Suprema Lex
Transcrição
Suprema Lex
Suprema Lex revista de direito canônico número 01 • janeiro/junho • 2011 GRÃO-CHANCELER Arcebispo Odilo Pedro, Cardial Scherer Revista de direito canônico “Suprema Lex”. - Ano 1, n.1 (mar./ago. 2011) - 208p. - São Paulo: Instituto de Direito Canônico de São Paulo “Pe. Dr. Giuseppe Benito Pegoraro”, 2011. v. ; 22 cm. Semestral ISSN 978-8500-00439-7 I. Instituto de Direito Canônico de São Paulo “Pe. Dr. Giuseppe Benito Pegoraro” DIRETOR Prof. Dr. Mons. Martin Segú Girona SECRETÁRIO GERAL Prof. Dr. Pe. Edson Chagas Pacondes Revista de Direito Canônico “Suprema Lex” Av. Nazaré, 993 Ipiranga, São Paulo – SP. Cep: 04263-100 Tel: (11) 2062-2236 E-mail: [email protected] Visite nosso home page: www.direitocanonicodesaopaulo.com.br Bibliotecária responsável: Maria S. Lima CRB-8 5387 Editoria Responsável: Instituto de Direito Canônico “Pe. Dr. Giuseppe Benito Pegoraro” Editoria Científica: Mons. Dr. Martin Segú Girona Supervisão Editorial: Pe. Dr. Carlos Roberto Santana da Silva Revisão Ortográfica: Profª. Neyde Cruz de Lima Bibliotecária: Maria dos Santos de Lima Diagramação: Telma Custódio Auditor: Pe. Dr. Edson Chagas Pacondes Conselho Editorial: Prof. Pe. Dr. Antonio Carlos Santana Prof. Pe. Dr. Carlos Roberto Santana da Silva Prof. Pe. Dr. Denílson Geraldo Prof. Pe. Dr. Edson Chagas Pacondes Prof. Pe. Dr. João Carlos Orsi Prof. Dr. José de Ávila Cruz Prof. Mons. Dr. Martin Segú Girona Prof. Pe. Dr. Paulo Afonso Alves Sobrinho Prof. Mons. Dr. Rubens Miraglia Zani Sumário Editorial................................................................................................ 7 Aspectos médicos e processuais do matrimônio rato e não consumado Pe. Dr. Manuel Jesús Arroba Conde................................................11 O alcoolismo e o sacramento do matrimônio Pe. Dr. Paulo Afonso Alves Sobrinho............................................... 47 O bonum coniugum e a jurisdicidade no matrimônio canônico Miguel Riondino................................................................................. 79 A recepção da comunidade como critério de legitimação do ordenamento jurídico: a contribuição da história Dr. Matteo Nacci.............................................................................. 129 O tratado “de personis” e suas “condiciones” no livro primeiro do Codigo de 1983? Mons. Dr. Martin Segú Girona........................................................ 153 A Igreja como intérprete da lei moral estabelecida por Deus Dr. José de Ávila Cruz.................................................................... 197 Editorial O que é? A Revista de Direito Canônico “Suprema Lex” é uma revista semestral do Instituto de Direito Canônico “Pe. Dr. Giuseppe Benito Pegoraro” de São Paulo-SP. e tem como principal objetivo, incentivar a produção científica, divulgar os documentos mais relevantes do Magistério da Igreja, relacionados com a Doutrina Teológica, o Direito Canônico, e a vida das Instituições Eclesiais, e formar consciência do público interessado na Ciência Jurídico-canônica e Jurisprudencial da Igreja Católica. Seus artigos priorizam dois aspectos complementares da divulgação da Ciência Jurídico-canônica e Jurisprudencial. Alguns serão dedicados principalmente ao relato de novidades na área da Ciência Jurídico-canônica e Jurisprudencial. Outros contribuirão com o Processual Canônico dos Processos Administrativos, Especiais e Penais, assim como, com as Instruções dos Processos de competência do Romano Pontífice. Também, haverá espaço para a História da Ciência Canônica e Jurisprudencial e para a exploração de diversos outros aspectos do Código de Direito Canônico. As prioridades foram escolhidas por acreditarmos que não basta apenas informar a população. Isto já está sendo feito por empresas de comunicação. É necessário, também, educar e ensinar conceitos de Ciência Canônica, colaborando para o exercício da cidadania, pois pessoas conscientes evitarão armadilhas montadas pela ignorância e superstição, e poderão melhor participar de debates Jurídico-canônico importantes, além de tomar consciência dos seus direitos e deveres na Igreja Católica. Em complementação às demais atividades do Instituto de Direito Canônico “Pe. Dr. Giuseppe Benito Pegoraro”, o núcleo principal do público alvo a ser atingido serão os alunos de Teologia, do Direito Civil e Direito Canônico; os Ministros de Justiça em geral, sejam aqueles que servem no Tribunal Eclesiástico ou em suas “Sessões” e o povo de Deus. Suprema Lex Número 1 – Janeiro/Junho de 2011 7 8 Quem somos? A Revista “Suprema Lex” deverá contar com um Corpo Editorial, Conselho Consultivo e Colaboradores técnicos que inclue colunistas, redatores, bibliotecária, especialistas em informática e um ouvidor. Este último receberá avaliações, críticas e sugestões dos leitores, através do e-mail da Revista [email protected]. O Corpo Editorial da Revista “Suprema Lex” constitui um grupo de professores doutores e pesquisadores na área do Direito Canônico, do Instituto de Direito Canônico “Pe. Dr. Giuseppe Benito Pegoraro”. Os artigos enviados à Revista “Suprema Lex”, serão analisados por parceristas com titulação mínima de doutor. Estes deverão compor o Conselho Consultivo da Revista. Quando necessário, o Conselho Editorial da Revista poderá solicitar a colaboração de avaliadores ad hoc não pertencentes ao Conselho Consultivo. Colaboradores. A Revista “Suprema Lex”, está aberta à colaboração de todas as pessoas interessadas em compartilhar seus conhecimentos, pesquisas e descobertas relacionadas à Divulgação da Ciência Canônica e Jurisprudêncial da Igreja Católica. Esses artigos serão criticados e verificados quanto ao conteúdo e, sobretudo, à adequação. Os autores serão informados sobre as críticas e a aceitação ou não, para publicação. Por uma própria política editorial, não aceitaremos a publicação de mais de um artigo do mesmo autor no mesmo volume. Portanto, solicitamos o envio de apenas UM artigo do mesmo autor em cada abertura de envio de trabalhos para a Revista “Suprema Lex”,. Caso o autor envie mais de um, consideraremos apenas o primeiro enviado. Solicitamos que nos envie o artigo completo, assim como, com o nome do(s) autor(es) e do(s) estabelecimento(s) onde atua(m) com seu(s) respectivo(s) endereço(s) eletrônicos. Essas informações deverão constar em nota de rodapé, na primeira página do artigo. Dentro do artigo completo (e para cada artigo enviado) deverá haver um resumo, em língua portuguesa, com um máximo de 15 linhas (“Times New Roman”, espaço simples, 12 ptos) e pelo menos três palavras-chave, assim como, o mesmo resumo em língua inglesa com os respectivos “keywords”. A elaboração dos textos em língua estrangeira é de inteira responsabilidade do autor. As figuras deverão ser incorporadas ao texto com as respectivas legendas. Ao final do artigo completo deverá incluir as referências seguindo as normas da ABNT. Enviar o trabalho em “Word”, de preferência compactado, para a supervisão editorial Prof. Pe. Dr. Carlos Roberto Santana da Silva no endereço eletrônico [email protected]. O trabalho será encaminhado a árbitros e as sugestões serão encaminhadas ao autor para os ajustes quando necessário. Os trabalhos serão recebidos exclusivamente no e-mail informado acima. Não serão aceitos trabalhos enviados pelo correio comum. ATENÇÃO PARA OS PERÍODOS DE RECEBIMENTO DE ARTIGOS. Por ser uma Revista de publicação semestral, os períodos de recebimento de artigos passam a ser de 02 a 31 de janeiro, para a publicação no primeiro dia do mês de março e, de 01 a 31 de julho para o primeiro dia do mês de setembro. Regras para publicação: 1. artigos e documentos serão publicados ipsis litteris, sem qualquer acréscimo e/ou comentário; 2.texto enviado em arquivo compatível com “WORD”; 3.a metodologia científica usada é a de Artigos, estabelecida nas Orientações Básicas da Associação Brasileira de Normas Técnicas (ABNT). 4. figuras em arquivo do tipo jpg; 5.uma versão doc. com figuras e tabelas inseridas, para modelo da edição; Suprema Lex Suprema Lex Número 1 – Janeiro/Junho de 2011 Número 1 – Janeiro/Junho de 2011 9 10 ASPECTOS MÉDICOS E PROCESSUAIS DO MATRIMÔNIO RATO E NÃO CONSUMADO 6. compromisso de responsabilidade própria de direitos autorais e sessão dos mesmos para a Revista de Direito Canônico “Suprema Lex”; 7. os nomes dos autores serão publicados. P. Manuel Jesús Arroba Conde, cmf.1 Revista de Direito Canônico “Suprema Lex” Av. Nazaré, 993 Ipiranga, São Paulo – SP. Cep: 04263-100 Tel: (11) 2062-2236 Introdução A abordagem dos conceitos “casal conjugal” e “não consumação”, no matrimônio canônico, encerra um vasto conjunto de problemáticas, muito complexas e de natureza distinta: histórica, teológica, antropológica e jurídica. A análise, como exige a impostação do presente artigo, pode parecer mais restrita se a abordagem coloca-se em relação às questões médicas reconhecidas como causa de uma falta de integração sexual entre os cônjuges. A amplitude, porém, do objeto da “medicina canônica”, que abarca dimensões, não apenas estritamente patológicas, e também a clara tentativa de refletir suas “prospectivas”, terminam por sugerir uma ampliação do problema. Com efeito, quando a “não consumação” do matrimônio parece, também, ser atribuida a uma decisão humana voluntária, tendo em vista a força comunicativa inerente à sexualidade conjugal, não parece infundado considerar a incidência dos fenômenos da vida psíquica numa seleção que estaria, assim, em contraste com a experiência comum, tanto no que se relaciona com a escolha de uma pessoa como cônjuge, como no que se refere à compreensão e ao desenvolvimento do projeto de vida matrimonial. É necessário, porém, estabelecer os parâmetros do presente artigo, que sem afastar-se do horizonte interdisciplinar, não pretende ultrapassar, mais do que for necessário, o âmbito jurídico e processual. Será, porém, imprescindível partir do lugar que o ordenamento da Igreja reconhece o fato da consumação na inteira sistemática matrimonial, 1 Ordinário de direito processual. Pontifícia Universidade Lateranense-Roma. Suprema Lex Suprema Lex Número 1 – Janeiro/Junho de 2011 Número 1 – Janeiro/Junho de 2011 11 12 traduzindo em categorias canônicas a realidade antropológica e teo lógica que subjaz ao casal conjugal. A isto dedicaremos a primeira parte do artigo onde se colocarão as bases daquilo que achamos que constituem a “prospectiva de fundo” que torna útil a contribuição da medicina canônica, vale dizer, aquela que orienta o seu desabrochar dentro das margens de uma antropologia adequada e em si mesma convincente, onde o dado revelado se projeta como iluminação. anúncio que veem ao centro a chamada para restabelecer a ordem da criação, através do encontro com Cristo, que revela a Verdade do homem e, com o dom amoroso de si, torna possível atuá-la remindo as quedas geradas pela liberdade decaida, restabelecendo a comunicação com Deus-Amor, fonte e destino da liberdade humana, e sustentando com a graça a resposta do homem na comunicação amorosa com os outros homens. Isto permitirá, na segunda parte, conseguir o conceito jurídico de matrimônio “não consumado”, procurando estabelecer as conexões e as diferenças com outros fenômenos relacionados à sexualidade conjugal, diversamente disciplinados pela lei canônica. Delimitado o conceito, chegará o momento de adentrar nas consequências jurídicas anexas à não consumação, especialmente no processo previsto de “dispensa”, por justa causa, do vínculo conjugal. O fundamento da sistemática matrimonial na ordem da criação e da graça salvífica4, impõe um aceno às dinâmicas de liberdade e de doação comunicativa próprias do matrimônio, onde a união sexual dos cônjuges exprime a mais profunda verdade da pessoa. Aos nossos objetivos, pois, pode bastar referir-se à labuta que representa a relação entre o princípio da liberdade consensual, suficiente para constituir matrimônio válido, e o princípio da doação conjugal aperfeiçoada na integração sexual, necessária para poder considerar a união uma aliança absolutamente irrevogável, expressão madura da união de Cristo com a Igreja. O reconhecimento teológico e jurídico acordado à sexualidade interpessoal condividida no matrimônio, como presuposto e, ao mesmo tempo, como via de maturação pessoal, já fornece à medicina canônica um primeiro núcleo de prospectivas, referentes ao ponto que nos ocupa. 1. A consumação na sistemática matrimonial canônica Não é este o lugar adequado para esboçar, nem sequer superficialmente, a evolução do instituto matrimonial na experiência eclesial2. No horizonte da nossa reflexão, é suficiente evocar a modalidade concreta pela qual progressivamente se elabora a compreensão desta realidade humana e natural, considerada sempre tal pela Igreja, a tal ponto que a obra da evangelização desenvolvida nesta, desde as origens, não se ponha na ótica de contrastar ou sobrepor-se às dimensões antropológicas e sociais que lhe são próprias, mas de levá-las à perfeição contida no anúncio salvífico3. Aperfeiçoamento e 2 Neste ponto, entre os muitos estudos, pelo rigor e competência, remeto ao artigo publicado por Mons, F. Salerno, Prodromi medievali del diritto matrimoniale canonico, em P. A. Bonnet – C. Gullo (organizadores), Diritto matrimoniale canonico, LEV, Città del Vaticano 2002, 13-94. Para uma pesquisa detalhada da evolução normativa, cf. H. Franceschi, Riconoscimento e tutela dello “ius connubii” nel sistema matrimoniale canonico, Giuffrè, Milano 2004. Sulla storia del diritto matrimoniale latino, cf. J. Gaudemet, Le mariage en Occident, Cerf, Paris 1987. 3 Cf. E. Schillebeekcx, El matrimônio. Realidad terrestre y misterio de salvación, Salamanca 1968. 1.1. As dinâmicas pessoais de liberdade e doação no amor conjugal Note-se que o conceito de pessoa, enquanto ser livre chamado à relação, está na base da antropologia cristã. A pertinência antropológica da liberdade e da comunicação leva a considerar-lhe categorias de fundo às quais cada discurso irá referir-se sobre o sentido da vida nos vários níveis (individual, interpessoal, social), nas várias esferas (éticas, jurídicas, políticas) e nas várias prospectivas (de tipo transcendente ou imanente). Resultado de tal pressuposto é 4 Este duplo fundamento é a base do c. 1055 do CIC e, ainda mais claramente, do c. 776 do CCEO. Suprema Lex Suprema Lex Número 1 – Janeiro/Junho de 2011 Número 1 – Janeiro/Junho de 2011 13 14 o reconhecimento no homem de um vínculo de natureza participativa que se coloca na ordem do ser e não só na do agir para remediar as próprias indigências. Este vínculo, mesmo constitutivo, não anula a liberdade individual, mas orienta as opções para um destino de reciprocidade amorosa no qual exprimem-se as escolhas fundamentais da vida. Para o argumento concreto que nos ocupa é necessário ainda notar, mesmo que seja sinteticamente, que na prospectiva transcendente5 especificamente cristã, a Revelação enriquece de significados as categorias de liberdade e de comunicação, a natureza ontológica do vínculo de participação e a ventura de reciprocidade amorosa que suporta as opções pessoais. De fato, o mistério trinitário revela Deus mesmo como relação de amor, onde o nexo interpessoal é, antes de tudo, “intrapessoal”, para o que é redutivo pensar o relacionamento pessoa-relação esquecendo que a pessoa já é relação. As dimensões intrapessoal e interpessoal em Deus revelam-se também na sua obra criadora, que não recai sobre o individuo isolado mas sobre o homem e a mulher 6, formas da única criatura feita “à sua imagem” por amor, com igual dignidade e, porque partícipe da dignidade e da natureza do Criador, capazes de entrar em relação com Ele e chamados a corresponder ao seu amor numa comunicação livre e fecunda entre eles pela inteligência e pelo amor. Outros âmbitos de relação, mesmo que necessários no caminho da personalização, são fases limitadas das que libertar-se (abandonará o homem o pai e a mãe) para um maduro, livre e enriquecedor dom de si ao próximo, única resposta verificável do amor para com Deus7, 5 A prospectiva histórica e imanente desenvolveu-se em sentido negativo até atingir, na sociedade pós-moderna, à assim chamada “disseminação de sentido”, sem lugar para categorias transcendentais nem vínculos ontológicos que expliquem as relações interperssoais; cf. L. Alici, La reciprocità mancata: il noi come origine e come compito, em F. D’Agostino – F. Macioce (organizadores), Il destino dell’Europa, Cantagalli, Siena 2006, 82 ss. 6 Cf. João Paulo II, Uomo e donna lo creò. Catechesi sull’amore umano, Roma 1985. 7 Jesus uniu o amor a Deus (Lv 19, 18; Dt 6, 5) e o amor ao próximo (Mt 22, 37, 40), para o qual não há amor a Deus sem amor ao irmão, o único que se vê (1 Jo. 4, 20). que pode ser cumprida em várias modalidades. Entre estas, a doação conjugal, onde homem e mulher tornam-se “uma só carne”, coloca-se à procura da verdade mais profunda da pessoa, enquanto essencialmente constituida em sentido masculino e feminino8 e enquanto profundamente envolvida em aliança de amor com o Criador 9. Por isso, a ’união sexual, onde num e noutro aparecem fragmentos, fortemente atraidos, que se encontram na sua integralidade10, é forma sublime de plenitude e de dignidade que atinge a pessoa que expande a riqueza da sua liberdade inteligente numa comunicação de amor: “o amor entre homem e mulher, no qual corpo e alma concorrem inseparavelmente e no ser humano se entreabre uma promessa de felicidade que parece irresistível, emergindo como arquétipo de amor por excelência” (Deus Caritas est, 2). Estas chaves, mesmo que excessivamente sintéticas, permitem mostrar o ponto de partida ao qual se refere, no âmbito do casal conjugal, o vínculo que se realiza entre vontade de doação no ’amor esponsal e integração sexual efetiva entre os cônjuges na sistemática matrimonial. Deve-se completar o discurso com um breve aceno às duas questões antropológicas sobre a sexualidade e sobre o matrimônio que ajudam a explicar o especifico destaque jurídico reconhecido pelo livre consentimento e pela consumação. O dimorfismo sexual, constitutivo do ser pessoal11, não reduz pela só esfera dos instintos, a natural inclinação à integração com 8 A unidade estruturada bissexual espelha em modo mais intenso a condição de “imagem de Deus” da pessoa humana, cf. M. Flick – Z. Alzeghi, Fondamenti di una antropologia teologica, Firenze, 1970, 105; E. López Azpitarte, Sexualidad y Matrimônio hoy, Sal Terrae, Santander 1975, 36-47. 9 Sobretudo os profetas desenvolveram o simbolismo do casal conjugal a respeito da aliança de Deus para com o seu povo, cf. P. Grelot, La coppia umana nella Sacra Scrittura, Milano, 1968, 50 ss. 10 11 Cf. P. A. Bonnet, Essenza, proprietà essenziali, fini e sacramentalità, em P. A. Bonnet – C. Gullo (organizadores), Diritto matrimoniale canonico I, LEV, Città del Vaticano 2002, 98. “A sexualidade não é uma coisa qualquer que o homem “tem também,” …, mas um modo de fundo em que ela “está” em tudo …, (nas) suas relações existenciais”, U. Ranke – Heinemann, La condizione sessuale fondamentale dell’uomo, em AA.VV., Chiesa, uomo e società, Brescia 1970, 32. Suprema Lex Suprema Lex Número 1 – Janeiro/Junho de 2011 Número 1 – Janeiro/Junho de 2011 15 16 o outro sexo comum com outros seres12, para remediar os limites do próprio genero13. A sexualidade humana transcende a esfera bio-psíquica14; é dimensão personalizante porque estruturada também pela necessária intervenção pessoal para modelar-se15, resultando na expressão de liberdade que, no encontro, comunica-se para reencontrar plenitude16. Liberdade e comunicação estão orientadas pelo significado imanente da sexualidade enquanto confiada ao síngulo para o bem do Homem17; tal significado é dado pela reciprocidade 12 13 O excessivo paralelismo entre o instinto sexual humano e animal tem sido favorecido pela definição de Ulpiano de lei natural (“ius naturale est quod natura omnia animalia docuit”, Corpus Iuris Civilis, Ins., I, 2, II), excedendo o significado reprodutivo do sexo; mas “a índole sexual do homem e a sua faculdade generativa superam … quanto está nos níveis inferiores de vida” (GS, 51). Malgrado os esforços para interpretá-lo em modo integral, o conceito “remedium concupiscentiae” é inadequado para formular um dos fins do matrimônio, cf. E. López Azpitarte, o.c. (not. 7), 281. 14 As ciências naturais chamam a atenção para comportamentos sexuais animais não reduziveis ao dado biológico e reprodutivo, com analogia ao psiquismo humano (cf. R. Chauvin, Conductas sexuales del animal, en AA.VV., Estudios sobre la sexualidad humana, Madrid 1967, 35). As ciências humanas mostram a pluralidade de fatores (espirituais, sociais, culturais) inerentes à sexuaidade (cf. R. Soublon, Masculinité e femminité, em Revue de Droit Canonique, 24, 1974, 177-201; H. Schelsky, Il sesso e la società, Milano 1970, 17 ss.). o magistério valoriza estas reflexões, ensinando que a sexualidade “não é de fato qualquer coisa de puramente biológico mas relaciona-se ao núcleo íntimo da pessoa” (cf. João Paulo II, Familiaris Consortio, 11) e que “concerne à afetividade, a capacidade de amar e de procriar e, mais em geral, a atitude para entrelaçar relações de comunhão com os outros” (Catecismo, 2332). funcional, que é completante e potencialmente fecunda18. Por isso, a cópula interpessoal é “parâmetro integral, ainda que não seja exclusivo da sexualidade”19 e é expressão totalmente singular da inclinação, profundamente radicada na pessoa, mas modulada no horizonte da sua liberdade inteligente, pela comunicação amorosa e integral de si. Dos referidos valores humanizantes da sexualidade, iluminados pela Revelação20, compreende-se que a essência do matrimônio21 este sentido evoca um fundamento, não nas indigências individuais mas na “radical generosidade inscrita no próprio ser da pessoa”, J. Maritain, I diritti dell’uomo e la legge naturale, Milano, 1977, 7. As ciências humanas iluminam “a sexualidade e o amor humano, mas cegar-se-iam se esquecessem (que) … a dualidade dos sexos foi querida por Deus para que conjuntamente o homem e a mulher sejam imagem de Deus e, como Ele, fonte de vida”, Paulo VI, Allocutio alle Equipe di Notre Dame, 4.5.1970, em P. Barberi – D. Tettamanzi, Matrimônio e famiglia nel magistero della Chiesa. I documenti dal concilio di Firenze a Giovanni Paolo II, Milano 1986, 287-288. 18 P. A. Bonnet, L’impedimento de impotenza, em P. A. Bonnet – C. Gullo (organizadores), Diritto matrimoniale canonico I, LEV, Città del Vaticano 2002, 428. 19 20 A intervenção pessoal, mesmo na base da estrutura biológica em um dado gênero, enonctrar-se-á nos processos de identificação e diferenciação sexual e nisso reside a principal diferença que acontece com o instinto animal, cf. P. A. Bonnet, Essenza … (cit. not. 9), 102 e 119. 15 16 17 Esta visão natural da sexualidade está em conformidade com a revelação que a descobre como uma realidade positiva (obra de Deus) e totalizante (no amadurecer da personalidade fisica, moral e na semelhança com Deus) que se atua no encontro pessoal (GS 49); a relação sexual humana é totalmente diferente da animal, porque não regida somente pela necessidade nem versado pela inata disposição a comportamentos adaptativos; o surgimento da necessidade não tem períodos estáveis porque unida à emotividade é susceptível de desassociar o prazer, tornando-o fim do encontro sexual, colocado assim no mundo do espírito, capaz de colocar-se a pergunta do significado ou de resultar insignificante, cf. G. Zuanazzi, Psicologia e psichiatria nelle cause matrimoniali canoniche, Città del Vaticano, 2006, 196. Em relação à liberdade, o sentido imanente à sexualidade coloca-a em relação com o bem da humanidade reconhecendo-lhe uma orientação “anterior à decisão da liberdade”, J. De Finance, La nozione di legge naturale, Milano, 1979, 20. Para a comunicação, 21 O Antigo Testamento libera das visões míticas a realidade bisexuada, não a projetando à realidade divina (como as culturas pagãs de então) e relacionando a sua sacralidade apernas ao querer do Criador, seja na dimensão unitiva (da antiga fonte javista, Gen 2, 18-24) seja na procriadora (da tardia fonte sacerdotal, Gen 1, 26-28), cf. E. López Azpitarte, o.c. (not 7), 66-68. a relação conjugal descreve-se com imagens de sustentação (Sir 36, 22-25) análogas àquelas que descrevem a ajuda de Deus ao homem (especialmente nos salmos), e a relação sexual entre os esposos manifesta-se com o termo “conhecer”, evocando uma relação de aliança íntima e fiel, como deveria ser aquela entre Deus e um povo que, se infiel, é porque não conseguiu “conhecê-lo”, emquanto Deus, que só por amor escolheu Israel (Deut 7, 7-9), permanece sempre fiel cf. E. Schillebeeckx, o.c. (not. 2), 82 ss. Projeta-se assim, mesmo com hesitações, um modêlo de matrimônio monogâmico, cf. L. Musselli, Il matrimônio nel diritto canonico. Profili generali e processuali, em C. Barbieri – A. Luzzago – L. Musselli, Psicopatologia forense e matrimônio canonico, Città del Vaticano, 2005, 9. A firmeza da união conjugal não é comprometida pela esterilidade (1 Sam 1, 8) e, na mente de Jesus, que evoca o como foi no início (Mt 19, 4-6), explica que Moisés consentiu ao homem de repudiar a mulher pela sua “dureza de coração” O Novo Testamento coloca no mesmo plano o amor fiel entre marido e mulher (1 Cor 7, 10-11) e reporta-o ao amor de Cristo pela Igreja (Ef 5, 25). Para uma convincente delimitação do conceito de “essência” do matrimônio, tanto “in fieri” como “in facto esse” relacionado às “propriedades essenciais” (nas duas prospectivas) e aos “fins” envio às ótimas reflexões do prof. P. A. Bonnet, Essenza … (cit. not. 9), 105-127, onde retoma organicamente outros estudos precedentes (cf. Os citados pelo autor nas notas 7, 122, 144, 147 e 148). Suprema Lex Suprema Lex Número 1 – Janeiro/Junho de 2011 Número 1 – Janeiro/Junho de 2011 17 18 é a doação recíproca de um homem e de uma mulher 22, que só a ’inalienável liberdade, traduzida na vontade de oferecer-se integralmente, quais seres sexuados23, pode dar lugar ao estado de vida conjugal24, e que apenas a efetiva comunicação interpessoal sexualmente expressa torna o pacto matrimonial símbolo indefectível. 25 Ao mesmo tempo, enquanto a experiência conjugal da sexualidade é um bem para a Humanidade, compreende-se que a única condição humana orientada à potencial fecundidade, compatível com a esterilidade é o único radical fundamento para modelar o “ius connubii” 26. 1.2. A centralidade do consentimento válido para a constituição do matrimônio monogâmico, estabelecendo que o matrimônio surge do consentimento dos dois esposos, e não da cópula carnal: “nuptias non concubitus sed consensus facit”27. A Igreja logo amadureceu a própria visão da dimensão transcendente do matrimônio28, progressivamente colocada em reconhecer a índole sacramental29. Adequou-se jurídicamente ao direito romano ou aquele que obrigasse os cônjuges, a não ser que fosse incompatível com a mensagem evangélica (direito divino)30. Os problemas, logo chamados em causa, apoiaram-se na evangelização da realidade matrimonial o primado do amor entre os esposos31, a Digesta 35, 1, 15 e 50, 17, 30; cf. O. Robleda, El matrimônio en derecho romano, Roma 1970. 27 No matrimônio existe uma dimensão transcendente para a trascendência do amor humano; a sua “sacralidade” está presente em muitas civilizações (cf. G. Van der Leeuw, Sacramentales Deuken, Kassel, 1959, 152) como o era em Israel (cf. E. López Azpitarte, o.c. (not. 7), 288), sendo anacrônico achá-lo totalmente profano (cf. P. A. Bonnet, Essenza… (cit. not. 9), 129) até ao comparecimento de cosmovisões radicalmente secularistas. A benção nupcial na Igreja primitiva é o início disto que significa “esposar-se no Senhor” (cf. Santo Inácio de Antioquia, Ad Polycarpum, 5, 2 em PG, 5, 724), conceito recorrente na patrística (cf. K. Ritzer, Le marriage dans les Eglises chrétieens. Du I au XI siècle, Paris 1970), desenvolvido por Santo Agostinho (cf. De Civitate Dei XIV, 22, em PL 41, 429-430; De bono coniugali III, 3, em PL 40, 375) na sua teoria dos fins e dos bens. 28 É o Direito Romano, desde a idade republicana e imperial, a consolidar, de um ponto de vista jurídico, o modelo de matrimônio 22 23 Porque bipolar e complementar, a sexualidade no matrimônio é capaz “de sintonizar perfeita e reciprocamente entre si um homem e uma mulher fazendo mutuamente de cada um deles um ‘tu’ proprio pessoal, assim para permitir a um e a outra de viver o próprio ‘sou’ na dimensão unitária mas inconfundida do ‘nós’”, cf. P. A. Bonnet, Essenza … (cit. not. 9), 108. Definida só pelo Concílio de Trento (s. XVI), devido ao atraso da teologia dos sacramentos (o conceito que une “sinal” e “eficácia” é do séc. XII, cf. J. M. Castillo, Simbolos de Libertad, Salamanca 1981), devido à urgência de outros desafios (como a admissão dos escravos ao “matrimônio de consciência”), e para a dificuldade de considerar veículo de graça (para todos, cf. Graziano, Decretum, 1, c. 101) uma realidade includente o exercício da sexualidade, em um contexto sócio-cultural e religioso longe de colher os seus valores positivos; decisiva foi a doutrina de Santo Tomás de Aquino para reconhecer no matrimônio a comunicação de graça específica (cf. P. Delhaye, Fijación dogmática de la teología medieval. Sacramentum, vinculum, ratum et consummatum, em Concilium 55, 1970, 243 ss.). Sobre este ponto, cf. Commissio theologica internationalis, Theses de doctrina matrimonii cristiani, 4, 4 em Enchiridion Vaticanum VI, 505; Matrimoniii cristiani sacramentalitatis, em Ib., 505. 29 “Quando o eu encontra no matrimônio o fragmento faltante de si mesmo no próprio pessoal “tu” sente-se às vezes incapaz de viver o proprio “sou” na angústia sufocante do próprio ser e por isso se esforça em transmitir a própria especificidade sexual no outro para vivê-la … integral e intensamente naquela bem diferente, mas bem completante do outro”, Ib. 117. “A íntima comunhão de vida e de amor conjugal … estabelece-se … pelo irrevogávbel consentimento pessoal …; esta íntima união, enquanto mútua doação de duas pessoas, como também o bem dos filhos, exigem a total fidelidade dos cônjuges que evocam a indissoluvel unidade” (GS 48). 24 O símbolo sacramental da união entre Cristo e a Igreja, na reflexão teológica, teve-se como perfeito no consentimento apenas como condição de possibilidade, enquanto para a sua plenitude logo se considerou necessária a efetiva união dos corpos e não faltaram tentativas de atribuir simbologia diferente aos matrimônios não consumados, cf. T. Rincón Perez, Indisolubilidad y Consumaciòn en los siglos IX-XIII, in Ius Canonicum 11, 1971, 119 ss. 25 26 Isto explica a rápida influência do cristianismo na concessão do matrimônio também aos escravos, antes preclusa, cf. L. Musselli, o.c. (not. 19), 10. Sobre o fundamento intrínsecamente heteroxessual do ius connubii, orientado à constituíção da família, cf. H. Franceschi, o.c. (not. 1), 392 ss. Antes de estabelecer (após longo processo) uma sistemática jurídica própria, a ação da Igreja é colegiada no auge, na decadência e no despertar do direito romano com relação ao direito germânico, para o que é árduo estabelecer o núcleo original da sua disciplina normativa, cf. F. Salerno, o. c. (not. 1), 16. 30 31 Em Ef 5, 21-31 Paulo trata do matrimônio no âmbito da “nova vida em Cristo”; o amor entre os esposos (complementar e recíproco), qual sinal da nova aliança e do amor de Cristo para a Igreja, deve (em sentido normativo) ter o primado, cf. M. Zerwick, Lettera agli Efesini, Roma, 1965; H. Schlier, La lettera agli Efesini, Brescia, 1973. Suprema Lex Suprema Lex Número 1 – Janeiro/Junho de 2011 Número 1 – Janeiro/Junho de 2011 19 20 indissolubilidade intrínseca do vínculo32 e as exigências superiores da fé33. Nos confrontos das regulamentações jurídicas do matrimônio, estas referências criaram uma firmeza básica sobre a igualdade entre homem e mulher na dinâmica constitutiva do casal conjugal, jamais radicalmente atacada, mesmo com as oscilações lógicas inerentes à encarnação da mensagem evangélica na história34. Consequência principal desta firmeza é o reconhecimento dado pelo livre e recíproco consentimento qual única causa eficiente do matrimônio, subordinando outros aspectos privilegiados em algumas legislações, que pressupõem ficar incompreensível a consideração paritaria dos esposos e, por consequência, o relevo exclusivo que compete ao amor recíproco na vontade de constituir o estado de vida conjugal35. Sobre o matrimônio, esta foi de imediato a tábua que levou a ação da Igreja. Além de formulá-lo em termos jurídicos e em normas próprias , a Igreja manteve este princípio de fundo. Assim, no tocante aos impedimentos e à forma, a centralidade do consentimento para constituir matrimônio válido coleta-se do fundamento diferente e na sua proteção jurídica. A necessidade do livre consentimento é 36 32 intrínseca à essência do matrimônio37, tanto que nenhum poder humano pode supri-lo38. Não pode sequer revogá-lo, e isto é mais atinente ao nosso tema. De fato, fruto precoce do aperfeiçoamento evangélico, incidente também no matrimônio jurídicamente modelado pelo consentimento, qual momento constitutivo, é a insignificância atribuida ao desparecer, se livremente prestado.39. A fidelidade e a indissolubilidade intrínseca do matrimônio são frutos do próprio consentimentos adquirindo pela natureza sacramental das núpcias firmeza peculiar40. A necessidade do consentimento, estando em jogo a opção do próprio estado de vida, é prova da defesa do valor de liberdade (c. 209) que, juntamente com a comunicação, fundamenta a visão persoalista da antropologia cristã. O consentimento, além de necessário, é suficiente para dar vida ao vínculo conjugal, mesmo se isto tenha sido o resultato de um caminho mais angustiado na história. Esta suficiência, codificada 37 Em linhas gerais pode-se afirmar que os impedimentos e a forma, com os quais o ordenamento regula a habilidade jurídica para prestar e manifestar o consentimento, respondem à exigência do próprio ordenamento, de por si extrínsecas ou apenas indiretamente ligadas aos valores do vínculo conjugal; estes ao invés não poderiam surgir sem a capacidade e vontade de obrigar-se, única exigência intrínseca. 38 Em 1 Cor 7, 10-11 Paulo retoma a proibição de repúdio de Mt 5, 32 e 19, 9; nas várias interpretações da exceção em caso de “porneia”, cf. G. Cereti, Matrimônio e indissolubiltà, Bologna 1971. 33 Na 1 Cor 7, 12 (Privilégio Paulino) desenvolve-se a “dissolubilidade extrínseca” para salvar a fé, cf. P. Huizing, El derecho canónico y la disolución del matrimônio, em Concilium 87, 1973, 9-19. 34 35 Em 1 Cor 7, 3-4 Paulo raciocina em termos de igualdade; sobre a inculturação deste valor, cf. A. Fumagalli, Il Matrimônio come bene interpersonale, em Aggiornamenti sociali 12, 2005, 790-792. Principais contrastes com o ideal cristão são a prevalência do dote ou dos interesses familiares ao estipular as núpcias, a visão machista do pátrio poder, o divórcio (verdadeiro rasgão no direito hebraico) e a irrelevante autonomia da mulher, incompreensível para o direito germânico que vê na cópula o momento constitutivo do matrimônio, cf. L. Musselli, o.c. (not. 19), 10-11. 36 39 A disciplina estritamente jurídica da Igreja, formando-se na Idade Média, é precedida por longa experiência de jurísdição, primeiramente para os fiéis (Episcopalis Audientia) depois para os súditos do império, sendo a Igreja, para várias regiões, a única autoridade publica, no ocidente, a poder-se ocupar. 40 A forma, ainda que possa ser suprimida, em qualquer um dos elementos, é dispensável, assim como os impedimentos estabelecidos pelo direito positivo. Entre os não dispensáveis, só a impotência coeundi está ligada à essência do matrimônio; não faltam porém opiniões que reportam a incidência da impotência ao âmbito do consentimento, em caso de dolo ou erro, julgando-a sem influência se aceita pelos cônjuges, cf. P. Bellini, Nuova nozione de impotenza dell’uomo, em Quaderni romani di diritto canonico, Roma, 1978, 90 ss. A indissolubilidade intrínseca é a impossibilidade de dissolver a união válida sem que intervenha um poder público ou sem uma forma legitimamente reconhecida. A revogação do consentimento, seja por parte do homem que da mulher, explica a legitimidade do divórcio no direito romano, com a só entrega do libelo de repúdio cf. R. Orestano, La struttura giuridica del matrimônio romano dal diritto classico al diritto giustinianeo, Milano 1951. Cf. GS, 48; só pelo matrimônio entre batizados afirma-se a sacramentalidade, dúbia se apenas um dos côniuges é batizado (cf. Communicationes 9, 1977, 129). Julgar “natural” a obrigação de fidelidade, derivante da propriedade essencial da unidade, contrasta com as formas, mesmo residuais, de matrimônio poligâmico; mais frequente, na doutrina também clássica, considerou-se que só a razão natural não demonstra que o matrimônio seja absolutamente indissolúvel; sobre os representantes deste penamento, cf. U. Navarrete, Indissolubilitas matrimonii rati et consumati. Opiniones recentiores et observationes, em De matrimônio coniectanea, Roma, 1970, 464 ss. Suprema Lex Suprema Lex Número 1 – Janeiro/Junho de 2011 Número 1 – Janeiro/Junho de 2011 21 22 em termos semelhantes ao direito romano (c. 1057 par. 1) 41, encontra explicação se considerado como ato de vontade de doação recíproca e irrevogável das próprias pessoas dos cônjuges (c. 1057 par. 2), e nos conteúdos do pacto conjugal como “consortium totius vitae” ordenado ao bem dos cônjuges e à geração e educação da prole (c. 1055). A dimensão de liberdade é assim colocada em estreito liame com a dimensão de relação própria da vida conjugal, dando uma face concreta de resposta à vocação e destino de participação no amor de Deus, através da vontade de amá-lo concretamente no próximo escolhido como cônjuge e enquanto este cônjuge. Compreende-se, portanto, que o consentimento seja suficiente para criar o vínculo enquanto, símile ato de vontade amorosa, inclui necessária e principalmente a recíproca doação da própria sexualidade na riqueza e complexidade de aspectos antes mostrados para referir-se a esta dimensão profunda da pessoa42. Neste sentido, comprende-se igualmente a maior exatidão de definir o consentimento como “ato pessoal e interpessoal”43, porque a pessoa não é, só alma, nem só corpo, mas relação 44, e seria errado realizar uma espécie de exaltação do pensamento e da vontade, desconhecendo a função da afetividade 45. Compreende-se enfim, como o magistério constantemente ensina que, para o seu valor humanizante, a sexualidade entre homem e mulher se exprime in- tegralmente somente se inserida no consentimento, isto é no ato de amor com o qual ambos “se comprometem totalmente até a morte um com o outro; a doação fisica total seria mentira se não fosse fruto da doação pessoal total”46. Não há contradição real entre o dado legislativo, que define o consentimento como ato de vontade, e a sua consideração mais exata como ato de doação, fruto do amor47, não reduzido à mera dimensão psicológica, onde por amor se entende o sentimento ou enamoramento e onde o outro não é visto na totalidade disto, mas, na parcialidade de alguns estímulos48. Em sentido antropologicamente mais elevado49, com independência dos motivos que o fazem surgir, o amor é vontade de amar, decisão consciente de doar-se para encontrar-se50, de envolver-se totalmente, espiritual e corporalmente, na realização do outro. Neste sentido, o ato de amor consensual é uma escolha voluntária de uma pessoa para entender, em comunicação recíproca e complementar, a riqueza do eros e do ágape, sem rupturas entre eles que tornariam uma e outra dimensão inadequadas para a constitução do estado de vida conjugal51. João Paulo II, Familiars consortio, 11. 46 Não dizer “non amor sed consensus facit matrimonium” (cf. Por ex. M. F. Pompedda, o c. 1095 n. 1-2 nell’economia della disciplina del matrimônio, em P. A. Bonet – C. Gullo (organizadores), Diritto matrimoniale canonico II, Città del Vaticano, 2003, 20) não se distingue bem entre momento constitutivo (onde o amor não pode faltar) e o estado conjugal onde pode faltar, dependendo da sua atuação pela liberdade dos cônjuges), cf. P. A. Bonet, Essenza … (cit. not. 9), 113 47 “Matrimonium facit partis consensus”, c. 1057, § 1, idêntico ao Código anterior c. 1081 §. 1. 41 42 Também o código anterior, mesmo que em modo redutivo, incluia a doação sexual como objeto do consentimento (ius in corpus perpetuum et exclusivum in ordine ad actus per se aptos ad prolis generationem, c. 1081 § 2) e como fim secundário do matrimônio (c. 1013 §. 1). 49 Cf. J. M. Serrano Ruiz, El consentimiento matrimonial canónico: cuestiones de dogmática jurídica general y especificidad del matrimônio, em Actas del primer congreso latinoamericano de derecho canónico, Valparaíso, 1994, 567-589. 50 48 43 A unidade alma e corpo (na unidade da condição masculina e feminina) envia à dimensão intrapessoal do conceito de pessoa como ser relacional, cf. L. Alici, o.c. (not. 4), 87; para uma interessante reflexão sobre a corporeidade, cf. G. Zuanazzi, Psicologia … (cit. not. 15), 37-40. 44 Do mundo afetivo ascende-se para o mundo dos juízos de valor (pensamento) onde se decide a existência conscientemente (vontade), cf. Ph. Lersch, Aufbau der Person, Munchen, 1966, 265. 45 51 Neste sentido “o sentimento pode ser uma maravilhosa faisca mas não é a totalidade do amor ”, Benedito XVI, Deus Caritas est, 17; cf. Ph. Lersch, o.c. (not. 44), 264-265. Para a diferença entre o enamorar-se e o amor, as teorias psicológicas nesta matéria, e a insuficiência da aproximação apenas psicologica, cf. G. Zuanazzi, Psicologia … (cit. not. 15), 95-99. Na própria psicanálise afirma-se o caráter ativo e não passivo do sentimento do amor, caracterizado mais pelo dar do que pelo receber, explicando o desejo sexual como manifestação da necessidade de amar, e subvertendo a idéia freudiana onde o amor se entende como sublimação do instinto sexual, cf. E. From, L’arte di amare, Milano, 1968, 33, 36 e 49. Cf. J. Noriega, La cintilla del sentimento e la totalità dell’amore, em L. Melina – C. A. Anderson (organizadores), La via dell’amore: riflessioni sull’enciclica Deus Caritas est, Città del Vaticano, 2006, 239. Suprema Lex Suprema Lex Número 1 – Janeiro/Junho de 2011 Número 1 – Janeiro/Junho de 2011 23 24 Em definitivo, como autoritariamente advertido, “à base de um estado de vida, constituido pela relação conjugal, deve ser um ato que reciprocamente saiba transformar, inventar, plasmar o outro em um tu”, uma escolha que permite superar “a original estranheza pessoal recíproca dos nubentes com o dom mútuo de si próprios enquanto seres sexuados”52; trata-se de um ato de amor “que quer tornar-se corpo”53 onde a sexualidade, na respectiva funcionalidade masculina e feminina, está presente para permitir o encontro e o diálogo mais integral e radical que se possa hipotizar, vale dizer, o dom não de uma coisa qualquer mas daquilo que se é54. não é portanto arriscado pensar que, se o consentimento é causa suficiente do vínculo, o é porque inclui a recíproca doação da sexualidade, dimensão profunda da pessoa chamada à comunicação total e integral de si. Enquanto escolha, o consentimento sozinho já é um ato “idôneo para trasformar a dialogalidade sexual, antes pessoalmente indeterminada, numa polarização peculiar entre um certo homem e uma certa mulher”55. Enquanto compromisso recíproco para constituir a “complementariedade entre masculinidade e feminilidade”, o consentimento é “ato de vontade de assumir a obrigação de justiça para realizar aqueles atos e aqueles comportamentos futuros que a realização dos fins objetivos do matrimônio exige”56 1.3. A necessidade da consumação para a absoluta indissolubilidade Inserido o consentimento, na riqueza e especificidade de conteúdos que se procurou mostrar, surge o vínculo conjugal, intrínsecamente indissolúvel, isto é não mais revogável por parte dos contraentes. A doação recíproca sozinha da sexualidade porém, estipulada no consentimento, não possui ainda a plenitude própria da opção conjugal, de modo a responder à vocação divina, vivendo a comunicação do amor personalizante tramite a complementariedade sexual polarizada no próximo bem concreto que é o cônjuge. Esta plenitude só deriva do efetivo encontro carnal que, enquanto tal, tem a capacidade de manifestar integralmente o dom da própria pessoa através da aceitação do outro e, consequentemente possui todas as potencialidades para que seja um ato verdadeiramente pessoal e interpessoal, mutuamente plasmante, pela profundidade, as pessoas dos cônjuges57. Por idêntica razão, só a efetiva comunicação da sexualidade conjugal mostra plenamente o caráter simbólico do matrimônio, qual sinal indefectível, da união de Cristo e da Igreja, na comunhão espiritual entre os esposos58. A diferente plenitude inerente à doação integral da sexualidade, no momento consensual e no efetivo encontro carnal entre os esposos, está na origem de um angustioso caminho na conformação da sistemática matrimonial da Igreja, alcançada fatigosamente por uma síntese conciliativa entre os sustentdores da teoria consensual (escola de Paris) e a teoria da cópula (escola de Bolonha), posições contrastantes a respeito do momento constitutivo do matrimônio59. A síntese é obra do papa Alexandre III, jurísta de formação bolonhesa que, aceitando os postulados da escola parisiense, introduz um princípio, que está na base do conceito da indissolubilidade absoluta, Cf. P. A. Bonet, L’impedimento di impotenza … (cit. not.18 ), 437. 57 58 P. A. Bonet, Essenza … (cit. not. 9), 109. 52 53 G. Zuanazzi, Psicologia … (cit. not. 15), 101. O âmbito do encontro é constitutivo de uma abordagem personalista na medicina canônica, para compreender não só quem é a pessoa mas quem possa ser no encontro com os outros, cf. C. Barbieri, Personalità e diritto canonico, em C. Barbieri – A. Luzzago – L. Musselli, Psicopatologia forense e matrimônio canonico, Città del Vaticano, 2005, 66-69. 54 55 P. A. Bonet, Essenza… (cit. not. 9), 113. P. J. Viladrich, Il consenso matrimoniale, Milano, 2001, 32. 56 59 “Na intimidade corporal o matrimônio torna-se um sinal e um penhor da comunhão espiritual entre os esposos; entre batizados os liames… são santificados pelo sacramento”, Catechismo, 2360. Não é agora o caso de deter-nos detalhadamente nos representantes de uma e de outra escola nem nas determinadas e articuladas razões das respectivas pesquisas, inicialmente ancoradas em diversas tradições litúrgicas nupciais (a “velatio”, que simboliza a comunhão espiritual e, portanto o consentimento, e a “benedictio in thalamo”, que requer a comunhão sexual e, portanto a cópula), depois condicionadas pela carência de conceitos unívocos (a condição de esposo e cônjuge, de esponsais e núpcias , de consentimento “de praesente” e “de futuro”, de matrimônio “ratum” e “initiatum”); sobre tudo isso cf. J. L. López Zarzuelo, El proceso canónico de matrimônio rato y no consumado, Valladolid, 1991, 3-74. Suprema Lex Suprema Lex Número 1 – Janeiro/Junho de 2011 Número 1 – Janeiro/Junho de 2011 25 26 reservado apenas aos matrimônios consumados, afirmando portanto que, antes da consumação, o vínculo conjugal, mesmo perfeitamente constituído pelo consentimento entre os cônjuges, pode ser dissolvido pela autoridade da Igreja 60. O consentimento dos esposos, consequentemente, já produz um vínculo conjugal intrínseco mas relativamente indissolúvel, isto é susceptível ainda, até à consumação, de dissolução extrínseca. O concílio de Trento, enfrentando os desafios da Reforma protestante, definiu a sacramentalidade do matrimônio e afirmou que a Igreja não erra na extensão e nos limites do seu poder sobre o matrimônio61. Símile doutrina, autorizadamente reforçada também recentemente , comporta uma perene consciência, por parte da Igreja , de não ter poder de dissolver o vínculo surgido de um matrimônio rato e consumado62, ao invés tê-la se um ou outro elemento não subsiste63. Na base disto se colocam as razões de natureza antropológica, inerentes à dinâmica existencial do casal conjugal e, com evidência diferente, não sem fundamento, as razões teológicas iluminando o dado antropológico. Numa prospectiva antropológica, referente às categorias de liberdade e de relação até aqui constantemente requeridas, a extrínseca solubilidade do matrimônio não ainda consumado, é consequência da modalidade com que a falta de consumação frustra a plena recíproca oblatividade, isto é, privando de toda possibilidade expres60 61 Corrige-se assim o conceito de Graciano sobre o “coniugium ratum”, afirmado só do coniugium “inter copulatos” (C. XXVII, q. 2, d. p. c. 34), mas corrige a idéia de absoluta indissolubilidade atribuida a Pedro Lombardo ao consentimento “de praesenti” (Libri IV Sententiarum, D. XXVII, c. 4). Sobre as decretais que resolvem uma e outra questão, cf. J. L. López Zarzuelo, o.c. (not. 59), 16-20. siva a totalidade do compromisso com relaçao ao cônjuge, mesmo se assumido plenamente e com liberdade. A dimensão oblativa do compromisso pode ser frustrada de outros modos e momentos na dinâmica do casal, se isto não tiver efeitos análogos deve-se à força comunicativa da sexualidade humana64, que torna do todo especial esta forma precisa de frustração, assim como é “de todo particular” o modo em que o amor conjugal “se expressa e se desenvolve… pelo exercício dos atos … com que os cônjuges se unem em casta intimidade” por isso estes atos, ainda que necessários para a geração dos filhos, “favorecem a mútua doação … e enriquecem em alegre gratidão os esposos ” (GS 49). uma decisão livre, projetada à total comunicação de si, assim, na existência do casal não radicalmente expressa, é possível teoricamente65, mas comporta uma distorção objetiva da dinâmica do encontro interpessoal que, na reciprocidade masculina e feminina, se realiza de modo integral, mediante a união física, mesmo que não exclusivo.66. Do ponto de vista teológico, a dissolubilidade extrínseca do matrimônio não consumado se relaciona com o valor simbólico da aliança conjugal. Como realidade natural, a dimensão transcendente dos valores de liberdade e comunicação fecunda induz a reconhecer no matrimônio um “ícone da Trindade”, idéia presente na patrística, aplicada sobretudo à vida familiar 67. Como realidade sacramental, o símbolo refere-se ao amor de Cristo para a Igreja, perfeitamente significado, segundo a doutrina mais tradicional68, na união corporal e espiritual, por isso a falta de união carnal priva a união cônjugal de 64 Não foi totalmente pacífico que um casamento virginal, como aquele de Maria e José, possa qualificar-se como verdadeiro matrimônio, cf. P. A. Bonet, Essenza … (cit. not. 9), 132. Na redação do cânon 7 no concílio de Trento, não só sobre seu estreito liame com as teses luteranas e com a práxis das Igrejas ortodoxas do oriente (que em diversificada medida aplicam o princípio de “economia” em caso de adultério), cf. E. López Azpitarte, o.c. (cit. not. 7), 315-322. 65 Cf. João Paulo II, Allocuzione al Tribunal da R. R., 21.1.2000, em AAS 92, 2000, 354355. 67 Em matrimônios naturais apenas consumados pode-se às vezes aplicar a dissolução em favor da fé. 68 62 63 Cf. K. Loewit, La funzione comunicativa della sessualità umana: una dimensione non considerata, em R. Forleo – W. Pasini (organizadores), Sessualità e medicina, Milano 1980, 33 ss. Cf. P. A. Bonet, L’impedimento di impotenza … (cit. not.18 ), 433 ss. 66 Cf. Catechismo, 2205; P. Adnès, Matrimônio e mistero trinitario, em AA.VV., Amore e stabilità nel matrimônio, Roma, 1976, 12 ss. O magistério também se apropria desta doutrina, cf. Pio XI, Casti Conubii, 11; sobre a tradição a respeito, cf. U. Navarrete, Indissolubilitas … (cit. not.39), 513. Suprema Lex Suprema Lex Número 1 – Janeiro/Junho de 2011 Número 1 – Janeiro/Junho de 2011 27 28 alcançar de modo indefectível o simbolismo que lhe é mais próprio69. A menor evidência de tal impostação poder-se-ia superar considerando, como já feito pela autorizada doutrina e pelo magistério, a dimensão permanente do sacramento, a economia da graça salvífica que prossegue após ter sido celebrado e que se encarna na “consuetudo cônjugalis”, isto é na complexa e rica trama de relações e de atos que permite ao individual dimorfismo sexual de reencontrar a unidade, aperfeiçoando na união interpessoal, os impulsos de divisão inatos no indivíduo e que são marcas de uma liberdade não amadurecida no encontro oblativo70. A sexualidade configura a radical alteridade individual e reinvia à intencionalidade amorosa da pessoa; compreende-se então que o amor se serve do encontro sexual físico e que só este encaminha, de modo integral (mesmo não exclusivo), o esforço de superar a inata limitação e, qual instintiva expressão da almejada unidade intrapessoal e interpessoal, concretiza a opção de viver com e para o outro71. 2. Conceito canônico de “não consumação” e consequências jurídicas. Os valores antropológicos próprios da união carnal, na dinâmica existencial do casal conjugal, ulteriormente iluminados pela reflexão teológica, tornam compreensível a estabilidade do vínculo, surgida do pacto matrimonial válido, embora não apareça suficientemente aperfeiçoada faltando a consumação. É porém, esta riqueza de conteúdos humanos e espirituais, inerentes à efetiva integração sexual entre os esposos, que obriga a colocar-se o problema em prospectiva oposta, a pedir-se isto é, que gênero de união carnal, em relação à 69 70 A falta de perfeição simbólica, para a não expressa união corporal, traz em si o conceito paulino de Igreja como “corpo” de Cristo que Santo Ambrósio entende no modêlo da união entre Adão e Eva, osso dos seus ossos e carne da sua carne, cf. P. A. Bonet, Essenza … (cit. not. 9), 129. Sobre a dimensão permanente do sacramento e a doutrina atinente ib. 134-138. Sobre os parâmetros argumentativos da união sacramento-consumação, cf. E. López Azpitarte, o.c. (not. 7), 322-324. Cf. G. Zuanazzi, Psicologia … (cit. not. 15), 197. 71 qualidade comunicativa da sexualidade conjugal, permite considerar aperfeiçoada a estabilidade do vínculo, a tal ponto de torna-lo absolutamente irrevogável. Sem desmentir o dado antropológico e teológico, a abordagem canônica do tema exige a precisão e redução de conceitos típica do método jurídico. Por isso os dados normativos provêm de modo diversificado a regulamentação dos vários aspectos inerentes à qualidade comunicativa da cópula conjugal, disciplinando as situações jurídicas, mesmo diversificadas, que derivam do fato originante em si (isto é, a carência de consumação) ou das outras eventuais imperfeições de ’integração sexual do casal conjugal72. Devendo tratar só o primeiro aspecto, é necessário partir do conceito canônico de matrimônio “non consumato”, para depois referir-se ao determinado posicionamento jurídico subjetivo que se segue e aos procedimentos previstos para prover o mérito da indissolubilidade do vínculo. 2.1. Noção canônica de cópula consumativa A lei canônica, colocando-se em prospectiva positiva, estabelece o conceito de matrimônio “consumado” e consequentemente, o que seja, a qualidade da “cópula consumativa”, no identificar ou não a sua existência. Assim, o matrimônio diz-se consumado só se, após a sua válida constituição, os cônjuges colocaram entre si, de modo humano, o ato por si idôneo para a geração da prole, mediante o qual os esposos tornam-se uma só carne (c. 1060 par. 1). Pelo valor que isto se reveste na dinâmica do casal conjugal, interessa observar que a norma, da qual se deduz por via negativa o conceito de matrimônio “não consumado”, inclui os contratos das pessoas dos quais a eventual cópula carnal acontecida está desligada da condição de cônjuges, daqueles em que a união sexual não é “in sé” idônea 72 A “não consumação” é situação de fato jurídicamente distinta da condição subjetiva inerente à impotência copulativa e o respeitar a incapacidade psíquica, com a devida solvência, o dever de uma integração psico-física que realize idoneamente o “bonum coniugum”. Suprema Lex Suprema Lex Número 1 – Janeiro/Junho de 2011 Número 1 – Janeiro/Junho de 2011 29 30 à procriação, e enfim, dos que a cópula, mesmo que seja “in sé” idônea à fecundidade, não foi realizada “humano modo”. Para os nossos fins, o que mais interessa notar é que, na lógica de um sistema jurídico, como o eclesial, o legislator não deixa de referir-se à qualidade última dignificante da cópula consumativa, isto é, a realização da “una caro”. Abstém-se, porém, com idêntica lógica sistemática, de mostrar na via legislativa os elementos determinados que a tornam idônea a realizar esta finaldade, assim valorizada, pelo magistério conciliar e pós-conciliar, nos seus aspectos personalistas,73. Isto diz respeito à atividade do jurisprudente, na responsabilidade e nos limites colocados pela exigência de tratar os síngulos casos, no sulco da perene fidelidade ao direito divino e no compromisso para melhor descobri-lo com a ajuda do Espírito74. Neste âmbito, que o mais recente magistério oportunamente descreve como “hermenêutica de renovação na continuidade”75, à medicina canônica vista como uma contribuição especifica, tanto em relação às três fontes, normativamente colocadas na base da não consumação, como na complexa qualidade da cópula conjugal, assim vigorosamente resgatada das inerentes reduções às exclusivas dimensões físicas. 