Joia de Artista

Transcrição

Joia de Artista
SUMÁRIO
JOIAS DE FAMília
JOIAS DE ARTISTaS
O iníco da joalheria Talento,
em Belo Horizonte.
As primeiras conversas
sobre o projeto.
JOIAS DE LINA
Os projetos da mulher apaixonada
pelo Brasil e por suas riquezas.
como nasce uma joia
Como renasce uma joia
O pensamento de Lina Bo
sobre a ourivesaria.
O backstage da recriação do
colar da arquiteta.
LINA POR...
Waldick Jatobá, Johanna Stein Birman
e Claudia Moreira Salles.
Tradição renovada
Brincos de pérolas e diamantes com design que remetem a spikes.
A história da Talento começa em 1990 e se cruza com a história
da família Géo Rodrigues. Foi dentro de casa, afinal, que a
joalheria nasceu. Mais precisamente em uma sala de estar,
coração de qualquer residência, ponto de encontro e convívio.
Foi resultado do apreço que Terezinha Géo Rodrigues tinha
pelas joias que simbolizavam os momentos especiais de sua
vida, da vida de seus pais.
Nascida e criada em Minas Gerais, berço do garimpo brasileiro,
terra onde brotam ouro e pedras preciosas, a primogênita de oito
filhos passou a vida vendo seu pai, João de Lima Géo, presentear
a mãe, Marlene de Lima Géo, com pedras preciosas. Desde
sempre, portanto, via as joias com olhos bem mais sentimentais
do que financeiros, como marcos do tempo, testemunhas
oculares dos acontecimentos. Não tinha a tradição joalheira
no sangue, não tinha especialização. Mas tinha e tem olhar
apurado – e a vontade de não fazer mais do mesmo.
Formada em letras, conciliava o ofício e o casamento bem, até o
nascimento de sua primeira filha, Vanessa, em 1975. Como era
de esperar, seu pai presenteou a neta com um par de brincos
de diamantes. Como a tarraxa machucava a orelha do bebê,
Terezinha decidiu criar uma. E assim, de uma necessidade
pontual, surgia o embrião de uma joalheria que conquistou espaço
e respeito justamente pelo handmade, por enxergar que conforto
e caimento são tão importantes (ou mais) quanto quilates.
A década era a de 1980, auge do exagero, da moda vibrante, da
moda na moda, e Terezinha, ao lado de uma amiga, começou a
customizar joias que achava mundo afora, bem antes do boom
da personalização, vale ressaltar. Comprava, mexia, dava
sua cara, revendia. Não tardou para virar referência entre as
amigas e em toda Belo Horizonte, onde até hoje funciona como
a melhor embaixatriz de sua marca.
Ao mesmo tempo que ensaiava a carreira como designer, de um
jeito totalmente instintivo, via aumentar sua família. Jacques
e Maria Tereza vieram na sequência de Vanessa e já cresceram
envoltos na atmosfera da mãe designer, neoempresária – não
à toa, os três filhos tocam hoje a operação, sempre respeitando
a visão estética da matriarca.
Mas, à medida que os anos 1980 passavam, veio um paradoxo.
Customizar joias podia até ser divertido e alcançar determinado
sucesso. Porém não era a solução mais rápida, mais barata e,
principalmente, não era a melhor – desde a tarraxa de bebê, a
visão crítica passou a caminhar ao lado do senso de estética.
Terezinha, com a ajuda do marido, Jacques Rodrigues, se
enveredou então para o caminho que definiria os rumos da
Talento: a criação de joias artesanais, feitas desde o início por
ela e por uma equipe de fieis escudeiros, designers, ourives,
artesãos – muitos que estão há anos na empresa.
Em 1990, com o conceito da Talento definido, partiu para a carreira
solo. Inaugurou em 1992 a primeira loja, na rua Sergipe. Pequena,
sem alarde, no melhor estilo mineiro de ser. Espertamente, foi
atrás do que faltava. Fez cursos de gemologia, frequentou feiras
internacionais do setor, nunca se aquietou. Com foco e feeling, foi
criando peças que se transformaram em ícones, como o brinco
Prestige, de 1994. Foi criando também técnicas que diferenciam
a joalheria da concorrência: a maleável, que como o nome sugere
dá movimento às joias, é uma delas, uma aula de ergonomia.
O negócio crescia pautado pelo ritmo da família. Quando Vanessa
casou, Terezinha decidiu criar uma coroa de ouro e diamantes.
Outro start que começou em casa e se expandiu, já que até hoje
a joalheria desenvolve peças exclusivas para noivas. Da mesma
forma, começou a linha infantil, que nasceu com sua primeira
neta. “A minha trajetória sempre foi pautada pelo sentimento
que uma joia transmite”, diz ela, que foge do rótulo de head
designer, fazendo as vezes de fio condutor de toda a equipe de
criação, uma maestrina de uma orquestra bem afinada.
Em 1998, a empresa, com menos de dez anos, não cabia mais
na rua Sergipe. Mudou-se para a Rio de Janeiro e cresceu,
abrigando loja, showroom e ateliê. É de lá que saem desde
WORK IN PROGRESS
Ao lado, detalhes dos brincos maleáveis e ear cuffs, feitos à mão.
ODE à forma
brilho eterno
Articulado, o brinco de ouro branco e diamantes encaixa com perfeição.
Anel de ouro branco e diamante com lapidação redonda brilhante.
