Loterias como passaporte para a liberdade: a sorte e seus eleitos

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Loterias como passaporte para a liberdade: a sorte e seus eleitos
Loterias como passaporte para a liberdade: a sorte e seus eleitos no final
do século XIX
Beatriz Ana Loner1
Na cidade de Pelotas sete pessoas pobres, quatro delas escravas, ganharam metade do
prêmio da milionária Loteria do Ipiranga, em 1881, o que significava, em bruto, 500 contos de reis
a serem divididos entre os sete, resumindo: um monte de dinheiro para quem, como eles, era
extremamente pobre. Já fazia alguns anos que as loterias despertavam muitos sonhos e esperanças
com pessoas de todas as classes sociais correndo para apostar em bilhetes que pareciam trazer o
sonho de conquistar a independência econômica com pouco esforço, apenas com algumas apostas
de baixo valor. O caso que aqui vai ser relatado é apenas o cume deste movimento de apostas de
loterias, não o primeiro, nem o último de uma longa série.
Acompanhar este episódio e as
conseqüências que trouxe à vida dos contemplados é a proposta dessa comunicação.
Esta pesquisa foi feita consultando-se os jornais do período e também as cartas de alforria,
as quais forneceram excelente resultado, pois se comprovou que as apostas na sorte era um dos
meios empregados pelos escravos e seus familiares, para tentar sua alforria. Destaca-se que a
pesquisa concomitante de jornais e das cartas permitiu comprovar que, após a comprovação da
premiação, a primeira atitude dos contemplados com prêmios, era a imediata compra da liberdade.
O sonho de ganhar na loteria, tanto hoje como no passado, ainda é o mesmo: conseguir
dinheiro suficiente para se colocar a salvo das intempéries da vida, e permitir uma vida mais
folgada, sem trabalho e sem esforços, para a pessoa e sua família. O ganhar na loteria, hoje significa
normalmente comprar algum bem imóvel, parar de trabalhar ou, pelo menos, exercer atividades que
dêem prazer ou status profissional, como a gestão de um negócio próprio. Da mesma forma, no
passado, a perspectiva de ganhar, de uma só vez, o suficiente para desobrigar a pessoa do trabalho
ou de preocupações financeiras, era muito tentadora, ainda mais se levarmos em conta que a
sociedade não possuía mecanismos de aposentadoria ou previdência para sustentar aqueles que se
retiravam do trabalho ativo ou em casos de doenças graves.
Para aqueles que eram coagidos a trabalhar para outros, fossem livres ou escravos, a
conquista da estabilidade financeira era uma premissa básica para que pudessem entrar no gozo de
1
Professora associada da Universidade Federal de Pelotas doutora em Sociologia. [email protected]
1
uma vida mais folgada e com menores preocupações. Para os já livres, a partir da estabilidade
financeira poderiam se considerar realmente em condições para gozar a vida. Mas no caso dos
escravizados, havia uma premissa ainda anterior, que era o controle do seu próprio corpo e do que
seria feito com ele. Portanto, para os cativos que tentavam ganhar nas loterias, a sua libertação e,
em alguns casos, daqueles que lhe eram próximos, eram a prioridade inicial em sua lista de
aplicação do dinheiro ganho. Só a partir de então, e se sobrasse dinheiro, poderiam se preocupar
com a busca de uma vida mais folgada e cômoda, o que deveria incluir não serem obrigados mais a
desempenhar nenhum tipo de trabalho, especialmente manual, pois até então, o símbolo mais
evidente de sua submissão a outra pessoa era que lhe deviam trabalho, ou seja, deviam-lhe esforços
físicos despendidos sem consideração com sua vontade ou condição física, por decisão de outrem e
na quantidade e condições que o detentor do poder sobre seu corpo o exigisse. Pessoas coagidas ao
trabalho em qualquer grau, não tem a opção de escapar ao serviço em algum grau, e, por mais que
houvesse táticas de economia de esforços físicos2 à revelia dos senhores, o desgaste dos seus corpos
era um fato ao qual dificilmente escapavam.
Os livres, quando pobres, também sabiam que sua liberdade era pequena, pois regida pelas
necessidades da sobrevivência que os forçava a aceitar trabalhos mal remunerados, perigosos ou
estafantes, sob pena de passarem fome e outras necessidades. Além disso, a sociedade tinha regras
não explicitas, ao lado de leis muito claras, que praticamente exigiam determinados
comportamentos e atitudes de quem pertencia às classes mais baixas da sociedade, como era o caso
dos trabalhadores. De certo modo, então, a busca da liberdade, do direito de ir e vir, de se
comandarem a si mesmos e não terem que obedecer a outros, era na verdade o que escravos e livres
pobres buscavam em suas apostas, seja na loteria, em jogos de cartas, ou outras formas de jogos de
azar.
Quanto aos escravos, obviamente sua situação era pior, pois, como uma categoria sem
direitos, estes não poderiam nem escolher, como os primeiros, entre trabalhar no que não gostavam
ou passar fome, pois eram forçados a despender seus esforços no que outros decidiam e da forma
que eles queriam, além de estarem sujeitos a castigos físicos e a uma série infindável de obrigações
e discriminações.
2
Sobre isso, veja-se MACHADO, Maria Helena. Crime e escravidão. São Paulo: Brasiliense, 1987, especialmente a
segunda parte, e LARA, Silvia. Campos da violência. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988.
2
Atualmente, temos uma profunda discussão, entre os meios historiográficos, sobre o
significado da liberdade para cada individuo participante da sociedade escravista brasileira,
procurando-se vislumbrar tanto o significado que cada um dos agentes atribuía a essa palavra,
quanto os limites que a própria liberdade encontrava dentro de todas as restrições, regras e modos
de agir e obedecer existentes Eduardo Silva já comparou a sociedade escravista com uma imensa
gaiola, na qual a vigilância de todos auxiliava a manter o paradigma escravista 3; Sidney Chalhoub
discutiu as diferenciadas visões que senhores e escravos possuíam da busca pela liberdade ao final
do Império4. Contudo, é Hebe Mattos que, ao buscar definir o sentido de uma intervenção
autônoma dos cativos, rompendo-se com a anomia em seu agir, com a qual muitos tentaram
interpretar seu comportamento, nos auxilia
no entendimento dos suportes necessários para a
compreensão do agir dos trabalhadores cativos:
Parece-me bem mais razoável supor que, na vigência da escravidão, as expectativas de liberdade que se abriam
aos nascidos livres despossuídos e ao sonho de liberdade dos escravizados, foram culturalmente construídos no
interior da sociedade escravista e estiveram a ela integrados. Deste modo “livres pobres” ou escravos (uma vez
que socializados enquanto tais), agiam socialmente a partir dos códigos culturais correntes naquela sociedade,
mesmo que reinterpretados a partir de suas posições sociais específicas 5.