73 74 Esta valorização (incipiente no magistério anterior, cf. Casti Conubii) opera uma mais decisiva passagem da visão biológica e procriativa da união carnal para uma mais integral, inserida na idéia de pessoa como totalidade unificada de espírito e de corpo, onde se correspondem o amor pessoal e as expressões corpóreas, superando um conceito despersonalizado dos atos sexuais (GS 50; Familairis Consortio 11). No considerar isto, o desafio está representado pela salvaguarda da indissolubilidade, sem reduzí-la a mero ideal moral, cedendo a visões arbitrárias da sexualidade. Isto explica as vacilações e as deformidades de visões verificadas na história entre o Tribunal da Rota Romana e os competentes dicastérios da Cúria Romana, especialmente quando prevalecem as preoccupações de ordem fisiológica na cópula carnal (por ex. Sobre o problema do “verum semen”). No prover os casos particulares, não se intenta resolver a questão teórica e só quando se esclarecem as dúvidas, com o auxílio das ciências, intervem o poder ecclesial resolvendo aspectos da questão teórica; neste sentido, na práxis da Congregação do Santo Ofício, cf. P. Gasparri, Tractatus Canonicus de Matrimônio I, Romae 1932, 329. 75 Bento XVI, Discorso alla Curia Romana, 22.12.2005, evocado pelo mesmo Pontífice na recentíssima Allocuzione alla Rota Romana, 27.1.2007, em L’osservatore romano, 28.1.2007, 5. 2.1.1. A cópula carnal não conjugal É fácil compreender, à luz das reflexões feitas na primeira parte deste artigo, a insignificância da cópula carnal entre um homem e uma mulher sem ter cumprido o seu pacto conjugal, se uma vez realizada, não advém entre eles a integração sexual76. A previsão normativa que nos ocupa evoca dois pressupostos atinentes aos valores de liberdade e de comunicação colocados sob a doação conjugal: a insuficiente virtualidade personalizante da doação fisica, expulsa-se pela totalidade do compromisso nupcial e, sobretudo, pela objetiva distorsão que, na dinâmica do encontro conjugal, uma vez celebrado o matrimônio, representa símile descontinuidade de conduta sexual. Com relação à primeira questão, ao lado de um certo cansaço oriundo do valor jurídico da assim chamada “copula fornicária”77, é suficiente evocar a relação entre a comunhão física e a espiritual que, na sua totalidade, em sentido objetivo, só pode exprimir o pacto conjugal, jurídicamente selado. Como já recordado, o magistério ecclesial reporta ao âmbito da “não verdade”, portanto da inexistente qualidade humanizante, a doação fisica que não exprima aquela doação total, objetivamente registrável só no pacto livre no qual a pessoa inteira, também em sentido temporal, sem reservas, está presente e se comunica totalmente78. Do ponto de vista subjetivo, não é raro evocar novamente a plenitude do compromisso afetivo, justificando assim a união carnal fora do âmbito conjugal, se por causas alheias à vontade dos interessados, o matrimônio não se pode realizar. Sem demorar-se em 76 Não tratamos da relevância da cópula pós-nupciial num matrimônio só aparente. 77 78 Entende-se por isso a cópula “violenter extorta”, cujos efeitos consumativos, a doutrina canônica, como veremos, sempre se interrogou referindo-a ao vínculo conjugal; sobre a cópula pré-conjugal o interesse reside nas razões colocadas por quem julga consumativa a cópula pós-nupcial “violenter extorta” para o vínculo de afinidade surgido pela cópula ilícita com mulher “prorsus invita” segundo a decretal Discretionem de Inocêncio III, cf. c. Felici, sent. diei 26.3.1957, em SRRD 49, 238 ss. Para João Paulo II de fato semelhante doação física é uma “mentira” (Familiaris Consortio 11). Suprema Lex Suprema Lex Número 1 – Janeiro/Junho de 2011 Número 1 – Janeiro/Junho de 2011 31 32 considerações que superam a nossa abordagem específica, a medicina canônica poderá iluminar a anômala dinâmica do casal que chega ao matrimônio precedido de namoro ou de convivências “more uxorio”, sexualmente integrados, mas após a celebração não consumado.79. 2.1.2. A cópula “in se” não idônea à procriação Mais articulado é o liame entre os valores humanizantes da sexualidade conjugal, radicados na livre e integral comunicação de si, e o valor não consumativo aplicado à cópula “in se” não idônea à procriação. O peso primordial dos aspectos biológicos desta situação, parece extrair os critérios de liberdade e de comunicação personalizante da dignidade da cópula conjugal Pois se trata da “própria idoneidade dos atos”, a cópula é consumativa também quando o efeito procriativo não possa nunca ser alcançado, por razões alheias à vontade dos cônjuges, como sucede nos casos de esterilidade. A real capacidade generativa porém tem feito sentir o próprio peso na história, na identificação da idoneidade da cópula conjugal, mas a reflexão dirige-se na linha de constante evolução para a insignificância dos fatores físicos involuntários que não prejudicam radicalmente a realização da “una caro” dos cônjuges de fato estéreis80. 79 Prescindindo das considerações morais, o hiato entre a união carnal sem as núpcias e após-núpcias a não consumação, deixa inalterada a inexistente realização da “una caro” em sentido jurídico, mas para ser convincente obriga a referi-la num contexto onde o dado jurídico (o vínculo conjugal) encontre adequado relevo, qual possível fator inibitório. Sem referência à dinâmica deteriorada por onde o liame conjugal e o seu desenvolvimento exigem a valorização das diferenças na reciprocidade dos sexos (cf. G. Zuanazi, Psicologia …, cit. not. 15, 264), é mais árduo sustentar a relevância da frustrada perfeição pós-nupcial de uma intimidade carnal compreendida em cada precedente caso. Exemplar sobre este ponto é o trabalho do verum semen (e em sentido análogo, sobre a “mulier excisa”), que origina uma práxis disforme na Rota Romana (a ejaculação de verum semen requerer-se-ia, tendo em vista a proibição dos eunucos e espadões casar, contida no Breve Cum Frequenter de Sisto V do 27.6.1587) e na Congregação do Santo Ofício (que não sendo certa a impotência pensava de não impedir o matrimônio a quem fosse organicamente impedido de elaborar semen nos testículos). O debate está condicionado a uma antropologia onde o valor de liberdade que se comunica alcança a posse de órgãos generativos (portanto do semen elaborado nos testículos, no homem; os ovários e o útero, na mulher), enquanto se incide só sobre a esterilidade, Quando é vontade dos cônjuges frustrar o efeito procriativo, tornando seus atos volutariamente infecundos, privados portanto da direção à fecundidade, necessário para a integral doação da sexualidade, a qualidade objetiva não consumativa de tal cópula, não possui idêntica disciplina nem igual tratamento jurídico em todos os casos, devendo-se então distinguir entre as várias modalidades em que a vontade dos cônjuges, ou de um deles, vá prejudicar o processo procriativo na dinâmica do processo copulatório; ambos processos são conexos mas diferentes, também no inseparável liame entre a sua dimensão unitiva e procriativa com relação à função comunicativa da sexualidade conjugal81. Para examinar as modalidades em que a vontade do cônjuge interfere na idoneidade procriativa da união carnal, é necessário, portanto, reportar-se aos elementos do processo copulativo, na sua qualidade interpessoal,. Sobre os aspectos biológicos do processo, não é tão adequada a clássica distinção entre “actio hominis” e “actio naturae”, eficaz no tocante à compatibilidade entre esterilidade e consumação, mas antropologicamente arrojada no reportar ao âmbito da só vontade humana os vários elementos da cópula, isto é, a ereção, a penetração e a ejaculação na vagina (no caso do homem), a recepção e detenção (no caso da mulher). Sabe-se que alguns destes fatores escapam do contrôle voluntário dando lugar, neste caso, a uma incapacidade física objetiva para desempenhar a cópula conjugal, referindo-se portanto ao impedimento de impotência, inseparável em si da não consumação. Na via da reflexão sobre os elementos físicos que lesam radicalmente a realização da “una caro”, a atenção foi-nos levando à 80 porque foge da liberdade dada, quanto por “accidens” sucede (por ex. que o semen esteja carente de espermatozoides). A Congregação para a doutrina da fé resolveu a questão com o conhecido decreto de 13.5.1977 (cf. AAS 69, 1977, 426). 81 Certos casos de voluntária interferência na orientação procriativa da cópula (por ex o ’uso onanístico) estão incluidos entre os casos difíceis (c. 1699 § 2) que requerem antes do processo consulta prévia à Congregação dos Sacramenti, cuja práxis é negar a dispensa, cf. De Processu super matrimônio rato et non consumato, 20.12.1986, em Comunicationes 20, 1988, 79, Suprema Lex Suprema Lex Número 1 – Janeiro/Junho de 2011 Número 1 – Janeiro/Junho de 2011 33 34 fisionomia natural da contribuição funcional requerida a cada cônjuge82, à fisionomia pessoal da ’união carnal, tendo cada vez maior cuidado no tocante à sua qualidade humana, para poder considerá-la cópula perfeita83. As diversas teorias a respeito (generativa, unitiva, saciativa, natural)84, às quais atribui-se o mérito de terem-se esforçado em purificar o dado natural inserindo-o num horizonte personalizante, passam rente a uma prospectiva radicada só no síngulo cônjuge, com prejuizo do caráter interpessoal da cópula. Uma abordagem antropológica mais adequada, requer reportar-se ao âmbito da dinâmica do casal e também ao tema dos elementos físicos do processo copulativo; só assim se supera o risco de atribuir a radical realização da “una caro” a um estático “poder ou querer fazer” antes que a um dinâmico “poder ou querer ser com o outro”85. Nesta prospectiva, antes que só às causas, aos sintomas e aos dados, também a modalidade da cópula refere-se aos mecanismos, às dinâmicas e às relaçoes interpessoais, aspectos imprescindíveis para estabelecer a melhor medida em que os singulares elementos do processo cópulativo estão fora da perfeição própria do encontro carnal e são expressão de um efetivo “não se dar ao outro” 86. Assim, 82 Disto a disputa sobre a penetração requerida (inicial ou total, resolvida julgando suficiente a parcial pelo S. Ofício com decreto do 1.3.1941), a ejaculação (ante portas o intra vaginam) e a idoneidade feminina (com ou sem orgãos pós-vaginais), cf. J. L. López Zarzuelo, o.c. (not .58), 88. 83 Sobre a teoria da “copula perfecta”, cf. P. A. D’Avack, Cause di nullità e di divorzio nel diritto matrimoniale canonico, Firenze, 1952, 300-321. 84 85 A cópula generativa exclui da categoria consumativa a realizada por aquele que padece patologias nos órgãos essenciais para a geração. A unitiva exclui a cópula com ejaculação de líquido não elaborado nos testículos, mas inclui o semen estéril e a carência de útero e ovários. A saciativa exige capacidade de acalmar a concupiscência. A natural exclui a cópula que não seja considerada ato humano. Sobre os representantes das teorias, cf. J. L. López Zarzuelo, o. c. (not.58), 90-91. para uma critica delas, cf. P. A. Bonet, L’impedimento di impotenza … (cit. not.18), 440. Cf. C. Barbieri, Impotenza, em L. Musselli – A. Luzago – C. Barbieri, Psicopatologia … (cit. not. 19), 161 ss; também referentes à impotência, julgo esclarecedoras para o nosso tema as reflexões, aqui propostas, sobre a abordagem de tipo sinótico e ántropo-fenomenológico. 86 O “não dar-se não fundamenta sequer a própria realidade pessoal … sempre interpessoal”, Ib. 166. em tal impostação a liberdade oblativa é verdadeira “actio humana” à qual referir a voluntariedade dos elementos de reciprocidade funcional da cópula em a contribuição física de cada um ao realizar a reciprocidade funcional que torna a cópula “in se” idônea à procriação, por-se-á em relação a evolução psico-sexual dos cônjuges, as modalidades de atuação do encontro interpessoal como e, enquanto também encontro sexual, a multiplicidade de significados atribudos pelos cônjuges à própria relação sexual e às eventuais imperfeições87. Este contexto pode oferecer luzes ao valor da cópula só apositiva, mas com êxito fecundativo; às varias formas de cópula onanística; à fecundação artificial, à cópula intolerável, à cópula extorquida e à cópula sustentada com meios de suporte da vontade. 2.1.3. A questão do “humano modo” Além das mais convincentes abordagens que hoje propõem a sexologia e a psiquiatria88, a prospectiva interpessoal na análise da cópula conjugal é sugerida pelo terceiro requisito normativo, isto é, pelo destaque do modo humano na sua realização 89, para ser qualificada como cópula consumativa. É uma novidade legislativa, cuja fonte direta é a doutrina conciliar 90, mesmo se o problema já fosse modo convincente e menos engenhoso, como parece ao prof. Bonet (cf. L’impedimento … cit. not. 18, 440) a tentativa de Gasparri de incluir entre os atos humanos da doação elementos tais como a produção do verdadeiro semen nos testiculos. 87 Cf. C. Barbieri, Psicopatologia … (cit. not. 84), 199. Isto não compromete a objetiva relevância jurídica de cada tipo de imperfeição do coito no tocante à idoneidade da procriação, mas o difernete destaque subjetivo a respeito da perfeição da “una caro”, pode sugerir uma diversificada abordagem, reportando à exclusão da prole a tenaz cópula com preservativo, à incapacidade a cópula dolorosa e esporádica, porque “pouco importa a penetração se não há intimidade” (cf. G. Zuanazi, Psicologia … (cit. not. 15), 259); reservando à não consumação (ou à impotência, se condições antecedentes e perpétuas) situações mais longínquas da integração sexual intersubjetiva. Sobre os vários tipos de abordagem das problemáticas da sexualidade, sobre os principais autores e sobre a maior atendibilidade dos modêlos que valorizam o “nós” e a co-existencialidade como impostação derivante da psiquiatria entendida como estudo das distorsões antropológicas do ’encontro, cf. C. Barbieri, Impotenza, ... (cit. not. 84), 153-167; id. Personalità … (cit. not. 53), 68-69. 88 89 Sobre a equivalência entre cópula realizada de “humano modo” e cópula interpessoal, cf. P. A. Bonet, L’impedimento di impotenza … (cit. not. 18), 439-440. 90 Os atos íntimos “realizados de modo verdadeiramente humano, favorecem a mútua doação que esses significam e enriquecem reciprocamente em alegre gratidão os próprios esposos” (GS 49). Suprema Lex Suprema Lex Número 1 – Janeiro/Junho de 2011 Número 1 – Janeiro/Junho de 2011 35 36 colocado na reflexão e na práxis precedente, especialmente no tocante às modalidades de cópula, de mais dificil avaliação, às quais nos temos apenas referido91. A interpretação do “humano modo”, numa prospectiva jurídica, está totalmente salda92, mas a sua inclusão no código, não obstante a labuta vivida na sede da reforma93, resolve definitivamente algumas incertezas do periodo precedente. A mais autorizada doutrina identifica quatro tipos de elementos, em medida variada, referentes à liberdade e à comunicação especificamente conjugal que deve sustentar a “modalidade humana” da cópula conjugal94. Como já alguns clássicos mantinham95, a cópula deve ser “actus humanus in se”, isto é, realizada com consciente razão e vontade, pelo que não parece possa-se afirmar que a cópula realizada com meios afrodisíacos que tolhem o uso da razão, mesmo que o recurso a eles seja voluntário, espera-se que se requeira do A qualidade humana da união não altera o caráter não consumativo da cópula apenas aposita e da cópula sem ejaculação na vagina, não obstante, como antes sugerido, a eventual prole concebita (por absorção no primeiro caso; por técnicas fecundativas artificiais, no segundo), torna menos automática a percepção da ausência de realização da “una caro” na econômia do casal. O mesmo se diga da cópula onanística. Ao contrário, a qualidade humana da cópula coloca-se em descontinuidade com o decreto do S. Ofício de 2.2.1949 (cf. Periodica 38, 1949, 220) no qual se negou relevância à utilização de afrodisíacos para o coito, não obstante interferissem no uso da razão, pressupondo portanto que a cópula não é ato humano mas ato do homem. A escola canonística italiana reivindicou a natureza de “ato humano bilateral” da cópula debatendo a capacidade consumativa da cópula “conseguida” com violência (cf. P. Fedele, Problemi, 218-219), especialmente nos casos em que, por ser intolerável à mulher, é possível obtê-la só com intensas dores, que mostram a sua resistência (cf. C. Jemolo, Il matrimônio nel diritto canonico, Milano, 1941, 120). 91 92 93 Por isso o defeito de “humano modo” como motivo de inconsumação entra nos casos dificeis dos quais trata o c. 1699 § 2 segundo a carta circular da Congregação dos sacramentos (cf. not. 80). Cf. J. L. López Zarzuelo, o. c. (not. 58), 110-111. Pode-se considerar doutrina comum a proposta do P. Navarrete antes mesmo do código, cf. U. Navarrete, De notione et effectibus consummationis matrimonii, em Periodica 59, 1970, 636-645. 94 95 Como se deduz da citada c. de Felice (cf. not. 76), muitos autores clássicos requeriam o consentimento para a cópula, em analogia com o consentimento matrimonial, mesmo que em contraste com a maioria (como se deduz pela citada sentença) consideravam insuficiente a cópula “violenter extorta”. agente uma cooperação ativa e imediata96. O segundo elemento, vinculado ao primeiro, é a ausência de violência física e de coação moral que leva à privação da liberdade, como pode acontecer na cópula aversiva porque intolerável97. Em terceiro lugar, a cópula deve ser realizada com “animo maritali”, com advertência, isto é do estado conjugal e sem ser motivada pelos desejos (de ódio ou de vingança) em contraste com o seu significado unitivo98. Enfim, na sede de reforma do código os consultores advertiram que é suficiente a cópula virtualmente voluntária99. Para pronunciar-se sobre a modalidade humana da cópula conjugal, do quanto foi dito, compreende-se que os valores de liberdade e de comunicação interpessoal, mesmo considerados conjuntamente, são diferentemente reduzíveis em termos jurídicos. Ao estabeleceer a eficácia dos atos jurídicos (c. 124), também no âmbito matrimonial (219; 1103) a liberdade é valor mais recorrentemente tomado em consideração, assim aparece mais certa sua existência e importância. Ao contrário, para acrescentar algo à consideração jurídica da “modalidade humana” da cópula que não haja liberdade no seu agir, mais árduo se apresenta o valor da comunicação interpessoal, a ponto de dissuadir100. A dificuldade de redução ao âmbito do direito Por isso de algum tempo se inclui na categoria dos impotentes quem é capaz de coito apenas com anormais excitações ou drogas cf. V. M. Palmieri, Medicina legale canonistica, Napoli, 1955,137. 96 97 Sobre a importância do temor o P. Navarrete distingue entre o “metus” motivo do ato, e o privativo da voluntariedade. Na comissão de reforma do CIC (cf. Communicationes 6, 1974, 191-192) considerou-se não consumativa a cópula “extorta” com violência, enquanto se qualificou diversamente a cópula intolerável, desde que a a mulher consentisse, cf. J. L. López Zarzuelo, o.c. (not. 58), 110. 98 Além disso por ser anormal e carente de naturalidade, pode-se dizer irrelevante para a consumação a cópula realizada com manobras lesivas ou repugnantes para o cônjuge, cf. G. Zuanazi, Psicologia … (not. 15), 257. 99 Cf. Comunicationes 20, 1988, 79. 100 Esta é a opinião redutiva expressa por M. F. Pompedda, studi sul diritto matrimoniale canonico, Milano, 2002, 148, segundo o qual, o modo humano implica a voluntariedade e, consequentemente, a liberdade mas “aqui sob o aspecto jurídico deve-se parar” enquanto “ir além e dar ao modo humano um significado amoroso, oblativo, espiritual ou mais ainda expressão de comunhão de compromisso de vida e de amor significariam Suprema Lex Suprema Lex Número 1 – Janeiro/Junho de 2011 Número 1 – Janeiro/Junho de 2011 37 38 não deixa passar desapercebido que o único elemento de liberdade não responde totalmente ao sentido que o humano modo possui na doutrina conciliar, isto é, de favorecer a recíproca e alegre doação dos cônjuges101. Neste sentido, e sem confundir os planos, o direito tem necessidade da contribuição da medicina canônica, na qual aparece mais evidente que a cópula, mesmo se livre e fisiologicamente adequada, não se pode dizer conjugal se estiver privada do significado pessoal do relacionamento conjugal. O compromisso para não trair o significado jurídico da ’indissolubilidade e da consumação102, não significa que estes conceitos sejam totalmente impermeáveis aos resultados científicos que demonstram o grau da existência de meccanismos que, desde o primeiro encontro sexual, deixaram a união carnal do casal carente totalmente de fecundo e gratificante diálogo genital103. 2.2. A posição jurídica subjetiva oriunda da não consumação As reflexões desenvolvidas recolhem os mais importantes elementos que a abordagem dos conceitos “casal conjugal” e “não ir de encontro à dificuldade de determinar se, condições tão íntimas e psicológicas sejam ainda jurídicamente pesquisáveis e … relevantes”. Para a doutrina, cf. L. Sabbarese, Il matrimônio canonico nell’ordine della natura e della grazia, Roma, 2002, 157. Análogo é o conceito de uma minoria mas respeitável jurisprudência sobre a “impotentia coeundi in matrimônio” (cf. c. Serrano, sent. diei 14.12.1979, em SRRD 61, 569 ss.), observando a necessidade de prestar atenção à ordenada vida sexual e não só à incapacidade absoluta para realizar a cópula, desconhecendo as graves dificuldades inerentes a uma não impossível relação sexual, longe porém de constituir momento de união e fonte de tensões ou rompimentos, 101 102 A fideldade à dimensão jurídica do vínculo indissolúvel assumida no pacto conjugal, sem ceder a arbitrárias interpretações sobre a felicidade pessoal e a gratificação sexual foi solicitada por Bento XVI no recente discurso aos membros da Rota (cf. not. 74). Para as teorias sobre a indissolubilidade como ideal e a consumação espiritual e progressiva, cf. E. López Azpitarte, o.c. (not. 7), 325-332; A. D’Auria, Il matrimônio nel diritto della Chiesa , Roma, 2003, 337. 103 Cf. G. Zuanazi, Psicologia … (cit. not. 15), 258. Sem arriscar a inclusão da recíproca “sedatio concupiscentiae” no conceito de consumação, a medicina canônica ajudará a avaliar o real efeito consumativo no casal de formas de junção frustrantes psicologicamente. consumação” sugere em relação à atualidade e às prospectivas da medicina canônica. O discurso porém estaria ainda incompleto se não se fizesse menção das consequências jurídicamente anexas à “não consumação”, onde a dinâmica do casal conjugal e a contribuição da ciência devem-se reportar proficuamente à disciplina canônica. Neste sentido e com estes limites determinados, referimo-nos agora à expectativa que deriva da “não consumação” e à interpretação do tipo de intervenção prevista pela dissolução do vínculo. 2.2.1. A expectativa pessoal ou comum O matrimônio validamente celebrado sendo intrínsecamente indissolúvel, a “não consumação” configura um posicionamento jurídico nos cônjuges que não está correto qualificar como direito subjetivo à dissolução, isto é como pretensão devida e a ser perseguida judicialmente104. Além do mais, o fato da não consumação não constitui causa para iniciativas avulsas do querer dos cônjuges (c. 1697), nem mesmo nos já estreitos limites da ação de nulidade matrimonial pertencentes ao promotor de justiça (c. 1674). A importância e os limites inerentes à vontade dos cônjuges, protagonistas de um matrimônio carente de consumação, colocam sua posição jurídica no tocante ao âmbito das justas pretensões derivantes da inadequada condição jurídica de fiéis, inseridos no estado conjugal e obrigados a um vínculo recíproco. Esta inadequação, como em outras expectativas análogas, o ordenamento permite prover para sanear com uma medida de graça, idônea a tutelar o bem das pessoas, sem danificar a comunidade105. Interessa notar que a iniciativa para requerer a graça, pela relevância que no nosso artigo o adquire a dinâmica do casal conjugal, pode 104 105 Para qualquer um, a existência do poder de dispensa por inconsumação, cria o direito subjetivo de apresentar a súplica para tratar o seu caso (cf. W. H. Woestman, Respecting Petitioners Right to Dissolution Procedures, em The Jurist 50, 1990, 342 ss.), mas o direito subjetivo (libertação do impedimento de vínculo) surge só pela dispensa e não pela inconsumação em si (cf. B. Marqueta, Scioglimento del matrimônio canonico per inconsumazione, Padova, 1981, 9. Cf. M. J. Arroba Conde, Diritto processuale canonico, Roma, 2006, 34. Suprema Lex Suprema Lex Número 1 – Janeiro/Junho de 2011 Número 1 – Janeiro/Junho de 2011 39 40 não ser comum, mas interesse de um só dos cônjuges, mesmo com a oposição do outro, tanto por contradizer o fato da “não consumação”, como por enfrentar expectativas compatíveis com a manutenção do vínculo (c. 1697). Tenha-se presente que a expectativa deriva somente da inconsumação e não da causa que a tenha provocado. A reta compreensão da causa porém é indispensável, tanto para elucidar versões contrastantes na advinda mudança física entre os cônjuges, como também, para enfrentar com realismo as suas eventuais discrasias sobre as possibilidades de proseguir a vida matrimonial e aperfeiçoa-la com um elemento assim essencial e insubstituível, antes frustrado. O auxílio da medicina canônica parece precioso para ambas avaliações, se adequadamente centrado na economia do casal.106. 2.2.2. O poder de dispensa pontifícia por justas causas Não obstante as propostas, enviadas à sede da reforma do código, para confiar aos bispos a solução destes casos, manteve-se a reserva pessoal ao Papa de poder dissolver o matrimônio rato e não consumado (c. 1698 § 2) em virtudde do seu “poder vicário”. Esta expressão destina-se a sublinhar que o poder papal não se baseia no seu ofício de poder pessoal supremo na Igreja, mas enquanto “Vigário de Cristo”, querendo assim ressaltar que na circunstância o Romano Pontífice age em nome de Deus, tratando-se de matéria que diz respeito ao direito divino107. Concretamente, a medida de graça predisposta para sanar a inadequação pessoal e existencial que a não consumação coloca a condição jurídica do fiel validamente casado, é configurada como uma “dispensa”, vale dizer, uma isenção da lei da indissolubilidade, em razão da falta absoluta de tal propriedade essencial, quando não interveio a consumação. À dispensa se prova, não arbitrariamente, mas, conforme critérios de oportunidade (c. 1704 § 1) e só por justas causas, este requisito incide na valididade da própria dispensa (c. 90). Neste sentido é justo achar que a dispensa, assim como não está nas mãos das partes a dissolução do vínculo, não se pode dizer nem mesmo da disponibilidade absoluta do Papa, se por esta se entende a possibilidade de concessão inoportuna ou carente de causas justas108. Por esta razão é lícito pensar que a análise de oportunidade, mas sobretudo o exame rigoroso da “justa causa”, no singular caso, evoca o peso da história do casal, só aparentemente sacrificado pelo reconhecimento a um só dos cônjuges pela ’iniciativa de pedir a dispensa. De fato, sempre dentro da ótica da “salus animarum”, como justa causa que engloba as outras109, a jurisprudência e a doutrina indicam uma série de motivos idôneos para a concessão, que na sua entidade, reportam-se à solidez da ’união interpessoal. A análise mostra que as causas justas pressupõem um grave compromisso da possibilidade de integração futura entre os cônjuges. As mais comumente consideradas são a possível impotência sobrevinda às núpcias; a aversão recíproca e a perda da convivência harmônica, tornada insanável; o divórcio civil já obtido e o sucessivo matrimônio desejado com uma terceira pessoa; a enfermidade que de fato tenha 108 106 107 O n. 4 da Carta Circular (cf. not. 80) impõe que antes de iniciar o processo os cônjuges sejam encorajados à reconciliação. Neste sentido, a prévia intervenção do perito ajudaria a inserir mais idoneamente a iniciativa do orador no âmbito “verificativo” do processo eclesial, valorizando a consistência ontológica do vínculo existente e estudando o significado que assume o fato da não consumação na realidade do casal, cf. C. Barbieri, Impotenza … (cit. not. 84), 167. Com diversas interpretações, os autores coincidem no considerar a especialidade deste poder e a sua extraordinária aplicação. para uma explanação das várias teorias, cf. R. Burke, Il processo di dispensa dal matrimônio rato e non consumato: la grazia pontificia e la sua natura, em AA. VV., I procedimenti speciali nel diritto canonico, Città del Vaticano, 1992, 135-144), A lei prevê que, em caso de dúvida na justa causa, a dispensa é válida (c. 90 § 3), mas para a gravidade da matéria implicada na dispensa “super rato”, duvida-se quanto à aplicabilidade desta cláusola, cf. G. Casoria, De matrimônio rato et non consumato, Romae 1959, 200. 109 Sendo ato administrativo, a causa de interesse pessoal para a dispensa é medida também pelo interesse geral da Igreja, que segundo algum autor consiste no manter em vida matrimonial os expostos ao “periculum incontinentiae et animae”, cf. E. Mazacane, La iusta causa dispensationis nello scioglimento del matrimônio per inconsumazione, Milano, 1963, 4 ss. Sobre a diferente relação entre interesse privado e público estruturante do poder administrativo e judiciário, cf. M. J. Arroba Conde, Apertura verso il processo amministrativo di nullità matrimoniale e diritto di difesa delle parti, em Apollinaris 85, 2002, 747-754. Suprema Lex Suprema Lex Número 1 – Janeiro/Junho de 2011 Número 1 – Janeiro/Junho de 2011 41 42 impedido ou desaconselhado a união carnal; a possível nulidade do matrimônio110. Na pesquisa da justa causa, mesmo sendo elemento que a avaliação compete somente à autoridade que decide, com prévio juízo da autoridade a quem compete a instrução do caso111, não está excluida, porém, a ajuda da medicina canônica; ou melhor, este suporte parece útil para a referência de fundo à dinâmica de encontro dual, que deve estar gravemente comprometida, mesmo sua projeção de futuro, sem olhar só o dado passado da não consumação, mesmo potencialmente causante da distorcida integração do casal112. 2.3. Procedimentos de averiguação Como últimas considerações na nossa reflexão, propomos alguns pontos de interesse inerentes aos procedimentos de averiguação da “não consumação”, à qual está subordinada à existência das justas causas para a dispensa. Sobre o ponto, a importância concreta do casal cônjugal e a contribuição da medicina canônica está disciplinada de maneira articulada e diversificada. 2.3.1. Procedimento judiciário e administrativo Uma primeira diferença provém da modalidade diferente em que se põem o protagonismo do casal e a contribuição médica, conforme a iniciativa para prover a solicitação da dispensa, seja autonomamente manifestada ou, vice-versa, detecta-se no decorrer de um processo Para uma detalhada análise, cf. J. L. López Zarzuelo, o.c. (not. 58), 118-122. 110 Cf. cc. 1698 § 1; 1704, § 1. Quando o procedimento super rato advem por suspensão do processo judiciário de nulidade matrimonial, compete ao colégio dar um voto antes de transmitir os atos ao bispo diocesano, cf. Dignitas Connubii, art. 153, par. 3. Sobre os vários elementos da passagem cf. O. Butinelli, Il procedimento di dispensa dal matrimônio rato e non consumato: la fase davanti al vescovo Diocesano, em AA.VV., I procedimenti speciali … (cit. not.105), 115 ss. 111 112 A eventual intervenção de um perito para investigar o fato e as causas da inconsumação pode estender-se à possibilidade de parecer sobre a existência da causa justa com base no c. 212 § 3. de nulidade onde emergem dúvidas sobre a consumação. Como já foi dito, para iniciar o procedimento autônomo de dispensa “super rato”, é suficiente o pedido de um só dos cônjuges, mesmo que o outro se oponha (c. 1699, § 1). A súplica deve ser fundamentada, mesmo porque não se trata de reivindicar um direito subjetivo, este requisito coloca-se em termos mais coativos em relação ao libelo introduzido para a ação de nulidade matrimonial113; mas contra a rejeição da súplica por parte do bispo diocesano pode-se recorrer à Sé Apostólica (c. 1699 § 3)114. Ao contrário, para passar do procedimento judicial de nulidade ao administrativo, por causa das dúvidas surgidas sobre a consumação do matrimônio, é necessário o consentimento de ambos os cônjuges, porque pelo direito ao processo judiciário e pela sucessiva litispendência origina-se o direito subjetivo de obter sentença, mesmo se faltar o consentimento de uma das partes, fica apenas o dever de admonestá-la sobre as consequências da sua recusa. 115. 2.3.2. A prova pericial A dúvida sobre a consumação do matrimônio, de cuja validade se discute, frequentemente, emerge no curso das investigações periciais desenvolvidas nas causas em que o direito exige a intervenção do perito em ciências psíquicas (c. 1680)116. Quando o motivo de nulidade objeto da causa não requer “ex lege” a interveção periSobre o “fumus”, o c. 1699 requer o fundamento da súplica, enquanto o c. 1505 restringe à “patente falta de fundamento” a rejeição do libelo, cf. M. J. Arroba Conde, Diritto … (cit. not. 104), 333. 113 114 Sendo maior a discricionalidade da autoridade no acolher a questão, como é maior a exigência de demonstrar o fundamento na súplica, nada exclui de obter antes o parecer médico, para aprovar o motivo da rejeição, tanto no tocante à não consumação, como a respeito das causas justas e a oportunidade; nada impede nem mesmo de confiar-lhe um trabalho de investigação e orientação análoga ao do “iuris perito” do qual c. 1701 § 2. Cf. Dignitas Conubii, art. 153 par. 4. 115 116 Cf. M. J. Arroba Conde, La prova peritale e le problematiche processualistiche, em AA.VV., La capacità di intendere e di volere nel diritto matrimoniale canonico, Città del Vaticano 2000, 383 ss. Suprema Lex Suprema Lex Número 1 – Janeiro/Junho de 2011 Número 1 – Janeiro/Junho de 2011 43 44 cial117, a dúvida sobre a consumação, emerge nas outras provas, sugere-se portanto servir-se delas, para melhor enfrentar as diversas circunstâncias referentes à passagem da causa ao trâmite administrativo “super rato”. Entre estas circunstâncias reveste-se de muito interesse a eventual negativa de um dos cônjuges para investigar o novo trâmite, onde o perito pode dar uma enorme contribuição para enfrentar a sensação de desvalorização pessoal que acompanha o admitir da não consumação, para sobressair os mecanismos de simulação e de remoção dos eventos frustrantes, e para redimensionar o possível incômodo inerente aos meios de prova a serem utilizados para os novos limites a serem indagados118. O argumento moral é considerado de superior importância na investigação da “não consumação”, 119 visto o aumentado valor hoje reconhecido às declarações das partes (c. 1679)120, na mais comum convicção dos autores, exceto quando for possível e útil a inspeção física da mulher. Isto não significa que a investigação pericial de natureza psíquica perca destaque, tanto como elemento de sustentação para valorizar a credibilidade das declarações das partes (c. 1536 par. 2), como sobretudo para a mais prudente individualização da inconsumação em si, nos seus vários componentes e modalidades. No tocante ao argumento físico, é o caso de recordar os limites que comporta, no mérito da prova da não consumação, a investigação da integridade himenal, tanto para a possibilidade de defloração sem cópula, como também para o eventual coito sem defloração, 117 Penso que a pericia psíquica seja sempre útil como meio mais qualificado para prover o estudo da personalidade, muito necessário nas causas matrimoniais, qualquer seja o motivo de nullidade aduzido, fundamentando-se no establecido no c. 1527, sobre o princípio de liberdade das provas, e o c. 1536, sobre os elementos confirmativos pelas declarações das partes se forem prova única. Sobre alguns destes elementos, cf. C. Barbieri, Simulazione e dissimulazione di patologia psichica, em L. Musselli–A. Luzago–C. Barbieri, Psicopatologia… (cit. not. 19), 271 ss. 118 Para uma resenha de sentenças neste sentido, cf. J. L. López Zarzuelo, o.c. (not. 50), 206-219. hipotizavel também após o parto121. Neste sentido, a existência de eventuais documentos sobre a integridade fisica da mulher requerem de qualquer maneira um verdadeiro controle de tipo canônico, isto é a avaliação técnica e a jurídica não sendo automaticamente assimiláveis, como em outros âmbitos da pericia ginecológica.122. Neste sentido é evidente a importância maior que pode revestir-se, na maioria dos casos, a investigação pericial de tipo psíquico, possivelmente sobre ambos os cônjuges, para conseguir identificar o peso dos fenômenos psíquicos na conduta não consumativa, colocando a atenção principal na história do casal e na dimensão relacional em que a radical imperfeição da integração sexual estiver consolidada123. Tudo isto ajudará a aperfeiçoar também a modalidade da concessão da dispensa, se provada a inconsumação e a causa justa, isto é, em mérito à possibilidade de contrair novas núpcias, a aposição de eventuais cláusulas anexas, com o relativo procedimento para removê-las124. Breves observações conclusivas Ao terminar nosso artigo, sem ter que repetir as indicações desenvolvidas no seu decorrer, parece-nos poder afirmar que a disciplina da Igreja sobre o valor do matrimônio, à luz da centralidade que reveste no seu surgir e no seu aperfeiçoamento da doação interpessoal dos cônjuges, não possa não se encarregar, também das hipóteses de não consumação, desta centralidade, enriquecendo a própria práxis 121 Cf. G. Zuanazi, Psicologia … (cit. not. 15), 259. para uma detalhada bibliografia sobre este ponto a nivel sexológico e de medicina canônica, cf. C. Barbieri, Impotenza … (cit. not. 84), 205-207. 122 119 120 Cf. M. J. Arroba Conde, Le dichiarazioni delle parti nelle cause di nulltà matrimoniale, em J. E. Villa–C. Gnazi (organizadores), Matrimonium et Ius.Studi in onore del Prof. S. Villeggiante, Città del Vaticano, 2006, 219-255. 123 Para o caso de disparidade de opiniões entre a abordagem médica e a jurídica quanto à impotência feminina, em bases de uma pericia ginecológica, cf. Tribunal de Primeira Instância do Vicariato de Roma, sent. c. Arroba Conde, 19.2.1994, em Il diritto ecclesiastico 106/II, 1995, 104-113. Cf. Barbieri, Impotenza … (cit. not. 84), 199-201. 124 Dependendo da causa da não consumação, a dispensa pode ser concedida sem cláusulas anexas, com cláusulas “ad mentem” e com “vetitum” de novas núpcias; sobre o ponto, cf. J. L. López Zarzuelo, o. c. (not. 50), 291-332. Suprema Lex Suprema Lex Número 1 – Janeiro/Junho de 2011 Número 1 – Janeiro/Junho de 2011 45 46 O alcoolismo e o sacramento do matrimônio com o auxílio da medicina canônica, antropologicamente orientada de modo correto e tecnicamente atualizada, especialmente nos resultados inerentes à dimensão e experiência imprescindível do encontro interpessoal, no qual se enquadra o argumento que nos ocupou. A contribuição, concretamente, da medicina canônica sobre este ponto, libertando-se dos reducionismos que podem confiná-la quase exclusivamente ao âmbito das investigações de tipo físico e sexológico, situa-se sobretudo, hoje, na melhor compreensão das três fontes, normativamente reconhecidas como bases da “não consumação”, mas também sobre a qualidade complexa, isto é, a realização da “una caro”, que caracteriza o encontro sexual conjugal. Não de menor importância e atualidade aparece o contributo que pode oferecer a medicina canônica no desenvolvimento do processo, tanto no investigar a causa da não consumação, no sustentar e orientar a participação das partes, como também no suportar o juizo que compete à autoridade ecclesiástica no mérito da existência da justa causa para a dispensa, às eventuais clausulas a serem incluidas e a possível superação das mesmas para passar a novas núpcias . Pe. Dr. Paulo Afonso Alves Sobrinho1 INTRODUÇÃO Todo sacramento tem suas raízes no mistério pascal de Cristo e no dom de seu Espírito para a santificação de uma situação humana e vocacional. “O sacramento do matrimônio diz respeito ao amor entre o homem e a mulher, que é elevado à condição de sinal e transfigurado pelo amor de Deus revelado em Jesus e na Igreja”2. “Como instituição natural, o matrimônio já tem origem divina. Mas Cristo não somente reconduz o matrimônio ao seu projeto original, com as características próprias da unidade e da indissolubilidade, como também faz o amor do homem e da mulher participar do mistério de graça que dele flui na Igreja, elevando assim o matrimônio à dignidade de sacramento da nova aliança”3. “Há condições básicas que podem facilitar a recepção. Aqui abordaremos a questão das patologias que podem-se constituir até em impedimentos para uma recepção válida dos Sacramentos. Para nosso trabalho a atenção estará mais voltada para o sacramento do Matrimônio”4. A grande dificuldade para as ciências da saúde é saber quando o indivíduo é normal ou anormal, quando o indivíduo se encontra no limiar de uma disfunção. 1 Professor do Instituto de Direito Canônico “Pe. Dr. Giuseppe Benito Pegoraro” Vigário Judicial Adjunto do Tribunal de Apelação de São Paulo - SP. 2 ROCCHETTA, C. Os Sacramentos da Fé, São Paulo: Paulinas, 1991, p. 413. 3 Ibid., p. 426. 4 SEGÚ GIRONA, M. Apostilas de Direito Matrimonial, São Paulo: Unifai, 1999, p. 03. Suprema Lex Suprema Lex Número 1 – Janeiro/Junho de 2011 Número 1 – Janeiro/Junho de 2011 47 48 Segundo Cifuentes, “os mais recentes estudos sobre o ser humano revelam principalmente a existência de uma unidade psicossomática e de uma interdependência entre o homem e o seu meio”5. Para Cifuentes, “é muito difícil falar de perturbações puras da inteligência ou da vontade. A decisão parte do Eu como de um todo, sem poder determinar com absoluta claridade, a parte que corresponde à inteligência, à vontade, à afetividade ou à influência psico-social”6. Para Faílde, “la visión de la persona humana es necesariamente de orden metafísico porque sólo la metafísica está en condiciones de descubrir el misterio del hombre en su totalidad de ser espiritual corpóreo”7. “Nosso Legislador é sensível, como não poderia deixar de ser, a tudo que atinge seu rebanho. Por isso que no Ordenamento Jurídico acolhe as possíveis disfunções patológicas e desvia as que atingem a humanidade, tornando seus portadores, dependendo da gravidade hábeis ou inábeis para determinado ato. Assim, por exemplo, no tocante ao matrimônio, coloca como um dos possíveis vícios de consentimento o cânon 1095”8. O cânon 1095 surgiu com a reforma do Código de 1917, para adaptar as leis da Igreja à doutrina do Concílio Vaticano II, sob cuja luz, diz o Papa João Paulo II, deve o novo Código ser interpretado 9. “No Código de 1917, nas causas matrimoniais, já se admitia o recurso à perícia psicológica ou psiquiátrica, a fim de possibilitar julgamento mais adequado, quando se vislumbrava, num dos cônjuges, sintomas 5 CIFUENTES, R.L. Novo Direito Matrimonial Canônico, Rio de Janeiro: Marques Saraiva, 1988, p. 305. 6 Ibid., p. 305. 7 GARCÍA FAÍLDE, J. J. Trastornos psíquicos y nulidad del matrimonio, Salamanca: Publicaciones Universidad Pontificia, 1999, p. 183. 8 SEGÚ GIRONA, M. op. cit., p. 07. 9 Constituição Apostólica de Promulgação do Código de Direito Canônico, São Paulo: Loyola, 1983, p. 9. de doenças psíquicas ou psicológicas, designadas então pelo nome genérico de demência”10.11. Quando provada a falta de capacidade para o consentimento, o Matrimônio é considerado nulo, por falta de capacidade12. Martín diz que: “el nuevo Código de Derecho Canónico pone las cosas en claro al considerar como autónomos y diversos entre sí los tres supuestos del c.1095”13. Segundo Luigi Chiappetta, “La capacità naturale e giuridica dl soggetto è il presupposto essenziale per poter contrarre matrimonio validamente. La capacità naturale è determinata dalle condizioni soggettive dei contraenti; quella giuridica dalla legge, e consiste nel possesso dei requisiti prescritti”14. “Sendo que o consentimento matrimonial para ser válido não pode contar nenhum vício, sentimos a necessidade de expôr sinteticamente o que entendemos por consentimento matrimonial”15. O consentimento para ser válido só pode ser dado por pessoas hábeis e não pode ser suprido por nenhum ser humano. Nenhum ser humano, qualquer que seja a sua autoridade, pode dar o consentimento em lugar de outro. O consentimento não pode ser dado 10 MOTTA, J.B. Casamentos Nulos na Igreja Católica – Nova dimensão explícita do atual código de Direito Canônico (cânon 1095), Rio de Janeiro: Forense, 1995, p. 20. 11 MOTTA, J.B. op.cit., p. 20: “O cânon 1.792 do Código de 1917, como parte do Capítulo III do livro IV, De processibus, prescrevia, de modo genérico, para melhor julgamento das causas o uso da perícia, e o cânon 1.982 determinava a perícia para examinar a validade de consentimento” 12 Cânon 1095: “Sunt incapaces matrimonii contrahendi: 1º qui sufficienti rationis usu carent; 2º qui laborant gravi defectu discretionis iudicii circa iura et officia matrimonialia essentialia mutuo tradenda et acceptanda; 3º qui ob causas naturae psychicae obligationes matrimonii essentiales assumere non valent”. 13 MARTÍN, L.G. La incapacidad para contraer matrimonio, Salamanca: UPS, 1987, p. 20. 14 CHIAPPETTA, L. IL Matrimonio – Nella nuova legislazione canonica e concordatária, Roma: Edizioni Dehoniane, 1990, p. 904. 15 SEGÚ GIRONA, M. op. cit., p. 09. Suprema Lex Suprema Lex Número 1 – Janeiro/Junho de 2011 Número 1 – Janeiro/Junho de 2011 49 50 por outro, “a não ser que se tenha mandato procuratório” os Romanos já diziam “consensus facit nuptias”17. 16 . Porque Fornés afirma, “quiere ello decir que solamente el consentimiento de los contrayentes hace el matrimonio; y que este consentimiento no puede ser sustituido por nadie; por ningua autoridad religiosa o civil, ni por los padres u otras personas”18.Casar-se é estabelecer uma união com outra pessoa e criar uma nova situação de direito e dever. Nenhuma terceira pessoa pode jamais tentar impor tal relacionamento sobre alguém que não o deseje. Por isso, o consentimento é o elemento interno indispensável para criar-se o vínculo matrimonial. Uma vez expresso, um consentimento válido não pode ser retirado. Cifuentes declara que: “O centro medular do consentimento é a vontade. O c. 1057 § 2 não dá lugar a dúvidas quando diz que “o consentimento é um ato de vontade”. Portanto pareceria, em princípio, que os vícios do consentimento se reduziriam àqueles que viessem a desvirtuar a vontade propriamente dita. Mas devemos compreender que a vontade, como faculdade humana, está em dependência da personalidade toda”19. Por isso, nosso Legislador diz que para contrair matrimônio validamente, os nubentes devem consentir livremente; “O matrimônio é produzido pelo consentimento legitimamente manifestado entre pessoas juridicamente hábeis, e esse consentimento não pode ser suprido por nenhum poder humano”20, e continua afirmando que: “O consentimento matrimonial é o ato de vontade pelo qual o homem e a mulher, por aliança irrevogável, se entregam e se recebem mutuamente para constituir matrimônio”21. Capparelli ao expor, exegeticamente, os conteúdos de texto legal assegura que, “fica claramente enunciado que o matrimônio surge com o consentimento”22. E Sambrizzi ao citar Aznar Gil diz que, “la única causa eficiente del matrimonio es el consentimiento de dos personas, es su elemento creador y, en consecuencia, tiene un carácter insustituible”23. Mas o consentimento matrimonial “pode ser manifestado acompanhado de anomalias que os autores as qualificam de vícios de consentimento, contemplados no novo Ordenamento Jurídico no Capítulo IV do Livro IV”24. Segundo Sambrizzi, “no deben existir impedimentos dirimentes que impidan a los contrayentes casarse, debiendo éstos, asimismo, gozar de la suficiente aptitud subjetiva para prestar consentimiento para el matrimonio”25. Desejamos abordar o tema de capacidade e analisá-lo sob os aspectos psicológicos e da Legal Medicina Canônica. Sendo que, “a lei canônica assimilou, dessa maneira, o progresso científico dos últimos anos, o que muito contribuiu para aprofundar o conhecimento da pessoa, bem como o seu respectivo grau de amadurecimento”26. 16 SEGÚ GIRONA, M. op. cit., p. 09. 17 Cânon 1105: “§ 1. Ad matrimonium per procuratorem valide ineundum requiritur: 1º ut adsit mandatum speciale ad contrahendum cum certa persona; 2º ut procurator ab ipso mandante designetur, et munere suo per ipse fungatur. § 2. Mandatum, ut valeat, subscribendum est a mandante et praeterea a parocho vel Ordinario loci in quo mandatum datur, aut a sacerdote ab alterutro delegato, aut a duobus saltem testibus: aut confici debet per documentum ad normam iuris civilis authenticum. § 3. Si mandans scribere nequeat, id in ipso mandato adnotetur et alius testis addatur qui scripturam ipse quoque subsignet; secus mandatum irritum est. § 4. Si mandans, antequam procurator eius nomine contrahat, mandatum revocaverit aut in amentiam inciderit, invalidum est matrimonium, licet sive procurator sive altera pars contrahens haec ignoraverit”. 20 Cânon 1057 § 1. 21 Cânon 1057 § 2. 22 CAPPARELLI, J.C. Manual sobre o matrimônio no direito canônico, São Paulo: Paulinas, 1999, p. 91. 23 SAMBRIZZI, E. A. El consentimento matrimonial, Buenos Aires: Abeledo-Perrot, 1995, p. 32. 24 SEGÚ GIRONA, M. Os vícios de consentimento matrimonial e o cânon 1095 do novo Código de Direito Canônico de 1983. Revista de Cultura Teológica, São Paulo: Paulinas, 2004, p. 135-162. 18 FORNÉS, J. Derecho Matrimonial Canónico, Pamplona: Tecnos, 1999, p. 91. 25 SAMBRIZZI, E. A. El consentimento matrimonial, Buenos Aires: Abeledo-Perrot, 1995, p. 32. 19 CIFUENTES, R.L. op.cit., p. 304. 26 CAPPARELLI, J.C. op.cit., p. 93. Suprema Lex Suprema Lex Número 1 – Janeiro/Junho de 2011 Número 1 – Janeiro/Junho de 2011 51 52 E por isso que no nosso Ordenamento Jurídico aparecem sinteticamente as anomalias ou incapacidades consensuais. Ortiz diz claramente o que entende por capacidade jurídica matrimonial quando afirma: “La capacidad jurídica matrimonial la tiene todo hombre, varón o mujer, en cuanto titular del ius connubii, derecho humano, pero también derecho fundamental del fiel que forma parte del derecho a la libre elección de estado (c.219)”27. E Cifuentes aborda a incapacidade que podem afetar o próprio consentimento matrimonial ao dizer: “a incapacidade de que se trata aqui afeta precisamente a fonte natural do consentimento, isto é, a aptidão psíquica de entender, querer e agir”28. Alarcón e Navarro-Valls constatam, por sua vez, que um indivíduo tendo chegado ao uso da razão pode ser portador de certas anomalias, quando afirmam: “La persona que ha alcanzado la edad en que se le atribuye por la ley uso de razón puede estar afectada por anomalías psíquicas que ofrecen una gran diversidad atendiendo a su origen, a la permanencia, a su evolución, a la facultad principalmente afectada, a la incidencia sobre la personalidad del sujeto y sobre su comportamiento, con una abundancia de matices no siempre bien precisados y explicados ni por la Psicología, ni por la Psiquiatría” 29. Estes autores citam Aisa Goñi ao apresentar os quatro grupos que podem definir uma possível nulidade matrimonial e consequentemente o consentimento estar viciado. Os autores apresentam os fatores que podem viciar um consentimento se estiverem presentes no momento exato de consentir. Estes são: as psicoses, as neuroses, as personalidades psico-práticas e os transtornos qualificados de ocasionais. 27 ORTIZ, J.F. La Capacidad para el consentimento válido y su defecto (1095). El Matrimonio y su Expresión canónica ante el III Milenio – X Congreso Internacional de Derecho Canónico, Pamplona: Eunasa, 2000, p. 859-872. 28 Ibid.,p. 306. 29 ALARCÓN, M.L. e NAVARRO-VALLS, R. Curso de Derecho Matrimonial Canónico y Concordado, Madrid: Tecnos, 1994, p. 150. Quanto às psicoses assim descrevem este quadro clínico genérico: “Psicosis. Que son aquellos trastornos mentales tan acusados que convierten al individuo aquejado en un ser socialmente incompetente, irresposable, gravemente inadaptado y que tiene gravemente alteradas sus funciones intelectuales y emocionales. Entre las psicosis endógenas o constitucionales se señalan la esquizofrenia, la paranoia, las psicosis maniaco-depresivas, la epilepsia; entre las adquiridas o exógenas se mencionan las toxicofrenias, las psicosis traumáticas, las psicosis sifilíticas, etcétera”30. As neuroses são assim descritas por estes autores: “Neurosis. Con cuyo término se señala normalmente una disfunción psicógena cuyos síntomas son la expresión de un conflicto psíquico interno y la manifestación de defensa contra la angustia que procede de ese conflicto interior. Entre las distintas neurosis cabe señalar: la neurastenia, cuyo síntoma predominante es la fatiga crónica con dificultad para fijar la atención, gran irritabilidad; la psicastenia, entre la que cabe destacar la neurosis obsesiva; los estados histéricos, en los que se da a veces un fuerte egocentrismo y una exagerada emotividad”31. Um 3º fator que pode viciar o consentimento é atribuído à personalidade psicopática. “Se trata de un desequilibrio cuantitativo de la personalidad, mientras que en las psicosis y neurosis se trata de un desequilibrio cualitativo. En las personalidades psicopáticas predomina de modo excesivo y anormal alguno de los componentes de la personalidad llegándose a distinguir diez tipos de psicópatas: hipertímicos, depresivos, inseguros, fanáticos, irritables, volubles, anéticos, histriónicos, esquizoides e inmaduros”32. Um quarto fator que pode influenciar gravemente o consentimento é qualificado de T.O que são assim descritos: “Trastornos ocasiona30 ALARCÓN, M.L. e NAVARRO-VALLS, R. op.cit., p. 150. 31 Ibid., p. 150. 32 ALARCÓN, M.L. e NAVARRO-VALLS, R. op.cit., p. 150. Suprema Lex Suprema Lex Número 1 – Janeiro/Junho de 2011 Número 1 – Janeiro/Junho de 2011 53 54 les. Que se refieren a aquellas personas que, sin tener propiamente una anomalía estable de su psiquismo, por una circunstancia accidental y episódica pueden verse en un estado de ánimo idéntico al que resulta de una auténtica anomalía psíquica; pensemos, por ejemplo, en el caso no infrecuente de un miedo intrínseco y la subsiguiente conmoción de todo el psiquismo”33. Fornés citando Viladrich assim nos fala, “que estos trastornos mentales no son la causa directa de la nulidad del matrimonio, sino que la causa, en Derecho, es la propia incapacidad para el consentimiento”34. “Las enfermedades mentales y los trastornos psíquicos son datos de hecho, supuestos variadísimos, que pueden producir o no, dependerá de los casos; una verdadera incapacidad para consentir”35. Segundo Alarcón e Navarro-Valls estas, “anomalías afectan de modo peculiar al consentimiento matrimonial en vista de que se trata de un negocio jurídico constitutivo de una especial comunidad de vida entre dos personas, plena, indisoluble y ordenada al bien personal de los cónyuges y la procreación”36. A incapacidade consensual é definida e acolhida pelo nosso legislador no Cap. IV do Livro IV no Código Latino cc. 1095-1107 e no Código Oriental no Título 16, Artigo IV de Conselho Matrimonial conforme os cc. 817-827. Nesse trabalho, após esta visão de conjunto dos vícios que podem estar presentes na hora exata ou, mais precisamente, no momento exato de externar o consentimento matrimonial deseja analisar e aprofundar os conteúdos do cânon 1095 que incapacita a seus portadores de contrair matrimônio válido, pois nosso legislador diz explicitamente: “Sunt incapaces matrimonii contrahendi: 1º qui sufficienti rationis usu carent; 2º qui laborant gravi defectu discretionis iudicii circa iura et officia matrimonialia essentialia mutuo tradenda et acceptanda; 3º qui ob causas naturae psychicae obligationes matrimonii essentiales assumere non valent”37 e no Código Oriental: “Sunt incapaces matrimonii celebrandi”38. Daí o tema da incapacidade para contrair matrimônio. Este tema é antigo, principalmente no tocante ao mínimo de maturidade exigida para contrair matrimônio válido. Alarcón e Navarro Valls citam o próprio Santo Tomás quando dizem: “Hablando de la madurez necesaria para fundar el matrimonio, afirma Santo Tomás: No se exige tanto vigor de la razón para deliberar, como en otros contratos; por ello, antes se puede dar el consentimiento matrimonial con suficiente deliberación, que poderse realizar contratos en otras materias sin la asistencia del tutor. La razón de ello la encontramos en la inclinación natural al matrimonio”39. “Portanto, o grau de discernimento para o negócio jurídico ser qualificado de Matrimônio é bem maior do exigido para outros contratos”40. Por isso que o legislador no Código Latino diz: “Sunt incapaces matrimonii contrahendi: 1º qui sufficienti rationis usu carent; 2º qui laborant gravi defectu discretionis iudicii circa iura et officia matrimonialia essentialia mutuo tradenda et acceptanda; 3º qui ob causas naturae psychicae obligationes matrimonii essentiales assumere non valent”41 e no Código Oriental afirma “Sunt incapaces matrimonii celebrandi”42. Ortiz ao comentar os dois primeiros números de ambos os códigos diz: “Las dos primeras figuras afectan al sujeto en cuanto emisor del acto positivo de voluntad adecuando al matrimonio, mientras que la tercera le afecta en relación al objeto, porque no puede asumir aquello que constituye el contenido esencial del pacto conyugal” 43. 