a idéia de comunicação entre culturas, e sobre a crítica à noção de pátria, hoje bem melhor conhecida na Europa do que entre nós. Por Márcio Seligmann-Silva V ilém Flusser é autor de um pequeno e contundente texto escrito em inglês, cujo título é “The bridge”. Esta engenhosa peça autobiográfica abre o volume Jude sein (Ser Judeu), organizado por Stefan Bollmann e Edith Flusser. O texto se inicia com uma descrição da casa da infância do autor em Praga. Nos fundos desta casa encontrava-se a fábrica do avô 34 Revista 18 materno, Julius Basch, elegantemente denominada de “Fabrique des colorants inoffensifs” (Fábrica dos corantes inofensivos). Ligando a cozinha do avô ao prédio da fábrica havia uma ponte que dava diretamente na cobertura da fábrica, onde havia um jardim. Desta ponte, Vilém e sua irmã Ludvika costumavam observar os trabalhadores no pátio da fábrica. Disputando os olhos curiosos deles andava também, neste mesmo pátio, o enorme cão São Bernardo, Barry. Esporadicamente as crianças se divertiam galopando sobre ele. Mas, em um belo dia de 1926, narra este texto, os irmãos Flusser viram Barry, que brincava com um dos funcionários, repentinamente virar-se. Ele atacou este funcionário que caiu no chão e um jorro de sangue ficou a escorrer de sua Fotos: © RyanDianna perna, que Barry não queria mais largar. Flusser narra esta história como uma espécie de Denkbild (imagem-pensamento) benjaminiano, ou seja, como uma pequena imagem que condensa um aspecto importante de sua experiência de vida. Este incidente ensinou a ele que pode haver algo como “uma metamorfose repentina do bem em uma brutal agressão”. Este episódio de 1926 ele conecta – em uma espécie de ponte metafórica – com a virada ocorrida na sua vida e na dos milhares de judeus de Praga em 1939 graças “à repentina mudança de atmosfera com a ocupação nazista”. “Aos meus olhos”, escreveu Flusser, “Praga é como um cão São Bernardo Barry”. A virada que ele testemunhara com seu cão já o preparara para esta outra terrível virada. Mas se Flusser afirma que desde então, ou seja, dos seus seis anos de idade, não gostou mais de pontes, por outro lado ele não deixou de admirar uma ponte em particular, também localizada em Praga, a saber, a famosa Ponte de Carlos. Em seu ensaio sobre “Praga, a cidade de Kafka” ele destacou várias analogias ou afinidades eletivas entre a geografia física e psicológica de Praga e o universo das obras kafkianas. Uma peça fundamental nesta geografia é justamente esta ponte, que é descrita como “um elo impossível, mas realizado, entre Castelo e igreja, entre monte e vale, entre o rei e o burguês, entre a soberba e a humildade, entre a rua dos alquimistas e a universidade, entre o céu e a terra, entre o ‘Castelo’ e a aldeia de Kafka”. Praga é marcada por esta imponente e deli- DOSSIÊ cada ponte, justamente porque é um espaço de tensões e campos de força. Esta cidade viveria de sua própria dissolução. Flusser a descreve como uma cidade “situada nas fronteiras”. Kafka seria um “pontífice”, ou seja, segundo Flusser, um “construtor de pontes impossíveis”. Nele percebemos a “posição flutuante e duvidosa do praguense com relação a sua ‘nacionalidade’ ”, que se explicita, sobretudo, nos momentos em que esta cidade foi ocupada. O triângulo cultural entre o alemão, o tcheco e o judeu ditava a característica desta cidade como campo de passagem entre fronteiras. Kafka também transitava, como Praga, entre o gótico e o barroco, entre o ocidente e o oriente europeus, e sua língua era simplesmente “o próprio alemão praguense”. Mas Flusser, no seu apanhado das pontes que Uma peça fundamental na geografia de Praga é a Ponte de Carlos, descrita por Flusser como “um elo impossível, mas realizado, entre Castelo e igreja, entre monte e vale, entre o rei e o burguês, entre a soberba e a humildade, entre a rua dos alquimistas e a universidade, entre o céu e a terra, entre o ‘Castelo’ e a aldeia de Kafka” marcam a obra de Kafka e no seu paralelo com a Praga da Ponte de Carlos, também desemboca, inexoravelmente, na virada, na metamorfose repentina, ou seja, na “mordida de Barry”. Ele recorda que Praga, que era a unidade destes mundos e, sobretudo, destas três culturas – a alemã, a tcheca e a judaica – tornou-se inteiramente outra com a eliminação de seus judeus. O “pontífice” Kafka teria conseguido ainda congelar e passar adiante, nas imagens de sua obra, uma cultura que foi extinta. As metamorfoses que ele narrou, aprendemos poucos anos após sua morte, eram antevisões de metamorfoses muito mais terríveis do que ele pudera imaginar. Gostaria de me deter em alguns aspectos da obra de Flusser que se relacionam com esta virada na sua história, na história de Praga e na da Europa. É importante indicar na obra deste pensador as marcas desta metamorfose, mas também deste verdadeiro culto da “ponte”. O “pontificado” de Flusser se estende sobre a linguagem. Mas como, para ele, língua é realidade, este pontificado é uma tentativa de (re)construir pontes após o abalo sísmico provocado pelo nazismo. Suas pontes são tanto internas, sentimentais, tentativas de diálogo com sua cultura perdida, como também uma resposta ao enlouquecimento da língua, que se tornara monolíngüe e deste modo bloqueou abruptamente, e com violência, a circulação entre as línguas e visões de mundo que caracterizavam seu universo. Ser Judeu: Bodenlos e Heimatlos Ruth Klüger, em seu relato autobiográfico weiter leben, que narra como ela sobreviveu à Shoá, utiliza uma metáfora que não nos surpreende a esta altura: sua narrativa funcionaria como uma tentativa de ligar os pilares de uma ponte ruída, ou seja, os pontos de sua própria vida que ficaram ilhados pela destruição da guerra. Flusser, portanto, fez parte de uma equipe de construtores de pontes neste século de extermínios e guerras. Como outros pensadores exilados e sobreviventes da perseguição, ele desenvolveu seus teoremas em diálogo com sua época. Neste sentido é importante recordarmos alguns aspectos de sua teoria da judeidade e dos conceitos correlatos de Heimatlosigkeit (“apatricidade”) e de Bodenlosigkeit (ausência de fundamento). Devemos localizar esses conceitos dentro do panorama intelectual da segunda metade do século 20. Revista 18 35 DOSSIÊ A judeidade de Flusser, tal como correr da água que o nome Flusser indica – e podemos ler em suas idéias acerca desta não por sermos seres estáticos plantados em questão na sua obra, foi, antes de mais culturas estáticas. Daí a admiração de Flusser nada, pensada a partir do fenômeno pela cultura judaica em ambientes multilincultural único que era a cidade de Praga. gües e multiculturais, como a Praga de antes Como filho de um professor universitário da guerra e a Alexandria da era helênica. Daí, “completamente agnóstico, ainda que inte- também, sua concepção do judaísmo como ressado ativamente no judaísmo”, Flusser uma ponte que não apenas liga culturas, mas se apresenta como um judeu assimilado, também as conecta com a tradição. A grande não-ortodoxo e não-sionista. Em Praga, contribuição do pensamento judaico seria sentia a questão da identificação nacional sua dívida de memória, ou seja, o mandacomo algo “arcaico e secundário”. É claro mento da Zekher, que escandaliza o modo que ele escreve isto de sua perspectiva de de pensar anti-histórico grego. Lembrando judeu (impermeável aos nacionalismos germânico ou tcheco) e anti-sionista. Para ele, em Praga era-se “internacionalista de nascimento (e não ideologicamente), pois as pessoas sentiam na própria existência o ridículo de se fazer diferenças claras entre os povos”. O sionismo ele descartava, pois Flusser recorda que Praga era a unidade via nele um nacionalismo, uma reação ao anti-semitismo e ao de três mundos e, sobretudo, de três nazismo e porque atribuía ao culturas – a alemã, a tcheca e a judaica. judaísmo um papel “diametralmente oposto ao que o judaísmo Porém, a cidade tornou-se inteiramente desempenhava em Praga, a saber, outra com a eliminação de seus judeus. O ser ponte entre os povos”. Ser judeu, para Flusser, portanto, “pontífice” Kafka teria conseguido ainda não significava de modo algum se congelar e passar adiante, nas imagens encastelar em uma cultura fechada. Muito pelo contrário, a judeidade de sua obra, uma cultura que foi extinta para ele era também um avatar de sua doutrina das “pontes”. Daí ele não se sentir “completamente judeu”, ou seja, totalmente e exclusivamente judeu. Ser judeu, para ele, significava saber circular entre as culturas. Ele se dizia “ser por demais ‘grego’, ‘romano’, ‘germano’ e ‘cristão’ para ser totalmente judeu”. Os “limites da judeidade” fazem parte do várias figuras judaicas de destaque, ele “ser judeu”. Este deve encarar sua tarefa de propõe que cabe ao judeu produzir modelos. sintetizar as culturas. Mas cada um realiza Estes modelos seriam figuras paradoxais, sua síntese ao seu modo. Flusser toma como nascidas desta situação ao mesmo tempo elogio as palavras derrisórias dirigidas atópica – Bodenlos – que o judeu encarna, contra os judeus: “Heimatlos” e “cosmopo- e de seu engajamento com a construção lita”. Indica-se assim que eles não teriam de pontes. Acredito que o próprio Flusser raízes. Na verdade ser fiel às raízes, para ele, representaria este papel paradoxal: na sua significa superar (überholen) suas idiossin- vida única e inimitável ele representa um crasias. Isto significa dizer, o que Flusser tipo de pensador e uma postura existencial de fato faz em certos momentos, que o ser que é modelar em vários sentidos, assim humano não é uma planta. Nosso estar no como via no judeu e seu pontificado um mundo é marcado pelo fluxo – pelo Fliessen, modelo aberto a todos. 36 Revista 18 Em seu pequeno texto de 1990, intitulado “Pontificar”, ele explora a idéia da tradução como construção de pontes. Aí ele afirma que os pontífices (construtores de pontes) seriam essenciais, hoje mais do que nunca. Eles deveriam permitir o trânsito não apenas entre as diversas línguas (trânsito impossível, mas necessário), como também entre o discurso verbal e o imagético, entre o conceito e o algoritmo, entre a música e as demais linguagens. Traduzir implicaria um “salto entre universos”. Se traduzir equivale a “levar de um lado para o outro”, esta atividade é metáfora (no sentido etimológico desta palavra). Mas se, por outro lado, Flusser precisa que “tradução e metáfora não são a mesma coisa”, não deixa de enfatizar – ponto essencial para ele – que “pensar e traduzir são sinônimos, e não apenas para poliglotas”. Ser “judeu” para ele significava encarnar esta tarefa pontifícia de “oscilar” e transitar entre universos. Sua Bodenlosigkeit (falta de chão, de terra e de fundamento) abria-lhe a perspectiva de ser um nômade entre as diversas línguas e linguagens. Ao mesmo tempo, de sua “ponte” ele via que as disciplinas, nações e linguagens específicas são nômades e vivem de uma constante crise e de um fluxo que põe em questão suas identidades, como o próprio indivíduo deve ser visto como um tal fluir. Ele tinha como projeto que toda a humanidade pudesse se tornar Bodenlos e praticar o pontificado1. Flusser se coloca a questão “como viver após Auschwitz?” e uma de suas respostas é uma proposta de abertura do judaísmo. Ao invés do sionismo, que representaria um movimento de fechamento, sístole (que entende e considerou digno), propõe uma diástole, ou seja, uma abertura ao “outro”. Este movimento foi o que ele mesmo seguiu em sua vida e em seu pensamento. Ele se manteve na diáspora assim como continuou fiel, a seu modo, a seu judaísmo. Nunca tentou reconstruir as ruínas de seu passado em Praga. Sintomaticamente, a volta àquela cidade em 1991 significou o momento trágico do encontro de sua morte. Como se seu destino existencial e filosófico fosse mostrar que o engajamento no SEÇÃO e pelo outro não se dá via uma artificial recuperação do passado. A rememoração, Zekher, deve ser feita com os olhos voltados para o presente. O passado não é Deckerinnerung (memória encobridora), mas meio de pensar o presente. Com esta mirada de Flusser podemos fazer uma crítica de nossos hábitos de reconstruir ruínas e cidades destruídas pela guerra como se nada tivesse acontecido. Seu modelo do engajamento no presente a partir dos cortes (com o passado e com as ideologias nacionalistas) ainda tem muito a desconstruir. Sua experiência de vida deixou-o particularmente aberto para uma obra como Le Bouc Émissaire de René Girard, comentada por ele em um texto de 1982 (mesma data da publicação do livro de Girard). A tese central deste livro, segundo a qual as sociedades em momentos de caos e de dissolução lançam mão de bodes expiatórios para gerar novamente uma unidade, ele vivera na própria carne. Ele sabia como funciona este mecanismo psicológico que faz com que “sempre nos identificamos como os estrangeiros dos estrangeiros”. Flusser apresenta a partir de Girard uma teoria da identidade como um gesto de exclusão assassino. “Quem sou eu? É uma frase criminosa”, ele anotou então. Todo