O drama ideológico das taxas sobre transações

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O drama ideológico das taxas sobre transações
Claudio Fernandes
O drama ideológico das TTF
Rev. Eletrônica Portas, v.5, n.5, p.35-44, mar.2014
O drama ideológico das taxas sobre transações financeiras
The ideological conundrum around the financial transactions taxes
Claudio Fernandes1
Resumo
Este é um estudo sobre as relações políticas e ideológicas que trabalham para manter o
domínio absoluto do capital financeiro como a prioridade máxima das governanças nacionais
e multilaterais. Tomando como ponto de partida a iminente implementação de Taxas sobre
Transações Financeiras (TTFs) em onze países da União Europeia, o artigo analisa os
benefícios do controle dos fluxos internacionais de capital em um contexto de busca de
sustentabilidade para o desenvolvimento humano e ambiental em contraponto ao dogma do
crescimento econômico a qualquer custo. Através de uma breve desconstrução do sistema
financeiro em geral e do ciclo de endividamento público, em particular, procuramos
demonstrar que tal sistema deve ser monitorado e seu potencial derivado deve ser fonte de
recursos para investimentos em infraestrutura social, como saúde e educação, e em projetos de
equilíbrio ambiental. Identificamos uma crise de soberania nacional diante de uma ditadura
financeira que controla múltiplos processos, envolvendo o destino de diversas pessoas e
territórios. Concluímos mostrando que as TTFs têm um enorme potencial de financiamento
para o desenvolvimento sustentável e a erradicação da pobreza, através de um novo
paradigma de governança multilateral.
Palavras-chave: TTF, taxas sobre transações financeiras, Taxa Hobin Hood, sistema
financeiro, desigualdade
Abstract
This article analyses political and ideological relations that sustain the absolute domination
of financial capital as top priority for national and multilateral governance. Starting from the
current implementation process of Financial Transaction Taxes (FTTs) in eleven European
Union countries, the piece exposes some of the benefits for controlling international capital
flows in the context of searching for human and environmental development sustainability as
opposed to the usual dogma of economic growth at any cost. Through a brief deconstruction
of the financial system in general, and the public indebtedness cycle in particular, we tried
and show that such system must be monitored and its derived potential must generate
resources to invest in social infrastructure, like health and education, and in environmentally
balanced projects. There has been identified a sovereignty crisis before the dominance of a
financial dictatorship that controls multiple processes, involving the destiny of peoples and
territories. The conclusion advocates that FTTs have an enormous potential to finance
sustainable development and eradicate poverty, through a potential new paradigm of
multilateral governance.
Keywords: FTT, financial transaction taxes, Robin Hood Tax, financial system, inequality
1 Economista,
designer e ativista dos direitos humanos.
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O que o capital às vezes promete dar, já retira há séculos e quer continuar retirando sem
contribuir com nada em troca.
A Taxa sobre Transações Financeiras (TTF) foi primeiro pensada por John Maynard Keynes
(1985), o economista britânico, biografado como gay assumido em seus anos de Cambridge,
que indicou o caminho para que os governos dos Estados Unidos e Europa consertassem o
desastre causado pela quebra da Bolsa de Valores de Nova York em 1929 e a consequente
recessão econômica que se alastrou pela América e Europa. Segundo Keynes: “A criação de
um elevado imposto sobre as transferências para todas as transações talvez fosse a mais
salutar das medidas capazes de atenuar o predomínio da especulação sobre o
empreendimento.” (Keynes, 1985:116). A receita apresentada foi a regulação e o controle,
pelo Estado, do fluxo de capitais e transações financeiras, desconstruindo tecnicamente a
romântica noção liberal do mercado auto-regulador e colocando de volta a política junto à
economia.
A ideia específica de uma TTF reguladora de mercados foi resgatada e fortemente defendida
no início dos anos setenta pelo americano James Tobin, numa conferência após o fim do
acordo de Bretton Woods para o lastro cambial colocando o Dólar como a unidade de
referência principal de pagamentos no mundo. A regulação e fiscalização do sistema
financeiro é bem visto por ambos economistas, que concordam que o mercado deve ser
monitorado e regulado para não causar distúrbios graves nos processos econômicos. Tobin
propôs taxar apenas o fluxo de transação cambial, um mercado que hoje movimenta quatro
trilhões de dólares por dia. Sua proposta era robusta e pragmática, seu objetivo era impedir
que o sistema se transformasse em um grande cassino aplicando-se uma alíquota de 1% – hoje
em dia, além de regular o mercado, arrecadaria diariamente em torno de 40 bilhões de dólares
por dia (mais de 14 trilhões anualmente).
