Decretos – Gaudium Et Spes
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Decretos – Gaudium Et Spes
GAUDIUM ET SPES -CONSTITUIÇÃO PASTORAL “GAUDIUM ET SPES” SOBRE A IGREJA NO MUNDO DE HOJE Paulo Bispo, Servo dos Servos de Deus, juntamente com os Padres Conciliares, para perpétua memória do acontecimento: Constituição Pastoral “sobre a Igreja no mundo de hoje”. PROÊMIO [Solidariedade da Igreja com a Família Humana Universal) 1. As alegrias e as esperanças, as tristezas e as angústias dos homens de hoje, sobretudo dos pobres e de todos os que sofrem, são também as alegrias e as esperanças, as tristezas e as angústias dos discípulos de Cristo. Não se encontra nada verdadeiramente humano que não lhes ressoe no coração. Com efeito, a sua comunidade se constitui de homem que, reunidos em Cristo, são dirigidos pelo Espírito Santo, na sua peregrinação para o Reino do Pai. Eles aceitaram a mensagem da salvação que deve ser proposta a todos. Portanto, a comunidade cristã se sente verdadeiramente solidária com o gênero humano e com sua história. 1 A Constituição Pastoral “sobre a Igreja no mundo de hoje” consta de duas partes, mas é um todo. Ela é chamada “pastoral” porque, baseada em princípios doutrinários, tem a intenção de exprimir as relações da Igreja com o mundo e os homens de hoje. Por isso nem na primeira parte está ausente a intenção pastoral, nem na Segunda falta a intenção doutrinária. Na primeira parte a Igreja desenvolve sua doutrina sobre o homem, o mundo no qual o homem é colocado e sobre suas relações com os homens. Na segunda parte considera mais atentamente alguns aspectos da vida de hoje e da sociedade humana e de modo especial as questões e os problemas que atualmente parecem ser os mais urgentes. Acontece assim que a matéria tratada nesta última parte, embora sujeita a princípios doutrinários, consta não apenas de elementos permanentes, mas também de questões contingentes. Deve, pois, esta Constituição ser interpretada segundo as normas gerais da interpretação teológica, tendo-se em vista, sobretudo na segunda parte, as circunstâncias mutáveis por sua natureza conexas com o assunto tratado. [Os Destinatários das Palavras do Concílio] 2. Por este motivo, depois de ter investigado de modo mais profundo o mistério da Igreja, o Concílio Vaticano II não mais hesita em dirigir a palavra somente aos filhos da Igreja e a todos os que invocam o nome de Cristo, mas a todos os homens. Deseja expor a todos como concebe a presença e a atividade da Igreja no mundo de hoje. O mundo portanto que tem diante dos olhos é o dos homens, e toda a família humana com a totalidade das coisas entre as quais vive; este mundo, teatro de história do gênero humano e marcado por sua atividade: derrotas e vitórias; esse mundo criado e conservado pelo amor do Criador, segundo a fé dos cristãos. Esse mundo na verdade foi reduzido a servidão do pecado, mas o Cristo crucificado e ressuscitado quebrou o poder do Maligno e o libertou, para se transformar de acordo com o plano de Deus e chegar à consumação. [À Serviço do Homem] 3. Em nossos dias, arrebatado pela admiração das próprias descobertas e do próprio poder, o gênero humano freqüentemente debate os problemas angustiantes sobre a evolução moderna do mundo, sobre o lugar e função de homem no universo inteiro, sobre o sentido de seu esforço individual e coletivo e, em conclusão, sobre o fim último das coisas e do homem. Por isso o Concílio, testemunhando e expondo a fé de todo o povo de Deus congregado por Cristo, não pode demonstrar com maior eloqüência sua solidariedade, respeito e amor para com toda a família humana, à qual esse povo pertence, senão estabelecendo com ela um diálogo sobre aqueles vários problemas, iluminando-os à luz tirada do Evangelho e fornecendo as gênero humano os recursos de salvação que a própria Igreja, conduzida pelo Espírito Santo, recebe de seu Fundador. É a pessoa humana que deve ser salva. É a sociedade humana que deve ser renovada. É, portanto, o homem considerado em sua unidade e totalidade, corpo e alma, coração e consciência, inteligência e vontade, que será o eixo de toda a nossa explanação. Por isso, proclamando a vocação altíssima do homem e afirmando existir nele uma semente divina, o Sacrossanto Concílio oferece ao gênero humano a colaboração sincera da Igreja para o estabelecimento de uma fraternidade universal que corresponda a esta vocação. Nenhuma ambição terrestre move a Igreja. Com efeito, guiada pelo Espírito Santo ela pretende somente uma coisa: continuar à obra do próprio Cristo que veio ao mundo para dar testemunho da verdade2, para salvar e não para condenar, para servir e não para ser servido.3 2 Cf. Jo 18,37. 3 Cf. Jo 3,17; Mt 20,28; Mc 10,45. INTRODUÇÃO: A CONDIÇÃO DO HOMEM NO MUNDO DE HOJE [Esperança e Angústia] 4. Para desempenhar tal missão, a Igreja, a todo momento, tem o dever de perscrutar os sinais dos tempos e interpretá-los à luz do Evangelho, de tal modo que possa responder, de maneira adaptada a cada geração, às interrogações eternas sobre o significado da vida presente e futura e de suas relações mútuas. É necessário, por conseguinte, conhece e entender o mundo no qual vivemos, suas esperanças, suas aspirações e sua índole freqüentemente dramática. Algumas das características principais do mundo moderno podem ser delineadas da seguinte maneira: O gênero humano encontra-se hoje em uma fase nova de sua história, na qual mudanças profundas e rápidas estendem-se progressivamente ao universo inteiro. Elas são provocadas pela inteligência do homem e por sua atividade criadora e atingem o próprio homem, seus juízos, seus desejos individuais e coletivos, seu modo de pensar e agir tanto em relação às coisas quanto em relação aos homens. Já podemos falar então de uma verdadeira transformação social e cultural, que repercute na própria vida religiosa. Como acontece em qualquer crise de crescimento, esta transformação acarreta sérias dificuldades. Assim enquanto o homem estende tão amplamente o seu poder, contudo nem sempre consegue submetê-lo a seu serviço. Esforçando-se por penetrar mais profundamente na intimidade da própria mente, aparece com freqüência mais incerto de si mesmo. Descobrindo pouco a pouco mais claramente as leis da vida social, hesita sobre a direção a lhe imprimir. O gênero humano nunca dispôs de tantas riquezas, possibilidades e poder econômico. No entanto, ainda uma parte considerável dos habitantes da terra padece fome e miséria e inúmeros são analfabetos. Os homens nunca tiveram um sentido da liberdade tão agudo como hoje, mas ao mesmo tempo aparecem novas formas de escravidão social e psíquica. Enquanto o mundo percebe tão vivamente sua unidade e mútua dependência de todos numa necessária solidariedade, e ei-lo contudo gravemente dividido em partidos opostos por forças que lutam entre si. Com efeito, agudas dissensões políticas, sociais, econômicas, raciais e ideológicas ainda continuam. E nem falta o perigo de uma guerra capaz de destruir tudo até o fim. Enquanto aumenta a comunicação de idéias, as próprias palavras, que exprimem conceitos de grande importância, revestem-se de sentidos bastante diversos segundo a variedade de ideologias. Enfim, procura-se com afã uma organização temporal mais perfeita, sem que o crescimento espiritual progrida ao mesmo tempo. Marcados por uma situação tão complexa, muitos dos nossos contemporâneos são impedidos de discernir verdadeiramente os valores perenes, harmonizando-os de modo adequado com as descobertas recentes. Assim, inquietos, eles se interrogam, num misto de esperança e angústia, sobre a evolução atual do mundo. Este curso das coisas não só desafia os homens, mesmo força-os a uma resposta. [As Situações Profundamente Mudadas] 5. A perturbação atual dos espíritos e a mudança das condições de vida estão vinculadas a uma transformação mais ampla das coisas. Esta faz com que as ciências matemáticas e naturais ou as que tratam do próprio homem adquiram preponderância crescente na formação do pensamento, enquanto a técnica, derivada daquelas ciências, influencia na ordem da ação. Este espírito científico produz um sistema cultural e modos de pensamento diferentes dos anteriores. A técnica progride a ponto de transformar a face da terra e já tenta conquistar o espaço interplanetário. A inteligência humana dilata de certa maneira o seu domínio também sobre o tempo. Sobre o passado, pelo conhecimento histórico. Sobre o futuro, pela prospectiva e planificação. O progresso das ciências biológicas, psicológicas e sociais não só contribui para que o homem se conheça melhor, mas fornece-lhe também os meios de influenciar diretamente na vida da sociedade, usando métodos técnicos. Ao mesmo tempo, o gênero humano se preocupa, e isto em medida sempre crescente, de prever e regular o próprio crescimento demográfico. A própria história acelera-se tão rapidamente em seu curso que os homens conseguem segui-la com dificuldade. Torna-se una a sorte da comunidade humana e não mais diversificada como que entre várias histórias. Assim a humanidade passa de uma noção mais estática da ordem das coisas para uma concepção mais dinâmica e evolutiva. Nasce daí, imenso, um complexo novo de problemas que provoca novas analises e sínteses. [As Mudanças Sociais] 6. Por isso mesmo as tradicionais comunidades locais, (famílias patriarcais, clãs, tribos, aldeias), experimentam cada dia transformações mais profundas em seus variados grupos e relações de comunidade social. Difundi-se pouco a pouco uma sociedade de tipo industrial, conduzindo algumas nações à riqueza econômica e transformando profundamente as concepções e condições de vida social estabelecidas deste séculos. Cresce paralelamente a civilização urbana, não só pela multiplicação das cidades e de seus habitantes mas também pela expansão do modo de vida urbana às zonas rurais. Os novos instrumentos de comunicação social, incessantemente aperfeiçoados, contribuem para difundir rápida e amplamente as notícias dos acontecimentos, das idéias e dos sentimentos, provocando inúmeras reações em cadeia. Não é de menosprezar o fato de que os homens, levados à emigração por vários motivos, transformem o sistema de sua vida. Em suma, as relações do homem com seus semelhantes multiplicam-se continuamente. E ao mesmo tempo a própria socialização introduz novas relações, sem contudo promover sempre o pleno desenvolvimento da pessoa e de relações realmente pessoais, isto é, a personalização. Esta evolução, contudo, se manifesta mais claramente nas nações econômico e técnico. Contudo atua também junto dos povos em via de desenvolvimento que aspiram obter para suas regiões os benefícios da industrialização e da urbanização. Estes povos, sobretudo se ligados a tradições mais antigas, experimentam ao mesmo tempo a necessidade de exercer sua liberdade de modo mais adulto e pessoal. [Mudanças Psicológicas, Morais e Religiosas] 7. A mudança de mentalidade e de estruturas coloca em questão freqüentemente s valores recebidos, particularmente junto dos jovens: com freqüência não suportam sua situação; bem mais, a inquietação os torna uns revoltados. Conscientes do próprio valor na vida social, muito cedo aspiram a nela participar. Por isso, não é raro que os pais e educadores sentem cada dia dificuldades maiores no cumprimento de seus deveres. Na verdade, as instituições, as leis, os modos de pensar e agir legados pelos antepassados não parecem sempre bem adaptados ao estado atual das coisas. Vem daí uma perturbação grave no comportamento e nas normas de conduta. As novas condições influem na própria vida religiosa. De uma parte o espírito crítico mais agudo a purifica de uma concepção mágica do mundo e de superstições ainda espalhadas e exige uma adesão à fé cada vez mais pessoal e operosa. Por isso não poucos se aproximam de um sentido mais vivo de Deus. Por outra parte, multidões cada vez mais numerosas afastam-se praticamente da religião. Ao contrário dos tempos passados, negar Deus ou a religião ou abstrair de ambos não é mais algo de insólito e individual. Com efeito tais atitudes apresentam-se hoje não raramente como se fossem exigência do progresso científico ou de certo humanismo novo. Todas estas coisas, em muitas regiões, não somente são expressas nas máximas dos filósofos, mas também atingem amplamente as letras, as artes, a interpretação das ciências humanas e da história e as próprias leis civis, de tal modo que em conseqüência muito se perturbem. [Os Desequilíbrios do Mundo Moderno] 8. Uma evolução tão rápida das coisas, progredindo com freqüência desordenadamente, e mais ainda a própria consciência mais aguda das discrepancias vigentes no mundo produzem ou aumentam as contradições e desequilíbrios. Na própria pessoa manifesta-se mais freqüentemente o desequilíbrio entre a inteligência prática moderna e o pensamento teórico-especulativo, que não consegue nem dominar a suma de seus conhecimentos nem ordená-los numa síntese adequada. Manifesta-se igualmente o desequilíbrio entre a preocupação de eficácia concreta e as exigências da consciência moral e muitas vezes entre as condições coletivas da existência e as exigências de um pensamento pessoal e também de contemplação. Enfim, surge o desequilíbrio entre a especialização da atividade humana e a visão universal das coisas. Nascem tensões também no seio da família, quer devidas ao peso das condições demográficas, econômicas e sociais, quer as dificuldades oriundas entre as gerações que se sucedem, quer às novas relações sociais que se estabelecem entre homens e mulheres. Discrepancias enormes surgem ainda entre as raças, entre as classes sociais de todo o gênero, entre nações ricas e menos ricas e pobres. Enfim, entre as instituições internacionais oriundas do desejo dos povos pela paz e a ambição de disseminar a própria ideologia e os egoismos coletivos existentes nas nações e em outros grupos. Daí surgem desconfianças mútuas e inimizades, conflitos e sofrimentos, dos quais o homem é ao mesmo tempo causa e vítima. [As Aspirações mais Universais do Gênero Humano] 9. Entretanto cresce a persuasão de que o gênero humano não só pode mas deve fortalecer cada mais o seu domínio sobre as coisas criadas; além disso, que lhe compete estabelecer uma organização política, social e econômica que com o tempo sirva melhor ao homem e ajude cada um a cada grupo a afirmar e cultivar a própria dignidade. Daí muitíssimos reivindicam acirradamente aqueles bens dos quais tomando viva consciência se julgam privados, por injustiças ou inadequada distribuição. As nações em via de desenvolvimento como aquelas que se tornaram recentemente independentes aspiram participar dos bens da civilização, não só no plano político, mas também econômico, e desempenhar livremente seu papel no cenário do mundo. Contudo cada dia aumenta mais a sua distância e muitas vezes ao mesmo tempo a sua dependência também econômica de outras nações mais ricas e em progresso mais rápido. Os povos oprimidos pela fome interpelam os povos mais ricos. As mulheres reivindicam, onde ainda não a conseguiram, sua paridade de direito e de fato com os homens. Os operários e lavradores não querem somente ganhar o necessário para a alimentação, mas também pelo trabalho cultivar sua personalidade, e mesmo participar na organização da vida econômica, social, política e cultural. Agora, pela primeira vez na história humana, todos os povos já estão convencidos de que os benefícios da cultura realmente podem e devem ser estendidos a todos. Debaixo porém de todas estas reivindicações está latente uma aspiração mais profunda e mais universal: as pessoas e os grupos desejam viver plena e livremente de maneira digna do homem, colocando a seu próprio serviço todas as coisas que o mundo moderno pode oferecer tão abundantemente. Além disso as nações se esforçam cada dia mais tenazmente para que se consiga uma comunidade universal. Assim, o mundo moderno se apresenta ao mesmo tempo poderoso e débil, capaz de realizar o ótimo e o péssimo, por quanto se lhe abre o caminho da liberdade ou da escravidão, do progresso ou do regresso, da fraternidade ou do ódio. Além disso, o homem se torna consciente de que depende dele dirigir retamente as forças por ele despertadas e que o podem oprimir ou lhe servir. Por isso, o homem se pergunta a si mesmo. [As Interrogações mais Profundas do Gênero Humano] 10. Na verdade, os desequilíbrios que atormentam o mundo moderno se vinculam com aquele desequilíbrio mais fundamental radicado no coração do homem. Com efeito, no próprio homem muitos elementos lutam entre si. Enquanto, de uma parte, porque criatura, experimenta-se limitado de muitas maneiras, por outra parte, porem, sente-se ilimitado nos seus desejos e chamado a uma vida superior. Atraído por muitas solicitações, é ao mesmo tempo obrigado a escolher entre elas renunciando a algumas. Pior ainda: enfermo e pecador, não raro faz o que quer, não fazendo o que desejaria.4 Em suma sofre a divisão em si mesmo, da qual se originam tantas e tamanhas discórdias na sociedade. Certamente muitíssimos, cuja vida se impregnou de materialismo prático, afastam-se da percepção clara deste estado dramático, ou, oprimidos pela miséria, são impedidos de considerá-lo. Muitos pensam encontrar tranqüilidade nas diversas explicações do mundo que lhes são propostas. Outros porem esperam uma verdadeira e plena libertação da humanidade somente pelo esforço humano. Estão persuadidos de que o futuro reino do homem sobre a terra haverá de satisfazer todos os desejos de seu coração. Não faltam os que, desesperados do sentido da vida, louvam a audácia daqueles que, julgando a existência humana desprovida de qualquer significado peculiar, esforçam-se por lhe atribuir toda significação só do próprio engenho. Contudo, diante da evolução atual do mundo, cada dia são mais numerosos os que formulam perguntas primordialmente fundamentais ou as percebem com nova acuidade. O que é o homem? Qual é o significado da dor, do mal, da morte que, apesar de tanto progresso conseguido, continuam a subsistir? Para que aquelas vitórias adquiridas a tanto custo? O que pode o homem trazer para a sociedade e dela esperar? O que se seguirá depois desta vida terrestre? 4 Cf. Rm 7,14ss. A Igreja porém acredita em Cristo, morto e ressuscitado para todos5, pode oferecer ao homem, por seu Espírito, a luz e as forças que lhe permitirão corresponder à sua vocação suprema. Ela crê não foi dado aos homens sob o céu outro nome no qual seja preciso se salvarem.6 Acredita igualmente que a chave, o centro e o fim de toda história humana se encontram no seu Senhor e Mestre. Afirma além disso a Igreja que sob todas as transformações permanecem muitas coisas imutáveis, que têm seu fundamento último em Cristo, o mesmo ontem e hoje e por toda a eternidade.7 Portanto, sob a luz de Cristo, Imagem de Deus invisível e Primogênito de todas as criaturas8, o Concílio pretende falar a todos, para esclarecer o mistério do homem e cooperar na descoberta da solução dos principais problemas do nosso tempo. 5 Cf. 2 Cor 5,15. 6 Cf. At 4,12. 7 Cf. Heb 13,8. 8 Cf. Col 1,15. PARTE I: A IGREJA E A VOCAÇÃO DO HOMEM [Corresponder aos Impulsos do Espírito] 11. Movido pela fé, conduzido pelo Espírito do Senhor que enche o orbe da terra, o Povo de Deus esforça-se por discernir nos acontecimentos, nas exigências e nas aspirações de nossos tempos, em que participa com os outros homens, quais sejam os sinais verdadeiros da presença ou dos desígnios de Deus. A fé, com efeito, esclarece todas as coisas com luz nova. Manifesta o plano divino sobre a vocação integral do homem. E por isso orienta a mente para soluções plenamente humanas. O Concílio tem a intenção antes de tudo de distinguir sob esta luz aqueles valores que hoje são de máxima estimação, relacionando-os à sua fonte divina. Estes valores, enquanto derivam da inteligência do homem que lhe foi conferida por Deus, são muito bons. Mas por causa da corrupção do coração humano eles se afastam não raro da sua ordem devida e por isso precisam de purificação. O que pensa a Igreja a respeito do homem? O que parece dever ser recomendado para a construção da sociedade atual? Qual é a significação última da atividade do homem no universo? Espera-se uma resposta para estas perguntas. E assim aparecerá de modo mais claro que o Povo de Deus e a humanidade, na qual ele se insere, prestam-se serviços mútuos. Assim a missão da Igreja se manifesta como religiosa e, por isso mesmo, humana no mais alto grau. CAPÍTULO I: A DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA [O Homem Imagem de Deus] 12. De acordo com a sentença quase concorde dos crentes e não-crentes, todas as coisas existentes na terra são ordenadas ao homem como a seu centro e ponto culminante. O que é porem o homem? Ele emitiu e ainda emite muitas opiniões a respeito de si mesmo, variadas e contrárias entre si. Numas muitas vezes se exalta como norma absoluta. Noutras deprime-se até ao desespero. Donde sua hesitação e angústia. A Igreja percebe claramente estas dificuldades. Instruída pela revelação de Deus, pode darlhes uma resposta, na qual se delineia a verdadeira condição humana, explicam-se as suas fraquezas e ao mesmo tempo se reconhecem de modo correto sua dignidade e vocação. Pois as Sagradas Escrituras ensinam que o homem foi criado “a imagem de Deus”, capaz de conhecer e amar seu Criador, que o constitui senhor de todas as coisas terrenas¹ para que as dominasse e usasse, glorificando a Deus. ² “O que é o homem para dele vos lembrardes? Ou que é o filho do homem para que vos ocupeis com ele? Entretanto, vós o fizestes pouco inferior aos anjos, coroando-o de honra e glória. Destes-lhe o poder sobre as obras de vossas mãos, Vós lhe submetestes toda a criação” (Sl 8,5-7). ¹ Cf. Gn 1,26; Sab 2,23 ² Cf. Ecli 17,3-10 Deus não criou o homem solitário. Desde o início, “Deus os criou varão e mulher” (Gn 1,27). Esta união constituiu a primeira forma de comunhão de pessoas. O homem é, com efeito, por sua natureza íntima, um ser social. Sem relações com os outros, não pode nem viver nem desenvolver seus dotes. Deus portanto, como lemos novamente na Escritura Sagrada, viu “serem muito boas todas as coisas que fizera” (Gn 1,31). [O Pecado] 13. Constituído por Deus em estado de justiça, o homem contudo, instigado pelo Maligno, desde o início da história abusou da própria liberdade. Levantou-se contra Deus desejando atingir seu fim fora dele. Apesar de conhecerem a Deus, não o glorificaram como Deus. O seu coração insensato se obscureceu e eles serviram à criatura ao invés do Criador. ³ Isto, que nos é conhecido pela Revelação divina, concorda com a própria experiência. Pois o homem, olhando o seu coração, descobre-se também inclinado para o mal e mergulhado em múltiplos males que não podem provir do seu Criador que é bom. Recusando muitas vezes a reconhecer Deus com seu principio, o homem destruiu a devida ordem em relação ao fim último e, ao mesmo tempo, toda a sua harmonia consigo mesmo, com os outros homens e as coisas criadas. ³ Cf. Rom 1,21-25 Por isso o homem está dividido em si mesmo. Por esta razão, toda a vida humana, individual e coletiva, apresentase como uma luta dramática entre o bem e o mal, entre a luz e as trevas. Bem mais ainda. O homem se encontra incapaz, por si mesmo, de debelar eficazmente os ataques do mal; e assim cada um se sente como que carregado de cadeias. Mas o próprio Senhor veio para libertar e confortar o homem, renovando-o interiormente. Expulsou o “príncipe deste mundo” (Jo 12,31) que retinha o homem na escravidão do pecado.4 O pecado porém diminuiu o próprio homem, impedindo-o de conseguir a plenitude. 4 Cf. Jo 8,34 À luz desta Revelação, a vocação sublime e ao mesmo tempo a profunda miséria que os homens sentem, encontram a sua razão última. [A Constituição do Homem] 14. Corpo e alma, mas realmente uno, o homem, por sua própria condição corporal, sintetiza em si os elementos do mundo material, que nele assim atinge sua plenitude e apresenta livremente ao Criador uma voz de louvor. 5 Não é portanto lícito ao homem desprezar a vida corporal, mas, ao contrário, deve estimar e honrar o seu corpo, porque criado por Deus e destinado à ressurreição no último dia. Mas, vulnerado pelo pecado, o homem sente as revoltas do corpo. Portanto a própria dignidade do homem pede que ele glorifique a Deus, em seu corpo, não lhe permitindo servir a más inclinações do coração6. 5 Cf. Dan 3,57-90 6 Cf. 1 Cor 6,13-20 O homem na verdade não se engana quando se reconhece superior aos elementos materiais, e não se considera somente uma partícula da natureza ou um elemento anônimo da cidade humana. Com efeito, por sua vida interior, o homem excede a universalidade das coisas. Ele penetra nesta intimidade profunda quando se volta ao seu coração, onde o espera Deus, que perscruta os corações7; e onde ele pessoalmente sob os olhares de Deus decide a sua própria sorte. Deste modo, reconhecendo em si mesmo a alma espiritual e imortal, longe de tornar-se joguete de uma criação imaginária que se explicaria somente pelas condições físicas e sociais, o homem, ao contrário, atinge a própria profundeza da realidade. 7 Cf. 1 Rs 16,7; Jer 17,10. [A Dignidade da Inteligência, a Verdade e a Sabedoria] 15. Participando da luz da inteligência divina, com razão o homem se julga superior, por sua inteligência, à universalidade das coisas. Exercitando a sua inteligência diligentemente através dos séculos, nas ciências empíricas, artes técnicas e liberais, o homem de fato progrediu. Em nossos tempos, sobretudo pesquisando e dominando o mundo material, o homem conseguiu notáveis resultados. Porém procurou sempre e encontrou uma verdade mais profunda. Pois a inteligência não se limita aos fenômenos, mas pode atingir, com autêntica certeza, a realidade intelegivel, ainda que, em conseqüência do pecado, esteja em parte obscurecida e enfraquecida. Enfim, a natureza intelectual da pessoa humana se aperfeiçoa e deve ser aperfeiçoada pela sabedoria. Esta atrai de maneira suave a mente do homem à procura e ao amor da verdade e do bem. Impregnado de sabedoria o homem passa das coisas visíveis às invisíveis. A nossa época, mais do que os séculos passados precisa desta sabedoria para que se tornem mais humanas todas as novidades descobertas pelo homem. Realmente está em perigo a sorte futura do mundo se não surgirem homens mais sábios. Além disso, deve-se notar que numerosas nações, mais pobres em bens econômicos, porem mais ricas em sabedoria, podem prestar excelente contribuição às outras. Pelo dom do Espírito Santo, o homem, na fé, chega a contemplar e a saborear o mistério do plano divino8. 