AULA DE ERGONOMIA
Aliança maleável de ouro branco e navetes de diamante.
então todas as peças. Onde os ourives fundem o ouro e fiam
os sonhos de Terezinha e de todas as mulheres clientes da
marca – sim, mantendo a ideia inicial de customização, de
peça única, a Talento é das poucas no Brasil que trabalham
no esquema tailor made, criando exatamente aquilo que uma
mulher deseja.
No comecinho dos 2000, outra expansão. No embalo de Jacques
Rodrigues Jr., o filho do meio, formado em economia, que se
mudou para a capital paulista querendo fazer a vida por conta
própria, a Talento desembarcou em São Paulo. Mais uma vez, veja
só, os rumos familiares ditavam os da joalheria. Caminhando
pelos Jardins, Jacques viu uma loja disponível na rua Bela
Cintra, agarrou a oportunidade e mergulhou na companhia.
Hoje são três lojas em Belo Horizonte, duas em São Paulo e uma
no Rio. Mas não se engane. Tudo continua igual ao começo
dessa trajetória, ainda que um tanto maior. Setenta por cento
das peças que a Talento cria continuam sendo one of a kind.
Nada segue a linha de produção, nada lembra o made in China,
as séries facilmente replicadas por aí. “O feito a mão é nosso
DNA, o core da empresa”, conta Jacques, que faz questão de
levar esse conceito a todos os detalhes, a começar pelos estojos
artesanais de madeira, que acompanham as joias Handmade
Masterpieces, a alcunha criada e alocada ao logo da empresa
justamente para celebrar o trabalho dos artesãos e artistas.
Ao longo desses 26 anos, mais 15 mil peças únicas saíram do
QG da Talento, em Minas. Joias feitas com ouro, diamantes,
turmalinas paraíba, pérolas south sea, rubis, esmeraldas,
opalas, safiras. Ou com água e óleo mineral encapsulados,
ousadia que rendeu prêmios e um approach avant-garde.
Mas, sobretudo, joias feitas pela mão do homem. De uma
equipe dedicada, que abraçou a ideia de Terezinha e segue seu
legado a despeito de modismos. Joias que são uma exaltação
ao artesanato, que levam 45 dias para ganhar vida, do croqui
inicial ao polimento final, e contradizem os tempos velozes
e furiosos em que vivemos. Joias de artistas.
Agosto de 2015. Para celebrar os 25 anos da Talento e o
lançamento de um livro que narra essa trajetória, a joalheria
embarca para o Instituto Inhotim, em Minas Gerais, levando
consigo uma trupe de jornalistas e formadores de opinião.
“Queríamos festejar esse momento e, ao mesmo tempo, mostrar
obras que tivessem a ver com o nosso universo, proporcionar
uma experiência cultural e sensorial que fosse além do produto”,
relembra Jacques, que teve lá o clique decisivo para encarar e
colocar em prática o projeto Joia de Artista.
Na volta da viagem, não perdeu tempo: convocou uma reunião
com seus principais colaboradores e incumbiu o curador de arte
Waldick Jatobá para ajudar na missão de encontrar os artistas
certos para criar as peças certas.
Desde o início, o gol era celebrar o Handmade Masterpieces,
unindo o coração da Ta lento ao traba lho de artistas
contemporâneas, cinco mulheres ao longo de cinco anos.
“É um projeto sério, embasado e que vai durar pelo menos cinco
anos para mostrar consistência”, explica Jatobá. “A Talento é
uma empresa feminina, criada por uma mulher e com foco nas
mulheres. Em Inhotim, percebi também a sinergia entre o que
fazemos e o que a arte propõe. Nossas peças são atemporais,
ainda que contemporâneas. Nossa visão é a de perpetuar
técnicas e profissões que as novas gerações estão perdendo de
vista, como o ofício dos artesão”, complementa Jacques.
Algumas reuniões depois, vários nomes estavam na mesa,
sobretudo o de artistas mineiras. Mas, em uma dessas
coincidências da vida, que se mostram tão acertadas que
cheiram a destino, Lina Bo Bardi veio à baila. E, ainda que a
princípio ela não se encaixasse na proposta – ser uma artista
viva e atuante –, era inegável a contribuição dela para a cultura
e o pensamento brasileiros.
Uma ida à Casa de Vidro, em São Paulo, local onde Lina e Pietro
Bardi viveram quando o bairro do Morumbi ainda tinha ares de
fazenda, foi o suficiente para convencer Jacques e toda a equipe
de que ela deveria ser a primeira contemplada. “Quando me
deparei com o manifesto dela Pedras contra Brilhantes, não
tive mais dúvidas de que era a escolha certa.”
Sim, o centenário de nascimento da arquiteta havia acontecido
em 2014 e muitas homenagens haviam sido feitas, mas um
tesouro (literalmente) continuava preservado: os seus estudos
sobre joias, seu encontro e seu fascínio pelas pedras brasileiras,
até então tidas como semipreciosas. “Era uma história
verdadeira, justamente o que procurávamos, e que tinha tudo a
ver com a Talento, uma joalheria que nasceu em Minas e sempre
exaltou o que temos de melhor”, diz Jacques. “O início, o meio e
o fim da narrativa se fechavam. A relação da Lina com Minas,
o manifesto dela, o domínio da Talento de trabalhar o manual,
coisa que ela tanto apreciava”, ressalta Waldick.
Entre os desenhos e estudos, a deixa perfeita: o único colar criado
e usado pela arquiteta em vida. Um colar de águas-marinhas,
pensado para funcionar como uma cachoeira, cujo roteiro daria
por si só uma história de cinema – o lote de pedras veio de Assis
Chateaubriand, Lina usou o colar apenas em três ocasiões e ele
acabou sendo roubado de sua casa – a joia nunca foi encontrada.
