Imprimindo - Revista SÍNTESE Direito Penal e Processual Penal

Transcrição

Imprimindo - Revista SÍNTESE Direito Penal e Processual Penal
Doutrina
O Império Ocidental da Pornografia e a Teoria Feminista
MARIA DE FÁTIMA CABRAL BARROSO DE OLIVEIRA
Especialista em Direito Penal e Criminologia pela Faculdade de Direito da
Universidade de São Paulo (FDUSP), Mestre e Doutoranda na Área de Estudos
Linguísticos e Literários em Inglês do Departamento de Letras Modernas da
Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP.
RESUMO: As juristas feministas norte-americanas tentam demonstrar, desde a
década de 1970, que o assédio sexual e a pornografia são modos de
discriminação contra as mulheres, que afetam a igualdade dos gêneros
sexuais na sociedade. Como o discurso feminista antipornográfico afeta o
sistema jurídico-legal e quais os efeitos produzidos, principalmente no
tocante à desestabilização de conceitos consagrados na ciência jurídica,
como "igualdade" e "discriminação", são o foco deste trabalho, que tem um
enquadramento teórico pós-modernista/pós-estruturalista.
PALAVRAS-CHAVE:
Pornografia;
igualdade/discriminação; sistema jurídico.
feminismo;
obscenidade;
INTRODUÇÃO
Revisitar a questão da pornografia no debate feminista, que
"abastece" - e critica - o sistema jurídico, sob uma perspectiva
pós-modernista/pós-estruturalista, e não a pornografia per se, é o
enfoque deste artigo, que procura analisar a questão da "igualdade" e
da "discriminação" na relação entre gêneros na sociedade
"democrática". Este trabalho apresenta certos fatos, relativos à
regulamentação da pornografia nos Estados Unidos e no Canadá,
países onde a pornografia é discutida como uma questão de
"igualdade", ou melhor, de "desigualdade" sexual, a fim de que tal
análise seja possível.
De um modo amplo, considera-se a pornografia como aquele
tipo de material destinado ao excitamento sexual; desse modo, a
definição de "material pornográfico" parece depender das preferências
sexuais e "culturais" de cada indivíduo. Então, a "pornografia" não é
considerada um ato ilícito.
Diferentemente, a legislação nacional, bem como a
norte-americana, prevê o "crime dos atos obscenos" (obscenity law - a
lei da obscenidade, em inglês), e, por meio do art. 233 do Código
Penal brasileiro, assim está definido tal delito: "Praticar ato obsceno
em lugar público, ou aberto ou exposto ao público: pena: detenção de
3 (três) meses a 1 (um) ano, ou multa"; desse modo, como pode ser
observado, a legislação nacional não definiu o conceito de
obscenidade, talvez por se tratar de um crime que exija um juízo de
valor cultural 1.
118
RDP Nº 68 - Jun-Jul/2011 - PARTE GERAL - DOUTRINA
Para a Suprema Corte dos Estados Unidos - desde o caso
Miller v. California 2 -, o material é considerado "obsceno" se uma
pessoa comum, aplicando os padrões atuais da comunidade,
considera que o conjunto da obra apela a interesses lascivos; se a
obra descreve ou representa de forma abertamente ofensiva conduta
sexual especificamente definida em lei estadual aplicável; se a obra,
tomada em seu conjunto, não possui valor literário, artístico, político
ou científico sério.
Os materiais considerados obscenos não estão sob a proteção
da Primeira Emenda constitucional dos Estados Unidos, isto é, sob a
égide do estatuto da liberdade de expressão (free speech); esse não é
o caso da pornografia, que tem garantida a proteção constitucional.
No entanto, nas palavras de MacKinnon (1989, p. 196), a lei
sobre a obscenidade (o crime de atos obscenos) é a forma de o
Estado abordar o problema da pornografia, que ele (o Estado) constrói
como um problema de "como regulamentar" a liberdade de expressão.
Assim diz a autora:
Obscenity law is concerned with morality, meaning good and
evil, virtue and vice. The concerns of feminism with power and
powerlessness are first political, not moral. From the feminist
perspective, obscenity is a moral idea; pornography is a political
practice. Obscenity is abstract; pornography is concrete. Obscenity
conveys moral condemnation as a predicate to legal condemnation.