8 Cf. Ecli 17,7-8. [Dignidade da Consciência Moral] 16. Na intimidade da consciência, o homem descobre uma lei. Ele não a dá a si mesmo. Mas a ela deve obedecer. Chamando-o sempre a amar e fazer o bem e a evitar o mal, no momento oportuno a voz desta lei lhe soa nos ouvidos do coração: faze isto, evita aquilo. De fato o homem tem uma lei escrita por Deus em seu coração. Obedecer a ela é a própria dignidade do homem, que será julgado de acordo com esta lei.9 A consciência é o núcleo secretíssimo e o sacrário do homem onde ele está sozinho com Deus e onde ressoa sua voz.10 Pela consciência se descobre, de modo admirável, aquela lei que se cumpre no amor de Deus e do próximo.¹¹ Pela fidelidade à consciência, os cristãos e na solução justa de inúmeros problemas morais que se apresentam, tanto na vida individual quanto social. Quanto mais pois prevalecer a consciência reta, tanto mais as pessoas e os grupos se afastam de um arbítrio cego e se esforçam por se conformar às normas objetivas da moralidade. Acontece não raro contudo que a consciência erra, por ignorância invencível, sem perder no entanto sua dignidade. Isto porém não se pode dizer quando o homem não se preocupa suficientemente com a investigação da verdade e do bem, e a consciência pouco a pouco pelo hábito do pecado se torna quase obcecada. 9 Cf. Rom 2,14-16. 10 Cf. Pio XII, Radiomensagem sobre a reta formação da consciência cristã nos jovens, de 23-3-1952: AAS 44 (1952), p. 271 (REB 1952, p. 431; D.P. 136). ¹¹ Cf. Mt 22,37-40; Gá1 5,14. [A Grandeza da liberdade] 17. O homem porem não pode voltar-se para o bem a não ser livremente. Os nossos contemporâneos exaltam e defendem com ardor esta liberdade. E de fato com razão. Contudo, eles a fomentam muitas vezes de maneira viciada, como uma licença de fazer tudo que agrada, mesmo o mal. A verdadeira liberdade porem é um sinal eminente da imagem de Deus no homem. Pois Deus quis “deixar ao homem o poder de decidir”¹², para que assim procure e chegue à perfeição plena e feliz. Portanto a dignidade do homem exige que possa agir de acordo com uma opção consciente e livre, isto é, movido e levado por convicção pessoal e não por força de um impulso interno cego ou debaixo de mera coação externa. O homem consegue esta dignidade quando, liberado de todo o cativeiro das paixões, caminha para o seu fim pela escolha livre do bem e procura eficazmente os meios aptos com diligente aplicação. A liberdade do homem, vulnerada pelo pecado, só com o auxílio da graça divina pode tornar plenamente ativa esta ordenação a Deus. Cada um porem, perante o tribunal de Deus, prestará contas da própria vida, segundo o bem e o mal que tiver feito.¹³ ¹² Cf. 1 Cor 5,10. ¹³ Cf. Sab 1,13; 2,23-24; Rom 5,21; 6,23; Tgo 1,15. [O Mistério da Morte] 18. Diante da morte, o enigma da condição humana atinge seu ponto alto. O homem não se aflige somente com a dor e a progressiva dissolução do corpo, mas também, e muito mais, com o temor da destruição perpétua. Mas é por uma inspiração acertada do seu coração que afasta com horror e repele a ruína total e a morte definitiva de sua pessoa. A semente de eternidade que leva dentro de si, irredutível a só matéria, insurge-se contra a morte. Todas as conquistas da técnica, ainda que utilíssimas, não conseguem acalmar a angústia do homem. Pois a longevidade, que a biologia lhe consegue, não satisfaz o desejo de viver sempre mais, que existe inelutavelmente em seu coração. Enquanto toda a imaginação fracassa diante da morte, a Igreja contudo, instruída pela Revelação divina, afirma que o homem foi criado por Deus para um fim feliz, além dos limites da miséria terrestre. Mais ainda. Ensina a fé cristã que a morte corporal, da qual o homem seria subtraído se não tivesse pecado14, será vencida um dia, quando a salvação perdida pela culpa do homem lhe for restituída por seu onipotente e misericordioso Salvador. Pois Deus chamou e chama o homem para que ele, com a sua natureza inteira, de sua adesão a Deus na comunhão perpétua da incorruptível vida divina. Cristo conseguiu esta vitória, por sua morte, libertando o homem da morte que reflete, apresentada com argumentos sólidos, a fé dá-lhe uma resposta a sua angústia sobre a sorte futura. Ao mesmo tempo oferece a possibilidade de comunicar-se em Cristo com os irmãos queridos já arrebatados pela morte, trazendo a esperança de que eles tenham alcançado a verdadeira vida junto de Deus. 14 Cf. Sab 1,13; 2,23-24; Rom 5,21; 6,23; Tgo 1,15. [As Formas de Ateísmo e suas Causas] 19. A razão principal da dignidade humana consiste na vocação do homem para a comunhão com Deus. Já desde sua origem o homem é convidado para o diálogo com Deus. Pois o homem, se existe, é somente porque Deus o criou e isto por amor. Por amor é sempre conservado. E não vive plenamente segundo a verdade, a não ser que reconheça livremente aquele amor e se entregue ao seu Criador. Mas muitos de nossos contemporâneos não percebem de modo algum esta união íntima e vital com Deus ou explicitamente a rejeitam, a ponto de o ateísmo contar entre os gravíssimos problemas de nosso tempo e deve ser submetido a um exame mais diligente. Pela palavra ateísmo designam-se fenômenos bastante diversos entre si. Enquanto Deus é expressamente negado por uns, outros pensam que o homem não pode afirmar absolutamente nada sobre Ele. Alguns porem submetem a exame o problema de Deus por tal método, que parece carecer de sentido. Muitos, ultrapassando indebitamente os limites das ciências positivas, ou sustentam que só por este processo científico se explicam todas as coisas, ou, ao contrário, já não admitem de modo algum nenhuma verdade absoluta, Alguns exaltam o homem a tal ponto que a fé em Deus se torna como que enervada e dão a impressão de estar mais preocupados com a afirmação do homem que com a negação de Deus. Outros se representam um Deus de tal modo que aquela fantasia, que eles repudiam, de modo algum é o Deus do Evangelho. Alguns não abordam sequer o problema de Deus: parece não sentirem nenhuma inquietação religiosa e nem atinarem por que deveriam preocupar-se com religião. Além disso o ateísmo não raramente ou de um protesto violento contra o mal no mundo, ou do caráter do próprio absoluto que se atribui indevidamente a alguns bens humanos, de tal modo que sejam tomados por Deus. A própria civilização moderna, não por si mesma, mas porque demasiadamente comprometida com as realidades terrestres, pede muitas vezes dificultar o acesso a Deus. Na verdade os que deliberadamente tentam afastar Deus de seu coração e evitar os problemas religiosos, não seguindo o ditame da sua consciência, não são isentos de culpa. No entanto os próprios fiéis arcam sobre isto muitas vezes com alguma responsabilidade. Pois o ateísmo, considerado no seu conjunto, não é algo inato mas antes originado de causas diversas, entre as quais se enumera também a reação crítica contra as religiões e em algumas regiões sobretudo contra a religião cristã. Por esta razão, nesta gênese do ateísmo, grande parte podem ter os crentes, enquanto, negligenciando a educação da fé, ou por uma exposição falaz da doutrina, ou por faltas na sua vida religiosa, moral e social, se poderia dizer deles que mais escondem que manifestam a face genuína de Deus e da religião. 20. O ateísmo moderno muitas vezes apresenta também uma forma sistemática que, além de outras causas, leva a aspiração humana de autonomia a ponto de levantar dificuldade contra qualquer dependência de Deus. Aqueles que professam tal ateísmo sustentam que a liberdade consiste em o homem ser o seu próprio fim e o único artífice e demiurgo de sua própria história. E pretendem que esta posição não pode harmonizar-se com o reconhecimento do Senhor, autor e fim de todas as coisas, ou pelo menos torna tal afirmação completamente supérflua. O sentido de potência que o progresso técnico atual confere ao homem, pode favorecer esta doutrina. Entre as formas do ateísmo hodierno não deve ser esquecida aquela que espera a libertação do homem, principalmente da sua libertação econômica e social. Sustenta que a religião, por sua natureza, impede esta libertação, à medida que, estimulando a esperança do homem numa quimérica vida futura, o afastaria da construção da cidade terrestre. Os partidários desta doutrina, onde chegam ao governo da coisa pública, perseguem com veemência a religião, servindo-se na difusão do ateísmo, sobretudo na educação da juventude, dos meios de pressão ao alcance do poder público. [Relação da Igreja com o Ateísmo] 21. Fiel quer a Deus e quer aos homens, a Igreja não pode deixar de reprovar dolorosamente, com toda a firmeza, como reprovou até agora16, aquelas doutrinas e atividades perniciosas que contradizem à razão e à experiência humana universal e privam o homem de sua grandeza inata. 16 Cf. Pio XI, Enc. Divini Redemptoris, de 19-3-1937: AAS 29 (1937), pp. 65-106; Pio XII, Enc. Ad Apostolorum Principis, de 29-6-1958: AAS 50 (1958), pp. 601-614; João XXIII, Enc. Mater et Magistra, de 15-5-1962 (1961), pp. 451-453; Paulo VI, Enc. Eccletestam Suam, de 6-8-1964: AAS 56 (1964), pp. 651-653. Contudo a Igreja tenta descobrir, no pensamento dos ateus, as causas latentes da negação de Deus e, consciente da gravidade dos problemas que o ateísmo levanta, guiada pela caridade para com todos os homens, julga que estes motivos devem ser submetidos a um sério e mais aprofundado exame. A Igreja sustenta que o reconhecimento de Deus não se opõe de modo algum a dignidade do homem, já que esta dignidade se fundamenta e se aperfeiçoa no próprio Deus. Pois o homem, inteligente e livre, é estabelecido por Deus criador em sociedade. Mas, como filho, é chamado principalmente a própria comunhão filho, é chamado principalmente à própria comunhão com Deus e a participação de sua felicidade. A Igreja ensina, além disso, que a esperança escatógica não diminui a importância das tarefas terrestres mas antes apóia o seu cumprimento com motivos novos. Faltando ao contrário o fundamento divino e a esperança da vida eterna, a dignidade do homem é prejudicada de modo gravíssimo, como se vê hoje com freqüência; e os enigmas sem solução: assim os homens muitas vezes são lançados ao desespero. Todo homem, entretanto, permanece para si mesmo um problema insolúvel, obscuramente percebido. Em algumas ocasiões, com efeito, sobretudo nos mais importantes acontecimentos da vida, ninguém consegue fugir de todo a esta pergunta. Só Deus dá uma resposta plena e totalmente certa a esta questão e chama o homem a mais alto conhecimento e a pesquisa mais humilde. O remédio porem a ser levado ao ateísmo deve-se esperar não só de uma adequada exposição doutrinária mas também de pureza de vida da Igreja e de seus membros. Pois compete a Igreja tornar presente e como que visível Deus Pai e seu Filho encarnado, renovando-se e purificando-se incessantemente, sob a direção do Espírito Santo. 17 Isto se obtém primeiramente pelo testemunho de uma fé viva e adulta formada, capaz de perceber de modo lúcido as dificuldades e superá-las. Inúmeros mártires deram e dão um testemunho preclaro desta fé. Esta fé deve manifestar a sua fecundidade, penetrando toda a vida dos fiéis, também a profana, impulsionando-os a justiça e ao amor, sobretudo para com os necessitados. Para a manifestação da presença de Deus contribui enfim sobremaneira a caridade fraterna dos fiéis, que em espírito unânimes colaboram para a fé do Evangelho18 e se apresentam como sinal de unidade. 17 Cf. Conc. Vat. II, Const. Dogm. Sobre a Igreja, Lumen Gentium, cap. I, n. 8: AAS 57 (1965), p. 12. 18 Cf. Filip 1,27. Ainda que rejeite absolutamente o ateísmo, a Igreja contudo declara com sinceridade que todos os homens, crentes e não-crentes, devem prestar seu auxílio a construção adequada deste mundo, no qual vivem comunitariamente. Isto certamente não é possível sem sincero e prudente diálogo. Deplora portanto a discriminação, entre crentes e não-crentes, que alguns governantes, não reconhecendo os direitos fundamentais da pessoa humana, introduzem injustamente. Reclama a liberdade ativa para os crentes, a fim de que possam nesse mundo construir também o templo de Deus. Aos ateus, convida-os humanamente a refletir com toda a objetividade sobre o Evangelho de Cristo. Pois a Igreja sabe perfeitamente que sua mensagem concorda com as aspirações mais íntimas do coração humano, quando reivindica a dignidade da vocação humana, restituindo a esperança aqueles que já desesperam de seu destino mais alto. A sua mensagem, longe de diminuir o homem, derrama luz, vida e liberdade para o seu progresso. Nada além disto pode satisfazer o coração do homem: “Fizestes-nos para Vós”, Senhor, “e o nosso coração permanece inquieto, enquanto em Vós não descansar”.19 19 S. Agostinho, Confissões, 1,1: PL 32,661. [Cristo, Homem Novo] 22. Na realidade o mistério do homem só se torna claro verdadeiramente no mistério do Verbo encarnado. Com efeito, Adão o primeiro era figura daquele que haveria de vir20, isto é, de Cristo Senhor. Novo Adão, na mesma revelação do mistério do Pai e de seu amor, Cristo manifesta plenamente o homem ao próprio homem e lhe descobre a sua altíssima vocação. Não é portanto de se admirar que em Cristo estas verdades encontrem sua fonte e atinjam seu ápice. 20 Cf. Rm 5,14. Cf. Tertuliano, De carnis resurr. 6: “Quod-cumque enim limus exprimebatur, Christus cogitabatur futurus”: PL 2,802 (848); CSEL, p. 33, 1.12-13. “Imagem de Deus invisível” (Col 1,15)21, Ele é o homem perfeito, que resistiu aos filhos de Adão a semelhança divina, deformada desde o primeiro pecado. Como a natureza humana foi n’Ele assumida, não aniquilada ²², por isso mesmo também foi em nós elevada a uma dignidade sublime. Com efeito, por Sua encarnação, o Filho de Deus uniu-se de algum modo a todo homem. Trabalhou com mãos humanas, pensou com inteligência humana, agiu com vontade humana ²³, amou com coração humano. Nascido da Virgem Maria, tornou-se verdadeiramente um de nós, semelhante a nós em tudo, exceto no pecado.24 ²¹ Cf. 2 Cor 4,4. ²² Cf. Conc. Const.. II cân. 7: “Nem o Verbo se transformou na natureza da carne, nem a carne passou a natureza do Verbo”: Dz 219 (428). – Cf. também o Conc. Const. III: “Como sua carne animada santíssima e imaculada, não por estar divinizada foi suprimida, mas permaneceu em seu próprio estado e razão: Dz 291 (556). – Cf. Conc. Calced.: Cristo “deve ser reconhecido em duas naturezas, sem confusão, sem mudança, sem divisão, sem separação”: Dz 148 (302). ²³ Cf. Conc. Const. III: “assim nem sua vontade humana foi suprimida por estar divinizada”. 24 Cf. Heb 4,15. Cordeiro inocente, por meio de Seu sangue livremente derramado, mereceu-nos a vida. N’Ele Deus nos reconciliou consigo e entre nós25, arrancando-nos da servidão do diabo e do pecado. De modo que cada um de nós pode dizer com o Apóstolo: O Filho de Deus “me amou e Se entregou por mim” (Gál 2,20). Padecendo por nós não só nos deu o exemplo para que sigamos os Seus passos26, mas ainda abriu novo caminho: se nós o seguirmos, a vida e a morte se santificam e adquirem nova significação. 25 Cf. 2 Cor 5,18-19; Col 1,20-22. 26 Cf. 1 Ped 2,21; Mt 16,24; Lc 14,27. Feito conforme a imagem do Filho que é o Primogênito entre muitos irmãos27, o irmão cristão recebe “as primícias do Espírito Santo” (Rom 8,23), que o tornam capaz de cumprir a nova lei de amor.28 Por esse Espírito, “penhor da herança” (Ef 1,14) o homem todo se renova interiormente, até a “redenção do corpo” (Rom 8,32). “Se o Espírito daquele que ressuscitou Jesus dos mortos habita em vós, aquele que ressuscitou Jesus Cristo dos mortos, vivificará também os vossos corpos mortais, por virtude do seu Espírito que habita em vós” (Rom 8,11).29 É certo que a necessidade e o dever obrigam o cristão a lutar contra o mal através de muitas tribulações e a padecer a morte. Mas, associado ao mistério pascal, configurado à morte de Cristo e fortificado pela esperança chegará a ressurreição.30 27 Cf. Rom 8,29; Col 3,10-14. 28 Cf. Rom 8,1-11. 29 Cf. 2 Cor 4,14. 30 Cf. Filip 3,10; Rom 8,17. Isto vale não somente para os cristãos, mas também para todos os homens de boa vontade em cujos corações a graça opera de modo invisível.³¹ Com efeito, tendo Cristo morrido por todos ³² e sendo uma só a vocação última do homem, isto é divina, devemos admitir que o Espírito Santo oferece a todos a possibilidade de se associarem, de modo conhecido por Deus, a este mistério pascal. ³¹ CF. Conc. Vat. II, Const. Dogm. Sobre a Igreja, Lumen Gentium, cap. II, n. 16: AAS 57 (1965), p. 20. ³² Cf. Rom 8,32. Tal e tamanho é o mistério do homem que pela Revelação cristã brilha para os fiéis. Por Cristo e em Cristo, portanto, ilumina-se o enigma da dor e da morte, que fora de seu Evangelho nos esmaga. Cristo ressuscitou, com Sua morte destruiu a morte e concedeu-nos a vida ³³, para que, filhos no Filho, clamemos no Espírito: Abba, Pai!34 ³³ Cf. Liturgia pascal bizantina. 34 Cf. Rom 8,15; Gál 4,6; Jo 1,22 e 1 Jo 3,1-2. CAPÍTULO II: A COMUNIDADE HUMANA [Intenção do Concílio] 23. Entre os principais aspectos do mundo de hoje enumera-se a multiplicação das relações mútuas entre os homens. Para sua evolução, em alta escala contribui o progresso técnico atual. Contudo, o diálogo fraterno entre os homens se aperfeiçoa, não neste progresso, porém mais profundamente na comunidade de pessoas, que exige uma reverência mútua para com sua plena dignidade espiritual. Mas para promover esta comunhão entre as pessoas, a Revelação cristã oferece um grande auxílio; ao mesmo tempo, nos leva a mais profunda compreensão das leis da vida social que o Criador gravou na natureza espiritual e moral do homem. Mas como os mais recentes documentos do Magistério da Igreja desenvolveram difusamente a doutrina cristã sobre a sociedade humana¹, o Concílio recorda somente algumas verdades mais essenciais e expõe os seus fundamentos à luz da Revelação. Em seguida insiste em algumas conseqüências que são de maior importância para os nossos dias. ¹ Cf. João XXIII, Enc. Mater et Magistra, de 15-5-1961: AAS 53 (1961), pp. 401-464 e a Enc. Pacem in terris, de 114-1963: AAS 55 (1963), pp. 257-304; Paulo VI, Enc. Ecclesiam Suam, de 6-8-1964: AAS 54 (1964), pp. 609-659. [A Índole Comunitária da Vocação Humana no Plano de Deus] 24. Deus, que tem um cuidado paternal para com todos, quis que todos os homens formassem uma só família e se tratassem mutuamente com espírito fraterno. Todos, com efeito, criados à imagem de Deus, que “de um fez todo o gênero humano habitar sobre a face da terra” (At 17,26), são chamados a um único e mesmo fim, que é o próprio Deus. Por isso, o amor de Deus e do próximo é o primeiro e o máximo mandamento. Mas a Sagrada Escritura nos ensina que o amor de Deus não se pode separar do amor do próximo: “...se há algum outro mandamento, ele se resume nestas palavras: Amarás a teu próximo como a ti mesmo... A plenitude portanto da lei é o amor” (Rom 13,9-10; 1 Jo 4,20). E isto se comprova ser de máxima importância para os homens que cada dia são mais dependentes uns dos outros e para o mundo que incessantemente se unifica mais. Mais ainda. Quando o Senhor Jesus reza ao Pai que “todos sejam um..., como nós somos um” (Jo 17,21-22), abre perspectivas inacessíveis a razão humana, sugere alguma semelhança entre a união das pessoas divinas e a união dos filhos de Deus na verdade e na caridade. Esta semelhança manifesta que o homem, a única criatura na terra que Deus quis por si mesma, não pode se encontrar plenamente se não por um dom sincero de si mesmo. ² ² Cf. Lc 17,33 [Mútua Dependência entre a Pessoa Humana e a Sociedade Humana] 25. A índole social do homem evidencia que o aperfeiçoamento da pessoa humana e o desenvolvimento da própria sociedade dependem um do outro. A pessoa humana é e deve ser o princípio, sujeito e fim der todas as instituições sociais, porque, por sua natureza, necessita absolutamente da vida social. ³ A vida social não é portanto algo acrescentado ao homem: assim o homem desenvolve-se em todas as suas qualidades mediante, pelo diálogo com os irmãos, e pode corresponder a sua vocação. ³ Cf. S. Tomás, I Ethic., lect. 1. Dos vínculos sociais necessários a educação do homem, alguns, como a família e a comunidade política, correspondem mais imediatamente a sua natureza intima. Os outros decorrem mais da vontade livre. Em nossos tempos, por diversos motivos, as relações mútuas e interdependências multiplicam-se cada dia: donde aparecem diversas associações e instituições de direito público e privado. Ainda que neste fato, chamado socialização, não careça de perigos, é portador de muitas vantagens para consolidar e aumentar as qualidades da pessoa humana e para defender os seus direitos.4 4 Cf. João XXIII, Enc. Mater et Magistra: AAS 53 (1961), p. 418. Pio XI, Enc. Quadragesimo Anno, 15-5-1931: AAS 23 (1931), p. 222 s. Mas se as pessoas humanas, para a realização de sua vocação, mesmo a religiosa, recebem muito desta vida social, não se pode entretanto negar que os homens, pelas circunstâncias sociais nas quais vivem e estão mergulhados desde a infância, são com freqüência afastados da prática do bem e impelidos ao mal. É certo que as perturbações, verificadas tão freqüentemente na ordem social, decorrem em parte da própria tensão existentes na estrutura econômicas, políticas e sociais. Porém, mais profundamente, originam-se da soberba e do egoísmo dos homens, que transformam também o ambiente social. Mas onde a ordem das coisas é antiga pelas conseqüências do pecado, o homem, inclinado ao mal por nascença, encontra em seguida novos estímulos para o pecado, que não se vencem senão com esforços diligentes e o auxílio da graça. [Promoção do Bem Comum] 26. A interdependência cada dia se estreita mais e se difunde pouco a pouco no mundo inteiro. Segue-se daí que o bem comum – ou o conjunto daquelas condições da vida social que permitem aos grupos e a cada um de seus membros atingirem de maneira mais completa e desembaraçadamente a própria perfeição – torna-se hoje cada vez mais universal e implica por conseqüência direitos e deveres que dizem respeito a todo o gênero humano. Qualquer grupo deve levar em conta as necessidades e aspirações legítimas dos outros grupos e, ainda mais, o bem comum de toda a família humana.5 5 Cf. João XXIII, Enc. Mater et Magistra: AAS 53 (1961), p. 417. Cresce, porém, ao mesmo tempo a consciência da dignidade exímia da pessoa humana, superior a todas as coisas. Seus direitos e deveres são universais e invioláveis. É preciso portanto que se tornem acessíveis ao homem todas aquelas coisas que lhe são necessárias para levar uma vida verdadeiramente humana. Tais são: alimento, roupa, habitação, direito de escolher livremente o estado de vida e de constituir família, direito a educação, ao trabalho, a boa fama, ao respeito, a conveniente informação, direito de agir segundo a norma reta de sua consciência, direito à proteção da vida particular e a justa liberdade, também em matéria religiosa. Portanto, a ordem social e o seu progresso devem ordenar-se incessantemente ao bem das pessoas, pois a organização das coisas deve subordinar-se a ordem das pessoas e não ao contrário. O próprio Senhor o insinua ao dizer que o sábado foi feito para o homem e não o homem para o sábado.6 Esta ordem deve desenvolver-se sem cessar, ter por base a verdade, construir-se sobre a justiça, ser animada pelo amor e encontrar na liberdade um equilíbrio sempre mais humano.7 Para se cumprirem tais exigências, devem-se introduzir uma reforma de mentalidade e amplas mudanças sociais. 6 Cf. Mc 2,27. 7 Cf. João XXIII, Enc. Pacem in terris: AAS 55 (1963), p. 266. O Espírito de Deus, que dirige o curso da história com providência admirável e renova a face da terra está presente a esta evolução. O fermento evangélico despertou e desperta no coração do homem uma irrefreável exigência de dignidade. [O Respeito para com a Pessoa Humana] 27. Descendo às conseqüências práticas e mais urgentes, o Concílio inculca o respeito ao homem; que cada um respeite o próximo como “outro eu”, sem excetuar nenhum, levando em consideração antes de tudo a sua vida e os meios necessários para mantê-la dignamente8, a fim de não imitar aquele rico que não teve nenhum cuidado com o pobre Lázaro.9 8 Cf. Tgo 2,15-16. 9 Cf. Lc 16,19-31. Sobretudo nos nossos tempos, temos a imperiosa obrigação de nos tornar-mos próximos de qualquer homem indistintamente; se ele se nos apresenta, devemos servi-lo ativamente, quer seja um velho abandonado por todos, ou um operário estrangeiro injustamente desprezado, ou um exilado, ou uma criança nascida de união ilegítima sofrendo imerecidamente por um pecado que não cometeu, seja um faminto que interpela a nossa consciência recordando a voz do Senhor: “Todas as vezes que fizestes isto a um destes meus irmãos mais pequeninos a mim é que fizestes” (Mt 25,40). Além disso, tudo o que atenta contra a própria vida, como qualquer espécie de homicídios, o genocídio, o aborto, a eutanásia e o próprio suicídio voluntário; tudo o que viola a integridade da pessoa humana, como as mutilações, as torturas físicas ou morais e as tentativas de dominação psicológica; tudo o que ofende a dignidade humana, como as condições infra-humanas de vida, os encarceramentos arbitrários, as deportações, a escravidão, a prostituição, o mercado de mulheres e jovens e também as condições degradantes de trabalho, que reduzem os operários a meros instrumentos de lucro, sem respeitar-lhes a personalidade livre e responsável: todas estas práticas e outras semelhantes são efetivamente dignas de censura. Enquanto elas inficionam a civilização humana, desonram mais os que se comportam desta maneira, do que aqueles que padecem tais injúrias. E contradizem sobremaneira a honra do Criador. [O Respeito e Amor para com os Adversários] 28. O respeito e caridade devem se estender também aqueles que em assuntos sociais, políticos e mesmo religiosos pensam e agem de maneira diferente da nossa. Aliás, quanto mais intimamente com humanidade e caridade compreendemos o seu modo de pensar, tanto maior será a facilidade para poder iniciar um diálogo com eles. Esta caridade e benevolência não nos deve tornar de modo algum indiferentes perante a verdade e o bem Mais ainda. A própria caridade impele os discípulos de Cristo a anunciar a verdade salvadora a todos os homens. Mas é preciso distinguir entre o erro, que deve ser sempre rejeitado, e o errante, que conserva todavia a dignidade de pessoa, mesmo quando inquinado por noções religiosas falsas ou menos cuidadas.10 Só Deus é juiz e escrutador dos corações. Por isso Ele nos proíbe julgar sobre a culpa interior de quem quer que seja.