Imprimindo - Revista SÍNTESE Direito Penal e Processual Penal
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Imprimindo - Revista SÍNTESE Direito Penal e Processual Penal
Doutrina O Império Ocidental da Pornografia e a Teoria Feminista MARIA DE FÁTIMA CABRAL BARROSO DE OLIVEIRA Especialista em Direito Penal e Criminologia pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (FDUSP), Mestre e Doutoranda na Área de Estudos Linguísticos e Literários em Inglês do Departamento de Letras Modernas da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP. RESUMO: As juristas feministas norte-americanas tentam demonstrar, desde a década de 1970, que o assédio sexual e a pornografia são modos de discriminação contra as mulheres, que afetam a igualdade dos gêneros sexuais na sociedade. Como o discurso feminista antipornográfico afeta o sistema jurídico-legal e quais os efeitos produzidos, principalmente no tocante à desestabilização de conceitos consagrados na ciência jurídica, como "igualdade" e "discriminação", são o foco deste trabalho, que tem um enquadramento teórico pós-modernista/pós-estruturalista. PALAVRAS-CHAVE: Pornografia; igualdade/discriminação; sistema jurídico. feminismo; obscenidade; INTRODUÇÃO Revisitar a questão da pornografia no debate feminista, que "abastece" - e critica - o sistema jurídico, sob uma perspectiva pós-modernista/pós-estruturalista, e não a pornografia per se, é o enfoque deste artigo, que procura analisar a questão da "igualdade" e da "discriminação" na relação entre gêneros na sociedade "democrática". Este trabalho apresenta certos fatos, relativos à regulamentação da pornografia nos Estados Unidos e no Canadá, países onde a pornografia é discutida como uma questão de "igualdade", ou melhor, de "desigualdade" sexual, a fim de que tal análise seja possível. De um modo amplo, considera-se a pornografia como aquele tipo de material destinado ao excitamento sexual; desse modo, a definição de "material pornográfico" parece depender das preferências sexuais e "culturais" de cada indivíduo. Então, a "pornografia" não é considerada um ato ilícito. Diferentemente, a legislação nacional, bem como a norte-americana, prevê o "crime dos atos obscenos" (obscenity law - a lei da obscenidade, em inglês), e, por meio do art. 233 do Código Penal brasileiro, assim está definido tal delito: "Praticar ato obsceno em lugar público, ou aberto ou exposto ao público: pena: detenção de 3 (três) meses a 1 (um) ano, ou multa"; desse modo, como pode ser observado, a legislação nacional não definiu o conceito de obscenidade, talvez por se tratar de um crime que exija um juízo de valor cultural 1. 118 RDP Nº 68 - Jun-Jul/2011 - PARTE GERAL - DOUTRINA Para a Suprema Corte dos Estados Unidos - desde o caso Miller v. California 2 -, o material é considerado "obsceno" se uma pessoa comum, aplicando os padrões atuais da comunidade, considera que o conjunto da obra apela a interesses lascivos; se a obra descreve ou representa de forma abertamente ofensiva conduta sexual especificamente definida em lei estadual aplicável; se a obra, tomada em seu conjunto, não possui valor literário, artístico, político ou científico sério. Os materiais considerados obscenos não estão sob a proteção da Primeira Emenda constitucional dos Estados Unidos, isto é, sob a égide do estatuto da liberdade de expressão (free speech); esse não é o caso da pornografia, que tem garantida a proteção constitucional. No entanto, nas palavras de MacKinnon (1989, p. 196), a lei sobre a obscenidade (o crime de atos obscenos) é a forma de o Estado abordar o problema da pornografia, que ele (o Estado) constrói como um problema de "como regulamentar" a liberdade de expressão. Assim diz a autora: Obscenity law is concerned with morality, meaning good and evil, virtue and vice. The concerns of feminism with power and powerlessness are first political, not moral. From the feminist perspective, obscenity is a moral idea; pornography is a political practice. Obscenity is abstract; pornography is concrete. Obscenity conveys moral condemnation as a predicate to legal condemnation. Pornography identifies a political practice that is predicated on power and powerlessness - a practice that is, in fact, legally protected. The two concepts represent two entirely different things. 