LAURA CHRISTINA MELLO DE AQUINO, historiadora e professora

Transcrição

LAURA CHRISTINA MELLO DE AQUINO, historiadora e professora
LAURA CHRISTINA MELLO DE AQUINO, historiadora e professora universitária
RONALD DE QUEIROZ
Escrever uma pequena biografia de Celso Furtado para divulgação e uso didáticos no ensino
básico não é uma tarefa que se possa entender como simples. Trata-se de um escritor,
pensador político, economista e cientista social de grande influência sobre várias gerações de
brasileiros e latino-americanos, com uma presença notável na atualidade continental e
mundial. Seu pensamento e sua obra têm inspiração interdisciplinar onde permeiam idéias e
construções mentais influenciadas por filósofos e cientistas aos quais se nivelou, ao longo da
vida, enriquecida pela experiência na construção e na gestão de instituições do Estado que
ainda figuram - caso da Sudene - como modelo de intervenção governamental na promoção
do desenvolvimento econômico e social regional e nacional.
Por isso tenho certeza de que todos vão concordar, após a leitura deste ensaio biográfico, com
o acerto da sugestão que me ocorreu do nome da jovem professora Laura Cristina Mello de
Aquino, Mestre em História para encarregar-se dessa pesquisa e de sua redação. A presença
de um historiador paraibano no estudo e interpretação da vida e obra de Celso Furtado vai
enriquecer a interdisciplinaridade do elenco de estudiosos que, também na Universidade da
Paraíba, ocupa-se do pensamento deste grande paraibano que se tornou referência mundial.
Rômulo Polari já se encarregou, com invejável competência, da interpretação do economista,
quando da outorga a Celso Furtado do titulo de Doutor "Honoris Causa" pela UFPB.
Tornei-me leitor assíduo da obra de Celso Furtado desde quando inclui seus livros na
bibliografia indispensável aos cursos de Economia de Campina Grande e João Pessoa onde
encarreguei-me de lecionar a disciplina Desenvolvimento Econômico. Iniciando por
"Desenvolvimento e Sub-desenvolvimento" até "Teoria e Política do Desenvolvimento" fazia
revisão obrigatória à "Formação Econômica do Brasil" seu livro clássico onde a
fundamentação histórica é o cenário em que se insere a economia brasileira no fenômeno do
desenvolvimento e da expansão européia no mundo. Uma contribuição desse livro original
para o esclarecimento da formação do país é o destaque atribuído ao ciclo do ouro na unidade
nacional, criando um mercado para o gado e a união de obra do Nordeste na fase de exaustão
do vigor da economia açucareira.
Não queria escrever esta nota introdutória sem enfatizar um aspecto da personalidade de
Celso Furtado que vale de testemunho de seu papel como cientista político e como estadista
de exemplar clarividência. Certa vez, no início dos anos 80, tentei organizar meus
conhecimentos de política através de curso de introdução à Ciência Política ministrado à
distância pela Universidade de Brasília. No bloco do Guia de Estudo dedicado ao Conceito de
Política, o prof. Philippe Schimitter, após discorrer sobre as diversas correntes de pensamento
político, de Weber a Duverger, Harold lasswell ou Robert Dahl, David Enston e Talcolt
Parsons em busca de uma concepção que unisse o tradicional e o contemporâneo como foco
de sua disciplina, escreve:
"Preparando esse ensaio, encontramos para nossa grande surpresa uma formulação muito
semelhante, não de um outro politista mais de um economista brasileiro: "A partir do
momento em que uma sociedade cresce o suficiente para que seus membros necessitem pautar
seu comportamento por normas gerais cuja aplicação deve ser imposta por uma autoridade
que não deriva a sua legitimidade de vínculos de parentesco, está-se em face de um embrião
de organização política, sendo irrelevante que o chamemos de sociedade civil ou de Estado. 0
que importa é reconhecer que qualquer estrutura social que haja alcançado um certo grau de
diferenciação, necessitará organizar-se politicamente a fim de que os seus conflitos internos
não a tornem inviável. Um ponto importante a ter em conta é o caráter sui generis da
organização política, instrumento que a própria sociedade utiliza para autodisciplinar-se,
cabendo-lhe o monopólio de uso da força em nome da coletividade como um todo".
E remata o professor Philippe Schmitter: "A nosso ver, nenhum outro cientista social definiu a
essência da atividade política tão concisa e claramente como essa citação de Celso Furtado!" 0
trecho citado pelo ensaísta é do livro "A Dialética do Desenvolvimento", publicado em 1964.
