A letra mata... O Espírito vivifica

Transcrição

A letra mata... O Espírito vivifica
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A letra mata...
O Espírito vivifica
Conflitos e identidades dos
cristianismos originários
Ana Cláudia Figueroa
São Leopoldo/RS
2016
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Série: A Palavra na Vida – Nº 341 – 2016
Título: A letra mata... O Espírito vivifica: Conflitos e identidades dos
cristianismos originários
Autora: Ana Cláudia Figueroa
Capa e revisão ortográfica: Rodrigo Fagundes
Imagem na capa: A Viúva de Naim, por Fairannie’s Creative World.
Disponível em www.zazzle.com.br
Editoração: Rafael Tarcísio Forneck
ISBN: 978-85-7733-258-8
Ana Cláudia Figueroa é teóloga e biblista, professora do Instituto Darlene Garner da Comunidade de Comunhão Metropolitana.
Sumário
Introdução...........................................................................................5
1ª Parte – Poder fazer, poder dizer
Algumas mulheres nas primeiras comunidades cristãs..............9
Falar, profetizar – mulheres em Corinto..........................................11
Fazer e não ensinar – Mulheres nas Pastorais..................................15
2ª Parte – Comunidades pastorais, ensino e or(de)namento
Um estudo possível das cartas de Paulo a Timóteo e a Tito.......19
As Cartas..........................................................................................19
O contexto histórico.........................................................................21
As comunidades das Pastorais.........................................................23
Dos deveres de lideranças e outras coisinhas mais..........................25
As disputas.......................................................................................27
GIO Judaizantes Gnósticos e GIO Liberais......................................28
1. Os GIO Judaizantes semignósticos........................................30
2. Os GIO Liberais.....................................................................31
Mulheres e Escravos........................................................................32
As mulheres...............................................................................32
As viúvas...................................................................................34
Os Escravos...............................................................................36
Não podem ser líderes......................................................................38
As soluções......................................................................................41
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Introdução
“A letra mata... o Espírito vivifica”.
(2Co 3, 6)
Nós, que caminhamos com a leitura popular da Bíblia, vez e outra
precisamos reconsiderar o que sabemos de nós mesmos, nossas motivações e nossa metodologia.
A SBB (Sociedade Bíblica do Brasil) vende cerca de seis milhões de
Bíblias por ano, ao preço médio de R$ 10... são produzidas 30 mil Bíblias
por dia... A SBB lança 40 títulos inéditos por ano: a “Bíblia da Família”, a
“Bíblia da Mulher” e a “Bíblia do Surfista”... entre outros.
Esta também é uma tendência significativa entre as editoras católicas e evangélicas em geral: em 2015 foram vendidos 70 milhões de livros
“religiosos”... sendo a Bíblia um dos campeões de venda!
Mas... de quantas Bíblias uma pessoa precisa? Quem compra tanta
Bíblia? Então é que a Bíblia virou objeto de consumo, mercadoria... O
capitalismo “coisou” a Bíblia.
Poderíamos dizer que a Bíblia foi “popularizada”? O que isso quer
dizer pra nós? A Bíblia tem status de celebridade, é nome de praça, é empunhada em marchas e cantada em shows. Versículos bíblicos em camisetas,
nomes bíblicos em padarias e lojas de conveniência.
Esta mercantilização do livro “Bíblia” se faz acompanhar também
pelo fortalecimento da leitura fundamentalista e dos usos moralistas do
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texto bíblico especialmente nos debates sobre políticas de educação, família e sexualidade.
Um deputado usa a Bíblia na tribuna. Defende o modelo de família
da Bíblia e com isso quer silenciar todo o debate vivo na sociedade sobre
modos de organização social da vida. A Bíblia se torna então uma trincheira,
uma parede, um espelho e uma mordaça:
• uma trincheira porque é manipulada numa guerra de setores
conservadores contra os debates necessários que acontecem na
sociedade;
• uma parede porque fecha horizontes, nega vislumbres e silencia
sobre os conflitos presentes no texto bíblico mesmo;
• um espelho porque os conservadores e fundamentalistas, na
defesa de seus interesses e privilégios (de classe, de raça, de
gênero, de orientação sexual), querem fazer refletir resoluções
do passado como imperativos imutáveis;
• uma mordaça porque não é lida e interpretada, mas repetida sem
reflexão, sem estudo, sem história e sem contexto: no fundamentalismo (de neo pentecostalismos e neo carismáticos) o texto
bíblico tem sido usado para silenciar as pessoas e não para fazer
surgir significados da presença de Deus na vida.
Assim, ao mesmo tempo a Bíblia é muito importante e... não tem
importância nenhuma. Importante como coisa, como objeto de poder! Sem
importância porque foi reduzida a slogans e frases de efeito.
