encontros teológicos 59

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encontros teológicos 59
Instituto Teológico de Santa Catarina – ITESC
ISSN 1415-4471
www.itesc.org.br
FUNDAÇÃO DOM JAIME DE BARROS CÂMARA
INSTITUTO TEOLÓGICO DE SANTA CATARINA
Diretor: Pe. Dr. Vitor Galdino Feller
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Secretário: Prof. Ms. Celso Loraschi
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Recepcionista: Crisleine Daiana Radatz
[Catalogação na fonte por Daurecy Camilo (Beto)]
CRB-14/416
Encontros Teológicos. Revista do Instituto Teológico de Santa Catarina –
ITESC, n. 59, Florianópolis, 2011.
Quadrimestral ISSN 1415-4471
I. Instituto Teológico de Santa Catarina
CDU 2 (05)
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ENCONTROS TEOLÓGICOS
Revista quadrimestral fundada em 1986
Diretor: Elias Wolff
Editor: Vitor Galdino Feller
Redator: Ney Brasil Pereira
Conselho Editorial:
Celso Loraschi – ITESC – Florianópolis, SC
Domingos Nandi – ITESC – Florianópolis, SC
Edinei da Rosa Cândido – ITESC – Florianópolis, SC
Elias Wolff – ITESC – Florianópolis, SC
Helcion Ribeiro – PUC – Curitiba, PR
Inácio Neutzling – UNISINOS – São Leopoldo, RS
João Batista Libânio – ISI-FAJE – Belo Horizonte, MG
José Artulino Besen – ITESC – Florianópolis, SC
Lilian Blanck de Oliveira – FURB – Blumenau, SC
Luiz Carlos Susin – PUC-RS e ESTEF – Porto Alegre, RS
Márcio Fabri dos Anjos – Pontifícia Faculdade N. Sra. da Assunção – São Paulo, SP
Maria Clara Bingemmer – PUC-RJ, Rio de Janeiro, RJ
Maria de Lourdes Pereira Dias – UFSC – Florianópolis, SC
Marlene Bertoldi – ITESC – Florianópolis, SC
Ney Brasil Pereira – ITESC – Florianópolis, SC
Rudolf von Sinner – EST – São Leopoldo, RS
Valter Maurício Goedert – ITESC – Florianópolis, SC
Vilmar Adelino Vicente – ITESC – Florianópolis, SC
Vitor Galdino Feller – ITESC – Florianópolis, SC
CoNSELHO CONSULTIVO:
Analita Candaten – Centro de Fomação Scalabriniana – Passo Fundo, RS
Armando Lisboa – UFSC – Florianópolis, SC
Cecília Hess – UNIVILLE – Joinville, SC
Érico Hammes – PUC-RS – Porto Alegre, RS 
Evaristo Debiasi – ITESC – Florianópolis, SC
Fábio Régio Bento – UNISUL – Tubarão, SC
Gabriele Cipriani – CONIC – Brasília, DF
Joaquim Cavalcante – Universidade Estadual de Goiás – Itumbiara, GO
Luís Dietrich – ITESC – Florianópolis, SC
Luís Inácio Stadelmann SJ – ITESC – Florianópolis, SC
Márcio Bolda da Silva – ITESC – Florianópolis, SC
Mari Hammes – ITESC – Florianópolis, SC
Marta Magda Antunes Machado – ITESC – Florianópolis, SC
Paulo Cezar da Costa – PUC-Rio, Rio de Janeiro, RJ
Roberto Iunskovski – UNISUL – Florianópolis, SC
Sérgio Rogério Junqueira Azevedo – PUC-PR – Curitiba, PR
Siro Manoel de Oliveira – ITESC – Florianópolis, SC
Vilson Groh – ITESC – Florianópolis, SC
Nota: O autor de cada artigo desta publicação assume a responsabilidade das opiniões que expressa.
Publicação dirigida aos agentes de pastoral das igrejas e aos professores universitários, pesquisadores e alunos nas áreas da Teologia, das Ciências da Religião e Ciências Humanas em geral, com o
objetivo de favorecer a formação religiosa, social e humana, promover o debate e incentivar a troca de
informações sobre temas teológicos, pastorais e sociais.
Sumário
Editorial ....................................................................................................... O diálogo ecumênico e interreligioso na Verbum Domini
Pe. Elias Wolff...........................................................................................................
“Verbum Domini” e a hermenêutica bíblica
Johan Konings.......................................................................................................... Justiça – Reconciliação – Paz: Palavra de Deus e compromisso no mundo
na Verbum Domini
Celso Loraschi.......................................................................................................... Dimensões epistemológicas na economia da revelação e Verbum Domini
Daniel Ramada......................................................................................................... “Ho lógos pachýnetai”: o Verbo abreviou-se
Maria Soave.............................................................................................................. A Palavra de Deus no Antigo e no Novo Testamento
Luís Stadelmann, SJ.................................................................................................. O pobre, critério para a profecia
José Comblin †26-03-2011, in memoriam................................................................
A criação geme em dores de parto: CF-2011
José Artulino Besen................................................................................................... Comunicações:
Aonde vais, Igreja? Leitura das novas Diretrizes Gerais da CNBB
7
11
27
43
55
85
103
131
155
Paulo Suess............................................................................................................... 167
Recensões...................................................................................................... 175
Crônicas........................................................................................................ 203
Encontros Teológicos 25 Anos...................................................................... 205
Editorial
Uma vez mais, o Magistério da Igreja Católica busca reforçar o valor
da Palavra de Deus manifestada na vida da Igreja, da humanidade inteira, de toda a criação. E o faz com um documento significativo, fruto
da XII Assembleia Geral Ordinária do Sínodo dos Bispos, realizado em
Roma de 05 a 26 de outubro de 2008, dedicado exclusivamente à reflexão e meditação da Palavra de Deus. Desse esforço sinodal, resultou
a Exortação Apostólica Verbum Domini – A Palavra de Deus na Vida
e na Missão da Igreja. Estruturada em três partes, a Verbum Domini
trata da “Palavra de Deus” endereçada a todos os povos, que exige
resposta e para isso precisa ser corretamente interpretada (parte I); da
“Palavra na Igreja”, tendo a liturgia como lugar privilegiado (parte
II); da “Palavra no mundo”, mostrando a missão da Igreja de discernir
essa Palavra, assumindo o compromisso com o mundo, no diálogo com
as culturas e as religiões (parte III).
A Verbum Domini manifesta o esforço de recepção das orientações do Concílio sobre a importância da Palavra na vida e na missão
da Igreja, expressada sobretudo na Constituição dogmática Dei Verbum.
Temos aqui três elementos significativos:
1) a urgente necessidade de revisitar o Concílio Vaticano II.
Após cinco décadas da realização do Vaticano II, constata-se que em
muitos ambientes eclesiais ele ainda não foi recebido com todo o seu
potencial de incidir no ser e no agir da Igreja. De fato, vemos que em
nossos tempos a eclesiologia proposta na Lumen Gentium, do “Povo de
Deus”, comunional, participativa, circular, perde força para eclesiologias que ressaltam características pré-conciliares; em alguns lugares é
notória a busca do retorno às formas litúrgicas antigas, com o risco de
distanciar a celebração da vida dos fiéis, onde o rito, as fórmulas, as
vestes concentram mais a atenção do que o Mistério celebrado; sentese o fortalecimento de espiritualidades em franco descompasso com
a materialidade e a historicidade da existência humana e da fé que a
sustenta; o pensar teológico está retomando categorias abstratas; a ação
pastoral da Igreja está endereçada quase unicamente ao “religioso”,
com a perda do engajamento e a solidariedade para com as questões
sociais que atribulam a vida dos fiéis.
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Editorial
Nesse contexto, revisitar o Concílio Vaticano II é uma questão de
fidelidade da Igreja a ela mesma e ao processo histórico de compreensão
e vivência do evangelho.
2) É importante observar a forma como essa recepção acontece:
através de um sínodo, que manifesta o espírito de colegialidade e comunhão do exercício do ministério episcopal e do ministério petrino.
O equilíbrio dessa relação foi também um grande esforço do Concílio
Vaticano II, buscando superar a colocação do papa solus na Igreja
do Vaticano I. Vemos aqui a importância da corresponsabilidade de
todos os ministérios, dos carismas e dos projetos de evangelização.
Nesse contexto, é importante afirmar a pastoral de conjunto, pastoral
orgânica, como a melhor forma para integrar a Igreja como um todo
em um mesmo processo de evangelização. Aqui, as especificidades de
carismas e projetos não podem se contradizer, mas convergir para uma
causa comum, a vivência da Palavra. Afinal todos estão sob o impulso
da mesma Palavra, e buscam proclamar a mesma Palavra.
3) A recepção do Vaticano II expressa pela Verbum Domini
concentra-se em um documento conciliar específico: a Dei Verbum.
Trata-se de continuidade ao aprofundamento da compreensão e da
vivência da Palavra de Deus. Mas essa recepção tem exigências. Ela
precisa acontecer num horizonte eclesial amplo e aberta para o mundo,
buscando atualizar a compreensão e vivência da Palavra aos nossos
tempos, dando respostas às questões do hoje da vivência da fé. Para isso
muito favorecem os esforços hermenêuticos que buscam compreender
a mensagem da Palavra de Deus de modo existencial, que dê sentido
à vida das pessoas. Em nosso chão eclesial, tem lugar privilegiado na
compreensão e vivência da Palavra a releitura bíblica e os Grupos de
Família/Reflexão, que se reúnem em torno da Palavra de Deus e nela
buscam fortalecer a vida social e religiosa de seus participantes.
Temos, assim, que a “Igreja dos sacramentos”, como foi por muito
tempo reduzida a Igreja católica, é também, e nunca deixou de o ser, a
“Igreja da Palavra”. Aliás, a Palavra de Deus é o primeiro sacramento, no qual a própria Igreja tem origem e do qual se originam todos os
demais sacramentos.
A revista Encontros Teológicos quer dar a sua contribuição para a
recepção desse valioso documento do Magistério eclesial, apresentando
nesta edição artigos que nos introduzem na sua compreensão.
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Editorial
Assim, Elias Wolff focaliza “O diálogo ecumênico e interreligioso
na Verbum Domini” mostrando como a Exortação dá continuidade à
orientação do Vaticano II sobre o tema, e a fortalece. Johan Konings
mostra como a Verbum Domini insiste no sentido aberto do texto bíblico,
explicando o que se entende como “sentido hermenêutico”. Sob o título
“Justiça, Reconciliação, e Paz”, Celso Loraschi aborda o “compromisso
no mundo” como um dos frutos essenciais da leitura bíblica apresentada
pela Exortação pós-sinodal.
Daniel Ramada, sempre a propósito da Verbum Domini, aprofunda
as “Dimensões epistemológicas na economia da Revelação”, com o
subtítulo “Encarnação, natureza humana do Verbo e paradigmas gnoseológicos”, insistindo no fato de que a “matriz epistêmica da cultura
semita é o modelo humano de conhecimento escolhido pelo Pai para se
dar a conhecer através do Filho”. Por sua vez, inspirando-se no texto de
Is 59,1 – “o Verbo abreviou-se” – Maria Soave percorre a ‘abreviação
reflexiva’ da cristologia da Palavra na tradição medieval , retomada
na Verbum Domini.
Luís Stadelmann apresenta uma síntese da “Palavra de Deus
no Antigo e no Novo Testamento”, mostrando como os livros da Bíblia
constituem uma literatura funcional. Em memória de José Comblin,
publicamos um de seus últimos textos, provocador e profético, como
sempre: “O pobre, critério para a profecia”. Escusado é dizer o quanto
esse texto ajuda-nos a compreender a “Verbum Domini”. Ainda, José
Artulino Besen, inspirando-se na mística ortodoxa, ajuda-nos a retomar o tema da Campanha da Fraternidade deste ano, refletindo sobre
o mistério da Criação, obra do amor misericordioso de Deus. Enfim,
Paulo Suess, começando com a pergunta “Aonde vais, Igreja?”, nos leva
a uma instigante reflexão sobre os rumos pastorais que vai tomando a
Igreja no Brasil.
Seguem as recensões e crônicas que completam este segundo número, o 59º da caminhada jubilar – 25º ano de publicação – da nossa
Revista. Esperamos ter com ele contribuído significativamente para a
“recepção” da importante Exortação pós-sinodal de Bento XVI.
Pe. Elias Wolff
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Resumo: O presente artigo mostra o diálogo ecumênico e interreligioso na Exortação Pós Sinodal Verbum Domini, em dois principais horizontes: no conjunto
da Exortação, mostrando que o diálogo é um elemento que perpassa todo o
documento; e na análise daqueles números nos quais a Exortação trata explicitamente do ecumenismo e do diálogo entre as religiões. O que se observa é que
a Verbum Domini dá continuidade e fortalece a orientação do Concílio Vaticano
II sobre o valor do respeito e da acolhida mútua, do diálogo, da comunhão e da
cooperação entre igrejas e religiões.
Abstract: This paper presents the ecumenical and interreligious dialogue in
the context of the Exhortation Verbum Domini issued after the Synod. Two
main dimensions come to the fore: the dialogue is an all encompassing element
throughout the Exhortation; the analysis of ecumenism and the dialogue among
religions are explicitly mentioned therein. Thus one discloses both the continuity
and the orientation of Vatican II concerning the advantage of mutual respect and
dialog, communion, and cooperation among churches and religions.
O diálogo ecumênico e interreligioso
na Verbum Domini
Pe. Elias Wolff*
*
Professor do ITESC, Assessor da Comissão Episcopal Pastoral para o Ecumenismo
e o Diálogo Interreligioso – CNBB.
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Ano 26 / número 2 / 2011, p. 11-26.
O diálogo ecumênico e interreligioso na Verbum Domini
I Introdução
A Exortação Apostólica Pós-sinodal Verbum Domini – A Palavra de Deus na Vida e na Missão da Igreja (VD), é o resultado da XII
Assembleia Geral Ordinária do Sínodo dos Bispos, que aconteceu no
Vaticano de 05 a 26/10/2008. Três elementos ajudam na compreensão
desse documento:
1) Primeiramente, trata-se da continuidade da recepção do Vaticano II. Na atualidade, em não poucos espaços eclesiais, a preocupação
por essa recepção tem-se tornado cada vez menos intensa, ou até mesmo
desaparecida. Presenciamos atualmente significativos esforços para
que sejam restauradas práticas pastorais, espirituais e teológicas préconciliares, sobretudo na liturgia.
2) O segundo elemento diz respeito à forma como essa recepção
acontece: através de um sínodo, que manifesta o espírito da colegialidade e comunhão do exercício do ministério episcopal e do ministério
petrino. O equilíbrio dessa relação foi também um grande esforço do
Concílio Vaticano II, buscando superar a colocação do papa solus na
Igreja do Vaticano I.
3) Finalmente, cabe observar que a recepção do Vaticano II expressa pela VD concentra-se em um documento conciliar específico: a
Dei Verbum. Trata-se, portanto, de continuidade ao aprofundamento da
compreensão e da vivência da Palavra de Deus “na vida e na missão
da Igreja”, como propõe a Exortação. Mas a recepção não se resume a
isso. Ela acontece num horizonte eclesial amplo e por essa razão a VD
expressa a recepção do ensinamento conciliar em seu conjunto, mesmo
se não cita explicitamente todos os documentos do Concílio.
Aparece aqui o espaço para tratar de três temas presentes na VD
– o ecumenismo, o diálogo interreligioso, e a liberdade religiosa – o que
expressa na VD a recepção de três outros documentos conciliares além
da Dei verbum: o Decreto Unitatis redintegratio, a Declaração Nostra
aetate e a Declaração Dignitatis humanae.
É verdade que esses documentos não estão presentes no conjunto
da Exortação de forma explícita, e nem suas preocupações são as mais
intensas na Exortação. O termo “ecumenismo” aparece uma única vez,
exatamente no título que trata do tema no terceiro capítulo da Primeira
Parte; e a palavra “diálogo inter-religioso” aparece uma só vez dessa
forma, e outra, como “diálogo com as outras religiões”, também unica-
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mente nos títulos que tratam do tema no capítulo IV da Terceira Parte. A
expressão “liberdade religiosa” aparece apenas duas vezes, exatamente
no parágrafo que trata especificamente desse tema (capítulo IV da Terceira Parte). Já os termos “unidade”, “comunhão”, “diálogo” são usados
abundantemente na Exortação, mas na maioria absoluta das vezes não
se refere ao ecumenismo ou ao diálogo interreligioso, e sim ao universo
ad intra da Igreja católica.
Contudo, é de se apreciar o fato de a Exortação ter relacionado a
Palavra de Deus com o ecumenismo (n. 46), com o diálogo interreligioso
(nn. 43. 117. 118. 119) e com a liberdade religiosa (n. 120). Temos, assim,
6 números na Exortação VD que apontam para o diálogo, a cooperação e
a comunhão também ad extra, no horizonte ecumênico e interreligioso,
o que situa a escuta, a interpretação e a vivência da Palavra de Deus no
mundo religioso plural da atual sociedade.
II A Assembleia Sinodal: um evento ecumênico
Em coerência com o Concílio, a VD contempla os temas do diálogo ecumênico e interreligioso ao tratar da Palavra de Deus na vida e
missão da Igreja. Explicita a importância e urgência da continuidade da
reflexão sobre esses temas, como ajuda para a Igreja desenvolver uma
ação consequente nesses dois campos.
Contribuiu para isso não apenas a busca de coerência com o Concílio, mas também a sensibilidade para com o atual contexto de pluralismo
eclesial e religioso, e o método dos trabalhos na Assembleia Sinodal.
No método, destaca-se o fato de que o Sínodo dos Bispos católicos foi
também um acontecimento ecumênico em si mesmo, pela presença dos
“Delegados fraternos”, como Bartolomeu I, Patriarca de Constantinopla; e teve também uma dimensão interreligiosa, pela presença de um
Rabino (VD 4) – primeira vez que isso acontece em um Sínodo dos
Bispos católicos.
A presença dos “Delegados fraternos” possibilitou que o Sínodo
vivesse um real encontro e intercâmbio de tradições eclesiais e religiosas
diferentes, o que ajudou a perceber a existência de um contínuo Pentecostes na Igreja, ou seja, que
“ela fala em muitas línguas... no sentido de que nela estão presentes os
mais variados modos da experiência de Deus e do mundo, a riqueza das
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O diálogo ecumênico e interreligioso na Verbum Domini
culturas, e só assim se manifesta a vastidão da existência humana e, a
partir dela, a vastidão da Palavra de Deus” (VD 4).
Por outro lado, as diferentes formas de experiência divina apresentam também diferenças na compreensão das Escrituras como Palavra
de Deus. Não obstante as dificuldades que isso aponta, tais diferenças
impelem à busca de complementaridade e de comunhão da fé no Deus
que nos fala. Mais do que discussão doutrinal, a vivência ecumênica no
Sínodo realçou o valor do testemunho comum dessa fé, que medita as
Sagradas Escrituras como Palavra de Deus.
Os Delegados fraternos tiveram uma presença ativa no Sínodo,
sobretudo nos grupos de trabalho sobre as propositiones. A Exortação
valoriza, sobretudo, a meditação feita aos padres sinodais pelo Patriarca
Bartolomeu I (Propositiones 37). Sua contribuição é apresentada principalmente em VD 8 (a dimensão cósmica da Palavra de Deus), VD 108
(o cuidado da criação); VD 112 (a presença transfigurante da Palavra
de Deus através da beleza do ícone e, em VD 48, na vida dos santos).
A contribuição do Rabino está, sobretudo, no número 117, ao tratar da
relação entre cristãos e judeus com a Torá.
III O conteúdo ecumênico da Exortação
Pós-Sinodal Verbum Domini
O tema do Sínodo não é apenas a “Sagrada Escritura” mas a “Palavra
de Deus”, no seu sentido mais amplo. Nela e por ela, Deus se apresenta como
mistério de comunhão e diálogo de amor (DV 6). Isso mostra que a reflexão
sobre a “Palavra de Deus” é rica de “intuições” e “questões” ecumênicas,
e o enfrentamento aprofundado da Palavra exige, portanto, uma disposição
ecumênica. A Exortação afirma que é preciso colher a Palavra de Deus nos
seus “diversos significados”, de modo que “expressa melhor a unidade do
plano de Deus e a centralidade nele da pessoa de Cristo” (VD 7).
Essa disposição aparece na VD de duas principais formas: implícita, em muitas de suas afirmações; e explícita, em alguns breves
parágrafos.
a) A trasnversalidade do ecumenismo
O tema do ecumenismo aparece de modo transversal e implícito
nas três partes da Exortação: a Palavra de Deus em diálogo com o ser
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humano, a Palavra na vida da Igreja, a Palavra no Mundo – há também
as exigências de compromisso para com as questões da sociedade atual,
o diálogo com a cultura e com as religiões. Em todas as três partes da
exortação se estabelecem relações, entre outras, entre a Bíblia e o ser
humano, a Bíblia e a Igreja, a Bíblia e a humanidade inteira. E todas
essas relações podem, e até exigem, ser tratadas ecumenicamente. São
temas da Igreja, da fé cristã como tal, da missão cristã. A VD não os trata
ecumenicamente, mas faz a todos um convite para aprofundar a compreensão da Sagrada Escritura como um ato ecumênico: “escutar e meditar
juntos a Sagrada Escritura nos faz viver uma comunhão real” (VD 46).
Essa ação comum leva a uma resposta também comum às interpelações
da Palavra de Deus, pela qual todos os cristãos são conduzidos à vivência
da unidade tal como desejada por Cristo (Jo 17,21).
Assim, a base do ecumenismo consiste em entender a Palavra de
Deus na vida e na missão da Igreja, aprofundar juntos esse entendimento,
testemunhá-la ao mundo. Isso implica em refazer a vida cristã e eclesial,
no horizonte da cooperação e da comunhão entre todos os discípulos de
Cristo. Ele é a Palavra de Deus em torno da qual todos os cristãos se
reúnem em suas assembleias.
b) O ensinamento ecumênico explícito da VD
A explicitação do conteúdo ecumênico da VD aparece no Capítulo
III da Primeira Parte da Exortação, quando trata da “hermenêutica” da
Sagrada Escritura na Igreja. Todos os temas dessa Primeira Parte podem
ser lidos numa dimensão ecumênica (cap. I “Deus fala” a todos; cap. II,
Deus espera “uma resposta” de todos; cap. III, para isso é fundamental a
“hermenêutica” do que Deus fala). E pelo fato de o ecumenismo aparecer
na Primeira Parte da Exortação, isso indica que ele é uma “perspectiva”
de leitura da Exortação como um todo. Vemos isso concretamente quando
o tema do ecumenismo é concentrado no cap. III, “A hermenêutica da
Sagrada Escritura na Igreja”, especificamente no n. 46, que trata sobre
“Bíblia e Ecumenismo”. É um número conciso, de três breves parágrafos,
mas que busca abordar questões essenciais da relação entre a Bíblia e
o ecumenismo.
O ponto de partida é uma certeza: “a Igreja tem o seu fundamento
em Cristo, Verbo de Deus feito carne” (VD 46). Tal é uma afirmação
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O diálogo ecumênico e interreligioso na Verbum Domini
comum às Igrejas em diálogo1. No cristianismo histórico, não é usual
dizer: “a Igreja é desta ou daquela pessoa, fundada por essa ou aquela
pessoa” – expressão que se observa muito em meios pentecostais. Mas
“a Igreja é de Jesus Cristo, fundada por Ele e somente Ele é seu fundamento”. Trata-se de uma afirmação presente em Paulo: “ninguém
pode lançar outro fundamento” (1Cor 3,13). E Cristo está no centro das
Escrituras, Ele é a Palavra pela qual Deus fala nos textos bíblicos. Não
como “instrumento” de Deus, mas como Deus mesmo (instrumento são
os textos das Escrituras). A centralidade de Cristo na Bíblia coloca-o
como fundamento da Igreja.
Sendo essa uma afirmação comum para as Igrejas, a Exortação
aponta para a necessidade dos estudos ecumênicos da Bíblia, cuja finalidade é expressar “a unidade de todos os crentes em Cristo”2. Com esse
estudo, os cristãos podem conhecer melhor e juntos o Deus que lhes fala
nas Escrituras, aprofundar a mesma fé nesse Deus, dar testemunho ao
mundo. O apelo vem do próprio Cristo: “que todos sejam um ... para que
o mundo creia” (Jo 17,21). Por isso, a Exortação entende que “escutar
e meditar juntos as Escrituras nos faz viver uma comunhão real, embora
não plena”. A vivência da comunhão acontece em diferentes níveis. E
o fato de não se ter ainda alcançado o nível mais alto, não significa que
16
1
Comissão Internacional Católica-Federação Luterana Mundial, O
Evangelho e a Igreja, in Enchiridion Oecumenicum (Vol. I), EDB, 1994, nn. 1127-1206;
Comissão Internacional Anglicana-Católica Romana, O Dom da Autoridade, Paulinas, 1999; Comissão Internacional Católica-Metodista, Verso
uma Dichiarazione sulla Chiesa, in Enchiridion Oecumenicum (Vol. II), EDB,1995, nn.
1574-1657.
2
Em 1937, a conferência de Fé e Constituição estudou “A Igreja de Cristo à luz da
Palavra de Deus”, afirmando que o testemunho da Sagrada Escritura “oferece a norma
primeira para o ensinamento, o culto e a vida da Igreja”. Em 1946, foi inaugurado o
Instituto Ecumênico de Bossey, tendo o estudo da Bíblia como um dos seus principais
objetivos. As sociedades bíblicas (iniciadas em 1804, com a fundação da British and
Foreign Bible Society – BFBS) desenvolveram uma ação pioneira na cooperação entre
as igrejas para o estudo das Escrituras. Cada vez mais, as traduções ecumênicas
da Bíblia ganham espaço no meio das igrejas. O CMI, constituído em 1948, colocou
a Bíblia no centro de suas atividades: em 1949, trabalhou os Princípios guias para
a interpretação da Bíblia, tendo como centro da reflexão a unidade das Escrituras;
em 1963, a comissão de Fé e Constituição abordou o tema da Tradição e tradições,
mostrando ser a Tradição o próprio Evangelho; em 1967, a mesma comissão estudou
A importância do problema hermenêutico para o movimento ecumênico, tratando do
pluralismo teológico na Bíblia, que “reflete a diversidade da ação de Deus nas diversas
situações históricas e a diversidade da resposta humana às ações de Deus”. Outros
estudos significativos: A autoridade da Bíblia (Fé e Constituição, 1971); O significado
do Antigo Testamento e sua relação com o Novo (Loccum, 1978), Tesouro em vasos
de barro (1998).
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Elias Wolff
não exista comunhão3. A distinção entre “comunhão real” e “comunhão
plena” retoma o ensinamento do Decreto sobre o ecumenismo, Unitatis
redintegratio n. 3, onde são apresentados elementos da comunhão já
existente entre os cristãos: o Batismo, a fé comum no Deus Uno e Trino,
a vida da graça, o testemunho, a Bíblia... (também Lumen Gentium 15).
A comunhão nesses elementos é “real” e impulsiona para uma comunhão ainda mais visível e mais completa, que envolve a convivência de
todos os cristãos, seja nos elementos organizacionais da Igreja, seja nos
sacramentos, sobretudo a Eucaristia, ápice da “plena” comunhão.
A base de tudo isso é exercitar “a escuta comum das Escrituras”4.
Nesse exercício, ouvindo o Deus que lhes fala pelas Escrituras, as Igrejas
aprendem a se ouvirem mutuamente. Acontece, assim, o “diálogo da
caridade”, que permite a vivência do amor mútuo, base do respeito e da
acolhida entre as Igrejas. E isso faz crescer o diálogo “da verdade”, que
leva ao reconhecimento comum acerca do conteúdo da fala de Deus nas
Escrituras, da sua vontade para a Igreja e para toda a humanidade.
Para isso é preciso realizar ações conjuntas, como: “ouvir juntos
a Palavra de Deus”, “praticar a lectio divina da Bíblia”, trabalhar-se
interiormente para “deixar-se surpreender pela novidade” que a Bíblia
apresenta continuamente, e “superar a nossa surdez” para ouvir o que
Deus diz quando vai além do que cremos saber, “escutar e estudar na comunhão dos fiéis de todos os tempos”. Essas ações exigem “incrementar
o estudo, o diálogo e as celebrações ecumênicas da Palavra de Deus”,
como caminhos imprescindíveis à realização da aspiração da unidade,
até que seja possível “aproximar-nos da mesma mesa e beber do único
cálice”. Assim fazendo, os cristãos estarão melhor respondendo ao apelo
que Deus lhes faz nas Escrituras: a unidade na fé. E percebem, então,
que “no próprio diálogo (ecumênico), a Sagrada Escritura é um exímio
instrumento da poderosa mão de Deus na consecução daquela unidade
que o Salvador oferece a todos os homens” (UR 21).
A oração e o estudo comum das Escrituras possibilitam às Igrejas
o reconhecimento da “comunhão real” já existente e o discernimento
3
“Lá onde a Igreja e as comunidades eclesiais confessam segundo a Escritura Jesus
Cristo verdadeiro Deus e verdadeiro Homem, como o único mediador da salvação para
a glória de Deus, do Pai, do Filho e do Espírito Santo, existe uma fundamental unidade
na fé” (Comissão Internacional Católica-Federação Luterana Mundial,
“Vie verso la comunione”, in Enchiridion Oecumenicum, vol. I, EDB, 1986, n. 26).
4
Webber, Han-Ruedi, “Bíbbia, ruolo nel movimento ecumênico”, in Dizionario del
Movimento Ecumenico (Dizionario Ecumenico), EDB, 1994, 100.
Encontros Teológicos nº 59
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17
O diálogo ecumênico e interreligioso na Verbum Domini
do caminho para chegar a uma “comunhão plena”, trabalhando os elementos ainda em desacordo. O papa João Paulo II pergunta na encíclica
Ut unum sint, sobre o ecumenismo: Quanta est nobis via? E responde
afirmando cinco principais elementos que precisam ser trabalhados no
diálogo ecumênico atual: a relação entre Sagrada Escritura e Tradição,
a Eucaristia, o sacramento da Ordem, o Magistério da Igreja, a Virgem
Maria (UUS 79). A VD apresenta como principal desafio para o avanço
da unidade dos cristãos “a compreensão do sujeito da interpretação com
autoridade na Igreja e o papel decisivo do Magistério”. Trata-se de uma
questão eclesiológica.
De fato, as questões eclesiológicas manifestam-se atualmente
como os principais desafios do diálogo ecumênico, e entre elas sobressai
a questão da autoridade magisterial. O diálogo da Igreja Católica com
Anglicanos e Protestantes enfrenta esse tema5. Igualmente, o diálogo
entre a Igreja Católica e a Igreja Ortodoxa no seu conjunto6. De fato, a
questão é delicada sobretudo por incluir o ministério petrino. O próprio
papa João Paulo II reconheceu, ao visitar o Conselho Mundial de Igrejas
em 12 de junho de 1984, que a compreensão que a Igreja Católica tem
de ser o Bispo de Roma “o sinal visível e garante da unidade”, é uma
das principais dificuldades para o diálogo entre as Igrejas (UUS 88). E
manifesta-se sensível à aspiração ecumênica que solicita “encontrar uma
forma de exercício do primado ... que se abra a uma nova situação” (UUS
95). E implora para que “O Espírito Santo nos dê a sua luz, e ilumine todos
os pastores e os teólogos das nossas Igrejas, para que possamos procurar,
evidentemente juntos, as formas mediante as quais este ministério possa
realizar um serviço de amor, reconhecido por uns e por outros” (UUS 95).
De fato, as Igrejas apresentam suas contribuições para o aprofundamento
da questão, mas sem perspectivas de avanços no momento7.
Finalmente, esse número 46 da VD valoriza e encoraja o esforço
ecumênico para a tradução da Bíblia de modo a poder ser utilizada por
diferentes Igrejas. O papa João Paulo II já o tinha observado: “Tais
18
5
Comissão Internacional Católica-Anglicana, Autoridade da Igreja I, II,
III. Ver: O Dom da Autoridade, Paulinas, 1999; Comissão Mista Internacional
para o Diálogo entre a Igreja Católica e os Discípulos de Cristo,
Relatório 1981; Comissão Mista Nacional Conjunta Católica-Luterana,
O Ministério Pastoral na Igreja (1981).
6
“Documento de Ravena”, 2007.
7
Para uma análise geral desse tema, ver Elias Wolff, A Unidade da Igreja, Paulus,
2007, 100-117.
Encontros Teológicos nº 59
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Elias Wolff
traduções, obra de especialistas, oferecem geralmente uma base segura
para a oração e a atividade pastoral de todos os discípulos de Cristo”
(UUS 44)8.
IV A Palavra de Deus e o diálogo interreligioso
1 A transversalidade do diálogo na Verbum Domini
Assim como na temática do ecumenismo, também o diálogo
interreligioso é latente no conjunto da Exortação Verbum Domini. Três
elementos merecem destaque:
a) A universalidade da Palavra
Deus fala a toda a humanidade, com quem estabelece um diálogo
e para quem se dá a conhecer “como mistério de amor infinito” (VD 6). A
criação inteira é expressão desse amor, pois foi pela Palavra – que sempre
existiu, estava com Deus e era Deus – que “tudo começou a existir” (Jo
1,3). “A realidade nasce da Palavra, como creatura verbi” (VD 9).
Essa “Palavra única” tem diversas expressões ao longo da história da salvação, tal como “um cântico a diversas vozes” (Instrumentum
laboris, 9), de modo que a comunicação que Deus faz de Si mesmo é
compreendida de diversas maneiras, com diferentes significados (DV
7). Tal é o que se constata nos elementos da fé cristã das diferentes tradições eclesiais e também nas diferentes religiões. Em Cristo, a Palavra
se encarnou (Jo 1,14) para que melhor possamos conhecer a Deus e com
Ele fazer comunhão.
b) A Palavra nas culturas da humanidade
A Palavra de Deus também se manifesta “assumindo linguagens,
imagens e expressões ligadas às diversas culturas” (VD 109). A cultura
é “constitutiva da experiência humana” (VD 109), mas pode ter origem
além da ação humana. A Palavra mesmo “inspirou, ao longo dos séculos, as diversas culturas”, gerando valores e estilos de vida exemplares
(Propositio 41). Daqui a importância do diálogo entre a Bíblia e as
8
Secretariado para a Promoção da Unidade dos Cristãos e Comitê
Executivo das Sociedades Bíblicas Unidas, Princípios para a colaboração
interconfessional na tradução da Bíblia (1968 – Documento atualizado em 1987).
Encontros Teológicos nº 59
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O diálogo ecumênico e interreligioso na Verbum Domini
culturas, sendo a Bíblia um “grande código para as culturas” em seus
valores antropológicos e filosóficos (VD 110), ajudando-as para uma
abertura à transcendência, a Deus, o que as torna verdadeiro serviço ao
ser humano (VD 109) 9.
c) A Palavra no compromisso com a justiça no mundo
É fundamental entender que é constitutivo do anúncio da Palavra
de Deus o compromisso com o mundo, pois a Palavra está no mundo
(Terceira Parte). Por isso a todos é preciso anunciar o “Logos da Esperança” – cf. 1Pd 3,15 (VD 91), a proposta de Cristo de “vida em abundância”
para todos (Jo 10,10), afirmar que todas as pessoas são destinatárias do
seu Reino (VD 93). De fato, “Cristo se revela realmente a salvação de
todas as nações” (VD 91) e “perante Ele irão reunir-se todos os povos”
– Mt 25,32 (VD 99).
O anúncio da Palavra a todos acontece na consciência “do nosso
compromisso no mundo e a nossa responsabilidade diante do Senhor da
história” (VD 99). A missão é serviço a todos. “A todos a Igreja anuncia
a Palavra que salva” – cf. Rm 1,14 (VD 95), mas sobretudo aos “irmãos
mais pequeninos” – Mt 25, 40 (VD 99). É preciso mostrar que a Palavra
de Deus é uma “caridade ativa” (VD 103) para os jovens (VD 104), os
migrantes (VD 105), os doentes (VD 106), os pobres (VD 107), na defesa
de toda a criação (VD 108). E aqui não se faz distinção de religião. Tratase de um compromisso pela justiça e a transformação do mundo (VD 100),
pela defesa e promoção dos direitos humanos de toda pessoa (VD 101).
Nessa consciência, ela sente ter o “direito e o dever de intervir sobre as
questões éticas e morais que dizem respeito ao bem das pessoas e dos
povos” (VD 100). Trata-se da defesa e promoção dos direitos “universais,
invioláveis e inalienáveis”10 de todo ser humano (VD 101).
E para isso, a Igreja tem consciência de que
“A missão dirige-se sempre ao homem no respeito pleno da sua liberdade. Por isso, o Concílio Vaticano II, afirmando a necessidade e a
urgência de anunciar Cristo, “a luz da vida, com desassombro e fortaleza
apostólica, até à efusão de sangue” se necessário (DH 14), confirmou
a exigência de promover e respeitar em cada interlocutor uma verda
Temos aqui a doutrina dos semina Verbi, dos Pais da Igreja.
10
João XXIII, Carta enc. Pacem in terris (11 de abril de 1963), I.
9
20
Encontros Teológicos nº 59
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Elias Wolff
deira liberdade, isenta de coação de qualquer espécie, sobretudo no
âmbito religioso. “De fato, a verdade deve ser buscada pelo modo que
convém à dignidade da pessoa humana e da sua natureza social, isto
é, por meio de uma busca livre, com a ajuda do magistério ou ensino,
da comunicação e do diálogo, com os quais os homens dão a conhecer
uns aos outros a verdade que encontraram ou julgam ter encontrado,
a fim de se ajudarem mutuamente na inquirição da verdade; uma vez
conhecida esta, deve-se aderir a ela com um firme assentimento pessoal”
(DH 3). Por consequência, “na difusão da fé religiosa e na introdução
de novas práticas, deve sempre evitar-se todo o modo de agir que tenha
aspectos de coação, persuasão desonesta ou simplesmente menos leal,
sobretudo quando se trata de gente rude ou sem recursos. Tal modo de
agir deve ser considerado como um abuso do próprio direito e lesão do
direito alheio” (DH 4)11.
Por isso, a Igreja ou o cristianismo não podem alimentar a pretensão de superioridade ou exclusividade no meio social, sobre as outras
religiões. Até mesmo porque, sozinha, a Igreja pouco poderá fazer para
que o anúncio da Palavra promova uma sociedade melhor para todos,
possibilitando a paz e a reconciliação entre os povos (VD 102). Para
isso é fundamental a cooperação interreligiosa. Assim, urge superar todo
conflito e hostilidade existente entre as religiões. “A religião nunca pode
justificar a intolerância ou as guerras. Não se pode usar a violência em
nome de Deus” (VD 102). E assim cada religião em particular e todas no
seu conjunto podem “impelir para um uso correto da razão e promover
valores éticos que edifiquem a convivência civil” (VD 102).
2 A explicitação do diálogo interreligioso
a) Diálogo e Anúncio
A relação “explícita” entre a Palavra de Deus e o diálogo interreligioso é apresentada no cap. IV da Terceira Parte da Exortação.
Ali, afirma-se que o anúncio da Palavra tem como “parte essencial”,
“o encontro, o diálogo e a colaboração com todos os homens de boa
vontade, particularmente com as pessoas pertencentes às diversas tradições religiosas da humanidade” (VD 117). Vemos aqui, o vínculo entre
“missão” e “diálogo”, como propõe o Decreto Ad Gentes, do Concílio,
11
Conselho Pontifício para o Diálogo Interreligioso, Diálogo e Missão
(1984) n. 18.
Encontros Teológicos nº 59
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O diálogo ecumênico e interreligioso na Verbum Domini
bem como as orientações do Conselho Pontifício para o Diálogo das
Religiões: “Uma missão que não fosse permeada pelo espírito dialogal
estaria contra as exigências da verdadeira humanidade e contra as indicações do Evangelho”12. De um lado, está a missão da Igreja: anunciar
a Palavra de Deus. De outro, estão os elementos constitutivos desse
anúncio: o encontro, o diálogo e a colaboração. A Palavra mesma, objeto
do anúncio, exige como método o encontro, o diálogo e a colaboração.
Daqui, a relação entre objetivo e método na missão da Igreja.
A Exortação identifica com quem é necessário esse encontro: as
pessoas de boa vontade, sobretudo os membros das tradições religiosas.
Entende que quem possui “boa vontade” tem uma disposição interior para
ouvir a Palavra. Na verdade, sua boa vontade já é uma forma implícita e
primária da própria Palavra, como uma lei “escrita no coração” (cf. Rm
2,15). De fato, toda pessoa tem em seu coração uma sede à qual somente
Deus responde (VD 23). Trata-se de uma “lei natural” (Propositio 13.)
pela qual “todo ser humano que atinge a consciência e a responsabilidade experimenta um chamamento interior para realizar o bem”13. Ela
concentra-se no “dom da razão, da liberdade e da consciência” (VD 9).
Isso é mais claro na vida de quem pertence a uma tradição religiosa.
Nestas pessoas, a sensibilidade para a escuta do Divino é trabalhada
pelos ensinamentos e práticas de sua religião, de modo que a Exortação
espera encontrar ali um espaço mais propício para o diálogo.
b) Dois riscos a serem evitados
O “encontro, diálogo e colaboração” entre as religiões devem,
contudo, evitar todo sincretismo e todo relativismo. Temos aqui a constatação de dois perigos para a identidade religiosa de nosso tempo. O
pluralismo religioso da atual sociedade apresenta-se como uma possibilidade que as pessoas têm de optarem por uma ou mais religiões. Nesse
contexto plural, não poucas pessoas “servem-se” de elementos (símbolos,
doutrinas, mística etc.) de diferentes religiões, adaptando-os em sua
própria identidade religiosa. Forma-se, assim, uma identidade religiosa
sincrética, que faz de expressões religiosas diferentes um amálgama a
gosto do crente.
22
12
Conselho Pontifício para o Diálogo Interreligioso, Diálogo e Missão
(1984) n. 29.
13
Comissão Teológica Internacional, À procura de uma ética universal: novo
olhar sobre a lei natural, Cidade do Vaticano, 2009, n. 39.
Encontros Teológicos nº 59
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Elias Wolff
Outro risco do pluralismo religioso atual, e como consequência
direta do sincretismo, é o relativismo religioso. Servindo-se de diferentes tradições religiosas para satisfação das necessidades existenciais,
as pessoas tendem a relativizar os valores e convicções de sua própria
religião. Perde-se a identificação com “uma” religião, e entende-se que
todas as religiões se equivalem na capacidade de orientar a busca de
sentido para a vida humana.
c) Nova visão do pluralismo religioso
O Magistério católico tem-se pronunciado reiteradas vezes em relação a esses dois riscos do pluralismo religioso14. Fundamental é entender
que não se trata de uma crítica às religiões e nem ao pluralismo religioso
em si mesmo, mas dessas duas “posturas” (sincretismo e relativismo)
que podem ser adotadas nesse contexto plural. O Concílio Vaticano II
foi o primeiro concílio da Igreja Católica a ter uma visão positiva das
religiões, sobretudo nas Declarações Nostra aetate e Dignitatis humanae.
E ensina a compreender o pluralismo religioso não como problema para
a evangelização ou oposição ao cristianismo, mas como possibilidade
do encontro, do diálogo e da colaboração interreligiosa. A Exortação VD
confirma essa posição do Concílio ao afirmar que o encontro com pessoas
de culturas e religiões diferentes é “uma oportunidade providencial para
manifestar como o autêntico sentido religioso pode promover entre os
homens relações de fraternidade universal” (VD 117).
De fato, o pluralismo religioso é uma das manifestações do “processo veloz de globalização, característico de nossa época” (VD 117). A
partir dessa constatação, a Exortação faz uma espécie de convite para que
as religiões expressem, na sociedade secularizada, “uma mentalidade que
veja em Deus Onipotente o fundamento de todo o bem, a fonte inexaurível
da vida moral, o sustentáculo de um profundo sentido de fraternidade
universal” (VD 117). Isto é, a VD conclama as religiões para que, a partir
do credo de cada uma, seja possível uma ação comum na sociedade em
duas direções: na afirmação da existência de um Deus origem e fim de
tudo o que existe; e na construção da fraternidade entre os povos.
14
Uma das últimas, e mais contundentes posições, foi tomada pela Congregação para
a Doutrina da Fé, em 06 de agosto de 2000, na Declaração sobre a unicidade e universalidade salvífica de Jesus Cristo e da Igreja, Dominus Iesus.
Encontros Teológicos nº 59
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23
O diálogo ecumênico e interreligioso na Verbum Domini
d) Elementos de relação e de colaboração interreligiosa
O fundamento para essa posição comum vem do credo das próprias
religiões. Na tradição judaico-cristã, Deus manifesta seu amor por todos
os povos, buscando formar de todos uma só família universal (Is 2,2ss;
42,6; 66, 18-21; Jr 4,2; Sl 47). Os judeus são para os cristãos os “irmãos
prediletos”15, encontram-se irmanados na fé de Abraão (VD 43). Assim, a
verdadeira atitude de um cristão para com um judeu deve ser de “respeito,
estima e amor” (VD 43), entendendo que a Igreja encontra-se enraizada
na Aliança que Deus fez com o povo hebreu (Rm 11,17-24). Portanto,
cristãos e judeus devem buscar todos os meios para superar as tensões
das relações entre si, pois “encontramo-nos hoje como irmãos ... firmemente comprometidos na construção de pontes de amizade duradoura”
(VD 43). Juntos é possível lutar pela paz, pela justiça, por um mundo
mais fraterno e mais humano16. Por isso, a Exortação orienta para que
com os judeus “se criem possibilidades mesmo públicas de encontro e
diálogo, que favoreçam o crescimento do conhecimento mútuo, da estima
recíproca e da colaboração, inclusive no próprio estudo das Sagradas
Escrituras” (VD 43).
A relação entre Deus e o ser humano constitui a doutrina também
de outras religiões. Assim, a Exortação reitera a importância do diálogo
entre cristãos e muçulmanos, valorizando aspectos de sua religião, como
a fé em um único Deus; a referência a Abraão, o culto a Deus através da
oração, da esmola e do jejum (VD 118. Ver também NA 3). E apresenta
como pauta desse diálogo o respeito da vida como valor fundamental,
a defesa dos direitos inalienáveis do homem e da mulher e a sua igual
dignidade, a contribuição para o bem comum (VD 118). Enfim, exorta as
Conferências Episcopais de todo o mundo para que favoreçam o diálogo
entre cristãos e muçulmanos (Propositio 53).
Outras religiões e tradições espirituais também são reconhecidas
positivamente pela Exortação, que afirma poderem os seus valores
“favorecer imenso a compreensão entre as pessoas e os povos” (VD
119. Propositio 50). Destaca algumas dessas tradições, afirmando uma
significativa sintonia com seus valores. Com o Budismo, essa sintonia
24
15
João Paulo II, Mensagem ao Rabino-Chefe de Roma (22 de maio de 2004): Insegnamenti 27/1 (2004) 665.
16
João Paulo II, Mensagem ao Rabino-Chefe de Roma (23 de março de 2000):
Insegnamenti 23/1 (2000) 434.
Encontros Teológicos nº 59
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Elias Wolff
manifesta-se no respeito pela vida, a contemplação, o silêncio e a simplicidade; no Hinduísmo, o sentido da sacralidade, do sacrifício, do jejum;
no Confucionismo, os valores familiares e sociais (VD 119). Além dessas tradições, a Exortação valoriza todas aquelas que manifestam “uma
sincera atenção à transcendência de Deus, reconhecido como Criador”
(VD 119), como também o respeito da vida, do matrimônio e da família,
e o sentido da solidariedade.
e) A liberdade religiosa
Finalmente, a Exortação trata do difícil tema da liberdade religiosa. Foi também um tema amplamente discutido no Concílio, e continua
sempre presente na pauta das questões religiosas e sociais da atualidade.
A Exortação entende que o diálogo fecundo inclui “um verdadeiro respeito por toda a pessoa para que possa aderir livremente à sua própria
religião” (VD 120). E, exortando à colaboração entre as religiões, reafirma
o ensinamento da Declaração Dignitatis humanae sobre a importância
de assegurar “a todos os crentes a liberdade de professar, privada e publicamente, a sua própria religião, e também a liberdade de consciência”
(VD 120. Propositio 50). Sustenta sua exortação no discurso do papa
João Paulo II aos jovens muçulmanos em Casablanca, em 1985, o qual
frisou que “o respeito e o diálogo exigem a reciprocidade em todos os
campos, sobretudo no que diz respeito às liberdades fundamentais e,
de modo muito particular, à liberdade religiosa. Tal respeito e diálogo
favorecem a paz e a harmonia entre os povos”17.
Concluindo
Na Mensagem Final do Sínodo, Presidente da Comissão para a
Mensagem, Arcebispo Gianfranco Ravasi, considera que o texto é de
“largo fôlego, com um certo pathos, para fazer com que não seja só um
documento teológico”. De fato, a preocupação e objetivo da Exortação
Verbum Domini é mais de caráter pastoral do que doutrinal. E nesse
sentido, a exortação é propositiva: incentiva uma vivência mais estreita
com a Palavra de Deus, de modo que essa Palavra efetivamente oriente
o ser e agir de todo crente, o ser e agir da Igreja.
17
João Paulo II, Discurso no encontro com os jovens muçulmanos em Casablanca
(Marrocos, 19 de agosto de 1985), 5: AAS 78 (1986), 99.
Encontros Teológicos nº 59
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25
O diálogo ecumênico e interreligioso na Verbum Domini
E nessa vivência tem lugar o diálogo, internamente na comunidade
de fé, e externamente nas dimensões sócio-cultural, ecumênica e interreligiosa. A Palavra de Deus é luz para os passos de todos os que aceitam
os ditames dos seus livros sagrados e que, conosco, podem edificar um
mundo de paz e de luz, pois “Deus quer que todos os homens sejam
salvos e cheguem ao conhecimento da verdade” (1Tm 2,4).
Endereço do autor:
SGAS – Quadra 606 Lotes 41 e 42
70200-660 – Brasília, DF
Fone: (061) 3443-8909
[email protected]
[email protected]
26
Encontros Teológicos nº 59
Ano 26 / número 2 / 2011
Resumo: Um dos acentos do sínodo de 2008 e da Verbum Domini é a dimensão
hermenêutica da leitura bíblica (VD 57-97). A Dei Verbum do Concílio Vaticano II,
embora mencionando essa dimensão (DV 12-13), considerou sobretudo o estudo
histórico-crítico da Bíblia (como, aliás, a Divino Afflante Spiritu de Pio XII, que lhe
abriu o caminho). Já o Sínodo de 2008 e a Verbum Domini, no contexto da proliferação do ceticismo por um lado e do fundamentalismo por outro, insistem mais no
sentido aberto do texto bíblico, que chamaremos de sentido hermenêutico: “Que
é que a Bíblia me diz? Qual a mensagem que apresenta hoje?” A seguir, depois
da examinar o próprio termo “hermenêutica”, o autor alerta contra a “resistência
inútil” à interpretação, explica o que “recebemos” da Tradição, assinala em Jesus
o “marco zero e o ponto de mutação”, distingue o que transmitimos, a pregação,
e retoma a hermenêutica da Sagrada Escritura na Igreja.
Abstract: One of the points of emphasis of the Synod of 2008 and the document
Verbum Domini is the hermeneutic dimension of the reading and interpreting
the Bible (VD 57-97). The document Dei Verbum of the Second Vatican Council
focused mainly on the historical-critical study of the Bible (as well as the document
Divino Afflante Spiritu of Pope Pius XII which opened up its way). On the other
hand, the Synod of 2008 and the document Verbum Domini, in the context of
proliferation of skepticism, on one side, and fundamentalism, on the other, lay
stress on the enlarged significance of the biblical text which we will designate as
the hermeneutic meaning: “What does the Bible say to me? What is the message
destined to us today?” After examining the sense of the term “hermeneutics” the
author alerts against the “futile resistance” to interpretation by explaining what
we “received” from Tradition, pointing out in Jesus as the “initial starting point of
mutation” and distinguishing between the objects we transmit, i.e. the preaching,
and applying the hermeneutics of Sacred Scripture in the Church.
A “Verbum Domini”
e a hermenêutica bíblica
Johan Konings*
*
O autor é padre jesuíta, Doutor em Teologia pela Universidade de Louvain e professor
na Faculdade de Teologia da Companhia de Jesus, em Belo Horizonte, MG, autor de
muitos livros e artigos na área bíblica. Ele foi um dos dois exegetas brasileiros que
participaram como peritos no Sínodo de 2008.
Encontros Teológicos nº 59
Ano 26 / número 2 / 2011, p. 27-42.
A “Verbum Domini” e a hermenêutica bíblica
A Exortação Apostólica Pós-Sinodal Verbum Domini do Papa Bento XVI parece uma “releitura” da Dei Verbum do Concílio Vaticano II,
pois é fruto de um sínodo pós-conciliar, convocado para ver a “recepção”
e efeito do Concílio e para aprofundar sua interpretação no novo contexto
que se criou. Como o Concílio queria dialogar com a Modernidade, o
Pós-Concílio tem de dialogar com a Pós-Modernidade.
Um dos acentos do sínodo de 2008 e da Verbum Domini é a dimensão hermenêutica da leitura bíblica (VD 57-97). A Dei Verbum do
Concílio Vaticano II, embora mencionando essa dimensão (DV 12-13),
considerou sobretudo o estudo histórico-crítico da Bíblia (como, aliás, a
Divino Afflante Spiritu de Pio XII, que lhe abriu o caminho). Já o Sínodo
de 2008 e a Verbum Domini, no contexto da proliferação do ceticismo
por um lado e do fundamentalismo por outro, insistem mais no sentido
aberto do texto bíblico, que chamaremos de sentido hermenêutico: “Que
é que a Bíblia me diz? Qual a mensagem que apresenta hoje?”
Hermenêutica
“Hermenêutica” vem de Hermes, deus grego da comunicação
e – por sinal! – do comércio (em latim, Hermes é Mercúrio, de merces,
mercadoria). Hermes foi considerado deus da interpretação, porque mediava os oráculos divinos de sentido oculto a ser decifrado e interpretado.
O termo “hermenêutica” tem sua origem no tratado de Aristóteles sobre
a verdade e não-verdade de proposições, Peri Hermeneias. Amônio o
traduziu para o latim com o título De Interpretatione. Pode-se dizer que
a hermenêutica é arte e ciência. Em primeiro lugar arte, enquanto prática
de fazer surgir e extrair sentido dos sinais. E ciência, quando investiga
por que e como os sinais têm ou fazem sentido. De fato, o sentido das
palavras e proposições não é claro, nem seguro, à primeira vista, e conforme o contexto as frases podem “fazer” outro sentido. A hermenêutica
questiona nosso positivismo ingênuo, que acha que as coisas são assim
como se diz que são.
Pode-se comparar a hermenêutica à função do intérprete, que recebe uma mensagem e a transmite, recodificando-a. Por isso chama-se
“inter-prete”, porque é o terceiro, ele fala entre dois outros, emissor e
destinatário. A mensagem não lhe pertence. Ele não é “dono da verdade”,
mas elo de ligação entre o emissor e o destinatário. Como o músico. ao
“interpretar” uma peça, é mediador entre o compositor e o público.
28
Encontros Teológicos nº 59
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Johan Konings
Historicamente, a hermenêutica surgiu como disciplina universitária nas Faculdades de Teologia, na Alemanha protestante, tendo, principalmente, duas acepções: a interpretação dos textos antigos e a pregação
cristã. São estes os dois lados do processo que vamos considerar: receber
a mensagem e transmiti-la, não mecanicamente, mas abrindo-a para o
destinatário. Esses dois momentos se influenciam mutuamente. Só se
pode transmitir o que, até certo ponto, foi assimilado, “decodificado”,
e é porque se pensa na possível transmissão que se procura assimilar e
verbalizar, “recodificar”, aquilo que se recebe.
Interpretação necessária e resistência inútil
Podemos ver nosso mundo como estruturado por sinais que necessitam ser decodificados para serem compreendidos, e recodificados
para serem transmitidos. A Bíblia não escapa disso. O Antigo Testamento,
como veremos, é muitas vezes objeto de interpretação no Novo, e na
medida em que este sentido interpretado se apresenta como sentido a ser
conservado, é chamado de cumprimento ou sentido pleno.
Os pensadores antigos não tinham medo de interpretar! Na época
patrística-medieval, a explicação da Bíblia se guiava pela distinção entre o
sentido literal e o sentido espiritual, ou, mais detalhadamente, por quatro
sentidos encontrados no texto: o sentido literal, o alegórico (figurativo), o
tropológico (moral) e o anagógico (escatológico).1 O medo à interpretação
parece ser coisa moderna, por causa do modelo das ciências “exatas”.
Hoje o termo “interpretação” suscita suspeita.
Francisco de Assis queria o evangelho “sine glossa”, sem glosa!
E depois dele, Martinho Lutero afirmava que a Bíblia se explica por si
mesma: “Sola Scriptura”. Estas frases, porém, necessitam interpretação...
Francisco referia-se às explicações que privavam o evangelho nu e cru
de sua força. E Lutero detestava as explicações em proveito próprio da
instituição que, naquele tempo, era mais “romana” que cristã! O princípio
de Lutero se reflete até hoje na apresentação das traduções bíblicas. Enquanto a tradição católica, obediente ao Concílio de Trento, apresenta as
traduções com notas explicativas, as edições protestantes, fora as “bíblias
de estudo”, só trazem as referências dos paralelos internos, para que a
Bíblia se explique por si mesma. Tal desconfiança da interpretação tem
seus efeitos: por um lado, privilegia o sentido pretensamente literal, com
1
Cf. LUBAC, Henri de. A Escritura na tradição. São Paulo: Paulinas, 1970.
Encontros Teológicos nº 59
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A “Verbum Domini” e a hermenêutica bíblica
o consequente desenvolvimento dos métodos histórico-críticos, primeiro
(mas não só) no âmbito protestante e depois também no católico. Por outro
lado, fomenta o fundamentalismo, o qual também é uma interpretação.
A hermenêutica, segundo Paul Ricoeur, é filha da distância.2 Estamos separados do evento original em que a frase “se deu”. Separados
pelo tempo, quando se trata de enunciados dum passado longínquo, como
certamente é o caso da Bíblia. Separados pela cultura, mesmo quando
contemporânea, como bem sabe quem vem da Europa para trabalhar no
âmbito latino-americano. Quem não se dá conta dessa distância pode
provocar dolorosos mal-entendidos, como acontece aos sulistas que
acham que suas palavras são interpretadas pelos nortistas do jeito como
eles mesmos as entendem. Mesmo entre duas pessoas próximas no tempo
e no espaço existe distância: cada qual tem seu próprio mundo mental
e linguístico.
Ora, é precisamente esse distanciamento que permite o enriquecimento da mensagem. “Deixe de molho, que depois você entende”.
No momento do enunciado, “fecha”-se determinado sentido. Depois do
distanciamento, o sentido “abre”-se com novas determinações, ligando-se
a outro contexto e situação e ampliando o leque de suas referências. Esta
dinâmica de fechamento e abertura tem relação com a práxis. Quando
eu fecho um enunciado, ele “performa” um efeito, uma transformação.
Quando o abro novamente, está aí um novo mundo de significações, um
novo contexto, criado, em parte, pela própria palavra que pronunciei.
Neste novo contexto, o sentido da palavra já é diferente. Se eu disser,
“fechem a porta”, e alguém se levantar para fechá-la, repetir a mesma
frase será interpretado de maneira bem diferente, o efeito será outro.
Ninguém mais se levantará, mas todo mundo pensará que estou extrapolando. Porém, se a ordem de fechar a porta serviu para um propósito
mais amplo, digamos, de garantir a serenidade na aula, posso atualizá-la
com uma nova ordem, pedindo silêncio e concentração.
Temos de reformular a mensagem no novo contexto que se criou,
e, ao formular uma interpretação para esse novo mundo, este se modificará pela nova palavra. E assim adiante. Espiral sem fim. Leitura
2
30
Cf. RICOEUR, Paul. A hermenêutica bíblica. São Paulo: Loyola, 2006. CROATTO,
J. Severino. Hermenêutica bíblica: para uma teoria da leitura como produção de
significado. São Paulo: Paulinas, 1986. FONSECA, Maria de Jesus Martins da. Introdução à hermenêutica de Paul Ricoeur. Disponível em <http://www.ipv.pt/millenium/
Millenium36/3.pdf>. Acesso em 04/07/2011.
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infinita. Quando, numa equação de frações, se muda o denominador de
uma fração, deve-se mudar também o número. Senão, a equação não
funciona mais. Ao lecionar simultaneamente João e Marcos, verifico
cada dia mais que João é um exímio intérprete de Marcos, porque lhe
modifica totalmente a maneira de se expressar! Pois repeti-lo literalmente
num outro contexto teria sido uma traição.