Nele se reflete a clara compreensão em que Furtado se inspirou ao considerar sua prática da
missão de estadista. Uma postura coerente que sempre adotou o coloca no plano de exceção
dos homens de Estado que, enquanto exerceram sua responsabilidade institucional, nunca
abdicaram da fidelidade permanente ao papel de formulador e executor da grande política que
ultrapassa os prazos dos mandatos institucionais e se projeta no futuro da sociedade. De suas
atitudes conhecem exemplos notáveis os que com ele conviveram na Sudene ou no
Ministério, entre outros, Juarez Farias e Francisco Oliveira dirigentes da instituição à época
de seu primeiro Superintendente. Relembro, neste momento, pelo menos dois episódios em
situações e tempos diferentes ao longo de um percurso que, às vezes, nos aproximava. Aí pelo
início dos anos sessenta, quando Celso Furtado começava a implantar a Sudene os Estados
nordestinos se preparavam para, cada um deles, dotar-se de unidades de planejamento
econômico, os chamados Conselhos Estaduais de Desenvolvimento. Pedro Gondim, então
Governador, confiou-me a direção executiva daquele órgão que chegou a ser dirigido também
por Lopes de Andrade, Octacílio Queiroz, Jeová Mesquita e Max Saeger. Coube-me uma
gestão em que a equipe técnica se empolgava com as idéias e a liderança de Celso Furtado.
Periodicamente íamos ao Recife onde nos reuníamos com Francisco Oliveira, Juarez Farias,
Jader de Andrade, Nailton Santos, nunca com Celso, e nem precisava, pois estes eram clones
perfeitos do grande líder. Certa vez, meus companheiros do CED pretenderam afixar um
retrato do Superintendente da Sudene. Cauteloso acerca das repercussões da iniciativa entre os
políticos que na Paraíba não nos viam com bons olhos, sugeri uma consulta ao homenageado
através de seu Chefe de Gabinete, o inesquecível Osmário Lacet. Lembro-me do episódio,
Lacet de volta na ante-sala do Gabinete: - "Ele manda dizer que quem for amigo dele
abandone essa idéia." Era o que esperava, mas fiquei bem com os companheiros.
De outra vez esqueci Lacet, que estava novamente com Celso Furtado no Ministério da
Cultura, e aproveitei uma oportunidade com o Ministro para submeter-lhe uma reivindicação
dos professores do Centro de Ciências jurídicas da UFPB, preocupados com a demora na
recuperação do prédio da Faculdade de Direito. 0 imóvel, tombado como monumento
histórico - arquitetônico, fora transferido pelo Governo do Estado a UFPB, que pedira
recursos do MEC, a quem pertencia o imóvel, para restaurá-lo. Levei o projeto ao Ministro
que objetou: "Não posso fazer nada, pois o prédio é do MEC e não do Ministério da Cultura".
Repliquei: "Os professores sabem disso, tanto é que pretendem só uma gestão sua junto ao
Ministro da Educação". Celso fez um gesto de advertência e rematou: "Você bem conhece
que um Ministro não pede nada a outro..." Fiquei a pensar imediatamente na prática de nossos
políticos e administradores e, bem claramente, nas razões pelas quais não vingou a tentativa
de alguns raros militantes do PMDB que, numa operação heróica, queriam fazê-lo candidato a
Governador da Paraíba em 1982.
Assim é o paraibano que se tornou nome do século não só na Paraíba, mas no Brasil. Como
protagonista de uma liderança institucional, não se permitia esquecer um só momento de seu
compromisso fundamental, comprovando que não há pequenos momentos na vida pública
dos grandes personagens. Conversando outro dia com Dom José Maria Pires, também
missionário das causas sociais, dizia-me o Arcebispo Emérito da Paraíba: "Eu só comparo
Celso Furtado a João Paulo II na superação de suas limitações pela transcendência das causas
que defendem..." Fiquei a pensar comigo: dois peregrinos em trilhas paralelas, iluminados
pelo Espírito, no amor de Deus, um, pelo bem da humanidade, outro, ambos no mesmo roteiro
da mortalidade quando tudo se revelará.
Ronald Queiroz - Economista e ex-secretário da Indústria e Comércio
Introdução – LAURA DE AQUINO
Torna-se oportuno salientar aqui, de passagem, que recebi do professor Ronald de Queiroz a
honrosa tarefa de escrever, para esta série histórica do jornal a União, sobre a vida do Dr.
Celso Furtado. Trata-se de um homem que vem influenciando, com suas idéias, sucessivas
gerações de estudiosos brasileiros e estrangeiros, conhecido por sua reserva e sobriedade, em
tudo o que diz respeito à sua vida privada.