Utilizando estes parâmetros, vamos analisar a forma pela qual os cativos participaram do
entusiasmo pelas loterias, espalhado pelo pais no final do império e quais as necessidades que
buscaram atender, quando e no caso de que fossem contemplados com prêmios. Entende-se aqui,
que, em relação a questão da conquista da liberdade, eles tiveram um entendimento diferenciado
dos demais setores da população, mas que, nos demais casos, eles procuraram se adequar aos
parâmetros reconhecidos e aceitos pelas camadas médias daquele tempo. Embora também
reconheça-se nos cativos agentes ativos de sua própria vida, não pretendemos aqui relacionar estas
ações de aposta com os conhecidos conceitos de resistência ou negociação, por entender que não se
aplicam ao caso em análise.
As loterias no Império:
Para que possamos entender como ganhar na loteria se tornou um sonho de milhares de
indivíduos nas últimas décadas do século XIX, deve-se primeiro, entender quais as diferenças da
loteria daqueles anos das nossas loterias atuais. Durante todo o Império, as loterias existiram como
um empreendimento privado, só passando a ser regulamentadas pelo estado a partir da República.
3
SILVA, Eduardo. Fugas, revoltas e quilombos. In: REIS, João J. e SILVA, Eduardo. Negociação e conflito. São Paulo:
Companhia das Letras, 1989, p. 62- 78..
4
CHALHOUB, Sidney. Visões da liberdade. São Paulo: Companhia das letras, 2001.
5
MATTOS, Hebe. Das cores do silêncio. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1998, p. 34-35.
3
Elas foram introduzidas no Brasil pelo Governador da Capitania de Minas Gerais, Luiz da Costa
Menezes, com o objetivo de financiar a construção da Casa da Câmara de Vila Rica, ainda no
período colonial, em 1784. Com o uso de bilhetes numerados, e viajantes que se encarregavam da
venda e recolhimento do dinheiro em povoados, vilas, fazendas e garimpos, colocou em
funcionamento uma fonte de arrecadação alternativa6. A partir deste início e de seu sucesso junto ao
público, elas difundiram-se e diversificaram-se, ssendo regulamentadas por D. Pedro II em 1844,
através do decreto 357. Serviram também servindo para o financiamento de obras, como por
exemplo, a construção do Monumento do Ipiranga, a Igreja do Bonfim em Salvador e algumas
casas de Misericórdia. Para o final do século XIX, não foi incomum que se destinasse a uma ou
outra entidade benemérita, uma porcentagem da arrecadação deste jogo de azar.
Segundo Amaral, as loterias são uma estratégia de arrecadação muito usada em países com
população muito pobre com o objetivo de arrecadar voluntariamente montantes de recursos extras.
Contudo, há críticas a sua utilização, tanto por parte de algumas religiões, mormente as protestantes,
quando a sua validade moral, pois se entende que elas despertam esperanças que nunca serão
satisfeitas
para a grande maioria e nesse sentido, leva as pessoas a desviarem recursos que
necessitariam para sua sobrevivência, para estes jogos, em uma batalha quase sempre perdida com
a sorte.
Elas parecem começar a ter maior vigor a partir da década de 1870, atingindo seu ápice na
primeira metade da década seguinte, embora continuem a ter fiéis seguidores até hoje, de forma
que, no início da república, houve jornais anarquistas referindo-se a ilusão nas apostas e nos jogos
como um dos males que afligiam os operários por tirar mais um pouco de suas parcas economias e
ainda iludí-los com a crença em saídas individuais da miséria.
No estado gaúcho as apostas nos bilhetes lotéricos constituíram uma verdadeira “febre” que
contagiava a todos, a ponto de até associações mutualistas, através de seus diretores, terem
comprado bilhetes. Havia várias loterias, tanto de Cidades brasileiras (Porto Alegre, Rio de Janeiro,
São Paulo), quanto do exterior, como a loteria de Montevidéu, que chegava regularmente em
algumas cidades gaúchas. Durante algum tempo, talvez pelo mecanismo ainda não tão bem
desenvolvido das extrações dos prêmios, ou pelo fato de haver vários sorteios, ocorreu que vários
6
AMARAL, José Ronaldo. As loterias federais brasileiras: um estudo da arrecadação e de sua previsão. Brasília, UNB,
dissertação ( Mestrado em economia do Setor Público), 2005.
4
prêmios saíram para pessoas comuns, pobres ou ricos, escravos ou livres, especialmente em cidades
em que se apostava muito, como era o caso de Pelotas.
Havia uma pequena quantidade de números envolvidos nos sorteios, o que também poderia
ser a causa da facilidade dos acertos. Explicando melhor: em algumas loterias, como aquela de
Porto Alegre, por exemplo, devia-se acertar apenas no milhar, o que tornava mais fácil ganhar.
Mesmo na grande loteria do Ipiranga de 1880/1881, em sua primeira extração, as apostas eram
feitas em dezenas de milhar, o que ainda deixava uma ampla chance de ganho. Por exemplo, sabese que em 1876, a loteria de Montevidéu avisa que vai começar a pagar o premio em ouro e não
mais em papel moeda, devido a desvalorização deste. A mesma noticia informa que o premio maior
é de 18:000$ e que são “ 700 as sortes”.7 Por outro lado, eram muitos os prêmios e havia uma série
de outras combinações, além dos números principais, que eram contempladas com valores menores,
e estes mecanismos se combinavam para repartir a riqueza dos prêmios e para manter acesa a
esperança na sorte.