¹¹ 10 Cf. João XXIII, Enc. Pacis in terris: AAS 55 (1963), pp. 299-300. 11 Cf. Lc 6,37-38: Mt 7,1-2; Rom 2,1-11; 14,10-12. A doutrina de Cristo pede que perdoemos mesmo as injúrias¹² e estende o preceito do amor, que é o mandamento da Nova Lei, a todos os inimigos: “Ouvistes o que foi dito: Amarás o teu próximo e odiarás o teu inimigo. Eu porém vos digo: Amai os vossos inimigos, fazei bem aos que vos odeiam e orai pelos que vos perseguem e caluniam” (Mt 5,43-44). [A Igualdade Essencial entre todos os Homens e a Justiça Social] 29. Dotados de alma racional e criados à imagem de Deus, todos os homens tem a mesma natureza e a mesma origem; redimidos por Cristo, todos gozam da mesma vocação e destinação divina: deve-se portanto reconhecer cada vez mais a igualdade fundamental entre todos. Na verdade nem todos os homens se equiparam na capacidade física, que é variada, e nas forças intelectuais e morais, que são diversas. Contudo qualquer forma de discriminação nos direitos fundamentais da pessoa, seja ela social ou cultural, ou funde-se no sexo, raça, cor, condição social, língua ou religião deve ser superada e eliminada, porque contrária ao plano de Deus. É de lamentar realmente que aqueles direitos fundamentais da pessoa não sejam ainda garantidos por toda a parte. É o caso quando se nega à mulher a faculdade de escolher livremente o seu esposo, de abraçar seu estado de vida ou o acesso à mesma cultura e educação que se admitem para o homem. Além disso, ainda que haja entre os homens justas diferenças, a igual dignidade das pessoas postula que se chegue a uma condição de vida mais humana e mais eqüitativa. Pois as excessivas desigualdades econômicas e sociais entre os membros e povos da única família humana provocam escândalo e são contrárias à justiça social, à eqüidade, à dignidade da pessoa humana e a paz social e internacional. As instituições humanas, particulares ou públicas, se esforcem por servir à dignidade e ao fim do homem. Ao mesmo tempo lutem denodamente contra qualquer espécie de servidão tanto social quanto política e respeitem os direitos fundamentais do homem sob qualquer regime político. Além disso, é necessário que estas instituições pouco a pouco se adaptem às exigências espirituais, superiores a tudo, ainda que às vezes seja necessário um tempo bastante longo para chegarem ao fim desejado. [A Superação de uma Ética Individualista] 30. A transformação profunda e rápida das coisas pede com mais urgência que ninguém, desatento ao curso dos acontecimentos ou entorpecido pela inércia, se contente com uma ética meramente individualista. Cumprem-se cada vez melhor os deveres de justiça e caridade, se cada um, contribuindo para o bem comum segundo suas capacidades e as necessidades dos outros, promover e ajudar também as instituições públicas e particulares que estão a serviço de um aprimoramento das condições de vida dos homens. Alguns há que, proclamando opiniões largas e generosas, na prática vivem sempre sem cuidado algum com as necessidades da sociedade. Pior ainda. Muitos, em diversas regiões, menosprezam as leis e prescrições sociais. Não poucos, por diversas formas de fraude e de dolo, não têm escrúpulo de sonegar os impostos justos ou outras contribuições devidas a sociedade. Tem outros em pouca conta algumas normas da vida social, como por exemplo para a proteção da saúde, ou as estabelecidas para regular o trânsito de veículos, não advertindo que por falta de cuidado colocam em perigo a própria vida e a dos outros. Que todos considerem como obrigação sagrada enumerar as relações sociais entre os principais deveres do homem de hoje e observá-las. Com efeito, quanto mais se une o mundo, mais abertamente as funções humanas superam os grupos particulares e estendem-se pouco a pouco ao mundo inteiro. E isto não se pode fazer sem que os indivíduos e seus grupos cultivem em si mesmos as virtudes morais e sociais e as difundam na sociedade. Assim aparecerão, com o necessário auxílio da graça divina, homens realmente novos e construtores de uma humanidade nova. [Responsabilidade e Participação] 31. Para que cada indivíduo cumpra com mais solicitude o seu dever de consciência, tanto para consigo mesmo quanto para com os diversos grupos dos quais é membro, deve ser educado com diligência para uma cultura mais vasta do espírito, valendo-se dos recursos que hoje estão ao alcance do gênero humano. Antes de tudo deve-se organizar de tal maneira a educação dos jovens, seja qual for sua origem social, que surjam homens e mulheres não somente cultos mas também de personalidade forte, como se exigem urgentemente em nossos tempos. Mas o homem chega dificilmente a este sentido de responsabilidade se as condições de vida não lhe permitirem tomar consciência de sua dignidade e corresponder a sua vocação dedicando-se a Deus e aos outros. A liberdade humana estiola-se muitas vezes quando o homem cai em miséria extrema, assim como se degrada quando, complacente com as excessivas facilidades da vida, se fecha numa espécie de torre de marfim. O homem se fortalece, ao contrário, quando compreende as inevitáveis necessidades da vida social, assume as exigências multiformes da solidariedade humana e se responsabiliza pelo serviço a comunidade humana. Por isso deve ser estimulada a vontade de todos de participar das iniciativas comunitárias. Deve-se louvar também a maneira de proceder daquelas nações onde a maior parte dos cidadãos, com autêntica liberdade, participam da vida pública. Deve-se levar em conta contudo a condição concreta de cada povo e do necessário vigor da autoridade pública. Mas para que todos os cidadãos estejam dispostos a participar da vida dos diversos grupos, dos quais consta o corpo social, é necessário que encontrem nestes grupos os bens que os atraiam e os disponham para o serviço dos seus semelhantes. Podemos pensar com razão em depositar o futuro da humanidade nas mãos daqueles que são capazes de transmitir as gerações de amanhã razões de viver e de esperar. [O Verbo Encarnado e a Solidariedade Humana] 32. Como Deus não criou os homens para viverem isoladamente mas formarem uma união social, assim também Lhe “aprouve... santificar e salvar os homens são individualmente, excluindo qualquer conexão mútua, mas constituí-los em um povo, que O reconhecesse na verdade e O servisse santamente”.¹³ Desde o início da história da salvação Deus escolheu os homens não como indivíduos somente, mas como membros de uma comunidade. Revelando o seu plano, Deus chamou estes eleitos de “Seu povo” (Êx 3,7-12). Além disso, selou com este povo uma aliança no Sinai.14 13 Cf. Conc. Vat. II, Const. Dogm. Sobre a Igreja, Lumen Gentium, cap. 2, n.9: AAS 57 (1965), pp. 12-13. 14 Cf. Ex 24,1-8. Esta índole comunitária por obra de Jesus Cristo é aperfeiçoada e consumada. O próprio Verbo Encarnado quis participar da comunidade humana. Esteve presente as bodas de Caná, entrou na casa de Zaqueu e assentou-se a mesa com publicanos e pecadores. Revelou o amor do Pai e a exímia vocação dos homens evocando as realidades mais comuns da vida social e usando locuções e imagens inteiramente da vida cotidiana. Santificou as relações humanas, sobretudo as familiares, das quais derivam as relações sociais. Voluntariamente. Se submeteu às leis de Sua pátria. Quis levar a vida de operário própria de Seu tempo e de Sua região. Na Sua pregação claramente ordenou que os filhos de Deus se tratassem mutuamente como irmãos. Em Sua oração pediu que todos os seus discípulos fossem “um” Bem mais. Ele próprio, até a morte, ofereceu-Se por todos como Redentor de todos. “Ninguém tem mais amor do que aquele que dá a sua vida por seus amigos” (Jo 15,13). Mandou Seus apóstolos pregarem a mensagem evangélica a todos os povos, para que o gênero humano se tornasse a família de Deus, na qual a plenitude da lei seria o amor. Primogênito entre muitos irmãos, depois de Sua morte e de Sua ressurreição, pelo dom do seu Espírito, Ele instituiu, entre todos aqueles que o recebem pela fé e pelo amor, nova comunidade fraternal, em seu Corpo, que é a Igreja. Nele todos, membros uns dos outros, segundo a diversidade de dons que lhes são concedidos, devem ajudar-se mutuamente. Esta solidariedade deverá crescer sempre até o dia de sua consumação. Neste dia os homens, salvos pela graça, como família amada por Deus e por Cristo irmão, darão perfeita glória a Deus. CAPÍTULO III: SENTIDO DA ATIVIDADE HUMANA NO MUNDO [Colocação do Problema] 33. Por seu trabalho e inteligência, o homem tentou sempre desenvolver mais a sua vida. Hoje porém, sobretudo ajudado pela ciência e técnica, o homem alargou, e alarga continuamente o seu domínio sobre quase toda a natureza; primeiro com o auxílio de maiores recursos do variado comércio entre as nações, a família humana pouco a pouco se reconhece e se constitui como comunidade do mundo inteiro. Por isso, muitos bens que o homem aguardava antigamente sobretudo de forças superiores, hoje já os consegue pelo trabalho próprio. Diante deste esforço imenso, já penetra a humanidade inteira, surgem muitas perguntas entre os homens. Qual é o sentido e o valor desta atividade? Como todos estas coisas devem ser usadas? Para que fim caminha esse movimento, quer individual quer coletivo? A Igreja, guardiã do depósito da palavra de Deus do qual tira os princípios para a ordem religiosa e moral, ainda que não tenha sempre resposta imediata para todos os problemas, deseja unir a luz da revelação com a perícia de todos, para que se ilumine o caminho no qual a humanidade entrou recentemente. [Valor da Atividade Humana] 34. Para os fiéis é pacífico que a atividade humana individual e coletiva, ou aquele empenho gigantesco no qual os homens se esforçam no decorrer dos séculos para melhorar as suas condições de vida, considerado em si mesmo, corresponde ao plano de Deus. Com efeito, o homem, criado a imagem de Deus, recebeu a missão de submeter a terra com tudo o que nela existe, de governar o mundo em justiça e santidade¹ e, reconhecendo a Deus como Criador de tudo, orientar para Ele o seu ser e tudo o mais, de maneira que, com a submissão de todas as coisas ao homem, o nome de Deus seja glorificado em toda a terra. ² ¹ Cf. Gn 1,26-27; 9,2-3; Sab 9,2-3. ² Cf. Sl 8,7 e 10. E isto diz respeito também aos trabalhos inteiramente cotidianos. Pois os homens e as mulheres que, quando lutam para a sustentação de sua vida e da família, exercem suas atividades de tal modo que sirvam bem a sociedade, podem legitimamente julgar que desenvolvem com o seu trabalho a obra do Criador, ocupam-se dos interesses de seus irmãos e contribuem com sua ação pessoal para a execução do plano divino na história .³ ³ Cf. João XXIII, Enc. Pacem in terris: AAS-55 (1963), p. 297. Portanto, bem longe de julgar que as obras produzidas pelo talento e energia dos homens se opõem ao poder de Deus e de considerar a criatura racional em competição com o Criador, os cristãos estão antes convencidos de que as vitórias do gênero humano são um sinal da magnitude de Deus e fruto de seu inefável desígnio. Quanto mais porém cresce o poder dos homens tanto mais se estende a sua responsabilidade, seja pessoal seja comunitária. Donde aparece que a mensagem cristã não desvia os homens da construção do mundo nem os leva a negligenciar o bem de seus semelhantes, mas antes os obriga mais estritamente por dever a realizar tais coisas.4 4 Cf. Mensagem dos Padres Conciliares à Humanidade, de out. de 1962: AAS 54 (1962), pp. 822-823. [Norma da Atividade Humana] 35. Assim como procede do homem, a atividade humana se ordena ao homem. Com efeito o homem, quando trabalha, transforma não somente as coisas e a sociedade, mas se aperfeiçoa a si mesmo. Ele aprende muitas coisas, desenvolve suas faculdades, se supera e se realiza. Este desenvolvimento, bem entendido, é de valor maior do que as riquezas externas que se podem ajuntar. O homem vale mais pelo que é do que pelo que tem.5 Igualmente, tudo o que os homens podem fazer para alcançar maior justiça, mais ampla fraternidade e uma organização mais humana nas relações sociais ultrapassa o valor do progresso técnico. Pois estes progressos podem oferecer como qu e a matéria para a promoção humana, mas por si só não a realizam de modo algum. 5 Cf. Paulo VI, Discurso ao Corpo Diplomático, de 7-1-1965: AAS 57 (1965), p. 232. Portanto, esta é a nora da atividade humana que, de acordo com o plano e a vontade de Deus, convenha ao bem autêntico da humanidade e permita ao homem, individualmente ou colocado na sociedade, a educação e realização de sua vocação integral. [A Justa Autonomia das Realidades Terrestres] 36. Contudo, muitos contemporâneos nossos parecem temer a união mais íntima da atividade humana com a religião; vêem nela um perigo para a autonomia dos homens, das sociedades e das ciências. Se por autonomia das realidades terrestres entendemos que as coisas criadas e as mesmas sociedades gozam de leis e valores próprios, a serem conhecidos, usados e ordenados gradativamente pelo homem, é necessário absolutamente exigi-la. Isto não é só reivindicado pelos homens de nosso tempo, mas está também de acordo com a vontade do Criador. Pela própria condição de criação, todas as coisas são dotadas de fundamento próprio, verdade, bondade, leis e ordem específicas. O homem deve respeitar tudo isto, reconhecendo os métodos próprios de cada ciência e arte. Portanto, se a pesquisa metódica, em todas as ciências, proceder de maneira verdadeiramente científica e segundo as leis morais, na realidade nunca será oposta à fé: tanto as realidades profanas quanto as da fé originam-se do mesmo Deus.6 Mais ainda: Aquele que tenta perscrutar com humildade e perseverança os segredos das coisas, ainda que disto não tome consciência, é como que conduzido pela mão de Deus, que sustenta todas as coisas, fazendo que elas sejam o que são. Portanto permita-se-nos lamentar algumas atitudes que não faltaram, as vezes entre os próprios cristãos, por não se reconhecer claramente a legítima autonomia das ciências. Nas disputas e controvérsias suscitadas por este motivo, levaram muitos a julgar que a fé e a ciência se opunham entre si.7. 6 Cf. Conc. Vat. I, Const. Dogm. De fide cath., cap.3: Dz 1785-1786 (3004-3005). 7 Cf. Pio Paschini, Vita e opere di Galileo Galilei, 2 volumes, Pont. Accademia delle Scienze, Città del Vaticano 1964). Porém se pelas palavras “autonomia das realidades temporais” se entende que as coisas criadas não dependem de Deus, e o homem as pode usar sem referência ao Criador, todo aquele que admite Deus percebe o quanto sejam falsas tais máximas. Na verdade, sem o Criador, a criatura esvai-se. Além disso, todos os crentes, de qualquer religião, sempre ouviram a voz de Deus e a sua manifestação na linguagem das criaturas. E pelo esquecimento de Deus, a própria criatura torna-se obscura. [A Atividade Humana Corrompida pelo Pecado] 37. De acordo com a experiência dos séculos, a Sagrada Escritura ensina à família humana que o progresso, um grande bem para o homem, traz consigo ao mesmo tempo uma tentação enorme. Com efeito, perturbada a hierarquia de valores e misturando-se o bem com o mal, os indivíduos e os grupos olham somente os próprios interesses e não os dos outros. Por isso, o mundo já não é um lugar de fraternidade verdadeira, quando o aumentado poder da humanidade ameaça destruir o próprio gênero humano. Uma luta árdua contra o poder das trevas perpassa a história universal da humanidade. Iniciada desde a origem do mundo, vai durar até o último dia, segundo as palavras do Senhor.8 Inserindo nesta batalha, o homem deve lutar sempre para aderir ao bem; não consegue alcançar a unidade interior senão com grandes labutas e o auxílio da graça de Deus. 8 Cf. Mt 24,13; 13,24-30 e 36-43. Por esta razão, a Igreja de Cristo, confiando nos desígnios do Criador, enquanto reconhece que o progresso humano pode ajudar a felicidade verdadeira dos homens, não pode contudo deixar de fazer ressoar a palavra do Apóstolo: “Não vos conformeis a este mundo” (Rom 12,2), isto é, aquele espírito de vaidade e malícia que transforma a atividade humana, em instrumento de pecado. Se alguém portanto pergunta como se pode vencer aquela miséria, os cristãos confessam que todas as atividades humanas, diariamente desviadas pela soberba e amor desordenado de si mesmo, devem ser purificadas pela cruz e ressurreição de Cristo e encaminhadas a perfeição. Remido por Cristo e tornado criatura nova no Espírito Santo, o homem pode e deve amar as próprias coisas criadas por Deus. Pois ele as recebe de Deus e as olha e respeita como que saindo de Suas mãos. Agradece ao Benfeitor os objetos criados e usa-os e frui-os na pobreza e liberdade de espírito. É assim introduzido na verdadeira posso do mundo, como, se nada tivesse mas possuísse tudo.9 “Tudo é vosso, mas vós sois de Cristo, e Cristo é de Deus” (1Cor 3,22-23). 9 Cf. 2 Cor 6,10. [A Atividade Humana Elevada à Perfeição no Mistério Pascal] 38. O mesmo Verbo de Deus, por Quem todas as coisas foram feitas e que Se encarnou e habitou na terra dos homens10, entrou como homem perfeito na história do mundo, assumindo-a em Si mesmo e em Si recapitulando todas as coisas.¹¹ Ele nos revela que “Deus é amor” (1 Jo 4,8). Ao mesmo tempo nos ensina que a lei fundamental da perfeição humana, e portanto da transformação do mundo, é o mandamento novo do amor. Aos que acreditam na caridade divina certifica estar aberto o caminho do amor para todos os homens e não ser inútil o esforço para a instauração universal. Admoesta, ao mesmo tempo, que esta caridade deve ser exercida não só nas ações retumbantes mas sobretudo nas circunstâncias ordinárias da vida. Sofrendo a morte por todos nós pecadores¹², ensina-nos com Seu exemplo que deve ser também carregada a cruz colocada pela carne e pelo mundo sobre os ombros daqueles que procuram a paz e a justiça. Constituído Senhor por sua ressurreição, Cristo, a quem foi dado todo poder no céu e na terra¹³, já opera pela virtude de Seu Espírito nos corações dos homens; não somente desperta o desejo da vida futura, mas por isso, mesmo anima, purifica e fortalece também aquelas aspirações generosas com as quais a família humana se esforça por tornar mais humana a sua própria existência e submeter a terra inteira a este fim. Os dons do Espírito são porém diversos. Enquanto chama uns para que, pelo desejo da habitação celeste, tornem manifesto o seu testemunho e o conservem vivo na família humana, chama outros a se dedicarem ao serviço terreno dos homens, preparando com este ministério a matéria do reino celestial. Contudo liberta todos para que, renunciando ao amor-próprio e assumindo todas as forças terrestres em benefício da vida humana, se estendam às realidades futuras, quando a própria humanidade se transformará em oferta agradável a Deus.14 10 Cf. Jo 1,3 e 14. ¹¹ Cf. Ef 1,10. ¹² Cf. Jo 3,14-16; Rom 5,8-10. ¹³ Cf. At 2,36; Mt 28,18. 14 Cf. Rom 15,16. O Senhor deixou para os seus um penhor desta esperança e um viático para esta caminhada: aquele sacramento de fé, no qual os elementos da natureza, cultivados pelo homem, se convertem no Corpo e Sangue glorioso, na ceia da comunhão fraterna e prelibação do banquete celeste. [Nova Terra e Novo Céu] 39. Nós ignoramos o tempo da consumação da terra e da humanidade15 e desconhecemos a maneira de transformação do universo. Passa certamente a figura deste mundo deformada pelo pecado16, mas aprendemos que Deus prepara morada nova e nova terra. Nela habita a justiça17 e sua felicidade irá satisfazer e superar todos os desejos da paz que sobem nos corações dos homens.18 Então, vencida a morte, os filhos de Deus ressuscitarão em Cristo, e o que foi semeado na fraqueza e na corrupção revestir-se-á de incorrupção.19 Permanecerão o amor e sua obra20 e será libertada da servidão da vaidade toda aquela criação²¹ que Deus fez para o homem. 15 Cf. At Rom 15,16. 16 Cf. 1 Cor 7,31; S. Ireneu, Adv Haer. V, 36,1: PG 7,1222. 17 Cf. 2 Cor 5,2; 2 Ped 3,13. 18 Cf. 1 Cor 2,9; Apoc 21,4-5. 19 Cf. 1 Cor 15,42 e 53. 20 Cf. 1 Cor 13,8; 3,14. ²¹ Cf. Rom 8,19-21. Somos advertidos, com efeito, de que não adianta ao homem ganhar o mundo inteiro se vier a perder a si mesmo. ²² Contudo a esperança de uma nova terra, longe de atenuar, antes deve impulsionar a solicitude pelo aperfeiçoamento desta terra. Nela cresce o Corpo da nova família humana que já pode apresentar algum esboço do novo século. Por isso, ainda que o progresso terreno deva ser cuidadosamente distinguido do aumento do Reino de Cristo, contudo é de grande interesse para o Reino de Deus ²³, na medida em que pode contribuir para organizar a sociedade humana. ²² Cf. Lc 9,25. ²³ Cf. Pio XI, Enc. Quadrag. Anno: AAS 23 (1931), p. 207. Depois que propagarmos na terra, no Espírito do Senhor e por Sua ordem, os valores da dignidade humana, da comunidade fraterna e da liberdade, todos estes bons frutos da natureza e do nosso trabalho, nós os encontraremos novamente, limpos contudo de toda impureza, iluminados e transfigurados, quando Cristo entregar ao Pai o reino eterno e universal: “reino de verdade e de vida, reino de santidade e de graça, reino de justiça, de amor e de paz”.24 O Reino já está presente em mistério aqui na terra. Chegando o Senhor, ele se consumará. 24 Missal Romano, Prefácio da Festa de Cristo-Rei. CAPÍTULO IV: FUNÇÃO DA IGREJA NO MUNDO DE HOJE [Relação Mútua entre a Igreja e o Mundo] 40. Tudo o que temos dito sobre a dignidade da pessoa humana, sobre a comunidade dos homens e sobre o significado último da atividade humana, constitui o fundamento das relações entre a Igreja e o mundo e também a base de seu diálogo mútuo.¹ Por isso, neste capítulo, pressupondo tudo o que já foi publicado por este Concílio sobre o mistério da Igreja, a mesma Igreja vai ser considerada agora enquanto ela existe neste mundo e com ele vive e age. ¹ Cf. Paulo VI, Enc. Ecclesiam Suam III: AAS 56 (1964), pp. 637-659. Nascido do amor do Pai eterno ², fundada no tempo por Cristo Redentor e coadunada no Espírito Santo ³, a Igreja tem um fim salutar e escatológico que não pode ser atingido plenamente senão na vida futura. Contudo, ela já está presente aqui na terra, comporta de homens da cidade terrestre, chamados justamente a formarem já na história do gênero humano a família dos filhos de Deus, que deve crescer até a vinda do Senhor. Unida em vista dos bens celestiais e deles enriquecida, esta família foi por Cristo “fundada e organizada neste mundo como sociedade”4 e provida “de meios aptos de união visível e social”.5 Deste modo a Igreja se manifesta ao mesmo tempo como “assembléia visível e comunidade espiritual”5 e caminha juntamente com a humanidade inteira. Experimenta com o mundo a mesma sorte terrena; é como que o fermento e a alma da sociedade humana a ser renovada em Cristo e transformada na família de Deus. ² Cf. Tito 3,4: “Philanthropia”. ³ Cf. Ef 1,3; 5-6; 13-14; 23. 4 Cf. Conc. Vat. II, Const. Dogm. Sobre a Igreja, Lumen Gentium, cap. 1, n.8: AAS 57 (1965), p. 12. 5 Ibid., cap. 2, n.9: AAS 57 (1965), p. 14; cf. n. 8,1. C., p. 11. Esta compenetração da cidade terrestre e celeste não pode ser percebida senão pela fé; bem mais, permanece o mistério da história humana, que é perturbada pelo pecado até a revelação plena da claridade dos filhos de Deus. A Igreja, contudo, seguindo o seu fim próprio salutar, não somente comunica ao homem a vida divina, mas também irradia a sua luz, de certo modo refletida sobre o mundo inteiro, principalmente porque restabelece e eleva a dignidade da pessoa humana, fortalece a coesão da sociedade humana e reveste de sentido mais profundo e de significação a atividade cotidiana dos homens. Deste modo, através de cada um de seus membros e de toda a sua comunidade, a Igreja acredita poder ajudar muito a tornar mais humana a família dos homens e sua história. Além disso a Igreja Católica de boa vontade aprecia muito o que as outras igrejas cristãs ou comunidades eclesiásticas realizam em trabalho conjunto para o cumprimento da mesma missão. Ao mesmo tempo está firmemente persuadida de que pode receber preciosa e diversificada ajuda do mundo, não só dos homens em particular, mas também da sociedade, dos seus dotes e atividades, na preparação do Evangelho. A seguir expõem-se destas relações e auxílios mútuos, naqueles setores que são de algum modo comuns a Igreja e ao mundo. [O Auxílio que a Igreja se Esforça para Prestar a cada Homem] 41. O homem de hoje está a caminho de desenvolver mais plenamente a sua personalidade e de descobrir e afirmar, cada dia mais, os seus direitos. Mas como foi confiado a Igreja manifestar o mistério de Deus, deste Deus que é o fim último do homem, ao mesmo tempo revela ao homem o sentido de sua própria existência, a saber, a verdade essencial a respeito do homem. A Igreja sabe perfeitamente que só Deus ao qual serve, responde às aspirações profundíssimas do coração humano, que nunca se sacia plenamente com os alimentos terrestres. Sabe além disso que o homem, impulsionado sem cessar pelo Espírito de Deus, jamais será de todo indiferente aos problemas da religião, como se comprova não só pela experiência dos séculos passados, mas também pelo abundante testemunho dos nossos tempos. O homem, com efeito, desejará sempre conhecer, ao menos confusamente, o significado de sua vida, de sua atividade e de sua morte. A própria presença da Igreja recorda-lhe estes problemas. Ora, somente Deus, que criou o homem a sua imagem e o reuniu do pecado, oferece uma resposta satisfatória a estas questões. Realiza isto pela revelação em seu Filho, que Se fez homem. Todo aquele que segue Cristo, o Homem perfeito, torna-se ele também mais homem. Apoiada nesta fé, a Igreja pode subtrair a dignidade da natureza humana a todas as mudanças de opiniões que, por exemplo, ou deprimem demasiadamente ou exaltam sem medidas o corpo humano. A dignidade pessoal e a liberdade do homem não podem adequadamente asseguradas por nenhuma lei humana, como o são pelo Evangelho de Cristo confiado a Igreja. Com efeito, este Evangelho anuncia e proclama a liberdade dos filhos de Deus, rejeita toda a servidão derivada em última análise do pecado8, respeita escrupulosamente a dignidade da consciência e a sua decisão livre, adverte sem cansar que todos os talentos humanos devem ser reduplicados para o serviço de Deus e o bem dos homens e, finalmente, recomenda todas a caridade de todos.9 Isto corresponde a lei fundamental da economia cristã. Ainda que o mesmo Deus Criador seja Salvador e igualmente Senhor, tanto da história humana como também da história da salvação, contudo, esta própria ordem divina, longe de suprimir a autonomia justa da criatura e principalmente do homem, antes a restabelece e confirma em sua dignidade. 