37 Cânon 1095. 38 Cânon 818. 39 ALARCÓN, M.L. e NAVARRO-VALLS, R. op. cit., p. 152. 33 Ibid., p. 150. 40 SEGÚ GIRONA, M. Apostilas de Direito Matrimonial, p. 29. 34 FORNÉS, J. op.cit., p. 106. 41 Cânon 1095. 35 Ibid., p. 106. 42 Cânon 818. 36 Ibid., p. 151. 43 ORTIZ, J.F., op.cit., p. 863. Suprema Lex Suprema Lex Número 1 – Janeiro/Junho de 2011 Número 1 – Janeiro/Junho de 2011 55 56 Ortiz continua afirmando, “en línea de principio podría sostenerse que, las tres causas específicas están escalonadas de mayor a menor intensidad, de tal manera que, si el sujeto incurre en la primera, también lo hace en la segunda y en la tercera, y lo mismo sucederá entre la segunda y la tercera, mientras puede incurrir en la tercera y no en las dos anteriores. De todos modos, en este punto, es preciso acudir, en su momento, al examen de la jurisprudência para realizar las comprobaciones oportunas”44. razão é considerado não senhor de si e equiparado às crianças” 49. Fuenmayor ao comentar este cânon diz: “Se trata de quien carece habitualmente del uso de razón, es decir, del que se encuentra afecto de trastorno mental permanente. Se considera que no es dueño de sí mismo (censetur non sui compos), motivo por el cual se le somete a tutela. Esta presunción de incapacidad es iuris et de iure, que no admite prueba en contrario . Se asimila en todo al infante, también por lo que se refiere al bautismo (C. 852 § 2)”50. Será necessário analisar e exegeticamente, aprofundar os conteúdos dos dois códigos, que seus 3 itens são idênticos. Segundo Chiappetta, “L’uso di ragione, che si acquista normalmente a partire dai sette anni(cfr. Can. 97 § 2), appartiene per sé alla sfera conoscitiva, anche se, per l’unità psichica della persona umana, tutte le facoltà dell`uomo operano normalmente in una reciproca interdipendenza”51. Por isso no n. 1: “qui sufficienti rationis usu carent” do código Oriental “qui sufficienti rationis usu carent”46. 45 e no n.1 “Note-se, antes de tudo, que por extensão, a Doutrina pode ser aplicada a ambos os Códigos embora apresentamos os comentários dos autores latinos”47. Note-se que o código de 1983 não faz distinção diz Revuelto entre “carencia, habitual o actual, originaria a congênita y adquirida, de suficiente uso de razón, por eso en este canon se comprenden todas las clases de enfermedades mentales debidas a causas o factores físicos y psíquicos, ocasionales y permanentes, culpables e inculpables”48, e por isso mesmo todas as perturbações que envolvem álcool, narcóticos e outros meios que possam alterar e comprometer gravemente o uso de razão. Mas isto não significa que a pessoa não tenha razão para outras atividades ou, que carece é o uso suficiente. Quando usamos o termo suficiente uso da razão, nos deparamos com o cânon 99: “Todo aquele que carece habitualmente do uso da 44 Ibid., p. 863. 45 Cânon 1095 n.1. 46 Cânon 818 n.1. 47 SEGÚ GIRONA, M. op. Cit., p. 31. 48 REVUELTO,F.A. Los capítulos de nulidad matrimonial en el ordenamiento canónico vigente, Salamanca: UPS, 1987, p. 163. Segundo Viladrich o legislador quer assinalar, “a dimensão radical e inicial da capacidade consensual consiste posse por parte do sujeito contraente da suficiente vontade livre e racional para fazer aqui e agora que o ato de contrair seja em qualquer caso um ato humano”52. Para Viladrich, “o ato de contrair, descrito pelo c. 110453, expressa aquela dimensão estrita do consentimento a que se refere diretamente o número 1 do c. 1095”54. Faílde define a incapacidade por insuficiente uso de razão em 4 pontos: 49 FUENMAYOR, A. Comentario Exegético Al Código de Derecho Canónico., p. 728. 50 Ibid., p. 728. 51 CHIAPPETTA, L., op.cit., p. 200. 52 VILADRICH, P.J. O consentimento matrimonial, Braga: Universidade de Navarra, 1997, p. 54. 53 Cânon 1104: “§ 1. Ad matrimonium per procuratorem valide contrahendum necesse est ut contrahentes sint praesentes una simul sive per se ipsi, sive per procuratorem. § 2. Sponsi consensum matrimonialem verbis exprimant; si vero loqui non possunt, signis aequipollentibus”. 54 Ibid., pp. 54-55. Suprema Lex Suprema Lex Número 1 – Janeiro/Junho de 2011 Número 1 – Janeiro/Junho de 2011 57 58 “a) No se habla aqui de falta de todo uso de razón sino de falta de suficiente uso de razón, que evidentemente no excluye que a la vez se dé algo de uso de razón con tal de que no sea suficiente. ou psiquiatras cujos resultados devem ser interpretados segundo as regras do direito” 58. b) El uso de razón, requerido para que se dé el consentimiento matrimonial, es por lo menos el que permita tener el conocimiento teórico mínimo exigido en el c. 1096 § 1; si se da ese uso de razón ya no podrá hablarse de insuficiente uso de razón. “Tanto o alcoolismo como a Toxicomania podem alterar gravemente o uso de razão e torná-lo insuficiente. Analisaremos um pouco mais de perto o alcoolismo e seus efeitos deletérios tanto individuais como socialmente. Causa de tantos fracassos na vida conjugal e familiar” 59. c) Prescindo de algunas psicopatologías graves, como la demencia vascular y otras clases de demencia, porque en ellas nadie celebra el matrimonio. O alcoolismo, especificamente, pode produzir falta de deliberação e liberdade interna, bem como incapacidade de assumir as obrigações essenciais do matrimônio. d) Menciono, sin embargo, otras psicopatologías graves, a pesar de que en sus grados extremos nadie celebra el matrimonio, porque algunos pueden celebrar el matrimonio o antes o después de llegar a esas situaciones extremas” 55. Para Cantón, “estados anómalos que sitúan al individuo en una fase de inconsciencia que le hace irresponsable de sus actos (mentis exturbatio), pueden mencionarse la embriaguez perfecta, el sueño hipnótico, el sonambulismo, la excitación y depresión subsiguiente a la ingestión de estupefacientes (morfina, cocaína, etc.), las convulsiones epilépticas o los accesos histéricos” 60. Para Viladrich, “a causa psíquica que explica a insuficiência atual de uso de razão deve existir e, deve ter uma natureza que explique causal e proporcionadamente o suficiente déficit de uso de razão, pois carecer desta suficiência intelectiva e volitiva para o ato humano não é, sem dúvida, um estado normal habitual nem tão pouco atual das operações intelectivas e volitivas próprias das faculdades superiores de qualquer ser humano” 56 . “Conviene señalar que cuando el estado de inconsciencia hubiera sido provocado con la expresa intención de contraer matrimonio (como puede ocurrir, por ejemplo, en la embriaguez) no por ello el matrimonio resulta válido, pues, como observa la doctrina, no se trata de establecer un critério sobre la responsabilidad que incumbe al sujeto por un acto realizado en aquel estado, sino de la suficiencia de un acto de voluntad, que no puede existir si el sujeto no está en posesión del dominio de sus actos” 61. Cifuentes ao tratar dos conteúdos do n.1 do c. 1095 assegura que “nos estados de embriaguez, hipnotismo, entorpecimento e outros análogos é necessário também verificar se em cada caso este estado privava do uso das faculdades cognoscitivas ou volitivas” 57. E continua salientando a necessidade de perícias na área clínica para detectar o grau de insuficiência neste determinado caso. Dentro deste contexto Cantón nos apresenta a chamada falta de deliberação ou liberdade interna, que equivale o da incapacidade psíquica. Para Cifuentes, “na determinação da capacidade mental em todas estas situações é necessária a assistência pericial de médicos “Como ya se ha observado, el defecto de libertad interna se ha aplicado también en sentido equivalente al de incapacidad psí- GARCÍA FAÍLDE, J.J. Trastornos psíquicos y nulidad del matrimonio, Salamanca: Editora Publicaciones Universidad Pontificia, 1999, p. 193-194. 58 Ibid., p. 311. 59 SEGÚ GIRONA, M. op. Cit., p. 39. 56 Ibid., pp. 58-59. 60 CANTÓN, A.B. op.cit., p. 137. 57 CIFUENTES, R.L. op.cit., p. 310. 61 Ibid., p. 137. 55 Suprema Lex Suprema Lex Número 1 – Janeiro/Junho de 2011 Número 1 – Janeiro/Junho de 2011 59 60 quica puesto que en los casos de incapacidad el sujeto carece del equilibrio de sus facultades y del dominio de sus actos. No obstante, puesto que los casos de incapacidad tienem su sede jurídica propria es preferible, para evitar confunsiones, reservar la denominación de falta de libertad interna para los supuestos en que el sujeto no puede actu ejercitar su facultad de deliberación. Por otra parte, el defecto de libertad interna ha sido utilizado para amparar jurídicamente aquellos casos en que el sujeto se encuentra impelido a contraer por efecto de una presión socio-ambiental y que no son reconducibles al supuesto concreto del consentimiento coaccionado. Estos supuestos, no contemplados por el Derecho positivo, dejan el camino abierto a la jurisprudencia que deberá resolver en la medida en que, en un supuesto concreto, se cumplan o dejen de cumplirse los requisitos del acto voluntario can. 1057 § 1 y 2)” 62. Cantón conclui dizendo “debe consi narse que cuando el individuo,a la ingestión de drogas o al abuso de bebidas alcohólicas, tuviese sus facultades alteradas o perturbadas de forma permanente, se estaría en un caso de mentis debilitas, cuando no de verdadera amentia, el cual debería ser decidido a tenor de los criterios aplicables a estas situaciones”63. Alcoolismo, uma anomalia que pode provocar tanto uso insuficiente de razão com também a incapacidade de assumir as obrigações matrimoniais. “Se o indivíduo no momento de consentir estiver sobre os efeitos do álcool, de tal modo que lhe impeçam o ato de discernir e de querer, este indivíduo será considerado incapaz de consentir e consequentemente de contrair conforme prescreve o cânon 1095 n.1”64. “Se este indivíduo estiver consciente no momento de consentir, mas habitualmente ingere quantias de bebida alcoólica que lhe tiram o uso de razão e isto de modo continuo, este indivíduo tornar-se-á incapaz de assumir as obrigações essenciais do matrimônio c.1095 n.3”65. Por isso, pode-se dizer que são muitos os fatores que podem influenciar e viciar o consentimento. Segundo Segú Girona, “no tocante ao alcoolismo os autores distinguem a embriaguez simples ou ocasional de alcoolismo propriamente dito qualificado de crônico e de agudo” 66. Assim Cifuentes distingue as diversas qualificações e estados alcoólicos, no tocante ao consentimento ou à vida matrimonial. Cifuentes distingue-as: “A embriagues simples ou ocasional. Esta não representará habitualmente uma incapacidade para assumir. Unicamente poderá anular o consentimento em vista do transtorno mental transitório que acarreta, como já vimos anteriormente. Alcoolismo agudo (que pode dar tanto no alcoolismo ocasional quanto no crônico). Neste tipo de alcoolismo as perturbações são tão graves que impedem qualquer tipo de raciocínio ou determinação livre da vontade. Mas se não for crônico, ou frequente, não poderá em realidade enquadrar-se no capítulo da incapacitas assumendi, melhor seria conceituá-lo também como transtorno mental transitório. Alcoolismo crônico. Segundo Lanversin apresenta duas características principais: a dependência e a degradação da personalidade. Pela primeira, o alcoólatra sente uma necessidade irresistível de bebida; pela segunda, o indivíduo vai perdendo, pouco a pouco, a inteligência, a memória e a vontade, a estabilidade psíquica e a consciência moral. Representa, em realidade, uma autêntica degradação da personalidade” 67. 62 CANTÓN, A.B. Compendio de Derecho Matrimonial Canonico., p. 137. 65 63 Ibid., p. 137. 66 Ibid., pp. 39-40. Ibid., p. 40. 64 SEGÚ GIRONA, M. op. Cit., p. 39. 67 CIFUENTES, R.L. op.cit., pp. 326-327. Suprema Lex Suprema Lex Número 1 – Janeiro/Junho de 2011 Número 1 – Janeiro/Junho de 2011 61 62 García Faílde, visando a prática processual, define a anomalia do alcoolismo, dividindo-o em duas fases a do alcoolismo agudo e do alcoolismo crônico, desenvolvendo assim não só o conceito e a etiologia, mas a sua divisão. “Esta distinción por más que teórica es muy importante para la práctica en los procesos de nulidad del matrimonio, ya que el consentimiento puede ser materialmente prestado o por un contrayente que esté ebrio sin que sea alcoholizado o por un contrayente que es alcoholizado sin que esté ebrio, o por un contrayente que esté ebrio y que sea alcoholizado, pudiendo ser muy diversas en los distintos casos las consecuencias jurídicas relativas a la validez de ese consentimiento”68. Faílde por ter sido Decano da Rota Espanhola e Psiquiatra, objetiva a praticados tribunais e assim descreve o alcoolismo e suas diversas faces: A 1ª é qualificada de leve, a 2ª de grave e, a 3ª de causa ou sono profundo. Assim Faílde descreve a 1ª fase e seus sintomas e conse quências. “1.º De la fase ligera: La disminución de la atención y del potencial de la facultad crítica y de la inhibición psicomotora e impulsiva. Es la fase que suele denominarse con la expresión de estar alegre y que suele corresponder a niveles de alcoholemia comprendidos entre 0,3 y 1 gr. Por 1.000”69. “A sintomatologia da 2ª fase do alcoolismo é grave por estar acompanhada de transtornos e distúrbios graves”70. “2.º De la fase grave: La prevalencia de los trastornos de obnubilación de la conciencia de nivel profundo (con pensamiento incohe- rente, desorientación, etc.); la paralización prácticamente total de los centros inhibitivos que conlleva el que la conducta esté dirigida por los instintos y por las pasiones; el aumento de la insensibilidad hasta poder llegar a una verdadera anestesia; el crecimiento exagerado de la irritabilidad con propensión a la violencia, etc. Esta fase es la más cualificada y la más peligrosa de la embriaguez aguda y en ella la alcoholemia oscila entre los 2 y los 3 gr. por 1.000”71. A 3ª fase é a pior de todas, chegando-se a total inconsciência: “3.º De la fase de coma o de sueño profundo: La intensificación de los síntomas neuropsíquicos propios de las dos fases anteriores; la plena inconsciencia con abolición de todos los reflejos, con desaparición de todos los mecanismos de defensa y de conservación, etc. En ella la alcoholemia suele estar elevada por encima de los 3 gr. por 1.000”72. Quanto ao Alcoolismo Crônico, Faílde inicia chamando a atenção para a própria qualificação e usa de adjetivo crônico, operacionalizando cientificamente e dando-lhe um sentido mais adequado neste texto e contexto e frisando as diversas situações e as variáveis que devem ser analisadas e ponderadas para se chegar a esta qualificação. Eis o que diz Faílde: “El adjetivo crônico alude al hecho de que tanto el estado de alcoholización como las alteraciones psíquicas, físicas y/o sociales, producidas por el abuso del alcohol, permanecen en los lapsos de abstinencia; no alude al hecho de que el alcohol haya sido consumido en dosis abundantes y por tiempo prolongado, porque el consumo de alcohol en dosis abundantes y por tiempo prolongado no define necesariamente el alcoholismo crónico, ya que existen personas que abusan de las bebidas alcohólicas durante años sin ilegar por eso a tal estado, y existen personas que llegan a tal estado al poco tiempo de haber comenzado a beber”73. 68 GARCÍA FAÍLDE, J. J. Manual de Psiquiatría Forense canónica, Salamanca: Publicaciones Universidad Pontificia, 1991, p. 406. 69 Ibid., p. 406. 72 Ibid., pp. 406-407. 70 SEGÚ GIRONA, M. op. Cit., p. 40. 73 Ibid., p. 409. 71 GARCÍA FAÍLDE, J. J., op.cit., p. 406. Suprema Lex Suprema Lex Número 1 – Janeiro/Junho de 2011 Número 1 – Janeiro/Junho de 2011 63 64 O autor continua chamando a atenção de como se pode passar de um estado atual para um habitual podendo ser classificado de uma espécie de psicose tóxica. Assim diz Faílde: “Cuando del estado actual se pasa al habitual, el alcoholismo llega a ser una especie de psicosis tóxica, originada de una defectuosa integración de la personalidad o de inmadurez que lleva a buscar refugio y satisfacción en el uso abusivo del alcohol” 74 . Note-se, porém que a sintomatologia psíquica pode-se instaurar paulatina mas progressivamente. Para Faílde, “los síntomas psíquicos del cuadro del alcoholismo crónico se afirman lentamente con pasos, no siempre diferenciales, entre el estado normal y el estado patológico” 75. A patologia clínica pode ser diagnosticada na anaminese em duas fases: a prodrómica e a crônica. Faílde em sua obra assim descreve estas fases: “La fase prodrómica: Esta fase se inicia y progresa paulatinamente y, como acabo de indicar, después de un tiempo que suele oscilar entre los seis meses y los cinco años, conduce al cuadro de estado” 76. “La fase de estado de alcoholismo crónico: Prescindo de un conjunto de transtornos, que suelen acompañar al estado de alcoholismo crónico, de naturaleza neurológica (como la disartria, los temblores de manos y de párparados, etc.), de naturaleza digestiva (como la gastritis, la cirrosis hepática, etc.), da naturaleza respiratoria (como la bronquitis, la neumonía, etc.), de naturaleza cardiovascular (como la miocardiopatía, etc.), de naturaleza endocrina (como la atrofia testicular que se manifesta en un déficit del impulso sexual, etc.), etc”77. 74 MARTÍN, L.G. op.cit., p. 121. 75 Ibid., pp. 409-410. 76 Ibid., p. 410. 77 Ibid., p. 410. Este autor descreve também como podem se instaurar as psicoses qualificadas de alcoólicas. Seus sintomas e consequências: “Las psicosis alcohólicas se dan en el uso excesivo o prolongado de bebidas y comportan siempre graves transtornos mentales más o menos graves según la subespecie que se haya originado, pero siempre con una merma notable de las facultades superiores en orden a los actos responsables de la vida” 78. Stankiewicz numa de suas sentenças na parte da “IN IURE” descreve o que se entende por alcoolismo crônico. No tocante à falta de discrição de juízo 79.80 “O Legislador na questão das incapacidades quis acolher tudo o que as mais modernas ciências de comportamento incluíam, sabendo que a expressão falta de discrição de juízo é ampla e abrangente incluindo desde a falta de amor até a imaturidade, implicando com isso a incapacidade do indivíduo de aceitar-se a si mesmo como ele é: de aceitar o outro como ele é e de ser capaz de um relacionamento heterossexual estável. Estas são as notas características 78 MARTÍN, L.G. op.cit., pp. 121-122. Ibid., pp. 121-122: “1º. Em primer lugar la prueba plena del defecto de discreción de juicio en orden al matrimonio se admite siempre que en un determinado caso concurran hasta cinco criterios: la antiguedad y la gravedad del proceso tóxico; cualificados estigmas de amencia; internamientos en centros psiquiátricos; anestesia moral. Pero no se requiere que estas condicionestengan que darse conjuntamente para poder llegar a la certeza moral de defecto de discreción de juicio. Basta la mayor parte de ellas. Y puede incluso existir certeza moral si junto a alguna de aquellas condiciones se encuentran síntomas tales como delirios y alucionaciones que permiten encuardrar el caso dentro de las psicosis. 2º. Cuando estas condiciones no se dan se admite solamente la presunción del defecto de discreción de juicio para contraer, si existe alguno de dichos criterios y hay indicio grave de la existencia del defecto si se cuenta con el diagnóstico cierto de alcoholismo crónico de celebrarse el matrimonio” . 79 80 ALARCÓN, M.L. e NAVARRO-VALLS, R. op. cit., pp. 168-169: “La dificultad estriba en que el alcoholismo crónico es un proceso lento y progresivo de degradación de la persona y no puede determinarse a priori cuándo se ha llegado a un grado tal de deterioro de la personalidad del que pueda concluirse la falta de discreción de juicio o de capacidad para las obligaciones y la relación interpersonal”. Suprema Lex Suprema Lex Número 1 – Janeiro/Junho de 2011 Número 1 – Janeiro/Junho de 2011 65 66 do processo de maturidade e, consequentemente, a capacidade de assumir os ônus essenciais”81. Por isso Viladrich ao comentar o n.2 do c.1095 inicia dizendo: “O legislador emprega no nº. 2 do c.1095 uma expressão a discrição de juízo de longa tradição na doutrina canónica sobre a incapacidade, mas dota-a de importantes perfis relativamente ao seu antigo significado, que era mais genérico e menos preciso”82. Para Cifuentes, “o c.1095, 2º específica este segundo item, levando em consideração que a falta de responsabilidade e ponderação no juízo seja talvez um dos defeitos de maior repercussão no meio social da segunda metade do século XX, não podemos pensar que qualquer falha nesse sentido possa incapacitar para o matrimônio” 83 . Serrano é muito mais explícito e corajoso dizendo que a falta de discrição de juízo, hoje significa imaturidade. “Es esta única capacidad para el matrimonio, que hemos tratado de identificar previamente, la que tenemos que hallar por tanto en la aplicación del n.2 del can. 1095. Y dado el uso abundante hecho de la inmadurez en tales casos, procuraremos encontrarla en conexión con la así llamada inmadurez de la persona”84. “Após o brilhantismo de Monsenhor Serrano nas suas sentenças os autores e comentaristas começaram aceitar este posicionamento”85. Viladrich tenta definir o “termo” discrição e juízo. Assim diz: “Em primeiro lugar, a discrição do juízo significa uma específica medida de maturidade para o conjugal que resulta da adequada proporcionalidade que deve haver entre as obrigações cônjuge e a capacidade de entendê-las e querê-las por parte do 81 SEGÚ GIRONA, M. op. cit., pp. 47-48. 82 VILADRICH, P.J. op.cit., p. 59. 83 CIFUENTES, R.L. op.cit., p. 311. 84 85 contraente. O sujeito que possui esta proporção ou medida de maturidade é discreto. Em segundo lugar, o termo juízo faz referência a um momento singularmente culminante, ainda que complexo, do processo de livre autodeterminação racional do ser humano; trata-se do ponto em que a razão pratica”86. Faílde por sua vez, como bom psiquiatra que é, afirma: “El can. 1095 em los números 1 y 2 se refiere a los componentes “cognitivo-deliberativo-volitivo” del acto psicológico humano del consentimiento matrimonial que dicen relación directa a la dimensión racional y libre de los contrayentes considerados como sujetos activos o como causa eficiente del matrimonio in fieri y, por lo mismo, como personas psicológica y jurídicamente capaces de hacer eses acto psicológico humano”87. Faílde é bem mais profundo ao apresentar a discrição de juízo diferenciando incapacidade inabilidade. Para Faílde a incapacidade é a “falta de capacidad natural para hacer el contrato matrimonial; el que es naturalmente incapaz de realizar un determinado acto jurídico puede realizar físicamente ese acto, en ocasiones, pero ese acto será desde el punto de vista jurídico inexistente”88. Enaquanto a inabilidade: “por el contrario, presupone en el contrayente esa capacidad natural, la cual, sin embargo, carece de eficacia para dar vida no al contrato matrimonial sino al matrimonio llamado in facto esse como consecuencia de que una ley positiva, sea humana o sea divina, se ha interpuesto impidiendo que aquella capacidad natural tenga esa eficacia: esa ley positiva ha impedido que el contrayente, dotado de un jus connubii por ser naturalmente capaz, haga eficazmente uso de ese jus connubii y, en consecuencia, ha hecho que su capacidad natural se acompañe de su inhabilidad jurídica”89. 86 VILADRICH, P.J. op.cit., pp. 60-61. SERRANO RUIZ, J.M. Algunas sugerenciais para la interpretacion del canon 1095, 2º. Anuario Argentino de Derecho Canónico, Buenos Aires, v.1, pp. 72-73, 1994. 87 GARCÍA FAÍLDE, J.J. La nulidad matrimonial, hoy, Barcelona: Bosch, 1999, p. 221. 88 Ibid. p. 221. SEGÚ GIRONA, M. op. cit., p. 49. 89 Ibid., pp. 221-222. Suprema Lex Suprema Lex Número 1 – Janeiro/Junho de 2011 Número 1 – Janeiro/Junho de 2011 67 68 Segundo Segú Girona, “os autores, porém, querem não apenas definir o que se entende por grave falta de discrição de juízo, mas desejam saber a etiologia isto é, quais as causas ou as variáveis que suscitam e desencadeiam esta figura que é causa de tantos fracassos na vida matrimonial”90. Para Revuelto: “la falta de la necesaria discreción de juicio puede provenir bien de una anomalía o perturbación que afecte directamente al entendiemento, bien de otra que incida sobre la voluntad, habida cuenta de la estrecha dependencia de ambas facultades en la producción del acto humano”91. Todas as anomalias da personalidade acabam afetando gravemente a faculdade de conhecer e de julgar e faz com que emirjam as figuras da grave falta de discrição de juízo. Cifuentes, diz “as doenças que principalmente atingem esta discrição de juízo, são todas as que provocam uma variação emocional ou uma perturbação da afetividade anormal que cegam a inteligência, impedem a deliberação ponderada e terminam deteriorando a maturidade do juízo”92. Para Chiappetta, “le principali cause della immaturità psicologica, propriamente di giudizio, sono le aberrazioni psico-sessuali” 93. “Tale immaturitá, tuttavia, non proviene necessariamente da infermità di carattere psichico, anche se queste siano le cause più frequenti”94. Segundo Chiappetta, “normalmente, l’immaturità o ritardo affetivo è dovuto a nevrosi di varie forme, ad alterazioni o disordini di carattere, a perversione degl’istinti, in particolare di quello sessuale”95. Direitos e Deveres Essenciais do Matrimônio Segundo Viladrich, “é essencial, por conseguinte, a determinação de quais são esses direitos e deveres essenciais do matrimônio que, no nº.2 do c.1095, se devem dar e aceitar“ 96. “O legislador não quis comprometer uma formulação legal destes direitos e deveres, deixando que seja a doutrina e a jurisprudência os que vão progredindo nesse trabalho que, não é enunciativo, mas também explicativo dos seus conteúdos e dos seus limites”97. Segundo Segú: “Todas as legislações do mundo, por mais diversas que sejam, determinam, claramente, em que consistem os vícios de consentimento e quais são. Essa matéria é tão grave e complexa que atinge a própria validade do matrimônio. Daí a importância e peso desse tema para as causas de nulidade matrimonial em geral, contempladas nas diversas legislações. Devemos salientar, porém, que para nós, o que mais nos interessa é a canônica e, ainda mais específica e limitada aos vícios de contidos no cânon 1095”98. “A doutrina e a jurisprudência contam com contributos essenciais do legislador nos textos legais dos cânones que definem o consentimento, o consórcio de vida conjugal, as suas propriedades e os seus fins essenciais”99. Para Segú: “Trata-se, especificamente, dos cânones 1095 e 1098. No primeiro desses cânones englobam-se e consideram-se, pelo novo Legislador, as mais variadas patologias clínicas, abordadas tanto pela psiquiatria como pela psicologia clínica. Todos esses quadros clínicos prodômicos são complexivamente atingidos com a qualificação genérica de incapacidade” 100. 96 90 SEGÚ GIRONA, M. op. cit., p. 51. VILADRICH, P.J. op.cit., pp. 63. 97 91 REVUELTO,F.A. op.cit., p. 173-174. Ibid., p. 63. 98 92 CIFUENTES, R.L. op.cit., p. 319. 93 CHIAPPETTA, L., op.cit., p. 205. SEGÚ GIRONA, M. Os vícios de consentimento matrimonial e o cânon 1095 do novo Código de Direito Canônico de 1983. pp. 135-136. 99 94 Ibid., p. 205. SEGÚ GIRONA, M. Os vícios de consentimento matrimonial e o cânon 1095 do novo Código de Direito Canônico de 1983. p. 63. 95 Ibid., p. 205. 100 Ibid.,p. 136. Suprema Lex Suprema Lex Número 1 – Janeiro/Junho de 2011 Número 1 – Janeiro/Junho de 2011 69 70 Ortiz citando o Papa João Paulo II no seu discurso anual a Rota Romana , assim afirma: “Para el canonista debe quedar claro el principio de que solo la incapacidad, y no ya la dificultad para prestar el consentimento y para realizar una verdadera comunidad de vida y amor, hace nulo el matrimonio. El fracaso de la unión conyugal, por otra parte, no es en sí mismo jamás una prueba para demostrar la incapacidad de los contrayentes, que pueden haber descuidado, o usado mal, los medios naturales y sobrenaturales a su disposición, o que pueden no haber aceptado las limitaciones inivitables y el peso de la vida conyugal, sea por un bloqueo de naturaleza inconsciente, sea por leves patologías que no afectan a la sustancial libertad humana, sea en fin por deficiencias de ordem moral. La hipótesis sobre una verdadera incapacidad sólo puede presentarse en presencia de una seria anomalía que, se defina como se quiera definir, debe afectar substancialmente a la capacidad del entendiemento y / o de la voluntad del contrayente” 101. Para Segú: “Aqui se deseja aprofundar, apenas alguns vícios decorrentes dos conteúdos do c.1095, que são de tal monta e graves que incapacitam o indivíduo ao externar seu consentimento, tornando-o inválido. Mas antes de adentrarmos nesses conteúdos propriamente ditos, é bom, salientar, a título de recordação, que os vícios de consentimento podem-se originar tanto do intelecto como da própria vontade, portanto os vícios têm dupla fonte” 102. Segú ainda diz: “No tocante ao intelecto, os vícios de consentimento, inseridos no nosso Ordenamento jurídico são: a carência de uso suficiente de razão; a grave falta de discrição de juízo para assumir os ônus essenciais do matrimônio do dar e do receber; a incapacidade de assumir as obrigações essenciais do matrimônio por causas de natureza psíquica; a ignorância do próprio matrimônio em si, ou então, de seus elementos e propriedades essenciais; o erro tanto de pessoa como de qualidade direta e principalmente visada; 101 ORTIZ, J.F., op.cit., p. 866. 102 SEGÚ GIRONA, M. op.cit., p. 137. o dolo usado como meio de extorquir um consentimento que, se o contraente soubesse a verdade e a realidade dos fatos, jamais consentiria. Os vícios de consentimento que interferem na vontade do contraente, em nosso ordenamento Jurídico são: a exclusão (simulação) total ou parcial. As condições impostas a um consentimento podem viciá-lo e por isso mesmo não são admitidas pelo nosso Legislador, pois o consentimento deve ser livre e espontâneo, isento de coações e medos”103. Viladrich conclui dizendo, “estes direitos e deveres conjugais essenciais são correlativos, no sentido de que a cada direito conjugal corresponde o seu próprio dever não menos essencial” 104. OS QUE NÃO SÃO CAPAZES DE ASSUMIR AS OBRIGAÇÕES ESSENCIAIS DO MATRIMÔNIO 1095, 3º105 Segundo o cânon 1095,3º, são incapazes de contrair matrimônio: “os que por causas de natureza psíquica não podem assumir as obrigações essenciais do matrimônio”. Trata-se, de um vício do consentimento que nasce da incapacidade para cumprir as obrigações próprias do estado matrimonial por uma causa de natureza psíquica. Segú diz que: “Após o Concílio Vaticano II, uma corrente da própria Jurisprudência Rotal começou a fundamentar essa capacidade, na falta de objeto para o matrimônio, posto que seu portador não era capaz de compartilhar a vida sexual digna e humana. Por isso, estava impossibilitado de consórcio e de autêntica comunhão de vida. A partir daí, a Jurisprudência sofreu notáveis evoluções, pois a tendência, na aplicabilidade da Doutrina do Vaticano II, era a de ampliar essas incapacidades, abrangendo não apenas as anomalias sexuais, mas também, todas aquelas de caráter psíquico-afetivo que 103 Ibid., p. 137-38. 104 VILADRICH, P.J. op.cit., p. 63. 105 Cânon 1095 n. 3º “qui ob causas naturae psychicae obligationes matrimonii essentiales assumere non valent”. Suprema Lex Suprema Lex Número 1 – Janeiro/Junho de 2011 Número 1 – Janeiro/Junho de 2011 71 72 tornavam impossível o consórcio da vida conjugal. Para aprofundar este ponto, podem ser consultadas, além das anteriormente indicadas, as mais recentes”106 Nell’arco dei secoli si è formata una non uniforme terminologia giuridica, in cui si confondono, accanto al linguaggio comune, i termini tecnici di psichiatria e di psicologia” 110. Segundo Stankiewcz, “l’analisi appropriata di un tale tema richiede che si dia almeno un breve spazio alla presentazione della nomenclatura canonistica riguardente la vasta fenomenologia di quel complesso problema umano che è l’incapacità psichica al matrimonio”107. Para Viladrich, porém, “o n.º do c.1095 centra-se sobre esta dinâmica de vida conjugal, que é o matrimônio, e considera-a enquanto todo o seu futuro desenvolvimento se assume no instante fundacional como obrigação jurídica ou compromisso de futuro devido em justiça entre os esposos”111, e continua afirmando que “na sua acepção positiva, a possibilidade de assumir as obrigações essenciais do matrimônio contempla aquele suficiente governo do sujeito que lhe confere o poder de responsabilizar, em termos de obrigação jurídica, pelos atos e condutas do futuro, que são essenciais para a ordenação vital do consócio conjugal para os seus fins objetivos e que os cônjuges comprometem no momento de casar-se. Em sentido negativo, é incapaz quem não possui o suficiente governo de si e dos seus atos necessário para, no momento constitutivo do matrimônio comprometer o seu futuro conjugal em termos de obrigação devida em justiça”112. “A nova lei, ao aceitar a própria evolução científica, foi bem mais abrangente, pois substituiu a fórmula anomalias psico-sexuais por causas de natureza psíquica. Estas compreendem uma gama maior de distúrbios, não apenas os da área da sexualidade humana, mas os que se referem à própria personalidade humana com toda a gama de psicoses, neuroses e sóciopatias, com etiologia psíquica, ou mesmo psicossomática. Numa palavra, hoje o n.3 do c. 1095, abrange toda a complexa realidade das síndromes e dos quadros referenciais contidos nos tratados de psico-patologia”108. E mais ainda: “Pode-se constatar que o n.3 do c.1095 teve um iter longo e trabalhoso antes de chegar à sua redação final. Todos os qualificativos dos esquemas anteriores foram substituídos pela fórmula abrangente de: causas de natureza psíquica. O texto atual não se limita apenas às causas provenientes dos desvios da sexualidade humana que impossibilitam uma convivência heterossexual estável harmoniosa, pacífica e realizadora, mas vão além, ao contemplar a vasta e complexa área das psico-patologias, que podem afetar o ser humano temporária ou mesmo definitivamente”109. Stankiewicz, por sua vez, declara: “Prescindiamo però in questa sede da una dettagliata analisi storica, limitandoci ad alcuni cenni necessari per il significato della attuale terminologia giurisprudenziale. Segundo Segú, “as funções do perito em comportamento humano ou em psiquiatria serão as de detectar a(s) síndrome(s), especificar que método usou para indicar a(s) etilogia(s) específica(s) de natureza psíquica, dizer, baseado nos sintomas e nos comportamentos e atitudes do indivíduo, se no momento de consentir esta determinada patologia estava latente ou manifesta, em outras palavras, o diagnóstico deve dizer explicitamente se a patologia detectada poderia ser antecedente e/ou concomitante à manifestação do consentimento” 113. López Alarcón e Navarro-Valls, dizem que “es um negocio jurídico un imposible porque el sujeto carece de la facultad de disponer del objeto del contrato, es decir, no puede comprometer la realización de 106 SEGÚ GIRONA, M. op.cit., p. 155. 107 STANKIEWICZ,A. L’incapacità Psichica Nel Matrimonio, Roma: Apollinaris, pp. 48-71, 1980. 110 Ibid., p.48. 111 VILADRICH, P.J. op.cit., pp. 65. 108 SEGÚ GIRONA, M. op.cit., p. 155. 112 Ibid., p. 65. 109 SEGÚ GIRONA, M. op.cit., p. 155. 113 SEGÚ GIRONA, M. op.cit., p. 157. Suprema Lex Suprema Lex Número 1 – Janeiro/Junho de 2011 Número 1 – Janeiro/Junho de 2011 73 74 las prestaciones personalísimas que están en la esencia del objeto del matrimonio”114 e continuam asseverando que “hay que distinguir entre incapacidad para asumir las obligaciones esenciales del matrimonio e incapacidad para cumplirlas, aunque guardan entre sí directa relación cuando afecta a la validez del matrimonio. Las persona que no está capacitada, por defecto psíquico común, para cumplir dichas obligacionespodrá causasr la nulidad del matrimonio por falta de suficiente uso de razón o defecto de discreción de juicio. A hora bien, la persona que esté afecta de un defecto psíquico típico que le impide asumir – sea consciente o no de ello – su cumplimiento, es decir, ser protagonista, en sus elementos esenciales, de la comunidad íntima de vida matrimonial, contrae inválidamente por este capítulo de la incapacidad de asumir. Por último, si el sujeto es capaz de asumir dicho cumplimiento cuando contrae el matrimonio y efectivamente cumple, mas posteriormente sobreviene la imposibilidad de cumplimiento, por razones psíquicas o de otro orden, no hay razón de nulidad de matrimonio por este capítulo”115. Segú diz, “nosso Ordenamento Jurídico, neste campo específico da Medicina Legal, no sentido descrito acima, para se evitar toda e qualquer injustiça, requer laudos periciais, pois se constitui numa grave injustiça qualificar alguém como doente quando é hígido e normal. Este é uma espécie de campo minado ou mar das tormentas em que se tem de agir com muita calma, sabedoria e prudência”116. Viladrich acrescenta que “definida a ação de assumir, compreender-se-á a dose de equivocidade que têm os termos cumprir ou realizar, que às vezes se utilizam para traduzir o assumere do n. º 3 do cânon 1095”117. Para Cifuentes, “ao ficar enquadrado este motivo de nulidade em um item especial (o n. º 3), o Legislador parece estar já indicando que lhe quer outorgar uma entidade própria diferente das duas anteriores”118. Por outro lado Segú afirma que: “nosso Legislador também determina e delimita as funções dos peritos, de modo particular os constituídos ex officio, portanto distintos em ciência e consciência do seu trabalho. Sabem que sua função precípua é a de clarear as questões propostas, pois seu laudo será revestido de grande peso e valor na hora do pronunciamento do juiz”119. Para Cantón, “la presencia de esta figura en el vigente Código es el resultado de una importante elaboración jurisprudencial que no hizo sino actualizar o aplicar a la materia matrimonial el principio clásico de que nadie está obligado a lo imposible”120, e continua dizendo que “la jurisprudencia introdujo esta figura de incapacidad para resolver litigios en que se debatía la validez del matrimonio de personas afectadas de determinadas desviaciones sexuales (homosexualidad, ninfomanía, satiriasis, etc.). Curiosamente, algunas de estas sentencias recogen la observación de JEMOLO en un momento en que la doctrina canónica distaba mucho de admitir esta figura de incapacidad y según el cual si una persona padece una alteración morbosa del apetito sexual insaciable y al que no se puede resistir, se le ha de considerar desposeída de capacidad matrimonial, pues no se puede prometer aquello no se está en condiciones de disponer. La jurisprudencia anduvo vacilante en el tratamiento jurídico atinente a estas desviaciones sexuales, acudiendo a diversos títulos invalidantes que podrían ser invocados según los casos: la impotencia psíquica o funcional, la amencia o insania in re uxoria, la exclusión del bonum prolis o del bonum fidei, etc. Más tarde, se acudió en estas hipótesis a la teoría del negocio jurídico para ver en ellas casos de obligaciones inexistentes por falta de objeto para pasar de ahi al concepto de la incapacidad de asumir o cumplir las obligações de imposible cumplimiento. Por otra parte, la jurispudencia aceptó este resultado como doctrina jurídica incuestionable y aplicable antes de que fuese reconocida por el Código que por entonces se estaba elaborando 114 ALARCÓN, M.L. e NAVARRO-VALLS, R. op.cit., p. 162. 115 ALARCÓN, M.L. e NAVARRO-VALLS, R. op.cit., p. 163. 118 CIFUENTES, R.L. op.cit., p. 322. 116 SEGÚ GIRONA, M. op.cit., p. 157. 119 SEGÚ GIRONA, M. op.cit., pp. 157-158. 117 VILADRICH, P.J. op.cit., p. 66. 120 CANTÓN, A.B. op.cit., p. 133. Suprema Lex Suprema Lex Número 1 – Janeiro/Junho de 2011 Número 1 – Janeiro/Junho de 2011 75 76 por entender que la invalidez en caso de incapacidad de asumir las cargas conyugales venía dictada por el derecho natural”121. Para Segú: “O perito em patologia psico-afetiva, quando solicitado, tem por obrigação de dizer e provar se a determinada patologia psíquica estava ou não presente no momento de consentir. No caso em que a entrevista ou os autos analisados fizerem emergir outras, deverão ser especificadas tanto no diagnóstico como no prognóstico, e principalmente apresentar o grau. Quando se refere ao matrimônio, se o diagnóstico for grave, implicará como consequência um vício de consentimento, inabilitando por falta de condições de quem o emitiu”122. Sambrizzi citando Bonet Alcón afirma, “que en la causal contemplada en el parágrafo 3 se incluyen los casos de ninfomanía y satiriasis, como también los de homo-sexualidad y los relativos a perversiones psicosexuales, como sadismo, masoquismo, fetichismo, etc; e igualmente los casos en que existe una incapacidad para realizar una relación interpersonal, sea por neurosis o por trastornos de personalidad”123. Segú apresenta as dificuldades de se compreenderem as anomalias ao dizer: “não é fácil compreender como possam aparecer essas anomalias e/ou patologias psíquicas, uma vez que na maioria das vezes, as faculdades superiores permanecem hígidas e em pleno funcionamento, mas nem sempre associados. Por isso, alguns defendem que o n. 3 do c.1095, propriamente, não se constituiria em novo título de nulidade, mas estaria, de per si, já contido no n. 2, que trata, como se sabe, da grave falta de discrição de juízo”124. Cifuentes citando Pompedda afirma, “que para além destas anomalias em sentido estritamente sexual, existem outras deformações de caráter moral – hábitos radicados profundamente na personalidade e condicionamentos existenciais – como também não faltam anomalias que incapacitam não já para a consumação sexual do matrimônio, mas para o cumprimento do direito à comunidade de vida e amor: assim acontece nos casos graves de egoísmo, narcisismo, imaturidade afetiva 125 e alcoolismo. Segú, por outro lado, afirma que “a norma possui alguns tópicos que merecem um aprofundamento maior. Entre os quais a questão da impossibilidade de assumir as obrigações essenciais. Essa incapacidade deverá estar sempre presente no momento do próprio nascedouro do matrimônio. Portanto, a primeira consequência grave é que a impossibilidade de assumir as obrigações essenciais incapacitará esse indivíduo de contrair matrimônio. Esta é a razão porque o cânon inicia com as palavras: São incapazes de contrair matrimônio” 126. Ortiz citando Martín de Agar afirma que, “Se há detenido em la prueba pericial a propósito del c.1095 § 3, aunque buena parte de sus reflexiones pueden proyectarse también sobre el resto del preceptp. Apunta la conveniencia de que el perito se pronuncie sobre el grado o la gravedad clínica del trastorno padecido por el sujeto y sobre la certeza acerca de su propio dictamen” 127. Castaño e Hervada citados por Segú atestam, “que não é possível alguém ser capaz de consentir, se ao mesmo tempo não for capaz de assumir as obrigações essenciais do matrimônio. Provam dizendo que quando alguém consente no matrimônio, consente para este matrimônio concreto e determinado, isto é, consente para um negócio jurídico bem caracterizado, entre outras coisas, pelos direitos e deveres que se devem dar e receber reciprocamente. Aceitar o ônus é a mesma coisa que assumi-los. Portanto, quem não puder assumir as obrigações essenciais não poderá contrair. Dessa forma, esses autores e, outros mais, defendem a correlação temporal entre as duas incapacidades – a de contrair e a de assumir” 128. 121 CANTÓN, A.B. Compendio de Derecho Matrimonial Canonico., p. 133. 125 122 SEGÚ GIRONA, M. op.cit., p. 158. 126 CIFUENTES, R.L. op.cit., p. 326. SEGÚ GIRONA, M. op.cit., p. 159. 123 SAMBRIZZI, E. A. op.cit., p. 55. 127 ORTIZ, J.F., op.cit., p. 872. 124 SEGÚ GIRONA, M. op.cit., p. 158. 128 SEGÚ GIRONA, M. op.cit., p. 160. Suprema Lex Suprema Lex Número 1 – Janeiro/Junho de 2011 Número 1 – Janeiro/Junho de 2011 77 78 Fazendo uma leitura contemporânea Segú diz: “O matrimônio, hoje, é descrito como consortium totius vitae, isto é, como uma relação inter-pessoal, que inclui a totalidade de duas vidas que se doam mutuamente para constituir uma só carne. Nesse sentido, as obrigações essenciais estão incluídas no objeto do matrimônio; são talvez o aspecto mais importante, pelo menos sob o ponto de vista jurídico. Trata-se, portanto, dos ônus que atingem a própria essência do consortium matrimoniale”129. Segú, concluindo diz: “Uma coisa é certa, os ônus acidentais não entram nesse título de nulidade nem podem dirimir o matrimônio, pois não passariam de meros papéis, distribuídos convencionalmente pela própria sociedade. Para a nulidade do matrimônio deve-se entrar no âmbito das essências e não dos acidentes”130. O BONUM CONIUGUM E A juríSDICIDADE no MATRIMÔNIO CANÔNICO Miguel Riondino1 SUMÁRIO: 1. Introdução e prospectiva. — 2. As raízes históricas: a) Conceitos do direito romano. b) Conceitos patrísticos e incidência no corpus iuris canonici pré-codicial. c) O código de direito canônico de 1917. — 3. A virada personalista no Concilio Vaticano II: a) os trabalhos de revisão do codex iuris canonici de 1917. b) a «árdua hermenêutica” das disposições do CIC de 1983. c) a chave de leitura sobre a necessária juridicidade do bonum coniugum. — 4. As contribuições sucessivas pela promulgação do código de 1983: a) As contribuições da doutrina. b) Alguns acenos sobre a jurisprudência rotal. — 4. O bonum coniugum em relação ao direito de família italiano. 1. O interesse que suscita o conceito de bonum coniugum explica a vasta literatura que se continua a produzir entre os especialistas em direito canônico. Menor atenção mereceu a matéria entre os cultores do direito de família. Atendido o desejo desta Revista, não pretendo oferecer uma contribuição para os canonistas, mas apresentar em síntese os principais resultados a que cheguei neste setor. Acho que algumas destas contribuições serão úteis aos estudiosos e aos operadores do direito matrimonial e familiar 2. Esta convicção induziu-me a dois estudos sobre a mediação familiar que procurei cumprí-los no nível do direito compa rado3, o 129 Ibid., pp. 161-162. 130 Ibid., p. 162. 1 Doutorando em direito canônico – Pontifícia Universidade Lateranense – Roma. 2 A Revista hospedou, anos atrás, uma excelente contribuição sobre o tema, mas com finalidades e características diferentes das que ora me predetermino cfr. S. VILLEGGIANTE, Il bonum coniugum e l’oggetto del consenso matrimoniale in diritto canonico, em Studi, 1995, II, 691 ss. 3 Cfr. M. RIONDINO, La mediazione familiare, em Commentarium pro Religiosis, 2005, n. 86, 39 ss.; em., Profili comparatistici della mediazione familiare in Europa, em Apollinaris, 2006, 763 ss. Suprema Lex Suprema Lex Número 1 – Janeiro/Junho de 2011 Número 1 – Janeiro/Junho de 2011 79 80 que suscitou a idéia de enfrentar os temas jurídicos em prospectiva interdisciplinar, com a devida atenção aos valores de fundo que permitem ao direito de ser um válido instrumento a serviço das pessoas (especialmente daquelas mais débeis), sem perder o que caracteriza a ciência jurídica, como método de abordagem para a experiência humana, isto é a clareza das normas e, na medida do possível, a univocidade dos conceitos. A univocidade é um ideal a ser perseguido para assegurar uma profícua comunicação entre ordenamentos jurídicos operantes nas mesmas realidades4. O estudo do conceito canônico do bonum coniugum evoca as citadas exigências de fundativa abordagem e coerente conceitualização, tendencialmente unívocas. Com efeito, o c. 1055 do código atual (CIC) define o matrimônio como um “pacto com o qual o homem e a mulher estabelecem entre si a comunidade de toda a vida, por sua natureza ordenado ao bem dos cônjuges e à procriação e educação da prole”. A norma estabelece, portanto, a dupla finalidade para a qual o matrimônio deve tender: o bonum coniugum e o bonum prolis. Mas a diferença do bonum prolis, que entra nos tria bona tradicionais, definidos desde Santo Agostinho como bens essenciais do matrimônio, o bonum coniugum não goza de posicionamento dogmático estável no direito matrimonial, prestando-se ainda, apesar dos vinte e cinco anos de vigência do novo código de direito canônico, a interpretações não unívocas e, em qualquer caso, pouco aderentes ao conteúdo normativo. Fiel às convicções de prospectiva, que me referi antes, sintetizarei o conceito de bonum coniugum sem renunciar a inseri-lo sobriamente em um horizonte fundativo e interdisciplinar. O primeiro aspecto obriga a ir às raízes, tanto as de natureza jurídica extra-canônica como as meta-jurídicas, de grande porte no direito da Igreja, cuja evolução indicarei, superficialmente, até a atual codificação. Tratarei dos principais problemas hermenêuticos, para posteriormente recordar algumas contribuições da doutrina e da jurisprudência. Em aderência à ótica interdisciplinar, proporei certos elementos de contato entre o bonum coniugum e o conceito de comunhão material e espiritual dos cônjuges, presente no direito de família. Para uma tentativa de comunicação entre o sistema canônico e o direito italiano em matéria familiar, cfr. M. RIONDINO, Valori coniugali nel matrimônio civile e bonum coniugum nel matrimônio canonico, em Apollinaris, 2007, 541 ss. 2. Para cada instituto do ordenamento canônico, no traçar os perfis do conceito do bonum coniugum e identificar sua essência, é obrigatório referir-me em síntese à evolução histórica. Neste sentido, não podem ser deixadas de lado as conexões entre a atual formulação do bonum coniugum e alguns conceitos análogos formados na evolução do instituto matrimonial. Entre os surgidos em nível extra-canônico, são significativas as noções de consortium omnis vitae e affectio maritalis do direito romano. Entre os conceitos meta-jurídicos, os de caritas coniugalis, amor coniugalis e maxima amicitia, elaborados pela Patrística e pela teologia medieval, têm tido um certo peso na progressiva formação do conceito de matrimônio por parte da Igreja, ainda que a recepção dos conceitos romanísticos e teológicos no corpus iuris canonici esteja subordinada à doutrina da indissolubilidade. A centralidade do consentimento foi logo o eixo do direito matrimonial canônico, ainda que, em sentido absoluto, só o matrimônio rato e consumado seja indissolúvel. A primeira codificação canônica consolida esta impostação com a hierarquia dos fins do matrimônio, pouco atenta à repercussão jurídica dos aspectos afetivos. Suprema Lex Suprema Lex Número 1 – Janeiro/Junho de 2011 Número 1 – Janeiro/Junho de 2011 Os possíveis prejuízos para quem for menos informado sobre a renovação do direito canônico obrigam desde já advertir que a introdução do bonum coniugum, entre as finalidades essenciais da união conjugal, comportou a superação da conhecida hierarquia dos fins do matrimônio. De fato, a nova lei, distanciando-se da precedente, não tem atribuído ao bem dos cônjuges um lugar subordinado, embora complementar ao bonum prolis, mostrando assim a paridade entre as 4 dimensões unitiva e procriativa do pacto matrimonial. Apesar disso, na canonística, resulta estafante a interpretação do bonum coniugum sem recaídas na já superada distinção entre fins primários e secundários. Isto torna mais árdua a aspiração à univocidade e à indiscutibilidade típica dos conceitos jurídicos, em termos de conceito objeto deste estudo. 81 82 a) Conceitos do direito romano. — O matrimônio entre os romanos era uma relação de fato consistente na união de duas pessoas, de sexo diferente, tendo a intenção de tornar-se marido e mulher. É exemplar a definição de matrimônio deixada por Modestino: “Nuptiae sunt coniuctio maris et feminae et consortium omnis vitae, divini et humani iuris communicatio” 5. Atribuída a Ulpiano é a definição proposta nas istituiões de Justiniano: “viri et mulieris coniunctio individuam consuetudinem vitae continens” 6. No direito romano, portanto, a intenção de tornar-se marido e mulher significava, em sentido jurídico, estabelecer uma sociedade íntima e perpétua7, transmitindo à mulher o próprio grau e a própria dignidade social, sem deixar de lado a procriação e a educação dos filhos8. Esta sociedade, fundada na vida comum, faz-se necessário entendê-la segundo a tradição romanística em matéria de família, isto é, no conjunto de relações de poder paterno, de parentela e de matrimônio. Como é sabido, a família romana era formada por todos aqueles que eram colocados sob o único poder do pater familias, tanto por razões naturais como jurídicas9. A mulher entra a formar parte da família do marido através da conventio in manum, que comportava, por sua vez, a ruptura com a família originária10. Na própria mulher o pater exercia a potestas maritalis, termo diferente dos usados para indicar o poder exercido pelo pater sobre os outros membros da família11. Viver juntos, e fazê-lo com intenção marital, são os dois elementos que concorrem à constituição do matrimônio. Não é suficiente o 5 Cfr. MODESTINUS, Dig. De ritu nuptiarum, 23, 2. 6 Cfr. IUSTINIANUS, Institutiones. De patria potestate, 1, 9. 7 Cfr. U. NAVARRETE, Influsso del diritto romano sul diritto matrimoniale canonico, em Atti del Colloquio romanistico-canonistico, Roma, 1979, 301 ss. 8 Cfr. B. BIONDI, Istituzioni di diritto romano, Milano, 1972, 574 ss. 9 Cfr. D. 50, 16, 195, 2: ‘familiam dicimus plures personas quae sunt sub unius potestate aut natura aut iure subiectae”. 10 11 As formas da “conventio in manum” são a “confarreatio”, a “coemptio” e o “usus”. Pense-se na “dominica potestas” (sobre os escravos) e ao “mancipium” (sobre os filhos tidos em leilão): cfr. C. Lefebvre, Le mariage et le divorce à travers l’histoire romaine, em Nouvelle revue historique de droit français et étranger, n. 42, 1918, 106 ss. consentimento inicial, mas requer-se uma intenção duradoura, expressa melhor como affectio maritalis, termo que descreve o respeito e a devida consideração entre os cônjuges. Por isso os autores insistem no fato que a relação jurídica no matrimônio romano não se exaure nos aspectos de ordem material. Trata-se de uma relação que deve ser entendida segundo uma acepção ética e social, ou seja como a subsistência efetiva das relações morais e sociais recíprocas, que se manifestam e se reassumem sob a significativa expressão honor matrimonii12. A noção de affectio maritalis abre a porta à visão personalista do matrimônio, vista a importância do relacionamento humano e do respeito mútuo entre os cônjuges. É uma fresta transitória porque entendida num esquema familiar em que era prevalente o papel do homem (menos na condição de marido que de pater familias) e onde o requisito do honor excluía do matrimônio iustum as uniões entre escravos (contubernium, submetido à permissão dos patrões) e aquelas entre livres e escravos o libertos (concubinatus)13. O papel da affectio maritalis e do consentimento que a exprime está presente também no momento constitutivo do matrimônio, onde o direito romano conheceu uma evolução das formas em que o pater familias da mulher declarava de submete-la à autoridade do marido (cum manu), para outras em que a coabitação por um ano com intenção marital (usus) era suficiente para o reconhecimento jurídico; na época imperial desaparecem as várias formas de matrimônio de autoridade (matrimonium manus) e na época justiniana, com o advento do Cristianismo, impõe-se o intercâmbio do consentimento como única forma válida para contrair matrimônio14, assim que “nuptias non concubitus, sed consensus facit”15. No direito romano, algum autor distingue entre o matrimônio e a conventio in manum, instituição que se reduziria a permitir que a mulher 12 13 Cfr. P. BONFANTE, Corso di diritto romano, 1. Diritto di famiglia, Milano, 1963, 181 ss. Cfr. C. CASTELLO, In tema de matrimônio e concubinato nel mondo romano, Milano, 1940, 61 ss. 14 Cfr. P. Voci, Istituzioni di diritto romano, Milano, 1954, 460 ss. D. 31, 1, 15; e 50, 17, 30; cfr. O. Robleda, El matrimônio en derecho romano, Roma, 1970. 