Devido as poucas informações existentes, não foi completamente esclarecido como era o
sistema de premiação, havendo a dúvida se, no caso do número sorteado com o primeiro prêmio não
ter sido vendido, não seria feita nova extração. Ou seja, não haveria o esquema de acumulação de
prêmios para outra rodada, todas esgotando-se em si mesmas. Na verdade, o sistema das loterias
somente em 1893 passou a ser centralizado pelo governo republicano, antes disso elas eram um
investimento privado..
Mas, sem dúvida, um mecanismo que auxiliava em muito a que Pelotas fosse beneficiada
em várias rodadas, era a quantidade de apostas que eram feitas pela cidade. È possível acompanhar
o incremento da ilusão lotérica, através dos jornais, especialmente do Jornal do Comércio, o que
auxiliava a alimentar a ilusão do ganho, através de várias notícias sobre as loterias e seus
contemplados. Havia duas ou três lojas de apostas e seus donos, às vezes, ficavam responsáveis pelo
conjunto das apostas, algo como o familiar bolão da mega-sena de hoje.
Por outro lado, algumas pessoas começaram a se unir para comprar mais números, fazendo
então associações informais, as quais não eram registradas em cartório, mas que procuravam se
cercar de todas as cautelas possíveis, normalmente inserindo publicações em jornais, com o nome
dos apostantes e o número dos bilhetes comprados, na tentativa de evitar fraudes e garantir a lisura
na premiação. Uma breve pesquisa revelou que algumas dessas associações de compra de bilhetes
7
O Paiz, Pelotas, 28/9/1876.
5
eram ocasionais e pontuais, servindo apenas para uma ou duas apostas e variando-se o número e o
conjunto de apostadores, enquanto outros parecem fazer parte de grupos mais elaborados, tendo
nome, regras quanto às cotizações e até secretários. Como a pesquisa mais extensiva foi feita apenas
em Pelotas, há noticias de que pelo menos uma associação importantíssima da comunidade negra
urbana na cidade, teve sua origem numa dessas sociedades de apostas.8
As associações identificavam-se com títulos sugestivos de sua proveniência, como a
sociedade Lourenciana, da cidade próxima de São Lourenço do Sul, ou ainda faziam brincadeira
com a fortuna, como a sociedade “ dos dez atrás dos trinta” (que brincava com o premio de trinta
contos de réis), ou aquela dos “caiporas”, a qual pretendia brincar com o próprio azar dos
apostadores contumazes que a formavam e que ainda não haviam sido premiados. Há indícios de
que havia uma certa lógica presidindo a formação de algumas dessas associações, como grupo de
amigos, conhecidos, local de trabalho ou vizinhança, mas não é possível uma generalização
completa, pois também notou-se algumas completamente misturadas entre seus integrantes.
As apostas e os escravos
A lei do Ventre Livre, possibilitando aos cativos acumular pecúlios, terminou facilitando seu
direito a receber prêmios em seu próprio nome, como aqueles das loterias. Como as apostas eram
baratas, sendo divididos os bilhetes, pelo menos em quatro partes, era possível a todos participar e
sonhar com os prêmios .9 Os bilhetes eram encomendados, tanto por apostadores individuais,
mormente aqueles que faziam apostas mais elevadas, que então os conseguiam mais baratos, quanto
pelas casas especializadas. Os escravos costumavam comprar destes últimos, às vezes apenas partes
do total, utilizando-se das parcas economias que conseguiam, embora houvesse notícias de
pequenos furtos com o objetivo do jogo.
A sorte pode ser caprichosa, às vezes, e pessoas pobres começaram a ganhar prêmios,
algumas delas escravas. Disseminou-se então, a idéia de que haveria uma espécie de justiça
superior orientando estas premiações, o que trouxe como conseqüência que muitos senhores de
escravos começassem a apostar junto com seus cativos, ou então que se pedisse a escravos que
8
A respeito, veja-se LONER, Beatriz. Construção de classe. Pelotas: Ed. UFPel, 2001.
A procura de informações sobre as loterias do passado redundou infrutífera, tanto em termos de textos de
divulgação quanto a estudos acadêmicos. De forma que muito do que vai exposto aqui foi recolhido apenas através
dos jornais.
9
6
escolhessem os números para seus senhores. Um conto publicado na crônica semanal do jornal
Correio Mercantil, sobre uma jovem filha de família que se fixa na idéia de apostar em loterias,
ilustra esta situação, quando a família leva bilhetes para casa e pede a um escravinho de casa
próxima que escolha o número a ser comprado.10 Esta jovem moça também sonhava com o prêmio,
com o qual conquistar outro futuro que não fosse casar com um homem indicado pela família e
dedicar-se exclusivamente à casa e aos filhos, segundo o cronista Sulpício, ou melhor Antonio
Joaquim Dias, diretor do Correio Mercantil e homem de ideias arejadas para sua época.
Mais motivos ainda para apostas tinham os cativos, cujo corpo e vontade pertenciam a seus
donos e que, portanto, tinham como primeira objetivo o sair da miséria e conquistar sua
autonomia11. Mesmo aceitando-se que o significado da liberdade possa variar conforme a classe,
status e posição social de cada individuo naquela sociedade, parte-se do princípio que a primeira
condição para gozá-la é o domínio de seu próprio corpo e seu destino, ideia, como se viu, que
poderia estar atiçando tanto os pensamentos da mocinha branca, quanto dos escravos que se
distanciavam do padrão de brancura por maior ou menor colorido de pele.
No conto, o bilhete não foi premiado. Melhor sorte, entretanto, tiveram alguns escravos, de
Pelotas e outras cidades, que conseguiram realizar seus sonhos, conseguindo-se a liberdade de todos
da família e, em alguns casos, inclusive uma melhora significativa das condições de vida.