8 Cf. Rom 8,14-17. 9 Cf. Mt 22,39. A Igreja, portanto, por forma do Evangelho que lhe foi confiado, proclama os direitos dos homens e admite e aprecia muito o dinamismo do tempo de hoje, que promove estes direitos por toda parte. Mas este movimento deve ser animado pelo espírito do Evangelho e protegido contra todas as aparências de falsa autonomia. Pois somos expostos a tentação de pensar que os nossos direitos pessoais só estão plenamente garantidos quando nos desligamos de todas as normas da Lei divina. Por este caminho porém, longe de ser salva, a dignidade da pessoa divina perece. [O Auxílio que a Igreja se Esforça para Prestar a Sociedade Humana] 42. A união da família humana é consideravelmente roborada e completada pela unidade dos filhos de Deus, que se fundamenta em Cristo.10 10 Cf. Conc. Vat. II, Const. Dogm. Sobre a Igreja, Lumen Gentium, cap. 2, n.9: AAS 57 (1965), pp. 12-14. A missão própria que Cristo confiou a sua Igreja por certo não é de ordem política, econômica ou social. Pois a finalidade que Cristo lhe prefixou é de ordem religiosa.¹¹ Mas, na verdade, desta mesma missão religiosa decorrem benefícios, luzes e forças que podem auxiliar a organização e o fortalecimento da comunidade humana segundo a Lei de Deus. Do mesmo modo, onde for necessário, de acordo com as circunstâncias de tempo e lugar, a Igreja pode e deve promover atividades, como são as obras de misericórdia e outras semelhantes. ¹¹ Cf. Pio XII, Discurso aos Historiadores e Artistas, de 9-3-1956: AAS 48 (1956), p. 212: “O seu Divino Fundador, Jesus Cristo, não lhe deu nenhum mandato nem lhe fixou nenhum fim de ordem cultural. A finalidade que Cristo lhe designa é estritamente religiosa (...). A Igreja deve conduzir os homens a Deus, a fim de que eles se entreguem a Deus sem reserva (...). A Igreja jamais pode perder de vista essa finalidade estritamente religiosa, sobrenatural. O sentido de todas as suas atividades, até o último Cânone de seu Código, não pode ser senão concorrer para ela direta ou indiretamente” (cf. REB 1956, p. 482). Além disso, a Igreja admite tudo o que há de bom no dinamismo social de hoje, principalmente a evolução para a unidade, a marcha da sã socialização e da solidariedade no plano civil e econômica. Com efeito, a promoção da unidade se harmoniza com a missão intima da Igreja, porquanto ela é “em Cristo como que um sacramento ou sinal e instrumento da união profunda com Deus e da unidade de todo o gênero humano”.¹² Deste modo ela mostra ao mundo que a verdadeira união social externa decorre da união dos espíritos e dos corações, isto é, daquela fé e caridade pelas quais sua unidade foi construída indissoluvelmente no Espírito Santo. A energia que a Igreja pode insuflar à sociedade humana atual consiste naquela fé e caridade, levadas na vida, e não no exercício de algum domínio externo, através de meios meramente humanos. ¹² Cf. Conc. Vat. II. Const. Dogm. Sobre a Igreja, Lumen Gentium, cap. 1, n.1: AAS 57 (1965), p. 5. Além disso, a Igreja não se prende, por força de sua missão, a natureza, a nenhuma forma particular de cultura humana, sistema político, econômico ou social; por causa desta sua universalidade, pode aparecer como uma ligação muito estreita entre as diversas comunidades humanas e nações, desde que elas tenham confiança na Igreja e lhe reconheçam efetivamente a verdadeira liberdade para o desempenho de sua missão. Por esta razão, a Igreja aconselha seus filhos e também todos os homens a superar, neste espírito familiar de filhos de Deus, todas as desavenças entre nações e raças e a consolidar do interior todas as legítimas associações humanas. O Concílio considera portanto, com grande respeito, todas as coisas verdadeiras, boas e justas, nas múltiplas instituições, que a humanidade construiu e constrói para si sem cessar. Declara, além do mais, que a Igreja quer ajudar e promover todas estas instituições, enquanto isto depender dela e estiver de acordo com a sua missão. Para servir ao bem de todos, ela nada deseja mais ardentemente do que poder desenvolver-se livremente, sob qualquer regime que reconheça os direitos fundamentais da pessoa e da família e os imperativos do bem comum. [O Auxílio que a Igreja se Esforça para Prestar a Atividade Humana, através dos Cristãos] 43. O Concílio exorta os cristãos, cidadãos de uma e outra cidade, a procurarem desempenhar fielmente suas tarefas terrestres, guiados pelo espírito do Evangelho. Afastam-se da verdade os que, sabendo não termos aqui cidade permanente, mas buscarmos a futura¹³, julgam, por conseguinte, poderem negligenciar os seus deveres terrestres, sem perceberem que estão mais obrigados a cumpri-los, por causa da própria fé, de acordo com a vocação a qual cada um foi chamado.14 Não erram menos aqueles que, ao contrário, pensam que podem entregar-se de tal maneira as atividades terrestres, como se elas fossem absolutamente alheias a vida religiosa, julgando que esta consiste somente nos atos do culto e no cumprimento de alguns deveres morais. Este divórcio entre a fé professada e a vida cotidiana de muitos deve ser enumerado entre os erros mais graves do nosso tempo. Os profetas do Velho Testamento já denunciaram com veemência, este escândalo. 15 E no Novo Testamento, o próprio Jesus Cristo o ameaçava muito com graves penas. 16 Portanto não se crie oposição artificial entre as atividades profissionais e sociais de uma parte, e de outra, a vida religiosa. Ao negligenciar os seus deveres temporais, o cristão negligencia os seus deveres para com o próximo e o próprio Deus e coloca em perigo a sua salvação eterna. A exemplo de Cristo, que exerceu a profissão de operário, alegrem-se antes os cristãos, porque podem desempenhar todas as suas atividades terrestres, unindo os esforços humanos, domésticos, profissionais, científicos ou técnicos, em síntese vital com valores religiosos, sob cuja soberana direção todas as coisas são coordenadas para a glória de Deus. ¹³ Cf. Heb 13,14. 14 Cf. 1 Tess 3,6-13; Ef 4,28. 15 Cf. Is 58,1-12. 16 Cf. Mt 23,3-33; Mc 7,10-13. As profissões e atividades seculares competem propriamente aos leigos, ainda que não de modo exclusivo. Portanto, quando agem como cidadãos do mundo, particular ou associativamente, observarão não só as leis próprias de cada disciplina, mas procurarão adquirir competência verdadeira naqueles campos. Irão cooperar, de bom grado, com os homens que buscam os mesmos objetivos. Reconhecendo as exigências da fé e dotados de sua virtude, onde for necessário, sem hesitação, descubram novas iniciativas, levando-as a prática. Pertence-lhes a consciência, já adequadamente formada, gravar a lei divina na vida da cidade terrestre. Os leigos esperam dos sacerdotes luz e força espiritual. Contudo, não julguem serem os seus pastores sempre tão competentes que possam ter uma solução concreta e imediata para toda a questão que surja, mesmo grave, ou que seja esta a missão deles. Os leigos, ao contrário, esclarecidos pela sabedoria cristã e prestando atenção cuidadosa a doutrina do Magistério17, assumam suas responsabilidades. 17 Cf. João XXIII, Enc. Mater et Magistra, IV: AAS (1961), pp. 456-457; e ainda I: 1.c., pp. 407,410-411. Muitas vezes, a própria visão cristã das coisas incliná-los-á a uma solução determinada, em algumas circunstâncias reais. Outros fiéis, contudo, como acontece com freqüência e legitimamente, com igual sinceridade pensarão de modo diferente, sobre a mesma coisa. Se depois as soluções apresentadas, mesmo sem intenção das partes, são facilmente ligadas por muitos a mensagem evangélica, é preciso se lembrarem que não é lícito a ninguém, nos casos citados, reivindicar exclusivamente para a sua sentença a autoridade da Igreja. Mas procurem, em diálogo sincero, esclarecer-se reciprocamente, conservando a caridade mútua, e preocupados em primeiro lugar com o bem comum. Os leigos, que devem participar ativamente em toda a vida da Igreja, estão obrigados não somente a impregnar o mundo de espírito cristão, mas também são chamados a serem testemunhos de Cristo em tudo, no meio da comunidade humana. Os Bispos, aos quais foi confiada a missão de dirigir a Igreja de Deus, juntamente com seus Presbíteros, preguem a mensagem de Cristo de tal modo que todas as atividades terrestres dos fiéis sejam banhadas pela luz do Evangelho. Além disso, todos os pastores estejam lembrados de que, com seu comportamento cotidiano e sua solicitude18, apresentam ao mundo a face da Igreja, por onde os homens julgam a força e a verdade da mensagem cristã. Pela vida e palavra, juntamente com os religiosos e seus fiéis, demonstrem que a Igreja, só por sua presença, com todos os dons que possui, é uma fonte inesgotável daquelas virtudes de que o mundo de hoje tanto precisa. Com estudos assíduos do diálogo a ser estabelecido com o mundo e com os homens de todas as opiniões. Mas antes de tudo guardem no coração as palavras deste Concílio: “Já que hoje em dia o gênero humano tende cada vez mais necessário, por isso mesmo, que os Sacerdotes, congregando os cuidados e as forças, sob a direção dos Bispos e do Sumo Pontífice, evitem qualquer motivo de dispersão, para que todo o gênero humano seja levado à unidade da família de Deus”.19 18 Cf. Conc. Vat. II, Const. Dogm. Sobre a Igreja, Lumen Gentium, cap. 3, n. 28: AAS 57 (1965), pp. 34-35. 19 Ibid., n. 28: AAS 1.c., pp. 35-36. Ainda que a Igreja, por virtude do Espírito Santo, tenha permanecido a fiel esposa de seu Senhor e não cessado jamais de ser um sinal de salvação para o mundo, ela contudo não ignora de modo algum que não faltaram entre seus membros20, clérigos e leigos, na série ininterrupta de tantos séculos, os que foram infiéis ao Espírito de Deus. Também em nossos tempos não ignora a Igreja quanto se distanciam entre si a mensagem que ela profere e a fraqueza humana daqueles aos quais o Evangelho foi confiado. Seja qual for o juízo que a história pronunciar sobre estes defeitos, devemos estar conscientes deles, combate-los vigorosamente, para que eles não tragam prejuízo a difusão do Evangelho. Para desenvolver suas relações com o mundo, a Igreja sabe igualmente o quanto deve continuamente aprender da experiência dos séculos. Guiada pelo Espírito Santo, a Mãe Igreja exorta os seus filhos incansavelmente a purificação e renovação, para que o sinal de Cristo brilhe mais claramente sobre a face da Igreja.²¹ 20 Cf. S. Ambrósio, De Virginitate, cap. 8, n.48: PL 16,278. ²¹ Cf. Conc. Vat. II, Const. Dogm. Sobre a Igreja, Lumen Gentium, cap. 2, n.15: AAS 57 (1965), p. 20. [O Auxílio que a Igreja Recebe do Mundo de Hoje] 44. Assim como é do interesse do mundo admitir a Igreja como realidade social da história e seu fermento, também a própria Igreja não ignora o quando tenha recebido da história e da evolução da humanidade. A experiência dos séculos passados, o progresso das ciências, os tesouros escondidos nas várias formas da cultura humana, pelos quais a natureza do próprio homem se manifesta mais plenamente e se abrem novos caminhos para a verdade, são úteis também a Igreja. Ela própria, com efeito, desde o início de sua história, aprendeu a exprimir a mensagem de Cristo através dos conceitos e linguagens dos diversos povos e, além disso, tentou ilustrá-la com a sabedoria dos filósofos, com o fim de adaptar o Evangelho, enquanto possível, a capacidade de todos e as exigências dos sábios. Esta maneira apropriada de proclamar a palavra revelada deve permanecer como lei de toda a evangelização. Deste modo estimula-se em todas as nações a possibilidade de exprimirem a seu modo a mensagem de Cristo e promove-se ao mesmo tempo um intercâmbio vivo entre a Igreja e as diversas culturas dos povos. ²² Para aumentar este intercâmbio, sobretudo em nossos tempos, nos quais as coisas se mudam tão rapidamente e variam muitos os modos de pensar, a Igreja precisa do auxílio, de modo peculiar, daqueles que, crentes ou não-crentes, vivendo no mundo, conhecem bem os vários sistemas e disciplinas e entendem a sua mentalidade profunda. Compete a todo Povo de Deus, principalmente aos pastores e teólogos, com o auxílio do Espírito Santo, auscultar, discernir e interpretar as várias linguagens do nosso tempo, e julgá-las a luz da palavra divina, para que a Verdade revelada possa ser percebida sempre mais profundamente, melhor entendida e proposta de modo mais adequado. ²² Cf. Conc. Vat. II, Const. Dogm. Sobre a Igreja, Lumen Gentium, cap. 2, n.13: AAS 57 (1965), p. 17. Tendo uma estrutura social visível, sinal de sua unidade em Cristo, a Igreja pode enriquecer-se e de fato se enriquece também com a evolução da vida humana social, não porque lhe falte alguma coisa em sua constituição que lhe foi dada por Cristo, mas para conhecê-la mais profundamente, melhor exprimi-la e adaptá-la de modo mais feliz aos nossos tempos. Ela compreende de bom grado que recebe, na sua comunidade não menos que em cada um de seus filhos, auxílio variado dos homens de todas as classes e condições, no plano da família, da cultura, da vida econômica e social e da política tanto nacional quanto internacional, de acordo com o plano de Deus, prestam um auxílio não pequeno também à comunidade eclesial, enquanto ela depende das coisas externas. Mais ainda. A Igreja confessa que progrediu muito e pode progredir com a própria oposição dos seus adversários ou perseguidores. ²³ ²³ Cf. Justino, Dialogus cum Tryplone, cap. 110: PG 6,729; ed Otto, 1897, pp. 391-393: “... mas quanto mais nos infligem semelhantes coisas, tanto mais os outros se tornam fiéis e piedosos pelo nome de Jesus”. Cf. Tertuliano, Apologeticus, cap. L, 13: PL 1,534; Corpus Christ., ser. Lat. I, p. 171: “Quanto mais formos por vós ceifados, mais cersceremos: o sangue dos Cristãos é semente!”. Cf. Conc. Vat. II, Const. Dogm. Sobre a Igreja, Lumen Gentium, cap. 2, n. 9: AAS 57 (1965), p. 14. [Cristo, Alfa e Ômega] 45. A Igreja, enquanto ela mesma ajuda o mundo e dele recebe muitas coisas, tende a um só fim: que venha o Reino de Deus e seja instaurada a salvação de toda a humanidade. Todo o bem que o Povo de Deus, no tempo de sua peregrinação terrestre, pode prestar a família dos homens, deriva de fato de ser a Igreja “o sacramento universal da salvação”24, manifestando e ao mesmo tempo operando o mistério de amor de Deus para com o homem. 24 Cf. Conc. Vat. II, Const. Dogm. Sobre a Igreja, Lumen Gentium, cap. 7, n. 48: AAS 57 (1965), p. 53. Pois o Verbo de Deus, pelo qual todas as coisas foram feitas, Ele próprio Se encarnou, de tal modo que, como Homem perfeito, salvasse todos os homens e recapitulasse todas as coisas. O Senhor é o fim da história humana, ponto ao qual convergem as aspirações da história e da civilização, centro da humanidade, alegria de todos os corações e plenitude de todos os seus desejos.25 A Ele é que o Pai ressuscitou dos mortos, exaltou e colocou à sua direita constituindo-O juiz dos vivos e dos mortos. Vivificados e congregados em seu Espírito, caminhamos para a consumação da história humana, que concorda plenamente com o seu desígnio de amor: “Reunir todas as coisas em Cristo, as que estão nos céus e as que estão na terra” (Ef 1,10). 25 Cf. Paulo VI, Alocução de 3-2-1965: L’Osservatore Romano, 4-2-1965. O próprio Senhor diz: “Eis que venho em breve, e a minha recompensa está comigo, para dar a cada um conforme as suas obras. Eu sou o alfa e o ômega, o primeiro e o último, o começo e o fim” (Apoc 22,12-13). PARTE II: ALGUNS PROBLEMAS MAIS URGENTES [Preâmbulo] 46. Depois de explanar a dignidade da pessoa humana e a missão individual ou social que esta é chamada a desempenhar no mundo inteiro, o Concílio, a luz do Evangelho e da experiência humana, chama agora a atenção de todos para certos problemas de maior urgência deste tempo que mais atingem o gênero humano. Entre muitas coisas que hoje despertam a solicitude de todos importa principalmente notar: o matrimônio e a família, a cultura humana, a vida econômico-social e política, a união dos povos e a paz. Sobre cada um desses pontos hão de se projetar os princípios luminosos derivados de Cristo que guiem os fiéis cristãos e iluminem todos os homens na busca da solução de tantos problemas intrincados. CAPÍTULO I: A PROMOÇÃO DA DIGNIDADE DO MATRIMÔNIO E DA FAMÍLIA [O Matrimônio e a Família no Mundo de Hoje] 47. A salvação da pessoa e da sociedade humana está estreitamente ligada ao bem-estar da comunidade conjugal e familiar. Por isso, juntamente com todos aqueles que tem em grande estima essa comunidade, os cristãos alegram-se sinceramente com os vários meios pelos quais so homens progridem hoje na promoção dessa comunidade de amor e no cultivo da vida, e são auxiliados os cônjuges e pais na sua alta função. Mais: esperam e procuram tirar desses recursos melhores benefícios ainda. Mas a dignidade desta instituição não refulge em toda a parte com o mesmo brilho, posto que a obscurecem a poligamia, a peste do divórcio, o chamado amor livre, e outras deformações. Além disso, o amor conjugal é muito freqüente profanado pelo egoísmo, pelo hedonismo e por práticas ilícitas contra a geração. De resto as condições econômicas, sócio-psicológicas e civis de hoje em dia acarretam não leves perturbações na família. Não sem preocupação, finalmente, observam-se em determinadas partes do globo problemas derivados do crescimento demográfico. Isso tudo angustia as consciências. Contudo, a força e o vigor da instituição matrimonial e familiar se evidenciam igualmente: as profundas mudanças sociais contemporâneas, não obstante as dificuldades a que dão origem, manifestam muitas vezes, de várias maneiras, a verdadeira índole dessa instituição. Por isso, ao elucidar melhor alguns pontos da doutrina da Igreja, o Concílio pretende esclarecer e encorajar os cristãos e todos os homens que envidam esforços no sentido de salvaguardar e promover a dignidade original e o singular valor sagrado do estado matrimonial. [A Santidade do Matrimônio e da Família] 48. A íntima comunhão de vida e de amor conjugal que o Criador fundou e dotou com Suas leis é instaurada pelo pacto conjugal, ou seja: o consentimento pessoal irrevogável. Dessa maneira, do ato humano pelo qual os cônjuges se doam e recebem mutuamente, se origina, também diante da sociedade, uma instituição firmada por uma ordenação divina. No intuito do bem, seja dos esposos como da prole e da sociedade, esse vínculo sagrado não depende do arbítrio humano. Mas a próprio Deus é o autor do matrimônio dotado de vários bens e fins¹, que são todos de máxima importância para a continuação do gênero humano, para o aperfeiçoamento pessoal e a sorte eterna de cada um dos membros da família, para a dignidade, estabilidade, paz e prosperidade da própria família e da sociedade humana inteira. O instituto do matrimônio e o amor dos esposos estão pela sua índole natural ordenados a procriação e a educação dos filhos em que culminam como numa coroa. Por isso o homem e a mulher, que pelo pacto conjugal “já não são dois, mas uma só carne” (Mt 19,6), prestam-se mutuamente serviço e auxílio, experimentam e realizam cada dia mais plenamente o senso de sua unidade pela união íntima das pessoas e das atividades. Essa união íntima, doação recíproca de duas pessoas, e o bem dos filhos exigem a perfeita fidelidade dos cônjuges e sua indissolúvel unidade. ² ¹ Cf. S. Agostinho, De bono coniugali: PL 40,375-376 e 394; S. Tomás, Summa Theol., Suppl., q. 49,a3 ad 1; Decreto para os armênios: Dz-Sch. 1327; Pio XI, Enc. Casti Connubi: AAS 22 (1930), pp. 543-555; Dz-Sch. 37033714. ² Cf. Pio XI, Enc. Casti Connubil: AAS 22 (1930), pp. 546-547; Dz-Sch. 3706. Cristo Senhor abençoou largamente esse amor multiforme originado da fonte da caridade divina e constituído a imagem de sua própria união com a Igreja. Pois, como outrora Deus tomou a iniciativa do pacto de amor e fidelidade com seu povo ³, assim agora o Salvador e o Esposo da Igreja4 vem ao encontro dos cônjuges cristãos pelo sacramento do matrimônio. Permanece daí por diante com eles a fim de que, dando-se mutuamente, se amem com fidelidade perpétua, da mesma forma como Ele amou a sua Igreja e por ela se entregou.5 O autêntico amor conjugal é assumido no amor divino, e é guiado e enriquecido pelo poder redentor de Cristo e pela ação salvífica da Igreja para que os esposos sejam conduzidos eficazmente a Deus e ajudados e confortados na sublime missão de pai e mãe.6 Por isso os esposos cristãos são robustecidos e como que consagrados para os deveres e dignidades de seu encargo por um sacramento especial.7 Exercendo seu múnus conjugal e familiar em virtude desse sacramento, imbuídos do Espírito de Cristo que lhes impregna toda a vida com a fé, a esperança e a caridade, aproximam-se cada vez mais de sua própria perfeição e mútua santificação e, assim unidos, contribuem para a glorificação de Deus. ³ Cf. Os 2; Jer 3,6-13; Ez 16 e 23; Is 54. 4 Cf. Mt 9,15; Mc 2,19-20; Lc 5,34-35; Jo 3,29; 2 Cor 11,2; Et 5,27; Apoc 19,7-8; 21,2 e 9. 5 Cf. Ef 5,25. 6 Cf. Conc. Vat. II, Dogm. Sobre a Igreja, Lumen Gentium: AAS 57 (1965), pp. 15-16; 40-41; 47. 7 Pio XI, Enc. Casti Connubii: AAS 22 (1930), p. 583. Em conseqüência, marchando a frente os próprios pais com o exemplo e a oração familiar, os filhos e mesmo todos os que convivem no circulo da família encontrarão mais facilmente o caminho de humanidade, de salvação e de santidade. Mas os cônjuges, munidos com a dignidade e o múnus da paternidade e maternidade, cumprirão diligentemente o ofício da educação, sobretudo religiosa, que em primeiro lugar compete a eles. Como membros vivos da família, os filhos colaboram a seu modo para a santificação dos pais. Retribuirão, com efeito, de alma agradecida, os benefícios dos pais com piedade e confiança e os assistirão, como convém a filhos, nas adversidades e na solidão da velhice. Seja honrada por todos a viuvez, assumida com fortaleza de ânimo em continuação da vocação conjugal.8 Assim a família comunicará as suas riquezas espirituais generosamente ainda as outras famílias. Assim a família cristã patenteará a todos a presença viva do Salvador no mundo e a autêntica natureza da Igreja pelo amor dos cônjuges, pela fecundidade generosa, pela unidade e fidelidade, e pela amável cooperação de todos os membros, porque se origina do matrimônio, que é imagem e participação do pacto de amor entre Cristo e a Igreja.9 8 Cf. 1 Tim 5,3. 9 Cf. Ef 5,32. [O Amor Conjugal] 49. Os noivos e os esposos são muitas vezes convidados pela palavra de Deus a entreter e desenvolver o noivado com um amor puro, e o casamento com uma afeição exclusiva.10 Muitos homens, também, de nosso tempo, tem em alta estima o amor verdadeiro entre o marido e a esposa, que se manifesta de várias formas segundo os costumes honestos dos povos e dos tempos. Eminentemente humano, porque parte de uma pessoa e se dirige a outra pessoa, mediante o afeto da vontade, esse amor envolve o bem de toda a pessoa; portanto é capaz de enobrecer as expressões do corpo e da alma como elementos e sinais específicos da amizade conjugal e de enriquece-los com uma especial dignidade. O Senhor, por um dom especial de graça e caridade, se dignou restaurar, aperfeiçoar e elevar esse amor. Semelhante amor, que associa o divino ao humano, leva os esposos a mútua doação de si mesmos, provada com terno afeto e com obras, e lhes impregna toda a vida.¹¹ Mais. Cresce e se aperfeiçoa com sua própria generosa operosidade. Supera, por conseguinte, de longe, a mera inclinação erótica que, cultivada com egoísmo, desaparece rápida e miseravelmente. 10 Cf. Gn 2,22-24; Prov 5,18-20; 31,10-31; Tob 8,4-8; Cânt. 1,2-3; 2,16; 4,16-5,1; 7,8-11; 1 Cor 7,3-6; Ef 5,25-33. ¹¹ Cf. Pio XI, Enc. Casti Connubii: AAS 22 (1930), p.547 e 548; Dz-Sch. 3707. Esta afeição se exprime e se realiza de maneira singular pelo ato próprio do matrimônio. Por isso os atos pelos quais os cônjuges se unem íntima e castamente são honestos e dignos. Quando realizados de maneira verdadeiramente humana, testemunham e desenvolvem a mútua doação pela qual os esposos se enriquecem com o coração alegre e agradecido. Esse amor, firmado pela fé mútua e, principalmente, consagrado pelo Sacramento de Cristo, é indissociávelmente fiel quanto ao corpo e a alma nas circunstâncias prósperas e adversas e por conseguinte alheio a toda a espécie de divórcio e adultério. A unidade do matrimônio é também claramente confirmada pelo Senhor mediante a igual dignidade do homem e da mulher enquanto pessoas, a qual deve ser reconhecida no amor mútuo e perfeito. Requer-se, porém, uma virtude insigne para desempenhar com constância os encargos desta vocação cristã: por isso os esposos, robustecidos pela graça para uma vida santa, cultivarão com assiduidade a firmeza do amor, a grandeza de alma e o espírito de sacrifício e os implorarão na oração. Mas o autêntico amor conjugal será tido em melhor estima e ganhara um sadio conceito na opinião pública se os cônjuges cristãos se distinguirem em dar testemunho de fidelidade e harmonia nesse amor e no cuidado pela educação dos filhos, e se participarem ativamente na imprescíndivel renovação cultural, psicológica e social em favor do matrimônio e da família. Os jovens devem ser instruídos convenientemente e a tempo sobre a dignidade, a função e o exercício do amor conjugal, a fim de que, preparados no cultivo da castidade, possam passar, na idade própria, do noivado honesto para as núpcias. [A Fecundidade do Matrimônio] 50. O matrimônio e o amor conjugal por sua própria índole se ordenam a procriação dos filhos. Aliás os filhos são o dom mais excelente do matrimônio e constituem um benefício máximo para os próprios pais. Deus mesmo que disse: “Não convém ao homem ficar sozinho” (Gn 2,18), e “criou de início o homem como varão e mulher” (Mt 19,4), querendo conferir ao homem uma participação especial em sua obra criadora, abençoou o varão e a mulher dizendo: “crescei e multiplicai-vos” (Gn 1,28). Donde se segue que o cultivo do verdadeiro amor conjugal e toda a estrutura da vida familiar que daí promana sem desprezar os outros fins do matrimônio, tendem a dispor os cônjuges a cooperar corajosamente com o amor do Criador e do Salvador que por intermédio dos esposos aumenta e enriquece Sua família. Os cônjuges sabem que no ofício de transmitir a vida e de educar – o qual deve ser considerado como missão deles própria – são cooperadores do amor de Deus Criador e como que seus intérpretes. Por isso desempenharão seu múnus com responsabilidade cristã e humana e, num respeito cheio de docilidade para com Deus, formarão um juízo reto, de comum acordo e empenho, atendendo ao bem próprio e ao bem dos filhos, seja já nascidos, seja que se prevêem nascer, discernindo as condições seja materiais seja espirituais dos tempos e do estado de vida e finalmente levando em conta o bem comum da comunidade familiar, da sociedade temporal e da própria Igreja. Os próprios esposos, em última análise, devem formar esse juízo, diante de Deus. Estejam porém os cônjuges cristãos conscientes de não poder proceder conforme seu arbítrio em sua maneira de agir, mas de que se devem guiar por uma consciência que tem por norma a própria lei divina, dóceis ao Magistério da Igreja, o qual interpreta autenticamente essa lei a luz do Evangelho. Esta lei divina coloca em evidência o significado do amor conjugal, protege-o e o leva a sua perfeição verdadeiramente humana. Assim os cônjuges cristãos, confiados na Providência Divina, e cultivando o espirito de sacrifício¹², glorificam o Criador e marcham para a perfeição em Cristo quando exercem a fundão de procriar com responsabilidade generosa, humana e cristão. Devem-se mencionar especialmente entre os esposos que cumprem dessa maneira a missão que Deus lhes confiou aqueles que, de comum e prudente acordo, acolhem, com alma grande, uma prole mais numerosa para ser convenientemente educada.