luciano da silva façanha

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luciano da silva façanha
REVISTA CAMBIASSU
Publicação Científica do Departamento de Comunicação
Social da Universidade Federal do Maranhão - UFMA - ISSN 0102-3853
São Luís - MA, Vol. XVII – N º 3 - Janeiro a Dezembro de 2007
LUCIANO DA SILVA FAÇANHA:
A AUTOBIOGRAFIA FILOSÓFICA DE ROUSSEAU: UMA
LINGUAGEM DO SENTIMENTO
Doutorando em Filosofia na PUC-SP e
professor do Departamento de Filosofia da UFMA
RESUMO: O objetivo deste texto limita-se a interpretação de algumas questões das
Confissões de Jean-Jacques Rousseau. Analisa-se a existência da autobiografia de cunho
filosófico. O fato desta prática “contar de si”, vir sendo bastante utilizada pelos
filósofos, tem como característica marcante enfatizar a descoberta de si mesmo, ou seja,
a autobiografia se aproxima do “conhece-te a ti mesmo” de Sócrates. Contextualiza-se o
surgimento das Confissões na vida de Rousseau e, principalmente, a sua intenção em
realizar uma empresa com uma linguagem do sentimento.
PALAVRAS CHAVES: Rousseau, autobiografia, linguagem, sentimento.
ABSTRACT: The objective of this discuss limits itself to the interpretation of JeanJacques Rousseau’s Confessions.Also analyzed is the existence of autobiographies with
a philosophical aspect. The fact that this method “talk about yourself” is being used
frequently by philosophers, a strong characteristic that places emphasis on oneself´s
discovery, in other words, the autobiography approaches Socrates “Doctrine of
recollection”. In context, the surging of Confessions in Rousseau’s life and principally
his intentions in accomplishing an enterprise with a sentimental language.
KEY WORDS: Rousseau, autobiography, language, sentiment.
Reflete-se nesse artigo sobre algumas pontuações identificadas no
estilo autobiográfico do pensamento rousseauniano. No entanto, isso não significa deterse num âmbito muito diferenciado de suas reflexões a partir de possíveis contradições e
incoerências. Conforme diz o filósofo: “Escrevi sobre diversos assuntos, mas sempre
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nos mesmos princípios: sempre a mesma moral, a mesma crença, as mesmas máximas e,
se quiserem, as mesmas opiniões”.1
Embora o escrito analisado neste artigo seja uma obra explícita de autobiografia e autoafirmação, na qual, de um modo nem sempre agradável, somos convidados a tomar
partido – contra ou a favor do autor –, parece inevitável ter de formar uma opinião
firme, tanto acerca do homem, quanto a respeito da obra. Como nem sempre é tão fácil
agradar, torna-se essencial procurar manter separado o julgamento sobre o homem e
sobre sua obra.
Dito isso, observa-se, ainda nos Esboços das Confissões, portanto,
antecedendo numa tentativa preliminar a publicação das Confissões, a convicção de
Rousseau quanto ao caráter diferencial e inaugural do gênero dessas suas reflexões;
pois, se bem sucedido no “cumprimento de suas promessas”, ou seja, tornar a sua alma
transparente aos olhos do leitor, irá conduzi-lo a algo único e também útil. Além disso,
parece subsistir um pouco de incerteza, porque o próprio Rousseau sabe da dificuldade
da escrita e do que ela, de alguma forma, possa encobrir. A linguagem, portanto, passa a
ser esse instrumento tão útil e decisivo, tanto para aquele que escreveu, quanto para
quem a reconhece. Por isso Rousseau sabe que está fazendo algo de novo, tem certeza
disso e afirma isto:
É, portanto, seguro que, se eu cumprir minhas promessas, terei feito uma coisa única
e útil. E que não se objete que, como só sou um homem do povo, não tenho nada a
dizer que mereça a atenção dos leitores. Isso pode ser verdadeiro em relação aos
acontecimentos da minha vida: mas escrevo menos a história destes acontecimentos
em si mesmos que a do estado de minha alma, à medida que me aconteceram. Ora,
as almas somente são mais ou menos ilustres segundo os sentimentos mais ou menos
grandes e nobres, as idéias mais ou menos vivas e numerosas que têm. Os fatos só
são aqui causas ocasionais. Qualquer que seja a obscuridade na qual pude viver, se
pensei mais e melhor que os reis, a história de minha alma é mais interessante que a
de suas.2
Jean-Jacques justifica seu propósito confessional. Promete a
transparência de si servindo-se da linguagem do sentimento e, acima de tudo,
conforme se auto-intitula um homem do povo, condição essa que se em principio não
despertaria atenção dos leitores, torna-se fundamental no projeto: As Confissões. A
afirmação dos direitos do sentimento e a justificação do homem do povo andam juntas.
1
ROUSSEAU, J.-J. Carta a C. de Beaumont. O. C., éd. Pl., t. IV. 928.