- Porto Alegre- Na última loteria da província, uma família de escravos foi contemplada, e o marido,
mulher e 4 filhos imediatamente libertaram-se.12
Rita Alves Dias concedeu liberdade ao seu escravo pardo Manoel Antonio, pedreiro, mediante a
quantia de 800$000 que este ganhou na loteria da província. 13
Outras vezes, o encontro com a sorte era apenas o suficiente para comprar a liberdade de um
deles, havendo então, a necessidade da escolha de quem deveria ser libertado. Nenhuma fonte pode
nos aproximar das dimensões e dos conflitos que poderiam ser deflagrados nessa escolha. Assim,
não podemos saber qual o tipo de lógica que fez com que Joaquina, que tirou a sorte com um quarto
de bilhete da grande loteria da corte em novembro de 1881, auxiliasse na libertação de seu irmão
Bernardino, com o total de 600$ ao que ele acresceu mais 600$ para perfazer o total pedido por seu
10
O conto é extremamente rico de detalhes, implicando inclusive implicando no sacrifício de um novo vestido de baile
pela jovem, para que seu pai compre o bilhete.( Correio Mercantil 18/7/1880)
11
MATTOS, Hebe- op. cit.
12
Diário de Pelotas, 1/7/1881.
13
Correio Mercantil, Pelotas, 28/12/1882.
7
senhor14. Joaquina permaneceu escrava, mas, por trás deste gesto de grande generosidade talvez
esteja a idéia de que seu irmão, jovem rapaz de 19 anos poderia auxiliá-la posteriormente a se
libertar.
Como conseqüência perversa da sorte que entregava de uma só vez uma quantia de dinheiro
alta para os padrões da gente comum da época, aqueles libertados por prêmios de loterias eram
normalmente os que terminavam pagando mais caro por sua liberdade, pelo que se pode observar
dos catálogos com as cartas de alforrias. Assim, se um trabalhador especializado escravo, um
marceneiro de 25 anos, teve cotada sua liberdade em 1:350$ em 1879 15, os contemplados, mesmo
sem especialização, tinham que comprar sua liberdade a preços muito superiores, como Tito,
escravo de Manoel Farinha e o qual pagou 2:000$ por sua liberdade em 18/9/1880, logo que se
soube que era um dos felizes ganhadores da loteria de Montevidéu.16
A Loteria do Ipiranga:
Muitas pessoas de posses também ganharam nestas loterias, talvez até mais do que pessoas
pobres, pois compravam mais bilhetes e diversificavam suas chances. A razão porque tantos foram
os contemplados na cidade de Pelotas, independente de sua situação financeira, está em razão direta
com o alto número de apostas ali realizadas. E também não eram apenas os escravos, mas gente
livre ou liberta também foi envolvida nos caprichos da sorte, do qual o caso mais documentado é da
Loteria do Ipiranga, assim chamada porque, extraída em São Paulo, a arrecadação visava conseguir
fundos para a construção do Monumento do Ipiranga. Seu prêmio era extremamente rico:
1000:000$000 e seus bilhetes foram postos a venda no segundo semestre de 1880, marcando-se
para dezembro sua extração.
Em 19 de setembro de 1880, o Correio Mercantil comentava a situação dos muitos prêmios
que haviam contemplado a cidade, naqueles dias: “ Pelotas é a terra dos muitos... Veio-lhe a sorte
dos 50.000 pesos metal de Montevidéu,e logo em seguida a de 15:000$000 papel, de Porto Alegre,
soma com outros prêmios menores, mais de 150:000$000 em menos de 12 dias” E logo acrescenta,
em tom premonitório: “ Faltam apenas os 1.000 contos, de São Paulo”.
14
APERS, Cartas de liberdade dos Tabelionatos dos municípios do interior, v. 2, p. 726.
APERS, Cartas de liberdade dos Tabelionatos dos municípios do interior, v. 1, p. 543.
16
APERS, Cartas de liberdade...., v. 1, página. 513.
15
8
E este grande prêmio também sairá para a cidade, só que não logo a seguir, mas apenas em
fins de fevereiro de 1881, para quando foi adiada a extração, devido a problemas com o
gerenciamento das apostas17. “A situação é de quase calamidade, pois desperta muito interesse”,
segundo o jornal.
Esta loteria tornou-se um fenômeno nacional, que parece ter enlouquecido a muitos.
Segundo ainda o Correio Mercantil, cerca de seis milhões de pessoas, em todo o país, teriam
interesse nessa loteria, apostando diretamente ou fazendo parte de algumas das muitas sociedades
de apostas existentes18. Conforme o número de apostas crescia, começaram a ser vendidos bilhetes
no mercado negro, por preços altos, muito mais do que seria sensato apostar, segundo casos ainda
relatados pelo Correio Mercantil.19 Cerca de uma semana depois, outra loteria, esta de Porto
Alegre, também contemplou um número vendido em Pelotas, pelo que este foi o mês mais animado,
em anos20, na cidade.
Para Pelotas saiu o primeiro grande prêmio da loteria do Ipiranga, que foi comprado por dois
grupos diferentes de pessoas. Metade do número premiado – 159.885 – estava em posse de um
caixeiro português, que ficou em silêncio, não autorizando a divulgação de seu nome e foi embora
para Porto Alegre e a Europa, logo depois de vender sua parte no bilhete. Quanto à outra metade,
ela foi comprada em conjunto por sete pessoas, todas pobres. O grupo incluía dois sapateiros e uma
senhora, brancos( ou como tal considerados) e mais quatro afro-descendentes: Pedro menor de
idade e filho de um liberto, Felisberto Silveira, Joanna Gonçalves da Conceição, também liberta.
Duas escravas, Josefa, cujo proprietário era Zeferino Campos e Clarinda Crespo, escrava de
Firmino de Carvalho também ganharam o prêmio. Cada um deles havia entrado com 1$000 réis
para a compra do bilhete e ganhou cerca de 64:285$714, já descontando-se as taxas.
A notícia chegou a Pelotas no dia primeiro de março e o evento eletrizou a cidade. O Jornal
do Comércio, principal órgão divulgador e incentivador das loterias não só esgotou-se naqueles
primeiros dias, como sumiu, não estando completa nem a coleção da Biblioteca Pública para o mês
de março daquele ano, sinal evidente do grande uso que teve nas mãos de ávidos apostadores que
queriam conferir tanto os números com premiação e quem tinha sido contemplado com prêmios
17
Correio Mercantil, 23/10/1880. Pela notícia, um milhar de números não haviam sido ainda contabilizados e a
situação era de “quase calamidade”, pelo grande interesse despertado por este sorteio.
18
19
Correio Mercantil de 26 de fevereiro de 1881, dia do sorteio.
