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Cem Anos do Concurso de Canberra
O presente artigo pretende apontar as correntes do pensamento urbanístico atuantes no início do
século XX utilizando como microcosmo de análise o concurso para construção da cidade de
Canberra realizado no período de 30 de abril de 1911 a 23 de maio de 1912. Esse evento que
movimentou profissionais de 15 países é um marco no amadurecimento da reflexão, intervenção e
práticas concernentes à cidade. Seu contexto reúne disputas peculiares de um campo em
formação como o debate sobre o profissional e o tipo de formação para seu exercício e, em se
tratando de obras públicas, dos vínculos destes com os governos, em qualquer uma de suas
esferas.
A ascensão nacionalista é inerente à conjuntura e as disputas políticas uma
conseqüência natural frente ao vulto de tais empreitadas. Partindo das seis propostas vencedoras
do concurso, levando em consideração os relatórios de maioria e minoria emitidos pela comissão
julgadora, pretendemos examinar divergências e afinidades das idéias urbanísticas fora de seu
locus de produção.
De 1911a 2010
Ao entramos na segunda década do século XXI nos aproximamos dos cem anos do concurso que
elegeu o plano do arquiteto Walter Burley Griffin para a cidade de Canberra, oficialmente
anunciado em maio de 1912. A importância dessa competição estende-se para além da fronteiras
australianas como um marco fundacional do urbanismo1 como campo de conhecimento e atuação
profissional. Trata-se de um momento de reflexão sobre as possibilidades formais para os
assentamentos urbanos frente às promessas do século XX.
O urbanismo que se consolidou no início do século passado vislumbra uma complexidade que
conjuga técnica, teoria, experimentação, mítica e utopia ao mesmo tempo em que se organizou
em relação estreita com as formulações sociológicas fundadas também no ímpeto científico do
século XIX. Assim, a indagação filosófica “Qual a cidade ideal?” transforma-se frente à firmação
de um corpo de conhecimento abalizado pela produção de tratados, relatórios experimentais e
práticas extensamente discutidas por arquitetos, engenheiros, sanitaristas, topógrafos e
paisagistas tanto em congressos e conferências como numa já significativa circulação de
periódicos técnicos. Logo, o campo do planejamento urbano mostra-se maduro para articular
teorias e avaliar os resultados materiais de suas intervenções.
Neste sentido, a expansão das cidades nas antigas colônias britânicas fornece um manancial
produtivo para a análise das correntes que permearam a formação do pensamento urbano no
século XX. O afastamento da efervescência que marcou a produção dos discursos permite que
1
A designação do termo urbanismo é creditada a Ildefonso Cerdá. O engenheiro espanhol que nunca reclamou essa
“paternidade” construiu sua teoria sobre uma base filológica e utilizou a análise etimológica para melhor penetrar nos
termos que tradicionalmente eram empregados para designar o que era urbano e posteriormente para justificar a
introdução de “una palabra nueva” que evidenciaria o caráter científico das intervenções planejadas nas cidades. Ver
CHOAY, F. (1970, p.25-27).
correntes complementares e opostas coexistam sem as contradições ou impedimentos dos
contextos de origem. Esta foi a conjuntura da concorrência para o redesenho do centro
monumental da capital americana. Expressão máxima do movimento City Beautiful, o plano de
Washington e sua massa de edifícios criaram em larga escala uma unidade urbana fruto da
utilização do instrumento projetual como ferramenta apta a produzir significados cívicos e
identitários (MANIERI-ELIA, 1975). Dez anos depois e de forma potencializada o concurso para o
plano da capital australiana engendrou um movimento excepcional de profissionais e uma profusa
produção de propostas que, para além da construção da cidade, assinala a energia de um
momento fundamental de maturação das ações sobre o tecido urbano.
