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DANIEL ROSSI
O Artista
São Paulo — 2013
1ª Edição
© Daniel Rossi
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O ARTISTA
EDITOR
SÉRGIO SUZART DA SILVA
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REVISOR
EBER DANTAS
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CONTATOS DO AUTOR
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Escolheu a roupa com cuidado. Selecionou entre as recém adquiridas peças um terno de linho escuro, de corte italiano. O magnífico conjunto de calça
e paletó lhe conferia a aparência de um rico industrial
ou magnata. Completou o figurino com um par de sapatos, também italianos, que ostentavam sobre si um
elegante fecho de metal, esculpido com um brasão
que adicionava ainda mais brilho aos calçados engraxados com esmero. Julgando estar vestido de forma
conveniente, dirigiu-se à porta do luxuoso apartamento, por fim detendo-se em frente a um aparador
para pegar o único acessório que faltava ao meticulosamente pensado traje: o chapéu. Colocou-o na cabeça e se olhou uma última vez no espelho. Passaria
tranquilamente como um senhor distinto da alta sociedade.
Paul Lebowicz deixou sua suíte no Krantz-Ambassador por volta das dezenove horas. O hotel, localizado no coração de Viena, era considerado um dos
melhores da Áustria. Desceu até o saguão e se dirigiu
ao restaurante. Enquanto aguardava, folheou um
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exemplar do “Kronen Zeitung”. Parou logo ao início
quando, embaixo do nome do jornal, avistou a data.
Vinte e sete de setembro de 1909. Perdeu-se por um
instante observando os números e letras daquele dia,
mês e ano, como se eles lhe dissessem mais do que
as notícias estampadas na capa do periódico. Uma
delas porém lhe despertou a atenção.
Ela contava como uma família de fazendeiros
dos arredores da cidade tinha sido aterrorizada alguns dias antes pelo que parecia ser uma tempestade
elétrica, a qual desapareceu tão repentinamente
quanto apareceu. Até mesmo sobre um “homem do
espaço” a notícia falava. Lebowicz se divertiu com os
relatos exagerados dos moradores na reportagem.
Sua refeição chegou em seguida, então ele colocou de
lado o jornal e ateve-se a ela. Comeu pouco e rapidamente, pois tinha um sentimento de urgência em
cumprir seu objetivo para aquela noite.
O clima do outono vienense estava agradável, e
por isso ele resolveu dispensar os serviços de um
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carro de praça em favor de uma caminhada pelas
ruas da cidade. De fato era um turista, mas de um
tipo bem peculiar. Estava maravilhado com o contexto de como fora possível sua viagem àquele lugar.
A lembrança fez com que esboçasse um leve sorriso,
porém a natureza da situação que o levara até ali dava
ao humor daquele devaneio o mesmo fim das folhas
amarronzadas nas copas das árvores. Caminhou em
silêncio por mais quatro quadras, entrando por uma
viela que o levou para uma rua não tão bonita ou bem
cuidada.
Estacou à frente do seu destino. Já estivera ali
três vezes antes, todas elas sem sucesso. No entanto,
tinha esperança de que desta vez enfim encontraria
quem viera procurar. Apesar do clima ameno sentiu
uma pequenina gota de suor lhe escorrer pela testa
franzida. Engoliu em seco, tomando coragem para entrar novamente naquele pardieiro. Fez menção de andar até a porta, mas hesitou. Lembrou da esposa,
imaginou o que ela pensaria dele se levasse a cabo o
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que pretendia. Ficou imóvel diante do decrépito cortiço por alguns segundos.
Seus delírios foram interrompidos subitamente
quando dois meninos passaram correndo do seu lado.
O pai, um homem de longa barba e chapéu, vinha
atrás deles, ralhando para que parassem a algazarra.
Percebeu além deles o movimento de várias pessoas,
todas elas saídas de uma sinagoga posicionada cerca
de um quarteirão de distância do albergue. Virou-se
novamente em direção aos dois meninos que corriam.
Eles agora pareciam mover em câmera lenta. Enxergava-os como em um filme mudo, em película preta e
branca. As risadas ecoavam em sua mente e lhe deram o resto de convicção que faltava. Finalmente, entrou.
