O CÔMICO MORALIZANTE EM “O JUIZ DE PAZ DA ROÇA”

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O CÔMICO MORALIZANTE EM “O JUIZ DE PAZ DA ROÇA”
II Colóquio Filosofia e Literatura: fronteiras
de 18 a 21 de outubro de 2010
O CÔMICO MORALIZANTE EM “O JUIZ DE PAZ DA ROÇA” DE
MARTINS PENA
Ana Paula Rocha V. Pereira∗
Resumo: Escritor do século XIX, Luís Carlos Martins Pena (1815-1848) insere-se no cânone
literário brasileiro como um dos principais representantes do Teatro Romântico, sendo
considerado o fundador da comédia de costumes. Em suas peças percebe-se um olhar atento
sobre as contradições de sua época, sobre os vícios e as virtudes dos homens de seu tempo que
são retratados de forma deformantes através da acentuação de aspectos bons, pitorescos e
engraçados ou de atitudes reprováveis, negativas a serem refutadas por meio da
ridicularização. No trabalho que será apresentado refletiremos, então, sobre o gênero cômico
em uma das obras de Martins Pena, “O Juiz de Paz da Roça” (1833), a partir dos estudos
teóricos do filósofo francês Henri Bergson.
Palavras-chave: Martins Pena, gênero cômico, Bergson.
A investigação a respeito do riso é desenvolvida por muitos teóricos a
partir daquilo que provoca tal ato, isto é, a partir da produção do cômico,
produção esta que se manifesta nas mais diversas expressões artísticas. Neste
trabalho, direcionaremos nossos estudos para a análise do gênero cômico
presente na obra teatral “O Juiz de Paz da Roça” (1833), do comediógrafo
brasileiro Luís Carlos Martins Pena fundamentando tal análise nas teorias
desenvolvidas por Bergson (2007) a respeito do cômico. Vale ressaltar que este
trabalho, “O cômico moralizante em O Juiz de Paz da Roça”, resulta dos estudos
que vem sendo realizados no projeto de iniciação científica “O Cômico na
literatura brasileira” orientado pela professora Drª. Jacqueline Ramos. Dentro
desse projeto pesquisamos, investigamos, levantamos dados sobre os autores e
obras cômicas do período Romântico. Em nossa pesquisa identificamos que
quatorze escritores do período produziram obras cômicas, autores como:
Graduanda do curso de letras da Universidade Federal de Sergipe (UFS), bolsista CNPq do Programa de
Iniciação Científica.
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Gonçalves Dias, Gonçalves de Magalhães, Araujo Porto Alegre, Bernardo
Guimarães, com seus poemas erótico-cômicos como o “elixir do Pajé”,
Machado de Assis, Martins Pena, dentre outros. Dado significativo da pesquisa
é que grande parte das obras cômicas produzidas no período romântico são
peças de teatro. Só Martins Pena, que conta com vinte e oito produções teatrais,
produziu vinte e duas peças cômicas, fato que, aliado a importância desse autor
no que concerne a implementação do teatro nacional, nos motivou a selecionar
três peças suas para analisarmos a função e os procedimentos cômicos
nelas presentes.
Assim, as obras selecionadas para uma análise mais profunda do aspecto
cômico foram “O Juiz de Paz da Roça” de 1833, “O Judas em Sábado de
Aleluia” de 1844 e “O Noviço” de 1845. Na analise dessas peças percebemos
que elas apresentam um cunho moralizante, aspecto que vai ao encontro dos
estudos realizados pelo filosofo francês Henri Bergson.
Bergson (1859-1941), em O riso: ensaio sobre a significação da comicidade
(2007), reúne três artigos que expõem minuciosamente os mecanismos de
produção da comicidade, mecanismos estes que servem ao aperfeiçoamento do
homem como ser social devidamente integrado a seu meio. Para este autor, o
riso tem uma significação social que cumpre o papel conservador de corrigir as
falhas de caráter dos indivíduos que estejam prejudicando o equilíbrio da
sociedade. Desse modo, a teoria de Bergson sobre o riso apóia-se na máxima
latina: Ridendo castigat mores (rindo corrigem-se os costumes).