ato de auto-afirmação depende deste “crime”. Flusser apresenta a estrutura do mito como calcada no sacrifício, no assassinato. Os mitos seriam figuras do recalcamento da culpa. Não deixa de ser admirável que Flusser não cite neste contexto a teoria freudiana de Totem e Tabu, da tragédia grega como reencenação (culposa) do assassinato do pai da “horda primeva”. Flusser afirma que “quanto pior é a nossa consciência, tanto mais cruéis tornam-se nossos crimes”. Esta tese revela nossa sociedade atual, com suas desigualdades gritantes, como um campo fértil para massacres. Sua situação de exilado e esta reflexão sobre o dispositivo de identidade como um dispositivo xenófobo e “outricida” lançam também luz sobre sua potente teoria da Heimatlosigkeit, tal como lemos no ensaio Wohnung beziehen in der Heimatlosigkeit. (Heimat und Geheimnis – Wohnung und Gewohnheit) (Mudar-se para uma Morada na Ausência de uma Pátria – Lar e Mistério – Morada e Hábito). Aqui se trata também, Ainda a Ponte de Carlos, numa de suas extremidades: rios e pontes tiveram importância crucial na trajetória de um filósofo para quem ser judeu significava saber transitar entre culturas, e sintetizá-las de modo explícito, de uma reflexão retirada de sua própria experiência de vida. Daí este trabalho ter sido acolhido no volume autobiográfico Bodenlos (que está sendo lançado pela editora Annablume em português). Este texto é fruto da reflexão de seu autor sobre sua origem judaica em Praga e sobre seu exílio em São Paulo. Ele se inicia com uma descrição do autor que conclui com estas palavras: “Em suma, sou heimatlos, (desprovido de pátria) porque muitíssimas pátrias [Heimaten] se armazenam em mim. Isto se manifesta diariamente no meu trabalho. Eu sou apatrizado [beheimatet] em pelo menos quatro línguas e me vejo exortado e obrigado a traduzir e retrotraduzir tudo a-escrever [zu-schreibend]”. Deste fato ele também deduz seu interesse pela comunicação, pelos buracos entre os lugares e “pelas pontes que cobrem estes buracos” (meu grifo). “Talvez este interesse pode ser deduzido do meu próprio pairar [schweben] sobre estes lugares”, ele arrematou. Seu texto, de modo geral, se apresenta como uma Revista 18 37 DOSSIÊ reflexão teórica a partir deste “transcender “fetal”, que amalgama os indivíduos à das pátrias”. Ele parte, nesta teoria, da dife- Heimat, e constitui uma das mais potentes rença entre o gesto de habitar e o de ter uma matrizes de preconceitos. A Heimat é o pátria. O ser humano desde os tempos mais dispositivo por excelência da identidade remotos sempre habitou algum lugar, mas moderna. Sob suas assas é chocado o ovo apenas recentemente se tornou agregado a do preconceito contra o outro. Se toda idenuma pátria, Heimat. Esta é a protoverdade tidade é assassina, como Flusser destacou que o exilado Flusser descobre a partir de a partir de Girard, então mais do que sua “ponte”. “Nós, os incontáveis milhões nunca o pensamento a partir da Heimat o de migrantes (sejamos trabalhadores estran- é. Assim, Flusser mostra como o Heimatlos geiros, exilados, fugitivos ou intelectuais (apátrida) incomoda aquele que habita na andando de seminário em seminário), clausura protetora da Heimat: o Heimatlos nos reconhecemos não como excluídos revela como tudo aquilo que este acredi[Aussenseiters], mas antes como vanguardas tava formar as verdades mais “originárias, [Vorposten] do futuro.” Ao invés de pessoas únicas e inimitáveis”, ou seja, tudo o que dignas de pena, estes deslocados seriam “modelos”, pois a migração, além de ser um sofrimento, é uma ação criadora. Parafraseando uma das teses sobre a filosofia da história de Benjamin, esta postura pode ser vista como o “salto tigrino” de Sair da Heimat significa galgar um Flusser sobre o céu das catástrofes campo livre para o julgamento – ou ao do século 20: ele transforma sua Leidengeschichte (paixão) em um menos mais livre do que aquele que vive modelo positivo. Mas não se trata sob sua campânula asfixiante. Flusser de um modelo de sofrimento, de um martirológio. Muito pelo tende a apresentar suas trocas de contrário, Flusser escreve relativaHeimat como se fossem trocas de roupa mente pouco sobre a destruição dos judeus da Europa. Antes, ele executa uma reviravolta em sua posição, passando de vítima a modelo de um novo homem. Ele está entre estes autores que partem do lugar do exílio para escrever. Eles lançam “outro olhar”, que rompe com o automatismo de nosso pensamento. Daí sua Heimat significa, pode ser mimetizado. suas obras envolverem visceralmente suas O estrangeiro, para falarmos de um modo vidas. De certo modo, uma das primeiras que recorda a Genealogia da Moral de Nietverdades que eles desmontam é a falácia da zsche, revela que a Heimat é um constructo autonomia da obra diante da vida. de hábitos decantados, cristalizados, cuja Na filosofia da Heimatlosigkeit que Flusser origem foi esquecida. Ele profana e dessaderivou de seu exílio, viu em sua saída de craliza a Heimat. Ele mostra como as regras Praga um “desabamento do Universo”, mas da Heimat são banais. Como conseqüência, também, dialeticamente, uma “vertigem o estrangeiro é ainda mais odiado e estigda libertação e do ser-livre”. Ele viu nesta matizado. Ele é apontado como o “outro” ruptura de seus laços com a sua Heimat- do próprio, o “feio e digno de ser odiado”. Praga uma libertação do sedentarismo e A Heimat é a matriz da ontotipologia, da um mergulhar no nomadismo. A quebra da criação dos tipos, das “formas ideais”, que pátria também serve de laboratório para a se querem puras e se relacionam com a decomposição e análise de seus elementos teoria das formas platônicas, na medida originários e estruturais. Entre eles, Flusser em que este pensamento da propriedade detecta uma “memória não-articulada”, da Heimat é inimigo das noções de cópia 38 Revista 18 e de simulação, tanto quanto Platão o foi e por isso expulsou o poeta de sua República ideal. Sair da Heimat significa galgar um campo livre para o julgamento – ou ao menos mais livre, do que aquele que vive sob sua campânula asfixiante. Flusser tende a apresentar suas trocas de Heimat como se fossem trocas de roupas: assim ele passou de Praga para Londres, para São Paulo, para Robion, mudando, sucessivamente, de Heimat. A cada corte de sua relação com uma Heimat ele foi se tornando mais independente desta ancoragem identitária. Evidentemente, o primeiro corte foi o mais radical e o mais traumático. Foi o único que pode ser chamado mais propriamente de exílio. Os demais foram migrações. A saída de Praga estava ligada a sua sobrevivência. A quebra daquela Heimat foi condicionada pela morte de todos os que o ligavam a ela. Mas justamente esta radicalidade não deixava escolhas. Daí Flusser escrever que “o partir do nó górdio de Praga foi mais fácil”. Para ele, a liberdade do migrante permite que ele supere, aufhebt, suas pátrias. Ele, não apenas teria rompido com suas pátrias, mas antes as incorporado: ele – que foi provavelmente o maior filósofo brasileiro do século 20, e, de qualquer modo, o que maior repercussão internacional obteve – definia-se como praguense, paulistano, robionense e judeu, além de se localizar dentro do círculo cultural alemão. Márcio Seligmann-Silva é professor de Teoria Literária e Literatura Comparada na UNICAMP , doutor pela Universidade Livre de Berlim e autor de O Lugar da Diferença (Editora 34, 2006), entre outros livros 1 Em um artigo de 1970 intitulado “Sobre a Ponte de Avignon” Flusser utiliza a imagem da ponte em ruínas da ex-cidade papal para representar a Europa em meio aos movimentos de contestação estudantil. Ele faz neste texto um rasgado elogio da vida européia (e sobretudo da Province, para onde se mudaria dois anos depois). O interessante neste texto é que nele percebemos novamente como Flusser pensava a ponte como um topos com teor epistemológico. Vemos como ele, “sobre a ponte de Avignon”, observa seu mundo como uma espécie de “observador de segunda ordem”. DOSSIÊ Em busca de uma linguagem humana: Vilém Flusser e Haroldo de Campos Noções de convergência das várias línguas e de cosmopolitismo da literatura são comuns ao pensamento do filósofo judeu tcheco e do maior poeta concreto brasileiro, e mostram influências de Goethe tanto quanto de Oswald de Andrade. Por Susana Kampff Lages A s idéias de Goethe acerca da Weltliteratur, ou literatura mundial, e de seu papel na constituição do conceito da Bildung (palavra que significa simultaneamente cultura e formação), parecem fundamentar a estratégia de leitura dos poetas concretistas brasileiros, em especial de Haroldo de Campos. Suas reflexões sobre a leitura foram influenciadas, também, pelo conceito de antropofagia, formulado pelo poeta modernista Oswald de Andrade, que o levou a repensar a história da literatura e o papel que dentro dela têm a linguagem e a tradução. Não por acaso, num depoimento que deu sobre o crítico e filósofo Vilém Flusser, Haroldo de Campos refere-se a uma expressão extraída do título de uma obra goetheana – “afinidades eletivas” – para remeter às complexas redes de relações intelectuais tecidas por Flusser em seu exílio brasileiro, ainda que o fluxo dessas afinidades não ligasse, em linha direta, Campos a Flusser, como fica claro num depoimento do poeta paulistano: (...) a relação do Flusser com as artes brasileiras vai um pouco ao sabor de alguns interesses filo- Chama a atenção, nesse depoimento, o uso que Campos faz da palavra fluxo, sobretudo tendo em vista o contexto de referência à expressão goetheana “afinidades eletivas” [Wahlverwandtschaften], sublinhando seu campo de proveniência, a química do tempo de Goethe. É interessante observar a complexa operação de negação da afinidade Em relevo estão, para os concretos como para Flusser, o elemento transnacional e internacional da literatura, e a centralidade da linguagem como fenômeno privilegiado de acesso ao cerne da experiência estética e existencial humana sóficos dele e de certas afinidades, daquilo que em termos goetheanos eu chamaria de certas afinidades eletivas; um termo da química, (...) onde elas não ocorriam como ocorreram com Anatol (Rosenfeld) e não ocorreram no meu caso, não passava o fluxo que ele queria transmitir. E ele... naturalmente que se criava um hiato. Onde isso ocorria, ele podia se deter e passava a ser entregue... É o caso da Mira Schendel. (depoimento dado a Ricardo Mendes em 5/2/1999). entre Campos e Flusser, traída pelo próprio uso das palavras: diferentes substâncias tornam-se afins por meio de uma terceira – e Campos cita os terceiros que criaram esta afinidade, a princípio negada, com Flusser: o crítico Anatol Rosenfeld e a artista plástica, Mira Schendel, aos quais Campos se sentia direta e profundamente ligado. De certa forma, ele reconhece que Flusser exerceu um papel no debate intelectual e artístico da época, mas afasta-se dele por considerar sua visão demasiado próxima da de intelectuais que ele definiu como de uma “direita ilustrada” de extração heideggeriana, como o filósofo Vicente Ferreira da Silva, por demais preocupados com uma dimensão sacral do ser e da linguagem. Os poetas concretos, Haroldo e Augusto de Campos e Décio Pignatari, tinham uma concepção da linguagem que se chocava com o idealismo de interpretações de matiz heideggeriano, que, segundo sua visão, negligenciavam a linguagem em seu aspecto material, concreto. Em sua obra, porém, Flusser evidencia um interesse constante por aspectos bem concretos de uso da língua e, sobretudo, de línguas em contato. Ele possuía um modo muito particular de refletir e redigir suas reflexões: fazia sucessivas traduções e retraduções de um mesmo texto. Exercício lúdico extremamente original, o método de Flusser coloca a linguagem verbal e suas múltiplas atualizações, as diferentes línguas, no centro de uma reflexão que aponta para si mesma, e também para o próprio sentido etimológico encerrado nas palavras reflexão e especulação (reflexo, espelho), cernes da atividade do pensamento ocidental desde as reflexões dos primeiros românticos alemães. Não por acaso Flusser cita, num artigo inédito, denominado “Traduções são possíveis?”, o poeta Yeats, em inglês e o traduz: “Mirror on mirror mirrored is all the show (espelho por espelho espelhado é todo o espetáculo)”. Esse interesse permanente por uma reflexão sobre a linguagem e as línguas Revista 18 39 Fotos: reprodção DOSSIÊ Haroldo de Campos e Vilém Flusser: afinidades eletivas do filósofo não o ligavam diretamente ao poeta e tradutor, ainda que houvesse entre os dois um repertório filosófico-ideológico compartilhado aproxima o trabalho de Flusser do de Campos, sobretudo de suas reflexões sobre a tradução como operação de transposição criativa, nos termos de Jakobson, de transcriação, neologismo criado por Haroldo e Augusto de Campos para dar conta do elemento de intervenção ativa do tradutor em seu trabalho. O impulso babelizante da escrita e da reflexão dos poetas concretistas, de Flusser e de outro escritor fundamental, cuja obra