O albergue para mendigos não era o lugar mais
agradável do mundo. As paredes puídas já tinham vivido tempos melhores, e o assoalho de madeira rangia
enquanto ele caminhava pelo grande hall de entrada.
Apesar da aparência pouco acolhedora, o local era um
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dos únicos na cidade que dava guarida para os desafortunados que vagavam pelas ruas da capital austríaca. Alguns deles eram recorrentes no lugar. Bêbados, andarilhos vindo do interior tentando a sorte na
cidade, ou simplesmente desabrigados que haviam
perdido o trabalho. Mesmo com a relativa prosperidade econômica que o país atravessava, por vezes as
tensões políticas entre as diferentes nacionalidades
que compunham a população acabava jogando na rua
inclusive aqueles que outrora possuíam um padrão
de vida mais alto.
Essas pessoas não raramente recebiam alcunhas dos companheiros de infortúnio. Paul estava ali
à procura de um deles em particular. Pelo que havia
pesquisado ele era conhecido como "Tio Kruger", em
referência ao político Paul Kruger, que ficara famoso
pela sua resistência ao domínio britânico na África do
Sul. O cognome havia sido colocada de forma jocosa
devido a ele nunca se cansar de expressar com veemência os seus fortes ideais políticos.
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Lebowicz custava a acreditar que aquela imundície poderia inspirar qualquer um a ter pensamentos
políticos, mas, na verdade, isso não lhe importava
muito. Aproximou-se de um homem, aparentemente
um zelador, ele tentava em vão manter o fétido assoalho limpo com uma vassoura que provavelmente era
mais velha do que o prédio em si. Cumprimentou com
um aceno de cabeça.
— Boa noite. Estou procurando por um rapaz conhecido pelos… "colegas" daqui como “Tio Kruger”.
O funcionário grunhiu alguma coisa e depois
olhou para ele mal-humorado. Cuspiu no próprio
chão que tentava manter limpo e enfim respondeu.
— Eu fico imaginando o que um homem tão ilustre como o senhor faz procurando um vagabundo de
rua como ele.
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O homem sorriu frio para Paul, deixando à mostra os poucos dentes que ainda corajosamente resistiam em sua boca. Seu hálito fedia a peixe podre, e
Paul disfarçou o nojo com um tossido.
— Quem sabe isso lhe ajuda a entender minhas
razões.
Uma nota de bom valor foi colocada na mão do
zelador, ele a examinou com desconfiança. Quando se
convenceu de que o dinheiro era de verdade, apontou
para a terceira fileira de camas de campanha organizadas em um grande salão.
— É aquele vagabundo deitado ali, com o livro
na cara. Mas já vou dizendo, ele não é uma pessoa
muito educada, é melhor o senhor tomar cuidado.
Cuspiu mais uma vez no chão, deu as costas, e
continuou a varrer.
Lebowicz agradeceu e caminhou devagar, como
se não quisesse chegar até o lugar que o homem indicara. Enquanto olhava do canto o jovem deitado na
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cama lendo furiosamente um livro sobre pangermanismo, sentia um misto de medo e euforia. Estava satisfeito por finalmente ter encontrado quem tanto procurava, mas ao mesmo tempo percebeu que havia
chegado a um ponto de onde não haveria mais retorno. Nada o pararia agora. Aproximou-se da cama e
fez um leve barulho limpando a garganta no intuito
de chamar a atenção para si. O rapaz abaixou o livro
e Paul pôde fitar pela primeira vez os seus olhos, que
o observaram, interrogativos.
— Boa noite rapaz. Meu nome é Paul… Smith.
Hesitou por um momento. Se deu conta que
usar seu nome verdadeiro simplesmente colocaria
tudo a perder. Disfarçou o balbuciar e continuou:
— Você é o jovem conhecido como "Tio Kruger"?
Ele tirou o livro por completo da frente do rosto
e o colocou no chão ao lado da cama. Fitou Paul com
receio. Era um solitário, e só quem o conhecia por este
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apelido eram moradores de rua e boêmios, não alguém bem vestido.
— Esse não é o meu nome. É só um apelido idiota que esses desgraçados me deram. Mas posso dizer
que sou conhecido assim.
— Pode acreditar, eu sei o seu verdadeiro nome.
E é por isso que estou aqui.