¹³ ¹² Cf. 1 Cor 7,5. ¹³ Cf. Pio XII, Discurso Tra te visite, de 20-1-1958: AAS 50 (1958), p. 91. O Matrimônio, porém não foi instituída apenas para o fim da procriação. Mas a própria índole do pacto indissolúvel entre as pessoas e o bem da prole exigem que também o amor recíproco se realize com reta ordem, que cresça e que amadureça. Por isso, embora os filhos muitas vezes tão desejados faltem, contínua o matrimônio como íntima comunhão de toda a vida, conservando seu valor e sua indissolubilidade. [A Harmonização do Amor Conjugal com o Respeito à vida Humana] 51. O Concílio sabe que os esposos encontram muitas vezes obstáculos na organização harmoniosa da vida conjugal por certas condições modernas de vida. Podem achar-se em circunstâncias em que, ao menos por certo tempo, o número de filhos não deve crescer; é nelas que com dificuldade se conservam o cultivo do amor fiel e a plena intimidade de vida. Mas onde se rompe a intimidade da vida conjugal, não raramente a fidelidade pode entrar em crise e o bem da prole pode ser comprometido pois então periclitam a educação dos filhos e a coragem de ter nova prole. Existem os que ousam trazer soluções desonestas a esses problemas e não recuam até mesmo diante da destruição da vida. Mas a Igreja torna a lembrar que não pode haver verdadeira contradição entre as leis divinas sobre a transmissão da vida e o cultivo do autêntico amor conjugal. Deus, com efeito, que é o Senhor da vida, confiou aos homens o nobre encargo de preservar a vida para ser exercido de maneira condigna do homem. Por isso a vida deve ser protegida com o máximo cuidado desde a concepção. O aborto como o infanticídio são crimes nefandos. Por outro lado a sexualidade própria do homem e a faculdade humana de gerar excedem maravilhosamente o que se encontra nos graus inferiores de vida. Em conseqüência, os atos próprios da vida conjugal, regulados segundo a autêntica dignidade humana, devem ser religiosamente respeitados. Por isso a moralidade da maneira de agir, quando se trata de harmonizar o amor conjugal com a transmissão responsável da vida, não depende apenas da intenção sincera e da reta apreciação dos motivos, mas deve ser determinada segundo critérios objetivos tirados da natureza da pessoa e de seus atos, critérios esses que respeitam o sentido integral da doação mútua e da procriação humana no contexto do verdadeiro amor. Tudo isso é impossível se a virtude da castidade conjugal não for cultivada com sinceridade. Aos filhos da Igreja, apoiados nesses princípios, não é lícito adotar na regulação da prole os meios que o Magistério reprova quando explica a lei divina.14 14 Cf. Pio XI, Enc. Casti Connubii: AAS (1930), pp. 559-561, Dz-Sch. 3716-3718; Pio XII, Discurso ao Congresso da União Italiana das Parteiras, de 29-10-1951: AAS 43 (1951), pp. 835-854; Paulo VI, Discurso aos Cardeais, de 23-6-1964: AAS 56 (1964), pp. 581-589. Algumas questões, que necessitam de investigações mais aprofundadas, foram por ordem do Sumo Pontífice confiadas à Comissão para o estudo da população, família e natalidade, para que, terminados os estudos, o próprio Papa decida. Estando neste pé a doutrina do Magistério, o Concílio não tem a intenção de propor diretamente soluções concretas. Estejam todos certos de que a vida dos homens e a missão de a transmitir não se confinam ao tempo presente nem se podem medir ou entender por esse tempo apenas, mas estão sempre relacionados com a destinação eterna dos homens. [A Promoção do Matrimônio e da Família como um Dever de Todos] 52. A família é em certo sentido uma escola de enriquecimento humano. Mas para atingir a plenitude de sua vida e de sua missão requer a comunhão de alma no bem-querer, a decisão comum dos esposos e a diligente cooperação dos pais na educação dos filhos. É de grande proveito para a formação desses a presença ativa do pai. Mas, sem desprezar a legítima promoção social da mulher, deve-se por a salvo o cuidado da mãe em casa, do qual necessitam principalmente os filhos menores. Os filhos sejam educados de tal maneira que, ao atingir a idade adulta, possam seguir com pleno senso de responsabilidade sua vocação, inclusive a religiosa, e escolher um estado de vida no qual, se vierem a se casar, possam constituir família própria em boas condições morais, sociais e econômicas. É dever dos pais ou tutores orientar com prudentes conselhos os jovens que vão fundar uma família; ouvindo-os de boa vontade, cuidem, porém, de não obrigá-los por coação direta ou indireta a contrair matrimônio ou a escolher determinado conjugue . Desta maneira a família, na qual convivem várias gerações que se ajudam mutuamente em adquirir maior sabedoria e em harmonizar os direitos pessoais com as outras exigências sociais, constitui o fundamento da sociedade. Por isso todos aqueles que exercem influência. Por isso todos aqueles que exercem influência nas comunidades e nos grupos sociais devem trabalhar eficazmente para a promoção do matrimônio e da família. O poder civil deve considerar como sua função sagrada reconhecer, proteger, cultivar a sua verdadeira natureza, defender a moralidade pública e favorecer a prosperidade dos lares. Deve-se garantir o direito dos pais de procriar filhos e educá-los no seio da família. Os que, infelizmente, não tem o benefício da família sejam também protegidos por uma legislação prudente e iniciativas variadas e socorridos por uma ajuda adequada. Os fiéis promovam ativamente os valores da família e do matrimônio pelo próprio exemplo, pela ação concorde com os homens de boa vontade, aproveitando o tempo presente15, discernindo as coisas eternas das formas mutáveis. Assim, vencidas as dificuldades, atenderão às necessidades e interesses da família que são próprios dos tempos novos. De grande ajuda serão para esse fim o senso dos fiéis, a reta consciência moral dos homens, bem como a sabedoria e a competência daqueles que são versados nas sagradas disciplinas. 15 Cf. Ef 5,16; Col 4,5. Os especialistas em ciências, mormente biológicas, médicas, sociais e psicológicas, podem contribuir grandemente para o bem do matrimônio e da família e a paz das consciências, se, mediante estudos comparados, se esforçarem por esclarecer mais profundamente as condições que favorecem a honesta regulação da procriação humana. É dever dos sacerdotes, adequadamente formados em questões familiares, promover a vocação dos esposos na sua vida conjugal e familiar pelos vários meios pastorais, pela pregação da palavra de Deus, pelo culto litúrgico e por outros recursos espirituais, bem como humana e pacientemente fortificá-los na suas dificuldades e confortá-los com caridade, para que se formem famílias que sejam verdadeiramente focos de luz. Procurem pela doutrina e pela ação consolidar as várias obras, especialmente as associações familiares, os jovens e os próprios esposos, especialmente os recém-casados, e formá-los para a vida familiar, social e apostólica. Finalmente os próprios esposos, criados à imagem de Deus vivo e estabelecidos numa verdadeira relação de pessoas, estejam unidos por um igual afeto, por um pensamento idêntico e por uma santidade mútua16, a fim de que, segundo a Jesus Cristo, princípio da vida17, se tornem, nas alegrias e nos sacrifícios de sua vocação, por seu amor fiel, testemunhas daquele mistério de amor que o Senhor revelou ao mundo por sua morte e ressurreição.18 16 Cf. Sacramentarium Gregorianum: PL 78,262. 17 Cf. Rom 5,15 e 18; 6,5-11; Gál 2,20. CAPÍTULO II: A RETA PROMOÇÃO DA CULTURA [Introdução] 53. É próprio da pessoa humana não atingir a humanidade verdadeira e plena pela cultura, isto é, cultivando os bens e os valores da natureza. Em todo o lugar portanto, quando se trata da vida humana, a natureza e a cultura se entrelaçam de um modo muito intimo. Pela palavra “cultura”, em sentido geral, indicam-se todas as coisas com as quais o homem aperfeiçoa e desenvolve as variadas qualidades da alma e do corpo; procura submeter a seu poder pelo conhecimento e pelo trabalho o próprio orbe terrestre; torna a vida social mais humana, tanto na família quanto na comunidade civil, pelo progresso dos costumes e das instituições; enfim, exprime, comunica e conserva, em suas obras, no discurso dos tempos as grandes experiências espirituais e as aspiração, para que sirvam ao proveito de muitos e ainda de todo o gênero humano. Conclui-se daí que a cultura humana tem necessariamente um aspecto histórico e social, e que a palavra “cultura” se reveste com freqüência de sentido sociológico e etnológico. Neste sentido fala-se da pluralidade de culturas. Pela maneira diversa de utilizar as coisas, de trabalhar e de se exprimir, de praticar a religião e formar os costumes, de estabelecer as leis e as instituições jurídicas, de favorecer as ciências e artes e de cultivar o belo, surgem diversas condições de vida em comum e formas diversas de dispor os bens da vida. Assim, com estes costumes recebidos, constrói-se o patrimônio próprio de cada humanidade humana. Constitui-se assim também um meio definido e histórico, no qual é inserido o homem de qualquer nação ou tempo e de onde ele tira os bens para promover a civilização humana. 1ª Secção: Condições Culturais do Mundo de Hoje [Novas Formas de Vida] 54. Modificam-se profundamente as condições de vida do homem moderno, do ponto de vista social e cultural, de tal modo que é lícito falar de uma idade nova da história humana.¹ Por isso abrem-se novos caminhos para o aperfeiçoamento e a difusão mais ampla da cultura. O crescimento considerável das ciências naturais, humanas e também sociais, o desenvolvimento da técnica e o progresso no aperfeiçoamento e uso adequando dos meios de comunicação entre os homens prepararam estes caminhos. Por isso a cultura de hoje é assinalada por características particulares. As ciências chamadas exatas desenvolvem notavelmente o juízo critico. Os recentes estudos psicológicos explicam mais profundamente a atividade humana. As disciplinas históricas contribuem muito para que a realidade seja observada sob o seu aspecto de mudança e evolução. Os hábitos e costumes de vida tornam-se cada dia mais uniformes. A industrialização, a urbanização e outras causas que promovem a vida comunitária, criam novas formas de cultura (cultura de massa), das quais surgem maneiras novas de sentir, de agir e de utilizar o tempo livre. Ao mesmo tempo, o crescente intercâmbio entre as várias nações e grupos sociais abre mais largamente os tesouros das diversas formas de cultura a todos e a cada um e assim prepara-se aos poucos um tipo de civilização mais universal que tanto mais promove e exprime a unidade do gênero humano quanto melhor respeita as particularidades das diversas culturas. ¹ Veja-se a exposição introdutória da presente Constituição n. 4-10. [O Homem Autor da Cultura] 55. Cada dia se torna maior o número de homens e mulheres de diversos grupos que tomam consciência de ser os criadores e autores da cultura de sua comunidade. No mundo inteiro cresce cada vez mais o senso de autonomia e ao mesmo tempo de responsabilidade, que é de máxima importância para o amadurecimento espiritual e moral do gênero humano. Isto aparece mais claramente quando colocamos diante dos olhos a unificação do universo e a tarefa que nos é imposta de edificar um mundo melhor na verdade e na justiça. Portanto, desta maneira, testemunhamos o nascimento de um novo humanismo, no qual o homem se define, em primeiro lugar, por sua responsabilidade perante os seus irmãos e a história. [Dificuldades e Tarefas] 56. Nestas condições não é de se admirar que o homem, sentindo a sua responsabilidade no progresso da cultura, alimente uma esperança maior, mas ao mesmo tempo contemple angustiada as inúmeras antinomias existentes que ele próprio deve resolver: O que fazer para que os intercâmbios culturais mais freqüentes, que deveriam levar os diversos grupos e nações a um diálogo verdadeiro e frutuoso, não perturbem a vida das comunidades, não destruam a sabedoria dos antepassados e nem coloquem em perigo a índole própria de cada povo? Como se deve favorecer o dinamismo e a expansão de uma nova cultura, sem que pareça a fidelidade viva para com a herança das tradições? E isto urge particularmente onde a cultura, que se origina de um progresso enorme das ciências e da técnica, deve harmonizar-se com aquela civilização que se alimenta dos estudos clássicos, segundo as diversas tradições. Como se pode conciliar uma dispersão tão rápida e progressiva das ciências particulares com a necessidade de elaborar a sua síntese e de conservar nos homens as faculdades de contemplação e admiração que encaminham para a sabedoria? O que fazer para que a grande massa dos homens participe dos benefícios da cultura, quando simultaneamente a das elites não cessa de se elevar e de complicar sempre mais? Como enfim, reconhecer legítima a autonomia que a cultura reclama para si, sem cair em um humanismo meramente terrestre e mesmo adversário da própria religião? No meio destas antinomias é necessário que a cultura humana se desenvolva de tal modo que aperfeiçoe de maneira equilibrada a pessoa humana integral e ajude os homens a desempenhar as funções a que são chamados, sobretudo os cristãos, unidos fraternalmente na única família humana. 2ª Secção: Alguns Princípios para a conveniente promoção da Cultura [A Fé e a Cultura] 57. Os cristãos, peregrinando para a cidade celeste, devem procurar e saborear as coisas do alto. ² Isto contudo, longe de diminuir, antes aumenta a importância da missão que eles tem de desempenhar juntamente com todos os homens na construção de um mundo mais humano. E, na verdade, o mistério da fé cristã lhes oferece valiosos impulsos e auxílios para cumprir mais cuidadosamente aquela missão e descobrir a significação profunda deste trabalho, pelo qual a cultura obtém o seu lugar exímio na vocação integral do homem. ² Cf. Com 3,1-2. Quando cultiva a terra com o trabalho de suas mãos ou por meio da técnica, para que ela produza frutos e se torne uma habitação digna da família humana inteira, e quando participa conscientemente da vida dos grupos sociais, o homem realiza o plano de Deus, manifestado no início dos tempos, que é o de dominar a terra ³ e completar a criação, e se aperfeiçoa a si mesmo. Observa ao mesmo tempo o grande mandamento de Cristo, que é o de despender-se no serviço dos irmãos. ³ Cf. Gn 1,28. Além disso, quando se aplica as múltiplas disciplinas da filosofia, da história, das ciências matemáticas e naturais e se ocupa das artes, o homem pode contribuir em alta medida para que a família humana se eleve as noções mais nobres do verdadeiro, do bom e do belo e a um juízo de valor do universo e seja mais claramente iluminado pela Sabedoria admirável, que estava junto de Deus deste toda a eternidade, dispondo com Ele todas as coisas, brincando sobre o globo da terra e encontrando as suas delícias junto com os filhos dos homens. 4 4 Cf. Prov 8,30-31. Por esta razão o espírito do homem, mais despendido da servidão das coisas, pode elevar-se mais expeditamente ao próprio culto e a contemplação do Criador. E é disposto, pelo impulso da graça, a reconhecer o Verbo de Deus que, antes de encarnar-Se para salvar e recapitular em Si todas as coisas, já estava no mundo como “luz verdadeira que ilumina todo o homem” (Jo 1,9-10). 5 5 Cf. S. Ireneu, Adv. Haer. III, 11,8: ed. Sagnard, p. 200; cf. ib., 16,6; pp. 290-292; 21,10-22: pp. 370-372; 22,3: p. 378; etc. Na verdade o progresso atual das ciências e da técnica, que em razão de seus métodos não conseguem atingir as profundezas das realidades, pode favorecer um certo fenomenismo e agnosticismo, quando o método de pesquisa usado por estas disciplinas é indebitamente admitido como norma suprema na procura de toda a verdade. Existe ainda o perigo de o homem, confiando demasiadamente nas descobertas atuais, julgar por que se basta a si mesmo, descuidando os valores mais altos. Estas inconveniências contudo não se seguem necessariamente da cultura moderna, nem nos devem expor a tentação de não admitirmos os seus valores positivos. Entre eles enumeram-se: o estudo das ciências e fidelidade rigorosa a verdade: o estudo das ciências e fidelidade rigorosa a verdade nas pesquisas científicas, a necessidade de trabalhar em equipe com outros nos grupos técnicos, o senso da solidariedade internacional, a consciência cada dia mais viva da responsabilidade dos cientistas na ajuda e na proteção a ser dispensada aos homens, a vontade de tornar mais favoráveis as condições de vida para todos, sobretudo para aqueles que são privados de responsabilidade ou sofrem a indigência cultural. Tudo isto consegue trazer alguma preparação para que se receba a mensagem do Evangelho, que pode ser informada pela caridade divina por Aquele que veio salvar o mundo. [As Relações Múltiplas entre o Evangelho de Cristo e a Cultura Humana] 58. Encontram-se inúmeros vínculos entre a mensagem de salvação e a cultura humana. Deus, com efeito, revelando-se ao Seu povo até a manifestação plena de Si no Filho encarnado, falou de acordo com a cultura própria de diversas épocas. A Igreja igualmente, no decorrer dos tempos, vivendo em variadas condições, usou os recursos das culturas para na sua pregação a todos os povos explicar e difundir a mensagem de Cristo, investigá-la e entendê-la mais profundamente a fim de melhor exprimi-la, na celebração litúrgica e na vida da variada comunidade dos fiéis. Ao mesmo tempo a Igreja, enviada a todos os povos de qualquer época e região, não está ligada de maneira exclusiva e indissolúvel a nenhuma raça ou nação, a nenhuma forma particular de costumes e a nenhum hábito antigo ou recente. Fiel a própria tradição e simultaneamente consciente de sua missão universal, ela pode entrar em comunhão com as diversas formas de cultura, donde resultara um enriquecimento tanto para a Igreja como para as diferentes culturas. A boa-nova de Cristo restaura constantemente a vida e a cultura do homem decaído, combate e remove os erros e os males decorrentes da sempre ameaçadora sedução do pecado. Purifica e eleva incessantemente os costumes dos povos. Com as riquezas do alto ele fecunda, como que por dentro, as qualidades do espírito e os dotes de cada povo e de cada idade, fortifica-os, aperfeiçoa-os e restaura-os em Cristo. 6 Deste modo a Igreja, cumprindo a própria missão7, por isso mesmo estimula a civilização humana e contribui para ela, e, por sua ação, também litúrgica, educa o homem para a liberdade interior. 6 Cf. Ef 1,10 7 Cf. as palavras de Pio XI ao Exmo. Sr. Roland-Gosselin; “Jamais se deve perde de vista que o objetivo da Igreja está na evangelização e não na civilização. Se ela civiliza, é para evangelizar” (Semanas Sociais da França, Versailles, 1936, pp. 461-462). [Relações Harmônicas nas Várias Formas de Cultura] 59. Com os argumentos supramencionados, a Igreja lembra a todos que a cultura deve estar subordinada a perfeição integral da pessoa humana, ao bem da comunidade e da humanidade inteira. Por isso é necessário cultivar o espírito de tal modo que se desenvolva a faculdade de admirar, de penetrar o intimo das coisas, de contemplar, de formar um juízo pessoal e de aperfeiçoar o senso religioso, moral e social. Porque deriva imediatamente da natureza racional e social do homem, a cultura precisa sem cessar de justa liberdade para desenvolver-se e de legítima autonomia de ação, segundo os princípios próprios. Exige portanto respeito e goza de certa inviolabilidade, observados evidentemente os direitos da pessoa e da comunidade particular ou universal, dentro dos limites do bem comum. O Sagrado Concílio, retomando os ensinamentos do Concílio Vaticano I, declara que há “duas ordens de conhecimento” distintas, a saber, a da fé e a da razão. Portanto a Igreja não pode absolutamente impedir que “as artes e disciplinas humanas usem de princípios e métodos próprios, cada uma em seu campo”. Por isso, “reconhecendo a justa liberdade”, afirma a legítima autonomia da cultura humana e particularmente das ciências.8 8 Conc. Vat. I, Const. Dogm. De fide cath. Dei Filius: Dz. Todas essas coisas exigem também que o homem, observadas a ordem moral e a utilidade comum, possa investigar livremente a verdade, manifestar e divulgar a própria opinião e cultivar a arte que desejar. Exige-se enfim que o homem seja informado imparcialmente acerca dos acontecimentos públicos.9 9 Cf. João XXIII, Enc. Pacem in terris: AAS (1963), p. 260. 1795, 1799 (3015,3019). Cf. Pio XI, Enc. Quadrag. Anno: AAS 23 (1931), p. 190. Não compete, porém, a autoridade pública determinar o caráter próprio das formas da cultura humana, mas proporcionar condições e recursos para a promoção da vida cultural no meio de todos, também junto as minorias numa nação.10 Portanto, deve-se insistir, antes de tudo, que a cultura, desviada de seu próprio fim, não seja forçada a sujeitar-se aos poderes políticos e econômicos. 10 Cf. João XXIII, Enc. Pacem in terris: AAS55 (1963), p. 283; Pio XII, Radiomensagem de 24-12-1941: AAS 34 (1942), pp. 16-17. 3ª Secção: algumas obrigações mais urgentes dos Cristãos em relação a Cultura [Reconhecimento, levado a Prática, do Direito de todos aos Benefícios da Cultura] 60. Como se oferece agora a possibilidade de libertar inúmeras pessoas da miséria da ignorância, é imperioso dever, muito de acordo com a nossa época, sobretudo para os cristãos, trabalhar denodadamente, tanto no setor econômico, quanto no setor político, em âmbito nacional e internacional, a fim de se tomarem decisões fundamentais pelas quais se reconheça em toda a terra, e seja levado a prática, o direito de todos a civilização humana, conveniente a dignidade da pessoa, sem discriminação de raça, sexo, nação, religião ou condição social. Por isso, para todos devem ser providenciados os suficientes bens de cultura, sobretudo aqueles que constituem a cultura de base, para que muitos não sejam impedidos de cooperar, de maneira verdadeiramente humana, no bem comum, pelo analfabetismo e pela falta de iniciativa. Deve-se, portanto, tender a que os homens, cujas forças de inteligência o possibilitem, possam elevar-se aos estudos de nível superior, de tal modo que os mesmos, enquanto for possível, surjam na sociedade humana, desempenhando funções, cargos e serviços de acordo com a sua capacidade e com a competência que adquiriram.¹¹ Assim cada homem e cada grupo social em qualquer povo poderá conseguir o desabrochar pleno de sua vida cultural, conforme as suas capacidades e tradições. ¹¹ Cf. João XXIII, Enc. Pacem in terris: AAS 55 (1963), p. 200. Além disso deve-se trabalhar estrenuamente para que todos se tornem conscientes, não só do direito a cultura, mas também do dever a que estão obrigados de se cultivar a si mesmos e de ajudar os outros. As vezes existem condições de vida e de trabalho que impedem os esforços culturais dos homens e destroem neles o gosto da cultura. Estas observações valem de modo especial para os trabalhadores do campo e os op erários, aos quais é necessário oferecer condições tais de prestarem o seu trabalho que não impeçam, mas promovam a sua cultura humana. As mulheres já trabalham em quase todos os setores da vida. É conveniente porem que possam assumir plenamente, de acordo com a própria índole, o papel que lhes toca. É dever de todos reconhecer e promover a participação específica e necessária da mulher na vida cultural. [Educação para a Cultura Integral do Homem] 61. Hoje é maior do que antigamente a dificuldade de reduzir a uma síntese as várias ciências e artes. Enquanto crescem o volume e diversidade de elementos que constituem a cultura, diminui ao mesmo tempo, para cada homem, a possibilidade de percebe-los e compo-los organicamente, de tal modo que cada vez mais desaparece a imagem do “homem universal”. Contudo continua a impor-se a cada homem o dever de salvar a integridade de sua personalidade, na qual sobressaem os valores da inteligência, vontade, consciência e fraternidade, todos fundamentados em Deus Criador e que em Cristo foram sanados e elevados, de maneira admirável. Como que mãe e alimentadora desta educação, acha-se em primeiro lugar a família. Nela os filhos, cuidados com amor, aprendem mais facilmente a hierarquia dos valores enquanto formas aprovadas de cultura humana são por assim dizer naturalmente comunicadas ao espírito do adolescente em crescimento. Para a mesma educação existem na sociedade atual oportunidades, decorrentes sobretudo da larga difusão de livros e dos instrumentos novos de comunicação cultural e social, que podem favorecer a cultura universal. Co a diminuição generalizada do tempo de trabalho cresceram, com os dias, as vantagens para muitos homens. Empreguem bem os lazeres, para o descanso do espírito e para consolidar a saúde da alma e do corpo. Por meio de atividades livres e ocupações, viagens a outras regiões (turismo), com as quais se cultiva a inteligência humana, os homens se enriquecem com o conhecimento mútuo, através de exercícios e apresentações esportivas que auxiliam a manter o equilíbrio do espírito, também na comunidade, e a estabelecer relações fraternais entre os homens de todas as condições, nações e raças. Os cristãos, portanto, cooperem para que as manifestações e atividades culturais coletivas, próprias de nossa época, sejam impregnadas de espírito humano e cristão. Todas estas vantagens, porém, não conseguem realizar integralmente a educação cultural do homem, se ao mesmo tempo é esquecida a interrogação profunda sobre o sentido da cultura e da ciência para a pessoa humana. [Composição da Civilização Humana com a Educação Cristã] 62. Ainda que a Igreja tenha contribuído muito para o progresso da cultura, contudo consta pela experiência que, por motivos contingentes, nem sempre é fácil de realizar a harmonia entre a cultura e o cristianismo. Estas dificuldades não trazem necessariamente dano a vida de fé, mas, ao contrário, podem impulsionar a mente a ter dela um conhecimento mais profundo. Com efeito, os estudos e as descobertas mais recentes das ciências, da história e da filosofia despertam problemas novos, que acarretam conseqüências também para a vida e exigem dos teólogos novas investigações. Além disso, os teólogos, observados os métodos próprios e as exigências da ciência teológica, são convidados sem cessar a descobrir a maneira mais adaptada de comunicar a doutrina aos homens de seu tempo, porque uma coisa é o próprio depósito da Fé ou as verdades e outra é o modo de enunciá-las, conservando-se contudo o mesmo significado e a mesma sentença.