3 RDP Nº 68 - Jun-Jul/2011 - PARTE GERAL - DOUTRINA 119 De forma reduzida, algumas críticas apontadas pelo "movimento" antipornográfico consistem em considerar que os materiais pornográficos retratam as mulheres como objetos sexuais; uma posição de subordinação compromete a igualdade social; a representação de certas imagens está associada à violência (gratuita ou desnecessária), à degradação e à "desumanização" das mulheres; a indústria "pornô" reforça alguns conceitos e atitudes sexuais e culturais que "contribuem" para crimes como o estupro e o assédio sexual, aumentando o número de crimes sexuais. Mesmo que tal ligação entre a pornografia e a violência não esteja comprovada, a pornografia se fundamenta e reforça uma cultura de misoginia e sexismo, além de "ajudar" a manter e perpetuar certos estereótipos sobre as mulheres. Observa-se, então, que se trata de questões abrangentes, que se referem desde o debate sobre "violência contra as mulheres" até à própria questão da "igualdade", sugerindo, portanto, a necessidade da adoção de certos "remédios" civis e criminais. Desse modo, a "lei da obscenidade" não supre as necessidades sociais - e jurídicas apontadas pelas críticas para que a "justiça" social seja alcançada, pois outras questões estão interrelacionadas, principalmente aquelas que dizem respeito a temas como "direitos civis", "censura" e "liberdade de escolha", entre outros. No entanto, o nosso interesse está em explorar como uma das críticas teóricas mais contundentes à pornografia, qual seja, a crítica feminista, que, supostamente, deriva do ponto de vista da mulher que é "subordinada" ao homem, afeta o sistema jurídico. De acordo com MacKinnon (1989, p. 197), a "pornografia, na visão feminista, é uma forma de sexo forçado, uma prática de política sexual, uma instituição de desigualdade dos gêneros". Consideramos, ainda, que um tema como a pornografia não pode estar desvinculado da própria questão complexa da sexualidade, e partimos do entendimento de que uma teoria da sexualidade se transforma em "feminista" na medida em que trata a sexualidade, nas palavras de MacKinnon (1989, p. 128), "como uma construção social do poder masculino: definido por homens, imposto às mulheres, e constitutiva do significado de gênero". O artigo, desse modo, se refere ao embate discursivo que se dá no encontro das teorias oposicionistas na sociedade patriarcal, como é o caso do discurso feminista, e como isso afeta o sistema jurídico na contemporaneidade. PORNOGRAFIA: DISCRIMINAÇÃO E "IGUALDADE" Uma "anatomia política", que é também uma "mecânica do poder", está nascendo; ela define como se pode ter domínio sobre o corpo dos outros, não simplesmente para que façam o que se quer, mas para que operem como se quer, com as técnicas, segundo a rapidez e a eficácia que se determina. A disciplina fabrica assim corpos submissos e exercitados, corpos "dóceis". A disciplina aumenta as forças do corpo (em termos econômicos de utilidade) e diminui essas mesmas forças (em termos políticos de obediência). Em uma palavra: ela dissocia o poder do corpo [...] (Foucault, 1975, p. 119) 120 RDP Nº 68 - Jun-Jul/2011 - PARTE GERAL - DOUTRINA As feministas e os teóricos feministas do direito norte-americano argumentam, desde a década de 1970, que o assédio sexual e a pornografia são formas de discriminação contra as mulheres, que celebram a dominância "masculina", a subordinação "feminina", justificam a dor, a crueldade e degradam as mulheres. Estamos nos referindo ao feminismo dominante do debate sobre a pornografia, qual seja, aquele representado especialmente pelos trabalhos de Andrea Dworkin e Catharine MacKinnon que, na década de 1980, surgiram como lideranças na guerra contra a pornografia. De acordo com MacKinnon (2007, p. 301), a pornografia sexualiza não só a desigualdade, mas, também, a relação de dominância e subordinação. Equality on the basis of sex is widely guaranteed - in Austria and other European countries, in the United States, in some regions, and internationally - but women are unequal to men in all these places both under Law and in life. This disparity between principle and reality is promoted by equality's traditional logic, particularly as applied to violence against women. (Mackinnon, 2006, p. 