Havia respondido com certa rispidez, mas percebeu que para conseguir o que queria, precisava
tratá-lo mais amavelmente. O rapaz o olhou de cima
a baixo.
— O senhor é inglês? Porque se for, pode dar
meia volta. Não estou disposto a ouvir conversa fiada
de um maldito comedor de peixe com batatas.
— Na verdade eu sou um industrial americano.
Mas o que me traz até aqui é a minha paixão pela pintura. E veio ao meu conhecimento que você tem um trabalho muito promissor. Você é um artista, não é?
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Uma ponta de curiosidade se instalou na mente
do “Tio Kruger”. O que aquele homem estranho poderia querer com ele? Olhou para seus precários aparatos de pintura encostados aos pés da cama.
— Um fracassado, o senhor quer dizer. Nada
mais que isso. Um fracassado. A academia de Viena já
me enxotou duas vezes. Acho que não compreenderam
a minha arte.
Lebowicz suava frio. “Por certo você fará muitos
atos que serão considerados incompreensíveis”, pensou em seu âmago. Mas tentou o seu melhor para não
transparecer o que sentia naquele momento insólito.
Retirou do bolso do casaco uma pequena gravura.
— Eu comprei isso de um vendedor em frente ao
meu hotel. Foi você que pintou?
— Sim senhor. Tem sido a minha fonte de renda
nos últimos tempos. Com sorte logo poderei pagar um
aluguel para morar na Rua Meldemann e sair deste
pardieiro maldito.
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O jovem olhou com desprezo para o homem que
continuava vagarosamente a varrer a entrada do albergue.
— Talvez você possa sair daqui mais rápido do
que pensa. Como eu disse, tenho uma empresa, portanto dinheiro não é problema. E vi muito potencial nessas suas pinturas. Por isso tenho algo a lhe propor. O
que acha de pintar mais algumas destas lindas gravuras para mim? Claro, em troca de um bom dinheiro.
Ele pareceu incrédulo a princípio, como se de
alguma forma duvidasse do próprio talento. Desconfiado como um gato, custava a acreditar que uma
oportunidade de largar a vida miserável que vinha
tendo bateu a sua porta. Alguns segundos tensos de
silêncio se passaram, até que finalmente respondeu.
— Não posso negar que sua proposta é deveras
interessante, mas existe um problema. Eu não tenho
material suficiente para um trabalho de qualidade.
Gastei o último dinheiro que tinha em meu poder para
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comprar comida e algumas roupas… Não tenho como
produzir nada.
Paul Lebowicz sorriu. O rapaz havia mordido a
isca.
— Então não há problema algum. Eu fornecerei
todo o material necessário para você. Apenas se preocupe em produzir mais destas obras-primas.
Os olhos de Lebowicz brilhavam. Seu personagem lhe parecia mais confortável agora, conforme ganhava o interesse do jovem. Tirou um pequeno cartão
do bolso, onde anotou à caneta um endereço.
— Este é o endereço de onde estou hospedado.
Esperarei por você lá amanhã de manhã às nove horas
para um teste. Não que eu ache que seja necessário,
vamos considerar como uma mera formalidade. Fornecerei a você as melhores telas e tintas, e pintará uma
paisagem para que eu possa mostrar aos meus associados.
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Fez questão de certificar-se de que ele conhecia
o lugar. Em seguida se despediu e foi embora. O coração de Lebowicz parecia que ia saltar do peito devido à imensa descarga de adrenalina. As mãos suavam profusamente, e ele se afastou do albergue o
mais rápido possível.
Lá dentro, o incipiente pintor ficou observando
o cartão escrito à mão por alguns minutos, ressabiado. Acabou dando de ombros, concluindo que nada
tinha a perder com aquela estranha oportunidade.
Guardou-o cuidadosamente no meio do livro que estava lendo e dormiu.
De volta ao seu quarto no Krantz-Ambassador,
Paul Lebowicz recuperava-se da excitação do seu encontro recente. Agora mais calmo, revia os detalhes
de seu plano. Arrumou os equipamentos de pintura
em uma bancada metodicamente, quase que como em
um ritual. Recolheu seus pertences pessoais e os
guardou em uma pequena valise. Se despiu, colocando toda a roupa que tinha usado naquele dia em
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um saco de tecido. Voltou a mexer em sua maleta e
retirou a peça mais importante de seu plano: a reluzente Luger P08.