As finanças movimentam, em termos pecuniários, valores múltiplas vezes maiores do que a
produção de bens e serviços do planeta. Em 2010, segundo o Banco de Compensações
Internacionais, o sistema financeiro movimentava setenta vezes mais valor do que o Produto
Interno Bruto (PIB) global de 62 trilhões de dólares, gerando um número na casa dos
quatrilhões. Somente o mercado de derivativos correspondia a onze vezes a produção global
de bens e serviços para um total de 682 trilhões de dólares anuais (SCHULMEISER et al.,
2008). Estes são números estratosféricos que desafiam a própria representatividade em termos
de valor agregado ao que efetivamente existe, em uma situação normal de multiplicidade das
relações entre a negociação monetária do presente baseada no que será produzido e
comercializado no futuro, um arcabouço matemático que cria produtos financeiros com o
objetivo expresso de captar capital, multiplicar as operações em busca de rendimentos de alto
retorno e baixa proporção de capacidade de investimento produtivo direto. O objetivo em
finanças é simples, porém amplo e é desde a década de setenta do século passado parte
inerente de todo sistema econômico capitalista vigente, além de possibilitar aumento de
rendimento e redução de risco, cria a possibilidade de consumo para alimentar oportunidades
de produção.
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Pragmatismo econômico
No Brasil e em mais trinta países já existe um arcabouço legal de tributação para transações
financeiras (Hilman e Ashford, s/d). Com a publicação da Constituição Federal de 1988, o
Imposto sobre Operações Financeiras (IOF), implementado pela primeira vez em 1966, ficou
consolidado no país. Este imposto incide em vários tipos de transações que envolvam uma
operação financeira, ou seja, baseada em confiança (crédito) ou promessa (débito) incluindo
seguros, crédito, empréstimo, câmbio, derivativos e ações. Cabe ao Ministério da Fazenda
definir a alíquota do imposto para cada tipo de transação. Ou seja, você sabia que ao usar o
cartão de crédito ou cheque especial você está pagando IOF? Ou quando faz um seguro para o
automóvel? Ou de saúde? As operações financeiras passaram a ser inerentes ao sistema de
consumo mundial, onde o crédito é a mola propulsora da demanda agregada e do valor de
troca que reduziu em múltiplas vezes o valor de uso do produto ou serviço comparado ao
montante pago para obtê-lo. Numa crescente economia política de signos, fica difícil explicar
a uma criança de doze anos porque uma camiseta que custa um dólar para ser produzida vale
90 dólares em seu ponto de venda.2
Segundo dados oficiais da Receita Federal, em 2012 o IOF arrecadou 31 bilhões de reais no
Brasil. A participação ainda é tímida no conjunto de ingredientes fazendários, mas já é bem
maior do que o total arrecadado pelo imposto de renda de pessoa física, que está relacionada a
atividades econômicas (e de vida) de milhões de pessoas mas que gera apenas 25 bilhões de
reais para os cofres públicos. Isso dentro de um total de um trilhão e vinte e nove bilhões de
reais de arrecadação, num cenário em que o ‘gorila’ do bando é a Previdência Social. Este
enorme fundo que, além de ser fonte de arrecadação, alimenta bastante o sistema de criação
de dívidas do próprio Estado, que o usa como garantia.
Todo esse recurso, o arrecadado e o captado através de títulos de dívida, é usado pelo
governo, qualquer governo, à sua discrição. Quase que totalitariamente, mesmo como
exercício democrático, o governo, seja ele estadual, municipal e o federal, decide que tipos de
compromissos e usos fazem dos recursos públicos. Num ciclo vicioso e viciado de uma
democracia de espetáculo, os partidos e seus aliados privatizam esses recursos para satisfazer
seus compromissos, não de acordo com a prioridade exposta pelos governados,
principalmente os mais vulneráveis com quem o acúmulo desenfreado de capital tem uma
dívida histórica, mas para sustentar o projeto de poder de quem governa e assim continuar o
ciclo de vantagem pecuniária que alimenta toda a bem-nutrida classe ‘política’, que por via
indireta da corrupção também contribui para o ciclo de ineficiência do investimento público.3
Ainda mais, muito dos recursos destinados a estabelecer a infraestrutura de países são
2
Para um estudo aprofundado sobre a transformação do capitalismo para uma economia política de signos e
valores simbólicos ver: Baudrillard, J. (1973 e 1975). Sobre a amplificação infinitesimal do sistema financeiro
para a superacumulação de capital a partir da venda do futuro no presente, ver a corrente de economia política e
estudos sociais e filosóficos sobre ‘Império’ (Marazzi, 2009).