Na caminhada que fazemos da leitura popular da Bíblia, o que nos
explica e nos dá significado é o método! Somos parte de duas experiências
vitais das lutas de libertação do continente latino-americano: a educação
popular e as comunidades de base.
A leitura popular da Bíblia é fruto da educação popular, do método
ver-julgar-agir, das comunidades de fé e ação, da misericórdia solidária, do
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acolhimento radical e do protagonismo das comunidades que atualizam o
texto no cotidiano de suas lutas e esperanças.
Grandes desafios se colocam para nós, de modo especial para o
CEBI: um deles é manter a fidelidade à sua história, sendo capaz de fazer
a crítica do processo de mercantilização e manipulação do texto bíblico e
continuar se alimentando da Palavra de Deus viva na vida das comunidades.
Nós não temos respostas nem certezas! Nós temos a abertura para
deixar que o Espírito vivifique em nós a Palavra. Para nós, a Bíblia é uma
janela: nos colocamos como comunidade diante do texto, nos aproximamos do passado e compreendemos os conflitos e as resoluções do povo de
Deus no passado e fazemos o exercício de atualizar – crítica e espiritualidade – o texto em nossa história e cotidiano.
Este é o objetivo deste volume da série A Palavra na Vida.
Ana Cláudia Figueroa nos convida a conhecer os textos de Corintios, Timóteo e Tito perguntando pelos conflitos, pelas disputas internas
entre os grupos das comunidades e os grandes conflitos externos com o
Império Romano.
Recolocar os textos no eixo dos conflitos nos ajuda a evitar tratar a Bíblia como receituário. Não há respostas prontas... há debates e
alternativas.
No que diz respeito às resoluções sobre a participação de mulheres,
as ordenações familiares e morais... este livro é uma oportunidade de confirmarmos nossa vocação de leitura popular da Bíblia: na história e na vida!
Boa leitura!
Nancy Cardoso
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1ª Parte
Poder fazer, poder dizer
Algumas mulheres nas primeiras comunidades cristãs
“Por serem ignorantes e analfabetos, estes, tanto homens
quanto mulheres, corriam pelas cidades, e entravam nas casas.
Pregando em lugares públicos e também nas igrejas. Também
dizem que a consagração do corpo e sangue de Cristo na Santa
Ceia pode ser feita por qualquer pessoa justa... Eles até creem
a mesma coisa concernente às mulheres, se são de sua seita, e
assim dizem que toda pessoa santa é sacerdote”1.
Há muito tempo que discussões como esta fomentam elaborações
teológicas em nossas diferentes igrejas. Provavelmente já no início do
cristianismo mulheres exerciam funções nas comunidades, o que indignou
alguns homens.
1 Texto escrito por Bernardo Gui, inquisidor no sul da França, contra os valdenses, datado
de 1300 d.C. In: BARRY, Colman J., Reading in Church History. Volume I. Westminster,
Newman Press, 1956, p.544,546. Citado por REILY, Duncan Alexander, Ministérios femininos em perspectiva histórica. São Paulo/Campinas, CEBEP/Faculdade de Teologia
da Igreja Metodista, p. 119.
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Poder fazer algumas atividades, não poder fazer outras. Poder dizer
algumas palavras, não poder dizer outras. O que está por trás dessas normatizações em torno das lideranças femininas no cristianismo? Vamos fazer
exercícios de leitura que ajudam a responder. Nós, mulheres, reivindicamos outro olhar para a experiência da fé. Ao pensar a história, queremos
visualizar novos personagens. Ao ler a Bíblia, queremos redescobrir seu
significado na experiência da vida. Nesse sentido, o Novo Testamento se
mostra como um amplo campo de trabalho. As muitas mulheres, nomeadas
ou não nos textos, nos convidam a recontar a sua história.
Falta-nos, no entanto, definir melhor os parâmetros da pesquisa,
um instrumento metodológico que nos aproxime com o máximo de fidelidade das primeiras comunidades cristãs. Assim, partimos dos seguintes
pressupostos:
• Visualizar a experiência de vida das primeiras comunidades cristãs descrevendo melhor os sujeitos: com presença de homens
e mulheres, crianças e idosos, pobres e ricos, estrangeiros e
romanos;
• Resgatar as experiências desde a realidade do conflito, uma vez
que o Novo Testamento traz em si a característica de ser uma
tentativa de solução mágica para conflitos emergentes (explícitas
em algumas cartas, implícitas nos evangelhos);
• Os textos são testemunhos de uma parcialidade dentro das comunidades. Fazer sua releitura significa reconstituir outras parcialidades existentes. Não devemos encarar os textos como normativos, uma vez que são circunstanciais.
A seguir, proponho uma leitura sobre a história das mulheres que
exerceram liderança no primeiro século em comunidades cristãs.
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