Flusser apreciava, Guimarães Rosa, pode ser atribuído a uma espécie de movimento ou desejo de atualizar princípios e idéias de Goethe sobre a literatura em geral e sobre as literaturas nacionais e suas inter-relações em particular. Cabe lembrar que a idéia modernista da antropofagia cultural tem em Goethe um interessante contraponto. Goethe manifestou-se explicitamente a respeito, tendo, inclusive, escrito poemas que remetem ao ritual do canibalismo em conexão com o Brasil, país pelo qual nutria um interesse que advinha de sua curiosidade pelo mundo científico e antropológico. Evidentemente, a relação de qualquer pessoa culta de língua alemã não pode deixar de passar pela leitura da obra de Goethe – hoje como à época em que Flusser emigrou, acompanhado de seu exemplar do Fausto, lado a lado com um livro de preces judaicas, que afinal se perdeu. Em Língua e Realidade, livro em que Flusser discute a questão da tradução, ouvimos as múltiplas vozes dos filósofos 40 Revista 18 ou escritores, que ali convergem para uma “grande conversação” que é, sem dúvida, tributária de muitas outras vozes da tradição judaico-alemã da Europa Central: a de Martin Buber, o pensador por excelência do diálogo, e a de Franz Kafka, cuja escrita inacabada postula a impossibilidade do diálogo em vários níveis, bem como a voz da tradição do romantismo alemão, em que o discurso filosófico dialoga e se contamina com as categorias do discurso literário ou ficcional. Ora, intelectuais como Anatol Rosenfeld, Otto Maria Carpeaux, Paulo Rónai e o próprio Flusser, formados pela leitura das grandes obras da tradição alemã, influenciaram toda uma geração da crítica literária brasileira, que posteriormente teve em nomes como os dos irmãos Campos, Décio Pignatari e Roberto Schwarz alguns de seus expoentes, ainda que muitas vezes representando posições hermenêuticas divergentes. Pode-se dizer que, em muitos aspectos, a crítica literária brasileira do século 20 se forma (no sentido alemão da Bildung) a partir do diálogo de intelectuais brasileiros com esses intelectuais de formação alemã exilados no Brasil. Em especial, deve-se assinalar que tanto os poetas concretistas quanto o filósofo Flusser foram transgressores dos paradigmas clássicos de suas respectivas práticas – literárias ou filosóficas. Haroldo de Campos e os demais poetas do concretismo são tributários dos movimentos de vanguarda do início do século 20; Flusser se reconhece na filosofia da linguagem de Wittgenstein – num tempo em que não se tinha, no Brasil, uma visão mais global da totalidade da obra wittgensteineana. Em relevo estão, para os concretos como para Flusser, o elemento transnacional e internacional da literatura, e a centralidade da linguagem como fenômeno privilegiado de acesso ao cerne da experiência estética e existencial humana. Susana Kampff Lages é professora de Língua e Literatura Alemã da Universidade Federal Fluminense Bibliografia Berman, A. “Goethe e literatura mundial” In: ____. A Prova do Estrangeiro. Cultura e tradução na Alemanha romântica. Bauru: EDUSC, 2002. Campos, H. Post-scriptum. “Transluciferação mefistofáustica”. In: ____. Deus e o Diabo no Fausto de Goethe. São Paulo: Perspectiva, 1981. p. 179-209. Flusser, V. Língua e realidade. São Paulo: Annablume, 2004. Goethe, J. W. “West-östlicher Divan, Teil 1 und 2” [ed. Hendrik Birus] In: . ____. Sämtliche Werke. Briefe, Tagebücher und Gespräche. (eds. Friedmar Apel, Hendrik Birus et allii) Frankfurt am Main: Deutscher Klassiker Verlag, 1994. Bände 3/1 und 3/2. Krause, G. B. & Mendes, R. (orgs) Vilém Flusser no Brasil. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2000. Sousa, C. H. M. R. de. “O Brasil na obra de Goethe” In: ___ _. Do Cá e do Lá – Introdução à Imagologia. São Paulo: Humanitas, 2004. p. 158-80. DOSSIÊ SEÇÃO Nomadismo como libertação Manuel da Costa Pinto lê Bodenlos, a autobiografia de Vilém Flusser, para quem descrever uma trajetória de errância foi como uma iniciação para habitar a Terra da Promissão do convívio e do diálogo Para Flusser, a errância culminava na arte do diálogo, e tornava-se, assim, uma experiência libertadora “O ensaio, essa forma híbrida entre poesia e prosa, entre filosofia e jornalismo, entre aforismo e discurso, entre tratado acadêmico e vulgarização, entre crítica e criticado, constitui um universo que é habitat apropriado para o ‘exilado nos picos do coração’ (para falarmos com Rilke). Quem tem a sua práxis, quem vive ensaisticamente (isto é, não quem apenas escreve ensaios, mas aquele para o qual a própria vida é ensaio para escrever ensaios), sabe que, a rigor, o problema do tema a ser escrito nunca se coloca. Ou, para ser exato: se coloca negativamente.” Essa profissão de fé na escrita ondoyante e na “errância” temática remete, sem dúvida, àquela tradição fundada pelos Ensaios de Montaigne no final do século 16. O tipo de leitura à qual convida, porém, está bem longe da fruição “vagagunda” proposta pelo humanista que pode contemplar a comédia humana da torre de sua biblioteca, no convívio amigável com os livros. Pois a frase – extraída de Bodenlos: uma autobiografia filosófica, de Vilém Flusser – é o ponto de chegada de uma trajetória marcada pela guerra e pela perseguição nazista, na Revista 18 41 DOSSIÊ O filósofo e sua esposa Edith em férias, em Campos do Jordão: clima ideológico cosmopolita existente entre refugiados ajudou-o a criar um antídoto contra as vulgaridades ideológicas qual a vivência “natural” do descentramento se radicaliza em desterro metafísico. Flusser (1920-1991) deixou sua Tchecoslováquia natal após a anexação dos Sudetos pela Alemanha nazista (um dos marcos iniciais da 2ª Guerra Mundial). Depois de breve passagem pela Inglaterra, veio para o Brasil, mais especificamente São Paulo, onde esse autodidata sem formação acadêmica deu aulas na usp, no ita e na faap, colaborando com os principais jornais paulistas e escrevendo em português as primeiras versões de sua obra (cujos mais de 30 volumes foram depois publicados em outros idiomas, com tradução do próprio autor). 42 Revista 18 Bodenlos surge sob o signo do trânsito lingüístico. Publicado postumamente na Alemanha, foi escrito em português, possivelmente nos anos 70, após o retorno do filósofo à Europa Naturalizado brasileiro, Flusser só retornou à Europa em 1973, estabelecendo-se em Robion, na França. Em 1991, revisitou Praga pela primeira vez desde a guerra, para dar uma conferência no Instituto Goethe – mas morreu no dia seguinte, em acidente de automóvel, enquanto passeava pelos arredores da cidade na companhia da mulher, Edith. Essas informações factuais não aparecem no texto do próprio Flusser, mas estão no prefácio de Bodenlos escrito por Gustavo Bernardo – estudioso das relações entre literatura e ceticismo, cujo trabalho junto à editora Annablume foi responsável pela redescoberta do filósofo tcheco no Brasil. Teórico da filosofia da linguagem e da comunicação, Flusser vem sendo tema de congressos internacionais e teve algumas obras reeditadas nos últimos anos – como Língua e Realidade e A História do Diabo (ambos pela Annablume), A Dúvida (Relume Dumará), Ficções Filosóficas (Edusp) e Da Religiosidade: a literatura e o senso de realidade (Escrituras). Sobre ele, foram lançados A Dúvida de Flusser, de Gustavo Bernardo (Globo) e Vilém Flusser no Brasil, organizado por Gustavo Bernardo e Ricardo Mendes (Relume Dumará). Em Bodenlos, o trabalho do conceito aparece como produto de uma vida que se embrenha na reflexão, de uma vida que vai descobrindo, em progressão abissal, sua ausência de fundamento. É esse, aliás, o significado ao mesmo tempo literal e metafórico do título que (explica Márcio SeligmannSilva no texto de orelha) significa “sem chão”, “sem terra” ou “sem fundamento”. O livro surge sob o signo do trânsito lingüístico. Publicado postumamente na Alemanha, foi escrito em português, possivelmente nos anos 70, após o retorno do filósofo à Europa. Das quatro partes que compõem Bodenlos, as duas últimas só foram localizadas na versão em alemão (e traduzidas aqui por Raquel Abi-Sâmara). E, no prefácio, Gustavo Bernardo esclarece uma recorrência estilística que, em se tratando de alguém cuja língua materna não é o português, parecerá um barbarismo. Flusser usa com freqüência quase insuportável a expressão “a gente”, que corresponde ao pronome neutro on do francês ou man alemão, remetendo ainda à impessoalidade do das Man heideggeriano. DOSSIÊ Assim, explica ele, Flusser “provoca um estranhamento poético que desautomatiza a leitura” e “questiona de dentro, na forma, o ‘eu solar’, isto é, o ‘eu’ centro do sistema e do universo”. Seria possível acrescentar às observações de Gustavo Bernardo que Flusser introduz aí modulações sutis, que correspondem ao modo como esse “a gente” vai se desvencilhando de toda viscosidade, de toda determinação externa – de todo fundamento. No início, “a gente” é a comunidade dos judeus de Praga, que extraem desse “clima existencial” cosmopolita (que ajudaram a criar) um antídoto contra as vulgaridades ideológicas: “Passava-se a desprezar toda identificação nacional como arcaísmo. Erase internacionalista nato, já que o ridículo de toda diferenciação nacional mostrava-se intimamente vivenciável”. O marxismo surge aí como alternativa ao sionismo, como engajamento supranacional que a invasão nazista tornará derrisória. A partir dessa primeira catástrofe, “a gente” passa a designar os sobreviventes em fuga e, numa inversão irônica, Flusser transforma a perseguição implacável em prova da culpa daqueles que fogem: “Jamais se perderia a convicção irracional, mas existencialmente válida, de que ‘de direito’ a gente deveria ter morrido nos fornos. Que doravante a vida passava a ser emprestada. Que foi a gente própria que se arrancou do seu fundamento (dos fornos) ao ter fugido, e que ‘com razão’ (?) o abismo sem fundo era o único futuro possível”. Com isso, Flusser identifica o núcleo da ideologia anti-semita (o fundamento natural do judeu é o extermínio), mas também define o não-fundamento como sobrevivência, destino e iluminação. O judeu “naturalmente” apátrida deixa seu chão para fugir do ímpeto daqueles que deitam raízes no solo profundo, dele extraindo as potências de um ser coletivo (segundo uma mitologia telúrica e irracionalista). A imagem do judeu errante, assim, será vista menos como a figura ominosa saída do imaginário cristão do que como afirmação herética da autonomia e da ruptura com quaisquer laços: “Doravante a vida passou a ser diabolicamente sagrada. Vivia-se doravante com nossas próprias forças, não com as forças que vinham da seiva fundante. (...) E aí veio uma sensação de todo inesperada. A sensação de libertação vertiginosa. Doravante não se pertencia mais a ninguém e a lugar nenhum, era-se independente”. Se a “seiva fundante” levou à perseguição dos judeus é porque toda idéia de fundamento equivale à aniquilação do ser – incluindo-se aí a própria religião (qualquer que seja ela). Logo no início de Bodenlos, aliás, Flusser afirmara que as religiões são “métodos de proporcionar fundamento”, concluindo: “Todos os nossos problemas são, em última análise, religiosos”. A arte do encontro representa, afinal, a Terra Prometida desse pensador do exílio – que nas duas partes finais do livro resume de maneira rapsódica a idéia de nomadismo e o tema de “habitar a casa na apatridade” que atravessam sua filosofia Seria interessante notar, de passagem, como Flusser inverte a ontologia de Heidegger: neste, “a gente” é a esfera da banalidade, da tagarelice, da “impropriedade” do ente, oposta ao domínio do ser, do próprio, do autêntico, que o autor de Ser e Tempo identifica às raízes do “povo” como “singular coletivo do Dasein” (segundo a fórmula de Rüdiger Safranski). No pensador tcheco, desde cedo desconfiado do jargão da autenticidade, “a gente” designa, ao contrário, a impessoalidade como refúgio à apropriação pelas identidades estáveis, a possibilidade de sobreviver sozinho no negativo, na periferia dos modelos de vivência e dos valores que haviam ficado para trás, no idílio multiétnico de Praga. Ao longo de Bodenlos, Flusser empenhase em “ser mestre na arte da falta de fundamento” – um leitmotiv que encontra no Brasil um campo de provas. Seus primeiros anos em São Paulo são um misto de fascínio e nojo: atração por esse povo de mascates, negociantes sem metafísica, mas também repulsa por uma burguesia que não conseguia ver na “vulgaridade kitsch dos nazistas” uma “massificação mecanizada” travestida de “potência mística”. Daí seu peculiar mergulho na paisagem e na cultura tropicais, vistas como possibilidade de habitar uma “vastidão desumana” e conviver com pessoas indiferentes às suas raízes: “A gente identificava ‘cultura brasileira’ com ‘luta contra a natureza brasileira’ (...) e, por extensão, a gente passava a identificar ‘cultura tout court’ com ‘luta contra a natureza tout court’, inclusive contra a natureza humana”. Tal passagem parecerá pouco “ecológica” a leitores politicamente