Pornography identifies a political practice that is predicated on power
and powerlessness - a practice that is, in fact, legally protected. The
two concepts represent two entirely different things. 3
RDP Nº 68 - Jun-Jul/2011 - PARTE GERAL - DOUTRINA
119
De forma reduzida, algumas críticas apontadas pelo
"movimento" antipornográfico consistem em considerar que os
materiais pornográficos retratam as mulheres como objetos sexuais;
uma posição de subordinação compromete a igualdade social; a
representação de certas imagens está associada à violência (gratuita
ou desnecessária), à degradação e à "desumanização" das mulheres;
a indústria "pornô" reforça alguns conceitos e atitudes sexuais e
culturais que "contribuem" para crimes como o estupro e o assédio
sexual, aumentando o número de crimes sexuais. Mesmo que tal
ligação entre a pornografia e a violência não esteja comprovada, a
pornografia se fundamenta e reforça uma cultura de misoginia e
sexismo, além de "ajudar" a manter e perpetuar certos estereótipos
sobre as mulheres.
Observa-se, então, que se trata de questões abrangentes, que
se referem desde o debate sobre "violência contra as mulheres" até à
própria questão da "igualdade", sugerindo, portanto, a necessidade da
adoção de certos "remédios" civis e criminais. Desse modo, a "lei da
obscenidade" não supre as necessidades sociais - e jurídicas apontadas pelas críticas para que a "justiça" social seja alcançada,
pois outras questões estão interrelacionadas, principalmente aquelas
que dizem respeito a temas como "direitos civis", "censura" e
"liberdade de escolha", entre outros.
No entanto, o nosso interesse está em explorar como uma das
críticas teóricas mais contundentes à pornografia, qual seja, a crítica
feminista, que, supostamente, deriva do ponto de vista da mulher que
é "subordinada" ao homem, afeta o sistema jurídico. De acordo com
MacKinnon (1989, p. 197), a "pornografia, na visão feminista, é uma
forma de sexo forçado, uma prática de política sexual, uma instituição
de desigualdade dos gêneros".
Consideramos, ainda, que um tema como a pornografia não
pode estar desvinculado da própria questão complexa da sexualidade,
e partimos do entendimento de que uma teoria da sexualidade se
transforma em "feminista" na medida em que trata a sexualidade, nas
palavras de MacKinnon (1989, p. 128), "como uma construção social
do poder masculino: definido por homens, imposto às mulheres, e
constitutiva do significado de gênero".
O artigo, desse modo, se refere ao embate discursivo que se dá
no encontro das teorias oposicionistas na sociedade patriarcal, como
é o caso do discurso feminista, e como isso afeta o sistema jurídico na
contemporaneidade.
PORNOGRAFIA: DISCRIMINAÇÃO E "IGUALDADE"
Uma "anatomia política", que é também uma "mecânica do
poder", está nascendo; ela define como se pode ter domínio sobre o
corpo dos outros, não simplesmente para que façam o que se quer,
mas para que operem como se quer, com as técnicas, segundo a
rapidez e a eficácia que se determina. A disciplina fabrica assim
corpos submissos e exercitados, corpos "dóceis". A disciplina
aumenta as forças do corpo (em termos econômicos de utilidade) e
diminui essas mesmas forças (em termos políticos de obediência).
Em uma palavra: ela dissocia o poder do corpo [...] (Foucault, 1975,
p. 119)
120
RDP Nº 68 - Jun-Jul/2011 - PARTE GERAL - DOUTRINA
As feministas e os teóricos feministas do direito
norte-americano argumentam, desde a década de 1970, que o
assédio sexual e a pornografia são formas de discriminação contra as
mulheres, que celebram a dominância "masculina", a subordinação
"feminina", justificam a dor, a crueldade e degradam as mulheres.
Estamos nos referindo ao feminismo dominante do debate
sobre a pornografia, qual seja, aquele representado especialmente
pelos trabalhos de Andrea Dworkin e Catharine MacKinnon que, na
década de 1980, surgiram como lideranças na guerra contra a
pornografia. De acordo com MacKinnon (2007, p. 301), a pornografia
sexualiza não só a desigualdade, mas, também, a relação de
dominância e subordinação.