ROUSSEAU, Jean-Jacques. Ebauches dês Confessions (Manuscrit de Neuchatel-1764). In:
Oeuvres Complètes, v. I. Paris: Bibliothèque de la Pléiade. 1959, p. 1150.
2
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Independentemente de qualquer posição social, o valor do homem reside inteiramente
em seu sentimento, cujo status de superioridade equivale ao do pensamento. Isso, no
entanto, não quer dizer que a significação social que se liga ao próprio empreendimento
das Confissões deva ser negligenciada. Nas palavras de Starobinski, interpretando
Rousseau, segue-se: “Porque o valor do homem reside inteiramente em seu sentimento,
já não há privilégio ou prerrogativa social que conte”.3
O autor quer ser reconhecido, sobretudo como um homem simples,
sem graus de nobreza, mesmo sem ser bispo (como era Santo Agostinho), nem fidalgo
(como Montaigne), sem ter título nenhum para se expor aos olhos do público. Sua
posição de nulidade social lhe permitirá mover-se livremente e observar todos os
estados da sociedade, sem se fixar em nenhum deles. Dessa forma, imagina o filósofo
que sua experiência do individuo lhe reserve ou mesmo lhe favoreça o direito de ser
escutado; ele, que nessas condições, detém a verdadeira idéia do homem tal como
é, uma imagem de um homem universalmente válida (uma compreensão de homem
válida para todos). Além disso, ao dizer-se homem do povo, Rousseau também se
coloca como aquele que se sabe e se proclama diferente. Ser diferente dos outros é ser
inocente enquanto eles são culpados. É na condição de não ser nada – homem do povo –
que se torna possível conhecer tudo.
Ora, mas em que medida toma-se realmente possível dizer a verdade
sobre si mesmo? Segundo Rousseau, na interpretação de Jean Starobinski, isso apenas
se viabiliza através do discurso autobiográfico, posto que, nesse caso, o modelo interior
não é obscuro para o próprio sujeito. É como se a autobiografia nos permitisse acesso a
uma verdade infinitamente melhor do que qualquer pintura que observe seu modelo
exterior. Como se pode observar, a imagem vista de fora é sempre inverificável, além
do que o retratista, por mais atentamente que olhe o seu modelo, não alcançará o
“modelo interior”.
Rousseau, porém, adverte-nos que é possível dissimular ao escrever a
autobiografia. Só que isso não se refere a ele mesmo e sim aos seus predecessores,
especialmente Montaigne.
3
STAROBINSKI, Jean. Os problemas da autobiografia. In: A transparência e o obstáculo:
seguido de sete ensaios sobre Rousseau. Tradução: Maria Lúcia Machado. São Paulo:
Companhia das Letras, 1991. p. 192.
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Assim, Jean-Jacques será o primeiro, o único, a oferecer de si um
retrato completo, reivindicando para esse empreendimento um alcance considerável: a
autobiografia será oferecida “aos outros homens como uma peça de comparação e aos
filósofos, um objeto de estudo”.4 Conhecê-lo para melhor se conhecerem, julgá-lo no
propósito de melhor apreciarem a si mesmos. De forma que, “toda atenção do mundo
deve prender-se a ele — isso lhe é devido — sem que seu dever o obrigue a fazer outra
coisa que não narrar a si mesmo”.5
Rousseau inicia suas Confissões referindo-se à própria obra que está
sendo escrita enquanto empresa de exemplo inaugural. Narra que não há precedentes, e,
não terá, por conseguinte, imitadores. Sempre se refere às suas obras como empresa,
projeto, empreendimento. Isso ocorre em inúmeros momentos do texto, também quando
ele se refere a outras obras.
Segundo Jean Starobinski, As Confissões, para Rousseau, têm o mérito
de fundar um estilo, inaugurando um novo modo de expressão, com se pode observar no
relato do autor:
Eis o que fiz, o que pensei, o que fui. Disse o bem e o mal com a mesma franqueza.
Nada calei de mau, nada acrescentei de bom; e se me aconteceu usar algum ornato
indiferente, não foi nunca para preencher um vácuo da minha falta de memória.
Talvez tenha imaginado ser verdadeiro o que eu acreditava que o devesse ser, porém
jamais o que eu soubesse ser falso. Mostrei-me tal qual era: desprezível e vil quando
o fui; bom, generoso, sublime, quando o fui; desnudei meu íntimo... 6
Uma pergunta se põe neste momento: Mas em que consistiria essa
espécie de autobiografia que não dissimula? Como ela se caracteriza?
Ela tem como fundamento o conteúdo de uma promessa. Temos um
Rousseau que intenta mostrar-se tal como é. Abre suas Confissões com um relato que
vai direto ao coração do leitor: uma aproximação entre o autor e o leitor. “O Rousseau
das Confissões [Les confessions] nos convida a buscar a origem de suas próprias teorias
na experiência emotiva”.7 No dizer de Jean Starobinski, tal propósito que indaga a
própria identidade do “eu” é respondido no Livro I das Confissões da seguinte forma:
4
Ibid., p. 194.