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— Hora de levantar!
O desdentado servente do albergue deu um
tranco tão forte na cama onde “Tio Kruger” dormia
que quase o jogou no chão. Esse por sua vez, que já
não gostava do mal-educado funcionário, disparou
uma rajada de impropérios. Era a sua rotina nas últimas duas semanas. Mas aquela manhã era diferente. Tinha um encontro de trabalho com um real
apreciador de arte, alguém que compreendera as nuances de seu talento até então desconhecido. Talvez
até esquecesse a política, sua outra paixão, em prol
desse novo caminho que se abria a sua frente.
Levantou-se e vestiu o melhor que tinha. Não
que a escolha fosse difícil, pois não dispunha de um
guarda-roupa cheio de opções naquelas circunstâncias. Pagou um café com pão em um armazém ao lado
do cortiço, e se pôs- enfim em direção à Hofburg, um
dos bairros mais elegantes de Viena. Era lá que o cavalheiro misterioso da noite anterior o estaria esperando, hospedado no luxuoso Krantz-Ambassador.
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Seria uma longa caminhada, não lhe sobrara dinheiro
para alugar um carro de praça. Sorte que o maldito
zelador o havia tirado da cama tão cedo que teria
tempo de sobra para chegar ao seu destino no horário
combinado. E assim fez. Quase uma hora depois estava na entrada do hotel. Se recompôs da melhor maneira possível e entrou.
Conversou com uma das recepcionistas e descobriu que seu nome verdadeiro estava envolvido. Ele
era esperado, e havia instruções para que um dos
funcionários o acompanhasse até o quarto onde Lebowicz estava. Quanto mais adentrava o hotel, mais
se deslumbrava com sua arquitetura luxuosa, imergindo na teia de aranha arquitetada para pegá-lo. O
mensageiro da recepção o deixou na porta do quarto
1939 e foi embora, retornando ao seu posto de trabalho. O jovem respirou fundo e bateu discretamente
duas vezes.
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Paul Lebowicz abriu a porta e o recebeu calorosamente. Fez com que o rapaz entrasse imediatamente na maravilhosa suíte, que assim como o resto
do hotel, encantou-o. A única coisa que, no entanto,
despertou uma ponta de estranheza no jovem foi ver
de relance sobre uma escrivaninha algumas geringonças engraçadas, uma inclusive que lhe lembrava
uma máquina de escrever, porém diferente de qualquer em que já tivesse colocado os olhos. Curioso, indagou ao seu anfitrião o que elas eram.
— O que são estas máquinas?
Lebowicz estremeceu, mas disfarçou bem o suficiente para que não se fizesse notar.
— São o meu trabalho. Como disse, eu tenho
uma empresa, mas a arte é a minha paixão. Assim que
resolvermos a nossa situação aqui, partirei para a Alemanha a negócios, me encontrarei com Gustav von
Bohlen und Halbach em pessoa, veja você. A locomotiva alemã não pode parar, você sabe.
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A menção à Alemanha e ao Barão Gustav, um
partidário das ideias políticas que o próprio jovem vinha alimentando recentemente, pareceu despertar
um sentimento de confiança no artista, e deu mais
tranquilidade ao seu anfitrião. Lebowicz percebeu que
o rapaz passou a se sentir mais à vontade em sua
presença, aproveitou para dar continuidade ao que tinha planejado.
E caso ainda sobrevivesse algum resquício de
suspeita em mente, esse lhe foi tirado quando viu encostados em uma parede o magnífico conjunto de telas e material de pintura em abundância, além de
uma mesa completa de café da manhã. Lebowicz o
convidou para o desjejum, que o rapaz devorou ferozmente.
— Se importa se eu ouvir um pouco de música?
Sou um apaixonado por Wagner.
Lebowicz pegou um grande disco de acetato e
colocou sobre o gramofone. Os primeiros acordes de
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“Der fliegende Holländer” começaram a preencher o
quarto com sua epicidade.
— Na verdade, — o jovem respondeu com a boca
cheia de pão com geleia — também sou um grande admirador do trabalho do senhor Wagner.
— Eu imaginei.