Agosto de 2016. Exatamente um ano depois de Inhotim, e 30
do roubo das joias de Lina (além do colar, todas as suas joias
foram levadas, no total de 42 peças), a Talento lança, na Casa
de Vidro, em parceria com o Instituto Lina Bo e P. M. Bardi, a
recriação do colar perdido nos arquivos policiais.
Em uma série de dez peças, mais duas provas de artista (uma
doada à Casa de Vidro, como forma de agradecimento pela
parceria), todas numeradas e certificadas, a exemplo dos
múltiplos da arte, feitas ora com águas-marinhas, ora com
prasiolitas, ametista lavanda ou topázios azuis, elas celebram
o legado da arquiteta e dão início a um novo capítulo da
joalheria. “Começamos a mirar agora nos próximos 25 anos”,
diz Jacques. Passado e presente criando um futuro que tem tudo
para fazer história. Aguarde as cenas dos próximos capítulos.
A casa do homem ruiu. Essa frase simples, direta, é fundamental
para entendermos o pensamento e o trabalho de Lina Bo Bardi.
Nascida Achillina di Enrico Bo, em Roma, Itália, em 5 de
dezembro de 1914, em uma família relativamente abastada,
que valorizava as artes – seu pai era engenheiro e pintor aos
domingos –, a menina cresceu envolta em um mundo onírico,
quase de fantasia. Escrevia cartas em delicados papéis, pintava
singelas aquarelas, desenhava, se encantava com pedras
encontradas no estômago de galinhas. Mas tinha também
os pés bem fincados no chão, a realidade de um mundo em
franca mudança, em destruição e reconstrução. Um mundo
onde nada mais poderia ser como antes.
À frente do tempo, não se contentou em cursar apenas o Liceu
Artístico, destino certo para as mulheres da época. Formou-se
em arquitetura pela Universidade de Roma, desbravando um
terreno tipicamente masculino até então. Diploma na mão,
trocou a cidade histórica, berço do fascismo de Mussolini
nos anos 1940, por Milão, capital da Lombardia, onde logo foi
trabalhar no escritório de Giò Ponti e acabou se envolvendo
também com a imprensa – fez as vezes de editora, jornalista e
ilustradora em importantes revistas, como a Stile, editada por
Ponti, e a Domus, que assumiu aos 25 anos, provando que desde
cedo, além de talento, tinha a liderança no sangue. Batia ponto
das 8 da manhã à meia-noite, sete vezes por semana, fazendo
desde design de xícaras até design de roupas, o que explica
parte do seu caráter múltiplo, interdisciplinar. Adquiria
estofo, aprimorava a técnica. Construía.
Mas a Segunda Grande Guerra, que devastou a Europa entre
1939 e 1945, batia à porta e era impossível ficar indiferente.
Tudo estava em ruínas. Nada mais parecia fazer sentido no
Velho Mundo. “A casa do homem ruiu. Na Itália, ao longo da
Aurélia e da Emília, na Sicília e na Lombardia, na Provença e na
Bretanha, a casa do homem ruiu na Europa. Não pensávamos
que ela fosse desaparecer assim. Era muito ‘segura’, era um
‘baluarte’. Havia alguma coisa mais ‘firme’ do que a casa?”,
escreveu a arquiteta, já no Brasil, em 1947, na revista Rio.
E O VENTO LEVOU...
Aquarela e grafite sobre papel cartão, de 1927/28.
Um ano antes, em 1946, com o fim dos confrontos e o casamento
com Pietro Maria Bardi consolidado, havia partido rumo a um
mundo novo. Desembarcara no Rio de Janeiro, em outubro,
a bordo do navio Almirante Jaceguay, Ministério da Educação
e da Saúde, projeto de Lucio Costa, à vista. “Naquele tempo, no
imediato pós-guerra, foi como um farol de luz a resplandecer
em um campo de morte... Era uma coisa maravilhosa”, publicou
Lina em outro relato.
Na bagagem, Pietro, homem influente, intelectual, jornalista,
marchand, professor, trazia alguns quadros que seriam
expostos justamente no Ministério da Educação, avistado ainda
da embarcação. Não demorou para que estreitasse relações e
fosse convidado pelo empresário Assis Chateaubriand a dirigir
um museu de arte no Brasil. E assim Lina, sua esposa, mas
antes de mais nada uma mulher decidida e atuante, escolheu
viver por aqui e projetar sua trajetória não sobre ruínas,
mas sobre possibilidades.
Naturalizada brasileira em 1951, completa no mesmo ano seu
primeiro projeto arquitetônico na América do Sul: a Casa de
Vidro, um cubo envidraçado e suspenso por pilares, envolto
pelas árvores do Morumbi, local de sua morada com Pietro por
40 anos, de encontro de intelectuais (Giò Ponti, Calder e Glauber
Rocha eram alguns dos habitués) e hoje sede do Instituto Lina
Bo e P. M. Bardi, que abriga os acervos do casal e é aberto à
visitação. Uma casa que também sintetiza o pensamento dela,
que usa o mínimo para não interferir demasiadamente no
ambiente em que está inserida – uma busca constante entre
arquitetos influenciados pelo modernismo de Le Corbusier.