Ibid., p. 195.
6
Jean Starobinski ressalta que a obra As Confissões se constitui sob a forma de uma narração
da história da vida, daquele que escreve o texto. Rousseau está contando a história de sua
própria vida, não como num livro de memórias e nem tampouco como uma biografia
autorizada, mas como um relato cronológico. (Ibid., p. 11-12).
7
Ibid., p. 18.
5
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“Sinto o meu coração”.8 Essa frase é procedida de uma outra: “Eu só”.9 Ora, isso parece
nos remeter àquela que parece ser a diretiva central do pensamento autobiográfico de
Rousseau, qual seja, o sentimento enquanto conhecimento intuitivo de si que, por sua
vez, traz-nos uma evidência imediata da qual não podemos escapar. Para Starobinski,
não é sem importância que a consciência de si date, para Jean-Jacques, de seu encontro
com a ‘literatura’, com as suas influências, visto que o encontro de si coincide com o
encontro do imaginário: constituindo-se numa mesma descoberta. Demonstra, desde o
primeiro livro, desde a origem, que a consciência de si está intimamente ligada à
possibilidade de tornar-se um outro.10 Citando Rousseau: “Eu me tornava a personagem
da qual lia a vida”.11 Assim, o sentimento é o ato que funda qualquer possibilidade do
conhecimento do “eu”. Ele tentaria mostrar seu eu por inteiro para que, de alguma
forma, pudesse ser realmente entendido nas suas idéias, no seu pensamento.
Senti antes de pensar: é a sorte comum da humanidade. Mas eu sofri mais que
qualquer outro. Ignoro o que fiz até cinco ou seis anos. Não sei como aprendi a ler;
lembro-me apenas das minhas primeiras leituras e do efeito que me fizeram: é o
tempo de onde marco, sem interrupção a consciência de mim mesmo.12
Sendo esse “eu” uma auto-evidência imediata, está sempre situado no
âmbito circunstancial, ou seja, o mesmo está sempre se modificando, renovando-se.
Trata-se de um “eu” situado, cuja captura se modifica tendo em vista o horizonte de
suas situações. Por isso, o sentimento é um ato que sempre nos revela um ato presente.
“Não é um problema é um dado”, diz Rousseau. Segundo Starobinski, a idéia do
conhecimento intuitivo enquanto apreensão de si é aquela que situa toda a obra
autobiográfica de Rousseau.
Há uma inevitabilidade da introspecção, ou seja, a verdade não se
esquiva, a consciência não fica sem recurso, “bastará um exame de consciência para
triunfar de todas as obscuridades...”13 Se a consciência é um retomar-se constante, no
sentido de esclarecer as verdades, é somente através da linguagem do sentimento que se
8 ROUSSEAU,
Jean-Jacques. As Confissões. Tradução: Rachel de Queiroz. 2. ed. São Paulo:
Atena editora, 1959. v. 1. p. 11.
9
Id.
10
STAROBINSKI, Jean. Op. cit., p. 18.
11
ROUSSEAU, J.-J. Op. cit., p. 17.
12
Ibid., p. 15.
13
STAROBINSKI, Jean. Op. cit., p. 188.
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torna possível o cumprimento da promessa. Transparecer-se ao leitor só se faz possível
pela via de uma linguagem do coração, pois “tudo se explicará; conseguirá ver-se por
inteiro, e ser ‘para si’ o que ele é ‘em si’”.14
Para Rousseau, a estranheza dos seus atos não constitui problema para
se conhecer, posto que seus atos insólitos não lhe pertencem senão parcialmente, bastará
narrá-los e declará-los estranhos, como se a confissão esgotasse seu mistério.15 Ainda
que sua consciência insista na falta de uma clareza interior, as lacunas de sua memória
não o inquietarão. Rousseau acredita que o que escapa à sua memória não tem
importância.
Nesse sentido Rousseau se diz a própria transparência na sua pretensa
incapacidade de dissimular. Então escreve: “Meu coração transparente como um cristal
jamais soube ocultar durante um minuto inteiro um sentimento um pouco vivo que ali se
houvesse refugiado”.16
Mas conduzir-se pela linguagem do sentimento direciona a evidência
de um obstáculo: o reconhecimento. A dificuldade da transparência da consciência ser
reconhecida pelos outros parece decorrer do fato de que esses outros não se sabem, não
se conhecem enquanto sentimento. Se os mesmos não se reconhecem através da
linguagem do coração, dificilmente poderão apreender o que há de transparente na
consciência do outro. Nesse sentido, é diante dessa dificuldade – o obstáculo – que os
escritos autobiográficos de Rousseau vão colocar em discussão o reconhecimento de si
pelos outros. Essa linguagem é expressão do sentimento, portanto, é um contentar-se
descontente, por isso ela reivindica necessariamente ser reconhecida pelo outro. A
transparência não é só característica da consciência, mas é tarefa que busca o
reconhecimento, ou seja, além de ser para si, ela precisa ser para o outro, transparente
aos olhos do leitor. O discurso confessional de Rousseau parece então refletir a tensão
entre a consciência que transparece e a dificuldade de seu reconhecimento pelos outros.