corretos, mas explicase: natureza, para Flusser, era a segunda natureza, em que “a gente” já não pode mais ser definida como grupo social ligado por laços de sangue ou como cultura ancestral, mas corresponde a um conjunto de individualidades girando em torno do único território habitável: a escrita, a palavra, a língua. Toda a segunda parte de Bodenlos será, assim, um relato de seu convívio com personagens como o filósofo Vicente Ferreira da Silva e sua mulher, a poeta e tradutora Dora Ferreira da Silva, a artista plástica Mira Schendel, o jurista Miguel Reale, o pintor romeno Samson Flexor (como ele radicado no Brasil) e os escritores Guimarães Rosa e Haroldo de Campos. A arte do encontro representa, afinal, a Terra Prometida desse pensador do exílio – que nas duas partes finais do livro resume de maneira rapsódica a idéia de nomadismo e o tema de “habitar a casa na apatridade” que atravessam sua filosofia. Manuel da Costa Pinto é colunista da Folha de S.Paulo, coordenador editorial do Instituto Moreira Salles, autor de Albert Camus - um Elogio do Ensaio (Ateliê) e Literatura Brasileira Hoje (Publifolha) Bodenlos: uma autobiografia filosófica Vilém Flusser Editora Annablume, 245 p. R$ 35 Revista 18 43 LETRAS SEÇÃO E ARTES Lavadeiras no Tietê, 1946. Óleo sobre cartão, 27,5 x 41 cm Metamorfose em fragmentos Exposição retrospectiva da trajetória de Alice Brill recapitula uma vida marcada pela experiência da emigração e dá testemunho de um século turbulento. Por Carla Ogawa A exposição Alicerces da Forma, inaugurada em 3 de junho pelo Museu de Arte Brasileira da faap, em São Paulo, é a primeira retrospectiva de Alice Brill realizada no Brasil. Artista nascida em Colônia, Alemanha, em 1920, Alice emigrou para o Brasil em 1934 e completará 87 anos em dezembro. A exposição marca também o lançamento da primeira publicação sobre sua trajetória e conta, entre outros, com um texto de Eva Lieblich Fernandes, artista plástica e amiga de Alice desde 44 Revista 18 a adolescência, que é um testemunho intimista de uma memória compartilhada. Concebida em quatro núcleos principais, a exposição aborda tanto o trabalho de Alice como pintora e gravadora como seu vasto acervo fotográfico, hoje pertencente ao Instituto Moreira Salles. O primeiro núcleo da mostra diz respeito à produção de Alice durante a década de 40 junto aos integrantes do Grupo Santa Helena – uma produção de caráter figurativo resultante tanto de excursões ao ar livre quanto de sessões de modelo vivo. LETRAS E ARTES SEÇÃO Dança dos índios Navajo – New México, 1946. Aquarela sobre papel, 20,5 x 30 cm Depois desse primeiro período brasileiro, Alice teve a oportunidade de passar dois anos nos Estados Unidos, entre 1946 e 1948, onde se aprofundou nas técnicas de gravura, pintura e fotografia que desenvolveria, de maneira paralela, ao longo de toda sua trajetória. Foi também dessa viagem que ela trouxe para o Brasil o equipamento com o qual exerceria, por mais de dez anos, a profissão de fotógrafa. De volta a São Paulo em 1948, passou a trabalhar para a revista Habitat, primeira publicação mensal brasileira dedicada à arquitetura e às artes e teve a oportunidade de fotografar vários artistas, arquitetos e personalidades, entre eles Mario Zanini, Alfredo Volpi, Hilde Weber, Sofia Tassinari, Yolanda Mohaly, Karl Plattner, Cássio M’Boi, Burle Marx, Villanova Artigas e Lina Bo Bardi. Por vezes registrou o artista absorto na própria produção ao mesmo tempo em que fotografava suas obras. Fez duas fotorreportagens significativas: a primeira em 1948, quando da inspeção das obras da Fundação Brasil Central, juntamente com a comitiva do então Deputado Café Filho que viria a se tornar Presidente anos depois. Nesse período, registrou os índios Carajá da Ilha do Bananal, no Centro-Oeste do país, região ainda em descoberta e com uma história peculiar e grandiosa das intenções políticas de crescimento e expansão. A segunda fotorreportagem foi realizada em 1950, a convite de Osório César, crítico de arte e médico psiquiatra idealizador da Escola Livre de Artes Plásticas do Juquery. A presença da arte como tratamento terapêutico levou Osório César a contribuir de maneira relevante na integração social de pacientes com transtornos mentais. Alice, grávida de sua primeira filha, registrou com sensibilidade o olhar desses indivíduos diante das próprias produções que cobriam as paredes do ateliê do instituto psiquiátrico do Juquery. Cautelosa, quase sempre nos surpreende com fotografias que captam a espontaneidade como quem não deseja que o outro saiba que está sendo fotografado. A pedido de Pietro M. Bardi, diretor do Museu Assis Chateaubriand, fez uma série de fotografias de São Paulo para um livro que nunca foi publicado, destinado ao Centenário da cidade, em 1954. No decorrer dos anos, foram publicadas algumas imagens avulsas dessa série. Revista 18 45 LETRAS SEÇÃO E ARTES A DEDICAÇÃO À PINTURA, à gravura e à fotografia proporcionou um diálogo paralelo entre esses meios expressivos. Assim, Alice realizou alguns estudos com aquarela e guache a partir de imagens fotográficas que parecem refletir a ação do fotógrafo que escolhe a lente mais apropriada para a tomada a ser registrada. Na totalidade visual, sua pintura proporciona uma estruturação da composição até a última instância, ou seja, até a última pincelada, diferentemente da fotografia que, em geral, nos apresenta uma estrutura obviamente pensada pelo fotógrafo, só que dotada de um aparato mecânico, mediador desse processo. A fotografia aparecerá também, de maneira discreta, nas composições em preto-e-branco que Alice fez na década de 70, bem como numa temática que se volta para a questão do tempo e do testemunho de uma cidade que cresce compulsivamente e que, conseqüentemente, “encolhe” o indivíduo na solidão. Viajando pelo Brasil, Alice fotografou cidades como Ouro Preto, Guarujá, Salvador, Rio de Janeiro. Registrou feiras, vendedores ambulantes, fachadas, ruas e construções. Foi pioneira nos retratos espontâneos de crianças num período em que a fotografia de estúdio, ou “posada”, ainda estava em voga. Inúmeras famílias foram retratadas pela lente da artista; muitas pessoas ainda conservam intactas suas feições de criança de outrora, preservadas nos álbuns que ela fazia. A PARTIR DA DÉCADA DE 60, Alice retomou a pintura a óleo e, na mostra da faap, em um núcleo especial denominado “Encontros”, aborda essa fase de sua produção, cuja temática central é o cenário urbano paulistano. Novas pesquisas são fonte de inspiração para a artista. O batik, técnica artesanal da Indonésia, possibilita novas incursões na busca de uma expressão espontânea, libertando-a da forma geométrica. Contraditório para quem conhece a técnica? Sim, pois o batik exige controle absoluto da cera. E nessa contradição, Alice busca resultados inesperados. No trabalho com a cera, tanto no tecido como no papel de arroz, Alice lida com o improviso visto que nem sempre a técnica adaptada apresenta resultados esperados. Gravura em metal, serigrafia, batik sobre tecido ou papel de arroz, acrílica, óleo, guache, aquarela... a técnica não importa quando se trata dessa temática. A artista conduz muito bem todas as técnicas e apresenta estudos de cores e de composições. Telhados e escadas, 1990. Acrílico sobre tela, 122 x 67,5 cm DE SUAS VIAGENS para o Oriente Médio, Ásia e América Latina, Alice traz memórias anotadas em cadernos, com desenhos e relatos dos costumes de cada povo. Suas pinturas surgem com cúpulas e torres das grandes mesquitas ou mesmo com motivos florais pintados, como vitrais, com cores fortes e brilhantes. 46 Revista 18 LETRAS E ARTES SEÇÃO Sumaré, 1983. Batik sobre papel de arroz, 62 x 92 cm Escadarias, pedras, flores, mangues, deuses estão presentes em seu imaginário e de lá transbordam para o papel por meio de diferentes técnicas. O urbano surge algumas vezes em fachadas de portas cerradas ou até inexistentes; outras vezes, janelas abertas mostram personagens frágeis e minúsculas que parecem testemunhar a solidão do indivíduo nas grandes cidades. São fragmentos, estruturas que se intercalam com detalhes colhidos em suas viagens. Alice pinta o ritmo da demolição, da construção que a cidade de São Paulo sofreu durante esses anos. Aqui tudo se transforma rapidamente, a história cede espaço a um ritmo alucinante de verticalização. Num terceiro núcleo está a produção mais recente de Alice Brill, a partir de 2000, em que o imaginário se derrama por meio de cores fortes. Seres fantásticos e situações curiosas são registrados em pequenos pedaços de papel que, freqüentemente, são colados em cadernos. A fatura apurada de outrora, com preocupações específicas na busca de suporte e técnica adequados, agora prima por um intimismo sem limites, por um mundo de formas e cores que ela construiu ao longo de sua vida. Finalmente, há um núcleo dedicado aos pais de Alice Brill, que apresenta um recorte das viagens e lugares representativos na vida de Erich Brill através de suas pinturas e desenhos. Documentos do período da 2ª Guerra Mundial testemunham o retorno de Erich para a Alemanha e sua prisão num campo de concentração, sua última viagem. Estarão expostas edições do romance autobiográfico Der Schmelztiegel, de Marthe Brill, mãe de Alice, e matérias publicadas no jornal da Hamburg Süd na época em que esta prestava serviços como jornalista. Junto a elas, um artigo escrito por Reinhard Andress, doutor e professor de literatura alemã na Saint Louis University (eua). A exposição Alicerces da Forma estará aberta ao público de 3 de junho a 15 de julho de 2007 no Museu de Arte Brasileira da faap, à Rua Alagoas, 903 – Higienópolis. Horário: de 3ª a 6ª das 10 às 20h. Sábados, domingos e feriados das 13 às 17h. Entrada gratuita. Carla Ogawa é curadora independente, licenciada em Artes Plásticas e mestranda em Teoria, História e Crítica das Artes Visuais pela Faculdade Santa Marcelina, bolsista pela CAPES Revista 18 47 LETRAS E ARTES A propósito de abelhas e de Amós Oz Nancy Rozenchan lê novo livro do escritor israelense, uma fábula alegórica dirigida ao público juvenil, que aborda com sutileza e ironia uma das questões cruciais do mundo contemporâneo N a mesma semana em que a tradução de mais um livro de Amós Oz – De Repente, nas Profundezas do Bosque – seu 29º publicado em Israel – estava sendo lançada aqui, uma notícia inusitada chamou a atenção: abelhas desaparecem dos apiários sem deixar vestígios. Treinado nas manchetes brasileiras corriqueiras de roubos, assaltos e outras categorias de crimes, o primeiro pensamento a brotar foi: quem teria roubado ou subtraído ou furtado as abelhas? Esta reação típica de nossa convivência diuturna com o crime baseava-se num crédulo engano. Abelhas não desaparecem (e mais ainda, sem deixar vestígios ou cadáveres) por prosaicas razões de subtração de um bem, consubstanciadas em desejo de usufruir de seu mel ou vontade de aniquilá-las por causa de uma eventual ferroada. Abelhas somem porque o ambiente em que se encontram é funesto. E que não se pense que foram uns meros insetos a serem enumerados nos dedos que sumiram. Um quarto das abelhas dos Estados Unidos simplesmente partiu; algo parecido também vem ocorrendo na Alemanha. Uso de defensivos agrícolas ou mudanças climáticas parecem explicar o fenômeno. E que ninguém leve em conta apenas a redução da quantidade mel que deixaram de produzir. Elas são essenciais à polinização (ao menos nos Estados Unidos) de mais de noventa tipos de frutas e legumes cujas safras estão avaliadas em 15 bilhões de dólares por ano. Há que se preocupar tanto com os prejuízos financeiros como com a fome. Tivesse Oz conhecimento deste fato quando da escrita de seu livro, provavelmente a categoria das abelhas teria merecido menção especial dentre as espécies animais que, em De Repente, nas Profundezas 48 Revista 18 do Bosque, misto de fábula e alegoria, desaparecem da aldeia onde se passa este enredo, fato igualmente preocupante. Peixes, aves, insetos, animais dos mais variados tamanhos e portes sumiram, muito antes de nascerem os principais protagonistas do livro, Nimi, o garoto com a doença do relincho, e o casalzinho Mati e Maia, que adentram a floresta para investigar o fenômeno. Seus pais, assim como todos os Abelhas não desaparecem por prosaicas razões de subtração de um bem, consubstanciadas em desejo de usufruir de seu mel ou vontade de aniquilá-las por causa de uma eventual ferroada. Abelhas somem porque o ambiente em que se encontram é funesto habitantes locais, evitam tocar no assunto do sumiço dos animais, talvez por vergonha do que teria acontecido no passado. Por vezes, algum dos adultos faz menção a um animal de estimação ou que era empregado no trabalho, ou a seus sons, para logo em seguida se retrair e negar a lembrança. Cabe à professora Emanuela, por meio de quadros na sala de aula e emissão das diversas vozes animais, ensinar às crianças o que foram estes entes que sumiram. Ela, porém, é alvo de zombaria, tanto por isto