UM BREVE RELATO DO PROCESSO PENAL NA INQUISIÇÃO
Transcrição
UM BREVE RELATO DO PROCESSO PENAL NA INQUISIÇÃO
UM BREVE RELATO DO PROCESSO PENAL NA INQUISIÇÃO ESPANHOLA (séculos XVI a XIX) Resumo: A Inquisição Espanhola, nos séculos XVI a XIX, foi dominada por um espírito iluminista que a afastou de inúmeros preceitos cristãos otimizadores da ação jurídica dessa instituição eclesial. Tal fato fora interpretado erradamente pela historiografia posterior, gerando uma noção de Inquisição simplificada por um teor maléfico simplesmente. Com isso, houve desconsideração do sistema processual da Inquisição que deteve inúmeros princípios semelhantes aos notados do Processo Penal e Civil contemporâneos. Palavras-chaves: Inquisição Espanhola. Inquisitorial. Processo Penal. Penas. Processo Abstract: The Spanish Inquisition, from sixteenth to nineteenth centuries, was dominated by an Illuminist spirit that moved away from many Christian principles used to direct the jurisdiction of the church. This fact was mistakenly understood by historians, creating a simplified idea of Inquisition, based on a bad sophism. Then, there was a disregarding of the procedural system of the Inquisition with its many principles similar to the articles of our actual Procedural Code. Key-words: Spanish Inquisition. Process Inquisition. Penal Process. Penalities. of the Tiago Tondinelli 1 O Tribunal da Inquisição assumiu, entre séculos XVI a XIX, uma peculiaridade terrível devido à influência do Estado nas práticas propriamente religiosas. Nesse período e, em especial, na Espanha, a Inquisição deixou de ter a função de análise de heresias, o poder de polícia da Igreja no Mundo, passando mais a atender aos interesses ególatras do Estado Hispânico. Tal situação gerou apreensão do próprio papado cujo poder sob a Inquisição na Espanha era meramente simbólico, estabelecendo, 1 Doutor em Filosofia Medieval pela PUCRS; Mestre em Letras pela UEL; Especialista em Filosofia pela UEL; Advogado e Professor Emérito da Faculdade Dom Bosco de Cornélio Procópio e da UNIFIL de Londrina. ademais, uma edificante ponte, separando a Inquisição desse período de suas outras manifestações pretéritas. O Bispo de Roma, Sisto IV, comentou sobre a Inquisição na Espanha em 1482, que já fazia algum tempo que ela estava sendo movida, não por zelo pela fé, como sempre fora seu objetivo, nem pela salvação das almas, nobre princípio, mas, de fato, pelo desejo de riqueza. Fernando e Isabel, os monarcas espanhóis, em certos momentos desse período, se encontraram em escala de poder, senão igual, mas, certamente, nunca inferior ao de Torquemada, inquisidor principal, nomeado pelo poder real, e sem vínculos morais totais com a Santa Sé. São notórias as atitudes de Torquemada na execução de acusados nesse período. Fatos terríveis que infelizmente levaram a historiografia contemporânea a simplificar a Inquisição, como um movimento maléfico, não levando em conta os períodos anteriores, e suas participações em outros âmbitos culturais. É certo que a Inquisição, em tempos anteriores, teve função policial relevante no mundo ocidental, afastando-se do aspecto “sanguinário” ao qual é reduzida conforme exposto. O erro de Torquemada criou um ponto de vista unilateral, repetido nas bancas acadêmicas: o de que todos os condenados pela Inquisição teriam sido mártires da ciência e da verdade, arautos bondosos que lutaram contra a fé “ignorante” da Igreja. É certo que não foi apenas assim, pois grande parte dos condenados pela Inquisição, durante todo o seu tempo, muito anterior, aliás, aos momentos terríveis da Espanha absolutista, nada tinham de “bondosos” ou de “sábios”. A sua função policial foi de valia relevante na sustentação da ordem pública. Esse aspecto diverso da Inquisição, em muitos e muitos outros casos, está sendo revista por vários historiadores, como nos lembra Thomas Woods Jr. em seu Como a Igreja Católica Construiu a Civilização Ocidental (Ed. Quadrante, 2010). Estão brotando conclusões que, tirante a terrível situação da “Igreja Iluminada”, – a Igreja Católica posterior ao fim da Idade Média, influenciada pelo pensamento filosófico iluminista e absolutista –, muito contribuem para a construção técnica dos procedimentos jurídicos, bem como para o combate às heresias irracionais. Autores sustentam, inclusive, que as execuções macabras, feitas pela Inquisição, não fora uma prática comum, mas apenas excepcional, sendo que, até mesmo na Espanha, palco dos piores momentos