A esse propósito, Starobinski17 ressalta a indagação que Rousseau se faz, sobre o por
que da dificuldade de se fazer concordar o que se é para si e o que se é para os outros?
14
Id.
Id.
16
ROUSSEAU, J.-J. op. cit., livro IX, p. 264-265.
17
STAROBINSKI, J., op. cit., p. 189.
15
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A tentativa de ultrapassar esse obstáculo converte-se em uma outra
proposta, que seria a de convencer de sua transparência no horizonte da linguagem, falar
a linguagem dos outros – pois não basta viver da transparência, é preciso dizer sua
própria transparência, ou seja, convencer os outros.
Uma atividade torna-se necessária, para aquele que tem sede de ser reconhecido:
essa atividade é linguagem, palavra infatigável; é preciso explicitar, nas ‘palavras da
tribo’, o que a ingenuidade dos sinais manifestara de maneira pura, mas inutilmente.
(...) Por mais que o coração já fosse transparente, é preciso ainda torná-lo
transparente para os outros, desvelá-lo a todos os olhares, impor-lhes uma verdade
que não souberam encontrar por si mesmos.18
Ora, mas a transparência interna de Rousseau recebe de fora uma
recusa, é uma transparência sem espectadores. Ele se põe a falar sobre si mesmo porque
está, desde o começo, na situação daquele que já foi julgado e apela desse julgamento.
Jean-Jacques, dessa forma, “fornece (...) as peças justificativas tendo
em vista uma revisão do processo. Contesta a validade do julgamento. Até que tenha
‘dito tudo’, quer gozar do benefício de uma dúvida provisória”.19 É a luta pelo
reconhecimento, que não será outra senão o comparecimento diante de um tribunal. Ser
reconhecido, para Rousseau será, essencialmente, ser justificado, ser inocentado. O
único tribunal do qual não recusará a competência será o de Deus, único em que reside a
Justiça e a Verdade. Rousseau, no fundo, está tentando falar que ele não acredita ter
cometido nenhum pecado, ou seja, ele não está pedindo perdão pelos seus pecados, pois
não os cometeu, em nenhum momento diz isso ou pensa nisso. Apenas tenta explicar os
infortúnios que ao longo de sua vida ocorreram, como pessoa, como pensador e como
filósofo; esses que inclusive o distanciaram e romperam qualquer possibilidade de
diálogo com os iluministas.
Se não há possibilidade de diálogo com seus contemporâneos, talvez
haja uma última alternativa, uma última esperança, que é a posteridade, o leitor do
futuro, talvez este possa entendê-lo, possa compreendê-lo. É a essa espécie de leitor ao
qual Rousseau se dirige nas suas Confissões; um leitor que não está ali presente posto
que não é o homem do século XVIII, com quem entende não haver mais nada a dizer.
18
19
Ibid., p. 189.
Ibid., p. 191.
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Dessa forma, Rousseau faz muitos chamamentos ao leitor, seu
destinatário, o juiz que irá avaliar a sua narrativa. Soam quase como justificativas e
apelos:
Sei bem que o leitor não tem grande necessidade de saber tudo isto; eu é que a tenho
de dizer. E que pena eu não ousar lhe contar as pequeninas histórias dessa idade
feliz, que hoje ainda, quando as recordo, me fazem estremecer de deleite! Cinco ou
seis, principalmente... Entremos, porém, num acordo. Perdôo-lhes cinco; mas quero
uma, só uma, uma vez que me deixem contar longamente, o mais longamente que
me seja possível, para me prolongar o prazer.20
Também, na mesma página:
E vós, leitores curiosos da história da nogueira do terraço, ouvi a horrível tragédia, e
impedi-vos de estremecer, se o puderes!21
E mais à frente:
Ah, leitor compassivo, partilha a minha aflição!22
E, principalmente, neste momento:
À medida que, avançando na minha vida, o leitor for tomando conhecimento do
meu temperamento, sentirá tudo isso, sem carecer de eu lhe dizer. Compreendido
isso, compreender-se-ão sem trabalho as minhas pretensas contradições.23
O fundamento para isso se dá pela via da lei do sentimento, a lei do
coração, a transparência da consciência. Segundo Starobinski, para Jean-Jacques:
“Conhecer-se é sentir-se, um ato simples e instantâneo”.24 Porém, esse sentimento não
pode contentar-se com sua própria certeza; ele precisa ser comunicado. Mas como fazêlo, se isso não se torna possível enquanto ato expressivo puro e simples? Como diz
Starobinski: o necessário é falar, buscar na linguagem a tradução eficaz de uma
evidência interior, de modo que se interponha um circuito de palavras entre seu
sentimento e seus interlocutores, aqueles que o julgam.