3
Sobre o fator espetáculo da democracia liberal ver: Debord, 1997; para uma crítica radical ao espetáculo
ideológico da política: Baudrillard, 2008; e, para aprofundar a compreensão da apropriação e expropriação da
vida pelo capital financeiro: Hardt e Negri, 2009.
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‘desperdiçados’ e desviados para paraísos fiscais. As externalidades negativas da corrupção
são persistentes e podem se prolongar na base cultural das populações, tornando-se problemas
crônicos de sistemas políticos, empresariais ou até mesmo associativos e condominiais.
Apesar dos inegáveis ganhos da sociedade moderna e tecnológica em que o mundo se
transformou a partir da torsão sistemática das relações econômicas e políticas capitalistas,
inclusive nos momentos de antagônica luta com os Estados socialistas, os destroços e as
carcaças espalhadas no caminho passam a incomodar demais o próprio sistema como um
todo, engessando seus aspectos mais inovadores e responsáveis, apertando o cerco da
repetição de simulacros constantemente reciclados e reinventados para esconder o rastro de
destruição. Mas o meio ambiente mostra-se a si próprio. A pobreza já chega ao centro da
riqueza, desafiando-a de frente com a expansão da insegurança pública e do desemprego. A
escala do planeta é enorme demais para os seres humanos e seus grandes brinquedos de
guerra. Tanto recurso jogado fora através de técnicas de obsolescência programada
contribuindo para a destruição maior do sentido das tarefas humanas. Mesmo os ganhos a
partir da usurpação da própria alma dos seres atarefados em seus cotidianos não são mais
suficientes para abarcar o vazio da existência. O niilismo do prazer, o hedonismo, torna-se a
força motriz do desejo e sua realização a qualquer custo, seja ele ético, político ou econômico,
inclusive com o endividamento crescente, seu objetivo imediato de vida (Deleuze e Guattari,
2007).
A crise financeira e a austeridade econômica
Em sua sistêmica gangorra de crises e euforias, o mundo abriu o século XXI em uma crise
financeira alcançada pela explosão da bolha tecnológica fomentada pela promessa, tornada
real, da Internet. Logo em seguida, um ano depois, o ataque às Torres Gêmeas – edifícios do
World Trade Center em Nova Iorque – debilita ainda mais a confiança em vários setores da
economia e da política. O risco aumentará e com ele vários de seus derivados, como a
expansão da indústria militar e seu projeto de administração do medo.
Subsequentes crises de corrupção e maquiagem contábil de gigantes americanas como a
Enron, a Halliburton e a Arthur Andersen colocaram mais dúvida sobre o mercado financeiro
e prolongaram anos de perdas.4 Enquanto isso a Europa vivia a euforia do Euro e a
capitalização da economia regional que tomava impulso com a fraqueza recorrente da moeda
americana. Mas sistemas são multiplicidades, não são monólitos. A categoria denominativa
esconde a complexidade do processo de ações envolvidas e sintetizadas em conceitos
(Derrida, 1982). Pessoas geniais, técnicos desse sistema multitrilionário, agentes do
desenvolvimento tecnológico da derivação econômico-financeira, criaram novos ‘produtos’
financeiros – as dívidas de compradores de imóveis nos EUA – e os venderam em altos
números para bancos dispostos a “investir seu capital para alcançar rentabilidades maiores.”
Somente neste momento, a multiplicidade dos processos transforma-se em um processo
sistêmico, em que o espírito de malta comanda a massa, como bem salientou Canetti (1995)
em seu estudo sobre a massa e o poder. Essa segunda bolha de derivativos financeiros, que
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Para uma análise sobre a crise de confiança do início do século XXI e o aumento do endividamento dos países
ver: Stiglitz, 2006.