Canberra e a realização de concursos como expediente de um campo em formação
A independência das colônias britânicas na Austrália foi um marco na fundamentação dos
processos democráticos aplicados à gestão de um território. A partir de 1880, o ímpeto
nacionalista alcançou o continente isolado entre os Oceanos Índico e Pacífico, e disseminou
sentimentos identitários sob influência dos movimentos de independência dos Estados Unidos e
do Canadá. Em 1 de janeiro de 1901 as seis colônias juntaram-se em uma federação chamada
Commonwealth of Australia, este foi o desfecho de mais de uma década de convenções,
negociações e acordos. A proposta de federalização ambicionada por mais 50 anos tinha como
argumentos a necessidade de um sistema de defesa unificado e o ímpeto protecionista de
restringir a imigração chinesa. Acreditava-se, também, que a federação seria um instrumento para
alcançar a administração democrática do território, para tanto a Convenção de 1895 determinou
sua aprovação por meio de um referendo. A Constituição que começou a ser redigida nas
convenções da década de 1890 estabeleceu um sistema parlamentar bicameral formado pelo
Senado e pela Casa dos Representantes. Interessa-nos aqui ressaltar seu artigo 125 que
determinou que a sede do governo fosse estabelecida em uma nova cidade a ser construída entre
Sydney e Melbourne, dentro no território de New South Wales (NSW) a uma distância mínima de
100 milhas de sua capital2.
Em 1900, antes da oficialização da federação, o governador de NSW iniciou o trabalho de
prospecção de possíveis sítios para a construção da capital, o técnico indicado para a tarefa foi
Alexander Oliver, que recebeu propostas de 45 localidades, visitou pessoalmente mais da metade
e ao seu relatório minucioso adicionou diagramas e possíveis delimitações dos territórios. Em
dezembro de 1908 a proposta de Yass-Canberra, centrada no vale do Rio Molonglo, triunfa com a
aprovação do Seat of Government Act.
Em face ao impasse de como tratar a construção da cidade, opta-se pela realização de um
concurso, idéia ventilada desde a formação do Commonwealth. Ainda em 1901, George Sydney
Jones, líder do movimento para o planejamento urbano na Austrália, defendeu a possibilidade de
2
Pesquisa elaborada em Reps (1997; 2002) e AN IDEAL... (1995).
uma competição. Alguns anos depois, John Sulman, o arquiteto mais influente da Austrália, aderiu
à mesma posição. Sulman sabia que muitas cidades européias usaram concursos para selecionar
planos de expansão. Tratava-se de um artifício comum em países escandinavos e germânicos,
utilizados também em outras regiões da Europa continental. Na Inglaterra, depois da aprovação
do primeiro código de projeto urbano, em 1909, competições também passaram a ser usadas para
selecionar desenhos para áreas suburbanas. O objetivo não era tanto escolher um projeto
vencedor, mas encontrar um profissional capaz de liderar o processo de revisão projetual e
administrar a construção do plano proposto (REPS, 1997, p.57). Neste sentido, a realização de
concursos é um elemento importante do contexto de formação do pensamento urbanístico. No
Congresso Internacional de Arquitetos, organizado pelo Royal Institute of British Architects (RIBA)
em 1906, as questões que perpassavam a construção de obras públicas é levantada por ninguém
menos que o arquiteto vienense, Otto Wagner, numa palestra intitulada “A execução de obras
arquitetônicas municipais e governamentais por funcionários públicos”. A apresentação suscitou
calorosas discussões que ao final foi resumida numa moção votada por todos os participantes:
Figura 1
“Que no futuro, no interesse do corpo administrativo e do público, e no mais elevado
interesse da arquitetura, que os orgãos públicos, seja do Governo, da província ou da
municipalidade confiem trabalhos de arquitetura significativos somente a arquitetos
qualificados por meio de competições e afins” (WAGNER, 1906, p.125).
Ao final, um dos mais atuantes debatedores da mencionada discussão o americano G. O. Totten
forneceu um documento aprovado pelo Congresso dos Estados Unidos, em 20 de fevereiro de
1893 (modificado em 24 de fevereiro 1903), que concedia poderes ao Secretário do Tesouro para
viabilizar por meio de competições, arquitetos e projetos para a construção de prédios públicos. O
documento também publicado pelo RIBA continha em 27 artigos indicações detalhadas para a
criação, organização e execução de concursos públicos (WAGNER, 1906, p.109-128). Chamamos
à atenção para tal episódio porque serão as bases estabelecidas para o concurso de Canberra, e
seu respectivo regulamento, as circunstâncias determinantes para o resultado final da competição.