No espírito de Rousseau, o ‘circuito de palavras’ é verdadeiramente um circuito,
pois que deve levar a um ponto que se assemelha ao momento primeiro em que a
palavra ainda não ocorreu. O retorno ideal apaga os mal-entendidos; apaga os
próprios ‘esclarecimentos’ que se acumularam na linguagem escrita: é um novo
nascimento, uma ‘regeneração’, um recomeço, um despertar. A linguagem, sob a
pena de Rousseau, negava o mundo dos outros. (...) Mas o momento do retorno nega
essa linguagem negadora; a ausência, o exílio na literatura se convertem em uma
presença silenciosa, em que Jean-Jacques se oferece tal como é, ou seja, tal como se
construiu pela ausência e pela literatura. Todas as palavras se anulam; então
subsiste, no estado puro, o que a linguagem queria provar: a inocência, a verdade, a
20
ROUSSEAU, J.-J. Op. cit., livro I, p. 36.
Id.
22
Ibid., p. 55.
23
Ibid., p. 60.
24
STAROBINSKI, J. Op. cit., p. 195.
21
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unicidade de Jean-Jacques. Pelo discurso, ele se fez tal que possa ser reconhecido
fora de todo discurso, em um ‘arrebatamento’ em que o sentimento basta-se
plenamente a si mesmo.25
Ora, a questão que emerge daí é a seguinte: Como obrigar os outros a
fazer uma imagem verídica do caráter e do coração de Rousseau?
Inicialmente, Rousseau vai mostrar como se tornou o que é. Vai
enunciar discursivamente toda a história de sua vida, sob a condição de exigir dos
outros que façam eles próprios sua síntese. Se “não pode enunciar em uma só palavra
sua natureza, seu caráter, o princípio de sua unidade [então] ele coloca nas mãos de suas
testemunhas: a elas caberá construir a imagem única e julgá-la simultaneamente...”26
Com isso, Rousseau está transferindo ao leitor também todos os malentendidos que porventura exista: se o leitor se engana, todo o erro será afirmação sua.
Quando eles não tirarem as conclusões que se impõem, a culpa será inteiramente deles.
Lembra ao leitor qual era sua promessa inicial, colocando sua alma transparente aos
olhos do leitor, pois, se houver algum erro, o erro será todo do leitor, que não o soube
ler. Assim, seu único temor, nesse empreendimento, é não dizer tudo que pretendia.
Citando Jean-Jacques:
Esses longos detalhes da minha juventude parecerão muito pueris, e isso me
aborrece. Embora tenha nascido homem, a certos respeitos fui criança muito tempo,
e ainda o sou em muita coisa. Mas não prometi oferecer ao público um grande
personagem: prometi me retratar tal qual sou, e, para que me conheçam na idade
avançada, é preciso que me tenham conhecido bem na juventude. E como em geral
os objetos me impressionam menos que as lembranças, e todas as minhas idéias são
em imagens, os primeiros traços que se me gravaram na cabeça lá ficaram, e os que
se imprimiram depois antes se combinaram com eles do que os apagaram. Há uma
certa sucessão de afeições e de idéias que modificam as que as seguem, e que é
preciso conhecer para julgar bem. E me esforço em desenvolver bem as primeiras
partes para que se sinta bem o encadeamento dos efeitos. Queria poder de algum
modo tornar minha alma transparente aos olhos do leitor; e por isso procuro mostrála sob todos os pontos de vista, esclarecê-la em todos os dias, proceder de modo que
não haja um movimento que ele não perceba, enfim, de jeito que ele possa julgar por
si próprio o princípio que o produz. Se eu me encarregasse do resultado e lhe
dissesse: ‘É assim o meu caráter’, ele poderia supor, se não que o engano, pelo
menos que me engano. Mas relatando-lhe com minúcias tudo que me aconteceu,
tudo que fiz, tudo que pensei, tudo que senti, não o posso induzir em erro, a menos
que o queira. E ainda mesmo que o queira não o conseguirei facilmente por esse
modo. A ele cabe reunir esses elementos e determinar o ser que os compõe: o
resultado deve ser obra sua. E se ele então se enganar, fica todo o erro por sua conta.
E para esse fim não basta apenas que minhas narrações sejam fiéis; é preciso que
sejam exatas. Não cabe a mim julgar da importância desses fatos: devo contá-los
todos e deixar a ele o cuidado de escolher. É ao que me apliquei até agora com toda
25
26
Ibid., p. 145.
Ibid., p. 196.