Percebemos assim que um mesmo sentido subjacente se esconde,
qual rio subterrâneo, debaixo das novas expressões. Nosso horizonte atual
se funde com o horizonte original, diz o filósofo hermenêutico Heinrich
Gadamer.3 Isto é importantíssimo para uma hermenêutica da tradição,
como é a hermenêutica bíblica.
O que recebemos: a tradição bíblica e cristã
No “mundo” da pregação cristã recebemos uma tradição, constituída principalmente de “escrituras sagradas” – a Bíblia – e de costumes,
ritos e desenvolvimentos doutrinais e morais – a Tradição. A Bíblia e a
Tradição não devem ser vistas como duas fontes estancas, pois a Bíblia
já faz parte da Tradição. A Constituição Dogmática Dei Verbum do
Vaticano II diz que “promanam da mesma nascente4 divina, formam de
certo modo um só todo e tendem para o mesmo fim” (DV 9; DHK 4212).
O que se chama a “revelação cristã”, ou seja, a manifestação de Deus
em Jesus Cristo e naquilo que o Espírito de ambos continua suscitando,
é uma Tradição viva, que inclui as Escrituras Sagradas como sua parte
essencial e referência escrita, mas nelas não se esgota.
Trataremos primeiro daquilo que o “servidor da Palavra” (cf. Lc
1,2) recebe, para que o transmita aos fiéis. Isso não diz respeito somente
aos ministros ordenados, pois a Igreja como um todo está implicada: catequistas, mestres espirituais, leigos piedosos etc.5 O núcleo da tradição
cristã é a “história” de Jesus de Nazaré. Não a história como construto
3
Cf. GADAMER, Hans-Georg. Verdade e método: traços fundamentais de uma hermenêutica filosófica. Petrópolis: Vozes, 2002.
4
O Concílio parece evitar expressamente o termo “fonte”, para não reforçar a antiga
imagem de “duas fontes”, a Escritura e a Tradição. Usa o termo scaturigo, mas as
traduções da Dei Verbum, geralmente, não observam isso. A tradução adequada
aparece na edição brasileira bilíngue do Denzinger (DHK), n. 4212 (DENZINGER,
H.; HÜNERMANN, Compêndio dos símbolos, definições e declarações de fé e moral.
São Paulo: Loyola, 2007. Trad. brasileira a/c J. Konings).
5
Consideramos, aqui, a transmissão do legado de Cristo em sua totalidade, sem especificar o papel do magistério hierárquico.
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científico produzido pela pesquisa crítica radical, mas a narrativa que, em
diversas formas substancialmente concordes, é registrada por escrito e
transmitida, nos evangelhos canônicos, como referência da fé. Sabemos
que também outras narrativas – apócrifas ou extracanônicas – influenciaram a piedade cristã e até o dogma.6 Contudo, o critério primeiro continua
sendo o que está consignado nos quatro evangelhos canônicos.
Os evangelhos, porém, só produzem sentido quando há leitores
e ouvintes que os leem ou escutam. Um escrito sem leitor é como uma
tomada elétrica sem aparelho ligado: sua força é mera potência. Assim,
os testemunhos canônicos sobre Jesus, os evangelhos, têm, decerto, seu
potencial de sentido próprio e definido – não servem para qualquer coisa
–, mas esse potencial só se revela quando são lidos e/ou ouvidos. A Tradição da Igreja é o testemunho “atualizado” pela fé dos que o recebem.
Desde seu início ela é hermenêutica, atribuindo sentido sempre novo
aos textos que veicula. Aí está a verdade da palavra de Gregório Magno
dizendo que a Escritura “cresce” com quem a lê. A comunidade leitora,
vivendo no mesmo espírito em que Jesus realizou sua missão, sendo
conduzida por este Espírito Santo que, chamado de hipóstase (entre os
gregos) ou pessoa (entre os latinos), essa comunidade fiel, dá o sentido
certo à letra consignada por escrito. Por isso mesmo, a comunidade fiel,
em determinado momento, pode dizer que esse escrito é a base de sua fé.
E, por outro lado, que as Escrituras devem ser lidas no espírito em que
foram concebidas, desde que se conceba este espírito como manifestação
do Espírito Santo “atualizador”.
Ora, os evangelhos e o Novo Testamento inteiro, além de testemunho original sobre Jesus, são também interpretação de uma tradição
anterior a Jesus. Basta abrir uma bíblia de estudo para ver quantas citações
do Antigo Testamento se encontram no Novo, especialmente, no relato
da paixão e morte de Jesus e nas pregações querigmáticas do livro dos
Atos. A narração dos fatos centrais a respeito de Jesus foi “formatada” a
partir das Escrituras de Israel. Reconheceu-se na história de Jesus, e mais
especificamente na sua morte e ressurreição, o sentido pleno de diversas
passagens ou temas do Antigo Testamento. Principalmente, dos salmos
do justo perseguido e do cântico do Servo Sofredor da profecia de Isaías.
Esses textos forneceram a linguagem para expressar o paradoxo da fé
cristã, a fé num crucificado proclamado Messias e Filho de Deus. De
certo, Messias diferente, Messias inesperado, como o evangelho de Mar6
32
Por exemplo, os dogmas marianos dos últimos séculos.
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cos nos faz intuir. A compreensão cristã encontra esse paradoxo divino
em alguns textos das Escrituras de Israel. Segundo Lucas, Jesus mesmo
explica esses textos aos discípulos de Emaús e no cenáculo depois da
ressurreição (Lc 24,27.45), e Pedro os explica aos ouvintes da pregação
no dia de Pentecostes (At 2,22-36).
O que os autores do Novo Testamento encontraram nas Escrituras
de Israel não é só esse sentido pleno. É todo um “espírito”, uma espécie
de cultura espiritual, pela qual Deus preparou os corações para poderem
acreditar no inaudito que aconteceu em Jesus e foi registrado na narrativa
evangélica. Os corações moldados pelas profecias, pelos salmos e pela
Lei puderam abrir-se a esse mistério, a essa narrativa inaudita. Mateus,
no Sermão da Montanha, apresenta Jesus como intérprete da Lei de
Moisés; ele a leva à plenitude, isto é, ao significado pleno (Mt 5,17-48).
“Não matar” significa, então, não sufocar ninguém pelo desprezo. “Não
adulterar” quer dizer não repudiar a esposa. O “olho por olho e dente
por dente” tem de ser abandonado em troca do amor ao inimigo. É desse
modo que Jesus leva a Lei a pleno cumprimento, fazendo-se hermeneuta
das Escrituras de Israel. “A Lei veio por meio de Moisés, a graça e a
verdade vieram por Jesus Cristo”. Este, porém, não aparece como dono
da Lei, mas como Filho do Dono, prestando ouvido à sua vontade.
Jesus, marco zero e ponto de mutação
Podemos comparar a tradição cristã a uma mutação na tradição de
Israel. Não é mera continuação, representa um salto qualitativo. Transforma por dentro a tradição na qual ela nasce, ultrapassando-a. Tal é o
mandamento antigo, que é ao mesmo tempo “novo” e “verdadeiro n’Ele
e em vós” (1Jo 2,8).
Como ponto de mutação7, o “evento Jesus” torna-se o ponto referencial, o marco zero dessa nova tradição nascida da tradição de Israel.
Rompe, em diversos pontos, com essa, mas não deixa de ser também
uma releitura dela. Por isso, o iniciador dessa tradição “geneticamente
transformada” é como o marco zero, a referência à qual a hermenêutica
cristã sempre terá de voltar. Tanto Paulo como João dizem que o critério
de legitimidade da inspiração carismática (o discernimento dos espíritos)
é Jesus Cristo. “O Senhor”, diz Paulo (1Cor 12,3), “vindo na carne”, diz
7
Uso o termo num sentido análogo ao de CAPRA, Fritjof. O ponto de mutação. São
Paulo: Cultrix. 1995 (orig. The Turning Point, 1982).
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A “Verbum Domini” e a hermenêutica bíblica
João (1Jo 4,2). Esse duplo critério demarca o Cristo da fé, que é o mesmo
que o Jesus da narrativa evangélica, o “Jesus narrativo”8, aquele que vive
diante dos nossos olhos ao ouvirmos a singela narrativa dos evangelistas
e que confessamos Filho de Deus.
No sentido exposto, o Novo Testamento deve ser considerado
prioritário em relação ao Antigo. Para nós a referência primeira, o marco
zero, é Jesus, não Moisés (cf. Jo 1,17). Todavia, os primeiros cristãos,
sendo de origem judaica, encontraram nas suas Escrituras tradicionais
tanta riqueza para traduzir o que vivenciaram em Jesus, que as conservaram como “suas”. E conservaram-nas não só como um suplemento ao
lado do que os apóstolos testemunharam, mas como instrumento orgânico
da compreensão e expressão da fé em Jesus como Cristo. Fizeram como
“o pai de família que, dos seus guardados, tira coisas novas e antigas”
(Mt 13,52). Para eles, a integração de seu legado cultural e religioso na
compreensão da obra de Jesus foi a verdadeira compreensão da Escritura.
Assim, João diz que, depois que Jesus foi glorificado (o marco zero),
os discípulos entenderam as expressões das Escrituras antigas, como,
por exemplo, “o zelo de tua casa me devora” (Jo 2,17 = Sl 69,9) ou a
acolhida do Messias sentado num burrinho (Jo 12,15c = Zc 9,9). A Lei,
os Profetas e os Salmos são anteriores no tempo, mas como princípio
hermenêutico, o Novo Testamento é primeiro.
Não poderia a comunidade cristã ter prescindido das Escrituras de
Israel para transmitir o evento Jesus? Parece que não. Quando Marcião,
no II século, quis limpar o cristianismo de tudo quanto soa a judaísmo e
excluir a leitura das Escrituras de Israel, a Igreja reagiu com um vigoroso
“não”. Condenou Marcião. Sem a tradição de Israel, guardada de modo
seguro nas Escrituras antigas, os cristãos nem sequer poderiam entender
o que os evangelistas escreveram sobre Jesus, nos seus relatos moldados
pela linguagem de Israel. A tradição escriturística de Israel faz parte da
encarnação de Jesus, “nascido de mulher, nascido sob a Lei” (Gl 4,4). E
isso valia não só para os de origem judaica, mas, sobretudo, para os não
judeus, que precisavam das Escrituras judaicas para entender o que os
evangelhos diziam. Os escritos de Israel lhes serviram de dicionário para
ler os evangelhos! O exemplo acima referido do Sermão da Montanha
deixa isso bem claro! Para que Jesus, o judeu, pudesse ser transmitido
aos não judeus, num espírito de liberdade em relação às instituições ju8
34
Cf. KONINGS, J. Narrando e celebrando. Convergência (Rio de Janeiro), v. 42, p.
413-421, 2007.
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daicas, foi preciso que, junto com a memória dele, se transmitissem os
escritos de Israel. Nem compreenderíamos a “liberdade cristã” de Paulo
se não nos fossem transmitidos, no mesmo pacote, os escritos da Lei...
Assim realizou-se, em sentido inesperado, o lema de Paulo: judeu com
os judeus e grego com os gregos (cf. 1Cor 9,20-21).
Essa transmissão é continuamente reinterpretada. A cada época,
as Escrituras são lidas em ópticas diferentes. É verdade que muitos
elementos do Antigo Testamento foram recebidos com certa reserva,
porque não se coadunavam com o ensino e a prática de Jesus. Mas,
como 2Tm 3,16 diz que todas as Escrituras são úteis, procuraram-se
interpretações simbólicas para dar ao Antigo testamento inteiro um lugar
no tesouro cristão. Mais tarde, na Modernidade, o Antigo Testamento
foi usado como manual da história de Israel; e quando a crítica viu problemas nisso, foi valorizado como acesso ao ambiente e à tradição em
que nasceu o Nazareno, como testemunho da cultura e mentalidade em
que se inscrevem sua atuação e a de sua comunidade e como amostra
da pedagogia de Deus.
O que transmitimos, a pregação
A hermenêutica cristã pode ser vista como arte da interpretação
da tradição e como estudo da transmissão daquilo que recebemos com
vistas à pregação. A pregação cristã, e de modo exímio a homilia litúrgica,
é um exercício de interpretação, mas não uma interpretação arbitrária.
Ela acontece dentro de um círculo, o círculo hermenêutico. Não um
círculo vicioso, que fica patinando em torno de uma tautologia, mas
um movimento circular, melhor, uma espiral9, que movimentando-se
de um polo para outro, afunila a compreensão, penetra na realidade em
questão como uma broca na madeira, e atinge assim o cerne que deve
ser posto às claras.
Essa circularidade tem diversos aspectos. Há o círculo da parte e
do conjunto. A parte entende-se no conjunto, e o conjunto, a partir das
partes. Em relação à Sagrada Escritura, a circularidade entre o todo e as
partes se percebe de modo especial na questão do cânon. Se se exclui
tudo o que é judaico, como queria Marcião, Jesus perde sua encarnação
e abre-se o caminho para uma gnose a-histórica. Se, ao contrário, se
9
Cf. OSBORNE, Grant. A espiral hermenêutica: uma nova abordagem à interpretação
bíblica. São Paulo: Vida Nova, 2009. Encontros Teológicos nº 59
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A “Verbum Domini” e a hermenêutica bíblica
aceitam as escrituras de Israel e até os livros deuterocanônicos, como
fez a ortodoxia, Cristo ganha precedentes sapienciais que aumentam a
compreensão de sua encarnação.
Há, também, o círculo do presente e do passado. O cristianismo
não nasceu hoje, e quando nasceu, não surgiu do nada. Na leitura bíblica constitui-se uma roda de conversa com gerações antes de nós e, até,
antes de Cristo.
Há o círculo do texto e do contexto. A espiral da interpretação se
afunila, movimentando-se do texto ao contexto, do significado original
à contextualização ou significação para a Igreja hoje. A teologia da libertação oferece exemplos de tal hermenêutica contextualizada.10
Há, ainda, o círculo do indivíduo e da comunidade. Eu posso
entender a Bíblia como quero, mas se pretendo ser membro de uma comunidade, devo entrar em diálogo com outros entendimentos. Quanto
ao essencial existe até um denominador comum: a fé da Igreja. Mas esta
só é possível quando cada verdadeiro fiel assume a sua fé.
Há o círculo, importantíssimo, da palavra e da práxis. A melhor
maneira de compreender é praticar. “Compreende” o carro quem sabe
dirigir. Mesmo das coisas mais teóricas, a compreensão se verifica pela
prática: por isso, o professor de matemática dá exercícios. Sem a teoria,
porém, não resolveria os exercícios, nem dirigiria o carro. O espírito de
Cristo mostra ser compreendido quando produz os frutos do Espírito de
Gl 5,22. Mas a prática desses frutos me leva a contemplar cada vez de
novo tudo o que Cristo disse e fez, para que eu enfrente desafios novos
e diferentes. Diferentes, inclusive, por causa da transformação que os
frutos do Espírito causaram.
Tudo isso nos leva a perceber que o pregador se assemelha ao
sábio pai de família, que tira de seus guardados coisas novas e antigas
(cf. Mt 13,52). Ao usar essa imagem, Mateus se referia à verdadeira
compreensão da tradição mosaica na nova vivência impostada a partir de
Jesus. Mas depois de Mateus, que lutava com essa questão na sua igreja
judeo-cristã, essas palavras ganharam novos sentidos. Serviram para
guardar os escritos de Israel no cânon bíblico. Serviram para guardar a
piedade medieval no início da Modernidade e da Reforma protestante.
Serviram para salvaguardar a racionalidade da fé quando a Iluminação a
10
36
Cf. CROATTO, J. Severino. Exodo: uma hermenêutica da liberdade. São Paulo:
Paulinas, 1981.
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negava e relegava a fé ao mero sentimento. Servem, ainda, para revalorizar a simplicidade e pobreza dos santos de hoje e de ontem, no mundo
seduzido pelo acúmulo do capital e pelo consumo irrefreado.
A hermenêutica dá, às coisas novas, a referência do antigo, a
continuidade, a percepção de estarmos em comunidade com os que
nos antecederam, de não estarmos inventando a roda, mas adaptandoa a novas estradas... E, às coisas antigas, dá o sentido do novo, como
descobrimos na restauração litúrgica da noite pascal, na redescoberta
da Bíblia na liturgia, na busca de uma fé comprometida, na catequese
renovada e assim adiante. Isso exige arte e sensibilidade, combinação
de respeito e criatividade. A circunstância em que acontece a homilia
hoje nunca existiu antes: vida urbanizada, para bem e para mal; muitas
informações e pouco tempo para digeri-las; folga institucionalizada e até
paga, mas pouco repouso; enciclopédias no computador, mas pouco saber
na cabeça; pessoas que falam de direitos do ser humano, da natureza e
até dos animais, mas que não respeitam os limites de seus desejos, nem
compreendem a alma de seus semelhantes e de si mesmas. Um mundo
contraditório, tenso. Daí a primeira exigência de uma boa hermenêutica:
compreender esse mundo.
Por outro lado, se antigamente a homilia era um “programa” para
ocupar o domingo de manhã, hoje as pessoas precisam de uma mensagem
breve, porém talhada com clareza. Homilia não é exercício de paciência ou de penitência. Dizer as coisas certas e claras, escandidas com as
devidas pausas, para que as palavras penetrem no coração, assim como
um prego na parede, com golpes pausados e acertados...
E o conteúdo? Três ingredientes: palavra, vida e mistério. A
Palavra que nos vem “de longe” – em diversos sentidos. Tem algo de
alheio: alteridade. É proclamada em leituras bíblicas que, mesmo sendo
acessíveis no seu sentido primeiro, vêm de outros tempos, de pessoas
diferentes de nós. E tem de ser assim, pois, senão, não teriam nada a nos
dizer. A Palavra surpreende. É a voz do Outro.
A vida que as pessoas vivem, confrontadas com a vida de Jesus.
A prática de vida que a Palavra quer transformar. A transformação da
vida que verifica a compreensão da Palavra.
O mistério, aquilo que é maior do que nós e vem proclamado nessa
palavra tão estranha. Aquilo que é celebrado na ação litúrgica. Unidade
da Palavra e da ação litúrgica. O que Jesus ensina no evangelho (ilusEncontros Teológicos nº 59
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A “Verbum Domini” e a hermenêutica bíblica
trado pelas antigas Escrituras), ele o demonstra com seu gesto definitivo
da Ceia e da Cruz, cujo memorial celebramos no momento eucarístico.
Por isso a missa com Eucaristia é mais completa que a mera celebração
da Palavra, e por isso a Igreja deve abrir novas possibilidades para que
todas as comunidades tenham a possibilidade da celebração completa
a cada domingo.
Tudo isso exige estudo. Se não estudamos, o Espírito Santo não
dá conta de nós. Assim como Deus diz que os israelitas o cansaram (Is
43,24; Sl 95,10), o Espírito Santo, que é Deus, pode se cansar de nossa
indolência e preguiça mental.
A hermenêutica da S. Escritura na Igreja
Finalmente, voltando ao que dissemos no início: não somos donos
daquilo que transmitimos. Somos apenas intermediários. Como, então,
na transformação hermenêutica, guardar o “sentido original” da mensagem, a “proclamação ortodoxa” que João realizou transformando os
termos da mensagem? Para responder a esta pergunta podemos voltar
ao documento Verbum Domini.
Segundo a Verbum Domini, o lugar originário da interpretação da
Escritura é a vida da Igreja (VD 29). A referência eclesial não é extrínseca,
mas provém da própria realidade das Escrituras, formadas no ambiente
vital das tradições de fé das comunidades. Para que a S. Escritura seja
lida e interpretada com o mesmo Espírito com que foi escrita (DV 12), o
Espírito divino torna capaz de interpretar autenticamente as Escrituras,
e da sua imanência na vida eclesial brota a verdadeira hermenêutica da
Bíblia (VD 30). A Bíblia foi escrita pelo Povo de Deus e para o Povo
de Deus, sob a inspiração do Espírito Santo. Somente como “nós”, na
comunhão do Povo de Deus, podemos realmente entrar no núcleo da
verdade que o próprio Deus nos quer dizer. O Livro é a voz do Povo
de Deus peregrino, e só na fé deste Povo estamos na tonalidade certa
para compreendê-la11, em afinidade vital com aquilo de que fala o texto.
Existe uma relação entre a vida espiritual e a hermenêutica da Escritura: “Com o crescimento da vida no Espírito, cresce também no leitor a
compreensão das realidades de que fala o texto bíblico”.12 A experiência
11
Cf. PONTIFÍCIA COMISSÃO BÍBLICA. A interpretação da Bíblia na Igreja. Petrópolis:
Vozes, 1994. III, C, 1.
12
38
PONTIFÍCIA COMISSÃO BÍBLICA. A interpretação ... II, A, 2.
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eclesial incrementa a inteligência da fé a respeito da Palavra de Deus,
e a leitura na fé das Escrituras faz crescer a própria vida eclesial. “As
palavras divinas crescem juntamente com quem as lê”.13
O estudo dos livros sagrados deve ser “como que a alma da sagrada teologia” (DV 24; cf. VD 31). Da relação fecunda entre exegese e
teologia depende, em grande parte, a eficácia pastoral da ação da Igreja e
da vida espiritual dos fiéis. Daí a insistência no sério estudo da exegese
histórico-crítica e dos outros métodos de análise da Escritura, pois correspondem ao realismo da encarnação. O fato histórico é uma dimensão
constitutiva da fé cristã, a ser estudada com os métodos da investigação
histórica, e o desejo de Deus inclui o amor pela palavra em todas as suas
dimensões e o recurso às ciências profanas que nos indicam “as vias
rumo à língua” (VD 33).
Pio XII combateu, na Divino afflante Spiritu, uma exegese que se
dizia mística, mas separava a “exegese científica” (para uso apologético)
da “interpretação espiritual” (reservada ao uso interno). Recusa-se “a
ruptura entre o humano e o divino, entre a pesquisa científica e a visão
da fé, entre o sentido literal e o sentido espiritual”.14 O Concílio Vaticano II (DV 12) sublinhou, por um lado, o estudo dos gêneros literários
e a contextualização, indicando três critérios para que a Escritura seja
interpretada no mesmo Espírito em que foi escrita: 1) interpretar o texto,
tendo presente a unidade de toda a Escritura (exegese canônica); 2) ter
presente a Tradição viva de toda a Igreja; 3) observar a analogia da fé.
E para que se possa falar em exegese teológica, é mister observar os dois
níveis metodológicos, histórico-crítico e teológico.15
Esses dois níveis só funcionam em reciprocidade (VD 35). Se a
atividade exegética fica só no nível histórico-crítico, tratando a Escritura
como mero texto do passado, não alcança o acontecer da revelação de
Deus através de sua Palavra transmitida na Tradição viva e na Escritura;
faltando a hermenêutica da fé, acaba sendo substituída por outra, secularizada e positivista, que lança dúvidas sobre mistérios fundamentais do
cristianismo e seu valor histórico. Uma hermenêutica que nega a possibilidade da presença do Divino na história introduz um dualismo entre a
13
GREGÓRIO MAGNO, Homiliae in Ezechielem, I, IV, 8: PL 76, 843D.
14
JOÃO PAULO II, Discurso por ocasião do centenário da Providentissimus Deus e do
cinquentenário da Divino Afflante Spiritu: AAS 86 (1994) 232-243, 235.
15
BENTO XVI, Intervenção na XIV Congregação Geral do Sínodo (14 out. 2008), Insegnamenti IV/2 (2008), 493.
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A “Verbum Domini” e a hermenêutica bíblica
exegese, confinada ao primeiro nível, e a teologia, levada a uma espiritualização que não respeita o caráter histórico da revelação. A ausência da
hermenêutica teológica cria um fosso entre exegese científica e a leitura
da fé. “Onde a exegese não é teologia, a Escritura não pode ser a alma da
teologia e, vice-versa, onde a teologia não é essencialmente interpretação
da Escritura na Igreja, esta teologia já não tem fundamento”.16
A unidade dos dois níveis do trabalho interpretativo pressupõe a
harmonia entre a fé e a razão (VD 36): uma fé que nunca degenere em
fideísmo, fautor de leituras fundamentalistas, e uma razão que, investigando os elementos históricos, se mostre aberta e não recuse a priori o
que excede sua própria medida. O sentido literal e o sentido espiritual
se iluminam mutuamente (VD 37). É mister procurar a realidade de fé
que os textos exprimem e ver em que esta realidade se liga com a experiência crente do nosso mundo17, descobrir o sentido expresso pelos
textos bíblicos “quando lidos sob o influxo do Espírito Santo no contexto
do mistério pascal de Cristo e da vida nova que dele resulta” e “reler as
Escrituras à luz deste novo contexto, o da vida no Espírito”.18
É preciso transcender a letra (VD 38), num processo interpretativo
não apenas intelectual, mas vital, que requer o pleno envolvimento na
vida eclesial enquanto vida segundo o Espírito. Tal superação não se verifica no fragmento literário individual, mas em relação com a totalidade
da Escritura, que é uma única Palavra para a qual somos chamados a
transcender. A Palavra de Deus que interpela nossa vida é única, embora
encontrada numa coletânea de textos cuja redação se estende por mais
de um milênio (VD 39). Ligamos o Novo Testamento com as Escrituras de Israel, interpretando-as como caminho para Cristo: a pessoa de
Cristo dá unidade a todas as “Escrituras”, postas em relação com a única
“Palavra” (DV 12).
O próprio Novo Testamento reconhece o Antigo como Palavra de
Deus (VD 40): implicitamente, quando usa a mesma linguagem e alude a
ele; e explicitamente, ao citá-lo para argumentar. Se a raiz do cristianismo
se encontra no Antigo Testamento, o Novo proclama que as Escrituras
de Israel encontraram o seu “cumprimento” no mistério da vida, morte
e ressurreição de Cristo. “Cumprimento” é um conceito que comporta
40
16
Ibid., 493-494.
17
Cf. PONTIFÍCIA COMISSÃO BÍBLICA, A interpretação... II, A, 2.
18
Ibid., II, B, 2.
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tríplice dimensão: continuidade, ruptura e cumprimento na superação
(VD 41). Assim, articulam-se a importância insubstituível do Antigo
Testamento e a originalidade da leitura cristológica. A tipologia não tem
caráter arbitrário, mas “descobre [...], na Antiga Aliança, prefigurações
do que o mesmo Deus realizou, na plenitude dos tempos, na pessoa do
seu Filho encarnado”.19 Por isso, os cristãos leem o Antigo Testamento à
luz de Cristo morto e ressuscitado. Mas o Antigo Testamento mantém seu
próprio valor de revelação, que Cristo veio reafirmar. Por isso, também o
Novo Testamento requer ser lido à luz do Antigo. Assim, a compreensão
judaica da Bíblia pode ajudar a inteligência cristã das Escrituras. “O Novo
Testamento está oculto no Antigo e o Antigo está patente no Novo”.20
Ora, a Bíblia apresenta muitas coisas que não parecem propriamente “cristãs”. A revelação bíblica está radicada na história e o
desígnio de Deus se manifesta progressivamente. A Escritura menciona
comportamentos “obscuros” que os homens sempre tiveram e continuam
tendo. A pregação dos profetas contra a injustiça e a violência, no Antigo Testamento, é instrumento da educação dada por Deus a seu povo
como preparação para o Evangelho. Seria, pois, errado deixar de lado
os trechos obscuros da Escritura, mas é preciso vê-los em seu contexto
histórico-literário e na perspectiva cristã, que tem como chave hermenêutica última “o Evangelho e o mandamento novo de Jesus Cristo realizado
no mistério pascal” (VD 42).21
E a diferença entre a leitura judaica das Escrituras e a leitura
cristã? (VD 43). O Novo Testamento mostra rupturas relativamente às
instituições do Antigo e vê o cumprimento das Escrituras no mistério
de Jesus, reconhecido Messias e Filho de Deus. Esta diferença com o
judaísmo, porém, não implica hostilidade. Alimentamo-nos das mesmas
raízes espirituais. O exemplo de Paulo (Rm 9-11) demonstra que “uma
atitude de respeito, estima e amor pelo povo judeu é a única atitude
verdadeiramente cristã nesta situação”.22
Outra questão é a leitura “fundamentalista”, que fomenta interpretações subjetivistas e arbitrárias, trai tanto o sentido literal como
19
Catecismo da Igreja Católica, 128.
20
AGOSTINHO, Quaestiones in Heptateuchum, 2, 73: PL 34, 623.
21
Observe-se que também o Novo Testamento (p.ex., o Apocalipse) apresenta páginas
violentas.
22
PONTIFÍCIA COMISSÃO BÍBLICA. O povo judeu e as suas sagradas Escrituras na
Bíblia cristã (24 maio 2001), 87: Ench. Vat. 20, n. 1150.
Encontros Teológicos nº 59
Ano 26 / número 2 / 2011
41
A “Verbum Domini” e a hermenêutica bíblica
o espiritual e induz à instrumentalização e à interpretação antieclesial.
Desconhecendo o caráter histórico da revelação bíblica, torna-se incapaz
de aceitar plenamente a verdade da Encarnação. Tratando o texto bíblico como se fosse ditado palavra por palavra pelo Espírito, desconhece
que a Palavra de Deus foi formulada numa fraseologia historicamente
condicionada.23 Ora, “o cristianismo divisa nas palavras a Palavra, o
próprio Logos, que estende o seu mistério através de tal multiplicidade
e da realidade de uma história humana”.24 A leitura verdadeiramente
crente da S. Escritura procura descobrir-lhe o significado vivo, a verdade
salvífica para a vida do fiel e da Igreja hoje, sem ignorar a mediação humana. Daí a importância do diálogo entre Pastores, teólogos e exegetas,
inclusive em nível ecumênico (VD 45). Escutar juntos, sem preconceitos,
a Palavra de Deus, na comunhão dos fiéis de todos os tempos, constitui
um caminho para a unidade da fé.
O estudo da S. Escritura, lida na comunhão da Igreja universal,
seja realmente como que a alma do estudo teológico (DV 24; VD 47). Ao
estudo científico e interpretativo da Bíblia junte-se um genuíno espírito
eclesial, tendo em conta as intervenções do Magistério, que não está
acima da palavra de Deus, mas, sim, a seu serviço.
Para interpretar a Escritura ouça-se quem viveu verdadeiramente a
Palavra de Deus: os santos (VD 48). As grandes espiritualidades nasceram
da Escritura, e cada santo constitui como que um raio de luz brotando da
Palavra de Deus [49]. Já em Israel a Palavra de Deus se servia da própria
vida do profeta. O Espírito Santo, que inspirou os autores sagrados, é o
mesmo que anima os santos a darem a vida pelo Evangelho. Entrar em
sua escola constitui um caminho seguro para efetuar uma hermenêutica
viva e eficaz da Palavra de Deus. E o mesmo se diga a respeito dos
santos desconhecidos que vivem no meio de nosso povo simples: neles
transborda o Espírito da leitura bíblica. Que sejam ouvidos.
Endereço do Autor:
E-mail: [email protected]
42
23
Cf. PONTIFÍCIA COMISSÃO BÍBLICA, A interpretação... I, F.
24
BENTO XVI, Discurso aos homens de cultura no “Collège des Bernardins” de Paris
(12 set. 2008): AAS 100 (2008), 726.
Encontros Teológicos nº 59
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Resumo: Este artigo é um comentário do capítulo referente à “Palavra de Deus e compromisso no mundo”, da Exortação Apostólica Pós-Sinodal Verbum Domini. O autor inicia
valorizando a metodologia participativa usada para recolher as questões que poderiam ser
refletidas no Sínodo, provindas das comunidades católicas espalhadas no planeta, bem
como a experiência de partilha e de fraternidade vivida pelos Padres Sinodais, com base
na centralidade da Palavra de Deus. A seguir ressalta a importância do apelo do documento
para “rever em profundidade a nossa vida”, iluminados e fortalecidos pela Palavra de Deus.
Isso implica em retomar, com nova disposição, o caminho da justiça – reconciliação – paz,
alicerces de um novo mundo, segundo os desígnios de Deus. São valores sociais inter-relacionados, sendo que a justiça vem em primeiro lugar, pois é a condição para a reconciliação
e a paz. Neste sentido, a “santidade política” com a prática da caridade ativa é uma força
especial de transformação das situações de injustiça. A missão evangelizadora da Igreja
necessariamente deve inserir-se na realidade das pessoas excluídas e empenhar-se na
defesa e promoção dos direitos humanos. O anúncio da Palavra de Deus somente se torna
eficaz quando vem acompanhado do compromisso social. O comentário é enriquecido com
citações de textos bíblicos relacionados com a proposta oferecida pela Verbum Domini.
Abstract: This paper presents a commentary on the chapter referring to the “Word of God
and its relationship with the world” dealt with in the Apostolic Exhortation Verbum Domini
issued after the Synod. The author begins with a value judgment of the methodology which
takes into account the questions referring to the core issues dealt with in the Synod. These
questions have been raised in Catholic communities all around the world and have been
joined to those arising from the interchange of thoughts and the experience of fraternity
among the participants of the Synod, focusing on the central place of the Word of God in
religion. The following chapter deals with the important issue regarding the appeal to “revise
in depth our life” as inspired by the Word of God and strengthened by its influence. This is a
special effort taking up the path of justice (reconciliation), peace, and the foundations of a new
world with renewed vigor in accordance with God’s designs. Therein are implied inter-related
social values, where justice occupies the first place since it is the condition of reconciliation
and peace. In this sense, “sanctity in politics” accompanied by acts of charity is a dynamic
element capable of transforming situations of injustice. The mission of the Church to spread
the Gospel necessarily implies the task of integrating people that are excluded as well as to
uphold the defense and the promotion of human rights. In fact, the proclamation of the Word
of God becomes effective when it gets involved in social commitments. The commentary is
accompanied by biblical references as suggested by the document Verbum Domini.
Justiça – Reconciliação – Paz:
Palavra de Deus e compromisso no mundo
na Verbum Domini
Celso Loraschi*
* O autor é Mestre em Teologia dogmática com Concentração em Estudos Bíblicos e
Professor do ITESC.
Encontros Teológicos nº 59
Ano 26 / número 2 / 2011, p. 43-54.
Justiça – Reconciliação – Paz: Palavra de Deus e compromisso no mundo
A Exortação Apostólica Pós-Sinodal Verbum Domini constituise num documento importante como guia para a recepção, o estudo e
a vivência da Palavra de Deus. O conteúdo que nos oferece é fruto de
longo processo de preparação com a contribuição de inúmeros grupos
e comunidades espalhados no mundo que, a partir dos Lineamenta,
formularam questões que poderiam ser refletidas no Sínodo. Foram
inúmeras. Mesmo que nem todas puderam ser contempladas, é louvável
a metodologia participativa e a ausculta atenta dos padres sinodais a
respeito das interpelações que emergiram do grande mutirão de cristãos
católicos inseridos em suas comunidades eclesiais.
Já na introdução do documento encontramos o testemunho de que
os pastores do mundo inteiro, congregados ao redor da Palavra de Deus,
com a Bíblia colocada simbolicamente no centro, fizeram a experiência
da partilha de esperanças e preocupações a partir do que “o Senhor está
a realizar no Povo de Deus”, inclusive com a participação de delegados
fraternos, entre os quais o patriarca ecumênico de Constantinopla e um
rabino judeu. A centralidade da Palavra provoca aproximação, respeito,
diálogo, acolhida da alteridade e reconhecimento de que Deus continua
agindo na história humana, vê o sofrimento dos povos, ouve o seu clamor
e oferece-lhe caminhos de libertação.
A comunicação amorosa de Deus desde o princípio do mundo
chega à sua plenitude em Jesus Cristo, a Palavra que se fez pessoa. Pelos
seus ensinamentos e sua prática abriu-nos o caminho para um mundo
novo que ele chamou de Reino de Deus. A realização de sua proposta
de vida em abundância para todos é tarefa de todos os seus discípulos.
Neste sentido, a Verbum Domini acolhe o grito que sobe do mundo das
pessoas excluídas e chama a atenção para o irrenunciável vínculo entre
a Palavra de Deus e o compromisso no mundo (cf. n. 99-108). É o que
queremos comentar neste artigo.
Rever a própria vida
Fundamentando-se no texto de Mt 25,31-46, o documento afirma
que a Palavra de Deus nos ajuda “a rever em profundidade a própria
vida, porque toda a história da humanidade está sob o juízo de Deus”.
Esta expressão, “rever em profundidade a própria vida”, é uma indicação
que precisa ser acolhida, pois vivemos tempos de superficialidades, de
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Celso Loraschi
correrias sem rumo em busca de satisfações egoístas, de insensibilidade com relação às situações que afligem grande parte da humanidade.
Constatamos também a proliferação de práticas religiosas alienantes,
onde a Bíblia é usada como forma de legitimação do poder, caindo
naquelas mesmas tentações demoníacas das quais Jesus se libertou (cf.
Lc 4,1-13) e colocou em alerta os seus discípulos para não sucumbir
nelas: “Cuidado! Guardai-vos do fermento dos fariseus e do fermento
de Herodes” (Mc 8,15).
A Verbum Domini nos chama a atenção para a importância do
tempo histórico de cada pessoa: “Detemo-nos muitas vezes superficialmente no valor do instante que passa como se fosse irrelevante
para o futuro”. À luz das orientações do Evangelho, sintetizadas no
texto de Mateus citado acima, a maneira como vivemos o tempo presente condiciona o futuro, não só porque Deus vai pedir contas após
a morte (seria um constrangimento que Deus não impõe a ninguém),
mas porque somos responsáveis pela herança que deixaremos para as
novas gerações.
A atitude de “rever em profundidade a nossa vida” requer o resgate
da consciência de que somos criaturas de Deus, feitos à sua imagem e
semelhança, dependentes uns dos outros, responsáveis pela defesa e promoção da vida digna sem exclusão. “Quando anunciamos o Evangelho,
exortamo-nos reciprocamente a cumprir o bem e a empenhar-nos pela
justiça, pela reconciliação e pela paz” (n. 99).
Compromisso com a justiça
A tradição de fé judaico-cristã está intimamente relacionada com
o empenho pela justiça social. A própria formação do povo de Israel se
deu a partir de um movimento pela libertação da opressão e pelo estabelecimento de uma sociedade justa. Dentro deste movimento Deus revelou
seu rosto e seu plano de salvação. Firmou uma Aliança com seu povo.
Na fidelidade e com misericórdia jamais o abandonou.
Os profetas foram os arautos da justiça. São pessoas inundadas pelo espírito de Deus e defensoras da sagrada Aliança. São, ao
mesmo tempo, inundadas pela dor das vítimas dos sistemas de poder.
Mergulham para dentro da alma das pessoas sofredoras e tornam-se
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Justiça – Reconciliação – Paz: Palavra de Deus e compromisso no mundo
portadoras da Palavra que liberta. São consumidas pelo zelo em favor
da causa do Senhor que é a mesma causa do povo oprimido. Inquietos e indignados, os profetas desmascaram as atitudes de exploração
e de injustiça. Mesmo no meio de crises provenientes de conflitos e
perseguições alimentam sua missão cultivando íntima amizade com
Deus que os sustenta e os instrui. Misteriosas e fascinantes são esta
força e esta luz que fazem pessoas fracas se tornarem tão lúcidas e tão
corajosas. Com liberdade e ousadia denunciam a opressão da classe
dirigente e a falsidade das práticas cultuais quando desvinculadas do
compromisso com os pobres. Não só denunciam, mas apontam quais
as atitudes que agradam verdadeiramente a Deus. São muitos os textos
que poderíamos evocar. Ouçamos Amós e Isaías:
“Vendem o justo por dinheiro e o indigente por um par de sandálias, esmagam a cabeça dos fracos no pó da terra e tornam a vida dos
oprimidos impossível (Am 2,6-7).
“Ai dos que promulgam leis injustas e redigem medidas maliciosas,
para tapear o fraco na justiça, roubar o direito do meu povo explorado”
(Is 10,1-2).
“Sou contra, detesto vossas festas, não sinto o menor prazer nas vossas
celebrações! Quando me fazeis subir a fumaça dos holocaustos... Afasta
de mim a algazarra de teus cânticos, a música de teus instrumentos nem
quero ouvir. Quero apenas ver o direito brotar como fonte, e correr a
justiça qual regato que não seca” (Am 5,21-24).
“Acaso o jejum que eu prefiro não será isto: soltar as cadeias injustas;
desamarrar as cordas do jugo; deixar livres os oprimidos, acabar
com toda espécie de imposição? Não será repartir tua comida com
quem tem fome? Hospedar na tua casa os pobres sem destino? Vestir
uma roupa naquele que encontras nu e jamais tentar te esconder do
pobre teu irmão? Aí, então, qual novo amanhecer, vai brilhar a tua
luz, e tuas feridas hão de sarar rapidamente. Teus atos de justiça irão
à tua frente e a glória do Senhor te seguirá. E quando o invocares,
o Senhor te atenderá, e ao clamares, ele responderá: ‘Aqui estou’”
(Is 58,6-9).
A justiça, conforme a Verbum Domini, é o caminho que torna o
mundo mais habitável. Tem “valor precioso aos olhos de Deus” todo
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Celso Loraschi
esforço realizado em prol de um mundo justo. O texto de Mt 25,31-40
aponta como a justiça pode ser promovida. Ela passa pela relação com os
“pequeninos” com os quais Jesus se identifica. “Deste modo é a própria
Palavra de Deus que nos recorda a necessidade do nosso compromisso
no mundo e a nossa responsabilidade diante de Cristo, Senhor da História” (n. 99-100).
A missão profética da Igreja
É fácil deixar-nos cooptar pela ideologia dominante e nos acomodar no “faz de conta”, assumindo a indiferença como um jeito natural
de ser. A palavra de Deus, porém, vem para nos desinstalar. Jesus, a
Palavra que se fez carne, em continuidade à missão profética, rompeu
com a tríplice dimensão do poder (política, religiosa e econômica), fez-se
solidário com o sofrimento das vítimas e lhes propôs o Reino de Deus
que é fraternidade, justiça, paz, liberdade, amor...
A missão profética é um traço constitutivo da identidade da Igreja.
É prolongamento da missão de Jesus Cristo. “O compromisso pela justiça
e a transformação do mundo é constitutivo da evangelização” (n. 100). A
realidade do povo e a Palavra de Deus contida na Bíblia alicerçam esta
missão. É Palavra de Deus enquanto promove a vida e nos torna verdadeiros. Ela “é viva e eficaz e mais penetrante do que qualquer espada de
dois gumes; penetra até dividir alma e espírito, articulações e medulas.
Julga os pensamentos e as intenções do coração. Não há criatura que
possa ocultar-se diante dela. Tudo está nu e descoberto aos olhos daquele
a quem devemos prestar contas” (Hb 4,12-13).
É bom lembrar que a mensagem profética não apenas dirige-se
aos detentores do poder a fim de que desçam de seus tronos. Ela também
deve atingir a consciência das pessoas empobrecidas para que vivam os
valores da partilha, da solidariedade e do amor mútuo. Visa devolver ao
povo oprimido a capacidade de pensar e agir segundo o projeto de Deus,
desvencilhando-se da dependência passiva e das mesmas atitudes egoístas
dos ricos e poderosos. Todos necessitamos de profunda conversão. A
justiça social se conquista a partir de uma nova consciência e organização
dos pequenos. São protagonistas de um novo tempo. Por causa deles
Jesus exultou de alegria e dirigiu-se ao Pai desse modo: “Eu te louvo, ó
Pai, Senhor do céu e da terra, porque ocultastes essas coisas aos sábios
Encontros Teológicos nº 59
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Justiça – Reconciliação – Paz: Palavra de Deus e compromisso no mundo
e entendidos, e as revelaste aos pequeninos. Sim, ó Pai, porque assim
foi do teu agrado (Lc 10,21).
Santidade política
Verbum Domini (n. 100) valoriza a ação dos que estão empenhados na vida política e social. “A Evangelização e a difusão da Palavra
de Deus devem inspirar a sua ação no mundo à procura do verdadeiro
bem de todos, no respeito e promoção da dignidade de toda a pessoa”.
O papa Paulo VI lembrou que “a política é a melhor forma de exercer a
caridade”. Daí a importância de uma “santidade política” que se traduz
em ações concretas que viabilizem as condições necessárias para a vida
digna de todos.
Muitos “políticos santos” deram sua vida pela causa da justiça
social. Seu testemunho inspira os “santos políticos” atuais. Porém,
há um longo caminho a percorrer quando se trata de acertar o rumo
para o estabelecimento de uma sociedade justa e igualitária e, especialmente, de agir coerentemente com este objetivo. A idolatria
do dinheiro e do poder proporciona a corrupção em todos os níveis,
conforme constatamos cotidianamente. A Igreja tem “o direito e o
dever de intervir sobre as questões éticas e morais que dizem respeito
ao bem das pessoas e dos povos”. E aos leigos, sobretudo, cabe-lhes
“intervir diretamente na ação social e política”. É importante para
isso que sejam bem formados na escola do Evangelho e da Doutrina
Social da Igreja.
Direitos Humanos
A importância da defesa e promoção dos direitos humanos de
toda pessoa vem no documento como uma chamada de atenção geral
(n. 101). Evocando a Carta Encíclica de João XXIII Pacem in Terris,
lembra que estes direitos são “universais, invioláveis e inalienáveis”.
Já se passaram mais de seis décadas após a Declaração Universal
dos Direitos Humanos pela Organização das Nações Unidas (ONU,
1948). Em seu artigo primeiro declara que “todos os seres humanos
nascem livres e iguais em dignidade e direitos”. Também na atual
Constituição Brasileira estão declarados os direitos individuais e
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Encontros Teológicos nº 59
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Celso Loraschi
sociais (art. 5 a 7). O Programa Nacional dos Direitos Humanos visa
proteger os direitos humanos como direitos de todos. O Movimento
Nacional dos Direitos Humanos - MNDH, em sua Carta de Princípios,
“afirma que os direitos humanos são, fundamentalmente, os direitos
das maiorias exploradas e das minorias espoliadas cultural, social
e economicamente, a partir da visão destas mesmas categorias”. O
MNDH classifica hoje os Direitos Humanos com a sigla DESCAs:
direitos civis e políticos e os direitos econômicos, sociais, culturais
e ambientais e defende sua indivisibilidade, interdependência e universalidade.
É gritante, porém, a distância entre as declarações oficiais e a
aplicabilidade dos direitos humanos no cotidiano da vida da maioria da
população. Segurança social e alimentar? Acesso à moradia e ao trabalho
para todos? Saúde e educação para todos? Direito dos prisioneiros? Direito ao julgamento justo? Direito ao meio ambiente saudável? Proteção
à maternidade e à infância?... O Documento de Aparecida contempla os
rostos daqueles que possuem seus direitos básicos violados: comunidades indígenas e afro-americanas muitas vezes tratadas sem dignidade e
igualdade de condições, mulheres discriminadas em razão de seu sexo,
raça ou situação sócio-econômica, jovens sem oportunidade de progredir
na vida, pobres, desempregados, migrantes, deslocados, agricultores sem
terra, famintos, sobreviventes na economia informal, crianças prostituídas, doentes e anciãos abandonados... (cf. DAp 65). Esta realidade revela
que a “universalidade, a inviolabilidade e a inalienabilidade” dos direitos
humanos permanece como um ideal a ser perseguido com persistência;
é uma realidade que permanentemente interpela a nossa fé e nos desafia
à prática de um amor mais ousado e criativo.
A Verbum Domini alerta para a importância deste tempo histórico
de afirmação dos direitos humanos: é uma “ocasião extraordinária para
que a dignidade humana seja mais eficazmente reconhecida e promovida
universalmente como característica impressa por Deus criador na sua
criatura, assumida e redimida por Jesus Cristo através da sua encarnação, morte e ressurreição”. Para isto, lembra o que a Doutrina Social da
Igreja orienta: “A difusão da Palavra de Deus não pode deixar (grifo
nosso) de reforçar a consolidação e o respeito dos direitos humanos de
cada pessoa”.
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Justiça – Reconciliação – Paz: Palavra de Deus e compromisso no mundo
Reconciliação e paz
Há muitos e graves conflitos no mundo atual (n. 102). No Sínodo,
testemunhos vivos o comprovaram. Neste contexto “é grande a necessidade de descobrir a Palavra de Deus como fonte de reconciliação e
de paz”. Apesar de todas as nossas faltas, Deus nos reconciliou consigo
através de Jesus Cristo e nos confiou o “ministério da reconciliação”. É
o que Paulo recomenda à comunidade cristã de Corinto (2Cor 5,17-21).
Ele aprofunda dizendo que “em nome de Cristo exercemos a função
de embaixadores de Deus”. A função de embaixador é representar os
interesses do seu governo em outro país. É defender os direitos dos
seus cidadãos que moram em terra estrangeira. Portanto, ao exercer a
função de embaixadores de Deus, colocamo-nos ao seu serviço nesta
pátria provisória na qual peregrinamos. O serviço de Deus corresponde
ao ministério da reconciliação.
Deus fez de todos os povos, uma só família. Como tornar realidade
esta proposta divina num mundo tão dividido e dilacerado? É necessário,
segundo Paulo, estar afinado com Jesus Cristo que nos reconciliou com
Deus. “Se alguém está em Cristo é nova criatura. Passaram-se as coisas
antigas; eis que se fez realidade nova”.
Estar em Cristo é ter os seus mesmos sentimentos e despojar-se de
toda atitude de dominação, “nada fazendo por competição e vanglória,
mas com humildade julgando cada um os outros superiores a si mesmo,
nem cuidando cada um só do que é seu, mas também do que é de todos”
(Fl 2,1-5). No entanto, a experiência histórica nos faz constatar de que
nós, seres humanos, tendemos a ser egoístas e estamos imersos em estruturas alicerçadas na injustiça e na dominação de uns sobre outros. E a
ideologia dominante tenta nos convencer de que esta situação é natural.
É a imperiosa “lei do mais forte” que fere, cotidianamente, a dignidade
humana e de toda a criação.
O caminho para uma realidade nova de superação de todas as
expressões egoístas é o da reconciliação com base na justiça. Não
faltam motivos para ressentimentos, divisões, brigas e vinganças. E
cada lado do conflito considera-se cheio de razões para isso. Muitas
vezes estes conflitos são historicamente graves e deixam feridas
profundas abrangendo desde relações familiares até internacionais
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Encontros Teológicos nº 59
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Celso Loraschi
e inter-religiosas. Jesus Cristo “é a nossa paz... Ele derrubou o muro
da separação e suprimiu a inimizade” (Ef 2,14). Para estabelecer
a paz no mundo deu-nos o ministério da reconciliação que se caracteriza por um novo jeito de ser e de agir: ao invés de vingança,
perdão mútuo; ao invés de distanciamento e inimizade, aproximação
e fraternidade; ao invés de domínio de uns sobre outros, respeito
à alteridade; ao invés de sentimentos e atitudes de superioridade,
serviço mútuo...
Faz parte da identidade cristã a atitude de reconciliar-se com Deus
através da reconciliação com os outros. Jesus nos revelou a inseparável
relação entre o perdão de Deus e o perdão entre nós: “A medida com que
medirdes sereis medidos também” (Lc 6,38). Confirmou esta verdade
ao ensinar o Pai-Nosso: “Perdoai-nos, assim como nós perdoamos”
(Mt 6,12). A Pedro que vacilava a respeito da quantidade de vezes
que se deve perdoar: “Até sete vezes?” Jesus respondeu-lhe: “Não te
digo até sete, mas até setenta vezes sete” (Mt 18,21-22). Assim como
necessitamos do pão cotidiano para o sustento do nosso corpo, também
necessitamos constantemente do perdão mútuo para a saúde das nossas
relações. Verbum Domini faz o apelo: “Fiéis à obra de reconciliação
realizada por Deus em Jesus Cristo, crucificado e ressuscitado, os católicos e todas as pessoas de boa vontade empenhem-se em dar exemplos
de reconciliação para se construir uma sociedade justa e pacífica” (n.
102). E diz também: “Quando anunciamos o Evangelho, exortamo-nos
reciprocamente a cumprir o bem e a empenhar-nos pela justiça, pela
reconciliação e pela paz” (n. 99).
Justiça – Reconciliação – Paz
Há uma decorrência lógica nestes três valores sociais que caracterizam a “realidade nova” que Paulo se refere. A justiça vem em primeiro
lugar. Quando violada deixa tristes conseqüências. Deve ser restabelecida,
pois é fundamento para a paz. O restabelecimento não se dá pela adoção
de alguma forma de violência e sim pela reconciliação. É o caminho que
possibilita o abraço entre a justiça e a paz (Sl 85,11).
A reconstrução das relações de justiça-reconciliação-paz implica
para os seus agentes a coragem de assumir o caminho de “descida” à
altura dos pequenos e fracos para juntos subir à terra prometida por Deus.
Encontros Teológicos nº 59
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Justiça – Reconciliação – Paz: Palavra de Deus e compromisso no mundo
É o que constatamos na origem e no desenvolvimento da tradição de fé
judaico-cristã: Deus YHWH desce para libertar o povo da escravidão
e fazê-lo subir à terra da liberdade (Ex 3,7-10); Jesus Cristo desceu à
condição de escravo e tornou-se obediente até à morte para salvar a
todos (Fl 2,6-11). Deste modo subverteu a expectativa de um messias
triunfalista e dedicou boa parte de seu ministério público para introduzir
os seus discípulos numa nova mentalidade: “Sabeis que aqueles que
vemos governar as nações as dominam, e os seus grandes as tiranizam.
Entre vós não será assim: ao contrário, aquele que dentre vós quiser ser
grande, seja o vosso servidor, e aquele que quiser ser o primeiro dentre
vós, seja o servo de todos” (Mc 10,42-44).
O profeta Isaías Terceiro, ao descrever a utopia de uma sociedade
reconciliada – um novo céu e uma nova terra –, indica como essa realidade se tornará possível: o lobo deverá pastar junto com o cordeiro
e o leão deverá comer feno junto com o boi (Is 65,17-25). Portanto,
a “descida” significa o fim de toda atitude de domínio e de violência,
condição sem a qual se torna impossível um mundo novo de justiça, de
paz e de fraternidade.
A caridade ativa
Continuando a reflexão sobre a Palavra de Deus e o compromisso
no mundo, a Verbum Domini exorta para a prática da “caridade ativa” (n.
103). Certamente que a caridade, em seu sentido verdadeiro, é sempre
ativa. O adjetivo ressalta “a necessidade de gestos concretos de amor
porque só assim se torna credível o anúncio do Evangelho”. O texto que
o documento sugere como indicador para a “caridade ativa” é o de 1Cor
13,1-13. Através deste hino, as comunidades cristãs primitivas anunciam
o primado do amor. Na carta de Tiago encontramos a exortação: “Se
alguém disser que tem fé, mas não tem obras, que lhe aproveitará isso?
Acaso poderá salvá-lo?... A fé, se não tiver obras, está totalmente morta”
(Tg 2,14-17).
A Bíblia se caracteriza fundamentalmente como a história do
amor de Deus para com a humanidade, desde o princípio da criação,
passando pela celebração da Aliança e culminando com a encarnação
de Jesus Cristo que veio “para que todos tenham vida e vida em abundância” (Jo 10,10). Ao longo desta história de amor, Deus se revela no
52
Encontros Teológicos nº 59
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Celso Loraschi
meio das pessoas em situação de necessidades e identifica-se com elas.
O apelo à conversão que perpassa toda a tradição bíblica, especialmente
na mensagem profética como vimos acima, significa voltar-se para as
pessoas excluídas. O amor a Deus e ao próximo resume toda a Escritura
Sagrada (Mt 22,40). O próximo é o sacramento de Deus. Por isso, “amar
ao próximo como a si mesmo vale mais do que todos os holocaustos e
sacrifícios” (Mc 12,33).
A Palavra de Deus, longe de nos afastar das realidades do mundo,
nos faz mergulhar nelas e nos solidarizar com os sofredores. “Há uma
íntima ligação entre a escuta amorosa da Palavra de Deus e o serviço
desinteressado aos irmãos”. Citando Santo Agostinho, a Verbum Domini
conclui esta reflexão sobre a Palavra de Deus e a caridade ativa: “Quem
julga ter compreendido as Escrituras, ou pelo menos uma parte qualquer
delas, mas não se empenha a construir, através da sua inteligência, este
duplo amor de Deus e do próximo, demonstra que ainda não as compreendeu”.
Os interlocutores prioritários
O Sínodo apontou quatro interlocutores prioritários do anúncio da Palavra de Deus: os jovens (n. 104), os migrantes (n. 105),
os doentes (n. 106) e os pobres (n. 107). São os rostos que, a nível
mundial, desafiam a missão evangelizadora da Igreja por estarem
mais expostos às conseqüências do modelo sócio-econômico atual.
Em cada contexto social, porém, pode haver outras situações que
reclamam atenção prioritária. O Documento de Aparecida, por
exemplo, como vimos acima, apresenta os diversos rostos dos que
sofrem na América Latina e Caribe (n. 65). As atuais Diretrizes
Gerais da Ação Evangelizadora da Igreja no Brasil (CNBB, doc.
94), elegem cinco urgências (cap. IV), entre as quais “a Igreja a
serviço da vida plena para todos”, atendendo ao clamor que emerge
de diversas situações que afetam a dignidade da pessoa humana (cf.
n. 106 a 120).
O anúncio da Palavra de Deus, como nos lembra a Verbum
Domini, “torna-nos atentos à história e a tudo o que de novo germina
nela” (n. 105). Neste sentido, a realidade ecológica tornou-se desafio
prioritário para a evangelização. “Há uma responsabilidade que nos
Encontros Teológicos nº 59
Ano 26 / número 2 / 2011
53
Justiça – Reconciliação – Paz: Palavra de Deus e compromisso no mundo
compete como fiéis e anunciadores do Evangelho também a respeito
da criação” (n. 108). A Bíblia, relida na ótica da ecologia, ajuda-nos
a contemplar a criação com um novo olhar; ajuda-nos a resgatar a
bondade de todas as coisas e, consequentemente, a cuidar como bons
jardineiros, com profundo respeito e veneração, deste planeta terra,
nossa casa comum e nossa mãe nutriente. A justiça, a reconciliação e
a paz podem ser verdadeiramente restabelecidas não apenas através
da relação dialogal e fraterna entre os seres humanos, mas também
com todas as demais criaturas.
Endereço do autor:
Instituto Teológico de Santa Catarina
Bairro Pantanal
88040-970 – Florianópolis, SC
E-mail: [email protected]
54
Encontros Teológicos nº 59
Ano 26 / número 2 / 2011
Resumo: O artigo trata sobre a dimensão paradigmática do modelo gnoseológico semítico
no processo de conhecimento do mistério divino revelado através do Jesus histórico. O
autor apresenta uma perspectiva epistemológica interdisciplinar que incorpora ao discurso
teológico a complexificação das ciências humanas e propõe uma análise da especificidade
humana de Jesus de Nazaré enfocado como sujeito de conhecimento. Sublinha que o Verbo
Eterno entrou humanamente na história no contexto de um sistema cultural com categorías
epistêmicas de matriz diacrônica. Eis um dado capital que até o presente pouco foi levado
en conta no terreno da revelação: Deus se fez carne e alma humana numa civilização com
modelos próprios de conhecimento. Isto não deve ser considerado um acidente. Menos ainda,
esquecido en favor de abordagens metafísicas ou ontologistas do mistério divino. A matriz
epistêmica da civilização semita é o modelo humano de conhecimento escolhido pelo Pai
para se dar a conhecer através do Filho. Por isso, constitui o primeiro paradigma gnoseológico
para abordar a figura de Jesus. É necessário entender a lógica específica da cultura israelita
no processo de incorporação cognitiva, suas chaves e regras de categorização valorativa
dos fatos, enfim, o modelo que transparece, entre outros, nas linguas semíticas, porque,
do instrumento humano para conhecer o mundo e se auto-conhecer, escolhido para Jesus,
segue-se a chave básica de interpretação de sua figura e mensagem.
Abstract: The article deals with a paradigmatic dimension of the gnosiological model
applied to the process of knowledge concerned with the divine mystery which was revealed by the historical Jesus. The author presents an interdisciplinary perspective to
the epistemology of this subject incorporating the complexity of human sciences in the
theological discourse and offers an analysis of the specific human component of Jesus of
Nazareth, envisaged as the subject of knowledge. Special stress is laid upon the Eternal
Word entering history in the context of a cultural system with epistemological categories
drawn from a diachronic matrix. This represents an important element which up till now
has not sufficiently been taken into account in the area of revelation: God is made flesh
and human soul within a civilization using its own models of knowledge. This is not to be
considered as a mere accident. Much less should it be forgotten in favor of metaphysical and ontological approaches to the divine mystery. The epistemological matrix of the
Semitic civilization is a human model of knowledge chosen by God the Father in order to
reveal himself through the Son. Therefore it constitutes the first gnosiological paradigm
in order to approach the figure of Jesus. In the process of a cognitive endeavor we have
to understand the specific logic of Israelite culture, its keys and rules of categories, and
evaluating facts, all in all, the model which appears in Semitic languages, because from
the human instrument to be used to know the world and oneself which was chosen for
Jesus is derived the basic key of interpreting his figure and message.