Também queremos frisar que o debate sobre o privilégio de projetar e construir obras públicas
aparece juntamente com a fundamentação da urbanística, exigindo desde então um
posicionamento dos institutos de representação profissional.
Uma competição marcada por disputas políticas
O artifício dos concursos, veementemente defendido pela maioria dos arquitetos em exercício,
abriu o campo de obras públicas para profissionais privados, ditos experientes e freqüentemente
de grande renome. Contudo, não amenizou as discussões políticas inerentes a tais competições e
não raras vezes contribuiu para acirrar o debate entre os diversos profissionais – engenheiros,
arquitetos, agrimensores – que almejavam assumir o domínio sobre o campo emergente do
planejamento urbano. Este foi o caso da disputa pelo projeto de Canberra. Seu principal ator foi o
então ministro de Home Affairs, King O’Malley, um americano de passado problemático que
emigrou para Austrália em 1888. A relação tempestuosa entre O’Malley e os Institutos de
Arquitetura da Austrália começou em 1910 quando a comissão por ele escolhida, formada por
Charles Robert Scrivener, David Miller, Percy Thomas Owen, todos funcionários públicos, não
abriu espaço para representantes destes institutos no processo decisório que estabeleceria as
condições e o regulamento da competição. A controvérsia girava em torno da forma de premiação,
passava pela composição da comissão julgadora e pelos procedimentos para a avaliação das
propostas. O valor dos prêmios oferecidos, £1750, £750 e £500 para o primeiro, segundo e
terceiro colocados respectivamente, foram considerados baixos e havia dúvidas se atrairiam
profissionais de calibre para a empreitada. Todavia, o esforço maior dos institutos centrava-se em
mudar a cláusula que dava a O’Malley a palavra final na proclamação do vencedor (REPS, 1997,
p.61-76).
A repercussão internacional, veiculada por jornais, periódicos e confirmada pelas entidades de
classe foi tamanha que motivou os arquitetos australianos a sugerir que o júri fosse formado por
uma tríade de arquitetos sendo um britânico, um americano e um australiano. Porém, a menor
resistência às regras do concurso por parte das entidades que representavam os engenheiros,
conseqüentemente promovia sua aproximação com o ministro O’Malley. Entre as rusgas trocadas
via imprensa, a posição oficial do governo sobre a formação do júri soou quase como uma
provocação: “A atual situação é esta: os arquitetos, que desempenham um papel menor no campo
de planejamento urbano, demandam trazer um arquiteto da Grã-Bretanha e outro da América para
formar a comissão julgadora dos projetos”. O’Malley prossegue: “Contudo, nós propomos
organizar uma comissão formada por um arquiteto australiano, um engenheiro australiano e um
agrimensor australiano – todos, membros de institutos australianos”. A situação deteriorou-se
definitivamente com a publicação do regulamento sem a devida anuência das entidades de classe
envolvidas, fato que levou o Institute of Architects of New South Wales (IANSW) e o Royal
Victorian Institute of Architects (RVIA) a notificarem seus membros a não tomarem parte da
competição. O veto é ratificado também pelo RIBA que em apoio às entidades australianas
estabelece sanções aos membros que enviassem inscrições ao concurso. Todo esse contexto
intrincado tem como reflexo a não participação de profissionais de renome como os britânicos, P.
Abercrombie, T. Adams e R. Unwin e dos americanos, J. Nolen e F. Olmsted Jr., entre outros
(REPS, 1997, p.76-85).
O resultado esperado pelo afastamento das entidades era o cancelamento do concurso mediante
a ausência de propostas, seja pela escassez, ou seja, pela qualidade dos projetos apresentados.
Todavia, o número de inscrições foi absolutamente surpreendente, 137 projetos enviados por
autores de 15 países. O júri anunciado por O’Malley em fevereiro de 1912 era formado John
Kirkpatrick, um arquiteto que anteriormente prestara serviços ao governo e estava afastado das
entidades que articularam o boicote à competição, James Alexander Smith, engenheiro mecânico
e presidente da Victoria Institute of Engineers e John Montgomery Coane, engenheiro civil e
agrimensor membro do Victoria Institute of Surveyors. Este último recebeu do ministro a indicação
para presidir os trabalhos que foram iniciados em 4 de março de 1912 (REPS, 1997, p.87-92).