15 Suprema Lex Suprema Lex Número 1 – Janeiro/Junho de 2011 Número 1 – Janeiro/Junho de 2011 83 84 fizesse parte do grupo familiar do marido. O matrimônio, ao invés, só seria reestabelecido com a criação de uma sociedade visando a geração e a educação da prole. Quem abraça esta teoria julga que houve um único tipo de matrimônio, opondo-se à existência do matrimônio sine manu, reconhecida pelos autores para explicar a exclusão do ingresso da mulher na família do marido, portanto sem os vínculos de agnação, ficando os da cognação; em tal caso o marido, mesmo sem ter poder ilimitado sobre a mulher e os seus bens (enquanto esta última ficava inserida na sua família de origem), possuía então a potestas maritalis, e podia exigir o respeito às exigências da comunidade de vida conjugal16. Em todo caso, em ambas as hipóteses, é fundamental a vontade dos dois para estabelecer e manter a relação conjugal. Pode-se, portanto, afirmar que na cultura romanística aflora o conceito de bonum coniugum, manifestado no consortium omnis vitae e na affectio maritalis. Ambos os conceitos, sob o nível existencial, consistem na relação inter-pessoal que se instaura entre os cônjuges, baseada no amor e no respeito mútuo. Se a affectio maritalis acabasse, terminava o matrimônio, tanto pelo divórcio por acordo mútuo, como por repúdio unilateral17. Compreende-se, portanto, como, na formação da idéia jurídica do matrimônio da Igreja, a evocação embora válida, à affectio maritalis, possui limites aplicativos. b)Conceitos patrísticos e incidência no corpus iuris canonici pré-codicial. — A recepção, portanto, da tradição romanística em nível do direito da Igreja é subordinada ao destaque que os conceitos indicados mereciam na igual dignidade entre os cônjuges (atribuindo ao amor o primado na união conjugal)18 e na indissolubilidade intrín- seca do matrimônio estabelecido por consentimento valido19 (ratum). A isto logo se ajuntaram, como elemento específico, as exigências superiores da fé ao enfrentar a união entre pagãos e convertidos ao Cristianismo, objeto de atenção desde São Paulo, para assegurar o bem das pessoas.20 Nestas bases se desenvolveu o instituto matrimonial na experiência eclesial,21 considerado desde o início como uma realidade humana e natural22, na qual a obra de evangelização não deseja contrastar ou sobrepor-se às dimensões humanas e sociais que lhe são próprias, mas aperfeiçoá-las com o anúncio salvífico23. O fundamento da sistemática matrimonial nesta esfera dupla (a ordem da criação e da graça) coloca no centro, como valores antropológicos, as dinâmicas de liberdade e doação comunicativa entre os cônjuges, onde a união sexual exprime a mais profunda verdade da pessoa24. A Igreja logo amadureceu a sua visão na dimensão transcendente do matrimônio25, progressivamente, se reconheceu a índole sacramental26. Em I Cor 7, 10-11 Paulo retoma a proibição de repúdio de Mt 5, 32 e 19, 9. 19 20 21 Em Iª Cor 7, 12 desenvolve-se a “dissolubilidade extrínseca” para salvar a fé; cfr. P. Huizing, El derecho canónico y a disolución del matrimônio, em Concilium, n. 87, 1973, 9 ss. Cfr. F. SALERNO, Prodromi medievali del diritto matrimoniale canonico, em P A. B0NNET-C. GULLO (organizadores), Diritto matrimoniale canonico, Città del Vaticano, 2002, 13 Ss.; J. GAUDEMET, Le mariage en Occident, Paris, 1987. 22 23 Cfr. G. FELICiani Le basi del diritto canonico, Bologna, 1997, 135. Cfr. E. SCHILLEBEEKCX, Il matrimônio. Realtà terrena e mistero di salvezza, Roma, 1971. Cfr. M. J. ARROBA CONDE, La coppia coniugale nella medicina canonistica: il matrimônio rato e non consumato, em C. BARBIERI (organizador), La coppia coniugale: attualità e prospettive in medicina canonistica, Città del Vaticano, 2007, 261 ss. 24 Com a benção nupcial manifestava-se a vontade de “casar-se no Senhor” (cfr. S.I. de ANTIOQUIA, Ad Polycarpum, 5, 2, em PG, 5, 724), conceito corrente na patrística (cfr. K. Ritzer, Le mariage dans les Eglises chrétienens. Du I au XI siècle, Paris, 1970), desenvolvido por Santo Agostinho (cfr. De Civitate Dei XIV, 22, em PL, 41, 429-430; De bono coniugali III, 3, em PL, 40, 375); cfr. M. J. ARROBA CONDE, op. cit., 266 ss. 25 16 17 Cfr. Ch. LEFEBVRE, op. cit., 110 ss. Contro l’esistenza del matrimônio “sine manu”, cfr. E. VOLTERRA, La conception du mariage à Rome, em Revue international des droits de l’antiquité, (1955), 365-409. Para ulteriores aprofundamentos sobre o direito matrimonial e familiar na época romana, cfr. G.L. FALCHI, Introduzione ai fondamenti del diritto europeo, Città del Vaticano, 2007, 233 ss. Cfr. Ef 5, 21-31; para São Paulo o matrimônio entra no nível da “nova vida em Cristo”, onde o amor entre os esposos (complementar e recíproco) é sinal do amor de Cristo pela Igreja e deve ter o primado. 18 Definida só no Concílio de Trento (séc. XVI), devido à urgência de outros problemas (como a admissão dos escravos ao “matrimônio de consciência”), e à dificuldade de considerar veículo de graça (cfr. GRAZIANO, Decretum, l, c. 101) uma realidade que inclui o exercício da sexualidade, num contexto longínquo para coletar os seus positivos valores; sobre este ponto, cfr. L. MUSSELLI-E. GRILLO, Matrimônio, trasgressione e responsabilità nei penitenziali. Alle origini del diritto canonico ocidentale, Pavia, 2007, 57 ss. 26 Suprema Lex Suprema Lex Número 1 – Janeiro/Junho de 2011 Número 1 – Janeiro/Junho de 2011 85 86 A Igreja juridicamente aceitou o direito romano com tudo aquilo que obrigava os cônjuges, exceto nos aspectos incompatíveis com o ius divinum 27 Nos enfrentamentos das regulamentações jurídicas do matrimônio, esta exceção colocou como ponto firme a igualdade entre homem e mulher na dinâmica constitutiva do casal conjugal, nunca foi abandonada, embora com oscilações lógicas que acompanham a encarnação do Evangelho na história28. Consequência principal da firmeza é o reconhecimento dado ao livre e recíproco consentimento como única causa eficiente do matrimônio, desvalorizando outros aspectos privilegiados pelo direito romano29 ou por outras legislações, que achavam incompreensível a consideração de igualdade dos esposos e, por conseguinte, o destaque exclusivo que cabe ao amor recíproco na vontade de constituir o estado de vida conjugal30. Para formulá-lo em termos jurídicos e em normas próprias31, a Igreja mantém o princípio básico da necessidade do livre consentimento como exigência intrínseca da essência do matrimônio32, pois nenhum poder humano possa supri-lo33, menos ainda, revogá-lo. O aperfeiçoamento evangélico nos confrontos do matrimônio juridicamente modelado pelo consentimento, como momento co nstitutivo, se livremente prestado, se fez logo constar a irrelevância atribuída à sua falta, para por fim ao mesmo livremente34. A fidelidade e a indissolubilidade intrínseca do matrimônio são fruto do próprio consentimento, adquirindo, pois, firmeza peculiar pela natureza sacramental das núpcias35. A necessidade do consentimento, estando em jogo a opção sobre o próprio estado de vida, é prova da defesa do valor de liberdade que, junto com a comunicação, fundamenta a visão personalista da antropologia cristã. Este foi, desde as origens, o eixo da ação da Igreja sobre o matrimônio, do ponto de vista doutrinal e teológico. Disto dão testemunho as coleções apostólicas, os cânones dos primeiros Concílios, os primeiros autores da Patrística, grega e latina, e os livros penitenciais. Portanto, se trata de intervenções não diretamente voltadas a criar leis, de natureza meta-jurídica, mas de grande destaque na configuração dos princípios de fundo da doutrina eclesiástica sobre o matrimônio, progressivamente constituídas no corpus iuris canonici, onde o eixo consiste na centralidade do consentimento. Conhecida é a discussão entre as Escolas de Bolonha e de Paris sobre a relevância da consumação do matrimônio por atribuir, ao pacto matrimonial válido, a nota de perpetuidade36. Numa visão 27 Antes de estabelecer uma sistemática jurídica própria, a ação da Igreja está coligada ao auge, à decadência e ao despertar do direito romano no tocante ao direito germânico, pelo que foi árduo estabelecer o núcleo original da sua disciplina normativa:cfr. F. SALERNO, op. cit., 16; cfr. L. MUSSELLI, Il matrimônio nel diritto canonico. Profili generali e processuali, em C. BARBIERI-A. LUZZAGO-L. MUSSELLI, Psicopatologia forense e matrimônio canonico, Città del Vaticano, 2005, 9 ss. Na I Cor 7, 3-4 na inculturação deste valor, Paulo raciocina em termos de igualdade; cfr. A. FUMAGALLI, Il matrimônio come bene interpersonale, em Aggiornamenti sociali, 2005, 790 55. 31 A disciplina estritamente jurídica da Igreja, forma-se no Medievo, precedida de longa experiência de jurisdição, primeiro nos fiéis (Episcopalis Audientia), depois nos súditos do império, sendo a Igreja a única autoridade pública, em Ocidente, para poder-se ocupar: cfr. M. J. ARROBA CONDE, op. cit., 267. Os autores sustentam que os impedimentos e a forma, com os quais o ordenamento regula a habilidade jurídica para prestar e manifestar o consentimento, respondem às exigências do próprio ordenamento, extrínsecas em si ou apenas indiretamente ligadas aos valores do vínculo conjugal; estes, ao invés, não poderiam surgir sem capacidade e vontade de obrigar-se a eles, única exigência intrínseca”: cfr. M. J. ARROBA CONDE, op. cit., 268. 32 33 A forma pode ser suprida ou dispensada, assim como os impedimentos estabelecidos no direito positivo. 34 28 Cfr. A. D’AURIA, Il consenso matrimoniale, Roma, 2007, 90 ss. 29 Com o ideal cristão, os principais contrastes são a prevalência do dote o os interesses familiares ao estipular as núpcias, a visão machista do pátrio poder, o divórcio e a irrelevância da autonomia da mulher, estranha ao direito Germânico que vê na cópula o momento constitutivo do matrimônio: cfr. L. MUSSELLI, Il matrimônio nel diritto canonico, cit., 10 ss. 30 35 A indissolubilidade intrínseca é a impossibilidade de dissolver a união válida sem a intervenção do poder público, ou sem uma forma reconhecida. A revogação do consentimento explica a legitimidade do divórcio no direito romano, com apenas a entrega do libelo de repúdio: cfr. R. ORESTANO, La struttura giurídica del matrimônio romano dal diritto classico al diritto giustinianeo, Milano, 1951. Cfr. M. J. ARROBA CONDE, op. cit,, 268: “achar natural a obrigação de fidelidade, oriunda da propriedade essencial da unidade, contrasta com as formas, mesmo residuais, de matrimônio poligâmico; mais frequente, também na doutrina clássica, deve-se considerar que a razão natural sozinha não demonstra que o matrimônio seja absolutamente indissolúvel”. 36 Cfr. A. OTTAVIANI, Institutiones luris Publici Ecclesiastici, II. Ecclesia et Status, Città del Vaticano, 1960, 44 ss. Suprema Lex Suprema Lex Número 1 – Janeiro/Junho de 2011 Número 1 – Janeiro/Junho de 2011 87 88 cristã da união conjugal não tem lugar as teorias que fazem depender a perpetuidade do vínculo da permanência da affectio maritalis. A instância inteira da legislação eclesiástica matrimonial referente ao corpus iuris canonici amadurece na consolidação da centralidade do consentimento legitimamente manifestado. O consentimento, e não a cópula ou a affectio maritalis, é o fator constitutivo do matrimônio, ainda que só ao matrimônio rato e consumado acrescenta-se-lhe a nota da indissolubilidade. Sob o aspecto jurídico, a situação descrita aparece, à primeira vista, pouco atenta aos aspectos afetivos. Seria, porém, redutivo examinar a questão apenas sob o aspecto da lenta formação de normas positivas, sobretudo tardias na Igreja. Antes das normas, e como quadro interpretativo das mesmas estão os ensinamentos de alguns Padres da Igreja, cujas doutrinas podem ser chamadas de origens daquilo que, muito tardiamente, foi formulado e levado ao conceito de bonum coniugum. O primeiro autor a quem é necessário citar é Santo Ambrósio, mesmo definindo a mulher como uma ajuda que Deus concedeu ao homem em vista da procriação, Santo Ambrósio sublinha elementos preciosos orientados à compreensão do amor recíproco e do matrimônio como sacramento. De fato, no pensamento do grande bispo de Milão, emerge não apenas a uma caro, elemento que sublinha a união física e material, mas também a caritas, isto é o amor conjugal como elemento espiritual; neste sentido, mesmo sem tirar ainda precisas consequências jurídicas, entende-se que o matrimônio não se origina só pelo consentimento humano37, mas deriva também do próprio Deus e requer ser vivido secundum harmoniam, portanto segundo a caridade, porque Deus est Caritas 38. Grande riqueza sobre conteúdos do matrimônio encontra-se nas obras de Santo Agostinho, que delineia um quadro de valores e juízos 37 Cfr. S. AMBRòsiO, De mist. virg., 6, 41. 38 Paulo VI, na encíclica Humanae vitae, n. 8,1, retoma parte do pensamento de Santo Ambrósio na passagem em que se afirma que “o amor conjugal revela a sua verdadeira natureza e nobreza quando é considerado na sua origem suprema, que é Deus é amor” (cfr. em AAS, 60, 1968, 485). morais que por séculos informaram a consciência e a ética cristãs, merecendo-lhe o qualificativo de “doutor do matrimônio”. Com ele, por vez primeira, verifica-se a passagem de uma visão prevalentemente ascética, forjada nos confrontos entre matrimônio-virgindade, para um interesse puramente teológico sobre o matrimônio, considerado na bondade que possui em si mesmo, identificando aqueles bens que o resgatam, contrabalançando, o mal da concupiscência que se achava estar inserido no ato conjugal39. Nas obras que revelam esta prospectiva, o De bono coniugali e o De nuptiis et concupiscientia, o relacionamento conjugal é considerado um bem instituído por Deus40. A verdadeira bondade do matrimônio origina-se dos próprios bens que são o bonum prolis, o bonum fidei e o bonum sacramenti, todos igualmente fundamentais no matrimônio, Santo Agostinho cria também uma hierarquia colocando em primeiro lugar o bonum prolis, que, além de tornar fecundo o matrimônio, torna-o também fértil de tradições e de afetos orientados para os valores da religião cristã41. Nesta trilogia não é expressamente formulado o bonum conjugum, que seria entendido como o conjunto de todos os três bona. Todavia, Santo Agostinho fala de amor coniugalis, visto como oriundo do relacionamento matrimonial e da fraterna societas radicada na natureza social do homem e no amor espiritual das almas. Do amor animarum descende a recíproca ajuda dos cônjuges para alcançar o ideal de perfeiç ão cristã e de felicidade ao que cada um tende. A dupla dimensão da união espiritual e sexual, fio condutor da Patrística e da Teologia escolástica, harmoniza-se no pensamento de Santo Tomás de Aquino, que provê uma sistematização orgânica dos fins do matrimônio, distinguindo nisso duas realidades ou deveres. A primeira é a realidade natural, descrita com o termo officium naturae, 39 Cfr. E. MONTAGNA, Bonum coniugum: profili storici, em AA.V., Il bonurn coniugum nel matrimônio canonico, Città del Vaticano, 1996, 35 ss. Cfr. SANTO AGOSTINHO, De nuptiis et concupiscientia, I, XI, 12; De bono conjugali, III. 40 Cfr. SANTO AGOSTINHO, De bono coniugali, II. 41 Suprema Lex Suprema Lex Número 1 – Janeiro/Junho de 2011 Número 1 – Janeiro/Junho de 2011 89 90 comum aos animais e consiste no mandato de perpetuar a raça humana; trata-se de uma tarefa confiada ao homem na sua qualidade de criatura racional. A segunda denomina-se officium civitatis, dever especificamente humano que inclui o amor conjugal, porque se realiza na ajuda mútua dos cônjuges, dando vida a um consortium totius vitae. Isto é o pressuposto fundamental para realizar o fim primário do matrimônio, que também Santo Tomás reconhece-o na procriação e na educação dos filhos42. Apesar disto, Santo Tomás afirma, pela vez primeira, com deci são, superando dúvidas e incertezas sobre a índole sacramental, que com o matrimônio se comunica uma graça específica43, exaltando o amor conjugal como maxima amicitia entre os cônjuges: “Inter virum et mulierum maxima amicitia esse videtur: adunantur enim non solum in actu carnalis copulae, quae etiam bestias quamdam suavem facit amici tiam, sed ad totius domesticae conversationis consortium”44. Enquanto sublinha a força coesiva do compromisso inserido no amor conjugal, pode-se atribuir ao Doctor Angelicus uma concepção personalista do matrimônio. Neste sentido, pela literatura patrística, pela escolástica e pelas obras de Santo Tomás emanam referências preciosas ao tema do amor conjugal, entendido como bonum coniugum, mesmo que não adotando de modo explícito tal expressão, que só graças ao Concilio Vaticano II fará o seu ingresso oficial na doutrina canônica, desembocando no código de direito canônico de 1983, graças à abordagem do Magistério, da teologia e das ciências antropológicas 45. Nem por isso foram inteiramente deixados de lado, mesmo em documentos oficiais da Igreja, os elementos diretamente relacionados com o amor conjugal, como exige o dado revelado na Escritura, horizonte de interpretação obrigatória do dado normativo46. c) O código do 1917 e os trabalhos de revisão pós-conciliares. — O codex iuris canonici do 1917 acolheu uma concepção contratualista, materialista e procriacionista do matrimônio, sem, porém, dar uma definição do instituto. Isto comportou que fosse limitada o destaque jurídico dos elementos inerentes à união espiritual e interpessoal e, focalizando em excesso a união física dos cônjuges, que é a base permanente do consórcio conjugal. O objeto formal do consentimento era o ius in corpus, expressão que continha em si as propriedades essenciais do matrimônio, quais a unidade e a indissolubilidade, e o fim primário disso, a procriação e a educação da prole. Com efeito, mesmo sem definir o matrimônio, o CIC de 1917 prevê a definição do consentimento matrimonial, como ato jurídico do qual surge a união conjugal, entendendo-o no antigo c. 1081 § 2 como “actus voluntatis quo utraque pars tradit et aceptat ius in corpus, perpetuum et exclusivum, in ordine ad actus per se aptos ad prolis generatioem”. Em símile contexto foram esquecidos, pela maioria dos autores47, os elementos de natureza afetiva e interpessoal do matrimônio, reduzidos aos dois elementos expressos pela lei com fórmulas inapropriadas, isto é, o mutuum adiutorium e remedium concupiscentiae, indicados pelo c. 1013 do código de 1917 como fins secundários da união conjugal, subordinados ao fim primário da procriação, apesar de escassa importância na averiguação da validade ou da nulidade do matrimônio48. Estas fórmulas não só empobreceram o significado Sobre a importância da individua vitae consuetudo encontram-se traços na decretal de Alexandre III (C. 11, 10, De praesumpt. Il, 23). Sobre a importância dada ao amor conjugal no Concílio de Trento e no sucessivo catecismo romano, cfr. E. de MARTINO, Elementi di prova per la rilevanza del bonum coniugum nelle cause di nullità di matrimônio, Roma, 2006, 61 ss.; P. A. BONNET, L’essenza del matrimônio. Contributo allo studio dell’amore coniugale, I. Il momento costitutivo del matrimônio, Padova, 1976. 46 42 Cfr. M. F. POMPEDDA, Amore coniugale e consenso matrimoniale, em Studi di diritto matrimoniale canonico, Roma, 1993, 28 ss. Sobre este ponto, cfr. P. DELHAYE, Fijación dogmática de la teologia medieval. Sacramentum, vinculum, ratum et consummatum, em Concilium, n. 55, 1970, 243 ss. 43 Cfr. Santo TOMAS De AQuINO, Summa contra gentiles, III, 123. 47 Cfr. U. NAVARRETE, Structura iuridica matrimonii secundum Concilium Vaticanum II, em Periodica de re morali, canonica, liturgica, n. 57, 1968, 170 ss. 48 44 45 Cfr. A. LANZA, De fine primario matrimonii, em Apollinaris, 1940, 57-83 e 218-264. A este esquema, com efeito, refazia-se a jurisprudência: cfr. coram Wynen 22 de janeiro de 1944, em SRRD, 36 (1944) 60 ss. Suprema Lex Suprema Lex Número 1 – Janeiro/Junho de 2011 Número 1 – Janeiro/Junho de 2011 91 92 da comunhão (consuetudo) de vida, reduzindo-a à co-divisão de mesa e leito (comunio mensae et tori), mas, também, levam a expulsá-la da essência jurídica do matrimônio, ficando apenas o plano moral e ético49. Esta doutrina majoritária teve também a confirmação oficial num decreto do então Santo Ofício, cujo pressuposto é que o fim é o elemento que distingue de modo especifico a sociedade, embora deve ser um único fim, indiviso e diverso do fim de outras sociedades. Com semelhante ponto de partida mesmo que o matrimônio tenha mais de um fim natural, o que o distingue das outras sociedades é a procriação, único fim primário; os outros estão contidos nesse, ou servem só de auxílio50. Apesar disto, mesmo neste contexto legislativo e de doutrina oficial, houve autores que, partindo de um pressuposto mais aderente à centralidade das pessoas dos cônjuges, consideravam todos os fins matrimoniais iguais e equivalentes51, não faltando porém algum autor que considerava a comunidade de vida e a relação conjugal como o verdadeiro fim primário, ao qual a procriação era subordinada52. Estas concepções são os pródromos mais imediatos da doutrina do Concilio Vaticano II, que sobre o tema matrimonial tem representado uma autêntica reviravolta personalista. 3. O Concílio Vaticano II clarificou, na constituição Gaudium et Spes, os valores espirituais e naturais do matrimônio, sintetizando-os no conceito do bonum coniugum. Não se trata de uma noção que se refira apenas a teologia, a pastoral, ou a mera dimensão existencial da vida conjugal. Na realidade, sob a égide também do CIC 1917 os aspectos inerentes ao recíproco bem entre os esposos foram consi49 A viravolta conciliar origina-se de ter definido o matrimônio como “intima communitas vitae et amoris” (Gaudium et Spes n. 48), onde o conceito de amor é entendido, não em sentido individualista ou subjetivista, mas personalista, isto é, como dimensão objetivamente personalizante, entendendo a pessoa como radicalmente chamada a amar e a ser amada (ibidem n. 4). Isto confere maior dignidade aos cônjuges, sublinhando o elemento espiritual do vínculo. Esta prospectiva propõe a imagem de uma sociedade conjugal, não mais fundamentada apenas em bases materiais, mas sobre todas as exigências da pessoa humana, num relacionamento de amor, consistente na vontade de aceitação e doação recíproca54. a) Os trabalhos de revisão do codex iuris canonici de 1917. — Estes conceitos conciliares não podiam ficar sem incidência jurídica, como demonstram as sucessivas aplicações jurisprudenciais e doutrinais, e, de modo especial, os trabalhos de revisão do CIC 1917, retomados após o Concilio e concluídos em 1983 com a promulgação do novo código. Com efeito, a jurisprudência, mesmo sob a vigência do código prece dente, apropriou-se, progressivamente, da doutrina conciliar sobre o matrimônio entendido como comunidade de vida e de amor ordenada ao bem da pessoa dos cônjuges. Esta finalidade encontra- Sobre o peso desta doutrina, apresentada no tratado do Card. Gasparri, cfr. S.VILLEGGIANTE, op. cit., 692. 53 Cfr. S.C.S. OFICIIJM, Decretum de finibus matrimonii, de 1º de abril de 1944, em AAS, 36 (1944) 103. 54 50 51 derados objeto da ação formativa e pastoral, mas alheios a essência jurídica do matrimônio (enquanto reduzida à traditio et aceptatio do ius in corpus) podia não garantir êxitos eficazes, não estando excluída a constituição do matrimônio válido (mesmo em termos abstratos e aberrantes) quando um dos cônjuges é impulsionado a isso por sentimentos negativos (por ex., a vontade de fazer o outro sofrer), ou instrumentais (por ex., de tipo econômico)53. Cfr. H. DOMS, Du sens et la fin du mariage, Paris, 1937. Tal é o caso de Krempel; a respeito, cfr. C. PEÑA, El matrimônio. Derecho y praxis de la lglesia, Madrid, 2004, 39. 52 Cfr. S. VILLEGGIANTE, op. cit., 693, onde comenta as observações de A.C. Jemolo sobre estas aberrações. Sobre a reviravolta conciliar, cfr. F. MENNILLO, Rilevanza giurídica dell’amore coniugale nel matrimônio canonico, Napoli, 2006, 29 ss. Sobre o matrimônio no Concílio e no pós-Concílio, cfr. S. LENER, Matrimônio e amore coniugale nella Gaudium et Spes e nella Humanae vitae, em La civiltà cattolica, 1969, 25 ss. Suprema Lex Suprema Lex Número 1 – Janeiro/Junho de 2011 Número 1 – Janeiro/Junho de 2011 93 94 -se, concretamente, no desenvolvimento da vida conjugal (isto é, no matrimônio in facto esse). Na superação do obstáculo que representava a precedente legislação, centrada no consentimento, como momento constitutivo do matrimônio (in fieri), permanece pedra miliar uma sentença rotal de 1969, na qual se afirma que tudo isto que se requer do matrimônio in facto esse deve estar presente (nas intenções e nas capacidades) no matrimônio in fieri55. indole sua naturali ad bonum coniugum atque ad prolis procriationem et educationem ordinatur” 59. No exame final do projeto por parte da pontifícia Comissão, ampliada no ano de 1981, acabou a disputa sobre a essencialidade do fim inerente ao bonum coniugum 60, mas desapareceu, ao mesmo tempo, a expressão ius ad vitae communionem, que estava presente nos trabalhos preparatórios desde os anos de 197161, porque se temia pudesse criar logo problemas interpretativos. Deste modo a comunidade de vida conjugal começou a ser interpretada como parte da essência jurídica (e não só da ética) do matrimônio, e portanto do consentimento. Outras sentenças rotais moveram-se na mesma direção56 e a doutrina iniciou a falar do direito à comunidade de vida, empenhando-se para dar entrada e destaque jurídico adequados ao conceito de amor conjugal57. Deixando de lado o quanto possam ser convincentes as motivações de não ter sido inserido o ius ad vitae communionem nos esquemas finais do CIC, fica salvo o valor da affectio conjugalis, presente na visão personalista do matrimônio do Concilio Vaticano II. Com efeito, mesmo subtraída da definição do código, a ordenação do matrimônio a comunidade de vida está presente seja na descrição do pacto conjugal como totius vitae consortium, seja na proposição das suas duas finalidades essenciais, sem hierarquia entre fim primário e secundário. Graças aos aportes doutrinais e jurisprudenciais da época pós-conciliar, o conceito de bonum coniugum aparece também nos trabalhos de revisão do código Pio-Beneditino. Estes trabalhos sob o ponto que aqui interessa, estão caracterizados por duas linhas de tendência, entre si potencialmente contrastantes: por um lado, a decidida inclusão do bonum conugum entre as finalidades essenciais do pacto conjugal, contra uma minoria de consultores que preferia elimina-lo, para retê-lo, sobretudo, como fim subjetivo dos cônjuges58; por outro lado, a exclusão do conceito de comunidade de vida e de amor, tido pela maioria como impróprio num texto de natureza jurídica. Assim, no Esquema de fevereiro de 1977, a ordinatio ad bonum coniugum é introduzida como finalidade do matrimônio, igualmente a ordinatio ad bonum prolis. A Comissão pontifícia optou pela seguinte definição: “matrimonium est viri et mulieris totius vitae coniuctio quae 55 Cfr. coram Anné sent. diei 25 febbraio 1969, em SRRD, 61(1969)174-192. Para uma resenha, cfr. J. . SERRANO RUIZ, El derecho a la comunidad de vida y amor conyugal como objeto del consentimiento matrimonial: aspectos jurídicos y evolución de la jurísprudencia de la S. Rota Romana, em Ephemerides iuris canonici, 1976, 5 ss. 56 Cfr. G. DALLA TORRE, Matrimônio e famíglia. Saggi di storia del diritto, Roma, 2006, 111 ss.; AA.VV., L’amore coniugale, Città del Vaticano, 1971, especialmente o artigo de O. ROBLEDA, Amore coniugale e atto giurídico, 215 ss. 57 58 Neste ponto, cfr. S. VILLEGGIANTE, op. cit., 697. Portanto, a nova legislação canônica, abraçando a concepção personalista do matrimônio, sanciona o objeto do consentimento matrimonial como o ato de vontade “quo vir et mulier foedere irrevocabili sese mutuo tradunt et acipiunt” (c. 1057 § 2), oferecendo também, pela vez primeira no texto jurídico, uma definição de matrimônio: “Matrimoniale foedus, quo vir et mulier inter se totius vitae consortium constituunt, indole sua naturali ad bonum coniugum atque prolis generationem et educatonem ordinatam, a Christo Domino ad sacramenti dignitatem inter baptizatos evectum est” (c. 1055 § 1). b) A ‘árdua hermenêutica” das disposições do CIC 1983. – Como toda novidade, também a inclusão do bonum coniugum, entre as finalidades essenciais da união conjugal, resultou motivo de difícil e árdua interpretação. As principais dificuldades foram o modo de 59 Cfr. PONTIFICIA COMISSIO CODICI IURIS CANONICI RECOGNOSCENDO, Acta commissionis, em Communicationes, n. 9, 1977, 205. 60 61 Cfr. Communicationes, n. 15, 1983, 221. Cfr. Communicationes, n. 3, 1971, 75. Suprema Lex Suprema Lex Número 1 – Janeiro/Junho de 2011 Número 1 – Janeiro/Junho de 2011 95 96 entender a coordenação (sem subordinação) com o outro fim essencial (a procriação e educação dos filhos) e os seus conteúdos (sem reduzi-los aos elementos secundários do CIC de 1917). Neste sentido, devem ser consideradas as regras hermenêuticas do direito canônico, entre as quais prevalecem o significado textual e o contextual (c. 17), é imprescindível recordar que o Concilio Vaticano II é o contexto obrigatório para a interpretação do código, como expressamente teve que relembrar João Paulo II na constituição Sacrae Disciplinae Leges 62, com que o promulgava. Para entender, portanto, a noção de bonum coniugum são fundamentais as doutrinas conciliares sobre a promoção da dignidade humana, entendida como capacidade de transcender para a perfeição através da comunhão com outros; no matrimônio tal impulso realiza-se pela una caro em nível material e espiritual, com o enriquecimento interior e o contínuo aperfeiçoamento que faz emergir o melhor de si mesmos. Neste contexto, o consentimento matrimonial, qual ato suficiente para dar vida ao vínculo conjugal, deve-se considerar como ato de vontade de doação recíproca e irrevogável das próprias pessoas dos cônjuges, cujo conteúdo é o compromisso de estabelecer um consortium totius vitae. A dimensão personalista, isto é, de liberdade e dignidade pessoal, é colocada em estreito liame com a dimensão de relação própria da vida conju gal, dando um rosto concreto de resposta à vocação e ao destino de participação no amor de Deus, através da vontade de amá-lo concretamente no sujeito escolhido como cônjuge e, enquanto tal, cônjuge. Assim, sobre a coordenação do fim generativo do matrimônio, interpretar o bonum coniugum, no contexto conciliar, significa supe rar não só a ultrapassada hierarquia dos fins, mas toda e qualquer idéia de separa ção entre o amor conjugal e a procriação, sendo inteligível esta última apenas como fruto e sinal do próprio amor. Neste sentido, mesmo sendo os dois bens-valores autônomos em si, Cfr. João Paulo II, Constitutio Apostolica, Sacrae Disciplinae Leges, de 23 de janeiro de 1983, em AAS, 75, 1983/Il, VII-XIV. 62 não há lugar para contraposições, sem prejuízo de um ou de outro. O reconhecimento teológico-juridico dado à sexualidade interpessoal e, condividida no matrimônio, permite entender a compatibilidade entre matrimônio e esterilidade, enquanto não permite rompimentos voluntários entre união conjugal e abertura à vida, não sendo compreensível, numa visão madura da relação interpessoal e, o fechamento do casal em si próprio ou dos síngulos membros às próprias necessidades individuais63. Esta última nota introduz o segundo problema hermenêu tico, com relação aos conteúdos do bonum coniugum, pois seu dado jurídico normativo necessita do auxílio da antropologia e da teologia que se vinculam à doutrina conciliar sobre a pessoa humana como ser livre chamado à relação. Isto significa reconhecer a pertinência antropológica da comunicação por si livre, que se coloca na ordem do ser e não só na do agir para remediar as próprias carências64. A comunicação por si é entendida como vínculo constitutivo de cada pessoa, que não anula a liberdade individual, mas orienta as próprias escolhas de perfeição pessoal para um destino de complementaridade e reciprocidade amorosa. Liberdade, comunicação, aperfeiçoamento pessoal em complementaridade e reciprocidade amorosa são, portanto, os grandes temas em torno dos quais delineiam-se os conteúdos do bonum coniugum, querendo-se ficar fiel à doutrina do Concílio (onde se forjou o conceito), evitando interpretações redutivas, ancoradas apenas no mutuum adiutorium et reme dium concupiscentiae do CIC de 1917, totalmente insuficientes para dar razão à intima communitas vitae et amoris, do n. 48 da Gaudium et Spes. A fidelidade ao Concílio, onde se sublinha que o vínculo conjugal é um bem que non ex humano arbitrio pendet, obriga porém a evitar impostações sobre o conteúdo do bonum coniugum de molde subjetivista ou arbitrário. Tanto pela 63 Sobre a compatibilidade entre matrimônio e esterilidade, cfr. M. J. . ARROBA CONOE, op. cit., 265. Sobre a inseparabilidade dos dois bens «sem alterar a vida do casal” confira-se o n. 2363 do Catecismo da Igreja católica. 64 Catecismo da Igreja católica n. 2361. Suprema Lex Suprema Lex Número 1 – Janeiro/Junho de 2011 Número 1 – Janeiro/Junho de 2011 97 98 teologia (ao interpretar o dado bíblico) como pela antropologia (ao refletir sobre as dimensões humanas acima citadas), encontram-se elementos úteis para evitar as citadas impostações redutivas e arbitrárias, mesmo devendo reconduzi-las à obrigada jurisdicidade. A narrativa bíblica da criação do homem e da mulher nos oferece a reflexão primeira sobre a complementaridade que, no matrimônio, faz dos cônjuges uma só carne 65. O relacionamento homem-mulher é fundamental expressão do ser criado ao ponto de ser colocado na visão teológica em relação à semelhança com o criador: “Deus criou o homem à sua imagem, à imagem de Deus o criou, macho e fêmea os criou” (Gen. 1, 27). A diferenciação sexual, no sentido bíblico, permite sustentar que “o homem enquanto tal não existe totalmente, mas só existe como macho ou fêmea. Ele encontra sua plenitude só no ser um com o outro e este mistério que ocorre entre o homem e a mulher é tão profundo que o seu liame recíproco é imagem e semelhança da aliança entre Deus e o homem” 66. Antes do pecado original o homem e a mulher são apresentados na narrativa bíblica como iguais em dignidade e destinados a uma união que abarca a pessoa na sua totalidade, como sugerem as expressões “osso dos meus ossos” e “carne da minha carne” (Gen. 2, 18-25). Disto se origina, pela sucessiva tradução jurídica, que a complementaridade e reciprocidade entre homem e mulher estabelecem-se entre “iguais” e que a “companhia entre os dois” supera o nível do serviço material e a fusão sexual, para abarcar a totalidade pessoal e espiritual. É a limitação individual a mover a pessoa, em qualquer escolha de vida, a procurar o complemento e aperfeiçoamento de si no liame com os outros. Entre as escolhas de vida, o matrimônio “é a mais completa forma de liame pessoal entre homem e mulher. Isso, como nenhum outro relacionamento 65 Cfr. F. FESTORAZZI, Principi di teologia biblica sul matrimônio e la famiglia, em Enciclopedia della famíglia, II, Napoli, 1971, 23; A. MELUZZI, Eros Agape.Un’unica forma di amore, Roma, 2006, 207 ss. W. KASPER, Teologia del matrimônio cristiano, Brescia, 1979, 29. 66 entre homens, abarca totalmente a pessoa dos dois partner em todas suas dimensões” 67. Não comprometem a citada compreensão de igualdade entre cônjuges as conhecidas palavras de São Paulo aos Efésios (5, 22-23), onde ele manifesta-se em termos de submissão da mulher ao marido. A teologia moderna explica que tal submissão não tem significado servil, enquanto é inserida no simbolismo do amor de Cristo pela Igreja, e é justificada e compensada pelo comando (voltado ao marido) de amar a mulher em tal prospectiva. A submissão entende-se, portanto, como resposta ao amor, querendo mostrar a doação total e incondicionada de si68. O próprio São Paulo, na primeira carta aos Corintios (7, 1-7), afirma a igualdade dos sexos, reportando a unidade entre os cônjuges a serviço da comunidade, como sinal definitivo e exclusivo de um amor que implica não pertencer mais só a si mesmos. As propriedade do amor conjugal, como a fidelidade e a perpetuidade, incidem, portanto, na compreensão do bonum coniugum e são reforçadas pela dignidade do matrimônio como evento sacramental na comunidade eclesial69. Passando ora às contribuições que, pela reflexão antropológica, podem servir para a compreensão do bonum coniugum, deve-se reconhecer que no matrimônio é carente a prospectiva da filosofia do direito70, enquanto existem reflexões eficazes sobre o amor conjugal no nível geral da filosofia. No pensamento aristotélico, recebido por Santo Tomás, usa-se a mesma linguagem quando se trata da verdade para comunicar e do amor para doar, considerado como especifico ato da vontade. Sobre este ato, Santo Tomás afirma que o objeto da vontade que doa deve ser duplo: o bem de doar e o 67 W. KASPER, op. cit., 19. neste sentido, o autor sustenta: “è sensato, portanto, que uma plena união sexual entre homem e mulher tenha a sua sede no matrimônio”, (ibidem, 20). 68 69 70 Cfr. W. KASPER, op. cit., 52. Cfr. W. KASPER, op. cit., 49. Cfr. F. D’AGOSTINO, Verità, moralità, diritto: profili giuridici su matrimônio e famíglia, em Anthropotes, 1999, 389 ss. Suprema Lex Suprema Lex Número 1 – Janeiro/Junho de 2011 Número 1 – Janeiro/Junho de 2011 99 100 sujeito a quem se deve doar71 A respeito dos conteúdos do bonum coniugum, este pensamento ilumina a sadia subjetividade com que interpretá-lo, isto é, a irrepetibilidade de cada síngula pessoa a cujo bem juridicamente se entende obrigar. conciliar, deve-se prover a redução própria da jurisdicidade para conseguir uma definição do bonum coniugum e o seu posicionamento na sistemática matrimonial, especialmente quanto ao seu relacionamento com o outro fim essencial, e também aos seus conteúdos. De matriz platônica é a metafísica do amor de Schophenauer, onde o amor toma a forma de admiração, de vontade de sobrevivência e é, portanto, expressão refinada do instinto, compreensível só pensando no interesse pela vida e pela geração72. Esta concepção oferece um aspecto de complementaridade, enquanto a teoria platônica configura o amor como desejo de eternidade, ou seja como contemplação de um ideal verdadeiro e perene, portanto de aperfeiçoamento73. Este pensamento completa-se nas reflexões de Hegel, que entende a experiência do amor como condição da subjetividade e da verdade de si. Em tal modo, o amor torna-se objeto de esforço de cada espírito, e a finalidade dos sexos, mesmo permanecendo, assume um significado também espiritual74. A primeira observação a se fazer é que a jurisdicidade do matri mônio não deriva do fato que disso se ocupe a lei positiva, mas, mais radicalmente, do fato que o matrimônio realiza a essência da jurisdicidade, isto é, a relação75, ou, mais precisamente, a inter-subjetividade, que na união conjugal como essência objetiva é inter-personalidade,. Esta inter-personalidade, sendo ordenada ao bem das pessoas, atua-se no matrimônio ainda com maior riqueza que em outras relações jurídicas. Com efeito, o bonum coniugum termina por ser um conteúdo objetivo de justiça, tanto como expectativa legítima de cada cônjuge, como enquanto obrigação juridicamente exigível. c) A chave de leitura da necessária jurisdicidade do bonum coniugum. — Uma vez apontadas as dificuldades hermenêuticas, procurando amealhar um tesouro dos vários chamados dos meta-jurídicos, na linha da obrigação de referência ao contexto da doutrina Cfr. S. TOMÁS DE AQUINO, Summa Teologica I, q. 20, a. 1 ad 3: “O ato de amor tende sempre para dois objetos, para o bem que se quer a qualquer um e para aquele a quem se quer o bem, porque amar alguém quer precisamente dizer querer-lhe o bem. Portanto do momento que alguém se ama, quer a si mesmo o bem, e este bem procura de uni-lo a si mesmo por quanto pode. Por este motivo o amor chama-se força unitiva. Enquanto pois alguém ama o outro, quer o bem a este outro e o trata como a si mesmo, dirigindo-lhe o bem como a si mesmo. Neste sentido o amor se diz força agregadora, porque alguém agrega um outro a si mesmo e trata-o como um outro si mesmo.”. 71 72 73 74 Cfr. A. SCHOPENHAUER, Il mondo come volontà e rapresentazione, Il, Bari, 1928, 6 ss.: «Isto que atrai assim forte e exclusivamente o um ao outro dois indivíduos de sexo diferente, é a vontade de viver de toda a espécie, que por antecipação objetiva-se, num modo conforme os seus intentos em um ser ao qual estes indivíduos podem faze-lo nascer” PLATÃO, Il convito, 206 e.: «Eis portanto a que coisa tende o amor, à posse perene do bem”. Para aprofundar a dimensão filosófica do matrimônio, cfr. F. D’AGOSTINO, op. cit., 375 ss. Cfr. G.W.F. HEGEL, La fenomenologia dello spirito, em Filosofia, I, Milano, 2003. Alguns autores tem definido o bonum coniugum como o quartum bonum a ser acrescentado aos tria bona de Santo Agostinho, arguindo que estes últimos representam valores e propriedades do matrimônio76, enquanto o bonum coniugum não expressaria um fim do matrimônio, mas dos cônjuges77. Negar autonomia (como quartum) ao bonum coniugum talvez tornaria menos clara a irredutibilidade do mesmo ao ius in corpus, e o seu liame de coordenação com a outra finalidade do pacto conjugal. Ao mesmo tempo, relaciona-lo exclusivamente às pessoas (como fim inerente só a elas) pode ofuscar a jurisdicidade dos seus conteúdos, vista a árdua delimitação, com relação à sua exigibilidade e à sua condição de deveres de justiça, de alguns aspectos do personalismo expostos anteriormente. Por esta razão, firmando a autonomia do bonum coniugum e a sua natureza essencial, qual elemento constitutivo do pacto conjugal, 75 Sobre a inclusão do matrimônio no gênero das relações em Santo Tomás, cfr. S. VILLEGGIANTE, op. cit., 697. 76 Cfr. S. AGOSTINHO, De bono coniugale, cap. 24, n. 32: “Haec omnia bona sunt propter quae nuptiae bonae sunt: proles, fides, sacramentum”. 77 Cfr. C. BURKE, Il bonum coniugum e il bonum prolis: fini o proprietà del matrimônio?, em Apollinaris, 1989, 560 ss. Suprema Lex Suprema Lex Número 1 – Janeiro/Junho de 2011 Número 1 – Janeiro/Junho de 2011 101 102 para não esquecer os irrepetiveis contornos derivantes das pessoas dos cônjuges (verdadeiro objeto material do consentimento), parece mais pertinente assumir uma outra chave de leitura sobre sua jurisdicidade. Mais ainda como quartum bonum, o destaque jurídico do bonum coniugum seria mais claro e unívoco se entendido como uma “prospectiva”. Trata-se de prospectiva juridicamente exigível, entre elas entender as outras dimensões do pacto conjugal. Esta prospectiva, na minha opinião, encontra-se no próprio texto da lei, que descreve o conteúdo geral do pacto conjugal com a fórmula consortium totius vitae, horizonte mais preciso, que o legislador religa a ordenação do matrimônio ao bem dos cônjuges. Com efeito, a escolha legislativa do termo consortium expressará a jurisdicidade do recíproco envolvimento dos cônjuges78, cujo compromisso específico descreve-se como um vínculo a “correr a mesma sorte” (cum sorte)79. Esta concreta prospectiva é objetiva em si, ainda que devendo medir-se com as pessoas dos cônjuges que a realizam, ligados mutuamente nas várias dimensões antropológicas e espirituais. O liame que corre a mesma sorte, enquanto tal, é jurídico, porque o consórcio é uma realidade surgida do recíproco e livre consentimento, no qual se dá a plena (totius) relação inter-pessoal e, que pressupõe o reconhecimento do outro como pessoa, isto é, como sujeito de direitos e deveres, além do que como um ser humano de valor irrepetível revestido de dignidade igual à própria80. A nota jurídica colocada pela lei em relação imediata com o consortium é a totalidade (totius vitae, c. 1055 § 1). Isto significa que a doação e a aceitação entre os cônjuges abarca cada aspecto da pessoa (e não só o sexual), compreendendo a pessoa na sua globa78 A imprecisão das expressões “communio vitae” ou “coniuctio” (pela dificuldade de medir o seu grau e qualidade jurídica) fez preferir “consortium”, termo mais preciso, mesmo na sua generalidade, sem com isso eliminar (visto o seu significado) os aspectos personalistas inseridas nas fórmulas abandonadas. 79 Cfr. A. MOSTAZA, El “consortium totius vitae” en el nuevo código de derecho canónico, em Curso de derecho matrimonial y procesal canónico para profesionales del foro, VII, Salamanca, 1986, 83 ss. Cfr. C. PEñA, op. cit., 29 e 34. 80 lidade existencial. Embora a referência à integridade da pessoa não seja admissível reconduzi-la a uma perda de identidade pessoal e, deve entender-se em função da constituição de uma nova realidade de coesão interpessoal e, como comunhão aperfeiçoante de cada uma das pessoas. Isto coloca em estreita união o consortium e o bonum coniugum, e reafirma no intuito de entendê-lo, em sentido jurídico, como prospectiva imprescindível a respeito das outras dimensões do pacto conjugal, com conteúdos cujo destaque será colocado só na sua qualidade de conteúdos conjugais objetivamente personalizantes, mesmo na variedade de traduções do mesmo bem que cada síngulo casal cumpre. Deste modo se evita também o esvaziamento jurídico da nota de “plenitude”, sem entendê-la como compreendente de qualquer exigência das pessoas, mas nem sequer como referente a uma mera oferta de prestações sem o fim personalizante que o bem recíproco exige na nova realidade do consortium. Se esta interpretação for fundamentada, a categoria de prospectiva que reveste o bonum coniugum ajuda a compreender com maior precisão jurídica o relacionamento de coordenação, e não de subordinação, que este bem representa com relação ao fim procriativo e ao ius in corpus que lhe é o pressuposto. O linguajar do corpo é constitutivo da comunhão dos cônjuges e exprime o dom na sua reciprocidade e complementaridade aperfeiçoativa e criativa (communio personarum) 81. Isto tira da doação física significados meramente materiais ou exclu sivamente instrumentais em vista da procriação. O amor e a mútua perfeição são valores autônomos, dos quais a geração da vida é fruto e sinal82; isto que se procura simbolicamente 81 Cfr. João Paulo II, Uomo e donna li creò. Catechesi sull’amore cristiano, Città del Vaticano, 1985, 397 ss.; S. GRYGIEL, Extra communionem personarum nulla philosophia, Città del Vaticano, 2002, 78 ss. 82 A doutrina da Constituição Gaudium et Spes, como também a da encíclica Humanae vitae, clarifica a própria ordem moral em relação ao amor, entendido como força superior que confere adequado conteúdo e valor aos atos conjugais segundo a verdade dos dois significados, o unitivo e o procriativo, no tocante à sua inseparabilidade. Nesta renovada impostação, o tradicional ensinamento sobre os fins do matrimônio e Suprema Lex Suprema Lex Número 1 – Janeiro/Junho de 2011 Número 1 – Janeiro/Junho de 2011 103 104 no abraço amoroso dos corpos assume a sua mais emblemática expressão na geração adulta e responsável de um filho. A prospectiva do bonum coniugum permite, então, definir o consentimento, qual ato do qual surge a obrigação de justiça, como um ato de amor, ou, se quiser (para não reduzir o amor a mero sentimento), como ato que deve manifestar (em vista da validade) vontade de amar, decisão de doar-se para reencontrar-se envolvido na realização do outro83. Ao mesmo tempo, entender o bem dos cônjuges como prospectiva permite estabelecer, mesmo na variedade existencial de cada união, o modo que os conteúdos devam (em sentido jurídico) ser objetivamente personalizantes. Sê-lo-ão, de fato, se vividos na mais genérica exigência de “correr a mesma sorte”, cuja concretização reside em ser exigência personalizada e personalizante. A isto se devem reportar as outras notas jurídicas objetivas do pacto (indissolubilidade, fidelidade, procriação e, em certos casos, dignidade sacramental)84 e as características da relação, sugeridas pela reflexão teológica e antropológica sobre o amor (identidade livre, comunicação, aperfeiçoamento pessoal em complementaridade e reciprocidade amorosa, igual dignidade, irrepetibilidade, totalidade e progressividade). Estas características não perdem em jurisdicidade se, entendidas como mínimos exigíveis para a união conjugal. Ao mesmo tempo, as notas do pacto conjugal, inseridas a estas características, não perdem a sua espessura intrínseca e o destaque jurídico autônomo, mas adquirem um significado mais profundo; o relacionamento entre as notas do pacto e a referida prospectiva do bonum coniugum como categoria de base do consortium totius vitae enriquece-lhes o valor personalizante e, ao mesmo tempo, oferece algumas luzes sobre o mínimo conteúdo jurídico (juridica mente exigível) que o bonum coniugum contém. sobre sua hierarquia vem aprofundado e superado, assumindo a prospectiva interior dos cônjuges, ou seja da espiritualidade conjugal e familiar: cfr. João Paulo II, op. cit., 478 55. 83 Cfr. M.J. ARROBA CONDE, op. cit., 270. 84 Ou os “iura, officia et obbligationes” do c. 1095, como prefere S. VILLEGGIANTE, op. cit., 700. Assim, a unicidade e exclusividade da relação conjugal, para ser um bem personalizante, exige que cada cônjuge seja considerado único e irrepetível aos olhos do outro; o outro é insubstituível fonte do próprio bem, antes mesmo de ser sujeito para o qual se tem a obrigação jurídica da fidelidade. Na prospectiva do amor conju gal personalizante, a fidelidade não se esgota num único aspecto (de novo pelo único significado físico), mas refere-se à totalidade que contra distingue o consortium. O bem da fidelidade, à luz do bem conjugal, envolve totalmente o próprio ser, e volta-se para o outro em todas as dimensões da sua personalidade, tanto as positivas, como as negativas. Ao mesmo tempo, para que a fidelidade seja um bem dos cônjuges, não é suficiente entendê-la como fidelidade ao vínculo, mas ao amor que os une. A comunhão, assim como a maturação das potencialidades pessoais, requerem tempo para realizarem-se e pode acontecer que a rotina cotidiana faça enfraquecer as atenções para com o outro, produzindo desgaste ou indiferença, que não seria possível, não obstante as aparências, atribuir o valor de autêntica fidelidade ao amor. A estabilidade da união, antes de ser mero compromisso para honrar a perpetuidade da convivência, como fatídica consequência do vínculo, será personalizante se entendida como compromisso crescente e constante para tornar a união cada dia mais significativa. Com efeito, a história matrimonial está em contínuo crescimento e requer longo tempo para alcançar a maturidade; para que se realize o bem dos cônjuges, o relacionamento do casal deve ser colocado perante os compromissos e as relações de outro gênero (laborativas, sociais, ...), sem fazê-lo tornar-se um dado adquirido. Neste sentido, as dimensões constitutivas oriundas da centralidade do bonum coniugum são a concretização e a projeção. Construir a almejada felicidade e o recíproco bem inter-pessoal requer vontade e capacidade de situar-se numa visão não abstrata, mas existencial, formulando, na base de avaliações e valores pessoais, um projeto comum, sabendo que a plenitude do amor tem um longo percurso a cumprir; sem estes projetos comuns pode prevalecer mais facilmente o individualismo que empobrece o casal, tornando-o insignificante com o risco de tornar o bem dos cônjuges um esquema vazio. Suprema Lex Suprema Lex Número 1 – Janeiro/Junho de 2011 Número 1 – Janeiro/Junho de 2011 105 106 Na verdade, ulterior elemento para poder falar do “bem” é o cuidado da própria liberdade pessoal e, a manutenção da própria individualidade, aspecto este que não está em contradição com o objetivo matrimonial de tornar-se “uma só carne”. Este projeto de unidade não está baseado em alienações destrutivas da própria pessoa, centro de imputação (também jurídica) imprescindível ao qual se refere a dimensão transcendente, vale dizer a própria dignidade qual ser chamado a amar e a ser amado. Esta vocação repousa na própria liberdade, que se torna liberante na assunção da responsabilidade do crescimento do outro. Só com a relação baseada na confiança recíproca será possível realizar o bonum coniugum. A liberdade, entendida como autêntica patrona de si, permite ao outro crescer, desenvolver as próprias potencialidades e satisfazer os próprios desejos. Na prospectiva do bonum coniugum adquire peculiar valor o bonum prolis, cuja singular importância (também institucional) é bem conhecida em termos de fecundidade e abertura à vida. No horizonte proposto, porém, estas são sinais da “criatividade” inerente à união conjugal, se, vivida como aperfeiçoamento das pessoas. A fecundidade, portanto, atesta materialmente que a união dá origem a uma nova realidade que não está radicada ao bem dos seus protagonistas, antes, o supera e o enriquece, criando algo novo. Esta novidade evoca graves e novas responsabilidades (as responsabilidades genitoriais), que devem ser mantidas mesmo na hipótese em que o desenvolver-se sucessivo da convivência não devesse ser retido, por parte dos cônjuges, um verdadeiro bem para si e para os filhos85. Não deve ser desligada do conceito de bonum coniugum a própria dignidade sacramental da união entre batizados; é verdade que, mesmo tendo havido no novo código uma certa valorização, a dignidade sacramen tal do matrimônio raramente é tratada pelos 85 Tratei alhures a inseparável união entre o bonum coniugum e o bonum prolis, valendo-me da proposta do juiz rotal José M. Serrano, que mostra, qual conceito doutrinal unitário, o de bonum familiae; neste sentido, nos casos de irremediável crise que leva à separação conjugal em conformidade com os cc. 1151-1155, mantém-se com todo vigor o bonum prolis (do c. 226, 2) e pode se reter um novo modo novo de impostar, mesmo fora da convivência, o bem das pessoas e dos cônjuges; neste ponto, cfr. M. RIONDINO, La mediazione familiare, cit., 49-50 e 55-56. autores em estreita ligação com a descoberta da dimensão pessoal da aliança conjugal que evoca o bonum coniugum. Ao invés, como respeitosamente foi dito, o conceito de bonum coniugum oferece a certeza que “no casal há qualquer coisa de Deus, direi mesmo o coração de Deus, núcleo da divindade que se manifesta no homem e na mulher que se amam, porque, a seu nível, a família possui as mesmas características da Santa Trindade”86. 4. No ordenamento canônico, ficando firme a reserva de inter pretação autêntica das leis ao próprio Legislador, é muito importante a interpretação dinâmica das suas disposições, tanto da doutrina (do Magistério e dos autores) como a da jurisprudência (cc. 16-19). Antes mesmo da promulgação do código, seguindo a mudança conciliar, Paulo VI recordou aos juízes rotais a dimensão personalista do matrimônio e sublinhou o bonum coniugum como razão principal do relacionamento conjugal, baseado no justo apreço do amor, no recíproco aperfeiçoamento dos cônjuges87. Esta chamada solicita a canonística a realizar uma interpretação adequada, sem limitar direito e amor, como o próprio Pontífice advertiu na carta encíclica Humanae vitae, desenvolvendo uma precisa noção de amor conjugal não só psíquica (como sentimento), como também conotações jurídicas (como vontade de amar), orientando além do mais para entender a essência do bonum coniugum como unidade dos corações e perfeição recíproca das pessoas88. Nem sempre foi fiel a estas diretivas a interpretação que a doutrina e a jurisprudência têm dado do bonum coniugum após a 86 87 Cfr. G. DANEELS, Carta Pastoral “L’Eglise à la maison”, em Bolletino ufficiale dell’Aricidiocesi Malines-Bruxelles, 6 giugno 1986, 86. Cfr. Paulo VI, Allocutio ad Prelatores Auditores, Advocatos et Officiales Tribunalis Sacrae Romanae Rotae, ineunte anno coram admissos, 9 febbraio 1976, in AAS, 78 (1976), 206. O amor conjugal define-se “plane humanus, hoc est sensibilis et spiritualis. Quaere non agitur solum de vero vel naturae vel affectum impetu, sed etiam ac praesertim de liberae voluntatis actu, eo scilicet tendente, ut per cotidianae vitae gaudia et dolores non modo perseveret, sed praeterea, augeatur, ita nimirum ut coniuges veluti cor unum et anime una fiunt, suamque humanum perfectionem una simul adipiscantur”: PAULO VI, Litterae Enciclica Humanae vitae, de 25 julho de 1968, em AAS, 60 (1968), 486, n. 9. 88 Suprema Lex Suprema Lex Número 1 – Janeiro/Junho de 2011 Número 1 – Janeiro/Junho de 2011 107 108 promulgação do código, devido à dificuldade intrínseca do conceito. Apresentarei algumas das contribuições emergidas de ambos setores, que considero um desenvolvimento ou pontualização, juridicamente úteis. o homem e a mulher se comprometem totalmente um para o outro até a morte. A doação seria mentirosa se não fosse sinal e fruto da doação pessoal e total, na qual a pessoa inteira está presente, mesmo na sua dimensão temporal”91. a) As contribuições da doutrina. — Na doutrina do Magistério, na época pós-codicial, a primeira fonte a sublinhar é constituída pelos discursos de João Paulo II na abertura do ano judiciário da Rota Romana. Num desses, referindo-se ao bonum coniugum, retoma o conceito de aperfeiçoamento mostrado na Humanae vitae, mas com uma específica aplicação envolvendo o ordenamento jurídico inteiro: “O direito canônico consente e favorece o aperfeiçoamento da pessoa humana-cristã, enquanto conduz à superação do individualismo: pela negação de si como exclusiva individualidade traz a afirmação de si como genuína sociabilidade, mediante o reconhecimento e o respeito do outro como pessoa, dotada de direitos universais e invioláveis, e revestida de uma dignidade transcendente”89. Na Deus Caritas est, primeira encíclica de Bento XVI, enquadra-se a ideia de aperfeiçoamento recíproco próprio do bonum coniugum na mais ampla consideração da liberdade e da comunicação. A união interpessoal e sexual também é forma sublime de plenitude e de dignidade que alcança a pessoa que desenvolve a riqueza da sua liberdade inteligente numa comunicação de amor: “O amor entre homem e mulher, no qual corpo e alma concorrem inseparavelmente e ao ser humano entreabre-se uma promessa de felicidade que parece irresistível, emerge como arquétipo de amor por excelência” 92 . Ulterior fonte, rica de contribuições para o nosso tema, é a Exortação Apostólica Familiaris Consortio. Nessa, João Paulo II observa que no mundo de hoje presta-se uma maior atenção às qualidades das relações inter-pessoais entre os cônjuges, à promoção da dignidade da mulher, à procriação responsável, à educação dos filhos90. Neste horizonte anuncia um postulado que deveria, definitivamente, segregar a redução do bonum coniugum ao ius in corpus: “A sexualidade, mediante a qual o homem e a mulher se doam um ao outro com os atos próprios e exclusivos dos esposos, não é de fato qualquer coisa puramente biológica, mas refere-se ao íntimo da pessoa como tal: esta, portanto, se realiza de modo verdadeiramente humano, só se for parte integrante do amor com que 89 João Paulo II, Discorso alla Sacra Rota Romana, de 18 de fevereiro de 1979, em L’Osservatore romano de 19 de fevereiro de 1979, 3; para uma pontual e aprofundada análise do personalismo na jurisprudência canônica envio a C. BEGUS, Ricezione e instituzionalizzazione del personalismo nella giurisprudenza canonica, em P. GHERRI (organizador), Diritto canonico, antropologia e personalismo, Città del Vaticano, 2008, 163 ss. 90 Cfr. B. SORGE, Introduzione alla dottrina sociale della Chiesa, Brescia, 2006, 77 ss. Pela doutrina do Magistério deduz-se a estreita relação entre a finalidade do matrimônio, referente ao bem dos cônjuges, e tudo o que, na experiência humana e cristã, aparece identificável como “amor conjugal”, distinguindo-se de qualquer outro tipo de relação. O bonum coniugum, porém, se identifica com o amor conjugal só em sentido objetivo, ou seja como disposição no querer o bem do outro cônjuge. Desta consideração, ao menos pacífica em abstrato, a doutrina dos autores ofereceu nestes anos algumas contribuições dirigidas a reconhecer ao amor e ao bonum coniugum um destaque jurídico mais preciso. Prescindo de qualquer minoritária reminiscência doutrinal oriunda das erradas interpretações sobre a omissão de toda referência ao amor na definição codicial do matrimônio, negando-lhe o verdadeiro destaque e interpretando o bonum conugum na linha formulada pelo CIC de 1917 como fim secundário do matrimônio, isto é, do mutuum adiutorium e o remedium concupiscentiae. Uma primeira contribuição útil, bastante clara na norma, mas de não fácil aplicação na consideração jurídica deste conceito, provém 91 Cfr. João Paulo II, Adhortatio Apostolica Familiaris Consortio, de 22 de novembro de 1981, em AAS, 74 (1982), n. 11. 