Dimensões epistemológicas
na economia da revelação
Encarnação, Natureza humana do Verbo e Paradigmas Gnoseológicos
A propósito da VERBUM DOMINI
Daniel Ramada Piendibene*
*
O autor é Mestre em Sociologia e Ciências Políticas, Montevidéu, Uruguai, 1971;
Mestre em Teologia, Fribourg, Suíça, 1985; foi professor no ITESC, Florianópolis, e na
PUC, Curitiba, 1988-1992; Diretor do ITESC, 1988-1989, atualmente dá conferências e
escreve sobre Teologia e Economia, residindo em Montevidéu e Porto Alegre, RS.
Encontros Teológicos nº 59
Ano 26 / número 2 / 2011, p. 55-84.
Dimensões epistemológicas na economia da revelação
Foi-me solicitada uma contribuição sobre inspiração e verdade
na Escritura, já que o número da revista está consagrado à Exhortação
Apostólica Verbum Domini. Em particular, qual a perspectiva específica
de um teólogo leigo no terreno conceitual de verdade e inspiração. São
noções a um tempo ricas e complexas na história da doutrina cristã. Não
é a mesma coisa dizer “verdade” num marco platônico, aristotélico ou
escolástico, e dizê-la num contexto semítico, na filosofia posterior a Kant
ou na sociologia do conhecimento. Outro tanto vale para a inspiração e
o alcance da Palavra revelada.
A crise epistemológica que viveu a doutrina eclesial entre meados
do século XIX e o Concílio Vaticano II, do Modernismo à Nouvelle théologie, é apenas um exemplo dessas complexidades. Com relação aos
leigos, acredito que os que participam na vida comum da imensa maioria
dos cidadãos, nesta sociedade do trabalho e da responsabilidade profissional, das exclusões, da marginalidade e das desigualdades gritantes e,
ao mesmo tempo, professam uma fé cristã de confissão especificamente
católica, o contato – para mim quotidiano – com a Palavra do Senhor,
os faz defrontar-se com ela, como diz o poeta: “buscando o astrolábio
de teu grito”. Escritura e Palavra não se identificam sem mais, e contudo
constituem a fonte de sentido e o mecanismo de orientação no meio de
águas agitadas. Os cristãos são Ouvintes da Palavra, no dizer de Karl
Rahner1, precisamente por terem sido constituídos, ao mesmo tempo,
pessoas capazes de diálogo intersubjectivo, e criaturas de um Deus que
se fez Palavra na história de um povo e na vida humana de Jesus.
Evidentemente, para qualquer cristão, a Sagrada Escritura é palavra
inspirada. Por tal razão, cada um, desde sua função e perspectiva, busca
nela o caminho, a verdade e a vida2, para responder, com atos, àquela
iniciativa salvífica de um diálogo amoroso que o alcançou primeiro no
chamado.
56
1
Chama a atenção que a Constituição Apostólica Verbum Domini, com quase quatrocentas citações de autores e documentos de diferentes épocas, estilos e valor
desigual, não faça sequer uma alusão, mesmo marginal, a esse trabalho que marcou
uma época e menos ainda ao próprio Karl RAHNER, que, com seu rigor acadêmico,
retidão pessoal e testemunho de vida, orientou a teologia do Concílio Vaticano II, muito
especialmente no terreno da revelação. É como se a tão sublinhada espiritualidade
de comunhão fosse uma atitude circunscrita ao círculo de amigos dos amigos ou
àqueles que pensam igual. Para além do grotesco e sectário, não deixa de ser algo
doloroso.
2
Jo 14, 6.
Encontros Teológicos nº 59
Ano 26 / número 2 / 2011
Daniel Ramada Piendibene
Enfocados desde um ponto de vista sistemático, verdade e inspiração não são conceitos que mudem demasiado seu conteúdo, seguindo
a posição hierárquica que se ocupe na estrutura eclesiástica. Porém, do
alcance que se atribua aos termos inspiração e verdade, ou da experiência
da palavra no contexto social quotidiano, podem nascer matizes bem
diferenciados. Trata-se, ao mesmo tempo, de um problema de campos
semânticos de referência e marcos epistêmicos de significação.
Na atual sociedade posmoderna – com sua fragmentação de símbolos ou significados e a mutação epistêmica do processo discursivo pelo
impacto sensorial, visual e sonoro, como formas de estímulo inteletual – o
conceito de verdade deve ser aprofundado. Especialmente porque não se
trata de um conceito neutro3. Para uma filosofía de base estático-essencialista, de acordo com a feliz definição de Schnackenburg4, a alêtheia5
faz alusão à correspondência entre o inteleto e a coisa ou objeto. Não é
esse o pano de fundo semítico onde ’emet – derivado do verbo ’aman ou
’amin, que nos leva a proclamar amém – significa fidelidade em termos de
relação de Aliança. Mas é preciso ir ainda mais longe. Tampouco existe
“correspondência” entre o paradigma linguístico grego e o hebraico. Aí
entramos num terreno epistemológico, familiar para aqueles que, por
vivermos numa sociedade complexa, somos obrigados a entendê-la na
sua lógica interna, isto é, a buscar a “ciência” do social como requisito anterior à ação. Em todo caso, a meu entender, esse plano, prévio
enquanto condição metodológica de coerência inteletual, não se limita
ao presente. Também deve ser utilizado na história de Jesus, para não
projetar sobre ele, plenitude da Revelação, categorías e bases epistêmicas
de referência estranhas à sociedade na qual, por decreto do Pai, Ele, a
Palavra, se fez ser humano. Aqui deveria ser corrigido o ditado latino,
modificando-o em: “Primum videre et deinde philosophari”.
Vejamos, então, algumas premisas de inteligibilidade no modo
de conhecimento humano da Palavra encarnada. Na perspectiva teórica
recém descrita, o presente artígo propõe-se refletir sobre o alcance da
3
“Aquele que esteja livre de ideologia, que jogue a primeira pedra” diziam os estudantes
não faz tantos anos.
4
R. SCHNACKENBURG, no tomo de Cristologia do Mysterium Salutis descreve dois
modelos alternativos ou métodos de se fazer teologia: O estático-essencialista e o
dinâmico-funcional e, desta forma, histórico-salvífico.
5 Do grego aλήθεια: verdade. Fora a tentativa de revisão existencial de Heidegger, com
base pressocrática, no conceito clássico, desde Aristóteles até Tomás de Aquino,
passa pela correspondência entre inteleto e realidade. Resulta difícil imaginar que o
Magistério atual o use de outra forma.
Encontros Teológicos nº 59
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Dimensões epistemológicas na economia da revelação
cultura humana de Jesus de Nazaré como marco epistêmico para uma
teologia da revelação. Mais especificamente, sobre as consequências
doutrinais do modelo gnoseológico da civilização israelita – e suas
repercussões no âmbito da natureza humana do Verbo, a Palavra Eterna
de Deus – no processo de conhecimento do mistério divino revelado nas
Escrituras. Por razões de espaço, este trabalho apela a uma metodologia
algo diferente da de outros anteriormente publicados em Encontros
Teológicos. A forma se parece à dos antigos manuais, que apresentam
algumas afirmações, a modo de “teses” provisionais, buscando confirmar
a consistência de suas relações lógicas mediante um processo dedutivo,
com frequência mais silogístico que exegético ou hermenêutico6. De
todos os modos, aqui não interessa percorrer um caminho especulativo
ou silogístico-dedutivo, mas desenvolver uma proposta sistemática de
base epistemológica. Mais uma advertência: para evitar a profusão de
extensas notas ao pé da página, incluo – quando a ocasião assim o exige
– pequenos requadros ao modo de fichas temáticas ou ex-cursos. Este
recurso, mais frequente no estilo jornalístico que no acadêmico, permite
uma leitura continuada do corpo do texto, deixando, se o leitor assim o
preferir, as ampliações aclaratórias para o final.
1. Jesus revela Deus desde sua humanidade: Jesus constitui
para os cristãos a plenitude da revelação. As palavras e
acontecimentos, como os gestos e atitudes, que os discípulos
resgataram para testemunhar sua obra, são a via privilegiada
para conhecer o mistério divino, o sentido último da criação
e do fenômeno humano que se desenvolve no tempo.
O Concilio Vaticano II ensina que o mistério do Verbo encarnado
ilumina e desvela o mistério do homem:
Depois de ter falado muitas vezes e de muitos modos pelos profetas,
falou-nos Deus nestes nossos dias, que são os últimos, através de Seu
Filho (Hb 1,1-2). Com efeito, enviou o Seu Filho, isto é, o Verbo eterno,
6
58
Confesso que, do ponto de vista inteletual, não me resulta cômodo demais trabalhar
desta forma. Prefiriria uma metodologia expositiva, de tipo histórico-diacrônico,
que parta dos acontecimentos que a Escritura resgatou – tais como os recebemos
das fontes devidamente valorizadas ou criticadas em sua consistência documental
e testemunhal – para enfocar os fatos descritos e os paradigmas analíticos que
subjazem à construção intelectual seguindo logo seu desenvolvimento histórico, tal
como o recebemos da tradição eclesiástica. Consola-me, no entanto, que um biblista
eminente como Pierre GRELOT, em determinado momento e também premido pelas
circunstâncias, escreveu “Bible et Théologie” utilizando um método semelhante ao
que aqui se desenvolve.
Encontros Teológicos nº 59
Ano 26 / número 2 / 2011
Daniel Ramada Piendibene
que ilumina todos os homens, para habitar entre os homens e manifestarlhes a vida íntima de Deus (cf. Jo 1,1-18). Jesus Cristo, Verbo feito
carne, enviado «como homem para os homens» (3), «fala, portanto, as
palavras de Deus» (Jo 3,34) e consuma a obra de salvação que o Pai
lhe mandou realizar (cf. Jo 5,36; 17,4). Por isso, vê-lo a Ele é ver o Pai
(cfr. Jo 14,9), com toda a sua presença e manifestação da sua pessoa,
com palavras e obras, sinais e milagres, e sobretudo com a sua morte
e gloriosa ressurreição. Enfim, com o envio do Espírito de verdade,
completa totalmente e confirma com o testemunho divino a revelação,
a saber, que Deus está conosco para nos libertar das trevas do pecado
e da morte, e para nos ressuscitar para a vida eterna.7
Com efeito, a vida pessoal, ética, histórica, social etc., de cada
pessoa humana, se redimensiona sob a luz da trascendência divina, feita
imanência em Jesus. Mas a recíproca – complementar – também é procedente desde um ponto de vista formal: Jesus, o Filho de Deus, o Cristo
de Israel, constitui para os homens a plenitude da revelação do mistério
divino: Filipe, como dizes, mostra-nos o Pai? Quem me vê, vê o Pai8.
Quem vê a Jesus se defronta com o mistério insondável de Deus.
É evidente que, até não muitas décadas atrás, a história da teologia –
seguindo os debates cristológicos, filhos de outro tempo – tem posto o
acento na “natureza” do Verbo como eixo da revelação. O termo “natureza humana” de Jesus, como marco de aproximação analítica, permitiu
manter a densidade histórica de Jesus de Nazaré frente ao reducionismo
que representavam as diferentes correntes filosóficas de base helenística.
Mais ainda, permitiu deixar a salvo a raiz israelita do mestre e com isso,
não apenas o passado de Israel como povo depositário da revelação –
Messias de Israel em continuidade e de acordo com as Escrituras – mas
também as chaves antropológicas constitutivas da própia mensagem de
Jesus. De qualquer forma, o termo “natureza” não deixa de ser uma categoria abstrata, filosófica, para além da venerável tradição que representa
o dado dogmático9. Se olharmos atentamente a Escritura, o evangelista
7
Constituição Dogmática Dei Verbum; No 4.
8
Jo 14,8-11.
9
Não se trata de menosprezar o trabalho e a linguagem dos Pais de Niceia a Calcedônia. Além de aberrante, seria infame. Pelo contrário, trata-se de construir, sobre
esse fundamento formal de nossa fé, uma visão que leve em conta o desenvolvimento
posterior da compreensão humana sobre os homens enquanto seres epistêmicorelacionais, com as suas “circunstâncias”, como diria ORTEGA Y GASSET. O debate
nos primeiros séculos tem como ponto de referência o marco cultural da polêmica
com o gnosticismo e a filosofia grega. Disputa-se sobre Deus e Jesus, mas o fundo
Encontros Teológicos nº 59
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59
Dimensões epistemológicas na economia da revelação
não diz: “Quem vê minha natureza vê a natureza do Pai”, nem “Quem
conhece minha essência, conhece a essência de Deus”, como pretendiam
os gnósticos. A linguagem de João é sempre bem mais consistente quando
lida desde sua ótica semítica10: Quem me vê [...] vê. Empírico, não? Ora,
o homem Jesus nos revela o Pai desde, com e ao longo de toda sua vida
humana. Uma vida histórica que inclui, além de palavras, gestos, atitudes e valores, um modo de incorporar e processar o conhecimento. Um
universo de referência e um conjunto de chaves de sentido próprias da
cultura que o Pai determinou como berço para a comprensão humana de
seu Filho. Portanto, é toda a existência humana11 de Jesus de Nazaré12 a
que ilumina e desvela o mistério da divindade. Isto significa que, na base
das palavras, gestos e atitudes, a perspectiva epistêmica que lhes subjaz,
vira, também, um elemento indispensável para conhecer o mistério divino. Dito de outro modo: se o Pai determinou que Israel fosse o marco
cultural e a tradição epistêmica nos quais o Filho plantasse sua tenda
entre nós, o perfil axiológico e gnoseológico dessa cultura, ao fornecernos as chaves de sentido da forma humana de conhecer e expressar
pensamentos, sentimentos e valores, constitui um marco iniludível para
“ver o Pai” com os olhos humanos do Nazareno.
2. As ciências do conhecimento, incluídas as neurológicas
(gnoseologia, epistemologia, sociologia do conhecimento,
neurolinguística etc.), têm posto em evidência nas últimas
décadas a relação íntima que existe entre a linguagem falada
e os paradigmas de incorporação, qualificação valorativa,
decodificação causal e expressão do conhecimento.
Os seres humanos conhecem mediante um complexo mecanismo
interativo, que ordena e categoriza os dados presselecionados em sua
relação empírica com a realidade (as outras pessoas e seres vivos, os
objetos, seu próprio corpo e psique etc.) e os integra numa sorte de base
de dados cuja estrutura e regras de funcionamento recebem de forma esdo conflito guarda relação com as categorias metafísicas e noções filosóficas mais
adequadas para dar conta do fenômeno. Em nossos dias, a discussão conceitual
está centrada na sociedade, nas pessoas, na dimensão e funcionamento de suas
relações intersubjectivas e nas condições de sua interação, isto é, nos exige integrar
a complexidade das ciências humanas.
10
11
Evito o termo personalidade por razões mais dogmáticas que semânticas (cf. infra:
Ex-cursus II).
12
60
Mesmo Filão de Alexandria, por trás do método alegórico, suporta a leitura semítica
do logos-dabar.
Que não por acaso ou por acidente desemboca na resurreição.
Encontros Teológicos nº 59
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pontânea e preconsciente. A esta condição soma-se o substrato de valores
internalizados desde etapas bem anteriores, nos processos de socialização,
por convivência, dentro de um conjunto de pautas culturais, marcos do
imaginário coletivo da sociedade (família, povo, grupo social, região,
nação etc.), que fornecem sua psique de chaves axiológicas e de sentido,
formalizadas mediante regras categoriais espontâneas de coordenação e
subordinação de dados e variáveis.
Ao longo da história, as diferentes culturas têm practicado modelos
de conhecimento da realidade empírica que privilegiam um ou outro tipo
de variáveis como centrais, para formalizarem o ordenamento dos dados
presselecionados. A linguagem – ao modo de ponta de um iceberg – deixa
entrever as estruturas de relação categorial que constituem as chaves
no modo de ordenar os dados e estabelecer relações de coordenação e
subordinação de variáveis. De um lado, alguns elementos são privilegiados, porque desde muito cedo na infância o indivíduo socializa pautas,
modelos de relação e comportamento. Por otro lado, mediante o vocabulário falado ou escrito, mas mais amplamente mediante a linguagem,
que inclui elementos gestuais e atitudinais, todas essas variáveis ficam
plasmadas numa matriz estável que atua de modo preconsciente como
base de dados e de relação dos mesmos, tanto em referência a fins, como
em referência a valores. Aqui entra em jogo o outro aspecto, citado no
parágrafo precedente: os valores. Em última instância, a visão do mundo
como representação compartilhada num imaginário grupal, inclui um
complexo número de elementos e premissas autovalidantes13, que guardam relação com os marcos totalizadores de sentido, e conformam aquilo
que se denomina modelos cosmológicos e/ou antropológicos14.
Esse aspecto, muito claro do ponto de vista formal, tem padecido
certo reducionismo ao longo da história doutrinal, como consequencia do
modelo metafísico-ontologista da filosofia que serviu de base à formulação
dos dogmas entre Niceia e Calcedônia. Na sociedade contemporânea, a
contragosto de alguns portavozes de uma pretensa ortodoxia doutrinal, a
13
Cf. RUESCH, J. e BATESON, G., Communication: The Social Matrix of Psychiatry,
Nova Iorque, 1951; re-editado e atualizado em 1987 por WATZLAWICK, P., Information,
Codification and Metacommunication, Nova Iorque-Ontário, 1987.
14
Os conceitos: modelo cosmológico e/ou modelo antropológico, referem-se ao marco
totalizador que fornece um sentido último ao conjunto de crenças e valores compartilhados e praticados por um grupo ou por uma sociedade. No caso de Israel, seria
mais apropriado falar de cosmogonia, porque o modo de representação do universo,
sendo diacrônico, pressupõe uma direção ou orientação dos acontecimentos.
Encontros Teológicos nº 59
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61
Dimensões epistemológicas na economia da revelação
metafísica vai cedendo seu lugar e função no início necessário do discurso
filosófico, a outras premissas antecedentes. Passa-se do princípio à culminação, sempre provisória, da síntese epistêmica. Por isso, a evolução do
conhecimento da complexidade humana nos alerta sobre a insuficiência
dos modelos lógico-formalistas como base única ou principal do discurso
teológico. Especialmente o papel da psique, a formação do próprio conhecimento, suas dimensões sociais, o imaginário coletivo de um grupo ou
comunidade social como base pre-consciente que incide nos mecanismos
de incorporação e decodificação dos dados da realidade. O papel dos paradigmas da língua materna e da linguagem simbólica na geração de relações
de causalidade, do sentido do discurso e da internalização de valores etc.
etc., são todos elementos que permitem conhecer melhor ao homem como
tal, sempre situando-o no contexto de sua comunidade social e cultural
de referência. Também conduzem a ampliar a base indutiva que permite
construir novas sínteses interdisciplinares de maior riqueza, inclusive
filosófica. É óbvio pressupor que, quando o Pai nos presenteou com seu
Filho, tudo isso era de seu conhecimento, como o era também quando nos
chamou à vida na sociedade actual15.
Excurso I
Falsas oposições que conduzem a falsas opções
Teoria ou sociologia do conhecimento? Filosofia metafísica ou
pensamento crítico? Essência ou estrutura funcional? Ontologia ou
crítica histórica?
Nos últimos tempos, o pensamento teológico tem-se visto empenhado em discusões sobre a base mais adequada para pensar o mistério
da revelação. As escolas tradicionais têm grande dificuldade de abandonar os moldes metafísicos, como plataforma pretensamente superior de
expressão docurinal do “divino”. Em realidade, aqui há uma petição de
princípios derivada de um axioma[*] ou, melhor, uma aporía[**]. Primei15
As cebolas epistemológicas do Egito aristotélico constituem uma gostosa tentação
quando somos obrigados a atravessar o deserto cultural da sociedade plural e
posmoderna. Não é fugindo da complexidade e caindo em saudades da cultura da
cristandade que vamos virar melhores portavozes de uma nova evangelização.
[*]
Do grego: aξíωμα, “proposição tao clara e evidente que se admite sem necessidade
de demonstração” e, por extensão, desde o âmbito matemático, princípio fundamental
e indemonstrável sobre o qual se constrói uma teoria.
[**]
62
Do grego: aπορíα, enunciado que expressa – ou que contém – uma inviabilidade de
ordem racional (cf. Dicionário R.A.E.).
Encontros Teológicos nº 59
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ro (ou com anterioridade lógica preconsciente) supõe-se que o método
da metafísica é superior aos outros como ferramenta para abordar as
realidades trascendentais. Em consequência, segue-se que o sistema
metafísico, caraterístico do pensamento grego, é mais apropriado que a
própria linguagem semita para entender o que é realmente importante
sobre a figura, histórica, do também semita Jesus. Por que? Porque o
“realmente importante” é a essência abstrata de Deus. Terceiro, e como
resultado dessa opção valorativa prévia, preconsciente, que carece de
fundamento na Escritura, se decreta que o modelo metafísico é superior
ao histórico para conhecer as realidades últimas, sobrenaturais ou do alto.
Finalmente, conclui-se que a metafísica é a única ferramenta apta cuando
se trata de analisar o mistério divino enquanto tal e na sua relação com
a natureza. Note-se que esse desenvolvimento não fundamenta – e, de
modo geral, sequer percebe – que a metafísica supõe categorias epistêmicas, lógicas, antropológicas, analíticas, cosmológicas e até axiológicas,
estranhas ao universo cultural de referência, tanto de Jesus de Nazaré
como daqueles que o precederam ou dos que foram testemunhas de sua
vida, ministério e ressurreição. Estamos falando de um longo processo
civilizatório em que Israel, desde os patriarcas ao Apocalipse, passando
por profetas, sacerdotes, sábios e todo um povo anônimo, pensou sobre
si mesmo, categorialmente, em relação a uma eleição, uma história e um
Senhor pessoal, concreto e, mais importante: o fez desde uma perspectiva
linguística e um modo de entender a realidade empírica – creação – que
opera a partir de bases epistêmicas completamente diferentes do pensamento metafísico. A começar pelo paradigma gnoseológico que integra
os acontecimentos numa base de dados diacrônica, onde os fenômenos
atuais são lidos sob a luz de fatos anteriores resgatados como memória
coletiva, e onde o anterior integra-se como anúncio potencial de algo
posterior, sempre imanente, mas que é atual na trascendência absoluta
do Senhor de Israel, chave e sentido apofático do movimento histórico.
Por que, então, a meta-physis impõe-se a nós, mais do que como serva da
teologia, como limite ou fronteira inteletual do pensamento dogmático?
Quem é a escrava e quem a dómina? Tantas vezes temos louvado a filosofia grega como se se tratasse de um instrumento absoluto – ao ponto
de ler as Escrituras sob a luz do filósofo em vez de avaliar a filosofia
clássica, ainda ou especialmente a aristotélica, sob a luz dos paradigmas
e valores próprios da cultura de Israel, que culmina em Jesus – que acabamos sendo colonizados por uma verdadeira ideologia: a da filosofia
“perene” e insuplantável, e ficamos convencidos de que não é possível
fazer teologia sem aquela filosofia.
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63
Dimensões epistemológicas na economia da revelação
Na realidade, o desenvolvimento doutrinal que deriva da querela
contra o gnosticismo, privilegia os extremos ontológicos de Jesus como
encarnação em natureza humana da pessoa divina. Isto quer dizer que
o trabalho dogmático levado a cabo entre Niceia e Calcedônia carece
de valor? Obviamente não. Simplesmente significa que, sem perder seu
valor permanente de tradição, como expressão inteletual é filho de seu
tempo e de seu espaço cultural ou civilizatório. É um cimento, não um
corpete. Na sociedade pluralista em que nos toca viver e na qual fomos
chamados a exercer nosso ministério docente – muito especialmente
perante o fenômeno da disolução discursiva que carateriza a atual
cultura posmoderna – devemos mais do que nunca permanecer fieis à
tradição, mas não podemos absolutizar um instrumento conceitual que
se encontra na ordem dos meios. Considerado desde outro ángulo, descartar a complexidade dos paradigmas diacrônico-relacionais equivale
a renunciar à missão.
3. Um melhor conhecimento da humanidade de Jesus se traduz em maiores possibilidades de entender os pressupostos
de sua mensagem e, por consequência, numa compreensão
mais profunda do mistério divino.
O passo seguinte, neste arrazoado, busca entender Jesus de Nazaré como ser humano enquanto sujeito histórico de conhecimento e de
relação intersubjectiva. Ao mesmo tempo, através das chaves gnoseológicas de sua cultura, inferir as estruturas mais apropriadas para entender
e expressar a revelação. Vamos começar por esclarecer o alcance das
palavras.
3.1 Ser humano
A expressão ser humano ou, melhor ainda, existência humana, de
Jesus, se usa para evitar a expressão personalidade humana. Ambas as
proposições estão em itálico, porque o uso contemporâneo desta última
habitualmente refere a uma perspectiva psicológica ou psicossocial.
Sob esse ângulo, o mais adequado seria falar de personalidade humana
em Jesus. Porém, de um ponto de vista doutrinário, a expressão veicula
uma dificuldade dogmática. No âmbito teológico, o termo “pessoa” está
vinculado essencialmente à dimensão divina, isto é, ao Verbo16. No ser
16
64
Não vejo a necessidade de revisar ou modificar esta formalização dogmática. Tampouco quais vantagens doutrinais se seguiríam se dissolvêssemos a associação
conceitual de Pessoa com Hypóstasis. A tradição dogmática assim nos foi legada.
Parafraseando ULPIANO, Formulæ “sunt servandae”. O que, sim, pode-se e deve-se
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humano Jesus de Nazaré fez-se carne a segunda “pessoa” da Trindade,
que assume uma natureza humana completa, histórica e perfeita. Acontece
que, por um fenômeno de evolução conceitual e linguística, os termos
pessoa e personalidade, na linguagem comum, inclusive técnica, têm
mudado de conteúdo17. Em última instância, o que interessa é que Jesus
de Nazaré foi um ser humano cuja vida transcorreu num contexto cultural
e linguístico que não é neutro e, bem além das tentativas de neutralizá-lo
mediante uma linguagem com pretensõees metafísicas, para conhecer
melhor o homem que nos revela em plenitude o mistério divino, não é
possível prescindir de seus pressupostos epistêmicos.
3.2 Sujeito histórico
Esta expressão coloca em destaque o relacionamento dinâmico
entre conhecimento individual e sociedade. A dimensão social das
pessoas pressupõe uma série de mecanismos interativos, tanto de
incorporação de conhecimento e composição de um imaginário de
referência que fornece os marcos de sentido e valor, como de expressão daquele mediante gestos e palavras. Jesus não é, nem pode ser,
estranho a essa caraterística da condição humana. Em consequencia,
se pretendermos chegar a compreender em profundidade o alcance e
sentido de suas palavras, é necessário estabelecer com o maior rigor
possível o marco epistêmico do sujeito histórico que as pronunciou e
dos discípulos que as consignaram. Essa tarefa virou mais plausível
pela múltipla ampliação gnoseológica operada nos últimos dois séculos. A modo de exemplo, vale mencionar: o melhor conhecimento dos
fenômenos históricos, o tratamento sistemático dos textos mediante a
análise filológica, a decodificação de regras e estruturas literárias, e o
aprofundamento dos mecanismos linguísticos como indicadores dos
níveis psico-neurológicos implicados no processo epistêmico18.
3.3 Chaves gnoseológicas
fazer é complementá-la desde outros ângulos, melhor adatados à sensibilidade cultural
de nossos destinatários. Porque uma coisa é o depósito mesmo da fé [...] e outra, a
maneira como se expressa (JOÃO XXIII, Disc. Gaudet Mater Ecclesia, no 6)
17
Pessoa: Indivíduo da espécie humana. Personalidade: Diferença individual que constitui cada pessoa e a distingue de outra [ou] Conjunto de caraterísticas e qualidades
originais que se destacam em algumas pessoas. Dicionário R.A.E., 22ª edição.
18
O trabalho da arqueologia, com a recuperação de coleções escritas, desde as tabuletas assírias até os manuscritos de Qumran, e as ciências semióticas e epistêmicas,
desde a teoria das formas até a linguística e a psicologia profunda dos arquétipos,
são apenas alguns exemplos dessa riqueza adveniente.
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Dimensões epistemológicas na economia da revelação
Os dados da realidade antropológica e cultural exigem ser aplicados ao conhecimento da dimensão humana de Jesus (o Jesus histórico).
Isso, porque, se pelos novos enfoques e aproximações podemos conhecer
melhor como funcionamos, nós os humanos e, mediante o salto do nivel
antropológico à fé especificamente religiosa19 professamos que na humanidade de Jesus se revela o mistério da divindade, então de um maior
e melhor conhecimento da figura humana ou da existência histórica do
ser humano Jesus, isto é, da aplicação desses conhecimentos para o caso
Jesus de Nazaré e, particularmente, da estrutura gnoseológica semítica
que comporta os pressupostos epistêmicos próprios dele e de seu círculo,
segue-se uma melhor compreensão da especificidade antropológica e
cultural que suporta a revelação do mistério divino na história. Assim, os
mecanismos de internalização e incorporação de conhecimento e valores,
o imaginário coletivo de referência etc. revelam melhor, não apenas o
sentido histórico das palavras, gestos, atitudes e valores de Jesus, mas a
forma humana que o Pai Eterno determinou como paradigma específico
de inteleção do mundo para seu Filho. Dito de outra forma, conhecendo
melhor o ser humano enquanto tal, e integrando a esse conhecimento
o contexto cultural da Palestina do Segundo Templo, como tradição
cultural coletiva do povo israelita, seu modo peculiar de perceber o
tempo e o espaço etc., melhor vamos entender o que em sua obra e forma humana de viver constitui o reflexo do mistério divino e melhor se
poderão desentranhar, a partir dos textos que nos legou a comunidade
dos discípulos, as dimensões paradigmáticas implícitas nas estruturas de
socialização, internalização e expressão de valores e conhecimentos de
Jesus e da sociedade em que Deus Pai determinou que Ele viesse até nós.
Acredito que esta perspectiva exegética municia de chaves de inteleção
e valor que não são descartáveis na hora de elaborar nossas teologias e,
principalmente, de enfrentar cada dia o discernimento atual da vontade
de Deus na vida pessoal e nas diferentes sociedades.
Em resumo, Jesus de Nazaré, como sujeito protagonista de uma
história humana, enquadrada na Palestina do Segundo Templo, pode ser
contemplado desde diversos ângulos complementares que permitem conhecer melhor o ser humano, tanto em si próprio como na sua dimensão
social, interativa e intersubjectiva. Também, através das chaves epistêmicas de seu discurso humano, estabelecer o modelo gnoseológico mais
19
66
Ou, da base sócio-filosófica, ao discurso teológico.
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apto para expressar – desde Jesus sujeito histórico – uma epistemologia
da revelação de base semítica.
Excurso II
Sobre a personalidade humana de Jesus de Nazaré
em relação ao dogma da união hipostática
Escrevo personalidade en itálico, porque o uso desta palavra no
cabeçalho somente se refere a una perspetiva icológica ou psicosocial.
Desde um ponto de vista doutrinário, de base ontologista, a expressão
veicula uma contradição dogmática. No Verbo encarnado a “pessoa” está
essencialmente vinculada à dimensão divina. Jesus é a segunda pessoa
da Trindade que assume uma natureza humana, completa, histórica e
perfeita. Acontece que por um fenômeno de evolução conceitual e linguística, o termo personalidade, na linguagem comum, inclusive técnica,
tem mudado de conteúdo. Para expressar o que na linguagem comum
atual significa personalidade, mas sem utilizar a palabra, quem sabe
poderia-se falar de “dimensão relacional da natureza humana de Jesus
funcionalmente atuante na história que protagonizou desde a conceição
até a morte, passando por suas palavras, gestos, atitudes, valores, perspectivas antropológicas, condicionamentos socio-epistémicos, etc.” Parece
mais cômodo e claro falar em termos de personalidade humana, assim,
en itálico, esclarecendo que o paradigma que suporta o conceito não é o
dogmático e metafísico mas a episteme de uma sociologia histórica do
conhecimento. Sendo a episteme, neste caso, o “Conjunto de conhecimentos que condicionam as formas de entender e interpretar o mundo
em determinadas épocas” (Diccionario de la R.A.E. 22ª edición). De
qualquer modo, “cheirando” os sinais dos tempos eclesiásticos, optamos
por manter o uso convencional, e justo é dizer também: tradicional, mas
alertando sobre os limites da visão filosófica e potencialmente mudável,
que lhe é subjacente.
4. A humanidade de Jesus está intrinsecamente relacionada
com as circunstâncias do meio civilizatório que o rodeia.
O povo hebreu, desde épocas pretéritas, desenvolveu um tipo de
conhecimento que, em outros trabalhos, temos definido como matriz de
base diacrônica. Trata-se de um modelo onde as variáveis tempo, memória e história, protagonizam um papel central, e o resto dos dados da
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Dimensões epistemológicas na economia da revelação
realidade, em última instância, jogam un papel subordinado20. Do mesmo
modo acontece com a alteridade – quase no limite da esquizofrenia –
como principal mecanismo de identificação21. O sentido da existência lhe
vem desde fora. Um fora pessoal, transcendente e, sobre tudo, defasado
no tempo. Por isso, diacrônico. Israel é povo porque reconhece como seu
eixo de identificação constitutiva um Deus que está além de seu tempo
presente e de seu espaço geográfico. É o povo da terra porque antes –
numa perspetiva que desde outros marcos paradigmáticos chamaríamos
de anterioridade lógica, além de cronológica – fora eleito por YHWH
para viver em Aliança e receber Canaã como herança. E é enviado –
presente profético – para buscar e levar em frente a Vontade de seu
Criador e Senhor. Vários autores contemporâneos, de origem hebraica,
destacam o modo peculiar de perceber sua identidade, que carateriza o
Povo da Aliança. Para citar alguns exemplos clássicos dessa ótica, será
bastante nomear: Jacob Neusner22, André Neher23 e André Chouraqui24.
Outros autores cristãos, como Albert Gélin25 e Xavier León-Dufour26,
sublinham alguns extremos dessa peculiaridade. Por sua profundidade,
também merece ser citado o trabalho pioneiro de Enrique Dussel, O
humanismo semita, que constitui um original esforço de harmonização
entre as premissas da filosofia clássica e as categorías da Escritura27.
4.1 A cultura semítica como âmbito epistemológico
Descrever em detalhe os pormenores daquela matriz de base diacrônica, à qual há pouco aludimos, nos levaria longe demais. Somente
resumo alguns pontos para pôr em destaque os eixos comuns à cosmo-
68
20
Cf. RAMADA, D. e SARASOLA, M., Presente y Futuro, Friburgo, Suíça, 1986 Suíça,
1986 pp 27-ss; e RAMADA, D., Más allá del Paradigma de Hegesipo, na obra coletiva:
O canto da Palavra, Florianópolis, ITESC, 2006, pp 115-117.
21
Alteridade no sentido que Israel – apesar de se autodefinir como o povo da terra
– não “constrói” sua identidade em relação ao pagus de Canaán mas a recebe
desde um âmbito exterior ao territorio geográfico no qual se transformou em unidade
sedentária.
22
NEUSNER, J., Le judaïsme à l’aube du christianisme, Paris, 1986, pp 49-62; Introdução
ao Judaísmo, Rio de Janeiro, 2004, pp 62-66.
23
NEHER, A., L’essence du prophétisme; Paris, 1972, pp 111-ss; 231-ss. La Filosofía
Hebrea y Judía en la Antigüedad; em Historia de la Filosofía s. XXI, T. I, México, 1978,
pp 52-63.
24
CHOURAQUI, A., La pensée Juive, Paris, 1965, pp 19-28.
25
GÉLIN, A., L’homme selon la Bible, Paris, 1968.
26
Cf. entre outros o V.T.B.; Paris, 1962, Arts. Alliance; Homme; Peuple, Vérité etc.
27
DUSSEL, E., El humanismo semita, Buenos Aires, 1969, pp 75-106.
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visão semita ao longo do processo de formação e desenvolvimento da
cultura do Povo da Aliança, porque se relacionam diretamente com as
chaves epistêmicas presentes na civilização israelita na qual Jesus de
Nazaré nasceu e viveu28.
Um paradigma de base diacrônica supõe pôr em relação, em
termos de sentido causal, o acontecer presente e a experiência empíricorelacional, com uma história. É se autocompreender como protagonista de
um projeto grupal, de um povo – ou se preferirmos o jargão sociológico:
de uma formação social coletiva – e, no caso concreto de Jesus e seus
discípulos, de uma missão que abrange a comunidade de referência, lato
sensu, o povo da terra. A forma de imaginar a lógica dos acontecimentos
que Israel vive – protagoniza ou padece – está vinculada a uma eleição,
uma Aliança, uma terra e uma vocação ou missão: “ser santos como seu
Senhor é Santo” (Lv 19,2). O povo eleito se autoconhece numa dialética
de relação com o Altíssimo. Essa relação, por sua vez, constitui um drama que ocorre no tempo: é sua história. Para Israel, em certa forma, o
Senhor está ao mesmo tempo fora e dentro da história. Mais exatamente,
da criação. Está fora, porque é transcendência absoluta. Trata-se de um
Deus “totalmente outro” (Ganz Andere, como gostam dizer os exegetas
alemães), que não se confunde nem é uma “parte” do universo empírico.
Mas também fica dentro, porque os acontecimentos, vividos tanto na vida
quotidiana como ao longo dos séculos, somente podem ser verdadeiramente entendidos se os enquadramos no marco da eleição e fidelidade
à vontade do Senhor. O que interessa aqui não é descrever esse modelo,
senão ver como opera enquanto chave gnoseológica: é uma lógica de
conhecimento em dois planos ou movimentos. Exteriorização por alteridade, e interiorização no tempo imanente por resposta histórica. Deus
está fora como ponto de referência sempre absoluto, mas a Aliança que
propõe a seu povo converte-o em interlocutor e motor da história.
Em poucas palavras: a cultura israelita pressupõe um modo de
ordenar os dados da realidade vivencial que toma como elemento estável
a permanente relação – temporal – entre presente fenomênico, passado
e memória coletiva, com uma totalidade de sentido na qual o Senhor se
manifesta, por sua vez, para além do tempo – desde um âmbito exterior
à história – mas como sentido íntimo e último dos acontecimentos.
28
BENTO XVI o expressa assím: “O mistério da Encarnação nos manifesta [...] que
Deus se comunica sempre numa história concreta, assumindo as chaves culturais
nela inscritas” (Verbum Domini, nº 114).
Encontros Teológicos nº 59
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Dimensões epistemológicas na economia da revelação
4.2 A historia de Israel (objetiva e subjetiva) na humanidade
de Jesus
A figura, os gestos, atitudes e palavras de Jesus, como as de qualquer ser humano, são acontecimentos situados no tempo e num espaço
social, que possuem caracteres específicos. Jesus, tanto quanto seus
discípulos diretos, fala aramaico, situa-se linguística e culturalmente
no contexto das formas de conhecimento semita, e num meio social de
tradição cultural israelita septentrional, concretamente galilaica. Seu
imaginário social e coletivo específico lhe fornece chaves de causalidade
e sentido, atual e/ou final, com relação à lógica do desenvolvimento dos
acontecimentos da realidade imanente. Mais concretamente. Nasce em
tempos do Segundo Templo, cresce, é educado e vive na terra de Israel,
na região norte do território e, em particular, na província da Galileia.
Sua história se desenvolve sob o reinado de Herodes Antipas; seu ministério sob o mandado do governador – ocupante ilegítimo aos olhos
de boa parte da sociedade de seu tempo – Pôncio Pilatos, a partir do ano
décimo quinto do imperador Tibério29. É um período onde, para escrutar
o sentido do presente, de um lado começa-se a buscar a mediação da
Palavra escrita, que recolhe uma história – passado – mas que, por ter-se
fixado e estabilizado sob a forma de livro, converteu-se em lei – Torá,
Tanak – como parâmetro de fidelidade. Por outro, vive-se a angústia do
silêncio profético – os céus mantêm-se fechados – que as revelações,
isto é, os apocalipses, tentam mitigar. Asssim poderíamos continuar,
não para lembrar aquilo que todos sabemos, mas para ir à arqueologia
epistêmica que, desde um imaginário ao mesmo tempo coletivo, complexo e heterogêneo, suporta a razão última, o sentido pressuposto do
texto canônico que recebemos e veneramos porque acreditamos que é
“palavra revelada”30.
Não temos direito de supor que esses dados constituam apenas
um acidente descartável, uma vez que pensamos ter captado a essência imutável e eterna do Verbo. Bem pelo contrário, na atualidade, a
70
29
Lc 3, 1.
30
Não sou eu quem fala. Com outras palavras, é a Verbum Domini que assim o diz: “O
fato histórico é uma dimensão constitutiva da fé cristã. A história da salvação não é
uma mitologia, mas uma verdadeira história e, por tanto, devemos estudá-la com os
métodos da investigação histórica séria».[...] «Porque, na Palavra bíblica, Deus está
a caminho de nós e nós a caminho dele, é necessário aprender a penetrar no segredo
da língua, e compreendê-la em sua estrutura e no seu modo próprio de expressão.
Assim, precisamente pela busca de Deus, resultam importantes as ciências profanas
que nos assinalam o caminho em direção da língua»”. No 32.
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gnoseología demonstra que qualquer conhecimento, por desencarnado
e metafísico que se pretenda, não deixa de ser um produto histórico
enquadrado e condicionado pelas circunstâncias em que viu a luz. Mas
tem mais: o Verbo Eterno se fez carne e habitou entre nós (Jo 1,14),
isto é, veio ao mundo não com uma aparência humana acidental senão
como Jesus de Nazaré, o tão discutido Jesus histórico. Este fato, como
dado da realidade, tem consequências imediatas no plano da epistemologia na teologia da revelação. De fato, não podemos pensar que, se o
Pai Eterno em sua infinita bondade e sabedoria nos enviou seu Filho no
seio da civilização israelita, as formas específicas da cultura semítica,
suas tradições epistêmicas, os paradigmas linguísticos que conformam
a lógica de seu pensamento e a perspectiva sócio-histórica, humana e
gnoseológica de Jesus, seriam simples acidentes provisórios sem alguma
importância na hora de pensar humanamente o mistério divino revelado
nele. Nesse marco pode-se dizer que as chaves epistêmicas da tradição
israelita, nas quais transcorre a existência humana de Jesus, projetam seu
alcance com relação à lógica de sentido e as estructuras gnoseológicas
subjacentes a suas palavras e gestos, atingindo o marco epistêmico da
própria revelação.
Se observarmos de perto os pressupostos epistêmicos que subjazem
às palavras do Mestre, o marco de alteridade diacrônica transparece com
clareza ao longo dos quatro evangelhos: Não vim para abolir a Lei – passado, história, tradição – mas para levá-la à sua plenitude – presente31.
Ouvistes o que foi dito... – passado, história, tradição – Eu, porém, vos
digo... – presente32 etc. Poderíamos acrescentar inúmeros exemplos, mas
apenas seriam “árvores” numa floresta que pode ser vista desde outro
ângulo. O que devemos aprofundar, mediante uma nova perspectiva, é
a visão de conjunto. Se lêssemos o Novo Testamento sob uma ótica ou
paradigma que integre o marco semita de sentido – essa famosa chave
israelita de leitura – qualquer passagem pode ficar iluminada sob ângulos
inéditos. A primeira pista que me levou a perceber que o texto suporta
ou admite outros pressupostos paradigmáticos – que absolutamente não
fazem violência à fé recebida – foram os estudos exegéticos do Novo
31
Mt 5,16-18.
32
Mt 5,21-22.
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71
Dimensões epistemológicas na economia da revelação
Testamento feitos por autores judeus33. Joseph Klausner34, David Flusser35, Schalom Ben-Chorin36, Étan Levine37, Geza Vermés38 etc. etc. É
curioso que, lendo o mesmo e exato texto que nós lemos, eles “veem”
coisas – mais do que óbvias desde a sua perspectiva – que nenhum de
nós jamais percebeu. Só se tornam óbvias para nós depois que alguém
pergunta: Como? Você nunca se deu conta de que Jesus está fazendo
alusão a tal ou qual circunstância, regra, instituição ou conflito? Pois
é, era tão óbvio, que ninguém viu... Isso demonstra que a questão dos
paradigmas é coisa séria e deve ser levada a sério com responsabilidade
teológica, porque fomos constituidos por Deus em fieis depositários da
revelação39.
5. As línhas básicas do modelo gnoseológico semita se refletem
na forma em que Jesus interpreta os imperativos éticos
de sua comunidad social de referência, sua missão e por
consequência a lógica do presente.
Destacamos dois eixos maiores que se constatam em toda a formação social e cultural israelita: a alteridade e a diacronia. São núcleos,
a um tempo, permanentes e comuns. Verificam-se de forma unívoca no
plano da identificação grupal, e aparecem como chaves nas fontes conhecidas. A esses eixos juntam-se outros três elementos que constituem,
por sua vez, formas estáveis de representação do acontecer empírico e
elementos de posição variável no modelo geral, de acordo com o grau
de centralidade ou subsidiariedade que apresentem no conjunto.
72
33
Apesar de não se tratar de uma exegese, no sentido estrito, mas de uma reflexão
filosófica, deve ser citado, pela importância que teve no diálogo interreligioso, o
trabalho pioneiro de Martin BUBER, Yo y Tú. A edição em castelhano é do México,
1968. Também, do mesmo autor, El humanismo hebreo y nuestro tiempo, Buenos
Aires, 1978.
34
KLAUSNER, J., Jesús de Nazaret. Su vida, su época, sus enseñanzas, Barcelona,
1989.
35
FLUSSER, D., Jesús en sus palabras y en su tiempo; Madrid, 1975.
36
BEN-CHORIM, Sch. Mon frère Jésus. Perspectives juives sur le Nazaréen, Paris,
1983.
37
LEVINE, É., Un Judío lee el Nuevo Testamento, Madrid, 1980.
38
VERMES, G., Jesús el Judío, Barcelona 1977.
39
Vale a pena ler um trabalho epistemológico muito fino que se baseia nas tradições
bíblica e talmúdica como ferramentas para o conhecimento científico: HOFFMAN, R.
e LEIBOWITZ-SCHMIDT, S. Vino viejo, Ánforas nuevas: Reflexiones sobre la ciencia
y la tradición judía. México, 2004.
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5.1 Elementos estruturais
5.1.1 Alteridade. O Deus de Israel é totalmente outro. Não se
confunde com alguma parte do universo empírico. Porém, mesmo sendo uma alteridade absoluta, ao extremo de não existir, sequer, o direito
de pronunciar seu nome, não se trata de uma alteridade fechada sobre
si mesma. É uma alteridade relativa ou relacional, que se processa na
intimidade40. Deus fala no coração do homem, conhece suas entranhas e
perscruta seus rins. Está fora, mas é reconhecido pelo homem no recanto
mais íntimo41. Jesus o enfatiza em todo momento:
Tu, em contrapartida, quando fores orar, entra em teu aposento e, depois
de fechar a porta, ora a teu Pai que está ali no segredo, e teu Pai que
vê no segredo, recompensar-te-á.42
Essa forma de se-entender desde o início mesmo, não apenas
significa alteridade, mas mais profundamente, relação (cf. infra), diálogo com um âmbito que é postulado ou interpretado como diferente
da própria unidade somático-anímica-espiritual43. O homem é reflexo.
Imagem e semelhança, mas não de forma estática, porque sobre todas
as coisas é interlocutor.
Alteridade e Relação. O Povo como unidade coletiva consiste,
subsiste e se conhece a si mesmo em referência a uma relação – de
Aliança – com seu Senhor. Em Israel, a dimensão relacional de identidade
é, antes, algo coletivo, mais que pessoal. Promessa, relação, vocação e
missão, compreendem o povo inteiro como unidade conceitual, e desde
essa órbita prolongam-se ou projetam-se no âmbito pessoal. É um povo
40
Pr 24, 12.
41
Desde a ótica da psicologia profunda, arquetípica, esta percepção permite a distinção
que faz Jung entre o arquétipo de centro ou si-mesmo e o eu como centro funcional de
percepção e de imputação do conhecimento. O eu é experimentado espontaneamente
como elemento principal de relação e interiorização. O centro, em contrapartida, é um
ponto de referência que, bem que se encontre no mais profundo da estrutura psíquica
do ser humano, este o reconhece como algo que o sobrepassa, de algum modo alheio,
coletivo, ao mesmo tempo que interior e transcendente à sua constituição individual.
Nas religiões monoteístas, está associado à ideia e à experiência de Deus. Não se
deve esquecer que Israel é a religião monoteísta mais antiga.
42
Mt 6, 6.
43
São os três elementos específicos da antropologia israelita: sôma ou basar, psichê ou
nefesh e espírito ou ruah. Elementos todos próprios da unidade autônoma, funcional
e dinâmica que é o ser humano.
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73
Dimensões epistemológicas na economia da revelação
eleito por alguém – YHWH – e constitui sua propriedade44. É o Povo da
Aliança, aliança com seu Deus. É o Povo da Terra, terra recebida dEle
por herança e na qual vive ou dela é expulso, por consequência do tipo
de relação com seus semelhantes conforme a vontade do Senhor. Povo
Santo. Santidade e eleição estão íntimamente associadas. Santidade
significa ter sido posto à parte, ser outro –como Deus é totalmente outro–
mas a santidade sublinha a relação de missão, de envio para desenvolver
uma tarefa.
Desde os confins da terra eu te chamei e te disse: Servo meu és
tu, eu te escolhi e não te rejeitarei.45
Jesus também se conhece a si mesmo em relação a outro:
Tudo me foi entregue por meu Pai e ninguém conhece quem é o
Filho senão o Pai.46
Alteridade e “deuterologia”. Ao falar em eleição, vocação, missão,
santidade – inclusive sobre Jesus como fundamento da vida cristã – nem
sempre se repara que estes eixos semitas de identificação e integração
da personalidade, de fato pressupõem, por anterioridade lógica, um
movimento prévio. O Povo e seus integrantes são consequências, epifenômenos, “segundos movimentos”. O primeiro movimento vem de
alguém que lhe é exterior, um outro que tomou a iniciativa primeiro de
chamá-lo. Constitui um segundo momento o interior de um diálogo que
se inicia em forma absoluta com o chamado à vida e se traduz imediatamente em envio.
A mim conheceis e sabeis de onde venho. Eu não venho por minha
conta, mas Aquele que me enviou é veraz.47
Quem vos recebe a Mim recebe e quem me recebe, recebe Aquele
que me enviou.48
Alteridade e Interlocução. O Povo eleito está chamado a dar resposta. A eleição não é uma imposição, uma carga ou karma, é um convite.
Mais ainda, um convite afetuoso, amoroso. Envolve muitos elementos
como mecanismos de conhecimento: experiência, emoção ou afeto,
74
44
Ex 19, 5.
45
Is 41, 9.
46
Lc 10, 22.
47
Jo 7, 34.
48
Mt 10, 40.
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pacto, fidelidade, liberdade, e outros muitos que subjazem às figuras de
iniciativa e resposta. Os homens e as mulheres do Povo da Aliança são
chamados à vida e ao mundo empírico – entendido como história – por
Alguém, diferente e exterior à sua pessoa.
5.1.2 Diacronicidade. Como surge do afirmado no parágrafo anterior, a alteridade inclui invariávelmente um desdobramento no tempo: o
presente, o sentido preciso ou misterioso dos acontecimentos, a aliança,
a eleição, a fidelidade, a vocação ou a missão, sempre estão enquadradas
num fato passado e/ou numa esperança por vir. Israel é sua história. O
presente é, ao mesmo tempo, uma consequência e uma preparação para
alguma coisa que chegará. A tal ponto esta singulariedade projeta seu
alcançe como modelo gnoseológico, que o hebraico possui um tempo
verbal conhecido como “presente profético”.
Jesus e o conhecimento diacrônico. Tem-se insistido muito nas
defasagens presente-história e presente-promessa, como elementos estruturadores da identidade e da integração epistêmica, isto é, como chaves
de conhecimento e auto-conhecimento próprios da cultura israelita. Os
fatos incorporam-se numa totalidade de sentido mediante sua integração
a um conjunto de outros fatos já vividos pelo povo e resgatados para a
memória coletiva. Assim, a pregação de Jesus e a forma de discernir sua
identidade e o sentido da vida é um exemplo constante dessa perspectiva
epistêmica. Vejamos alguns exemplos:
O Filho do Homem não veio para... mas...49
Se eu expulso os demônios pelo Espírito de Deus, é que
chegou...50
O Filho do Homem enviará...51
Esta escritura que acabais de ouvir tem-se cumprido hoje...52
É possível reproduzir praticamente a totalidade das palavras de
Jesus e monstrar que, explícita ou implícitamente, levam a marca da
percepção diacrônica como chave de sentido. Outro tanto pode-se dizer
da alteridade. Unidade na multiplicidade, singularidade na coletividade,
atualidade como memória ou esperança, presente como fase de uma
49
Mt 20, 28.
50
Mt 12, 28.
51
Mt 13, 41.
52
Lc 4, 21.
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75
Dimensões epistemológicas na economia da revelação
história, ou prelúdio do cumprimento de uma promessa etc. etc. É o que
se chama de “paradigmas de incorporação” ou chaves epistêmicas.
De fato, essa originalidade – ou caráter peculiar – no modo de
conhecer a realidade, que nos legou a civilização semita através do Verbo
que se fez história, pode ser ilustrada mediante a categoria do discernimento. Discernir é buscar a vontade e maior glória de Deus Pai. É referirse a um Alter como eixo de sentido e buscar a cada dia do presente a
resposta mais adequada para os momentos seguintes. Um presente como
história, para utilizar a metáfora de Paul Marlor Sweezy53.
5.2 Elementos funcionais
5.2.1 Período. Existem várias formas de denominação da época em
que Jesus viveu, com relação à história de Israel. Alguns autores falam
de Judaísmo tardio ou Judaísmo normativo; outros, de Intertestamento;
as escolas históricas, de modo geral, o chamam de Período do Segundo
Templo54. Para os fins deste artigo, o que interessa analisar é o modelo
gnoseológico geral de Israel – lato sensu – e as variantes próprias da
época de Jesus, que são seu reflexo específico.
O período na região sul, isto é, o antigo reino de Judá, se centra no
Segundo Templo e possui alguns caracteres particulares que, nos tempos
de Jesus, refletem sobre a forma de percepção do acontecer empírico.
Até o surgimento da revolução Macabeia, com a consequente
independência política sob a dinastia sacerdotal – não davídica – dos
asmoneus, e a reconquista militar para Jerusalém e Judá dos antigos
territórios septentrionais – Samaria e Galileia – o território palestino vive
um período de consolidações institucionais. Suas linhas fundamentais
são a continuidade dos sacerdócios dinásticos em Jerusalém e Samaria,
76
53
SWEEZY, Paul Marlor, The Present as History, Nova York, 1955.
54
Inclino-me por esta última denominação, com a condição de estender sua duração
para além da destruição física do edificio, provocada pela primeira guerra antiromana, isto é o ano 70, prolongando o período pelo menos até o fim dos anos 130.
Então, como consequência da última revolta, os israelitas – incluindo os sucessores
carnais de Jesus chamados desposynes ou bispos da circuncisão – são expulsos de
Jerusalém e a cudade é refundada como urbe romana. É interessante lembrar algo
que nos manuais quase sempre é passado por alto: o futuro patriarcado ortodoxo
de Jerusalém somente aparece depois que é instituído um bispo de origem gentia,
Marcos, que entra junto com as tropas romanas. Até esse momento, a Igreja Mãe não
se tinha diferenciado de Israel, praticava a circuncisão, e seus membros participavam
do culto sacrificial – precário – que subsistiu entre os entulhos no altar do Templo de
Herodes.
Encontros Teológicos nº 59
Ano 26 / número 2 / 2011
Daniel Ramada Piendibene
a estabilização dos textos (Pentateuco Samaritano, Tanak, LXX, Pseudoepígrafos etc.), o surgimento de grupos ou correntes institucionalizadas
que mais tarde serão definidos como seitas, partidos ou escolas, e a extinção da profecia com o nascimento subsidiário da literatura apocalítica.
Fora da Palestina a presença israelita – especialmente judía – também
se consolida em toda a bacia do Mediterrâneo, mediante comunidades
(sufragâneas) conhecidas como Qahal (‫להק‬‎) que se reúnem em prédios
próprios, chamados “casas da assembleia” (‫ )תסנכ תיב‬e/ou “de oração”
(‫)הליפת תיב‬55, também chamadas sinagogas (συναγωγή), conservando sua
identidade e religião étnica, bem como seu contato com Jerusalém56.
Nesse contexto é possível distinguir alguns eixos de interpretação
– atualização funcional – dos elementos apontados no parágrafo anterior.
Trata-se de uma formalização em três núcleos, que estão presentes como
instrumentos gnoseológicos em todas as correntes contemporâneas a
Jesus, mas que para cada caso ocupam posições diferentes em termos
de centralidade como variável explicativa. Dito de outra forma: quando
um dos núcleos constitui o eixo central de sentido, os outros dois, sem
desaparecer, encontram-se subordinados ao terceiro. Esses eixos são:
Templo – Sacerdócio; Livro – Lei; e Presente – Futuro.
Templo e sacerdócio. Define a posição dos Saduceus e provavelmente os primeiros Essênios. Os Saduceus, como aristocracia sacerdotal,
centram sua forma de interpretar a religião de Israel na tarefa ritual, e
também na administração dos recursos materiais que se geram em volta da
atividade cultual. Buscam manter sua hegemonia dando continuidade ao
funcionamento das instituições nacionais que rodeiam o Segundo Templo.
Os Essênios, como grupo de Filhos de Sadoc que julgam o sacerdócio
(ou sumo-Sacerdócio) de Jerusalém ilegítimo e tem-se congregado em
comunidades – a melhor conhecida é a de Qumrán – numa espera ao
mesmo tempo profética e militante, que cultiva a pureza ritual e mantém
uma longa vigilia, esperando o momento em que será restabelecida a
legitimidade sacerdotal em Jerusalém.
Livro e Lei. Define a posição dos Fariseus e de alguns grupos de
mestres itinerantes, que subordina toda a vida religiosa da comunidade
à aplicação da Lei em cada situação quotidiana, pessoal ou coletiva. O
Templo e a interpretação dos tempos deven ser enfocados desde o texto
55
Beyt knesset, ou beyt t’filâ.
56
Conhece-se por diversas fontes indiretas (externas) a existência de uma dispersão
samaritana, mas seus escritos ou crônicas não foram conservados.
Encontros Teológicos nº 59
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77
Dimensões epistemológicas na economia da revelação
da Torá. São o antecedente das escolas rabínicas e o motor do modelo
normativo que se imporá como elemento caraterístico do judaismo rabínico depois dos fracassos militares de 66-74, 117-118 e 132-136.
Presente e futuro. Corresponde à posição de grupos insurgentes
anti-romanos, movimentos batistas e outras agrupamentos revolucionários englobados sob os adjectivos de sicários ou zelotes. Provavelmente
inclua alguns elementos do grupo Essênio e também alguns camponeses
marginalizados pela forma romana de administrar seus domínios. A
intensidade e frequencia das revoltas, demonstram que o movimento é
forte na Galileia – e inclusive na Samaria – como em algunas regiões
da Transjordânia e da Diáspora. A literatura apocalíptica é própria dessa
corrente. Trata-se de uma visão que sublinha con ênfase a percepção
diacrônica do presente e parece vivê-lo como prelúdio a uma mudança
radical na equação político-religiosa, que permitirá restaurar a legitimidade davídica – ou do culto no monte Garizim para os samaritanos – como
recuperação de uma situação de “reinado dos céus” (o Altíssimo) com
sua correspondente prosperidade.
Jesus de Nazaré parece tomar desta última corrente a ótica de um
presente que só se pode entender em profundidade quando relacionado
com as promessas do Senhor de Israel e com o futuro imediato. Existem
duas expressões caraterísticas de sua pregação, isto é: Filho, e Reino.
Ambas, embora por distintos caminos, se conectam com a centralidade
do eixo presente-futuro. A figura do Filho do Homem, de Deus, de Davi
ou do Altíssimo, aparece com frequência na literatura apocalíptica, como
esperança de um eleito legítimo – messias, ungido – que abrirá uma época
de tranquilidade e prosperidade para Israel. O Reino ou Reinado (dos
Céus ou de Deus), o próprio Jesus o apresenta como uma quebra entre
a situação atual e a reconciliação futura com o Pai.