105) 4 MacKinnon (2006, p. 29) define a violência contra as mulheres de uma maneira ampla, incluindo a prostituição, o assédio sexual, a pornografia e o próprio imperialismo, entre outros. Na argumentação da autora, na sociedade industrial hodierna a pornografia é uma "indústria que produz massivamente a intrusão, o acesso, a posse e o uso das mulheres, por homens e para os homens, visando o lucro" (MacKinnon, 1989, p. 195). Vendidas como sexo e para o sexo, MacKinnon (1987, p. 147) argumenta que os homens, na pornografia, têm a permissão de colocar palavras nas bocas das mulheres, criando cenas nas quais elas querem ser "amarradas, espancadas, torturadas, humilhadas e assassinadas". A autora está a criticar a representação de certos atos sexuais que reduzem as mulheres à condição de objetos sexuais, preparadas para o consumo "masculino". Feministas como MacKinnon e Dworkin, desse modo, defendem uma lei civil que permita as ações por danos materiais para aqueles que se considerem prejudicados pela pornografia. A lei não proibiria o consumo ou a distribuição de material pornográfico, mas serviria, no campo do Direito civil - e não criminal - para que aqueles que sofrerem violência na realização ou no consumo do material pornográfico possam, dessa maneira, entrar com ações processuais no campo do Direito civil. Além disso, tal lei também permitiria que ações processuais fossem impetradas em nome das mulheres subordinadas pela pornografia. RDP Nº 68 - Jun-Jul/2011 - PARTE GERAL - DOUTRINA 121 A Cidade de Indianópolis adotou tal procedimento, mas um Tribunal Federal de Apelação considerou isso como uma violação à primeira emenda constitucional - problematizando a própria definição de pornografia - que inclui a representação da mulher como subordinada e engloba uma ampla variedade de materiais, maior do que aqueles definidos como obscenos pela jurisprudência da Suprema Corte 5. These feminists have objected to obscenity prohibitions as a mechanism for addressing violence favoring the civil cause of action arising from pornography. Obscenity laws, they argue, are aimed at moral sensitivities, reflecting prudishness rather than concern over victims of violence. A cause of action against the makers of pornography, on the other hand, is aimed at sex discrimination, not moral sensitivities. 6 Como já dito anteriormente, somente materiais considerados "obscenos" - e não "pornográficos" - podem sofrer regulamentação, uma vez que a pornografia está protegida constitucionalmente por se tratar de "liberdade de expressão". Se por essa razão a distinção feminista não teve impacto nos Estados Unidos, ela influenciou o Canadá quanto às leis relativas aos materiais de sexualidade explícita. Em 9 de março de 1992, a Revista Time publicou um artigo intitulado "Smut that harms women" 7, que "celebrava" o fato da Canadian Supreme Court (Corte Suprema canadense) ter conseguido definir, depois de décadas, o que seria "obsceno". O fato foi considerado um marco na discussão sobre o direito à livre expressão do pensamento versus os pedidos para que a pornografia tivesse algum tipo de controle ou até mesmo de proibição. Smut that harms women 8 In a landmark ruling, Canada's Supreme Court defines obscenity as an offense against equality […] The panel ruled that it was legitimate for government to outlaw pornographic magazines and films if it could show that the materials "degraded" women, thus compromising their equality. 122 RDP Nº 68 - Jun-Jul/2011 - PARTE GERAL - DOUTRINA A decisão, de acordo com o texto jornalístico, representava uma vitória importante para um grupo, americano e canadense, de juristas feministas: o governo, a partir daquele momento, poderia banir ou considerar ilícito os materiais (filmes ou revistas pornográficas) que degradassem as mulheres. Tal material degradante poderia comprometer o instituto da "igualdade", em outras palavras, os atos obscenos passariam a ser considerados como a negação dos direitos coletivos das mulheres e não um problema de padrões da comunidade versus liberdade de expressão individual. Afinal, desde a década de 1970, algumas correntes feministas argumentavam que o assédio sexual e a pornografia eram formas de discriminação contra as mulheres, como já visto. The decision represents the first major victory for a group of feminist legal scholars in the U.S. and Canada who have been arguing since the 1970s that sexual harassment and pornography are forms of discrimination against women. 