Idem
20
“O maior prêmio da loteria da Província extraído ontem também saiu para Pelotas, ao Sr. Francisco de Paula Nunes
Baptista” ( Correio Mercantil, 8/3/1881)
9
menores, alguns dos quais também saíram para moradores da cidade. Muitos acercaram-se do grupo
de sete ganhadores, que logo ficou conhecido, na tentativa de conseguir algum lucro e começaram
as confusões.
Inicialmente, o sapateiro Henrique José Salgado, um dos ganhadores e que havia ficado com
a guarda do mesmo, o vendeu para o comendador Manoel da Conceição,21 que lhe deu um sinal e
esperou para comprar o restante dos demais. Para evitar abusos, a justiça viu a necessidade de
intervir, para salvaguardar os direitos das duas escravas e do menor Pedro, nomeando-se um
curador. Com isso, conseguiu-se garantir uma certa lisura nas transações entre os ganhadores e
aqueles ( e eram muitos) que queriam comprar os direitos sobre ele. No meio deste processo, ainda
houve boatos de que teria havido problemas com a extração e que ela seria anulada, o que trouxe
ainda mais ansiedade a todo o processo.
Dessa forma, a negociação em torno do bilhete terminou levando mais de um mês, mas por
fim foi concluída com a compra do bilhete pela firma de Manoel da Conceição e Cia., sendo
lavradas certidões em cartório das negociações22 individualmente. O processo contou com vários
contratempos, devido a denúncias de que estariam sendo esbulhados os direitos dos ganhadores e
pela situação particular dos três ganhadores tutelados.
Poucos meses antes, o cronista do Correio Mercantil, com seu olhar crítico, já descrevera as
solicitações e o assédio por que passavam as pessoas pobres que eventualmente recebiam prêmios, a
partir dos comentários sobre uma “preta chamada Esperança”, ganhadora com outros 11 indivíduos
de um prêmio da loteria de Montevidéu23, de cem contos. Segundo este jornal, de uma hora para a
outra, ela e o marido, tiveram
Em sua presença, 15 oradores, 3 jornalistas, 6 advogados, cinqüenta corretores, duzentos mendigos,
trinta pobres da pobreza envergonhada e não sei quantos escravos, a pedir esmolas para sua
liberdade [.......]. Antes, quando a Esperança passava por qualquer rua, ninguém a conhecia, ninguém
lhe ligava importância, ninguém lhe perguntava quantos anos tinha [.......] Os cem contos de réis
foram, para muitos, um verdadeiro maná do céu. – onze indivíduos pelo menos despediram a
21
Manoel Alves da Conceição era sócio da firma Conceição e Cia e dono de terras.
22
O livro v. 13, do 1º cartório de Pelotas (48), a folha 131, 132 e 133- tem o registro de meio bilhete da loteria para a construção do
monumento do Ipiranga. É cessão de concessão e transação entre Henrique José Salgado, Vitor Gonçalves, por cabeça de sua mulher
e outros e Conceição e Companhia. Ratificada, mais tarde, na folha 84 do livro do cartório de registros de Pelotas ( 48), v. 17 . No
mesmo livro estão registradas também as negociações com os outros ganhadores. APERS, 48, v.13, folhas 131 a 133 e 48, v. 17,
folha 84.
23
Esperança deve ser a mulher citada na noticia do Jornal do Comércio de 12/9/1880: A sorte grande de Montevidéu saiu aqui para
várias pessoas, entre eles “ um pardo, escravo do sr. Manoel Thomas Farinha” e “uma preta mina.”
10
necessidade que os acompanhava desde a infância e cinco viram-se ou pretendem ver (sic) livres da
impertinência dos senhores.24
Ora, se isso ocorreu em relação a uma premiação menor e dividida entre mais pessoas,
imagine-se com relação aos 450 contos de reis, prêmio liquido a ser pago pelo meio bilhete
premiado, pois, espertamente, o vencedor isolado da outra metade, já havia viajado em surdina. Os
jornais passaram a cobrar dos ganhadores que alforriassem seus familiares e amigos. Surgiram, na
cidade, vários anúncios de pessoas que compravam bilhetes premiados e inclusive houve dois casos,
um Pelotas e outro em São Paulo, de apresentação de bilhetes com números fraudados, para receber
prêmios menores. O complexo sistema de premiação da época garantia que números de final
próximo do primeiro prêmio fossem contemplados e a cidade teve vários ganhadores. A associação
Lotérica Boa Esperança publica uma prestação de contas dessa loteria, dias depois, informando que
ela e duas outras, com as quais se consorciou foram contempladas com: “13 bilhetes premiados com
10$000; 38 [bilhetes] na sociedade dos 12; 25 [bilhetes] na Feliz Lembrança, de Rio Grande”25
Poucos dias antes, provando como jogar era um vício, informa que está comprando 500 bilhetes da
nova loteria que vai correr e que quem quiser, pode associar-se. O secretário desta entidade era um
artesão negro, sócio da sociedade Mutualista Fraternidade Artística, provando o fascínio que as
loterias possuíam sobre esta parcela da população mais desprotegida.26
Após o frenesi inicial, a vida retomou seu curso, embora de forma modificada para os
vencedores. Com relação aos dois sapateiros livres, depois da venda de seus direitos sobre o bilhete,
nada mais se soube, efetivamente, a respeito. Notícias do jornal A Ventarola de 24/6/1888,
insinuam que compraram palacetes e se afastaram do seu meio, mas terminaram perdendo toda sua
fortuna e retomando seus antigos postos de trabalho. Dona Felicidade Pereira da Silva, com seu
sugestivo nome, deveria ser solteira, pois ela mesma toma providências para a venda de sua parte na
sorte e também desaparece dos noticiários. Joanna da Conceição, lavadeira e liberta, foi a outra
felizarda e era casada com Vitor Gonçalves, quem toma as principais medidas em relação a gestão
de seus bens, nada mais se sabendo dela.
Quanto às duas cativas, coerentemente, uma das principais medidas a serem tomadas, foi a
de sua alforria e dos que lhes eram caros, no caso de Josefa, escrava de Zeferino José de Campos,
que comprou sua liberdade no momento da divulgação do resultado, dia 2/3/1881, ainda sem dispor
24
Correio Mercantil, 19/9/1880.