A Igreia nascente, ou comunidade de discípulos diretos de Jesus,
também privilegiou esse núcleo para interpretar a ressurreição de Jesus,
seu ministério e vida anterior sob a ótica dessa ressurreição e sua esperança de uma rápida volta do Mestre em sua Glória. Tudo o que ocorreu
foi “conforme as Escrituras”. O que os profetas – no passado – disseram
sobre o messias de Davi, o Servo sofredor, a Pedra que rejeitaram os
construtores etc.etc., foi dito para que, quando se completasse o tempo
– presente ou futuro imediato – ficasse patente a soberania do Altíssimo
e a legitimidade de seu Ungido.
78
Encontros Teológicos nº 59
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Daniel Ramada Piendibene
Ex-curso
A história como crônica, como ciência do tempo e como
representação do sentido dos acontecimentos.
Ao longo de vinte séculos de desenvolvimento cristão – e outro
tanto pode-se dizer do âmbito judeu[*] – o saber comum da cultura ocidental habituou-se a uma dupla identificação: A Bíblia Hebraica conta a
história de Israel, e do lado cristão acontece algo semelhante com o livro
de Lucas, Atos dos Apóstolos, que contaria a história do cristianismo nascente. Se se observar o mérito um pouco mais de perto, descobre-se que
ambas as associações incluem uma simplificação análoga dos fatos, e até
uma redução distorsiva. Com efeito, desde meados do século XIX[**] , pelo
grande desenvolvimento que adquiriram a linguística – especialmente a
crítica textual que desemboca na história das formas – a arqueologia e
a crítica histórica, o universo de dados sobre a história do Oriente Médio e da bacia do Mediterrâneo alargou-se de forma extraordinária. Ali
começa a ficar claro que os livros sagrados não possuem uma intenção
historiográfica. E isso, nem para os que os escreveram, nem para os que
os conservaram – desprezando ou destruindo outros análogos – e os
que os copiaram, ou comentaram, ou amputaram, ou compilaram ou os
glossaram, e assim os transmitiram a seus descendentes. É mais justo
então pensar que a Biblia Hebraica é a fonte principal para se conhecer
a história de Israel, com a condição de que se aceite que seus autores,
embora partindo de fatos históricos – ou tidos como tais pela memória
coletiva das tribos, clãs, grupos ou povos – escreveram uma teologia da
história. Isto é, algo mais apologético do que historiográfico. A Bíblia
seria então uma história das relações entre o povo eleito e seu Deus. A
chave de sentido está fora dos acontecimentos narrados, ou por baixo
deles, e é a razão de seu resgate como memória. A visão de Israel sobre
seu passado e seu presente tem sido definida como teológica. Quiçá seja
preferível precisar que, para seus cronistas e copistas, trata-se de uma
história imanente, na qual o Deus transcendente e pessoal está presente
através de seus eleitos. Não é YHWH quem, “diretamente”, abre as
[*]
Em cujo caso haveria que acrescentar quatro ou cinco séculos a mais, porque o
processo de estabilização textual dos livros se processa no período do Segundo
Templo.
[**]
Em realidade, o processo começa com a recuperação vernácula do texto, operada pela
Reforma, e com o trabalho de REIMARUS, que inaugura a busca do Jesus histórico
em meados do século XVIII.
Encontros Teológicos nº 59
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79
Dimensões epistemológicas na economia da revelação
águas do Mar Vermelho. É Moisés, com sua vara estendida e sua fé na
palavra – promessa – de Deus. (Como também não faria sentido que
a palavra de Jesus, para que se produzisse a ressurreição da filha de
Jairo, fosse pronunciada contra a sua vontade ou a do receptor, apenas
para exercício mágico do poder de Deus. A fé, de Jairo, é a ocasião que
permite que o poder de Deus se manifeste através de Jesus e restitua a
vida à menina).
Esta perspectiva de ver na Bíblia uma teologia da história de Israel, mais do que uma história objetiva, não é nova. O que, sim, constitui
novidade é a modalidade de lê-la, e recuperar na medida do possível a
densidade dos fatos históricos em chave de sentido processual, atual e
final [***]. Mas há algo mais. A ampliação das bases de dados nas ciências
humanas, à medida que se multiplicam as perspectivas de estudo por
combinação interdisciplinar das informações, nos apresenta um novo
desafío: É necessário entender as causalidades na história, para entender
como se situava ante ela o homem Jesus de Nazaré. A teologia pressupõe
a história do acontecido, mas a história foi vivida por seus protagonistas
como uma teodiceia. Essa forma peculiar de se situar frente à realidade,
não apenas afeta seus protagonistas, mas, de alguma forma, dirige ou
condiciona o desenvolvimento dos próprios processos sociais e históricos.
Quando um protagonista imagina que as coisas que estão acontecendo a
seus olhos são a consequência duma vontade divina, e que essa vontade
divina, ao mesmo tempo, exige uma tomada de posição, uma decisão ética
e axiológica, obviamente seus atos, fundados na teodiceia, determinarão
que a própria história mude de rumo como consequência dos efeitos de
suas opções. Um exemplo contemporâneo à época de Jesus: As guerras
insurrecionais judias sob as dinastias Julioclaudiana e dos Flávios, que
terminaram em massacres e desastres para o povo judeu, determinando,
inclusive, a aceleração do processo de diferenciação religiosa do cristianismo, estão vinculadas às expectativas de uma irrupção ou intervenção
divina em favor de seus fiéis. Esse pressuposto de fé não se verificou
nos fatos empíricos, mas foi um fator relevante de mutações na história
de ambos os povos.
[***]
80
Processual, porque se entendem os processos históricos como cenários de um desenvolvimento continuado. Atual, porque sua lógica é que o presente somente pode
ser entendido como palavra divina à luz do passado.
Encontros Teológicos nº 59
Ano 26 / número 2 / 2011
Daniel Ramada Piendibene
A modo de conclusão
Tomamos como ponto de partida uma dupla afirmação fundamental na teologia cristã da revelação: Em primeiro lugar, o mistério
da encarnação desvela o mistério do homem e, ademais, Jesus revela
definitivamente a Deus. Quanto a esse último aspecto, assinalamos que
a revelação se processa desde a condição humana de Jesus, através de
sua humanidade. Perguntamo-nos então: O que significa essa dimensão
humana? A tradição nos diz que é uma natureza completa, perfeita. Mas
a humanidade de Jesus não apenas significa uma entidade ontológica
independente do ser humano Jesus. É verdade que pode ser pensada
como tal, para fins doutrinários. De fato, assim aconteceu. Porém, isso
constitui uma opção no terreno dos métodos, que não esgota – nem pode
fazê-lo – a compreensão e apresentação doutrinária do mistério.
Definir e conhecer. A tradição dogmática nos legou uma fórmula
doutrinal. Essa definição constitui o marco correto para situar as relações entre o Pai e Jesus: A união hipostática. Nesse marco, a dimensão
humana do Verbo encarnado – ou a humanidade de Jesus – é definida
em termos de natureza: natureza humana perfeita e completa, total e em
ato etc. Aqui já temos um uso da língua e das categorias do pensamento grego. É normal porque, em sua época, as disputas cristológicas se
processaram numa sociedade cuja cultura falava grego e formulava seu
pensamento naquele marco paradigmático. Mais ainda, os evangelhos
e textos apostólicos foram escritos no grego da koinê, o que não quer
dizer que seus autores – muito menos ainda Jesus – tenham pensado em
termos de filosofia grega. Tampouco, nem todo o cristianismo se pensou
a si mesmo desde essa chave epistémica57. Ali surge, então, a questão
paradigmática: O modelo gnoseológico que Jesus recebeu de seu âmbito
civilizatório também é um dado da realidade, que não temos o direito de
ignorar no terreno da teologia da revelação.
Un melhor conhecimento do ser humano Jesus inclui, necessariamente, a episteme histórica através da qual o Mestre se conheceu e
se entendeu a si mesmo, situou-se no universo intersubjectivo que o
envolvia e expressou seu pensamento, seus sentimentos e seus valores. As
categorias gnoseológicas do pensamento semita constituem, em Jesus, a
primeira chave epistêmica da mensagem que nos revela definitivamente o
57
Estaríamos esquecendo as comunidades de língua persa ou copta, uma amnésia,
infelizmente, bastante comum quando se trata de formulações dogmáticas.
Encontros Teológicos nº 59
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81
Dimensões epistemológicas na economia da revelação
Pai. Essa forma de ver e de entender a realidade tem um valor constitutivo
para a mediação humana, operante na palavra inspirada.
Estamos acostumados a pensar a cristologia em termos ontológico-metafísicos. Porém, as ciências do conhecimento não se esgotam na ontologia. Os paradigmas de base metafísica são um modelo
epistêmico entre outros. Têm sua história e, mesmo se não temos o
direito de excluí-los como veículo doutrinal, tampouco temos o direito de absolutizá-los como lógica de pensamento e decodificação da
realidade, especialmente no terreno da inspiração, pois são estranhos
à modalidade humana de conhecimento de Jesus de Nazaré, princípio
e fundamento da revelação definitiva de Deus, isto é, Jesus não se
pensava a si mesmo nesse marco epistêmico, mas em termos de uma
perspetiva diacrônico-relacional.
Em segundo lugar, porque na base da encarnação temos que
admitir uma economia do mistério que não nos dá o direito de relativizar. A modalidade humana de conhecimento de Jesus não constitui um
acidente, mas um elemento constitutivo da revelação, fruto da vontade
providencial do Pai Eterno. O Pai nos enviou o Filho num momento
histórico determinado, numa cultura, no seio de um povo, numa região
no interior desse povo e expressando-se numa língua com regras cujo
paradigma epistêmico determina sua auto-compreensão e a forma de
entender e de expressar o sentido da realidade intersubjectiva que
constitui o contexto de sua vida. Mas não apenas a de Jesus, também
a dos discípulos que nos transmitiram sua mensagem, os profetas,
sábios, redatores e compiladores que os precederam, e cuja história e
cujas escrituras são o ponto de referência explícito de todos os protagonistas humanos de ambos os Testamentos. A inspiração que, entre
outras coisas, respeita as regras de auto-inteleção do veículo humano
na escrita, isto é, a cultura do autor, nos obriga a assumir os pressupostos paradigmáticos da mensagem como condição de fidelidade à
própria inspiração. Aliás, a Verbum Domini sublinha com insistência
a importância do respeito às relações existentes entre inspiração e
cultura no terreno da exegese. O que vale como orientação para uma
história da revelação, a fortiori deve ser considerado relevante quando
se considera seu fundamento58.
58
82
“Deus não se revela ao homem em abstrato, mas assumindo linguagens, imagens e
expressões vinculadas às diferentes culturas. [...] O fenômeno da cultura, em seus
múltiplos aspetos, se apresenta como um dado constitutivo da experiência humana:
«O homem vive sempre conforme uma cultura que lhe é própria, e que, por sua vez,
Encontros Teológicos nº 59
Ano 26 / número 2 / 2011
Daniel Ramada Piendibene
Por último, o momento cultural em que nós mesmos fomos
chamados a receber e proclamar o Evangelho, também é um dado da
realidade. Temos falado da complexificação das ciências do conhecimento, da sociedade posmoderna, do método das ciências humanas,
da quebra epistemológica post-kantiana, da crise na epistemologia da
fé em tempos do modernismo e da nouvelle théologie, da dimensão
linguística e paradigmática – social – da episteme e do esgotamento
dos modelos formalistas, de base metafísica, para fazer frente às novas complexidades59. Pois bem, desde um ponto de vista puramente
hipotético, animo-me a afirmar que os modelos de base diacrónica –
próprios da cultura israelita – resultam muito mais adequados como
instrumentos auxiliares de trabalho no terreno da recepção epistêmica
da revelação, que a base ontologista da metafísica greco-escolástica.
Não esqueçamos que a língua que falou o Verbo encarnado não utiliza
o verbo ser – base última da episteme metafísica – como instrumento
copulativo para a compreensão do mundo fenomênico ou para a distinção formal entre sujeito e objeto.
Aqui me permito enunciar um marco de trabalho teórico-teológico
que, se o Senhor assim o permitir, pretendo desenvolver nalgum momento, quiçá num próximo artigo. Trata-se do alcance epistemológico, em
ciências sociais, do dogma da união hipostática. Não há necessidade de
negar a sociologia do conhecimento para deixar salva a metafísica ou a
ontologia. Não há necessidade de condenar os paradigmas diacrônicos,
nem a história e a situação social, como dimensões inerentes ao conhecimento – inclusive teológico – para conservar o patrimônio revelado.
Até me animaria a dizer a ideologia, se a entendermos em termos de
perspectiva de representação e imaginário coletivo condicionados pela
situação na qual se nasce, se vive, se decodifica e se expressa o conhecimento. Temos, pois, que distinguir, sem separar. Mas isso nos levaria
a muitas outras páginas.
Jesus de Nazaré, em sua natureza humana, se conheceu e se entendeu a si mesmo como parte de uma história. Recebeu – temos que supor
que por determinação amorosa de seu Pai – um modo de conhecimento
diacrônico-relacional. Praticou-o e nos desvelou o mistério de Deus e
cria entre os humanos um laço que também é próprio deles, determinando o caráter
inter-humano e social da existência humana» (Verbum Domini, No109).
59
Isso exige, antes de mais nada, que se reconheça a importância da cultura para a
vida de todo ser humano. É uma relação fecunda, [... que] entra também numa nova
fase, devido [...] aos mais recentes avanços da cultura ocidental. Ibid.
Encontros Teológicos nº 59
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Dimensões epistemológicas na economia da revelação
do homem desde essa chave epistêmica. Temos o direito de continuar
ignorando-o no terreno da epistemologia da fé? Acredito que não.
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84
Encontros Teológicos nº 59
Ano 26 / número 2 / 2011
Resumo: A partir da categoria sociológica e relacional de “abreviação”, na
experiência de emudecimento de crianças, mulheres e pessoas empobrecidas,
a autora percorre a “abreviação” reflexiva, o “abreviou-se” da cristologia da
Palavra na tradição patrística medieval, retomada na “Verbum Domini” como fio
vermelho de experiência espiritual e metodologia para hermenêuticas bíblicas
populares e contextuais.
Abstract: Beginning with a sociological category and relating it with “abbreviation”, in the experience of silence among children, women and poor people,
the author follows the track of “reflexive abbreviation” by examining the Word
which Christology had abbreviated in Patristic and Medieval theology and was
taken up in the document “Verbum Domini” as a red thread symbolizing both
spiritual experience and methodology pervading biblical hermeneutics in popular
contexts.
“HO LÓGOS PACHÝNETAI”:
o Verbo abreviou-se1
Hermenêuticas bíblicas populares
e contextuais à luz da Verbum Domini
Maria Soave*
*
1
A autora é Missionária leiga “fidei donum”, italiana, educadora e biblista popular,
coordenadora da dimensão de estudo de gênero e de hermenêuticas feministas
do CEBI (Centro de Estudos Bíblicos). Maria Soave tem muitos artigos em revistas
bíblico-teológicas, como RIBLA, Estudos Bíblicos e Mandrágoras e livros de leitura
popular da Bíblia pelas editoras CEBI, Paulus e Nhanduti.
«Ho Logos pachynetai (ou brachynetai)». Cf. Orígenes, Peri Archon, I, 2, 8: SC
252, 127-129.
Encontros Teológicos nº 59
Ano 26 / número 2 / 2011, p. 85-102.
“Ho lógos pachýnetai”: o Verbo abreviou-se
1 A respeito de abreviações e emudecimentos
Estou vivendo um tempo especial, de Graça e de dor, tempo único
na minha experiência missionária e de biblista popular. Pela primeira
vez, depois de quase vinte anos de trabalhos pastorais ligados a uma
instituição eclesial, minha alma que está toda no texto do corpo, me
proporciona um tempo que escolhi viver na espiritualidade do caminhar
no silêncio dos espaços oficiais. Escolhi, então de ter a cada dia um longo
tempo para caminhar nas periferias da cidade onde moro para encontrar
pessoas, com calma, permanecendo, no silêncio da escuta amorosa dos
corpos “abreviados” pelos poderosos da história.
Abreviados. Assim são os corpos das crianças, das mulheres e
das pessoas empobrecidas, dos “caboclos”, mão de obra sem direitos
trabalhistas e camponeses neste Planalto Serrano das terras catarinenses,
do Karu, nesta Abya-Ayala, Pindorama fecunda e violada. Abreviados
são os corpos nestas terras do Cruzeiro do Sul, ao sul, debaixo, assim
explicitado nas geografias convencionais e eurocêntricas, de todos os
poderes que se constroem violentos, arrogantes, “desde cima” nos nortes
econômicos, relacionais, políticos e religiosos deste mundo.
Abreviados. Encurtados. Minimizados. Rebaixados. Abafados.
Silenciados. Emudecidos.
Assim são os corpos, todos tecidos vivos, textos escritos com os
outros códigos literários, os códigos do suor e do sangue derramado,
códigos que precisam de “outras” semânticas e semióticas, códigos
onde a alma está toda na pele desenhada pelas muitas cicatrizes e
rugas. Corpos abreviados neste Sul do mundo. Assim são os muitos,
demasiados, corpos, pessoais, de gênero, de classe, de etnias e comunitários: abreviados.
Percebo, nas errâncias da Vida, que existem corpos pessoais e
sociais que são abreviados. Se existem corpos abreviados é porque, na
relação, existem corpos de “abreviadores”, isto é, pessoas e situações que
encurtam, minimizam, rebaixam, abafam, silenciam, emudecem.
Partilhar hermenêuticas bíblicas populares e - porque populares- contextuais, significa escutar a partir destes corpos, pessoais e
sociais, que vivenciam a experiência de serem “abreviados”. Estas me
parecem ser as novas e sempre antigas hermenêuticas populares. Partilhar hermenêuticas bíblicas populares e contextuais significa ter estes
corpos como ponto de partida e de chegada hermenêutico. Os corpos
86
Encontros Teológicos nº 59
Ano 26 / número 2 / 2011
Maria Soave
abreviados, como ponto de partida e de chegada das hermenêuticas
bíblicas populares e contextuais, não como um círculo eternamente
fechado em si mesmo, mas como uma espiral que aprofunda cada vez
mais a experiência de vital espiritualidade, a experiência da imitação
de Jesus, o Cristo.
Cada vez mais se apresenta a urgência de exercitarmos “hermenêuticas contextuais”. Estas hermenêuticas têm a ver com “as memórias escondidas, para que os grandes silêncios possam ter as próprias
palavras”2.
A leitura popular e orante da Bíblia quer exatamente fazer
isso, para compreender o mistério na História que é Jesus, o Cristo,
a partir dos sujeitos desta História e não só dos contextos. Esses
sujeitos são emudecidos e minimizados não só pelos “outros”. Esses
sujeitos são minimizados também pelas nossas hermenêuticas e teologias fundamentalistas, quando nos arrogamos o direitos de sermos
“voz de quem não tem voz” sem permitir que quem não possui voz
possa ter a sua própria voz e dizer algo que, quem sabe, nós e nossas
instituições, sejam elas políticas,sociais, econômicas ou religiosas,
não gostariam de ouvir.
Percebo, sobretudo neste tempo de silêncio, que em uma economia
da escuta e da recuperação da Palavra revelada e espalhada na História
dos povos, hermenêuticas contextuais tomam forma do fiel comunicar das
pessoas com Deus (...). Esta comunicação que, como aprendemos com
os povos caboclos destas terras ameríndias, terras do Karu, da árvore do
pinheiro araucária, a árvore da Terra do Povo Livre, esta comunicação
das pessoas das comunidades, com Deus (...) passa pela humilde escuta
da voz da Terra, das suas incessantes dores de parto, mas também pela
sua inesgotável esperança de Vida. Esta Terra é o chão onde pisam os pés
de quem se arrisca com coragem, e sem medo de enfrentar conflitos, nas
hermenêuticas contextuais, pois sabemos, pela espiritualidade cotidiana revelada aos pobres e pequenos, que, onde nossos pés pisam, nossa
cabeça pensa e nosso coração ama. Terra que para cada pessoa e grupo
tem um nome diferente, Terra que é esta e não pode ser outra. “Terra que
se faz terras diferentes, terras irmanadas pelo mesmo desejo de serem
espaço de vida para as crianças, as mulheres, as pessoas empobrecidas,
os migrantes e exilados, terras que almejam para a oikoumene. Terras
2
Balducci, E. La terra del tramonto. Saggio sulla transizione, ECP, 1992, pp. 88-91.
Encontros Teológicos nº 59
Ano 26 / número 2 / 2011
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“Ho lógos pachýnetai”: o Verbo abreviou-se
que se fazem contextos de cidades e de periferias, de Norte e Sul no
universo dos povos. Terras habitadas pelos muitos corpos de mulheres e
homens que, desde o por do sol até o amanhecer procuram o Rosto que
ilumina a própria imagem e a própria semelhança”3. As hermenêuticas
contextuais nascem nestas terras, nestes corpos que se fazem contextos,
isto é, outra forma de dizer textos.4
A respeito dos muitos corpos, das muitas línguas, dos muitos
modos da experiência de Deus na vida das pessoas e dos povos, dos
muitos textos vivos que tocam e se deixam tocar pelo texto vivo, o
Logos encarnado que é a Palavra, nos edificam como Igreja os Padres
Sinodais através da voz magisterial do Santo Padre. Um Magistério, o
do Texto das Escrituras, que se faz Ministério no encontro do Texto da
Vida dos Povos.
“Pudemos assim constatar, com alegria e gratidão, que «na Igreja há
um Pentecostes também hoje, ou seja, que ela fala em muitas línguas;
e isto não só no sentido externo de estarem nela representadas todas
as grandes línguas do mundo mas também, e mais profundamente, no
sentido de que nela estão presentes os variados modos da experiência
de Deus e do mundo, a riqueza das culturas, e só assim se manifesta a
vastidão da existência humana e, a partir dela, a vastidão da Palavra
de Deus”.5
2 A espiritualidade em tempos crepusculares
e suas abreviações
Na vastidão da existência humana, muitos povos vivem, em nível social e religioso, experiências complexas e nem sempre objetivas,
claras e distintas. Quero nomear estes tempos e estas experiências
como “crepusculares” (para usar com gratidão e saudade uma palavra dos últimos dias entre nós de nosso companheiro e testemunha
do seguimento de Jesus no meio das pessoas empobrecidas, o padre
José Comblin). Tempos crepusculares na ética, que perde cada vez
88
3
Potente Antonietta. Raccogliere i frammenti. Dalla teologia missionaria alla teologia
contestuale, Strumenti di pace, 3. ed. Anterem,1995, pg. 45.
4
Richter Reimer Ivoni; Buscemi Maria Soave, “Respiros...Entre transpiração e
conspiração”, RIBLA 50: Hermenêuticas bíblicas latino americanas e caribenhas
(2005:1) pg.109-113 Vozes)
5
Bento XVI, Exortação Apostólica pós Sinodal Verbum Domini (30 de setembro de
2010), 4.
Encontros Teológicos nº 59
Ano 26 / número 2 / 2011
Maria Soave
mais espaço para um tipo de “estética oca”. Dias de ausência de
presença e de profecia no meio das pessoas empobrecidas. Tempos
crepusculares, onde o dia não é mais dia e a noite se aproxima com
um tabuleiro imenso de cores no céu. Tempo que nos “vocaciona”
para o desafio da complexidade, da construção da vida que está toda
nas relações recriadas em um grande mutirão não mais alicerçado
na arrogância e na violência, uma “sistêmica relacional” que nos
faz seres necessitados de tudo e de todos. Neste tempo crepuscular
que anuncia o tempo espiritual da “noite escura da alma” em minha,
quem sabe nossa, experiência eclesial, retoma-se a importância de
hermenêuticas populares e contextuais. Neste tempo de crepúsculo,
que separa a tarde da experiência da morte (entre meio dia e as três,
na Tradição de nossas Igrejas), tempo do sol a pino, sem sombra de
dúvidas...e o alvorecer da madrugada da Ressurreição, tempo bem
parecido ao crepúsculo, quando as cores não são claras e distintas
no céu e nem na alma...tudo se mistura...esse é o tempo propício da
“multidão”, dos impuros, das mulheres, dos pobres e dos pequenos.
No arco-íris da complexidade que toma lugar e sentido onde antes se
encontrava o “complicado”, o que só os sabidos e inteligentes podiam
explicar com a arrogância de quem se sente dono da unívoca verdade,
toma o espaço a vida “abreviada” dos pequeninos. Neste tempo longo,
vagaroso, duvidoso, esperançoso e doído que se dá entre a experiência
da morte e a espera da Ressurreição, neste tempo “crepuscular”, se
visibiliza o “chão” hermenêutico das hermenêuticas bíblicas populares e contextuais. O “chão hermenêutico” de quem se reconhece
sedento, quem sabe como Jesus, naquele horário do meio dia ao poço
de Sicar (Jo 4,1ss). O ponto de partida hermenêutico que se permite a
possibilidade não só de oferecer a própria água como a água que mata
toda e qualquer sede, mas de pedir com humildade e necessidade a
água do poço da “outra” pessoa, “outra” porque totalmente “outra”,
impura, desigual. Hermenêuticas que se permitem, usando uma frase
do missionário do diálogo inter-religioso com as religiões afro, padre
Ettore Frisotti, parafraseando o importante texto do padre Gutierrez,
Hermenêuticas que se permitem, fora de todo pré-conceito e exclusão,
o desafio relacional e espiritual de “beber ao poço alheio”.6
Um texto bíblico, que na minha vida espiritual ilumina este tempo
“crepuscular”, tempo denso de experiência espiritual, é o texto de Gn
6
Frisotti, Heitor. Beber no poço alheio. Salvador, 1988, multicopiado, p. 76.
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89
“Ho lógos pachýnetai”: o Verbo abreviou-se
32,25.32, Jacó permaneceu sozinho e um homem ( um anjo de Deus?)
lutou com ele até o alvorecer. Estava madrugando quando Jacó passou
Penuel e nosso pai na fé mancava... As hermenêuticas bíblicas populares
e, porque populares, contextuais, falam de Deus (...) a partir da História, a
História cotidiana que se faz nas cozinhas, no suor, nos gritos, nos sonhos
e nos suspiros de fé do chão real da vida dos povos. Falar de Deus (...)
a partir desta História, significa para os agentes de pastoral, teólog@s
e biblistas populares, não aceitar mais de narrar e anunciar Deus (...) e
seu sonho por terem ouvido falar. Mmas, bem diferente, aceitar que o
contexto, o chão da vida cotidiana das pessoas empobrecidas se faça carne
da própria carne, chão das nossas raízes, onde nossos pés pisam, nossa
cabeça pensa e nosso coração ama, sabendo que este “Acontecimento”
histórico arma sua pobre tenda em nossa carne e assim iremos “mancar”
para sempre, como nosso pai na fé Jacó no chão de Penuel. Os tempos
crepusculares convidam, nós biblistas populares, agentes de pastoral e
animadores e animadoras de comunidades a vivenciar em nosso corpo
que está tudo na alma, a profunda ferida do encontro com Deus (...),
ferida que sempre lateja, sempre aberta, sempre sedenta na profunda
saudade de uma Ausência.
É o Mistério Pascal que nos faz vivenciar esta experiência profunda
da Ausência, como dizem os Padres Sinodais:
“No Mistério Pascal, realizam-se as palavras da Escritura, isto é, esta
morte realizada ‘segundo as Escrituras’ é um acontecimento que contém em si mesmo um logos, uma lógica: a morte de Cristo testemunha
que a Palavra de Deus Se fez totalmente ‘carne’, ‘história’ humana”7.
Também a ressurreição de Jesus acontece “ao terceiro dia, segundo as
Escrituras”: “dado que a corrupção, segundo a interpretação judaica,
começava depois do terceiro dia, a palavra da Escritura cumpre-se em
Jesus, que ressuscita antes de começar a corrupção. Deste modo São
Paulo, transmitindo fielmente o ensinamento dos Apóstolos (cf. 1Cor
15, 3), sublinha que a vitória de Cristo sobre a morte se verifica através
da força criadora da Palavra de Deus. Esta força divina proporciona
esperança e alegria: tal é, em definitivo, o conteúdo libertador da revelação pascal. Na Páscoa, Deus revela-Se a Si mesmo juntamente com
7
90
Bento XVI, Discurso à Cúria Romana (22 de Dezembro de 2008): AAS 101
(2009), 50.
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a força do Amor trinitário que aniquila as forças destruidoras do mal
e da morte.”8
3 Caminhos de hermenêuticas populares
e contextuais
A leitura popular da Bíblia quer exatamente fazer isso para compreender o Mistério na História que é Jesus, o Cristo, a partir dos sujeitos
desta História e não só dos contextos. Para este fim, um perigo que precisa ser vencido, e quem sabe as hermenêuticas populares e contextuais
possam ajudar humildemente nisso, é o perigo do fundamentalismo.
Assim escrevem Carlos Mesters e Francisco Orofino:
“No encontro de duas semanas, organizado pelo CESEP em Goiânia em
janeiro de 1991, havia mais de 600 participantes, vindos das CEBs de
quase todos os Estados do Brasil. Muitos jovens! Nos três dias dedicados
ao estudo da Bíblia, a linha da interpretação era claramente libertadora.
Nas conversas com os participantes, porém, aparecia, várias vezes, uma
atitude interpretativa diferente, em que se misturava fundamentalismo
com teologia da libertação. Sobretudo nos jovens! Como explicar este
fenômeno? Vem de onde? Do contato com a linha conservadora, com
a linha carismática, com os crentes? Será que também não vem das
deficiências da atitude libertadora frente à Bíblia? Será que não vem
de algo mais profundo ainda que está mudando no subconsciente da humanidade? Pois, o perigo do fundamentalismo não existe só nas igrejas
cristãs, mas também nas outras religiões: judaica, muçulmana, budista...
Existem até formas de um fundamentalismo secularizado.”9
“Fundamentalismo”, esta “doença da alma” nas nossas relações,
tem a ver com as Sagradas Escrituras e tem a ver com as relações que
viram surdas e violentas. Relações que precisam ser recriadas, na Sociedade e na Igreja. Desta forma nos ajudam a refletir nossas práticas
hermenêuticas, teológicas e pastorais, os Padres do Sínodo sobre a
Palavra de Deus:
8
Bento XVI, Audiência Geral (15 de Abril de 2009): L’Osservatore Romano (ed.
portuguesa de 18/IV/2009), p. 12.
9
Mesters C.; Orofino, F. Disponível em <http://www.cebi.org.br/noticia.
php?secaoId=15&noticiaId=532>. Acesso em16/06/2011.
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“Ho lógos pachýnetai”: o Verbo abreviou-se
“Na realidade, o «literalismo» propugnado pela leitura fundamentalista
constitui uma traição tanto do sentido literal como do espiritual, abrindo
caminho a instrumentalizações de variada natureza, difundindo, por
exemplo, interpretações anti-eclesiais das próprias Escrituras. O aspecto
problemático da «leitura fundamentalista é que, recusando ter em conta
o caráter histórico da revelação bíblica, torna-se incapaz de aceitar
plenamente a verdade da própria Encarnação. O fundamentalismo evita
a íntima ligação do divino e do humano nas relações com Deus. (…) Por
esse motivo, tende a tratar o texto bíblico como se fosse ditado palavra
por palavra pelo Espírito e não chega a reconhecer que a Palavra de
Deus foi formulada numa linguagem e numa fraseologia condicionadas
por uma dada época».10 Ao contrário, o cristianismo divisa nas palavras
a Palavra, o próprio Logos, que estende o seu mistério através de tal
multiplicidade e da realidade de uma história humana. A verdadeira
resposta a uma leitura fundamentalista é «a leitura crente da Sagrada
Escritura, praticada desde a antiguidade na Tradição da Igreja. [Tal
leitura] procura a verdade salvífica para a vida do indivíduo fiel e para
a Igreja. Essa leitura reconhece o valor histórico da tradição bíblica.
Precisamente por esse valor de testemunho histórico é que ela quer descobrir o significado vivo das Sagradas Escrituras, destinadas também
à vida do fiel de hoje”11, sem ignorar, portanto, a mediação humana do
texto inspirado e os seus gêneros literários.”12
O desafio que se apresenta para as hermenêuticas bíblicas populares e contextuais neste processo terno e eterno de superação de todos
os fundamentalismos, é o como partilhar poder, ser, ter e saber desde o
Norte até o Sul do Mundo, nas Sociedades e nas Igrejas, com as pessoas,
mulheres, crianças e empobrecidos deixados às margens da História.
“Quase sempre a teologia teve que se submeter e se mover em um mundo
feito de iniciativas culturais e sociais promovidas por sistemas econômicos e políticos; às vezes conseguiu interpretá-los ou, poucas vezes,
criticá-los, mas nem sempre conseguiu fazer do seu ‘ falar de Deus e
com Deus’, uma fidelidade no pensar e participar do futuro de justiça e
paz dos povos. A teologia virou moral econômica, doutrina social, mas
sempre teve que sobreviver em uma história pensada e feita por outros
e com dificuldade conseguiu propor caminhos. As experiências missio10
11
Propositio 46.
12
92
Cf. Bento XVI, Discurso aos homens de cultura no «Collège des Bernardins» de
Paris (12 de Setembro de 2008: AAS 100 (2008), 726.
Bento XVI, Exortação Apostólica pós Sinodal Verbum Domini (30 de setembro de
2010), 44.
Encontros Teológicos nº 59
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nárias garantiram aos povos empobrecidos a entrada e a circulação
de um pouco mais de dinheiro, provavelmente de jeito mais limpo, mas
sempre na contraditória lógica de quem vai ao poço com o próprio jarro
já repleto de água. Planejaram-se projetos, mas não lutas e resistências
junto com as pessoas empobrecidas; explicaram-se modelos, porém
poucas vezes recolheram-se e cultivaram-se sonhos.”13
A leitura popular e contextual da Bíblia deseja cantar a poesia de
Pablo Neruda, permanecendo nas periferias do mundo:
“Não comprei uma parcela de céu que vendiam os sacerdotes, nem aceitei
trevas que o metafísico manufaturava para despreocupados poderosos.
Quero estar na morte com os pobres que não tiveram tempo de estudá-la,
enquanto os espancavam os que têm o céu dividido e arrumado” (Canto
General, “a morte”)
“Parece-nos que muitas vezes a teologia tenha comprado o céu, como diz
o poeta Pablo Neruda, para vendê-lo aos pobres, e aceitou as escuridões
do metafísico para justificar os poderosos. Hoje à teologia pede-se um
estilo de vida que permita reconhecer onde nós, agentes de pastoral,
teólog@s e biblistas estamos quando sonhamos o futuro e como cuidamos
amorosamente da vida. O sonho dos poderosos contrasta com o sonho
de Deus. O caminho das pessoas empobrecidas parece ser mais do que
um ‘subir’, um ‘descer’”.14
4 Sobre uma espiritualidade da abreviação
e do silêncio
Estou vivendo um tempo especial, de Graça e de dor, tempo
único na minha experiência missionária e de biblista popular. Pela
primeira vez, depois de quase vinte anos de trabalhos pastorais ligados a uma instituição eclesial, minha alma que está toda no texto do
corpo, me proporciona um tempo que escolhi viver na espiritualidade
como oportunidade de caminhar no silêncio dos espaços oficiais.
Escolhi, então de ter a cada dia um longo tempo para caminhar nas
periferias da cidade onde moro para encontrar pessoas, com calma,
permanecendo, em silêncio na escuta amorosa e silenciosa destes
13
Potente Antonietta, Ibidem, pg. 64.
14
Potente Antonietta, Ibidem, pg. 65.
Encontros Teológicos nº 59
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“Ho lógos pachýnetai”: o Verbo abreviou-se
corpos “abreviados” pelos poderosos da História, como nos lembra
o Santo Padre o Papa Bento XVI:
“A tradição patrística e medieval, contemplando esta «Cristologia da
Palavra», utilizou uma sugestiva expressão: O Verbo abreviou-Se.15 «Na
sua tradução grega do Antigo Testamento, os Padres da Igreja encontravam uma frase do profeta Isaías – que o próprio São Paulo cita – para
mostrar como os caminhos novos de Deus estivessem já preanunciados
no Antigo Testamento. Eis a frase: “O Senhor compendiou a sua Palavra,
abreviou-a” (Is 10, 23; Rm 9, 28). (…) O próprio Filho é a Palavra, é
o Logos: a Palavra eterna fez-Se pequena; tão pequena que cabe numa
manjedoura. Fez-Se criança, para que a Palavra possa ser compreendida
por nós.”16 Desde então a Palavra já não é apenas audível, não possui
somente uma voz; agora a Palavra tem um rosto, que por isso mesmo
podemos ver: Jesus de Nazaré.17
Por fim, a missão de Jesus cumpre-se no Mistério Pascal: aqui
vemo-nos colocados diante da «Palavra da cruz» (cf. 1 Cor 1, 18). O
Verbo emudece, torna-se silêncio de morte, porque Se «disse» até calar,
nada retendo do que nos devia comunicar. Sugestivamente os Padres da
Igreja, ao contemplarem este mistério, colocam nos lábios da Mãe de
Deus esta expressão: «Está sem palavra a Palavra do Pai, que fez toda
a criatura que fala; sem vida estão os olhos apagados d’Aquele a cuja
palavra e aceno se move tudo o que tem vida”. Aqui verdadeiramente
comunica-se a nós o amor «maior», aquele que dá a vida pelos próprios
amigos (cf. Jo 15, 13).”18
Percebo que as periferias do mundo podem provocar, como
provocam em nós, agentes de pastoral que nos permitimos estas
perguntas, as periferias do mundo provocam em nós uma inquietude
repleta de pressa, para justificar nossa incapacidade de resistência
na permanência silenciosa e aparentemente pouco eficaz da luta
cotidiana. A luta cotidiana se faz por um pedaço de lenha apanhada
de forma escondida nos monocultivos de pínus dos poderosos, no
conseguir um punhado de arroz e feijão ou um litro de leite porque
94
15
«Ho Logos pachynetai (ou brachynetai)». Cf. Orígenes, Peri Archon, I, 2, 8: SC
252, 127-129.
16
Bento XVI, Homilia na solenidade do Natal do Senhor (24 de Dezembro de 2006):
AAS 99 (2007), 12.
17
Cf. Mensagem final, II, 4-6.
18
Bento XVI, Exortação Apostólica pós Sinodal Verbum Domini (30 de setembro de
2010), 12.
Encontros Teológicos nº 59
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os programas sociais alimentares reconhecem até então só três filhos
cadastrados e não importa se a Vida agraciou-te com sete crianças
abaixo de onze anos. Muitas vezes, minha pressa de “agenda pastoral”
atropelou a Vida enquanto os empobrecidos permaneciam pregados
nestas periferias do mundo, fora dos recintos sagrados de todos os
programas de inclusão da Sociedade e da Igreja.
Percebo, nestes tempos de meu silêncio nos espaços da oficialidade
eclesial e de vagarosa escuta dos corpos de um punhado de empobrecidos,
que a vida dos pobres muitas vezes não é ocupada pelos compromissos
que enchem as agendas da grande maioria de nós, agentes de pastoral e
pessoas que pensam e escrevem teologia.
“A vida dos pobres é crucificada ao longo das estradas da história, nas
periferias do mundo. Os problemas são os do cotidiano; os mesmos
problemas que cansavam o mestre Jesus e seus entusiastas discípulos
(Mc 6,35-36). O nosso pensar torna-se inquieto na tentativa de compreender este longo ‘PERMANECER’ dos pobres; desta fidelidade que
poucos reconhecem como tal e que muitas vezes preferimos descrever
como incapacidade de reação ou de passividade.”19
“Como mostra a cruz de Cristo, Deus fala também por meio do seu
silêncio. O silêncio de Deus, a experiência da distância do Onipotente
e Pai é etapa decisiva no caminho terreno do Filho de Deus, Palavra
encarnada. Suspenso no madeiro da cruz, o sofrimento que Lhe causou
tal silêncio e o fez lamentar: «Meu Deus, meu Deus, porque Me abandonaste?» (Mc 15, 34; Mt 27, 46). Avançando na obediência até ao último
respiro, na obscuridade da morte, Jesus invocou o Pai. A Ele Se entregou
no momento da passagem, através da morte, para a vida eterna: «Pai,
nas tuas mãos, entrego o meu espírito» (L c 23, 46).”20
Percebo que as leituras populares e contextuais da Bíblia nos ajudam a viver o Mistério de Deus (...) na História; a sua Encarnação, para
PERMANECER aos confins do mundo, nas esquinas escondidas desta
humanidade imóvel, que não pode se mover ou é obrigada a migrar em
um movimento violento de expulsão, esta humanidade que não conhece
outro bairro a não ser o no qual sobrevive ou trabalha, outra luta a não
ser a do arroz e feijão do dia-a-dia.
19
Potente Antonietta, Ibidem, pg. 76.
20
Bento XVI, Exortação Apostólica pós Sinodal Verbum Domini (30 de setembro de
2010), 21.
Encontros Teológicos nº 59
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“Ho lógos pachýnetai”: o Verbo abreviou-se
A fé no seguimento de Jesus e na construção do Reino nos impulsiona para sairmos dos espaços “sagrados”, dentro dos muros seguros
e puros das cidades e irmos para os lugares frágeis onde os habitantes
não podem se mover, onde os dias são todos iguais, onde celebrar a festa
significa fazer memória de Deus (...) que, em Jesus Cristo, é amigo terno
de mulheres impuras, publicanos e pecadores.
Perseverem no amor fraterno. Não se esqueçam da hospitalidade, pois algumas pessoas, graças a ela, sem saber acolheram anjos. Lembrem-se
dos presos, como se vocês estivessem na prisão com eles. Lembrem-se dos que são torturados, pois vocês também têm um corpo. Que
todos respeitem o matrimônio e não desonrem o leito nupcial, pois Deus julgará os libertinos e adúlteros. Que a conduta de vocês não seja inspirada pelo amor ao dinheiro. Cada um fique satisfeito com o que tem, pois Deus
disse: «Eu nunca deixarei você, nunca o abandonarei.» Assim, podemos dizer com ânimo:«O Senhor está comigo,eu não temo.O que é que me poderá fazer um homem?» Lembrem-se dos dirigentes, que ensinaram a vocês a Palavra de Deus. Imitem a fé que eles tinham, tendo presente como eles
morreram. Jesus Cristo é o mesmo, ontem e hoje, e será sempre o mesmo. Não se deixem levar por nenhum tipo de doutrina estranha. O bom
mesmo é fortalecer o coração pela graça, e não com regras alimentares,
que de nada serviam para quem as observava. Nós temos um altar,
do qual não têm direito de comer aqueles que ainda servem na Tenda. De fato, depois que o sumo sacerdote oferece o sangue no santuário pelos pecados o povo, os animais oferecidos em sacrifício são
queimados fora do recinto sagrado. Por esse motivo, também Jesus
sofreu sua paixão fora de Jerusalém, quando purificou o povo com
o seu próprio sangue. Portanto saiamos também do recinto sagrado
para ir ao encontro de Jesus, carregando a humilhação dele. Pois não
temos aqui a nossa pátria definitiva, mas buscamos a pátria futura.
(Hb 12,1-13)
A carta aos Hebreus nos convida a sair dos espaços sagrados e a
percorrer os “caminhos da Galileia” fora dos muros da cidade, no contexto
dos corpos de todas as pessoas diminuídas e excluídas. Não se trata só
de sair do recinto sagrado, mas de PERMANECER fora dos muros, fora
dos espaços oficiais, junto aos corpos dos crucificados da História.
96
Encontros Teológicos nº 59
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Maria Soave
5 Hermenêuticas feministas como espiritualidade
de abreviação
Gostaria de dedicar algumas linhas a respeito da experiência espiritual, nos tempos crepusculares de mortes na vida de crianças, mulheres
e empobrecid@s, neste tempo crepuscular de minha vida, iluminando
nossas pobres vidas pela Vida e Pessoa no Tempo crepuscular da Morte
de Jesus. Os evangelhos nos apresentam sempre um grupo de mulheres
aos pés da cruz de Jesus (Lc 26, 50-56; Mc 15,42-16,8;Mt 27,55-61).
Maria de Magdala é sempre citada entre o grupo das mulheres. Alguns
homens estão presentes nos relatos dos evangelhos aos pés da cruz de
Jesus. José de Arimateia e Nicodemos, cujos nomes são citados nos
textos. A tradição de nossa Igreja coloca também João como a pessoa
por trás do “discípulo amado” no quarto evangelho.
Neste momento gostaria de meditar e contemplar a presença
das mulheres aos pés da cruz de Jesus, como paradigma espiritual da
PERMANÊNCIA. Essas mulheres estão aos pés da cruz e a permanência delas é uma permanência abreviada. Conhecemos os riscos que
corriam, depois do edito de Tibério, as pessoas que se encontrassem
muito perto dos crucificados. O corpo das mulheres se faz pequeno
para poder permanecer perto do corpo crucificado de Jesus. Elas
abreviam-se, tomam uma doída, porém suficiente distância: diminuem
o corpo e a PRESENÇA, para poder assegurar uma PERMANÊNCIA
aos pés da Cruz.
A respeito das hermenêuticas populares e contextuais feministas,
assim escrevem Carlos Mesters e Francisco Orofino: “A leitura feminista questiona e relativiza a leitura masculinizada de
séculos. Ela não pode ser descartada como um fenômeno passageiro
nem como uma das muitas curiosidades exegéticas sem maiores consequências. Ela é uma das características mais importantes que vêm
surgindo de dentro da leitura popular da Bíblia. O seu alcance é muito
maior do que poderia parecer à primeira vista. No Brasil ela adquire
uma importância maior ainda, por causa da esmagadora maioria de
mulheres que participam ativamente nos grupos bíblicos e sustentam a
luta do povo em muitos lugares.”21
21
Mesters, C.; Orofino, F. Disponível em <http://www.cebi.org.br/noticia.
php?secaoId=15&noticiaId=532>. Acesso em 16/06/2011.
Encontros Teológicos nº 59
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“Ho lógos pachýnetai”: o Verbo abreviou-se
Percebemos simples passos que os corpos destas mulheres percorrem, na imóvel permanência do tempo crepuscular da Cruz de Jesus.
Elas, mergulhando no mistério do silêncio do Pai, no Corpo torturado
do Filho, PERMANECEM em silêncio. É um silêncio silenciado que
escolheu silenciar. È um silêncio violentado que escolhe quebrar a ordem
simbólica da violência. È um silêncio abreviado pelos opressores do
poder religioso e imperial que escolhe abreviar-se na “Imitatio Christi”,
completando em sua carne o sofrimento de Jesus, o Cristo. Comunidade
Crística, esta das mulheres.
Em silêncio, na experiência crística da Palavra, do Logos “abreviado”, as mulheres aos pés da Cruz de Jesus observam de longe. Elas
descem com a abreviação dos gestos, das palavras, do poder, através
dos gestos de José de Arimateia, o Corpo matado e crucificado de Jesus
da Cruz. Estas mulheres violentadas que escolheram, completando na
própria carne a Carne de Cristo, a abreviação do corpo e suas falas,
observam e meditam COMO o Corpo de Jesus é envolto em panos de
linho e colocado em uma gruta escavada. A comunidade de Lucas, que
nos consigna este relato da Deposição de Jesus da Cruz, esta “Pietá”
comunitária de mulheres e um homem que não compactuava com o
sacerdócio sadoquita, o sacerdócio que tinha esquecido o ministério comum na profecia entre os pobres, as viúvas, os órfãos e os estrangeiros
na fragilidade das tendas do Êxodo, a comunidade lucana quer voltar a
falar de Gruta escavada, como no dia do nascimento. Essas mulheres e
esse homem depositam, com amor e cuidado, o Corpo martirizado de
Jesus. Corpo envolto em faixas de linho, abreviado, pequeno, frágil,
de novo e sempre como na manjedoura de Belém, no Tempo em que o
Corpo-Verbo se fez carne e armou sua frágil Tenda em nosso meio e,
por esta Encarnação, por este acontecimento histórico, nós vimos a sua
Glória, Glória do Filho Unigênito de Deus!
“A Sagrada Escritura manifesta a predileção de Deus pelos pobres e
necessitados (cf. Mt 25, 31-46). Com frequência, os Padres sinodais
lembraram a necessidade de que o anúncio evangélico e o empenho dos
pastores e das comunidades se dirijam a estes nossos irmãos. Com efeito,
98
Encontros Teológicos nº 59
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Maria Soave
«os primeiros que têm direito ao anúncio do Evangelho são precisamente
os pobres, necessitados não só de pão mas também de palavras de vida”.
A diaconia da caridade, que nunca deve faltar nas nossas Igrejas, tem
de estar sempre ligada ao anúncio da Palavra e à celebração dos santos
mistérios.22 Ao mesmo tempo, é preciso reconhecer e valorizar o fato
de que os próprios pobres são também agentes de evangelização. Na
Bíblia, o verdadeiro pobre é aquele que se confia totalmente a Deus e, no
Evangelho, o próprio Jesus chama-os bem-aventurados, «porque deles é
o reino dos céus» (Mt 5, 3; cf. L c 6, 20). O Senhor exalta a simplicidade
de coração de quem reconhece em Deus a verdadeira riqueza, coloca
n’Ele a sua esperança e não nos bens deste mundo. A Igreja não pode
desiludir os pobres: «Os pastores são chamados a ouvi-los, a aprender
deles, a guiá-los na sua fé e a motivá-los para serem construtores da
própria história».23 24
A Igreja está ciente também de que existe uma pobreza que é virtude
a cultivar e a abraçar livremente, como fizeram muitos Santos, e há a
miséria, muitas vezes resultante de injustiças e provocada pelo egoísmo,
que produz indigência e fome e alimenta os conflitos. Quando a Igreja
anuncia a Palavra de Deus, sabe que é preciso favorecer um «círculo
virtuoso» entre a pobreza «que se deve escolher» e a pobreza «que se
deve combater», redescobrindo «a sobriedade e a solidariedade como
valores simultaneamente evangélicos e universais. (…) Isto obriga a
opções de justiça e de sobriedade».25 26
Na PERMANÊNCIA diminuída e silenciosa aos pés da Cruz,
as mulheres olharam a gruta escavada na rocha onde José colocou o
Corpo martirizado de Jesus. Uma gruta acolhedora, este era o antigo
sentido aramaico do nome “Cefa”, Pedro, o primeiro pastor animador
da Igreja. Uma gruta acolhedora para cuidar e proteger todos os corpos
dos crucificados e das crucificadas da História. Uma gruta acolhedora
para descer da cruz todas as pessoas crucificadas, para que não fosse vã
a Cruz de Cristo!
22
Cf. Bento XVI, Carta enc. Deus caritas est (25 de Dezembro de 2005), 25: AAS 98
(2006), 236-237.
23
Propositio 11.
24
Bento XVI, Exortação Apostólica pós Sinodal Verbum Domini (30 de setembro de
2010), 107.
25
Cf. João Paulo II, Carta enc. Fides et ratio (14 de Setembro de 1998), 80: AAS 91
(1999), 67-68.
26
Propositio 54.
Encontros Teológicos nº 59
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“Ho lógos pachýnetai”: o Verbo abreviou-se
No corpo, tecido de alma das mulheres, a PERMANÊNCIA se
fez, naquele e neste tempo crepuscular, ERRÂNCIA. Elas colocaramse a caminho, quando a noite não era mais noite, mas ainda não era
dia. Colocaram-se a caminho para poder voltar a “fazer casa” agora
em uma nova experiência eclesial, a experiência da “Ausência”, que
nunca significa inexistência. Na experiência da “Ausência” de uma
Presença totalmente outra e totalmente dentro, em uma fundante e
fundamental saudade, as mulheres reinventaram a “casa”. Lá, nesse
espaço totalmente novo do “fazer casa” e nesse Tempo inusitado da
“Ausência”, as mulheres reinventaram receitas de perfumes e bálsamos, reinventaram memórias que acordaram o desejo e a esperança.
Este agir silencioso e diminuído das mulheres se declina nos simples
passos metodológicos de hermenêuticas populares e contextuais:
desde o partir das experiências dos corpos, passando por se permitir
nomear com as próprias palavras perguntas e conflitos, de-construindo
assim os textos, literários e sociais e suas relações, para se permitir,
em uma profunda experiência pascal, a poiética dos textos e das relações, reinventando, re-nomeando... Reinventaram o alvorecer na
noite escura da alma... abriram o corpo que está todo na alma para
a experiência do entusiasmo, etimologicamente “do mergulhar no
sangue de Deus (...)” que nós nomeamos com o único respiro que
conta...Ressurreição! Um outro – este mundo – é possível!
”O compromisso no mundo requerido pela Palavra divina impele-nos a
ver com olhos novos todo o universo criado por Deus e que traz já em si
os vestígios do Verbo, por Quem tudo foi feito (cf. Jo 1, 2). Com efeito,
há uma responsabilidade que nos compete como fiéis e anunciadores do
Evangelho, também a respeito da criação. A revelação, ao mesmo tempo
que nos dá a conhecer o desígnio de Deus sobre o universo, leva-nos
também a denunciar os comportamentos errados do homem, quando não
reconhece todas as coisas como reflexo do Criador, mas mera matéria
que se pode manipular sem escrúpulos. Deste modo, falta ao homem
aquela humildade essencial que lhe permite reconhecer a criação como
dom de Deus, que se deve acolher e usar segundo o seu desígnio. Ao
contrário, a arrogância do homem que vive como se Deus não existisse,
leva a explorar e deturpar a natureza, não a reconhecendo como uma
obra da Palavra criadora. Neste quadro teológico, desejo lembrar as
afirmações dos Padres sinodais ao recordarem que o fato de «acolher a
Palavra de Deus atestada na Sagrada Escritura e na Tradição viva da
Igreja gera um novo modo de ver as coisas, promovendo um ecologia
autêntica, que tem a sua raiz mais profunda na obediência da fé, (…)
desenvolvendo una renovada sensibilidade teológica sobre a bondade de
100
Encontros Teológicos nº 59
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Maria Soave
todas as coisas, criadas em Cristo».27 O homem precisa de ser novamente
educado para se maravilhar, reconhecendo a verdadeira beleza que se
manifesta nas coisas criadas”.28
“Nossa fé não é distraída por esta cotidianidade, simplesmente retida
e testada no fogo. Estes lugares da periferia da História nos provocam
para repensar os dogmas da religiosidade do nosso viver cotidiano.
Não se trata de encontrar novos conteúdos, sim de repensar o mistério
a partir de nosso permanecer ao longo dos caminhos periféricos da História. Purificadas de toda a tentação do heroísmo e do extraordinário,
permaneceremos fascinadas pela mesma luz que também os pequenos
e simples podem ver; a mesma que resplandece nos olhos de jabuticaba
madura de quem nunca saiu do bairro onde mora, dos mercados onde
faz biscates ou dos becos das periferias. O que o povo empobrecido
pode ver, ISTO é o objeto da nossa visão profética; assim como era para
os justos do Antigo Israel, seja esse um ramo de amendoeira, ou uma
panela no fogo (Ger 1,11-13), a não ouvida luta dos pobres ou o solene
Templo que emana água do lado e que lembra a ferida que transpassa
a vida dos fracos ( Ez 47,1-2)”.29
6 Conclusão: errar na permanência e permanecer
na errância
Na caminhada da partilha da Vida e da Bíblia através da leitura
popular e contextual destes dois textos vivos, o da Vida e o da Bíblia,
temos que ter consciência do nosso ERRANTE (sem medo de errar!)
PERMANECER às margens, sem reivindicar as honras ou os privilégios
de quem está nos lugares oficiais da pós-modernidade da Sociedade
e, às vezes, quem sabe muitas vezes, da pré-modernidade da Igreja.
São hermenêuticas bíblicas que surgem fora dos “espaços sagrados”,
das mãos, do coração e dos pés dos que não têm nome, cultivadas por
aqueles e aquelas que são conhecidos e reconhecidos por Deus (...). Viver fora dos “espaços sagrados” é a condição não só de quem percorre
o caminho de hermenêuticas populares e contextuais, é a condição de
quem vive profundamente a fome e a sede de justiça e de paz, de quem
procura caminhos de partilha de poderes, na escuta amorosa das dores
27
Cf. Bento XVI, Exort. ap. pós-sinodal Sacramentum caritatis (22 de Fevereiro de
2007), 92: AAS 99 (2007), 176-177.
28
Bento XVI, Exortação Apostólica pós Sinodal Verbum Domini (30 de setembro de
2010), 108.
29
Potente Antonietta, Ibidem, pg. 79.
Encontros Teológicos nº 59
Ano 26 / número 2 / 2011
101
“Ho lógos pachýnetai”: o Verbo abreviou-se
de parto da terra e dos pobres da terra. No exercício de hermenêuticas
populares e contextuais que nos enchem de uma profunda Ausência que
é a essencial saudade de uma Presença, abrasam-se os nossos corações
nos caminhos entre a Jerusalém de nossa História machucada, de nossas
“noites escuras” e a Emaús da experiência de Partilha e Ressurreição em
Jesus, o Cristo (Lc 24,13-25).
Paz!
Vem, Senhor Jesus, não tardes mais! Vem saciar nossa sede de
Endereço da Autora:
Av. Dom Pedro II, 74
Bairro Coral
88509-000 Lages, SC
E-mail: [email protected]
102
Encontros Teológicos nº 59
Ano 26 / número 2 / 2011
Resumo: O artigo começa com a investigação do problema da hermenêutica
da palavra de Deus, na época do movimento do “modernismo” no fim do séc.
XIX e começo do séc. XX. Uma visão de conjunto da Sagrada Escritura trata
dos livros da Bíblia como literatura funcional. A seguir, são abordados os arautos
da palavra de Deus no AT e NT e seu papel na comunidade de fé. A influência
da palavra de Deus, na faculdade do intelecto e da vontade, é determinante no
comportamento humano. A tipicidade cultural, do mundo hebraico e helênico,
desvenda os traços significativos dos respectivos livros bíblicos. Por fim, se
analisa o prólogo do Evangelho de João para apresentar a pessoa de Jesus
Cristo, como personificação da Palavra de Deus na vida trinitária e, na relação
com a humanidade.
Abstract: The article begins by investigating the problem of hermeneutics concerning the word of God in connection with the crisis of the movement of “modernism”
at the end of the 19th and the beginning of the 20th century. A comprehensive view
of the Sacred Scriptures envisages the books of the Bible as functional literature.
The following chapter focuses upon the messengers of the word of God in the
OT and NT taking into account their role in the faith community. Further, the
influence of the word of God on one’s intellect and will is studied so as to find out
why they make their each and every move determining human behavior. New
insight is to be gained by working out the literary approach of the word of God
in the context of disparate cultures and diverse differentiations which occurred
both in Hebraic and Hellenistic thought patterns, which are exemplified in the
biblical books of the OT and NT. In the final chapter the personified word of God
by Jesus Christ is considered by means of a detailed analysis of the Prologue
of the Gospel of John in order to ascertain the divine role within the Trinity and
in the relationship between God and the world.
A Palavra de Deus no Antigo
e no Novo Testamento
Luís Stadelmann, SJ*
*
O autor, Doutor em Línguas e Literatura Semíticas, Cincinnati, e Mestre em Ciências
Bíblicas, é Professor no ITESC.
Encontros Teológicos nº 59
Ano 26 / número 2 / 2011, p. 103-130.
A Palavra de Deus no Antigo e no Novo Testamento
Introdução
Na Assembleia Geral dos Bispos do Brasil, realizada em Brasília em maio de 2010, foi aprofundado o tema: “A Palavra de Deus e a
animação Bíblica da Pastoral”1. Trata-se da autocomunicação de Deus,
fielmente transmitida nas Escrituras e pela Tradição, através da história
religiosa do seu Povo no AT e NT, desde os primórdios da história israelita
até a vinda de Cristo. A partir dali acresceu a dimensão cristológica à
Palavra de Deus do NT, especificando e dando continuidade à soteriologia
do AT. Outras dimensões teológicas enriqueceram a religião bíblica, tais
como a pneumatologia2, a eclesiologia3 e a mariologia4, beneficiando-se
da Sagrada Escritura como fonte de inspiração, conteúdo de mensagens
e redescoberta do dom da vida divina.
Após o Vaticano II (1962−1965), surgiu um renovado interesse
pela Palavra de Deus através do enfoque eclesiológico, como também
pela necessidade de uma metodologia atualizada, facilitando o manuseio
das Escrituras pelos fiéis. Igualmente, no anúncio da fé cristã na liturgia
e na catequese, era vital transmitir a mensagem da salvação divina, proclamada pelos autores bíblicos, sem imiscuir ou sobrepor a experiência
religiosa de alguns pregoeiros fundamentalistas, arvorados em intérpretes
da voz de Deus sem credibilidade na Igreja5. Com a promulgação do
importante documento Dei Verbum sobre a Revelação divina, visava-se,
sobretudo, descortinar amplos horizontes para uma leitura mais autêntica
e proveitosa.