Concretista por fora, porém cheia de vida por dentro: quadros,
esculturas, símbolos religiosos e do artesanato popular (há,
inclusive, uma réplica do Masp), gatos (bichos que adorava),
poltronas assinadas por grandes designers, orquídeas, trevos
da sorte (dizem que o que está lá até hoje, na cozinha, é o da
arquiteta, falecida em 1992). Um encontro do high com o
low, das ruas com as galerias de arte. De Lina com um país
de dimensões continentais.
retratos de família
Ao lado, a arquiteta no casamento com Pietro. Na sequência, já no Brasil.
CASA DE VIDRO
Ao lado, interior e exterior. Abaixo, estudo do projeto de 1951.
Seis anos depois, em 1957, começaria a ser esboçado seu filho
mais célebre: a nova sede do Masp, em frente ao Parque Trianon,
ancorado na avenida Paulista, suspenso também por pilastras,
que elevam a construção e possibilitam sua vista desde a avenida
Nove de Julho. Pilastras que criam um vão livre de 74 m, o maior
do mundo, pensado para abrigar playgrounds, artesanato,
gente. “Não é bonito. Procurei a liberdade. Os intelectuais não
gostaram, o povo gostou. E sabe quem fez isso? Uma mulher”,
disse Lina, não escondendo o orgulho, a verve feminista, em uma
entrevista ao documentário que leva o seu nome, dirigido por
Aurélio Michelis e lançado em 1993, um ano depois de sua morte.
Inaugurado em 1968, o Masp se transformaria em um marco
da arquitetura brasileira, cartão-postal de São Paulo. Ele se
transformaria também em um símbolo da concepção moderna
de um museu, um museu que renega os templos antigos de
arte, a academia, as molduras rococós. Um museu que convida,
simplifica, aproxima. Mas, antes dele, teve a Bahia.
A força do povo
“O sertanejo é, antes de tudo, um forte”, escreveu Euclides
da Cunha, correspondente na Guerra de Canudos pelo jornal
O Estado de S.Paulo. Foi essa força, uma fibra moral despida
de internacionalismos, despida de qualquer excesso, que Lina
encontraria a partir de 1958, quando vai a Salvador ministrar
conferências na Escola de Belas-Artes e é convidada a dirigir
o Museu de Arte Moderna da Bahia, onde acaba projetando o
restauro do Solar do Unhão e sua adaptação como a sede do museu.
O contato com a aridez geográfica de um lado e a abundante
cultura popular de outro foram uma espécie de eureca, o motor
que ajudaria a moldar tanto seu trabalho como arquiteta quanto
seu pensamento crítico. “Aproveitei ao máximo a experiência
de cinco anos passados no Nordeste. A lição da experiência
popular não como romantismo folclórico, mas como experiência
de simplificação. Através de uma experiência popular, cheguei
àquilo que poderia chamar de Arquitetura Pobre. Insisto, não
do ponto de vista ético. Acho que no Museu de Arte de São Paulo
eliminei o esnobismo cultural tão querido pelos intelectuais (e
os arquitetos de hoje), optando por soluções diretas, despidas.
O concreto como sai das formas, o não acabamento, podem
chocar toda uma categoria de pessoas”, escreveu a arquiteta
– uma de suas grandes características, aliás, era o domínio
da escrita e o registro de todos os projetos, executados ou não.
Sobre esse mesmo viés nacional, não nacionalista, vale
ressaltar, terminologia que ela repugnava por remeter
a regimes fascistas, ergueu a Igreja do Espírito Santo, em
Uberlândia. Sem reboco, sem acabamento, com materiais do
próprio local – tijolos de barro e estrutura portante de madeira.
Concreto armado apenas nas partes essenciais. Foi assim
também que, em 1977, recuperou a Fábrica de Tambores da
Pompeia, levantando o Sesc, “com dignidade máxima através
dos menores e humildes meios”. Criando buracos nas paredes,
a exemplo das cavernas, para garantir a circulação de ar, não
necessitando assim de ar-condicionado, coisa que ela também
não gostava; fazendo passarelas que ligam as construções já
existentes, em vez de derrubá-las. Ou encabeçou o plano de
recuperação do centro histórico da Bahia (1986) e da ladeira
da Misericórdia (1987) usando um sistema de pré-moldados de
argamassa que possibilitou a reestruturação sem a necessidade
de mexer nas fachadas. “Não vamos mexer em nada, mas
vamos mexer em tudo”, afirmou na época.
Simplificar, sem perder a poesia, foi o verbo de sua vida. Criou
cadeiras com apenas três pés de madeira (Girafa), ergueu teatros
(Oficina e Polytheama) pensados para funcionar como as antigas
praças, nada de cadeirinha estofada à vista. “Da minha camisa de
força, eu faço uma vela”, disse Zé Celso no mesmo documentário
de Michelis sobre a filosofia da arquiteta e parceira.
Fugitiva da guerra, esquerdista (todos os intelectuais da época
eram), se deparou com a ditadura no Brasil pouco tempo depois
de um período de extrema efervescência. Conheceu o melhor e
ícones
Ao lado, fotos do Masp. Nas páginas internas,
desenhos dos projetos do Sesc Pompeia, Igreja do Espírito Santo
e centro histórico da Bahia.
o pior do homem. E tirou proveito das adversidades. Mulher
de fala e presença fortes, que às vezes perdia a paciência e
dava respostas ácidas em palestras, combateu como pôde,
construiu o que pôde, participou ativamente de uma cultura
embrionária, que se revelou uma das maiores produções
brasileiras – cinema novo, tropicalismo, teatro (fez figurinos,
arquitetura cênica e manifestos de peças). Escreveu durante
toda a vida, imortalizando não só projetos, mas ideias. Foi
colunista do Diário de Notícias da Bahia, criou revistas como a
Habitat. Trocou referências, fez parcerias, absorveu. Resistiu
ainda à tentação dos estereótipos, rejeitando veementemente
o folclore e até querendo transformar a barata em um bichinho
de estimação (Entreato para Crianças, 1985), com direito a uma
carta imaginária a Franz Kafka. Resistiu também ao dinheiro
e à fama fáceis – “Não me interessa fazer casas de madame”.