O comentário de Lebowicz passou despercebido. Quando terminaram o café, Paul insistiu para
que ele começasse imediatamente o trabalho de pintura. O jovem então posicionou uma das telas disponíveis em um cavalete próximo a uma janela e pôs-se
a pintar a paisagem, sob o olhar atento de seu empregador.
As notas de Wagner flutuaram pelo apartamento, e sem que os dois homens se dessem conta
pouco mais de duas horas haviam passado. A paisagem já tomava formas quase definitivas na tela. Observando com cuidado, reparava-se que era tosca e
praticamente de talento comum, não mais inspirada
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do que as aquarelas pintadas por inúmeros artistas
de rua que Lebowicz encontrou nas praças da cidade
durante sua busca. Ele por sua vez já não conseguiu
mais esconder uma certa agitação, caminhava constantemente pelo quarto, em silêncio, como se tivesse
que tomar uma decisão importante. O rapaz nem percebia a sua presença, entretido com as tintas e pincéis. Alguns minutos mais tarde, a pintura estava
pronta.
— Que trabalho magnífico meu jovem!
Lebowicz fingiu entusiasmo com a obra medíocre a sua frente, e mentiu que a adorara, destilando
elogios que inflavam o ego do rapaz.
— Magnífico. Mas ainda falta uma coisa importante! Não vejo o seu nome em lugar nenhum! Uma
obra como esta deve ser assinada pelo seu criador!
Os olhos do jovem pareceram marejar por um
breve instante.
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— Eu… eu não tenho esse hábito. Eu quase
nunca assino minhas obras… Os mercadores preferem
assim.
— Isso é passado, de agora em diante assinará
toda obra-prima que produzir! E esta primeira eu faço
questão que o faça agora!
O rapaz pegou um pincel, esfregou-o em um
pouco de tinta preta em sua paleta de cores e lentamente começou a colocar seu nome no canto inferior
direito da pintura. Quando acabou, percebeu de relance, em um reflexo do vidro da janela por onde
olhava a paisagem, uma pistola na mão de Lebowicz.
Em um sobressalto virou-se rapidamente, mas antes
que pudesse expressar qualquer reação física, levou
um forte golpe na cabeça que o fez cair desmaiado.
Paul puxou lentamente o cão da pistola e engatilhou
a arma. Apontou para a cabeça do falho pintor desfalecido no chão.
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— Eu gostaria de poder dizer que sinto muito…
Toda a carnificina acabará aqui, antes mesmo de começar!
Aumentou lentamente a pressão sobre o gatilho. O suor o encharcava, atestando que não era um
assassino de ofício. Quando o dedo havia pressionado
o gatilho quase até o limite que o dispararia, Lebowicz
escutou a máquina sobre a escrivaninha emitir um
som agudo. Uma luz atordoante veio de trás de si. A
descarga elétrica foi tão forte que queimou as paredes
mais próximas, até mesmo criando um pequeno incêndio em uma cortina, que se apagou sozinho
quando ela se soltou e caiu ao chão. Ainda um pouco
cego pela espetacular claridade que havia sido emanada, Paul tentou focar a visão, até que seus olhos
lhe permitiram enxergar em meio ao borrão branco a
silhueta de uma mulher. Ouviu uma voz familiar, ela
falava rápido e em tom amedrontado.
— Oh Deus, graças a Deus eu cheguei a tempo!
Por favor, Paul! Por favor, não faça isso!
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Lebowicz hesitou e largou um pouco o gatilho.
Finalmente conseguiu distinguir o rosto de Ana, sua
esposa. Atônito, levou um tempo para que conseguisse organizar as palavras.
— Você… O que você está fazendo aqui? Você
não entende? Você não deveria estar aqui…
Uma lágrima começou a escorrer dos olhos de
Lebowicz.
— Você sabe quem ele é? Pelo amor de Deus,
Ana! Você sabe o que ele vai fazer? Nunca ninguém
pôde fazer nada, mas agora eu tenho os recursos para
evitar a calamidade! Nós temos! É nossa responsabilidade…
— Não é querido! Você está assumindo para
você um fardo que não é seu! Não compreende que de
nada vai adiantar? Elimine um déspota e dez surgirão
em seu lugar! Não há garantia que não acontecerá de
uma forma ou de outra! O que você vai fazer? Vai matar todos eles?