104
1
Nessa Assembleia, do ano passado, foi retomada a temática do Sínodo dos Bispos de
2008: “A Palavra de Deus na missão e na vida da Igreja”, realizado em Roma, 5-26 de
outubro de 2008; documentação em Osservatore Romano 10,17,24,31 de outubro e 7
de novembro. Cf. também http://www.vatican.va (procurar sínodo dos bispos 2008).
2
Ver o doc. Verbum Domini sobre a Palavra de Deus na vida e na missão da Igreja,
da autoria do Papa Bento XVI. (2010), n. 37. Cf. a entrevista com Johan Konings,
publicada em IHU (Unisinos) sobre esse documento, e em Encontros Teológicos nº
58, Ano 26, 2011/1, p. 155-164.
3
Cf. Verbum Domini, n. 50.
4
Cf. Verbum Domini, n. 27, 124.
5
Cf. Verbum Domini, n.44.
Encontros Teológicos nº 59
Ano 26 / número 2 / 2011
Luís Stadelmann, SJ
A hermenêutica da palavra de Deus
Antecedentes históricos de ampla repercussão entre os estudiosos
da Revelação divina, na Bíblia, prepararam o terreno para uma exposição
inovadora, sem condicionamentos pelos debates hermenêuticos. Basta
mencionar as tentativas audaciosas dos pesquisadores, filósofos, teólogos
etc. de compatibilizar a Bíblia com as Ciências modernas: com a cosmologia, evolucionismo, psicologia, dando origem à crise modernista6. O
pivô dessa problemática apoia-se nos seguintes erros básicos: confundir
“intuição” humana com Inspiração; confundir “linguagem” com Palavra
de Deus7; confundir “experiência religiosa” com Revelação divina. Além
disso, estão implicados alguns erros formais: negar a iniciativa divina;
negar a revelação sobrenatural; negar a objetividade da Revelação cristã.
Em suma, tudo não passa de um “discurso” do homem sobre o problema de Deus, segundo suas “intuições” e seus pressupostos. Em outras
palavras, trata-se de mero “antropologismo”, preterindo totalmente o
status do homem como interlocutor privilegiado com o Criador. Não é de
admirar que a sequela de tudo isso, na teologia, a partir da modernidade,
se tornasse a corrente da “morte de Deus” pois, no final, o homem fica
falando de si mesmo. Deus é mera “hipótese” supérflua.
Os reflexos dessa atitude racionalista no protestantismo (17681843) encontram-se, precipuamente, em três filósofos: Kant propõe
o “imperativo categórico” como único fundamento da religião (puro
moralismo); Schleiermacher defende o “sentimento de dependência de
Deus” (puro subjetivismo); Hegel supervaloriza a especulação racio6
Distinguimos entre “modernismo” como doutrina religioso-apologética e o movimento
artístico de vanguarda no âmbito cultural. O “modernismo” como doutrina religiosa,
filosófica, teológica e exegética, professou uma contestação sistemática das estruturas
tradicionais da organização eclesial, causando uma crise na doutrina e nas instituições
da Igreja nos fins do séc. XIX e princípios do séc. XX. Era um movimento inovador que
pretendia acomodar a doutrina eclesiástica às exigências “modernas”; cf. “Modernismo”
em Sacramentum Mundi: Enciclopedia Teológica I-VI, Herder, Barcelona, 1972-76,
vol. IV, p. 765-775. O movimento do “modernismo” teve influência não somente no
catolicismo, mas também no protestantismo e no judaísmo.
7
A fé cristã não é uma “religião do Livro”, mas “religião da Palavra de Deus”, porque não
é uma palavra escrita e muda, mas do Verbo encarnado e vivo” (Verbum Domini, n.
7). Os autores bíblicos mencionados como os antecessores que prepararam a transformação do judaísmo numa “religião do livro” são os redatores “deuteronomistas”,
segundo Th. Römer, A chamada história deuteronomista. Introdução sociológica,
histórica e literária, (Trd. de G. A. Titton), Ed. Vozes, Petrópolis, 2008 (original inglês
2005), p. 176.
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105
A Palavra de Deus no Antigo e no Novo Testamento
nal, propondo o Absoluto como origem de todas as coisas (também da
religião), as quais se especificam na dialética entre tese e antítese (puro
racionalismo). Por conseguinte, a Revelação divina não é obra de um
Deus livre e sábio e, sim, a reflexão do homem sobre o problema de Deus,
fruto de sua experiência religiosa ou existencialista, que será sempre
subjetiva e individual. Não há lugar para a Revelação Cristã.
A consequência do movimento do modernismo na exegese bíblica
é uma hermenêutica equilibrando-se entre fundamentalismo e subjetivismo. Abrange toda a gama de tendência racionalista, inclusive a negação
da inspiração divina da Sagrada Escritura. Segundo o decreto pontifício
“Lamentabili” (1907), os corifeus do modernismo afirmam:
“Se o exegeta quer dedicar-se com proveito aos estudos bíblicos, deve
antes de tudo pôr de lado toda ideia preconcebida a respeito da origem
sobrenatural da Sagrada Escritura e não interpretá-la de outro modo
que os outros documentos humanos”8.
Quanto à autoria divina da Palavra de Deus, os escritores modernistas têm o preconceito de não admitir que os textos da Bíblia sejam
inspirados por Deus: “Demonstram demasiada ingenuidade ou ignorância os que creem que Deus é verdadeiramente o autor da Sagrada
Escritura”9.
Quanto à veracidade e validade perene das verdades religiosas da
Bíblia, afirmam os modernistas:
“Pode-se dizer, sem paradoxo, que nenhum capítulo da Escritura, desde
o primeiro capítulo do Gênesis até o último do Apocalipse, contém doutrina totalmente idêntica à que a Igreja ensina sobre a mesma matéria
e, por isso, nenhum capítulo da Escritura tem o mesmo sentido para o
crítico como para o teólogo”10.
8
9
10
106
Decreto do S. Ofício “Lamentabili”, n. 12, confirmado pelo Papa Pio X (3 de Julho 1907,
cf. Denzinger-Hünermann, Compêndio dos símbolos, definições e declarações
de fé e moral, Ed. Paulinas & Ed. Loyola, S. Paulo, 2007, § 3401-3466, p. 737-743.
Cf. também a Encíclica “Pascendi dominici gregis” de Pio X (8 Setembro 1907), §
3475-3500, ibid. p. 744-753.
Decreto do S. Ofício “Lamentabili”, n. 9.
Decreto do S. Ofício “Lamentabili”, n. 61.
Encontros Teológicos nº 59
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Luís Stadelmann, SJ
A superação da “Crise racionalista” não se fez esperar. Dois fatores
contribuíram de modo decisivo:
a) a descoberta da História da Salvação , que mostra a progressiva
intervenção de Deus na história do homem, acompanhado do
seu desenvolvimento cultural e espiritual. São conhecidas as
etapas da “salvação”: Criação, Promessa, Lei de Deus (Torá),
Profetas, Cristo, Igreja, Parusia. Convém não esquecer, porém,
que não se atribui esta iniciativa a um Deus intervencionista,
como se fosse um auxílio na hora do aperto e, sim, é por causa
da garantia da divina Providência sobre a vida do Povo Eleito,
em virtude da Aliança sagrada.
b) a descoberta dos “gêneros literários próprios” da Bíblia, que,
ao contrário do que supunham os racionalistas e positivistas,
não tinham sentido científico, mas existencial: isto é, não
tencionavam dar “informações científicas” e, sim, estabelecer
“normas de vida”. Já S. Agostinho dizia: “Acaso se lê nos
Evangelhos que o Senhor tenha dito: Eu vos envio o Paráclito
que vos ensinará como andam o sol e a lua? Ele queria formar
cristãos e não matemáticos (cientistas)”11.
A Bíblia como literatura funcional
Os textos bíblicos constituem uma literatura funcional. Por isso,
são meio de expressão da comunidade de fé, concentrando-se na explicitação de diversas vivências religiosas que caracterizam a vida em
comum e, ao mesmo tempo, valorizam-na e abrem perspectivas transcendentes graças à Palavra de Deus. À luz da tradição sócio-religiosa de
várias gerações, estreitam-se os laços de coesão em torno da comunhão
dos fiéis vinculados com Deus pela Aliança sagrada. É através de suas
experiências no campo da vida profissional, política, social, familiar e
bem-estar que se coleta grande parte do material com o qual se reveste
a mensagem das religiões bíblicas. Disso resulta um legado de fé, patrimônio da comunidade de féis, assim orientados no cumprimento de sua
nobre missão na vida como instrumentos para o serviço no mundo, por
serem o Povo de Deus atuando com a força do Espírito Santo. Poderia
11
Cf. A coleção “Migne”: biblioteca de obras da Patrologia: ML 42, 525 (série latina).
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107
A Palavra de Deus no Antigo e no Novo Testamento
parecer que a função precípua desse povo fosse servir de paradigma aos
outros povos mostrando como salvaguardar a verdade. Entretanto, seria
uma pretensão desmedida, se Israel se arrogasse o privilégio de guardiã
da verdade no mundo inteiro. De fato, a missão confiada ao Povo de Deus
foi a de transmitir entre os povos a mensagem de salvação, incluindo
os meios salvíficos acessíveis, como são elencados na Bíblia. Em vista
disso é que as religiões bíblicas (judaísmo e cristianismo) são designadas
como “religiões de salvação”, distinguindo-se de outras religiões do
mundo12. A mediação dos meios salvíficos consiste em proporcioná-los
a toda a humanidade nas comunidades de fé13. Cabe-lhes a missão de
apropriar-se desses meios para serem inculturados na mentalidade dos
respectivos povos, adotando-os como mistagogia (iniciação) da fé revelada14. Um olhar de conjunto abrange as multifacetadas e diferenciadas
áreas de formação religiosa e cultural, explicitadas nos livros bíblicos
para fornecer subsídios de inculturação das doutrinas da fé.
Várias dimensões são aprofundadas a partir de um propósito
inteiramente positivo e construtivo: a) a organização da comunidade
de fé do Povo Eleito: Pentateuco; b) a promoção humana e social:
livros históricos; c) a solidariedade existencial: livros proféticos; d) a
integração social dos refugiados: livro de Rute; e) a defesa dos direitos
humanos: livro de Josué; f) as instituições de justiça: livro dos Juízes;
g) a comemoração de festas sazonais: o tempo de salvação é chamado
108
12
Diversos tipos de religião: 1º religiões de integração (povos primitivos, siberianos,
ameríndios, indígenas brasileiros, oceânicos, australianos, africanos); 2º religiões
de servidão (antigo Egito, Mesopotâmia, indo-europeus: celtas, eslavos, germanos,
gregos, romanos, semitas: cananeus, antiga China, Japão, astecas, mayas, incas);
3º religiões de libertação (de Mani, gnosticismo, antiga Índia, hinduísmo, budismo,
jainismo, budismo chinês, budismo japonês, budismo tibetano, confucionismo); 4º religiões de salvação (masdeísmo, de Israel, cristianismo, islamismo). Cf. W.O. Piazza,
Religiões da Humanidade, Ed. Loyola, S. Paulo, 2. ed., 1991. Hoje em dia, acontece
uma evolução da religião islâmica que está descambando para uma religião de servidão
em consequência dos grupos islâmicos do Afeganistão, Indonésia e Líbia. Veja-se
L. Stadelmann, “Religiões bíblicas baseadas na Aliança Sagrada”, em Encontros
Teológicos, Ano 26, Nº 58, 2011/1, p. 93-106, esp. p. 105.
13
Convém lembrar o fato de que os indivíduos que perderam sua identidade religiosa
serão presa fácil de outras crenças ou sucumbem ao indiferentismo quanto à prática
da religião, haja vista as dez tribos de Israel que foram exiladas de sua pátria em 721
a.C. e deportadas para a Assíria (2Rs 17,6; 18,11), e cuja sobrevivência como Povo
Eleito se perdeu nas brumas do passado.
14
A mistagogia ou inculturação da fé revelada foi amplamente aprofundada no Catecismo
da Igreja Católica (1993), n. 1234-1245. Ver também o documento pontifício Verbum
Domini do Papa Bento XVI. (2010), n. 114.
Encontros Teológicos nº 59
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Luís Stadelmann, SJ
καιρος − kairos; h) a coesão social do Povo de Deus: Cântico dos
Cânticos; i) os ritos fúnebres: Jz 11,30-40: morte da filha de Jefté; j) os
rituais de propiciação em situações de crise: luto nacional pela queda
de Jerusalém: Lamentações; k) a formação dos noivos: livro de Tobias;
l) a instituição da família: livro dos Provérbios; m) a formação religiosa
dos fiéis: livros de Eclesiastes, Sirácida e Sabedoria; n) as situações de
limite: livro de Jó; o) as solenidades do culto religioso: livro do Levítico;
p) as celebrações litúrgicas: livro dos Salmos; q) as diretrizes e normas
éticas do Povo de Deus: Decálogo; r) as comunidades cristãs: Evangelhos
e Cartas do NT; s) história da Igreja: Atos dos Apóstolos; t) reflexões
sobre o fim do mundo e a escatologia: Apocalipse.
Os arautos da palavra de Deus
A difusão da Palavra de Deus é obra do Espírito Santo com a
participação da comunidade de fé e de seus arautos, cujo ministério
é o anúncio dessa palavra no contexto da religião15. Esses arautos são
chamados a proclamar a mensagem a todas as comunidades do Reino de
Deus16. No AT trata-se da mensagem soteriológica e, no NT, da mensagem
cristológica. São dois tipos de mensagem clarificando o sentido para
os seus contemporâneos. A comunidade dos fiéis espera desses arautos
que exerçam o ofício de falar de Deus em termos de autocomunicação:
θεο−λογειν, i.e. Deus falando ao homem, dizendo o que dele quer, e não
o homem falando de Deus, dizendo o que o homem pensa d’Ele. Além
disso, esses arautos têm o domínio da palavra do teólogo, como também
o domínio da interpretação que eles exercem em diversos níveis: histórico, litúrgico, sacramental, ético, sapiencial, querigmático, profético e
escatológico17. A mensagem proclamada por eles tem cunho teológico
e não mera erudição. Distinguimos, porém, entre a mensagem divina,
propriamente dita, e as rubricas; entre o teor do anúncio e os preâmbulos;
entre os protagonistas e o cenário.
15
A comunicação de Deus assume diversos significados, mas relacionados entre si
(Verbum Domini, n. 7).
16
Os destinatários da mensagem salvífica são as comunidades de fé e não os ouvintes
avulsos, porque esses não foram devidamente inseridos no convívio social dos fiéis
nem na vivência dos valores religiosos na celebração do culto divino.
17
B. Lonergan, Método en teología, (Trd. de G. Remolina), Ed. Sígueme, Salamanca,
2. ed. 1994, cap. “Creencia religiosa”.
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A Palavra de Deus no Antigo e no Novo Testamento
Os arautos da mensagem da salvação recebem da comunidade de
fé o ministério do anúncio da Palavra de Deus como carisma do Espírito Santo: “A missão de anunciar a Palavra de Deus é dever de todos
os discípulos de Jesus Cristo, em decorrência do seu batismo” (Verbum
Domini, n. 94). Quem discerne entre o carisma e a autopromoção social
dos arautos é a piedade espontânea do povo18 e a sabedoria prática dos
líderes pastorais19. No AT eram os profetas, sacerdotes, levitas, “sábios”
(hebr, sefarîm), exercendo o ofício de escribas e mestres. Por ocasião da
convocação das lideranças do judaísmo, no sínodo de Jámnia (em 90
d.C.), iniciou o movimento literário entre os rabinos pelo período de
várias gerações. Esses rabinos eram conhecidos como “Tanaîm e Amoraîm”, cujos escritos foram coletados no Talmud Palestinense em 400 d.C.
Atualmente, os mestres da tradição bíblica do judaísmo são os rabinos(as)
das diferentes correntes judaicas: ortodoxos, conservadores e liberais.
No Catolicismo, sobressai a comunidade de fé como sujeito portador do
carisma, no interior da qual emerge a função magisterial. Lembremos,
porém, que o múnus eclesial do ensino está em estreita relação com a
administração dos sacramentos e o ministério do culto religioso. Associados ao múnus eclesial são os catequistas, como também os portadores da
tradição oral cristã, os mestres carismáticos e/ou pregadores missionários,
sem esquecer os anônimos “doutores” (διδασκαλοι) no início da era
cristã. O vínculo de ligação entre a Igreja docente e discente (Ecclesia
docens et discens) é o magistério da Igreja que tem a incumbência de
zelar pelo patrimônio da fé, da tradição cristã e da celebração litúrgica
contra adulteração ou acréscimos indevidos20.
Na religião cristã, a Palavra de Deus se torna histórica ao longo
da existência da Igreja (Verbum Domini, n. 17), é litúrgica no culto religioso (Verbum Domini, n. 52), é sacramental na celebração litúrgica
(Verbum Domini, n. 53), é ética na práxis existencial do cristão (Verbum
110
18
A piedade espontânea do povo corresponde ao “senso da fé” (sensus fidei) [cf. “Lumen Gentium” Vat. II, n. 12], isto é, o senso sobrenatural de todo o povo católico, o
que implica a unanimidade da fé cristã quanto às coisas essenciais, a liberdade nas
coisas secundárias e, em todas, a caridade.
19
No AT vigorava um critério para discernir entre profeta autêntico e falso, mas só após
a morte havia a comprovação; veja-se o milagre do ressuscitamento de um morto
pelo contato com a ossada de um profeta (2Rs 13,21).
20
Ver as Cartas Pastorais que constam no “Corpus Paulinum” do NT: 1Tim, 2Tim e
Tito.
Encontros Teológicos nº 59
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Luís Stadelmann, SJ
Domini, n. 42), é sapiencial na espiritualidade (Verbum Domini, n. 37), é
querigmática no anúncio da fé (Verbum Domini, n. 105), é profética na
pregação (Verbum Domini, n. 60), é teológica na exposição sistemática
dos temas da fé (Verbum Domini, n. 31), é escatológica em relação ao
sentido definitivo da história (Verbum Domini, n. 51). Além disso, a
Palavra de Deus é veiculada pela religião por meio de conceitos e significados que o contexto cultural do mundo nos mediatiza. Entretanto,
a Palavra de Deus proclamada pela religião não pertence ao mundo
mediatizado, mas ao mundo da imediatez, isto é, da relação interpessoal
de Deus com os fiéis. A proclamação da Palavra de Deus proporciona
a experiência da bondade divina aos que a acolhem e a ela respondem
com fé e sentimentos de amor agradecido.
Influência da palavra de Deus
Na espiritualidade do cristianismo, veio a difundir-se a vocação
cristã em termos de “seguimento de Cristo como discípulo”. Na prática,
significa assumir com docilidade as virtudes fundamentais de Cristo para
impregnar todas as dimensões conscientes e inconscientes, instintivas e
volitivas, racionais e afetivas. Sua aplicação na metodologia do ensino
das normas éticas da religião cristã consiste no imperativo baseado no
seguimento de Cristo, em contraste com o “imperativo categórico” (Kant)
como único fundamento da religião. É de notar que não vem a ser um
intimismo substituindo o autoritarismo, nem se trata de um personalismo
em lugar de um mandato. A novidade está no cumprimento da proposta
divina, incluídas as suas exigências. É que o vínculo de união entre
Deus e seu povo implica um compromisso que consiste na obediência,
da parte dos fiéis, e na proposta divina de salvação, da parte de Deus.
O seguimento é de natureza cristológica por ser uma ação espiritual do
Cristo Ressuscitado, a não ser confundido com o sentimento de nostalgia evocando Jesus Nazareno como Superstar aclamado pela ovação de
multidões entusiasmadas.
A expressão literária do apelo para o seguimento de Cristo: “Segueme!” ακολουθει µοι − akoluthei-moi (Mt 9,9) é diferente do “imperativo
categórico” por ser um convite para a adesão: “segue-me como discípulo!”. Esse convite é repetido várias vezes, até conseguir aliciar a opção
da faculdade volitiva, e despertar uma adesão positiva ou, então, franco
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111
A Palavra de Deus no Antigo e no Novo Testamento
repúdio. Daí que a palavra de Deus, falando ao homem, expressa seu
desejo e, então, temos a vontade de Deus como causa determinante da
nossa vontade21. Trata-se, portanto, da palavra divina que faz exigências,
em contraste com palavras humanas faladas a esmo. Podemos citar, a
propósito, o texto da Carta aos Hebreus:
A Palavra de Deus é viva, eficaz e mais cortante do que qualquer espada
de dois cumes. Penetra até dividir alma e espírito, articulações e medulas.
Ela julga os pensamentos e as intenções do coração. E não há criatura
que possa ocultar-se diante dela. Tudo está nu e descoberto aos seus
olhos, e é a ela que devemos prestar contas (Hb 4,12-13).
Em suma, trata-se da autocomunicação de Deus para a salvação
do homem, cujo requisito sine quo non é o discernimento da motivação
moral, lembrando-nos de concentrar-nos nas condições que influem na
vida pessoal. É preciso que demos atenção ao nosso temperamento: colérico, irascível, egoísta, burguês. A convivência social dos cristãos requer
entrosamento sem abrigar atitudes anti-sociais. Os condicionamentos da
nossa motivação incrementam ações meritórias, ou ações culposas.
A palavra de Deus e o âmbito cultural
O meio de comunicação entre os homens é a língua, o uso de
palavras para transmitir ideias. Os filósofos gregos foram os primeiros
a perguntar pela origem das ideias. Segundo Platão (427-347 a.C), as
ideias seriam inatas, ao passo que seu discípulo Aristóteles (384-322
a.C.) tem outra explicação. Seu ensino sobre o conhecimento intelectivo
é inegavelmente inovador, porque se funda no sensitivo, de sorte que as
ideias são extraídas das sensações por meio do procedimento abstrativo22.
É de notar, porém, que nesse procedimento não acontece um depauperamento dos dados sensíveis, antes, pelo contrário, há um enriquecimento
112
21
Cf. Márcio Bolda da Silva, Parâmetros de Fundamentação Moral, Ética Teológica ou
Ética Filosófica, Ed. Vozes, Petrópolis, 2005, p. 136.
22
B. Mondin, Introdução à Filosofia. Problemas, sistemas, Autores, Obras, (Coleção
Filosofia 2), Ed. Paulus, São Paulo. 17. ed., 2009, p. 21-39. Ver também Carlos Cirne
Lima, Dialética para Principiantes, Ed. Unisinos, São Leopoldo, 3. ed. 2005, cap.
“Metafísica do Conhecimento” p.71-73.
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que os transcende. E já que a abstração vai além do campo sensitivo23,
penetramos na área do intelecto agente que extrai a Forma inteligível,
acrescentando um componente ao conhecimento que não existia no
nível do sensitivo ou da imaginação. Aí é que entra o aspecto daquilo
que é significativo, relevante, importante, essencial: a ideia. Por outro
lado, omite-se o que é insignificante, irrelevante e meramente acidental.
Em suma, do processo abstrativo resulta a idéia, que oferece o sentido/
significado ou a inteligibilidade da coisa sensível real, representada na
imagem. É notável o mundo luminoso que se abre ao conhecimento intelectual, ao revelar o sentido da realidade, removendo o véu tenebroso
que a encobre àqueles que não têm essa prerrogativa24.
Estudando o papel dos sentidos na metafísica do conhecimento,
deparamos com dois pontos de partida bem distintos. No pensamento
hebraico, da cultura semita, a supremacia cabe à audição. Na cultura
helênica, como também, em todo o pensamento ocidental, o mais importante é o sentido da vista. Daí que a fonte suprema é a natureza, a qual
está diante de nós como algo para contemplar-se, para ver e, não, para
ouvir. Por conseguinte, o sentido da vista exerce o papel preponderante
para suscitar ideias.
Ao aplicarmos os critérios do conhecimento ao contexto do mundo hebraico e helênico, enfrentamos a questão da mensagem que Deus
instila, mediante as ideias, na mente humana. Lembremos que existem
dois tipos de ideias: unívocas e análogas, na mente das diversas pessoas.
Assim, por exemplo, ideias unívocas são aplicadas a imagens concretas
da natureza, mas são análogas às ideias e palavras aplicadas a Deus.
Tomando por exemplo a ideia de “pai”: se for usada para qualificar um
ser humano, trata-se de uma ideia unívoca, mas se for aplicada a Deus,
temos então uma ideia análoga, porque significa, nos dois casos, algo
parcialmente idêntico e parcialmente diverso. Uma fonte fértil de ideias
análogas encontra-se no livro dos Salmos que usam muitas metáforas
aplicadas a Deus para traçar seu perfil de modo sugestivo, aos orantes do
23
Bernard J. F. Lonergan, Insight. A Study of Human understanding, Philosophical
Library, New York, 1958, p. 89, 311.
24
Cf. J.M. Bochenski, Diretrizes do pensamento filosófico, Ed. Herder, S. Paulo, 1961,
p. 53. Ver também a dimensão da práxis comunitária que se abre à racionalidade
ética, por João Augusto A. A. MacDowell, “Ética Política: Urgência e Limites”, em
Síntese (nova fase), Janeiro-Março 1990, p. 7-34.
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A Palavra de Deus no Antigo e no Novo Testamento
Povo Eleito25. Com efeito, os salmistas não visam oferecer uma opulência
literária de conceitos e enunciados e, sim, querem caracterizar a presença
de Deus na liturgia e na oração pessoal. Entretanto, o fator decisivo na
criatividade cognoscitiva não é meramente subjetivo, mas resulta do
estudo pessoal e do ensinamento transmitido em casa e na catequese.
A palavra de Deus no mundo hebraico (AT)
Os livros da Bíblia são os textos originais que contêm a “Palavra
de Deus e fazem ouvir a voz do Espírito Santo através das palavras
dos profetas e dos apóstolos” (Dei Verbum, n. 21). Como tal, a Bíblia é
mais do que um acervo bibliográfico das religiões bíblicas do Antigo e
Novo Testamento. Na verdade, “são palavras sobrenaturais” por serem
manifestações do pensamento divino que se fazem ouvir aos sentidos
externos, aos sentidos internos ou diretamente à inteligência. Chamamse auriculares, quando são vibrações milagrosamente formadas que
ressoam aos ouvidos; imaginárias, quando se fazem ouvir à imaginação;
intelectuais, quando se dirigem diretamente ao entendimento26.
Na religião bíblica do AT e NT se transmite a autocomunicação de
Deus ao seu povo como destinatário da mensagem divina. Não entram em
questão a especulação humana nem as reflexões avulsas de indivíduos ou
grupos, de outros povos, para comprovar a autenticidade dessa mensagem. Apenas posteriormente, na fase da redação por escrito, os autores
bíblicos consultam as obras nas literaturas antigas para a finalidade de
encetar um diálogo inter-religioso, como no caso dos livros poéticos da
Literatura Sapiencial da Bíblia27.
Desde o início do Povo Eleito, é Moisés que se destacou como
legislador da comunidade de fé em Israel, constituído de hebreus às
margens do rio Nilo no Egito. É bom lembrar que esses hebreus não se
114
25
Luis I.J. Stadelmann, SJ, “Perfil de Deus nos Salmos”, em Encontros Teológicos,
Ano 23, Nr. 50/ 2, 2008, p. 63-78.
26
Ad. Tanquerey, Compêndio de Teologia Ascética e Mística, Livraria Apostolado da
Imprensa, Porto, 5a. ed. 1955, n. 1494.
27
Os livros sapienciais da Bíblia têm a finalidade de criar uma mentalidade universalista
entre os israelitas para evitar que adotem uma mentalidade exclusivista e sectária
em face de outros povos; do contrário, esses não chegariam ao conhecimento do
desígnio salvífico de Deus a respeito da humanidade.
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restringiam a grupos étnicos unicamente de proveniência racial semita
e, sim, integravam ádvenas de outras origens (egípcia e hitita). Surgiu
então o desafio de fazer um tecido social que inserisse a todos no conjunto
coeso dos “filhos de Israel” (benei yisra’el). O porta-voz da Palavra de
Deus dirigida à comunidade dos fiéis era Moisés. Sua família pertencia
à tribo de Levi, cujo ancestral era Jacó (Ex 2): tinha, portanto, origem
israelita autóctone como descendente dos Patriarcas e membro da Aliança
entre Deus e Abraão (Gn 17).
A liderança sobre o povo de Israel era uma missão que Deus lhe
concedeu, e era reconhecida por todos graças à autoridade de cima. Como
portador da Palavra de Deus, a autoridade de Moisés era incontestada
pelos israelitas e, também, pela corte do faraó. Daí que suas diretrizes e
normas tinham força de lei, tanto aquelas que foram ditadas de viva voz,
no monte Sinai, ou aquelas que posteriormente foram adaptadas de outros
povos. Igualmente eram acatadas as palavras dos detentores de um ofício,
seja institucionalizado (sacerdote, levita) ou não (profeta, sábio, mestre
ou escriba), porque desempenhavam a importante função de transmitir as
tradições religiosas preservando e desenvolvendo a mensagem salvífica.
É importante não esquecer a inestimável contribuição da celebração litúrgica, para inculcar a doutrina e as práticas religiosas na mentalidade
dos fiéis, mediante a recitação dos Salmos e das antífonas responsoriais
do coral, acompanhado pelas melodias e cânticos sacros. Em virtude
das orações litúrgicas, recitadas em coro e, por vozes alternadas, os fiéis
faziam suas as palavras das preces comunitárias, e se imbuíam da Palavra
de Deus. Fator determinante da liturgia é a proximidade de Deus, que
se debruça do alto do céu, para marcar presença junto ao altar quando
os fiéis se reúnem para ratificar a Aliança sagrada no rito do sacrifício.
É notável a ênfase dada à presença divina na liturgia, pois 96 vezes se
invoca nos Salmos o “Nome” (em hebr. šem)28. Com efeito, não existe
recurso literário mais expressivo para dialogar com Deus, na oração,
a não ser apelando para sua presença personalizada. Precisamente na
celebração litúrgica, os fiéis entram em diálogo com Deus, fazendo com
que a religião se torne viva.
A função cultual do “Nome” é importante, sobretudo no que diz
respeito à expressão verbal, no diálogo entre fiéis e Deus durante a
28
Cf. L. Stadelmann, Espiritualidade Bíblica, Ed. Loyola, São Paulo, 2009, p. 119-121.
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A Palavra de Deus no Antigo e no Novo Testamento
oração litúrgica. Ali a palavra é meio de comunicação interpessoal e,
quando falada em voz alta, assume a forma de proclamação no âmbito
comunitário. Quem ouve as palavras recitadas por outros, redobra sua
convicção de que Deus as ouve e, também, responde. Com efeito, Deus
dirige-se aos homens em linguagem humana, falada por seres humanos29.
O motivo de Deus abrir-se a nós, em nossa própria linguagem, é o fato
de Ele querer transmitir uma revelação pessoal. Para ouvi-la, compete
a cada um dos fiéis unir-se à comunidade na escuta da Palavra de Deus,
na colaboração para a sua vida religiosa e no apoio efetivo à promoção
do bem comum. Desta abertura para a comunidade dos fiéis e para o
Reino de Deus resulta a verdadeira transcendência do “eu” para o outro, fazendo com que se ouça a voz de Deus, vinda tanto do alto como
de baixo, pois Deus fala por meio do ser humano, cuja natureza é um
tecido de nobreza e miséria, de elevação e mesquinhez. Ele se dirige ao
homem cheio de defeitos e fraquezas, ora turbado pelo pecado ou pela
luta interior, ora zeloso pelo bem e, de novo, fraco e desalentado. É assim
que a liturgia o vê e acolhe, é assim que o encontramos nas orações da
comunidade dos fiéis.
Em função do culto, o indivíduo assume as ideias litúrgicas. Ele
tem de superar seus objetivos pessoais para adotar as práticas da comunidade de fé reunida na liturgia. Assim, ele terá de participar da oração
de ação de graças e de louvor, embora seu estado de alma seja a aridez
do deserto; ele terá de se expressar nas súplicas formuladas em situações
de opressão e de injustiça, apesar da preferência de sua sensibilidade
espiritual por atitudes passivas, desvinculadas do destino histórico da
grande massa da humanidade. Desta forma, a comunicação interpessoal
com os fiéis, cujas súplicas são ditadas pelas necessidades da existência
de cada homem, é mediação litúrgica para dialogar com Deus, como é
um caminho para o encontro com Deus na liturgia e na vida.
Uma inovação sem igual na história das religiões da Antiguidade
é a edição das Sagradas Escrituras na Bíblia em formato completo, sem
expurgos e, sem omissões e lacunas30. É este o patrimônio das religiões
116
29
Sobre toda esta temática, ver L. Alonso Schökel, A Palavra inspirada, Ed. Loyola,
São Paulo, 1992, p. 35.
30
Em contraste, veja-se a edição de alguns livros sacros dos Vedas, em forma truncada
e em língua ininteligível, originando variadas interpretações exotéricas que eivaram
as crenças da religião hinduísta.
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bíblicas e seu legado a toda a humanidade. Ora, antecedentes históricos
confirmam a regra, porque a Bíblia dos samaritanos era uma edição expurgada, constituída apenas do Pentateuco, excluídas: a 2ª. parte, dos
Profetas: “anteriores” (Livros históricos) e “posteriores”: (Livros proféticos), e a 3ª. parte, dos Escritos (Salmos e os Livros sapienciais).
Quando os samaritanos omitiram a 2a. Parte da Bíblia: os Profetas:
“anteriores” (Livros históricos) e “posteriores” (Livros proféticos), abriuse-lhes uma lacuna: faltou-lhes o relato sobre a meta do Povo Eleito ao
entrar na Terra Prometida, após a saída do Egito. É esse o aspecto que
se encontra nos Livros históricos da Bíblia. Trata-se da narração sobre
o desafio que o antigo povo de Israel teve que enfrentar na configuração
sócio-econômica, sócio-política c sócio-cultural dos habitantes dentro da
conjuntura da Palestina sob a hegemonia dos grandes impérios, desde o
final do milênio II, até o final do milênio I a.C.31 Se os israelitas tiveram
condições favoráveis à sua sobrevivência durante tantos séculos, era de se
prever que, no futuro, teriam também boa chance de constituir comunidades de fé em meio às mais diversas situações históricas da Antiguidade.
É importante notar a intenção dos autores sacros da Bíblia de salientar
o nexo entre o Pentateuco e os Livros históricos32, quando relataram a
continuidade entre a vida nômade no Êxodo e o re-assentamento dos
migrantes israelitas na terra de Canaã. Do ponto de vista da teologia bíblica do AT, era preciso mostrar o impacto de dois princípios da religião:
Eleição divina e Aliança sagrada, na existência do Povo Eleito. Visavase evidenciar como a “palavra de Deus”, enunciada no Pentateuco, era
comprovada por “fatos” nos Livros históricos.
Além disso, quando eliminaram os Livros proféticos, os samaritanos não se deram conta de que, na edição truncada de sua Bíblia, faltava
a perspectiva do Messianismo e a esperança na vinda do Profeta de Javé
a serviço das massas, o que é essencial na tradição religiosa da Bíblia.
Coube aos profetas de Israel a tarefa de orientar as lideranças da nação,
tanto no Reino do Norte como no Reino do Sul de Israel, na organiza31
Entre os impérios do antigo Oriente Médio do I. milênio a.C. tinham a hegemonia os
seguintes: Assíria, Babilônia, Egito, Pérsia, Grécia helenista, Roma.
32
Já o filósofo holandês Spinoza chamava a atenção para este tema em seu Tractatus
theologico-políticus (1670): “Tudo quanto está escrito nos livros que temos tem o único
objetivo de expor as palavras e leis de Moisés e comprová-las através de acontecimentos históricos”, qpud Th. Römer, op. cit. p. 23.
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A Palavra de Deus no Antigo e no Novo Testamento
ção político-social dos habitantes israelitas dentro dos moldes de uma
comunidade ética. Volta e meia, as profecias inculcavam as diretrizes e
alertavam contra deturpações, quando em Israel surgiram tentativas de
implantar sistema governamental semelhante ao dos governos paganizantes de Canaã.
É importante notar o tema típico dos oráculos dos profetas vaticinando que o Messias haveria de vir na figura do “Servo sofredor de Javé”,
o Messias-Mártir33. Não é só o Dêutero-Isaías (Is 40-55), mas também o
Trito-Isaías (Is 56-66) e Zacarias associavam a mensagem de salvação
por intermédio de um “Ungido”(Mashiah), termo técnico para designar
a função do líder da comunidade de fé do antigo Israel.
Em suma, a Palavra de Deus precisava de uma redação, por escrito,
como meio indispensável para que o portador da mensagem da salvação
pudesse comunicar às comunidades dos fiéis todo o patrimônio da revelação divina. Eis, portanto, o mérito dos autores da “História Deuteronomista”, que nos transmitiram a Torá do Pentateuco como Palavra de Deus
do AT, em combinação com os livros bíblicos do Deuteronômio, Josué,
Juízes, Samuel e Reis34, fornecendo subsídios valiosos a todos quantos
procuram encontrar uma resposta ao problema da origem, continuidade
e perene atualidade da História da Salvação.
A palavra de Deus no mundo helênico (NT)
Quando a Palavra de Deus estava em vias de inculturar-se na
mentalidade dos cidadãos do mundo helênico, visando cristianizá-los
para se tornarem discípulos de Cristo − deixando de ser meros ouvintes
avulsos à cata de novidades35, ou procurando matar a curiosidade −,
os portadores da fé cristã não mediram esforços para transmitir-lhes a
mensagem da salvação, através da linguagem e da mentalidade da cultura
helênica, em voga nas comunidades de fé. Não é de admirar-se que Paulo
apóstolo fizesse questão de usar a língua grega, porque era o meio de
118
33
Os quatro oráculos do profeta Isaías são profecias sobre o Messias-Mártir na figura do
“Servo sofredor de Javé”: 1º Is 42,1-4; 2º Is 49,1-6; 3º Is 50,4-9; 4º Is 52,13-53,12. Esta
figura do Messias-Mártir distingue-se de outras figuras do AT: Messias-Rei; MessiasSacerdote; Messias-Profeta; Messias transcendente; Messias nacionalista.
34
Th. Römer, op. cit., p. 178-182.
35
Cf. a observação de Lucas, sobre os atenienses no Areópago: At 17,21.
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comunicação em vigor, na liturgia dos cristãos. Poderia parecer que se
tratasse apenas de uma nova abordagem de temas bíblicos, quando, na
realidade, era uma nova fase: a história salvífica universal, substituindo
a história salvífica particular em vigor no AT.
A evangelização, por via oral, completava-se pela redação da
Palavra de Deus, por escrito, como um meio indispensável para o leitor
poder conferir a temática em questão, assimilar o conteúdo, aprofundar
o assunto, e transmitir a mensagem à posteridade quando o pregador
estivesse ausente. Além disso, havia a questão crucial, na fase inicial
do cristianismo, de assegurar a interpretação fidedigna da Palavra de
Deus e transmiti-la sem distorções aos catecúmenos. De valor inestimável é a contribuição dos escritores cristãos da Antiguidade com
obras valiosas para a literatura mundial, seletas na “interpretação“ da
Palavra de Deus nas Sagradas Escrituras. Vale a pena conferir a famosa
coleção “Migne” de patrologia, com 388 volumes:166 em grego (MG)
e 222 em latim (ML)36.
Os temas dessa vasta literatura antiga foram publicados pelos
escritores não por mero interesse de divulgar obras de erudição e, sim,
para fornecer subsídios para a pesquisa, e incentivar o estudo das doutrinas cristãs. A título de atualização dos temas da Bíblia, lembremos
que S. Paulo nos ensina que as comunidades cristãs são portadoras não
só da fé e da religião, como ingredientes básicos da felicidade de todos
os povos, mas também dos valores da cultura e civilização numa perspectiva humanista (Fl 4,8)37. A fim de superar a inércia e incentivar
maior iniciativa, o apóstolo Paulo exortava os cristãos a assumirem
atitudes de “ousadia” (em grego: παρρησια − parresia), através
de um engajamento efetivo (1Ts 2,2).
O papel de Paulo apóstolo era decisivo não apenas na difusão do
cristianismo entre os povos pagãos, assumindo a continuidade da História
da Salvação desde o povo de Deus do Antigo Testamento, mas também
explicitando sua descontinuidade no Novo Testamento. Com efeito,
36
A coleção “Migne” consta de obras em grego e latim, como também em siríaco, copta,
armênio e árabe.
37
Sob o reinado do imperador Vespasiano (69-79 d.C.) ocorreu a expulsão de todos
os filósofos de Roma que foram exilados para províncias distantes; cf. W. Bréhier,
The Hellenistic and Roman Age, Phoenix Books, The University of Chicago Press,
Chicago & London, 1965, p. 152.
Encontros Teológicos nº 59
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A Palavra de Deus no Antigo e no Novo Testamento
devido aos meios de mediação da salvação divina, até então inusitados,
impôs-se a tarefa de dar prioridade à ação de Cristo Ressuscitado e do
Espírito Santo. Era essa uma inovação da religião cristã em benefício de
todos os povos. Lembremos, também, que os cristãos eram, em parte,
convertidos do judaísmo, mas, em maior número, catecúmenos provindos
do paganismo. Todos precisavam ser inseridos na comunidade cristã,
sem discriminação entre uns e outros, e sem nivelação para baixo e,
sim, pela elevação ao status de “filhos adotivos de Deus e herdeiros de
Cristo” (Rm 8,15-17).
Cartas do Novo Testamento
A novidade introduzida por S. Paulo na literatura do NT e adotada
em todas as Cartas do Novo Testamento é o estilo discursivo. Os escritos
cristãos mostram ao vivo o método de evangelização por meio de um
diálogo inter-religioso que era conhecido então nos meios acadêmicos
como “diatribe”, encenando um debate entre dois locutores. O leitor dessas diatribes não é mencionado (p. ex. caro leitor) e, tampouco, tomava
parte nos discursos e, nem era citado entre os personagens da cena, mas
ficava distante, como observador, como se estivesse sentado no auditório
entre os ouvintes, atento à sequência das ideias e à lógica do pensamento.
Era um método participativo para assimilar a mensagem transmitida no
texto, concordando ou discordando do conteúdo. Para Paulo apóstolo, era
um recurso literário para ensinar doutrinas sem recorrer à polêmica ou
controvérsia, e, também, com a finalidade de oferecer respostas às dúvidas
e objeções levantadas pelos ouvintes. Além do método inovador usado
por S. Paulo, é importante notar o conteúdo da doutrina cristã ensinada.
Os Escritos Paulinos são Palavra de Deus dirigindo-se a nós, através
das categorias teológicas mais elaboradas, como p.ex.: “justificação,
reconciliação, eucaristia, libertação, redenção, graça santificante, corpo
místico, perfeição cristã, experiência espiritual, virtudes infusas, dons do
Espírito Santo, mística cristã, cristologia, eclesiologia, escatologia”, etc.
em uso na comunidade litúrgica dos cristãos nos primeiros tempos.
O assunto fundamental da pregação de S. Paulo é o evento da
“crucifixão e ressurreição de Cristo” (Rm 6), e a “implantação da Igreja”
como instituição, diferente radicalmente de mero “movimento religioso”.
O núcleo da pregação paulina não é a vida terrena de Jesus de Nazaré,
120
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para não se fixar numa biografia sobre o seu perfil, evocando seu itinerário
pelas regiões da Palestina, mas valorizando o fato da obra de redenção
realizada na encarnação do Filho de Deus e, mais ainda, no gesto culminante de sua doação por amor a Deus e aos homens na Cruz,coroada
pela Ressurreição. Com este Cristo os fiéis se relacionam de maneira
vivencial, pela adesão pessoal e participativa nos sacramentos.
Fator importante para visibilizar temas religiosos na evangelização
é o conjunto de atitudes marcantes nos fiéis. Por isso, em cada epístola
paulina, como também, nas Cartas Católicas, consta a exposição doutrinal seguida pela parte parenética (exortativa): a vida cotidiana dos
cristãos dava credibilidade pública à religião bíblica do NT. A técnica
de visualização tem por finalidade salientar o papel do Reino de Cristo,
isto é, a Igreja, pondo-se a serviço do Reino de Deus que é invisível no
mundo por ser de natureza espiritual. Aliás, a meta de toda a atuação
dos cristãos no mundo não tem por objetivo pregar a Igreja como tal e,
sim, o Reino de Deus a cujo serviço está a Igreja.
Lembremos a ênfase de uma característica fundamental do NT, a
saber, o chamamento de Deus para a colaboração com o Espírito Santo
na obra de salvação. Trata-se efetivamente de uma inovação na religião
bíblica, da qual os fiéis não podem eximir-se, tampouco da obrigação
de fazer algo a mais. Alguns contentam-se com a vivência da fé, quando
na realidade deveriam cooperar com a ação do Espírito Santo nesta obra
(Mt 28,18-20). É de notar que eles acalentam dentro do próprio coração a
presença do Espírito Santo, graças ao batismo e à confirmação, em virtude
da vinculação permanente com Ele. No AT tratava-se da instituição do
Povo Eleito, e do seu objetivo de integrar os israelitas na comunidade de
fé e na comunidade ética, mantendo sua continuidade na história até a
vinda de Cristo. Entretanto, com o surgimento do cristianismo começou a
desdobrar-se o âmbito restrito da história salvífica particular do AT. Pois o
particularismo foi substituído pelo alcance universal da história salvífica,
abrangendo todos os povos, estendendo-se para além das fronteiras do
regionalismo palestinense, e assumindo os parâmetros do universalismo
englobando todos os povos. Na verdade, a religião bíblica é chamada
a apregoar a obra de salvação para todo o mundo e partilhar os dons
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A Palavra de Deus no Antigo e no Novo Testamento
da salvação divina a todas as criaturas. O novo desafio é inculturar, na
mentalidade dos jovens e adultos, a novidade da fé cristã, em resposta
aos anseios da natureza humana clamando pela graça de Deus38.
Os Evangelhos
Os evangelistas relatam a vida terrena de Jesus e salientam a encarnação do Filho de Deus no mundo, seu martírio na cruz e sua ressurreição. Os acontecimentos históricos da obra salvífica de Jesus Cristo são
acrescidos da sua Palavra, que os explica: ambos, necessários para haver
revelação divina no cristianismo. Isso contrasta com o paganismo, onde
se admite unicamente uma revelação cosmológica, através das forças
cósmicas e telúricas, e essas são cegas e fortuitas, embora personificadas
por divindades. Daí a astrologia em voga na sociedade secularizada, ao
passo que na Igreja temos fé na Divina Providência.
Os Evangelhos são Palavra de Deus na qual Ele se dirige a nós
através do Jesus histórico, rodeado de discípulos que o reconhecem como
o Cristo, arauto do Reino de Deus. Cada um dos quatro evangelistas está
imbuído de uma espiritualidade marcante e, embora diferente quanto à
índole literária, convergente quanto à mensagem de salvação.
O Evangelho de Mateus apresenta os fiéis do judaísmo como
ouvintes da Palavra de Deus e destinatários privilegiados do apostolado
eclesial. Sem polêmica ou controvérsias, aproximam-se de Cristo para
ouvir o anúncio da mensagem da salvação, cuja motivação no “sermão
da montanha” (Mt 5-7), reside na promessa da bem-aventurança, e no
incentivo à colaboração com a ação do Espírito Santo. Com ênfase na
qualidade de fé dos novos adeptos da fé cristã, torna-se visível sua elevação ao status de redimidos na Igreja. Todavia, na mentalidade dos cristãos
da primeira geração, havia o temor de que as jovens igrejas haveriam de
diluir a vocação sublime ou perder o fervor religioso. Discípulos de amor
ardente para com Deus, vindos do judaísmo e do círculo de João Batista,
abraçaram a religião cristã testemunhando sua opção pela santidade e
perfeição espiritual, inserindo-se na Igreja de Cristo.
38
122
Cf. a sentença da autoria de Tertuliano (160-220 d.C.) em Apologeticum (17,6): “a
alma, por natureza, é cristã” (anima naturaliter christiana).
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O Evangelho de Marcos manifesta o dinamismo da Igreja e seu
rápido crescimento, em tão breve tempo, não obstante suas origens
modestas (Mc 4,26-32). Na verdade, não há proporção entre o mínimo
de condições no começo e o máximo de resultado, no prazo de apenas
uma geração, no início do cristianismo. O fator determinante desse crescimento espantoso é a vitalidade e o dinamismo interno da Palavra de
Deus. Através de descrições ilustrativas da comunidade cristã destaca-se
Jesus de Nazaré, o personagem central, como divino mestre, rodeado
de discípulos em situação privilegiada de visualizar a adesão à fé cristã
mediante o “seguimento de Cristo”.
Apesar das origens modestas do fundador da religião cristã, vislumbra-se um futuro auspicioso do cristianismo e da cultura a serviço da
civilização ocidental. Desde que Jesus chegou à vida adulta, optou por
uma existência comprometida no serviço aos pobres, porque esses são
a grande maioria de habitantes no tecido social dos respectivos povos, e
são chamados a colaborar na consolidação e expansão do cristianismo.
Seus apóstolos eram meros pescadores sem estarem à altura de sua
tarefa, alguns fracos na fé e, outros, desertores no momento decisivo.
A comunidade cristã inicialmente consistia de cidadãos de condição
social humilde. O lugar de procedência é a Palestina, província do
Império Romano. Apesar disso, a religião cristã conquistou o mundo,
e a Igreja tornou-se uma instituição universal. Houve perseguições
externas e conflitos internos, que não conseguiram impedir a vitalidade
da Igreja, porque a força vital repousava no próprio Cristo e na ação
do Espírito Santo.
O procedimento das lideranças da Igreja, minoria em meio à
maioria de adeptos de outras religiões, foi de grande lucidez na opção
pelo uso de estratégias no crescimento e na vivência da fé: optaram por
abster-se do idealismo de fanáticos religiosos, em luta aberta contra
outras religiões; evitaram o radicalismo contra os pecados públicos dos
próprios cristãos; repudiaram o conformismo em situações conflitantes,
p.ex., resignação fatalista diante de escândalos de líderes cristãos ou
tolerância conivente diante de perversidades; lutaram, enfim, contra o
indiferentismo da maioria.
O Evangelho de Lucas ressalta o motivo da vinda de Cristo ao
mundo para manifestar a misericórdia de Deus pela humanidade. Por
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A Palavra de Deus no Antigo e no Novo Testamento
isso, Cristo é a encarnação da misericórdia divina, escolhendo apóstolos
que eram pecadores convertidos (Lc 5,11), indo à casa de pecadores (Lc
19,5-7), saindo à procura da ovelha desgarrada (Lc 15,1-7), acolhendo o
filho pródigo (Lc 15,20), deixando Madalena lavar-lhe os pés (Lc 7,3738), ensinando a prática da caridade pela parábola do bom samaritano
(Lc 10,30-37), perdoando o ladrão arrependido na cruz (Lc 23,43).
Um dos traços marcantes desse evangelho é a preferência pelo
indivíduo, em lugar de grupos ou multidões. O motivo baseia-se na
capacidade humana de sentir compaixão, restrita a uma só vítima, mas
fenece quando o número de vítimas aumenta. Diante de uma morte derramamos lágrimas, mas a emoção da dor se dissipa quando são muitas
mortes (genocídios, atrocidades, vala comum de mortos, tsunamis).
Temos grande empatia por uma criança sofrida, que aparece numa foto,
mas um retrato de muitas dessas crianças pouco nos afeta. A razão disso
é que o sentimento de empatia não é genérico e, sim, personalizado num
indivíduo. A lição do Evangelho é a prática da solidariedade, começando
com o tratamento de um sofredor muito próximo de nós. A Igreja tem
como missão precípua distribuir os dons salvíficos que Deus, em sua
misericórdia, concede aos que creem.
O Evangelho de João realça a vivência da fé cristã como “vida
em união com Deus”, no contexto da comunidade cristã. A espiritualidade marcante deste evangelho se concentra na ação conjunta de Cristo
Ressuscitado e do Espírito Santo, que as comunidades de fé invocam
para constantemente manter revitalizada a dinâmica sobrenatural da
revelação de Deus ao mundo. Assim como nos Sinóticos e em S. Paulo,
as abordagens refletem o desdobramento da vivência comunitária como
fruto da união com Deus. Nessa perspectiva aparece a pedagogia de
Deus indo ao encontro do homem por meio de um Mediador, que é seu
Filho, sua Palavra. O componente visual, na pessoa de Jesus, consiste
em sua relação com os seres humanos, quanto ao “caminho” (religião)
que seguem, a “verdade” (salvação) que abraçam, e a “vida” (vida eterna)
que eles começam a vivenciar (Jo 14,6).
História da Salvação
A expansão da Igreja a partir de Jerusalém para outros lugares
aconteceu com a penetração nos vários países do Império Romano,
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como é relatado nos Atos dos Apóstolos. A difusão da Palavra de Deus
começou com as atividades missionárias dos apóstolos, que implantaram comunidades cristãs como centros de irradiação da mensagem de
salvação. Surgiram novas estratégias de evangelização com a ajuda dos
diáconos que enriqueceram a “Pastoral de Conjunto”, como meio de
salvação, dando visibilidade à espiritualidade cristã e promovendo a
dignidade da pessoa humana. Instaurou-se uma verdade nova no sentido
de conscientizar os pobres para assumirem a nobre tarefa de levar o dom
da fé e a cultura às várias regiões do Império Romano. Nesse sentido,
valorizavam-se os cristãos não só por possuírem o direito de cidadania,
mas também como membros do Povo de Deus.
O livro do Apocalipse oferece a chave de leitura da história humana, no contexto da história da salvação. A começar pelas sete igrejas da
Ásia (Ap 1-3), a perspectiva vai se estendendo para o âmbito universal,
ao substituir o Povo Eleito do AT (Ap 4-11). Entretanto, a Igreja, frente
à Roma pagã, teve de enfrentar as crises da perseguição, exigindo-se
dos cristãos a virtude da perseverança final (Ap 12-20). Por fim, se
vislumbra uma visão meta-histórica sobre a Igreja identificada com o
Reino de Deus, no “novo céu e nova terra”, onde são “novas todas as
coisas” (Ap 21-22).
Jesus Cristo, a Palavra de Deus
A Palavra na presença de Deus (Jo 1,1-2)
No princípio era a Palavra,
e a Palavra estava junto de Deus,
e a Palavra era Deus.
2
Ela estava, no princípio, junto de Deus.
1
A pré-existência da Palavra (em grego: λογος – logos) é definida
em relação ao “princípio”. O Logos não é mera ideia da mente criativa
de Deus, mas é a expressão da essência divina na forma da pessoa da
Palavra, através da qual Deus se autocomunica na vida trinitária e na
obra da criação, bem como na História da Salvação. Ora, a maneira
característica de a pessoa expressar-se é pela “palavra”, que se atualiza
no ato da fala e, que contém um objeto de comunicação. A relação entre
a Palavra e Deus, na vida trinitária, consiste na união íntima sem ser
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A Palavra de Deus no Antigo e no Novo Testamento
absorvida, no sentido de identidade da natureza divina, mesmo havendo uma distinção real entre as pessoas do Pai e do Filho. Ora, a união
entre as pessoas divinas não é uma imanência rígida de Deus e, sim, é
relacionada e participativa na doação em profusão de amor, porque o
amor é a essência mais íntima de Deus (1Jo 4,8.16). Esse amor não é
mera propriedade qualificativa da divindade, mas é constitutivo da plenitude de vida em Deus como comunidade de vida do Pai, do Filho e do
Espírito Santo, que consolida esse amor por meio de uma hipóstase real
na terceira pessoa da Trindade. A eternidade da Palavra é da essência da
divindade e antecede o tempo da criação.
A Palavra na criação (Jo 1,3-5)
Tudo foi feito por ela
e sem ela nada foi feito de quanto existe.
4
Nela estava a vida
e a vida era a luz dos homens.
5
E a luz brilha nas trevas,
mas as trevas não a reconheceram.
3
Ao Logos é atribuído o papel de causa eficiente na obra da criação.
A origem do mundo é efeito da palavra criadora de Deus e, não, de uma
matéria pré-existente, seja como caos, seja como somatório de partículas
cósmicas. A segunda afirmação sobre a obra da criação é formulada em
termos negativos: “Sem ele nada foi feito de quanto existe”. Portanto,
não se admite a coexistência de dois princípios irredutíveis, isto é, um
dualismo do bem e do mal, da luz e das trevas, da vida e da morte, do
espírito e da matéria, mas desde o princípio só existe Deus. Abre-se, assim, uma visão otimista do mundo. É o reconhecimento positivo de toda
a realidade existente, havendo uma referência a Deus na existência de
todas as criaturas, donde a possibilidade de remontar, das coisas criadas,
às incriadas, até divisar Deus. O caminho para o encontro com Ele não é,
pois, afastamento do mundo ou ruptura e, sim, subida até Ele por meio
do Mediador. A relação da Palavra com a humanidade é expressa com o
simbolismo da vida e da luz.
A Palavra na história (Jo 1,10-12)
A Palavra estava no mundo,
e o mundo foi feito por meio dela,
10
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mas o mundo não a reconheceu.
11
Veio para o que era seu,
porém os seus não a acolheram.
12
Mas a todos que a acolheram,
deu-lhes o poder de se tornarem filhos de Deus.
A Palavra realiza a obra da redenção em prol da humanidade. O
alcance da atividade visível, da história da Palavra encarnada, estende-se
a todos os seres humanos em âmbito mundial. São eles os destinatários
da vida sobrenatural que lhes é conferida pela Palavra do Redentor.
Sua obra de elevar os seres humanos ao estado de filhos adotivos de
Deus e herdeiros dos bens celestes é tão inovadora como o era a criação
do gênero humano pelo Criador, pois as origens da vida, tanto natural
como sobrenatural, do homem, remontam à intervenção divina. Desde a
inserção da Palavra na história, entrando em contato com a situação do
homem no mundo, surgiu na humanidade o desafio do acolhimento ou,
então, da resistência ao querigma39. Os “seus”, aqui mencionados, são os
conterrâneos de Cristo e seus contemporâneos, que não aderiram à fé.
A Palavra na comunidade cristã (Jo 1,14.16)
E a palavra se fez carne,
e habitou entre nós;
e nós contemplamos a sua glória,
glória que recebe do Pai como Filho unigênito,
cheio de graça e verdade.
16
De sua plenitude todos nós recebemos,
graça sobre graça.
14
A Palavra assume uma existência histórica, participando dos
grupos sociais, inicialmente muito pequenos, isto é, a família, o clã, a
tribo e, depois, sempre maiores: povo, nação, país. Daí que a Palavra,
ao fazer-se carne, ficou inserida no tecido social do seu povo, o povo
israelita. A relevância desse evento é o fato de Deus autocomunicar-se
concretamente. Isso se explica no contexto da história da salvação,
39
A palavra grega “querigma”, em uso na teologia, designa “a proclamação da mensagem
do Evangelho”. Apresenta três características: a) acontecimento histórico (oposto a
mitos): Encarnação, vida de Jesus histórico, e Páscoa (Jesus morto e ressuscitado); b)
o personagem central é Cristo, que aparece não como herói solitário, mas associado
à comunidade de discípulos; c) a mensagem de salvação trata da obra de redenção
em prol de toda a humanidade, realizada por Cristo, o Mediador e Senhor.
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A Palavra de Deus no Antigo e no Novo Testamento
confrontando-se assim a revelação histórica na Bíblia com a revelação
cosmológica das religiões não-bíblicas. Acresce a isso a relação com a
comunidade cristã: “habitando entre nós”, porque Jesus Cristo não quis
ser um herói solitário e, sim, o Mestre no meio dos seus discípulos. O
motivo de os discípulos se tornarem ouvintes da Palavra de Deus não
é para satisfazerem a curiosidade, mas para se familiarizarem com os
desígnios divinos a respeito da humanidade. A expressão “estabelecer
a tenda” evoca o itinerário de Jesus Cristo pelas regiões da Palestina,
desde os povoados mais remotos até Jerusalém, centro religioso e político do país. No percurso do caminho havia frequentes contatos com os
discípulos e diversos grupos sociais, os destinatários da mensagem da
salvação. Nesse contexto situa-se o “seguimento” de Cristo, ao se associarem os ouvintes ao grupo dos discípulos. Esses eram as testemunhas
oculares dos milagres, prodígios e sinais que comprovam a intervenção
de Deus e manifestam a divindade do seu Filho. A “plenitude” dos bens
espirituais está na Palavra exercendo a função de Mediador, e nela só,
como grandeza pessoal e, também, como tesouro em suas mãos, para ser
distribuído aos fiéis. No desempenho de sua função mediadora, a Palavra
realiza a mediação de duas maneiras: através do movimento de cima
para baixo, que procede do amor de Deus para conosco, passando pelo
coração humano de Jesus, e através do movimento de baixo para cima,
partindo do coração humano de Jesus, o Filho, em direção ao Pai.