Via a arquitetura como “uma solução dos problemas ligados
às necessidades dos homens”.
Esboçou dezenas de coisas que não saíram do papel – museu em
São Vicente, museu do Instituto Butantã, vale do Anhangabaú
–, mas que mostram sua vitalidade, suas visões ética e política.
E, antes de tudo, foi uma forte. Uma pensadora do seu tempo,
criadora de um mundo e de uma filosofia que ecoam com a
promessa de dias melhores, da poesia inserida em qualquer
contexto, da arquitetura “como realidade potente responsável
pelo comportamento do homem, responsável até pela sua
felicidade”. Nesse sentido, como ela já disse, o movimento
moderno, a despeito das classificações que surgem ao longo
do tempo, continua. Avancemos com ele.
MULTIFACETADA
Ao lado, capas da Habitat, revista criada por Lina, e páginas
do Diário de Notícias da Bahia, onde ela tinha uma coluna semanal.
É interessante notar que, antes de trabalhar como arquiteta,
Lina produziu muito como designer, fruto de sua experiência
no escritório de Giò Ponti. A Itália estava em pedaços, em plena
guerra, e talvez por isso ela tenha se debruçado sobre outras
funções que não a casa do homem, como sinalizou em alguns
textos de sua vasta produção escrita. Outro fato que merece
destaque é seu amor pelas pedras, um sentimento que surgiu
ainda na infância e a acompanhou por toda a vida, imortalizando
momentos: o camafeu que viu aos 15 anos, as pedras encontradas
no estômago de uma galinha, as dadas pelo seu marido...
Não é de estranhar, portanto, que a coletânea de textos
dela, editados pela A A Publications, a maior editora de
livros de arquitetura do mundo, tenha sido batizada de
Stones Against Diamonds, fazendo referência ao seu artigo
sobre pedras preciosas. É de estranhar menos ainda que ela
tenha se encantado com a oferta de gemas que brotavam
(e brotam) no Brasil desde que aportou por aqui.
Mas, ironia do destino, sua faceta designer de joias é bem pouco
conhecida da maioria das pessoas. Quando falamos em Lina Bo
Bardi, imediatamente o Masp vem à cabeça. O Sesc Pompeia
aparece na sequência e, para os mais entendidos, talvez surja
a imagem do Teatro Oficina ou do Museu de Arte Moderna da
Bahia. Seus tesouros de concreto são conhecidos, seus tesouros
de pedras, desmerecidamente não.
joia de artista
Ao lado, Lina com o colar de águas-marinhas, em um baile no IAB.
A história, porém, felizmente está registrada. Menos de um ano
depois de fincar terreno no país, Lina esboçou o que poderia
ser uma coleção de joias made in Brazil. Quatro anos antes de
criar a Casa de Vidro. Um ano antes de se dedicar ao estudo
do mobiliário, criando a primeira cadeira moderna do Brasil,
uma cadeira dobrável de madeira e couro feita para o auditório
da primeira instalação do Museu de Arte, ainda na sede dos
Diários Associados, na rua Sete de Abril.
Existem hoje no arquivo do Instituto Lina Bo e P. M. Bardi
19 documentos com suas propostas, feitas em lápis grafite,
aquarela e nanquim. São colares, broches, brincos, gargantilhas,
minaudière e anéis, entre outros ornamentos, como corpetes
e até embalagens, que têm um denominador em comum:
a exaltação da beleza das pedras, a lapidação cabochão, as cores
fortes de turmalinas e malaquitas, em um mix de referências
da Itália e do Brasil.
Vaidosa, ela própria era uma colecionadora de joias. Se por um lado
lutava por uma arquitetura “pobre”, como gostava de denominar
seus projetos, e rejeitava a tentativa de recriar um mundo que não
existia mais, uma terra onde cortinas de veludo, lustres de cristal
e poltronas Luís XVI não faziam sentido, por outro, nunca deixou
o encantamento de lado, o prazer visual. Juntava “cacarecos”,
coisinhas que encontra aqui e ali, se enfeitava, enfeitava suas
estátuas – até hoje elas embarcam para exposições mundo afora
vestidas com bijuterias, miçangas, colares. Não teve filhos,
mas plantou árvores, escreveu muito etalvez brincasse assim
de boneca, de um jeito mais lúdico que ostentatório.
Flertou também com a moda, criando figurinos de peças de
teatro e recebendo, no Museu de Arte, o primeiro desfile de
Christian Dior no Brasil, em 1951. Mas não se engane: Lina
buscava, antes de tudo, a poesia, a arte como amplificação
do olhar, não o escapismo fácil. “Eu nunca busquei a beleza,
somente a poesia”, era uma espécie de mantra que ela usava
para descrever toda a sua produção, seja a literária, o design
de objetos ou a construção de museus e casas.
new look
Ao lado, trajes femininos, criados em 1951, em aquarela e lápis grafite.