Os critérios de avaliação utilizados pelos jurados foram:
1.
2.
3.
4.
5.
6.
7.
Atender aos regulamentos do concurso;
Apresentar soluções de drenagem pluvial, abastecimento e saneamento;
Prever área suficiente para parques e jardins para criação de águas ornamentais;
Proteger área residencial do tráfego pesado e afastá-la da área industrial;
Conferir grandiosidade;
Adaptar a proposta à topografia;
Conferir à proposta a dignidade e os signos inerentes a uma capital nacional.
O processo de seleção realizado em etapas escolheu 46 propostas que foram fotografadas e
levadas ao terreno da capital para uma avaliação detalhada. De volta a Melbourne, 11 projetos
foram selecionados e posteriormente reduzidos para o número de 8, contudo ao final de março e
com a lista já enxuta o júri não conseguiu alcançar unanimidade para anunciar a proposta
vencedora.
Frente ao desacordo, os jurados optaram por enviar relatórios denominados de
maioria, assinado por Kirkpatrick e Smith, e de minoria, avalizado por Coane. Em 4 de maio de
1912 os relatórios foram entregues a O’Malley ratificando assim o racha da comissão julgadora.
Segundo Kirkpatrick e Smith, a maioria, os vencedores deveriam ser: o americano Walter Griffin
em primeiro lugar, em segundo o finlandês Eliel Saarinen e em terceiro o francês Agache. Sob a
avaliação de Coane, presidente da mesa, porém minoria, os vencedores seriam; o primeiro prêmio
para a equipe do australiano Walter Scott Griffiths, o segundo para o americano Arthur Coleman
Comey e o terceiro para a equipe liderada pelo sueco Nils Otto Gellerstedt (AN IDEAL..., 1995).
Em 23 de maio de 1912 O’Malley chamou uma conferência de imprensa no Departamento de
Home Affairs e ratificou a decisão da maioria dos jurados ao anunciar o primeiro prêmio para o
arquiteto de Chicago. Entretanto, o caráter controvertido do ministro volta novamente à cena dos
acontecimentos, depois de uma primeira declaração que expressava satisfação e compromisso
com a decisão da maioria dos jurados, apenas dois dias depois, muda de idéia e declara a
confecção de um novo plano que aproveitaria as melhores propostas de cada participante.
Segundo palavras do próprio O’Malley, um parque poderia ser tirado de um, um bulevar de outro e
ainda uma praça de um terceiro, criando o que os profissionais especializados e a imprensa
qualificavam como uma verdadeira colcha de retalhos (AN IDEAL..., 1995).
Figura 2
Conferência de imprensa que anunciou os vencedores
do concurso de Canberra.
Em pé: Bros. Sampson (Argus), B. Cook (Herald), Sir
Keith Murdoch (Age), Whyte (S.M.H.).
Sentados: Bros. J.M. Coane, J.A. Smith, J. Kirkpatrick,
Clark, W. Bingle, P. Owen, Oldham, Doig, D.J. Peters,
Hon. King O'Malley
NATIONAL LIBRARY OF AUSTRALIA3
The birth of a continent's capitol, 1912.
Referência: nla.pic-an24381787
Disponível em:
http://nla.gov.au/apps/cdview?pi=nla.pic-an24381787.
Acesso em: 06/03/2010.
A responsabilidade pela elaboração do que ficou conhecido como Board Plan foi conferida a uma
comissão formada pelos leais e já citados funcionários de O’Malley – Miller, Owen e Scrivener –,
além de George J. Oakeshott, John Smith Murdoch e Thomas Hill. A apresentação do trabalho em
25 de novembro de 1912 trouxe ainda mais controvérsia para a questão já que muito pouco
lembrava os planos vencedores (SONNE, 2003, p.150).