A Palavra prefigurada no AT (1,17-18)
Pois a Lei foi dada por meio de Moisés,
a graça e a verdade vieram por meio de Jesus Cristo.
18
Ninguém jamais viu a Deus;
o Filho Unigênito, que é Deus e está na intimidade do Pai,
foi quem o deu a conhecer.
17
Especifica-se aqui a relação entre Deus e o Povo Eleito em termos
de vinculação dos israelitas em comunidade de fé e comunidade ética,
cuja vivência religiosa não é genérica e, sim, torna-se fé em Javé, que
revelou a Moisés as normas da religião viva, na liturgia e na vida, pela Lei
divina, a Torá. Essas normas são regras de salvação. Daí que a ”verdade”
supera a dimensão gnosiológica, pois se visa a verdade soteriológica, isto
é, “salvífica”. Trata-se dessa “graça” com eficácia garantida, porque é de
origem sobrenatural. Deus precisava do Povo Eleito do AT como mão
128
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direita em sua intervenção na História de Salvação, ao passo que o Povo
de Deus do NT, é sua mão esquerda, que Ele utiliza hoje (Sl 90,17)40.
Deus é invisível, mas pela “voz da consciência” (Rm 1,18) e, pelo
ensinamento dos líderes religiosos, sabemos que Deus é o Ser Absoluto
pessoal e, como Criador, age no universo e sustenta a criação, sendo que
sua presença atuante no mundo é benfazeja à humanidade (Rm 1,19-20).
A preeminência do NT sobre o AT encontra-se na função do Mediador da
salvação. Pois quem reza a Deus tem Cristo como Intercessor, que leva
nossas preces até a presença do Altíssimo e, como Redentor, que traz os
dons salvíficos para nós. Dizem os judeus que vão diretamente a Javé,
mas se esquecem de que precisam de um Mediador, para que suas preces
sejam ouvidas e os dons salvíficos sejam entregues aos fiéis.
A designação de Jesus Cristo na teologia como “Filho único”
ou “Unigênito”, ou então, como “Filho amado” ou “Bem-Amado”, em
uso na espiritualidade, tem por finalidade sublinhar o caráter pessoal da
Trindade como Pai, Filho e Espírito Santo, e para salientar a igualdade
de pessoas, mas com a diferença de atribuições. Por meio do batismo, os
cristãos tornam-se espiritualmente “filhos adotivos” de Deus (Rm 8,15)
e “irmãos na fé” (Mt 23,8).
“Ninguém viu a Deus, mas Ele se revelou através da figura humana
de seu Filho” fazendo-nos participar da natureza divina (Sl 19,14), da
ação divina (Sl 29,11), e da vida divina (Sl 8,6). Não se deve esquecer,
enfim, que só podemos ver a Cristo, como se fosse por tabela, nas comunidades eclesiais e no rosto do pobre, com o qual Ele se identifica
(Mt 25,31-46).
Conclusão
A Palavra de Deus diferencia-se da palavra humana porque Ele fala
ao homem para dizer-lhe o que quer dele, ao passo que o homem fala de
Deus o que d’Ele pensa. Quem tem voz e vez para falar de Deus são os
teólogos, profetas e intérpretes da mensagem divina, na função de portavozes dos fiéis da comunidade de fé e comunidade ética, transmitindo o
40
O escritor que por primeiro mencionou “as duas mãos de Deus-Pai” é Santo Ireneu
de Lião (130-200 d.C.) referindo-se a Cristo e ao Espírito Santo (Adversus haereses,
IV,7,4).
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A Palavra de Deus no Antigo e no Novo Testamento
ensinamento da religião bíblica, em conformidade com a Escritura e com
a Tradição. Mais eficaz do que mera proclamação da Palavra é dar-lhe
oportunidade de tornar-se fecunda num diálogo inter-religioso, graças à
interação de todos os membros da comunidade de fiéis compartilhando
o “senso da fé” (sensus fidei). É preciso reconhecer o fato de que cada
palavra de fé, que dizemos, afeta e fortalece a fé de outras pessoas, às
vezes de maneira inesperada e eficaz. É pela partilha de nossa fé, embora
nossas crenças sejam diferentes, que criamos um mundo de fé para a
nova geração. Temos de afirmar sempre de novo que o maior dom que
podemos dar à nossa geração é a transmissão do conhecimento moral
que gerações anteriores duramente adquiriram. E quanto aos jovens, para
terem o sentido de identidade e saberem o que são, é preciso ensinar-lhes
a história de sua origem e, sobre a meta que demandamos coletivamente.
Temos de ensinar-lhes a grande história que começou bem antes de nós
nascermos e, que continuará, depois de cessarmos de existir nesta terra,
mas na qual eles têm uma função que só eles podem desempenhar: a de
continuadores dessa história que, para nós, está contida na Sagrada Escritura e na memória de nossas comunidades, que ouviram e assimilaram
a mensagem da Palavra de Deus.
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Resumo: Sobre o pobre no cristianismo há historicamente e ainda hoje em dia, duas
maneiras completamente diferentes de tratar o assunto. Estas se explicam porque há
duas interpretações do próprio cristianismo. A interpretação predominante considera que o
cristianismo é uma religião, e que essa religião foi fundada por Jesus. Nessa interpretação
do cristianismo, os pobres não ocupam um lugar importante. Outra interpretação, que
parte dos evangelhos e dos demais escritos do Novo Testamento, constata que Jesus não
quis fundar uma religião. Era judeu, e criticou radicalmente não somente os doutores, os
sacerdotes, os fariseus, mas a própria religião que defendiam. O anúncio de Jesus não se
refere à religião, mas ao Reino de Deus. Há duas concepções de Deus na humanidade:
a que é comum a todas as religiões, e a que Jesus revelou. A relação de Deus com os
pobres é muito diferente nas duas concepções. Em Jesus, o Pai não fez a experiência de
uma humanidade “comum a todos”, mas fez a experiência de uma vida humana no meio dos
oprimidos. Descobriu o que é ser oprimido, rejeitado, maltratado, condenado e crucificado.
Mesmo assim, a maioria da hierarquia e do clero não o entende e permanece fiel à visão
religiosa, como se a religião fosse um fim em si, um valor absoluto e definitivo, uma realidade
intocável e sempre legítima. O resultado é conhecido: os pobres estão longe da Igreja. O
Documento de Aparecida renova a opção pelos pobres, mas de forma muito ambígua.
Abstract: In Christianity we have two different ways to specify the proposition concerning the poor. The explanation is based on two interpretations in Christianity itself. One
interpretation is predominantly concerned with Christianity as a religion founded by Jesus
himself. According to this interpretation the poor do not occupy an important place. On
the other hand, starting from the Gospels and the New Testament writings as a whole, it
appears that Jesus did not want to found a religion. He was a Jew but criticized radically
not only the Jewish theologians, the priests and Pharisees, but also the religion which they
followed. It is to be noted, that the preaching of Jesus does not refer to a religion but to
the Kingdom of God. In fact, there are two conceptions of God dominant in humanity: one
which is common to all religions, and the other which Jesus revealed. The relationship
between God and the poor is quite different in both of the aforementioned conceptions.
Jesus discloses God the Father who had no experience of humanity “common to all beings”,
but had the experience of human life among the oppressed. He discovered what is being
oppressed, rejected, mistreated, condemned, and crucified. In spite of all this, the majority
of holders of office in the hierarchy and the clergy does not understand it and continues
unchanged in their vision of religious life, as if religion were an aim of itself, an absolute
and definitive value, an untouchable and legitimate reality. The result is well known: the
poor are situated afar from the Church. The Document from Aparecida renews the option
on behalf of the poor, but in very ambiguous terms.
O pobre, critério para a profecia1
José Comblin †26-03-2011, in memoriam*
*
Nascido em 1923, na Bélgica, doutorou-se em Teologia em Louvain e veio para o Brasil
na década de 60, lecionando no Recife. Expulso do Brasil pela Ditadura, em 1972,
lecionou no Chile e em Louvain e retornou ao Brasil, escrevendo inúmeros artigos e
livros, tendo sido um dos maiores representantes da Teologia da Libertação. Faleceu
na Bahia, em 26-03-2011.
Capitulo do livro coletivo Opção pelos Pobres no século XXI, org. Pedro A. Ribeiro de
Oliveira, Ed. Paulinas, São Paulo, 2011, pp. 181-201.
1
Encontros Teológicos nº 59
Ano 26 / número 2 / 2011, p. 131-154.
O pobre, critério para a profecia
Sobre o pobre no cristianismo há historicamente e ainda hoje em
dia, talvez mais do que nunca hoje em dia, duas maneiras completamente
diferentes de tratar o assunto. Estas se explicam porque há duas interpretações do próprio cristianismo.
A interpretação predominante considera que o cristianismo é
uma religião, e que essa religião foi fundada por Jesus. Essa religião é
tudo aquilo que está presente na Igreja católica. Claro que todos sabem
que essa religião não foi tão desenvolvida desde o início. Ela se desenvolveu no decorrer dos séculos, mas dizem que foi sempre de modo
homogêneo, de tal sorte que tudo tem a sua origem em Jesus. A religião
católica representaria a tradição nascida de Jesus, e ela sempre lhe foi
fiel e transmitiu através dos séculos a estrutura definida inicialmente pelo
próprio Jesus. Se não se encontra a raiz de tal instituição , tal dogma ou
tal rito no Novo testamento, tudo aquilo é atribuído a uma tradição oral.
Os apóstolos transmitiram mais do que aquilo que está escrito no Novo
Testamento, e por isso devemos levar em conta também as tradições
orais que vêm dos apóstolos.
Nessa interpretação do cristianismo, os pobres não ocupam um
lugar importante. Eles são objeto até privilegiado da caridade que é o
grande preceito de Jesus. Mas eles não têm nenhuma missão ou nenhum
significado especial. Graças a eles, os cristãos podem praticar a virtude
da caridade. Isto não afeta em nada nem o dogma, nem o culto, nem
a organização eclesiástica, não afeta em nada a própria Igreja. Assim
dizia um dia o cardeal Daniélou, um dos importantes teólogos franceses do século XX: “A questão dos pobres é objeto de um parágrafo, de
um artigo, de um capítulo do tratado da caridade”, um dos tratados das
virtudes teológicas.
Nessa interpretação, que é muito tradicional, ainda que nunca
tivesse sido unânime, a Igreja lê o novo Testamento à luz da sua teologia
oficial, ou seja, à luz da consciência que tem de si mesma. Os biblistas
procuram no Novo Testamento a raiz de tudo o que se acha na Igreja atual,
e se não a encontram, invocam o testemunho de escritores dos primeiros
tempos, que derivaria das próprias palavras dos apóstolos.
No entanto, nos últimos séculos, implantou-se dentro da Igreja
um método científico de ler a Bíblia a partir dela mesma, e não a partir
da teologia escolástica. O desenvolvimento das ciências históricas, e
132
Encontros Teológicos nº 59
Ano 26 / número 2 / 2011
José Comblin
filológicas, chegou à conclusão de que o início do cristianismo não foi
aquilo que a teologia tradicional dizia. Também descobriram que muitas
vezes os testemunhos da chamada “tradição” já aparecem muito tarde e
não se tem nenhum argumento para crer que representam uma tradição
que vem dos apóstolos.
Daí uma dualidade de métodos teológicos : por um lado, uma teologia que parte de si mesma e da observação da Igreja atual. Há outra
teologia que parte da Bíblia e da história da Igreja primitiva. Na Igreja católica, houve muita resistência contra essa teologia de tipo indutivo e uma
forte defesa da teologia dedutiva. Mas a pressão da outra foi aumentando
com o tempo durante o século XX e o concílio Vaticano II promoveu o
estudo da Bíblia, e, com isso, autorizou de fato uma teologia indutiva.
A teologia da libertação é um dos frutos dessa nova tolerância.
Na prática, a separação ainda não desapareceu da Igreja católica e
continua provocando conflitos sobre problemas fundamentais. Na faculdades de teologia e nos seminários ensinam-se duas teologias. Uma é a
teologia indutiva, a partir da Bíblia e da história do cristianismo. Outra é
derivada da antiga teologia escolástica e dos grandes autores medievais
e pratica o método dedutivo. No concreto, a que predomina é a teologia
dita dogmática ou sistemática, que é a teologia dedutiva tradicional. A
teologia a partir da Bíblia e da história fica marginalizada e não muda
a teologia tradicional. Na prática, ela não interfere. Apesar das aulas
de exegese bíblica, os alunos aprendem a ler a Bíblia à luz da teologia
escolástica e não a partir dela mesma. Claro está que em muitos lugares
ainda não se entendeu o que aconteceu no Vaticano II, como conclusão
de um século de estudos dentro da Igreja católica.
Nos últimos anos, como consequência de uma implicação crescente de certos católicos com o mundo atual, isto é, com os seus problemas
e conflitos, com o seu desenvolvimento intelectual e com a evolução da
religião nas massas como nas elites intelectuais, cresceu muito a outra
interpretação do cristianismo. Esta nunca foi ausente na Igreja, mas não
foi reconhecida oficialmente. Era minoritária, ainda que tivesse sido
representada por Santos ilustres e grandes místicos, reconhecidos pela
instituição que procurou interpretar a sua vida à luz da teologia oficial.
Hoje em dia, esta outra interpretação do cristianismo vai crescer
na medida em que a Igreja se abra ao mundo. Se ela se fecha no gueto,
Encontros Teológicos nº 59
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O pobre, critério para a profecia
continuará buscando apoio e legitimidade na antiga teologia escolástica.
Se se abre ao mundo exterior, vai ter que interpretar-se à luz do desenvolvimento intelectual da nossa época. No século XIII, o mundo era a
filosofia grega e sobretudo Aristóteles. Hoje em dia, o mundo mudou.
Esta outra interpretação que parte dos evangelhos e dos demais
escritos do Novo Testamento, constata que Jesus não quis fundar uma
religião. Era judeu, e criticou radicalmente não somente os doutores,
os sacerdotes, os fariseus, mas a própria religião que defendiam e que
Jesus não reconheceu como a verdadeira expressão da vontade do Pai.
Jesus não se opôs à prática religiosa do povo. Não propôs outra religião.
Sempre se considerou como judeu, seguindo a herança de Abraão. Veio
como um profeta que quer reformar a religião do povo de Israel e todo o
seu comportamento, toda a sociedade de Israel. Queria libertar Israel de
todas as ataduras, mas não queria formar outra coisa ao lado de Israel.
Praticamente esvaziou o judaísmo de todo o seu aparelho religioso que,
para ele, não eram a expressão das promessas feitas a Abraão. Jesus quis
ser fiel ao verdadeiro Israel e por isso esvaziou o sistema religioso. Mas
não quis fundar outra religião.
Por isso Jesus não fundou nenhum culto, não enunciou nenhuma
doutrina sobre Deus, e não criou nenhuma instituição religiosa. O anúncio de Jesus não se refere à religião, mas ao Reino de Deus. O Reino de
Deus é a libertação do reino da dominação, da injustiça, da opressão.
É um mundo renovado, uma nova criação de um mundo de justiça e de
fraternidade. É uma denúncia do Império romano. Pois proclamar que
Deus vai ser rei é anunciar a ruína do poder de César. E Jesus foi condenado à morte por ter sido denunciado como aquele que queria ser rei. O
reino de Deus é o reino que todos os judeus piedosos esperavam diante
da decadência do povo de Israel, por causa da corrupção das elites que
tinham feito da religião o meio de se autopromoverem.
Jesus veio para não somente anunciar, mas inaugurar um mundo
novo. Os apóstolos foram enviados ao mundo inteiro para anunciar esse
mundo novo sem dominação, sem opressão, o advento da promessa
feita a Abraão, e todos os povos deviam ser a herança prometida a
Abraão. Jesus não disse quanto tempo duraria o anúncio e a criação
desse mundo novo.
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José Comblin
O que Jesus chamava à fé era acreditar nesse advento de um mundo novo. Não ensinava uma doutrina, mas somente pedia a fé. Não se
apresentou como objeto de culto. Não quis ser adorado. Manifestou-se
como um pobre artesão da Galileia. Queria ser seguido. Queria que os
seus seguidores seguissem o mesmo caminho. Ele já tinha iniciado o reino
de Deus pela sua ação. Queria que os seus discípulos continuassem. Não
quis poder nenhum. Mais tarde, bem mais tarde, como 50 anos depois,
os discípulos, os que não tinham conhecido Jesus, começaram a querer
combinar a mensagem de Jesus com uma religião. Todos, judeus ou pagãos de origem, tinham uma religião. Naquele tempo ninguém podia viver
sem religião. A religião era uma necessidade, a primeira necessidade.
Não queriam ficar sem religião. A formação de uma religião a partir da
mensagem de Jesus durou mais de um século. Com Hipólito de Roma,
no final do 2º século, já podemos dizer que nasceu uma religião que se
apresentou como a religião de Cristo.
Cristo tornou-se objeto de culto. A sua divindade foi cada vez
mais afirmada, deixando na sombra ou no esquecimento a sua vida terrestre e o significado dessa vida. A ceia tornou-se um rito que em breve
receberia a qualidade de sacrifício. Jesus tinha suprimido os sacrifícios
e a carta aos Hebreus afirma que, com Jesus, cuja morte e ressurreição
foi o sacrifício definitivo, não há mais sacrifício. Mas com a ajuda de
artifícios teológicos, conseguiram fazer da ceia um sacrifício, dando
dessa maneira satisfação à necessidade do povo cristão. Começaram a
elaborar fórmulas de doutrina e a identificar pouco a pouco a fé com a
aceitação dessa doutrina. Assim nasceram os símbolos de fé
Em inícios do segundo século, em cada cidade começa a afirmarse uma estrutura feita de um bispo assistido por presbíteros e diáconos.
Jesus tinha suprimido os sacerdotes. Mas, com a transformação da ceia
em sacrifício, os ministros tornaram-se de novo sacerdotes. A ceia foi
reservada aos sacerdotes, embora durante cem anos e mais tenha sido
realizada em casas de família e presidida pela pessoa que nessa casa
presidia as refeições e as orações.
O evangelho de Jesus não foi esquecido, mas em muitos cristãos
os atos religiosos, atos simbólicos, tomaram o lugar dos atos reais de
formação e crescimento do reino de Deus no mundo real. Com a entrada oficial da Igreja no Império romano com Constantino e Teodósio, a
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O pobre, critério para a profecia
parte religiosa cresceu muito. A Igreja assumiu o papel de religião do
Império, religião obrigatória. As suas atividades religiosas eram parte
da atividade política do Império.
Com essas condições, a tentação era grande de considerar que
o Império romano tornado cristão era a realização terrestre do reino de
Deus. A mensagem de Jesus estava realizada: estava realizado o reino
da justiça e da fraternidade. O problema era que a realidade não era bem
assim. Mas era difícil voltar à mensagem de Jesus sem ser rebelde ao
Império. E assim a história continuou com cada vez mais insistência no
religioso. Chegou-se até o ponto de declarar que a Igreja é essencialmente religiosa.
A mensagem de Jesus sobre o reino de Deus não foi esquecida.
Sempre houve algumas testemunhas lúcidas e fieis. Mas durante séculos
elas tiveram muita dificuldade para ser ouvidas e provocaram conflitos,
dos quais saíam habitualmente vencidos.
Jesus e sua obra
Voltemos a Jesus e à sua obra na terra, obra que continua sendo a
norma oficial da Igreja. Trata-se de seguir Jesus tomando como exemplo
a sua vida terrestre.
Dentro da mensagem de Jesus e da sua obra, os pobres estão no
centro. Eles ocupam o lugar de maior visibilidade. O Pai escolheu os
pobres para realizar o seu Reino na terra. A criação de um mundo novo
tem como centro a libertação de todos os oprimidos. Por isso, Jesus busca
os oprimidos e lhes anuncia com gestos e com palavras a salvação, não no
céu, mas aqui na terra. O amor do Pai consiste em libertar os oprimidos.
Não é um amor puramente espiritual ou interior, mas um amor prático e
real, dentro da vida terrestre tal como é na sociedade atual.
Por isso, Jesus nasceu e cresceu no meio dos pobres, falou para
os pobres, curou os pobres, escolheu os seus apóstolos entre os pobres,
morreu como o mais pobre despojado de tudo o que é humano. O evangelho de Marcos, que é o mais antigo, é também o mais contundente.
Foi a obra de um profeta cristão já consciente da inclinação de muitos
para o religioso, esquecidos da vida de Jesus.
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Por ser opção pelos pobres, a vida de Jesus foi eminentemente
conflitiva. Depois de pouco tempo já começou o conflito com as elites de
Israel. Depois de mais ou menos três anos, segundo a maior probabilidade,
o conflito tornou-se tão agudo que Jesus foi denunciado e condenado por
todas essas elites do seu povo e pelo Império romano. Não durou nem 3
anos, porque o conflito era realmente radical.
Os pobres não foram eleitos porque seriam mais religiosos. Pelo
contrário, eram tratados como pecadores, ignorantes da lei. Mas Jesus
não se preocupava com isso. A preocupação de Jesus era a opressão .
Os pobres foram escolhidos porque eram oprimidos, e o reino de Deus
era o fim da opressão e o advento da justiça e do perdão das dívidas. Os
antigos profetas já tinham ensinado que Deus não quer sacrifícios, mas
quer justiça e misericórdia2.
Há duas concepções de Deus na humanidade. A relação de Deus
com os pobres é muito diferente nas duas concepções.
O Deus comum
Há uma concepção de Deus que é basicamente comum a todos os
povos e todas as religiões. Há um Deus que é autor da vida e criador do
mundo. Tudo subsiste graças a ele. Este Deus nem sempre intervém em
todos os pormenores da vida diária: para isso há divindades inferiores,
espíritos, entes celestiais que se comunicam com os seres humanos e lhes
trazem benefícios ou castigos. Mas tudo deriva em definitiva do Deus
criador. Esse Deus intervém também diretamente nos grandes acontecimentos, nos cataclismos, nos fenômenos extraordinários da natureza
2
Antes de continuar este artigo, queria chamar a atenção dos leitores que ainda não
conhecem a teologia atual. Sugiro que leiam três livros e talvez quatro. Primeiro, Ched
Myers, Binding the strong Man. A Political Reading of Mark’Story of Jesus, Orbis
Books, Maryknoll, Nova Iorque, 1988 (tradução brasileira: O Evangelho de São Marcos: Grande Comentário Bíblico), Edições Paulinas, São Paulo, 1992. Depois, Joseph
Moingt, S.J., Dieu qui vient à l’homme, 3 vol., Cerf, Paris, 2002-2006. Também Juan
Luis Segundo, La historia perdida y recuperada de Jesús de Nazaret, Sal Terrae,
Santander, 1991. Discretamente, eu mencionaria também os dois tomos da cristologia
de Jon Sobrino, Jesucristo liberador, Trotta, Madrid, 1991; La fé en Jesucristo, Trotta,
Madrid, 1999. Pensando em Jon Sobrino, sempre me lembro das palavras do Cardeal
Marty, arcebispo de Paris, que tinha sido encarregado de comunicar ao Padre Congar
a condenação romana, proibição de ensinar e até de residir na França, porque só a
presença física dele já podia contaminar toda a França: “Meu padre, não fique aflito
demais. Daqui a 10 anos, todo o mundo pensará como você”.
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como nas tempestades. Ele marca também a hora do nascimento e da
morte de cada um. Esse Deus estabeleceu leis para o gênero humano.
Quem obedece será recompensado, e quem não obedece será castigado,
já nesta vida. Esse Deus quer ser reconhecido e adorado. Quer que se lhe
ofereçam louvores, gratidão, presentes, como os sacrifícios. Ele atende
às orações mas nem sempre. Ninguém saberia dizer porque atende a
um pedido e não a outro. Em todo caso, é preciso pedir com insistência.
Ele governa o mundo, mas de longe, nas grandes circunstâncias. Ele
dá a vitória nas guerras, e, por isso cada partido procura invocá-lo com
mais força. O seu atributo fundamental é o poder. Ele é o “Deus eterno
e todo-poderoso” das orações do missal romano. Pois nesse missal há
uma grande parte que não procede do evangelho de Jesus, mas da figura
comum de todas as religiões.
O Deus comum foi reconhecido pelos grandes filósofos, que o
purificaram dos antropomorfismos e lhe deram um caráter mais abstrato. Assim aconteceu na filosofia grega, que teve tanta importância no
desenvolvimento da teologia cristã. Esse Deus do povo e dos filósofos
trata a todos os homens como iguais. Não faz acepção de pessoas, ainda
que muitas culturas tenham achado que Deus tem uma preocupação especial pelos grandes deste mundo. Os que têm poder, estão mais perto de
Deus, porque participam mais da sua essência. Podem conseguir mais,
mas também podem ser castigados com mais severidade, com aparece
no Antigo Testamento.
Esse Deus não faz diferença entre ricos e pobres. É igual para
todos. Faz diferença entre os que obedecem, e os pecadores; entre os
religiosos, e os ímpios. Ele respeita as estruturas sociais que muitas
vezes se atribuem a ele no seu ato criador. Ele é muito religioso. Muitas
religiões lhe atribuem a sua fundação. Por isso, a religião ocupa um
lugar importante na vida e os poderosos são particularmente religiosos
porque sentem que a religião é o que legitima o seu poder. Porque são
poderosos, acham que Deus é um cúmplice: entre poderosos, eles se
entendem melhor.
Por isso, as religiões são sempre conservadoras. Sustentam o poder
dos governantes, ou somente destroem o poder deles se não respeitam a
religião. Socialmente elas são conservadoras, porque atribuem a Deus a
situação social. As religiões são inimigas das revoluções.
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Se os cristãos foram tão conservadores e lutaram tanto contra
todas as mudanças sociais, é porque o seu Deus era o Deus comum a
toda humanidade. Esse Deus não é cristão, ainda que tivesse tido tanta
penetração na Igreja.
Essa era com certeza a concepção de Deus que tinham os apóstolos antes de conhecer Jesus. Por isso, os evangelhos narram que muitas
vezes os apóstolos não entendiam o que Jesus dizia, sobretudo quando
falava da perseguição e da morte que Ele havia de sofrer. O seu Deus
era o Deus do poder. Os judeus que se converteram partiam da mesma
ideia, e os pagãos também, e com mais força, tinham essa concepção de
Deus em que o poder ocupa o lugar central. Consciente ou inconscientemente, essa religião prévia que tinham quando se fizeram cristãos , não
desapareceu logo. Ela se misturou de maneira desigual com a revelação
de Deus que está nos evangelhos.
Com a entrada do cristianismo no Império, como religião oficial,
o poder de Deus era o fundamento do poder do Imperador e devia ser
exaltado. Esse Deus era muito vingativo. Exigia um culto permanente.
Exigia a obediência total e castigava todos os pecados que eram precisamente as faltas contra a lei. Por isso a morte de Jesus foi interpretada
cada vez mais como expiação pelos pecados dos homens, porque Deus
exige reparação das ofensas recebidas da parte da humanidade.
Esse Deus é poder, que exige respeito e submissão. Ele é justo no
sentido que exige uma reparação adequada por todas as faltas que são
tidas por ele como ofensas ao seu poder. Essa concepção de Deus penetrou profundamente na liturgia, que se desenvolveu exatamente quando
começou a integração da Igreja no Império. Deus foi adorado como “Deus
todo-poderoso e eterno”. Depois do Vaticano II houve algumas mudanças
na liturgia, mas grande parte do antigo missal permaneceu.
Hoje em dia, movimentos e grupos fanáticos querem voltar ao
missal de Pio V, que foi a síntese da teologia imperial da cristandade.
É a nostalgia da cristandade e do poder. Querem impor uma religião do
medo que a Igreja quis impor durante tantos séculos de cristandade e
da qual os católicos cada vez mais numerosos se afastaram, sobretudo
depois de Vaticano II. Esses movimentos se inspiram mais no Antigo
Testamento do que no Novo. Desse modo, se a Igreja oficial ceder diante
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O pobre, critério para a profecia
da chantagem desses fanáticos, ela se afastará de novo dos evangelhos
e da revelação para voltar à religião imperial.
O povo cristão nunca aceitou totalmente essa concepção de Deus
que estava numa liturgia, que, por sinal, não entendiam, porque por
sorte se rezava em latim. É verdade que o catecismo ensinava a mesma
doutrina. Mas o catecismo nunca foi a regra dominante da fé popular.
A fé popular transmitia-se de geração em geração pelas famílias, pelas
mulheres sobretudo.
A figura de Deus foi substituída progressivamente por Maria. De
Deus o povo tem medo, mas tem plena confiança em Maria. Ela é a verdadeira figura do Deus verdadeiro. Maria é o último recurso, aquela que
compreende e perdoa. O povo ama Maria, mas não ama Deus, a não ser
de boca para fora, para obedecer ao preceito que “obriga a amar a Deus”.
Com Maria é diferente. Ela é o refúgio dos pecadores e o consolo dos
aflitos. Há uma teologia oficial de mariologia defendida pela hierarquia,
e há um teologia popular independente da teologia oficial.
O Deus de Jesus
Há outra figura de Deus. Esta não procede do sentimento religioso da humanidade de acordo com as culturas. As religiões foram
formadas pelos povos com muita variedade, embora tenham constantes.
No cristianismo se manifesta a revelação de Deus. Não é mais o Deus
formado pela cultura, mas o Deus que se revela. Pois, o cristianismo
não é em primeiro lugar uma religião, mas a tradição da revelação de
Deus. Deus deu-se a conhecer. Não somente por meio de palavras,
como nos antigos profetas de Israel, o que ainda era muito balbuciante.
Deus revela-se na vida de Jesus. Ele mostra o que Deus é de modo
muito compreensível, porque não se trata de uma doutrina, mas de uma
vida humana com todos os seus gestos e atos até a morte que revela o
aspecto mais fundamental de Deus.
O Deus de Jesus é o Pai. Jesus não o chama de Deus, mas fala do
Pai e com o Pai. O Pai revela-se no Filho. Pai e Filho são um. Jesus diz:
o Pai e eu somos um só. Quem me vê, vê o Pai. Não se trata de fabricar
imagens de Deus. Todas são falsas, porque O Pai é igual a Jesus. Ele é
bem diferente das imagens que as religiões inventaram.
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Jesus não é um homem “em geral” vivendo uma vida “em geral”.
Ser homem é ser situado numa sociedade. Está implicado numa historia.
Um homem é rico ou pobre, e está implicado nos conflitos da história.
Em Jesus, o Pai não fez a experiência de uma humanidade “comum a todos” porque não existe humanidade “comum a todos”. Entre
os seres humanos há dominadores e dominados, opressores e oprimidos,
privilegiados e expulsos. O Pai escolheu, não podia ser tudo ao mesmo
tempo. E o homem “em geral” não existe. O Pai fez a experiência de uma
vida humana no meio dos oprimidos. Descobriu o que é ser oprimido,
rejeitado, maltratado, condenado e crucificado.
Juan Luis Segundo descobre o problema no próprio pensamento
de Hans Küng no seu livro “Ser cristão”. Küng escreve: “No está ni en
la derecha ni en la izquierda, mas tampoco es simplemente un mediador
entre ambas. Exactamente, él está más allá; verdaderamente más allá de
todas las alternativas, que él mismo elimina de raíz. Está en su radicalidad: la radicalidad del amor, radicalidad sobria y realista, básicamente
diferente de todos los radicalismos ideologizados” (p.762)
Isto quer dizer que, para Hans Küng, Jesus não era um homem verdadeiro Estava fora da história, praticando um amor supostamente radical
mas sem contato com a realidade concreta, um amor sem conteúdo, um
amor para entes fora da história. Que amor pode ser esse? Como pode
ser assim um amor eterno fora da realidade? O amor tão radical de Jesus
seria um amor “igual para todos”, ignorando os conflitos, ignorando a
diferença entre opressores e oprimidos? Se Hans Küng não reconhece a
verdadeira humanidade de Jesus, imaginem os outros! Há um monofisismo latente em toda uma tradição teológica e litúrgica.
A teologia de Hans Küng não é substancialmente diferente da
teologia do cardeal J. Ratzinger na sua famosa Instrução sobre a teologia
da libertação. Ai está expressada a teologia medieval fundada no ser. O
seu Deus é aquele que foi ensinado pela filosofia grega. Esta fornece
os quadros do pensamento. E a humanidade é uma natureza, a mesma
para todos. Todos os homens são a cópia da natureza humana. O homem
está fora da história e Deus está em cima da história. O ser supremo
não está na história. Não está nem à esquerda, nem à direita. Isso não
tem significado para ele, porque não pertence à ordem do “Ser”. Deus
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O pobre, critério para a profecia
não tem nada tem a ver com a história. Está relacionado com “puras
naturezas” sem história.
Que Jesus tenha sido condenado à morte pelo Império romano,
não significaria nada. Poderia ser qualquer outro poder. Pois o Império
fazia somente aquilo que Deus lhe tinha mandado fazer. Que Jesus
tenha sido condenado pelas autoridades de Israel, também não tem significado, porque essas autoridades estavam tranquilamente executando
o plano definido por Deus. Era preciso ter uma vítima para imolar, e o
tempo, as circunstâncias, não teriam nenhuma importância. Deus tinha
escolhido a vítima, e os que o mataram executavam simplesmente o seu
“ministério”, que era matar. Tudo isso sem relação com a história dos
povos. Assim como o sacrifício deste boi, em lugar de outro, não tinha
nenhum significado histórico.
A partir do Deus entendido como “ser supremo”, a teologia chega
a uma espiritualização do evangelho. “Espiritualização” significa aqui
pertença a um mundo etéreo, extra-terrestre, que é propriamente o mundo
de todas as mitologias. Faz de Jesus um ente mitológico, situado fora
dos conflitos da história humana, e torna a sua morte um fato do mundo
mitológico. Por isso, os teólogos aplicaram à morte de Jesus a teoria do
sacrifício, comum a todas as religiões e presente no Antigo Testamento.
Dizem que a morte de Jesus foi uma exigência do Pai para a expiação do
pecado. O Pai exige a morte do seu Filho para poder perdoar. Esta é uma
Ideia de mitologias antigas que ensinavam um Deus de temor e de ira.
Ora, Deus revelou-se. Sabemos o que ele pensa, o que ele quer,
como está agindo. Tudo fica claro olhando a vida de Jesus. Primeiro,
o Pai não quer ser contemplado como poderoso. O seu poder não tem
nada a ver com as experiências de poder que temos na história. O seu
poder manifestou-se na ressurreição de Jesus, mas não foi um fato que
entrou na série dos fatos da história humana. Esse poder não impôs
nada a ninguém. O Pai revela-se como amor, mas esse amor é historicamente orientado. Não se trata de um amor uniforme, igual para
todos os seres humanos.
O Pai é conflitivo. Eis o que é difícil de reconhecer nas religiões
estabelecidas, institucionalizadas. As instituições têm horror aos conflitos. Jesus esteve metido em conflitos, e sabia que assim fazendo estava
fazendo a vontade do Pai. Jesus provocou o conflito. A sua mensagem
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básica era sumamente conflitiva. Anunciou a proximidade do reino de
Deus. Já isso era uma ameaça ao Império romano. Todos os judeus entenderam que Jesus anunciava o fim do reino de César. E as autoridades de
Israel entenderam perfeitamente que Jesus colocava em perigo a aliança
tácita que mantinham com o Império romano, o que lhes valia a liberdade
das suas práticas religiosas. Jesus ameaçava as elites religiosas de Israel
e todas as outras. Claro que Jesus sabia, e assim mesmo perseverou até
o fim na sua atitude conflitiva. Era a vontade do Pai.
O conflito básico era, como ainda é, o conflito entre os ricos e os
pobres. Os ricos são os que têm poder, os que podem impor a sua vontade
aos outros. Graças ao seu poder, concentram nas suas mãos as riquezas, o
prestígio, os privilégios. Submetem os pobres que devem trabalhar para
eles por um salário miserável, o que os mantém num estado permanente
de dependência e de humilhação. Os pobres são os que não têm poder, e
por isso vivem das migalhas que lhes deixam os ricos e devem trabalhar
a serviço deles. No tempo de Jesus a divisão era muito clara. No sistema
religioso de Israel, a opressão dos pobres justificava-se por razões religiosas. Os pobres eram ignorantes das leis, que não observavam., Eram
pecadores, e os poderosos nunca eram pecadores. A humanidade está
numa situação de luta. Quem começa e continua a luta são os poderosos,
porque querem dominar os pobres.
O reino de Deus seria a inversão da situação social estabelecida.
Seria o advento de um novo modelo de sociedade. Os ricos seriam rebaixados e os pobres promovidos e haveria um mundo novo de justiça
e de compaixão, assim com o tinham anunciado os profetas. Todas as
elites privilegiadas entenderam muito bem a mensagem.
O Pai não queria reinar como faziam os reis e os governantes dos
povos. Não queria impor a sua vontade, o seu projeto. Na queria contar
com exércitos, com o dinheiro, com alianças com os poderosos. Aí estava Jesus mostrando bem a pobreza do Pai, totalmente desarmado. Jesus
entraria como um dos pobres e ia despertar a esperança dos pobres. Não
anunciou nenhum milagre para a transferência de um mundo para outro.
Porém, depois da ressurreição, os discípulos entenderam que eram eles o
começo do reino de Deus e que a missão deles seria estender esse reino
no mundo inteiro. Era uma missão política. Pouco a pouco, o Império
romano entendeu: esses homens eram ateus, e eram um perigo para a
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O pobre, critério para a profecia
tranquilidade do Império. Era preciso extirpar esse perigo. Por isso, as
perseguições.
O Pai não pedia nenhum culto, não queria impor leis, não fundou
nenhuma instituição, não pedia orações. O mundo novo seria um dom
gratuito. Mas seria também uma tarefa. O Pai queria libertar o seu povo
do pecado, gratuitamente. O pecado era a dominação dos ricos sobre os
pobres, a humilhação, a marginalização permanente dos pobres. Era a
injustiça fundamental, o pecado raiz de todos os pecados.
O Pai queria um mundo novo, como uma nova criação em que
haveria vida para todos, a vida para aqueles que estavam sem acesso a
ela. Queria reinar e queria que esse reino fosse construído pelos seus
discípulos que eram naturalmente pobres também. O projeto do Pai era
basicamente político, não como as políticas dos políticos tradicionais,
que são instrumentos de dominação. Era uma política global, total, uma
nova sociedade que os discípulos iriam estabelecer.
A morte de Jesus na cruz inscrevia-se nesse contexto. Jesus morreu porque anunciou o reino de Deus, o que ameaçava tanto o reino de
César como o reino das autoridades religiosas de Israel. Era um ato
político como queria o Pai. Os que o mataram entenderam muito bem
que Jesus era o adversário que queria destruir a desordem estabelecida.
Estava tudo claro na inscrição ao lado da cruz: “Jesus de Nazaré, rei dos
judeus”. Não imaginavam a maneira como o Pai fosse estabelecer o seu
reino. Até o fim temeram uma intervenção milagrosa para libertar Jesus
da cruz. Mas o reino de Deus não era violento. O reino da justiça nasce
pela missão dos discípulos.
Jesus viveu e morreu no conflito fundamental da história humana:
a dominação de uma grande massa humana por uma elite que se atribui
todos os direitos e todos os bens.
Com Jesus, o Pai também entrou no mesmo conflito. Pois o Pai
estava com ele e nele. As três pessoas da Trindade nunca são separadas.
Onde estava o Filho, Jesus, estavam também o Pai e o Espírito Santo. A
metafísica nada nos diz sobre Deus, salvo o que ele não é. As religiões
nada nos ensinam que não seja produto da imaginação. Deus revelou-se
em Jesus: pela vida, pelos atos, pelas opções de Jesus. Pois Jesus fez
exatamente o que o Pai queria e desse modo nos mostra como é o Pai.
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Deus tem um projeto que é o objeto da promessa feita a Abraão:
projeto de salvar a humanidade dessa dominação que é fonte de todos
os pecados. O projeto do Pai é realizar neste mundo uma humanidade
de justiça e solidariedade, uma humanidade de amor. Não quer realizar
o seu projeto por meio dos poderes deste mundo, que são os poderes
opressores. O fundamento da nova humanidade serão os próprios pobres,
os chamados pecadores, os dominados, explorados, marginalizados das
sociedades humanas. Assim é Deus. Não apareceu como poder. O “Deus
todo poderoso e eterno”, das orações do missal romano, é o Deus da
metafísica e do Império. A nossa liturgia foi profundamente contaminada
e se afastou da revelação de Deus em Jesus. Os grandes deste mundo
fizeram-se um Deus à imagem e semelhança deles, um Deus poderoso
e eterno, ou seja, insensível às contingências do mundo. Esse Deus de
tantas religiões é muito útil para os dominadores porque os justifica, e
procura convencer os pobres que toda busca de liberdade seria pecado
contra ele.
Nesta figura de Deus, os pobres ocupam um lugar central. Tudo
gira ao redor deles. A história humana é o objeto da revelação de Deus,
e é nessa história que podemos conhecer o verdadeiro Deus, nosso Pai.
O Pai revela-se nos pobres, mas não precisamente nos sofrimentos
dos pobres. Os dominadores inventaram uma teologia cínica em que os
sofrimentos dos pobres são positivos porque, por meio dos sofrimentos,
os pobres merecem uma eternidade feliz no céu depois da morte. O sofrimento na vida presente seria um privilégio, porque, graças a ele, os pobres
teriam um lugar privilegiado no céu. Foi uma teologia blasfematória,
que ainda é invocada pelos dominadores para justificar os sofrimentos
que infligem aos pobres.
Outros são mais bondosos, e entendem que os pobres existem para
que possamos ajudá-los com as nossas esmolas. No fundo, esta explicação
é tão cínica como a outra, apesar de uma aparência mais humana.
Na revelação de Deus, os pobres são a esperança do mundo,
porque é por eles que se constrói o reino de Deus. Eles são a verdadeira
Igreja, independentemente da religião que praticam ou não praticam.
O seu lugar não é recompensa de suas possíveis virtudes, mas um dom
gratuito de Deus, a “graça” como se dizia antigamente. A missão dos
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cristãos é proclamar essa mensagem no mundo inteiro, para que todos
os pobres colaborem.
Uma breve observação para responder a uma objeção. O que pensa
Deus dos ricos? Há no evangelho uma resposta muito clara a esse respeito
porque um rico veio fazer essa pergunta a Jesus. Mas há também cada
vez mais uma classe de técnicos, pessoas formadas para que o sistema
econômico, político e cultural possa funcionar. Têm uma condição melhor do que a dos pobres. Mas não são ricos e estão na dependência dos
ricos. O que acontece com eles?
O desenvolvimento técnico por si mesmo não constrói a justiça
nem a solidariedade. Então, tudo depende da situação dos técnicos.
Onde se situam? Os seus serviços e as suas capacidades estão a serviço
de quem? Estão a serviço do crescimento da sociedade estabelecida, ou
seja, da injustiça, ou estão a serviço da libertação dos pobres? Cada um
responde por si mesmo. Os pobres precisam de todas essas capacidades
para construir um mundo novo. Mas a esperança e a vontade de construir
esse mundo está nos pobres. Somente eles têm o poder de Deus.
As duas figuras de Deus podem misturar-se na mesma pessoa, e
podemos presumir que esse caso é frequente. Mas elas são bem distintas,
e os episódios das suas penetrações nos cristãos constituem a história da
Igreja. Pois, esta dependeu em parte das circunstâncias exteriores, mas
sobretudo da dinâmica interna da tensão entre essas duas figuras de Deus.
A questão dos pobres na Igreja está ligada a essa história.
Há duas tradições na Igreja. Há a tradição presente no Novo Testamento e transmitida de geração em geração, sobretudo nas famílias pobres
ou nos grupos proféticos. Nessa tradição encontramos Papas, mas nem
todos, bispos, mas nem todos, sacerdotes, mas nem todos, e leigos, mas
nem todos. A maioria são pobres, mas há também ricos que se fizeram
pobres e colocaram as riquezas a serviço dos pobres.
Há outra tradição essencialmente “religiosa”, que transmite toda a
herança da simbiose com outras religiões. É uma tradição conservadora
do passado, embora esse passado se tivesse construído na história. Tudo
aquilo precisa ser estudado, examinado com discernimento, porque há
elementos que se podem conciliar com o evangelho e outros que não se
podem conciliar. A religião não vale em si mesma, mas pelos serviços
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que pode prestar ao evangelho. Essa tradição tem muita visibilidade.
Quando a mídia evoca a Igreja, fala sempre dessa tradição, fazendo dela
a maior propaganda. No entanto, o critério são os pobres. E cada tradição
tem uma maneira de se relacionar com os pobres..
A profecia
O que é a profecia, já aparece muito claramente nos profetas do
Antigo Testamento. Os profetas são as pessoas que, enviados por Deus e
por nenhuma autoridade humana, sem nenhum papel oficial na sociedade,
denunciam a corrupção do povo de Israel e em particular das suas elites.
Pois estas abandonam o verdadeiro Deus que falou a Abraão anunciando
a promessa, para adotarem o culto do Deus de outras religiões. Abandonam a figura de Deus revelada a Abraão, e adotam a figura de Deus
de religiões pagãs. Esses deuses são falsos e mentirosos. Quando Israel
se deixa enganar por eles, a corrupção afeta toda a sociedade. Os falsos
deuses exaltam o poder dos reis e de todas as autoridades. Por isso são
tão facilmente introduzidos por elas.
Quando Israel adota outros deuses, abandona os pobres. Cresce
a injustiça, a violência, a opressão. Tudo isso recebe o apoio dos falsos
deuses. A opressão dos pobres é o sinal da penetração da religião da
figura de Deus comum à humanidade, mas diferente do Deus das promessas feitas a Abraão.
Por isso, os profetas são os defensores dos pobres. O seu Deus quer
justiça e misericórdia. Os pobres são os sinais que carregam as promessas
feitas a Abraão. São os membros do verdadeiro povo de Deus, encarregados de preparar a realização dessas promessas. Oprimir os pobres
é aceitar abandonar o projeto de Deus e fazer de uma religião o centro
da vida social e pessoal. Por isso, os profetas denunciam os sacrifícios,
denunciam os vícios dos sacerdotes e dos reis que encontram nessa
religião a legitimação da sociedade que oprime. Não se opõem a todas
as religiões, mas denunciam os vícios que elas encobrem e a traição que
elas são frequentemente ao Deus verdadeiro.
Jesus foi profeta e modelo definitivo de todos os profetas futuros.
Dirigiu-se para os pobres e fez todos os sinais que anunciavam a sua futura
libertação. Iniciou o movimento de libertação sendo pobre no meio dos
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pobres, socorrendo os necessitados, os doentes, acolhendo os pecadores.
Lançou um movimento de esperança no meio dos oprimidos e ensinou
aos discípulos como devia ser o mundo no reino de Deus.
Jesus fez oposição a todo o sistema religioso do seu tempo: os
sacerdotes, os doutores, os poderosos chefes de grandes famílias. Denunciou a falsidade da religião que tinham instalado. Tornou manifesta a
hipocrisia das suas manifestações religiosas que legitimavam a opressão
dos pobres, tratados como pecadores. Suscitou a hostilidade de todos
os chefes da religião e de todos os poderosos. Não sobreviveu muito.
Depois de pouco tempo, todos os seus inimigos unidos provocaram a
sua condenação à morte. Assim acontece com os profetas que se atrevem
a levantar a voz para criticar os que mantêm o sistema de dominação
em nome da religião. Tudo isso foi tantas vezes explicado que não é
preciso insistir.
O que é menos conhecido é o papel dos profetas depois de Jesus.
Disso não se fala nos livros sobre a Igreja, nem nos livros de história da
Igreja, nem na catequese. No entanto, logo depois de Jesus apareceram
novos profetas, e apareceram em todas as épocas da história de Igreja,
ainda que não tenham recebido esse título.
Já no Novo Testamento aparecem profetas e eles tiveram uma autoridade grande na Igreja, pelo menos até meados do século II. Não vou
fazer aqui essa história porque os leitores interessados poderão consultar
o meu livro publicado por Paulus A profecia na Igreja (2008).
O que é menos conhecido é a correlação entre o lugar dos pobres
no cristianismo e a figura de Deus que predomina: o Deus dos evangelhos, o Pai de Jesus, ou o Deus comum das religiões e das filosofias, que
é também o Deus que combateram os profetas no Antigo Testamento.
Onde predomina o Deus dos evangelhos, os pobres terão um lugar privilegiado. Se predomina o Deus comum, os pobres não terão nenhum
lugar importante, mas poderão pedir esmola na porta da Igreja, e ser
beneficiários das obras de caridade.
O problema de Deus apareceu desde as origens da Igreja. Os primeiros cristãos eram judeus. Quando aceitaram Jesus, não se esqueceram
imediatamente de toda a sua religião anterior. O seu Deus era o Deus do
Antigo Testamento, interpretado pelos doutores no sentido denunciado
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por Jesus. O título de Pai que usava Jesus, desapareceu em pouco tempo.
Claro está que muitos discípulos judeus trataram de integrar a herança
de Jesus na sua tradição judaica, sem perceber as novidades radicais
propostas por Jesus.
Os próprios apóstolos não entendiam bem a mensagem de Jesus.
Os evangelhos insistem muito nesse ponto. Eles também estavam impregnados pela religião judaica dos doutores e dos sacerdotes. Depois
da ressurreição, foram descobrindo pouco a pouco que começava uma
nova história e que Jesus não voltaria tão cedo.
O evangelho de Marcos, o mais antigo, escrito mais de 40 anos
depois da morte e da ressurreição de Jesus, já é uma profecia. Não é
uma biografia de Jesus, mas uma obra de defesa do verdadeiro Jesus.
O autor dá-se conta de que já se estava mudando a mensagem de Jesus,
reintegrando o judaísmo. Sentiu o perigo e quis recordar o que Jesus
realmente disse e fez, com todo o rigor do distanciamento da religião judaica. Também esse evangelho explicita claramente que a mensagem do
reino é para os pobres, os pecadores, os oprimidos. Os outros evangelhos
seguiram o caminho assim aberto, embora com interesses próprios, cada
um de acordo com o ambiente em que foi escrito. Era preciso explicitar
com muita força que o evangelho era para os pobres, porque na tradição
judaica os pobres eram marginalizados e condenados como pecadores.
Mais tarde, depois da separação com os judeus no final do século
I, os cristãos adotaram o Antigo Testamento e o trataram à sua maneira.
Estavam inspirados pela tradição dos apóstolos segundo a qual Jesus tinha
sido anunciado no Antigo Testamento e era a realização perfeita do Antigo
Testamento. Os primeiros discípulos leram o Antigo Testamento para
descobrir nele as alusões a Jesus e entender melhor o que foi Jesus.
No entanto, bem depressa houve desvios. Em lugar de interpretar o
Antigo Testamento à luz do Novo, entenderam o Novo a partir do Antigo.
Ora, no Antigo Testamento estão as duas figuras de Deus. Quem tinha
sido educado segundo a tradição judaica contemporânea de Jesus, bem
podia não entender a novidade do Pai e continuava invocando o Senhor
como no templo de Jerusalém.
Dessa maneira entraram na Igreja muitos elementos do Antigo Testamento que Jesus tinha descartado. Entrou a teoria e o sistema sacrifical
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O pobre, critério para a profecia
reinterpretado. Mas essa re-interpretação tirava a originalidade do evangelho. Procuraram um novo sacrifício para substituir os antigos. Apesar
de que a carta aos Hebreus proclamava que Jesus tinha suprimido todos
os sacrifícios, restauraram os sacrifícios graças a exercícios mentais muito
complicados, que permitiram considerar a eucaristia como sacrifício. Os
sacrifícios exigiam sacerdotes e por isso os bispos e presbíteros foram
investidos da qualidade de sacerdotes e a eles foi reservada a celebração
da eucaristia, que deixava de ser uma refeição comunitária como memorial da morte de Jesus, para ser um sacrifico oferecido por sacerdotes.
Isto permanece até hoje, embora não haja nada nos evangelhos ou no
Novo Testamento que possa dar apoio a esse sistema. Na mesma linha
começaram a construir templos e os Imperadores cristãos abundaram
nesse sentido. A eucaristia já não se realizava nas casas, mas somente nos
templos. O contrário daquilo que quis Jesus, que não realizou a última
ceia no templo e sim numa casa particular.
Progressivamente, sobretudo desde o século II, a reunião comunitária dos discípulos para recordar o evangelho de Jesus, sua vida e
sua ressurreição, foi substituída pelo culto. Deu-se prioridade ao culto
a Deus, e já o culto não se dedicava ao Pai. Por sinal, o Pai nunca tinha
pedido um culto. Jesus foi tratado como objeto de culto, mais do que
como companheiro na grande viagem da missão no mundo. Não era
aquele que se escutava, mas aquele a quem se atribuía um culto. Esse
culto nunca deixou de crescer depois.
No entanto, o culto é ambíguo. Pode ser ato simbólico, ato de devoção interior que se desenvolve de tal maneira que se deixa de lado o
que Jesus realmente queria: o reino de Deus neste mundo. Muitos sinais
parecem mostrar que muitos cristãos caíram nesse defeito. A prioridade
foi dada ao culto. Até hoje muitos católicos acham que o cristianismo é um
culto, e para os não-católicos está claro que é um culto, porque é a única
coisa que se mostra claramente. Que o cristianismo possa ser o caminho
para mudar o mundo não cai na mente de quase ninguém. Ora,no culto
não há nada que se refira aos pobres. Os pobres desaparecem do horizonte
cristão, a não ser pelas esmolas na porta da Igreja depois do culto.
A partir do segundo século, com certeza a maioria dos cristãos
eram de origem pagã e somente uma pequena minoria era de judeus. Ora,
os pagãos trouxeram dentro das comunidades cristãs todo o seu fundo
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Encontros Teológicos nº 59
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cultural. Não perderam de um dia para outro toda a sua formação prévia.
Não podiam em pouco tempo passar do paganismo para o cristianismo,
do Deus tradicional da sua cultura para o Deus de Jesus.
O que teve mais repercussão na Igreja foram as seitas gnósticas,
misturando temas de filosofia neo-platônica com mitologias e elementos da tradição cristã. O resultado dessa penetração foi um cristianismo
espiritualizado, mais de salvação individual do que mundial. Nessas
teorias, a mensagem do cristianismo podia dissolver-se facilmente.
Houve reações fortes. A obra de S. Irineu foi um eloquente testemunho
da fé no evangelho na sua pureza. Claro está que nas seitas gnósticas a
pobreza não tinha significado. Todos os fenômenos materiais perdiam
o seu valor.
Com a integração da Igreja no Império romano no século IV, a
ideologia imperial entrou profundamente na teologia oficial da corte e
influenciou grandes setores da Igreja, sobretudo no Oriente. Cristo foi
representado como Imperador e Deus era o super-Imperador. Os atributos
do poder foram destacados com muita força. A ideologia imperial teve
muita influência nas liturgias cristãs e ela ainda sobrevive nas liturgias
atuais. O clero separou-se cada vez mais do povo cristão. Estava revestido
dos sinais de poder. Até hoje nas grandes liturgias o bispo aparece como
um grande senhor, um governante do mundo com todos os sinais dos
reis e dos nobres: o bastão de mando, o anel, o chapéu de governador, o
manto imperial, até os sapatos de cor, e o brasão, que fazem dele como
um ente celestial que já não se parece mais com os humildes seres humanos que o aclamam.
Com a integração no Império, muitos cidadãos do Império tornaram-se cristãos por motivos políticos ou culturais , o que enfraqueceu a
presença do evangelho. Eles traziam o seu Deus comum e nem sequer
perceberam que o Pai de Jesus era bem diferente. Quando se adotou o
costume de batizar os recém-nascidos, a mensagem própria do evangelho
permaneceu ignorada pela maioria dos que foram batizados na infância.
O batismo deixava de ser o sinal da conversão ao evangelho para ser
apenas a celebração do nascimento. A liturgia do batismo ficou por conta
dos sacerdotes, porque os católicos nada entendiam disso. Esta situação
perdura até hoje.
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O pobre, critério para a profecia
Esta evolução provocou uma reação extraordinária. O movimento
monástico foi um imenso protesto contra a corrupção da Igreja, a volta
ao evangelho e a escolha de uma vida de pobreza absoluta. Os monges
foram os pobres e representavam a Igreja dos pobres. Durante séculos
os monges foram os que transmitiram a tradição evangélica. No Oriente
os monges nunca atingiram o nível de riqueza que tiveram no Ocidente.
Por isso não precisaram de tantas reformas e fundações novas.
No Ocidente, com a queda do Império romano, entraram muitas tribos que vinham da Ásia e se instalaram. Traziam cada qual a sua religião.
Aos poucos, todos os chefes “bárbaros” adotaram o cristianismo, que lhes
trazia os despojos da cultura romana e lembranças de leis e estruturas
políticas. Os chefes impuseram o cristianismo a todos os membros da
tribo. Pode-se imaginar o que essa massas humanas entendiam do cristianismo. Foram evangelizados esporadicamente pelos monges, mas o
resultado foi muito variável entre as regiões da nova cristandade.
Muitos conservaram as estruturas mentais do seu politeísmo original.
A Igreja lutou para extirpar todas as expressões exteriores da “idolatria”,
mas não podia mudar as estruturas mentais desses povos.Estas estruturas
encontraram novas expressões dentro do sistema cristão. O culto às forças
da natureza foi substituído pelo culto aos Santos, e as práticas desse culto
foram as práticas do seu culto anterior. Dos Santos e das suas relíquias se
esperava a saúde, a libertação das calamidades, da guerra, e das epidemias.
Deus estava longe, na origem de tudo, mas na vida de cada dia, intervêm
os Santos. Era preciso merecer os benefícios pedidos. Havia uma multiplicidade de atos de culto indispensáveis para conseguir a atenção deles.
Esses atos de culto eram comuns aos ricos e aos pobres. Não
tocavam no problema das estruturas sociais de dominação que estavam
na base de tantas calamidades. Esses povos não sabiam ler. Não sabiam
o latim e não havia escritos feitos na sua língua. Foi somente depois do
ano 1000 que começaram aos poucos a escrever alguns escritos em língua popular. Quanto aos evangelhos, nem pensar! Eram reservados aos
monges. Os sacerdotes eram ignorantes demais para conhecer a Bíblia,
que, por sinal, era muito cara.
Podemos presumir que uma aproximação da figura do Deus verdadeiro já estava no coração de muitos desses pagãos batizados. Mas
era algo vivido e inconsciente.
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Encontros Teológicos nº 59
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Muito importante foi a entrada do movimento penitencial, provavelmente em grande parte desde Irlanda, mas também de outras origens.
A vida cristã tornou-se muito penitencial. Multiplicaram-se as práticas
penitenciais, porque se tinha que conseguir o perdão dos pecados. Esse
penitencialismo não deriva do cristianismo, mas os seus autores foram
buscar na Bíblia textos que o recomendavam, textos situados fora do
contexto. A vida tornou-se vida de luto : cada defunto da família exigia
anos de penitência. Cada alma precisava de muitas missas para sair do
purgatório. A prática do jejum se aplicava durante mais de 70 dias por
ano. Havia muitas orações obrigatórias que deviam ser recitadas com
as palavras exatas.
Os cristãos tornaram-se multidões de suplicantes. Muitos faziam
a peregrinação à Terra Santa, ou a Roma ou a Santiago de Compostela
ou aos inúmeros santuários menos famosos, para conseguir o perdão dos
pecados.Esse cristianismo penitencial somente começou a desaparecer
ou a diminuir notavelmente no século XX. Agora está praticamente desaparecido. O crescimento do bem-estar e da medicina desprestigiaram
as práticas penitenciais. Hoje somente os membros do Opus Dei ainda
praticam a auto-flagelação e usam o cilício para conseguir o perdão dos
seus pecados (que provavelmente não são poucos).
Em certos casos o movimento penitencial foi orientado por alguns
grupos no sentido de uma revolta dos pobres contra a dominação da
qual eram vítimas. Na maioria dos casos, o movimento penitencial era
puramente religioso e cultual.
Na história da cristandade ocidental, houve sempre tensão entre
uma tradição profética e evangélica que procura lembrar o Deus verdadeiro revelado na vida de Jesus, e um imenso sistema religioso centrado
num Deus comum, diferente do Deus de Jesus. Este sistema religioso
foi durante muitos séculos a própria civilização ocidental, porque envolvia todos os aspetos da vida pessoal e social.Chegou-se a definir o
cristianismo como uma religião. Quando os ocidentais conquistaram o
mundo, foram acompanhados por legiões de missionários que procuraram
integrar os povos conquistados nessa religião. Pois, o que ofereceram
aos povos colonizados foi uma religião. Não foi o evangelho de Jesus
Cristo, salvo honrosas exceções.