“Quanto mais você se debruça sobre a obra dela, mais qualidade
e diversidade encontra”, afirma Sônia Guarita do Amaral,
diretora-presidente do Instituto Lina Bo e P. M. Bardi. “Ela
era uma grande arquiteta e uma designer que fazia coisas
para completar a arquitetura. Além disso, pintava aquarelas
inacreditáveis, a tal ponto que eu nem sei dizer o que ela fazia
melhor. Mas o mais importante é que, por trás de tudo, de cada
coisa, existe um conceito. Você pode gostar ou não, achar um
móvel duro ou feio, mas nada é por acaso.”
Foi justamente usando a técnica de aquarelas, um dos trabalhos
favoritos de Sônia, que Lina desenhou parte do que seria sua
coleção de joias, cujo exemplar mais famoso e imponente é um
colar de águas-marinhas, criado em 1947 e usado pela primeira
vez em 2 de outubro do mesmo ano, quando a primeira sede do
Masp foi inaugurada – o único registro fotográfico, porém, data
de 1948, quando a arquiteta aparece usando a joia em um baile
de Carnaval do Instituto dos Arquitetos do Brasil.
Só a história desse colar daria um roteiro de cinema. Assis
Chateaubriand, um dos empresários mais influentes do país na
segunda metade do século 20 e amigo do casal Bardi, comprou
um lote grande das pedras e não se sabe ao certo se revendeu ou
doou parte dele a Pietro – a outra parte foi usada para criar um
colar para a rainha Elizabeth II, dado a ela por Chateaubriand em
1953, quando ele se tornou embaixador do Brasil na Inglaterra.
Fato é que Pietro presenteou Lina com as gemas, fornecendo
a matéria-prima necessária para alavancar sua imaginação.
Construído como uma metáfora, em forma de cachoeira, o colar é
praticamente um manifesto do que ela imaginava ser adequado
ao design de joias brasileiro. As gemas são livres, o ouro apenas
ligando umas às outras, tudo feito a mão, obviamente. Uma
defesa das pedras tidas injustamente como semipreciosas, em
uma época onde só diamantes, rubis e esmeraldas encantavam
a maioria. “Uma reivindicação ética dos ornamentos de ouro
baixo, bronze, diamantes com carvões, pratas, crisólitos,
quartzos e berilos coloridos. Ornamentos que marcaram a
boletim de ocorrência
Nas páginas internas, parte de uma carta de Lina endereçada
a Pietro sobre o roubo do colar e fac-símile
da matéria publicada na Folha de S. Paulo, em 1987.
história do homem desde a mais antiga antiguidade e que
podiam ter iniciado no Brasil um Industrial Design de joias”,
defendeu no artigo Pedras contra Brilhantes, publicado pela
primeira vez em 1947.
O colar da rainha Elizabeth continua nos cofres do Palácio
de Buckingham. O de Lina se perdeu na história das páginas
policiais. Em agosto de 1986, quatro assaltantes (dois menores
de idade) entraram na sua Casa de Vidro e roubaram 42 joias,
entre elas o colar de águas-marinhas, confeccionado por um
artesão francês com pedras articuladas, no total de 270 quilates.
Sem a menor noção do que estavam levando, um dos assaltantes
confessou ter jogado as pedras fora e vendido o ouro, segundo
matéria publicada no jornal Folha de S.Paulo.
Vale ressaltar que a paixão da arquiteta pelas gemas tidas na
década de 1950 como semipreciosas revela um olhar apurado,
de vanguarda, que norteava tudo o que passava pela sua vista,
fosse o início do tropicalismo ou do cinema novo, para citar
apenas dois movimentos culturais dos quais ela participou
ativamente, fosse a antecipação do que viria a ser a joalheria
moderna – hoje é quase impossível imaginar que essas gemas
não fossem valorizadas em determinada época.
Muitas delas alcançam atualmente valores semelhantes ou até
maiores que os dos diamantes. E nem precisamos ir tão longe.
Já em 1962, o colar de águas-marinhas, avaliado a pedido
da família, foi estimado em 500 mil dólares. “O encanto dela
sempre foi pela criatividade, e ela não tinha nenhum pudor
intelectual, não se prendia a coisas consagradas. Pelo contrário,
Lina valorizou diversas manifestações culturais antes que elas
fossem aceitas”, destaca Sônia Guarita do Amaral.
Sobre o assalto, Lina declarou: “Foi um crime cultural. Pela
primeira vez, eu fiquei com raiva do Brasil”, disse em entrevista
à Folha sobre o roubo das águas-marinhas. Um crime que
exatamente 30 anos depois ganha um desfecho feliz com a
reedição da peça e sua devolução à Casa de Vidro.
cascata natural
Colar de águas-marinhas sobre Buda.
Recriar uma joia histórica não é tarefa das mais fáceis. É
preciso ser fidedigno sem abrir mão de eventuais adaptações
– afinal, cada pedra é uma pedra, e o feito à mão é de impossível
reprodução. Recriar uma joia histórica cuja existência só é
comprovada por fotografias é mais difícil ainda – não existe
um modelo a ser seguido, uma escala; apenas pistas, traços.
A despeito das dificuldades, a Talento recriou em seis meses a
joia mais emblemática da arquiteta Lina Bo Bardi. O primeiro
desafio? Encontrar o lote ideal de águas-marinhas, gemas
que hoje alcançaram valores estratosféricos e se tornaram
raras, diferentemente do cenário que Lina encontrou em 1947.
“Fiquei de fevereiro a junho atrás das pedras. Como elas são
bem grandes, era difícil achar um lote com a lapidação de que
precisávamos e a uniformidade de cor”, conta Vanessa Géo
Rodrigues Ladeira, diretora de produção, que contatou 12
fornecedores diferentes até achar as águas-marinhas perfeitas.