Correio Mercantil 23/3/1881
26
Correio Mercantil 17/3/1881.
25
11
do dinheiro, mas assinando um documento de compromisso com seu dono27. Idêntica medida é
tomada por Clarinda, pertencente a família Crespo e no mesmo dia. Contudo, como esta última era
menor de idade, seu ex-proprietário pretendeu ter direito a gerir seus bens28. Sua situação, bem
como do menor Pedro, suscitou a preocupação das autoridades e para ela foi nomeado um tutor,
João Chaves Campello
Previne-se ao Ilmo. sr. juiz de órfãos que a parda Clarinda, a quem coube a sorte de mil contos na
loteria do Ipiranga é de menor idade e não foi devidamente representada na transação que fizeram
com o bilhete premiado, estando ainda a importância que lhe coube para ser recebida dos srs.
Conceição e cia., os quais só deverão entregar a pessoa competente.; por isso é de justiça que se
nomeie tutor para este fim. .29
Pelos jornais, pode-se sentir que houve uma preocupação muito grande com a possibilidade
de abuso dos bens dos menores e dos escravos, pois se considerava que não estariam preparados
para desfrutá-los. Sobre Clarinda, nada mais se soube, devendo ter se casado, pois não devem ter
faltado pretendentes para uma jovem que compensava em dinheiro, sua origem e a cor parda.
Aparentemente , não possuía família e talvez tenha ficado unida a seus ex-proprietários, o que só
uma investigação mais dirigida poderia elucidar.
O caso do outro menor, não escravo, mas filho de escravos, Pedro, é mais interessante, pois
tem muitas peripécias, já que muitos viam na sua condição de menor de idade, com um pai
analfabeto, a situação própria para procurar levar alguma vantagem. Inicialmente, ele tem suas
posses administradas pelo pai, Felisberto, popularmente conhecido como “major”. Contudo, como
esse é um homem analfabeto e considerado ignorante, lhe foi colocado um tutor, por ordem do juiz
de órfãos. Sendo vendida a sua parte no bilhete, ela foi empregada na compra de 45 apólices do
estado, além de propriedades na cidade. Tudo que permitem a Pedro, inicialmente, é a compra da
liberdade de familiares e, neste sentido, ele libertou alguns tios e primos. Contudo, um ano depois, o
jornal Diário de Pelotas denuncia, sob o título “ Escândalo”: :
O bacharel Seve Navarro foi à côrte para vender apólices do menor Pedro, filho do preto liberto
Felisberto Silveira.
O menor Pedro foi agraciado com a sétima parte do prêmio da loteria, cuja parte que lhe
coube foi empregada em 45 apólices do governo e algumas propriedades nesta cidade. Era
administrador o Sr. Theodósio Fernandes da Rocha; há dias o bacharel Seve Navarro, em nome do
27
APERS, Cartas de liberdade, vol. 1, p. 457. A carta de liberdade de Clarinda encontra-se na mesma página.
Ele coloca noticia no Correio Mercantil de 1/3/1881, dizendo que ninguém está autorizado a negociar em nome
dela. Isso foi antes da nomeação do tutor.
29
A Discussão, 19/3/1881.
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pai do menino, requereu ao Sr. Dr. Juiz municipal e de órfãos que o administrador dos bens de seu
filho prestasse contas; e logo depois reivindicou Felisberto Silveira (o pai) empossar-se dos bens do
filho, ao juiz de órfãos.
Felisberto é um homem que recentemente rompeu os ferros do cativeiro, é analfabeto e ignorante,
logo, deduz-se que sua inaptidão para administrar os bens do filho, tem por trás a manipulação de
outra pessoa; que pouco tempo depois estaria requerendo a venda de 25 apólices, com o pretexto de
empregar nos imóveis30.
O jornal acrescenta que se preocupa com os bens do menino e exige que lhe seja dado um
novo tutor. Pouco depois, anuncia que a venda das apólices foram suspensas, mas que persistem
os esforços no sentido de provar que o pai dele teria condições de administrar os bens do filho.
Insinuando a compra de testemunhas para deporem em juízo com este fim, termina afirmando:
“Salve-se quem puder da corrupção, que tudo contamina”31. Volta a carga dia 16 de março do
mesmo ano, denunciando agora que se arma uma trama para casar o menor com “uma pardinha”
e que “ as partes interessadas na urgente venda das apólices darão um jeito de armar um
sequestro e flagrante, tendo aí, a obrigatoriedade do casamento do menor Pedro e a dita
pardinha.” O objetivo seria, depois, requerer ao Sr. juiz de órfãos, a maioridade de Pedro para
gerir seus próprios bens. Por fim, em 1º de abril de 1882 o jornal publica material comemorando
o fracasso do bacharel Navarro nas investidas para roubo dos haveres do menor Pedro.
Bem, apenas com as notícias de jornal, não se pode fazer uma idéia completa do que
aconteceu, mas chama a atenção o edital publicado pelo Correio Mercantil dois anos depois:
O JUIZ DE ORFÃOS- FAZ SABER QUE A PEDIDO DE Manoel Conceição da Silva Santos,
procedeu-se a justificação em que ficou provado que Pedro Eduardo da Silveira, genro do
justificante, gasta desordenadamente os seus bens. Porisso, ele foi declarado pródigo e como tal
declarado incapaz de reger e administrar sua pessoa e seus bens, sendo nomeado curador do mesmo
o sr. dr. Marçal Pereira de Escobar32.
Manoel Conceição da Silva Santos era pessoa extremamente respeitada na comunidade
negra de Pelotas, sendo um dos poucos negros presentes na diretoria do Clube Abolicionista da
cidade( no qual convivia na diretoria com o dr. Escobar) e tendo sido também um dos fundadores
do jornal A Voz do Escravo, primeiro órgão a lutar pela abolição na cidade. Não se sabe se Manoel
realmente estava aliado a Seve Navarro, se sua filha seria a “pardinha” a que o jornal se referiu,
30
Diário de Pelotas, 19 de fevereiro de 1882, página 1.
Diário de Pelotas, 1º de março de 1882, p. 2..