como por não ter conseguido arranjar alguém com quem se casar. De Repente, nas Profundezas do Bosque é uma fantasia modesta. Não há indicação de tempo ou lugar, os personagens têm apenas um caráter simbólico. São arquetípicos, assim como a ambientação: um menino alvo de chacotas, o casalzinho de heróis, uma aldeia com seus habitantes, uma floresta densa, animais, um demônio vingador. A narrativa desenrola-se de forma lenta e gira em torno de um tema apenas, que não é apresentado explicitamente. A introdução, logo de início, do menino Nimi, que adentrou a floresta e sofre do que é denominado de “doença do relincho”, assim como o receio que todos têm de serem contaminados por ele, a inquietação que faz com que todos se tranquem cedo em suas casas e apaguem as luzes, indicam um fio condutor que contrapõe lucidez e loucura, o par que subjaz o mistério do desaparecimento dos animais. Nimi é abandonado à própria sorte. Outro personagem também é deixado de lado; trata-se do ex-pescador Almon, que agora discute consigo mesmo ou com o espantalho que colocou em sua horta; ele é um dos raros que ainda se sentem ligados aos animais: esculpe figuras de animais e aves em madeira e as presenteia às crianças. Guinom, o velho inválido, que sofre da doença do esquecimento, bale como um cabrito que ele pensa ser. Lília, a padeira viúva, ainda jogava, no fim do dia, migalhas de sobras dos pães para peixes, pássaros e pombas imaginários. Vivem LETRAS E ARTES © Wolfrage © Wonderferret No romance-fábula de Oz, animais explorados e humilhados pelos seres humanos decidem abandonar a sociedade humana em protesto contra os maus-tratos e a discriminação: livro que é destinado também ao público pré-adolescente faz uma reflexão tanto sobre pessoas alijadas quanto sobre o descaso com que se tratam as questões ambientais num universo de medo que é dominado pelo demônio Nehi. O segredo deste desregramento é a grande injustiça que os habitantes praticaram no passado, quando eram crianças, contra Neman (no original, Naaman, agradável ou anêmona), então um menino esquisito. Ou seria talvez retardado? Neman, vítima do deboche e da discriminação, recolhera-se à floresta, e todos os animais, muitos dos quais eram explorados e humilhados pelos seres humanos, resolveram segui-lo e abandonar a sociedade humana, num protesto contra a discriminação e os maus tratos. Neman transforma-se no demônio Nehi (lamento, em hebraico), rei da floresta; os animais convivem com ele em paz, e também entre si. Não mais precisam devorar uns aos outros para subsistir, uma vez que Nehi planta “carnemônias”, plantinhas com sabor de carne que alimentam os carnívoros. À noite, Nehi volta à aldeia e vinga-se um pouco dela. Por vezes atrai mais alguma criança que é segregada porque não se comporta como a maioria ou não se conforma àquela sociedade. E aqueles que o humilharam agora trancam-se para se proteger na aldeia, que se tornou triste. A repetição de um dos eixos da narrativa, a saída daquele que a sociedade rejeita e menospreza por ser diferente e que tem como única opção o abandono da sociedade e o auto-isolamento (saída de Neman, que vira demônio, saída de Nimi que relincha e passa a ser chamado de potro), merece atenção particular. De Repente não é o primeiro livro infanto-juvenil de autoria de Oz. Há quase trinta anos, Oz publicou Sum’hi, obra também traduzida para o português (Sumri, na edição brasileira). Contava com humor e afeto as reviravoltas de um dia na vida de um menino de Jerusalém, um anti-herói. Depois de voltar para casa derrotado e humilhado, leva três tapas do pai por ter se atrasado. Assustado e cheio de vergonha, Sum’hi decide fugir de casa e jamais voltar. Mas volta, porque é criança. Mais recentemente, em De Amor e Trevas, do mesmo autor, também o leitor brasileiro pôde ler a saga da família Klausner, da qual o garoto Amós Klausner foge, após o suicídio da mãe, para o kibutz e para se tornar Amós Oz. A partida dos meninos “diferentes” neste livro que ora é lançado, em um plano fantástico que difere em parte dos mencionados acima, medeia entre fuga por opção e ato de excomunhão. Por fim, os personagens centrais, Mati e Maia, partem (e retornam) com a intenção de desvendar o segredo. Encontram uma floresta densa; vários trechos descritivos a aproximam do Jardim do Éden. Outras referências de tradições culturais e literárias podem ser percebidas; como nos anseios dos livros dos profetas, animais convivem pacificamente; há indícios de fábulas atribuídas ao rei Salomão, do relato da Arca de Noé, do flautista de Hamelin. É uma agradável fábula dedicada a pré-adolescentes, em que o leitor adulto também encontra, além da sempre bem elaborada linguagem de Oz, motivos de reflexão, tanto sobre pessoas alijadas como sobre o descaso com que se tratam questões ambientais. Nancy Rozenchan é livre-docente em Letras e professora aposentada do Departamento de Hebraico da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP De Repente, nas Profundezas do Bosque Amós Oz Tradução Tova Sender Cia. das Letras, 148 p. R$ 31 Revista 18 49 Real Desempenho www.metsopaper.com Um Beija-flor bate as asas 60 vezes em um segundo, o que lhe permite pairar no ar ou voar até 20 m/s (45 mph) … subir, descer, voar de lado, ou ainda virar de cabeça para baixo. Apesar de muito pequenos, algumas espécies podem migrar até 20.000 km (12.000 milhas) por ano. A Metso Paper sempre realizou testes de operação em suas máquinas piloto visando desenvolver e encontrar soluções inovadoras para os seus clientes. A nossa máquina piloto OptiConcept MP 2 acaba de ser completamente reformada, fortalecendo a sua posição como a mais avançada máquina de papel piloto do mundo, o que nos permite oferecer uma infra-estrutura superior em know-how de fabricação de papel para testar os produtos finais, desde a fibra até a impressão. Por esta razão fabricantes de papel, cartão e tissue visitam regularmente as nossas máquinas piloto, ou seja, para ver como os novos conceitos podem melhorar a qualidade do seu produto final, tanto para novas máquinas, novas seções, reformas, ou mudanças no processo. O desempenho que você precisa…esta é a natureza do nosso cuidado. Natureza, Torá, Eternidade Reprodução LETRAS E SEÇÃO ARTES Contos de Haim Nahman Bialik, traduzidos diretamente do hebraico, rememoram o universo desaparecido dos judeus do Leste da Europa e revelam um mundo livre das descontinuidades artificiais de nosso tempo. Por Luis S. Krausz C haim Nachman Bialik (1873-1934) foi um dos pioneiros do moderno idioma hebraico. Nascido em Radi, na Ucrânia, então sob domínio russo, veio ao mundo à época em que começavam, nas terras do czar, as perseguições, que levariam à emigração maciça, ao esvaziamento do modo de vida judaico do Leste-Europeu, e à destruição de uma cultura baseada na repetição, de geração em geração, de formas de vida que se mantinham praticamente inalteradas desde a Idade Média. Para o crítico norte-americano Irving Howe, o ano de 1881 marca uma virada tão decisiva na história judaica quanto a tomada de Jerusalém pelos exércitos de Tito, no ano 70 d.C., ou a expulsão dos judeus da Espanha, em 1492. A ascensão do czar Alexandre iii e a eclosão de uma onda de pogroms representou o início do esfacelamento da vida judaica ashkenazi tradicional, cuja característica central era a prioridade absoluta que nela tinham os valores transcendentes. A observância às leis religiosas, a devoção ao estudo dos textos sagrados, a busca de proximidade com o divino eram, ao menos idealmente, os fundamentos da visão de mundo judaica pré-burguesa, em que os aspectos materiais da existência ficavam, sempre, subordinados a estes valores verticais. Vivia-se numa proximidade hoje inconcebível com o passado mítico, registrado nas Escrituras, e com a esperança da proximidade da chegada do Messias, que haveria de pôr fim ao exílio judaico, trazendo a redenção e Continuidade entre as Escrituras Sagradas e o mundo é um dos aspectos da rememoração que Bialik faz do mundo desaparecido dos judeus do Leste da Europa: nostalgia combinase com espírito crítico nestes contos de um dos fundadores da moderna prosódia hebraica o início de uma nova era. A eternidade e o presente, assim, confluíam através das letras e da memória. O passado bíblico, o exílio no presente e a esperança pela chegada do Messias eram os três tempos e os três estados concebíveis, numa visão de mundo em que a noção de história não fazia sentido e em que a imobilidade da língua hebraica, reservada aos estudos sagrados e inalterada desde suas origens nas Santas Escrituras, desafiava a passagem dos séculos e das gerações. Imerso neste universo de imobilidade, de pobreza material, de esperança e de erudição, Bialik veio ao mundo como filho temporão e, órfão de pai aos oito anos, foi criado pelo avô, de quem recebeu uma formação religiosa pietista. Entretanto, o mundo de seu avô já entrara num processo irreversível de dissolução. Os ventos dos novos tempos – e sobretudo as novas idéias, vindas do Ocidente – já sopravam sobre o shtetl ao mesmo tempo em que a brutalidade Revista 18 51 LETRAS SEÇÃO E ARTES das perseguições e o esgotamento das antigas formas de produção levavam a um esvaziamento demográfico sem precedentes nas aldeias judaicas. Migrava-se em direção às grandes cidades, ou em direção à América; pensavase no mundo em novos termos. O encontro do povo judeu com a história, adiado por tantos séculos, tornara-se irreversível. Assim também o jovem Bialik, mobilizado pelas novas idéias, buscaria, em Odessa, a grande metrópole russa de seu tempo, um encontro com a modernidade. Em Odessa aprofundouse nas novas ideologias, conheceu a literatura russa e alemã, e participou ativamente do movimento de renovação, ou melhor, de recriação, do idioma hebraico, que estava diretamente vinculado ao movimento de renascimento nacional judaico. Se no mundo de seus pais e avós o uso do hebraico, que se mantinha como uma relíquia intocada dos tempos bíblicos, ficava rigorosamente circunscrito à esfera dos estudos religiosos, servindo o ídiche para a vida quotidiana, a geração de Bialik, entusiasmada pelos ideais do sionismo e do retorno do povo judeu à terra de seus ancestrais, estava decidida a recriar este idioma como língua viva. Em 1909 ele visitaria a Palestina, então sob domínio otomano, e em 1924 mudou-se, definitivamente, para lá. A ausência de sentido das categorias históricas no mundo que Bialik retrata aparece, por exemplo, no conto aparentemente autobiográfico “Renovo”, que se passa na aldeia natal do autor, e que abre este volume: Eu poderia apontar com o dedo o lugar no campo onde a venda de José se realizou. O poço ao qual José foi lançado ainda se encontra ali, em sua forma exata, como o foi na Antigüidade, até agora. É o mesmo poço que consta no Pentateuco, com todos os seus nítidos sinais, não falta nada. Assim como o poço do Pentateuco está vazio, sem água, assim é o meu aqui. Mais ainda, imagino porém que ele contenha cobras, escorpiões, exatamente como o de José. Se eu quisesse me arriscar e atravessar aquele campo sozinho, estou certo de que logo encontraria uma caravana de ismaelitas. As vacas que o faraó viu no sonho ainda são as mesmas, ou as descendentes de suas descendentes, pastando na beira do rio Titirov... Mais adiante, no mesmo conto, lemos: E não há nada na Torá que não teve um exemplo correspondente ou muito parecido no bairro. Quem tomou de quem? Empate. Talvez o Santo, Bendito seja, olhou no Pentateuco e em Rashi e de acordo com eles criou o bairro; talvez seja o oposto: olhou para o bairro e suas redondezas e de acordo com eles escreveu o Pentateuco e Rashi. Talvez eles tenham se entretecido desde o MAIS CONHECIDO por sua obra poética, Bialik foi também contista de talento, do qual a antologia A Trombeta Envergonhada, ora publicada, oferece ao leitor de língua portuguesa uma bela amostra. Os contos reunidos neste volume oferecem ao leitor um retorno emocionado à infância de Bialik no shtetl, e sobretudo ao sentido de comunhão original que havia, neste universo, entre a natureza, a Torá e a eternidade. Assim, a infância e a visão de mundo desses judeus que trouxeram a Idade Média até o limiar do século 20, convivem nestas páginas de lirismo nostálgico. São também marcadas pela ironia de um escritor que, afinal, olhava com confiança e esperança para o futuro, e partilhava dos ideiais de uma geração que, em vez de aguardar pacientemente a chegada do Messias, que poria fim ao exílio e aos seus sofrimentos, decidiu tomar o destino com as próprias mãos para, num esforço titânico, reconstruir um lar nacional judaico. 