desse movimento, apenas 1,8 % dos casos acabava rumando para a Pena Capital, dado, ademais, sustentado na obra supracitada no parágrafo anterior. Cabe, inclusive, como alento, lembrarmo-nos do julgamento de Galileu, repetido nos livros de história, como o momento da ascensão da injustiça da “má Inquisição”, contra um arauto da verdade e da ciência. Galileu Galilei, sobrinho do Papa, foi julgado pela Inquisição sob o foco acusador de São Belarmino, mas diferentemente do que se diz por aí, aquele errou. O professor Olavo de Carvalho, em seu “Um mártir da ciência” (Diário do Comércio, 13 de abril de 2011) revela os erros crassos que a historiografia brasileira continuamente cai acerca desse caso emblemático. Esse autor lembra que Galileu nunca tratou de dados científicos de natureza experimental, mas sustentava suas teorias em elementos com fulcro essencialmente retórico 2 ; ademais, sobrinho do Papa, no período em que ficou à espera da decisão de seu julgamento, gozou de ótima estadia, descansando na embaixada da Toscana, sob os cuidados de seu amigo Benedetto Castelli. Já, no sentido científico, a afirmação de que errou não é um atestado de imbecilidade acadêmico (como muitos podem pensar!), ao contrário, Galileu errou porque dizia ser o sol o centro do Universo, tomado, decerto, por um “quê” exotérico (e, quiçá, “gnóstico”) que lhe era peculiar. Belarmino foi incisivo quando aceitou muitos dos cálculos de Galileu, pois os considerava matematicamente certos. Entretanto, completou seu julgamento, dizendo que se, por um lado, formalmente estavam corretos, 2 “Para começar, qualquer pesquisador sério da história das ciências sabe que Galileu nunca raciocinou a partir de dados experimentais, mas de construções matemáticas hipotéticas que depois ele legitimava com pseudo-experimentos puramente imaginários, jamais levados à prática, e usados sempre como meios de persuasão retórica, nunca de verificação. Os poucos experimentos efetivos que ele realizou foram todos errados. No que Galileu estava mesmo interessado eram antigas doutrinas ocultistas e esotéricas, das quais obteve a inspiração para suas teorias e dinheiro para sustentar uma vida senhorial como autor de horóscopos para celebridades” (CARVALHO, Olavo, op.cit). por outro, nenhuma prova real e contundente poderia lhes fundamentar a existência. Em suma, eram cálculos conforme um sistema matemático sem provas factíveis e concretas, e que, por fim, teimavam em sugerir (e nunca provar!) a tal centralidade universal do Sol. Belarmino, então, mostrou que o sol até poderia ser o centro de um grupo de astros, - a palavra “sistema” não tinha exatamente o sentido cosmológico conhecido atualmente -, mas nunca o centro do Universo, isso é, de toda a realidade que, somada, dava o sentido aristotélico de mundus. Nesse trecho, vale lembrar que o sentido medieval de “matéria”, fundamento último da realidade, não se confunde com o mero aspecto físico, como visto pelos cientistas atuais. Na verdade, a “matéria”, pelo conceito medieval, referia-se ao ELEMENTO MÁXIMO POTENCIAL, isso é, aquilo QUE PODE SER QUALQUER COISA: a potencialidade extra-mundo ou metafísica. Dizer que o Sol era o CENTRO DO UNIVERSO significava afirmar que ocupava o lugar fundamental de tudo que existia, bem como do que PODERIA VIR A EXISTIR UM DIA. O centro do “universo”, tomado como a fonte de TODAS AS POTENCIALIDADES EXISTENCIAIS, confundia-se com o próprio Deus, a Causa Suma da perspectiva tomista. Por esse raciocínio, chamar o SOL de centro do UNIVERSO significava afirmar que esse astro seria a fonte de todas as realidades, do tempo e do espaço e, até mesmo, das ações humanas, como se fosse uma espécie de entidade divina. Mas é sabido que isso só são falácias. O sol e os planetas que o circundam não estão no centro do universo físico, e, menos, mas muito menos ainda, confundem-se com essa força majestosa, centro de toda realidade factível. Não, não estamos no centro do universo, e o sistema solar permanece fisicamente perdido em um pedacinho qualquer da Via Láctea! A Inquisição condenou Galileu, a uma pena terrível: rezar, uma vez por semana, sete salmos penitenciais, durante três anos; e, pior, como confirma Olavo de Carvalho, pena essa que poderia ser executada por outra pessoa, e não pelo próprio condenado. 