Equality on the basis of sex is widely guaranteed - in Austria
and other European countries, in the United States, in some regions,
and internationally - but women are unequal to men in all these places
both under Law and in life. This disparity between principle and reality
is promoted by equality's traditional logic, particularly as applied to
violence against women. (Mackinnon, 2006, p. 105) 4
MacKinnon (2006, p. 29) define a violência contra as mulheres
de uma maneira ampla, incluindo a prostituição, o assédio sexual, a
pornografia e o próprio imperialismo, entre outros. Na argumentação
da autora, na sociedade industrial hodierna a pornografia é uma
"indústria que produz massivamente a intrusão, o acesso, a posse e o
uso das mulheres, por homens e para os homens, visando o lucro"
(MacKinnon, 1989, p. 195).
Vendidas como sexo e para o sexo, MacKinnon (1987, p. 147)
argumenta que os homens, na pornografia, têm a permissão de
colocar palavras nas bocas das mulheres, criando cenas nas quais
elas querem ser "amarradas, espancadas, torturadas, humilhadas e
assassinadas". A autora está a criticar a representação de certos atos
sexuais que reduzem as mulheres à condição de objetos sexuais,
preparadas para o consumo "masculino".
Feministas como MacKinnon e Dworkin, desse modo,
defendem uma lei civil que permita as ações por danos materiais para
aqueles que se considerem prejudicados pela pornografia. A lei não
proibiria o consumo ou a distribuição de material pornográfico, mas
serviria, no campo do Direito civil - e não criminal - para que aqueles
que sofrerem violência na realização ou no consumo do material
pornográfico possam, dessa maneira, entrar com ações processuais
no campo do Direito civil. Além disso, tal lei também permitiria que
ações processuais fossem impetradas em nome das mulheres
subordinadas pela pornografia.
RDP Nº 68 - Jun-Jul/2011 - PARTE GERAL - DOUTRINA
121
A Cidade de Indianópolis adotou tal procedimento, mas um
Tribunal Federal de Apelação considerou isso como uma violação à
primeira emenda constitucional - problematizando a própria definição
de pornografia - que inclui a representação da mulher como
subordinada e engloba uma ampla variedade de materiais, maior do
que aqueles definidos como obscenos pela jurisprudência da Suprema
Corte 5.
These feminists have objected to obscenity prohibitions as a
mechanism for addressing violence favoring the civil cause of action
arising from pornography. Obscenity laws, they argue, are aimed at
moral sensitivities, reflecting prudishness rather than concern over
victims of violence. A cause of action against the makers of
pornography, on the other hand, is aimed at sex discrimination, not
moral sensitivities. 6
Como já dito anteriormente, somente materiais considerados
"obscenos" - e não "pornográficos" - podem sofrer regulamentação,
uma vez que a pornografia está protegida constitucionalmente por se
tratar de "liberdade de expressão". Se por essa razão a distinção
feminista não teve impacto nos Estados Unidos, ela influenciou o
Canadá quanto às leis relativas aos materiais de sexualidade explícita.
Em 9 de março de 1992, a Revista Time publicou um artigo
intitulado "Smut that harms women" 7, que "celebrava" o fato da
Canadian Supreme Court (Corte Suprema canadense) ter conseguido
definir, depois de décadas, o que seria "obsceno". O fato foi
considerado um marco na discussão sobre o direito à livre expressão
do pensamento versus os pedidos para que a pornografia tivesse
algum tipo de controle ou até mesmo de proibição.
Smut that harms women 8
In a landmark ruling, Canada's Supreme Court defines
obscenity as an offense against equality
[…] The panel ruled that it was legitimate for government to
outlaw pornographic magazines and films if it could show that the
materials "degraded" women, thus compromising their equality.
122
RDP Nº 68 - Jun-Jul/2011 - PARTE GERAL - DOUTRINA
A decisão, de acordo com o texto jornalístico, representava
uma vitória importante para um grupo, americano e canadense, de
juristas feministas: o governo, a partir daquele momento, poderia banir
ou considerar ilícito os materiais (filmes ou revistas pornográficas) que
degradassem as mulheres. Tal material degradante poderia
comprometer o instituto da "igualdade", em outras palavras, os atos
obscenos passariam a ser considerados como a negação dos direitos
coletivos das mulheres e não um problema de padrões da
comunidade versus liberdade de expressão individual. Afinal, desde a
década de 1970, algumas correntes feministas argumentavam que o
assédio sexual e a pornografia eram formas de discriminação contra
as mulheres, como já visto.