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a minha coragem, e não o relaxarei depois. Mas as lembranças da idade madura são
sempre menos vivazes que as da primeira mocidade. E comecei por tirar destas o
melhor partido que me foi possível. Se as outras me chegarem com a mesma força,
talvez que alguns leitores pacientes se aborreçam, mas não ficarei descontente com o
meu trabalho. Só uma coisa tenho a temer, nesta empresa: não é dizer demais ou
dizer mentiras, mas não dizer tudo ou calar verdades.27
Rousseau acha-se diante de uma única alternativa: “O êxito ou o
fracasso absoluto de seu esforço”.28 De um lado, tem a esperança de chegar a uma
verdade infinitamente aproximada; por outro, corre o risco de não sair do malentendido, de agravá-lo ainda mais. E também por sentir pesar sobre si a ameaça de uma
condenação, Rousseau se vê coagido a não calar nada.
É de caráter específico a linguagem que constitui o gênero
autobiográfico. Tendo em vista a insuficiência da linguagem ordinária para exprimir a
vida (acontecimentos e sentimentos), Rousseau quer marcar sua diferença inaugurando
um outro estilo, algo mais apropriado, que não vem do exterior e, sim, do Eu do escritor
(uma linguagem da vida pessoal do sentimento). Afinal, para Rousseau, na ordem dos
valores, a vida se coloca antes da literatura, que não é mais que sua sombra. Daí ser
utilizado o método genético,29 baseado em seguir cronologicamente o desenvolvimento
de sua consciência, percorrer a seqüência natural das idéias e dos sentimentos, remonta
às origens para nelas encontrar as fontes ocultas do momento presente. Tudo isso com
vistas a provar a continuidade de uma evolução, onde tudo é coeso.
27
ROUSSEAU, J.-J. Op. cit., livro IV, p. 275-276.
STAROBINSKI, J. Op. cit., p. 197.
29
Segundo Jean Starobinski, Rousseau utiliza o mesmo método aplicado à história no Discurso
Sobre a Origem das Desigualdades Entre os Homens, na obra As Confissões. (Id.). “Se a
autobiografia é uma narração, portanto, uma narração da história da vida daquele que escreve
o texto. As Confissões preenchem isso totalmente. Rousseau ao falar do homem na sociedade
civil diz que é preciso conhecer esse homem como ele era originalmente, ou seja, como é a
sua natureza, é preciso despi-lo daquilo que foi acrescentado ao longo da história, ao longo da
sua trajetória. Então, para conhecer os outros é preciso antes de mais nada falar sobre si
mesmo, assim, este olhar para si é fundamental para conhecer a si próprio e os outros
também. Caso contrário se estaria fazendo o que ele critica nos outros filósofos. Eles
acreditavam estar falando do homem no estado de natureza, mas na verdade eles estavam
falando do homem já alterado, em estado de sociedade”. (PISSARRA, Maria Constança Peres.
Comunicação realizada no dia 14.05.2002, sobre As Confissões de Jean-Jacques Rousseau,
na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo.).
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Segundo Jean Starobinski, Rousseau responde a essas questões, como
no mito do Deus marinho Glauco,30 no qual o essencial permaneceu intacto:
Pois o essencial não é o fato objetivo, mas o sentimento; e o sentimento de outrora
pode surgir novamente, irromper em sua alma, tornar-se emoção atual. Ainda que a
‘cadeia dos acontecimentos’ não seja mais acessível à sua memória, resta-lhe a
‘cadeia dos sentimentos’, em torno dos quais poderá reconstruir os fatos materiais
esquecidos. O sentimento é, portanto o coração indestrutível da memória, e é a partir
do sentimento que, por uma espécie de indução, Jean-Jacques poderá redescobrir as
circunstâncias exteriores, as ‘causas ocasionais.’31
Dessa forma, percebe-se que o sentimento é o coração da memória,
sendo a partir dele que Jean-Jacques redescobre as circunstâncias exteriores. O filósofo
atribui-se o dever de atestar, numa transparência de fonte, a verdade primeira, a
30
O mito de Glauco, o Deus marinho, segundo vários comentadores de Rousseau, foi retirado
da obra A República, de Platão. Glauco é uma estátua cujas formas estão desfiguradas e
escondidas pelas algas e o filósofo Jean-Jacques, no Segundo Discurso, utiliza no prefácio
para responder à Academia de Dijon que primeiramente seria necessário encontrar o homem
natural que está por detrás das alterações que sofreu com a sociedade; é exatamente neste
ponto que ele encaixa o mito de Glauco, posto que considera as desigualdades entre os
homens as alterações que o advento da sociedade proporcionou. Nesse momento Rousseau
vai recorrer ao ponto que nos interessa do mitologema, conhecer o homem natural para ele
significa recorrer às primeiras operações da alma humana. Segundo Jean-François Braunstein,
Glauco é um “Deus marinho ao qual Platão compara a alma na República, Livro X, 611. Ele
quer mostrar com isso que a alma é tão alterada por sua união com o corpo quanto a estátua
de Glauco por sua imersão no mar. Por essa imagem, se pode supor que, para Rousseau, o
homem natural não está de todo extinto em nós, o que explica a conclusão relativamente