3 As suas teorias, mesmo destemperadas pela análise acurada de São Belarmino, continuaram sendo estudadas e utilizadas no desenvolvimento de cálculos adequados a problemas matemáticos, sem ensejarem ataques a sistemas metafísicos ou teológicos, dando-lhe inclusive fama pelo resto de sua vida 4 . A Inquisição, nesse caso, foi correta, estabelecendo os ‘limites da ciência’, isso é, das possibilidades concretas de um raciocínio matemático. Contudo, o que é feito pelo homem tem suas roupas, ora claras, ora escuras, já que essa Instituição da Igreja, em posteriores momentos, abandonou uma função moral, tocando aspectos negativos e impróprios. A Inquisição Espanhola, como já ventilado acima, sustentou um sistema político pouco cristão, e muito voltado para um absolutismo político estatal, próprio, aliás, da noção de Estado Interventor. Ora, bem diferente do justo julgamento que foi proferido contra Galileu, houve pressuposições inquisitoriais condenáveis, mas que seguiam um rito processual peculiar. O leitmotiv dessa situação fora a influência da perspectiva política absolutista e, de certa forma, da finalidade lucrativa, destituída de princípios, o que, hoje em dia, poderia se aproximar de uma espécie de “mercantilismo desmensurado”. O interessante é notar que, apesar das finalidades da Inquisição espanhola, do período em destaque, ter sido a de atender aos interesses do poder absolutista, o rito que seguia correspondeu a um sistema processual penal objetivo, oriundo de estudos profundos dos aspectos sociais e simbólicos que permearam os tempos medievais. 3 “Por fim, a única penalidade que a Inquisição lhe impôs foi de uma benevolência quase obscena, que hoje soaria como favorecimento ilícito: ele foi condenado a rezar uma vez por semana, durante três anos, os sete salmos penitenciais, podendo fazê-lo em privado, isto é, sem nenhum controle da autoridade. A coisa inteira levava quinze minutos no máximo, e ele ainda não precisava submeter-se à penitência pessoalmente, podendo solicitar que suas duas filhas, ambas freiras, a fizessem em seu lugar” (Idem.). 4 “A famosa abjuração, ante a qual gerações de vigaristas intelectuais derramaram oceanos de lágrimas de crocodilo, foi apenas uma declaração pro forma feita ante o tribunal, após a qual Galileu, sob a proteção do Papa, pôde continuar a ensinar suas mesmas doutrinas de antes sem jamais voltar a ser incomodado” (Idem). Por isso, há uma necessidade de se estudar o processo penal da Inquisição, levando em conta os procedimentos utilizados, seus simbolismos e formalidades. Explico. Os procedimentos prévios, concomitantes e posteriores de um processo inquisitivo baseavam-se no sistema penal religioso (Inquisitio Haereticae Pravitatis Sanctum Officium); sistema esse, aliás, amalgamado pelos doutores, e temperado pelos erros e acertos de tão longa data. Desconsiderar a validade procedimental de tal mecanismo, sob o manto unilateral de uma má finalidade, significa fechar os olhos para a utilização de um sistema de julgamento que, antes das atrocidades circunstanciais da Inquisição Espanhola, fora utilizado com presteza, gerando julgamentos instigantes. O julgamento dos hereges seguia um rito processual, uma engenharia simbólica própria, subdividida em partes bem distintas. A publicação era o conjunto de atos com intuito de aproximar o futuro julgamento da população detendo claro intuito pedagógico-político e feito pelo Conselho da Inquisição de cada distrito. Muitas vezes, esta análise era feita sinteticamente e às pressas em virtude da quantidade de réus que lhe chegava. O primeiro ato da publicação era o anúncio de fé, geralmente, 8 dias antes da realização da cerimônia, distribuído entre os familiares do réu, e exposto a todos durante a missa dominical. É clara a relação entre essa publicação, direcionada ao réu, e a necessidade de informação do acusado, conhecida entre nós como “citação”, e cuja falta ocasiona a invalidade absoluta do procedimento processual posterior. O segundo referia-se ao pregão; o ato de comunicação do arauto seguido pelo alguacil, com seus vários parentes, a cavalo. Em algumas cidades, a comitiva cavalgava pelos bairros e pontos principais, expondo o nome dos que seriam, futuramente, julgados. Essa fase aproxima-se do princípio da publicidade, elemento determinante da validade do processo moderno. O terceiro ato da publicação era facultativo ou “mero gesto de delicadeza”, a saber, a audiência pedida ao rei, isto porque, apesar da influência direta da realeza na escolha dos inquisidores, no rito, eram estes, e não aquele, que detinham o direito de anúncio. Ora, essa função específica dos inquisidores, afastando