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O pobre, critério para a profecia
Os camponeses, que eram a imensa maioria da população até
meados do século XX, fizeram inúmeras revoltas contra a sua miséria.
Estas estavam muitas vezes inspiradas por motivos evangélicos, a esperança dos pobres despertada por Jesus. Nunca tiveram o apoio do clero,
totalmente ligado à classe dos nobres e dos proprietários. Foram tratados
como hereges e exterminados.
No século XIX apareceu uma nova classe de pobres: a classe dos
operários da indústria. Começou um movimento de revolta dos operários
para conseguir condições de vida mais humanas, porque eram tratados
como escravos ou pior do que os escravos. Alguns sacerdotes e alguns
poucos bispos souberam o que estava acontecendo e entenderam a luta
dos pobres. Alguns entenderam que essa luta cabia dentro da esperança
messiânica de Jesus e deram apoio. A maioria da hierarquia e do clero,
porém, permaneceu ao lado dos donos da indústria e invocaram a condição da Igreja : a missão da Igreja era religiosa e não política ou social.
Ainda hoje, para muitos essa é a doutrina oficial. Qualquer intervenção
na libertação dos pobres é vista como algo eventualmente tolerável, mas
secundário e não afeta a natureza do cristianismo.
Foi preciso esperar a segunda metade do século XX para descobrir
e explicitar publicamente o que é realmente o Deus de Jesus. Mesmo
assim, a maioria da hierarquia e do clero não o entende e permanece fiel à
visão religiosa, como se a religião fosse um fim em si, um valor absoluto
e definitivo, uma realidade intocável e sempre legítima.
O resultado é conhecido: os pobres estão longe da Igreja, salvo em
alguns setores em que se viveu uma teologia dos pobres e da libertação.
Os pobres podem acreditar num Deus que entendem segundo a tradição
profética transmitida pela tradição de família, mas não acreditam no
sistema eclesiástico.
O Documento de Aparecida renova a opção pelos pobres, mas
de forma muito ambígua: não se sabe se reconhece que a Igreja são os
pobres, que os missionários são os pobres, ou se se entende que a Igreja
deve preocupar-se com os pobres e aliviar os seus sofrimentos, pedindo
justiça, mas só de palavra, porque não intervém em casos concretos sendo
a Igreja essencialmente religiosa. Quem nos explicará o que os bispos
realmente queriam? Sabemos o que Roma quer, mas não sabemos o que
os bispos e o clero latino-americano querem. Quem nos explicará?
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Encontros Teológicos nº 59
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Resumo: Partindo do jardim do Éden, o autor reflete sobre o mistério da criação,
obra do amor misericordioso de Deus, socorrendo-se da mística ortodoxa. A
história espiritual do Oriente atesta o despertar de uma corporeidade pneumática
(milagres de luminosidade, vitória sobre o peso, sobre o tempo e o espaço),
fruto de quem “tornou pura a terra de seu corpo” com uma experiência não
individual, mas eclesial: a de quem recuperou, numa perspectiva escatológica,
a condição paradisíaca. Todo o ambiente da natureza é iluminado ao seu redor.
A contemplação da natureza é um dos aspectos principais da mística ortodoxa.
É uma contemplação ativa, porque a transformação do coração e do olhar realmente transforma o mundo. É uma contemplação da interioridade dos seres e
das coisas, do mundo, assim como Deus o pronunciou em seu Verbo e recriou
na encarnação desse Verbo.
Abstract: Beginning with the narrative of the Garden of Eden, the author envisages the mystery of creation as a work of a compassionate God from the point
of view of mysticism developed in Orthodox theology. The spiritual history of the
Orient stresses the awakening of the notion of spirit detached from corporeity
(miracles of luminosity, victory over weight, time and space). This connotation
arises from changes of a “body freed from the soil of his body” and from individual
experience opening up to an ecclesial sphere, and from an eschatological perspective arriving at a paradisiacal state. All the environment of nature is enveloped
in a radiance of light. The contemplation of nature is one of the principal aspects
of Orthodox mysticism. To be sure, it is an active contemplation of the internal
core of beings and things, as well as of the world just as God has given its name
together in the Word and recreated it in the incarnation of the Word.
A criação geme em dores
de parto: CF-2011
O mistério da criação do nada, do amor
José Artulino Besen*
*
O autor é professor de História da Igreja, no ITESC, desde 1976. Membro do Instituto
Histórico e Geográfico de Santa Catarina e da Academia Catarinense de Letras, tem
publicado muitos livros e artigos na sua área de especialização.
Encontros Teológicos nº 59
Ano 26 / número 2 / 2011, p. 155-166.
A criação geme em dores de parto: CF-2011
“O Senhor Deus plantou um jardim no Éden e nele colocou o homem
que havia formado. ... O Senhor Deus o estabeleceu no jardim do Éden
para cultivar o solo e o guardar” (cf. Gn 2,8.15). A narração bíblica
revela o carinho de Deus: planta um jardim, planta fruteiras, flores, tudo
com uma finalidade definida: fazer o homem sentir-se bem e, desde já,
preparar o chão por onde caminharia seu Filho. Milênios depois, quando
Jesus contempla as colinas da Galileia, o lago de Tiberíades, a Judeia,
o mar Mediterrâneo, o deserto, recordará a obra de seu Pai, feita para
ele e para todos aqueles que receberam o sopro divino.
Ao contemplar sua obra, Deus a julgou bela-e-boa (tov), muito
bela (Gn 1,31), de uma beleza-e-bondade extensiva a toda a sua obra. O
mundo, de alguma forma, encanta, fascina também a Deus. O amor de
Deus pelo homem é sem limites: “O homem foi criado como um cofre
tão grande, a ponto de conter o próprio Deus”1.
Mas, o homem e a mulher não detêm exclusividade no jardim
de Deus: tudo e todos, animados e inanimados, fazem parte dele. Infelizmente, o pecado inverteu a ordem divina: o mundo foi entregue ao
homem e à mulher para que cultivassem o solo e o guardassem. Um
jardim tem de ser renovado com carinho, necessita de novas plantas e
flores: cultivar e guardar. A inversão operada pelo pecado trouxe a noção de “dominar” – que é positiva: ser o senhor, agir como dono - mas
adquiriu sentido negativo: sou dono, me pertence, faço o que quero e
cada um que se arranje. O “dono” da casa cuida da casa, quem não é
dono a explora no seu interesse, não se preocupando com a decadência,
os cupins, a umidade, a ruína.
A criação é sempre geradora de vida: a transformação de seus elementos forma o corpo humano, o faz crescer e o nutre. Se algum de nós
quisesse se isolar da criação, morreria de inanição, pois estaria privado
da vida. Somos terra/pó, à terra/pó retornamos. Sem desespero, mas na
alegria de nossos restos poderem gerar novas vidas.
O pecado não impede mais um gesto perfeito do amor paterno:
Deus dá seu Filho ao mundo e o mundo a seu Filho. Quando o Verbo
1
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CABASILAS, Nicolás, séc. XIV
Encontros Teológicos nº 59
Ano 26 / número 2 / 2011
José Artulino Besen
se faz Carne, a carne se faz Verbo. O mundo ofereceu os elementos
naturais para a formação do corpo de Jesus e garantiu-lhe o sustento
e crescimento. Na encarnação há a renovação da unidade original, da
harmonia querida pelo Pai.
O mesmo Filho que contemplou a obra da criação agora nela vive
e a contempla bela, sim, mas prejudicada pelo pecado: as posses exclusivistas, as faces sofridas de tantos marcados pela fome, doença, vítimas da
injustiça. E seu olhar de Filho é tomado pela misericórdia, donde nada é
excluído: uma imensa compaixão pelos seres humanos, pelos pecadores,
pelos vegetais, animais, seres animados e inanimados.
O Senhor sabe que tudo lhe pertence, mas tudo partilha. Ele vem
para que tudo tenha vida, recupere a beleza original. Somente os corações
misericordiosos iguais ao dele geram beleza, porque em tudo sentem a
beleza. Quando Francisco de Assis com carinho depositava uma brasa no
chão, para que não se ferisse, era movido pela misericórdia. Os animais
também sentiam essa misericórdia e por tudo Francisco entoa o “Canto
das Criaturas”: tudo é de Deus, tudo canta sua glória.
Misericórdia que regenera
A misericórdia de Jesus, expressa de modo perfeito e definitivo
na Cruz e na Ressurreição, atinge toda a obra divina e assim “a criação
inteira geme ainda agora nas dores do parto. E não só ela: também
nós, que possuímos as primícias do Espírito, gememos interiormente,
esperando a adoção, a libertação para o nosso corpo” (Rm 8,22-23).
O gemer da criação abrange o doloroso estado atual e a espera de
um futuro estado glorioso. O mundo material e inanimado será associado
à glorificação do corpo do homem no Cristo ressuscitado. Toda a obra
divina geme, penetrada pelo Espírito, ao sentir a misericórdia do Filho.
Como poderia resistir indiferente ao ver suas lágrimas penetrarem no
solo, seu sangue fecundar o chão do Calvário?
É motivo de lamento a pouca importância que damos ao Jardim
onde estamos colocados, vendo nele apenas instrumento de posse,
exploração, consumo, desperdício. O mundo, porém, não é tão sem
Encontros Teológicos nº 59
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A criação geme em dores de parto: CF-2011
importância, inútil, ilusório: Cristo veio para morrer aqui. Aqui
esteve para salvar a obra divina. Aqui derramou o Espírito de vida
e santidade. Não somente o homem tem a vocação de ser novo: a
ressurreição e a transfiguração visam novos céus, nova terra, a nova
Jerusalém (cf. Ap 21,1-2).
À medida que lavamos nossos olhos com as lágrimas do Senhor,
também somos tomados pela misericórdia. E tudo gemerá, sentindo
nosso coração misericordioso que não poderá ouvir ou ver qualquer
sofrimento, mesmo na menor criatura, pois nossa misericórdia será à
imagem da misericórdia divina.
Ascese e corpo espiritual
O corpo penetrado pela luz a comunica ao ambiente cósmico
dele inseparável. A criatura é ordenada para a graça, a ponto de
não se completar a não ser na união com Deus; a natureza humana,
restaurada em Cristo, desde sua estrutura corporal é um instrumento
para tomar consciência da graça, um suporte para a divinização,
um “templo do Espírito Santo”: “glorificai a Deus no vosso corpo”
(1Cor 6,20). O sangue é a água vital “pneumatizada”, incorporada
pelo fogo, fogo do Espírito Santo que transforma o “corpo psíquico” em “corpo espiritual”. Possuir o seu sangue em espírito para
oferecê-lo ao fogo eucarístico significa comunicar esse fogo libertador ao sangue dos animais, à linfa das plantas, ao oceano informe
que espera ser reabsorvido no “mar de cristal misturado com fogo”
de que fala o Apocalipse (Ap 15,2) e que faz os justos cantarem
“grandes e admiráveis são tuas obras, Senhor, Deus todo poderoso” (Ap 2,3). Um mesmo sangue deificante passa de um coração
ao outro, atravessando o coração do Mestre, e secretamente irriga
os seres e as coisas2.
2
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Na Divina Liturgia de São João Crisóstomo o sangue como água vital incorporada pelo
fogo do Espírito Santo é simbolizado pelo derramar de um pouco de água quente –
temperatura do Sangue – no cálice após a ebulia (Zéon - ebulição) com as palavras
traçando a cruz: “Bendito X seja o fervor dos teus santos, eternamente, agora e sempre
e pelos séculos do séculos”. Derramando a água: “O fervor da fé, cheio do Espírito
Santo. Amém”. Segue-se a Comunhão.
Encontros Teológicos nº 59
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José Artulino Besen
O universo, recordemos, está no homem quando o homem está
em Cristo. Ao descermos à raiz da matéria e da vida, ao crucificarmos a sexualidade cósmica para transformá-la em força regenerante,
colocamos em movimento correntes corpóreo-espirituais reais que se
apoderam, progressivamente, de seu ambiente material e o espiritualizam. Transformar os sentidos em “sentidos espirituais” é perceber
as coisas não mais segundo a morte, mas segundo o Espírito, como
Deus as vê, na sua interioridade espiritual. Tudo isso é obra do amor:
“Deus nos deu a conhecer o mistério de seu plano e sua vontade, ...
o desígnio de, em Cristo, reunir todas as coisas: as da terra e as do
céu” (cf. Ef 1,9-10).
A contemplação da natureza
A história espiritual do Oriente atesta o despertar de uma corporeidade pneumática (milagres de luminosidade, vitória sobre o peso, sobre
o tempo e o espaço), fruto de quem “tornou pura a terra de seu corpo”
com uma experiência não individual, mas eclesial: ele recuperou, numa
perspectiva escatológica, a condição paradisíaca3. Todo o ambiente da
natureza é iluminado ao redor dele.
A contemplação da natureza é um dos aspectos principais da
mística ortodoxa. É uma contemplação ativa, porque a transformação do coração e do olhar realmente transforma o mundo. É uma
contemplação da interioridade dos seres e das coisas, do mundo,
assim como Deus o pronunciou em seu Verbo e recriou na encarnação desse Verbo.
Máximo, o Confessor 4, insiste que é importante recolher a
interioridade espiritual dos seres não para possuí-los, mas para
apresentá-los a Deus como ofertas da parte da criação. Nesse gesto,
o homem deixa de coisificar o universo pela sua cobiça e cegueira,
para identificá-lo com o “Corpo de Deus”. Sua presença exorciza,
pacifica e passa a compreender a linguagem da criação. Diz o Pere3
MACÁRIO, o Grande, Homilias Espirituais.
4
MÁXIMO, o Confessor, Mistagogia 2.
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A criação geme em dores de parto: CF-2011
grino Russo: “Quando rezava com o coração, tudo ao redor de mim
aparecia no seu melhor aspecto... tudo rezava e dava glória a Deus.
Compreendi então o que se chama conhecimento da linguagem da
criação, através da qual o homem pode conversar com as criaturas de
Deus”. Poderíamos citar o verso de Paul Claudel: “Somente a alma
purificada pode compreender o perfume da rosa”.
Nessa oração, uma caridade cósmica comove o espiritual, na
imagem que Paulo expressa com os “gemidos da criação” (Rm 8,22).
Isaac, o Sírio, afirma que nesse momento somos transformados num
coração misericordioso: é o incêndio do coração por cada criatura, até
pelos demônios. À vista de cada criatura, os olhos do orante derramam
lágrimas, pois é violenta a misericórdia que aperta seu coração devido
à sua grande compaixão, como já vimos.
Espiritualidade e vocação cósmica do cristão
A luz da alta espiritualidade não anula, mas reilumina a vocação
cósmica do cristão que vive no mundo. Olivier Clément divide essa
vocação em três temas: o alimento, o amor nupcial e o trabalho.
O alimento: “O alimento é a nossa comunhão natural com a
carne do mundo”5. Quando se abençoa o alimento, o trabalho que o
produz, estamos negando o “saque do planeta”. Passamos da relação
de vampiros com a natureza – comer para ser comidos – a uma relação
eucarística, que torna Deus presente nos ciclos vitais da natureza.
Os Santos Pais, como Gregório de Nissa6, insistem na afirmação de
que os elementos naturais passam incessantemente de um corpo ao
outro e, desse modo, o universo é um só corpo. Para eles, a terra tem
somente Deus como dono, e a bênção do alimento supõe sua benéfica
circulação, justa condivisão. A uma cosmologia de comunhão seguese uma sociologia de comunhão.
160
5
BULGAKOV, Sergei, L’Orthodoxie.
6
GREGÓRIO de Nissa, Os seis dias.
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José Artulino Besen
O jejum é inseparável dessa consagração do alimento, pois é o
único caminho que nos liberta da voracidade egoísta, fruto do pecado.
Ajuda a transformar a vida cósmica numa perspectiva paradisíaca e,
sobretudo, permite a indispensável condivisão com os pobres.
Para Clément, a espiritualidade do jejum permite aos cristãos
enfrentar uma civilização de consumo e abundância, de arrogância que
inclui apenas uma minoria. É o alimentar-se de Cristo no amor pelo pobre:
“tive fome e me deste de comer” (Mt 25,35). Deus nos dá o necessário
que sobra, para fazer o bem.
A bênção, o respeito pela terra, a submissão a toda a vida na sua
fecunda beleza, a condivisão com os pobres, nos fazem convergir para
transformar a terra em Eucaristia, de modo que o comer para ser comido
torne-se comer Deus em toda a nossa vida para sermos comidos por ele
em toda a nossa morte.
O trabalho: as civilizações oscilam entre dois polos: retornar
ao paraíso através da festa, da arte e do repouso, quando o homem se
maravilha gratuitamente com a natureza – e o trabalho como “humanização” do universo, transformação da matéria do mundo num corpo
que pertence a todos os homens7. Graças ao trabalho, que engloba saber
científico e poder técnico, o homem é chamado a colaborar com Deus
para a salvação do universo.
Infelizmente, o Ocidente, na revolução técnico-industrial, nada
tinha em seu patrimônio espiritual que lhe permitisse fecundar com a luz
tabórica o lance das ciências e das técnicas. Esse lance coincidiu com um
verdadeiro exílio de Deus no céu. A insistência do resgate pelos méritos
de Cristo e não pela divinização, no Deus feito homem, de toda a carne
da terra, a escolástica substancialista que tornava quase impossível a
percepção das energias divinas que realmente penetram o universo,
contribuíram para amputar, no Ocidente, o seu alcance cósmico da redenção. A Reforma e a Contra Reforma tornaram-se a religião da alma,
na linha de “Deus e minha alma” agostiniana, e tornou-se moral ativa,
7
BULGAKOV, Sergei.
Encontros Teológicos nº 59
Ano 26 / número 2 / 2011
161
A criação geme em dores de parto: CF-2011
conquistadora (época das conquistas, das destruições), sem capacidade
de metamorfose ontológica.
Aqui, sobretudo, o cristão é chamado a ser um homem litúrgico.
Não existem fronteiras à irradiação da liturgia. Nós somos sacerdotes
e reis e, no conhecimento da natureza como na sua transformação, é
próprio de nós vivermos a grande eucaristia cósmica: “Os teus dons, de
ti recebidos, a ti oferecemos em tudo e por tudo”.
O amor nupcial: no verdadeiro amor, o eros (a patrística logo
abandonou o termo agápe) não é interiorizado, mas expresso no interior
de um encontro pessoal que, na sua ordem, reproduz a união de Cristo
e da Igreja, do Logos e da carne santa da terra. Para quem ama assim,
o mundo é uma casa onde nada é impessoal. O amor cego e mortífero é
transformado em festa de encontro, de síntese, que restabelece um dos
maiores sinais da ruptura: a dominação e divisão egoístas. Os esposos
pedem a Cristo que renove por eles e através deles o milagre de Caná,
para transformar o lance cego do eros em vinho eucarístico. O casal
é chamado a estabelecer um pacto nupcial com a terra. Transfigurar a
vida cósmica num autêntico encontro nupcial é preparar o surgimento
de uma nova terra.
O primeiro milagre de Cristo é o das núpcias em Caná: Cristo
transforma no vinho de amor apaixonado a água da ordinária relação
procriadora. O cristianismo introduziu uma revolução fundamental, já
anunciada no Cântico dos Cânticos: é o aparecimento da pessoa, em
contraste com o simples jogo da multiplicação da espécie. A união com
Deus agora aparece como uma comunhão, cujo símbolo é o amor fiel
entre o homem e a mulher. A mulher é afirmada como pessoa e não como
ser-para-a-procriação. A dimensão do corpo dá lugar ao rosto, o rosto
de uma pessoa que se realiza livremente na fé, numa ligação única com
o Deus vivente.
O eros físico não é renegado, mas é iluminado e ilumina, transfigurando o eros cósmico. João Clímaco8 serve-se de belas expressões
para designar essa transformação: “O eros físico deve ser teu modelo
8
162
CLÍMACO, João, Escada do Paraíso, 26,153; 30,198.
Encontros Teológicos nº 59
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José Artulino Besen
para teu desejo de Deus” e “Feliz aquele que tem por Deus uma paixão
tão violenta como a do amante pela amada”.
Nos extratos mais profundos da alma, o mistério da terra está
ligado ao da feminilidade, tão bem simbolizado no Cântico que é, ao
mesmo tempo, canto de amor e símbolo da união de Deus com seu
povo, sua terra, com cada alma fiel. Terra-mulher porque é materna,
pois acolhe em seu ventre materno os mortos nela sepultados, e dos
restos mortais sucessivamente gera novas vidas, que faz da vida,
transformada em alimento e tornada em excremento, adubo que gera
nova vida. Terra/matéria que geme em dores de parto, esperando sua
gloriosa transfiguração.
O homem litúrgico
Os “mistérios” da Igreja, ou seja, os diversos aspectos da Igreja
como sacramento de Cristo no Espírito Santo, constituem o centro
e o sentido da vida cósmica. As coisas existem para as orações, as
bênçãos, as transfigurações. Na celebração, na qual o Espírito Santo
atualiza e manifesta a morte e a ressurreição de Cristo, o “corpo de
morte”, não ainda abertamente, mas “em mistério” e pela fé, se enche pouco a pouco de eternidade, esboça a própria metamorfose em
“corpo de glória”. A Igreja, enquanto mistério de vida, põe-se como
centro que irradia a existência cósmica.: “A matéria recebe em si
mesma a força de Deus”. O poder separador, mágico, de Satanás, é
exorcizado; e o mundo material, “sob o véu do sacramento” responde
à sua primeira vocação de ser carne de comunhão entre o homem e
o seu Deus9. As epícleses de todas as ações sacramentais constituem
como que uma continuação do Pentecostes, um soprar do Espírito para
a nova criação, a retomada, num novo dinamismo, do “pentecostes
cósmico” das origens.
As energias divinas penetram a água do batismo e o óleo do santo
crisma, os noivos no matrimônio, o doente ungido. E tudo culmina na
9
GREGÓRIO de Nissa, O Batismo de Cristo.
Encontros Teológicos nº 59
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163
A criação geme em dores de parto: CF-2011
transformação eucarística, na qual o pão e o vinho são transfigurados (o
Oriente prefere essa palavra a “transubstanciados”).
Para Irineu de Lião10, séc. II, nós oferecemos toda a natureza,
para que ela inteira se torne eucaristia. Na Oração Eucarística de
Cirilo de Jerusalém11, séc. IV, “fazemos memória do céu, da terra,
do mar, da lua, das estrelas, de toda a criação racional e irracional,
visível e invisível”. Máximo o Confessor , séc. VII, sublinha a correspondência entre a liturgia eclesial e a liturgia cósmica, entre a
igreja, com o santuário e a nave, e o mundo sensível e inteligível: “a
igreja tem como céu o Santo dos Santos e como terra a nave em toda
a sua beleza”. No inverso, o mundo é uma igreja. Já o homem, deve
fazer do corpo uma nave e, da sua alma, o Santo dos Santos no qual
oferece os seres do universo.
Resumindo, “ao recolhermos a interioridade espiritual dos seres, o
mundo se revela como uma igreja: a nave é o universo sensível, os anjos
são o coral e o espírito do homem em oração o santo dos santos: “Assim
a alma se refugia como numa igreja e num lugar de paz na contemplação
espiritual da natureza; ela ali entra com o Verbo e, com ele como nosso
Sumo sacerdote, sob a sua guia, oferece o universo a Deus no seu espírito
como num altar”12 “Para o homem que reza em seu coração, o mundo
inteiro é uma igreja”13.
No batismo, o ministro unge a fronte do batizado pedindo que
“como rei, sacerdote e profeta, continue no seu povo até a vida eterna”.
Tantas vezes falamos de nosso tríplice múnus de “reis, sacerdotes e
profetas”. E, na maioria das vezes, nos esquecemos que esse múnus
tem dimensão cósmica. É por ele que celebramos a grande liturgia que
responde aos gemidos da criação.
Para encerrar, o belo hino de Sergei Boulgakov14:
10
11
164
IRINEU de Lião, Adv. Haereses, 4,18,5.
CIRILO de Jerusalém, Catequeses mistagógicas 5,6.
12
MÁXIMO, o Confessor, Mistagogia 2.
13
SILVANO do Monte Athos † 1938.
14
BOUlGAKOV, Sergei, “Luz sem ocaso”.
Encontros Teológicos nº 59
Ano 26 / número 2 / 2011
José Artulino Besen
“De ti, terra mãe, nasceu a carne que deveria gerar o Deus feito carne.
De ti tomou seu puríssimo corpo, em ti repousou três dias no sepulcro.
De ti germinam o trigo e a videira, que se tornam corpo e sangue de
Cristo...
No silêncio, tu guardas a plenitude e a beleza inteira da criação”.
O mundo e toda a criação são tão preciosos a Deus que podemos
afirmar, com o exegeta Barthélemy15, que Deus é imanente: acolher os
pequenos, é acolher a Deus (Zc 2,12; Lc 9,48; Mt 25,40); ele e o Filho
vêm a nós e em nós estabelecem sua morada (Jo 14,23; 17, 21.26); Deus
é infinitamente imanente: “O Verbo se fez carne” (Jo 1,14). E acima de
tudo, o por quê da grandeza da Terra Mãe e do amor divino por ela: em
suas entranhas formou-se a Mãe de Deus.
Bibliografia:
Bíblia Sagrada – tradução ecumênica, TEB, São Paulo: Edições
Loyola, 2. ed., 1995.
Barthélemy, Dominique. Il povero scelto come Signore. Bose: Ed.
Qiqajon, 2010.
Bernardino, A.; Simonetti, Manlio. Dicionário de Literatura
Patrística. São Paulo: Editora Ave Maria, 2010.
Boulgakov, Sergei. La lumière sans déclin. Lausanne, 1990.
Boulgakov, Sergei. La Sagesse de Dieu. Lausanne, 1983.
Cabasilas, Nicola. La Vita in Cristo. Roma: Città Nuova, 2000.
Trad. Maria Gallo.
Clément, Olivier. Il senso della terra. Roma: Lipa, 2007.
Clément, Olivier. L’oeil de feu. Fata Morgana, 1994.
Evdokimov, Pavel. A loucura do amor de Deus. São Paulo: Paulus.
Gregório de Nissa. Sul battesimo di Cristo: PG 46, 581B.
15
BARTHÉLEMY, Dominique, 1921-2002.
Encontros Teológicos nº 59
Ano 26 / número 2 / 2011
165
A criação geme em dores de parto: CF-2011
Irineu de Lião. Adversus Haereses (Contra as Heresias). São Paulo:
Paulus, 2. ed., 1995. Tradução de Hélcion Ribeiro.
João Damasceno. De fide orthodoxa. PG 95,60D.
Lossky, Vladimir. Conoscere Dio. Bose: Ed. Qiqajon, 1996.
Máximo o Confessor. Questioni a Talassio, prólogo: PG 90,
257D; 260A.
Máximo o Confessor. Mistagogia 2: PG 91, 697D-700A.
Máximo o Confessor. Ambígua, PG 91,1360AB.
Tillard, Jean-Marie. Carne della Chiesa, Carne di Cristo. Bose: Ed.
Qiqajon, 2006.
Zizioulas, Ioannis. A criação como Eucaristia. São Paulo: Itesc e
Mundo e Missão, 2001. Trad. José Artulino Besen.
E-mail do Autor:
E-mail: [email protected]
Blog: pebesen.wordpress.com
166
Encontros Teológicos nº 59
Ano 26 / número 2 / 2011
Aonde vais, Igreja? Leitura das novas
Diretrizes Gerais da CNBB
Paulo Suess*
No início da Via Appia Antica, na saída de Roma, se encontra a
pequena Igreja Quo vadis, Domine (“Aonde vais, Senhor?”). Ela lembra
a lenda de uma fuga e a história de uma perseguição. Segundo a lenda, o
apóstolo Pedro teria fugido das perseguições do imperador Nero (54-68)
e se encontrou, no perímetro da Quo-vadis-Domine, com Jesus ressuscitado. À pergunta de Pedro “Aonde vais, Senhor?”, Jesus teria respondido
“vou a Roma para ser novamente crucificado”. Neste exato momento,
em que o afrouxamento do espírito de pertença à Igreja Católica aponta a
diferentes razões de fuga, a CNBB procurou em suas “Diretrizes Gerais
da Ação Evangelizadora da Igreja no Brasil, 2011-2015” (DGAE 2011)
responder à pergunta: “Aonde vais, Igreja?”
1 Do objetivo geral
Para nossa reflexão sobre caminhar histórico e direção contemporânea da Igreja no Brasil pode ser fecundo comparar o objetivo da XVII
Assembleia Geral da CNBB, de abril de 1979, com os objetivos das
DGAE de 2008 e de 2011. O Objetivo geral de 1979 rezava:
1979
Evangelizar a sociedade brasileira em transformação, a partir da opção
pelos pobres, pela libertação integral do homem, numa crescente participação e comunhão, visando à construção de uma sociedade fraterna,
anunciando assim o Reino definitivo.
*
Missiólogo e assessor teológico do Cimi. Texto disponível em: <http://www.adital.com.
br/site/noticia.asp?lang=PT&cod=59043>. Acesso em 05.08.2011.
Encontros Teológicos nº 59
Ano 26 / número 2 / 2011, p. 167-174.
Aonde vais, Igreja? Leitura das novas Diretrizes Gerais da CNBB
Se colocarmos o novo Objetivo geral das Diretrizes de 2011 ao
lado do Objetivo de 2008 e compararmos ambos com o de 1979, temos
uma informação “objetiva” sobre mudanças significativas e continuidades a longo e curto prazo. Nos Objetivos de 2008 e 2011, com ênfase
no discipulado missionário, percebe-se a influência de novos setores e
movimentos. Estes, nos últimos anos, ganharam força na Igreja Católica,
influenciaram fortemente o evento de Aparecida (2007) e se sintonizaram
mais com o discurso universal, genericamente romano, do que com os
contextos geográficos, onde deveriam estar enraizados:
2008
Evangelizar,
a partir do encontro com Jesus
Cristo,
como discípulos missionários,
à luz da evangélica opção
preferencial pelos pobres
promovendo a dignidade da pessoa,
renovando a comunidade,
participando da construção
“para que todos tenham vida
e a tenham em abundância”
(Jo 10,10).
2011
Evangelizar,
a partir de Jesus Cristo,
na força do Espírito Santo
como Igreja discípula, missionária e profética,
alimentada pela Palavra de Deus
e pela Eucaristia,
à luz da evangélica opção preferencial pelos
pobres
para que todos tenham vida (cf. Jo 10,10)
rumo ao Reino definitivo.
A continuidade verbal das DGAE está na própria evangelização,
na opção pelos pobres e no anúncio do Reino de Deus e da Vida. As
mudanças significativas que se percebem nos Objetivos gerais de 2011 se
encontram em seu cunho nitidamente introvertido. A Igreja das Diretrizes
gira em torno de si mesma e perdeu, aparentemente, o horizonte da “libertação integral do homem” (1979) e da “construção de uma sociedade
justa e solidária”(2008) de outros tempos. As palavras-chave, na ordem
das Diretrizes de 2011 são: evangelizar, Jesus Cristo, Espírito Santo,
Igreja discípula, missionária e profética (sem respaldo significativo no
próprio texto das Diretrizes), Palavra de Deus, Eucaristia, (finalmente!)
a opção preferencial pelos pobres, vida e Reino.
Há uma divergência sobre o ponto de partida para a evangelização:
evangelizar “a partir da opção pelos pobres” (1979) ou evangelizar “a
partir de Jesus Cristo” (2011) que alguns bispos consideram uma tautologia. Evangelizar a partir da realidade social ou da revelação e doutrina?
O “a partir de” pode apontar para um ponto de partida geográfico-social
(“a partir do lugar dos pobres”) ou para uma fonte doutrinal (“a partir
de Jesus Cristo”). Não devemos confundir “lugar” com “fonte”. Para
definir o uso da fonte doutrinal, precisa-se dizer antes a partir de que
168
Encontros Teológicos nº 59
Ano 26 / número 2 / 2011
Paulo Suess
lugar sociogeográfico se faz uso daquela fonte. A fonte é um instrumento
a serviço da causa dos pobres. “Fonte” e “lugar” apontam para níveis
diferentes. Uma solução atenuante se oferece através da aproximação
de Jesus Cristo aos pobres, portanto, da “fonte” ao “lugar”, como está
implícito no “julgamento das nações”, de Mt 25,31-46.
O Objetivo geral das DGAE 2011 aponta para essa discussão
de fundo, que é uma discussão semântica e metodológica. Ela procura
esclarecer o conceito de realidade e versa sobre a aceitação da metodologia do ver, julgar, agir e da precedência do “lugar social” ante a “fonte
doutrinal”.
2 Da realidade
Na 5ª Conferência Geral do Episcopado Latino-Americano e do
Caribe, em Aparecida (2007), o papa Bento XVI assumiu essa questão e
tranquilizou o ambiente, dando, aparentemente, razão a gregos e a troianos. Deve-se, antes de tudo, saber que a metodologia do ver-julgar-agir
não é uma invenção da Teologia da Libertação. Trata-se de uma herança
da Juventude Operária Católica (JOC), da Bélgica, assumida pelo papa
João XXIII, em sua Carta Encíclica Mater et Magistra, de 1961 (MM
236). Por conseguinte, Bento XVI, em Aparecida, não teve mais a possibilidade de rejeitar a metodologia do ver, julgar, agir, mas introduziu
nela acréscimos significativos.
A análise da realidade, em documentos eclesiais latino-americanos,
está muito ligada ao lugar da “opção preferencial pelos pobres”. No
Objetivo geral das DGAE 2011, a opção preferencial pelos pobres está
no último lugar possível e seu conteúdo fica aquém da proposta de Aparecida que deu um novo peso a essa opção explicando o significado do
“preferencial”, nas DGAE apenas formalmente citada (69): “Que seja
preferencial implica que deva atravessar todas as nossas estruturas e
prioridades pastorais”(DAp 396).
A opção pelos pobres e pelos “outros” nos coloca em meio a
conflitos centrais da humanidade, conflitos que exigem discernimentos
e “análise da realidade”. Discernir quer dizer distinguir entre diferentes
níveis dessa realidade. Nas Diretrizes de 2011, essa realidade é descrita
com certo pessimismo. As “marcas de nosso tempo”, segundo as Diretrizes, são transformações profundas. Em tempos desnorteadores (20)
perdemos valores, referenciais e critérios. Tudo isso produz: relativismo,
Encontros Teológicos nº 59
Ano 26 / número 2 / 2011
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Aonde vais, Igreja? Leitura das novas Diretrizes Gerais da CNBB
fundamentalismo, laicismo militante contra a Igreja, irracionalidade
midiática, amoralismo generalizado (20). Somos dominados por leis do
mercado, lucro, bens materiais, hedonismo, sucesso pessoal, individualismo. As Diretrizes acrescentam ainda como “marcas de nosso tempo”:
corrupção, violência, narcotráfico, emocionalismo, sentimentalismo,
utilitarismo (21 e 22).
O tópico dos “sinais dos tempos”, as Diretrizes mencionam duas
vezes (24, 140), sem apontar para seu conteúdo. Quais são esses sinais
dos tempos? Qual é seu significado? De fato, a Igreja das Diretrizes não
soube nomear os sinais do tempo de hoje. Preocupações internas dificultam a percepção daquilo que Deus nos quer dizer através do mundo. Essa
incapacidade de ver Deus atuar fora da Igreja nos faz lembrar a gigantesca
coragem de João XXIII que, em sua Carta Encíclica Pacem in Terris
(1963), soube ler os “fenômenos [que] caracterizam a nossa época” como
“sinais dos tempos”: a emancipação da classe operária, das mulheres e
dos países colonizados (cf. PT 39ss), o reconhecimento crescente dos
“laços comuns da natureza” que unem a humanidade (PT 126-129) e a
Declaração Universal dos Direitos do Homem (PT 142ss).
Em seu Discurso Inaugural (DI) da Conferência de Aparecida,
Bento XVI sublinhou a base cristológica da opção pelos pobres. Repetidas
vezes o DAp cita essa parte do DI (148, 392, 405, 505). A articulação
cristológica e, em sua consequência, trinitária da opção pelos pobres faz
dessa opção, e de seus desdobramentos concretos, não só imperativos
pastorais irrevogáveis, mas premissa da teologia latino-americana e de sua
análise da realidade. Isso nos permite escutar as perguntas de Bento XVI
sobre a realidade em geral, a partir da nossa realidade latino-americana
e caribenha: “O que é esta `realidade´? O que é o real? São `realidade´
só os bens materiais, os problemas sociais, econômicos e políticos?” Os
sistemas marxistas e capitalistas “falsificam o conceito de realidade com
a amputação da realidade fundante, e por isso decisiva, que é Deus”. E
o papa continua: “Só quem reconhece Deus, conhece a realidade e pode
responder a ela de modo adequado e realmente humano”.
Pelo bem da verdade temos que acrescentar que não só sistemas
ateístas, mas também religiões e, inclusive o cristianismo, podem responder inadequadamente aos reclamos da realidade. Em seguida temos
de admitir que nessa visão da realidade se trata de uma mescla de dois
níveis de realidade, de uma teológica sobreposta a uma sociológica.
170
Encontros Teológicos nº 59
Ano 26 / número 2 / 2011
Paulo Suess
Entretanto, é possível, numa teologia contextual articular os dois
níveis da realidade, nos termos cristológicos de Calcedônia, sem confusão
(inconfuse) e sem separação (indivise). O Cristo da fé assumiu como Jesus de Nazaré a cruz, que nos protege “da fuga para o intimismo”, como
disse o papa, e de interpretações ideológicas da realidade. A análise da
realidade com a premissa da opção pelos pobres, que significa “ver Deus
nos rostos dos pobres”, não permite o abandono da realidade sociológica
nem a sua redução aos grandes problemas econômicos, sociais e políticos.
Mas, igualmente, não permite voltar a um Credo desencarnado ou a um
Pai-Nosso sem pensar o “pão nosso” de toda a humanidade.
O prefixo de uma cristologia gloriosa em documentos oficiais
recentes da Igreja, quase paralelo à realidade das vítimas dos sistemas e
dos crucificados da história, se torna repetitivo, cansativo e distante do
povo de Deus. Esse povo de Deus que, provavelmente, não se reconhece
nas Diretrizes, ama Jesus e se reconhece, sobretudo, em Jesus crucificado.
A Igreja precisa reaprender a falar de Jesus crucificado nos pobres. Nos
DGAE 2011, a cruz aparece duas vezes (5, 69) e apenas uma vez essas
Diretrizes falam do martírio (3).
3 Da estrutura
A 49ª Assembleia Geral, de 2011, considerou sumariamente “a
mudança de época como maior desafio” (27). O tópico da “mudança de
época” faz, no mínimo, dez anos que aparece em documentos eclesiais.
Na estrutura das DGAE 2011 não somos mais confrontados com desafios
do mundo, mas com cinco urgências da Igreja na ação evangelizadora,
urgências que representam escolhas caseiras e reparos institucionais dos
estragos que a mudança de época causa às Igrejas. Eis as cinco urgências que no IV capítulo das Diretrizes se tornam cinco “perspectivas de
ação”:
(1) Igreja em estado permanente de missão;
(2) Igreja: casa de iniciação à vida cristã;
(3) Igreja: lugar de animação bíblica da vida e da pastoral;
(4) Igreja: comunidade de comunidades;
(5) Igreja a serviço da vida plena para todos.
Como a “opção preferencial pelos pobres” no Objetivo geral, também a verdadeira razão de ser da Igreja, estar “a serviço da vida plena
para todos”, se encontra em último lugar nas perspectivas de ação. O
quê é realmente urgente na Igreja? Urgente é o grito dos pobres, a dor
Encontros Teológicos nº 59
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Aonde vais, Igreja? Leitura das novas Diretrizes Gerais da CNBB
dos excluídos, a cruz dos injustiçados! O resto são tarefas permanentes
(estado permanente de missão, iniciação à vida cristã, animação bíblica,
construção de comunidades). Com as urgências, os autores das DGAE
não conseguem, como é a sua intenção, “ultrapassar uma pastoral de mera
conservação ou manutenção para assumir uma pastoral decididamente
missionária, numa atitude que, corajosa e profeticamente, [Aparecida]
chamou de conversão pastoral” (DAp 370, DGAE 2011 n. 26).
Não podemos trocar desafios por urgências! E as Diretrizes admitem que as urgências elencadas nem sempre correspondam aos desafios
reais (131). A urgência das DGAE 2011 aponta, como uma espécie de
PAC (Programa de Aceleração dos Católicos) eclesial apenas para a
velocidade, não para o caminho. Pela falta de recursos e agentes de pastoral nas periferias das nossas grandes cidades, os ministros que restam
se tornaram, muitas vezes, missionários e missionárias de Fórmula 1,
sobrecarregados com tarefas e distâncias. Estão “na onda” da aceleração
exigida pelo mercado e agora pelas DGAE.
No conjunto das Diretrizes não falta uma cesta básica de desafios.
O que falta é a devida priorização. Todos os desafios são subordinados à
“mudança de época como o maior desafio a ser atualmente enfrentado”
(27, cf. 26): educação na fé (40, 98), ambientes virtuais (59), mundo
plural, globalizado, urbanizado e individualista (60), diversificação dos
ministérios leigos, a vida dos abandonados, excluídos, ignorados em sua
miséria e dor (66). As Diretrizes elencam ainda outros desafios: juventude
(81), ecumenismo (82), diálogo interreligioso (83), missão ad gentes
(84), testemunho de Cristo e dos valores do Reino (91), aproximação
entre fé e razão (117).
Como já mencionamos, as urgências, que representam as partes
centrais das DGAE (capítulo III e IV), são precedidas por uma reflexão
cristológica, como ponto de partida (capítulo I), e por “Marcas de nosso
tempo” (capítulo II). O capítulo V propõe a operacionalização dessas
urgências nas Igrejas particulares através de “um processo de planejamento”. Para este propõe sete passos metodológicos, que as próprias
DGAE nem sempre seguem.
Aos sete passos metodológicos correspondem sete perguntas:
Onde estamos (1)? Onde precisamos estar (2)? Quais são as urgências
pastorais (3)? O que queremos alcançar (4)? Como vamos agir (5)? O
que vamos fazer (6)? Como renovar as estruturas (7)? Infelizmente, as
172
Encontros Teológicos nº 59
Ano 26 / número 2 / 2011
Paulo Suess
perguntas bem feitas não podem romper o círculo de giz eclesiocêntrico
previamente estabelecido.
4 Nas entrelinhas
O que não pode ser dito na praça pública, atravessa as Diretrizes
nas entrelinhas. Queria destacar algumas dessas palavras quase clandestinas que permitem uma leitura mais profunda do que funcional das
DGAE. Na esteira de Aparecida, as DGAE desenvolvem um guia de
densa espiritualidade para o discípulo missionário universal em torno
dos substantivos “alteridade” e “gratuidade”. Aparecida nos lembrou que
“na generosidade dos missionários se manifesta a generosidade de Deus,
na gratuidade dos apóstolos aparece a gratuidade do Evangelho” (DAp
31). As DGAE 2011 continuam: “As atitudes de alteridade e gratuidade
marcam a vida do discípulo missionário de todos os tempos. Alteridade se refere ao outro, ao próximo, àquele que, em Jesus Cristo, é meu
irmão ou minha irmã, mesmo estando do outro lado do planeta” (8). As
DGAE, quando falam do outro como irmão e do apostolado como graça,
enfatizam, em determinados enxertos, a fonte cristológica: “Gratuidade e
alteridade são, portanto, modos de compreender o que há de mais decisivo
em Jesus Cristo: a saída de si, rumo à humanidade [...]” (12).
Na acolhida do outro acolhemos Jesus e na acolhida de Jesus,
que se fez Palavra do Pai, acolhemos o outro (cf. 50s). As diferenças
nos convidam “ao respeito mútuo, ao encontro, ao diálogo, à partilha e
ao intercâmbio de vida e à solidariedade” (ibd.). O intercâmbio da vida
é prefigurado em Jesus e se resume nas palavras “doação”, “desprendimento” e “esvaziamento”(16). Por conseguinte, “todo relacionamento é
[...] chamado a acontecer na gratuidade. À semelhança de Cristo Jesus
que, saindo de si, foi ao encontro dos outros, nada esperando em troca
(cf. Fl 2,5ss)” (9). O discípulo missionário “é chamado a profeticamente
questionar, através de suas escolhas e atitudes, um mundo que se constrói
a partir da mentalidade do lucro e do mercado” (DGAE n. 9). A gratuidade corta “a raiz mais profunda da violência, da exclusão, da exploração
e de toda discórdia” (9). Ela é a “vitória sobre a ambição” (69). Num
mundo dominado por lucro e mercado, por vingança e ressentimento, a
acolhida gratuita do outro significa despojamento e perdão. São atitudes
proféticas que fazem parte de um mundo novo, do outro mundo que é
possível, do Reino de Deus no meio de nós (cf. 9s, 140).
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Aonde vais, Igreja? Leitura das novas Diretrizes Gerais da CNBB
Gratuidade e alteridade lembram o que já foi dito no documento
“Evangelização e missão profética da Igreja” da 43ª Assembleia Geral, de
2005: “Evangelizar é uma ação eminentemente profética, anúncio de uma
Boa-Nova portadora de esperança. A profecia será, pois, a forma mais
eficaz de anunciar a Boa Nova” (Evangelização e missão, cap. 1).
Aonde vais, Igreja? Não estamos indo por aí, sem rumo. As reais
urgências e os verdadeiros anseios do povo de Deus revelam-se nas entrelinhas das DGAE: a Igreja profética, o reconhecimento da alteridade,
a gratuidade da missão e a fidelidade a Jesus Cristo crucificado e ressuscitado no meio do povo. Aí se encontra a possibilidade de a Igreja no
Brasil interromper a fuga e ser, o que deve ser: “expressão da encarnação
do Reino de Deus no hoje de nossa história” (141).
Ao publicar em meio impresso, favor citar a fonte e enviar cópia para:
Caixa Postal 131 – CEP 60.001-970 – Fortaleza – Ceará – Brasil.
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CASEL, Dom Odo. O mistério do culto no cristianismo. Tradução
de Gemma Scardini, São Paulo: Ed. Loyola, 2009, 16 x 23 cm,
124 pp.
Ney Brasil Pereira*
Esta edição brasileira da obra, pouco volumosa, mas densa, é a
tradução do original alemão de 1932/1935, por sua vez traduzido para
o francês em 1946, e só agora, quase 80 anos após o seu lançamento,
lançada no Brasil. Assim nos informa o apresentador brasileiro, Cláudio
Pastro, artista responsável pela extraordinária decoração litúrgica do
Santuário Nacional de Aparecida.
Quanto aos méritos do autor do livro, afirma o apresentador:
“Graças a Dom Odo Casel, passou-se a entender a liturgia dos Sagrados
Mistérios não como um conjunto de rubricas dentro de uma eclesiologia fechada, mas a liturgia como ação do próprio Mistério que dá vida
à Igreja, desde todos os tempos, e através dos elementos universais da
humanidade” (p. 11). Dom Casel, segundo Pastro, “dá respostas claras”
às seguintes questões: “Que é o Mistério, o Sagrado? Qual a linguagem
do Mistério? Que é o culto cristão?”
Ainda o apresentador: “Hoje, quase 50 anos após o Concílio Ecumênico Vaticano II, surgem querelas sobre qual liturgia seria melhor:
o rito de Pio V (renascentista), ou a liturgia de Paulo VI (século XX)?
Nada melhor para nos esclarecer, com os fundamentos teológicos, do
que o movimento litúrgico que fez escola estudando as fontes antigas à
sombra da Abadia de Maria Laach, junto com Dom Festugière e Dom
Beauduin, seguidos pela revista Les Questions liturgiques et paroissiales, de Louvain (Bélgica), e pelo abade Caronti e a Rivista Liturgica
(Itália)” (p.12).
Isso dito, e antes de apresentar os cinco capítulos do livro, confesso
que não foi uma leitura fácil. Não sei se o problema está na tradução
ou, bastante, na fraca revisão ou, mais ainda, na falta de atualização do
*
O recensor, mestre em Ciências Bíblicas, é professor no ITESC, Florianópolis.
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contexto do conteúdo, o fato é que o livro, assim como está, deixa muito
a desejar. É muito diferente da leitura do volumoso “Missarum Sollemnia”, de Jungmann1, que evidentemente tem outro objetivo, outro
método e outro conteúdo.
Mas vejamos, com a brevidade possível, os cinco capítulos. O
primeiro, Intitulado “A volta ao mistério” (pp. 13-20), começa justificando essa volta como uma “necessidade” nunca dantes tão sentida,
porque “a humanidade nunca se distanciou tanto do Mistério de Deus,
nunca se lançou à morte a este ponto” (p. 13)... E agora, 2011, “nunca
dantes”? O que significa, na p. 17, esta afirmação: “Com a queda do humanismo, nossa época (?) abriu o caminho da volta ao Mistério”? Pelo
final do capítulo, o autor apresenta três aspectos do “Mistério divino”:
1) “é, antes de tudo, Deus nele mesmo” (p.18); 2) “para o apóstolo São
Paulo, o mistério é a maravilhosa revelação de Deus em Cristo” (p.19);
3) “um terceiro sentido completa os dois primeiros”: Deus e Cristo se
manifestam nos mistérios do culto, os sacramentos (p.19).
O segundo capítulo, o mais longo (pp. 21-69), retoma o título do
livro: “O mistério do culto no cristianismo”. Ou, traduzindo literalmente
o original: “O mistério do culto cristão”. O autor começa observando
que, para tratar desse tema, é preciso primeiro responder à pergunta:
“Que é o cristianismo?” (p. 21). E divide sua exposição em três partes:
a) “O mistério do Cristo” (pp. 21-41); b) “No culto há mistérios” (pp.
42-55); c) “A liturgia dos mistérios” (pp. 55-68). Note-se que, quanto
ao próprio termo, o original grego mystérion é traduzido em latim, na
Vulgata (e também na Nova Vulgata), às vezes por mysterium, e às
vezes por sacramentum. A semântica dos termos correspondentes, em
português, porém, modificou-se.
Tratando do “mistério do Cristo”, após a necessária referência à
teologia paulina, o autor sintetiza: “O cristianismo (...) é um mistério, no
sentido paulino da palavra.” (...) “É ainda” – e aqui não sei se a tradução,
confusa, corresponde ao original – “o acesso da Igreja redimida junto ao
Pai eterno, um acesso pelo sacrifício e pelo dom total, consequentemente
pela glória” (p. 25). Não entendi. Aliás, no decorrer do livro há muitas,
muitas passagens de difícil compreensão, como anotei no exemplar que
1
176
JUNGMANN, Josef Andreas, Missarum Sollemnia, Origens, liturgia, história e teologia
da Missa Romana, trad. brasileira do original alemão de 1962 (5ª. edição), São Paulo,
Paulus, 2009, 23,5 x 16,5cm, 965 p. Ver minha recensão dessa obra nesta Revista,
n. 57(2010/3), pp. 182-186.
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li. Às vezes, a teologia do autor é questionável, como a argumentação
sobre o “sacrifício”, na p. 33, a qual começa com esta afirmação radical:
“Não existe religião sem sacrifício”. Será? De que “religião” se trata?
Certamente não a exaltada por Tiago (Tg 1,27). E qual “sacrifício”?
Também não o “sacrifício vivo” recomendado por Paulo (Rm 12,1). E
assim por diante.
Na p. 34, a citação de 2Cor 5,16 ficou embrulhada... e questiono o
resumo do pensamento do autor, justificando-se com Jo 3,16, nesta frase:
“Foi o próprio Deus quem ofereceu o sacrifício...” a quem? a si mesmo?
Na p. 37, em cima, ao falar do lugar essencial que o mistério do culto
ocupa no Mistério de Cristo, o autor afirma, com justeza: “É evidente
que, sem o mistério do culto, o Mistério de Cristo não poderia continuar
através dos séculos e se prolongar em sucessivas gerações, até que todo
o Corpo obtenha salvação e glória com a Cabeça.”
Na longa citação do “Simpósio” de Metódio de Olimpo (+311),
nas pp. 37-38, a tradução do termo grego pleurá, que aparece três vezes
no original, é incoerente: uma vez se traduz por “lado”, como é o sentido de Gn 2,21 na Septuaginta, e duas vezes por “costela”2, o que torna
difícil a compreensão da alegoria do texto. Na p. 41, último parágrafo,
o autor, depois de ter explicado o sentido mistérico de cada sacramento, assim conclui: “Esta rápida exposição quer somente mostrar que a
religião do Evangelho, a piedade do Novo Testamento, e a liturgia da
Igreja, não podem ser concebidas sem o mistério do culto...” E arremata:
“A liturgia dos santos mistérios é a atividade central e vital da religião
cristã”. Novamente faço a pergunta: E então, onde fica a religião de
Tiago (Tg 1,27)?
A segunda parte do capítulo retoma o tema, com o título: “No
culto há mistérios” (p. 42). E assim começa: “O Novo testamento nos
ensina que o cristianismo, o ‘Evangelho de Cristo’, é um Mistério. Esse
Mistério começa na Encarnação, e atinge seu ponto culminante na Cruz
e Ressurreição...” Quanto à presença do Senhor nos divinos mistérios,
isto é, nos sacramentos, o autor cita bela passagem de Leão Magno, que
assim conclui: “O que era visível no nosso Redentor passou agora aos
Mistérios. E, para que a fé fosse excelente e firme, a visão deu lugar à
doutrina, cuja autoridade seguem os corações dos fiéis, iluminados pela
luz celeste.”
2
Cf PEREIRA, Ney Brasil, “Costela, ou lado de Adão, em Gn 2,21?”, nesta revista, n.
56 (2010/2), pp. 171-175.
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Bela síntese, na p. 45 em cima: “Não haverá outro Reino, não
haverá outro sacrifício ou nova santificação. O sacrifício de Cristo foi o
sacrifício vespertino do mundo, e sua ressurreição foi a aurora de uma
nova e eterna manhã.” Na mesma página, interessante afirmação sobre a
relação entre culto e mistério: “A forma do Mistério é a única capaz não
só de representar um culto exterior,... mas de conter o dom interior, essa
doação fundamental na qual reside o fim central de todo o culto cristão.”
Na p. 46, uma comparação com o culto judaico, que “conhecia muito bem,
ao lado da oração e do sacrifício, a outra forma de culto, o zikkarôn, ou
seja, a comemoração, anámnêsis”. Pois Deus tinha-se revelado a Israel
nos acontecimentos históricos (do Êxodo), os quais não deveriam ser
esquecidos. Mas esse culto “não era um mistério propriamente dito”,
pois recordava apenas fatos históricos, terrestres, superados pela Páscoa
de Cristo (p. 47, passim).
Na p. 48, a reflexão passa aos “mistérios na época helenista”, cuja
grande idéia fundamental era a “iniciação à vida dos deuses”, “renovada
e presente num rito”. Mas ao mesmo tempo “vós éreis acorrentados à
natureza, consagrados ao serviço dos elementos deste mundo”, como
comenta Paulo aos colossenses (Cl 2,8.20). Quando o mesmo São Paulo
falava do mistério escondido desde séculos, seus leitores logo percebiam
“uma alusão à linguagem mistérica bem conhecida” (p. 49). Mas bem
cedo, diz o autor, “encontramos as expressões mistéricas aplicadas ao
Mistério cristão”, “no momento mesmo em que a Igreja se opunha aos
mistérios pagãos”. Hoje, por exemplo, “quando nos servimos da palavra
sacramento, já não sabemos que esse termo pertence no fundo à língua
dos mistérios antigos” (p. 50).
Na p. 51, no primeiro parágrafo, uma dessas afirmações generalizantes e obscuras que já assinalei: “O pensamento antigo (?) era ao
mesmo tempo concreto, objetivo e espiritual, livre da matéria”... Que quer
dizer isso? Na mesma página, abaixo, numa contraposição entre gregos
e judeus, se afirma que estes, “com sua mentalidade semítica, jurídica
(?) e sem imagens”, tiveram mais dificuldade de compreender o Mistério
de Cristo” que aqueles... Nova afirmação generalizante, e pessimista,
na p. 52: “Hoje (em 1935? ou 2011?), todo homem esclarecido sente-se
chocado ao constatar até que ponto o individualismo, o liberalismo e o
socialismo fizeram malograr a Europa e outras partes do mundo, submetidas à sua nefasta influência...” Em contraposição, o autor revela-se
otimista na p. 53: “Depois do refluxo e da derrota do antropocentrismo
(!), ergue-se atualmente (em 1935? e hoje?) uma profunda necessidade
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de vida sobrenatural e de união com Deus”. Na p. 54, outro exemplo
da falta de atualização da edição brasileira: na nota 115, no rodapé, o
autor convida a ler alguns textos “recentes” do Magistério, e cita o Motu
Proprio de Pio X, de 1903!
A terceira parte do capítulo II começa na p. 55, com o subtítulo:
“A liturgia dos mistérios”. Depois de breve explicação do sentido etimológico da palavra “liturgia”, “serviço do povo” (p. 56), o autor cita
a primeira carta de Clemente Romano, o qual, inspirando-se na ordem
litúrgica do Templo de Jerusalém, menciona a distinção entre o lugar dos
“sacerdotes” e o dos “leigos”, “ninguém ultrapassando os limites traçados
pela sua liturgia”... Não está isso retomando o “Antigo”, e esquecendo
o “Novo”? Na p. 57, uma interessante comparação entre os termos
“mistério”, no sentido de mistério do culto, e “liturgia”, a parte que toca
à igreja na ação redentora do Cristo. Assim, o “mistério” caracteriza “a
parte do Esposo”; e “liturgia”, “a parte da Esposa”. A maneira como se
fez essa transição do “mistério” para a “liturgia” é resumida pelo concílio
de Trento, sess. 22, cap. I, citado nas pp. 57-58. Numa edição atualizada
do livro, gostaríamos de ver aqui também a posição do Vaticano II.
Na p. 59, em baixo, é significativa a citação de Santo Agostinho,
sobre o concurso da Palavra com o elemento material, p. ex., a água,
“para formar o Mistério”. Segue longa e bela reflexão do autor sobre o
sacramento do Batismo, nas pp. 60 a 62. Na p. 64, não entendi, e não
concordo, com as negações seguintes, na segunda alínea: “Nada (grifo
meu) permaneceu na Eucaristia cristã do rito antigo”... e: “O batismo
cristão, por sua vez, não pode ter sua origem (grifo meu) no batismo
prosélito do judaísmo”. Como não? Na p. 67, no penúltimo parágrafo, o
autor escreve: “Muitas dificuldades se aplanariam na renovação litúrgica
contemporânea (grifo meu: na década de 30!), se se mantivessem essas
observações (p. ex. de que “o conhecimento dos Mistérios comporta
graus”) e se se levasse em conta a antiga concepção das coisas (grifo
meu)”, inclusive “subtraindo o Mistério à crueza da língua vulgar”, isto
é, mantendo o latim... Convenhamos que esses parágrafos, lidos agora,
sem mais, 48 anos depois da Sacrosanctum Concilium, de 1963, que
abriu a liturgia ao vernáculo, soam anacrônicos, não?
Na p. 69 começa o terceiro capítulo, com o título “Mistérios antigos
e mistérios cristãos”. Parece-me negativa e pessimista a argumentação
inicial de que “o poder da corrente mística que sucede aos ventos e marés
do racionalismo (?)... se perde quase que inteira e inutilmente nas águas
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estagnadas que o afogam”. E que “a responsabilidade desse desvio não
é do cristianismo”... que quer isto dizer? Na p. 70, uma avaliação toda
negativa da Reforma alemã, cujo “resultado final” foi “a destruição do
Mistério”... Na p. 71, o autor observa que “foram sobretudo os mistérios
helenísticos que alimentaram o voo e o desenvolvimento da “mística
antiga”, mas foi no cristianismo que ela encontrou a resposta divina às
suas aspirações sobrenaturais”. A seguir, depois de cerrada argumentação,
assim propõe o autor a sua definição de “mistério”: “uma ação sagrada
e cultual na qual uma obra redentora do passado torna-se presente sob
determinado rito; cumprindo esse rito sagrado, a comunidade cultual
participa do fato redentor evocado, e adquire assim sua própria salvação”
(p. 73, em baixo). Outra síntese da “solenidade ritual”, na p. 74: “Por sua
riqueza dramática, por seus símbolos profundamente eloquentes, por seus
solos e coros, a solenidade ritual constitui uma obra de arte religiosa de
um estilo superior e severo.”