9 O Canadá, por causa dessa decisão da Suprema Corte, foi considerado o primeiro país a reconhecer que a pornografia causava "dano à mulher" ao considerar o material sexual explícito "obsceno", portanto, criminalizado; lembramos que material considerado "pornográfico" não é crime, pois é protegido constitucionalmente: trata-se de uma forma de "liberdade de expressão" (free speech). O caso Butler v. Sua Majestade, a Rainha, ainda de acordo com o texto jornalístico, se refere à condenação de um dono de uma loja de vídeos por distribuição de materiais obscenos que, em 1989, apelou da decisão de sua sentença. O Supremo, em nova decisão, rejeitou a tese da defesa baseada na Carta de Direitos e Liberdades, que argumentava ser materiais de sexo explícito, formas de expressão protegidas constitucionalmente. De acordo com MacKinnon e Dworkin 10, a abordagem de "igualdade" aos danos da pornografia às mulheres, assumida pelo Tribunal canadense, foi fundamentada na argumentação do LEAF - Women's Legal Education and Action Fund -, uma organização progressista de mulheres canadenses comprometidas com o progresso da igualdade das mulheres sob a Carta de Direitos e Liberdades (Charter of Rights and Freedoms). A então "recente" constituição canadense, que, diferentemente da constituição americana - que não tem o artigo referente aos direitos iguais (Equal Rights Amendment) -, garantia especificamente a igualdade sexual e, por interpretação, que ao governo cabia implementar a igualdade. RDP Nº 68 - Jun-Jul/2011 - PARTE GERAL - DOUTRINA 123 Donald Victor Butler, a pornographer, had been prosecuted by authorities under Canada's existing law against "obscenity", which is defined as "the undue exploitation of sex, or of sex and any one or more of the following subjects, namely, crime, horror, cruelty, and violence". (This is very different from U.S. and British obscenity definitions.) Butler argued that the obscenity law violated his rights to free speech under the new Charter. LEAF urged the Canadian Supreme Court to reject his argument and instead to reinterpret the existing obscenity law in "sex equality" terms. 11 A posição do LEAF, ainda de acordo com a declaração de MacKinnon/Dworkin 12, encontrou resistência em Dworkin, que defendia que nenhuma lei de obscenidade deveria ter o apoio dos "antipornográficos". No entanto, como já visto, o Tribunal aceitou a defesa sobre a igualdade do LEAF, decidindo que a lei da obscenidade era inconstitucional se utilizada para restringir materiais com fundamento na moral, mas constitucional se utilizada para promover a igualdade sexual. A Corte interpretou a lei da "obscenidade" como crime para justamente proibir aqueles materiais que causassem danos às mulheres. Helena Orton of Canada's Women's Legal Education and Action Fund says that "if we're going to have an equal society, we have to recognize the impact of violent, degrading and dehumanizing material on the equality of women and children […] Civil libertarians were horrified by the shift in standards, which they saw as mixing concerns of social violence and social expression […] Ironically, the winning brief put feminists on the same side of antipornography issue as members of the cultural right wing. 13 De acordo com o texto jornalístico, o parecer legal, vitorioso no Tribunal, colocava as feministas - ironicamente - do mesmo lado das questões antipornográficas apontadas pela direita cultural. De fato, as articulações feministas de MacKinnon e Dworkin foram responsabilizadas pela repressão aos materiais feministas e homossexuais, masculino e feminino, no Canadá. Assim dizem as feministas 14: 124 RDP Nº 68 - Jun-Jul/2011 - PARTE GERAL - DOUTRINA It is said that the anti-pornography civil rights law we coauthored was passed by the Canadians and that the first thing they did with it was censor gay books. It is said that Canada Customs recently seized feminist, gay, and lesbian materials - including some books by Andrea Dworkin - under a 1992 Supreme Court decision called Butler that accepted our legal approach to pornography. It is said that in practice, Canadian court decisions using our anti-pornography legal theories are backfiring against liberating sexual literature. We want you to have real information about what has and has not happened. 