The decision represents the first major victory for a group of
feminist legal scholars in the U.S. and Canada who have been arguing
since the 1970s that sexual harassment and pornography are forms of
discrimination against women. 9
O Canadá, por causa dessa decisão da Suprema Corte, foi
considerado o primeiro país a reconhecer que a pornografia causava
"dano à mulher" ao considerar o material sexual explícito "obsceno",
portanto, criminalizado; lembramos que material considerado
"pornográfico" não é crime, pois é protegido constitucionalmente:
trata-se de uma forma de "liberdade de expressão" (free speech).
O caso Butler v. Sua Majestade, a Rainha, ainda de acordo
com o texto jornalístico, se refere à condenação de um dono de uma
loja de vídeos por distribuição de materiais obscenos que, em 1989,
apelou da decisão de sua sentença. O Supremo, em nova decisão,
rejeitou a tese da defesa baseada na Carta de Direitos e Liberdades,
que argumentava ser materiais de sexo explícito, formas de expressão
protegidas constitucionalmente.
De acordo com MacKinnon e Dworkin 10, a abordagem de
"igualdade" aos danos da pornografia às mulheres, assumida pelo
Tribunal canadense, foi fundamentada na argumentação do LEAF -
Women's Legal Education and Action Fund -, uma organização
progressista de mulheres canadenses comprometidas com o
progresso da igualdade das mulheres sob a Carta de Direitos e
Liberdades (Charter of Rights and Freedoms). A então "recente"
constituição canadense, que, diferentemente da constituição
americana - que não tem o artigo referente aos direitos iguais (Equal
Rights Amendment) -, garantia especificamente a igualdade sexual e,
por interpretação, que ao governo cabia implementar a igualdade.
RDP Nº 68 - Jun-Jul/2011 - PARTE GERAL - DOUTRINA
123
Donald Victor Butler, a pornographer, had been prosecuted by
authorities under Canada's existing law against "obscenity", which is
defined as "the undue exploitation of sex, or of sex and any one or
more of the following subjects, namely, crime, horror, cruelty, and
violence". (This is very different from U.S. and British obscenity
definitions.) Butler argued that the obscenity law violated his rights to
free speech under the new Charter. LEAF urged the Canadian
Supreme Court to reject his argument and instead to reinterpret the
existing obscenity law in "sex equality" terms. 11
A posição do LEAF, ainda de acordo com a declaração de
MacKinnon/Dworkin 12, encontrou resistência em Dworkin, que
defendia que nenhuma lei de obscenidade deveria ter o apoio dos
"antipornográficos". No entanto, como já visto, o Tribunal aceitou a
defesa sobre a igualdade do LEAF, decidindo que a lei da
obscenidade era inconstitucional se utilizada para restringir materiais
com fundamento na moral, mas constitucional se utilizada para
promover a igualdade sexual. A Corte interpretou a lei da
"obscenidade" como crime para justamente proibir aqueles materiais
que causassem danos às mulheres.
Helena Orton of Canada's Women's Legal Education and Action
Fund says that "if we're going to have an equal society, we have to
recognize the impact of violent, degrading and dehumanizing material
on the equality of women and children […] Civil libertarians were
horrified by the shift in standards, which they saw as mixing concerns
of social violence and social expression […] Ironically, the winning brief
put feminists on the same side of antipornography issue as members
of the cultural right wing. 13
De acordo com o texto jornalístico, o parecer legal, vitorioso no
Tribunal, colocava as feministas - ironicamente - do mesmo lado das
questões antipornográficas apontadas pela direita cultural. De fato, as
articulações feministas de MacKinnon e Dworkin foram
responsabilizadas pela repressão aos materiais feministas e
homossexuais, masculino e feminino, no Canadá. Assim dizem as
feministas 14:
124
RDP Nº 68 - Jun-Jul/2011 - PARTE GERAL - DOUTRINA
It is said that the anti-pornography civil rights law we
coauthored was passed by the Canadians and that the first thing they
did with it was censor gay books. It is said that Canada Customs
recently seized feminist, gay, and lesbian materials - including some
books by Andrea Dworkin - under a 1992 Supreme Court decision
called Butler that accepted our legal approach to pornography. It is
said that in practice, Canadian court decisions using our
anti-pornography legal theories are backfiring against liberating sexual
literature. We want you to have real information about what has and
has not happened. 15
Em resposta, MacKinnon e Dworkin 16 argumentaram que o
Canadá, na verdade, não adotara a proposta da lei de direitos civis
contra a pornografia nem a definição estatutária de pornografia 17;
não foi adotada também uma abordagem civil - oposta à criminal - da
pornografia e nenhum dos cinco tipos de ações civis (coerção,
violência, força, tráfico e difamação) 18 que elas tinham elaborado.