92 BENTO XVI, Litterae enciclica Deus Caritas est, 25 dicembre 2005, em AAS, 100 (2006), n. 2. Suprema Lex Suprema Lex Número 1 – Janeiro/Junho de 2011 Número 1 – Janeiro/Junho de 2011 109 110 do ter sublinhado a diferença entre a ordenação do matrimônio ao bem dos cônjuges e o seu alcance efetivo. Se do fato de não ter alcançado o fim da procriação não se deduz automaticamente a existência ou a inexistência do matrimônio válido, o mesmo pode-se dizer a respeito do bem dos cônjuges. O problema doutrinal que coloca esta óbvia constatação é de natureza sistemática, a ponto de duvidar se o bonum coniugum (especialmente nisto que se refere aos seus conteúdos) deva ser considerado um fim essencial dos cônjuges ou do matrimônio, se não, além disso, uma propriedade antes do que um fim93. Há quem, justamente, adverte que a excessiva insistência no distinguir entre finis operis e finis operantis, ainda que teoricamente correta, no caso do bonum coniugum arrisca comprometer seu caráter essencial94, bem como a própria visão global personalista do matrimônio, visto que o bonun coniugum é fons iurium obligationum e em si compromete os protagonistas do pacto para a realização desta sua ordenação institucional95. Este envolvimento implica que a ordenação em si, e não só o efetivo alcance do bem dos cônjuges, esteja comprometido na medida em que se refira à sua carência à esfera das intenções ou da capacidade dos nubentes96. A implicação das próprias pessoas dos cônjuges e a atenção de evitar toda dúvida sobre o seu caráter essencial tem induzido outros autores a considerar o bonum coniugum como um fourth bonum e a definir a essência com expressões de caráter prevalentemente psicológico: “partnership, benevolence, friendship, caring and love” 97. 93 Cfr. C. BURKE, Il bonum coniugum, cit., 560. 94 95 Cfr. M. F. Pompedda , Studi di diritto matrimoniale canonico, Il, Milano, 2002, 103, o qual lembra que «na definição da essência do matrimônio qual ordenação natural deste, [...] o bonum coniugum está representado no cânon como finalidade institucional (não única, naturalmente) do pacto” Cfr. S. VILLEGGIANTE, op. cit., 698. Cfr. R. COLANTONIO, La prova della simulazione e dell’incapacità relativamente al bonum coniugum, em AA.V.V, Il bonum coniugum nel matrimônio canonico, Città del Vaticano, 1996, 235. 96 97 Cfr. L.G. WRENN, Refining the essence of marriage, em The jurist, 1986, 537 ss. Uma sensibilidade símile, mas com nuances e implicações mais jurídicas, mostra quem entende a relevância do amor conjugal como sentimento que conduz um homem e uma mulher a doar-se um ao outro e a serem desejosos e solícitos do bem e da felicidade. Nesta visão o bonum coniugum configura-se como “a integridade de vida e de amor entre os cônjuges, entendida, não tanto na sua componente erótica, quanto na afetiva”98. Outros autores, ao invés, para evitar suspeitas de psicologismo (cuja redução à esfera do direito é sempre árdua), adiantaram definições do bonum coniugum juridicamente mais precisas, sem comprometer a sua essência personalista. Assim, o bem dos cônjuges identifica-se com “direito e dever dos nubentes ao compromisso, perpétuo e exclusivo, de atuar todos os comportamentos voluntários, naturalmente necessários e conforme às circunstâncias sócio-culturais, idôneas a promover, num contexto de igual dignidade pessoal e, o aperfeiçoamento espiritual, intelectual, sentimental, físico, econômico e social, próprio e do cônjuge” 99. Em modo símile, mas sublinhando o horizonte do liame inerente ao contexto do consortium vitae, define-se o bonum coniugum como “recíproco aperfeiçoamento psico-sexual dos cônjuges, impondo a cada um comprometer-se visando o bem estar e o crescimento do outro, excluindo toda e qualquer visão de isolado egocentrismo; o bem dos cônjuges, de fato, realiza-se na vida do casal e através da vida do casal, no interno e no desenvolvimento do consortium totius vitae”100. Da importância do referido contexto do consortium em que se realiza o bem dos cônjuges origina-se uma ulterior contribuição útil, no tocante ao destaque jurídico que deve reservar-se ao modo em que os cônjuges se dão e recebem o bem do outro, isto é como se tratasse do próprio bem ou de si mesmos, vale dizer, num modo necessariamente contra distinto da amorosa reciprocidade e igualdade, 98 Cfr. P. MONETA, Il matrimônio nel nuovo diritto canonico, Genova, 1996, 185. 99 Cfr. R. COLANTONIO, op. cit., 235. 100 Cfr. F. POSA, Il bonum coniugum nel quadro della disciplina del matrimônio canonico, Roma, 1999, 74. Suprema Lex Suprema Lex Número 1 – Janeiro/Junho de 2011 Número 1 – Janeiro/Junho de 2011 111 112 sem lugar para a dependência ou prevalência de um dos dois, como acontece no amor filial, ou em relacionamentos de natureza educativa. O modo de doação requer, então, atribuir destaque à dignidade e à liberdade de cada um, mesmo na condição de sujeito do consortium, isto é, “aos direitos do outro cônjuge, a respeito das suas ontológicas exigências, à sua dignidade como pessoa [...] entre cuja [...] liberdade”, o que é incompatível com a intenção, voluntária ou involuntária, de quem “o direito de liberdade fosse negado ao futuro cônjuge, seja propondo-se de usá-(lo), ou de pervertê-lo moral ou religiosamente, o de impedir-lhe o exercício das suas manifestações religiosas”101. Em relação, ainda, à importância jurídica que reveste a modalidade livre, amorosa e paritária que implica a sua assunção, mas com especial atenção à abertura à comunidade e à transcendência, retenho útil a contribuição que entende o bonum coniugum como “plena realização intra e interpessoal, realizada na recíproca dedicação, querida na doação de amor, que faz o bem do outro (além do próprio) na comunidade de pessoas e no agir comum, orientado, para a ajuda mútua, para o aperfeiçoamento pessoal e, especialmente, para a santificação e quase consagração dos cônjuges no ministério eclesial da família”102. À luz da doutrina exposta, definitivamente, se deduz que a omis são de toda menção no código do conceito de amor conjugal não o priva de destaque jurídico. A própria doutrina teológica recorda a jurisdicidade do amor, mostrada no texto codicial com a escolha do termo foedus, antes que contrato, para definir o pacto matrimonial. Esta escolha de ressonância bíblica, recorda, com efeito, que o amor de Deus pelo homem aparece na história humana como manifestação de um compromisso, de uma promessa, de um pacto de aliança que se traduz em um vínculo de amor experimentado no quotidiano. O amor conjugal é também realização de um compromisso assumido, por uma promessa comprometida que se projeta no futuro Cfr. L. DE LUCA, L’esclusione del bonum coniugum, em AA.V., La simulazione del consenso matrimoniale canonico, Città del Vaticano, 1990, 137. e é medida pela responsabilidade do homem103. No foedus reside a expressão mais alta do amor e no consortium, ou seja no relacionamento conjugal, se enxerga o lugar onde o amor se manifesta, cresce e se expande na sua totalidade, profundidade e beleza. Na vida matrimonial deve realizar-se a ordo amoris, pois só o amor conjugal permite detectar o outro como pessoa e como cônjuge, possibilitando instaurar uma verdadeira e sólida relação conjugal. O ensinamento conciliar sobre a dignidade e integridade da pessoa humana implica a atenção a todas as exigências do bem estar e do aperfeiçoamento psíco-físico, espiritual e social. Estas podem realizar se no matrimônio através do bonum coniugum, permitindo a cada um entrar, também, numa ordem de vida aberta à Graça e à transcendência, onde inserir as inquietudes inerentes à imanência quotidiana da relação104. O Concílio convida a percorrer, como via única para uma autêntica promoção da dignidade humana, a experiência para a própria perfeição através da comunhão com o outro. Na realidade do matrimônio esta experiência se explicita na realização da una caro (material e espiritual), baseada no enriquecimento interior e no contínuo aperfeiçoamento, isto é, com a recíproca aceitação dos próprios limites até fazer emergir o melhor de si mesmos, graças à estima e à confiança do outro. Com esta íntima comunhão, os cônjuges oferecem-se em dom a si mesmos, totalmente e para sempre, com as qualidades e os defeitos que cada um possui, nas alegrias e nas provas pelas quais é tecida a própria existência; seguindo este percurso, os cônjuges enriquecem-se, completam-se e aperfeiçoam-se mutuamente, conseguindo o seu recíproco “bem”. b) Alguns acenos sobre a jurisprudência rotal. — A jurisprudência da Rota Romana tentou especificar o bonum coniugum, mas nem sempre obtendo êxitos uniformes. A complexidade do conceito não facilita aos juízes a função de chegar a uma interpretação unívoca, 101 102 Neste sentido, cfr. R. BERTOLINO, Gli elementi costitutivi del bonum coniugum, em Monitor ecclesiasticus, 1995, 583. 103 Cfr. S. LENER, L’oggetto del consenso e l’amore nel matrimônio, em L’amore coniugale. Annali di dottrina e giurisprudenza canonica, Città del Vaticano, 1968, 170. 104 Cfr. Gaudium et Spes, n. 4. Suprema Lex Suprema Lex Número 1 – Janeiro/Junho de 2011 Número 1 – Janeiro/Junho de 2011 113 114 não obstante os muitos esforços empreendidos como já foi dito, antes da promulgação do novo código, as sentenças rotais mostravam o empenho de extrair as consequências jurídicas do ius ad vitae communionem, imerso na definição conciliar, sendo um ponto de referência obrigatória a famosa sentença de 25 de fevereiro de 1969 coram Anné105. Desde o período precedente até à promulgação do código do 1983, é necessário relatar sinteticamente a contribuição desta sentença, na que se inspira boa parte das sentenças do período sucessivo à promulgação. O Ponente adverte sobre a dificuldade de definir a substância da comunhão de vida conjugal: “Profecto, onus est difficillimum modo acurato et exhaustivo definire et esplicare quid-sub respectu iuridicorequiratur ad substantiam istius ‘consuetudinis et communionis vitae’ quae vocatur matrimonium in facto esse et a coniugibus pedentim mutua bona voluntate est extruenda, dum in ipso consensu matrimoniali ius ad hanc vitae communitatem, sibi mutuo dederunt atque correlativas obbligationes assumpserunt”106Afirma-se, porém, o sensum iuridicum do bonum coniugum, visto que o ato de matrimônio “non respicit merum factum instaurationis communitatis vitae sed ius et obligationem in hanc intimam communitatem vitae, quae uti elementum maxime specificum habet intimissimam personarum coniuctionem qua vir et mulier fiunt una caro, ad quam uti culmem tendit illa vitae communitas”107. Mesmo salvando assim o necessário significado personalista da comunidade conjugal e do bem dos cônjuges, a sentença não determina os conteúdos: “hoc omnis vitae consortium,[...] in ordine existentiali [...] adest sub specibus valde diversis”108; evita, porém, reducionismos recordando que “obiectum, exinde, formale substantiale, istius consensus est non tantum ius in corpus, [...] sed complecitur etiam ius ad vitae consortium seu communitatem vitae, quae proprie dicitur matrimonialis, necnon correlativas obligationes, seu ius ad intimam personarum atque operum coniuctionem, qua se invicem perflciunt ut ad novorum viventium procriationem et educationem cum Deo operant sociant”109. Uma importante contribuição complexiva do conceito, aqui objeto de estudo, extrai-se da jurisprudência coram Serrano, cuja principal sinalização recai sobre a necessária consideração jurídica de reco nhecer a relação interpessoal e, versão nítida do bem conjugal, que requer vontade e capacidade. Mesmo repetida e pontualizada em numerosas outras suas sentenças, a jurisprudência do citado Auditor rotal seria incompreensível sem mencionar antes a mais famosa decisão do 5 de abril de 1973, onde valoriza o significado da aceitação do outro enquanto pessoa, sublinhando que a traditio-aceptatio que define o matrimônio consiste no “de acceptando altero, nec solummodo de seipso obligando seu tradendo”110. A decisão afirma a relevância de cada forma de anomalia psíquica que possa incidir na relação interpessoal e: “quae penes psychiatriae cultores non atingunt formalem ‘morbi’ qualificationem sed potest praecise incidere in facultatem subiecti nectendi relationem inter-pessoalem, qua iura alterius in seipso una cum propriis in altero recte intelliguntur, intentione urgentur, mutua traditione et aceptatione commutantur”111. Confirma-se, assim, o valor essencial da communio vitae: “nequaquam licebit asserere eam ad perfectius ve1 optabile matrimonium ideale totam pertinere, cum proprietatem essentialem cuiscumque matrimonii in fieri costituat”112. Isto implica que pelo ato do consentimento os cônjuges entendam (sem excluí-lo) e estejam em grau de querer e aceitar o outro como consorte para a vida toda, co-participar de uma caminhada percorrida em conjunto113 109 RRDec., vol. 61, 183, n. 16. Coram Serrano, dec. diei 5 aprilis 1973, em RRDec., voI. 65, 330, n. 12. 110 Citada supra, na nota 54; a essa seguiram-se outras citadas na nota 55. 111 RRDec., vol. 61, 184, n. 17. 112 RRDec., vol. 61, 182, n. 13. 113 105 106 107 108 RRDec., vol. 65, 323, n. 3. RRDec., voI. 65, 327, n. 8. “A abertura para a alteridade, a aceitação do outro, a afirmação da concessão dual e paritária da relação inter-pessoal matrimonial, a qual ‘magis in qualitate stat quam in RRDec., vol. 61, 184, n. 16. Suprema Lex Suprema Lex Número 1 – Janeiro/Junho de 2011 Número 1 – Janeiro/Junho de 2011 115 116 (112). Numa sentença sucessiva completa-se este pensamento, afirmando que a relação interpessoal requer solidariedade intrapessoal e, isto é “quamdam uniscuisque de seipso veram imaginem necnon de altero”, e considerando o “ordinatum quoque voluntatis intendendi rationem, quae ad veram suipsius traditionem et alterius aceptationem pervenire possit”114. A jurisprudência rotal do período sucessivo ao código considerou o conteúdo do bonum coniugum especialmente no contexto de causas inerentes à incapacidade psíquica (c. 1095), reconduzindo o seu conteúdo ao ius ad vitae comunionem ou então ao consortium coniugum. Apesar disto, mesmo em linha de princípio, logo se reconheceu a hipótese abstrata da simulação parcial do consentimento, admitindo, portanto, que o bonum coniugum possa ser objeto de exclusão; assim é expresso numa decisão de 1984 coram Felice115 : “Praeter igitur bonum sacramenti, bonum prolis et bonum fidei, quorum exclusio partialem simulationem consensus ad normas can. 1086, 2 C.I.C. 1917 iam efficiebat, iuxta nova legem vel exclusio boni coniugum praebere potest simulationem partialem consensus”116 Este posicionamento é confirmado numa decisão coram Pompedda de 1985117, que insiste em evitar o erro de achar a ordinatio ad bonum coniugum et ordinatio ad generationem prolem como elementos não essenciais do matrimônio in facto esse, onde se desfaz a consuetudo conjugalis. O Ponente sublinha: “possumus elementa matrimonii essentialia in facto esse, de quibus agimus, exstare ordinationem ad bonum coniugum et ad prolem, quid autem connubium sit consortium totius vitae, idipsum, suam accipit determinationem sub ratione temporali ab indissolubilitate extensione consensus conjugalis’, são as novidades absolutas desta sentença, onde, mesmo se o termo ‘bonum coniugum’ não aparece, é evidente que o significado dado à ‘mutua sui donatio’ e à ‘personarum communio’ é em função da dimensão da conjugalidade da relação do casal»: S. VILLEGGIANTE, Il bonum coniugum nella giurisprudenza canonica postconciliare, em AA.VV., Il bonum coniugum nel matrimônio canonico, Città del Vaticano, 1996, 156. 114 Coram Serrano, dec. diei 9 maii 1980, em RRDec., vol. 72, 336, n. 10. Coram de Felice, dec. diei 19 iunii 1984, em RRDec., vol. 76, 350, n. 6. 115 116 117 Ib., 350, n. 6. seu perpetuitate, sub ratione mutuae consuetudinis inter coniuges ab ordenatione ad eorundem bonum, sub ratione denique intimae consue tudinis ab utraque simul ordenatione sive ad bonum coniugum sive ad bonum prolis”118. Esta essencialidade não enfraquece a distinção entre ordenação e realização “etiam se in voluntate alterutrius vel utriu sque nupturientis causam habuerit”119, mas permite hipotizar a existência de uma exclusão positiva do bonum coniugum120. Apesar desta admissão teórica da exclusão do bonum coniugum, a maior contribuição da jurisprudência rotal refere-se às causas de incapacidade à compreensão ou à realização do bonum coniugum, na maior parte das causas reconduzida à relação interpessoal paritária que se encerra nisso como conteúdo global. Neste sentido, como pontos indicativos justos de natureza restritiva, as principais contribuições referem-se à necessidade de distinguir entre dificuldade e real incapacidade (visto que nos cônjuges, mesmo centrados no bem recíproco, restam, então, obrigações assumidas que exigem esforço)121, não só entre o ideal de uma plena maturidade que facilita uma vida conjugal feliz mas também a maturidade mínima que torna possível uma relação interpessoal suficientemente conjugal122. As contribuições que contêm maiores consequências de abertura, são, em primeiro lugar, a unânime distinção que se opera entre a incapacidade em sí e a causa psíquica que a provoca, que não deve ser uma psicopatologia grave, mas uma condição estrutural da pessoa, que dá certeza que a falta de realização do bonum coniugum não é voluntária, fruto de desempenho ou de sucessivas circunstâncias levam os cônjuges a abandonar logo a visão do bem recíproco RRDec., vol. 87, 55, n. 7. 118 RR.Dec., vol. 87, 55, n. 8 119 120 121 RRDec., vol. 87, 54, n. 5. Para todas, cfr. corarn Boccafola, dec. diei 23 junii 1988, em RRDec., vol. 80, 427 -428. 122 Coram Pompedda, dec. diei 29 ianuarii 1985, em RRDec., vol. 87, 55, n. 6. Para todas, cfr. coram Davino, dec. diei 10 iulii 1992, em Monitor eclesiasticus, 118 (1993), 333. Suprema Lex Suprema Lex Número 1 – Janeiro/Junho de 2011 Número 1 – Janeiro/Junho de 2011 117 118 livre e validamente assumido123. A segunda contribuição, ligada à precedente, refere-se à nota de “perpetuidade” da causa incapacitante, que é majoritariamente considerada não relevante124, enquanto logicamente se deve pesquisar a sua antecedência ao matrimônio, mesmo reconhecendo que as características da vida conjugal (nisto consiste a novidade) podem encontrar-se no nível que se revelam as anomalias que antes estavam presentes mas de modo latente. Menos unânime entre os juizes rotais é a configuração de uma incapacidade relativa, qualificação esta que desperta perplexidade125. Para o nosso artigo, porém, é importante frisar que, apesar das perplexidades que suscita o conceito de incapacidade relativa (tendo como pressuposto uma incapacidade que se daria só em relação a este cônjuge concretamente), nenhuma dúvida existe sobre a necessidade de possuir capacidade para o relacionamento, dimensão necessariamente relativa aos aspectos da união interpessoal e desta maneira se expressa uma sentença coram Caberletti, quando diz: “Etenim obiectum consensus est traditio et aceptatio iuris, quod implicat ex parte contrahentium non solum capacitatem intelligendi ac volendi obiectum contractus materialiter in se spectatum, sed etiam capacitatem idem obiectum formaliter tradendi scilicet pre standi comparti omnia quae in vita comuni coniugum essentialiter exiguntur, ut tria bona conubii ad efectum perduci possint. Natura interpessoalis obiecti 123 Foge da finalidade deste trabalho apontar detalhadamente os principais distúrbios de personalidade e as outras causas de originem psíquico contemplados pela jurispru dência. Prefiro, ao invés, oferecer uma breve resenha de sentenças que insistem na diferença entre psicopatologia grave e causa psíquica incapacitante; cfr. coram Pompedda, dec. 30 ianuarii 1989, em RRDec., vol. 81, 537, n. 5; coram Funghini, dc. 26 iulii 1989, ibidem, 537, n. 4; coram Serrano, dec. diei 1 iunii 1990, em RRDec., voI. 82, 448, n. 5; coram Civili, dec. dici 23 octobris 1991, em RRDec., vol. 83, 570, n. 5; coram Palestro, dec. diei 18 decembris 1991, ibidem, 824, o. 5. Para todas, cfr. coram De Filippi, dc. diei 1 decembris 1995, em RRDec., vo1. 87, 645, n. 6. 124 Expoente e sustentador principal da idéia é o Auditor rotal José M. SERRANO; entre as suas contribuições na matéria, cfr. Interpretazione ed nível di applicazioe del can. 1095, 3. La novità normativa e la sua collocazione sistematica, em AA.V.V. L’incapacità ad assumere gli oneri essenziali del matrimônio, Città del Vaticano, 1998, 28; para uma resenha de opiniões favoráveis e contrárias a este posicioamento, cfr. A. D’AURIA, op. cit., 245 ss. 125 consensus conjugalis exigit quidem capacitatem communionis totius vitae peragendae, aut suipsius oblationis in conjugali consuetudine”126. Como posição minoritária, deve-se mencionar uma sentença de 1992, coram Burke, onde se afirma que o Concílio Vaticano lI apresenta o matrimônio sob uma luz muito personalista. O reconhecimento codicial da ordenação do matrimônio ao bonum coniugum, assim como o fato que o Catecismo da Igreja Católica apresente o bem dos esposos e a transmissão da vida como duplo fim do matrimônio, não são considerados argumentos suficientes, e afirma-se que “potius quam de iure ad bonum coniugum, licet considerare cum finem (eodem modo ac consideratur finis procriativus) uti fons iurium obligationumve. Utcumque videtur quod mensura iuridica eorum quae ad huiusmodi iura/oflcia essentialiter pertinent in solis tribus bonis augustinianis est respondenda. Iuridice loquendo, bonum coniugum nulla iura/oficia parit; dum ergo patet quod exclusio boni coniugum [...] nuptias invalidat non tamen patet talem exclusioem boni coniugum aliquid substantiale comprehendere posset, quod in tribus bonis augusti nianis non sit iam praesens. Praeterea petitio qua nullutatis declaratio ob boni coniugum exclusionem quaeritur, ad consueta capita simulationis totalis quidem partialisve magis proprie reconducenda esse”127. A consequência da impostação institucional e não pessoal do bonum coniugum, afasta as expectativas das pessoas dos cônjuges, outra não pode ser que a negação da possibilidade de configurar um verdadeiro direito subjetivo tendo por objeto o bonum coniugum, esquecendo a centralidade da livre vontade dos esposos no realizar esta aliança de doação e aceitação recíprocas das próprias pessoas dos contraentes. Num artigo posterior o Ponente comenta a própria sentença128, e declara estar afastado da maioria, onde se interpreta a essência do bonum coniugum relacionando-o com os conceitos de consortium totius vitae ou communio vitae e onde é considerado 126 127 Coram Caberletti dec. diei 28 maii 1998, em RRDec., vol. 90, 414, n. 4. Coram Burke, dec. diei 26 novembris 1992, em RRDec., voI. 74, 583-584, n.15. 128 Cfr. C. BURKE:, op. cit., 565. Suprema Lex Suprema Lex Número 1 – Janeiro/Junho de 2011 Número 1 – Janeiro/Junho de 2011 119 120 como ius ad vitae communionem ou constitutione illius communitatis vitae et amoris segundo a Gaudium et Spes. Salienta assim a natureza institucional do bonum coniugum; o consortium totius vitae e a communio vitae pertencem à essência, que não pode nunca se identificar com o seu fim. 5. A análise paralela dos modelos de matrimônio civil e canônico, com a finalidade de evidenciar os elementos convergentes e divergentes, é útil para compreender o significado de ambos. Em relação ao bonum coniugum, seus conteúdos, como se viu, são de difícil concretização, o paralelismo serve, ao menos, para passar do mero plano teórico ao prático, bem como para coletar a essência mais profunda que acumula o instituto matrimonial em ambos direitos129. As etapas fundamentais legislativas e as desenvolvidas jurisprudenciais tidas tanto no Estado como na Igreja mostram que os dois modelos de matrimônio, mesmo que respondam às exigências de fundo não são totalmente homogêneos, “vivem num alternar-se de recíproca atração, que se traduz numa imitação, mais ou menos acentuada, de aspectos próprios do homólogo instituto no outro ordenamento, e de afastamento sempre e quando um dos dois institutos recupera com vigor a própria especificidade”130. O modelo civil131 aproximou-se em alguns aspectos ao modelo canônico logo que se fez a reforma no direito de família do 1975. As novidades principais neste sentido são a concessão da família como comunidade, a igualdade dos cônjuges em dignidade e espécie sobre o plano jurídico, a valorização da mulher como mulher e como mãe132. Idêntica aproximação mostra o aumento das causas de invalidade do matrimônio civil, sobretudo no tocante a erro, vio lência e simulação do consentimento, que induzem a requerer, como no direito canônico, uma pesquisa mais aprofundada a respeito do autêntico querer dos esposos133. Em ambos os ordenamentos o matrimônio considera-se perten cente ao direito público, e é objeto de proteção especial como fundamento da família. Apesar disto, é evidente a extensão do personalismo, mesmo privado, inerente ao instituto matrimonial. No modelo canônico os aspectos públicos e privados estão inseridos numa prospectiva vocacional: “o matrimônio é antes de tudo um modo concreto de responder à vocação pessoal à santidade, vale dizer ao projeto de amor conforme o estilo de Jesus a que são chamados todos os fiéis. Típico desta vocação e projeto de vida é a vontade de realizar a experiência do amor condividido com um outro. [...] a dimen são sacramental do matrimônio torna isto um evento muito significativo para toda a comunidade eclesial, e por isso ultrapassa o nível meramente privado dos cônjuges”134. Com a reforma do direito de família, realizada com a lei n. 151 de 19 de maio de 1975135, verifica-se uma reviravolta no ordenamento das relações familiares. Com efeito, a manutenção da sua consideração como pertencente ao direito público não impediu de chegar a um mais moderno arranjo jurídico no relacionamento entre os cônjuges e no modo de entender a convivência familiar136, rompendo com os tradicionais aspectos formais e orientando-se para o objetivo de fazer coincidir o matrimônio com uma comunhão material e espiritual de vida, cujos efeitos são dirigidos à vontade dos esposos. Passa-se assim para a consideração jurídica da família como simples “célula base” da sociedade, regulando, sobretudo, as suas 133 Cfr. G. DALLA TORRE, Motivi ideologici e contingenze storiche nell’evoluzione del diritto di famiglia, em F. D’AGOSTINO (a cura di), Famiglia, diritto e diritto di famiglia, Milano, 1985, 55. 134 Cfr. M. RIONDINO, Valori coniugali, cit., 541 ss., que ora apresentarei sinteticamente. 135 A.M. PUNZI NICOLÓ, Due modelli di matrimônio, em Dir, ecc1., n. 97, 1986, 8. 136 129 130 131 Note-se que este modelo civil é o vigente na Itália (nota do tradutor). 132 Cfr. P. RESCIGNO, I rapporti personali tra conjugi, em A. BELVEDERE,-C. GRANELLI (organizadores), Famiglia e diritto a venti anni dalla riforma, Padova, 1996, 35 ss. M. J. ARROBA CONDE, Diritto processuale canonico, Roma, 2006, 562. Esta lei de reforma é a italiana e não a brasileira. (Nota do tradutor). Cfr. R. BALDUZZI, Famiglie e rapporti di convivenza tra Costituzione e legislazione ordinaria, em I. SANNA-R BALDUZZI (a cura di), Ancora Famiglia?, Roma, 2007, 7 ss.; aconselho além desse a a leitura de CM. MARTINI, Famiglia e politica, em Aggiornamenti sociali, 2001, 250 ss. Suprema Lex Suprema Lex Número 1 – Janeiro/Junho de 2011 Número 1 – Janeiro/Junho de 2011 121 122 funções sociais, para uma disciplina sobremaneira inerente para as relações entre os membros137. E um novo modo de entender os tradicionais deveres conjugais, que assumem um conteúdo diferente. Não interessa garantir tanto a coesão formal entre os cônjuges, como no passado, mas a unidade substancial, num clima de recíproca responsabilidade destinado, para certos aspectos, a durar, mesmo após a separação e o divórcio. É fundamental, também, acentuar a caracterização particular que as obrigações conjugais assumem à luz do princípio da igualdade introduzido na reforma, unido ao respeito da personalidade dos cônjuges, reafirmo que é um renovado e sempre mais vivo modo de estar presente na família, segundo o princípio da solidariedade. Índice de tal concepção foi a introdução ex novo, do art. 143 do código civil italiano, da obrigação de colaboração entre os cônjuges, que, assumindo o papel de norma reassuntiva do conjunto dos direitos e deveres do matrimônio (marcado no passado pela assistência recíproca), aparece como uma coerente e lógica consequência da tipicidade do novo regime, fundamentado na igualdade moral e jurídica, aos sentidos, portanto, do art. 29 da Constituição Italiana. A prospectiva da colaboração recíproca substitui-se no geral pela obrigação de assistência às necessidades do outro, na ótica da recíproca integração e do recíproco enriquecimento que as diversas capacidades e o diferente estilo de vida de cada um estão presentes na família. Há uma evolução do mero dever de contribuição ao de colaboração, ou seja de uma prospectiva unilateral, suprindo a insuficiência dos meios individuais, para uma visão comunitária e solidária138. Compreende-se que o novo ponto de referência para ordenamento jurídico é o individuo, que, enquanto parte de uma comunidade familiar organizada, é portador de merecidos interesses de tutela 137 Cfr. G. VISMARA, Il diritto di famiglia in Italia dalle riforme ai codici, Milano, 1978, 1 ss. 138 Cfr. A. FALZEA, Il dovere di contribuzione nel regime patrimoniale della famiglia, em Riv. dir. civ., 1977, 617. jurídica, seja nas relações externas como nas internas. Os direitos da família não são outros que os direitos dos seus componentes, conferidos em virtude do relacionamento familiar; assim, a expressão “interesse da família” constitui a síntese do conjunto dos interesses dos síngulos membros. O destaque ora atribuído ao relacionamento matrimonial, mais do que ao ato do matrimônio, valorizado como elemento de fato, induz a doutrina a identificar a essência da união na “comunhão mate rial e espiritual dos cônjuges”. Isto sublinha o esforço para superar a consideração do ordenamento como estrutura formal, ou como supra-estrutura preocupada em garantir as relações sem ocupar-se da sua realização. Assumindo agora a visão de promover, também através da família, o desenvolvimento, o enriquecimento e o aperfeiçoamento das personalidades, passa-se duma família entendida como instituição a uma família entendida como formação social que se origina pela livre escolha das pessoas, que baseiam seu liame nos vínculos de afeto e de solidariedade139. Todavia, a exigência dos cônjuges de unir-se concretamente na totalidade e na intimidade da comunhão material e espiritual não pode ser diretamente garantida pelo ordenamento jurídico, onde o matrimônio não se identifica como comunhão afetiva, cuja realização não é susceptível de direta disciplina jurídica. O ordenamento não regula a esfera dos sentimentos conjugais, estranhos à sua estruturação. O ordenamento pode levar em consideração a necessidade de comunhão dos esposos, somente se esta necessidade estiver no plano das relações inter-subjetivas, em interesse também só moral, favorecendo-o enquanto respondente às necessidades mais autênticas e profundas dos cônjuges. O legislador não pode realizar a efetiva comunhão dos cônjuges, entendida como unidade em sentido espiritual, ou seja como 139 Cfr. M. RIONDINO, Valori coniugali, cit., 547; G. FERRANDO, Manuale di diritto di famiglia, Bari, 2005, 66; M.E. ALBERTI CASELLATI, L’educazione dei figli nell’ordinamento canonico, Padova, 1990, 21-28. Suprema Lex Suprema Lex Número 1 – Janeiro/Junho de 2011 Número 1 – Janeiro/Junho de 2011 123 124 patrimônio comum de idéias, sentimentos, costumes e aspirações, mas pode perseguir a unidade em sentido jurídico, favorecendo a responsabilidade dos cônjuges e cooperando para sua manutenção e reforço140. Esta união realiza-se exclusivamente entre pessoas dotadas de igualdade no plano moral e existencial, porque uma comunhão entre seres ontologicamente diferentes pode ser feita somente na prospectiva de um aderir à personalidade do outro. O perfil moral da assistência no tocante ao próprio respeito dos interesses do outro cônjuge, entendido como dever de não os obstaculizar, ou melhor, o dever de sustentá-los e de favorecer-lhes a realização na esfera afetiva, psicológica e espiritual, respeitando a personalidade, a cultura e o temperamento. O perfil material substancia-se no sustento recíproco nas necessidades da vida quotidiana, portanto na ajuda na atividade laborativa e na assistência, em caso de enfermidade141. O núcleo central da relação igualitária entre os cônjuges deduz-se da obrigação recíproca de fidelidade e de colaboração no interesse da família, que se configura como o reassumir a essência jurídica do matrimônio, tanto na lei como na consciência social difusa, para realizar a unidade concreta que constitui o resultado do esforço dos cônjuges, pela sua colaboração na vida familiar e na educação dos filhos142. O ordenamento jurídico, no posicionar-se sobre este compromisso e a vontade dos nubentes, vem a seu encontro ao sancionar sua conformidade com o direito e oferecendo uma garantia social ao compromisso estável de convivência e de ajuda recíproca através duma institucionalização de direitos e deveres que são instrumentais para o alcance de uma plena integração da personalidade dos cônjuges. 140 Cfr. S. ALAGNA, Famiglia e rapporti tra i coniugi nel nuovo diritto, Milano, 1983, 4 ss. Cfr. R.P. DEPINGUENTE, Rapporti personali tra coniugi, em Riv. dir. civ., 1990, 453. A comunhão material e espiritual de vida, em que se manifesta a estabilidade da família, baseia-se no equilíbrio dos diferentes interesses dos indivíduos, na permanência do relacionamento conjugal até quando isso for idôneo para satisfazer as necessidades pessoais e comuns e conseguir encaminhar as múltiplas solicitações individuais para as finalidades homogêneas e condivididas143. No relacionamento matrimonial, o zelo pelos interesses subjetivos é confiado aos próprios cônjuges e todas as ações individuais estão endereçadas a confirmar o valor primário da unidade. Quando se verifica um motivo de desagregação da comunidade conjugal e familiar, a lei, pelo contrário, tutela as esferas jurídicas subjetivas e os interesses individuais dos membros. Portanto, o sistema jurídico italiano, em tema de matrimônio, está empenhado em reafirmar não só os valores de igualdade e respeito da personalidade dos cônjuges no plano formal, mas tem também atribuído aos sujeitos uma efetiva igualdade substancial, providenciando dispor, não só em forma abstrata, “com o matrimônio o marido e a mulher adquirem os mesmos direitos e assumem os mesmos deveres144”, e estabelecendo concretamente o caráter de absoluta reciprocidade das obrigações matrimoniais fundamentando-as, como a fidelidade, a assistência, a colaboração, a coabitação e a contribuição. Do princípio da paridade e da igualdade substancial origina-se um diferente e novo modo de entender a estabilidade do matrimônio, fundamentada não sobre imposições externas, mas na livre escolha dos cônjuges, no novo sistema de distribuição das funções individuais e no nexo inseparável entre vínculo matrimonial e vontade dos cônjuges, sem que de tudo isso surja alguma ameaça real de desagregação do relacionamento, muito pelo contrário criam-se bases sólidas para construir a verdadeira unidade da família que, desta maneira, não representa mais uma relação formal imposta externamente, mas uma relação substancial oriunda da vontade dos cônjuges145. 141 142 Ch. G. BALLARANI, Potestà genitoriali e interesse del minore: affidamento condiviso, affidamento esclusivo e mutamenti, em S. PATTI-L. ROSSI CARLEO (organizadores), L’affidamento condiviso, Milano, 2006, 33 ss. Cfr. S. ALAGNA, op. cit., 55. 143 Art. 143, comma 1, c.c. 144 Cfr. S. ALAGNA, op. cit. 56 ss. 145 Suprema Lex Suprema Lex Número 1 – Janeiro/Junho de 2011 Número 1 – Janeiro/Junho de 2011 125 126 À luz desta nova impostação do relacionamento conjugal e da reforma do direito de família de 1975, é mais rápido fazer um paralelo entre o conceito de comunhão material e espiritual próprio da lei matrimonial civil, e o conceito de bonum coniugum como fim essencial do matrimônio canônico, no que concerne à relação interpessoal estável e paritária entre os dois cônjuges que sejam capazes de doar-se, de compreender-se, e de aceitar-se mutuamente, alcançando um enriquecimento e aperfeiçoamento interior que faça do matrimônio uma fonte de autêntica felicidade e de verdadeiro bem para os cônjuges. A comunhão espiritual e material entre os cônjuges, também, estabelecida na legislação civil, torna-se concreta numa série de comportamentos peculiares que, complexivamente, não se distanciam muito, pelo menos em forma potencial, da exigência de assegurar a ajuda mútua; na esfera estritamente espiritual, pode-se concordar com quem assina que os comportamentos legislativamente requeridos exigem “disposição de ânimo no reservar ao próprio cônjuge o posicionamento de companheiro exclusivo de vida, no responder aos principais deveres conjugais, mesmo quando a solidariedade exija sacrifício”146. Portanto, a comunhão entre os cônjuges, entendida como affectio conjugalis, pode dizer-se formada por valores, afetos, esperanças, sacrifícios, aspirações, mas, também, pelo recíproco sustento nas desilusões e nas dificuldades, pela disponibilidade de enfrenta-las juntos; neste sentido, pelo menos na previsão legislativa, não se pode dizer que o conceito de comunhão espiritual e material da legislação civil seja totalmente estranho ao conceito canônico do bonum coniugum. Ambos comportam uma determinada vontade de participação solidária à vida do outro cônjuge, que se torna nos dois ordenamentos, mesmo com modalidades diferentes, um fator determinante pela real solidariedade da união conjugal e pela sua manutenção. M. BESSONE-M. D0GLIOTTI-G. FERRANDO, Giurisprudenza del diritto di famiglia. Casi e materiali, Milano, 1983, 539. 146 Isto permite afirmar que, no ideal matrimonial e familiar, em ambas as legislações privilegiou-se, do ponto de vista jurídico, mais do que qualquer outra, uma prospectiva personalista. O matrimônio é para as pessoas e não vice-versa. Ao confrontar as duas legislações, sem diminuir o peso da precedente afirmação sobre a índole personalista comum aos dois ordenamentos, é necessário pontualizar que a perpetuidade e irrevogabilidade da união não está mais presente no ordenamento civil, que com a lei n. 898 de 1° dezembro de 1970, introduziu o divórcio, atribuindo à vontade de um ou de ambos os cônjuges valências fundamentais para a manutenção da própria união em caso de falência. O matrimônio, também o cristão, não escapa da necessidade de medir-se com uma componente de fraqueza e de fragilidade, que o torna ainda mais significativo pela própria especifica dimensão de inter-personalidades e cotidianidade inerentes à escolha matrimonial. Mesmo neste contexto de falência, é permitido detectar a centralidade da pessoa como projeto de amor. Ora bem, a centralidade da pessoa, a que nos referimos, como sujeito envolvido num projeto de amor, é entendida integralmente e não em forma individualista, arbitrária e aleatória, isto é, como se a pessoa fosse restabelecida em forma exclusiva a si mesma e a medida de valor fosse somente a satisfação e gratificação imediatas. O conceito de pessoa, que subjaz como valor primário à visão cristã do matrimônio, é isto que permite confrontar a consciência pessoal e a experiência imediata do indivíduo com a dimensão comunitária e espiritual, vale dizer com a capacidade da pessoa de responder, isto é, de ter fé nas responsabilidades livremente assumidas, mesmo quando sua realização nem sempre seja suficiente para o impulso espontâneo da emotividade, devendo, às vezes, recorrer ao esforço e ao sacrifício, tendo como pano de fundo a utopia generosa do Evangelho. Ao mesmo tempo, o esforço e o sacrifício generoso, mesmo irrenunciáveis na compreensão autêntica da centralidade da pessoa Suprema Lex Suprema Lex Número 1 – Janeiro/Junho de 2011 Número 1 – Janeiro/Junho de 2011 127 128 A RecepçÃo da COMUNIdade como CRITÉRIO de LEGITIMAÇão Do ORDeNAMENTO jURíDICO: A CONTRIBUIÇÃO da hisTóRIA1 no matrimônio, não são instâncias desligadas do último objetivo da união conjugal que contém a felicidade e a realização interpessoal na recíproca e amorosa integração. Afirmar que o esforço e o sacrifício sejam instancia a serem consideradas como vias transitáveis para constituir a aliança de felicidade inter-pessoal, não significa renunciar à meta de satisfação recíproca, nem autoriza mencionar o sacrifício inútil que provoca a anulação das síngulas pessoas. Em outras palavras, não se propõe como valor do matrimônio cristão um personalismo de forma individualista, que se refira à própria experiência e aos próprios compromissos para um sistema de valores remetidos só a si mesmo de maneira utilitarista e visando uma satisfação imediata. Nem por isso torna-se irrelevante a utilidade e satisfação pessoal na realização do próprio projeto de amor, se idoneamente escolhido. A evocação ao esforço e ao sacrifício responde simplesmente ao conhecimento que, além da medida que as gratificações imediatas oferecem, considera-se como um bem superior da própria pessoa tender ao ideal e perseverar nisso, encarregar-se também das exigências inerentes à doação pessoal de si, sem renunciar à própria realização anulando para sempre a si próprio e as próprias exigências147. Matteo Nacci2 […] leges habent maximam virtutem ex consuetudine, ut Philosophus [Aristotele] dicit […]. S. THOMAS, Suma Theologiæ, I-II, q. 97, art. 2 Sumário: 1. Introdução . 2. A experiência medieval: a communitas no centro do ordenamento jurídico. 3. A experiência moderna: ‘mitização’ do indivíduo e do direito positivo. 4. a comunidade como ‘instrumento’ de legitimação do ordenamento jurídico: exemplos canônicos e extracanônicos . 5. Conclusões. 1. INTRODUÇÃO A contribuição da história do direito canônico é rica ao identificar alguns critérios que, além de serem pontos firmes para o ordenamento da Igreja, são também de interesse na reflexão da legitimação e dos limites de cada ordenamento. Sobre a vertente interna, como ordenamento material, legitimação e limites do direito canônico descendem da pretensão que se reconhece desde o seu nascimento, isto é, a de constituir um 147 Neste sentido alguns autores frisam justamente que apesar da aproximação de muitas dimensões da vida conjugal símiles entre os dois ordenamentos, existe entre eles uma profunda diferença estrutural, enquanto a Igreja afirma a pertença do matrimônio à ordem natural, regido pela disciplina jurídica do direito divino, com a lógica consequência que nenhuma autoridade humana pode dispor diversamente sobre seus conteúdos, entre eles a perpetuidade do vínculo; isto é reforçado por uma antropologia personalista baseada na lógica oblativa do amor, mais reforçada ainda no matrimônio pela dignidade sacramental da união entre dois batizados: cfr. G. DALLA TORRE, Motivi ideologici, cit., 70. 1 Intervenção no XIV COLLOQUIO GIURIDICO INTERNAZIONALE, Legittimazione e limiti degli ordinamenti giuridici, Pontificia Università Lateranense – Pontificio Istituto Utriusque Iuris (Roma, 9-10 marzo 2010). 2 Professor da Pontfícia Universidade Lateranense de Roma, encarregado da: ‘História e Fontes do direito canônico’; ‘História e instituições do direito canônico’; ‘História do direito canônico e cultura jurídica’ e de ‘Fontes jurídicas orais no direito canônico e direito comparado’ Suprema Lex Suprema Lex Número 1 – Janeiro/Junho de 2011 Número 1 – Janeiro/Junho de 2011 129 130 ordenamento originário, cuja justificação é assegurar a missão evangelizadora, e onde a coerência com a experiência que deu originem à Igreja (a assim chamada vontade fundacional) é critério estruturante e discriminante no discernir os desenvolvimentos não legítimos. Como ordenamento formal, a variedade das fontes iniciais do direito canônico (cânones conciliares, decretais dos papas, capitula episcoporum)3, bem como a sua universal extensão, estão na raiz dos vários modos com que, na história da Igreja, entendeu-se enfrentar às inevitáveis contradições internas às normas, desde as primeiras grandes sistematizações – incluídos os assim chamados precursores gracianeos (Bernoldo de Costância4, Ivo de Chartres5, Algero de Liège6, 3 Para um estudo sobre as fontes do direito canônico veja-se, ex multis, A. TARDIF, Histoire des sources du droit canonique, Paris 1887; P. FOURNIER – G. LE BRAS, Histoire des collections canoniques en Occident depuis les fausses décrétales jusqu’au Décret de Gratien, II voll., Paris 1932; B. KURTSCHEID – F. A. WILCHES, Historia iuris canonici, I, Historia fontium et scientiae iuris canonici, Romae 1943; I. A ZEIGER, Historia iuris canonici, I, De historia fontium et scientiae iuris canonici, Romae 1947; A. M. STICKLER, Historia iuris canonici Latini. Institutiones academicae, I, Historia fontium, Taurini 1950; A. GARCÍA Y GARCÍA, Historia del derecho canónico, I, El primer milenio, Salamanca 1967; J. GAUDEMET, Le sources du droit de l’Église en Occident du II au VII siècle (Initiations au christianisme ancien), s. l. 1985; ID., Le sources du droit canonique, VIII-XX siècle. Repères canoniques. Sources occidentales (Droit canonique), Paris 1993; B. E. FERME, Introduzione alla storia delle fonti del diritto canonico, I, Il diritto antico fino al Decretum di Graziano, Mursia 1998; L. KÉRY, Canonical collections of the early middle ages (ca. 400-1140). A bibliographical guide to the manuscripts and literature (History of medieval canon law, 1), Washington, DC, 2000; C. FANTAPPIÈ, Introduzione storica al diritto canonico, Il Mulino, Bologna 2003; G. L. FALCHI - B. E. FERME, Introduzione allo studio delle fonti dell’utrumque ius, Città del Vaticano 2006; P. ERDÖ, Storia delle Fonti del Diritto Canonico, Venezia 2008. 4 BERNOLDUS CONSTANTIENTIS, De excomunicatis vitandis, de reconciliatione lapsorum et de fontibus iuris ecclesiastici, in J. P. MIGNE (a cura di), Patrologia Latina (PL), CXLVIII, coll. 1181-1218 e in Monumenta Germaniae Historica inde ab a.C.500 usque ad a.1500 (MGH), Leges, Libellos de lite imperatorum et Pontificum, II, 132-142; ID., De prudentos dispensatione ecclesiasticarum sanctionum, in MGH, Leges, Libellos de lite imperatorum et Pontificum, II, 156 ss. 5 IVO CARNOTENSIS EPISCOPUS, Panormia, Prologus, in PL, CLXI, coll. 47-60. Cf. J. WERCKMEISTER, Yves de Chartres: Prologue, texte latin et traduction française, Paris 1997; ID., as premier «canoniste»: Yves de Chartres, in Revue de droit canônique, 47/1 (1997), 53-70. 6 ALGERUS LEODIENSIS, De misericordia et iustitia. Cf. R. KRETZSCHMAR, Alger von Lütichs Traktat “De misericordia et iustitia”, Sigmaringen 1985. Pedro Abelardo7) – e concordâncias (Graciano 8), até às codificações9. Qualquer que tenha sido a estratégia seguida ao longo dos séculos, é sabido que ao ordenar as fontes reconhece-se um reduzido núcleo fundante, identificativo, que implica para o direito canônico a nota de rigidez; este núcleo convive, porém, com um outro, muito mais amplo, caracterizado pela adaptação às exigências dos fiéis. No nível deste artigo10, ficando firme a prioridade dos referidos critérios internos ao direito da Igreja (de natureza teológica ou meta-juridica), nos parece mais oportuno focalizar a contribuição da história do direito canônico nos elementos de maior proveito para a reflexão sobre cada ordenamento. Referimo-nos ao testemunho que o transformar histórico oferece sobre a exigência de fidelidade ao princípio pelo qual o direito está a serviço da vida (ius sequitur vitam). O direito a seguir a vida implica, também, que sua legitimação esteja fundamentada na capacidade de ser útil aos homens. Mais concretamente, queremos nos deter num dos critérios onde a experiência canônica da história dá um rico testemunho no nível de estabelecer a utilidade do direito, isto é, o critério da ‘receptividade’ das normas por parte da comunidade. 7 PETRUS ABAELARDUS, Sic et non, in PL, CVXXVIII, coll. 1339-1349. Cf. B. BOYER – R. MCKEON, Peter Abailard: Sic et non. A critical edition, Chicago-London 1976-1977. 8 DECRETUM MAGISTRI GRATIANI, Corpus iuris canônici, a cura de Ae. Friedberg, Pars prior, Decretum Magistros Gratiani, ex oficina Bernhardos Tauchnitz, Lipsiae MDCCCLXXIX. Su Graziano e o Decretum sos veda, ex multis, C. FANTAPPIÈ, Introduzione storica al diritto canonico, Bologna 2003, con ampia bibliografia; P. ERDÖ, Storia delle Fonti del Diritto Canonico, Venezia 2008, con numerosi riferimenti bibliografici. 9 CODEX IURIS CANONICI, Pii X Pontificis Maximi, iussu digestus Benedicti Papae XV auctoritate promulgatus, in AAS 9 (1917) 11-456; CODEX IURIS CANONICI, auctoritate Ioannis Pauli PP. II promulgatus, in AAS 75 (1983) 1-317; CODEX CANONUM ECCLESIARUM ORIENTALIUM, auctoritate Ioannis Pauli PP. II promulgatus, in AAS 82 (1990) 1033-1363. 10 No texto original dizia “no nível da temática oferecida por este Colóquio Jurídico Internacional” (nota do tradutor) Suprema Lex Suprema Lex Número 1 – Janeiro/Junho de 2011 Número 1 – Janeiro/Junho de 2011 131 132 Fixaremos a atenção nas elaborações da época medieval, de valor notável, como contraponto às sucessivas ‘mitizações’ do direito positivo e da atividade quase exclusiva e excludente da autoridade legislativa. síngulas manifestações, a única protagonista deste implante teológico-político-jurídico14. Na idade média é palpável a grande deficência enim philosophus, in V Ethic., quod virtus relata ad bonum commune est iustitia. Sed prudentia differt a iustitia. Ergo prudentia non refertur ad bonum commune. Praeterea, ille videtur esse prudens qui sibi ipsi bonum quaerit et operatur. Sed frequenter illi qui quaerunt bona communia negligunt sua. Ergo non sunt prudentes. Praeterea, prudentia dividitur contra temperantiam et fortitudinem. Sed temperantia et fortitudo videntur dici solum per comparationem ad bonum proprium. Ergo etiam et prudentia. Sed contra est quod dominus dicit, Matth. XXIV, quis, putas, est fidelis servus et prudens, quem constituit dominus super familiam suam? Respondeo dicendum quod, sicut philosophus dicit, in VI Ethic., quidam posuerunt quod prudentia non se extendit ad bonum commune, sed solum ad bonum proprium. Et hoc ideo quia existimabant quod non oportet hominem quaerere nisi bonum proprium. Sed haec aestimatio repugnat caritati, quae non quaerit quae sua sunt, ut dicitur I ad Cor. XIII. Unde et apostolus de seipso dicit, I ad Cor. X, non quaerens quod mihi utile sit, sed quod multis, ut salvi fiant. Repugnat etiam rationi rectae, quae hoc iudicat, quod bonum commune sit melius quam bonum unius. Quia igitur ad prudentiam pertinet recte consiliari, iudicare et praecipere de his per quae pervenitur ad debitum finem, manifestum est quod prudentia non solum se habet ad bonum privatum unius hominis, sed etiam ad bonum commune multitudinis. Ad primum ergo dicendum quod philosophus ibi loquitur de virtute morali. Sicut autem omnis virtus moralis relata ad bonum commune dicitur legalis iustitia, ita prudentia relata ad bonum commune vocatur politica, ut sic se habeat politica ad iustitiam legalem, sicut se habet prudentia simpliciter dicta ad virtutem moralem. Ad secundum dicendum quod ille qui quaerit bonum commune multitudinis ex consequenti etiam quaerit bonum suum, propter duo. Primo quidem, quia bonum proprium non potest esse sine bono communi vel familiae vel civitatis aut regni. Unde et maximus Valerius dicit de antiquis Romanis quod malebant esse pauperes in divite imperio quam divites in paupere imperio. Secundo quia, cum homo sit pars domus et civitatis, oportet quod homo consideret quid sit sibi bonum ex hoc quod est prudens circa bonum multitudinis, bona enim dispositio partis accipitur secundum habitudinem ad totum; quia ut Augustinus dicit, in libro Confess., turpis est omnis pars suo toti non congruens. Ad tertium dicendum quod etiam temperantia et fortitudo possunt referri ad bonum commune, unde de actibus earum dantur praecepta legis, ut dicitur in V Ethic. Magis tamen prudentia et iustitia, quae pertinent ad partem rationalem, ad quam directe pertinent communia, sicut ad partem sensitivam pertinent singularia». Si veda, sul punto, P. GROSSI, L’ordine giuridico medievale, Bari 1997, 79-80. 2. A ExPERIÊNCIA MEDIEVAL: a COmMUNITAS no CENTRO do ordenAMENTO jurídICO Nas elaborações surgidas no interior da Igreja, e na experiência jurídica medieval, a comunidade é carta fora do baralho11 na legitimação do ordenamento jurídico é válvula de escape contra a identificação moderna entre o ius e a lex. Isto permite distinguir a legitimação do ordenamento colocada a serviço do poder, e o ordenamento jurídico ontologicamente fundado sobre o assentimento do seu destinatário final: a communitas. É emblemática a contribuição de Santo Tomás12 ao final do Ducentos, sobre o papel fundativo da comunidade no ordenamento jurídico, pois representa a summa da antropologia medieval. Nesta visão antropológica, a relação ‘unus homo – communitas’ é uma relação ‘imperfectum – perfectum’13; é a comunitdade nas suas 11 A expressão italiana do autor é cartina di tornasole literal papel de girassol. 