Em O Riso, Bergson enfatiza que o cômico é um fenômeno
exclusivamente humano e que se dirige à inteligência pura. Essa teoria
intelectualista pressupõe que um aspecto fundamental do efeito cômico reside
no fato de que as emoções são um obstáculo à produção da comicidade. Dessa
forma, o riso só é possível a partir de “uma anestesia momentânea do coração”
(1987: 4). A partir dessa observação e da função social que o riso apresenta
Bergson, desenvolvendo e demonstrando suas idéias, esboça os procedimentos
de obtenção do cômico, procedimentos estes que têm como princípio essencial a
interferência do mecânico no vivo. Bergson então categoriza os tipos de cômico
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da seguinte maneira: cômico das formas, cômico dos movimentos, cômico de situação,
cômico de palavras e cômico de caráter.
O cômico das formas consiste em um mecanismo de obtenção do riso a
partir da rigidez fisionômica, isto é, a partir da idéia que se tem de algo preso a
uma forma. Nesse sentido, toda a vida moral de um indivíduo parece restringirse a certa imobilidade de caracteres do corpo. Assim é que a caricatura, a
exageração de traços distintivos das pessoas, representa um efeito cômico. O
automatismo, a rigidez, um hábito contraído e mantido torna uma fisionomia
engraçada. Mas esse efeito cômico, segundo Bergson, “ganha intensidade
quando podemos vincular tais características a uma causa profunda, a certa
distração fundamental da pessoa, como se a alma se tivesse deixado fascinar,
hipnotizar, pela materialidade de uma ação simples” (1987: 19). Essa distração
do sujeito para consigo produz uma imagem de alguém absorvido na
materialidade de uma ocupação mecânica, como algo sempre igual, imutável,
que não se renova diante da vida. E o riso funciona como um castigo para essa
imobilidade, pois o que se pretende é que as pessoas estejam em constante
vigilância para com as suas condutas, evitando a ridicularização e o
enrijecimento para a vida social.
No cômico dos movimentos o risível é extraído das atitudes, dos gestos, dos
movimentos reproduzidos de forma repetitiva, como uma simples mecânica. A
esse tipo de cômico associa-se um artifício comum da comédia, o qüiproquó. Já
no cômico de situação evidencia-se a repetição insistente de determinados
acontecimentos; a inversão dos papéis de certos personagens motivada por uma
dada situação ou, ainda, a interferência das séries em que uma situação torna-se
cômica quando pertence simultaneamente a dois acontecimentos independentes
entre si levando-se a diferentes interpretações, isto é, uma mesma situação
apresenta ao mesmo tempo dois sentidos diferentes, um que seria o sentido real
e o outro que seria ocasionado pelo mal-entendido.
Quanto à linguagem, Bergson enfatiza que a maioria dos efeitos cômicos
são produzidos por meio dessa particularidade da espécie humana. Em
essência, o cômico de palavras é obtido a partir dos processos de inversão –
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verificado com freqüência nos chistes, em que se joga com o sentido da frase a
partir da inversão de certa idéia, como no exemplo: “por que o senhor joga a
sujeira do seu cachimbo no meu terraço? (...) Por que o senhor põe o seu terraço
debaixo do meu cachimbo?” (BERGSON, 1987: 89) –; de interferência, cujo um dos
meios é o trocadilho, e de transposição inseridos à linguagem. A transposição
apresenta caráter mais profundo que os outros dois processos. Ela é obtida,
segundo Bergson, transpondo-se “para outro tom a expressão natural de uma
idéia” (1987: 92).
O último mecanismo apresentado por Henri Bergson é a comicidade de
caráter considerada pelo autor como a parte mais importante de suas análises. A
essência desse procedimento cômico está na não integração da personagem à
sociedade, no seu desvio comportamental, na sua inflexibilidade diante da vida
cabendo à comédia papel fundamental no reajuste social dos indivíduos. Para
Bergson, o riso não é um prazer desinteressado. A ele subjaz a intenção de
humilhar, de corrigir comportamentos desviados. O riso, assim, tem uma
função moralizadora que age sobre os comportamentos viciosos da sociedade.
Logo, para este teórico, o riso funciona como um mecanismo de
repressão que cumpre a tarefa de reajustar os indivíduos à sociedade. O cômico,
então, é definido como uma manifestação negativa que o riso tem por tarefa
corrigir e essa função coercitiva atribuída ao riso será perquirida, neste trabalho,
a partir da análise da primeira peça do teatrólogo Martins Pena, O Juiz de Paz da
Roça.