32
O volume do jornal está rasurado em suas primeiras páginas, impedindo que se saiba a data completa, apenas
indicando-se que pertence ao Correio Mercantil dos primeiros dias de agosto de 1884.
31
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com a qual estariam tramando seu casamento, ou ainda seria uma segunda jovem, com a qual
trataram de casá-lo no sentido de preservar sua riqueza33..
Bem mais tarde o jornal A Ventarola, numa constatação crítica do que aconteceu com os
“felizardos”, vai dizer que a riqueza foi efêmera e que “os menores, despojados de sua sorte por
uma nuvem de carnívoros, exerciam funções de coveiros em nosso cemitério”34. Este jornal é do
tipo literário e esta afirmação consta como legenda de uma charge sobre os resultados da loteria,
portanto, deve ser vista com cuidado. Isso, entretanto, não invalida a constatação de que, realmente,
pouco valeu a Pedro e Felisberto o grande prêmio, pois não conseguiram administrá-lo devido aos
tantos “cuidados” da sociedade pelotense.
A história de Josefa também é significativa do que conjunturas diversas da vida podem
trazer as pessoas. Josefa tinha 58 anos quando se libertou e até então, não era casada, embora talvez
tivesse filhos, pois pouco tempo depois ela liberta uma moça de 19 anos, sua filha de nome
Esperança, que pertencia a Manoel Ferreira Batista, por 800$ e a seguir uma família inteira,
composta por Francisca, de 35 anos, sua filha Cândida e um ingênuo de dois anos, também filho de
Francisca, todos pardos, pertencentes a José Lourenço de Oliveira.35
Liberta e rica, Josepha resolve tornar-se uma pessoa respeitável e, para tanto, compra a
liberdade do escravo João, preto, natural do Congo, do qual é dito na carta de alforria ter 50 anos e
cuja dona Flora da Conceição Crespo era da mesma família proprietária de Clarinda, e que fica livre
pelo pagamento de 800$36. A seguir, ela casou com ele, que assume o nome de João Tupaveraba,
Tupaverava ou Tupaverá, como também é chamado. Ao casar, ela passa a ser subordinada a seu
marido, que vai tomar então as decisões pelo casal, como prezava a sociedade da época.
João Tupaverava também continua a libertar outros escravos, alguns prováveis parentes,
como o escravo João Patrício, pardo, com 30 anos e que é liberto em julho, pela quantia de 1$800.
37
. Já se comentou que, nesse momento, os senhores de escravos enxergavam naqueles
contemplados pela loteria, um manancial de dinheiro e assim, elevavam o preço dos cativos aos
33
Pretende-se ainda investigar este caso e o seguinte, nos arquivos públicos do estado e nos cartórios de registros
civis.
34
A Ventarola, 24/6/1888.
35
APERS, Cartas de Liberdade dos municípios do interior do estado, vol. 1, p. 457 e 458.
36
A liberdade de João, consta na mesma página de Esperança, Clarinda e Josefa, a folha 457. Veja-se que havia laços
próximos entre eles, o que pode explicar a aposta conjunta entre Josefa e Clarinda.
37
APERS, idem, p. 458. Ele pertencia a Manoel José de Oliveira, que era o ex-senhor dele e a pessoa de maior
influência na vida de Tupaveraba, conseguindo inclusive que este nomeasse as suas filhas, dele Manoel, como suas
herdeiras universais.Manoel era dono de uma fábrica de chapéus e membro da família Crespo.
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quais estes buscavam libertar, pois sabiam que eles não teriam muita idéia do custo da “mercadoria
escrava”, que praticamente estava se liquefazendo em seu valor naqueles anos, em que a abolição já
despontava como próxima E, por outro lado, parodiando uma propaganda recente, para aquelas
pessoas simples e muito próximas a realidade dos escravos, a liberdade dos seus familiares ou
pessoas próximas, “não tem preço”.
Ele libertou também Basiléia, preta, 40 anos, escrava de Longuinho Manoel da Silveira,
pagando sua alforria por 800$ na mesma data38. Bem, depois disso, eles viveram em paz por alguns
anos, tendo seguido o padrão dos demais sorteados e comprado casas, novamente a preços
absurdos, mas este foi o único investimento feito com o dinheiro, que foi pulverizado em poucos
anos. Esta paz foi encerrada em abril de 1888, quando Tupaveraba morre e sua esposa é acusada de
assassinato, pois supostamente o teria envenenado administrando carbonato de chumbo: “uns pós
brancos”, que o fizeram perecer. È instalado um inquérito, acompanhado com interesse pelos
jornais e que termina considerando improcedente a acusação. Mas depois, há um processo, que
chega a conclusão de que Josefa era culpada. Mesmo acompanhando “en passant” pelos jornais esta
noticia, é fácil perceber as marcas do preconceito, como que querendo provar que nenhum desses
míseros ex-escravos e pessoas pobres mereciam a sorte que tiveram, ou, como sentenciou A
Ventarola, “ nem todos estão acostumados a comer mel ou azeite, sem se lambuzarem....”39 .
Dificilmente uma mulher branca e de posses teria sido acusada de envenenar o marido,
crime que costumava, de muitas formas, ser relacionado às escravas, especialmente aquelas
domésticas que conviviam no íntimo do lar com seus patrões e que revelavam a sua perversidade
traindo a confiança dos senhores por questões menores.
Analisando o processo, vê-se que os problemas do casal foram provocados pelos exsenhores de cada um deles, que se intrometiam nos assuntos financeiros do casal de velhos, até
conseguir separá-los praticamente. Rompidos, Josefa passa a falar publicamente que não se
interessa pelo marido e que seria melhor que ele morresse. Quanto a este, caquético, conforme
avaliação de seu próprio médico40, começa a temer estar sendo envenenado pela esposa e faz uma
denúncia disso a polícia, a qual se constitui numa das principais provas do processo. Contudo,
analisando-se o mesmo, vê-se que provavelmente, estava em curso uma trama envolvendo a posse
38
Idem, p. 550.
A Ventarola, 24/6/1888
40
A informação do processo em que consta como vitima, é de que teria 80 anos em 1888 e teria nascido na Costa da
África. APERS, processo 5438, Documentos da escravidão- Processos crimes- o escravo como vítima ou réu. Porto
Alegre: Corag, 2010.