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Ana apontou para a estranha máquina sobre a
mesa. Em meio ao seu pranto desesperado, continuou.
— Não foi para isso que a criamos! Não foi para
isso que nós dedicamos anos de nossas vidas! Criamos a máquina para vislumbrar maravilhas que estão
por vir, não para apagar os erros do passado.
As palavras de Ana pareceram não valer de
nada. Ainda cego pelo ódio, Lebowicz deu as costas à
mulher e voltou empunhar a pistola em riste. A mão
trêmula chacoalhava a arma, ela poderia disparar a
qualquer momento agora. As lágrimas turvavam a visão, fazendo-o se esforçar para manter qualquer tipo
de mira. Ele ofegava com a tensão, cada inspiração
lhe pesava como uma tonelada sobre o peito. As forças pareciam querer se esvair de seu corpo, e seus
dedos mal conseguiam se manter posicionados corretamente com o peso da arma. A esposa desesperada
tentou uma última cartada.
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— Você não é um assassino! Por favor, querido,
você não é um assassino! Não se iguale a ele!
Alertado pelo incrível estrondo da chegada de
Ana, começou a se ouvir de longe a sirene de um carro
de polícia. Era incrível que nenhum funcionário ainda
tivesse sequer batido na porta, mas o barulho fora tão
impressionante que deviam temer por um vazamento
de gás. Da janela do quarto de Paul era possível ver
os hóspedes correndo em desabalada carreira para
fora das dependências do hotel.
Paul Lebowicz engoliu em seco. Lentamente, diminuiu a pressão no gatilho e desarmou a pistola. A
esposa o fez relembrar quem realmente era. Era um
cientista, não um assassino a sangue-frio. Ana correu
imediatamente em sua direção e o abraçou com força,
beijando-o com ternura. Ele a olhou nos olhos e sussurrou.
— Era um excelente plano… eu pensei em tudo.
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— Como sempre querido… como sempre. Só se
esqueceu que você é um bom homem. E bons homens
não se vingam. Eles combatem a maldade, mas nunca
se tornam a maldade em si.
Lebowicz sorriu para a esposa.
— Por favor querido, vamos para casa.
Acenou com a cabeça afirmativamente. O barulho das sirenes estava mais próximo agora, e não tardaria para que a polícia de Viena estivesse ali. Com
as lágrimas ainda escorrendo pelo rosto pálido, conduziu a esposa para que se aproximassem, abraçados, da parafernália posicionada sobre a escrivaninha. Ele abriu um estreito compartimento, retirou um
pequeno tubo e o introduziu na cavidade apropriada.
Um teclado foi ejetado da frente da caixa metálica.
Ainda estatelado, o jovem no chão começava a
recobrar lentamente a consciência. A única coisa que
conseguiu ver foram os dois vultos sendo envolvidos
por uma luz intensa, desaparecendo no ar com outro
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estrondo amedrontador. Levantou-se em um salto,
apavorado, e saiu correndo do quarto, prometendo a
si mesmo que esqueceria aquela história e nunca a
contaria a ninguém. Negaria até a morte que tivera
algum envolvimento com o acontecido. De fato, com o
hotel praticamente deserto, conseguiu esgueirar-se e
sair pelos fundos, onde a agitação da multidão e da
polícia não era tão grande. Desapareceu, engolido pelas ruelas e becos. Sem dúvida iria embora da cidade,
talvez devesse ir para Alemanha, onde certamente
essa história toda sequer chegaria a conhecimento
público. Talvez até mesmo se alistasse no exército,
quem sabe, e seria mandado para algum lugar distante, onde a recordação do misterioso homem que
desapareceu envolto em luz não o assombrasse mais.
No luxuoso quarto do Krantz-Ambassador, finalmente a polícia vienense arrombou a porta. Nem
ao menos perceberam o quadro caído de seu cavalete,
queimando lentamente. A pintura ficaria ali abandonada, enquanto os acordes finais de “Die Walküre” se
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repetiam no gramofone, que insistia em fazer girar o
danificado disco de acetato.
A paisagem foi lentamente sendo consumida, e
uma das últimas coisas que ficaram visíveis antes
dela desaparecer por completo foi, em seu canto inferior esquerdo, a assinatura de seu controverso autor.
Adolf Hitler.
- FIM -
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