a ação jurídico-procedimental do rei (poder executivo), antecipa a divisão funcional processual de poderes, relegada como mero efeito da teoria de Montesquieu. O quarto ato de publicação tratava dos outros religiosos, não partícipes da Inquisição, sem cargo específico, mas párocos regionais dotados de serviços pastorais ou bispos influentes. Aqui, novamente, uma clara antecipação do princípio da competência processual, direcionada para titulares e substitutos jurisdicionais. A encenação correspondia à preparação jurídica do futuro julgamento. Primeiro, havia a espera do perdão ou isenção do Papa, rara, ademais, naquele período da Inquisição Hispânica. Em seguida, a determinação jurídica de eventual suspensão de outros ritos, ou interrupção eventual nos períodos dos feriados santos. Um advogado com conhecimentos parcos, hoje em dia, sabe que a suspensão do processo (SURSIS PROCESSUAL), bem como o PERDÃO JUDICIAL são situações de auxílio ao réu, construídas na lei em vista da incidência de princípios constitucionais positivos, e que muito se relacionam com o espírito mostrado no parágrafo anterior. As cenas desse “auto de Inquisição” se davam nos átrios das Igrejas e nos paços municipais devidamente montados ao ar livre. O palco era simbólico – de um lado, a zona nobre, com os inquisidores, coroada com ouro e com elementos de cor verde (esperança). Doutro lado, os hereges, dispostos em várias filas, umas mais altas (reservadas para os crimes mais graves), e outras mais baixas (crimes menos graves). A diferença entre o grau reprovável dos crimes também incidia nas roupas. Os condenados por crimes mais graves sempre vestiam andrajos feitos com panos pobres e de cor negra. A disposição hierárquica dos crimes, conforme sua penalidade, é elemento que influencia diretamente a noção de culpabilidade, elemento estrutural do crime em sentido moderno. A população, por sua vez, assistia a todo auto em pé, reservando locais especiais às personagens mais importantes, e a famílias mais ricas. A procissão correspondia ao itinerário urbano anterior ao julgamento final propriamente dito. Era também chamada de procissão da Cruz Verde, com a participação da população que, em polvorosa, cantava diante do julgamento futuro de um herege. E, em suma, dava-se a comprovação social do rito e da aceitabilidade da necessária justiça contra os heresiarcas. A execução penal moderna sempre se preocupa com sua função e utilidade sociais, pois não é possível uma pena eficaz, sem a comprovação popular. De fato, essa procissão popular no tempo da Inquisição, sendo esperada com grande ardor, pois não se sabia exatamente como fora a análise do réu pelos inquisidores, bem como a pena sugerida, confunde-se com tal princípio da execução penal moderna. As informações sobre a condenação, de fato, eram reconhecidas conforme as cores e os símbolos usados pelos hereges, durante a procissão popular. O amarelo, representando a traição, era sobreposto com uma cruz vermelha de Santo André. A cruz era para os reconciliados, e o amarelo era as chamas para os excluídos. Os inquisidores seguiam em mulas brancas com ornamentos negros, simbolizando a sobriedade do tribunal. Não é à toa que os trajes oficiais dos magistrados preferencialmente recaem na cor negra. Logo, a mesma simbologia vale para esses dois exemplos. A celebração com abjuração era o julgamento da Inquisição que conseguia reconciliar o herege com a Igreja sendo dividido nos seguintes pontos fundamentais: Primeiro, ocorria o início da missa interrompido pelo juramento coletivo das autoridades civis e religiosas em seguir os preceitos da Inquisição. Segundo, a possibilidade de súbito arrependimento pelo réu, seguido, ademais, por uma confissão particular que, ouvida por um inquisidor, poderia livrar o réu do cárcere. Terceiro, os réus reconciliados eram levados, em pé, com uma vela na mão, e ouviam a sua penalidade de abjuração: açoites públicos; deportação; exílio temporário do bispado ou a prisão temporária (em convento ou colégio religioso). A reconciliação poderia ocorrer mesmo com o réu já morto (reconciliação post mortem). Mas isso apenas quando o réu, ainda no cárcere, viesse a falecer à espera do julgamento, pois o objetivo da Inquisição era o de alcançar um julgamento da alma, e não propriamente do corpo. A execução, ponto final do julgamento que condenava o herege, se dava em local diferente do auto de fé pelo fato de ser a comprovação da falha do Tribunal Eclesiástico – a alma fora perdida para o demônio. Essa perspectiva muito auxilia o entendimento atual de divisão de juízos: um que condena, e outro, executa a sentença. A diferença entre esses dois juízos não é apenas funcional (como o ensinado nas cátedras jurídicas), mas, de fato, refere-se a um instrumento moral, tal como se dava no processo penal da Inquisição. Ora, o primeiro juiz não inocentou o acusado (e, nisso, ele falhou, pois há a necessidade do juiz ajudar o homem, e não fazê-lo sofrer), cabendo a execução posterior da pena a outra pessoa, um juiz neutro, destituído de qualquer paixão acerca do condenado, e que não tenha valores prévios sobre sua culpabilidade. Antes da morte do condenado, cabia a religiosos tentar dissuadi-lo ao pedido de perdão; gerando-lhe a “boa morte”, feita em ambiente particular, e dentro de seu cárcere. Não havendo êxito na ação dos religiosos no cárcere, o condenado era direcionado ao local público de execução que fora construído pelas autoridades civis. Nesse local, havia um tronco, em que a vítima era presa, podendo ser estrangulada, e, abaixo, cubos de madeira para queimar o corpo do condenado, causando-lhe a morte por asfixia. É interessante que a Inquisição NÃO QUEIMAVA as pessoas até a morte, não as matava por incineração, mas, após a asfixia, encarregava-se de queimar os cadáveres. Ora, apesar da morte por asfixia não ser nada agradável, ela é bem melhor do que a incineração em vida, prática que foi comum nas penas dos revolucionários franceses, que nada tinham com o cristianismo, mas são considerados, sem qualquer vergonha, os bons e únicos formadores da democracia moderna. Antes da fogueira gerar a morte, competia ao carrasco habilidoso queimar partes do corpo do condenado, e cortar outras em busca de uma conciliação final, um arrependimento de última hora, quebrando-lhe a resistência. O corpo do condenado, sendo dilacerado e queimado, era a homologia com a condição humana, o elo de responsabilidade entre as chamas infernais e as chamas terrestres. A prova desse verdadeiro microcosmo processual se mostra, inclusive, nas execuções de ausentes condenados e na dos mortos. Naquelas, havia a utilização de um boneco, representando o desaparecido herege e, nestas, os restos mortais, desenterrados e postos em efígies sob o olhar atento da população. O processo se mostra como um mecanismo que não deve ser analisado como tendo um fim em si mesmo, mas, como toda e qualquer ferramenta, instrumento de concretização da finalidade político-ideológica de seu tempo. O que se pode entender deste sistema processual penal espanhol? Primeiro, que era muito bem organizado, com suas fases distintas e sistemática procedimental clara. Segundo, que atendia ao ideário de que se deve extirpar da sociedade os homens que deixam de lado sua natureza divina, e que preferem aderir à bestialidade e ao mal. Ora, no começo do texto, ficou explícito que, até a invasão do pensamento absolutista na Inquisição, os julgamentos não tendiam, em regra, ao morticínio. Ao contrário, apenas em raras situações o inquisidor, após anos de estudos sobre o caso, chegava à conclusão de que determinado sujeito deveria ter sua vida ceifada. Santo Tomás de Aquino, acerca da pena de morte, estabeleceu estudos interessantes cuja tradução, presente na Segunda Parte da Suma Teológica (questio 64; artigos 1 e 2), estabelece o ideário das situações de bestialidades atingidas por determinados malfeitores, levando-os impreterivelmente a uma pena capital. Nada obstante ser incorreta qualquer redução do pensamento tomista às atrocidades específicas da Inquisição em geral, e espanhola em especial, deve-se analisar seu pensamento acerca da morte, quando direcionada a pessoas cujas escolhas foram tão terríveis que abandonaram o status humano. Mas, acima de tudo, a análise do sistema processual penal hispânico, no período absolutista da Inquisição, mostra-se como fundamento histórico relevante para a compreensão de inúmeras ferramentas jurídicas atuais, e, também, da validade, utilidade e singularidade das penas cabidas a eventuais condenados. Referências Bibliográficas Woods Jr., Thomas E. Como a Igreja Católica Construiu a Civilização Ocidental. É-realizações. São Paulo. 1 Ed. 2010. CARVALHO, Olavo de. Um Mártir da Ciência. Diário do Comércio, 13 de abril de 2011. GONZAGA, João Bernardino. A Inquisição em Seu Mundo. Editora Saraiva, 1994. KAMEN Henry. The Spanish Inquisition: A Historical Revision. Yale University Press, 1999.