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impulsionava a indústria imobiliária e de crédito a ela relacionada, estourou de forma
inesperada e monumental no final de 2007 e continuou até seu momento mais agudo na
metade do segundo semestre de 2008, quando os governos tiveram que socorrer com enorme
quantidade de recursos essas instituições ‘irresponsáveis’, financeiramente vulneráveis,
atoladas em ativos tóxicos (Marazzi, 2011). Segue-se a isso o efeito dominó de outras
indústrias atreladas ao sistema, como as grandes montadoras de automóveis americanas e toda
sua cadeia produtiva e os bancos nacionais e privados de vários países europeus.
Os governos se tornaram particularmente vulneráveis nessa gangorra financeira e abusaram
do uso de emissão de títulos de dívida pública. Na Europa, vários países ultrapassaram o valor
de seu PIB em emissão desses papéis (Lazzarato, 2012). O resultado é que, no momento, a
Europa e os Estados Unidos vêm sofrendo a maior crise econômica desde a década de trinta
do século passado, oitenta anos atrás. Suas populações encontram-se cada vez mais ‘expostas
a riscos’, também reproduzindo no nível pessoal e familiar o ciclo macroeconômico de
endividamento progressivo. As taxas de desemprego estão em níveis catastróficos em alguns
países como Grécia e Espanha, ou muito alto como na Itália, Portugal e França. Enquanto nos
Estados Unidos o Congresso e o Presidente fazem um cabo de guerra político para aumentar a
capacidade de endividamento do país e garantir a continuidade de um sistema que se mostra
perigosamente podre em seu interior.
Para engrossar a sopa da desilusão pública, os governos estão expostos e particularmente
vulneráveis às pressões das instituições financeiras internacionais que impõem restrições
específicas para execuções orçamentárias, priorizando sempre o pagamento dos
compromissos financeiros, diga-se dívidas. Os governos perderam assim sua soberania de fato
para uma ditadura financeira (Marazzi, 2011), executando suas funções apenas com o que
sobra do pagamentos dos juros de dívidas contraídas e em sua grande parte desperdiçadas em
vasta rede de corrupção e malversação dos recursos públicos.
Na tentativa de equilibrar os débitos fiscais de vários países endividados, economistas das
instituições multilaterais – FMI, Banco Central Europeu, Banco Mundial – receitam medidas
de austeridade fiscal, o que desconstrói uma já deficiente infraestrutura de serviços públicos e
direitos trabalhistas adquiridos, afetando diretamente as pessoas. A crise persiste há cinco
anos, mostra que não é business as usual, não resolve apenas com medidas monetaristas de
flutuação de taxa de juros e liquidez quantitativa amortecida (quantitative easing). Os
problemas são mais graves. Os elementos chaves do sistema podem estar comprometidos
(como se diz em linguagem espiã), como mostra o recente escândalo de manipulação da Taxa
Libor – taxa de juros interbancários da Inglaterra, bancos que emprestam a bancos – em que
grandes bancos de investimento se conciliam com a corte americana desembolsando de sete a
dez bilhões de dólares. Se aceitam pagar isso, imaginemos o quanto eles lucraram com a
falcatrua.
A ilusão do acúmulo de capital financeiro inebria os sentidos dos tomadores de decisões que
movem uma perigosa ciranda de volatilidade e risco sobre uma enorme pilha de
superprodução de coisas que devem ser escoadas para populações que já estão com suas
demandas em grande parte satisfeitas e saturadas, nos países desenvolvidos. Enquanto isso, há
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uma demanda agregada em potencial, formada por uma população quatro vezes maior que
ainda não tem acesso a esses produtos e serviços ao redor do mundo. Assim, em busca de
lucros crescentes em um cenários de deflação agregada, o capital volta-se violentamente para
o processo de financialização da economia como o modo adequado e perverso de acumulação
nesse novo capitalismo pós-fordista (Marazzi, 2011), sem perceber o enorme potencial
reservado no desenvolvimento humano ainda a ser alcançado pela maior parte da população
mundial. Economistas, cegos desde que retiraram a palavra Política do nome da ciência, não
conseguem perceber que enquanto até agora o sistema econômico tem crescido sobre as dores
da desigualdade e da injustiça social, para amadurecer terá que resolvê-las para liberar o
potencial evolutivo dos seres humanos.