Depois de discorrer ainda sobre as noções de devotio e sacramentum (juramento,) dos antigos romanos (p.76), o autor começa a tratar do
“mistério supremo e último do cristianismo, o fundamento e princípio
de todos os mistérios cristãos: a revelação de Deus na pessoa do Logos
encarnado” (77). Quanto à Eucaristia, ela é simplesmente “o Mistério”,
cuja instituição foi “o último ato da vida terrestre do Senhor” (p. 79.
Aliás, “todos os sacrifícios antigos convergem e se aperfeiçoam no do
Senhor crucificado. Eles eram também, como dizem os Pais da Igreja, e
sobretudo Agostinho, uma sombra, deformada mas real, do verdadeiro
mistério futuro” (p. 81). Esse “mistério” é mistério de fé, pois somente
a fé pode conceber a realidade escondida da graça, a força do sacramento. Quando, enfim, a fé der lugar à visão, “então o véu do mistério será
levantado” (p. 82). O capítulo termina com bela citação de Clemente
Alexandrino, de inícios do séc. III: “...Aquele que cantará conosco é o
Logos do próprio Deus” (p. 83)
Os capítulos IV e V, mais breves, são evidentemente conclusivos,
tratando, respectivamente, do mistério “do ano litúrgico” (pp. 85-94) e
do “dia litúrgico” (pp. 95-121). Quanto ao “ano”, ou seja, o ciclo anual
litúrgico, o autor observa que, “aos olhos dos antigos, o círculo era o
contrário daquilo que evolui. Não conhece antes nem depois, nem princípio nem fim. Por isso simboliza a vida sem fim, plena , eterna (p. 87).
E Cristo, “Luz que não conhece ocaso”, é “o verdadeiro Ano, o Dia do
mundo, o Éon, o Senhor de todos os séculos” (ibid.) Entretanto, qual é
o “mistério” que nos cabe viver no ano litúrgico? Responde o autor, na
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p. 89: “é a vida do Cristo-Kýrios, esse itinerário gigantesco que vai do
seio da Virgem e da manjedoura até o trono da Majestade divina.” Mas
o conteúdo espiritual do ano litúrgico não se desenrola diante de nós de
maneira progressiva, como faz a natureza em seu ciclo anual. Enquanto
ação divina da salvação, ele é fechado, uniforme e perfeito em si mesmo.
Da nossa parte, porém, pede uma adaptação, uma apropriação gradual.
Isso, porém, sem esquecer que, durante o ano, “a cada instante é todo o
mistério da nossa salvação que se mantém diante dos olhos da Igreja e do
fiel” (...) “E a prova disso é que, desde o começo, todo o mistério aparece
integralmente na Eucaristia. O mistério é sempre total.” (p. 91)
No entanto, como o Mistério se realiza na história, embora a Igreja
o possua sempre em sua integridade, ela canta o hodie em algumas festas,
à semelhança do Sl 118 (117),24: “Este é o dia, hoje, que o Senhor nos
fez!” De fato, “da mesma forma que o ano contém a presença divina, assim
também cada dia do ciclo nos faz reviver o acontecimento de salvação
que outrora lhe conferiu sua própria identidade” (p. 93).
Por fim, no capítulo V, “o mistério do dia litúrgico”, que concentra, no “hoje”, a totalidade do Mistério. E concentra, diz o autor, através
da oração e do sacrifício, os “atos supremos e vitais de toda religião”
(p. 95)... também a de Tiago 1,27? Interessantes considerações seguem
sobre a relação entre oração e sacrifício, nas quais porém senti falta dos
ensinamentos do Senhor no Evangelho (p. ex. Lc 11,1-13 e Mt 6,5-15).
Lembrando que o sacrifício concretiza, de certo modo, a oração, o autor
escreve, na p. 97: “Se no sacrifício cristão a ação do Senhor consiste em
tornar presente, sob o véu do símbolo, a obra do seu sacrifício redentor, a
parte dos fiéis aí se expressará acima de tudo no quadro eucológico”, isto
é, oracional: a começar do Cânon, as outras preces da missa , as leituras
e cânticos e, enfim, todo o conjunto do ofício do dia. E continua: “Esse
ofício da oração litúrgica é como o anel de ouro no qual engastamos a
pedra preciosa do santo sacrifício”, experiência que todos nós podemos
desfrutar, não só os monges mas também os seculares. Ainda quanto ao
Ofício, “se queremos verdadeiramente compreender seu caráter e sentido,
temos de aceitar que a oração litúrgica é verdadeiramente a oração da
Igreja, e da igreja unida a Cristo como Esposa ao Esposo, como o corpo
à Cabeça.” (pp.98-99)
Na p. 99, o autor apresenta a “interpretação alegórica dos textos
do Ofício” como – um método extremamente importante para a prática
e a exposição da doutrina da Igreja, método aliás do qual se serviu o
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próprio Senhor, os apóstolos e, sobretudo, os Pais da Igreja. Na p. 100,
porém, o autor exagera ao falar do “instrumento infalível” da alegoria:
“instrumento”, sim, mas não “infalível”, pois não dispensa o método
histórico-crítico3. Na p. 101, ao insistir no caráter “eclesial” e “objetivo”
da liturgia, o autor lembra: “Quando a Esposa de Cristo, divinamente
plena do Espírito Santo, ora em união com sua Cabeça4 e seu Esposo, sua
oração não é a deste ou daquele indivíduo... mas é a oração que procede
do Espírito de Deus, a oração da verdade mais objetiva... a de todos os
membros do Cristo místico.”
Nas pp. 101-102, o autor (em 1935!) insiste na necessidade de a
Liturgia manter-se fiel à tradição, às “formas antigas e tradicionais”, e
defende a posição de a Igreja zelar por “uma liturgia bem ordenada e
severamente regularizada”... Não é por nada que continuam, quase 50
anos após o Vaticano II, e se intensificam, os alertas dos tradicionalistas,
que não fazem a distinção de Congar entre “tradições” e “Tradição”.
Aliás, bem antes de Congar, já nos alertara o Mestre contra o apego
às “tradições humanas” (cf Mt 7,8-9). Na p. 104, poderia haver mais
precisão no conceito do “canto gregoriano”, como uma música “cheia
de movimento, moderada e pacífica, de viva ordem”... Também não
entendi que quer dizer a “calma épica” (?) que as melodias dos salmos
espalham. Aliás, essa “calma épica” volta na p. 110. Nas pp. 104-105,
dois longos parágrafos de defesa do latim como “língua litúrgica”: razões ponderáveis, sem dúvida, mas que felizmente não se impuseram
na Sacrosanctum Concilium.
Na p. 107, uma interessante síntese: “A oração litúrgica une, de
um lado, a severidade das normas objetivas e, de outro, a liberdade dos
movimentos e o sentido da vida pessoal. Aliás, no interior da própria
liturgia essa liberdade existe e tem graus”. Mais adiante, na p. 108: “Os
criadores de nossa antiga liturgia... souberam admiravelmente extrair
e manusear o ouro que repousa no fundo das minas das Escrituras”.
Mais: “O que Cassiano (†435) pede aos monges, que recitem e orem os
salmos se estivessem compondo-os, realiza-se continuamente na santa
liturgia.” Da p. 109 à p. 114, observações muito interessantes sobre os
hinos, antífonas, salmos, leituras, os ofícios da noite e da manhã. Também sobre as relações entre liturgia e natureza (pp. 114-116). Na p. 116,
182
3
Cf BENTO XVI, Verbum Domini, n. 44
4
No texto brasileiro lê-se “Chefe”: a tradutora certamente equivocou-se ao traduzir
assim, literalmente, o francês “Chef”.
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um detalhe: Teria sido bom indicar a referência bíblica à advertência
do Senhor (Lc 18,1) e do Apóstolo (1Ts 5,17), sobre o “orar sempre.”
Finalmente, nas pp. 117-121, bela síntese conclusiva sobre “a ordem e o
andamento do ofício cotidiano”. Uma pérola: “Onde a verdade e a bondade estão unidas, aí não faltará a terceira irmã, a beleza.” Um balanço
pessimista: “Os últimos séculos (!) aviltaram tanto o ofício divino que
dele perdemos o sentido: hoje (?) é compreendido tão somente como uma
oração vocal imposta, e assim toda piedade íntima teve de se refugiar
naquilo que chamamos de “devoções” (p. 121). A última frase do livro é
a citação do final do salmo 50(49), v. 23, infelizmente “alegorizando” o
“sacrifício de louvor”, que o salmista-profeta expressamente contrapõe
aos sacrifícios rituais (cf. v.8)5.
Balanço geral deste pequeno grande livro, importante para a
compreensão do movimento litúrgico da primeira metade do séc. XX.
Num “clássico” não se mexe, evidentemente. Não podemos manipular
o pensamento de Dom Casel, reescrevendo seu livro segundo nossos
critérios6. Por outro lado, uma edição brasileira como esta, de 2010, devia certamente ter sido mais cuidada: não só na revisão do próprio texto
traduzido (creio que retraduzido, da tradução francesa de 1946), como
também no acréscimo de notas que ajudassem a fazer o cotejo entre a
teologia do autor e a do pós-Vaticano II.
Endereço do Recensor:
E-mail: [email protected]
5
Cf PEREIRA, Ney Brasil, “Salmo 50: o verdadeiro sacrifício”, art. in “Jornal da Arquidiocese”, Florianópolis, abril de 2011, p. 6
6
Sugestão: Diante do nome e da obra do autor, não valeria a pena traduzir no Brasil sua
obra póstuma, publicada em 1961, quase na antevéspera do Concílio, por SCHNEIDER, Theophora, monja da Abadia de Santa Cruz de Herstelle? Trata-se de Mysterium
der Ekklesia. Von der Gemeinschaft aller Erlösten in Christus Jesus (“O mistério da
Ekklesía. Sobre a comunidade de todos os salvos em Cristo Jesus”). Desconheço a
editora.
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FONSECA ofm, Joaquim. Música Ritual de Exéquias: Uma proposta de inculturação, Belo Horizonte: Edit. O Lutador, Apostolado
Litúrgico, 2010, 17 x 24 cm, 516 pp.
Ney Brasil Pereira*
Uma bela Tese. Bela na aparência e no conteúdo. Causa excelente
impressão a apresentação gráfica, com a espaçosa diagramação escolhida,
que torna agradável o percurso de quase meio milhar de páginas. Aliás,
verificando melhor o conteúdo, nota-se que o texto da Tese como tal,
com a Bibliografia, ocupa pouco mais da metade do volume, sendo que
as 200 páginas finais são dedicadas aos Anexos musicais necessários,
com as melodias digitalizadas ocupando largo espaço, uma por página,
sem apertos.
Fruto de projeto de longos anos, o autor informa que, chegado o
tempo oportuno, mergulhou no universo das “incelências” de defunto,
no intuito de encontrar aí um viés para a inculturação da “Música Ritual”
(MR) de exéquias. Como filho do Vale do Jequitinhonha, ele não precisou
buscar em outra região do Brasil aquilo que o Vale tem em abundância:
“incelências” e “louvor de anjo”. Ele partiu da hipótese inicialmente
levantada de que, nessas “incelências” do Jequitinhonha, se encontram
elementos rituais que contribuem para o processo de inculturação da MR
de exéquias para a Igreja no Brasil. E a hipótese virou Tese, segundo o
próprio autor, “original e relevante para a ciência litúrgica, uma vez que
dentre os vários estudos elaborados a partir das ‘incelências’, a que se
teve acesso, nenhum deles abordou o assunto sob o prisma da ciência
litúrgica” (p.22).
Na Introdução, o autor apresenta a estrutura tripartita do seu texto:
a primeira parte, com dois capítulos, sobre o Vale do Jequitinhonha e
as “incelências” de defunto, em geral; a segunda parte é uma análise
crítica das “incelências” à luz das exéquias, compreendendo três capítulos, a saber, a morte, as exéquias, e a análise das “incelências” do Vale;
enfim, a terceira parte discorre sobre a importância das “incelências”
do Jequitinhonha no processo de inculturação da MR de exéquias para
a Igreja no Brasil, incluindo uma proposta de repertório complementar,
elaborado a partir das “incelências”, para as celebrações do “Velório”,
da “Última encomendação e despedida”, e do “Sepultamento” (p. 22).
*
184
O recensor, biblista e compositor, é professor no ITESC, Florianópolis.
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Recensões
Antes de tudo, uma discussão terminológica. O autor fala constantemente de “Música Ritual”, a partir do título da Tese, adotando inclusive
ao longo do texto a sigla, MR. O termo aparece no título do fascículo 7º
da col. “Liturgia e Música”, da Paulus: “Música Ritual e Mistagogia”, de
Ione Buyst, com a colaboração do autor. Já fora amplamente trabalhado
pelo autor no fasc. 6º da mesma coleção, com o título “Quem canta?
O que cantar na Liturgia?”1. Nesse fascículo 6º, o tema do 2º capítulo
é justamente “a música enquanto rito e a música ritual cristã”. Ora,
segundo o autor, essa “música ritual”, que acompanha ou constitui determinado rito, está presente em todas as religiões. Sirvam de exemplo
os “pontos” de umbanda: para cada orixá invocado existe um “ponto”
(música ritual) próprio, que não pode ser executado fora da ação ritual.
Na tradição litúrgica de Israel, os levitas músicos eram encarregados do
canto e de tocar os instrumentos do culto (cf. 1Cr 15,16-21). Na liturgia
cristã, segundo a Sacrosanctum Concilium (112), a música será tanto
mais litúrgica quanto mais intimamente estiver integrada na ação litúrgica
e no momento ritual a que se destina. “Em outras palavras, para cada
momento ritual é necessária uma música ritual própria. Por exemplo:
um salmo responsorial tem certamente uma fisionomia diferente de um
canto de abertura” (pp. 51-52 do fasc. 6). E o autor cita Gelineau: “A
estética de um canto litúrgico não é apenas a de um texto com sua música,
mas a de toda a celebração em que o canto intervém” (p. 52 ibid.). Daí
a conclusão: “Canto e música exercem uma função ministerial, ou seja,
estão a serviço daquilo que se celebra na liturgia. Por isso, devem ‘conduzir’ à centralidade do mistério celebrado, a partir do tríplice serviço:
à assembleia, aos diversos ritos, e à Palavra proclamada” (p. 53 ibid). O
capítulo 1º do citado fasc. 7 tem por título “Música ritual: uma entrada
para o mistério”, insistindo nesse conceito: MR “não é qualquer canto
ou qualquer música, mas a que está prevista nos livros litúrgicos, com
textos próprios para cada momento do rito, cada tempo litúrgico, cada
tipo de celebração...” (p. 11)
E aqui vem meu questionamento: não da expressão “música ritual”
em si, de fato significativa, mas da tendência a introduzi-la como substitutivo de “música litúrgica”. Dessa substituição tenho minhas dúvidas,
1
Referência dos dois fascículos: FONSECA, Joaquim, “Quem canta? O que cantar
na Liturgia?”, 3. ed. São Paulo, Paulus, 2010, col. Liturgia e Música, 6; BUYST, Ione,
e FONSECA, Joaquim, “Música Ritual e Mistagogia”, SãoPaulo, Paulus, 2008, col.
Liturgia e Música, 7. De ambos os fascículos encontram-se minhas recensões na
“Revista de Liturgia”, de Ed. Paulinas, Pias Discípulas...
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pois toda “música litúrgica” é “música ritual”, mas nem toda “música
ritual” é “música litúrgica”. Explico-me: música “litúrgica” e, ipso facto,
“ritual”, é a música adequada ao texto, ao momento, ao rito, ao tempo
litúrgico, enquanto música simplesmente “ritual” é a música adequada ao
“rito”, litúrgico ou não, p. ex. até um “parabéns a você”. Essa discussão
me lembra outra questão terminológica, que naturalmente extrapola a
Tese em consideração, mas que parece oportuno aduzir aqui, em vista
da sua manutenção nos documentos eclesiásticos. Trata-se da “música
sacra”, expressão recorrente nos documentos romanos sobre “música
litúrgica”, mas que também reaparece, às vezes, nos da CNBB. Penso
que simplificaríamos as coisas se reservássemos a expressão “música
sacra” para o tesouro da música tradicional em latim, tesouro no qual
brilha o “modelo” do canto gregoriano, enquanto “música litúrgica” é
todo o acervo criado no espírito da Sacrosanctum Concilium, favorecendo a participação frutuosa da assembleia celebrante. Nesse sentido, as
grandes missas de Bach e Beethoven, tesouros artísticos insuperáveis de
“música sacra”, não seriam “música litúrgica”. Isso, para entendermos
bem o sentido do título da Tese: “Música ritual de exéquias”.
Isso dito, não vou repassar o conteúdo dos vários capítulos, síntese
já apresentada pelo próprio autor nesta Revista2, no ano passado, mas
apenas chamar a atenção do leitor para o que mais me marcou. A Bibliografia, por exemplo (pp. 277-297), e as inúmeras notas de rodapé, fazem
da Tese um referencial precioso para ulteriores pesquisas. O método, e
o roteiro percorrido, facilitam a leitura e mantém aceso o interesse do
leitor. Assim, depois do exame das “Incelências” como folclore, segue
sua “análise crítica à luz das Exéquias”, e aí encontramos excelentes
capítulos sobre o próprio fenômeno da Morte, com suas várias impostações (bíblica, antropológica, no imaginário do catolicismo popular,
“tradicional” e “renovado”); sobre os ritos das Exéquias (o de 1614 e o
de 1969) e, enfim, a “análise teológico-musical” das “Incelências”.
Precioso recurso didático é o dos “quadros sinóticos”, p. ex., nas
pp. 69-70, sobre três esquemas de “sentinela”; nas pp. 138-139, sobre as
diferenças entre exéquias de adulto e de criança, ainda no rito de 1614;
nas pp. 166-168, uma comparação entre os novos textos para as antífonas
de Entrada e de Comunhão nas exéquias de adulto; na p. 257, o cotejo
2
186
FONSECA, Joaquim, “Música ritual de exéquias; uma proposta de inculturação”, art.
in “Revista de Liturgia”, São Paulo, Pias Discípulas, ano 37, n. 221, set.-out. 2010,
pp. 14-16.
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entre uma “incelência” e a “louvação” nela inspirada; na p. 265, id. entre
uma antífona tradicional, um “louvor de anjo” popular, e o “canto final”
neles inspirado; na p. 271, id. entre um “responsório” tradicional, uma
“incelência”, e nova versão do “responsório”; na p. 273, id. entre uma
“incelência” e uma “louvação a Maria”.
Muito informativa, a descrição da Missa de “Requiem” do missal
de Pio V (pp. 154-164), com a reprodução do texto integral, latino e vernáculo, da famosa sequência Dies irae, não incluída no missal de Paulo
VI. De resto, vale a pena citar o início da “conclusão” do cap. IV, sobre
as Exéquias: “Num olhar retrospectivo sobre o que foi tratado ao longo
do capítulo, verificamos a riqueza dos ritos exequiais utilizados pela
Igreja ao longo de séculos e alguns impasses teológico-litúrgicos, cujos
resquícios ainda persistem em alguns textos do RE-23 e das missas pelos
defuntos do missal de Paulo VI. Contudo, esta constatação não diminui
aquilo que constitui o maior trunfo dos textos exequiais pós-Concílio,
que é o ‘restabelecimento da perspectiva pascal e eclesial’” (p. 170).
Constatação interessante encontramos no final do cap. V, que
apresenta a “análise teológico-musical das ‘Incelências’ do Vale”: “Por
mais que a pregação (missionária) de outrora insistisse no terror do
inferno, na culpa do pecado, na dificuldade de se salvar... os textos das
‘Incelências’ nos revelam uma concepção diferente, ou seja: o povo
(simples) do interior do Vale do Jequitinhonha preferiu ‘agarrar-se’ na
infinita bondade de Deus. Até mesmo nas pouquíssimas referências ao
‘dia do Juízo’ e ao ‘inferno’, expressas nas ‘Incelências’, prevalece a
intervenção decisiva das forças celestes, sobretudo quando o resultado
final da ‘prova da balança’ tenha sido desfavorável à alma. A intercessão
da Virgem Maria e a bravura do arcanjo Miguel é o melhor exemplo
disso” (p. 215).
O cap. VI, que estuda e aprofunda os conceitos fundamentais de
“Inculturação” e “Música Ritual Inculturada”, inclusive situando-os na
América Latina e no Caribe (cf especialmente pp. 228-232), conclui que
“a inculturação litúrgica, mesmo não sendo fácil, é necessária para a vida
da Igreja”. Antes, “é uma condição sine qua non para que os diversos
povos encontrem na liturgia uma frutuosa participação” (p. 237). Mais. É
“um processo que requer interdisciplinaridade, ou seja, a colaboração de
3
RE-2 é a sigla do Ritual de Exéquias de 1969.
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antropólogos, etnomusicólogos, sociólogos, especialistas em linguística,
músicos, artistas, e especialistas em ciência litúrgica” (ibid.).
O cap. VII faz uma “sugestão de repertório complementar” da MR
de exéquias, buscando sua inculturação a partir das “Incelências” em
estudo. “Além do resgate desses cantos fúnebres populares... o trabalho
em si possibilitou-nos”, diz o autor, “mergulhar na raiz mais profunda
dessa música que, ao longo de séculos, alimentou a fé e a esperança na
ressurreição de boa parte da população brasileira que vivia longe dos
grandes centros urbanos” (p. 274). Quanto aos “Anexos” musicais, I e II,
que ocupam os dois quintos finais do volume (pp. 303-510), sua inclusão
enriquece sobremodo o valor do livro, comprovando a hipótese que deu
origem à pesquisa. Por fim, quanto à relevância da Tese, subscrevo o
final da apreciação de José Ariovaldo da Silva, citada no verso da capa:
Trata-se de um trabalho “que marca novo e importante passo no caminho
de inculturação da liturgia de exéquias da Igreja Católica no Brasil ou,
quem sabe, também de outras igrejas”.
Endereço do Recensor:
Email: [email protected]
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SILVA, Maria Freire da. Trindade, criação e ecologia. São Paulo:
Paulus, 2009, 287 p.
Rafael Uliano*
TRINDADE, CRIAÇÃO E ECOLOGIA:
PARTICIPAÇÃO E COMUNHÃO INTERLIGADA
À VIDA DOS QUE VISLUMBRAM UM
NOVO KAIRÓS NA HISTÓRIA.
Levando-se em consideração toda a ampla reflexão que se faz
hodiernamente em torno da ecologia, da valorização da natureza, bem
como a integração perfeita dessa com o ser humano, ler Trindade criação
e ecologia é uma ótima oportunidade para se perceber a pericorese, a
integração de Deus uno e trino na perspectiva ecológica, ou seja, Deus
é modelo de vivência para todo o universo. A própria Campanha da
Fraternidade do ano 2011 trouxe a abertura dessa reflexão: ter consciência do cuidado que se deve ter com aquilo que é obra divina e está
à disposição para a integração equilibrada entre os seres humanos e as
criaturas inanimadas e não estas submissas, subordinadas, passíveis de
pura manipulação por aqueles.
A autora, Maria Freire da Silva, natural de João Câmara (RN), é
membro da Congregação das Irmãs do Imaculado Coração de Maria.
Possui graduação e também mestrado em Teologia pela Pontifícia Faculdade de teologia Nossa Senhora da Assunção (São Paulo) e doutorado em
Teologia Dogmática pela Pontifícia Universidade Gregoriana (Roma).
Atualmente é professora de teologia na Pontifícia Universidade Católica
de São Paulo.
A humanidade pós-moderna tem sido autora e testemunha de
grandes mudanças sociais e religiosas. A irrupção da informação
científica, a descoberta de valores humanos, psicológicos e éticos,
mundiais, tanto quanto as relações desiguais, têm preocupado profissionais de todas as áreas da sociedade. A teologia não ficou alheia a
essa realidade. Na busca de contribuir para a comunhão e unidade do
mundo e da humanidade, a teologia da Trindade tem sido nos últimos
anos, por parte de alguns teólogos, um dos pontos mais importantes
*
O recensor é especialista em Direito Matrimonial Canônico (FSB-RJ) e aluno do quinto
semestre do curso de Teologia do ITESC.
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da teologia, para uma releitura da orto-práxis das Igrejas, sobretudo
no que se refere à comunhão trinitária como modelo para a Igreja e
o universo. Nesse contexto, a pericorese trinitária tem ocupado lugar
privilegiado no campo da reflexão, por parte de alguns teólogos que
pretendem mostrar o inter-relacionamento trinitário de Deus como
modelo de Igreja-comunhão, modelo trinitário de uma sociedade de
iguais, inter-relacionados com o cosmo em perspectiva ecológica.
Com isso, a autora demonstra ter como objetivo a apresentação de
uma reflexão teológica sobre o pensamento de Jürgen Moltmann e de
Leonardo Boff – no que se refere ao modelo societário da Trindade
e seus desdobramentos na criação. Consequentemente, mostra como
a pericorese trinitária constitui o eixo articulador da reflexão sobre
ecologia. Em outras palavras, no livro, analisa-se “a influência da
teologia da esperança e trinitária de J. Moltmann na teologia brasileira, através do pensamento de L. Boff” (p. 11).
O livro, com dezesseis páginas de bibliografia (pp. 267-283),
desenvolve-se didaticamente em seis capítulos, de início apresentando-se bastante fluente; depois se torna um pouco aborrecido e
com algumas ideias que não precisariam ser repetidas tantas vezes.
Contudo, é interessante a abordagem do pensamento moltmanniano,
demonstrando como Moltmann adquiriu processualmente sua característica de integridade e como influenciou o pensamento de Boff.
Este, por sua vez, recebeu muito da bagagem do Concílio Vaticano
II no que diz respeito a uma eclesiologia de comunhão fundada na
iniciativa trinitária. “Nesse contexto, a teologia da libertação surge
com o objetivo de articular teoria e práxis a partir da experiência
dos pobres, relacionando a ‘História com a salvação, e a libertação
ético-política com a libertação soteriológica’” (pp. 13-14). Pode-se,
portanto, dizer que o modo de escrever da autora se faz num caminho
simples, tendo como ponto de partida o pensamento de Moltmann e
ponto de chegada a explanação feita por Boff, no contexto da América Latina. Entretanto, apesar do caminho simples, não se tem uma
linguagem simples, porém da gramática teológica.
Por ter assistido à morte de seu melhor amigo em um campo de
guerra, a teologia de Moltmann, diz a autora, nasce de sua experiência
de Deus diante da morte, e se apresenta como sendo da esperança.
Quanto à influência de Moltmann na teologia boffiana, vemo-la no
que se constitui o modelo societário da Trindade, considerado como
190
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o mais adequado e sugestivo para a experiência de fé num contexto
de opressão.
Com tal visão, pode-se ainda dizer, em linhas gerais, que o texto
está dividido em duas grandes partes. Na primeira (os três primeiros capítulos), se analisam os pressupostos teológicos da “teologia da esperança
e da teologia da libertação no Brasil”. Na segunda (também constituída
de três capítulos), são analisadas, a teologia da Trindade, a teologia da
criação e a ecologia.
Entrando pela porta dos fundos, pode-se afirmar, antes de esmiuçar o conteúdo de cada um dos seis capítulos, que o livro em questão
busca avaliar a pericorese trinitária num horizonte ecológico, associando a ameaça ao planeta Terra aos desvios causados à natureza em seus
ecossistemas, como o sofrimento dos pobres. As categorias de entropia
(desorganização) e sintropia (organização) ajudam, a partir da comunhão
trinitária, na formulação de uma ética humano-ecológica.
No primeiro capítulo (pp. 25-61), a autora contextualiza o fio
condutor do pensamento de Moltmann e de Boff, bem como os princípios que norteiam a sua evolução, como também os elementos que
influenciaram sua elaboração teológica, o método teológico usado e os
interlocutores dessa teologia. Desenvolve-se num primeiro momento a
transição da hermenêutica da esperança à hermenêutica trinitária, não
se desapercebendo da influência provinda da filosofia da esperança de
Ernst Bloch e da teoria marxista presente na hermenêutica da teologia
da libertação.
(...) a teologia da esperança de J. Moltmann não deve ser lida na
perspectiva da teologia sistemática, mas na ótica da teologia fundamental. Há uma continuidade entre a teologia moltmanniana e a
hermenêutica da libertação desenvolvida por Boff. (...). [os autores],
diferenciam-se no referencial; ou seja, os pobres constituem a novidade hermenêutica libertadora que está interligada com a doutrina
social da Igreja. (...). A teologia da Trindade em Boff, na perspectiva
da libertação, é elaborada pontuando três preocupações básicas:
simplificação das controvérsias e heresias históricas; privilégio para
as interpretações mais significativas no contexto dos países pobres;
manutenção da consciência de limitação da linguagem humana
diante do mistério. Porém, Boff está imbuído totalmente do modelo
societário de Moltmann no que se refere à aplicação da comunhão
da Trindade na comunidade humana (pp. 60-61).
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Recensões
Levando-se em consideração que o método e a hermenêutica
aludem ao evento cruz-ressurreição e pentecostes, no segundo capítulo
(pp. 63-109), mostra-se a passagem da cristologia escatológica a uma
escatologia cristológica, refletindo a dialética da cruz-ressurreição.
Tenha-se presente que o objetivo de Moltmann e Boff é desenvolver
uma cristologia da história escatológica de Deus, entendendo-se a
cruz em termos trinitários. A teologia da cruz requer uma reconstrução
da doutrina da Trindade, com o objetivo claro de entender o evento
Gólgota (p. 107).
No terceiro capítulo (pp. 111-142), encerrando a primeira grande
parte do livro, intitulada pressupostos teológicos, a autora aborda a
economia da salvação e a doxologia, interligando uma reflexão sobre
monoteísmo político e monoteísmo clerical, a partir da ótica trinitária
e a-trinitária, bem como suas consequências. Alude-se, neste capítulo,
à teologia de Karl Rahner. A questão abordada acerca do monoteísmo
cristão é aplicada com o objetivo de criticar a forma como se organiza
a sociedade, mas, sobretudo, a forma como está organizada a Igreja em
seus ministérios.
Salienta-se a forte interligação entre Cruz e Trindade. (...). A cruz é o
lugar no qual Deus manifesta-se Trindade, qual comunhão intradivina
do Pai e do Filho e do Espírito Santo, em que as pessoas constituemse em seu amor recíproco. (...) No evento-cruz realiza-se a história de
Deus: o Pai e o Filho constituem-se como tais enquanto profundamente
distintos e separados no abandono. (...) A dinâmica interna da Trindade
é vista como uma doutrina trinitária do Reino (p. 142).
Adentrando a segunda parte do texto, que por sinal também é
subdividida em três, talvez aludindo à Trindade, vislumbra-se uma
análise de toda a teologia da Trindade, da criação e da ecologia.
Assim, no quarto capítulo (pp. 145-195) que fala sobre a Trindade e
o modelo societário, há uma reflexão sobre a doutrina da liberdade.
Mostra-se a influência da teologia trinitária de Joaquim de Fiore, que
apresenta os três reinos na História: o reino do Pai, o reino do Filho,
e o reino do Espírito Santo, articulando-se a dimensão doxológica
da teologia trinitária.
(...) tenta-se uma releitura das três etapas do Reino, as denominadas eras,
tomadas de G. da Fiore [Joaquim de Fiore]. (...) Deus em seu mistério
de amor é plena comunhão, amor revelado na história por Jesus Cristo
e na ação do Espírito Santo. Amor que transborda na revelação sem
192
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esgotar na História, amor que se manifesta como modelo e utopia. Amor
que permanece mistério, transcendente, ultrapassando as analogias,
escondendo-se na inefabilidade de sua beleza (p. 195).
Tendo batido à porta do cerne do livro, no capítulo quinto (pp.
197-222) encontra-se uma contraposição entre teologia da criação e
ecologia, a partir da constatação do problema ecológico. “Moltmann
desenvolveu a doutrina da criação vinculada à ideia de uma doutrina
ecológica da criação em perspectiva trinitária” (p. 199). Discute-se
também a dimensão antropológica, associada à doutrina do sábado como
início da nova criação, em que Deus é tudo em tudo.
(...) Moltmann aproxima a doutrina da casa (...) à doutrina da criação,
uma vez que Deus habita a sua criação e as suas criaturas na forma
de Espírito, habitando-as no ato de criar e descansar. A transcendência torna-se imanência e sua imanência está na encarnação. (...) O
repouso sabático, associado à doutrina da justificação judaica e à
justificação cristã, propõe interligar o sábado ao domingo da ressurreição de Cristo. (...). A perspectiva boffiana tem seu ponto de partida
na ecologia como novo paradigma. A perspectiva do novo paradigma
implica uma nova articulação do antropológico com o biocêntrico,
surgindo uma terceira categoria, a cosmocêntrica. Desse ponto de
vista, emerge a relação entre teologia da criação e ecologia, na qual
o Spiritus Creator dinamiza o universo, e a perspectiva escatológica
abre-se para o mundo como futuro e promessa, na qual Deus emerge
no processo evolucionário (p. 221-222).
O sexto capítulo (pp. 223-237) faz uma amarração entre os pobres
e a ecologia: “O modelo trinitário orienta para uma ética na qual os
pobres e excluídos são portadores de um privilégio epistemológico”
(p. 231). Os pobres e a criação cabem dentro de um novo paradigma e
redimensionamento da teologia da libertação, inter-relacionados em sua
perspectiva: o grito da Terra e o grito dos pobres.
As relações trinitárias constituem o eixo articulador do discurso ecológico como novo paradigma e redimensionamento da teologia da libertação
(...). Propõe-se uma ética humano ecológica, a partir da tomada de
consciência do ser humano como filho da Terra, como nó de relações,
interligado com o cosmos e com Deus (...). Uma relação entre teologia
da criação e ecologia, sustentada por uma espiritualidade cosmológica
capaz de recuperar o sagrado do Universo.
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No epílogo (pp. 239-265), a autora delineia perspectivas à luz
dos Concílios (aplicado a Moltmann e a Boff) e do Magistério da Igreja
(aplicado apenas a Boff, já que Moltmann pertence à tradição protestante). Destaca-se: “(...) a elaboração teológica de Boff, inserindo-se
no quadro da teologia da libertação, já demonstra, desde o início,
um caráter audacioso, tanto do ponto de vista hermenêutico quanto
do epistemológico” (p. 256). A autora verifica também os elementos
consistentes, os limites e as lacunas, as implicações e as perspectivas
do pensar teológico no conjunto da tradição teológica. Da apresentação
final, destacam-se as tensões acerca da co-igualdade das Pessoas Divinas na Trindade; a relação entre escatologia e epifania, a perspectiva da
revelação de Deus no AT... E por fim, visualiza-se o deslocamento do
ser humano do centro da criação, concedendo esse espaço ao sábado e à
compreensão da cristologia da cruz como teologia trinitária, colocando
a pericorese trinitária como eixo estruturante do discurso ecológico.
Vale ainda destacar o limite apresentado pela autora: “A teologia de
Moltmann corre o risco de perder o especulativo, caso não se atenha
ao contexto bíblico” (p. 240).
No decorrer do livro, a autora fala em teologia “brasileira” (por
exemplo, p. 11). Tratando-se de uma teologia enquanto sistematização
de todo um pensar teológico, o melhor seria substituir o termo em questão por teologia latino-americana. De resto, os reparos e observações à
obra não lhe tiram o mérito inegável de servir como introdução valiosa
aos estudos de Teologia Trinitária, e confirmam a qualidade teológica
de sua autora.
O ponto alto de todo o livro fica no âmbito da relação que se
pode fazer entre a Trindade e o cosmos, a natureza, a criação... Se
os seres humanos, que têm à sua disposição tantas dádivas naturais,
soubessem aproveitar pericoreticamente o cosmos, levando em consideração que tudo está posto para ser utilizado e não explorado, eles
estariam vivendo uma espiritualidade que levaria até a uma melhor
qualidade de vida.
Procurando elaborar uma relação com a vida e o cotidiano do ser
humano hodierno, pode-se dizer que, mesmo tento uma estrutura e um
cabedal introdutório à teologia sistemática, o texto do livro Trindade
criação e ecologia é um ótimo subsídio para se estudar com lideranças
nas paróquias, comunidades eclesiais, religiosas etc..., de modo a continuar a reflexão da Campanha da Fraternidade deste ano. De fato, a CF
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não deveria encerrar-se no final da quaresma, mas continuar pelo menos
até a apresentação da próxima.
Formulo votos para que sejam muitos os leitores que possam
fazer a experiência e a reflexão que brotam dessa leitura, propondo-se
também a sempre caminhar buscando viver a espiritualidade trinitária
aonde quer que se esteja.
Endereço do Recensor:
Rua Dep. Antônio Edu Vieira, 1524,Pantanal
88040-001 Florianópolis-SC
e-mail: [email protected]
blog: www.rafaeluliano.wordpress.com
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PAGOLA, José Antonio. Jesus, aproximação histórica. Trad. Gentil
Avelino Titton. Petrópolis: Vozes, 2010. 615 p.
Fernando Maico Barauna*
Com mais de seiscentas páginas, o original foi publicado em 2007,
na Espanha, sob o titulo Jesús, aproximación histórica. Combinando rigor
histórico e linguagem simples, Pagola utiliza a metodologia e os meios
da investigação moderna. Parte de todas as fontes literárias disponíveis,
enfatizando as evangélicas, que segundo ele, são as mais importantes
e decisivas. Além disso, busca respaldo na arqueologia, antropologia
cultural, sociologia das sociedades agrárias da bacia do Mediterrâneo e
economia, além de contribuições de outros trabalhos já realizados.
Mais que uma biografia histórica, o autor deseja oferecer, em sua
obra, os principais traços da vida e missão de Jesus, dedicando-a especialmente àqueles para quem Ele não representa nada de relevante, ou
aos que se decepcionaram com o Cristianismo.
No primeiro capítulo, intitulado Judeu da Galileia (pp. 29 – 56),
Pagola proporciona um panorama do Império Romano, adentrando em
aspectos importantes quanto à sua organização, características de sua
dominação sobre os povos conquistados e governantes da época em
que nasceu Jesus. Além disso, descreve elementos acerca da Galileia,
destacando pontos de sua geografia e política.
O segundo capítulo, denominado Vizinho de Nazaré (pp. 61 – 84),
é dedicado a alguns aspectos da vida de Jesus, como o fato de nunca ter
casado, além de pontos básicos sobre essa pequenina cidade. Com não
mais de quatrocentos habitantes, Nazaré é desconhecida e está longe das
rotas comerciais. Sustentada por uma agricultura de subsistência, sua
realidade é marcada pela vida humilde, pobre, de partilha de bens, com
baixa expectativa de vida e maioria analfabeta. A família figura como
instituição fundamental. É nela, nas reuniões religiosas aos sábados e
nas festas religiosas, que se alimentava a fé.
O terceiro capítulo, O buscador de Deus (pp. 87-106), adentra no
início da vida pública de Jesus. Ele decide deixar seu trabalho, abandonar
sua família. Dirige-se ao deserto, encontra-se com João Batista, profeta
original, que denuncia o pecado e a hipocrisia das elites religiosas. Ao
*
196
O recensor é aluno do 3º ano de teologia do ITESC.
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deixar batizar-se por ele, Jesus passa a compartilhar suas aspirações e
mensagem. Com a morte de João, o nazareno compreende que o tempo se
cumpriu e o que ele anunciava agora está acontecendo: o reino de Deus
chegou e deve ser acolhido. Esse constitui, segundo Pagola, o cerne da
vida e pregação de Jesus. Ele é o profeta do Reino de Deus (pp. 109 –
141), como aborda o capítulo quarto.
Ao deixar o deserto, Jesus vai diretamente para a Galileia, passando a viver no pequeno povoado de Cafarnaum, local estratégico para
sua missão profética, de boa comunicação com o resto da Galileia e os
territórios vizinhos. O campo do anúncio focava-se nos arredores das
cidades, onde se encontravam os mais excluídos, pobres e humilhados. É
dessa forma que ele dá inicio à implantação do reino de Deus, contandolhes parábolas, realizando curas, libertações e fazendo refeição com
eles. Faz isso com uma liberdade impressionante. Não vive de trabalho
remunerado, não possui casa ou terra, não tem dinheiro. Abandonou todas
as seguranças, para experimentar o que Ele comunica, causando alegria
e empolgação nas pessoas. Pagola destaca ainda a prioridade que Jesus
dá aos pobres, elencando seus motivos.
De fato, o método de Jesus, marcado pela originalidade, pelo uso
de imagens, metáforas e comparações, fez dele um verdadeiro poeta,
um Poeta da compaixão (pp. 145-186), como atesta o quinto capítulo.
Trata-se de suas parábolas, marcadas pela clareza, simplicidade e pela
força de penetração nas pessoas, já que partia de suas experiências diárias. Didaticamente, por meio delas, Jesus apresenta a força do Reino, a
misericórdia e compassividade de Deus.
Além das parábolas, Pagola destaca, no sexto capítulo, O curador
da Vida (pp. 191-214), que o anúncio de Jesus se deu também por meio
de inúmeros sinais: os milagres, as curas e exorcismos. Trata-se de um
fato histórico inegável, como sublinha o autor: todas as fontes cristãs
atestam Jesus como um curador. Mas deve-se observar que a enfermidade,
mais que um dado biológico, é religioso e sociológico. Muito além de
uma melhora física, Jesus reconstrói no enfermo a confiança em Deus,
liberta-o do isolamento, do desespero, das exclusões e do pecado, reaviva sua fé, reconcilia-o com a sociedade. Também se destacam, nesse
capítulo, as ponderações do autor sobre a interpretação dos exorcismos
realizados por Jesus.
Nítida é a escolha que Jesus faz. Ao anunciar o Reino, ele faz-se
Defensor dos últimos (pp. 219-252), como intitula o escritor o sétimo
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capítulo. Aqui, Pagola adentra em todo o contexto de empobrecimento
da Galileia, aprofundando as suas causas, destacando o agravante do
“sistema de pureza” vigente. Destaca que Jesus identifica-se com esses
últimos, denunciando a realidade deplorável em que vivem, assegurando
acima de tudo a dignidade a essas pessoas.
As atitudes e escolhas de Jesus causam escândalo e hostilidade,
especialmente sua amizade com os “pecadores”, as prostitutas, os coletores de impostos. A sua relação com as mulheres também desperta a
atenção de todos. É justamente essa proximidade delas que é assinalada
no oitavo capítulo: Ele é Amigo da Mulher (pp. 255-283).
Primeiramente, Pagola aprofunda a compreensão que havia da
mulher na sociedade de Jesus, seguindo o caminho trilhado pelo nazareno
no rompimento de tradições e costumes a fim de acolher as mulheres
e superar sua opressão. Muitas se tornam suas discípulas, como Maria
Madalena. Além disso, Pagola lembra que as crianças também ganham
uma atenção especial de Jesus. Ao lado das mulheres, são os mais fracos
e pequenos na família, os mais necessitados de amor.
De fato, as pessoas viam nesse homem, que anunciava o Reino e
acolhia a todos, especialmente os rejeitados de seu tempo, um Mestre da
vida (pp. 287-318), como se expressa no título do nono capítulo. Aqui se
aborda toda a experiência que Jesus faz de Deus e como ele a transmite
às pessoas, sendo um verdadeiro mestre, um profeta, que sabiamente
usa da linguagem popular para transmitir sua mensagem. Não se perde
em questões de Lei e moral, mas deseja que todos almejem a verdadeira
vontade de Deus.
Com o passar do tempo, as pessoas sentem-se tocadas e desejam
seguir Jesus. Ele torna-se o criador de um movimento renovador (pp.
323-358), como define o décimo capítulo. Pagola mostra como se deu o
processo de formação dos discípulos e discípulas, que são educados pelo
próprio Jesus para o auxiliarem na tarefa de anuncio do Reino. É desse
grupo que ele escolherá os seus apóstolos, núcleo mais íntimo, estável e
importante dentre seus seguidores. Por fim, destaca-se que nem todos os
que aderem a Jesus e à sua mensagem o seguem propriamente. Entretanto,
muitos colaboram com sua hospitalidade, alimentação e alojamento.
Mas toda a atividade de Jesus, a sua pregação e atitudes são fecundas por que ele, como demonstra Pagola no capítulo onze, é Crente fiel
(pp. 363-395). De fato, a experiência de Deus foi central e decisiva na
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vida de Jesus. Desde criança, destaca Pagola, Jesus bebeu dos profetas,
da tradição sapiencial e dos salmos, alimentando a imagem de Deus como
salvador, preocupado com a felicidade de seu povo, especialmente do
injustiçados, das vítimas. Juntam-se ainda, a experiência no deserto com
João Batista e o seu batismo. Fundado nessa riqueza de experiências, Ele
abandona-se e confia em Deus. Sempre está em contato íntimo, numa
vida de oração simples e oculta, almejando cumprir a vontade de Seu
Pai, como gostava de chamá-lo. Justamente a oração do Pai Nosso, que
Ele ensina aos discípulos, aprofundada por Pagola, exprime essa forma
próxima de se relacionar com Deus.
E as reações ao anúncio do Reino logo aparecem. O capítulo doze
manifesta essa realidade ao qualificar Jesus de Conflitivo e perigoso (pp.
399-439). Nele, o autor trata de todo o desenrolar dos fatos que culminarão na execução de Jesus. Além disso, sublinham-se os grupos rivais que
Jesus vai encontrando no seu anúncio do Reino e denúncia do anti-reino,
sua entrada Jesus em Jerusalém, e o gesto audacioso de expulsar os vendedores do Templo, intervindo no sistema político-religioso instaurado.
Por fim, o autor destaca a ceia de despedida de Jesus aos discípulos,
marcada pelos gestos proféticos da entrega do pão e vinho.
Na sequência, Pagola aborda as circunstâncias em que Jesus é preso
e condenado. Ele será o Mártir do reino de Deus (pp. 443-484), título
do capítulo treze. Nesse ponto, a obra dedica-se à prisão de Jesus, aos
seus mandatários, às alegações que o conduzirão à morte, e ao contexto
histórico desse evento. Pagola também busca reconstruir a noite da detenção, tarefa árdua, visto que as fontes oferecem versões notavelmente
diferentes. Ainda são apresentados alguns aspectos do governo e da
pessoa de Pôncio Pilatos, seguido dos detalhes do julgamento de Jesus,
que culminará com sua condenação à morte mais terrível e temida, pela
crucificação. Pagola aborda com profundeza esses elementos, oferecendo
ao leitor ricos detalhes.
Mas Jesus não fica na morte. Ele é Ressuscitado por Deus (pp.
489-520), como diz o título do capítulo quatorze. É esse acontecimento
que transforma os discípulos. A crise e a desolação logo são superadas,
e esses homens retornam a Jerusalém, reúnem-se em nome dele e proclamam a todos que ele está vivo. Assim, Pagola aborda questões pertinentes ao fato da ressurreição, esboçando a experiência dos apóstolos,
os fundamentos dessa crença, além de outras questões.
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Partindo dessa experiência da ressurreição, os seguidores do nazareno começam a fazer uma releitura de toda sua vida, aprofundando a
identidade de Jesus (pp. 527-562), tema do último capítulo. Trata-se de
retornar ao início para contemplar, a partir da perspectiva da ressurreição,
tudo o que se recorda de Jesus, sua atuação e mensagem, descobrindo
sua verdadeira identidade. Os evangelhos e, antes deles, os títulos e
nomes que buscam dar a Jesus, são frutos desse processo. Pagola busca
apresentar esses títulos, adentrando em seus significados.
E a obra Jesus aproximação histórica, culmina com seu epílogo
(pp. 565-573). Aqui o autor compartilha algumas convicções pessoais,
fruto do seu próprio esforço de se aproximar da pessoa de Jesus. A
primeira é que Jesus deve ser posto no centro do cristianismo. Ele é o
melhor que a Igreja pode oferecer e comunicar ao mundo de hoje: não
uma ideia, mas uma pessoa encarnada, viva. Sua segunda convicção
consiste em oferecer à sociedade contemporânea, o autêntico Deus de
Jesus, superando visões fantasiosas e ambiciosas que nada têm a ver com
a experiência de Deus vivida e comunicada por ele. Outra convicção que
o autor proclama é a necessidade de não esquecer que Jesus vive para o
reino de Deus, realidade pouco recordada. O anúncio do Reino é a verdadeira e única tarefa da Igreja e de todos os cristãos. E por fim, Pagola
aborda a convicção de que a primeira opção do cristão é ser seguidor de
Jesus, assumindo sua missão e mensagem.
A obra oferece, ainda, inúmeras riquezas em seus anexos (pp.
577-615), como um breve perfil histórico de Jesus e os critérios gerais
de interpretação e de historicidade na pesquisa. Além disso, adentra nas
fontes literárias e nos dados que a arqueologia oferece para o estudo
cristológico. Finalmente, aborda alguns traços da investigação atual
sobre Jesus, a ficção “científica” e romanesca que se cria em torno dele,
e um quadro cronológico.
Jesus, aproximação histórica é sem dúvida uma obra grandiosa.
Destaca-se pela linguagem acessível, a boa articulação, fundamentação,
vasta pesquisa bibliográfica de seu autor. Observa-se que o objetivo
do autor é plenamente alcançado. Mais que oferecer uma biografia de
Jesus, seu desejo é alimentar a fé, ou ao menos, fazer com que a pessoa
de Jesus seja mais bem compreendida. Ao longo da história, o cristianismo enveredou por inúmeros caminhos, muitos deles distorcendo
quem verdadeiramente é Jesus, qual sua missão e mensagem. De fato,
se para muitos Jesus é ainda ignorado, é justamente porque os cristãos
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não souberam, por tantos motivos, ser seus verdadeiros seguidores, não
dando verdadeiro testemunho de sua fé.
Outro elemento que pode ser destacado de Jesus, aproximação
histórica é sua logicidade. Os capítulos são bem organizados e articulados, proporcionando um verdadeiro percurso pela pessoa, vida e missão
de Jesus. Lembre-se também o valor que Pagola dá às fontes canônicas.
Mas, no decorrer da obra, ele não fica preso a elas. Sabe, com precisão,
utilizá-las, buscando aquilo que seja o mais histórico e indicando possíveis construções dos seus redatores, apontando sempre suas intenções.
Não deixa de mencionar e fundar-se em outras fontes confiáveis.
Pagola também demonstra preocupação com seus leitores. Devido
ao objetivo da obra e sua facilidade de leitura, o que proporciona um
maior campo de recepção da mesma, torna-se evidente que muitos de
seus apreciadores não tenham um contato mais apurado com o estudo
sistemático da cristologia. O material que ele oferece em anexo pode,
nesse caso, ajudar a alargar os horizontes.
Destaca-se ainda na obra de Pagola a riqueza de notas explicativas.
Elas ajudam o leitor a aprofundar muitos pontos importantes que no texto
seriam difíceis de serem contemplados. É interessante notar ainda que
o autor contribui com o leitor no caminho de aprofundar as temáticas
destacadas em cada um dos capítulos, indicando no fim de cada um deles
vasta bibliografia para aprofundamento.
Jesus, aproximação histórica não é um tratado cristológico, muito
menos um resumo das formulações dogmáticas. É uma ponte de acesso
para conhecermos mais de perto, de maneira simples, frutuosa, quem
é Jesus, como viveu, qual sua missão, os motivos de sua morte e a sua
ressurreição. Certamente, quem a lê, sairá mais enriquecido e perceberá
que Jesus não foi alguém distante, mas alguém muito próximo, verdadeiramente humano, defensor da vida, anunciador de um Deus que é Pai
e que deseja vida para todos.
Endereço do Recensor:
E-mail: [email protected]
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Crônicas
Novo Bispo de Caçador
O papa Bento XVI nomeou, no dia 16-07 p.p., Dom Severino
Clasen ofm, como novo Bispo de Caçador. Ele vem transferido da
Diocese de Araçuaí, MG. A diocese de Caçador estava vacante desde o
dia 24-11-2010, quando o Papa aceitou a renúncia de Dom Luiz Carlos
Eccel, Bispo da diocese desde 07-02-1999. Após sua renúncia, a Diocese passou a ser administrada por Dom João Oneres Marchiori, Bispo
Emérito de Lages. A posse de Dom Severino está prevista para o dia 04
de setembro p.f. Dom Severino será o 5º Bispo de Caçador, criada como
Diocese em 1968. Ele é catarinense, nascido em Petrolândia, diocese de
Rio do Sul. Foi ordenado presbítero em 1982 e sagrado bispo em 1995.
Estudou Filosofia e Teologia em Petrópolis, RJ. Tem pós-graduação em
Administração para a organização do Terceiro Setor na Fundação Getúlio
Vargas, FGV, São Paulo. Foi coordenador do Departamento de Santuários
da Província Franciscana da Imaculada Conceição do Brasil, e fez parte
do Conselho Diretor do Serviço Franciscano de Solidariedade, SEFRAS,
do Convento de São Francisco, em São Paulo. Na 49ª Assembleia Geral
da CNBB, que ocorreu em maio p.p., em Aparecida, SP, Dom Severino
foi eleito Presidente da Comissão Episcopal Pastoral para o laicato, com
um mandato de quatro anos. Bem-vindo ao Regional Sul IV!
40 anos do ITESC
Em 10 de janeiro de 2013, daqui a pouco mais de um ano, o
ITESC completará seus 40 anos! Portanto, ano que vem, 2012, é o 40º
ano acadêmico, ano em que se comemorará também o 50º aniversário da
abertura do Concílio Vaticano II. Será, além disso, também o 45º aniversário da Conferência de Medellin, sendo, pois, o ITESC, um dos frutos
abundantes desses dois magnos eventos eclesiais. Não é preciso dizer
que os 40 anos do nosso Instituto Teológico merecem ser comemorados.
Dentre outros motivos, pelos cerca de 500 presbíteros aqui formados,
além de outras importantes lideranças, entre seus mais de 1100 alunos.
A semente, lançada em 1973 por Dom Afonso Niehues e seus coirmãos
Bispos das então 7 dioceses catarinenses, aos cuidados do pranteado Pe.
Paulo Bratti, seu primeiro Diretor, produziu frutos abundantes, graças a
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Crônicas
Deus. Para pensar nos eventos da comemoração, entre os quais não poderá
faltar um grande Encontro dos Ex-alunos, constituiu-se uma Comissão,
coordenada pelo Pe. Ney Brasil Pereira, que já se reuniu por duas vezes:
no final do primeiro semestre, dia 28-06 e agora, no início do segundo
semestre, dia 02-08. Além do Pe. Ney, fazem parte da Comissão dentre os
professores, Pe. Domingos Nandi e Pe. Pedro Paulo das Neves e, dentre
os acadêmicos, Rafael Uliano e Nicanor A. Lima de Mattos, presidente
do DAT. Naturalmente a Comissão não está fechada, e outros nomes
virão fortalecê-la. Uma das primeiras providências, já em andamento, é a
localização dos endereços dos ex-alunos, desde os da primeira turma, de
1973. Pe. Nandi está inclusive iniciando um facebook no site do ITESC,
para facilitar os contactos. É óbvio que se aceitam sugestões, p. ex., além
de um grande Reencontro, também um Congresso Teológico, um Folder
alusivo, uma campanha de assinaturas da nossa revista, também jubilar
(25 anos!), entre os ex-alunos, com o slogan “todo ex-aluno é assinante
dos Encontros Teológicos” etc etc.
Aprofundamento pedagógico dos Professores
Um curso teórico e prático de formação dos docentes do ITESC
teve início na manhã de 27-7, quarta, e se estendeu até 29-7, sexta, sob
a coordenação da Profª Clara Maria Furtado, diretora acadêmica da
FACASC, a “Faculdade Católica de Santa Catarina”, cujo reconhecimento pelo MEC é iminente. O objetivo do treinamento, de 40 horas aula,
foi potencializar a capacidade didática e pedagógica dos professores e
avaliar os passos que já foram dados. O evento, realizado nas dependências do ITESC, e focalizando detidamente o Plano de Ensino de
cada disciplina, deu continuidade a um programa de formação que vem
acontecendo sistematicamente.
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Ano 26 / número 2 / 2011
Encontros Teológicos – 25 anos
REVISTA “ENCONTROS TEOLÓGICOS”
1986 – 25 ANOS – 2011
Títulos dos 59 números monográficos
1986, n. 1 (1986/1): O Leigo na Igreja
n. 2 (1986/2): Planejamento Pastoral do Regional Sul IV –
Contribuições
1987, n. 3 (1987/1): A Mulher, ontem e hoje
1988, n. 4 (1988/1): No Ano Mariano, Maria
n. 5 (1988/2): Comunicação e Evangelização
1989, n. 6 (1989/1): Religiosidade Popular em Santa Catarina
n. 7 (1989/2): Experiências Pastorais em Santa Catarina
1990, n. 8 (1990/1): A Mulher, na Igreja e na Sociedade
n. 9 (1990/2): O Trabalho
1991,n. 10 (1991/1): A visita do Papa à Igreja que está em Santa
Catarina
n. 11 (1991/2): Os Jovens e a Juventude
1992,n. 12 (1992/1): Evangelização da América Latina – 500 anos
e †Pe. Paulo Bratti – 10 anos
n. 13 (1992/2): Fraternidade e Moradia – CF 1993
1993, n. 14 (1993/1): Santo Domingo – o Documento
e ITESC – 20 anos
n. 15 (1993/2): Fraternidade e Família – CF 1994
1994, n. 16 (1994/1): Política e Igreja e Centenário de Dom Jaime
de Barros Câmara
n. 17 (1994/2): Fraternidade e Excluídos – CF 1995
1995, n. 18 (1995/1): A Era do Espírito
n. 19 (1995/2): Fraternidade e Política – CF 1996
Encontros Teológicos nº 59
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Encontros Teológicos – 25 anos
1996, n. 20 (1996/1): Espiritualidade e Espiritualidades
n. 21 (1996/2): Fraternidade e Encarcerados – CF 1997
1997, n. 22 (1997/1): Cristo, Fé e Batismo
n. 23 (1997/2): Fraternidade e Educação – CF 1998
1998, n. 24 (1998/1): Espírito Santo, Esperança e Crisma
n. 25 (1998/2): Fraternidade e Desempregados – CF 1999
1999, n. 26 (1999/1): Deus Pai, Caridade e Reconciliação
n. 27 (1999/2): CF 2000 Ecumênica: Por um Milênio sem
exclusões
2000, n. 28 (2000/1): Trindade, Eucaristia, Jubileu
n. 29 (2000/2): CF 2001: Vida, sim; drogas, não!
2001, n. 30 (2001/1): Ser Igreja no novo Milênio
n. 31 (2001/2): CF 2002: Fraternidade e Povos indígenas
2002, n. 32 (2002/1): CNBB: 50 anos de serviço à Evangelização
no Brasil
n. 33 (2002/2): Concílio Vaticano II: 40 anos depois
2003, n. 34 (2003/1): CF 2003: Fraternidade e Pessoas Idosas
n. 35 (2003/2): Ética e Teologia
n. 36 (2003/3): ITESC – 30 anos
2004,n. 37 (2004/1): CF 2004: Fraternidade e Água
n. 38 (2004/2): O escândalo da Fome
n. 39 (2004/3): Lumen Gentium – 40 anos
Pessoa, Comunidade, Sociedade
2005, n. 40 (2005/1): CF 2005 Ecumênica: Solidariedade e Paz
n. 41 (2005/2): A Eucaristia: Ele está no meio de nós
n. 42 (2005/3): Gaudium et Spes – 40 anos
2006, n. 43 (2006/1): CF 2006: Fraternidade e Pessoas
com deficiência
n. 44 (2006/2): XV Congresso Eucarístico Nacional
– maio de 2006
n. 45 (2006/3): Conferência Geral do Episcopado Latino
Americano e Caribenho
Aparecida – preparação
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Ano 26 / número 2 / 2011
Encontros Teológicos – 25 anos
2007, n. 46 (2007/1): CF 2007: Amazônia, Vida e Missão nesse chão
n. 47 (2007/2): Espiritualidade
n. 48 (2007/3): A Igreja em Santa Catarina
2008, n. 49 (2008/1): CF 2008: Fraternidade e Defesa da Vida
n. 50 (2008/2): A Igreja em Santa Catarina – II
n. 51 (2008/3): A Igreja no Documento de Aparecida
2009, n. 52 (2009/1): CF 2009: Fraternidade e Segurança Pública
n. 53 (2009/2): Ano Sacerdotal: 2009-2010
n. 54 (2009/3): Diaconato Permanente
2010, n. 55 (2010/1): CF 2010 Ecumênica: Economia e Vida
n. 56 (2010/2): Igreja e Sociedade
n. 57 (2010/3): O Projeto Pastoral de Aparecida
2011, n. 58 (2011/1): CF 2011: Fraternidade e a Vida no Planeta
2011, n. 59 (2011/2): VERBUM DOMINI: Exortação pós-sinodal
de Bento XVI
Encontros Teológicos nº 59
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