No prefácio à sua obra autobiográfica, o professor Celso Furtado escreveu:
"As páginas que seguem originam-se de notas sobre o grande debate dos anos 50 em torno do
subdesenvolvimento, fenômeno que acabava de ser descoberto e causava perplexidades. As
notas evoluíram para um ensaio de história das idéias, mas no caminho transformaram-se em
reflexão sobre as circunstâncias em que uma sociedade toma consciência das opções que tem
diante de si, apreendendo que o destino também depende dela mesma. Contudo, esse desvio
ambicioso foi corrigido a tempo, canalizando-se o discurso para simples testemunho pessoal.
0 risco de desvio para o autobiográfico também foi atalhado. A vida pessoal tem o mistério
desses tesouros de fábula que, quando expostos à luz, perdem seu verdadeiro significado. 0
testemunho pessoal ganha relevância quando inserido no contexto histórico, em particular se
o cronista é personagem do drama".
Tratar, nos limites deste trabalho, dos diferentes contextos históricos nos quais vem atuando o
professor Celso Furtado, como intelectual público, seria quase impossível, exigindo "engenho
e arte". Por isso, "canalizei o discurso" para, numa rápida síntese, traçar o perfil do
biografado, com o objetivo de revelar aos seus conterrâneos, sobretudo aos mais jovens,
vítimas do malfadado sistema de ensino brasileiro, quem é o "economista do século", o
"homem da nação”, o pesquisador e diretor da Divisão de Desenvolvimento da CEPAL, o
ministro, o idealizador e primeiro Superintendente da SUDENE, o imortal da Academia
Brasileira de Letras, autor de mais de 30 livros, com mais de um milhão de exemplares
vendidos em todo o mundo, o jornalista, advogado, professor, o cidadão do mundo, o
paraibano do sertão, Celso Monteiro Furtado.
0 Nascimento
Celso Furtado nasceu na cidade de Pombal, no dia 26 de julho de 1920. 0 sertão paraibano
dos anos vinte era um "mundo marcado pela incerteza e pela brutalidade" e a infância de
Celso Furtado foi, decisivamente, selada pela idéia de que os perigos estavam por toda a
parte, tanto do lado dos homens, quanto do da natureza. Viu gente morrer na rua, a violência
dos cangaceiros, ouviu histórias de secas devastadoras, foi vítima da enchente de 1924, que
invadiu Pombal e destruiu parte de sua casa.
Embora os episódios vividos na primeira infância tenham feito de Celso Furtado uma pessoa
cautelosa, não o tornaram um homem amargo, ao contrário, a crueza da vida, no inóspito
sertão paraibano, parece ter aguçado a sensibilidade do professor Celso para os problemas
sociais:
"... Tenho a consciência aguda da angústia do outro ...
Que o Brasil tenha gente passando fome é um insulto à condição humana..."
Considera, inclusive, a felicidade impossível em meio às adversidades sociais:
"Sempre fui um insatisfeito com a condição humana presente, mas também sempre fui
dominado pela ilusão de que o mundo pode ser melhor. A busca da felicidade é um dos traços
do caráter humano, mas, em mim, ela tem uma dimensão social, quer dizer, a felicidade só se
encontra por meio da solidariedade, da cooperação entre os homens, e não por uma ação
pessoal."
As duras experiências que viveu precocemente, talvez expliquem porque Celso Furtado tratou
de conhecer o mundo para sobre ele agir. Identificou as causas do nosso atraso econômico, do
subdesenvolvimento, da dependência, das disparidades regionais brasileiras, e não tem
hesitado em jogar todo o seu conhecimento na arena política, como "personagem do drama",
traço característico de sua trajetória de homem de pensamento e ação.
Infância e juventude
Quando Celso Furtado tinha sete anos, seus pais, Maurício de Medeiros Furtado e Maria Alice
Monteiro Furtado, mudaram-se para a capital do estado, a então cidade da Parahyba. Foi por
volta dessa idade que a curiosidade intelectual do menino começaria a ser despertada.
0 Dr. Maurício Furtado era um homem ilustrado. Bacharelou-se em Direito pela Faculdade do
Recife. Foi juiz substituto da Comarca de João Pessoa, tendo exercido, também, os cargos de
juiz da Comarca de Mamanguape, Procurador Geral do Estado, Presidente do Montepio do
Estado (atual IPEP),
Desembargador do Tribunal de Justiça da Paraíba. Era membro do Instituto Histórico e
Geográfico Paraibano, e do Instituto Histórico do Ceará. Tomou posse na Academia
Paraibana de Letras em 5 de março de 1960, sendo recepcionado por Francisco Seráphico da
Nóbrega . Era também franco-maçon,
anticlerical e aberto a idéias novas, tendo exercido grande influência na formação do filho
Celso, o mais velho dos homens, de uma prole de oito filhos que lhe deu D. Maria Alice.