15 Em resposta, MacKinnon e Dworkin 16 argumentaram que o Canadá, na verdade, não adotara a proposta da lei de direitos civis contra a pornografia nem a definição estatutária de pornografia 17; não foi adotada também uma abordagem civil - oposta à criminal - da pornografia e nenhum dos cinco tipos de ações civis (coerção, violência, força, tráfico e difamação) 18 que elas tinham elaborado. In the United States, our Anti-Pornography Civil Rights Ordinance - together with related legislative initiatives against the harms of racist hate speech - has helped to trigger an escalating constitutional conflict between "speech" rights guaranteed by the First Amendment and "equality" rights in the principles underlying the Fourteenth Amendment. RDP Nº 68 - Jun-Jul/2011 - PARTE GERAL - DOUTRINA 125 MacKinnon e Dworkin 19 ponderam que a Suprema Corte do Canadá decidiu que o crime de ódio (racist hate expression) é inconstitucional (caso Keegstra), e que os interesses da sociedade na igualdade sexual surpassam a liberdade de expressão dos pornógrafos (caso Butler). Essas duas decisões representariam, de acordo com as autoras, um avanço na teoria jurídica sobre a igualdade, "representando importantes vitórias para as mulheres e todas as pessoas que sofrem com o ódio racial. Desejaríamos que a consciência americana também estivesse nesse patamar". As autoras 20 entendem, ainda, que o caso Butler contribuiu para o aperfeiçoamento do crime dos atos obscenos no Canadá. No entanto, elas não defendem que se deva abordar a questão da pornografia por meio das leis criminais para a obscenidade, pois isso "empodera" o Estado e não as vítimas, o que resulta na ineficácia ao combate à indústria pornográfica. Canada's criminal obscenity law since Butler - like all prior laws that put power in the hands of government prosecutors rather than harmed plaintiffs has not actually been used effectively to stop the pornography industry. This we predicted. The pornography industry in Canada has in fact been expanding massively, trafficking openly in materials that do not show explicit violence, including some of the exact materials prosecuted in Butler. 21 126 RDP Nº 68 - Jun-Jul/2011 - PARTE GERAL - DOUTRINA O Comitê Especial sobre a Pornografia e a Prostituição (Special Committee on Pornography and Prostitution) 22- 23 - conhecido como Comitê Fraser -, em relatório de 1985, reconheceu a ideia de que a pornografia deveria ser distinta da arte erótica, concordando que, apesar da preocupação ser com a pornografia violenta, existiria um continuum entre aquele material sexual considerado "levemente ofensivo" e o material sexual "violento". Apesar de o comitê não ter definido, explicitamente, o que considerava "pornografia", foi sugerido, de maneira taxativa, pela comissão, que a pornografia representava - e alimentava - as atitudes e as atividades contrárias à igualdade entre homens e mulheres. Além disso, a comissão também avaliou que a pornografia apresentava imagens humilhantes como normais e louváveis, "mentiras sobre aspectos de humanidade da mulher, que negam a validade de suas aspirações de serem tratadas como cidadãs completas e iguais" 24. Desse modo, o Comitê Fraser foi favorável a que novos modos de reparação pelo dano social causado pela pornografia fossem explorados. Uma das propostas se relacionava à inclusão na legislação dos direitos humanos de certas medidas visando à redução da exposição à pornografia no trabalho, lojas e outros locais. Também foi sugerido que se levasse em consideração a provisão sobre as ações civis contra a promoção do ódio, que pode ocorrer por meio da pornografia. Finally, the hate propaganda provisions of the Criminal Code could be amended to include sex, age, and mental or physical disability as attributes of "identifiable groups" protected by those sections. The inclusion of "sex" would presumably allow for the prosecution of a distributor or maker of material that promotes hatred of either sex. Whether amendments such as these would have anything other than symbolic significance is open to question. The intention to promote hatred, according to the current provisions of the Criminal Code, has proved very difficult to establish; this would probably also be the case if the provisions were extended to include pornographic material. 