52 Revista 18 início dos tempos e nenhum antecedeu o outro. Esta continuidade entre as Escrituras e o mundo, mais do que imaginação infantil, é efetivamente um dos pilares da sociedade judaica tradicional, que busca na Torá o paradigma para todos os acontecimentos mundanos – esse mundo que, assim como a infância de Bialik, desapareceu, deixando um povo perplexo, desorientado ante uma multiplicidade de respostas possíveis a seus dilemas e sofrimentos. O caminho escolhido por Bialik, o do nacionalismo judaico, passava, necessariamente, pela ressurreição do idioma hebraico e estes contos são, para além de um testemunho das emoções da vida no shtetl, também uma tentativa pioneira de construção de uma prosódia moderna no idioma bíblico. Assim, a nostalgia pelo mundo que desaparecia mistura-se ao impulso iconoclasta que representava o uso profano do idioma hebraico, quando não ao sarcasmo de quem aponta para os absurdos e as contradições do mundo dos ancestrais. Se no hebraico original este pioneirismo se revela na superposição de estilos, que vão do bíblico e talmúdico ao da poética medieval das preces, o uso do idioma sagrado para descrever realidades profanas propunha enormes dificuldades à geração de Bialik. E estas dificuldades muitas vezes aparecem, de maneira deliberada, na primorosa tradução de Nancy Rozenchan e Eliana Langer, que freqüentemente preserva, em português, algo do estranhamento inerente a esta literatura. Assim ocorre, também, com a temática destes contos: às vezes, juntamente com o idioma, vemos pedaços inteiros de narrativas bíblicas ou talmúdicas se materializarem no instante da leitura, e este jogo com a tradição é um dos aspectos fundamentais não só da literatura de Bialik, mas de toda a geração dos pioneiros da moderna literatura hebraica, cujos repertórios foram, sem exceção, moldados pelos estudos sagrados. Em “A Lenda dos três e quatro”, por exemplo, Bialik retoma uma narrativa midráshica, revestindo-a de novas formas. Lamentavelmente, esse delicado jogo de alusões à tradição, e o caráter renovador de sua prosa, perdem-se com a tradução e com o desconhecimento, por parte do leitor, do texto original. Traçar alguns contornos da memória de um mundo extinto, que ainda povoa a imaginação judaica depois de mais de um século, é talvez o maior mérito deste livro belíssimo, porém não o único: a integridade e a solidez da visão de mundo que emerge destas páginas é um alívio ao desconforto, à fragmentação e às dúvidas com que nos deparamos ao olhar para o futuro e para o mundo à nossa volta. Luis S. Krausz é mestre em Letras Clássicas pela University of Pennsylvania, pós-graduado pela Universidade de Zurique e doutor em Literatura e Cultura Judaica pela Universidade de São Paulo A Trombeta Envergonhada Haim Nahman Bialik Organização, tradução e notas: Eliana Langer e Nancy Rozenchan Editora Globo, 376 p. R$ 37 LETRAS SEÇÃO E ARTES A alienação nossa de cada dia Livro que especula sobre o possível conteúdo da terceira parte de A Vida do Espírito, que Hannah Arendt não chegou a escrever, aponta para a responsabilidade sobre o pensar de cada um como base para uma sociedade justa. Por Saul Kirschbaum É possível identificar uma ética política positiva no pensamento de Hannah Arendt, ou, como querem alguns autores, somente poderemos encontrar uma ética negativa, do não-fazer? Esta é a pergunta que Eugênia de Sales Wagner se propõe a responder, com base em seu amplo conhecimento da obra da grande pensadora, no livro Hannah Arendt – Ética & Política, recémlançado pela Ateilê Editorial. O ponto de partida da autora é que Hannah deixou indícios suficientes de que iria tratar dessa questão de forma conclusiva na terceira parte de A Vida do Espírito, que teria por título “O Julgar”. Infelizmente, Hannah morreu em 1975, deixando prontas apenas as primeiras duas partes, “O Pensar” e “O Querer”. A Vida do Espírito acabou sendo publicada postumamente; da terceira parte somente ficaram duas epígrafes e o enigma: o que teria ela escrito? Em busca da solução desse enigma, Eugênia Wagner argumenta que se é possível fundar uma ética política positiva, uma ética do fazer, então o ato político deve ser passível de julgamento por parte daqueles que pensam, ou seja, devemos poder distinguir se o espetáculo é a ação que pretende ser um novo começo ou uma manifestação de cunho autoritário; e esse julgar deve estar de acordo com algum princípio que subsuma o juízo. 54 Revista 18 Nas palavras da autora, interpretando o pensamento de Hannah, essa ação política, embora voltada para o futuro, não pode se dar como um projeto previamente concebido pelos atores para instaurar um novo mundo (comunidade), pois isso impediria a inauguração de um novo começo, na medida em que os projetos são sempre elaborados a partir da experiência passada – das idéias prévias de uma pessoa ou grupo – e o momento crítico que a comunidade vive exige um começo absolutamente novo, isto é, a construção pública da comunidade política pela comunidade política. A ação política conforme à ética tratará da construção do espaço da convivência humana através do exercício mesmo dessa convivência; da construção de uma nova morada para todos. A participação desinteressada, a ausência de interesses privados dos atores é condição prévia para a ação que é um novo começo. Em conseqüência, o princípio que pode servir de fundamento para uma ética política positiva deve ser o amor. Mas, pergunta e tenta descobrir Eugênia Wagner, que tipo de amor? Ao longo dos cinco capítulos do livro, a autora reflete sobre os diferentes tipos de amor, para verificar qual é capaz de constituir o princípio que está buscando. No capítulo primeiro, é analisado o Amor à Sabedoria, sinônimo de filosofia, tal como nos foi legado pelo pensamento grego clássico. Aqui, a autora mostra que para Hannah houve uma clivagem entre “os conceitos políticos presentes na Tradição do Pensamento” e “noções nascidas da prática política dos antigos”: o pensamento político de Platão e Aristóteles não corresponde à prática política entre os gregos, tal como se pode depreender dos escritos não-filosóficos (teatro, poesia etc). A condenação e morte de Sócrates afasta os filósofos da vida política, que optam, a partir daí, pela vida contemplativa. Para Hannah, a morte de Sócrates é o marco da separação entre filosofia e política. A filosofia não pode fornecer a base de uma ética política positiva pois, desde Platão, os filósofos se retiraram da política. Por isso, no segundo capítulo, Eugênia Wagner focaliza o Amor ao Próximo, tal como o expressa a mensagem cristã. Mais uma vez, a autora verifica que, para Hannah, o Amor ao Próximo é Amor a Deus; o cristianismo primitivo é essencialmente apolítico porque “a bondade não pode medrar na esfera pública por não resistir à visibilidade”. A entrada da Igreja no espaço político só é possível pelas contribuições de Agostinho: a junção entre a experiência romana, a doutrina cristã e a filosofia grega, um expediente que auxiliou a Igreja a atuar na esfera política por ocultar as contradições entre essa atuação e a doutrina original e, a seguir, a criação da Civitas Dei, que inaugura A maioria da população acabou alijada das decisões políticas e sem espaços para o exercício da liberdade. Passou a exercer a “liberdade” como liberdade de escolha: o direito de voto. Para Eugênia Wagner, “é relevante considerar a importância que Hannah dedicou ao advento da esfera social como espaço de indivíduos isolados e das massas politicamente desenraizadas e desconectadas dos antigos interesses de classe ou partidários que apareceram a partir da Revolução Industrial, na Europa – as massas supérfluas que, segundo as análises de Origens do Totalitarismo, se mostrariam vulneráveis às mani- Neste momento de Reprodução um espaço transcedental para a realização de atividades imortalizadoras, justificando, dessa maneira, a atuação da Igreja no âmbito secular – a “Civitas Dei na terra”. Agostinho teria ainda incorporado às crenças dogmáticas cristãs a idéia platônica de inferno e de punições após a morte, possibilitando à Igreja guiar a conduta da maioria por meio do medo. A entrada da Igreja no espaço público exclui a atuação política do povo. Impedida de manifestar-se como fenômeno político, a liberdade foi transposta para “o espaço interior, no qual os homens podem escapar da coerção externa e se sentirem livres”. A autora mostra que, “fundadas na idéia cristã de liberdade interior, as teorias políticas da era moderna passaram a sustentar que a liberdade começa quando os seres humanos se afastam da esfera política e passam a viver individualmente a experiência da liberdade como uma relação com o próprio eu”. No terceiro capítulo, então, Eugênia Wagner analisa o Amor à Liberdade. Aqui, a figura marcante é Maquiavel, e Hannah observa que, para ele, o ato de fundar justificaria, por si mesmo, o emprego de meios violentos. O problema, destaca a autora, é que “a violência é sempre instrumental e destituída de dignidade e de grandeza, não podendo, por isso mesmo, fundar a liberdade. Porque gera apenas mais violência, é incapaz de promover quaisquer causas, podendo produzir algum efeito apenas quando num espaço reduzido de tempo é usada para chamar a atenção pública para determinadas queixas”. Em suma, “a violência não é a origem do espaço público-político”. Para Hannah, a Revolução Francesa fracassou em seus objetivos (por não ter sabido evitar as imensas desigualdades sociais que trouxeram para o espaço público a violência dos sans-culottes), enquanto a Revolução Americana foi vitoriosa ao inaugurar um novo começo histórico. Para essa vitória, mostraram-se decisivas, antes mesmo do advento da revolução, a eliminação da miséria absoluta e, assim, a convivência humana fundada na igualdade política. Se a revolução foi o marco de um novo começo na história americana, ela observa, a liberdade que havia sido condição para esse início perdeu-se em meio ao sistema de representatividade americana. Fotos: © Eric Gaba LETRAS E ARTES profunda crise, em que tantos intelectuais reivindicam o direito de ficar em silêncio, ignora-se a lição de Hannah Arendt que, em “O Pensar”, ressaltou a importância do aparecimento daqueles que pensam – filósofos ou não – para julgar os acontecimentos pulações ideológicas na primeira metade do século 20”. “O governo de dominação total”, observa, “é o que certamente corresponde de melhor forma às tendências inerentes de uma sociedade de massas.” No capítulo quarto, então, Eugênia Wagner considera o Amor da Vontade. Analisa exaustivamente as relações entre os conceitos arendtianos de mal absoluto ou radical e de banalidade do mal. Mostra que Sócrates, Platão, Aristóteles: condenação à morte do primeiro afastou os filósofos da práxis política, já na Grécia clássica, levando-os a optarem por uma vida contemplativa e marcando, para sempre, a separação entre estas duas esferas Revista 18 55 Reprodução LETRAS E ARTES nos tribunais era aquele que – porque não pensava e isso apenas Hannah percebeu – não distinguia moralmente quaisquer tipos de ordens, desde que o cumprimento dessas ordens fosse um caminho para a realização do projeto de si. Eugênia observa que se Eichmann não tinha o hábito de pensar era, de outra parte, um indivíduo que sabia o que queria e praticou atos intencionalmente para alcançar aquilo que pretendia: possuía fins pessoais bem definidos. A incapacidade para pensar não desabilita a reflexividade da vontade que, não podendo alcançar a redenção em um mundo comum, busca realizar-se através do projeto de um Eu duradouro – o projeto de si. Manuscrito iluminado da Civitas Dei, de Santo Agostinho: a cidade como espaço transcendental para a realização de atividades imortalizadoras quando Arendt se referiu ao “mal absoluto”, em Origens do Totalitarismo, o associou às massas supérfluas e, portanto, ao poder explicativo da ideologia, à manipulação ideológica das massas. O conceito de banalidade do mal, no entanto, está ligado ao afastamento e ao isolamento, isto é, ao pensar afastado das comunidades políticas e à falta do hábito de pensar – a irreflexão – por parte daqueles que se ocupam das coisas do mundo e nunca param para pensar. Mas o não-pensar não implica nãoquerer, não ter vontade. Eugênia Wagner nota que, para Hannah, Eichmann não pensava e não podia, por esse motivo, ser punido como pessoa; desse ponto de vista não era uma pessoa. É da ótica do querer, todavia, que ele devia ser responsabilizado. Afinal, Eichmann escolheu quem desejava ser e procurou obedecer cegamente ao projeto que fez de si mesmo: o de um burocrata que pretendia subir na hierarquia por mérito. Se não era dado à reflexão, colocouse à disposição das ordens do Führer e mostrou-se capaz de praticar qualquer ato para tornar-se quem escolheu “ser” e aparecer: o eficiente articulador do transporte rápido de judeus para os campos de concentração. E o indivíduo que apareceu 56 Revista 18 O ato político deve ser passível de julgamento por parte daqueles que pensam, ou seja, devemos poder distinguir se o espetáculo é a ação que pretende ser um novo começo ou uma manifestação de cunho autoritário Mas, observa a autora, o Eu duradouro projetado pelo filósofo profissional é totalmente moldado pela vontade e não no intercâmbio com os outros: ele próprio se transforma no projeto da vontade. Podemos então pensar que