“... Meu pai era muito sério, tipicamente um juiz. Tinha uma grande biblioteca e me criei
cercado de livros... Romances, literatura. Tinha também muitos livros de História. Havia em
casa uma coleção grande, de uns vinte volumes - a História Universal de Cesare Cantú. Era
um homem de leitura... graças a ele, desde minha infância li Swift, Defoe, R.L. Stevenson. E
também graças a ele dispus de uma ampla biblioteca, o que me permitiu cultivar minha
primeira paixão intelectual, a partir dos quatorze anos, que foi' a História."
0 professor Rômulo Soares Polari, na saudação acadêmica que fez a Celso Furtado, quando
este recebeu o título de Doutor Honoris Causa da Universidade Federal da Paraíba, chamou a
atenção para um aspecto do pensamento de Celso Furtado, revelador, do conhecimento e da
importância que o autor de Formação Econômica do Brasil, atribui à História:
"Tenho aqui especial interesse em ressaltar e resgatar um conteúdo da maior importância do
pensamento de Furtado que, até agora, ainda não foi suficientemente debatido e reconhecido.
Refiro-me à sua concepção filosófica de um saber que desaliena, liberta e que é capaz de
mudar os rumos da história ou, pelo menos, não admite que estes sejam rigorosamente
predeterminados. É interessante trazer para reflexão, os horizontes que, no entendimento de
Furtado, se abrem à humanidade, com aquele homem não apenas objeto do saber, mas,
também, sujeito deste e, principalmente, sujeito da história. "
Nunca é demais acentuar a importância atribuída à História na vasta obra de Celso Furtado,
sobretudo, num país como o Brasil, onde os economistas, com as exceções de sempre, não
falam nem escrevem numa linguagem inteligível para o comum dos mortais. Uns, a
esmagadora maioria, talvez não tenha aprendido a falar e escrever de outra forma; outros,
talvez o façam de caso pensado, assumidamente, numa sutil operação ideológica, cujo
objetivo é confundir, camuflar, escamotear a verdadeira realidade econômica do país.
Vejamos, como, numa síntese invulgar, o professor Celso Furtado concebe o homem como
objeto do saber e sujeito da história: "Cedo percebi que o destino do homem, seja ele
medíocre ou superdotado, é contribuir para decifrar o mistério do mundo ou agir para
modificar o rumo das coisas. Nunca aceitei a passividade ou indiferença diante do mundo que
aí está”
A segunda paixão intelectual de Celso Furtado foi a literatura:
"As influências mais notórias que sofri em minha juventude foram literárias, talvez porque
minha aspiração mais forte era vir a ser escritor, de preferência um ficcionista. Ainda no
secundário li o essencial de Machado, de Eça, de Euclides, dos escritores nordestinos (Lins do
Rego, Amado, Graciliano) e me iniciei na literatura universal, particularmente nas de língua
espanhola, francesa e inglesa, idiomas em que logo me habituei a ler. Liguei-me em especial a
alguns autores de idioma castelhano, como Sarmiento, que pintou um mundo áspero como o
nosso sertão, Garcia Lorca, que nos ajudou a satisfazer a fome do lirismo, Unamuno, que
entreabriu a porta do existencialismo. E também, entre outros, a autores universalistas, como
Roman Rolland, que em seu jean Christophe fundiu a paixão de viver com a motivação
estética, e A. Huxley, que nos ensinou a rir dos pedantes."
História e literatura viriam a repercutir em sua vasta obra, marcando-a de forma indelével. 0
professor Ronald de Queiroz chamou a atenção para a extraordinária qualidade literária do
texto de Celso Furtado.
"A presença de Celso Furtado na Academia Brasileira de Letras faz justiça a uma obra
intelectual que, entre tantos méritos científicos e filosóficos, possuí um que a distingue com a
marca da permanência. Trata-se da linguagem escrita, um estilo de comunicação que pode
comparar-se aos melhores textos da língua portuguesa. Escapar aos riscos que ameaçam a
forma literária, tais como o uso da comunicação técnica, da lógica matemática, a utilização
permanente de línguas estrangeiras, tudo que tem constituído seu universo multilinguístico de
transmissão do pensamento sem prejuízo da clareza, elegância e bom gosto na expressão,
representa um esforço persistente para atribuir coerência à relação forma-conteúdo
responsável pela ampla repercussão de seus livros e ensaios. Nos círculos científicos mais
reduzidos não se formula tal exigência, mas os autores que se preocupam em ganhar espaço
na consciência social para suas idéias prezam a forma e o estilo com que as exprimem.