25 O impacto que a globalização da pornografia e a prostituição de mulheres e crianças provocam na comunidade é "normalizado", passando como que "despercebido". De acordo com a discussão de Braidotti (2002, p. 177) sobre o "novo" mundo tecnológico, uma das grandes contradições das imagens digitais é a forma como elas "titilam a nossa imaginação, prometendo as maravilhas e os encantos de um mundo livre dos gêneros, enquanto, simultaneamente, reproduzem as mesmas imagens planas de identidade sexual, bem como das relações de classe e de raça" (Braidotti, 2002, p. 252). As imagens da realidade virtual também geram o mesmo efeito, isto é, afetam a nossa imaginação, "como é característico do regime pornográfico de representação" (Braidotti, op. cit.). RDP Nº 68 - Jun-Jul/2011 - PARTE GERAL - DOUTRINA 127 Para Braidotti (2002, p. 252), além da "miséria imaginativa", a pós-modernidade também é a marca do impacto e da mudança qualitativa em todas as esferas das atividades culturais da pornografia: esta se refere cada vez menos ao "sexo" e mais a "relações de poder". In classical pornography sex was a vehicle by which to convey power-relations. Nowadays anything can become such a vehicle: the becoming-culture of pornography means that any cultural activity or product can become a commodity and through that process express inequalities, patterns of exclusion, fantasies of domination, desires for power and control. 26 De acordo com Irigaray (1993), os direitos das mulheres, separados dos direitos dos homens, teriam que estar escritos na lei civil, pois elas necessitam de direitos específicos. A autora diz que (p. 72): All the following issues of women's lives ought to made the concern of and written into civil law: temporary concessions on contraception and abortion; […] the abuse of female bodies for the purpose of pornography or advertising; discrimination in the sexist definition and use of the body, of images, of language; rape, kidnapping, murder, and the exploitation of children […] These are only a few examples of what has to be legally specified in order to define women's life as citizens. 27 Como pode ser observado, a pornografia é entendida como uma violência "real" e degradante, que ameaça a igualdade das mulheres na sociedade democrática. Dessa maneira, falamos de uma posição teórica, que entende "mulher" ou "feminino" como os produtos de um sistema de subordinação sexual, materializada na pornografia: "a pornografia é a essência da ordem social sexista" (MacKinnon, 1989, p. 204), porque o "homem" aprende que "sexo" é objetificação e subordinação. CONSIDERAÇÕES FINAIS The Universal Declaration of Human Rights defines what a human being is. In 1948, it told the world what a person, as a person, is entitled to. It has been fifty years. Are women human yet? (MacKinnon, 2006, p. 41) Este trabalho procurou desnudar o efeito que o debate feminista produz no sistema jurídico-legal, mesmo que seja "desconsiderado", de um modo geral, pelo status quo. O tema "pornografia" foi o foco por se tratar de questão que o(s) feminismo(s) aborda(m) de modo a desestabilizar a razão "masculinista" jurídica e, principalmente, por se tratar de uma tentativa de "falar" do ponto de vista do "feminino". 128 RDP Nº 68 - Jun-Jul/2011 - PARTE GERAL - DOUTRINA Propositadamente, o trabalho não se desviou da teoria "dominante feminista" sobre o tema, na verdade, um discurso bem sucedido e "ouvido" nas arenas jurídico-legais, mesmo quando faz a crítica a vários princípios jurídicos liberais, como observado. Sob essa perspectiva feminista, a "neutralidade" e a "objetividade" não resistem às argumentações antipornográficas. No entanto, seria interessante considerar que outras linhas teóricas se opõem ao movimento antipornográfico e afirmam, por exemplo, que a pornografia não é um dos temas principais que o(s) feminismo(s) deveria tratar; que certas formas de censura seriam mais perigosas para as mulheres do que a própria pornografia, e que o enfoque deveria recair sobre a proteção jurídica às trabalhadoras da indústria