otimista do prefácio”. (BRAUNSTEIN, Jean-François. Comentários sobre Rousseau. In:
Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens. Tradução:
Iracema Gomes Soares e Maria Cristina Roveri Nagle. São Paulo: Ática, 1989. p. 21.). No mito
platônico da estátua de Glauco o essencial permaneceu intacto. Rousseau questiona no Mito
de Glauco se a transparência original desapareceu? Também: Redescoberta na memória, não
é ela então retomada na transparência própria da memória e por isso mesmo, salva? A partir
dessas questões Jean Starobinski estabelecerá duas versões para o mito, uma versão
pessimista, em que a alma humana degenerou, se desfigurou, pois sofreu uma alteração quase
total, para jamais reencontrar sua beleza primeira e original. Já a outra versão é mais otimista,
pois em lugar de uma deformação, evoca uma espécie de encobrimento: a natureza primitiva
persiste, mas oculta, sepultada sob os artifícios e, no entanto, sempre intacta. Starobinski
considera que a imagem da estátua de Glauco dentro do contexto da obra, e também da
escrita de Jean-Jacques, acaba trazendo inúmeros questionamentos e dentre eles alguns que
fazem um encaminhamento, possibilitando-nos percorrer alguns rastros do pensador, como: O
rosto da estátua fora corroído e mutilado pelo tempo... Logo, perdeu de forma definitiva a sua
origem? Ou então, teria ele conservado a sua forma original posto que fora recoberto pelo sal,
pelas algas sem nenhuma perda das substâncias que o formaram? E, principalmente, os traços
fisionômicos originais não seriam uma ficção destinada a servir de norma ideal para que se
possa lembrar ou interpretar o estado natural, à sua normatividade (um modelo), à sua alma?
(STAROBINSKI, Jean. O deus Glauco. In: A transparência e o obstáculo: seguido de sete
ensaios sobre Rousseau. Tradução: Maria Lúcia Machado. São Paulo: Companhia das Letras,
1991. p. 26-30.).
31
STAROBINSKI, J., op. cit., p. 203-204.
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inocência esquecida. Quer ser ao mesmo tempo essa pessoa única, esse modelo
universal, o homem da natureza.32
A estátua de Glauco é o homem da natureza; e o homem da natureza é
imediatamente o eu de Jean-Jacques. Para revelar o homem da natureza, Jean-Jacques
deve mostrar-se. Sua demonstração já não é um gesto que designa um objeto exterior, é
‘mostração’ de si mesmo: uma consciência se abre para nós, para fazer-se reconhecer
em sua singularidade, e ao mesmo tempo para se proclamar como uma verdade
universal.33
Eis o método de Rousseau no seu propósito de escolher os
acontecimentos fundamentais e acontecimentos mais distantes, pelo qual se pretende
vítima, mostrando que não tem poder sobre o passado, pois está privado de toda
liberdade de agir. Não importa mais a exatidão das reminiscências que ressoe e
amplifique a lembrança, que se confunda com o sentimento atual até não mais dele
distinguir-se. Assim sendo, o refúgio da liberdade estaria no sentimento interior e no
próprio ato de escrever. Suas Confissões, nesse sentido, serão um ato de liberdade, pois
dirá a verdade sobre si mesmo, fundamentada livremente em seu sentimento, sem
nenhuma regra. A linguagem é a própria fluição do sentimento e não uma espécie de
ferramenta ou intermediário estranho a dizer sobre a experiência, é ela própria o segredo
revelado, o oculto tornando instantaneamente manifesto.
Embora Rousseau inicialmente confie ao leitor o julgamento de sua escrita,
submetendo-o a sua nova linguagem, decide quais as causas por onde começar, não
hesitando em ordenar os acontecimentos segundo as relações de causalidade, ou seja,
em parte alguma Rousseau se anula. O que pode parecer um paradoxo, mediante a
imposição de como fazê-lo, justifica-se pelo fato do mesmo querer ser julgado enquanto
linguagem do coração.
Assim, o sentimento é o coração indestrutível da memória,34 é a partir do
sentimento que, por uma espécie de indução, Rousseau poderá redescobrir as
circunstâncias exteriores, as “causas ocasionais”.
32
Ibid., p. 89.
Ibid., p. 85.
34
Bella Josef, a propósito da memória, afirma que “para poder lembrar-se é preciso haver
esquecido”. Reconhece-se, igualmente, que lembrar não é apenas recopiar (mentalmente) o
acontecimento, mas regenerá-lo e concebê-lo “no sentido biológico com que se concebe uma
idéia”. Na verdade, esse conceito apenas em parte nos serve aqui. O tempo age contra a
memória porque faz esquecer, modifica e distorce os fatos, e se corre até o risco de
33
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A grande novidade trazida pela obra confessional de Rousseau,
segundo Starobinski, é o fato de a linguagem ter se tornado o lugar de uma experiência
imediata, enquanto permanece o instrumento de uma mediação. Essa linguagem não
tem mais nada em comum com o discurso clássico, pois é infinitamente mais imperiosa
e infinitamente mais precária. Por conseguinte, prossegue o comentador: “O que
garantirá a verdade da autobiografia é essa não-resistência ao sentimento e à lembrança.