12 Entre as numerosas obras monográficas sobre especulação filosófica-teológica do Santo Doutor da Igreja veja-se M. GRABMANN, San Tommaso. Una introduzione alla sua personalità e al suo pensiero, Milano 1920; O. LOTTIN, La morale naturel et la loi positive d’après St-Thomas d’Aquin, Lovanio-Bruxelles 1920; P. MANDONNET H. DESTREZ, Bibliographie thomiste, Paris 1921; O. LOTTIN, Le droit naturel chez St-Thomas d’Aquin et ses prédecésseurs, Bruges 1931; V. J. BOURKE, Thomistic Bibliography, Saint Louis 1945; A. D. SERTILLANGES, La philosophie morale de St-Thomas d’Aquin, Paris 1947; C. GIACON, Le grandi tesi del tomismo, Milano 1948; J. E. NAUS, The Nature of the Practical Intellect According to St-Thomas d’Aquin, Roma 1959; C. GIACON, Itinerario tomistico, Roma 1983; M. LA SPISA, San Tommaso e il pensiero post-moderno, Milano 1983; B. MONDIN, Il sistema filosofico di Tommaso, Roma 1985; J. E. GRATSCH, Manuale introduttivo alla Summa teologica di Tommaso, Casale Monferrato 1988; G. DAL SASSO - R. COGGI (cur.), Compendio della Somma teologica di San Tommaso d’Aquino, Bologna 1989; A SELVA - T. S. CENTI (cur.), Compendio di teologia e altri scritti di San Tommaso d’Aquino, Torino 2001. S. TOMÁS, Summa Theologiæ, Secunda Secundæ, q. 47, art. 10: «[…] Videtur quod prudentia non se extendat ad regimen multitudinis, sed solum ad regimen sui ipsius. Dicit 13 14 S. TOMÁS, Summa Theologiæ, Prima Secundæ, q. 90, art. 2: «[…] Videtur quod lex non ordinetur semper ad bonum commune sicut ad finem. Ad legem enim pertinet praecipere et prohibere. Sed praecepta ordinantur ad quaedam singularia bona. Non ergo semper finis legis est bonum commune. Praeterea, lex dirigit hominem ad agendum. Sed actus humani sunt in particularibus. Ergo et lex ad aliquod particulare bonum ordinatur. Praeterea, Isidorus dicit, in libro Etymol., si ratione lex constat, lex erit omne quod ratione constiterit. Sed ratione consistit non solum quod ordinatur ad bonum commune, sed etiam quod ordinatur ad bonum privatum. Ergo lex non ordinatur solum ad bonum commune, sed etiam ad bonum privatum unius. Sed contra est quod Isidorus dicit, in V Etymol., quod lex est nullo privato commodo, sed pro communi utilitate civium conscripta. Respondeo dicendum quod, sicut dictum est, lex pertinet ad id quod est principium humanorum actuum, ex eo quod est regula et mensura. Sicut autem ratio est principium humanorum actuum, ita etiam in ipsa ratione est aliquid quod est prin- Suprema Lex Suprema Lex Número 1 – Janeiro/Junho de 2011 Número 1 – Janeiro/Junho de 2011 133 134 nos confrontos do síngulo e do príncipe, e é a comunidade o ‘sujeito coletivo’ que encarna a supremacia sócio-política-jurídica. Antes do Aquinate, cada especulação teológica e filosófica evidencia o binômio ‘imperfeição do síngulo – perfeição da comunidade’. Isto está claro em Santo Agostinho de Hipona, cujo pensamento nos situa temporalmente no Vº século, no qual a “síngula” criatura insere-se num tecido supra-ordenado, que prescinde do ‘síngulo’ e que constitui uma realidade perfeita, belíssima, que se substancia num nível “outrotanto” perfeito, perfeito porque formado pelo conjunto de mais sujeitos que voluntariamente abandonam sua individualidade para formar um corpus tendente ao bem da coletividade15. cipium respectu omnium aliorum. Unde ad hoc oportet quod principaliter et maxime pertineat lex. Primum autem principium in operativis, quorum est ratio practica, est finis ultimus. Est autem ultimus finis humanae vitae felicitas vel beatitudo, ut supra habitum est. Unde oportet quod lex maxime respiciat ordinem qui est in beatitudunem. Rursus, cum omnis pars ordinetur ad totum sicut imperfectum ad perfectum; unus autem homo est pars communitatis perfectae; necesse est quod lex proprie respiciat ordinem ad felicitatem communem. Unde et philosophus, in praemissa definitione legalium, mentionem facit et de felicitate et communione politica. Dicit enim, in V Ethic., quod legalia iusta dicimus factiva et conservativa felicitatis et particularum ipsius, politica communicatione, perfecta enim communitas civitas est, ut dicitur in I Polit. In quolibet autem genere id quod maxime dicitur, est principium aliorum, et alia dicuntur secundum ordinem ad ipsum, sicut ignis, qui est maxime calidus, est causa caliditatis in corporibus mixtis, quae intantum dicuntur calida, inquantum participant de igne. Unde oportet quod, cum lex maxime dicatur secundum ordinem ad bonum commune, quodcumque aliud praeceptum de particulari opere non habeat rationem legis nisi secundum ordinem ad bonum commune. Et ideo omnis lex ad bonum commune ordinatur. Ad primum ergo dicendum quod praeceptum importat applicationem legis ad ea quae ex lege regulantur. Ordo autem ad bonum commune, qui pertinet ad legem, est applicabilis ad singulares fines. Et secundum hoc, etiam de particularibus quibusdam praecepta dantur. Ad secundum dicendum quod operationes quidem sunt in particularibus, sed illa particularia referri possunt ad bonum commune, non quidem communitate generis vel speciei, sed communitate causae finalis, secundum quod bonum commune dicitur finis communis. Ad tertium dicendum quod, sicut nihil constat firmiter secundum rationem speculativam nisi per resolutionem ad prima principia indemonstrabilia, ita firmiter nihil constat per rationem practicam nisi per ordinationem ad ultimum finem, qui est bonum commune. Quod autem hoc modo ratione constat, legis rationem habet». AURELIUS AUGUSTINUS HIPPONENSIS, Sancti Aurelii Augustini Enarrationes in psalmos CI-CL (in Corpus christianorum – Series latina, XL, pars X, 3), in psalmum CXLIV, n. 13: «[…] ista contextio creaturae, ista ordinatissima pulchritudo, ab imis ad summa conscendens, a summis ad ima descendens nusquam interrupta sed dissimilibus temperata». 15 Um outro ponto firme, no desenvolvimento do pensamento teológico-filosófico medieval, a respeito da supremacia da communitas sobre o unus homo encontra-se nas argumentações de Hugo de São Vitor que claramente afirrma que os “síngulos” bens manifestam-se plenamente não nos sujeitos considerados na sua individualidade, mas na ordem hierárquica que costitui a universitas16. Além disso, para justificar ainda melhor o quanto afirmado, o filósofo e teólogo parisiense afirma que a Graça, também age nos “síngulos” sujeitos, encontra-se na ‘unidade complexa’ (isto é, formada por tantos “síngulos” sujeitos que renunciam à própria individualidade para o bem comum superior) no seu campo de efusão privilegiado. Não se consegue que fora da ‘unidade complexa’ o “síngulo” sujeito possa usufruir da Graça, que ao contrário, com relação ao “síngulo” explica a sua eficácia única e exclusivamente enquanto membro da universitas17, sinal caracterizante e determinante de toda a ordem jurídica medieval18. Como há pouco acenamos, o inteiro e complexo sistema jurídico medieval pervade-se da idéia, vigorosa e generalizada, de desconfiança no tocante ao “síngulo” ao que corresponde a bem enraizada convicção de que só a communitas-societas, entendida como conjunto de pessoas unidas em um todo uno, pode enfrentar, dominando-as, as situações do quotidiano. Neste contexto, ainda uma peculiaríssima sociedade, a societas sacra, desde o seu surgimento assume com força determinativa o assunto segundo o qual o “síngulo”, sozinho, representa a imperfeição e só colocado dentro de um aparato social pode encontrar a salus 16 17 HUGONIS DE S. VICTORE, Commentariorum in Hierarchiam coelestem S. Dionysii Areopagitae… libri X, in PL, CLXXV, coll. 1003-1004. Ibidem. A ordem jurídica medieval, fundada sobre o conceito de imperfeição do síngulo sujeito e perfeição da comunidade na sua complexidade, é magistralmente explicada por Paulo Grossi em, P. GROSSI, L’ordine giurídico medievale…cit., ainda em ID., Società, dirtito, Stato. Un recupero per il diritto, Milano 2006; ID., Modernità politica e ordene giurídico, extraido dos Quaderni fiorentini per la storia del pensiero giurídico moderno, XXVII (1998), 13-36, in part. 13-24 (também em Assolutismo giurídico e diritto privato, Milano 1998, 443-469). 18 Suprema Lex Suprema Lex Número 1 – Janeiro/Junho de 2011 Número 1 – Janeiro/Junho de 2011 135 136 æterna, assumindo, o termo do passado, como ‘eslogão representativo’, o princípio pelo qual ‘extra Ecclesia nulla salus’19. A concepção medieval que coloca no centro do seu universo jurídico a communitas, em prejuizo do detentor do poder político, está representada de modo esplêndido na famosíssima definição de lex de Santo Tomás de Aquino, sintetizador supremo e universalmente reconhecido do pensamento jurídico medieval: «quaedam rationis ordenatio ad bonum commune, ab eo qui curam comumnitatis habet, promulgata»20. A lei é, portanto, um ordenamento racional, voltado ao bem comum, promulgado por aquele que possui o governo da comundade. O Doctor angelicus indica o importante ‘papel’ da comunidade quando afirma «ad bonum commune», expressão de prenhe valor finalistico, faltando este se assevera a invalidade da ordem jurídica. Nesta visão, o papel daquele que é preposto à comunidade é muito Sobre este ponto, P. GROSSI, L’ordine giurídico medievale…cit., 109-116. 19 20 S. THOMAS, Summa Theologiæ, Prima Secundæ, q. 90, art. 4: «[…] Videtur quod promulgatio non sit de ratione legis. Lex enim naturalis maxime habet rationem legis. Sed lex naturalis non indiget promulgatione. Ergo non est de ratione legis quod promulgetur. Praeterea, ad legem pertinet proprie obligare ad aliquid faciendum vel non faciendum. Sed non solum obligantur ad implendam legem illi coram quibus promulgatur lex, sed etiam alii. Ergo promulgatio non est de ratione legis. Praeterea, obligatio legis extenditur etiam in futurum, quia leges futuris negotiis necessitatem imponunt, ut iura dicunt. Sed promulgatio fit ad praesentes. Ergo promulgatio non est de necessitate legis. Sed contra est quod dicitur in decretis, IV dist., quod leges instituuntur cum promulgantur. Respondeo dicendum quod, sicut dictum est, lex imponitur aliis per modum regulae et mensurae. Regula autem et mensura imponitur per hoc quod applicatur his quae regulantur et mensurantur. Unde ad hoc quod lex virtutem obligandi obtineat, quod est proprium legis, oportet quod applicetur hominibus qui secundum eam regulari debent. Talis autem applicatio fit per hoc quod in notitiam eorum deducitur ex ipsa promulgatione. Unde promulgatio necessaria est ad hoc quod lex habeat suam virtutem. Et sic ex quatuor praedictis potest colligi definitio legis, quae nihil est aliud quam quaedam rationis ordinatio ad bonum commune, ab eo qui curam communitatis habet, promulgata. Ad primum ergo dicendum quod promulgatio legis naturae est ex hoc ipso quod Deus eam mentibus hominum inseruit naturaliter cognoscendam. Ad secundum dicendum quod illi coram quibus lex non promulgatur, obligantur ad legem servandam, inquantum in eorum notitiam devenit per alios, vel devenire potest, promulgatione facta. Ad tertium dicendum quod promulgatio praesens in futurum extenditur per firmitatem Scripturae, quae quodammodo semper eam promulgat. Unde Isidorus dicit, in II Etymol., quod lex a legendo vocata est, quia scripta est». limitado, dado que aos seus poderes se lhe atribuem apenas uma função de natureza declarativa e, como consequência lógica, a componente volitiva e criativa – que se traduziriam num poder de tipo legislativo – é reduzida ao mínimo, senão inexistente. Santo Tomás, quase a querer marcar profundamente o papel exclusivamente “ordenatório” do detentor do poder, retomou individualmente mais o instrumentum ordenationis, a razão, consistente numa atividade principalmente cognoscitiva que evidencia a profunda humildade com a qual o detentor do poder move-se, em respeito absoluto, ao ‘ler’ os dados normativos já inscritos na ‘natureza das coisas’ e que a sociedade enquanto usufruidora primária, utiliza-a antes mesmo de tornar-se norma jurídica21. 21 S. THOMAS, Summa Theologiæ, Prima Secundæ, q. 90, art. 1: «[…] Videtur quod lex non sit aliquid rationis. Dicit enim apostolus, ad Rom. VII, video aliam legem in membris meis, et cetera. Sed nihil quod est rationis, est in membris, quia ratio non utitur organo corporali. Ergo lex non est aliquid rationis. Praeterea, in ratione non est nisi potentia, habitus et actus. Sed lex non est ipsa potentia rationis. Similiter etiam non est aliquis habitus rationis, quia habitus rationis sunt virtutes intellectuales, de quibus supra dictum est. Nec etiam est actus rationis, quia cessante rationis actu, lex cessaret, puta in dormientibus. Ergo lex non est aliquid rationis. Praeterea, lex movet eos qui subiiciuntur legi, ad recte agendum. Sed movere ad agendum proprie pertinet ad voluntatem, ut patet ex praemissis. Ergo lex non pertinet ad rationem, sed magis ad voluntatem, secundum quod etiam iurisperitus dicit, quod placuit principi, legis habet vigorem. Sed contra est quod ad legem pertinet praecipere et prohibere. Sed imperare est rationis, ut supra habitum est. Ergo lex est aliquid rationis […]»; Ivi, q. 91, art. 2: «[…] Videtur quod non sit in nobis aliqua lex naturalis. Sufficienter enim homo gubernatur per legem aeternam, dicit enim Augustinus, in I de Lib. Arb., quod lex aeterna est qua iustum est ut omnia sint ordinatissima. Sed natura non abundat in superfluis, sicut nec deficit in necessariis. Ergo non est aliqua lex homini naturalis. Praeterea, per legem ordinatur homo in suis actibus ad finem, ut supra habitum est. Sed ordinatio humanorum actuum ad finem non est per naturam, sicut accidit in creaturis irrationabilibus, quae solo appetitu naturali agunt propter finem, sed agit homo propter finem per rationem et voluntatem. Ergo non est aliqua lex homini naturalis. Praeterea, quanto aliquis est liberior, tanto minus est sub lege. Sed homo est liberior omnibus animalibus, propter liberum arbitrium, quod prae aliis animalibus habet. Cum igitur alia animalia non subdantur legi naturali, nec homo alicui legi naturali subditur. Sed contra est quod, Rom. II, super illud, cum gentes, quae legem non habent, naturaliter ea quae legis sunt faciunt, dicit Glossa, etsi non habent legem scriptam, habent tamen legem naturalem, qua quilibet intelligit et sibi conscius est quid sit bonum et quid malum. Respondeo dicendum quod, sicut supra dictum est, lex, cum sit regula et mensura, dupliciter potest esse in aliquo, uno modo, sicut in regulante et mensurante; alio modo, sicut in regulato et mensurato, quia inquantum participat aliquid de regula vel mensura, sic regulatur vel mensuratur. Unde cum omnia quae divinae providentiae subduntur, a Suprema Lex Suprema Lex Número 1 – Janeiro/Junho de 2011 Número 1 – Janeiro/Junho de 2011 137 138 A concepção da lex alheia, por quanto concerne à criação, à voluntas principis, encontra-se já no pensamento de Alberto Magno, mestre de Santo Tomás, que por volta da metade do Duzentos afirma que a lei é uma realidade complexa na qual concorrem três sujeitos: um sujeito determinante, o populus, que a aceita, desempenhando uma função ativa, e a observa enquanto promulgada para a sua utilidade; o iurisconsultus, que redige a lei, após tê-la identificado mediante técnicas jurídicas adequadas; o lege aeterna regulentur et mensurentur, ut ex dictis patet; manifestum est quod omnia participant aliqualiter legem aeternam, inquantum scilicet ex impressione eius habent inclinationes in proprios actus et fines. Inter cetera autem rationalis creatura excellentiori quodam modo divinae providentiae subiacet, inquantum et ipsa fit providentiae particeps, sibi ipsi et aliis providens. Unde et in ipsa participatur ratio aeterna, per quam habet naturalem inclinationem ad debitum actum et finem. Et talis participatio legis aeternae in rationali creatura lex naturalis dicitur. Unde cum Psalmista dixisset, sacrificate sacrificium iustitiae, quasi quibusdam quaerentibus quae sunt iustitiae opera, subiungit, multi dicunt, quis ostendit nobis bona? Cui quaestioni respondens, dicit, signatum est super nos lumen vultus tui, domine, quasi lumen rationis naturalis, quo discernimus quid sit bonum et malum, quod pertinet ad naturalem legem, nihil aliud sit quam impressio divini luminis in nobis. Unde patet quod lex naturalis nihil aliud est quam participatio legis aeternae in rationali creatura. Ad primum ergo dicendum quod ratio illa procederet, si lex naturalis esset aliquid diversum a lege aeterna. Non autem est nisi quaedam participatio eius, ut dictum est. Ad secundum dicendum quod omnis operatio, rationis et voluntatis derivatur in nobis ab eo quod est secundum naturam, ut supra habitum est, nam omnis ratiocinatio derivatur a principiis naturaliter notis, et omnis appetitus eorum quae sunt ad finem, derivatur a naturali appetitu ultimi finis. Et sic etiam oportet quod prima directio actuum nostrorum ad finem, fiat per legem naturalem. Ad tertium dicendum quod etiam animalia irrationalia participant rationem aeternam suo modo, sicut et rationalis creatura. Sed quia rationalis creatura participat eam intellectualiter et rationaliter, ideo participatio legis aeternae in creatura rationali proprie lex vocatur, nam lex est aliquid rationis, ut supra dictum est. In creatura autem irrationali non participatur rationaliter, unde non potest dici lex nisi per similitudinem»; Ivi, q. 91, art. 3: «[…] Videtur quod non sit aliqua lex humana. Lex enim naturalis est participatio legis aeternae, ut dictum est. Sed per legem aeternam omnia sunt ordinatissima, ut Augustinus dicit, in I de Lib. Arb. Ergo lex naturalis sufficit ad omnia humana ordinanda. Non est ergo necessarium quod sit aliqua lex humana. Praeterea, lex habet rationem mensurae, ut dictum est. Sed ratio humana non est mensura rerum, sed potius e converso, ut in X Metaphys. dicitur. Ergo ex ratione humana nulla lex procedere potest. Praeterea, mensura debet esse certissima, ut dicitur in X Metaphys. Sed dictamen humanae rationis de rebus gerendis est incertum; secundum illud Sap. IX, cogitationes mortalium timidae, et incertae providentiae nostrae. Ergo ex ratione humana nulla lex procedere potest. Sed contra est quod Augustinus, in I de Lib. Arb., ponit duas leges, unam aeternam et aliam temporalem, quam dicit esse humanam. Respondeo dicendum quod, sicut supra dictum est, lex est quoddam dictamen practicae rationis […]». princeps, cujo papel consiste exclusivamente no conferir autoridade formal à norma 22. Baseados no que acabamos de dizer, o papel do detentor do poder é assaz modesto, com uma função – outro tanto modesta – que é externa ao processo de formação da norma, processo em que o bispo dominicano não hesita em inserir ‘comunidade ’ e ‘ciência jurídica’. Na visão de Santo Tomás e, geralmente, da ciência jurídica medieval, podemos identificar três princípios básicos de toda a experiência do ordenamento jurídico do Medioevo, que serão violentamente excardinados na assim chamada ‘época moderna’. Em primeiro lugar o poder político não tem projeto totalizante, nem pretende seduzir e controlar o social mediante o instrumento ‘lei’23; o papel do detentor do poder não é o de ‘criador da lei’ mas de ‘intérprete dos fatos sociais’ que se encontram cotidianamente sob seus olhos e nos confrontos deles deve ser habilmente capaz de colocar no nariz os “óculos da iurisdictio’, entendida, como um modus operandi mediante o qual o princeps deve-se limitar a ‘ler’ os comportamentos da sociedade dignos de tutela e regulamentação 24. 22 23 ALBERTUS MAGNUS, De bono, in H. KÜHLE, C. FECKES, B. GEYER, W. KÜBEL (a cura di), Sancti doctoris Ecclesiae Alberti Magni ordinis fratrum praedicatorum episcopi Opera omnia, Monasterii Westfalorum 1951, Tom. XXVIII, Tract. V, de justitia, q. II, de legibus, art. I, quid sit lex: «lex est constitutio populi per consensum et utilitatem et observationem, iuriconsulti autem est per inventionem et ordinationem, et principis per auctoritatis sanctionem». Neste sentido queremos sublinhar que em grande parte dos Estados monárquicos da Europa medieval (França, Portugal, Espanha) são extremamente raras, se não ausentes, as intervenções dos detentores do poder político. A este propósito vej-ase P. GROSSI, L’ordine giurídico medievale…cit., 130-135. Neste sentido, um exemplo bem representativo do papel ordenatório’ e não ‘criativo’ do detentor do poder político encontra-se na Lex Visigothorum, ou Liber iudiciorum, do 654 d. C., em que o rei Recesvindo limita-se a coletar os mores, já existentes e provenientes do tecido social do Reino dos Visigodos, e a ‘revesti-los’ de jurisdicidade a fim de que se tornem normas jurídicas (em sentido contrário, A. IGLESIA FERREIRÓS, La creación del derecho. Una historia de la formación de un derecho estatal español, vol. I, Barcelona 1992, que identifica o «monarca como criador do direito», 225). Do caráter meramente ordenatório’ da função do rei, na determinação deste texto legislativo, descende a ‘marca’ peculiar da lex, identificada como «anima totius corporis popularis» enquanto «boni mores inveniens adque componens» (MGH-Leges nationum germanicarum, vol. I, lib. I, tit. II, De lege, § II, Quid sit lex). 24 Suprema Lex Suprema Lex Número 1 – Janeiro/Junho de 2011 Número 1 – Janeiro/Junho de 2011 139 140 Em segundo lugar, a desconfiança nos confrontos do síngulo operador é proporcional ao valor adquirido pela comunidade. É neste sentido que se pode falar, sem ter medo de exagerar, de uma mens medieval contrária a todo individualismo, que vê com grande desconfiança o sujeito em si e por si considerado mas que lhe confia, ao contrário, uma grande importância enquanto colocado dentro dum tecido social, absolutamente protegido mas ao mesmo tempo totalizante. Enfim, consequência lógica do fato é que ius e lex sejam distintos, é que o ius possa estar também contido no costume ou na “consuetudo”. O direito pertence à sociedade mesmo antes da vinda do poder político, é o conjunto destes dados inscritos na natureza das coisas, que constituem os mores e as consuedudines, e que criam a imprescindível ‘data base’ à qual o detentor do poder político deve estar em conformidade. 3. A ExPERIÊNCIA MODERNA: ‘MITIZAÇÃO’ do indIVIDUO E do direito POSITIVO O ordenamento jurídico medieval – acima delineado – onde o príncipe aparece relativamente indiferente à criação do direito, enquanto a comunidade desenvolve um papel ôntico, muda no Trezentos, quando o síngulo sente-se ‘liberado’ do tecido, tanto protetor quanto condicionante, da sociedade: é o início do individualismo moderno que investe tanto no setor antropológico quanto no político-jurídico. Do ponto de vista antropológico, assiste-se a uma verdadeira e própria reviravolta estrutural consistente na destruição violenta de cada aparato social para substituí-lo pelo síngulo sujeito, o indivíduo, que enquanto tal é portador de uma vontade própria, capaz de relacionar-se sem a communitas como filtro intermédio e, sobretudo, excluindo o outro diferente de sí.’. Este processo de individualização, primeiro momento e ao mesmo tempo impulso propulsor da época moderna, é o fruto da reflexão teológica e filosófica dos séculos XIII e XIV. E de fato, na tentativa de libertar o homem das ‘incrustações’ medievais, mina-se, na base, o implante filosófico-teológico aristotélico-tomista, caracterizado pela construção harmônica da tríade relação Deus/homem/natureza; uma construção harmônica onde o homem reporta-se constantemente, com grande humildade, ao criador e por este é condicionado nos seus atos cognoscitivos. A mudança de prospectiva filosófica-teológica, que leva, portanto, à inexorável centralidade do indivíduo, tem-se nas especulações franciscanas, nas quais é identificável um dado comum: a relação Deus/homem é a única que leva em consideração, uma relação que não só exclui a natureza mas que além disso coloca o homem acima desta25. Nesta renovada visão excludente o dado ‘natureza’ –tão caro às elaborações doutrinais, filosóficas e teológicas, medievais– o homem autodetermina-se através da sua vontade, a única em grau de dominar o mundo externo e que se liga inexoravelmente à capacidade de ser livre: o individuo, portanto, é livre enquanto capaz, através da própria voluntas, de agir numa efetiva e eficaz potestas dominandi nos confrontos de tudo isto que é alheio a si mesmo26. Em ordem à dimensão político-jurídica –atentos aos adjetivos ‘político’ e ‘jurídico’ que, de propósito, os temos apresentado ligados e juntos pelas razões que logo a seguir exporemos- o processo de identificação antropológica’ leva a uma identificação política’ que se reflete também em nível jurídico. Do ponto de vista da esfera política, num renovado panorama em que o indivíduo age sozinho e por si mesmo sem precisar de Sobre este ponto veja-se, M. VILLEY, La formation de la pensée jurídique moderne, Paris 1968, 147 ss. . 25 26 Um exemplo da ‘nova’ especulação filosófica-teológica, que investe como um rio cheio na dimensão antropológica da nascente época moderna e que vê o ’indivíduo em posição de ‘dominação’ nos confrontos do mundo externo, deve-se ir ao franciscano Pierre de Jean-Olieu que, na metade do Duzentos, afirma que a personalidade do ’homem é «existentia dominativa et libera et in se ipsam possessiva reflexa vel flexibilis» (PEdrO de João OLIVI, Quaestiones in secundum librum Sententiarum, quas primum ad finem codicum edidit, Quaracchi 1922-1926, II, q. 52, 200). Suprema Lex Suprema Lex Número 1 – Janeiro/Junho de 2011 Número 1 – Janeiro/Junho de 2011 141 142 ‘vestimenta’ –tanto protetora quanto limitadora – da communitas, plasmar-se-á um novo sujeito político, o príncipe, capaz de projetar externamente a sua vontade perfeitamente constituída e absolutamente incapaz de relacionar-se com a comunidade. Neste novo cenário o detentor do poder político (o princeps) – e eis o reflexo da ‘mitização ’ do indivídualismo no plano jurídico–, começa pôr sua atenção na produção do direito e, iniciando uma ‘luta pessoal’ torna a dispensar o pluralismo social e jurídico, apropria-se do direito como instrumento de governo, tendo-o bem estreito nas mãos, para fazer do seu poder uma «piussance absolu et perpétuel», como afirma Jean Bodin, aos finais do Quinhentos, nos Six livres de la Republique27. O processo que vê o príncipe capaz de criar direito à sua imagem e semelhança e de fazê-lo um instrumento próprio de governo, possui uma localização geográfica determinada, a França, onde a produção de normas autoritárias é o símbolo da realeza e da soberania. É lá que Michel de Montaigne chegará a afirmar que a lei deve ser obedecida não porque justa – como era durante a Idade Média – mas porque é lei, enquanto proveniente do legislador, «le fondement mystique» da mesma. Daí deriva que o ‘dever de obediência’, e é aqui que se manifesta todo o transtorno estrutural com relação à experiência jurídica medieval, que prescinde do conteúdo da norma28. Dissemos, acima, que o terreno fértil no qual analisar – como estudiosos atentos de botânica – a passagem da mens medieval à moderna é a França, onde o soberano, em longuíssimo arco de tempo que desde os Trezentos chega à Revolução francesa, corta pela base – por meio da ’ordonnance – o denso e exuberante ‘instrumentário jurídico’ proveniente do “coutume; suprime as comunidades 27 J. BODIN, Le six livres de la Republique, Aalen 1977, 122. M. E. DE MONTAIGNE, Essais, Paris 1836, livre III, chap. XIII: «les lois se maintiennent en credit, non par ce qu’elles sont justes, mais par ce qu’elles sont lois. C’est le fondement mystique des leurs authorité; ells n’en ont point d’autre. Qui bien leur sert. Elles sont souvent faictes par des sots…». 28 intermediárias e realiza a igualdade, dando ao sujeito uma liberdade dependente exclusivamente da sua vontade29. Esta reviravolta estrutural, que modifica definitivamente o ordenamento jurídico medieval, mesmo sendo fonte inestimável do sucessivo orientamento antropocêntrico e da conquista de valores nunca mais elimináveis da consciência coletiva (como a dignidade de cada pessoa humana e a igualdade perante a lei) provoca porém – de maneira igualmente inexorável – um ‘plágio hstórico’ com situação histórica determinada. É a Revolução francesa30 que, constituindo a síntese perfeita da divinização do positivismo jurídico, oferece-nos um postulado –tão certo na forma quanto errado no conteúdo- que une ‘em fila dupla’ o direito ao poder e onde a lei, consequentemente, é a única fonte, entre todas, que exprime a vontade geral. Queremos dizer ao leitor, que embora tenhamos colocado a França como paradigma de mudança da época medieval à moderna, a idéia de ‘liberdade’ do indivíduo dependendo exclusivamente da sua ‘vontade’ está presente também na especulação filosófica inglesa de Hobbes que, na sua conhecidíssima obra de filosofia política (Leviathan, or the Matter, Form and Power of a Comonwealth Ecclesiastical and Civil), afirma que «um homem livre é aquele que, naquelas coisas que com a sua força e o seu ingenho consegue fazer, não está impedido de fazer quando tem vontade de fazer» (T. HOBBES, Leviatano, trad. por G. Micheli, Firenze 1976, cap. XXI, 205-206). Entre os numerosíssimos estudos sobre a filosofia política de Hobbes veja-se: G. TARANTINO, Saggio sulle idee morali e poiítiche di Thomas Hobbes, Napoli 1900; L. STRAUSS, The Political Philosophy of Hobbes, Oxford 1936; R. POLIN, Politique et philosophie chez Thomas Hobbes, Paris 1952; M. CORSI, Introduzione al Leviatano, Napoli 1967; T. MAGRI, Saggio su Thomas Hobbes. Gli elementi della politica, Milano 1982; D. NERI, Teoria della scienza e forma della politica in Thomas Hobbes, Napoli 1984; L. FOISNEAU–G. WRIGHT, Nuove prospettive critiche sul Leviatano di Hobbes, Milano 2004; N. BOBBIO, Thomas Hobbes, Torino 2004; S. SCORSI, Thomas Hobbes tra giusnaturalismo e positivismo giuridico, Viterbo 2007; G. M. CHIODI–R. GATTI (orgnizadores), La filosofia politica di Hobbes, Milano 2009. 29 Sobre a Revolução francese veja-se, ex multis, T. CARLYLE, The French Revolution, 3 voll., London 1837; L. BLANC, Historie de la Révolution française, 12 voll. Paris 1847-1862; A. AULARD, Histoire politique de la Révolution, Paris 1901; P. SAGNAC, La Révolution, 1789-92, Paris 1920; J. THOMPSON, The French Revolution, Oxford 1944; L. LEFEBVRE, Études sur la Révolution française, Paris 1954; M. VOVELLE (organizador), Les images de la révolution française, Paris 1988; L. HUNT, La Rivoluzione francese. Politica, cultura, classi sociali, Bologna 2007; M. DI CARLO ALBERTO, La Rivoluzione francese. Una rivoluzione da completare, Viterbo 2009. 30 Suprema Lex Suprema Lex Número 1 – Janeiro/Junho de 2011 Número 1 – Janeiro/Junho de 2011 143 144 Isto produz uma incisiva e definitiva discriminação entre a lex medieval e a lei moderna: se a primeira estava marcada por determinados conteúdos e finalidades –a racionalidade e o bem comúm–, a segunda propõe-se como realidade o que não se encontra em um conteúdo ou em um fim a sua legitimação social. A época moderna – assim delineada nas breves passagens precedentes – representa a humilhação do pluralismo jurídico e, como consequência, a exaltação do monismo, em que o poder político -identificado mum Estado soberano debruçado a eliminar pela raiz as comunidades intermédias repletas de normas consuetudinárias e de práticas específicas – exprime-se e age através da lei, longa manus da sua estrutura totalizante e unificante, e dos conteúdos abstratos, e inapeláveis. A lei torna-se, portanto, pura exteriorização formal, um ato em que não será o conteúdo quem conferirá a legitimação, mas sempre e somente a proveniência do único sujeito detentor do poder político: o legislator. Os novos e únicos protagonistos do cenário histórico, projetados no ‘laboratório jurídico’ do jus-naturalismo31 e liberados pelas ‘incrustrações’ medievais, são o indivíduo e o Estado, ambos 31 Para explicar a reviravolta da prospeciva do mundo jurídico medieval ao moderno, Paulo Grossi emprega a felicíssima expressão ‘projeto jus-naturalistico’, «um projeto – porque da empresa projetual conserva o indúbio caráter de estrutura meditadíssima –, mas também uma estratégia – porque não esconde a sua tensão ao seduzir a concretude da vida cotidiana e a torna-la práxis; projeto e estratégia que se apresentam sobretudo aos olhos do histórador do direito sob o aspecto de uma tentativa – admirável pela sua perspicácia– de identificar história, sociedade, instituições como artifícios opressores e de começar a construir mais além, num terreno livre de hipotécas, onde o indivíduo privado e o indivíduo político pudessem finalmente sobressair na sua polida indivualidade. O programa parecia ser: abstrair e simplificar; o instrumento: uma maciça deteriorização e, consequentemente, dessocialização; o resultato: um cenário histórico reduzido a duas únicas vigorosas identificações […] o ndivíduo solitário e o Estado» (P. GROSSI, Modernità política e ordine giurídico…cit., 31-32. Sobre o jus-naturalismo veja-se, ex multis, L. STRAUSS, Diritto naturale e storia, Venezia 1957; G. SOLARI, La dottrina del diritto naturale nelle dottrine etico-giuridiche dei secoli XVII e XVIII, Torino 1904; H. WELZEL, Naturrecht und materiale Gerechtigkeit, Gottinga 1951; E. DI ROBILANT, Significato del diritto naturale nell’ordinamento canonico, Torino 1954; E. GALAN Y GUTIERREZ, Ius naturae, 2 voll., Madrid 1961; F. POLLOCK, The History of the Law of Nature, in Jurisprudence and Legal Essays, Londra 1961; N. BOBBIO, Giusnaturalismo e Positivismo giuridico, Milano 1972; A. BRIMO, Les grands courants resultado de um mesmo processo, ambos ‘aliados’ contra a ideologia medieval –presente no tecido social ao menos até em fins de Quinhentos32 – e a práxis corporativa. Às referidas mudanças estruturais dos ordenamentos jurídicos não é totalmente impermeável a experiência jurídica da Igreja, porque encarnada no mundo e partícipe das suas vicessitudes. Sinal de acomodação a esta evolução foi a obra de codificação33, que unifica o direito num corpo normativo que recebe a sua segura legitimação da promulgação por parte da autoridade legislativa. Todavia, a função legitimante e limitativa da communitas não tem perdido nunca o seu papel central, tanto dentro do ordenamento canônico, como no comportamento da Igreja nos confrontos de certas leis criadas em outros ordenamentos. de la philosophie du droit et de l’État, Parigi 1967; A. PASSERIN D’ENTRÈVES, La dottrina del diritto naturale, Milano 1980. 32 Veja-se sobre este ponto, P. GROSSI, Modernità política e ordine giuridico…cit., 36-39. 33 Queremos advertir o leitor que não nos deteremos no tema da codificação do direito da Igreja remetendo-o quanto ao mérito aos numerosíssimos estudos. No que se refere ao iter de formação do Código Pio-Benedetino veja-se, P. VAN DE KAMP, Codex iuris canonici, in Dictionnaire de droit canonique, Tomo II, Paris 1909, 909 ss.; A. M. STICKLER, Historia juris canonici latini. Institutiones academicae. Vol. I, Historia fontium. (pontificium athenaeum salesianum. Facultas iuri canonici), Torino 1950; bem como o poderoso estudo di C. FANTAPPIÈ, Chiesa romana e modernità giuridica, tomo II, Il codex iuris canonici (1917), Milano 2008. A respeito dos vinte sanos do iter formativo e a estrutura do Codex Iuris Canonici de João Paulo II verja-se entre muitos, S. BERLINGÒ, Diritto canonico, Torino 1995, 117-120; P. MONETA, Introduzione al diritto canonico, Torino 2001, 63-67; G. FELICIANI, Le basi del diritto canonico, Bologna 2002, 38-44; C. FANTAPPIÈ, Introduzione storica al diritto canonico, Bologna 2003, 261-269; L. MUSSELLI, Storia del diritto canonico. Introduzione allo studio del diritto e delle istituzioni ecclesiali, Torino 2007, 107-115. Para um exame analítico de todo o iter histórico de formação do Codex Canonum Ecclesiarum Orientalium veja-se, ex multis, A. COUSSA, De codificatione canonica orientali, em AA. VV., Acta Congressus Iuridici Internationalis VII saeculo a Decretalibus Gregorii IX et XIV a Codice Iustiniano promulgatis, IV, Romae 1937, 491-532; D. FALTIN, La codificazione del diritto canonico orientale, in AA. VV., La Sacra Congregazione per le Chiese Orientali nel cinquantesimo della fondazione (1917-1967), Roma 1969, 121-137; D. SALACHAS, Istituzioni di Diritto canonico delle Chiese orientali cattoliche, Bologna 1993, 45-54; J. FARIS, La storia della codificazione orientale, in K. BHARANIKULANGARA (organizador), Il Diritto Canonico Orientale nell’ordinamento ecclesiale, Città del Vaticano 1995, 255-268; D. SALACHAS-L. SABBARESE, Codificazione latina e orientale e canoni preliminari, Città del Vaticano 2003. Suprema Lex Suprema Lex Número 1 – Janeiro/Junho de 2011 Número 1 – Janeiro/Junho de 2011 145 146 4. a COMUNIDADE como insTRUMENTO’ de LEGITIMAÇÃO do ordenAMENTO jurídICO: ExEMPlOS canôNICOS e EXTRA-CANôNICos Se por ‘legitimação ’ entende-se o processo de regulamentação formal, por parte do ordenamento jurídico, de uma práxis que a sociedade utiliza para a gestão de determinadas relações jurídicas e cujo critério determinante é a efetividade – entendida como a capacidade que possui uma regra ou um instituto de ser concretamente aplicado –, a vigorosa experiência da história do direito canônico é o costume34, mesmo que seja contra legem, cuja sobrevivência à primeira codificação mostra a essencialidade da nomogênesis comunitária35. No nascimento de um costume é à communitas que se 34 Entre os numerosíssimos estudos sobre a consuetudo canônica veja-se, A. FONTANA, Il valore della consuetudine e i suoi requisiti secondo il diritto canonico, Modena, 1907; F. FLUMENE, La consuetudine nel suo valore giuridico, Sassari, 1925; M. CONTE A CORONATA, Institutiones iuris canonici, Torino, 1928; R. WEHRLÉ, De la coutume dans le droit canonique. Essai historique s’étendant des origines de l’Eglise au pontificat de Pie XI, Paris, 1928; A. VAN HOVE, Commentarium Lovaniense in codicem iuris canonici, vol. I, tom. III, De consuetudine, Mechliniae-Romae 1933, 3-237; P. FEDELE, Il problema dell’animus communitatis nella dottrina canonistica della consuetudine, Milano 1937; G. MICHIELS, Normae generales juris canonici, commentarius libri I codicis juris canonici, vol. II, tit. II, De consuetudine, Parisiis-Tornaci-Romae, 1949, 1-220; A. RAVÀ, Consuetudine (diritto canonico), in Enc. dir., vol. IX, Milano, 1961; J. ARIAS GOMEZ, El consensus communitatis en la eficacia normativa de la costumbre, Pamplona, 1966; M. FORNASARI, La Consuetudine dalle collezioni canoniche gregoriane all’Ostienese, em Studi in onore di Marcello Magliocchetti, vol. II, Roma 1975, 565-600; F. J. URRUTIA, Reflexiones acerca de la costumbre juridica en la Iglesia, em Investigationes theologico-canonicae, Roma 1978, 449-479; ID., De consuetudine canonica novi canones studio proponuntur, em Periodica de re morali, canonica, liturgica, LXX (1981), fasc. 1, 69-103; G. R. GIACOMAZZO, La consuetudine nella dottrina canonistica classica, Padova 1983; G. COMOTTI, La consuetudine nel diritto canonico, Padova, 1993; M. SANS GONZÁLEZ, La costumbre en la elaboración del Código de derecho canónico de 1917, em M. TEDESCHI (a cura di), La consuetudine tra diritto vivente e diritto positivo, Soveria Mannelli 1998, 107-138; E. BAURA, La consuetudine, em Fondazione del diritto. Tipologia e interpretazione della norma canonica (Quaderni della Mendola, vol. 9), 81-104; G. FELICIANI, La consuetudine nella codificazione del 1917, em Ius Ecclesiae, Rivista internazionale di Diritto Canonico, XIX 2 (2007), 333-346; P. BELLINI, Tradizione e consuetudine nella esperienza del movimento cristiano principale, em Prassi e diritto. Valore e ruolo della consuetudine, Napoli 2008, 167-189. O costume, de fato, encontrava a sua disciplina específica nos cânones do Código pio-benedetino (cc. 20-25) e está regulamentada e em vigor tanto no Código de direito canônico latino (cc. 23-28) como no Código dos cânones da Igeja Oriental (cc. 1506-1509). 35 lhe reconhece o animus voltado a fazer com que um comportamento torne-se norma vinculante. Ao mesmo tempo, a constatação do desuso com relação a regras de fato não aplicadas nem respondentes às necessidades da comunidade, foi um dos critérios de revisão do Código de direito canônico vigente e de preparação do Codex Canonum Ecclesiarum Orientalium. No tangente à legitimação de certas medidas legislativas extra-canônicas, não obstante a sua formal inserção num ordenamento jurídico, o comportamento da Igreja foi às vezes fundamental ao estabelecer um limite, não só no anunciar corajosamente a eventual incongruência delas com os valores últimos da sua missão, mas, também, em favorecer ao não acolhimento destas medidas por parte da comunidade. Pense-se nas Leis tutelares da raça emanadas pelo Estado italiano de 193836 que, mesmo em vigor, ficaram em desuso pelo fato de muitas pessoas, enquanto a Igreja desempenhou em primeira pessoa um preciosíssimo papel em salvar, durante as perseguições, familias judaicas inteiras. Apesar destes exemplos demonstrarem a natureza substancial do protagonismo que às vezes assumiu a rejeição da comunidade, 36 Real Decreto-Lei de 5 de setembro de 1938, n. 1390, Medidas para a defesa da raça na escola; Real Decreto-Lei de 7 de setembro de 1938, n. 1381, Medidas nos confrontos dos Hebreus extrangeiros; Real Decreto-Lei de 15 de setembro de 1938, n. 1779, Integração e coordenação em texto único das normas já emanadas para a defesa da raça na escola italiana; Real Decreto-Lei de 17 de novembro de 1938, n. 1728, Medidas para a defesa da raça italiana. um breve mas cliaríssimo comentário sobre as Leis Raciais do Estado italiano encontra-se em P. GROSSI, Pagina introduttiva (a sessant’anni dalle leggi razziali del 1938), extraído dos Quaderni fiorentini per la storia del pensiero giuridico moderno, XXVII (1998), 1-9, em que o Autor –no mais amplo e absoluto consenso de quem escreve–, afirma que estas leis eram «leis formais do Estado italiano, mesmo eivadas de um conteúdo iníquo e repugnante à consciência ética comúm, um daqueles textos normativos duríssimos para o intéprete-aplicador mas para traduzir por parte deste a vida concretamente «embora horrorizado pelo seu conteúdo…» (como escrevia desarmado Pedro Calamandrei…). Valha esta «página introdutiva» da celebração infamante de um evento para não esquecê-lo. Certamente, antes de mais nada para a imperdoável perversão a que foi submetido o nosso ordenamento positivo; mas valha também de advertência para quem continua a ovacionar uma legalidade a todo custo, mesmo que seja, rígida e abstrata, prescindindo da necessária verificação na trama materna da sociedade e da experiência comúm», 6. Suprema Lex Suprema Lex Número 1 – Janeiro/Junho de 2011 Número 1 – Janeiro/Junho de 2011 147 148 a respeito da legitimação das medidas que se entende inserir no ordenamento jurídico, a impressão mais comum é de sinal contrário. A orientação sócio-jurídico-cultural emergente da Revolução francesa induz a reter que o papel da comunidade seja extrínseco ao direito, exaurindo-se na livre eleição do legislador, e sem papel verdadeiro no tocante ao ordenamento jurídico. A prospectiva histórica, ao invés, leva a sustentar o contrário e permite de entrever no presente uma fase de plena ‘recuperção pelo direito’. Estudiosos do Novecentos como Santos Romano37, Jorge Ripert38 e, hoje, Paulo Grossi39 afirmam, segundo diversas prospectivas, que o direito provém necessariamente de baixo – dos destinatários passivos da norma – pois isto antes de ser norma é ordenamento e que, de fato, a comunidade então desenvolve um papel determinante para os fins de legitimação do ordenamento jurídico. Isto foi uma constante, embora estafante e nem sempre capaz de impor-se. Basta pensar (em termos de Italia40) na lei de 15 de setembro de 1964, n. 75641, sobre os contratos agrários, que no art. 3 proibia os contratos de parceria agrícola42. Na práxis estes contratos vinham regularmente estipulados. Isto porque ao lado dos asssim chamados direitos oficiais, aqueles que nascem da voluntas 37 S. ROMANO, L’ordinamento giuridico, Firenze 1962; ID., Lo Stato moderno e la sua crisi. Saggi di diritto costituzionale, Milano 1969. 38 39 40 G. RIPERT, Le déclin du droit - Etudes sur la législation contemporaine, Paris 1949, prefácio, VI:: « a sociedade está em perigo, quando o poder político manifesta-se em leis que não são mais a expressão do direito.». P. GROSSI, Mitologie giuridiche della modernità, Milano 2005; ID., Il diritto tra potere e ordinamento, Napoli 2005; ID., Società, Diritto, Stato…cit.; ID., L’Europa del diritto, Bari 2007. Acréscimo do tradutor Lei de 15 de setembro de 1964, n. 756, Normas em matéria de contratos agrários. 41 Lei de 15 de setembro de 1964, n. 756, tit. II, da parceria agrícola, art. 3: «Ao ocorrer a data de entrada em vigor da presente lei não podem ser estipulados novos contratos de parceria agrícola. Os contratos estipulados que violam a proibição de que trata o precendete parágrafo são nulos. A nulidade no sentido da precedente disposição não produz efeito para o período em que o referido tem tido execução . Para os efeitos do primeiro parágrafo não se consideram novos contratos os estipulados para estender o fundo objeto do contrato a fim de adequá-lo às exigências da família de colonos e da boa condução ». 42 legislatoris, sempre mais existem outros que vem antes pensados e depois plasmados na ‘oficina da práxis’ – preciosa também no ordenamento jurídico canônico –, oficina cujo ‘instrumentário’ pertence exclusivamente à comunidade. 5. CONCLUSões A síntese histórica apresentada elucidou que o direito, na experiência jurídica medieval, era uma realidade inscrita na natureza das coisas e pertencente ao tecido social, que o detentor do poder político sabia ‘ler’ nas ‘coisas do criado’. Na experiência jurídica moderna, ao invés, o direito passou a ser um instrumento do prínceps moderno, o instrumentum regni por excelência, com a finalidade de determinar a sua vontade, manifestada em forma de preceito jurídico –a lei– pelo conteúdo abstrato, não elástico e ‘igualitário’. O momento de crise do modernismo jurídico encontra-se no Novecentos, um século impregnado de forte desconfiança nos confrontos do Estato, agora incapaz de relacionar-se com a sociedade, com o risco de relativizar a centralidade dela. ‘Sempre mais sociedade e, sempre menos Estado’ é o eslogão que resume a crise jurídica do Novecentos. Um momento de crise sim, mas crise positiva, onde se deixam os ‘designios cumpridos’ e encaminha-se para uma uma realidade mais desordenada mas, ao mesmo tempo, constituinte do humus para reescrever o futuro em termos de ‘pluralismo jurídico’43 e de globalização jurídi São muitos os eventos históricos que nos levam a vêr no Novecentos um século em que a sociedade toma sempre mais lugar nos confrontos de um Estato agora cristalizado em si mesmo. Limitar-nos-emos a identificar dois, um de caráter teorético, o outro de matriz legislativa. O primeiro refere-se à prelesão proferida por Santos Romano na inauguração do ano acadêmico de 1909-1910 da Universidade dos Estudos de Pisa, com o título “O Estato moderno e a sua crise”, um documento elucidativo em que o jurista palermitano, intuindo o assim chamado ‘pluralismo’, identifica as forças latentes que teriam agido no Estado moderno, mesmo sem ser o Estado (S. ROMANO, Lo Stato moderno e la sua crisi…cit. Veja–se nesta perspectiva, P. GROSSI, Santi Romano: un messaggio da ripensare nella odierna crisi delle fonti, em Rivista trimestrale di diritto e procedura civile, LX (2006), 377-395). O segundo evento histórico, de matriz excelentemente legislativa, é constituido pela Constituição de Weimar promulgada em 11 de 43 Suprema Lex Suprema Lex Número 1 – Janeiro/Junho de 2011 Número 1 – Janeiro/Junho de 2011 149 150 ca44. A atual fase de pluralismo jurídico e globalização jurídica remete ao centro da legitimação do direito a sua conexão com a comunidade. Esta conexão não é mais chamada a exprimir-se só em termos de recesso da lei, que fica então um ponto firme; requerem-se, porém, novas estratégias que incidem na própria produção do direito. Com efeito, a necessária utilidade do ordenamento às exigências e aos valores em que se reconhece a comunidade dos destinatáros não permite reduzir o papel dessa à mera eleição do poder legislativo. É necessário dar lugar à produção imediata do direito que possa provir de baixo. O instrumento tradicional, neste sentido, foi o costume, reconhecido também contra legem, mesmo com diversidade de lugar e de regulamentação nos ordenamentos dos Estados e no ordenamento da Igreja. Nesta última, como é sabido, não se verifica a eleição do legislador; nem por isso faltam instrumentos formais suficientemente idôneos para garantir aquele papel produtivo do direito que julgamos fundamental, o reconhecer a comunidade. valor que o costume foi portador, não pode ser desconhecido. Este valor é o sensus fidelium do qual são reflexos alguns institutos peculiares do ordenamento jurídico canônico, como o Sínodo diocesano, o Conselho pastoral, e ainda mais claramente as várias modalidades de formação dos direitos particulares (os regulamentos criados pelos movimentos, as constituições dos Institutos de vida consagrada, os estatutos das associações, …). não vos caiba dúvidas que nestes e nos outros institutos análogos seria necessária uma críatividade maior, para que o sensus fidelium se exprimisse com maior eficácia daquela que permite uma aplicação reduzida e inadequada dos próprios institutos46. Mesmo se o instrumento tradicional, formalizado no costume, pode-se dizer atualmente um tanto ‘desvalorizado’45, ao contrário. o agosto de 1919 e na qual o poder constituinte procura colher e fixar o aporte jurídico de um povo num determinado momento histórico; portanto, um texto que se torna a ‘voz’ da sociedade e não do poder legislativo (sobre este ponto veja-se D. DONATI, Corso di costituzioni straniere: la costituzione dell’Impero Germanico, Padova 1926; F. POETZSCH-HEFFTER, Handkommentar der Reichsverfassung vom 11 August 1919. Ein Handbuch für Verfassungsrecht und Verfassungspolitik, Berlin 1928; G. ANSCHÜTZ, Die Verfassung des Deutschen Reiches vom 11. August 1919, Berlin 1933; C. MORTATI, Introduzione alla Costituzione di Weimar, Firenze 1946). Veja-se, nesta prospeciva, M. R. FERRARESE, Le istituzioni della globalizzazione Diritto e diritti nella società transnazionale, Bologna 2000. A este propósito, queremos salientar que a demitização do pan-legalismo moderno – caracterizado pela exclusividade da lei como fonte – encontra um impulso propulsivo também na ‘globalização jurídica’. Se na época moderna o poder político quer monopolizar o direito, desde finais do Novecentos o poder econômico percebeu que o político não é capaz de gerir o direito perante a economia. O poder econômico está criando institutos elaboratos pela práxis, para regula-los volta-se ao jurista – imerso na sua oficina pragmática – e não ao legislador que, nos ‘seus inaccessíveis palácios” encontra-se depauperado da ‘função criadora da lei’. 44 Fala-se de ‘desvalorização ’ do costume porque, desde o Código pio-benedetino, este foi admida no ordenamento jurídico exclusivamente por meio da voluntas legislatoris, unica causa legitimamente a jurídicidade desta fonte do direito (cf. c. 25, Codex Iuris canônicos 1917; c. 23, Codex Iuris canonii 1983; c. 1507, par. 4, Codex canonum Ecclesiarum Orientalium). 45 Cf. M. J. ARROBA CONDE, Diritto processuale canonico, Roma 2006, 26-27.. 46 Suprema Lex Suprema Lex Número 1 – Janeiro/Junho de 2011 Número 1 – Janeiro/Junho de 2011 151 O tratado “de personis” e suas “condiciones” no livro primeiro do Codigo de 1983? Mons. Dr. Martin Segú Girona1 SUMÁRIO: Prescindindo da polêmica, se, se trata ou não, de um supra codicial o de personis, o fato é que em todos os tratados do nosso Ordenamento Jurídico encontram-se as pessoas. O artigo define o que é uma pessoa no direito canônico e quais são suas condições apresentadas pelo Legislador na segunda parte do Livro primeiro. As condições não são taxativas mas são as mais evidentes para a identificação na pertença e na dinâmica do Povo de Deus. A parte primeira do livro do Código Latino de 1983 trata da regra jurídica em si, isto é, da norma ou da lei jurídica enquanto jurídica, por isso que apresenta os modelos ou os paradigmas das leis enquanto leis, das normas como normas, das regras como regras, além disso mostra o costume como tal sublinhando que o melhor intérprete da lei são os costumes de determinada comunidade. O Legislador ainda apresenta a atividade jurídica administrativa que nada mais é do que pastoral do próprio direito devendo toda e qualquer norma administrativa, ser humana, cristã e, por isso mesmo justa. O Legislador ainda sublinha que toda e qualquer norma executiva deve visar primo et per se a pastoralidade desta porção do Povo de Deus que está em marcha para a parusia ou para o eskaton (o definitivo encontro com o Pai). Devido a toda esta rica impostação que os estudiosos do livro Primeiro do Código latino consideram-no como sendo a metafisica jurídica ou a metafisica do direito2. Por isso que na primeira parte 1 Professor e Diretor do Instituto de Direito Canônico Pe. Dr. “Giuseppe Benito Pegoraro” São Paulo – SP. Vigário Judicial do Tribunal Interciocesano de São Paulo – SP. Presidente do Arquivo Metropolitano de São Paulo – SP 2 Cf. GANGOITI, B., Dispense ad usum alumnorum in universitate Sancti Thomae in Urbe, 1988, 3. Suprema Lex Número 1 – Janeiro/Junho de 2011 153 154 deste livro são tratados os institutos juridicos qualificados no jargão jurídico de supra codiciais, pois suas figuras e, mais própriamente seus institutos servirão de subsídio, paradígma e base para todo e qualquer tratado jurídico que os aborde. tratados, a segunda, a Comissão de Revisão do novo Código com esta atitude visava que o tratado “de personis” pudesse ser apresentado bem mais concretamente, suscitando uma mais completa exegese e hermenêutica nos seus conteúdos. No tocante ao tratado específico qualificado “de personis” há inúmeras controvérsias entre os comentaristas.3 Mas, o posicionamento adotado pela Comissão de Revisão do novo Código não é nada pacifico entre os autores e comentaristas, daí que, com facilidade, se encontram os que defendem os argumentos e abordagens da própria Comissão como os que não concordam com isso e defendem que o “de personis” não é, e nem pode ser considerado um supra codicial e, por isso mesmo, deveria ser colocado como introdução ao livro IIº que trata especificamente da eclesiologia e mais concretamente da marcha do Povo de Deus6. . Aqui neste trabalho posicionamo-nos da seguinte maneira: dado não concedido que o tratado “de personis” não seja um supra codicial, no entanto devemos dizer e constatar que aqui na IIª parte do livro primeiro do Codigo Latino é apresentado e tratado como se o fosse, pois nos são fornecidos os princípios e caracteristicas que devem ser usados pela boa hermenêutica e devida exegese para os demais tratados que se relacionem especificamente com o de personis, pois em todos encontramos como sujeito passivo a pessoa humana, como não poderia ser diferente. As leis não foram promulgadas nem para o reino mineral e nem o vegetal, mas para o homem4. Devido a todo este texto e contexto que a Comissão para a Revisão do Codigo deslocou o “de personis” que figurava no antigo Código no livro IIº para o 1º com a intenção explícita de integrar os princípios gerais, pois estabeleceu concretamente as regras e normas que devem ser aplicadas às pessoas tanto físicas como jurídicas. Basta para nos convencer, cotejarmos o Código Latino de 1983 com o antigo Código de 1917 para constatar que o “De personis5” na primeira codificação da Igreja foi colocado como uma espécie de introdução ao Livro lI, bem diferente da impostação do Código pós conciliar que o “De personis” foi inserido como integrante do Livro 1º por duas razões, segundo diziam os codificadores. A primeira, era para que todas as normas jurídicas paradigmáticas fossem colocadas juntas e não mais dispersas pelos diversos livros do Código e dos Para elucidar melhor esta questão apresentaremos, a titulo de exemplo, apenas o nome de dois eminentes professores com visões bem distintas, o sábio Gauthier, ensinava e defendia que a 2ª parte do livro 1º do Código Latino de 1983 tanto quanto a primeira é técnica, por isso que o livro primeiro é o que nos dá as chaves para retamente estudar e penetrar os demais tratados e assim poder descobrir com toda segurança a mens legislatoris e os conteúdos e finalidades das leis. No livro Primeiro do Codigo latino estuda-se como deve ser utilizado concretamente o Direito que é iminentemente pastoral e por isso mesmo libertador e facilitador de caminhada. Portanto, deve ser tratado como um supra codicial7. Gangoiti, outro eminente estudioso e respeitado professor, diz justamente o contrario, pois o de personis para este renomado jurista está completamente deslocado e fora de lugar pois não é, e nem pode ser um supra codicial, por isso seu lugar adequado deveria estar no livro II do Codigo Latino e ser sua introdução, isto porque não é possivel falar de Povo de Deus sem primeiro saber o que é a pessoa humana concreta e especifica8. 3 Cf. GAUTHIER, Dispense ad usum alumnorum in universitate Sancti Thomae in Urbe, 1988, 5. 4 Cf. GANGOITI, B. Dispense de normatologia legislativa, as usum alumnorum, Roma, 1987, . 4. 6 7 Cf. GAUTHIER, Dispense ad usum alumnorum..,.4.. Cf. GAUTHIER, Dispense ad usum alumnorum..,.2-3.. 8 Cf. GANGOITI, B., Dispense ad usum alumnorum...,. 5. 5 Cf. GANGOITI, B., Dispense ad usum alumnorum...,10.. Suprema Lex Suprema Lex Número 1 – Janeiro/Junho de 2011 Número 1 – Janeiro/Junho de 2011 155 156 Percebe-se, portanto, que nem todos os eminentes e graves autores estão de acordo com a divisão contida no Livro Primeiro do Código latino. Os que a defendem dizem que o De personis integrando a 2ª parte das normas gerais é bem mais jurídico e, além do mais, na sua modernidade, aproxima-se bem mais da abordagem dos Ordenamentos Jurídicos Civis. O artigo, em hipótese alguma pretende dirimir esta questão, e nem sequer, quer entrar no mérito, por isso, prescindindo desta rica e profunda discussão deseja abordar e aprofundar aqui apenas o conceito e a as condições (condiciones) da pessoa fisica. O foco da nossa questão será a vertente do direito canônico latino mas sem descurar os dizeres do direito oriental, nesta importante questão. Poderemos constatar no cotejo dos cânones dos dois Ordenamentos Juridicos canônicos que seus conteúdos, se, não forem idênticos com as mesmas fórmulas e expressões, pouco diferem entre si. O Codigo Latino no seu capitulo 1º 9 do artigo V da 2ª parte do Livro 1º trata da condição canônica das pessoas fisicas. Mas, por outro lado, não se pode tratar da condição canônica das pessoas fisicas sem antes saber e operacionalizar adequadamente o que é pessoa10 ou, em outra palavras, sem adentrar nos conteúdos e na riqueza contida no c. 9611 do Codigo latino e do c. 7 § 112 do oriental. Ao analisar, hermenêutica e exegeticamente os conteúdos dos cânones dos Ordenamentos Juridicos canônicos, imediatamente se detecta que os redatores sofreram a influência da própria tradição civilística moderna oriunda dos juristas de fins do sec. XIX quando 9 Cf. CIC cc. . 96-112 et CCEO cc. 7 § 1 e cc. 909-919. 10 11 Cfr.. LO CASTRO Il soggetto ed i suoi diritti nell´ordinamento canonico (Milano 1985).. Cf. CIC. c. 96 - Pelo batismo o homem é incorporado à Igreja de Cristo e nela constituído pessoa, com os deveres e direitos que são próprios dos cristãos, tendo-se presente a condição deles, enquanto se encontram na comunhão eclesiástica a não ser que se oponha uma sanção legitimamente infligida. 