Possivelmente o bom gosto sóbrio que às vezes resvala para um leve toque na sensibilidade e
na emoção têm sido responsáveis pela rápida propagação de algumas idéias fundamentais da
longa obra de Celso Furtado."
Tem razão o professor Ronald de Queiroz. Nos anos de chumbo da ditadura militar, na
faculdade de História da Universidade de São Paulo, era um alento para a minha geração ler
Celso Furtado. A clareza e a beleza do seu texto faziam com que compreendêssemos os
problemas econômicos brasileiros e latino-americanos, por entre o emaranhado do
"economês" que nos impunham goela abaixo. Formação econômica do Brasil, sobretudo, nos
ensinou a ler" nosso país.
Voltemos para a infância e juventude de Celso Furtado. 0 Dr. Maurício Furtado mantinha com
o filho uma relação autoritária:
"A relação do pai com o filho era muito violenta (na sociedade autoritária da época) ... Eu saía
com ele na rua, rapazinho, e não conversava. Ia sério. Depois, muito depois, ele disse: '0
Celso era tão cara-fechada!' Ele atribuía a mim a falta de comunicação entre nós!"
Mas, a relação com o pai não era apenas de distância e autoritarismo. Pelo menos, é o que nos
sugerem os interesses do Dr. Maurício Furtado. Originário de uma família de artistas, "o pai
era poeta, a mãe tinha inclinação para a musica, cada irmão tocava um instrumento musical, e
ele, grande seresteiro."
Celso Furtado nos conta que o pai era músico, "tocava muita coisa e tinha uma bela voz."
Tendo passado, em certa ocasião, seis meses no Rio de Janeiro, de lá, mandava selos para
aumentar a coleção do filho e preocupava-se com a educação do menino.
Aos doze anos, Celso Furtado iniciou os estudos secundários no Liceu Paraibano, concluídos
no Ginásio Pernambucano do Recife (o Liceu não possuía os cursos completos: "fazíamos
seis anos e no sétimo tínhamos que ir para fora."). Estudava piano e foi muito influenciado
pelo seu professor de música, Gazzi de Sã:
“Ele era um homem muito exigente e concebia a música como uma manifestação quase
religiosa, a expressão mais rica da experiência humana... Portanto, eu diria que nasci da
música e da literatura para os estudos universitários científicos.”
Muito cedo, no segundo ano do Liceu, quando as notas de inglês começaram a ficar baixas, o
pai contratou um professor particular que, na expressão de Celso Furtado, o "desasnou", e ele
passou a dominar a nova língua, sentindo "orgulho de conversar em inglês com Mr. Vance."
Além do inglês, o contato com o espanhol e o francês foi feito desde cedo, D. Maria Alice
Furtado lia nessas duas línguas.
Aliás, D. Maria Alice Monteiro Furtado deve ter sido uma mulher muito interessante. É o que
se deduz do pouco que sabemos sobre ela:
"Minha mãe tinha um caráter muito forte, Ela tomava uma atitude, meu pai gritava,
esperneava, mas depois cedia. Era como se soubesse que, efetivamente, ela tinha razão, A
mulher sempre tem razão em certos assuntos..."
Filha de um coronel autoritário do sertão, lia francês e espanhol, não se intimidava com as
"cenas" do marido, revelando uma atitude pouco comum nas mulheres de sua geração e de
seu meio. Depois da morte do Dr. Maurício Furtado, falecido no dia 22 de março de 1965, no
Rio de janeiro, ela recolheu sua produção literária, que se encontrava dispersa em jornais e
revistas da época, reuniu notas e escritos deixados por ele e formou uma "pequena antologia,
intitulada Coisas do Passado, com apresentação de Horácio de Almeida, seu grande amigo."
0 Intelectual Público
Ainda adolescente, Celso Furtado foi um dos líderes do movimento de esquerda no Liceu
Paraibano: "líder puramente intelectual porque não tinha qualquer atividade política." A
paixão pela História o levou a ler livros de esquerda, entre os quais A História do socialismo e
das lutas sociais, de Max Beer, que muito o influenciou"
"No Liceu Paraibano havia um seminário de confrontação de idéias e recordo-me de que fiz
uma conferência, citei Max Beer e outros escritores de esquerda e os integralistas caíram em
cima de mim, com críticas acerbas. "
Seriam, talvez, as primeiras "críticas acerbas" a um homem que nunca cometeu o pecado da
omissão, quando se trata dos problemas do seu país e da miséria do seu povo. Em junho de
1968, já cassado pelo golpe militar de 0l de abril de 1964, exilado, Celso Furtado fez uma
rápida visita ao Brasil, a convite da Comissão de Economia da Câmara dos Deputados, para
prestar depoimentos sobre problemas brasileiros.