Robin Hood resgata Tobin e Keynes
Enquanto isso, ativistas da Inglaterra, França, Dinamarca, Noruega, Holanda, Alemanha,
Espanha, Itália, Estados Unidos, Brasil e Argentina decidem resgatar a ideia de Keynes e
Tobin para desintoxicar o sistema financeiro e arrecadar recursos para cuidar do rastro de
destruição deixado pela torsão do capital.5 Rebatizam a ideia como “Taxa Robin Hood”,6
mostrando que o sistema financeiro deve contribuir para o desenvolvimento humano, social e
ambiental, três áreas que são negligenciadas em orçamentos públicos e que amargam as
externalidades negativas da presença da indústria e da maneira como, na maioria das vezes, é
feita sua implantação, rompendo legislações ambientais, subjugando trabalhadores, gerando
bolsões de pobreza, aniquilando práticas tradicionais, etc.
Os governos europeus, sob pressão das instituições financeiras, sob o peso da diminuição de
fato de suas prerrogativas orçamentárias e de sua soberania econômica, veem sendo também
pressionados pela sociedade civil organizada de forma sistemática para que adotem TTFs para
alcançarem teto de investimento e, principalmente, para cuidar dos destroços socioambientais
causados ao redor do mundo com seus apoios, especialmente nos países mais pobres. Depois
de três anos de forte trabalho de advocacy (ativismo) contra toda a pressão do
conservadorismo tacanho dos senhores – são 99.9% homens – banqueiros e seus dispositivos
de comunicação, onze países se comprometeram a implementar TTFs em âmbito regional.
Alemanha, Áustria, Bélgica, Eslováquia, Eslovênia, Espanha, Estônia, França, Grécia, Itália e
Portugal, em Janeiro de 2013, decidiram iniciar a discussão e o desenho de como funcionará o
processo de arrecadação dessa taxa. A elaboração é complicada e demorada, envolvendo
várias questões legais de cada país. Entretanto, nada é mais desafiador do que o contínuo
ataque ideológico da imprensa, de economistas e políticos de países contrários às TTFs que
mantêm a equipe de estudo de implementação da proposta do Banco Central Europeu sob
constante ameaça moral, propagandeando a derrocada da iniciativa. A equipe de Algirdas
Semeta, principal negociador do Banco Central Europeu para sua implementação, não se
cansa de escutar os prognósticos apocalípticos dos ideólogos, principalmente ingleses, tendo
no Primeiro-Ministro James Cameron seu principal representante.
5
Torsão é um conceito hegeliano utilizado por Badiou (2009), que representa o resultado da interação entre
multiplicidades na constituição de singularidades em seu devir, ou o processo de transformação intrínseco na
constituição de um determinado estado de transformação.
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No momento, apesar de setores da imprensa internacional continuarem a criticar abertamente
o plano da TTF europeia, a mídia brasileira nem sequer toca no assunto ou percebe o evento
nevrálgico em formação. Recentes declarações de alguns membros do governo francês
assustaram, pois afirmavam que a iniciativa podia ser um tiro pela culatra, demonstrando
insegurança de um governo socialista que se encontra mal nas pesquisas de opinião,
principalmente por causa dos impostos sobre grandes fortunas e pela estagnação da economia
do país.
Entretanto, no dia nove de setembro (2013), os países se reuniram em Bruxelas para dar
continuidade à implementação da TTF regional. O governo alemão, depois de ser solicitado
pela campanha Robin Hood, divulgou carta de intensões positivas e reafirmou o compromisso
de adoção das taxas sobre ações, títulos de dívida pública (bonds) e derivativos. Com a última
vitória de Angela Merkel na Alemanha, a principal defensora da proposta no continente, a
Europa vai em frente com a implementação da TTF regional. A França, que desde agosto
2012 já iniciou a sua unilateralmente, ainda não a usa como política monetária e tributária em
maior escala, como acontece no Brasil, mas a adoção regional pode mudar o quadro e
estimular avanços no desenho das taxas, possivelmente incentivando o início de diálogo em
outros blocos regionais.