In the United States, our Anti-Pornography Civil Rights
Ordinance - together with related legislative initiatives against the
harms of racist hate speech - has helped to trigger an escalating
constitutional conflict between "speech" rights guaranteed by the First
Amendment and "equality" rights in the principles underlying the
Fourteenth Amendment.
RDP Nº 68 - Jun-Jul/2011 - PARTE GERAL - DOUTRINA
125
MacKinnon e Dworkin 19 ponderam que a Suprema Corte do
Canadá decidiu que o crime de ódio (racist hate expression) é
inconstitucional (caso Keegstra), e que os interesses da sociedade na
igualdade sexual surpassam a liberdade de expressão dos
pornógrafos (caso Butler). Essas duas decisões representariam, de
acordo com as autoras, um avanço na teoria jurídica sobre a
igualdade, "representando importantes vitórias para as mulheres e
todas as pessoas que sofrem com o ódio racial. Desejaríamos que a
consciência americana também estivesse nesse patamar".
As autoras 20 entendem, ainda, que o caso Butler contribuiu
para o aperfeiçoamento do crime dos atos obscenos no Canadá. No
entanto, elas não defendem que se deva abordar a questão da
pornografia por meio das leis criminais para a obscenidade, pois isso
"empodera" o Estado e não as vítimas, o que resulta na ineficácia ao
combate à indústria pornográfica.
Canada's criminal obscenity law since Butler - like all prior
laws that put power in the hands of government prosecutors rather
than harmed plaintiffs has not actually been used effectively to stop
the pornography industry. This we predicted. The pornography
industry in Canada has in fact been expanding massively, trafficking
openly in materials that do not show explicit violence, including some
of the exact materials prosecuted in Butler. 21
126
RDP Nº 68 - Jun-Jul/2011 - PARTE GERAL - DOUTRINA
O Comitê Especial sobre a Pornografia e a Prostituição (Special
Committee on Pornography and Prostitution) 22- 23 - conhecido como
Comitê Fraser -, em relatório de 1985, reconheceu a ideia de que a
pornografia deveria ser distinta da arte erótica, concordando que,
apesar da preocupação ser com a pornografia violenta, existiria um
continuum entre aquele material sexual considerado "levemente
ofensivo" e o material sexual "violento".
Apesar de o comitê não ter definido, explicitamente, o que
considerava "pornografia", foi sugerido, de maneira taxativa, pela
comissão, que a pornografia representava - e alimentava - as atitudes
e as atividades contrárias à igualdade entre homens e mulheres. Além
disso, a comissão também avaliou que a pornografia apresentava
imagens humilhantes como normais e louváveis, "mentiras sobre
aspectos de humanidade da mulher, que negam a validade de suas
aspirações de serem tratadas como cidadãs completas e iguais" 24.
Desse modo, o Comitê Fraser foi favorável a que novos modos
de reparação pelo dano social causado pela pornografia fossem
explorados. Uma das propostas se relacionava à inclusão na
legislação dos direitos humanos de certas medidas visando à redução
da exposição à pornografia no trabalho, lojas e outros locais. Também
foi sugerido que se levasse em consideração a provisão sobre as
ações civis contra a promoção do ódio, que pode ocorrer por meio da
pornografia.
Finally, the hate propaganda provisions of the Criminal Code
could be amended to include sex, age, and mental or physical
disability as attributes of "identifiable groups" protected by those
sections. The inclusion of "sex" would presumably allow for the
prosecution of a distributor or maker of material that promotes hatred
of either sex. Whether amendments such as these would have
anything other than symbolic significance is open to question. The
intention to promote hatred, according to the current provisions of the
Criminal Code, has proved very difficult to establish; this would
probably also be the case if the provisions were extended to include
pornographic material. 25
O impacto que a globalização da pornografia e a prostituição de
mulheres e crianças provocam na comunidade é "normalizado",
passando como que "despercebido". De acordo com a discussão de
Braidotti (2002, p. 177) sobre o "novo" mundo tecnológico, uma das
grandes contradições das imagens digitais é a forma como elas
"titilam a nossa imaginação, prometendo as maravilhas e os encantos
de um mundo livre dos gêneros, enquanto, simultaneamente,
reproduzem as mesmas imagens planas de identidade sexual, bem
como das relações de classe e de raça" (Braidotti, 2002, p. 252). As
imagens da realidade virtual também geram o mesmo efeito, isto é,
afetam a nossa imaginação, "como é característico do regime
pornográfico de representação" (Braidotti, op. cit.).