A tempestade de protestos perdurou até a transição do governo para o Partido Liberal sob a
liderança de Joseph Cook e seu ministro de Home Affairs, William H. Kelly. Em outubro de 1913,
Kelly rejeitou o plano aprovado por seu predecessor e chamou Griffin para chefiar a construção da
Capital, todavia os antigos membros da comissão de O’Malley mantiveram-se em seus cargos. O
resultado foi uma série de dificuldades, boicotes e interferências enfrentados pelo arquiteto
americano durante todo o processo de elaboração de seu projeto executivo. Após várias
modificações o plano definitivo foi aprovado em julho de 1918, contudo Griffin retirou-se dos
trabalhos em dezembro de 1920 quando seu cargo foi rebaixado de diretor executivo para a
condição de consultor. O plano executado baseia-se em grande parte no trabalho de Griffin,
porém o desenvolvimento da cidade principalmente no que tange a estação ferroviária como
primeiro centro comercial e de circulação foi implementado a partir de idéias contrárias defendidas
pelos funcionários do governo (SONNE, 2003, p.151).
Canberra no contexto de difusão das idéias urbanísticas
Para além das contendas da política, a realização de um concurso da estatura de Canberra
naturalmente significou um campo de disputa entre as grandes escolas de planejamento urbano
que buscavam reconhecimento e afirmação. De certa forma, tratava-se também da concorrência
entre idéias que emergiram e amadureceram em solo europeu e da rápida expansão do
pensamento americano sobre as ações sobre o tecido urbano.
3
As fotografias e mapas disponibilizados online pela National Library of Australia estão livres de direitos autorais,
contudo sua publicação somente é permitida mediante a citação do nome do objeto, coleção (se houver) e referência de
consulta.
O pensamento europeu: Howard, Sitte, Unwin e a Beaux Art
O ideário cidade-jardim foi quase unanimidade entre as propostas apresentadas para o concurso.
A rápida aceitação do livro To-morrow parece inspirar um conjunto de proposições que desde
1901 pleiteavam uma organização urbana radial. Talvez outro elemento de identificação a elevar o
brio nacional tenha sido a cidade de Adelaide, capital do estado de South Australia, citada por
Howard (2002, p.187) “como uma alternativa brilhante mas desapercebida”.
Figura 3
Diagrama que ilustra a organização espacial de
uma cidade-jardim (HOWARD,2002, p.114).
Figura 4
Proposta de C. St. John David publicada em 2 de
fevereiro de 1901 (REPS,1997, p.15).
Figura 5
Diagrama para Canberra elaborado por Alexander
Oliver em 1901 (REPS,1997, p.14).
Figura 6
Esquema de John Sulman para Canberra publicado
no Royal Institute of British Architects Journal em 28
de agosto de 1909 (REPS, 1997, p.13).
Interessa-nos em especial mencionar a organização de setores de uso residencial de algumas
propostas para o concurso de Canberra, para tanto, a figura de Raymond Unwin é fundamental. O
urbanista que materializou os esquemas howardianos advoga, na comunicação, The planning of
residential districts of towns, a necessidade urgente da associação entre ordem e beleza. Essa
tarefa seria eminentemente de responsabilidade do arquiteto, já que nenhum outro profissional
teria a capacidade de combinar habilidade técnica e treinamento artístico para lançar planos
urbanos orientados para objetivos práticos e simultaneamente manter em mente o quadro do
resultado final do trabalho. Unwin (1906, p.417-425) lança mão de alguns princípios inspirados no
trabalho de Camillo Sitte4, contudo, avisadamente adaptados à cidade moderna, entre estes a
necessidade de definição de limites das áreas de expansão, tais limitações poderiam ser ruas
especialmente trabalhadas para esta finalidade, bulevares, arvoredos ou parques.
Figura 7
“Garden City Tenants. Cottages on the Bird Hill Estate”.
Letchworth.
Desenho apresentado por Unwin (1906, p.424) para
demonstrar as vantagens da utilização de elemento
limitadores no planejamento de áreas em expansão.