As dificuldades para visitar o Brasil, naquela ocasião estão relatadas nas páginas 190 e 191,
do Tomo III, de sua autobiografia intelectual .
"As três apresentações que fiz na comissão de Economia da Câmara dos Deputados tiveram
grande repercussão na imprensa, o que valeu inusitada repercussão do livro em que foram
reunidas sem demora, sob o título de Um Projeto para o Brasil, do qual autografei mais de mil
exemplares entre Rio de Janeiro e São Paulo. Todas as pessoas que me pediram dedicatória
foram fotografadas, imagino que por íniciativa de algum sistema de controle a serviço não sei
de quem. 0 AI-5 encontrava-se em estado avançado de gestação."
Na primeira conferência,
“... seu depoimento se prolongou das 21h30m até as duas da madrugada e foi acompanhado
por mais de cem deputados e centenas de estudantes - uma comissão de estudantes da
Faculdade de Ciências Econômicas do Centro Universitário de Brasília comunicou ao Sr.
Celso Furtado que seu nome fora escolhido como patrono do diretório Acadêmico da escola e populares, que o aplaudiram, durante vários minutos, quando foi saudado pelo presidente da
comissão , Sr. Adolfo Oliveira (MDB-RJ)"
No jornal última Hora, Danton Jobin escreveu:
"A Comissão de Economia da Câmara ouviu a opinião do Professor Celso Furtado sobre os
problemas ligados ao desenvolvimento do país. Uma exposição admirável! Pelo método, pela
objetividade, pela perfeita isenção que a presidiram. Sendo uma vítima notória das injustiças
praticadas em nome da revolução, não aproveitou para retaliações a tribuna que lhe era
franqueada. Portou-se como mestre na cátedra, embora sem pedantismo ou doutoralices. Por
isso estranhamos que nossos colegas do "jornal do Brasil" tenham investido contra Celso
Furtado, que veio ao Brasil a convite de órgão técnico de uma das Casas do Congresso, a fim
de dar a sua contribuição à análise do mais sério dos problemas nacionais."
Na mesma edição de última hora, está estampada a manchete:"Beltrão a Celso Furtado: o
Brasil vai bem." 0 ministro do Planejamento, Hélio Beltrão, declarou que:
"0 cetícismo e a desconfiança, difundidos por certas pessoas, são dos detalhes que mais
atrapalhavam o nosso desenvolvimento, impedindo a criação do clima de confiança
indispensável a qualquer planejamento sério e honesto que se pretenda instituir. 0 Brasil vai
bem e irá melhor se não atrapalharem.''
0 formato deste trabalho, não me permite tratar mais detalhadamente as análises do professor
Celso Furtado, naquela ocasião. Se, não se soubesse, que elas estavam calcadas no
conhecimento científico do Dr. Celso, em sua experiência nas questões do planejamento
econômico, das técnicas para promover o desenvolvimento, etc, poder-se-ia apelar para o
transcendental, e considerá-las proféticas. Em todo caso, remeto o leitor para o livro Um
projeto para o Brasil, que reuniu as conferências proferidas na Câmara dos Deputados.
A imprensa rebateu as "as críticas acerbas" dos representantes da linha-dura da ditadura
brasileira:
"0 economista Celso Furtado está no Brasil, a convite da Comissão de Economia da Câmara
dos Deputados que, em feliz e oportuna iniciativa resolveu ouvir o depoimento do ilustre
Professor cassado, sobre os problemas brasileiros. Está de parabéns a Câmara dos Deputados.
É o debate autêntico e livre que se procura restabelecer. Não é possível que o País continue
submetido ao cantochão monótono das baboseiras monetaristas... Duros e ingratos são os
caminhos da verdade, com correção e brilho, percorridos pelo cientista social e homem de
letras, o brasileiro Celso Furtado. Se por outras veredas menos acidentadas tivesse o
paraibano ilustre sido seduzido, a esta altura, de comendas e medalhas estaria forrado seu
"curriculum" Ágeis editorialistas, os melhores da praça, com boa gramática e tempo para
pensar, fecundariam frases de gabarito, e no mármore da falta de caráter nacional, mais uma
figura genial seria talhada. Por aí vem mais pedrada, meu caro Celso: enrijeça a pele,
contenha o justo ressentimento, limite a mágoa e abasteça o coração das alegrias de uma
consciência em paz. Na ausência dos editoriais encomiásticos, ou das comendas de latão
brilhante, receba a solidariedade do povo, o apreço da mocidade e o abraço cordial do seu
amigo, João Pinheiro Neto.”