RDP Nº 68 - Jun-Jul/2011 - PARTE GERAL - DOUTRINA
127
Para Braidotti (2002, p. 252), além da "miséria imaginativa", a
pós-modernidade também é a marca do impacto e da mudança
qualitativa em todas as esferas das atividades culturais da pornografia:
esta se refere cada vez menos ao "sexo" e mais a "relações de
poder".
In classical pornography sex was a vehicle by which to convey
power-relations. Nowadays anything can become such a vehicle: the
becoming-culture of pornography means that any cultural activity or
product can become a commodity and through that process express
inequalities, patterns of exclusion, fantasies of domination, desires for
power and control. 26
De acordo com Irigaray (1993), os direitos das mulheres,
separados dos direitos dos homens, teriam que estar escritos na lei
civil, pois elas necessitam de direitos específicos. A autora diz que (p.
72):
All the following issues of women's lives ought to made the
concern of and written into civil law: temporary concessions on
contraception and abortion; […] the abuse of female bodies for the
purpose of pornography or advertising; discrimination in the sexist
definition and use of the body, of images, of language; rape,
kidnapping, murder, and the exploitation of children […] These are
only a few examples of what has to be legally specified in order to
define women's life as citizens. 27
Como pode ser observado, a pornografia é entendida como
uma violência "real" e degradante, que ameaça a igualdade das
mulheres na sociedade democrática. Dessa maneira, falamos de uma
posição teórica, que entende "mulher" ou "feminino" como os produtos
de um sistema de subordinação sexual, materializada na pornografia:
"a pornografia é a essência da ordem social sexista" (MacKinnon,
1989, p. 204), porque o "homem" aprende que "sexo" é objetificação e
subordinação.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
The Universal Declaration of Human Rights defines what a human
being is. In 1948, it told the world what a person, as a person, is
entitled to. It has been fifty years. Are women human yet?
(MacKinnon, 2006, p. 41)
Este trabalho procurou desnudar o efeito que o debate
feminista produz no sistema jurídico-legal, mesmo que seja
"desconsiderado", de um modo geral, pelo status quo. O tema
"pornografia" foi o foco por se tratar de questão que o(s) feminismo(s)
aborda(m) de modo a desestabilizar a razão "masculinista" jurídica e,
principalmente, por se tratar de uma tentativa de "falar" do ponto de
vista do "feminino".
128
RDP Nº 68 - Jun-Jul/2011 - PARTE GERAL - DOUTRINA
Propositadamente, o trabalho não se desviou da teoria
"dominante feminista" sobre o tema, na verdade, um discurso bem
sucedido e "ouvido" nas arenas jurídico-legais, mesmo quando faz a
crítica a vários princípios jurídicos liberais, como observado. Sob essa
perspectiva feminista, a "neutralidade" e a "objetividade" não resistem
às argumentações antipornográficas.
No entanto, seria interessante considerar que outras linhas
teóricas se opõem ao movimento antipornográfico e afirmam, por
exemplo, que a pornografia não é um dos temas principais que o(s)
feminismo(s) deveria tratar; que certas formas de censura seriam mais
perigosas para as mulheres do que a própria pornografia, e que o
enfoque deveria recair sobre a proteção jurídica às trabalhadoras da
indústria do sexo e não na pornografia per se, entre outras
considerações.
Como o leitor pode observar, os temas contrários à
antipornografia não deixam de ser válidos e não podem ser
desconsiderados. Não há como negar a "força" que tem a indústria
pornográfica, que gera uma receita maior do que as melhores
empresas de tecnologia - Microsoft, Google, Amazon, eBay, Yahoo!,
Apple, Netflix e EarthLink -, combinadas 28. Mesmo expandida pela
Internet, nos Estados Unidos, a forma mais popular de pornografia se
refere ao aluguel e à venda de fitas de vídeo, que arrecadaram $ 3.62
bilhões em 2006, enquanto que a pornografia na Internet gerou uma
receita de $ 2.84 bilhões de dólares. Os Estados Unidos são os
maiores produtores de vídeos, aparecendo em segundo lugar o Brasil.