a prática do mal banal não está circunscrita ao burocrata, mas é uma possibilidade atraente justamente para os filósofos profissionais que, desde Platão, optaram voluntariamente pelo afastamento e pelo isolamento. Estaria, consciente ou inconscientemente, se referindo a Heidegger? Chegamos, então, no capítulo quinto, fim do percurso, ao Amor ao Mundo. De volta à questão da ética, Eugênia observa que se os atores agem desinteressadamente, a ação deve estar inspirada no amor; e se esse amor não “diz respeito a pessoas ou grupos” não pode estar referido ao desejo de distinção que move cada ator; deve tratar-se do amor que emana do próprio empreendimento, do exercício da liberdade em concerto. Se não existem interesses privados guiando o desempenho dos atores é de supor, também, que entre os atores há apenas o mundo, isto é, o que está em questão é o mundo – nem o globo nem a Terra e, sim, o mundo que é abrigo humano e assunto dos homens. O Amor ao Mundo se manifesta, assim, como desígnio da ação, quando esta encontra o próprio fim em si mesma, isto é, quando o amor à liberdade, em cada um, se transforma no nós da ação: no anseio de fundação da liberdade. A conclusão de Eugênia Wagner, no final de sua busca, é que “Arendt tem uma ética da liberdade que em função do princípio que ela mesma oferece pode ser denominada de Ética do Amor ao Mundo e que é o coração mesmo de uma filosofia da liberdade. A filosofia da liberdade arendtiana não é nem filosofia política nem filosofia moral porque Arendt conseguiu sobrepujá-las por meio da única maneira possível: colocando sob reflexão o nós da liberdade – a pluralidade humana – e oferecendo um princípio inspirador para a ação”. Resultado de uma pesquisa ampla e cuidadosa, o livro de Eugênia Sales Wagner merece ser lido não só por quem se interessa pelo pensamento arendtiano mas por todos aqueles que, habituados a pensar, se preocupam com a construção de um mundo habitável. Especialmente neste momento de profunda crise, em que tantos intelectuais reivindicam o direito de ficar em silêncio, ignorando a lição de Hannah Arendt que, em “O Pensar”, ressaltou a importância do aparecimento daqueles que pensam – filósofos ou não – para julgar os acontecimentos em momentos de crise. Saul Kirschbaum é Doutor em Letras pelo Programa de Pós-Graduação em Língua Hebraica, Literatura e Cultura Judaicas da USP . Atualmente, é bolsista Prodoc da Capes LETRAS E ARTES Coragem e nostalgia, agora em quadrinhos Duas graphic novels, recém-lançadas no Brasil, abordam temas centrais da tradição judaica, num formato até há pouco visto como incompatível com a cultura séria. Por Alfredo Schechtman N os meus tempos de bancos escolares, ao menos para quem tinha pais amantes da leitura e devotados aos livros, ler histórias em quadrinhos era considerado uma espécie de desvio perigoso do reto caminho da alta cultura. Quadrinhos eram a rendição precoce ao puro lixo da indústria cultural de massas. Pois bem, desde então, entre apocalípticos e integrados, de Adorno a Eco, muita água rolou. Não estou seguro de que aquela postura crítica com relação aos quadrinhos seria tão ferrenha se nossos pais já soubessem, naquela época, que boa parte da indústria cultural de massas norte-americana, edificada na primeira metade do século 20, e que se espalhou pelo mundo ocidental, tinha uma grande e decisiva participação de judeus, quase todos imigrantes, ou filhos de imigrantes, recém-chegados de distintas partes da Europa, tanto na atividade empresarial como na criação artística em seus diversos campos. Assim, tal como no conhecido exemplo de Hollywood, na indústria editorial de quadrinhos (“comics”) foi destacada a ação empreendedora de talentosos artistas gráficos judeus. Muitos super-heróis nascidos nos anos 30 e 40 brotaram de suas mentes e penas criativas. Não é o caso de alongar-se aqui sobre esta história, até porque o leitor pode se remeter diretamente ao ótimo artigo de Daniela Katzenstein Hart, publicado nesta Revista 18 nº 6, para conhecer mais sobre este tema. Entretanto, dois livros traduzidos e editados no Brasil em 2006 justificam que se volte ao tema. Ambos, passíveis de 58 Revista 18 enquadramento na categoria de “romances gráficos” (graphic novels), foram concebidos por autores judeus, com temática judaica, e produzem um impacto literário e estético intenso, com densidade dramática bem maior do que a das habituais histórias em quadrinhos. O primeiro deles é O Complô: a História Secreta dos Protocolos dos Sábios do Sião, de Will Eisner, livro corajoso, em nada cômico, próximo do trágico, como afirma Umberto Eco em seu prefácio. Retomando esta farsa literária, concebida no século 19 pelos serviços secretos e polícias de pelo menos três países europeus para acusar os judeus de quererem dominar o mundo, Will Eisner (1917-2005) criou uma pequena obra-prima. Eco aponta que o notável na farsa literária dos Protocolos não é tanto sua concepção, mas a resistência a todas as provas de sua falsidade grosseira e o perverso apelo que continua a exercer. Com efeito, todas as vezes que alguma fonte definitiva confirmou a natureza espúria da obra, houve alguém que voltasse a publicála, defendendo sua autenticidade – uma história que se perpetua até nossos dias, agora também pela internet. A história desta mistificação literária nos é ensinada por este notável mestre dos quadrinhos, e resulta de mais de vinte anos de pesquisas sobre o anti-semitismo. Eisner explica que, ao longo dos anos, centenas de livros e competentes ensaios acadêmicos expuseram a infâmia dos Protocolos. Esses estudos, no entanto, foram escritos em sua maioria por acadêmicos e feitos para serem lidos por pesquisadores ou pessoas já convencidas da sua fraudulência. Sua proposta, extremamente bem-sucedida, foi a de usar a linguagem mais popular da narrativa em quadrinhos para lidar de frente com uma terrível obra de propaganda, desmontando-a mais uma vez, mas numa linguagem mais acessível. Assim, a história dos Protocolos é descrita em detalhes, superando em muito o que se poderia esperar de uma graphic novel.“Sempre que um grupo de pessoas é ensinado a odiar outro grupo, inventa-se uma mentira para insuflar o ódio e justificar um complô. É fácil encontrar o alvo, porque o inimigo é sempre o outro”, escreve Eisner no início do primeiro capítulo do livro, intitulado “O alvo original”, e que descreve, em rápidas pinceladas, a conjuntura política francesa em meados do século 19, quando surge o material que serviu de base para os futuros Protocolos: um livro escrito em 1864 por um advogado e político francês, Maurice Joly, para atacar Napoleão iii, intitulado O Diálogo no Inferno entre Maquiavel e Montesquieu. O livro de Eisner passa, a seguir, à Rússia czarista, em 1894, no contexto de um conflito em que modernizadores e reacionários disputam a preferência do czar Nicolau ii. Para manter a aparência de estabilidade, o czar dá início a uma política de repressão aos judeus e de apoio aos pogroms. Os conservadores russos, quase sempre envolvidos com a polícia secreta, acabam contratando os serviços de um exilado russo em Paris, Mathieu Golovinski, que, a partir daquele antigo libelo antinapoleônico, cria esta clássica obra antisemita espúria, publicada poucos anos depois da virada do século por iniciativa de Sergius LETRAS E ARTES A criação dos Protocolos por agentes russos interpretada em quadrinhos por Will Eisner: para Umberto Eco, o norte-americano concebeu um livro corajoso, próximo do trágico Nilus, obscuro funcionário do Departamento de Religiões Estrangeiras de Moscou, editor de livros, e freqüentador da corte. Esta edição russa ganhou ampla circulação e os monarquistas costumavam lê-la em voz alta para camponeses analfabetos. Os czaristas falavam abertamente de um complô judaico, alimentando um ciclo crescente de pogroms e de violência anti-semita. Em 1921, um exilado russo em Constantinopla, Mikhail Raslovlev, encontouse com Philip Graves, correspondente do Times de Londres, e propôs vender-lhe as provas de que os Protocolos eram uma falsificação, pois os comparara com os originais da antiga obra antinapoleônica de Maurice Joly. O assunto também despertava interesse na Inglaterra, e a assim chamada ameaça judaica era brandida por políticos e jornalistas conservadores do porte de um Winston Churchill. A matéria foi publicada pelo importante jornal britânico. Num longo e fascinante trecho, em que Eisner apresenta requintes de scholar, assistimos ao circunstanciado cotejamento dos dois livros, tal como teria feito o exilado russo para o perplexo periodista inglês, desmontando, assim, a farsa antijudaica. A seguir, Eisner vai mostrar que o processo de desmascaramento da farsa parece não afetar em nada a inabalável disseminação do livro pelo mundo afora. Sucessivas edições européias são publicadas na Alemanha a partir de 1919, na França a partir de 1921, e assim sucessivamente. Nos Estados Unidos, Henry Ford, o magnata da indústria automobilística, publica uma edição em fascículos em seu jornal. Nos anos 30 e 40, apogeu dos totalitarismos, os Protocolos seguem se difundindo. Hitler e seus fiéis seguidores haviam sido seus leitores atentos. Em 1933, as comunidades judaicas unidas da Suíça processam a Frente Única Nazista pela distribuição dos Protocolos naquele país. A descrição da argumentação apresentada por ocasião deste julgamento reitera a falsidade da obra, assim como sua incontornável disseminação pelo mundo. Eisner insiste e toca à exaustão na tecla de que a história dos Protocolos não termina com o fim do nazismo.“É meu desejo que, talvez, esse trabalho fixe outro prego no caixão dessa fraude tenebrosa e vampiresca”, escreve ele, nessa lição de história em que o combate ao anti-semitismo se torna missão permanente. A outra graphic novel de temática judaica publicada no ano passado no Brasil é O Gato do Rabino: i - O Bar-Mitzvah, do francês Joann Sfar (1971), que provém de outro universo judaico, caracterizado pela herança Sefardita. Com notável beleza pictórica, que Revista 18 59 LETRAS E ARTES O Gato do Rabino, do francês Joann Sfar: pensamento judaico e contradições do comportamento humano criam um clássico que sepulta, de uma vez por todas, a noção de que existe incompatibilidade entre os quadrinhos e a esfera da alta cultura remete ao universo visual dos artistas plásticos argelinos do século 20, Sfar recria, em tonalidades intensas, a vida quotidiana de uma comunidade judaica urbana na Argélia do período colonial francês. A série O Gato do Rabino, que na França já tem cinco volumes publicados, agrupa um conjunto de personagens fascinantes, sempre vistos do ponto de vista de um narrador, ninguém menos do que o gato do rabino. Nas primeiras páginas do livro, o gato do rabino narra apenas por meio de seus pensamentos. Ficamos sabendo de sua relação com o seu dono, da paixão silenciosa que nutre por Zlabya, a filha do rabino, e da rivalidade que nutre com o sempre loquaz papagaio da casa. Zlabya, a horas tantas, comenta que o mundo é muito injusto, que alguns poucos têm muito, e outros muitos nada têm. Reclama que os papagaios falam demasiado, enquanto os gatos, que teriam coisas incríveis a contar, nada falam. Tomando estas considerações ao pé da letra, de modo muito conveniente para si próprio, o gato devora o papagaio, às escondidas de seus donos. De imediato, ganha um novo e insólito atributo, passa a falar, e prontamente nega ter devorado seu rival doméstico. O rabino, aborrecido pelas mentiras sucessivas que saem da boca do bichano, e 60 Revista 18 com medo de que ele ponha minhocas na cabeça da filha, a proíbe de ficar sozinha com o gato, que passa, então, seus dias com o rabino. Este, sempre segundo nosso narrador, quer que ele estude a Torá, o Talmude, a Mishná e a Gemara, que, esperase, o levarão ao caminho da virtude. O rabino quer transformá-lo num bom judeu, um bom judeu que não minta. Já o gato diz ser apenas um gato, e que não sabe se é um gato judeu ou não. Tem início, então, uma verdadeira discussão talmúdica, na qual o rabino afirma que o gato é judeu pois seus donos são judeus, ao que o gato argumenta não ter feito circuncisão. Mas, já que é judeu, quer fazer seu bar-mitzvá. Na dúvida sobre se isto é permitido, o rabino consulta o seu rabino, e este lhe diz que não, e sugere ao dono do gato matá-lo. Ao dialogar com o rabino do rabino, porém, o gato alega ser Deus, que teria assumido a aparência de um gato para testá-lo, e que ele (rabino) estava sendo tão dogmático consigo quanto alguns cristãos são com os judeus. O rabino do rabino chega a ponto de lhe implorar perdão de joelhos, ao que o gato diz ser apenas um gato, reiniciando a contenda, e provocando uma disputa entre os rabinos. Depois de muitas páginas de diálogo, em que somos absorvidos pelo mais puro pensamento judaico, sendo o gato absolutamente cético quanto à religião e quanto a Deus, o rabino lhe diz que aquela história não tem cabimento. Emergem as contradições do comportamento humano, que