Luís Carlos Martins Pena (1815-1848) insere-se no cânone literário
brasileiro como um dos principais representantes do Teatro Romântico. Ao lado
de nomes como João Caetano – grande ator dramático e empresário teatral – e
Gonçalves de Magalhães, Martins Pena esforça-se, segundo Afrânio Coutinho,
“pela criação de fato do teatro brasileiro” (2004: 59) a partir da elaboração de
novos textos caracterizados por temas locais, uma vez que as peças teatrais
criadas nesse período no Brasil calcavam-se em traduções ou adaptações de
composições estrangeiras.
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No que concerne ao desenvolvimento do teatro no Brasil, vale ressaltar
que esse gênero nasceu, de acordo com Décio de Almeida Prado, “à sombra da
religião católica” (1999: 19), com o empenho dos jesuítas, no século XVI, em
catequizar os índios. O teatro nesse período tinha, portanto, um caráter
pedagógico sendo o padre José de Anchieta o nome de maior destaque dessa
época. No século XVII verifica-se o declínio do teatro empreendido pelos
jesuítas e sua realização passa a depender de ocasiões festivas – religiosas ou
cívicas – para serem realizadas. Mas, no século seguinte, a situação do teatro
começa a melhorar. Em 1705 são impressos os primeiros textos teatrais – duas
peças redigidas em espanhol por Manuel Botelho de Oliveira –, e na segunda
metade do século dezoito as peças de teatro passam a ser representadas com
maior freqüência. A Ópera italiana surge como novo gênero, novidade que
vinha de Portugal. Entre 1760 e 1795 na Bahia, no Rio de Janeiro, em Recife, São
Paulo e Porto Alegre são construídos teatros que serão conhecidos como Casa
da Ópera. Com a vinda da família real para o Brasil, no início do século
dezenove, a cultura do teatro se fortalece. Surgem companhias teatrais, sendo a
primeira, realmente brasileira, dirigida por João Caetano que “levou aos palcos
a primeira tragédia e a primeira comédia nacional: Antonio José ou o Poeta e a
Inquisição, de Gonçalves de Magalhães, e O Juiz de Paz da Roça, de Martins Pena”
(PRADO, 1999: 40). Integradas ao Romantismo, as comédias de costumes de
Martins Pena eram bem recebidas pelo público, fato que contribui para a
consolidação do teatro.
O Romantismo, que cronologicamente inicia-se em 1836, é marcado pela
liberdade criadora e individual do artista. Ligado ao movimento político da
época, a Independência do Brasil, esse gênero literário se revestiu de
características próprias numa necessidade de construir uma literatura
plenamente nacional, uma literatura que expressasse os anseios de liberdade e
identidade da nova nação. Esse período, segundo Roncari, representa “o
período mais importante de tomada de consciência da nossa particularidade, ou
seja, de que não podíamos mais continuar considerando-nos europeus ou
portugueses, tal qual faziam os colonos no tempo do domínio português” (1995:
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278). Nessa perspectiva, as comédias de Martins Pena inserem-se no desejo de
renovação dos temas reproduzidos nos palcos.
Assim, o empenho de Pena em renovar o teatro brasileiro vai além da
mera reprodução de uma imagem nacional com contornos ufanistas que se
vinha desenvolvendo na literatura. De acordo com Bosi, os assuntos tratados
por Pena em suas peças “nos dá um quadro mais vivo e corrente do que todos
os romances de Macedo” (1994: 149), autor ficcional romântico de “A
Moreninha” (1844). O que Bosi nos diz é que as obras de Martins Pena são
marcadas por uma realidade objetiva embasada em fatos sociais vigentes sem
os exageros das idealizações românticas da época. E essa realidade objetiva será
apresentada por Martins Pena pelo viés da comicidade. De acordo com Décio
de Almeida Prado, o teatro de Pena “revela um pendor quase jornalístico pelos
fatos do dia, assinalando em chave cômica o que ia sucedendo de novo na
atividade brasileira cotidiana” (1999: 57).