Se ressalto a visita que o professor Celso Furtado fez ao Brasil, em 1968, é menos pela
recordação do meu entusiasmo adolescente nas galerias da Câmara dos Deputados, e mais
para mostrar a linha de coerência do pensamento e da conduta do cientista social. Ora, desde a
cassação dos seus direitos políticos, por dez anos, por força do Ato Institucional nr 1, em 04
de abril de 1964, Celso Furtado foi para o Chile, a convite do Instituto Latino - Americano de
Desenvolvimento, órgão ligado à CEPAL. Em setembro do mesmo ano, mudou-se para New
Haven, Estados Unidos, onde assumiu o cargo de
pesquisador graduado do Instituto de Estudos do Desenvolvimento, da Universidade de Yale.
Nesse período, fez várias conferências em diversas universidades norte-americanas e
participou de vários congressos sobre a problemática do Terceiro Mundo.
Em setembro de 1965, a convite da Faculdade de Direito e Ciências Econômicas da
Universidade de Paris, assumiu a cátedra de professor de Desenvolvimento Econômico, tendo
sido o primeiro estrangeiro nomeado para uma universidade francesa, por decreto presidencial
do general De Gaulle.
Portanto, Celso Furtado, aos 45 anos de idade, já tinha o reconhecimento internacional,
condições de sobrevivência garantidas, professor catedrático de uma das maiores
universidades do mundo. E tudo isso, não foi conseguido pelos belos olhos do professor
Furtado, mas, foi fruto do seu trabalho de longos anos, através do mundo, estudando,
pesquisando, escrevendo, lutando nas trincheiras do intelectual público, para compreender o
mundo, sobretudo, a América Latina e o Brasil,
Se veio ao Brasil, em 1968, era porque
tinha o que dizer sobre a situação da economia brasileira. Aliás, Celso Furtado nunca esteve
totalmente afastado do Brasil, era a ditadura militar que não o queria entre nós.
Acompanhemos seu relato da situação política brasileira, após a decretação do AI-5, em 13 de
dezembro de 1968:
"Depois, em 1971, começou uma arrogância muito grande, o milagre o "Brasil grande", o
Ame-o ou deixe-o", toda aquela palhaçada, fantasmagoria. E isso repercutiu, inclusive no
exterior. Eu era professor na França, tinha muitos alunos e havia gente infiltrada nas minhas
aulas que era do lado do governo Começaram, então, as perguntas impertinentes e diziam que
eu era um homem inteligente, capaz, mas desinformado porque estava fora do Brasil há muito
tempo, não sabia o que se passava, não sabia que o país era outro. Resolvi, então, vir, e foi
uma experiência muito especial porque fui seguido por toda parte. Mesmo assim estive em
muitos lugares e visitei muitas pessoas. Descobri, na época, que meus papéis não serviam
mais, até a carteira de identidade tinha de ser renovada, e fui à polícia tirar documentos
ficando de buscá-los quando estivessem prontos. Um dia, cheguei em casa e soube que
haviam me procurado. Então, apresentei-me. Eles haviam me dado um papel, ou eu o levara
comigo sem querer, e era um documento que devia ter ficado lá. Suspeitaram que minha
intenção era forjar uma carteira. Várias pessoas estavam detidas, acusadas de serem
coniventes comigo porque me deixaram sair com o tal papel. Uma coisa absurda. Expliqueime, disse que não tinha interesse em me esconder, estava no país porque queria e não sabia
que aquele papel tinha que estar ali. Pedi desculpas ao pessoal que estava detido e a mim nada
fizeram. Alguns dias depois, entregaram-me a carteira nova ... Passei uma temporada de dois
meses e, quando voltei para a França, escrevi o livro Análise do Modelo Brasileiro para
mostrar a situação em que se encontrava o Brasil. Expus como todo o desenvolvimento que se
fazia era anti-social, muito mais ainda que no passado, e que tudo era feito para promover
uma formidável arrocho e concentração de renda. E que tudo decorria do fato de que não
havia mais sociedade civil organizada, ela estava prostrada e morta. Foi a minha revanche
porque diziam que eu não sabia o que se passava no Brasil. Quando fui embora daqui, tomei
um cuidado enorme. Eu tinha um despachante muito simpático, que jà faleceu, e foi comigo
ao aeroporto para ver se eu entrava no avião. Aqueles anos eram terríveis e vim correndo
todos os riscos. Eu queria escrever sobre a situação do Brasil real, daquele momento. E o livro
teve muita repercussão. A meu favor, eu tinha o fato de que era muito notório, em toda parte,
e por isso, nunca cassaram meus livros... Dificultavam a distribuição, mas essa dificuldade o
pessoal sabia contornar. Proibição não houve. A censura examinava tudo e demorava muito a
devolver e eu não queria me submeter a isso. Foi por isso que Fernando Gasparian eu e um
grupo compramos a editora Paz e Terra, em 1974. Fizemos um pacto: não submeteríamos
nossas publicações aos censores. Se o livro fosse cassado, haveria o prejuízo e o autor perdia
também. Gasparian foi chamado a Brasília muitas vezes, particularmente por causa do jornal
Opinião. Essa foi uma época de luta e de esperança de que a situação começasse a se
desanuviar.”