Nesta
palestra
proferida
em
1906
Unwin
aproxima-se
dos
princípios
sittianos
e
concomitantemente impõe limites que abrem espaço para traçados ortogonais:
Em todo planejamento urbano é importante entender a diferença entre beleza do projeto e
beleza natural. Sem abraçar a empreitada difícil de definir beleza, é de consenso que ambos os
tipos de beleza nascem em grande parte da ordem, adaptação ao local, propósito e obediência
à lei [...]. A forma de uma árvore é resultado de um equilíbrio de forças fluídas; são forças que
são o que são – a forma de uma árvore não poderia ser outra coisa – inconscientemente
reconhecemos isto. O mesmo aplica-se para a curva de um rio ou ao pico de montanha. Este
tipo de beleza existe para nossa reverência, para o nosso cuidado e desta podemos buscar
inspiração, contudo, não podemos projetá-la, muito mais simples e menos complexas são as
poucas leis que obedecemos no traçado [...] Se não podemos criar beleza natural, podemos ao
menos ser cuidadosos em não destruí-la, e melhor, incorporá-la de todas as formas possíveis
ao nosso projeto. Devemos abertamente aceitar qualquer oportunidade de traçar a beleza de
linhas curvas; mas igualmente não devemos envergonhar-nos de aceitar a linha reta da régua
e do quadrado quando nenhuma outra razão válida sugerir o contrário (UNWIN, 1906, p.425,
tradução nossa).
Entre os participantes classificados pela comissão julgadora, as propostas que declararam sua
filiação ao pensamento sittiano foram, obviamente, as de ascendência germânica/escandinava,
representadas pelo engenheiro sueco Gellerstedt e pelo arquiteto norueguês Saarinen.
Imaginamos inclusive que Gellerstedt, que participou do citado congresso, tenha assistido à
rodada de conferências, Subject VII – Planning o Streets and Open Spaces, que além de Unwin
reuniu comunicações de J. Stübben, Charles Buls e Augustin Rey. Sua proposta foi a única a
apresentar referências bibliográficas que esclarecem as correntes de planejamento a influenciar
seu trabalho. Assim, além dos já famosos To-morrow, Town Planning in Practice e Der
4
Arquiteto austríaco que polemizou o projeto de regularização de Viena elaborado por Otto Wagner no período de
1892/1893. Um crítico vigoroso da intervenção urbana pautada por instrumentos puramente técnicos em detrimento da
arte e conseqüentemente do desprezo ao valor cultural dos assentamentos vagarosamente construídos pela equação
uso/tempo. Ver A construção das cidades segundo seus princípios artísticos, Sitte (1992).
Stadtenbau..., encontramos também, publicações das associações francesa e inglesa em prol das
cidades-jardim, Inigo Triggs, o próprio Stübben entre outros autores germânicos (REPS, 2002).
Figura 8
Detalhe da proposta de Gellerstedt que mostra a
organização viária dos private allotments sugeridos
para região sudoeste da cidade.
NATIONAL LIBRARY OF AUSTRALIA.
Federal Capital Design Competition premiated
designs. Cartographic material.
Referência: MAP G8984.C3S1 FCDC 1913 litho.
Disponível em: http://nla.gov.au/nla.map-gmod63
Acesso: 20/01/2010.
Figura 9
Perspectivas apresentadas por Gellersted. O
engenheiro indica a necessidade de
alternancia entre espaços abertos e fechados.
Na praça da estação à direita, assim como
nos edifícios do parlamento, ele sugere a
utilização de arcadas que também serviriam
como terraços no primeiro piso destas
construções (REPS, 1997, p.189).
Figura 10
Pespectiva do parlamento elaborada por Saarinen.
Conforme os preceitos sittianos, a praça circular seria
contida por uma massa edificada.
NATIONAL LIBRARY OF AUSTRALIA.
Eliel Saarinen's perspective view of Parliament
House. Part of: Eric Milton Nicholls collection.
Referência: nla.pic-vn3603884-s34
Disponível em: http://nla.gov.au/nla.pic-vn3603884s34. Acesso: 20/01/2010.
Fechando o quadro das correntes européias temos Hubert Donat Alfred Agache como
representante da vertente clássica do urbanismo na competição de 1912. O arquiteto, que em
1905 titulou-se pela Ecole des Beaux-Arts de Paris, enfatizou a simetria no sistema viário central
marcado por um eixo monumental de características barrocas. Dentre as propostas escolhidas
pela comissão julgadora foi a única a destinar um artigo de seu memorial para os aspectos
monumentais. Agache apresenta seu projeto pelos olhos de um expectador situado ao lado do
monumento comemorativo no centro do setor político: “olhando a cidade nas direções oeste-norteleste sua visão abraçaria um panorama que vale a pena ser descrito”. A sua esquerda estaria a
silhueta do Parlamento e desviando o olhar para a direita os edifícios administrativos dispostos em
forma circular, ainda mais à direita estaria o centro de esportes e a estação aerostática que
abrigaria aviões, balões e dirigíveis. A crítica australiana não acolheu seu projeto como funcional,
contudo foi unânime em concordar que as 18 pranchas apresentadas eram esplêndidas (REPS,
1997, 110-113).