Destarte, por meio do cômico, Martins Pena expõe aspectos da realidade
carioca e suas peças adquirem uma perspectiva crítica e generalizante levando à
reflexão certas condutas humanas. Em Pena, o riso, na medida em que mostra
as falhas comportamentais e as ridiculariza, não só desvela um caráter negativo
como também cobra a reabilitação desse caráter corrompido, ou seja, o reajuste
do indivíduo à sociedade. Observemos como isso se dá na peça “O Juiz de Paz
da Roça”.
“O Juiz de Paz da Roça” é uma comédia em um ato cujo enredo é
construído a partir de um dos mecanismos mais simples utilizados no teatro, o
qüiproquó, situação cômica proveniente de equívocos, confusões. Dividindo-se
essa peça em dois núcleos, temos o núcleo integrado pela família de Manuel
João e o núcleo composto, principalmente, pelo Juiz de Paz e, a interrelação
desses dois centros, produzirá um expediente típico da dramaturgia popular, a
surpresa, provocado por uma conjuntura de acontecimentos desencontrados,
ou seja, os qüiproquós. E é através desse caminho, do qüiproquó à surpresa,
que o enredo dessa peça se estruturará.
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Vejamos como isso acontece analisando o enredo da peça: José da
Fonseca, noivo de Aninha, vai à roça fugido da convocação militar, ele não
queria
exercer
suas
funções
de
cidadão
na
Revolução
Farroupilha.
Coincidentemente é Manuel João, pai de Aninha, o encarregado, pelo Juiz de
Paz, de conduzir o recruta ao serviço militar. Manuel João não sabia do namoro
da filha, mas, devido a coincidência ocorrida logo tomara conhecimento do fato.
Na trajetória desse enredo, Martins Pena abordará com humor, e de forma
simples, as peculiaridades da gente da roça e os desmandos de um Juiz de Paz.
E, por meio da representação da linguagem cotidiana dos indivíduos
representados na peça, do comportamento dos personagens, seus modos de
sentir e agir, Pena revelará certos aspectos da realidade da sociedade de meados
do século XIX, problematizando assuntos reais vigentes como a aplicação da
justiça nas províncias remotas do Segundo Império por meio dos abusos de
autoridade; a escravidão; o recrutamento obrigatório para atuar na Revolução
Farroupilha; o casamento arranjado; a idealização da capital que pretendia se
equiparar à Europa, enfim, toda uma série de aspectos sociais sérios abordados
pelo viés da comicidade.
Em suma “O Juiz de Paz da Roça” é uma peça cômica cujas cenas giram
em torno de uma família interiorana – a família de Manuel João – e seu universo
de valores e, do cotidiano da figura do Juiz de Paz, pelo qual poderemos
verificar o rebaixamento que se quer imprimir a este homem, pois o “nobre”
papel do juiz é reduzido à resolução de picuinhas cotidianas e esdrúxulos
protestos que lhes são apresentados pelos sitiantes.
Para a obtenção do efeito cômico desejado, Martins Pena utiliza-se de
recursos que são abordados por Bergson em seu estudo sobre a comicidade. Um
desses recursos é a comicidade de palavras, um procedimento cômico que
proporciona boas gargalhadas a partir do jogo ambíguo de alguns vocábulos,
como podemos verificar na cena XI em que um sitiante apresenta sua demanda
ao juiz argumentando da seguinte forma:
Ora, acontecendo ter a égua de minha mulher um filho, o meu
vizinho José da Silva diz que é dele, só porque o dito filho da égua
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de minha mulher saiu malhado como o seu cavalo. Ora, como os
filhos pertencem às mães, e a prova disto é que a minha escrava
Maria tem um filho que é meu, peço a vossa senhoria mande o dito
meu vizinho entregar-me o filho da égua que é de minha mulher
(PENA, 2010: 12).
Além do trocadilho, jogo de palavras apoiado no duplo sentido, outro
mecanismo de obtenção do riso presente em “O Juiz de Paz da Roça” é a
comicidade das formas, que em essência resulta da imobilidade fisionômica. O
riso, então, é obtido a partir da idéia que se tem de algo rígido, congelado, preso
a uma forma, como o rosto do palhaço preso a traços inconfundíveis que o
caricaturizam. Assim, a caricatura participa desse tipo de comicidade que
resulta da reprodução deformada de algo ou da acentuação de aspectos típicos
de determinada pessoa ou coisa. E, os tipos humanos criados por Martins Pena
são geralmente caricaturizados, são personagens que na sua particularidade
representam um tipo generalizado. Na peça teatral em questão, podemos
verificar tais personagens. O personagem Manuel João representa o típico
homem da roça e é facilmente identificado como esse tipo, na cena IV, a partir
da descrição acentuada de suas vestimentas – “com uma enxada no ombro,
vestido de calça de ganga azul, com uma das pernas arregaçadas, japona de
baeta azul e descalço”.