do sexo e não na pornografia per se, entre outras considerações. Como o leitor pode observar, os temas contrários à antipornografia não deixam de ser válidos e não podem ser desconsiderados. Não há como negar a "força" que tem a indústria pornográfica, que gera uma receita maior do que as melhores empresas de tecnologia - Microsoft, Google, Amazon, eBay, Yahoo!, Apple, Netflix e EarthLink -, combinadas 28. Mesmo expandida pela Internet, nos Estados Unidos, a forma mais popular de pornografia se refere ao aluguel e à venda de fitas de vídeo, que arrecadaram $ 3.62 bilhões em 2006, enquanto que a pornografia na Internet gerou uma receita de $ 2.84 bilhões de dólares. Os Estados Unidos são os maiores produtores de vídeos, aparecendo em segundo lugar o Brasil. Portanto, nos perguntamos: Como poderia ocorrer a "censura" de tal indústria, ou ainda, como os trabalhadores vinculados à ela poderiam estar "protegidos" legalmente? Alguns outros dados levantados pelo Internet Pornography Statistics 29 também são interessantes: alguns termos foram divididos igualmente, de acordo com os gêneros sexuais. As estatísticas indicam que o termo "sexo" foi procurado mais pelas mulheres do que pelos homens, mas, em outras buscas, as mulheres e os homens divergem claramente: por exemplo, os homens totalizaram 97% das buscas pelo termo "pornografia gratuita". Um total de 90% das crianças entre 8 e 16 anos viram pornografia online; 11 anos é a média de idade da criança exposta à pornografia pela primeira vez e um total de 40 milhões de adultos americanos visita regularmente os sítios de pornografia. RDP Nº 68 - Jun-Jul/2011 - PARTE GERAL - DOUTRINA 129 A nossa pergunta, então, seria: Como desvincular a "pornografia" de outras questões como "violência", "pornografia infantil", "prostituição", "prostituição de menor", "desigualdade" e "discriminação"? Afinal, de acordo com a definição de Dworkin (1991), a palavra "pornografia", do antigo grego porne e graphos, significa: "escrever sobre as prostitutas"; porne quer dizer "prostituta", que também quer dizer a mais barata, a menos considerada, a escrava sexual, a "prostituta imoral". Graphos significa "escrever, gravar ou desenhar". E assim nos diz essa autora (op. cit.): The word pornography does not mean 'writing about sex' or 'depictions of the erotic' or 'depictions of sexual acts' or 'depictions of nude bodies' or 'sexual representations' or any such euphemism. It means the graphic depiction of women as vile whores. In ancient Greece, not all prostitutes were considered vile: only the porneia. 30 De acordo com Waltman (2004) 31, as pesquisas sobre a pornografia apontam que as prostitutas e as mulheres espancadas são aquelas que mais sofrem os efeitos negativos do consumo de pornografia. Certos fatores intersecionais - como raça e classe prejudicam mais algumas mulheres do que outras quando expostas à pornografia, além do que a pornografia também pode ser relacionada com o crime de assédio sexual. Assim nos diz o autor (op. cit.): Research also indicates that many of those victimized by sexual harassment tend to share a common history of sexual abuse during childhood. The harassers seem to identify some common trait that signals vulnerability. Since pornography inspires sexist behaviour generally, a relationship to sexual harassment can be assumed, hence a common interest exist among those victimized by sexual harassment as well as pornography. 32 Em 1993, foi publicado no jornal canadense The Toronto Star um texto que teve por manchete: "Relatório afirma que o sexismo impera no sistema de justiça canadense" (tradução nossa) 33. O texto jornalístico tratava de uma proposta com mais de 125 recomendações que seria apresentada - pelos burocratas (grifo nosso) dos governos federais e provinciais - aos ministros da Justiça canadense de então. De acordo com o texto, essas recomendações - "que levaram quase dois anos de estudos" - representariam um importante passo para a eliminação das desigualdades dos gêneros na lei e para a administração da justiça, mesmo considerando-se que seriam necessários vários anos para a implementação de tais medidas. Resumidamente, as principais recomendações seriam as seguintes: 130 RDP Nº 68 - Jun-Jul/2011 - PARTE GERAL - DOUTRINA Juízes: • Nomear mais