Figura 11
Detalhe da proposta de Agache.
NATIONAL LIBRARY OF AUSTRALIA.
The Federal Capital of Australia,
enumeration
of
public
buildings.
Cartographic material.
Referência:
MAP G8984.C3S1 FCDC no. 4 1912
Disponível em:
http://nla.gov.au/apps/cdview?pi=nla.mapgmod67-e.
Acesso em: 08/03/2010.
O City Beautiful e a contrapartida americana
Seguindo a linha de adaptação à topografia do sítio, Arthur C. Comey, arquiteto formado em
Havard sob a influência Frederick L. Olmested Jr., antecipa parcialmente o conceito de unidade de
vizinhança que se tornará prática importante no planejamento urbano americano após a
publicação de Clarence Perry em 1923. Neste sentido, os setores residenciais bem delimitados
possuem uma estrutura de benfeitorias como escola, parque e lazer (REPS, 1997, p.160-161).
Contudo, a contrapartida americana frente às fundamentadas correntes urbanísticas apresentadas
pelos europeus vem do vencedor Walter B. Griffin que assina sua proposta em parceria com sua
esposa Marion Mahony Griffin, uma das primeiras mulheres a titular-se arquiteta pelo MIT em
1894. O projeto dos Griffins apesar de filiar-se ao City Beautiful, inovou ao apresentar uma
estrutura marcada pela articulação de um sistema multinuclear dominado por eixos organizadores
que resultam em um processo de re-ordenamento da retícula. O casal mantém uma estrutura
central direcional, formalmente unívoca, porém assume um caráter pouco burnhamiano5 ao
superar as velhas idéias sobre a primazia dos estilos clássicos. Trata-se de uma opção
geométrica que permite grande variedade de tipologias em planta – octógonos, hexágonos,
triângulos – que parecem livres, e simultaneamente, são rigorosamente controlados.
5
Menção a Daniel Burnham defensor do City Beautiful, foi diretor de trabalhos na Exposição de Chicago em 1893 e
projetou vários edifícios significativos do movimento, entre esses, o Flatiron em Nova York e a Union Station na
reformulação urbana de Washington em 1901.
Os
eixos
que
se
entrecruzam
perpendicularmente têm um papel territorial
concreto que os nomeia, o Eixo da Terra que
tem início no Mount Ainslie e transpassa a
cidade de nordeste a sudoeste e o Eixo da
Água, que em perpendicular começa na
elevação Black Mountain e segue paralelo ao
Rio Molonglo no sentido noroeste-sudeste. O
primeiro é a bissetriz do triângulo eqüilátero
destinado ao agrupamento governamental que
tem em seu vértice o capitólio. O segundo não
é um eixo compositivo, e sim o limite sobre a
água de toda a zona destinada aos edifícios
administrativos.
associados
aos
Entretanto,
elementos
estes
naturais
eixos
tão
visíveis no projeto são quase imperceptíveis
na cidade, de certa forma quebrando a
estrutura hierárquica tão característica do City
Beautiful. (MANIERI-ELIA, 2003, p.129-130).
Figura 12
Terra e Água, eixos estruturantes projetados por
Griffin.
NATIONAL LIBRARY OF AUSTRALIA.
Canberra. Cartographic material.
Referência: MAP G8984.C3S1 Gri 1916-1924
Disponível em:
http://nla.gov.au/nla.map-gmod41
Acesso: 20/01/2010.
Figura 13
Articulação viária dos centros propostos por Griffin. Mapa
elaborado em 1927 a partir do projeto entregue por Griffin
em 1918.
NATIONAL LIBRARY OF AUSTRALIA.
Canberra. Cartographic material.
Referência: MAP G8984.C3E635 1927
Disponível em: http://nla.gov.au/apps/cdview?pi=nla.mapgmod22-s1-v
Acesso: 20/01/2010.