12 Cf. c. 7 § 1. Fieles cristianos son aquellos que, incorporados a Cristo por el bautismo, se integran en el pueblo de Dios y, hechos participes a su modo por esta razón de la función sacerdotal, profética y real de Cristo, cada uno según su propia condición, son llamados a desempeñar la misión que Dios encomendó cumplir a la Iglesia en el mundo. se debruçaram para aprofundar a doutrina dos pandectistas e dos estudiosos dos Digesta de Justiniano13. Esta influencia é mais do que evidente, ao operacionalizar o conceito de pessoa, usando-se a mais estrita técnica do jargão juridico, pois persona em direito canônico hoje, é definida como o sujeito capaz de direitos e deveres. 14 Devemos lembrar, porém que se formos na etimologia do termo “persona”, perceberemos que no seu significado original era o de máscara teatral, pois esta palavra usava-se para indicar o “papel” desempenhado pelos atores em determinada peça. Mas, ao mesmo tempo, na literatura antiga não é raro encontrar a mesma palavra com significado especifico de “homem” sem qualificações ou distinções, isto é, tanto se aplica ao homem livre como ao escravo. Neste sentido poder-se-ia deduzir que o escravo não era um mero objeto, pois apesar de sua condição aviltante e inumana era-lhe reconhecido algum direito mesmo que fosse muito restrito e exíguo. Devemos notar, porém, que o termo “persona” já naquele tempo incluia e caracterizava a “condicio”. Era a “condicio” que determinava a qualidade, ou melhor, a posição ou status que este individuo bem específico ocupava na sociedade a que pertencia. Falando porém, historicamente, percebemos que foram as escolas pós-clássicas as primeiras a empregar o termo persona incluindo no próprio termo as condiciones ou estas caracteristicas e conotações classificantes dos individuos nesta determinada sociedade. Na época moderna, os juristas ao aceitar os direitos de cada homem, colocaram no centro do Direito o homem-pessoa. As influências favoráveis provinham da Revolução Francesa de 5 de maio de 1789. Mas foi somente em 1811 segundo diz Ghautier, que um dos primeiros países europeus, a inserir no seu Ordenamento Juridico o termo persona foi a Austria, quando seu Legislador asseverava que “cada homem possui direitos inatos que são conhecidos apenas com a razão: por isso deve ser considerado persona’.15 13 Cf. GAUTHIER, Dispense ad usum alumnorum.., 4-5.. 14 Cf. c. 96 et CCEO c. 7 § 1. Cf. Ghauthier Dispense ad usum alumnorum, Angelicum, .7. 15 Suprema Lex Suprema Lex Número 1 – Janeiro/Junho de 2011 Número 1 – Janeiro/Junho de 2011 157 158 Mas os que aprofundaram e desenvolveram o conceito de personalidade e consequentemente de capacidades juridicas (condiciones) foram os comentaristas e estudiosos do Direito, nos finais do século XIX e início do sec. XX. Foi nesta época que o conceito de pessoa foi acolhido pela maioria dos Ordenamentos Jurídicos Europeus. Por isso que a própria Comissão encarregada da elaboração do primeiro Código acolheu o conceito no Codigo de 1917,16 pois o Cardeal Gasparri sendo professor de direito em Paris, conhecia muito bem toda esta materia e foi graças ao eminente Cardeal que os conceitos de persona, de personalidade e de capacidade juridicas foram acolhidos explicitamente na legislação eclesiástica e consequentemente as “condiciones”. Devemos lembrar, aqui, que Lo Castro17 com sua obra e estudo, foi e é um dos autores mais citados quando se deseja aprofundar o uso da categoria de persona no Código de 1917. No entanto, após o Concilio Vaticano II os Ordenamentos Juridicos tanto o latino18 como o oriental19 vinculam tanto a personalidade jurídica como a própria capacidade de direitos e deveres ao Sacramento do batismo. Os Códigos Latino e Oriental, como não poderiam deixar de ser, sublinham as fontes sacramentais do nosso direito. Este vínculo entre batismo e direito é a consequência natural da incorporação à Igreja, Corpo de Cristo, operada pela Batismo. Mas, no entanto, comparativamente, tanto o Código latino como o oriental diferenciam muito melhor seus conteúdos se comparados com os do Código de 1917. 20 O Código Latino, especificamente, apresenta o efeito incorporativo imediato do Batismo e sua consequência jurídica inseparável ao dizer: “Baptismo homo Ecclesiae Christi incorporatur et in eadem constituitur persona”21. Em torno ao cânon paralelo do Código anterior 22, discutia-se se este cânon reservava a capacidade jurídica no ordenamento canônico apenas aos batizados,23 ou também aos não batizados. Existem, hoje, duas interpretações bem diferentes, mas devemos dizer que a interpretação que reconhece a personalidade dos não batizados, nos ordenamentos canônicos atuais, parece ser a mais condizente com o espírito do Concilio Vaticano II e consequentemente com os novos cânones. E isto fica mais claro no Código latino, quando o Legislador na sua Constituição de promulgação do Novo Código “Sacrae disciplinae Leges” apresenta-o como “intimamente ligado”24 ao Concilio Vaticano II, pois seus redatores tiveram o cuidado de inserir sintética e essencialmente a Doutrina Conciliar, não descurando porém do jargão jurídico. A intenção do Legislador era que a rica e sábia doutrina conciliar deveria sair do papel e transformar-se em vida eclesial. Toda esta impostação fica cada vez mais clara quando aprofundamos o estudo exegético e hermenêutico dos cânones. Isto nos permite dizer com Condorelli25 que nosso Legislador reconheceu, explicitamente, os direitos fundamentais da pessoa humana e, consequentemente, a personalidade jurídica de cada homem. Apenas a titulo de exempo, bastaria conferir os conteúdos dos cânones 747 § 226 do Código latino e o c. 595 § 227 do oriental. 22 23 c. + 87. Cfr. MICHIELS o.c. 15. et ONCLIN W. “Membres de l´Église. Personnes dans l´Église” in Année canonique 9 (1964) pg.17. Sacrae disciplinae Leges de 25 de janeiro de 1983, Código de direito...,VII. 24 Cfr. CONDORELLI M. “I fedeli nel nuovo Codex Iuris Canonici” in Il diritto ecclesiastico (1984) 785-788. 25 CIC c. 747 § 2.- Compete à Igreja anunciar sempre e por toda parte os princípios morais, mesmo referentes à ordem social, e pronunciar-se a respeito de qualquer questão humana, enquanto o exigirem os direitos fundamentais da pessoa humana ou a salvação das almas. Et CIC c. 1476 - Quem quer que seja, batizado ou não, pode agir em juízo, e a parte, legitimamente demandada, deve responder. CCEO c. 1134 – Cualquier persona esté o no bautizada, puede demandar en juicio, y la parte legitimamente demandada tiene la obligación de responder. 26 Cf. DOGLIOTTI M. “Le persone fisiche” in Trattato di diritto Privato 1, 2 (Torino 1982) 5-8. 16 17 Cf. LO CASTRO Il soggetto ed i suoi diritti nell´ordinamento canonico (Milano 1985). Cf. CIC. c. 96. 18 Cf. CECEO c. 7 § 1. 19 20 21 c. + 87. Por el bautismo queda el hombre constituido persona en la Iglesia de Cristo, con todos los derechos y obligaciones de los cristianos, a no ser que en lo tocante a los derechos, obste algún óbice que impida el vinculo de la comunión eclesiástica o una censura infligida por la Iglesia. CIC. c. 96. 27 CCEO c. 595 § 2. Compete siempre y en todo lugar a la Iglesia proclamar los princípios morales, tambien los referentes al orden social, así como dar su juicio sobre cualesquiera asuntos humanos en la medida en que lo exijan la dignidad de la persona humana y sus derechos fundamentales o la salvación de las almas. Suprema Lex Suprema Lex Número 1 – Janeiro/Junho de 2011 Número 1 – Janeiro/Junho de 2011 159 160 No entanto, constatamos que nosso Legislador no Ordenamento Jurídico latino no c. 96, fala da personalidade jurídica mas não genérica e sim especificamente, pois deseja e quer explicitar e acolher a capacidade do homem moderno de adquirir direitos e por isso mesmo ser sujeito também de obrigações especificamente canônicas. E tudo isto é bem compreensivel pois, analogamente assemelha-se à própria capacidade de qualquer ordenamento civil onde se origina a condição de cidadania de cada qual. O Legislador para designar a personalidade jurídica específica no ordenamento canônico latino, fala explicitamente “de persona in Ecclesia Christi”. Isto porque, canonicamente, é na Igreja que se adquire a personalidade jurídica especifica mediante o Sacramento do Batismo28. Por isso não é apenas licito inquirir, mas torna-se necessário questionar se o conteúdo deste texto legal é restritivo ou sua interpretação pode ser ampla e abrangente, englobando todos os batizados e não somente os batizados “in Ecclesia catholica”. Uma primeira resposta a esta questão poderia ser obtida nos conteúdos do texto legal do Código anterior 29, onde não haveria nenhuma dúvida que seus conteúdos podiam ser aplicados, como de fato se aplicavam, a todo e qualquer batizado, sem distinção ou qualificação. O cânon no Código de 1917 anunciava com um vocabulário jurídico moderno, um princípio jurídico teológico, baseando-se no liame existente entre o Batismo e a estrutura jurídica da Igreja. Este princípio teológico-jurídico foi e será sempre verdadeiro, não por estar inserido no antigo Código, mas por causa das suas próprias raízes teológicas. Para convencer-se disto bastaria conferir as notas do c. 87 do Código de 1917 e de modo todo especial os cânones do Concílio de Trento, sobre o Batismo.30 Este princípio radica-se na verdade que a única Igreja é Corpo de Cristo et etiam “constituta in hoc mundo ut societas” 31 como salienta o Concilio Vaticano II na sua Constituição dogmática Lumen Gentium. Daí que se pode concluir que as relações da Igreja Católica com todo e qualquer batizado com batismo válido, pouco importa em que Igreja tenha sido ministrado, são verdadeiras relações jurídicas, “iure divino”, mesmo que a Igreja declare hoje, por uma razão de respeito devido à consciência moral dos não católicos que: ‘Legibus mere ecclesiasticis tenentur baptizatis in Ecclesia catholica” 32 Note-se que o Codigo Oriental pressupõe tudo o que até aqui dissemos por isso no titulo de personis inicia apresentando não o conceito de pessoa mas, diretamente, as condições da pessoa33. Antes de mais nada devemos salientar que estas condições ou características primordiais são comuns aos ordenamentos jurídicos, pois a pessoa é um ser bem concreto e, por isso, são as condições próprias de cada um dos individuos que os distinguem e individualizam nas sociedades modernas. Por isso, cada ser humano é original e único e não cópia ou clone de alguém. No Direito Romano, por exemplo, para se determinar a posição jurídica (condição = condicio) de um indivíduo, usava-se a figura do “status” como posição de pertença tanto à comunidade dos homens livres, como à própria civitas e, em última análise, à uma determinada família. E por causa de todo este complexo de fatos e circunstâncias que nosso Legislador muito sábia e apropriadamente, diz, que nem todos os cristãos tem sempre os mesmos direitos e os mesmos deveres. Por isso, a atribuição concreta dos direitos e dos deveres é influenciada pelos fatores das “condiciones” ou da condicio de cada qual. Cf. CIC c. 11 - Estão obrigados às leis meramente eclesiásticas os batizados na Igreja católica ou nela recebidos, que têm suficiente uso da razão e, se o direito não dispõe expressamente outra coisa, completaram sete anos de idade. CCEO c. 1490 - Están obligados a las leyes meramente eclesiásticas los bautizados en la Iglesia católica o en ella recibidos, que tienen suficiente uso de razón y, si el derecho no dispone expresamente otra cosa, han cumplido siete años. 32 Cf. CCEO c. 909 § 1. La persona que ha cum plido dieciocho años es mayor; por debajo de esa edad, es menor. § 2. El menor, antes de cumplir siete años, se llama infante y se le considera sin uso de razón; cumplidos los siete años, se presume que tiene uso de razón § 3. Quien carece habitualmente de uso de razón se considera que no es dueño de sí mismo y se equipara a los infantes. 33 CIC c. 96.. 28 Cf. c. + 87. 29 Cfr. WERNZ X.F. Ius Decretalium 1, n. 103. 30 31 Lumen Gentium n. 8. Suprema Lex Suprema Lex Número 1 – Janeiro/Junho de 2011 Número 1 – Janeiro/Junho de 2011 161 162 Por isso, os conteúdos do c. 96 do Código Latino de 1983 colocam-nos perante algumas questões básicas, como por exemplo: quem está em contato jurídico com a Igreja? A quem se dirige o Direito Canônico? As respostas a estas perguntas devem ser dadas com alguns arrazoados, oriundos do próprio texto do cânon: Antes de mais nada, devemos saber e constatar que estamos diante de uma comunidade sacramental, pois a primeira palavra do cânon no texto original é “Baptismo”. Consequentemente, desde o início devemos salientar que nosso Legislador deseja sublinhar o aspecto sacramental da Igreja. Esta é a grande diferença entre o Direito Canônico e o Direito Civil, pois o Direito Canônico, todo ele, é centralizado na Palavra de Deus e nos Sacramentos. Além do mais, nosso Legislador quer mostrar que o Direito Canônico aplica-se a uma comunidade jurídica. A comunidade eclesial recebe seus membros pelo Batismo, e, com o Batismo, os batizados são constituídos membros da comunidade jurídica. Além disso devemos notar, como é óbvio, que em toda e qualquer comunidade organizada encontram-se facilmente os membros e os chefes, ou se quisermos os dirigidos e os dirigentes. Na comunidade jurídica eclesial os chefes são constituídos também por um Sacramento, pois o da Ordem nada mais é do que um ato jurídico para constituir Pastores que são para nós os Chefes. A Ordem é a entrada no ofício dos Pastores. Isto é fácil de verificar tanto no Ordenamento Jurídico latino34, como no oriental35. Por outro lado, também, os múnus de ensinar, santificar e governar estão no centro do direito “in persona Christi capitis”. Portanto, as bases concretas do nosso Direito são Sacramentais. Por tudo isso, devemos, concretamente, analisar e aprofundar tudo aquilo que engloba a palavra “condicio” nos nossos Ordenamen- tos Jurídicos latino e oriental. As condiciones jurídicas fundamentais de cada pessoa contidas nos nossos Ordenamentos Jurídicos são: a idade36, o uso da razão37, o domicílio38, as relações familiares (consanguinidade e afinidade)39 e o rito40. Esta lista não é taxativa, pois, há outros fatores importantissimos para a condição jurídica do cristão que o Legislador os trata no livro II do Código latino, como por exemplo: o estado clerical ou laical, o estado daqueles que professam os conselhos evangélicos.41 As condições serão apresentadas e tratadas na mesma ordem que o nosso Legislador as apresentou no Codigo latino de 1983, sem descurar, porém, os canones correspondentes no Código oriental. O Legislador tanto no código latino como no oriental apresenta como uma das primeiras qualidades ou caracteristicas de cada persona in Ecclesia a idade42 e, consequentemente, o uso de razão 43 isto porque para que alguém possa agir tem que ter crescido o suficiente no tempo mas, este fator isoladamente não basta pois, para poder agir, alguém tem que ter uso suficiente de razão ou em outras palavras ser “compos sui”. O Legislador com os cânones especificos da idade (CIC c. 9744 e CCEO c. 90945) deseja demonstrar que são vários os fatores que influenciam a pessoa, e o primeiro a ser analisado são os anos de 36 37 38 39 40 35 Cf. CIC c. 1008– Mediante o sacramento da ordem, por divina instituição, alguns entre os fiéis, pelo caráter indelével com que são assinalados, são constituídos ministros sagrados, e assim são consagrados e delegados a servir, segundo o grau de cada um, com título novo e peculiar, o povo de Deus. Cf. CCEO c. 743– Mediante la ordenación sacramental realizada por el Obispo, por obra del Espiritu Santo, son constituidos los ministros sagrados, quienes son enriquecidos y participan en diferentes grados de la función y la potestad, entragados por Cristo a sus Apostoles, de anunciar el Evangelio, pastorear el pueblo de Dios y santificarlo. Cf. CIC. cc. 100-107; CCEO cc. 911-916. Cf. CIC. cc. 108-110; CCEO cc. 918-919. Cf. CIC. cc 111-112; CCEO c. 28 ss. Cf. CIC c. 573 CCEO c. 410. 41 42 34 Cf. CIC. cc. 97-96; CCEO cc. 909ss. Cf. CIC. cc. 99; CCEO c.909. Cf. CIC cc. 97-99; CCEO c. 909ss. Cfr. MICHIELS G. De peersonis. 29ss. 43 CIC c. 97 - § 1. A pessoa que completou dezoito anos é maior; abaixo dessa idade é menor. § 2. O menor, antes dos sete anos completos, chama-se criança, e é considerado não senhor de si; completados, porém, os sete anos, presume-se que tenha o uso da razão. 44 CCEO c. 909 § 1. La persona que ha cumplido dieciocho años es mayor; por debajo de esa edad, es menor. 45 Suprema Lex Suprema Lex Número 1 – Janeiro/Junho de 2011 Número 1 – Janeiro/Junho de 2011 163 164 vida que uma determinada pessoa possui que a tornam capaz de agir por si mesma, ou não. E a presunção no fator idade (sete anos) é também detectar se esta determinada pessoa possui uso suficiente de razão, ou não, para responder pelos seus atos, portanto se é hábil ou inábil para agir por si, ou precisa de tutela ou curatela dependendo de que tipo de ato se trate e deseja executar. Ao analisarmos a caminhada histórica da Igreja constatamos que durante muitos séculos a Igreja não contemplava a maioridade das pessoas. Foi a partir da primeira codificação que foi inserido o criterio da maioridade. Com a maioridade a pessoa na Igreja, era considerada habil não só para agir por si, como também, para tutelar e proteger seus direitos e deveres pois era tida e havida como compos sui. Caso tivesse idade suficiente para a maioridade mas não fosse compos sui seria considerada pelo Legislador como inabil e, talvez, até tida e havida como um infante, tudo dependendo do quadro clínico apresentado. Mas nem sempre nos Ordenamentos Jurídicos da Igreja é requerida a maioridade mesmo agora no século XXI, existem diversos negócios jurídicos sérios que embora importantíssimos para a própria vida das pessoas o Legislador movido pelo bem espiritual desta determinada pessoa não exige a maioridade, para este determinado ato juridico. O Código anterior devido a toda a tradição eclesial para certos negócios jurídicos sérios ateve-se ainda ao antigo critério da puberdade, e um dos exemplos mais nítidos e palpáveis pode ser o do próprio matrimônio. Por isso que no antigo código que adotou o critério da puberdade, requeria 12 anos completos para a mulher e 14 para o homem. Este era um costume muito antigo e tradicional que o código de 1917 não titubeou em acolhê-lo, o que pode causar espécie para o homem e a mulher modernos. à antropologia em suas diversas fontes e matizes e mais especificamente as que se dedicam ao estudo do comportamento humano e de sua natureza, e consequentemente do seu grau de maturidade, de desenvolvimento e de capacidade para agir. O Legislador acolhendo em parte os estudos científicos modernos elevou a idade canônica para certos atos juridicos, embora ainda não se tenha alcançado o ideal, mas as perspectivas de futuro são alvissareiras. Mesmo que hoje ainda em certos casos permitamos casamentos entre menores de idade tanto no código latino46 como no oriental47 . Os Ordenamentos Jurídicos canônicos devido ao bem espiritual exigem um mínimo de idade para que alguém possa professar num instituto religioso. Desde o Concilio de Trento esta norma dos 16 anos completos para a profissão religiosa, vigorava na Igreja. Os Ordenamentos Jurídicos hoje, tanto o latino como o Oriental aumentaram um pouco esta idade. O latino exige a maioridade, isto os 18 anos completos48 o oriental ficou nos 17 anos completos49. Por outro lado, devido ao bem espiritual de determinado indivíduo o Legislador concede a aquisição do quase domicílio aos que tiverem completado os 7 anos tanto no código latino50 como no oriental51. No direito penal antigo possuia-se capacidade jurídica ao chegar-se na puberdade, por exemplo, um puber poderia padecer a pena CIC c. .1083 § 1. O homem antes dos dezesseis anos completos e a mulher antes dos catorze também completos não podem contrair matrimônio valido. 46 CCEO c. 800 - § 1. No pueden celebrar validamente matrimônio el varón antes de los dieciseis años cumplidos ni la mujer antes de los catorce años tambien cumplidos. 47 48 49 51 § 2. El menor, antes de cumplir siete años, se llama infante y se le considera sin uso de razón; cumplidos los siete años, se presume que tiene uso de razón CCEO c. 517 § 1. La edad exigida para la admisión valida al noviciado de la orden o de la congregación es la de diecisiete años cumplidos... 50 Devido à mentalidade do homem moderno cada vez mais viva e crescente, oriunda e fundamentada nas ciências que se dedicam CIC c. . 656 – Para a validade da profissão temporária requer-se que: 1º quem vai emiti-la tenha completado ao menos dezoito anos de idade; CIC c. 105 § 1. O menor conserva necessariamente o domicílio ou quase-domicilio daquele, a cujo poder está sujeito. Saindo da infância, pode adquirir também quase-domicilio próprio; e uma vez emancipado de acordo com o direito civil, também o domínio próprio. CCEO c. 915 § 1. El menor tiene necesariamente el domicílio o cuasidomicilio de aquel a cuya potestad está sometido; el que ha salido de la infancia puede también adquirir cuasidomicilio propio, y si está legítimamente emancipado de acuerdo con el derecho civil, incluso domicílio propio. Suprema Lex Suprema Lex Número 1 – Janeiro/Junho de 2011 Número 1 – Janeiro/Junho de 2011 165 166 máxima de excomunhão. E com este critério uma menina poderia ser excomungada bem antes do que um rapaz, pelo simples fato que a mulher chega normalmente à puberdade numa idade mais precocemente do que o homem. No Código latino, hoje, a idade penal é de 16 anos completos52 e no oriental de 14 anos completos53. Por exemplo, para o Código Latino um rapaz de 15 anos, sujeito passivo deste Ordenamento Jurídico que tivesse profanado a Santíssima Eucaristia não poderia ser excomungado, mas no oriental sim. Podemos concluir dizendo que, para o direito penal na Igreja não se exigiu nunca a maioridade embora hoje se tenha deixado de lado a puberdade; no entanto, um menor delinquente pode ser punido em ambos Ordenamentos Jurídicos. Podemos e devemos inquirir que tipo de consequências jurídicas podem advir do fato de alguém ser menor de idade no Código latino 54 e também no oriental55? Constatamos que as consequências jurídicas são várias, como por exemplo, em geral o menor de idade56 está sob o pátrio poder57. Embora o próprio Legislador abra exceções toda vez que se trata de favorecer o bem espiritual do indivíduo, por exemplo, para a recepção válida do Sacramento do Matrimônio, o Legislador não exige o consentimento dos pais para a validade, mas o requer apenas para a liceidade tanto no latino58 como no oriental59. Antigamente o Direito canônico era o único Ordenamento Jurídico a exigir o consentimento dos pais para o matrimônio, esta exigência era típica do Direito Canônico. Mas, quem pedia e reivindicava o consentimento dos pais para os jovens considerados menores de idade, eram os reis. De modo particular o Rei de França. Este dizia que se a Igreja tirasse isto, estaria acabando com o próprio matrimônio e a família. Os Padres Conciliares de Trento, porém mantiveram a tese que o consentimento dos pais não era necessário para a validade do matrimônio. Nem mesmo é necessário o consentimento dos pais, para admitir alguém ao noviciado tanto no código latino60 como no oriental61. O Direito CCEO c. 910 § 2. La persona menor está sujeta a la potestad de los padres o tutores en el ejercicio de sus derechos, excepto en aquello en que, por ley divina o por el derecho canónico, los menores están exentos de aquella potestad; respecto a la constitución de tutores, observense las prescripciones del derecho civil, a no ser que se establezca otra cosa por el derecho común o por el derecho particular de la propia Iglesia sui iuris y quedando firme el derecho del Obispo eparquial de constituir por si mismo tutores, si es preciso.a la ores, si es preciso. . 57 CIC c. 1323 – Não é passível de nenhuma pena, ao violar a lei ou preceito: 1º quem ainda não completou dezesseis anos de idade; 52 CCEO c. 1413 § 1. El que no havia cumplido los catorce años no está sujeto a ninguna pena. § 2. El que, entre los catorce y los dieciocho años, cometió un delito, solo puede ser castigado con penas que no incluyan la privación de algún bien, a no ser que el Obispo eparquial o el juez en casos especiales juzguen que su enmienda puede conseguirse mejor de otra manera. 53 CIC c. 97 § 2. O menor, antes dos sete anos completos, chama-se criança, e é considerado não cônscio de si, completados, porém, os sete anos, presume-se que tenha o uso da razão. Quanto ao instituo da presunção ver cc. 1584-1586. 58 59 54 55 CCEO c. 909 § 2. El menor, antes de cumplir sie te años, se llama infante y se le considera sin uso de razón; cumplidos los siete años, se presume que tiene uso de razón CIC c. 98 § 2. – A pessoa menor, no exercício de seus direitos, permanece dependente do poder dos pais ou tutores, exceto naquilo em que os menores estão isentos do poder deles por lei divina ou pelo Direito Canônico; no que concerne à constituição de tutores e ao seu poder, observem-se as prescrições do direito civil salvo determinação contraria do Direito Canônico, ou se o Bispo diocesano em determinados casos tenha julgado por justa causa, ser necessário providenciar outro tutor por nomeação. O código Civil Brasileiro trata da tutela nos artigos 368-378 56 Cf. CIC c. 1071 § 1. Exceto em caso de necessidade, sem a licença do Ordinário local, ninguém assista: n. 6 a matrimônio de menor, sem o conhecimento ou contra a vontade razoável de seus pais. Cf. CCEO c. 789 – Aunque, por lo demás, el matrimônio puede celebrarse validamente, el sacerdote, además de los otros casos determinados en el derecho, no bendiga sin la licencia del Jerarca del lugar: 4 el matrimônio de un menor de edad, si sus padres lo ignoran o se oponen. CIC c. 643 – § 1. Admite-se invalidamente para o noviciado: 1º. Quem não tenha completado ainda dezessete anos de idade; 2º o cônjuge, enquanto perdurar o matrimônio; 3º quem por vinculo sagrado, esteja ligado a instituto de vida consagrada ou incorporado a uma sociedade de vida apostólica, salva a prescrição do c. 684; 4º quem ingressa no instituto por violência, medo grave ou dolo, ou quem o Superior recebe induzido do mesmo modo; 5º quem tenha ocultado sua incorporação a um instituto de vida consagrada ou a uma sociedade de vida apostólica. § 2. O direito próprio pode estabelecer outros impedimentos, mesmo para a validade da admissão, ou colocar condições para ela. 60 61 CCEO c. 517 § 1. La edad exigida para la admisión valida al noviciado de la orden o de la congregación es la de diecisiete años cumplidos; acerca de los demás requisitos para la admisión observense los can. 448, 450, 452 y 454. Suprema Lex Suprema Lex Número 1 – Janeiro/Junho de 2011 Número 1 – Janeiro/Junho de 2011 167 168 Canônico não pedia a permissão dos pais, por razões espirituais. Por isso, reconhece aos jovens este Direito. Também não era exigido para a admissão ao Sacramento do Batismo. Do ponto de vista canônico qualquer indivíduo que tiver 7 anos de idade e pedir o Batismo, poderá recebê-lo, mesmo sem o consentimento dos pais tanto no código latino62 como no oriental63. O Direito aqui, nestes casos, entende que se trata de um direito espiritual. Por isso que, em última análise a pessoa tem o direito. Mas a prudência pastoral, aconselha que não se faça sem o consentimento dos pais ou daqueles que são os responsáveis diretos deste individuo, embora se fizer não se atingirá a validade do ato jurídico, mas apenas a liceidade. Por isso que cada caso é um caso que deve ser visto, analisado, ponderado e decidido, pois os menores têm seus direitos reconhecidos pelo próprio Legislador tanto no código latino64 como no oriental65. Daí podemos concluir que em Direito Canônico, a maioridade não é exigida nem para o batismo, nem para o matrimônio, nem para a admissão ao noviciado. Mas por outro lado, a maioridade está presente no direito processual e o influencia. Basta ver e cotejar os Ordenamentos Jurídicos canônicos, tanto o latino 66 como CIC c. .852 § 1. O que se prescreve nos cânones acerca do batismo dos adultos aplica-se a todos os que chegaram ao uso da razão, ultrapassada a infância. 62 63 CCEO c. 682 - § 1. Para que el salido de la infância pueda ser bautizado, se requiere que haya manifetado su deseo de recibir el bautismo, esté suficientemente instruído sobre las verdades de la fé y haya sido probado en la vida cristiana; se ha de exhortar además que tenga dolor de sus pecados. CIC c. 1478 § 3.Contudo, nas causas espirituais ou conexas com as espirituais, se os menores já tiverem adquirido o uso da razão, podem agir e responder sem consentimento dos pais ou do tutor, e pessoalmente, se tiverem completado catorze anos de idade; caso contrário por meio de curador constituído pelo juiz. § 4. os que estão sob interdição de bens e os débeis mentais podem estar em juízo pessoalmen te, só para responder sobre os próprios delitos ou por ordem do juiz; fora disso, devem agir e responder por meio de seus curadores. o oriental 67. Verifica-se que o Legislador diz que aquele que não tiver maioridade deverá ser representado por tutor. A exceção, porém, está nas causas matrimoniais, pois mesmo que perante os Códigos possam ser considerados menores, em função da idade com que se casaram, no entanto são tratados como maiores após o casamento e por isso mesmo o Legislador diz que não se requer a presença de tutor para poder impugnar o próprio matrimônio, pois foram emancipados, tanto no codigo latino68 como no oriental69. A segunda condição apontada pelo legislador para a pessoa física é que esteja ornada de suficiente uso da razão e esta condição está bem explícita tanto no código latino70 como no oriental71. Os que por ventura não dispõe de uso suficiente de razão são contemplados pelo Legislador com uma fórmula bem genérica que é no original latino: “Quicumque usu rationis habitu carent”. Com esta fórmula bem abrangente o Legislador quer atingir todo e qualquer indivíduo que seja portador de patologia psiquica diagnosticada como crônica e consequentemente grave, independentemente dos possíveis períodos de aparente lucidez, pois estes individuos estão habitualmente privados de uso suficiente da razão, mesmo que pareçam gozar do pleno uso nos intervalos psíquicos qualificados de lúcidos. O Legislador sensível ao progresso das ciências médicas e psicológicas acolheu tudo isso tanto no código latino72 como no orien § 2. Se o juiz julga que os direitos dos menores estão em conflito com os direitas dos pais, tutores ou curadores, ou que estes não tem possibilidade de defender suficientemente os direitas dos menores, estes estejam em juízo por meio de tutor ou de curador dado pela juiz. 64 65 CCEO c. 1136 § 3. Pero en las causas espirituales y conexas con ellas, los menores que hayan alcanzado el uso de razón pueden dmandar y contesstar, sin el consentimiento de los padres o del tutor, e incluso pueden hacerlo personalmente si hubiesen cumplido catorce años; si no es asi, deberán hacerlo mediante un tutor nombrado por el juez; CIC c. 1478 § 1. Os menores e os que não têm uso da razão só podem estar em juízo por meio de seus pais, tutores ou curadores, salvo a prescrição da § 3. 66 CCEO c. 1136 § 1. Los menores y los que carecen de uso de razón solo pueden comparecer en juizio por médio de sus padres, tutores o curadores. O parágrafo 2 do c. 1136 do CCEO é idêntico ao CIC c. 1478 § 2 . 67 68 69 70 CIC c. 1674 - São hábeis para impugnar o matrimônio: 1.º os cônjuges; CCEO c. 1360 Son habiles para impugnar el matrimônio: 1º los conyuges. CIC c. 99. Todo aquele que não tem habitualmente o uso da razão, considera-se não cônscio de si e é equiparado às crianças. CCEO c. 909 § 3. Quien carece habitualmente de uso de razón se considera que no es dueño de sí mismo y se equipara a los infantes. 71 72 CIC c. 1322 – Os que não tem habitualmente uso da razão, mesmo que tenham violado a lei ou o preceito quando pareciam sadios, consideram-se incapazes de delito. Suprema Lex Suprema Lex Número 1 – Janeiro/Junho de 2011 Número 1 – Janeiro/Junho de 2011 169 170 tal73. Por isso que o “non compos sui” crônico, juridicamente falando, o Legislador equipara-o ao infante. E sendo assim, o seu modo de comportar-se e de agir não será imputado porque devido à sua idade mental assemelhasse a uma criança que não atinjgiu ainda os sete anos de idade. Estamos por isso mesmo no campo da presunção74 qualificada de “iuris et de iure”, por isso mesmo que sempre admite prova em contrário. Mas, dependendo do quadro crônico referencial diagnosticado pela patologia clínica e por seus quadros referenciais bem estabelecidos e prognosticados, aparentemente, não admitiria prova em contrário, isto porque para a patologia clínica, os intervalos lúcidos não correspondem à saúde, mas à própria evolução do quadro clínico especifico e determinado. O Legislador porém quer deixar claro que cada caso é um caso e na práxis o próprio direito não faz estatistica, mas aplica os princípios jurídicos aos casos bem concretos e determinados, deixando as portas escancaradas para que se possa provar o contrário em qualquer caso especifico e bem determinado. Esta era a posição de Michiels75, ao comentar os cânones paralelos do Código de 191776. E para o código latino pode-se ser consultado e Fuenmayor77. Na prática, e em poucas palavras, significa que para batizar alguém considerado “non compos sui” ou se quisermos sem uso suficiente de razão por ser portador de qualquer anomalia crônica psicossomática, requerer-se-á mesmo nos intervalos de pseudo lucidez, o consentimento dos pais ou tutores. A terceira condição da pessoa física apontada pelo legislador é a do domicílio e do quase-domicilio78. Os ordenamentos jurídicos tanto o latino79 como o oriental80 tratam desta materia demonstrando que o fato de se ter um domicílio fixo influencia na personalidade jurídica, qualificando as pessoas. O Legislador no Código latino apresenta quatro tipos de situações diferentes qualificando a pessoa de acordo com sua condição de estar situada estavelmente, ou não, em determinado lugar. Quem qualifica é o próprio Legislador, senão vejamos: é qualificado de “íncola”, quando a pessoa possui seu domicílio; de “advena”, quando a pessoa tem um quase-domicilio; de peregrino, sempre e quando a pessoa estiver fora do seu domicílio ou do seu quase-domicilio. A pessoa é tida e havida como vago, se não possuir nem domicílio e nem quase-domicilio.81 Note-se que no código oriental o Legislador contempla apenas as figuras do peregrino e do vago82. Por isso que se pode concluir que o simples fato de estar em um determinado lugar ou território estavelmente83 implica em pertencer a uma determinada 78 74 Cfr.. COSTELLO M.J. Domicile and quasi-Domicile (Washington 1930); TEDESCHI V. Il quasi domicílio nel diritto canonico (Genova 1931). CCEO c. 1490 – Están obligados a las leyes meramente eclesiásticas los bautizados en la Iglesia católica o en ella recebidos, que tienen suficiente uso de razón y, si el derecho no dispone expresamente otra cosa, han cumplido siete años. 79 Cf. CIC c. 1584-1586 CCEO cc. 1265-1266. 81 73 75 Cfr. MICHIELS G . Principia Generalia de Personis in Ecclesia,(Paris 1955) De personis, 107 5. C. + 88 § 1. La persona que ha cumplido los ventiún años es mayor; antes de esa edad es menor. § 2. El menor, si es varón, se considera púber después de cumplidos los catorce años; si es mujer, una vez cumplidos los doce. § 3. El impuber, antes de cumplir los siete años se llama infante, o nino, o párvulo, y se considera sin uso de razón; mas cumplidos los siete años, se presume que lo tiene. E se equiparan al infante cuantos de manera habitual están privados del uso de la razón. 76 77 Cfr. Código de Derecho Canônico Ediciones Universidad de Navarra S.A - Pamplona (1984)) 111-112. C.98 CIC cc. 102-107. CCEO cc. 912-917.. 80 CIC c. 100 A pessoa chama-se morador, no lugar onde tem seu domicílio; adventício, no lugar onde tem quase-domicílio; forasteiro, se se encontra fora do domicílio e quase domicílio que ainda conserva; vagante,se não tem domicílio ou quase-domicílio em nenhum lugar. 82 CCEO c. 911 La persona se dice transeúnte en la eparquía diversa de aquella en que tiene domicílio o cuasidomicilio; y se dice vago si no tiene domicílio o cuasidomicilio en ningún sitio. CIC c. 101 § 1. O lugar de origem do filho, mesmo neófito, é aquele em que os pais tinham domicílio, ou na falta deste, quase-domicilio, quando o filho nasceu; ou, se os pais não tem o mesmo domicílio ou quase-domicilio, o domicílio ou quase-domicilio da mãe. § 2. Tratando-se de filhos de vagos, o lugar de origem é o próprio lugar do nascimento; de um exposto, é o lugar onde foi encontrado. 83 Suprema Lex Suprema Lex Número 1 – Janeiro/Junho de 2011 Número 1 – Janeiro/Junho de 2011 171 172 paróquia, pois, fundamentalmente é com o domicílio que alguém se torna paroquiano. Se nos ativermos à história e à própria evolução deste instituto técnico jurídico do domicílio constatamos que não aparece no Direito Canônico antigo, mas está presente no Direito das Decretais84. Os comentaristas do Decreto de Graziano e das Decretais apresentam a doutrina do domicílio, fazendo uso do Direito Romano, para poderem deterrninar a célebre questão de saber quem poderia ser o “presbyter proprius” (o pároco) que era requerido naquele tempo para a válida recepção dos Sacramentos e dos Sacramentais e, de modo especial, para a obrigação do cumprimento da desobriga Pascal. Portanto um dos primeiros problemas oriundos do domicílio era o de determinar o “presbyter proprius’. A exigência era oriunda do Concilio de Latrão IV estabelecendo normas bem precisas para o fiel poder satisfazer o preceito Pascal. Pois, segundo a lei vigente, o fiel só poderia cumprir o preceito se confessasse com o seu Pároco e recebesse a Eucaristia de suas mãos. Se o fizesse com outro Presbítero a desobriga não seria considerada válida. Estas normas entraram em vigor a partir do ano 1214. Tudo isso porque naquele tempo a absolvição sacramental era tida e havida como parte integrante e constitutiva das atividades pastorais do Pároco e por isso todo e qualquer fiel pelo domicílio era confiado a um determinado pastor e não a um outro. Se o fiel permanecesse no seu país, na sua cidade ou no território da sua paróquia não havia grandes problemas. Os problemas, naquele tempo começavam quando o paroquiano viajava ou migrava. Devido a que um significativo número de fiéis pelas mais variadas circunstâncias migravam ou mesmo viajavam, o Romano Pontífice deu delegação para os mendicantes Franciscanos e 84 Quando falo das Decretais, estou falando do direito do século XIII. Porque o Direito naquele tempo estava inserido de modo particular nas Decretais. Com as Decretais Papais o Direito tornou-se bem mais técnico. A primeira Coleção a pedido do próprio Papa foi feita por São Raimundo de Penyafort no ano de 1234. Esta Coleção é conhecida como as Decretais de Gregório IX. Esteve em vigor até o Código de 1917. As Decretais formavam uma parte fundamental do Direito. Não eram todo o Direito porque deveriam ser acrescentados os Decretos do Concílio de Trento que foram muito importantes. Dominicanos para poderem confessar, mas esta delegação pontifícia não incluía o cumprimento do preceito pascal que deveria ser cumprido para sua validade no domicílio próprio deste determinado fiel. A questão levantada pelos estudiosos era: saber se alguém viajasse constantemente, qual seria seu verdadeiro domicílio. Esta questão permaneceu sem solução durante muito tempo. Se analisarmos as Decretais constatamos que o domicílio era importante não apenas para a desobriga pascal, mas também para as questões de estabelecer a própria competência do juiz, para se saber qual era sua jurisdição, em outras palavras qual era o foro competente para tratar e dirimir esta determinada causa. Além do mais, se exigia o próprio Bispo para alguém poder se Ordenar, por isso que normalmente o candidato deveria ser ordenado onde morava. Para determinar a questão do domicílio no direito canônico, recorreu-se a um dos textos de Deocleciano contidos no Código de Justiniano que declarava que para o domicílio a presença física não bastava, mas que era necessária a intenção de viver ali e de não sair a não ser que houvesse algo em contrário. A fórmula encontrada e usada era o “nisi nihil avocet”85 . Esta mesma fórmula foi acolhida pelo nosso Legislador tanto no Código latino86 como no oriental87. O Decreto “Tametsi” do concilio de Trento, fêz com que fosse examinada a questão do domicílio para a validade dos matrimônios. O domicílio, naquele tempo, era muito complicado e era a constante dor de cabeça dos canonistas e juristas, isto porque o ‘Tametsi’ tinha vigor apenas em alguns lugares e em outros não, pois só estava em vigor onde tinha sido publicado. Na Inglaterra por exemplo, o Tametsi não tinha validade, porque os decretos conciliares não ti85 C. 10, 40 (39), 7. 86 87 CIC c. 102 § 1. Adquire-se domicílio pela residência no território de uma paróquia ou, ao menos de uma diocese que, ou esteja unida à intenção de ai permanecer perpetuamente se nada afastar daí, ou se tenha prolongado por cinco anos completos. CCEO c. 912 § 1. El domicílio se adquiere por la residencia en el territorio de una parroquia o al menos de una eparquía que, o vaya unida a la intención de permanecer alli perpetuamente, si nada lo impide, o se haya prolongado por un quinquenio completo. Suprema Lex Suprema Lex Número 1 – Janeiro/Junho de 2011 Número 1 – Janeiro/Junho de 2011 173 174 nham sido publicados naquele País e nem nos seus domínios. Com o Decreto ‘Tametsi’ do Concílio de Trento sobre a forma canônica do matrimônio (a. 1563), o “domicílio’ encontrou aplicação’ no campo matrimonial. São os problemas suscitados em torno ao domicílio necessário para a determinação do pároco competente para assistir o matrimônio que contribuíram para tornar mais complexa a noção de domicílio e aquela do quase-domicilio, esta última figura é uma criação do Direito Canônico.88 O domicílio influenciou, como ainda influencia, na validade do Sacramento do matrimônio, basta lembrar aqui a célebre questão da forma canônica. A partir do Concilio de Trento com o Decreto ‘Tametsi” mudou-se a validade do matrimônio. E um dos exemplos da aplicabilidade do Decreto, tornando-se famoso foi o do casamento de Napoleão Bonaparte que impugnou seu casamento com a Imperatriz Josefina alegando a carência da forma canônica.89 Com o Código de 1983, os termos necessários para a adquisição do domicílio foram diminuidos, “cum rationes pastorales id suadeant”.90 O próprio Legislador explicita o como se adquire o domicílio91 ao dizer: “acquiritur ea in território... cum animo ibi perpetuo manendi... aut ad quinquenium completum sit protacta.92 O ter domicílio de per si implica em consequências juridícas e canônicas. A primeira consequência é quando alguém possui determinado domicílio, automaticamente, é membro de uma determinada paróquia, a razão disto é porque o Legislador optou e por isso mesmo conservou a base territorial, para organizar a vida em sociedade. E daí decorre, pelo próprio direito, que há sempre a responsabilidade de um Sacerdote qualificado de Pároco. E, ao mesmo tempo, o fiel também é qualificado pelo próprio direito quando o Legislador diz que tanto pelo domicílio como pelo quase domicílio alguém se torna paroquiano e faz questão de explicitar tudo isso no Código latino como no oriental usando a mesma fórmula: ‘tum per domicilium tum per quasi-domícilium’.93. Nas cidades cosmopolitas, hoje em dia na convivência cotidiana, deparamo-nos com uma grande mistura de raças e línguas. Dai uma questão pastoral prática, como proceder em termos de paróquia quando em certos lugares da Igreja de rito latino existem paróquias nacionais, ambientais ou pessoais, como por exemplo, nos Estados Unidos, e também no Brasil e mais concretamente ainda na própria Arquidiocese de São Paulo94. A questão pastoral que se coloca é saber se podemos obrigar o fiel estrangeiro a se dirigir a seu pároco nacional, ambiental ou pessoal? Quem dá a resposta a esta questão é o próprio Legislador quando diz que alguém torna-se paroquiano CCEO c. 916. § 1. Por el domicílio o por el cuasidomicilio corresponde a cada uno su propio Jerarca del lugar y párroco de la Iglesia sui inris a la que queda adscrito, si el derecho común no establece otra cosa. § 2. El párroco propio de quien no tiene más que domicílio o cuasidomicilio eparquial es el párroco del lugar en que él mora de hecho. § 3. El Jerarca de lugar y párroco propios del vago son el párroco de la Iglesia y el Jerarca del lugar en que el vago mora de hecho. § 4. Si no hay párroco para los fieles de una Iglesia sui iuris, el Obispo eparquial de éstos desígneles párroco de la otra Iglesia sui iuris, que asuma la cura de ellos como párroco propio, contando con el consentimiento del Obispo eparquial de quien vaya a ser designado párroco. § 5. En los lugares donde no está erigida la exarquía para los fieles de una Iglesia sui inris ha de tenerse por Jerarca propio de tales fieles al Jerarca del lugar de otra Iglesia sui iuris, incluso de la Iglesia latina, quedando firme el can. 101; y si hay varios, ha de tenerse por propio al que designe la Sede Apostólica, o el Patriarca con asentimiento de la Sede Apostólica, si se trata de fieles de una Iglesia patriarcal. 93 88 89 Cfr. MICHIELS G. Principia…,107 5. Napoleão era apenas casado civilmente com Josefina. E Josefina sabia muito bem, por isso ela queria casar-se pela Igreja. O dia antes da coroação, Josefina insistiu que queria casar na Igreja antes de ser coroada rainha da França. Napoleão pediu a seu tio, Cardeal Arcebispo de Lyon que presidisse a cerimônia. O Cardeal presidiu ao matrimônio sem nenhuma testemunha. O Cardeal Arcebispo de Lyon não era pároco, não era delegado do pároco e presidiu a matrimônio sem testemunhas. Naquela noite, o Papa estava dormindo no Castelo de Fontenebleau, (mas ninguém falou com ele para dar a devida dispensa). Por causa do decreto “Tametsi” Napoleão conseguiu a declaração de nulidade de seu casamento. Isto porque no texto do Tametsi dizia-se que apenas o Pároco próprio poderia assistir o matrimônio, não outro. Os noivos não podiam ir a outra paróquia. Não havia transferência naquele tempo. 90 91 Communicationes 6 (1974) 96. CIC c. 102 § 1. Adquire-se o domicílio pela residência no território de uma paróquia ou, ao menos de uma diocese que, ou esteja unida à intenção de aí permanecer perpetuamente se nada afastar daí, ou se tenha prolongado por cinco anos completos. 92 CIC c. .102 § 1. Na Arquidiocese de São Paulo, no Brasil, existem paróquias pessoais: dos fiéis latino-ameericanos, dos nipo-brasileiros, dos alemães, dos eslovenos, dos japoneses, dos croatas, dos chineses, dos coreanos, dos italianos, dos francesesm dos russos... 94 Suprema Lex Suprema Lex Número 1 – Janeiro/Junho de 2011 Número 1 – Janeiro/Junho de 2011 175 176 pelo domicílio.95 Por isso não se pode obrigar ser paroquiano da paróquia pessoal embora a Diocese possa oferecer os mesmos serviços pastorais da paróquia territorial. Mesmo assim, não se pode forçar o nacionalismo de alguém. Uma coisa é respeitar, a outra é obrigar. Portanto, considerando-se este aspecto, alguém pode ter duas ou mais paróquias.. 96 Portanto, percebemos que a questão do domicílio ou do quase-domicilio reveste-se de importancia na prática pastoral nos nossos Ordenamentos Jurídicos: latino97 e oriental98 Para comprová-lo, basta pensar no matrimônio canônico99 e nos seus requisitos, tanto para celebrá-lo100 como para impugná-lo101. Uma novidade do Código de 1983 é o domicílio dos religiosos. Normalmente um religioso reside na “domus” (casa) religiosa. Agora, o CIC c. 107. § 1. Tanto pelo domicílio, como pelo quase-domicílio, cada um obtém seu pároco e Ordinário. § 2. O pároco ou Ordinário próprios do vagante é o pároco ou Ordinário do lugar onde o vagante se encontra na ocasião. § 3. O pároco próprio daquele que tem domicílio ou quase-domicílio só diocesano é o pároco do lugar onde ele se encontra na ocasião 95 CIC c. . 102 § 3. O domicílio ou quase-domicilio no território de uma paróquia chama-se paroquial; no território de uma diocese, embora não numa paróquia, diocesano. 96 97 CIC c. .102 § 2. - Adquire-se o quase-domicilio pela residência no território de uma paróquia, ou ao menos de uma diocese que, ou esteja unida à intenção de aí permanecer ao menos por três meses se nada afastar daí, ou se tenha prolongado de fato por três meses. 98 CCEO c. 912 § 2 El cuasidomicilio se adquiere por la residencia en el territorio de una parroquia o al menos de una eparquía que, o vaya unida a la intención de permanecer allí al menos por tres meses, si nada lo impide, o se haya prolongado de hecho por tres meses. Os nubentes, hoje, podem escolher. Há, porém, ainda o costume. E isto se aplica para o domicílio ou o quase-domicílio ou então se os nubentes permanecem um mês em determinado lugar. Esta norma é muito liberal. Se os nubentes não completaram um mês de permanência em determinado lugar haverá necessidade da licença canônica. 99 100 CIC c. .1115. Os matrimônios sejam celebradas na paróquia onde uma das partes tiver domicílio, quase-domicilio ou residência há um mês, ou tratando-se de vagos, na paróquia onde de fato se encontram; com a licença do próprio Ordinário ou do próprio pároco, pode ser celebrado em outra lugar. CIC c. 1673 n. 2. - Nas causas de nulidade do matrimônio não reservadas à Sé Apostólica, são competentes: 2.º o tribunal do lugar onde a parte demandada tem domicílio ou quase-domicílio; 101 Legislador estabeleceu cânones especiais para o domicílio dos religiosos. Esta materia, como não poderia deixar de ser, encontra-se tanto no Código latino102 como no oriental103. Note-se porém, que, o que o Legislador estabeleceu hoje nos canones, já existia na doutrina canônica mas não no Código anterior. O Legislador hoje diz expressamente que os “sodales institutorum religiosorum et societatum vitae apostolicae domicilium acquirunt in loca ubi sita est domus cui adscribuntur”.104 E ao mesmo tempo acrescenta que os religiosos adquirem um quase-domicílio onde forem mandados e designados, desde que estejam presentes as condições do quase-domicílio. Mas, ao analisar exegética e hermeneuticamente os canones do domicílio e quase domicílio dos religiosos constata-se que não foram contemplados ou, se quisermos, inseridos os institutos de vida consagrada, qualificados de institutos religiosos seculares. Isto foi proposital porque os institutos religiosos seculares não têm domicílio. Sua característica é a de não viver na própria casa, por isso não se pode dizer ‘adscríbuntur’ A consequência prática destas normas aplica-se concretamente à faculdade de ouvir confissões tanto no Código latino 105 como no oriental106. Estes canones são uma novidade nos Códigos, pois o 102 CIC c. .103- Os membros dos institutos religiosos e das saciedades de vida apostólica adquirem domicílio no lugar onde se encontra a casa à qual estão adscritos; o quase-domicilio, na casa em que moram, de acordo com o c. 102 § 2. CCEO c. 913- Los miembros de institutos religiosos y de sociedades de vida común a modo de los religiosos adquieren domicílio alli donde está la casa a que pertenecen; y cuasidomicilio en el lugar donde su residencia se ha extendido al menos por tres meses. 103 104 CIC c. 103 et CCEO c. 913- CIC c. 967 § 2. Aqueles que têm faculdade de ouvir confissões habitualmente, em virtude de seu oficio ou por concessão da Ordinário do lugar de incardinação ou do lugar onde tem domicílio, podem exercer essa faculdade em toda parte, a não ser que o Ordinário local se oponha em algum caso particular, salvas as prescrições do c. 974 §§ 2 e 3. § 3. Pelo próprio direito, gozam também dessa faculdade em favor dos membros e de outros que vivem dia e noite na casa do instituto ou da sociedade, aqueles que tem faculdade de ouvir confissões em virtude de oficio ou concessão do Superior competente, de acordo com os cc. 968 § 2, e 969 §2; eles também a usam licitamente, a não ser que algum Superior maior se oponha, em algum casa particular, no que se refere aos próprios súditos. 105 106 CCEO c. 722 § 4 Los presbiteros que tienen facultad para administrar el sacramento de la penitencia, por rsazón del oficio o por concesión del Jerarca del lugar de la eparquia Suprema Lex Suprema Lex Número 1 – Janeiro/Junho de 2011 Número 1 – Janeiro/Junho de 2011 177 178 Legislador tornou-se muito mais liberal com respeito às faculdades de ouvir confissões. Antigamente quando alguém viajava perdia a jurisdição e ficava impedido de ouvir confissões, pois se tratava do problema de território onde se tinha, ou não, jurisdição. Agora o Legislador mudou tudo isto. O texto diz que do momento quando alguém tem a faculdade no seu domicílio esta faculdade estende-se para o mundo inteiro. A não ser que haja uma regra especial em deterrminada diocese ou eparquia. Constatamos que para os sacerdotes diocesanos ou seculares não há grandes problemas, pois a regra é muito simples, basta que estejam incardinados em determinada diocese e possuam a faculdade de ouvir confissões, então esta faculdade estende-se ao mundo inteiro, a não ser que em determinada diocese o Bispo tenha dado normas especificas em contrario, exigindo o uso de ordens. Para o religioso, porém, deve ser “ubi habet domicilium”107. Por isso, há necessidade de se saber onde tem o domicílio108, isto é, deve estar inscrito numa casa. “domus ubi adscribitur”. Quando um religioso muda de domicílio deve pedir de novo a faculdade de ouvir confissões. Quem dá a faculdade é o Ordinário do Lugar, não é o Ordinário Religioso. Querendo simplificar, acabaram complicando a vida dos religiosos. O Legislador ainda nos Ordenamentos Jurídicos latino109 e oriental110 aborda a questão do domicílio dos cônjuges e do que a que están adscritos o en la que tienen domicílio, pueden administrar validamente el sacramentode la penitencia en todas partes a cualquier tipo de fieles, a no ser que el Jerarca del lugar se oponga expresamente en casos especiales; de la misma facultad usan licitamente si observan las normas dadas por el Obispo eparquial y con licencia, al menos presunta, del rector de la Iglesia o, si se trata de la casa de un instituto de vida consagrada, del Superior. 107 CIC c. 103- Os membros dos institutos religiosos e das sociedades de vida apostólica adquirem domicílio no lugar onde se encontra a casa à qual estão adscritos; o quase-domicilio, na casa em que moram, de acordo com o c. 102 § 2 CCEO c. 913 Los miembros de institutos religiosos y de sociedades de vida común a modo de los religiosos adquieren domicílio alli donde está la casa a que pertenecen; y cuasidomicilio en el lugar donde su residencia se ha extendido al menos por tres meses. 108 109 CIC c. 104.- Os cônjuges tenham domicílio ou quase-domicilio comum; em razão da legítima separação ou de outra justa causa, cada qual pode ter domicílio ou quase-domicilio próprio. CCEO c. 914 Tengan los cónyuges un domicílio o cuasidomicilio común; y, por causa justa, cada uno puede tener propio domicílio o cuasidomicilio. 110 acontece quando ocorre uma legítima separação ou uma separação por uma justa causa, nestes casos cada um dos cônjuges pode adquirir seu próprio domicílio ou quase-domicílio. O Legislador ainda contempla o domicílio ou quase-domicilio dos menores tanto no Código latino111 como no oriental112. Saindo da infância o menor pode adquirir um quase-domicílio próprio enquanto não for emancipado civilmente, pois neste caso pode até adquirir domicílio próprio. Mas o tutelado ou curatelado tem o domicílio e o quase- domicílio do tutor ou do curador. O domicílio e o quase-domicílio assim como se pode adquirir, também, se pode perder. Por isso que o Legislador também estabeleceu normas específicas para a perda do domicílio ou do quase-domicílio nos Códigos latino113 como no oriental114. Para a perda o Legislador diz que são necessários dois elementos que ocorram simultaneamente: abandonar o lugar e ter a intenção de não mais voltar. São estas características que permitem a possibilidade de se ter diversos domicílios e/ou quase-domicílios. A quarta condição da pessoa fisica na Igreja diz respeito às relações de parentesco ou familiares qualificadas de consanguinidade ou de afinidade 115 Antes de aprofundarmos os conteúdos nos CIC c. 105 § 1. O menor conserva necessariamente o domicílio ou quase-domicilio daquele, a cujo poder está sujeito. Saindo da infância, pode adquirir também quase-domicilio próprio; e uma vez emancipado de acordo com o direito civil, também o domicílio próprio. § 2. Quem, por uma razão diversa da minoridade, foi entregue à tutela ou à curatela de outros, tem o domicílio e quase-domicilio do tutor ou do curador. 111 CCEO c. 915 § 1. El menor tiene necesariamente el domicílio o cuasidomicilio de aquel a cuya potestad está sometido; el que ha salido de la infancia puede también adquirir cuasidomicilio propio, y si está legítimamente emancipado de acuerdo con el derecho civil, incluso domicílio propio. § 2. El que está legítimamente sometido a tutela o curatela por razón distinta de la edad, tiene el domicílio o cuasidomicilio del tutor o curador. 