Dez anos devem ser suficientes para provar os benefícios das TTFs, tanto como regulação do
mercado financeiro quanto como instrumento de arrecadação com fins específicos voltados a
áreas prioritárias para o desenvolvimento global. As externalidades positivas mostrarão por si
próprias o resultado dessa política econômica racional, voltada para a redução de iniquidades,
reparação de dívidas históricas e solução de problemas socioambientais urgentes.
A vontade política necessária para implementar em âmbito global um sistema de taxação
sobre as operações financeiras deve nascer da conjunção da coragem de líderes que, perante a
opinião pública, estariam dispostos a descortinar o grande teatro de ilusões do capital
financeiro internacional. Essa coragem precisa de arranque e pressão, o que vem sendo
sustentado pela atuação de setores da sociedade civil organizada em um jogo de proporções
bíblicas a la David e Golias.
O castelo de cartas matemático-financeiro da derivação econômica, amplificado pela
multiplicação infinitesimal da influência do aparato de informação e comunicação,
sustentáculo e embalagem dos discursos ideológicos e construtores de jogos de linguagem
técnica e política, solidifica-se em um enorme volume de apostas no futuro a partir das
possibilidades presentes – derivação de valores. Essa multiplicidade infinitesimal de relações
humanas, atualizações intensivas e produção extensiva de produtos e serviços, compõem o
conjunto do bem comum da humanidade que é privatizado e usado como a base na loteria das
transações financeiras. As TTFs buscam justamente inserir uma dose de realidade concreta na
enorme especulação do capital, regulando seus fluxos, que muitas vezes carregam o peso ético
da ilegalidade, e investindo em ações de real desenvolvimento humano, social e ambiental,
uma das poucas ‘ilhas virgens’ para a expansão do trabalho e a reprodução do capital em
busca de seu próximo ciclo de crescimento, de tal forma que a implementação das TTFs deixa
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de ser uma questão condicional para, de fato, ser temporal. Não é se, mas quando os governos
irão adotar a medida como política soberana contra a onipotência da ditadura financeira em
que o mundo vive (Marazzi, 2011).
Mais de mil economistas em todo mundo assinaram uma carta de apoio à campanha da Taxa
Robin Hood endereçada ao G20 em 2011 (RHT, 2011), antes da reunião de Cannes em
novembro, quando o assunto fez parte da discussão dos líderes dos vinte países membros,
mais cinco países convidados, com a presença da executiva do Fundo Monetário Internacional
(FMI), Banco Mundial e União Europeia. Entretanto, apesar dos alardes publicitários na
imprensa internacional feitos pelo então presidente da França, Nicholas Sarkozy, a não ser por
uma apresentação feita por Bill Gates chamando a atenção da liderança mundial presente
nesta reunião, sobre a necessidade de se encontrar maneiras alternativas para mobilizar
recursos para investir no capital humano, a TTF não entrou oficialmente nos grupos de
trabalho do G20. As presidências posteriores, exercidas pelo México e a Rússia demonstraram
desdém à proposta e não incluíram na pauta de discussão. A Austrália, próxima presidência
com encontro marcado para novembro de 2014, dependendo da pressão da sociedade civil
organizada, pode ser levada a trazer TTF de volta, uma vez que a configuração política na
Europa, com a renovação da força da Chanceler Alemã nas eleições nacionais, deve acelerar a
implementação de sua versão regional, o que não é tão simples de fazer no sentido práticolegislativo, mas Merkel é seguramente a liderança mais comprometida com a criação da TTF
regional, tendo como foco principal alimentar o fundo de contingência europeu para países
seriamente endividados e com novos compromissos a vencer.
Uma grande vantagem na criação de TTFs para investir no desenvolvimento humano e
ambiental é impulsionar a mudança de paradigma de compreensão econômica sobre as
vantagens do investimento social como política pública consistente, não apenas como parte de
uma economia política da filantropia.7 Se explorarmos o potencial da adoção de tal política no
nível mundial, podemos até conceber a possível existência de órgãos multilaterais de
governança global independentes, como uma Organização das Nações Unidas com força
suficiente para buscar o desenvolvimento da paz mundial e do equilíbrio entre os povos. Livre
das pressões dos grandes doadores e talvez assim, tendo a chance de orquestrar uma outra
forma de globalização, como bem colocou o célebre e saudoso professor Milton Santos
(2000), mais humanizada e voltada para os interesses das pessoas nas comunidades.
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