Não estamos mais diante da empresa árdua de inventar uma nova linguagem; ei-la toda
inventada”.35
Também, há o fato de essa linguagem entregar-se ao movimento espontâneo dos
sentimentos e à liberdade das palavras. Portanto, Jean-Jacques está tratando de uma
nova concepção da linguagem, deixando falar sua emoção, pois é ela própria o segredo
revelado, o oculto tornado instantaneamente manifesto.
Diante do exposto, pode-se dizer que Rousseau inventou a atitude nova incorporada
pela literatura moderna, sendo o primeiro a viver de uma maneira exemplar a perigosa
vivência do pacto entre o Eu e a Linguagem. Inaugura-se uma nova aliança, na qual o
homem se faz verbo.
Portanto, percebe-se que algumas interpretações de Rousseau são feitas
com o propósito de proporcionar algum conforto pessoal ao autor ou de enganar a si
mesmo. Porém, todos esses assuntos requerem um julgamento, e não somos
necessariamente imparciais o bastante para formular uma avaliação definitiva; o certo é
que é muito difícil ser indiferente a Jean-Jacques Rousseau, quer seja pelo prazer e
admiração ou irritação e repulsa. O que ele nos inspira, indiscutivelmente, também
parece ser a capacidade de emocionar. Por isso, a necessidade de se ter feito uma
interpretação na atualidade, a partir das questões pontuadas aqui.
O esforço, nestas páginas, foi o de organizar racionalmente aquilo que
retorna (que nos chega) de maneira emocional, mas ao mesmo tempo filtrado pela
crítica posterior, inclusive a mais recente. Tal processo levou-nos a interpretar de forma
mais minuciosa As Confissões, enquanto modelo literário que é o da autobiografia
filosófica. De qualquer forma, adverte-nos Salomon-Bayet:
transformar uma mentira em verdade. Mas há outro dado que é importante. Não se pode
esquecer o que se desconhece: e a verdade é que o leitor da posteridade desconhece
praticamente os acontecimentos do passado. (JOSEF, Bella. O resgate da memória na
literatura contemporânea. In: Anais do 2º Congresso da ABRALIC – Literatura e memória
Cultural. Belo Horizonte: Associação Brasileira de Literatura Comparada, 1991. Vol. 1, p. 454.).
35
STAROBINSKI, J., op. cit., p. 202.
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Deslocado por variadas razões, arauto e mártir de uma diferença que considera e
reivindica como a origem de todas as suas desgraças e o sinal evidente da sua
própria inocência. Regra geral, a história reserva um lugar às biografias, mas a razão
dá-lhes o devido lugar, que é secundário. Aqui, a biografia tomou a dimensão de
uma obra – a dos escritos autobiográficos que o próprio Rousseau chama ‘os seus
verdadeiros escritos’.36
BIBLIOGRAFIA
BAYET, Claire Salomon. Jean-Jacques Rousseau. In: CHÂTELET, François. História
da Filosofia. Tradução: Alexandre Gaspar, Maria Helena Couto Lopes e Nina
Constante Pereira. Vol. 2. Lisboa: Publicações Dom Quixote, 1995.
BRAUNSTEIN Jean-François. Comentários sobre Rousseau. in: Discurso sobre a
origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens. Tradução: Iracema
Gomes Soares e Maria Cristina Roveri Nagle. São Paulo: Ática, 1989.
JOSEF, Bella. O resgate da memória na literatura contemporânea. In: Anais do 2º
Congresso da ABRALIC – Literatura e memória Cultural. Belo Horizonte:
Associação Brasileira de Literatura Comparada, 1991.
PRADO JUNIOR, Bento. A força da voz e a violência das coisas. In: Ensaio sobre a
origem das línguas. Tradução: Fúlvia. M. L. Moretto. Unicamp.1998.
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ROUSSEAU, Jean-Jacques. As Confissões. Tradução: Rachel de Queiroz. 2. ed. São
Paulo: Atena Editora, 1959. v. 1.
__________. As Confissões. Tradução: Rachel de Queiroz. 2. ed. São Paulo: Atena
Editora, 1959. v. 2.
__________. Oeuvres Complètes. Publicadas sob a direção de Bernard Gagnebin et M.
Raymond. Bibliothèque de la Pléiade, Paris: Éditions Gallimard, Tomo I e IV,
1959/1969.
STAROBINSKI, Jean. A transparência e o obstáculo: seguido de sete ensaios sobre
Rousseau. São Paulo. Tradução: Maria Lúcia Machado. Companhia das
Letras, 1991.
36
BAYET, Claire Salomon. História da Filosofia. V. II. In: François Châtelet. Lisboa:
Publicações Dom Quixote, 1995, p. 260.
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