Feito de ouro 18k, com 47 águas-marinhas em lapidação
esmeralda, o colar Talento-Lina Bo Bardi tem 393 quilates. Mas
os números não terminam aqui. Confira o passo a passo da joia:
backstage
primeiros passos
futuro do pretérito
Nas páginas internas, detalhes da produção:
contagem das pedras, abertura dos chatões, polimento, molde,
os chatões em ouro branco e o começo da montagem do colar.
Ilustração feita em caneta aquarelada Tombow.
Prova de artista, feita pela Talento com base no colar histórico de Lina.
cenas do cotidiano
Ilustração de Lina Bo Bardi que retrata a vida moderna.
A essência das coisas
Lina Bo Bardi nasceu na Itália, mas fez história no Brasil.
Mudou-se para cá ainda jovem, porém já formada em arquitetura
pela Universidade de Roma. Tinha em suas mãos a capacidade
de multiplicar. Para ela, tudo era arquitetura: dos projetos
e obras aos desenhos de joias, cenários, figurinos, museus, móveis
e exposições. Assim era Lina, artista multidisciplinar, plural,
completa. Todos os conceitos de sua criação estavam
baseados na origem e na essência das coisas e em sua verdade
mais pura e profunda.
Seu poder de observação era constante, e suas criações
estabelecem uma continuidade do espaço, mudam a perspectiva
do olhar, do corpo e do pensamento do observador. Sua relação
com os materiais é espontânea, mas nunca aleatória. Possuidora
de um senso de intuição apurado, sempre o utilizava como
ponto de partida no seu trabalho.
Lina Bo chega a um Brasil ávido por conhecimento, descobre
um país rico em materiais, valoriza e influencia, de certa forma,
o pensamento criativo dos artistas da época. Seu olhar estrangeiro
guia e orienta essas mentes criativas de tal forma que Gilberto
Gil afirma num depoimento dado para o livro Avant Garde na
Bahia que movimentos culturais importantes no Brasil,
como a Tropicália, não teriam existido sem a contribuição
dada por Lina Bo.
Assim vejo essa nova onda de criadores brasileiros, jovens na
sua maioria, que não se impressionam com tendências nem
vanguardas efêmeras. Recorrem aos princípios básicos de criação
de Lina Bo Bardi: a origem, a essência das coisas e sua verdade mais
pura e profunda. Os trabalhos pulsam, saltam de dentro para fora,
nascem de uma verdade interna, são autorais, cheios de conceito.
Lina Bo Bardi é atemporal. Para ela, o tempo não é linear:
“É um maravilhoso emaranhado onde, a qualquer instante, podem
ser escolhidos pontos e inventadas soluções, sem começo nem fim”.
NO CERRADO, UMA PEDRA PRECIOSA
Conheci Lina pelos seus escritos e sua obra. Foi nesse contato que meu
interesse pela arquitetura tomou um caráter mais cultural, como um
conjunto dos padrões de comportamento, de manifestações artísticas
e intelectuais, mas também das crenças populares, transmitido
coletivamente e típico de uma sociedade complexa como a nossa.
Ela escolheu nosso Brasil para chamar de seu e se entregou a ele da
mesma maneira que ele a recebeu acolhedoramente. Não à toa,
seu pensamento se mantém pulsante, tocando continuamente
a memória das pessoas.
Vejo isso, em grande parte, pelo poder da arquitetura, por se tratar de
construções relacionadas à permanência. Mas o ato de construir não
basta para que um arquiteto entre para a história.
Participando ativamente da sociedade brasileira, a arquiteta despiu
as convenções e paradigmas de um mundo masculino na arquitetura
brasileira dos anos 1960, quando projetou um dos nossos maiores
cartões-postais, o Masp, da avenida Paulista. Provocou questões
essenciais para novas visões de temas como políticas culturais,
educação, museologia, com domínio e elegância que poucos fizeram.
Sua produção escrita também está nesse lugar atemporal. Pela
característica de imobilidade da arquitetura, os textos de arquitetos
possuem o papel importante de difundir ideologias e convicções.
Um fato curioso é que poucos textos assinados por mulheres chegaram
às nossas mãos. É raro, mas não impossível, encontrar registros
fotográficos e informações sobre obras de arquitetas como Mayumi
Souza Lima, nascida no Japão e naturalizada brasileira em 1956, que
teve contato com Lina durante sua trajetória, dividindo os mesmos
anseios de uma arquitetura aliada às mudanças sociais. Assim como
Carmen Portinho, brasileira, autora de projetos arquitetônicos e
urbanísticos renomados, mas que algumas vezes tiveram o mérito
exclusivamente creditado à seu célebre companheiro, Afonso Reidy.
Observando atentamente, cabe ser feita uma avaliação do passado,
presente e futuro do papel das mulheres nesta profissão.
Por isso, a importância dessa mulher em especial, que dá visibilidade ao
que está invisível na história das artes, ofícios e arquitetura. Aos meus
olhos de estudante das artes, é maravilhoso ver a potência das suas
palavras somadas à portabilidade.
Assim como a palavra escrita e a arquitetura, a joia tem o valor de
perenidade e estabilidade no tempo. Foi através do convite para fazer
parte deste projeto que conheci essa outra vertente do legado de Lina.
É admirável ver essa mulher transitando pelos diferentes campos,
tocando diversos suportes e linguagens, sempre com originalidade
e maestria; solucionando problemas estéticos de forma que tudo
parecesse acontecer sem esforço, com elegância.