Outro traço marcante que representa certa caricaturização é a não
identificação do Juiz de Paz por um nome próprio, como se a partir dessa
supressão o autor enfocasse o desvio de comportamento dos juízes, e não de um
juiz especificamente, que atuam de forma arbitrária. Essa idéia é reforçada com
a rubrica que detalha os trajes do Juiz de Paz – “Entra o Juiz de Paz vestido de
calça branca, rodaque de riscado, chinelas verdes e sem gravata”. Aqui parece
que, descrevendo-se os trajes, procura-se colocar em relevo a moral. Assim,
podemos dizer que tal descrição revela a caricaturização do magistrado que faz
pouco caso da sua profissão – essa asserção será corroborada com o transcorrer
da peça em que o juiz revelará suas atitudes ilícitas – e conseqüentemente dos
requerentes que necessitam da sua intervenção jurídica. O juiz, então, parece
preencher uma moldura pronta, desvelando um caráter contrastivo entre a
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forma que se apresenta e o comportamento que deveria apresentar. Quanto a
isso, Bergson nos diz que “é cômico todo incidente que chame nossa atenção
para o físico de uma pessoa quando o que está em questão é o moral” (2007: 38).
Na rubrica acima não temos uma descrição do físico, porém, em se tratando de
um Juiz de Paz percebemos que as vestimentas estão intrinsecamente
associadas à moral de um representante de uma instituição pública, donde
pressupõe, como já foi dito, a intenção do autor da peça em revelar o descaso do
Juiz para com a sua profissão. Não temos então um ridículo do físico, mas um
ridículo do traje atrelado ao caráter profissional.
No decorrer do enredo a imagem intolerante e corrupta do Juiz será
corroborada, como na cena em que um requerente questiona a postura do juiz
dizendo assim: “Vossa senhoria não pode prender-me à toa; a Constituição não
manda. E o juiz retruca: “A Constituição!... Está bem!... Eu, o juiz de Paz, hei por
bem derrogar a Constituição! Senhor Escrivão, tome termo que a Constituição
está derrogada, e mande-me prender este homem”. Em outra cena temos o juiz
com três galinhas nas mãos dizendo ao escrivão que ao menos com a visita de
dona Josefa Joaquina, uma de suas requerentes, lucrou donde verificamos certa
postura corrupta do juiz que aceita presentinhos de seus requerentes, o que
provavelmente deve influenciá-lo em suas decisões judiciais. E assim, por meio
da caricaturização e da acentuação de atitudes ilícitas, Martins Pena lança uma
crítica a esse desvio comportamental, moralmente inadmissível, para a
construção de uma sociedade justa, sendo sua ridicularização, como diria
Bergson, o meio pelo qual se pode castigar tal desvio.
Esses desvios comportamentais, que o filósofo francês Henri Bergson
coloca como vícios, representam um automatismo fácil dos hábitos adquiridos
levando o corpo, o espírito e o caráter a uma rigidez social, rigidez que
direciona os indivíduos a atuarem de forma mecanizada, como coisas fadadas a
executarem
funções,
ações
sempre
repetidas
estagnando,
assim,
o
aperfeiçoamento dos indivíduos e, conseqüentemente, da sociedade. Mas,
através do riso, que tem como função desvelar os vícios para corrigi-los, os
indivíduos colocam-se vigilantes quanto a sua postura na vida e na sociedade,
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postura que deve sempre estar voltada para uma tensão e uma elasticidade
constantes, premissa que também é colocada em relevo por Bergson na sua
análise da comicidade dos movimentos.