112 CIC c. 106 – Perde-se o domicílio e o quase-domicilio pela saída do lugar, com a intenção de não mais voltar, salvo a determinação do c. 105. 113 114 CCEO c. 917 El domicílio o el cuasidomidilio se pierde al ausentarse del lugar con intención de no volver, salvos los cán. 913 y 915. CIC cc. 108-109; CCEO cc. 918-919. 115 Suprema Lex Suprema Lex Número 1 – Janeiro/Junho de 2011 Número 1 – Janeiro/Junho de 2011 179 180 Códigos latino116 e oriental117, é necessário operacionalizar os termos com seus devidos significados. Ao analisar esta materia os termos e os conceitos que o Legislador no texto legal usa, são: consanguinidade118, tronco119, linha120 , grau121. Existem nos Ordenamentos Jurídicos civis vários sistemas para se contarem os graus de parentesco. Os mais comuns, entre nós, são o sistema germânico e o romano. No sistema germânico de contagem de graus, existem tantos graus quantas são as gerações. No caso de uma linha oblíqua desigual contavam-se tantos graus quantas eram as gerações começando do ramo ou lado mais comprido, assim, por exemplo, neste sistema entre tio e sobrinho existem apenas dois graus. Este era o sistema adotado no Código de 1917, pois a Igreja usava-o desde o século VIII. No sistema romano a contagem de graus segue o critério seguinte: existem tantos graus quantas forem as pessoas, subtraindo-se o tronco. Este sistema é o adotdo por um bom número de ordenamentos civis modernos e também os nossos. Nos Códigos latino122 e oriental123, o Legislador acolheu este sistema conhecido como o romano de contagem de graus. Portanto, hoje são as CIC c. c.108 - § 1.Conta-se a consanguinidade por linhas e graus. § 2. Em linha reta, tantos são os graus quantas gerações, ou as pessoas, omitido o tronco. § 3. Na linha colateral, tantos são os graus quantas as pessoas em ambas as linhas, omitido o tronco. 116 117 CCEO c. 918- La consanguinidad se computa por líneas y grados: 1º en la línea recta hay tantos grados como personas, descontado el tronco; 2.° en la línea colateral hay tantos grados como personas en ambas lineas, descontado el tronco. pessoas que são computadas e não mais as gerações. Para que não pairem dúvidas, apenas a título de exemplo, comparando os dois sistemas dizemos que os irmãos são computados no sistema germânico como primeiro grau, no romano porém serão tidos e havidos como segundo grau, isto porque se trata de duas pessoas das quais descendem. O “patruus” (tio paterno) e o “avunculus” (tio materno) são terceiro grau no direito atual. O primo-irmão é quarto grau no computo de hoje. Note-se que nos Códigos latino124 e oriental125 o impedimento de consanguinidade para o matrimônio estende-se até o quarto grau inclusive da linha colateral ou oblíquia. No Código de 1917 o impedimento estendia-se até os primos segundos. Do ano 1215 até o de 1917 o impedimento de consanguinidade ia até o primo terceiro inclusive. Caso se realizasse um matrimônio nestas condições sem a devida dispensa seria simplesmente nulo. Antigamente, o quarto grau canônico correspondia ao oitavo grau da legislação civil. Nas relações de família o Legislador apresenta também a questão da afinidade que surge entre os consanguíneos dos cônjuges.126 Se a afinidade127 contida nos Códigos latino e oriental for comparada com os conteúdos do antigo Código constatam-se diversas mudanças entre as quais o novo Legislador não fala mais de “ex matrimonio valido sive rato tantum sive rato et consummato”. Com isto o Legislador clarifica a questão de que a afinidade não surge apenas de um matrimônio rato, ou seja sacramental, mas de qualquer matrimônio válido, portanto surge também pelo vinculo natural. No Direito antigo o impedimento estendia-se até à linha oblíqua. Hoje foi A consangüinidade: é a relação entre pessoas que descendem do mesmo tronco. 118 A cabeça do tronco é a pessoa da qual se descende. 119 120 121 Linha: é o conjunto de pessoas que descendem do mesmo tronco. A linha poderá ser reta ou oblíqua. A linha é reta quando uns descendem dos outros, como filhos, pais, avós, bisavós etc. A linha é oblíqua, quando as pessoas descendem do mesmo tronco, mas não umas das outras, como acontece com os irmãos, tios, sobrinhos, primos etc. Grau é a distancia generacional que separa dois consangüíneos. 122 123 CIC c. 108. CCEO c. 918. CIC c. 1091 § 2 § 2. Na linha colateral,é nulo o matrimônio até o quarto grau, inclusive. 124 CCEO c. 808 § 2. En línea colateral es invalido nasta el cuarto grado inclusive. 125 CIC c. 109 - § 1. A afinidade se origina de um matrimônio válido, mesmo não consumado, e vigora entre o marido e os consanguíneos da mulher, e entre a mulher e os consanguíneos do marido. § 2. Conta-se de tal maneira que são consanguíneos do marido aqueles que, na mesma linha e grau, são afins da mulher, e vice-versa. 126 127 Afinidade é o vínculo que une um cônjuge aos parentes do outro. Suprema Lex Suprema Lex Número 1 – Janeiro/Junho de 2011 Número 1 – Janeiro/Junho de 2011 181 182 reduzido ao segundo grau da linha reta tanto no Código latino128 como no oriental129. Isto significa que o cônjuge que enviuvou não pode casar nem com a filha do outro cônjuge e nem com o pai ou mãe do cônjuuge falecido. Em outras palavras o viúvo(a) não pode casar com o enteado(a) ou com o sogro(a). Antigamente este impedimento de afinidade atingia a linha colateral ou oblíqua, isto é, não se podia casar com a(o) irmã(o) da(o) minha mulher (meu marido) sem a devida dispensa. Portanto, não se podia casar com a(o) cunhada(o)130. Hoje a afinidade atinge apenas a linha reta. Nas relações de família o Legislador aborda uma questão muito atual e premente que devido às inumeras guerras, cataclismas, desastres e menores abandonados e outros fatores existem muitas crianças sine patre, sine matre et sine genealogia. Nosso Legislador, sensível a esta realidade, incentiva os esposos generosos a adotarem estes filhos de Deus que sem culpa foram desprovidos de laços familiares. Dai tratar da complexa problemática da adoção de filhos (CIC c. 110131 CCEO c. 296 § 2132; 689 § 3133.) O c. 110 do CIC. é totalmente novo. Ao tratar da adoção de filhos o Legislador canoniza a legislação civil a respeito do instituto da adoção. No nosso Código Civil Brasileiro o instituto da adoção é tratado no Capitulo V134 sob o nome de Adoção nos artigos 368378135. Do instituto da adoção surge o chamado parentesco legal ou parentesco oriundo de adoção. O rito é a derradeira condição da pessoa física tratada aqui na 2ª parte do livro Iº do Código latino nos cânones 111136 e 112137 a de los padres naturales, según lo establecido en los §§ 1 y 2, teniendo en cuenta el derecho particular. 134 135 128 CIC c. 109.-. CCEO c. 919- § 1. La afinidad surge del matrimônio válido, y se da entre un cónyuge y los consanguíneos del otro cónyuge. § 2. En la linea y en el grado en que uno es consanguíneo de uno de los cónyuges, es afin del otro cónyuge. 129 Uma questão histórica que teve graves consequências para a Igreja Católica, é saber o porque Henrique VIIIº queria o divórcio. Porque o rei, temente a Deus, havia-se casado com Catarina de Aragão, com dispensa, mas era a sua cunhada. Após ter casado ele leu na Bíblia que não era permitido o matrimônio com a própria cunhada. Henrique VIIIº pensava que este preceito fosse de direito divino e portanto o Papa não poderia dar a dispensa, simplesmente porque o Papa não pode ir nunca contra o direito divino. O rei constituiu diversas comissões de estudos teológicos, bíblicos e canonisticos. Alguns destes estudiosos diziam que a razão estaria com o rei. Outros diziam que era o Papa que estava certo. Claro que o Papa não retrocedeu e o matrimônio de Henrique com Catarina tendo sido realizado com a devida dispensa era válido e continuava válido. 130 131 CIC c. 110 - Os filhos que tenham sido adotados de acordo com a lei civil são considerados filhos daquele ou daqueles que os adotaram. 132 CCEO c. 296 § 2 (in fine) ...por razón de la adopción... esta anotación ha de hacerse constar siempre en la partida de bautismo. 133 CCEO c. 689 § 3. Si se trata de un hijo adoptivo se inscribirá el nombre de quienes lo adoptaron y tambien, al menos si así se hace en el registro civil de la región, el Codigo Civil e leis complementares (Forense Rio2) 109-111. Capitulo V. Da adoção art. 368-376 Art. 368. Só os maiores de 30 anos podem adotar. Parág. Único. Ninguém pode adotar, sendo casado, senão decorridos cinco anos após o casamento. Art. 369. O adotante há de ser pelo menos, 16 anos mais velho que o adotado. Art. 370. Ninguém pode ser adotado por duas pessoas, salvo se forem marido e mulher. Art. 371. Enquanto não der contas de sua administração, e saldar seu alcance, não pode o tutor, ou curador, adotar o pupilo, ou curatelado. Art. 372. Não se pode adotar sem o consentimento do adotado ou do seu representante legal se fôr incapaz ou nascituro. Art. 373. Também se dissolve o vínculo da adoção:I .Quando as duas partes convierem. II. Nos casos em que é admitida a deserdação. Art. 374. A adoção far-se-á por escritura pública, em que se não admite condição, nem têrmo. Art. 375. O parentesco resultante da adoção (artigo 336) limita-se ao adotante e ao adotado; salvo quanto aos impedimentos matrimoniais, a cujo respeito se observará o disposto no art. 183, ns. III e V. Art. 336. A adoção estabelece parentesco meramente civil entre o adotante e o adotado (art. 376). Art. 183. Não podem casar (arts. 207-209) III— O adotante com o cônjuge do adotado e o adotado com o cônjuge do adotante (art. 376). V— O adotado com o filho superveniente ao pai ou à mãe adotiva (art. 376). Art. 376- Os direitos e deveres que resultam do parentesco natural não se extinguem pela adoção, exceto o pátrio poder, que será transferido do pai natural para o adotivo. CIC c. 111 - § 1. Pela recepção do batismo fica adscrito à Igreja latina o filho de pai que a ela pertencem; ou, se um dos dois a ela não pertence, ambos tenham escolhido, de comum acordo, que a prole fosse batizada na Igreja latina; se faltar esse comum acordo, fica adscrito à Igreja ritual à qual pertence o pai. § 2. Qualquer batizando, que tenha completado catorze anos de idade, pode escolher livremente ser batizado na Igreja latina ou em outra Igreja ritual autônoma; nesse caso,ele pertence à Igreja que tiver escolhido. 136 137 CIC c. 112 - § 1. Depois de recebido o batismo, ficam adscrito a outra Igreja ritual autônoma: Suprema Lex Suprema Lex Número 1 – Janeiro/Junho de 2011 Número 1 – Janeiro/Junho de 2011 183 184 mesma matéria é tambem apresentada, como não poderia deixar de ser no Código oriental nos cânones. 27138 e 28139. O termo Rito tem vários significados dependendo do texto e contexto. No sentido estrito é o “modus procedendi” ou de executar um ato litúrgico. Neste sentido é lícito falar de um rito particular de uma Igreja, de uma ordem religiosa, por exemplo o rito ambrosiano, o rito dominicano e assim por diante. A partir, porém, do século XVI, quando se fala no Ocidente dos ritos Orientais, inclui-se nisto a comunidade que segue determinados usos litúrgicos e possui uma disciplina própria. Este é o linguajar do Concilio Vaticano II quando identifica rito com uma Igreja particular140 1.º Quem tiver conseguido a licença da Sé Apostólica; 2.º o cônjuge que, ao contrair matrimônio ou durante este, tiver declarado que passa para a Igreja ritual autônoma do outro cônjuge; dissolvido, porém, o matrimônio, pode livremente voltar à Igreja latina; 3.º os filhos dos mencionados nos números 1 e 2, antes de completarem catorze anos de idade,como também no matrimônio misto, os filhos da parte católica que tenham passado legitimamente para outra Igreja ritual; completadas, porém, essa idade, eles podem voltar para a Igreja Latina. § 2. O costume, mesmo prolongado, de receber os sacramentos segundo o rito de alguma Igreja ritual autônoma não acarreta a adscrição a essa Igreja. 138 139 CCEO c. 27 – En este Código se llama Iglesia sui iuris a la agrupación de fieles cristianos junto con la eparquia, a la cual la autoridad suprema de la Iglesia le reconoce expresa o tacitamente como sui iuris. CCEO c. 28 § 1. O rito é o patrimônio litúrgico, teológico, espiritual e disciplinar, distinto da cultura e das circunstâncias historicas dos povos, e que se expressa no modo de viver a própria fé de cada Igreja sui iuris. 140 Cfr. Orientalium Ecclesiarum. 2, 3, A Igreja santa e católica Corpo Místico de Cristo, consta de fiéis que se unem organicamente pela mesma fé, pelos mesmos sacramentos e pelo mesmo regime, no Espírito Santo, coligando-se em vários grupos unidos pela hierarquia, constituem as Igrejas particulares ou os Ritos. Entre elas vigora admirável comunhão, de tal forma que a variedade na Igreja, longe de prejudicar-lhe a unidade, antes a manifesta. A intenção da Igreja católica é que permaneçam salvas e integras as tradições de cada Igreja particular ou Rito, bem como quer igualmente adaptar seu modo de vida às vár.ias necessidades dos tempos e lugares. 3. Tais igrejas particulares, tanto do Oriente como do Ocidente, embora difiram parcialmente entre si pelo que chamam de Ritos, isto é, pela liturgia, pela disciplina eclesiástica e pelo patrimônio espiritual, são, todavia igualmente confiadas ao governo pastoral do Pontífice Romano, que por determinação divina sucede ao Bem-aventurado Pedro no primado sobre a Igreja universal. Por isso elas gozam de dignidade igual, de modo que nenhuma delas preceda as outras em razão do rito; gozam dos mesmos direitos e se atém às mesmas obrigações, também à de pregar o Evangelho em todo o mundo (Mc. 16,15) sob a direção do Pontífice Romano.” Compendio do Vaticano II..., nn. 831-832, 335-336,. O Legislador no Código oriental nos oferece uma definição ampla e rica do que se entende por rito:141: “Ritus est patrimonium liturgicum, theologicum; spirituale et disciplinare cultura ac rerum adiunctis historia populorum distinctum, quod modo fidei vivendae uniuscuiusque Ecclesiae sui iuris propio exprimitur”142 O próprio Legislador no Código oriental define o que se deve entender por “Eclesia sui iuris”143 id est: “coetus christifideliurn hierarchia ad normam iuris iunctus, quem ut sui iuris expresse vel tacite gnoscit suprema Ecclesiae auctoritas, vocatur in hoc Codice Ecclesia sui iuris.” No decorrer dos primeiros séculos, as comunidades cristãs foram-se reagrupando ao redor das grandes sedes apostólicas de Roma, Antioquía e desde cedo em Alexandria, e mesmo nas cidades mais importantes do Império Romano. Fora das fronteiras do Império Romano encontra-se a Igreja da Mesopotâmia que no séc. V proclamou sua própria autonomia desvinculando-se do patriarcado de Antioquia. Esta separação deu lugar ao nascimento da, assim chamada, Igreja “Nestoriana” por não ter aceito os ditames do Concilio de Calcedônia (a. 451). 144Um fenômeno semelhante ocorreu com a Igreja Armena. Vivendo num certo isolamento, no sec. IV esta Igreja rompeu seus vínculos com a Igreja Mãe de Cesareia de Capadócia. No séc. VI, surge em Antioquia uma igreja separada da comunhão dos bispos fiéis ao Concílio de Calcedônia. Esta Igreja mantinha uma fórmula cristológica ambígua daí o ter sido chamada e conhecida como Igreja monofisista-jacobita. Estas defecções fizeram CCEO c. 28 § 1. O rito é o patrimônio litúrgico, teológico, espiritual e disciplinar, distinto da cultura e das circunstâncias historicas dos povos, e que se expressa no modo de viver a própria fé de cada Igreja sui iuris. 141 142 Código de Cânones de las Iglesias Orientales (Edicion Bilíngüe Comentada – Bilbioteca de Autores Cristianos- Madrid 1994) 35. c. 28 § 1. Entrou em vigor no dia 1º de outubro de 1991 feta da visitação de Nossa Senhora. CCEO c. 27 Neste Código chama-se Igreja sui iuris o agrupamento de fieis cristãos junto com a hierarquia, à qual a autoridade suprema da Igreja reconhece-a expressa ou tacitamente como sui iuris. 143 Cf. GAUTHIER, Dispense ad usum alumnorum...,.20. 144 Suprema Lex Suprema Lex Número 1 – Janeiro/Junho de 2011 Número 1 – Janeiro/Junho de 2011 185 186 com que as igrejas que tinham permanecido fiéis à fé de Calcedônia, se unissem cada vez mais à Igreja de Constantinopla e assim dar lugar a uma identificação quase perfeita entre fé “ortodoxa”145 com a fidelidade ao Império. Portanto, podemos distinguir as igrejas antigas que aceitaram o Concilio de Calcedônia e às vezes são denominadas de ortodoxas e as que não o aceitaram.146 As Igrejas de Calcedônia são todas aquelas que estavam em comunhão com o Patriarca de Constantinopla. Muitas delas eram também unidas a Roma. As Igrejas Calcedonenses (de Calcedônia) abrangem as do rito: -Alexandrino dos coptas e dos etíopes, -Antioqueno dos Malankarenses, maronitas e sírios; -Caldeo, dos caldeos e malabaresios - Armeno147 As Igrejas Orientais Católicas, hoje, distinguem-se nestes cinco ritos fundamentais.148 As bases do regime canônico para as Igrejas Orientais unidas a Roma são formuladas no Decreto do Vaticano II sobre as Igreja Orientais Católicas. 149 Após o Concilio Vaticano II no século passado iniciou-se uma codificação do direito oriental, que chegou a seu fim, no dia 18 de outubro de 1990. 150 quando o Romano Pontifice João Note-se que a palavra “ortodoxa”, diz Gauthier, é equivoca e frequentemente é usada para todos os orientais não católicos, isto é para todos os orientais não unidos a Roma. 145 Cf. GAUTHIER, Dispense ad usum alumnorum.g. 22. 146 147 CCEO c. .28 – § 2. Ritus, de quibus in Códice agitur, sunt, nisi aliud constat, illi, qui oriuntur ex traditionibus Alexandrina, Antiochena, Armena, Chaldaea er Constantinopolitana. 148 149 Mas cada um destes ritos abrange outras Igrejas, a saber: Rito Alexandrino abrangendo os coptas e os etíopes. Rito Antíoqueno que inclui os Malankaresos, os Maronitas e os Sírios. Rito Constantinopolítano ou Bizantino que abrange os Albaneses, os Búlgaros, os Gregos, os Melquitas, os Rumenos, os Rutenos, os Ucranianos etc. Rito Caldeu que inclui os Caldeus e os Malabareos. Rito Armeno. Orientalium Ecclesiarum nn. 1-3 : “1. A igreja Católica tem em alta estima as instituições, os ritos litúrgicos, as tradições eclesiásticas e a disciplina da vida crístã das Igrejas Orientais. Preclaras em razão da antiguidade veneranda, nelas reluz aquela tradição que vem desde os Apóstolos através dos Padres. Ela constitui parte do patrimônio divinamente revelado e indiviso da Igreja universal. Por isso, na sua solicitude pelas Igrejas Orientais, que são testemunhas vivas desta tradição, este Santo e Ecumênico Sínodo deseja que elas floresçam e realizem com novo vigor apostólico a missão que lhes foi confiada; e resolveu estabelecer alguns pontos, além daquilo que diz respeito à Igreja universal, remetendo o restante à providência dos Sínodos orientais e da Sé Apostólica.” Compendio do Vaticano II..... n.830, . 335. 150 Código de Cânones de las Iglesias Orientales ...(CCEO)...., 3-11. Paulo II promulgou-o com a Constituição “Sacri Cânones” o Código dos canones das Igrejas Orientais. Os orientais possuem o seu próprio Direito e a sua Hierarquia. Os orientais não estão sob a jurisdição dos Bispos latinos. Possuem hierarquia própria, mas, nem sempre, em todas as partes deste mundo. Quando em determinado lugar esta hierarquia está ausente então os orientais passam a estar sob a jurisdição do bispo diocesano latino. Os ocidentais, devido às constantes migrações do homem moderno, enfrentam certos desafios e problemas que antigamente nem sequer eram previstos, um dos casos delicados é como se deve proceder se um oriental não tem intenção de viver como oriental no ocidente. Isto pode acontecer porque este determinado fiel oriental há anos está longe do Oriente, radicou-se no Ocidente e vive como Ocidental nos seus usos e costumes. Neste caso, o melhor seria solicitar a mudança de rito e, hoje, basta que os bispos estejam de acordo para que o fiel possa passar de um rito a outro, pois a presunção é que a Santa Sé dê a permissão151. Mas, para podermos saber a que rito este determinado indivíduo pertence, devemos nos ater ao princípio geral anunciado pelo próprio Legislador quando diz que a pessoa pertence ao rito dos pais. Ter recebido o batismo em determinado rito litúrgico tem pouca importância pois o que se leva em consideração é o rito dos pais, sendo que o critério seguido é o das gerações ou da genealogia.152 151 Passagem de rito cânones: CIC. c. 112 e cceo c. 32. Comentário do CCEO. c. 32: “El § 1 recoge lo que el can. 98 § 3 CIC 17 decía de necesitar «la venia de la Sede Apostólica» para cambiar de rito, y el can.1l2 § 1, 1º CIC 83 decía con «licencia de la Sede Apostólica», y el presente canon oriental dice «consentimiento de la Sede Apostólica»: son un tanto diversas sus redacciones, pero el contenido es el mismo. Eso es demasiado serio. Buscando un caso, un tanto paralelo en la vida civil, se diría que es como requerir, para cambiar de nacionalidad, la «venia, licencia o consenti miento» de la autoridad suprema mundial, la ONU. Por ello resulta más normal lo que establece el § 2 del canon: aligera un tanto esa excesiva solemnidad de que intervenga la autondad suprema, la Sede Apostólica, y dice que se presume ese consentimiento, cuando los dos Obispos eparquiales acceden por escrito al paso de la Iglesia sui iuris del uno a la del otro. Esta nueva norma ha sido extendida al CIC 83 según Rescripto del Secretario papal (26 nov. 1992, AAS 85, (1993) 81). 152 Mas se alguém não tem nenhum contato com o próprio rito é aconselhável que se peça a devida mudança de rito. Suprema Lex Suprema Lex Número 1 – Janeiro/Junho de 2011 Número 1 – Janeiro/Junho de 2011 187 188 No Código Pio Beneditino o filho pertencia sempre ao rito do pai, hoje não é mais assim, pois o Legislador quis terminar com toda e qualquer discriminação aplicando a isonomia. Não é raro acontecer que um indivíduo case com outro de rito oriental. Na tradição canônica seguia-se o rito do pai. Este princípio não foi aceito pelo novo Legislador devido a que era discriminatório. Quando os pais são de ritos diferentes, o batizado fica adscrito à Igreja de rito latino se ambos estiverem de acordo, caso contrário o batizando ficará adscrito à Igreja do pai. O Legislador latino exprimindo-se com esta fórmula153 ab-roga a antiga regra que o batizado não púbere deveria seguir necessariamente a Igreja do pai.154 Os orientais não ficaram satisfeitos com este princípio do Código latino, porque ficaram com medo que muitos orientais passassem ao rito latino. O Codigo oriental dedica um capitulo inteiro para tratar da adscriçao a uma Igreja sui iuris155. O Legislador latino no texto 153 legal156 não contempla a possibilidade de um filho de pai latino poder ser adscrito ao rito oriental. A razão desta aparente anomalia está no fato de que o Código latino de 1983, quis apenas pronunciar-se a respeito da adscrição à Igreja latina, deixando ao código Oriental a tarefa de regulamentar este instituto. O Código oriental diz, simplesmente: “per baptismum ascribitur Ecclesiae sui iuris cui pater ascriptus est; si vero sola mater est catholica aut, si ambo parentes CIC c. 111. Cfr. c.+ 756 § 1. La prole debe ser bautizada en el rito de sus padres. § 2. Si uno de los padres pertenece al rito latino y el otro al oriental, la prole debe ser bautizada en el rito del padre, a no ser que otra cosa se halle determinada por derecho especial. § 3. si solamente uno de ellos es catolico, la prole debe ser bautizada en el rito de este. 154 155 Canones do Codigo oriental cujo titulo é o “De la adscripción a una Iglesia «sui iuris»”: c. 29- § 1. El hijo que no ha cumplido aún los catorce años queda, por el bautismo, adscrito a la Iglesia sui iuris a que está adscrito su padre católico; pero si sólo la madre es católica o si ambos padres lo piden con voluntad concorde, queda adscrito a la Iglesia sui iuris a que pertenece la madre, salvo el derecho particular establecido por la Sede Apostólica. § 2. Pero el hijo que no ha cumplido los catorce años: 1º si es nacido de madre no casada, queda adscrito a la Iglesia sui iuris a que pertenece la madre; 2.° si es de padres desconocidos, queda adscrito a la Iglesia sui iuris a que están adscritos aquellos a cuya cura ha sido legítimamente encomendado; pero si se trata de padre y madre adoptantes, se aplica el § 1; 3.° si es de padres no bautizados, queda adscrito a la Iglesia sui iuris a que pertenece quien asumió su educación en la fé católica. CCEO c. 30 -Todo bautizando que ha cumplido los catorce años puede elegir libre mente cualquier Iglesia sui iuris a que se adscribe por su bautismo recibido en ella, salvo el derecho particular establecido por la Sede Apostólica. CCEO c. 31- Nadie pretenda inducir en modo alguno a cualquier fiel crìstiano a pasar a otra Iglesia sui iuris. CCEO c. 32- § 1. Nadie puede pasar válidamente a otra Iglesia sui iuris sin consentimiento de la Sede Apostólica. § 2. Pero si se trata de un fiel cristiano de una eparquía sui iuris que pide pasar a otra iglesia sui iuris que tiene eparquía propia en el mismo territorio, ese consentimiento de la Sede Apostólic a se presume, con tal de que los Obispos eparquiales de ambas eparquías consientan por escrito el paso. CCEO c. 33- La mujer tiene pleno derecho a pasar a la Iglesia sui iuris del marido al contraer matrimônio o durante el mismo; y una vez disuelto el matrimônio puede libremente volver a la anterior Iglesia sui iuris CCEO c. 34- Si los padres o el cónyuge católico en el matrimônio mixto pasan a otra Iglesia sui iuris, los hijos que no han cumplido los catorce años de edad quedan adscritos por el derecho mismo a la misma Iglesia; pero si en el matrimônio entre católicos sólo uno de los padres pasa a otra Iglesia sui iuris, los hijos pasan a ella sólo si los dos padres consienten; cumplidos los catorce años de edad, los hijos pueden volver a la anterior Iglesia sui iuris. CCEO c. 35. Los bautizados acatólicos que vienen a la plena comunión con la Iglesia católica mantienen en todas partes el propio rito y lo cultivan y observan según sus fuerzas; quedan por tanto adscritos a la Iglesia sui iuris del mismo rito, salvo su derecho de recurrir a la Sede Apostólica en casos especiales de personas, de comunidades o de regiones. CCEO c. 36 Todo paso a una Iglesia sui iuris tiene vigor desde el momento de la declaración hecha ante la Jerarquía local de la misma Iglesia o ante el párroco o ante el sacerdote delegado por uno de ellos y dos testigos, a no ser que diga otra cosa el rescripto de la Sede Apostólica. CCEO c. 37 Toda adscripción a una Iglesia sui iuris y todo paso a otra Iglesia sui iuris se anotará en el libro de bautizados, incluso, si es el caso, de la Iglesia latina donde se ha celebrado el bautismo; y si no puede hacerse, anótese en otro documento que se conservará en el archivo parroquial del párroco propio de la Iglesia sui iuris a que se ha adscrito. CCEO c. 38 Los fieles cristianos de las Iglesias orientales, aunque estén encomendados a la cura del Jerarca o del párroco de otra Iglesia sui iuris, sin embargo permanecen adscritos a la propia Iglesia sui iuris. Cân. 111 - § 1. Pela recepção do batismo fica adscrito à Igreja latina o filho de pai que a ela pertençam; ou, se um dos dois a ela não pertença, ambos tenham escolhido, de comum acordo, que a prole fosse batizada na Igreja latina; se faltar esse comum acordo, fica adscrito à Igreja ritual à qual pertence o pai. § 2. Qualquer batizando, que tenha completado catorze anos de idade, pode escolher livremente ser batizado na Igreja latina ou em outra Igreja ritual autônoma; nesse caso,ele pertence à Igreja que tiver escolhido. 156 Suprema Lex Suprema Lex Número 1 – Janeiro/Junho de 2011 Número 1 – Janeiro/Junho de 2011 189 190 concordi voluntate petunt, ascribitur Ecclesiae sui iuris, ad quam mater pertinet, salvo iure particulari a Sede Apostolica statuto”.157 A liberdade deixada aos pais na escolha de rito, foi considerada perigosa pelos orientais, especialmente nos paises ocidentais. 158 Outra questão delicada que causa um certo problema entre as Igrejas é quando se trata de um oriental não católico que deseja se tornar católico. Por exemplo, um russo não católico quer tornar-se católico e está morando no ocidente. O que acontece neste caso? Antes do ano de 1957, havia algumas regras a este respeito. O oriental que se convertia ao cristianismo, poderia ser agregado ao rito oriental que quisesse, mas não poderia passar ao rito latino a não ser que colocasse isto como condição “sine que non” para converterse à Igreja Católica. No entanto o Motu Proprio Cleri Sanctitati159 de Sua Santidade Pio XII, tinha feito uma espécie de codificação para o direito oriental. Pio XII dava para os batizados acatólicos o direito de escolher o rito que preferissem: “ritum quem maluerint amplecti possunt” 160 No entanto o c. 11 do Motu Próprio provocou enérgicas reações por parte da Igreja Melquita.161 Parece que o c. 11 do “Cleri Sanctitati” fora ab-rogado pelos Padres Conciliares quando fora promulgado o decreto das Igrejas Orientais que diz: ...”Enfim todos e cada um dos católicos, bem como os batizados de qualquer Igreja ou Comunidade acatólica que ingressarem na plenitude da comunhão católica, conservem em toda parte o próprio Rito cultivem-no e o observem na medida do possível. Fica todavia salvo o direito de recorrer nos casos peculiares das pessoas, comunidades ou regiões à Sé Apostólica; esta, na qualidade de árbitro CCEO c. 29 § 1, 157 158 Cfr. POSPISHIL-FERRARIS The New latin Code of Code Law and Eastern Catholics (New York 1984) 21. AAS 49 (1957) 439. c. 11. 159 160 161 AAS 49 (1957) 439. c. 11. Cfr. Les Églises orientales catholiques, 216. supremo das relações inter-eclesiais, proverá às necessidades em espírito ecumênico, por si mesma ou através de outras autoridades, dando as oportunas normas, decretos ou rescritos.” 162 De fato no Código oriental o Legislador diz: “Baptizati acatholici ad plenam communionem cum Ecclesia catholica convenientes proprium ubique terrarum retineant ritum eumque colant et pro viribus observent, proinde ascribantur Ecclesiae sui iuris eiusdem ritus salvo iure adeundi Sedem Apostolicam in casibus specialibus personarum, communitatum vel regionum” 163 Devemos notar que em todos os ritos orientais existem católicos. Poucos as vezes, mas existem. O problema está na mudança de rito164, devido às dificuldades históricas.Os orientais tiveram a impressão que a Igreja Latina fazia muita propaganda para se passar ao rito latino. A proibição de passar do rito latino para um outro rito é antiga.165 Foi mitigada um pouco quando foi dada a licença à mulher de rito 162 Orientalium Ecclesiarum..., n.883 in fine, 337. 163 CCEO. c. 35. CIC c. .112 - § 1. Depois de recebido o batismo, ficam adscritos a outra Igreja ritual sui iuris: .1. os que tiverem conseguido licença da Sé Apostólica; 2.o cônjuge que, na celebração do matrimônio ou na sua duração, tiver declarado que passa à Igreja ritual sui iuris de outro cônjuge; dissolvido, porém o matrimônio pode livremente voltar à igreja latina; 3. os filhos, daqueles que são mencionados nos nn. 1 e 2, antes de completarem catorze anos de idade; igualmente, no matrimônio misto, os filhos da parte católica, que tenham passado legitimamente a outra igreja ritual; completada, porém, essa idade, eles podem voltar à Igreja Latina. § 2. O costume, mesmo prolongado, de receber os sacramentos segundo o rito de alguma igreja ritual sui iuris não implica a adscrição a essa Igreja.. 164 CCEO c. 32 § 1. Nadie puede pasar válidamente a otra Iglesia sui iuris sin consentimiento de la Sede Apostólica. § 2. Pero si se trata de un fiel cristiano de una eparquía sui iuris que pide pasar a otra iglesia sui iuris que tiene eparquía propia en el mismo territorio, ese consentimiento de la Sede Apostólic a se presume, con tal de que los Obispos eparquiales de ambas eparquías consientan por escrito el paso. CCEO c. 33 La mujer tiene pleno derecho a pasar a la Iglesia sui iuris del marido al contraer matrimônio o durante el mismo; y una vez disuelto el matrimônio puede libremente volver a la anterior Iglesia sui iuris CCEO c. 34.Si los padres o el cónyuge católico en el matrimônio mixto pasan a otra Iglesia sui iuris, los hijos que no han cumplido los catorce años de edad quedan ads165 Suprema Lex Suprema Lex Número 1 – Janeiro/Junho de 2011 Número 1 – Janeiro/Junho de 2011 191 192 latino que se casasse com um oriental, poderia passar para o rito oriental “ineundo vel durante matrimônio”.166 Esta norma provêm de Leão XIII, com sua Constituição “Orientalium dignitatis”,167 de 30 de novembro de 1894 A proibição de passar do rito oriental para o latino remonta ao século XVII. Em 1624, o Papa Urbano VIII proibiu que os rutênios passassem ao rito latino, mas perante as insistências do Rei da Polônia Sigismundo, restringiu esta proibição aos clérigos.168 O Romano Pontífice, por outro lado, condenou o excesso de zelo por parte de alguns missionários latinos que se esforçavam para que os orientais passassem ao rito latino. Após os esforços feitos por Benedito XIV para obter a generalização da proibição feita aos orientais para passar ao rito latino, esta proibição entende-se que fora estendida a todos os ritos orientais. No que diz respeito à passagem de um rito oriental a um outro rito oriental, existe um decreto da Propaganda Fidei datado da 20 de critos por el derecho mismo a la misma Iglesia; pero si en el matrimônio entre católicos sólo uno de los padres pasa a otra Iglesia sui iuris, los hijos pasan a ella sólo si los dos padres consienten; cumplidos los catorce años de edad, los hijos pueden volver a la anterior Iglesia sui iuris. CCEO c. 35. Los bautizados acatólicos que vienen a la plena comunión con la Iglesia católica mantienen en todas partes el propio rito y lo cultivan y observan según sus fuerzas; quedan por tanto adscritos a la Iglesia sui iuris del mismo rito, salvo su derecho de recurrir a la Sede Apostólica en casos especiales de personas, de comunidades o de regiones. CCEO c. 36 Todo paso a una Iglesia sui iuris tiene vigor desde el momento de la declaración hecha ante la Jerarquía local de la misma Iglesia o ante el párroco o ante el sacerdote delegado por uno de ellos y dos testigos, a no ser que diga otra cosa el rescripto de la Sede Apostólica. CCEO c. 37. Toda adscripción a una Iglesia sui iuris y todo paso a otra Iglesia sui iuris se anotará en el libro de bautizados, incluso, si es el caso, de la Iglesia latina donde se ha celebrado el bautismo; y si no puede hacerse, anótese en otro documento que se conservará en el archivo parroquial del párroco propio de la Iglesia sui iuris a que se ha adscrito. CCEO c. 38 Los fieles cristianos de las Iglesias orientales, aunque estén encomendados a la cura del Jerarca o del párroco de otra Iglesia sui iuris, sin embargo permanecen adscritos a la propia Iglesia sui iuris. 166 167 Fontes III, 458. Fontes III, 458. 168 Cfr. MICHIELS. G., De personis,..,. 230 novembro de 1838 que permitia a passagem de um rito oriental para outro, contanto que se usassem as mesmas espécies eucarísticas (pão azimo ou fermentado) com o consentimento dado pelos dois Ordinários. Os bizantinos usam o pão fermentado para a Eucaristia, mas nem todos os orientais usam-no. O Código de 1917 no c. 98169 formulava uma proibição geral de se passar de um rito para outro sem licença da Santa Sé. O esquema do Código Oriental do ano 1986, manteve a proibição da passagem de uma Igreja sui iuris sem a permissão da Sé Apostólica, mas acrescentava, no seu c. 30 § 1: “Si vero agitur de christifideli eparchiae alicuius Ecclesiae sui iuris qui transire petit ad aliam Ecclesiam sui iuris, quae in eodem territorio propriam eparchiam habet, hic consensus Sedis Apostolicae praesumitur, dummodo Epíscopi eparchiales utriusque eparchiae ad transitum scripto consentiant” 170 No Codigo oriental promulgado consta o texto ipsis litteris no seu c. 32 § 2.171 O Codigo latino no seu c. 112 § 1172 : no seu n. 1 desejava ser uma proteção para as Igrejas orientais.173 No seu c. + 98 § 1. Entre los vários ritos católicos, cada cual pertenece a aquel con cuyas ceremonias fue bautizado, a no ser que el bautismo haya sido tal vez administrado por un ministro de otro rito o con fraude, o por grave necesidad si es que no pudo hallarse a mano un sacerdote del propio rito, o con dispensa apostólica cuando se dió facultad para que alguien fuese bautizado con determinado rito sin quedar adscrito al mismo. 169 § 2. No se atrevan los clérigos a inducir en manera alguna a los latinos a abrazar un rito oriental, ni a los orientales a abrazar el latino. § 3. Sin licencia de la Sede Apostólica, a nadie le es licito pasar a otro rito, o, después de legitimo transito, volver al primero. § 4. Puede libremente la mujer de rito diverso pasar al rito del marido, al contraer matrimônio o durante el mismo; mas, disuelto el matrimônio, puede volver al propio rito, a no ser que por derecho particular se establezca otra cosa. § 5. Por mucha duracion que tenga la costumbre de recibir la Eucaristia en otro rito, no lleva consigo el cambio de este. Nuntia 2-26 (1987) 5. 170 171 Cfr. AAS. LXXXII (1990) 1066 c. 32. 172 CIC c. 112 - § 1, 1. Depois de recebido o batismo, ficam adscritos a outra Igreja ritual sui iuris: 1. os que tiverem conseguido licença da Sé Apostólica; 1992 Nov. 26 Secr. Statuts, Rescr. AAS 85 (1993) 81. FIT FACULTAS LICENTIAM DE QUA IN CAN. 1122, § 1, 1 CIC LEGITIME IN CASU PRAESUMENDI. AD NORMAM CAN 112 § 1, 1º Codicis Iuris Canonici, quisque vetaur post susceptum Baptismum alii ascribi Ecclesiae rituali sui iuris, nisi licentia ei facta ab Apsotolica Sede. 173 Suprema Lex Suprema Lex Número 1 – Janeiro/Junho de 2011 Número 1 – Janeiro/Junho de 2011 193 194 n. 2.174 o Legislador não fala mais da mulher para que não houvesse discriminação entre homem e mulher. No seu n. 3175 diz que exceto na caso do matrimônio, requer-se a licença da Santa Sé. Mas o rescrito de 26 de novembro de 1992 diz que esta permissão é presumida desde que os dois Bispos latino e oriental estejam de acordo e deem a licença por escrito. O c. 112 no seu § 2.176 diz, explicitamante que, mesmo que por toda a vida um oriental tenha frequentado a Igreja Latina ou Ocidental, nem por isso muda de rito. Tudo isto é para respeitar o Direito Oriental. Insisto que não é uma centralização da Igreja Ocidental, porque foram os próprios orientais que quiseram que fosse assim. BIBLIOGRAFIA Acta Apostolicae Sedis (AAS) 49 (1957) AAS 85 (1993) 81. AAS. LXXXII (1990) BASSET W.W. The Determination of Rite (Roma 1967). Codigo Civil e leis complementares (Forense Rio2) Código de Cânones de las Iglesias Orientales (Edicion Bilíngüe Comentada – Bilbioteca de Autores Cristianos- Madrid 1994) Hac de re, probato iudicio Pontificii Consilii de Legum Textibus Interpretandis, Summus Pontifex Ioannes Paulus II statuit eiusmodi licentia praesumi posse, quoities transitum ad aliam Ecclesiam ritualem sui iuris sibi petierit Chistifidelis Ecclesiae Latinae, quae Eparchiam suam intra eosdem fines habet, dummodo Episcopi diocesani utriusque diocesis in id secum ipsi scripto consentiant. Ex Audientis Sanctissimi, die XXVI mensis Novembris, anno MCMXCII. 174 CIC c. 112 - § 1, 2:. Depois de recebido o batismo, ficam adscritos a outra Igreja ritual sui iuris: 2.o cônjuge que, na celebração do matrimônio ou na sua duração, tiver declarado que passa à Igreja ritual sui iuris de outro cônjuge; dissolvido, porém o matrimônio pode livremente voltar à igreja latina; 175 codigo de derecho canonico edicep8 c. b; 1993. Codigo de direito canônico -Edições Loyola 1983. Código de Derecho Canônico Ediciones Universidad de Navarra S.A - Pamplona (1984) Communicationes 6 (1974) 96 Compendio do Vaticano II.- Cosntituição dogmatica Lumen Gentium Editora Vozes21968. Compendio do Vaticano II. Decreto Orientalium Ecclesiarum. Editora Vozes21968. CONDORELLI M. “I fedeli nel nuovo Codex Iuris Canonici” in Il diritto ecclesiastico (1984) 785-788. COSTELLO M.J. Domicile and quasi-Domicile (Washington 1930); DOGLIOTTI M. “Le persone fisiche” in Trattato di diritto Privato 1, 2 (Torino 1982) 5-8. Ghauthier Dispense ad usum alumnorum, Angelicum, .7. Les Églises orientales catholiques, 216. LO CASTRO Il soggetto ed i suoi diritti nell´ordinamento canonico (Milano 1985). MICHIELS G Principia Generalia de Personis in Ecclesia,(Paris 1955) Nuntia 2-26 (1987) 5. ONCLIN W. “Membres de l´Église. Personnes dans l´Église” in Année canonique 9 (1964) 17. PINTO VITO PIO, COMMENTO AL CODICE DI DIRITTO CANONICO Editrivce Vaticana2 2001. POSPISHIL-FERRARIS The New latin Code of Code Law and Eastern Catholics (New York 1984) TEDESCHI V. Il quasi domicílio nel diritto canonico (Genova 1931). WERNZ X.F. Ius Decretalium 1, n. 103. CIC c. 112 - § 1, 3. Depois de recebido o batismo, ficam adscritos a outra Igreja ritual sui iuris: 3. os filhos, daqueles que são mencionados nos nn. 1 e 2, antes de completarem catorze anos de idade; igualmente, no matrimônio misto, os filhos da parte católica, que tenham passado legitimamente a outra igreja ritual; completada, porém, essa idade, eles podem voltar à Igreja Latina. 176 CIC c. 112 - § 2. O costume, mesmo prolongado, de receber os sacramentos segundo o rito de alguma igreja ritual sui iuris não implica a adscrição a essa Igreja.. Suprema Lex Suprema Lex Número 1 – Janeiro/Junho de 2011 Número 1 – Janeiro/Junho de 2011 195 A igreja como intérprete da lei moral estabelecida por Deus Dr. José de Ávila Cruz1 INTRODUÇÃO O cânon 747 § 2 do Código de Direito Canônico prescreve: Compete à Igreja anunciar sempre e por toda a parte os princípios morais, mesmo referentes à ordem social, e pronunciar-se a respeito de qualquer questão humana, enquanto o exigirem os direitos fundamentais da pessoa humana ou a salvação das almas. Como ensina Santo Tomás de Aquino, “criatura dotada de razão está submetida à Providência Divina de um modo excelente, pelo fato de exercer em relação a si mesma e às outras uma espécie de providência2. Portanto, a Igreja, pela missão a que está chamada, é a guardiã da lei moral; e sendo assim, compete-lhe resguardar a consciência da sociedade. A Igreja tem o direito e o dever de fazer ouvir a sua voz, para admoestar e repreender, quando a sociedade se afasta da ordem natural e fracassa nas funções fundamentais, a que está obrigada em razão dos fins existenciais do homem. Sabemos que o Decálogo é intocável e o poder humano não pode estabelecer leis que entrem em choque com a Lei Divina, como, por exemplo, permitir o furto, o adultério, o homicídio. 1 2 Professor de Direito Canônico do Instituto de Direito Canônico “Pe. Dr. Giuseppe Benito Pegoraro” de São Paulo – SP. Membro do Colégio Judicante do Tribunal Interciocesano de São Paulo – SP. Santo Tomás Aquino – Suma Teológica, parte 1ª q 22 Artigo 2 Suprema Lex Número 1 – Janeiro/Junho de 2011 197 198 Já é tempo de compreender que há leis morais, sociais, leis que independem totalmente do nosso querer ou não querer, mas que existem, tão imperiosas, tão necessárias, e ao mesmo tempo tão sábias, tão indispensáveis à plena realização dos destinos humanos quanto as outras, as leis do mundo físico. A ordem social faz parte da ordem moral, à medida em que entram em jogo os fins existenciais do homem. Atualmente está havendo confusão quanto ao conceito de soberania e com isso o Estado é colocado acima do direito natural, o que não pode acontecer. A soberania não é um poder em si mesmo, mas sim uma qualidade do poder, pois, na verdade “só Deus é soberano”3 Acrescenta, ainda esse mesmo autor: “Nem o Príncipe, nem o Rei, nem o Imperador eram realmente soberanos, embora detivessem a espada e os atributos da soberania. Assim, também não é soberano o Estado, como não o é o próprio povo”4. na esfera internacional e são evidentes as catástrofes que traz consigo a secularização da sociedade devida às forças individualistas e coletivas. Devemos ter sempre em mente a IMPORTÂNCIA DA FÉ ; “aquele que for batizado será salvo” unicamente esta Igreja ereta e magnífica, malgrado todos os inimigos, permanece com toda a sua santidade e constitui a prova segura e certa da veracidade de nossa fé. São Paulo admoesta seus filhos tentados a correr para falsos profetas e lhes diz: “Eu me admiro que tão depressa abandoneis Aquele que vos chamou para a graça de Deus, para passar a outro evangelho. Se alguém ensina doutrinas estranhas e não guarda as palavras de Nosso Senhor Jesus Cristo e a doutrina conforme a piedade é um orgulhoso que nada sabe, um espírito doente que se ocupa de questões e contendas de palavras. Donde se originam maledicências, más suspeitas, altercações de homens com espírito pervertido que estão privados da verdade. Este mandamento te recomendo, filho Timóteo, que combatas o bom combate, conservando a fé e a boa consciência, repelida a qual por alguns, naufragaram eles na fé”5 Partindo desse princípio, podemos deduzir que a vontade do povo não é soberana no sentido espúrio de que tudo que agrade ao povo deve ter força de lei, pois uma lei não se torna justa pelo simples fato de exprimir a vontade do povo. Uma lei injusta, ainda que exprima a vontade do povo, não é lei. É preciso ter em mente que crítica social se relaciona com a consciência de responsabilidade, a qual consiste no dever constante de uma atitude de vigilância perante o tipo de funcionamento da ordem, bem como no dever de evitar qualquer crítica negativa e destrutiva, inspirada em critérios partidários ou sensacionalistas, que causam prejuízos à comunidade. A sociedade está em relação com a Igreja, não apenas enquanto guardiã da lei moral, mas também enquanto fonte de renovação moral. A Igreja Católica vem combatendo desde os primórdios do Cristianismo os homens com espírito pervertido, exercendo a pastoral para que nada seja deturpado e nenhuma lei entre em choque com a Lei divina. SOCIEDADE: O conceito exato de sociedade é o de Santo Tomás de Aquino: «Adunatio hominum ad aliquid unum communiter agendum»6 Atualmente, está à vista o fato de que se reveste a questão social, tanto no âmbito interno dos Estados e da sociedade quanto 3 Maritain, Jacques em “ O homem e o Estado, Editora Agir. 4 Ibidem 5 São Paulo, I Tim. 1,18-19 6 Santo Tomás de Aquino: sociedade é uma união moral de homens numa ação comum. A palavra adunatio vem de ad unum actio. Suprema Lex Suprema Lex Número 1 – Janeiro/Junho de 2011 Número 1 – Janeiro/Junho de 2011 199 200 Através dessa definição perfeita do Doutor Angélico podemos afirmar que a sociedade é a união harmônica dos homens. A razão de que os homens se unam visando a uma cooperação está fundamentada na necessidade e capacidade individual de complementação. A união de esforços produz um resultado maior do que uma soma de esforços isolados. Vejamos, como exemplo, um fato atualíssimo – o combate aos traficantes no Rio de Janeiro. Tal refrega está sendo realizada com eficácia porque foram unidas as forças na comunidade, pois o empreendimento excede a força dos indivíduos isolados. Há uma divisão didática sobre o conceito de sociedade bastante esclarecedor: o homem como causa material, a união moral como causa formal, causa eficiente como ação unificada do homem, o bem comum como causa final. O homem, por sua vez é concebido como individualista, coletivista e a sociedade formada de grupos. A primeira traz um resultado funesto para a sociedade, pois faz com esta seja conceituada como uma soma de indivíduos. Já ficou demonstrado que o indivíduo isolado não atua porque a liberdade está fundamentada na plena autonomia da razão. A teoria individualista concebe a sociedade como organização de fins escolhidos arbitrariamente e destinada sobretudo a garantir aquele âmbito de liberdade do indivíduo, portanto, uma liberdade não como a complementação recíproca e a cooperação de todos. O ideal é a liberdade teológica que consiste no livre arbítrio dado por Deus ao homem. A segunda é reprovável porque nega o livre arbítrio e fundamenta-se no materialismo e provoca a luta de classes. A terceira considera a sociedade como união de grupos. É o conjunto de todos os agrupamentos sociais. Portanto, “são vínculos sociais formados através da história e decorrentes da necessidade ou conveniências concretas”7 É um conjunto de corpos sociais harmonizados em vista de um bem comum. 7 Galvão de Sousa, J.P. Política e Teoria do Estado, Ed. Saraiva, São Paulo , 1957, p. 91 O BEM COMUM:- Santo Agostinho, citando Túlio afirma: “Um povo é a associação de muitos indivíduos, baseada num consenso jurídico e na utilidade comum por onde a noção de povo implica uma comunhão de homens, ordenada por justos preceitos legais”8. Lei, segundo Santo Tomás de Aquino, “é uma ordenação da razão humana para o bem comum, promulgada pelo chefe da comunidade”. Essa lei promulgada pelo chefe da comunidade é uma ordem jurídica que, basicamente é a ordem do bem comum. Bem comum é precisamente a cooperação da sociedade, proporcionando a todos os seus membros a ajuda de que necessitam para cumprirem, sob sua própria responsabilidade, as tarefas vitais que lhes impõem os fins existenciais, integrando todo o direito. O bem comum constitui um princípio objetivo fundamentado na natureza das coisas, portanto não se trata de um princípio puramente formal sem conteúdo determinado, ou seja fora da realidade histórica. Isto significa que devem ser considerados os direitos originários dos membros da sociedade que são aqueles fundamentados no direito natural.. Portanto, o teor da obrigatoriedade do princípio do bem comum é seu caráter jurídico-natural O DIREITO NATURAL:- Se nos reportarmos ao direito romano, constavamos que desde épocas remotas já se percebia que somente os seres inteligentes podem ser sujeitos de direito, eis que o direito é uma faculdade moral, deduzindo-se, pois, que se trata de seres de natureza intelectual; “nec enim potest animal iniuriafecisse, quod sensu caret”( os animais não podem ter direito porque carecem de razão)9. Os princípios universais da atividade humana e as inclinações próprias de todo homem atestam a existência de uma ordem natural. A razão formula tais princípios com base na experiência sensível. A ordem natural expressa pelo determinismo das leis físicas e pela livre sujeição dos atos humanos à lei moral, supõe uma inte8 Santo Tomás de Aquino Suma Teológica q. CV, a. II, onde cita Santo Agostinho 9 Ulpiano – Digesto .9..1.3 Suprema Lex Suprema Lex Número 1 – Janeiro/Junho de 2011 Número 1 – Janeiro/Junho de 2011 201 202 ligência ordenadora que não pode ser outra senão Deus, autor da natureza. A inteligência divina concebe os seres tais como eles são e, assim os concebe desde toda a eternidade. Deus não concebe no tempo. Eterna é a concepção de sua mente. Concepção representa o tipo ou exemplar dos seres criados e a norma segundo a qual deverão operar os mesmos seres. Lei eterna é a própria lei natural enquanto considerada na razão divina “Como a razão teórica, ao formular o princípio de identidade, nele reconhece a lei suprema o ser, assim também a razão prática, ao formular seus princípios em si mesmos evidentes, tem por fim somente reconhecer e exprimir, na forma de preceitos obrigatórios, as tendências fundamentais da natureza humana”10. “A lei natural tem o seu fundamento último na lei divina, que a concebe desde a eternidade e da qual participa a razão humana ao conhecer os preceitos da lei natural. Tal concepção da lei natural, participação da lei eterna, e a identificação, da lei eterna com a razão divina, isto é, com a própria essência divina, pois que em Deus a razão não uma faculdade distinta, como no homem; é uma verdade enunciada nas Escrituras desde o antigo Testamento. O Cristianismo veio torná-la inequivocamente conhecida, e já a filosofia antiga chegara a alcançá-la, embora no meio das vacilações próprias do pensamento humano sempre que não esclarecida pelas luzes da Revelação. Noções da revelação primitiva foram guardadas por todos os povos, mas ao poucos se deturparam envolvendo-se nas lendas e fantasias mitológicas”11. Para que nos apercebamos disso, convém frisar que o bem comum de maneira nenhuma se torna obrigatório por força da vontade do legislador. A vontade do legislador é apenas uma das formas da sua obrigatoriedade, pedida, em última análise, pelo próprio direito 10 Santo Tomás de aquino Suma Teológica Ia II ae 94 -2 11 Galvão de Souza, J.P., Direito natural, Direito Positivo e Estado de Direito Ed Revista Dos Tribunais, São Paulo, 1977 , p. 70. natural: uma obrigatoriedade que, de qualquer maneira, apenas afeta a obediência àquela vontade do legislador que exprime a exigência do bem comum. Essa exigência é a justiça, tal como concebeu Santo Agostinho “ É uma conduta determinada pela utilidade comum, que reconhece a cada qual o seu valor que se baseia realmente na própria natureza humana, ainda que os primeiros passos da configuração da vida do homem em sociedade se dêem através dos costumes, formados em virtude da utilidade”12. Assim, o Estado que outra coisa não é, senão a Nação politicamente organizada, deve estar atrelado ao conceito de nação, ou seja, o homem não vive isolado. Desde o nascimento sua vida se entrelaça com a das comunidades que o cercam: família, organização profissional, nação. A existência decorre no âmbito destas comunidades, que delimitam, orientam a vida do indivíduo. Este não é destruído, mas sim respeitado, amparado e impulsionado pela comunidade. Esclarecedora é a conceituação de Messineu quando diz “Tem a nação um fim que não se confunde com o Estado. Ao Estado cumpre garantir a ordem pública, fizer respeitar os direitos, manter a segurança de um agrupamento humano nos limites do território onde este se ache localizado, e, finalmente, proporcionar as condições externas necessárias para os membros desse agrupamento alcançarem o seu bem-estar, quando estas condições requeiram a ação do poder político, ou por razões superiores de interesse nacional. Quanto ao seu escopo da comunidade nacional, no dizer de Messineo, é “a conservação, a transmissão e o desenvolvimento dos próprios elementos de cultura em benefício da pessoa humana”13 DA APLICAÇÃO DO DIREITO NATURAL:- A Igreja, de acordo com o dispositivo canônico mencionado no início deste trabalho, está, como sempre, vigilante para evitar que os fieis se iludam com 12 Santo Agostinho, De Div. Quest, 31 . 13 Messineo, A, S.J. Ed. La Civittà Cattolica, Roma, 1944, p. 92. Suprema Lex Suprema Lex Número 1 – Janeiro/Junho de 2011 Número 1 – Janeiro/Junho de 2011 203 204 inovações. O modernismo emergiu das profundezas misteriosas da natureza humana, no início deste século, e começou a desenvolver-se, quando o Papa Pio X, tão clarividente condenou-o através da Encíclica Pascendi: “A missão que nos foi divinamente confiada, de apascentar o rebanho do Senhor, entre os principais deveres impostos por Cristo, conta o de guardar com todo desvelo o depósito da fé transmitido aos Santos, repudiando as profanas novidades de palavras e as oposições de uma ciência fementida”. E, na verdade, esta providência do Supremo Pastor foi em todo tempo necessária à Igreja Católica. fundada na lei eterna; imanente, enquanto realizado no direito positivo, dando a este um conteúdo. É nisso que consiste a vigilância da Igreja como intérprete e guardiã da lei para que o Estado fique somente na missão subsidiária, submetendo-se ao transcendental que compete à Igreja. Com esse sábio ensinamento deduzimos que o homem não pode tomar como mestre o mundo exterior, a fim de satisfazer seus instintos e nem submeter os princípios de sua razão aos imperativos do mundo sensível e externo. Portanto, a Igreja é, sem dúvida, a guardiã da lei moral. Logo, é da sua competência resguardar a consciência da sociedade. Na atual conjuntura, há necessidade de reconstruir uma ordem social que satisfaça as aspirações da pessoa humana. Isto se consegue recrudescendo a força moral, através do direito natural aplicado. Ora, a sociedade é formada de grupos que se unificam no Estado, como já ficou demonstrado. Através de várias encíclicas, observamos que a reforma social implica uma profunda reforma de estrutura, exatamente por causa da crise social decorrente de um desconhecimento das condições normais que devem estar presentes em toda sociedade bem constituída, seja qual for a forma de governo ou sistema de produção de riqueza. Essa crise acarreta problemas de natureza moral e religiosa, aos quais a Igreja não pode ficar alheia. CONCLUSÃO:- O direito positivo deve conformar-se ao direito natural, porque a finalidade essencial daquele é a realização do justo, ou seja, assegurar a convivência equânime dos homens, portanto, o direito natural é transcendente imanente em relação ao direito positivo. Transcendente, enquanto expressão da ordem natural, Suprema Lex Suprema Lex Número 1 – Janeiro/Junho de 2011 Número 1 – Janeiro/Junho de 2011 205 DistribuiDora loyola De livros ltDa Vendas no Atacado rua são Caetano, 959 – luz Tel.:(11)3322-0100•Fax:(11)3322-0101 01104-001 são Paulo, sP e-mail: [email protected] Vendas no Varejo uRuaSenadorFeijó,120–Centro Telefax:(11)3242-0449 01006-000 são Paulo, sP e-mail: [email protected] v rua barão de itapetininga, 246 – Centro Tel.:(11)3255-0662•Fax:(11)3231-2340 01042-001 são Paulo, sP e-mail: [email protected] w rua Quintino bocaiúva, 234 – Centro Tel.:(11)3105-7198•Fax:(11)3242-4326 01004-010 são Paulo, sP e-mail: [email protected]