Em 1947, mesmo ano de nascimento do famoso colar, reeditado agora,
a arquiteta projetou para o auditório do Masp uma cadeira de madeira e
couro dobrável, considerada o primeiro modelo dessa nova fase estética
e ideológica do país. Era preciso entrosar a vida moderna ao cotidiano,
não somente dentro dos edifícios que vinham modificando a cidade,
propondo uma arquitetura de interior que se integrasse com o exterior,
mas também no homem. Nesse caso, privilegiadamente, na mulher.
A arquiteta cheia de segredos (e que mulher interessante não tem os
seus?) tinha ainda uma relação afetiva com suas joias de uso particular.
Enfeitava com pulseiras e colares suas esculturas e seus santos para que
pudessem aproveitar do convívio com as coisas belas da vida. Algumas
ficaram assim até hoje, e, quando saem da Casa de Vidro para alguma
exibição, vão vestidas para a ocasião.
Como incentivadora da cultura local, tão rica em trabalhos manuais,
as joias de Lina não poderiam ser feitas industrialmente. Quase 70 anos
depois de seus estudos para joalheria, o feito à mão recebe um critério
de valor ainda mais apreciado, dada sua raridade. É apenas nos ateliês
dos ourives, onde a tradição e o legado dos trabalhos manuais produzem
joias de maneira única, que a mágica continua acontecendo. Olhando
para a nossa história e contemplando que ainda há muito por vir,
vejo que sorte a nossa: a obra de arte se incorporar à vida.
fora da caixa
Como pensar fora da caixa para fazer uma caixa? A função seria guardar
e expor um colar desenhado por Lina Bo. Designers, diferentemente de
artistas, têm a vantagem de não partir da folha em branco. As dimensões
da joia sugeriram uma volumetria, e a angulação necessária para que ela
ficasse exposta me levou a pensar em algo articulado cuja tampa servisse
de expositor. A cadeira Frei Egídio, desenhada em 1987 por Lina,
Marcelo Ferraz e Marcelo Susuki, foi uma associação imediata.
Inspirada nas cadeiras chamadas florentinas do século 15, a Frei Egídio
é composta de sarrafos de madeira e suas conexões permitem que
eles se articulem, podendo ficar praticamente plana para facilitar a
armazenagem e o transporte. Um projeto engenhoso, simples e que utiliza
o vocabulário da marcenaria tradicional. Lembro-me, aliás, do impacto da
primeira vez que vi a escada do Solar do Unhão, na qual Lina usou técnicas
construtivas usadas nos carros de boi e desenhou uma das mais belas
escadas da história da arquitetura. O aprofundamento do conhecimento
da cultura popular, dos modos de fazer e a inteligência na apropriação
desse saber são as características do trabalho dela que mais admiro.
Essa forma de pensar está presente também no colar que desenhou
baseada nas águas-marinhas que ganhou de seu marido. Imagino Lina
diante dessas pedras tão brasileiras, pensando em como fazer um adorno.
Optou pela forma em V acompanhando a linha do colo. As pedras foram
posicionadas de forma progressiva, as menores próximas ao rosto seguidas
pelas maiores. Para arrematar, algumas hastes com pedras menores nas
extremidades, como respingos para romper a previsibilidade da forma.
Uma joia é usada junto ao corpo que se move, e Lina fez com que as
pedras fossem montadas de forma que pudessem ser articuladas.
Pensar a caixa inspirada no trabalho dela fez com que o processo fluísse.
Nada melhor que um entendimento claro e uma boa inspiração para um
projeto ficar redondo. Todos os elementos da caixa estão conectados.
A tampa quando aberta funciona como expositor, sugerindo um colo.
O movimento da articulação é agradável. Pelas dimensões, conseguimos
utilizar sobras de madeiras e escolhemos um ipê com poucos veios para
não concorrer com a exuberância do colar. Simples assim.
inspiração e criação
Na página interna, a Frei Egídio foi o ponto de partida de Claudia
Moreira Salles para a construção do estojo que funciona como display.
Nas próximas páginas, detalhes do processo de marcenaria.
Agradecimentos gerais
Agradecemos ao Instituto Lina Bo e P. M. Bardi pela parceria,
pesquisa e cessão de fotos e croquis. Em especial a Anna
Carboncini e Sonia Guarita do Amaral. Ao curador Waldik
Jatobá e à cocuradora Johanna Birman, pelo olhar apurado
e sensibilidade. À diretora de arte Maru Widen, pela criação
do projeto gráfico. À Lina Bo Bardi, que nos presentou com
tanta riqueza e generosidade, mesmo não estando mais entre
nós. E a todos os artesãos do Brasil e da Talento, que seguem
acreditando no trabalho manual, a despeito das máquinas.
Bibliografia
Lina Bo Bardi, Instituto Lina Bo e P. M. Bardi, Imprensa Oficial
Lina por Escrito, Silvana Rubino e Marina Grinover, Cosac Naify
Stones Against Diamonds, Lina Bo Bardi, AA Publications
Lina Bo Bardi, Aurélio Michelis (documentário)
Acervo Instituto Lina Bo e P. M. Bardi
Créditos gerais
Direção geral: Jacques Rodrigues Jr.
Texto e coordenação: Renata Piza
Direção de arte: Maru Widen
Fotos: Fernando Lazslo e Marcos Vilas Boas
Fotos still: Almir Pastore
Fotos de acervo: Instituto Lina Bo e P. M. Bardi
Reproduções: Gerson Tung
Ilustrações (joias Talento): Rachel Távora Mancini
Revisão: Paulo Kaiser
Produção gráfica: Jairo da Rocha

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