Portanto, nos perguntamos: Como poderia ocorrer a "censura"
de tal indústria, ou ainda, como os trabalhadores vinculados à ela
poderiam estar "protegidos" legalmente?
Alguns outros dados levantados pelo Internet Pornography
Statistics 29 também são interessantes: alguns termos foram divididos
igualmente, de acordo com os gêneros sexuais. As estatísticas
indicam que o termo "sexo" foi procurado mais pelas mulheres do que
pelos homens, mas, em outras buscas, as mulheres e os homens
divergem claramente: por exemplo, os homens totalizaram 97% das
buscas pelo termo "pornografia gratuita". Um total de 90% das
crianças entre 8 e 16 anos viram pornografia online; 11 anos é a
média de idade da criança exposta à pornografia pela primeira vez e
um total de 40 milhões de adultos americanos visita regularmente os
sítios de pornografia.
RDP Nº 68 - Jun-Jul/2011 - PARTE GERAL - DOUTRINA
129
A nossa pergunta, então, seria: Como desvincular a
"pornografia" de outras questões como "violência", "pornografia
infantil", "prostituição", "prostituição de menor", "desigualdade" e
"discriminação"? Afinal, de acordo com a definição de Dworkin (1991),
a palavra "pornografia", do antigo grego porne e graphos, significa:
"escrever sobre as prostitutas"; porne quer dizer "prostituta", que
também quer dizer a mais barata, a menos considerada, a escrava
sexual, a "prostituta imoral". Graphos significa "escrever, gravar ou
desenhar". E assim nos diz essa autora (op. cit.):
The word pornography does not mean 'writing about sex' or
'depictions of the erotic' or 'depictions of sexual acts' or 'depictions of
nude bodies' or 'sexual representations' or any such euphemism. It
means the graphic depiction of women as vile whores. In ancient
Greece, not all prostitutes were considered vile: only the porneia. 30
De acordo com Waltman (2004) 31, as pesquisas sobre a
pornografia apontam que as prostitutas e as mulheres espancadas
são aquelas que mais sofrem os efeitos negativos do consumo de
pornografia. Certos fatores intersecionais - como raça e classe prejudicam mais algumas mulheres do que outras quando expostas à
pornografia, além do que a pornografia também pode ser relacionada
com o crime de assédio sexual. Assim nos diz o autor (op. cit.):
Research also indicates that many of those victimized by
sexual harassment tend to share a common history of sexual abuse
during childhood. The harassers seem to identify some common trait
that signals vulnerability. Since pornography inspires sexist behaviour
generally, a relationship to sexual harassment can be assumed,
hence a common interest exist among those victimized by sexual
harassment as well as pornography. 32
Em 1993, foi publicado no jornal canadense The Toronto Star
um texto que teve por manchete: "Relatório afirma que o sexismo
impera no sistema de justiça canadense" (tradução nossa) 33. O texto
jornalístico tratava de uma proposta com mais de 125 recomendações
que seria apresentada - pelos burocratas (grifo nosso) dos governos
federais e provinciais - aos ministros da Justiça canadense de então.
De acordo com o texto, essas recomendações - "que levaram quase
dois anos de estudos" - representariam um importante passo para a
eliminação das desigualdades dos gêneros na lei e para a
administração da justiça, mesmo considerando-se que seriam
necessários vários anos para a implementação de tais medidas.
Resumidamente, as principais recomendações seriam as seguintes:
130
RDP Nº 68 - Jun-Jul/2011 - PARTE GERAL - DOUTRINA
Juízes:
• Nomear mais mulheres e ter a certeza de que o judiciário
se torne mais representativo da população que serve;
• Discutir com o judiciário as formas de como remover as
barreiras que desencorajam as mulheres a se tornarem juízas;
• Encorajar mais programas educacionais para os juízes
sobre preconceitos sexuais, crimes de violência doméstica e
sexual e mitos da prostituição.
Propaganda:
• Reconhecer que uma representação negativa das
mulheres na propaganda e na cultura popular de massa
contribui para a objetificação das mulheres e para uma
sociedade que pratica a violência contra elas;
• Desenvolver padrões nacionais para a eliminação do
estereótipo sexual na propaganda.