O ideal cívico que o movimento City Beautiful articulou no projeto de Washington são
inteligentemente retrabalhados por Griffin como a busca pela forma espacial adequada para uma
sociedade democrática que poderia ser obtida na disposição simbólica dos edifícios e no próprio
desenho da cidade. Enquanto os edifícios do Parlamento, do Legislativo e do Judiciário foram
organizados de maneira a permitir uma leitura seqüencial dos três poderes que constituem um
estado democrático, a própria implantação do projeto remetia à Agora como ideal grego de ordem
pública. Griffin adotou a metáfora teatral utilizada no edital da competição, contudo adicionou a
esta uma nova interpretação: as encostas seriam o auditório e a arena a bacia do rio. As
elevações ao sul seriam o palco terraçado que proporcionariam a situação monumental para as
estruturas de governo definidas com precisão, marcando a paisagem em fileiras até o ponto mais
alto do monte que abrigaria o Capitólio, as elevações do Mugga Mugga, Red Hill e Blue Mountains
fechariam a perspectiva transformada em contexto cênico. Diferentemente de outros projetos, o
pico do distrito de governo não seria ocupado pelo parlamento, e sim pelo capitólio com funções
que privilegiavam o abrigo de arquivos e a celebração da identidade australiana. Esse edifício
puramente simbólico não foi listado como necessário, mas Griffin alcançou dois objetivos usandoo como conceito: foi capaz de ressaltar as funções de governo de forma didática ao mesmo tempo
em que ofereceu um elemento festivo para os cidadãos e representantes públicos.
A idéia de cidade democrática explorada por Griffin não deixa de ser utópica, contudo cabe
ressaltar seu mérito ao superar o caráter eminentemente técnico utilizado na avaliação dos
projetos. Neste caso, a utopia superou a técnica e se materializou no racha da comissão julgadora
do concurso.
Figura 14
Vista do Monte Ainslie. Desenho de Marion Mahony Griffin
NATIONAL LIBRARY OF AUSTRALIA.
Commonwealth of Australia Federal Capital Competition: view from summit of Mount Ainslie.
Picture. Part of Eric Milton Nicholls collection
Referência: nla.pic-vn4189326
Disponível em: nla.gov.au/apps/cdview?pi=nla.pic-vn4189326&referercode=cat. Acesso: 08/03/2010.
Considerações finais: visões de uma cidade moderna
Fechando nossas concisas observações sobre o concurso de 1912 queremos salientar um
elemento comum que atravessa o conjunto de propostas ao mesmo tempo em que confere sua
coesão ao contexto. Falamos de sincronicidade. Enquanto o pensamento urbanístico perguntavase como seria a cidade do século XX, as propostas de Canberra estampavam em largas pranchas
universos de interpretações e possibilidades. Para além de seu valor para história nacional
australiana, o conjunto documental produzido por esse evento, hoje em grande parte sob custódia
do National Archives of Australia e National Library of Australia6, testemunha a diversidade, as
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Coleções parcialmente disponíveis nos seguintes endereços http://www.naa.gov.au/ e http://www.nla.gov.au/.
maneiras de apreensão e as reflexões que atuaram na configuração do campo das teorias e das
práticas sobre o tecido urbano. Antecipam uma modernidade atenta à cidade, sua forma, sua
circulação, sua salubridade e especialmente à beleza de seu conjunto. Antecipações que para o
bem e para mal acabam por concretizar-se no decorrer do século.
Figura 15
Perspectiva apresentada pelo grupo australiano liderado por Walter Scott Griffiths (REPS, 1997, p.121).
Nela podemos ler a interpretação de modernidade como sobreposição de tempos para tanto os autores
aproximam o aço da ponte suspensa à encorpada estrutura da ponte em arcos. A interpretação é correta,
porém é duvidosa sua utilização num conjunto levantado ex-nihilo.
Figura 16
Perspectiva apresentada por Agache (REPS, 1997, p.111).
A visão do francês contemporâneo ao vôo de Santos Dumont enxerga a modernidade na técnica das
máquinas que voavam. Para tanto, sua Canberra previa uma Estação Aerostática centralmente localizada
num momento em que os vôos comerciais eram uma possibilidade distante.
Referências
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