oscilam entre o sublime e o vil. Por ter ganhado o dom da palavra, o gato também se percebe como um ser contraditório, e torna-se, assim, menos intransigente consigo mesmo, e principalmente com os outros. A alta qualidade do enredo e das imagens fazem deste volume um clássico, sepultando, de uma vez por todas, a noção de incompatibilidade entre os quadrinhos e o universo da alta cultura. Alfredo Schechtman é médico, Mestre em Medicina Social pelo Instituto de Medicina Social da UERJ O Complô: a História Secreta dos Protocolos dos Sábios do Sião Will Eisner Tradução André Conti Companhia das Letras, 160 p. R$ 36 O Gato do Rabino: 1 O Bar-Mitzvah Joann Sfar Tradução André Telles Jorge Zahar Editor, 48 p. R$ 39,90 LETRAS E ARTES Clássicos russos para o público infantil Tolstoi e Turguêniev chegam ao leitor brasileiro pelas mãos de Tatiana Belinky David R. Krausz cursa a 8ª série da Escola Vera Cruz Marcos Alves T atiana Belinky, a célebre autora de livros infantis nascida em Riga, Letônia, mudou-se para o Brasil aos 10 anos de idade. Reconhecida pela qualidade de sua obra dirigida ao público infantil, ela também destacou-se pela tradução de livros russos – como estes dois, recentemente lançados pela Editora 34: As histórias de Bulka, de Lev Tolstói, e O cão fantasma, de Ivan Turguêniev. Muito bem traduzidos, estes livros chegam a nós como se tivessem sido escritos originalmente em português. O livro de Tolstói narra a história de um jovem russo e de seu adorável cão, Bulka. Recrutado pelo serviço militar, o jovem viaja para o Cáucaso e, para sua surpresa, o cão o acompanha no caminho e, conquistando a amizade de todos, passa a fazer parte do exército e, junto com seu dono, vive aventuras, caça, persegue animais silvestres e até é perseguido por homens armados! Narrada com emoção, a história faz o leitor mergulhar no mundo do cão, sentindo suas alegrias e tristezas. O livro, porém, é bastante curto e termina muito depressa. Já Turguêniev, em seu livro, conta a história de alguns homens que discutiam a respeito do sobrenatural e sua existência, quando um provinciano entre eles relata uma história surpreendente sobre um cão fantasmagórico que apareceu em sua vida alguns anos antes. A história é muito emocionante e realmente prende a atenção do leitor. Tem muito suspense e mistério, o que a torna até mais divertida do que a história de Tolstói. Apesar de tratar do sobrenatural, parece mais real do que a outra. Igualmente breve, O cão fantasma diverte e entretêm o leitor. Tatiana Belinky: clássicos russos para o público infantil parecem ter sido escritos originalmente em português O Cão Fantasma Histórias de Bulka Ivan Turguêniev Lev Tolstói Tradução Tatiana Belinky Tradução Tatiana Belinky Editora 34 - 2007, 46 p. Editora 34 - 2007, 46 p. R$ 20 R$ 20 Revista 18 61 COZINHA Goldene kichelech (biscoitinhos dourados): minhas lembranças e as de minha mãe Márcia Zoladz recorda os sabores da cozinha de sua avó, que dependiam da exatidão de punhados, bocados e olhares E sta é a história de uma receita que se perdeu. Minha avó Golda Sztyglic chegou em 1937 ao Rio de Janeiro. Veio com dois filhos pequenos de Ostrov Lubelski, uma cidade pequena próxima a Lublin, na região oriental da Polônia. Meu avô, como tantos outros, viera na frente para se instalar, encontrar trabalho e aguardar a chegada da família. Essa espera dos imigrantes pela família muitas vezes era longa, algumas vezes demorava-se até três anos para conseguir organizar a viagem, os vistos, e até para tomar coragem de enfrentar a viagem. Minha mãe, Rosza Wigdorowicz Vel Zoladz, lembrou numa conversa recente como eram jovens esses casais que tiveram que sair da Europa com os filhos pequenos. E como lutaram para criar um quotidiano em um novo país. Sem as referências das pessoas mais próximas, sem os primos e irmãos com a mesma língua, acabaram por criar amizades fortes com pessoas que nunca conheceriam se tivessem ficado na Europa. Minha avó tinha uma vizinha de origem espanhola, dona Izabel, e a amizade entre © Crystl 62 Revista 18 elas e entre seus filhos e netos permanece até hoje, como se fôssemos primos distantes. Das receitas de minha avó, lembro-me bem de três: a Chalá (pão trançado), que ela preparava para os jantares de família, às sextas-feiras, e da qual eu, como neta mais velha, ganhava sempre um pedaço especial; a torta de uvas pretas e uns biscoitos que ela guardava numa lata de alumínio. Cozinhava, também, alguns outros pratos; não me lembro de muitas especialidades como as que a minha avó paterna Sara Wigdorowicz Vel Zoladz fazia. Minha avó tinha o que poderia chamar de uma cozinha funcional. Fazia, por exemplo, uma canja, que as minhas tias grávidas deveriam comer para que os bebês nascessem fortes e saudáveis. Como me achava muito magra, insistia em que comesse bifes, de preferência de filé-mignon. E anos mais tarde, quando já morava na minha própria casa, sempre me telefonava para saber se eu tinha maçãs na geladeira. As receitas de minha avó se perderam porque ela não as anotava num caderno, e as quantidades dos ingredientes dependiam de uma medida extremamente individual, o punhado ou bocado, como dizia, e o seu olhar na panela. Ela não usava copos ou xícaras para medir as quantidades, mas minha mãe ainda tem uma lembrança extremamente viva dos biscoitos que preparavam juntas quando ela era pequena. “Primeiro, a colocação da terrina alva como a cerâmica que lhe dava forma sobre a pia de mármore, fazia que nossos olhos infantis nela se fixassem intensamente. A adição dos ingredientes (...) a palavra ‘bocadinho’ era pronunciada (...) a etapa seguinte era a de modelagem das formas (...). Gatinhos, elefantes, borboletas e peixinhos eram os tipos escolhidos e a meia-lua completava (...). Colocados em tabuleiros de alumínio previamente untados, que reluziam no forno, de onde os retiravamos quando víamos que estavam dourados – daí serem denominados ‘goldene kichelech’.”1 Ficaram, de minha avó, as memórias e o hábito de ter em casa comidas gostosas para o shabat ou o fim-de-semana. A receita a seguir não se compara a qualquer memória que tenhamos dos biscoitos feitos por nossas avós, mas é deliciosa e fácil de ser preparada. HUMOR Biscoitos doces - Pareve Para observar a Kashruth utilize margarina vegetal, olhe o rótulo, porque a maior parte das margarinas atualmente mistura gordura animal e vegetal. 1 1/ 2 xícara de farinha de trigo 1 1/ 2 colher de chá de fermento em pó 1 / 4 de colher de chá de sal 6 colheres de sopa de margarina vegetal 1 / 2 xícara de açúcar 2 colheres de sopa de açúcar cristal ou de sementes de papoula 1 colher de sopa de casca de limão ou laranja ralada J acó estava convencido de que sua esposa estava ficando surda. Como ela se recusava a ir ao médico, ele perguntou a um especialista em ouvidos o que poderia fazer. “Comece na porta do cômodo onde ela estiver”, disse-lhe o doutor. “Diga a ela alguma coisa, num tom de voz normal. Com isto você poderá avaliar se ela está ou não surda.” Depois do jantar, quando sua esposa estava lavando os pratos na cozinha, Jacó se pôs na porta e disse: “Querida, eu te amo”. Nenhuma resposta. Deu alguns passos na cozinha e repetiu: “Eu te amo, minha querida.” Ainda nenhuma resposta. Ele chegou bem perto, quase encostou no seu ouvido e repetiu: “Eu te amo, minha querida”. Ela se voltou e falou: “Pela terceira vez, eu também te amo”. 1 ovo 2 colheres de sopa de água 1 colher de chá de açúcar Misture a farinha com o sal e o fermento. Bata com a batedeira a margarina com o açúcar, acrescente o ovo e por fim a mistura com a farinha e a casca de limão ou laranja. Abra a massa com um rolo sobre um papelmanteiga polvilhado com farinha de trigo. A espessura é de aproximadamente três ou quatro milímetros. Coloque o papel com a massa em um tabuleiro e deixe na geladeira por 45 minutos. Retire a massa da geladeira, corte com um cortador de metal no formato desejado. Coloque os biscoitos em uma assadeira forrada com papel-manteiga. Dissolva o açúcar na água e passe o dedo molhado sobre os biscoitos e polvilhe com o açúcar cristal ou com as sementes de papoula. Asse em forno baixo previamente aquecido até começarem a dourar. PARA SABER MAIS sobre as cidades de emigração judaica visite o site Witness to a Jewish Century: http:// www.centropa.org/archive.asp?arch=HF&mode=adv O site tem também uma seção de culinária de Mimi Sheraton, que além de receitas tem muitas histórias em vídeo. 1 Publicado na revista Menorah, no 408, junho de 1993, p. 13. Revista 18 63 Parceiros e Mantenedores do Centro da Cultura Judaica parceiros esmeralda Banco Safra Companhia Siderúrgica Nacional (csn ) Suzano Papel e Celulose Itaú S.A. mantenedores esmeralda Edmundo Safdie Família Feffer parceiros rubi Dentsu Latin America Unibanco Itaú bba Crédit Agricole Brasil Inpal Indústrias Químicas Isapa Julio Simões Transportes e Serviços Metso Paper Serpal Engenharia mantenedor rubi Familia Ruhman parceiros platina Adesi Industria e Comércio de Adesivos Agora Sênior ctvm Banco Alfa Banco Fibra Coteminas Hedging-Griffo Imetame Metalmecânica Inova Investimentos Leo Madeiras Ourinvest Satipel Triton e Fórum Industria e Comércio de Moda Unicard White Martins Wirex Cable parceiros ouro Atlanta Química Industrial Brascan Fiorelli Comércio de Veículos Fortes Engenharia Guimar Engenharia Invensys System km Indústria e Comércio de Papel Mauá Investimentos Construtora Moura Schwark Paranasa Engenharia e Comércio Petroquímica União Politeno Química Fina rem Indústria e Comércio Savyon Indústrias Têxteis Securinvest Administradora de Recursos Specialty Minerals do Brasil Voith Paper mantenedores ouro David Erlich Israel Vainboim Jayme Bobrow Jorge Feffer Philip Wojdslawski Roberto Feder parceiros prata Andritz Brasitest Devemada Engenharia Inova Investimentos Irmãos Passaura Rosas Empreendimentos Veólia Water mantenedores prata André Kauffmann Anuar Mitri Maluli Boris Tabacof Cláudio Hirschheimer Eduardo Fischer Flavio Mendes Bitelman Fredd Litto Frederic Michael Litto Gustavo Halbreich Henri Philippe Reichstul Israel Grytz Jacques Sarfatti Jayme Garfinkel José Mindlin Marcelo André Steuer Mário Arthur Adler Mário Fleck Raul Meyer Renato Ochman Rene Werner Ruy Fischer Samuel Lafer Saul Olimpico Libman William Lohn NA REDE INTERNET por Dov Bigio Grand Bazar – O Oriente Médio como você nunca viu O jornalista brasileiro Michel Gawendo atua como correspondente no Oriente Médio desde 2002, com matérias diárias no canal BandNews, bem como matérias especiais para a Folha de São Paulo, além de participações na Rádio Antena 1 de Portugal. Em seu blog, o jornalista publica algumas de suas matérias, [email protected] www.gardenal.org/grandbazar bem como postagens atualizadas sobre a situação em Israel, no Oriente Médio, e os caminhos para a paz. É importante acompanhar a visão de um jornalista brasileiro judeu num conflito recheado de paixões ideológicas, e que nem sempre é visto com imparcialidade por parte da mídia internacional. InfoLive TV – Israel News Live O InfoLive TV é um canal de televisão online com notícias em inglês, espanhol, francês e árabe, sempre atualizado, em que se pode assistir a notícias, ou simplesmente lê-las, a qualquer hora. Além de notícias sobre temas atuais, há um grande catálogo de reportagens em vídeo sobre temas como o The Israel National Photo Collection Escondida entre os diversos sites do governo israelense está a coleção nacional de fotos, da Imprensa Oficial do Governo, um departamento do escritório do Primeiro-Ministro. Foi criado nas celebrações do cinqüentenário de Israel, e possui uma quantidade enorme de fotos da história do país. Não é um site fácil de www.infolive.tv mundo judaico, turismo em Israel, o mundo islâmico e outros. Os vídeos geralmente são curtos, e não exigem muitos recursos do computador. Assim, possibilita acesso ao noticiário israelense, direto da fonte. O site oferece, ainda, um boletim periódico com notícias e reportagens. http://147.237.72.31/topsrch/defaulte.htm navegar, e as fotos são encontradas somente a partir do sistema de busca (não há um catálogo centralizado). Mas, uma vez feita a busca certa, fotos fantásticas podem aparecer! Tente procurar, por exemplo, por “Ben Gurion”, para ver mais de 150 fotos deste grande líder ao longo de sua atuação em Israel. HebrewOnLine.Com www.hebrewonline.com Pessoas de diversas religiões têm interesse em aprender o idioma hebraico. Seja para visitar Israel, para entender as rezas judaicas, ou até mesmo para ler a Bíblia no original. Projeto do Ministério das Relações Exteriores de Israel, este site é de um instituto de ensino de hebraico que emprega mais de 100 professores e possui cursos on-line de hebraico para estudantes de mais de 32 países. A interação entre os alunos e professores é em tempo real, com vídeos e chat entre alunos e professores. Os cursos são pagos, mas há guias de frases, pronúncias e demonstrações para todos os interessados em aprender este idioma milenar. Revista 18 65 Safra