¹² Na pastoral sejam suficientemente conhecidos e usados não somente os princípios teológicos, mas também as descobertas das ciências profanas, sobretudo da psicologia e da sociologia, de tal modo que também os fiéis sejam encaminhados a uma vida de fé mais pura e amadurecida. ¹² Cf. João XXIII, Discurso de 11-10-1962, na abertura do Concílio: AAS 54 (1962), p. 792. Também a seu modo as letras e artes são de grande importância para a vida da Igreja. Procuram compreender a índole própria do homem, seus problemas e suas tentativas enérgicas de conhecer e aperfeiçoar a si mesmo e o mundo. Esforçam-se para descobrir o seu lugar na história e no universo inteiro e elucidar as misérias e alegrias, as necessidades e as energias dos homens e antecipar um destino humano melhor. Deste modo conseguem elevar a vida humana, expressa de variadas formas, segundo as épocas e as regiões. Por conseguinte deve-se trabalhar para que os cultores daquelas artes sintam-se compreendidos pela Igreja, em sua atividade, e gozando de liberdade ordenada, estabeleçam intercâmbios mais fáceis com a comunidade cristã. Também as formas novas de arte, apropriadas aos nossos contemporâneos, segundo a índole das diversas nações e regiões, sejam reconhecidas pela igreja. Acolham-se, porém, no santuário, quando, por modos de expressão adaptados e condizentes com as exigências da liturgia, elevem a mente a Deus.¹³ ¹³ Cf. Conc. Vat. II, Const. Sobre a Sagrada Liturgia, Sacrosanctum Concilium n. 123: AAS 56 (1964), p. 131; Paulo VI, Discurso aos artistas romanos: AAS 56 (1964), pp. 439-442. Assim o conhecimento de Deus se manifesta melhor e a pregação evangélica torna-se mais transparente para a inteligência dos homens e aparece como que conatural as suas condições de vida. Os fiéis portanto muito unidos aos outros homens de sua época e procurem perfeitamente suas maneiras de pensar e de sentir, expressas pela cultura. Unam os conhecimentos das novas ciências e doutrinas e das últimas descobertas com a moral e os ensinamentos da doutrina cristã para que a cultura religiosa e a retidão moral caminhem, junto dos mesmos homens, no mesmo passo do conhecimento das ciências e da técnica em progresso incessante e assim consigam eles apreciar e interpretar todas as coisas com sensibilidade autenticamente cristã. Aqueles que se dedicam as disciplinas teológicas nos Seminários e Universidades procurem colaborar com os homens que sobressaem nas outras ciências, colocando em comum suas energias e opiniões. A pesquisa teológica, ao mesmo tempo que aprofunda o conhecimento da verdade revelada, não negligencie o contato com o próprio tempo, para que possa fornecer um conhecimento mais completo da fé aos homens preparados nos diversos ramos a saber. Esse trabalho em conjunto será de máximo proveito para a formação dos ministros sagrados: poderão apresentar de modo mais adaptado a doutrina da Igreja sobre Deus, o homem e o mundo, aos contemporâneos, que por sua vez acolherão mais prazerosamente a palavra de Deus.14 Bem mais. É de desejar que muitos leigos consigam uma conveniente formação nas ciências sagradas e não poucos entre eles, havendo oportunidade, dediquem-se ex-professo a estes estudos e os aprofundem. Para que consigam desempenhar o seu dever, seja reconhecida aos fiéis, clérigos ou leigos, a justa liberdade de investigação e de pensamento, bem como a justa liberdade de exprimir as suas idéias com humildade e firmeza, nos assuntos de sua competência.15 14 Cf. Conc. Vat. II, Decreto sobre a formação sacerdotal Optatam totius e Declaração sobre a Educação Cristã Gravissimum Educationis. 15 Cf. Conc. Vat. II, Const. Dogm. Sobre a Igreja, Lumen Gentium, cap. 4, n.37: AAS (1965), pp. 42-43. CAPÍTULO III: VIDA ECONÔMICO-SOCIAL [Alguns Aspectos da Vida Econômica] 63. Também na vida econômico-social a dignidade da pessoa humana, com sua vocação integral, bem de toda a sociedade, deve ser honrada e promovida. O homem, com efeito, é o autor, centro e fim de toda a vida econômicosocial. A economia atual, como os outros setores da vida social, é assinalada por uma dominação crescente do homem sobre a natureza e dependência mútua entre os cidadãos, grupos e povos, e por uma intervenção mais freqüente do poder político. Ao mesmo tempo os progressos nos sistemas de produção e na troca de bens e serviços tornaram a economia um instrumento apto, com que se pode prover melhor as necessidades ampliadas da família humana. Contudo, não faltam motivos de inquietação. Não poucos homens, sobretudo nas regiões economicamente desenvolvidas, parecem como que dominados pela realidade econômica, de tal modo que toda a sua vida pessoal e social é impregnada de um certo espírito de lucro, tanto nas nações que favorecem a economia coletivista quando nas outras. No momento em que o progresso da vida econômica dirigido e coordenado de maneira racional e humana poderia mitigar as desigualdades sociais, com muita freqüência se torna o agravamento das desigualdades sociais ou também cá e lá o regresso da condição social dos fracos e o desprezo dos pobres. Enquanto uma enorme multidão tem falta ainda de coisas absolutamente necessárias, alguns, mesmo em regiões menos desenvolvidas, vivem na opulência ou desperdiçam os bens. O luxo e a miséria existem simultaneamente. Enquanto poucos gozam do máximo poder de deliberação, muitos carecem de quase toda a possibilidade de iniciativa pessoal e de responsabilidade de ação, encontrando-se muitas vezes mesmo a pessoa humana em condições indignas de vida e de trabalho. Semelhantes defeitos de equilíbrio econômico e social são notados não só entre a agricultura, a indústria e os serviços como também entre as diversas regiões de uma mesma nação. Entre as nações economicamente mais desenvolvidas e as outras nações, torna-se cada dia mais grave a oposição, que pode colocar em perigo a própria paz do mundo. Com consciência cada dia mais viva nossos contemporâneos percebem estas disparidades. Estão inteiramente persuadidos de que as ampliadas capacidades técnicas e econômicas, das quais dispõe o mundo atual, poderiam e deveriam corrigir este funesto estado de coisas. Por conseguinte, exigem-se de todos muitas reformas na vida econômico-social e uma conversão de mentalidade e de modo de ser. Para isto a Igreja, no decurso dos tempos, sob a luz do Evangelho, exarou e, sobretudo nestes últimos tempos, divulgou os princípios de justiça e de eqüidade, postulados pela reta razão, tanto para a vida individual e social, quanto para a vida internacional. O Sagrado Concílio pretende corroborar estes princípios, de acordo com as circunstâncias desta época, e proferir algumas orientações, que dizem respeito, antes de tudo, as exigências do desenvolvimento econômico.¹ ¹ Cf. Pio XII, Mensagem de 23-3-1952: AAS 44 (1952), p. 273; João XXIII, Alocução a A.C.L.I., de 1-5-1959: AAS 51 (1959), p. 358. 1ª Secção: O Desenvolvimento Econômico [O Desenvolvimento Econômico a Serviço do Homem] 64. Hoje, mais do que antes, atendendo-se ao aumento da população e as crescentes aspirações da humanidade, procura-se com razão incrementar a produção de bens agrícolas, industriais, e o volume de serviços prestados. Por isso, deve-se encorajar o progresso técnico, o espírito de renovação, a criação e a ampliação de empresas, a adaptação dos métodos de produção, os diligentes esforços de todos os que participam nos setores produtivos, enfim, todos os elementos que possam contribuir a este progresso. A finalidade fundamental desta produção não é o mero aumento dos produtos, nem o lucro ou a dominação, mas o serviço do homem e do homem completo, atendida a hierarquia das exigências de sua vida intelectual, moral, espiritual e religiosa; de todo homem, dizemos, de qualquer comunidade humana, sem distinção de raça ou região do mundo. Assim a atividade econômica, de acordo com os métodos e as leis próprias, deve ser exercida dentro dos limites da ordem moral ² de tal modo que se cumpra o plano de Deus a respeito do homem. ³ ² Cf. Pio XI, Enc. Quadragesimo Anno: AAS 23 (1931), p. 190 ss.; Pio XII, Mensagem de 23-3-1952: AAS 44 (1952), p. 276 ss.; João XXIII. Enc. Mater et Magistra: AAS 53 (1961), p. 450; Conc. Vat. II, Decr. Sobre os Meios da Comunicação Social, Inter mirifica, cap. 1, n.6: AAS 56 (1964), p. 147. ³ Cf. Mt 16,26; Lc 16,1-31; Col 3,17. [O Desenvolvimento Econômico sob a Decisão do Homem] 65. O progresso econômico deve permanecer sob a deliberação do homem. Não pode ser abandonado ao só arbítrio de poucas pessoas, ou de grupos economicamente muito poderosas, nem só da comunidade política, nem de algumas nações mais ricas. Ao contrárias, é preciso que em qualquer nível numerosas pessoas, e quando se trata de relações internacionais, todas as nações participem ativamente da sua direção. É igualmente necessário que as iniciativas espontâneas dos indivíduos e dos grupos privados sejam coordenadas com a ação dos poderes públicos e se ajustem e se harmonizem entre si. O desenvolvimento não pode ser abandonado nem ao curso quase mecânico da atividade econômica dos indivíduos e nem somente ao poder da autoridade pública. Por isso devem ser argüidos de erro, não só as teorias que, sob a forma de falsa liberdade, dificultam as reformas necessárias, mas também as que sacrificam os direitos fundamentais das pessoas particulares e dos grupos a organização coletiva da produção.4 4 Cf. Leão XIII, Enc. Libertas, nas Acta Leonis XIII, t. VIII, p. 220 ss.; Pio XI, Enc. Quadragesimo Anno: AAS 23 (1931), p. 191 ss.; Id., Divini Redemptoris: AAS 39 (1937), p. 65ss.; Pio XII, Mensagem de Natal, 1941: AAS 34 (1942), p. 10 ss.; João XXIII, Enc. Mater et Magistra: AAS 53 (1961), pp. 401-464. Além disso, lembrem-se os cidadãos que é seu direito e dever, o que deve ser reconhecido também pelo poder civil, de contribuir segundo as suas possibilidade. Sobretudo nas regiões economicamente menos desenvolvidas, onde todas as riquezas devem ser urgentemente usadas, colocam o bem comum em perigo grave aqueles que deixam os seus recursos sem dar frutos ou – respeitado o direito pessoal de migração – privam a sua comunidade dos auxílios materiais ou espirituais dos quais ela necessita. [Supressão das Acentuadas Diferenças Econômico-Sociais] 66. Para satisfazer as exigências da justiça e da eqüidade, deve-se esforçar vigorosamente para que, respeitandose os direitos das pessoas e o caráter próprio de cada povo, se suprimam, o mais depressa possível, as acentuadas diferenças econômico-sociais que hoje existem e crescem com freqüência ligadas a discriminação individual e social. Igualmente, em muitas regiões, levando em conta as dificuldades peculiares da agricultura, tanto na produção quanto na venda dos bens os trabalhadores do campo devem ser ajudados, não só para aumentar a produção, mas também para vende-la, e na introdução das necessárias reformas e inovações assim como na obtenção de um lucro razoável, a fim de que, como acontece muitas vezes, não permaneçam na condição de cidadãos de classe inferior. Os próprios agricultores, de sua parte, principalmente os jovens, apliquem-se com energia ao aperfeiçoamento de seus conhecimentos profissionais, sem o que não pode haver progresso da agricultura.5 5 Quanto ao problema da agricultura cf. principalmente João XXIII, Enc. Mater et Magistra: AAS 53 (1961), p. 341 ss. A justiça e a eqüidade exigem também que a mobilidade, necessária a uma economia em desenvolvimento, seja organizada de tal modo que a vida dos indivíduos e de suas famílias, não se torne instável e precária. Deve-se evitar cuidadosamente qualquer discriminação, quanto as condições de remuneração e de trabalho, em relação aos operários provenientes de outra nação ou região, que cooperam com sua obra para a promoção econômica do povo ou território. Todos, além disso, e as autoridades públicas em primeiro lugar, não os tratem como meros instrumentos de produção, mas como pessoas: devem ajudá-los a mandar buscar as suas famílias para junto deles e a providenciar uma habitação decente, assim como favorecer a sua integração na sociedade do povo ou da região de acolhida. Contudo, na medida do possível, sejam criadas fontes de trabalho nas próprias regiões de origem. Nas economias hoje em transição e nas formas novas da sociedade industrial nas quais, por exemplo, se desenvolve a automação, deve-se cuidar para que se ofereça trabalho suficiente e conveniente a cada um, assim como a possibilidade de adequada formação técnica e profissional. Sejam asseguradas a subsistência e a dignidade humana, principalmente daqueles que sofrem maiores dificuldades, por motivo de doença ou de idade. 2ª Secção: Alguns princípios que regem o conjunto da vida Econômico-Social [O Trabalho, suas Condições e o Descanso] 67. O trabalho humano que se exerce na produção e comércio de bens ou na prestação de serviços econômicos, é superior aos outros elementos da vida econômica, pois estes são de ordem meramente instrumental. Este Trabalho, com efeito, quer empreendido por conta própria quer contratado por outro, decorre imediatamente da pessoa, assinalando com sua marca as coisas da natureza e submetendo-as a sua vontade. Com o seu trabalho o homem sustenta regularmente a própria vida e a dos seus, associa-se aos seus irmãos e os ajuda, pode exercer a caridade fraterna e colaborar no aperfeiçoamento da criação divina. Bem mais ainda. Pelo trabalho oferecido a Deus, nós cremos que o homem se associa a própria obra redentora de Jesus Cristo, que conferiu uma dignidade eminente ao trabalho, quando em Nazaré trabalhou com as próprias mãos. Segue-se daí, para cada um, o dever de trabalhar fielmente e também o direito ao trabalho. Compete porém a sociedade, de sua parte, de acordo com as circunstâncias vigentes, ajudar os cidadãos, para que eles possam encontrar ocasião de trabalho suficiente. Enfim, o trabalho deve ser remunerado de tal modo que se ofereça ao homem a possibilidade de manter dignamente a sua vida e a dos seus, sob o aspecto material, social cultural e espiritual, considerando-se a tarefa e a produção de cada um, assim como as condições da empresa e o bem comum.6 6 Cf. Leão XIII, Enc. Rerum Novarum: AAS 23 (1890-1891), p. 649-662; Pio XI, Enc. Quadragesimo Anno: AAS 23 (1931), pp. 200-201; Id., Enc. Divini Redemptoris: AAS 29 (1937), p. 92; Pio XII, Radiomensagem de Natal, 1942: AAS 35 (1943), p. 20; Id., Alocução de 13-6-1943: AAS 35 (1943), p. 172; Id., Radiomensagem aos operários da Espanha, 11-3-1951: AAS 43 (1951), p. 215; João XXIII, Enc. Mater et Magistra: AAS 53 (1961), p. 419. Como a atividade econômica se processa ordinariamente pelo trabalho associado dos homens, é iníquo e desumano dispô-la e organizá-la de tal modo que se transforme em dano para qualquer trabalhador. Acontece porém muitas vezes, também em nossos dias, que os que trabalham são de certa maneira escravizados pela própria obra. E isto não se justifica, de modo algum, pelas assim chamadas leis econômicas. Portanto, todo o conjunto do processo de produção deve se adaptar as necessidades da pessoa e as modalidades de sua vida, primeiramente de sua vida domestica, sobretudo no que diz respeito a mãe de família, levando-se em conta sempre o sexo e a idade. Além disso, seja oferecida aos trabalhadores a possibilidade de desenvolver as próprias qualidades e a sua personalidade, no exercício mesmo do trabalho. Dedicando, com a devida responsabilidade, o tempo e suas forças a esta tarefa, tenham todos contudo também a suficiente tranqüilidade e repouso para cuidar da vida familiar, cultural, social e religiosa. Bem mais. Tenham a oportunidade de exercitar livremente as forças e qualidades que talvez pouco possam aperfeiçoar no trabalho profissional. [Participação nas Empresas, no Conjunto da Economia e Conflitos no Trabalho] 68. Nas empresas econômicas associam-se pessoas, isto é, homens livres e responsáveis, criados a imagem de Deus. Por isso, consideradas as tarefas de cada um, proprietários ou empregadores, dirigentes ou operários, e resguardada a necessária unidade de direção do empreendimento, promova-se de maneira a ser devidamente determinada a participação ativa de todos na gestão das empresas. 7 Contudo, como muitas vezes se decide, não já na própria empresa, mas em instâncias superiores, sobre as condições sociais e econômicas, das quais depende a sorte futura dos trabalhadores e de seus filhos, participem também nesta deliberações, por si mesmos ou por meio de representantes livremente eleitos. 7 Cf. João XXIII, Enc. Mater et Magistra: AAS 53 (1961), pp. 408,424,427, a palavra “curatione” é tirada do texto latino da Enc. Quadragesimo Anno: AAS 23 (1931), p. 199. Sob o aspecto da evolução da questão cf. também: Pio XII, Alocução de 3-6-1950: AAS 42 (1950) pp. 485-488; Paulo VI, Alucoção de 8-6-1964: AAS 56 (1964), pp. 574579. Entre os direitos fundamentais da pessoa humana deve-se enumerar o direito dos trabalhos de fundarem livremente associações que possam representá-los de modo eficiente e contribuir para organizar a vida econômica na ordem reta, assim como o direito de participarem com liberdade nas atividades destas associações, sem perigo de represálias. Com esta participação organizada, juntamente com uma progressiva formação econômico-social, aumentará em todos, de dia para dia, a consciência de sua própria função e responsabilidade, pela qual eles são encaminhados, segundo as suas capacidades e aptidões pessoais, a se sentirem associados em todo o trabalho de desenvolvimento econômico-social e na realização do bem comum universal. Surgindo conflitos econômico-sociais empreguem-se os esforços necessários para chegar a uma solução pacífica. Embora se deva recorrer sempre em primeiro lugar a um diálogo sincero entre as partes, a grave contudo, mesmo nas circunstâncias atuais, para a defesa dos próprios direitos e a realização das reivindicações justas dos trabalhadores, pode permanecer como recurso necessário, ainda que seja o último. Procurem-se porém, quanto antes, os caminhos da negociação e a retomada do diálogo em vista de um acordo. [Destinação dos Bens Terrenos a todos os Homens] 69. Deus destinou a terra, com tudo que ela contém, para o uso de todos os homens e povos, de tal modo que os bens criados devem bastar a todos, com eqüidade sob as regras da justiça, inseparável da caridade.8 Sejam quais forem as formas de propriedade, adaptada as legítimas instituições dos povos, segundo circunstâncias diversas e mutáveis, deve-se atender sempre a esta destinação universal dos bens. Por esta razão, usando aqueles bens, o homem que possui legitimamente os bens materiais não as deve ter só como próprias dele, mas também como comuns, no sentido em que elas possam ser úteis não somente a ele mas também aos outros.9 Alem disso compete a todos o direito de ter uma parte de bens suficientes para si e suas famílias. Assim pensaram os Doutores e Padres da Igreja, ensinando que os homens estão obrigados a socorrer os pobres, e na verdade, não somente com o que lhes é superfluo.10 Aquele, porém, que se encontra em necessidade extrema tem o direito de procurar o necessário para si junto as riquezas dos outros.¹¹ Como são tantos os famintos no mundo, o Sagrado Concílio insiste com todos, particulares e autoridades, que lembrados daquela sentença dos Padres: “Alimenta a quem está morrendo de fome, porque, se não o nutriste, mataste-o”¹², segundo as possibilidades cada um, comuniquem e ofereçam realmente os seus bens, fornecendo auxílios sobretudo aos particulares ou povos, que desta maneira poderão ajudar-se a si mesmo e progredir. 8 Cf. Pio XI., Enc. Sertum Laetitae: AAS 31 (1939), p. 642; João XXIII, Alocução consistorial: AAS 52 (1960), pp. 511; id., Enc. Mater ey Magistra: AAS 53 (1961), p. 411. 9 Cf. S. Tomás, Summa Theol. II-II, q.32, a.5 a 2: Ibid. q. 66, a.2: cf. explicação em Leão XIII, Enc. Rerum Novarum: AAS 23 (1890-91) p. 651; cf. também Pio XII, Alocução de 1-6-1941: AAS 33 (1941), p. 199; id., Radiomensagem de Natal, 1954: AAS 47 (1955), p. 27. 10 Cf. S. Basílio, Hom in ilud Lucae “Destruam horrea mea”, n.2 (PG 31,263); Lactâncio, Divinarum Institutionum, Ibid. V, de iustitia (PL 6,565 B); S. Agostinho, In Ioann. Ev. Tr. 50, n. 6 (PL 35,1760); id., Enarratio in Ps. CXLVII, 12 (PL 37,192); S. Gregório M., Homilae in Ev., hom. 20 (PL 76,1165); Id., Regulae Pastoralis liber, pars III, c.21 (PL 77,87): S. Boaventura, In III Sent. D.33, dub 1 (ed. Quaracchi III, 728); Id., In IV Sent. D.15, p. II, a.2, q.1 (ed. cit. IV, 371b); q. de supérfluo (ms. Assist. Bibl. comum. 186, ff. 112 a-113 a); S. Alberto M., In III Sent. D.33,a.3, sol. 1 (ed. Borgnet XXVIII, 611); Id. In IV Sent d.15a.16 (ed. cit. XXIX, 494-497). Sôbre a determinação radiotelevisiva de 119-1962: AAS 54 (1962), p. 682: “Dever de todo homem, dever premente do cristão é considerar o supérfluo conforme a medida das necessidades alheias, e bem vigiar para que a administração e a distribuição dos bens criados redunde em vantagem de todos”. 11 Vale nesse caso o antigo princípio: “Na extrema necessidade tudo é comum, isto é: deve ser comunicado”. Doutro lado, conforme o motivo, a extensão e o modo de aplicar o princípio proposto no texto, alem de conceituados autores modernos cf. S. Tomás, Summa Theol. II-II, q.66,a.7. Como é evidente, para a reta aplicação do princípio, devem-se observar todas as condições moralmente requeridas. ¹³ Cf. Gratiani Decretum, c.21, dist. LXXXVI: ed. Friedberg I,302. Esse dito já se encontra em PL 54,591A e PL 56, 1132B. Cf. in Antonianum 27 (1952), 349-466. Nas sociedades economicamente menos desenvolvidas não raro a destinação comum dos bens é em parte satisfeita pelos costumes e tradições próprias da comunidade, fornecendo-se deste modo a cada membro os bens absolutamente necessários. Deve-se evitar contudo que certos costumes sejam admitidos como inteiramente imutáveis, quando não correspondem mais as novas exigências de hoje. Não se deve, por outra parte, agir de modo imprudente contra os costumes honestos, que, uma vez devidamente adaptados as circunstâncias atuais, podem prestar valiosos serviços. Paralelamente, nas nações muito desenvolvidas sob o aspecto econômico, uma rede de instituições sociais de garantia e seguros pode realizar, de sua parte, a destinação comum dos bens. Além disso, promovam-se os serviços familiares e sociais, sobretudo os que contribuem para a cultura e a educação. Na realização de tudo isto deve-se tomar cuidado contudo que os cidadãos não caiam em certa passividade em relação a sociedade, irresponsabilidade e recusa de serviço. [Inversões de Capitais e Problemas Monetários] 70. As inversões, por sua parte, devem encaminhar-se a conseguir oportunidade de trabalho e renda suficientes para a população tanto atual quanto futura. Todos aqueles que decidem sobre estas inversões e sobre a organização da vida econômica – particulares, grupos ou autoridades públicas – devem lembra-se destas finalidades e reconhecer sua obrigação grave, por uma parte, de estarem atentos para que sejam providenciados os recursos necessários a uma vida decente, tanto de cada um em particular, quanto da comunidade inteira; por outra parte, de prover o futuro, estabelecendo justo equilíbrio entre as necessidades atuais de consumo, individual e coletivo, e as exigências de inversão de bens para as gerações futuras. Igualmente sempre se tenham em vista as necessidades urgentes das nações ou regiões economicamente menos desenvolvidas. Nas questões monetárias é preciso acautelar-se para que não se prejudique o bem da própria nação e o das outras. Além disso, tomem-se as providências para que os economicamente fracos não sofram dano injusto com a desvalorização monetária. [Acesso a Propriedade e ao Domínio Particular dos Bens. Os Latifúndios] 71. Como a propriedade e outras formas de domínio particular sobre os bens exteriores contribuem para a afirmação da pessoa, como lhe oferecem, além disso, a oportunidade de exercer sua função na sociedade e na economia, é de muito interesse que seja incentivado o acesso, quer dos indivíduos quer das comunidades, a um certo domínio sobre os bens exteriores. A propriedade particular ou algum domínio sobre os bens exteriores conferem a cada um a extensão absolutamente necessária a autonomia pessoal e familiar e devem ser consideradas como um prolongamento da liberdade humana. Enfim, porque aumentam o estímulo no desempenho do trabalho e das responsabilidades, constituem uma das condições das liberdades civis.