mulheres e ter a certeza de que o judiciário se torne mais representativo da população que serve; • Discutir com o judiciário as formas de como remover as barreiras que desencorajam as mulheres a se tornarem juízas; • Encorajar mais programas educacionais para os juízes sobre preconceitos sexuais, crimes de violência doméstica e sexual e mitos da prostituição. Propaganda: • Reconhecer que uma representação negativa das mulheres na propaganda e na cultura popular de massa contribui para a objetificação das mulheres e para uma sociedade que pratica a violência contra elas; • Desenvolver padrões nacionais para a eliminação do estereótipo sexual na propaganda. Pornografia: • Aceitar o princípio de que há uma ligação entre a pornografia e outras formas de violência contra as mulheres; • Determinar se não seria o caso de ser proposta uma nova lei mais efetiva contra a pornografia. Prostituição: • Aplicar a lei contra a prostituição tanto para as prostitutas quanto aos usuários, igualmente; • Determinar a necessidade de uma nova lei sobre a "coação à vida na prostituição" com penalidades mais severas. Agressão: • Oferecimento de mais serviços de apoio às vítimas de agressão sexual e agressão contra as esposas (wife assault); • Prover assistência psicológica para as vítimas de abuso; • Os promotores devem enfatizar a dinâmica e a história do abuso, na tentativa de manter o acusado na prisão enquanto aguarda o julgamento, e devem encorajar as ordens de não contato como uma condição da fiança; RDP Nº 68 - Jun-Jul/2011 - PARTE GERAL - DOUTRINA 131 • Na sentença, os promotores devem se referir aos sérios danos psicológicos e físicos que as vítimas podem sofrer; • Considerar se o crime de agressão à esposa deve estar separado das novas ofensas criminais de persistentemente seguir uma pessoa com a intenção de intimidar 34 e de infligir intencionalmente dano mental ou psicológico (grifo do texto). Linguagem: • Fazer todas as novas leis em uma linguagem clara e explicitamente incluir as mulheres quando se referirem a ambos, mulheres e homens; • Marcar datas para que sejam revisadas todas as leis e regulamentos existentes. Funcionários públicos do Judiciário: • Fazer mais treinamentos sobre a desigualdade dos gêneros para os promotores, advogados, policiais e funcionários do sistema penitenciário; • Ter a certeza de que as mulheres estão representadas de maneira igualitária no sistema judiciário; • Garantir políticas efetivas contra o assédio sexual. De acordo com o texto jornalístico, essas mudanças seriam importantes, uma vez que havia sido comprovado, por meio de vários estudos, que "o sistema de justiça canadense trabalha, frequentemente, com suposições estereotipadas sobre as mulheres"; podemos também acrescentar que as discussões sobre o "problema das mulheres", pelo feminismo de modo geral, e o ativo lobby liberal feminista, realizado na década de 1990, ditou os termos de tais conclusões. Desse modo, precisamos ter cuidado ao (des)considerar temas relacionados à justiça social, como "igualdade" e "discriminação": no contexto hodierno que, para alguns, se refere ao cenário desconstrutivo pós-gênero, as discussões mais profundas sobre questões complexas como a "pornografia" são importantes e absolutamente necessárias. Assim como é também, awareness, a "conscientização" que tantos grupos ativistas apregoam e que, sem ela, não há porque se falar em "democracia". 132 RDP Nº 68 - Jun-Jul/2011 - PARTE GERAL - DOUTRINA REFERÊNCIAS BRAIDOTTI, Rosi. Metamorphoses: towards a materialist theory of becoming. Cambridge, UK: Polity Press, 2002. FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir: nascimento da prisão. 23. ed. Petrópolis: Vozes, 2000. IRIGARAY, Luce. Je, tous, nous. New York, London: Routledge Classics, 1993. MACKINNON, Catharine A. Are women human? And other international dialogues. Cambridge, Masschussetts, London, England: The Belknap Press of Harvard University Press, 2006. ______. Feminism unmodified: discourses on life and law. Cambridge, Massachusetts, London, England: Harvard University Press, 1987. ______. Toward a feminist theory of the state. Cambridge, Massachusetts, London, England: Harvard University Press, 1989. ______. Women's lives, men's laws. 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