39
15
por sua herança41, pois seu processo tem vários pontos não explicados, especialmente a questão de
se o marido morreu em conseqüência do carbonato de chumbo ou por velhice e causas conexas,
pois já estaria bem doente na ocasião. A condenação de Josefa pelo assassinato do marido,
evidencia discriminação de cor e gênero, pela forma como foi conduzido o processo, mas isso é
história para outro texto.
Para os fins desta comunicação, basta com demonstrar como, através destes pequenos
dramas ou acontecimentos cotidianos, pode-se conhecer um pouco mais da vida daqueles do
passado, de nossos personagens, de seus problemas e de suas escolhas. Neste sentido, constata- se
que a posse de dinheiro, para todos os ganhadores de loterias que eram escravos encontrados até
agora, serviu para comprar a liberdade, própria ou dos seus. E, no caso de pessoas brancas retirálos do “reino da necessidade”, como lembrava o Correio Mercantil, fazendo estes sortudos
ingressarem no pequeno grupo daqueles que poderiam, de alguma forma, gozar de uma autonomia
maior do que a reservada para os pobres e dependentes na sociedade imperial.
Não seria uma liberdade plena, dirão alguns. Ora, e qual de nós possui “liberdade plena”
mesmo hoje, podemos perguntar? É muito fácil, ao historiador moderno, julgar as ações e
comportamento de personagens no passado, comparando suas atitudes e limitações com um
pretenso modelo ideal de liberdade, autonomia ou até felicidade, plena, ou seja, colocando-se
pretensamente em uma posição superior, como se nós, atualmente, não sofrêssemos empecilhos ou
limitações que restringissem nossas vidas, escolhas e opções a aquilo que é socialmente aceitável
para pessoas de nosso status, gênero, classe e posição social.
O peso de tradições, costumes, classe social ou posições a defender e conquistar, sempre
estarão presentes em nosso cotidiano, interferindo em nossas vidas. Afinal, como lembra Agnes
Heller, o cotidiano é a vida comum para a qual sempre retornamos, mesmo que, em momentos
especiais, e por isso, revolucionários, consigamos nos elevar acima dele e então ter um papel de
destaque. Mas é ao cotidiano e, portanto, também as limitações de nosso tempo, ao qual retornamos
e no qual consumimos nossa existência.42
Ao encerrar, imagina-se que reste a pergunta; o que se tira deste episódio? Então, realmente
os pobres não devem enriquecer, sob pena de não saber se comportar, ou lhes faltarem capacidade
41
No caso, venceu o ex-proprietário de João, pois era bem mais esperto, como industrial e estava cercado, pela
família Crespo, por advogados e médicos que atuaram no sentido de incriminar Josepha. Quanto a Zeferino Campos,
ex-senhor de Josefa, tinha bem menos capitais sociais com que contar.
42
HELLER, Agnes.. O cotidiano e a História. São Paulo: Paz e Terra, 1992, p. 20.
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para administrar seu dinheiro? Ou, ainda, isso se resume em desventuradas histórias com o cunho
moralista de que dinheiro pode trazer infelicidade? Em primeiro lugar, isso deve ser matizado.
Mesmo no caso da Loteria do Ipiranga “que se transformou num vasa-barris”, segundo a charge de
A Ventarola, de alguns personagens o jornal não fala, como D. Felicidade, que esperamos tenha
feito juz ao nome, e Clarinda, que de escrava parda, transformou-se em jovem e disputada dama,
provavelmente a matriarca de alguma das famílias pelotenses de hoje. Mas também Josefa, que
reuniu sua família, ou mesmo os dois sapateiros e Pedro, gozaram, por algum tempo de uma
posição mais descansada em sua vida, podendo aspirar a mais do que sua posição e status inicial
permitiriam a pessoas como eles. De todo o modo, se para mais nada servisse, pelo menos para a
conquista do direito de ir e vir, dispor de si e de sua vida, ser dono de seu próprio nariz, velha
aspiração que pode se consubstanciar de muitas formas, para isso serviu. Se a ignorância dos
contemplados, ou melhor, a rapace capacidade das pessoas que os cercaram (e que formou, ao redor
deles, uma verdadeira rede de exploração), levou-os a perder sua fortuna, lembramos que esta é uma
situação que acontece até hoje e com pessoas educadas, numa sociedade com ampla dose de
informação.
Bibliografia:
AMARAL, José Ronaldo. As loterias federais brasileiras: um estudo da arrecadação e de sua
previsão. Brasília, UNB. Dissertação ( Mestrado em Economia do Setor Público), 2005.
CHALHOUB, Sidney. Visões da liberdade. São Paulo: Companhia das letras, 2001.
HELLER, Agnes. O cotidiano e a História. São Paulo: Paz e Terra, 1992.
LARA, Silvia. Campos da violência. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988.
LONER, Beatriz. Construção de classe. Pelotas: Ed. UFPel, 2001.
MACHADO, Maria Helena. Crime e escravidão. São Paulo: Brasiliense, 1987.
MATTOS, Hebe. Das cores do silêncio. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1998.
SILVA, Eduardo. Fugas, revoltas e quilombos. In: REIS, João J. e SILVA, Eduardo. Negociação e
conflito. São Paulo: Companhia das Letras, 1989, p. 62- 78..
Fontes Primárias:
Arquivo Público do estado do Rio Grande do Sul:
APERS. Documentos da Escravidão. Cartas de liberdade. Tabelionato dos municípios do interior,
volumes 1 e 2. Porto Alegre: CORAG, 2007
APERS. Documentos da escravidão. Processos crime: O escravo como vítima ou réu. Porto Alegre,
Corag, 2010.
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APERS, Inventário de João Tupaveraba.Inventariante Jose Campos, n. 1108, maço 62, estante 25,
ano 1888, 1 cartório de Pelotas .
Biblioteca Pública Pelotense, CEDOV:
Alvorada, A. Pelotas
Correio Mercantil, Pelotas,
Diário de Pelotas, Pelotas
Discussão, A. – Pelotas
Jornal do Comércio- Pelotas
Paiz, O. Pelotas
1945 a 1955.
1880 a 1884.
1880 a 1884.
1881 a 1885.
1877- 1981.
1877-1879.
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