Pornografia:
• Aceitar o princípio de que há uma ligação entre a
pornografia e outras formas de violência contra as mulheres;
• Determinar se não seria o caso de ser proposta uma nova
lei mais efetiva contra a pornografia.
Prostituição:
• Aplicar a lei contra a prostituição tanto para as prostitutas
quanto aos usuários, igualmente;
• Determinar a necessidade de uma nova lei sobre a
"coação à vida na prostituição" com penalidades mais severas.
Agressão:
• Oferecimento de mais serviços de apoio às vítimas de
agressão sexual e agressão contra as esposas (wife assault);
• Prover assistência psicológica para as vítimas de abuso;
• Os promotores devem enfatizar a dinâmica e a história do
abuso, na tentativa de manter o acusado na prisão enquanto
aguarda o julgamento, e devem encorajar as ordens de não
contato como uma condição da fiança;
RDP Nº 68 - Jun-Jul/2011 - PARTE GERAL - DOUTRINA
131
• Na sentença, os promotores devem se referir aos sérios
danos psicológicos e físicos que as vítimas podem sofrer;
• Considerar se o crime de agressão à esposa deve estar
separado das novas ofensas criminais de persistentemente
seguir uma pessoa com a intenção de intimidar 34 e de infligir
intencionalmente dano mental ou psicológico (grifo do texto).
Linguagem:
• Fazer todas as novas leis em uma linguagem clara e
explicitamente incluir as mulheres quando se referirem a
ambos, mulheres e homens;
• Marcar datas para que sejam revisadas todas as leis e
regulamentos existentes.
Funcionários públicos do Judiciário:
• Fazer mais treinamentos sobre a desigualdade dos
gêneros para os promotores, advogados, policiais e
funcionários do sistema penitenciário;
• Ter a certeza de que as mulheres estão representadas de
maneira igualitária no sistema judiciário;
• Garantir políticas efetivas contra o assédio sexual.
De acordo com o texto jornalístico, essas mudanças seriam
importantes, uma vez que havia sido comprovado, por meio de vários
estudos, que "o sistema de justiça canadense trabalha,
frequentemente, com suposições estereotipadas sobre as mulheres";
podemos também acrescentar que as discussões sobre o "problema
das mulheres", pelo feminismo de modo geral, e o ativo lobby liberal
feminista, realizado na década de 1990, ditou os termos de tais
conclusões.
Desse modo, precisamos ter cuidado ao (des)considerar temas
relacionados à justiça social, como "igualdade" e "discriminação": no
contexto hodierno que, para alguns, se refere ao cenário
desconstrutivo pós-gênero, as discussões mais profundas sobre
questões complexas como a "pornografia" são importantes e
absolutamente necessárias. Assim como é também, awareness, a
"conscientização" que tantos grupos ativistas apregoam e que, sem
ela, não há porque se falar em "democracia".
132
RDP Nº 68 - Jun-Jul/2011 - PARTE GERAL - DOUTRINA
REFERÊNCIAS
BRAIDOTTI, Rosi. Metamorphoses: towards a materialist theory of
becoming. Cambridge, UK: Polity Press, 2002.
FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir: nascimento da prisão. 23. ed.
Petrópolis: Vozes, 2000.
IRIGARAY, Luce. Je, tous, nous. New York, London: Routledge
Classics, 1993.
MACKINNON, Catharine A. Are women human? And other
international dialogues. Cambridge, Masschussetts, London,
England: The Belknap Press of Harvard University Press, 2006.
______. Feminism unmodified: discourses on life and law.
Cambridge, Massachusetts, London, England: Harvard University
Press, 1987.
______. Toward a feminist theory of the state. Cambridge,
Massachusetts, London, England: Harvard University Press, 1989.
______. Women's lives, men's laws. Cambridge, Masschussetts,
London, England: The Belknap Press of Harvard University Press,
2007.
WALTMAN, Max. The civil rights and equality deficit: Legal challenges
to pornography and sex inequality in Canada, Sweden, and the
U.S.
Disponível
em:
<www.cpsa-acsp.ca/papers-2009/Waltman.pdf>.

Documentos relacionados

8º Encontro da ABCP 01 a 04/08/2012, Gramado

8º Encontro da ABCP 01 a 04/08/2012, Gramado e em contexto de relações de poder em que a supremacia masculina é ubíqua e se reproduz continuamente através da sexualidade. De modo que, através do material erótico pornográfico, a liberdade de e...

Leia mais