¹³ ¹³ Cf. Leão XIII, Enc. Rerum Novarum: AAS (1890-91), pp. 643-646; Pio XI. Enc. Quadragesimo Anno: AAS 23 (1931), p. 191; Pio XII, Mensagem radiofônica de 1-6-1941: AAS 33 (1941), p. 199 Id.; Radiomensagem de Natal, 1942; AAS 35 (1943), p. 17; Id., Radiomensagem de 1-9-1944: AAS 36 (1944), p. 253; João XXIII, Enc. Mater et Magistra: AAS 53 (1961), pp. 428-429. As formas de tal domínio ou propriedade hoje são diversas e variam cada dia mais. Todas, contudo, permanecem uma causa não desprezível de segurança, ao lado de fundos sociais, de direitos e serviços garantidos pela sociedade. E isto não deve ser afirmado somente das propriedades materiais, mas também dos bens materiais, como são as habilitações profissionais. Contudo, o direito de domínio particular não impede o direito das propriedades públicas, que se reveste de várias formas. A transferência porém de bens para propriedade pública não pode ser realizada senão pela autoridade competente, de acordo com as exigências do bem comum e dentro de seus limites, oferecendo-se indenização justa. Além disso, compete a autoridade pública precaver-se para que ninguém abuse da propriedade particular contra o bem comum.14 14 Cf. Pio XI, Enc. Quadragesimo Anno: AAS 23 (1931), p. 214; João XXIII, Enc. Mater et Registra: AAS 53 (1961), p. 429. A mesma propriedade particular, com efeito, por sua natureza, possui também uma índole social, fundada na lei da destinação dos bens a comunidade inteira.15 Negligenciando esta função social, acontece transformar-se a propriedade, muitas vezes, em ocasião de ambições e desordens graves: assim se oferece aos adversários o pretexto de colocarem em causa o próprio direito de propriedade. 15 Cf. Pio XII, Radiomensagem. Pent. 1941: AAS 44 (1941), p. 199; João XXIII, Enc. Mater et Magistra: AAS 53 (1961), p. 430. Em muitas regiões economicamente menos desenvolvidas existem grandes ou também extensíssimas propriedades rurais, pouco cultivadas, ou sem cultura alguma, a espera de valorização enquanto a maior parte do povo não tem terra ou dispõe somente de parcelas mínimas, e, por outra parte, o desenvolvimento da produção nos campos se apresenta de urgência evidente. Não raro, os que são contratados pelos donos para o trabalho, ou que cultivam uma parte a título de locação, recebem somente um salário ou produção indignos do homem, são privados de habitação decente e são explorados pelos intermediários. Sem segurança alguma, vivem debaixo de tal servidão pessoal, que lhes é tirada quase toda a possibilidade de iniciativa e responsabilidade, sendo-lhes proibida qualquer promoção cultural humana e participação na vida social e política. Portanto, em vários casos, as reformas são necessárias para o crescimento das remunerações, o melhoramento das condições de trabalho, o aumento de segurança no emprego, o incentivo a iniciativa de trabalho e, também, a distribuição das terras insuficientemente cultivadas com aqueles que consigam torná-las mais produtivas. Em tal caso, devem ser fornecidos os recursos e meios necessários, sobretudo fornecidos os recursos e meios necessários, sobretudo os subsídios de educação e as possibilidades de uma justa organização de cooperativas. Todas as vezes que o bem comum exigir uma expropriação, deve ser estipulada a indenização de acordo com a eqüidade, levando-se em conta as circunstâncias. [A Atividade Econômico-Social e o Reino de Cristo] 72. Os cristãos que participam ativamente no atual desenvolvimento econômico-social e lutam pela justiça e caridade, estejam convencidos de que podem contribuir muito para o bem-estar da humanidade e a paz do mundo. Nestas atividades, individual ou coletivamente, brilhem pelo exemplo. Tendo adquirido a competência e a experiência absolutamente indispensáveis no meio das atividades terrestres, observem a hierarquia dos valores, fiéis a Cristo e ao Evangelho, de tal modo que toda a sua vida, individual e social, seja impregnada do espírito das Bem-aventuranças, destacando-se a pobreza. Todo aquele que, obedecendo a Cristo, procura em primeiro lugar o Reino de Deus, encontrará, em conseqüência, um amor mais forte e mais puro para ajudar todos os seus irmãos e realizar a obra da justiça inspirada pela caridade.16 16 Para o reto uso dos bens conforme a doutrina do Novo Testamento cf. Lc 3,11; 10,30 ss; 11,41; 1 Ped 5,3; Mc 8,36; 12,39-44; Tgo 5,1-6; 1 Tim 6,8; Ef 4,28; 2 Cor 8,13; 1 Jo 3,17-18. CAPÍTULO IV: A VIDA DA COMUNIDADE POLÍTICA [A Vida Pública Atual] 73. Notam-se em nossos tempos profundas transformações, mesmo na estrutura e nas instituições dos povos; acompanham sua evolução cultural, econômica e social. Essas transformações exercem grande influência na vida da comunidade política, principalmente no que diz respeito aos direitos e deveres de todos no exercício da liberdade civil, consecução do bem comum e harmonização das relações dos cidadãos entre si e com a autoridade pública. Nas várias regiões do mundo, de uma consciência mais viva da natureza humana surge a vontade de instaurar uma ordem político-jurídica na qual os direitos da pessoa sejam mais amparados, como são os direitos de se reunirem livremente, de se associarem, de exprimirem as próprias opiniões e de professarem a religião em particular e em público. Pois a defesa dos direitos da pessoa é condição necessária, a fim de que os cidadãos, seja em particular ou associados, possam participar ativamente na vida e no governo do país. Em muitos cidadãos, juntamente com o progresso cultural, econômico e social, fortifica-se o desejo de participar mais na organização da vida da comunidade política. Cresce na consciência de muitos a vontade de que se respeitem os direitos das minorias no interior de uma nação, sem negligência dos seus deveres para com a comunidade política. Além disso aumenta continuamente o respeito para com os homens que professam outra opinião ou religião. Ao mesmo tempo organiza-se uma colaboração mais ampla para que todos os cidadãos, e não só alguns privilégios, possam realmente gozar dos direitos de pessoa. Condenam-se, porém, quaisquer formas políticas, vigentes em algumas regiões, que impedem a liberdade civil e religiosa, multiplicam as vítimas das paixões e crimes políticos e desviam o exercício da autoridade, do bem comum para o proveito de algum partido ou dos próprios governantes. Para instaurar a vida política verdadeiramente humana nada melhor do que desenvolver o sentido de justiça, de benevolência e de serviço do bem comum, e reforçar as convicções fundamentais acerca da verdadeira índole e também do fim da comunidade política, e corroborar o exercício reto e os limites da autoridade pública. [Natureza e Fim da Comunidade Política] 74. Indivíduos, famílias, agrupamentos diversos, todos os que constituem a comunidade civil, tem consciência da própria insuficiência para instaurar plenamente a vida humana e percebem a necessidade de uma comunidade mais vasta, na qual todos empenhem diariamente as próprias forças para alcançar sempre melhor o bem comum.¹ Por este motivo organizam a comunidade política segundo várias formas. Pois a comunidade política existe por causa daquele bem comum: nela obtém sua plena justificação e sentido, de onde deriva o seu direito primordial e próprio. Ora, o bem comum compreende o conjunto daquelas condições de vida social, que permitam aos homens, as famílias e as sociedades possam conseguir mais fácil e desembaraçadamente a própria perfeição. ² ¹ Cf. João XXIII, Enc. Mater et Magistra: AAS 53 (1961), p. 417. ² Cf. Id., Ibid. Mas muitos e vários são os homens que integram a comunidade política e podem legitimamente seguir opiniões diversas. Para que não se divida a comunidade política, seguindo cada um sua própria opinião, requer-se autoridade que dirija as energias de todos os cidadãos para o bem comum, não mecânica nem despoticamente, mas antes de tudo como autoridade moral que se apóia na liberdade e na consciência do cargo e da responsabilidade assumida. Portanto, é evidente que a comunidade e a autoridade se fundamentam na natureza humana e por isso pertencem a ordem predeterminada por Deus, embora sejam entregues a livre vontade dos cidadãos a escolha do regime e a designação dos governantes. ³ ³ Cf. Rom 13,1-5. Disto se segue também que o exercício da autoridade política, seja na comunidade como tal, seja nos órgãos representativos do Estado, sempre deve ser realizado dentro dos limites da ordem moral, para procurar o bem comum, dinamicamente considerado, de acordo com a ordem jurídica legitimamente estabelecida ou por estabelecer. Então os cidadãos são obrigados em consciência a obedecer.4 Daí, pois, se vê a responsabilidade, a dignidade e a importância da missão dos que governam. 4 Cf. Rom 13,1-5. Mas onde são oprimidos pela autoridade pública, que excede a sua competência, os cidadãos não recusem aquela colaboração objetivamente exigida pelo bem comum; contudo, realmente lhes é lícito defender os seus direitos e os dos seus concidadãos contra o abuso da autoridade, guardados os limites traçados pela lei natural e evangélica. Os modos concretos, porém, pelos quais a comunidade política organiza a própria estrutura e o bom equilíbrio dos poderes públicos podem ser diferentes segundo a diferente índole dos povos e o progresso da história. Mas devem servir sempre para formar o homem culto, pacífico e generoso com todos, para o proveito de toda a família humana. [A Cooperação de Todos na Vida Pública] 75. É planamente consentâneo com a natureza humana que se encontrem estruturas jurídico-políticas, que ofereçam sempre melhor e sem nenhuma discriminação a todos os cidadãos a possibilidade efetiva de participar livre e ativamente tanto no estabelecimento dos fundamentos jurídicos da comunidade política como na gestão dos negócios públicos, na determinação do campo de ação e dos fins das várias instituições, como na eleição dos governantes.5 Lembrem-se portanto todos os cidadãos ao mesmo tempo do direito e do dever de usar livremente seu voto para promover o bem comum. A Igreja considera digno de louvor e consideração o trabalho daqueles que se dedicam ao bem da coisa pública a serviço dos homens e assumem os trabalhos deste cargo. 5 Cf. Pio XII, Radiomensagem de 24-12-1942: AAS 35 91943), pp. 9-24; 24-12-1944: AAS 37 (1945), pp. 11-17; João XXIII, Enc. Pacem in terris: AAS 55 (1963), pp. 263.271,277 e 278. A fim de que a cooperação dos cidadãos, unida a consciência do dever, atinja seu feliz efeito na vida política diária, requer-se uma constituição jurídica positiva, na qual se instaurem a conveniente divisão dos cargos e dos órgãos da autoridade pública e, ao mesmo tempo, uma proteção eficaz e independente dos direitos. Reconheçam-se, conservem-se e promovam-se os direitos de todas as pessoas, famílias e grupos, assim como o seu exercício, juntamente com os deveres, aos quais estão obrigados todos os cidadãos.6 Entre eles é preciso lembrar o dever de prestar a nação os serviços materiais e pessoais, exigidos pelo bem comum. Os governantes acautelem-se de entravar as associações familiares, sociais ou culturais, as corporações ou organismos intermediários, nem os privem de sua ação legítima e eficaz. Antes procurem promovê-la, de boa vontade e regularmente. Os cidadãos, todavia, seja individualmente seja em grupos, evitem atribuir demasiado poder a autoridade pública e não exijam dela inoportunamente privilégios e proveitos exagerados, de tal modo que diminuam a responsabilidade das pessoas, das famílias e dos grupos sociais. 6 Cf. Pio XII, Radiomensagem de 1-6-1941: AAS 33 (1941), p. 200; João XXIII, Enc. Pacem in terris: Lc., p. 273 e 274. A autoridade pública é obrigada a intervir muitas vezes nas questões sociais e econômicas por causa das circunstâncias mais complexas do nosso tempo, para introduzir melhores condições, com as quais os cidadãos e os grupos são auxiliados, de modo mais eficaz, a atingir livremente o bem integral do homem. É certo que as relações entre a socialização e o progresso e a autonomia da pessoa podem ser entendidas de modo diferente conforme as diversas regiões e a evolução dos povos.7 Mas onde o exercício dos direitos foi restringido por certo tempo, em vista do bem comum, mudadas as circunstâncias, restitua-se quanto antes a liberdade. Em todo caso, é desumano que a autoridade política incorra em formas totalitárias ou ditatoriais que lesem os direitos da pessoa ou dos grupos sociais. 7 Cf. João XXIII, Enc. Mater et Magistra: AAS 53 (1961), pp. 415-418. Os cidadãos cultivem com grandeza de alma e fidelidade o amor a pátria, mas sem estreiteza de espirito, isto é, de tal maneira que se interessem sempre ao mesmo tempo pelo bem de toda a humanidade, que abarca raças, povos e nações, unidos por toda sorte de laços. Todos os cristãos se tornem cônscios de seu papel próprio e especial na comunidade política. Devem distinguir-se pelo exemplo, porquanto estão obrigados por consciência a desenvolver em si o senso de responsabilidade e do devotamento ao bem comum de tal modo que demonstrem com a liberdade, a iniciativa pessoal com a solidariedade e o equilíbrio de todo o corpo social, a conveniente unidade com a diversidade proveitosa. Reconheçam as opiniões legítimas, mas discordantes entre si, sobre a organização da realidade temporal; respeitem os cidadãos, também associados, que se defendem honestamente. Os partidos políticos, porém, devem promover aquilo que, na sua opinião, é exigido pelo bem comum, ao qual nunca é lícito antepor o interesse próprio. Além disso com empenho se deve cuidar da educação civil e política, hoje muito necessária tanto para o povo como sobretudo para a juventude a fim de que todos os cidadãos possam desempenhar o seu papel na vida da comunidade política. Os que são idôneos ou possam tornar-se para exercer a difícil e ao mesmo tempo nobilíssima arte política8, preparem-se para ela e procurem exercê-la, esquecidos do proveito próprio e de vantagens materiais. Pela integridade e com prudência, lutem contra a injustiça e a opressão, ou o absolutismo e a intolerância, seja dum homem ou dum partido político; dediquem-se, porém, ao bem de todos com sinceridade e retidão, bem mais, com o amor e a coragem exigidos pela vida política. 8 Pio XI, Alocução aos dirigentes da Federação Universitária Católica: Discorsi di Pio XI: ed. Bertetto, Turim, vol I (1960), p. 743. [A Comunidade Política e a Igreja] 76. Principalmente onde vigora a sociedade pluralística, é de grande importância que se tenha a conveniente consideração da relação entre a comunidade política e a Igreja: claramente se distinga entre as atividades que os fiéis, isoladamente ou em grupos, guiados pela consciência cristã, executam em seu nome como cidadãos e as que realizam em nome da Igreja, juntamente com os pastores. A Igreja que, em razão da sua finalidade e competência, de modo algum se confunde com a comunidade política e nem está ligada a nenhum sistema político, é ao mesmo tempo sinal e a salvaguarda do caráter transcendente da pessoa humana. Cada uma em seu próprio campo, a comunidade política e a Igreja são independentes e autônomas uma da outra. Ambas, porém, embora por título diferente, estão a serviço da vocação pessoal e social dos mesmos homens. Tanto mais eficazmente executarão para o bem de todos este serviço, quanto melhor cultivarem entre si a sã cooperação, consideradas também as circunstâncias dos tempos e lugares. Pois o homem não está restrito apenas a ordem temporal, mas, vivendo na história humana, conserva, integralmente a sua vocação eterna. A Igreja, sem dúvida, alicerçada no amor do Redentor, contribui para que a justiça e a caridade floresçam mais amplamente no seio de cada nação e entre as nações. Pregando a verdade evangélica, e iluminando todos os setores da atividade humana pela sua doutrina, pelo testemunho dos fiéis cristãos, a Igreja respeita e promove também a liberdade e a responsabilidade dos cidadãos. Quando os apóstolos, seus sucessores e seus cooperadores são enviados para anunciar aos homens Cristo, Salvador do mundo, baseiam-se, ao exercer seu apostolado, no poder de Deus, que com freqüência dá a conhecer o poder do Evangelho na fraqueza das testemunhas. Todos aqueles que se dedicam ao ministério da Palavra de Deus, é preciso que lancem mão de caminhos e auxílios próprios ao Evangelho, que diferem, em muitos pontos dos da cidade terrestre. Na verdade, as coisas terrenas e aquelas que na condição dos homens transcendem este mundo, unem-se estreitamente, e a mesma Igreja usa os bens temporais a medida que sua própria missão o exige. Mas não coloca a sua esperança nos privilégios oferecidos pela autoridade civil. Ao contrário, Ela renunciará ao exercício de direitos legitimamente adquiridos, onde constar que o uso deles coloca em dúvida a sinceridade do seu testemunho ou as novas condições da vida exigirem outra disposição. Além disso é justo que possa, sempre e em toda parte, pregar a fé com liberdade verdadeira, ensinar a sua doutrina social, exercer livremente a sua missão entre os homens e ainda emitir juízo moral, também sobre as realidades que dizem respeito a ordem política, quando o exijam os direitos fundamentais da pessoa ou a salvação das almas, empregando todos os recursos, e somente estes, que estão de acordo com o Evangelho e com o bem de todos, conforme a diversidade dos tempos e das situações. Aderindo fielmente ao Evangelho e desempenhando sua missão no mundo, a Igreja, a quem pertence fomentar e elevar tudo aquilo que se encontra de verdadeiro, bom e belo na comunidade humana9, fortalece a paz entre os homens para a glória de Deus.10 9 Cf. Conc. Vat. II, Const. Dogm. Sobre a Igreja, Lumen Gentium, n. 13: AAS 57 (1965), p. 17. 10 Cf. Lc 2,14. CAPÍTULO V: A CONSTRUÇÃO DA PAZ E A PROMOÇÃO DA COMUNIDADE DOS POVOS [Introdução] 77. Nestes mesmos anos, em que ainda perduram entre os homens os pesadíssimos sofrimentos e angústias que derivam da guerra aberta ou iminente, a família humana inteira atinge o momento decisivo no processo de sua evolução. Reunida aos poucos, em toda parte se torna mais consciente de sua unidade. Todavia ser-lhe-á impossível construir para todos os homens em toda parte um mundo realmente mais humano, de acordo com a sua missão a não ser que todos se convertam a verdadeira paz pela renovação do espírito. Destarte a mensagem do Evangelho, tão conforme aos mais elevados ideais e aspirações do gênero humano, adquire nova claridade em nossos dias, quando proclama bem-aventurados os artífices da paz, “pois serão chamados filhos de Deus” (Mt 5,9). Daí a intenção do Concílio: depois de colocar em plena luz o verdadeiro e nobilíssimo conceito de paz, proscrever a desumanidade da guerra, quer convocar com insistência os fiéis, para que, apoiados em Cristo, autor da paz, colaborem com todos os homens a consolidar a paz entre eles, baseada na justiça e no amor, e a preparar-lhe os instrumentos da paz. [A Natureza da Paz] 78. A paz não é a mera ausência de guerra, nem se reduz ao simples equilíbrio de forças entre os adversários, nem é resultado de opressão violenta: antes é, adequada e propriamente, definida “obra da justiça” (Is 32,7). É fruto da ordem que o seu Fundador divino inseriu na sociedade humana. Deve ser realizada, em perfeição progressiva, pelos homens que tem sede da justiça. Pois, embora o bem comum do gênero humano seja moderado em seus princípios fundamentais pela lei eterna, em suas exigências concretas fica sujeito a continuas mudanças, no decorrer dos tempos: a paz nunca é conquistada de uma vez para sempre; deve ser continuamente construída. Além disso, por ser a vontade humana fraca e ferida pelo pecado, a realização da paz exige de cada um constante domínio das paixões e vigilância atenta da autoridade legítima. Mas não é só isso. Aqui na terra não é possível obter a paz de que falamos sem que se garanta o bem-estar das pessoas, sem que os homens comuniquem entre si espontaneamente as riquezas do coração e da inteligência. Para a construção da paz são de outros homens e povos e sua dignidade, bem como o exercício diligente da fraternidade. Destarte a paz se apresenta também como fruto do amor, que avança além dos limites daquilo que a justiça é capaz de proporcionar. A paz terrestre, porém, que surge do amor ao próximo, é imagem e efeito da paz de Cristo que promana de Deus Pai. Pois o próprio Filho encarnado, príncipe da paz, por sua cruz reconciliou todos os homens com Deus. Restabelecendo a união de todos em um só Povo e um só Corpo, em sua própria carne aniquilou o ódio¹ e, depois do triunfo da ressurreição, derramou o Espírito da caridade nos corações dos homens. ¹ Cf. Ef 2,16; Col 1,20-22. Por isto todos os cristãos são insistentemente convocados para que, “praticando a justiça na caridade” (Ef 4,15), se associem a todos os homens sinceramente pacíficos, para implorar e estabelecer a paz. Impelidos por este espírito só podemos calorosamente aplaudir aqueles que, para reivindicar os seus direitos, renunciam ao emprego da violência e recorrem aos meios de defesa, que aliás estão ao alcance também dos mais fracos, contanto que isso seja viável sem lesar direitos e obrigações de outros ou da comunidade. Pecadores que são os homens vivem em perigo de guerra e este perigo ameaçará até a vinda de Cristo. Mas enquanto, unidos pela caridade, superam o pecado, serão também eliminadas as violências até que se cumpra a palavra: “De suas espadas eles forjarão relhas de arado, e de suas lanças, foices. Uma nação não levantará a espada contra a outra, e já não se adestrarão para a guerra” (Is 2,4). 1ª SECÇÃO: ELIMINAÇÃO DA GUERRA [Atenuação da Desumanidade das Guerras] 79. As guerras recentes assolaram o nosso mundo com pesadíssimos prejuízos materiais e morais. Mesmo assim, até hoje, a guerra prossegue diariamente el alguma parte do globo com suas devastações. Mais ainda. Na medida em que se empregam na guerra armas científicas de todo gênero, seu caráter desumano ameaça levar os combatentes a uma barbárie que supera em muito a de outros tempos. Além disso, a complexidade da situação atual e o emaranhado das relações internacionais fazem com que por métodos novos, insidiosos e subversivos, se alastrem guerras camufladas. Em bastantes casos o recurso a métodos de terrorismo surge como nova maneira de guerra. A vista deste baixo nível humanitário, o Concílio tem em mira, antes de tudo, recordar o valor inalterável do direito natural dos povos e seus princípios universais. A própria consciência do gênero humano proclama estes princípios com segurança crescente. Ações portanto deliberadamente opostas a eles, bem como ordens que impõem tais ações, são criminosas; nem a obediência cega é capaz de desculpar aqueles que as acatam. Entre tais ações figuram antes de tudo as que tem por fim o sistemático e metódico extermínio de todo um povo, nação ou minoria étnica; estas ações devem ser condenadas como crimes horrendos, e isto com toda a energia. E merece aprovação suprema a coragem daqueles que não tem medo de opor resistência aberta aos indivíduos que ordenam tais crimes. Existem diversas convenções internacionais sobre assuntos de guerra, assinadas por não poucas nações, com o objetivo de tornar menos desumanas as operações militares e suas conseqüências. Tais são os pactos a respeito dos soldados feridos ou prisioneiros, e outros acordos deste gênero. Estes tratados devem ser observados. E não só. Todos, particularmente as autoridades públicas e os peritos no assunto, devem empenhar-se quanto possível para que sejam aperfeiçoados e assim levados a refrear melhor e com maior eficiência a desumanidade das guerras. Além disso, parece ser justo que as leis contemplem humanamente o caso daqueles que por motivos de consciência recusam pegar em armas, desde que aceitem uma outra maneira de servir à comunidade humana. De qualquer maneira, a guerra não foi desarraigada da vida humana. Enquanto porém houver perigo de guerra, sem que exista uma autoridade internacional competente e dotada de forças suficientes, e esgotados todos os meios de negociação pacífica, não se poderá negar aos governos o direito de legítima defesa. Os chefes de Estado e os outros que participam da responsabilidade da coisa pública, portanto, tem o dever de salvaguardar os povos que lhes são confiados dirigindo com seriedade assuntos tão sérios. Todavia, uma coisa é cuidar de assuntos militares com o fim de defender com justiça os povos, outra o querer subjugar outras nações. E a força bélica não legítima todo e qualquer uso seu, para fins militares ou políticos. Nem, quando por infelicidade a guerra já se iniciou, torna-se tudo ilícito entre as partes inimigas. Aqueles, porém, que destacados para o serviço da pátria, fazem parte do exército, considerem-se a si mesmo como ministros da segurança e da liberdade dos povos. Enquanto desempenham bem esta função cooperam realmente para estabelecer a paz. [A Guerra Total] 80. Pelo progresso das armas científicas, o horror e a perversidade da guerra cresceram sem medida. Com o emprego destas armas as operações bélicas podem causar destruições enormes e indiscriminadas que portanto ultrapassam muito os limites da legítima defesa. Ora, se estes recursos, que já se encontram nos arsenais de armas das grandes nações, fossem realmente aplicados, resultaria disso uma chacina quase total e inteiramente recíproca entre os adversários, sem falar das muitas devastações que se originariam no mundo e das nefastas conseqüências do uso destas armas. Tudo isso nos obriga a examinar a guerra com mentalidade inteiramente nova. ² Os homens do nosso tempo devem saber que prestarão contas severas de suas operações bélicas. Pois o desenvolvimento dos tempos vindouros em grande parte dependera de seus planos de hoje. ² Cf. João XXIII, Enc. Pacem in terris, 11-4-1963: AAS 55 (1963), p. 291: “Por isso em nossa época, que se gloria da força atômica, é algo absurdo estar a guerra já preparada para ressarcir direitos violados”. A vista disso, este Sínodo Sacrossanto endossa as condenações da guerra total já enunciadas pelos últimos Sumos Pontífices ³,e declara: Qualquer ação bélica que visa a destruição indiscriminada de cidades inteiras ou de vastas regiões com seus habitantes, é um crime contra Deus e o próprio homem, a ser condenado com firmeza e sem hesitações. ³ Cf. Pio XII, Alocução de 30-9-1954: AAS 46 (1954), p. 589; Radiomensagem de 24-12-1954: AAS (1955), pp. 15ss; João XXIII, Enc. Pacem in terris: AAS 55 (1963), pp. 286-291; Paulo VI, Alocução na ONU, 4-10-1965: AAS 57 (1965), pp. 887-895. O perigo assombroso