Na comicidade dos movimentos, o risível é extraído dos movimentos
mecânicos com caráter repetitivo a partir de artifícios usuais da comédia como
“a repetição periódica de uma palavra ou de uma cena, a inversão simétrica dos
papéis, o desenvolvimento geométrico dos qüiproquós” (2007: 26-7). Em “O
Juiz de Paz da Roça” nas cenas mais cômicas, as quais giram em torno do
personagem que dá nome ao título da peça, podemos observar o artifício da
repetição de cena. A partir da cena IX, dá-se início a uma seqüência de
movimentos que parecem repetitivos. Em casa do Juiz de Paz pessoas entram e
saem com o intuito de resolverem seus problemas. Na cena, XI Martins Pena
também explora esse mecanismo fonte fácil de riso – Senhor Tomás e senhor
Sampaio, em audiência com o Juiz, disputando a guarda de um leitão agarram
ambos no animal puxando-o cada um para o seu lado em movimentos
mecânicos de vai-e-vem remetendo-nos à imagem de um boneco de mola que
se distende e se contrai em repetições contínuas como uma coisa mecanizada,
mecanização que, representando um desvio de comportamento, – que cena
mais ridícula a disputa por um porco na peça em questão – deve ser combatida.
Todos esses mecanismos utilizados por Martins Pena dão o tom da
comédia a sua primeira peça teatral. Contudo, esses procedimentos atrelados a
outro tipo de comicidade, a comicidade de caráter, veicula uma comédia satírica
na qual se explicita certos desvios comportamentais a que Pena quer chamar a
atenção. Em “O Juiz de Paz da Roça” nos é apresentado um Juiz mal trajado, e
que não entende certos vocábulos – “circunlóquios... Que nome em breve! O
que quererá ele dizer?” (cena IX) –, um Juiz completamente despreparado para
o exercício de sua profissão, pois nem se quer sabe despachar – “Quero-me
aconselhar-me com um letrado para saber como hei de despachar alguns
requerimentos que cá tenho” (cena XXI). Também podemos depreender dessa
peça uma crítica às superficialidades orientadas para o universo europeu a que
a população brasileira se sujeitava, inclusive Aninha, menina do interior, que
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pede ao pai sapatos franceses, revelando a abrangência da influência européia
na vida da sociedade do século XIX. Na cena V, Manuel João e sua esposa
cogitam em providenciar o casamento da filha, fazendo-se menção ao
casamento arranjado, ao casamento como negócio. Na cena II, a partir da
rubrica que descreve os trajes de José, namorado de Aninha, “com calça e
jaqueta branca”, e do rumo que tal personagem dá ao dinheiro da venda do
bananal herdado do pai – gastou todo o dinheiro na corte –, depreende-se a
imagem do bon vivant. A composição desses personagens e os mecanismos
cômicos utilizados por Pena atribuem a sua obra uma função social – restaurar
a moralidade da sociedade carioca. Assim, o que se pretende é que um Juiz, no
uso de suas atribuições, não atue de forma arbitrária; que se combata o apego às
ostentações das superficialidades do universo europeu; que o casamento não
seja uma transação comercial; que o cidadão seja um indivíduo honesto e
trabalhador. Enfim, que se cultivem a ética, a moral, os bons costumes da
sociedade.
E é dessa forma que, desvelando-se os comportamentos desviados, o
cômico, presente em “O Juiz de Paz da Roça”, vai ao encontro dos pressupostos
teóricos de Bergson, autor, segundo o qual, a função do riso é corrigir desvios
de condutas, é anular a rigidez diante da vida cabendo, pois, à comédia, papel
fundamental no reajuste social dos indivíduos. Portanto, explorando os vícios e
as irregularidades comportamentais do ser humano, Martins Pena atribui à
peça aqui analisada uma dimensão social que visa, por meio do cômico, a
correção dos costumes.
Assim, a partir da análise da obra “O Juiz de Paz da Roça”, pudemos
constatar que os aspectos sociais nelas presentes são retratados de uma forma
crítica, como se Martins Pena propusesse a reestruturação de uma sociedade
corrompida, o que atribui a essa peça um cunho moralista, uma função
coercitiva
aplicada
aos
comportamentos
humanos
que
prejudicam
a
manutenção de uma sociedade equilibrada e essa moralização social, que
Martins Pena procura resgatar por meio de suas obras cômicas, se encaixa na
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idéia central do teórico Henri Bergson a respeito do cômico: corrigir os desvios
sociais.
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