da guerra moderna consiste nisso: por assim dizer, insinua-se a ocasião de perpetrar tais crimes aqueles que possuem novas armas científicas; e, por uma concatenação de certa maneira inexorável, é capaz de impelir a vontade dos homens as decisões mais atrozes. Para que isso jamais aconteça no futuro, os Bispos de todo o mundo, reunidos, suplicam a todos, principalmente aos chefes de Estado, bem como as autoridades militares, que considerem incessantemente tamanha responsabilidade perante Deus e perante toda a humanidade. [A Corrida Armamentista] 81. É verdade que as armas científicas não se acumulam apenas para serem aplicadas no tempo da guerra. Sendo opinião corrente que a força defensiva de cada lado depende da capacidade fulminante em repelir o adversário, esta acumulação de armas, cada ano mais volumosa, exerce uma influência incomum para atemorizar possíveis adversários. Muitos consideram isto como o mais eficaz de todos os meios para garantir hoje uma certa paz entre as nações. Seja qual for o peso deste raciocínio, convençam-se os homens que a corrida armamentista, para a qual não poucas nações apelam, não é caminho infalível para assegurar firmemente a paz; nem o assim chamado equilíbrio que resulta desta corrida é a paz estável e verdadeira. Bem longe de eliminar as causas de guerra que daí surgem, antes aos poucos as agravam. Enquanto se gastam enormes somas na confecção de armas sempre novas, não se pode dar remédio suficiente a tantas misérias que hoje grassam no mundo inteiro. Em vez de sanar em verdade e pela base os conflitos entre as nações, outras partes do mundo são por eles contaminadas. É preciso procurar novos caminhos que procedam de uma reforma dos espíritos, a fim de que se remova este escândalo, e ao mundo, libertado do pavor que o oprime, possa ser restituída a paz verdadeira. Por isso, mais uma vez deve ser declarado: a corrida armamentista é a praga mais grave da humanidade, que lesa intoleravelmente os pobres. É de se temer muitíssimo que, se perdurar, ela produza um dia todas as ruínas nefastas, cujos instrumentos já prepara. Avisados pelas calamidades que o gênero humano tornou possíveis, aproveitando-nos do tempo que desfrutamos concedido do alto, para que, mais conscientes de nossa responsabilidade, encontremos os caminhos que nos permitam resolver nossas controvérsias de um modo mais digno do homem. A providência divina exige de nós com insistência que nos livremos da antiga escravidão da guerra. Se recusarmos fazer tentativas neste sentido, não sabemos para onde nos levara este mau caminho no qual entramos. [A Proscrição da Guerra e a Ação Internacional para Evita-la] 82. É evidente que devemos distinguir-nos com todas as forças na preparação dos tempos nos quais com o consentimento das nações qualquer guerra possa ser absolutamente interditada. Isto naturalmente requer a instituição de alguma autoridade pública universal, reconhecida por todos, que goze de poder eficiente, a fim de que sejam salvaguardadas a segurança, a observância da justiça e a garantia dos direitos. Antes porém que se consiga instituir esta autoridade desejável, urge que as supremas organizações internacionais de hoje se dediquem seriamente aos estudos dos meios mais indicados para conseguir a segurança comum. A paz deve nascer antes da confiança mútua entre povos, do que ser imposta as nações pelo terror das armas. Por isso, todos devem colaborar para que acabe enfim a corrida armamentista. A redução das armas, para tornar-se uma realidade, deve ser iniciada, não de modo unilateral, mas paralelamente, em virtude de acordos e ser apoiada por cauções verdadeiras e eficazes.4 4 Cf. João XXIII, Enc. Pacem in terris, onde se fala da diminuição dos armamentos: AAS 55 (1963), p. 287. Contudo, não devem ser subestimadas as tentativas já feitas e ainda em curso, a fim de afastar o perigo da guerra. Pelo contrário: deve-se apoiar a boa vontade de muitíssimos que, embora onerados por ingentes cuidados de seus elevadíssimos encargos, movidos todavia pelo dever gravíssimo ao qual são ligados, empenham-se por eliminar a guerra que detestam, ainda que não possam prescindir da complexidade real das coisas. É preciso rogar insistentemente a Deus que lhes de a força de enfrentar com perseverança e de levar a termo com firmeza esta obra do mais elevado amor aos homens pela qual é construída virilmente a paz. Isto hoje exige deles incontestavelmente que alarguem sua inteligência e seu espírito além das fronteiras da própria nação, abandonem o egoísmo nacional e a ambição de dominar outras nações, nutram profundo respeito para com toda a humanidade que já corre, ainda que laboriosamente, em direção a maior liberdade. As sondagens em torno dos problemas da paz e do desarmamento desde há muito empreendidas com seriedade e perseverança, bem como as conferências internacionais que trataram deste assunto, devem ser consideradas como os primeiros passos para resolver questões tão difíceis. No futuro elas devem ser promovidas com maior urgência para chegar a resultados práticos. No entanto acautelem-se os homens de abandonar-se somente as tentativas de alguns, sem ter cuidado da própria mentalidade. Pois os chefes de Estado, fiadores que são do bem comum da própria nação e igualmente promotores do bem comum mundial, dependem muitíssimo da opinião e da mentalidade das multidões. Nada lhes aproveita insistir na construção da paz, enquanto sentimentos de hostilidade, desprezo ou desconfiança, ódios raciais e ideologias obstinadas dividem os homens em campos opostos. Daí a urgência máxima da reeducação da mentalidade e da nova inspiração da opinião pública. Os que se consagram a obra da educação, em particular da juventude, ou se dedicam a formação da opinião pública considerem como seu dever mais grave inculcar ao espírito de todos novos sentimentos pacíficos. Nós todos devemos transformar nossos corações, abrindo os olhos sobre o mundo inteiro e aquelas tarefas que, todos juntos, podemos cumprir, para o feliz progresso da humanidade. Não nos engane a falsa esperança. Pois sem abandonar as inimizades e os ódios e sem concluir no futuro pactos firmes e honestos de paz universal, a humanidade, que já se encontra em situação mui crítica, apesar de ser dotada da ciência admirável, talvez fatalmente seja levada ao momento, em que outra paz não experimente senão a horrenda paz da morte. A Igreja de Cristo, porém, ao pronunciar estas palavras, colocada no meio da angústia deste tempo, imperturbável não perde a esperança. Sempre de novo, oportuna e inoportunamente, deseja anunciar ao nosso tempo a mensagem apostólica: “Este é o tempo propício” para converter os corações, “este é o dia da salvação”5. 5 Cf. 2 Cor 6,2. 2ª SECÇÃO: CONSTRUÇÃO DA COMUNIDADE INTERNACIONAL [As Causas das Dissensões e seus Remédios] 83. Para construir a paz é antes de tudo imprescindível extirpar as causas de desentendimentos entre os homens. Estas alimentam a guerra, sobretudo as injustiças. Não poucas provem das excessivas desigualdades econômicas, bem como do atraso de lhes trazer os remédios necessários. Outras surgem do espírito dominador, do desprezo das pessoas e, investigando as causas mais profundas, da inveja, da desconfiança, da soberba e de outras paixões egoístas. Como o homem não suporta tantas desordens, resulta que, mesmo fora dos tempos de guerra, o mundo constantemente é perturbado por rivalidades entre os homens e por atos de violência. Estes mesmos males infestam as relações entre as próprias nações. Por isso é de absoluta necessidade, para vencer ou prevenir e coibir as violências desenfreadas, que as instituições internacionais desenvolvam melhor e reforcem sua cooperação e coordenação; e se estimule incansavelmente a criação de organismos promotores da paz. [A Comunidade dos Povos e as Instituições Internacionais] 84. Em nosso tempo aumentam os laços estreitos de dependência mútua entre todos os cidadãos e entre todos os povos da terra. Para procurar acertadamente o bem comum universal e consegui-lo mais eficazmente, já se exige que a comunidade dos povos estabeleça um programa que corresponda as exigências de hoje, sobretudo no que diz respeito aquelas numerosas regiões que ainda sofrem de intolerável penúria. Para atingir estes objetivos, as instituições da comunidade internacional, por sua parte, devem atender as várias necessidades dos homens, tanto no campo da vida social (alimentação, saúde, educação, trabalho), quanto em certas condições particulares que podem surgir cá ou lá, tais como a necessidades geral de estimular o progresso das nações em vias de desenvolvimento, de acudir aos sofrimentos dos refugiados, dispersos pelo mundo inteiro, bem como de ajudar os emigrantes e suas famílias. As instituições internacionais já existentes, universais ou regionais, certamente são beneméritas do gênero humano. Elas aparecem como as primeiras tentativas para lançar os fundamentos internacionais de toda a comunidade humana, a fim de resolver as questões mais graves de nossos tempos: a promoção do progresso em todo o mundo e a proscrição da guerra sob todas as formas. Em todos estes campos, a Igreja se alegra com o espírito de verdadeira fraternidade que começa a florescer entre cristãos e não-cristãos e insiste na intensificação sempre maior dos esforços para aliviar a ingente miséria. [A Cooperação Internacional no Campo Econômico] 85. A solidariedade atual do gênero humano reclama também o estabelecimento de maior cooperação internacional no campo econômico. Com efeito, embora quase todos os povos se tenham tornado autônomos, ainda falta muito para que sejam livres das desigualdades excessivas e de toda a forma de dependência indevida e escapem a todo o perigo das graves dificuldades internas. O desenvolvimento de uma nação depende de ajuda humana e pecuniária. Os cidadãos de qualquer nação devem ser preparados para os diversos encargos da vida econômica e social pela educação e formação profissional. Para isto, no entanto, é indispensável o auxílio de peritos estrangeiros que, ao prestar o apoio, não devem comportar-se como dominadores, mas como assistentes e cooperadores. Quanto ao auxílio material para as nações em vias de desenvolvimento, não se poderá presta-lo, se os costumes do atual comércio mundial não forem profundamente modificados. Outros recursos devem ser fornecidos pelas nações evoluídas as nações em progresso sob a forma de donativos, empréstimos ou investimentos; estes serviços sejam prestados como generosidade e sem cobiça de uma parte, e, de outra, aceitos com toda a honestidade. Para estabelecer uma verdadeira ordem econômica universal, é necessário eliminar a procura exagerada do lucro, as ambições nacionais, as aspirações de domínio político, os cálculos militarísticos bem como as manobras para propagar ou impor ideologias. Há muitos sistemas econômicos e sociais. Deseja-se que os seus peritos descubram as bases comuns para um são comércio mundial. Isto se conseguirá com maior facilidade se cada um abandonar os próprios preconceitos, pronto para um diálogo sincero. [Algumas Normas Oportunas] 86. Para esta cooperação, parecem oportunas as seguintes normas: a) Os povos em via de desenvolvimento tenham o máximo interesse em procurar, como fim do progresso, dos seus próprios cidadãos. Lembrem-se que o progresso nasce e cresce antes de tudo do trabalho e do expressa e firmemente, a perfeição humana e integral engenho das mesmas nações. Por isso não deve apoiar-se somente nos recursos alheios, mas em primeiro lugar na ampla exploração dos próprios, bem como na cultura da inteligência e tradição própria. Nesta orientação devem distinguir-se sobretudo os líderes. b) Por outro lado é obrigação gravíssima dos povos desenvolvidos ajudar os povos em via de desenvolvimento no desempenho destas tarefas. Por isso, promovam seu próprio ambiente as disposições espirituais e materiais necessárias para assentar as bases desta cooperação universal. Assim ao negociar com as nações mais fracas e pobres procurem escrupulosamente o bem delas; pois estas crescem para o próprio sustento dos lucros que tiram da venda de seus produtos. c) Cabe porém a comunidade internacional organizar e estimular o desenvolvimento, mas de tal maneira que os fundos a isso destinados sejam aplicados de modo mais eficiente e com plena eqüidade. Pertence ainda a esta comunidade, sem prejuízo naturalmente do princípio de subsidiariedade, organizar as relações econômicas mundiais, a fim de que se desenvolvam conforme as normas da justiça. Sejam criados institutos idôneos para promover e regulamentar os negócios internacionais, sobretudo com as nações menos desenvolvidas, e para compensar falhas que promanam da desigualdade excessiva de poder entre as nações. Tal organização, juntamente com assistência técnica, cultural e financeira, deve oferecer os subsídios necessários as nações em busca do progresso, a fim de que possam alcançar o harmonioso incremento de sua economia. d) Não raro se impõe uma revisão das estruturas econômicas ou sociais. Mas é preciso acautelar-se de soluções técnicas imaturas, especialmente daquelas que, enquanto oferecem ao homem vantagens materiais, prejudicam sua índole e proveito espiritual. Pois “não só de pão vive o homem, mas de toda palavra que sai da boca de Deus” (Mt 4,4). Ora, qualquer elemento da família humana abriga em si mesmo e em suas melhores tradições alguma parcela do tesouro espiritual confiado por Deus a humanidade, embora muitos ignorem sua origem. [A Cooperação Internacional e a Explosão Demográfica] 87. A cooperação internacional se torna absolutamente necessária para aqueles povos que hoje, muitas vezes em meio de tantos outros problemas, se vêem de modo especial pressionados pelo rápido crescimento da população. Há necessidade urgente de descobrir, graças a plena e solícita colaboração de todos, particularmente das nações mais ricas, como conseguir os meios necessários para a alimentação e formação conveniente dos homens e como fazer deles participar toda a comunidade humana. Bom número de povos há que conseguiriam melhorar bastante seu nível de vida, se, devidamente instruídos, passassem dos métodos antiquados na produção agrícola para técnicas modernas, aplicando-as prudentemente as suas condições, a par, além disso, da instauração de melhor ordem social e de distribuição mais justa da propriedade das terras. Sem dúvida pertencem aos governos o direito e o dever de tentar uma solução do problema populacional de sua nação, dentro dos limites da própria competência: por exemplo, no que diz respeito a legislação social e familiar, ao êxodo da população rural para a cidade, as informações acerco da situação e das necessidades da nação. Com este problema muito agita hoje os espíritos, é de desejar que católicos competentes em todas estas questões, sobretudo nas Universidades, prossigam incansavelmente os estudos e planejamentos ampliando-os ainda. Perante a afirmação de muitos, segundo a qual o crescimento da população do mundo ou pelo menos de algumas nações deve ser radicalmente limitado por todos os meios e por toda sorte de intervenção da autoridade pública, o Concílio adverte todos os homens que se acautelem de soluções preconizadas pública ou privadamente e as vezes impostas, que se opõem a lei moral. Pois, em virtude do direito inalienável do homem ao matrimônio e a geração da prole, a decisão sobre o numero de filhos a procriar depende do juízo retos dos pais. De maneira alguma pode ser atribuída ao critério da autoridade pública. Mas como a decisão dos pais supõe uma consciência bem formada, é de máxima importância que a todos se de a possibilidade de chegar ao nível de uma responsabilidade reta e verdadeiramente humana com relação a lei divina, de acordo com as circunstâncias da realidade e do tempo. Mas isto exige que em toda parte sejam melhoradas as condições pedagógicas e sociais e mormente que se ofereça instrução religiosa ou pelo menos íntegra formação moral. Sejam as populações judiciosamente informadas sobre os progressos científicos realizados na pesquisa de métodos que possam ajudar os esposos em matéria de regulação de nascimentos, contanto que o valor destes métodos seja bem comprovado e a concordância com a lei moral seja certa. [O Dever dos Cristãos na Prestação de Auxílios] 88. De bom grado e de todo o coração os cristãos cooperem na construção de uma ordem internacional na qual sejam realmente observadas as liberdades legítimas e a amizade fraterna de todos. Fá-lo-ão de boa mente, tanto mais que a maior parte do mundo ainda se debate em tão grande penúria que o próprio Cristo, nos pobres, como que el alta voz, clama pela caridade de seus discípulos. Evite-se pois de dar este escândalo aos homens: algumas nações, cujos cidadãos na maioria se gloriam do nome de cristãos, nadam na abundância de bens, enquanto outras se vêem despojadas das coisas necessárias para a vida e são torturadas pela fome, doenças e completa miséria. Pois o espírito de pobreza e caridade são a glória e o testemunho da Igreja de Cristo. Merecem portanto louvor e apoio os cristãos, sobretudo os jovens, que se oferecem espontaneamente para prestar auxílio a outros homens e povo. Mais ainda. É obrigação de todo o Povo de Deus, arrastado pela palavra e pelo exemplo dos Bispos, aliviar na medida de suas forças a miséria dos tempos atuais e isto, como era costume antigo da Igreja, não só como supérfluo, mas também com o essencial. O sistema de arrecadar e distribuir os subsídios não deve necessariamente observar uma linha rígida e uniforme. Mas seja bem organizado nas dioceses, nas nações e no plano mundial, em ação conjugada, sempre que pareça oportuno, de católicos com os outros irmãos cristãos. Pois o espírito de caridade, longe de proibir o exercício previdente e ordenado da ação social e caritativa, antes o impõe. Por isso mesmo é necessário que sejam devidamente preparados, mesmo em institutos idôneos, os que pretendem dedicar-se ao serviço das nações em vias de desenvolvimento. [A Presença Eficiente da Igreja na Comunidade Internacional] 89. Apoiada na sua missão divina, a Igreja prega a todos os homens o Evangelho e distribui-lhes os tesouros da graça. Assim ela contribui, em toda parte, para assegurar a paz e para lançar o fundamento sólido da confraternização dos homens e dos povos, isto é, o conhecimento da lei divina e natural. É por isso que a Igreja deve estar absolutamente presente na comunidade dos povos, para fomentar e despertar a cooperação entre os homens; e isto tanto por suas instituições públicas como ainda pela plena e sincera colaboração de todos os cristãos, inspirada somente pelo desejo de prestar serviço a todos. Isto será conseguido de modo mais eficiente, quando os próprios fiéis, conscientes de sua responsabilidade humana e cristã, se empenharem para despertar no seu ambiente de vida a vontade de cooperar prontamente com a comunidade internacional. A isto se de particular atenção na formação dos jovens, tanto na educação religiosa como na civil. [Participação dos Cristãos nas Instituições Internacionais] 90. Para os cristãos constitui sem dúvida excelente forma de atividade internacional e concurso que prestam, individualmente ou em grupos, nos Institutos já existentes ou por existir, a fim de dar impulso a cooperação entre as nações. Para a edificação da comunidade dos povos na paz e na fraternidade, além disso, podem servir de muitas maneiras as diversas associações católicas internacionais. Devem ser consolidadas, dotando-as de pessoal mais numeroso e bem formado, aumentando os subsídios de que precisam e coordenando harmoniosamente suas forças. Pois em nossos tempos a eficácia das ações como a necessidade de diálogo reclamam iniciativas coletivas. Tais associações, além disso, contribuem não pouco para desenvolver o sentido do universal, que certamente convém aos católicos e é próprio para formar a consciência de solidariedade e responsabilidade verdadeiramente universal. Enfim é de desejar que os católicos, para bem cumprir sua missão na comunidade internacional, procurem cooperar ativa e positivamente não só com os irmãos separados que juntamente com eles professam a caridade evangélica, mas também com todos os homens que tem sede de paz verdadeira. Considerando a imensidade de sofrimentos que atormentam ainda hoje a maior parte do gênero humano e para fomentar em toda parte a justiça e o amor do Cristo para com os pobres, o Concílio, por sua vez, julga muito oportuna a criação de um organismo da Igreja universal, com o fim de despertar a comunidade dos católicos para que se promovam o progresso das regiões indigentes e a justiça social entre as nações. CONCLUSÃO [O Dever de cada Fiel e das Igrejas Particulares] 91. As propostas feitas por este Sagrado Sínodo, tiradas do tesouro da doutrina da Igreja, pretendem ajudar todos os homens dos nossos tempos, quer os que crêem em deus e quer os que não O admitem explicitamente, a perceber com mais clareza sua vocação integral, construir um mundo mais de acordo com a dignidade eminente do homem, aspirar a uma fraternidade universal apoiada sobre fundamentos mais profundos e corresponder, sob o impulso do amor, com esforço generoso e comunitário as exigências urgentes de nossa época. Contudo, diante da variedade imensa, não só das situações, mas também das formas de cultura humana no mundo, esta exposição, em muitas de suas partes, apresenta deliberadamente um caráter genérico. Bem mais. Ainda que enuncie a doutrina já tradicional da Igreja, como não raro trata das realidades sujeitas a permanente evolução, deverá ser ainda prosseguida e ampliada. Confiamos porém que muitas coisas que enunciamos, apoiados na Palavra de Deus e no espírito do Evangelho, poderão trazer a todos um auxílio valioso, sobretudo depois que os cristãos, sob a orientação dos Pastores, tiverem realizado a adaptação para cada povo e mentalidade. [O Diálogo entre todos os Homens] 92. Em virtude de sua missão que é de iluminar o mundo inteiro com a mensagem evangélica e reunir em um único Espírito todos os homens de todas as nações, raças e culturas, a Igreja torna-se o sinal daquela fraternidade que permite e consolida um diálogo sincero. Isto, porém, requer, em primeiro lugar, que promovamos no seio da própria Igreja a mútua estima, respeito e concórdia, admitindo toda a diversidade legítima, para que se estabeleça um diálogo cada vez mais frutífero entre todos os que constituem o único Povo de Deus, sejam os pastores, sejam os demais cristãos. O que une os fiéis é com efeito muito mais forte do que aquilo que os separa. Nas coisas necessárias reine a unidade, nas duvidosas a liberdade, em tudo a caridade.¹ ¹ Cf. João XXIII, Enc. Ad Petri Cathedram, 29-6-1959: AAS 55 (1959), p.513. O nosso pensamento abraça ao mesmo tempo os irmãos e suas comunidades que ainda não vivem em comunhão plena conosco, aos quais contudo nós nos unimos pela confissão do Pai e do Filho e do Espírito Santo e pelo vínculo da caridade, lembrados de que a unidade por muitos que não crêem em Cristo. Quanto mais esta unidade crescer sob a ação potente do Espírito Santo, na verdade e na caridade, tanto mais ela será prenúncio de unidade e de paz para o mundo inteiro. Unamos portanto nossas forças e, sob formas cada vez mais adaptadas a este fim preclaro que hoje deve ser eficazmente procurado, esforcemo-nos a que, cada dia mais conformados ao Evangelho, cooperemos fraternalmente no serviço a ser prestado a família humana, chamada a tornar-se, em Cristo Jesus, a família dos filhos de Deus. Volvemos pois ainda o nosso pensamento a todos os que admitem Deus e que guardam em suas tradições preciosos elementos religiosos e humanos, desejando que um diálogo aberto nos leve todos a aceitar fielmente os impulsos do Espírito e a cumpri-los com entusiasmo. O desejo de tal diálogo, que é guiado somente pelo amor a verdade, observada a devida prudência, de nossa parte não exclui ninguém, nem os que, honrando os bens admiráveis do engenho humano, contudo não admitem ainda o seu Autor, nem aqueles que se opõem a Igreja e a perseguem de várias maneiras. Sendo Deus Pai o princípio e o fim de todas as coisas, somos tomos chamados a ser irmãos. E por isso, destinados a única e mesma vocação, humana e divina, sem violência e sem dolo, podemos e devemos cooperar para a construção do mundo na paz verdadeira. [Construir o Mundo e Levá-lo ao seu Fim] 93. Lembrados da palavra do Senhor: “Nisto todos conhecerão que sois meu discípulos, se vos amardes uns aos outros” (Jo 13,35), os cristãos nada podem desejar mais ardentemente do que prestar serviço aos homens do mundo de hoje, com generosidade sempre maior e mais eficaz. Deste modo, aderindo fielmente ao Evangelho e alimentados com as suas forças, unidos a todos que amam e praticam a justiça, receberam uma tarefa imensa a ser desempenhada nesta terra e da qual devem prestar contas Aquele que julgará todos os homens no último dia. Nem todos os que dizem: “Senhor, Senhor!” entrarão no reino dos céus, mas aqueles que fazem a vontade do Pai ² e põem mais eficaz a obra. Pois o Pai quer que reconheçamos Cristo como irmão em palavras como em atos, prestando assim testemunho a Verdade e comunicando aos outros o mistério de amor do Pai celeste. Por este caminho os homens são despertados, em todo o orbe da terra, para uma esperança viva, dom do Espírito Santo, a fim de que, finalmente, sejamos recebidos na paz e na felicidade suprema, na pátria que brilha com a glória do Senhor. “Aquele que, pela virtude que opera em nós, pode fazer infinitamente mais do que tudo quanto pedimos ou entendemos, a Ele seja dada glória na Igreja e em Cristo Jesus, por todas as gerações da eternidade. Amém” (Ef 3,20-21). ² Cf. Mt 7,21. [Promulgação] Todo o conjunto e cada um dos pontos que foram enunciados nesta Constituição pastoral agradaram aos Padres do Sacrossanto Concílio. E Nós, pela autoridade Apostólica por Cristo a Nós confiada, juntamente com os Veneráveis Padres, no Espírito Santo os aprovamos, decretamos, e estatuímos. Ainda ordenamos que o que assim foi determinado em Concílio seja promulgado para a glória de Deus. Roma, junto a São Pedro, no dia 7 de dezembro de 1965. Eu, PAULO, bispo da Igreja Católica. Seguem-se as assinaturas dos Padres Conciliares Editora Cléofas Av. Peixoto de Castro, 1381 - Lorena/SP Cep. 12606-058 - Caixa Postal 100 Fone/Fax: (12) 3152-6566 Email: [email protected]
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