É fascinante a responsabilidade pública do intelectual Celso Furtado, em quem se confunde,
dialeticamente, o papel do homem de pensamento com o homem de ação, mesmo nos limites
estreitos impostos pela ditadura militar pós-AI/5.
Desde 1948, o professor Celso Furtado era Doutor em Economia pela Universidade de Paris,
com a tese "L'économie coloniale brésilienne", dirigida por Maurice Byé. Mas, em 1957,
trabalhando na CEPAL (Comissão Econômica para a América Latina, órgão das Nações
Unidas), há muitos anos, afastou-se, com uma licença sem vencimentos, e seguiu para a
Inglaterra, onde passou uma temporada na Universidade de Cambridge. Permaneceu um ano
no King's College, fazendo estudos de pós-graduação, e escreveu Formação Econômica do
Brasil, "fruto de sua reflexão de dez anos sobre a realidade econômica brasileira.
“A lição era clara: o trabalho de teorização em ciências sociais é em certa medida uma
prolongação da política. Essas reflexões levaram-me a modificar a visão que tinha do trabalho
teórico, e induziram-me a alterar meus planos para o futuro no sentido de valorizar a atividade
política. Inclinei-me a pensar que ter escrito um livro como Formação Econômica do Brasil,
que poderia ajudar a nova geração a captar a realidade do país e identificar os verdadeiros
problemas deste, representara o melhor emprego do meu tempo. Concluíra-o apontando para
os dois desafios a serem enfrentados no futuro imediato: completar a industrialização e deter o
processo de crescentes disparidades regionais. Como nordestino, cabia-me prioritariamente
dar uma contribuição na segunda dessas frentes de luta. Dessa vez, que eu voltava para o
Brasil com um projeto definido."
A Sudene
Em 1958, o professor Celso Furtado desligou-se definitivamente da CEPAL e retornou ao
Brasil, onde começou a trabalhar no projeto que definira para o país; projeto longamente
estudado, fruto de seus conhecimentos teóricos e de sua militância intelectual, na América
Latina, na Europa, nos Estados Unidos.
No mesmo ano de 1958, ele assumiu uma diretoria do BNDE (Banco Nacional de
Desenvolvimento Econômico). Em seguida, foi nomeado, pelo presidente Juscelino
Kubitschek, interventor no Grupo de Estudos do Desenvolvimento do Nordeste (GTDN).
Elaborou para o governo federal o estudo "Uma política de desenvolvimento para o
Nordeste", que deu origem ao Conselho de Desenvolvimento do Nordeste (CODENO),
constituído por representantes de órgãos do governo federal e pelos governadores de nove
estados do Nordeste. Foi nomeado seu secretário executivo. No dia 15 de dezembro de 1959,
foi aprovada a Lei 3.692 instituindo a Superintendência para o Desenvolvimento do
Nordeste, órgão sediado na cidade do Recife. Celso Furtado foi nomeado superintendente da
Sudene.
Dito dessa forma, parece ter sido um processo tranqüilo, mas as manobras contra a Operação
Nordeste e as tentativas de boicote, não se fizeram esperar. Os interesses da "indústria da
seca" eram grandes demais para que, seus beneficiários, diretos ou indiretos, não se
mobilizassem contra as mudanças no quadro estrutural existente, propostas pelo Dr. Celso
Furtado e sua equipe.
Este trabalho não é fórum adequado para polemizar, como, de resto, eu gostaria. Polemizar.
Enfatizo o verbo, pois longe de mim a idéia de criar questiúnculas paroquiais que não levam a
nada. Mas, confio na versão do professor Celso Furtado, narrada no Tomo II de sua
autobiografia, pois a história mostrou que a situação do Nordeste, depois do Golpe Militar,
piorou muitíssimo, já que, a do Brasil, piorou muito."
Hoje, fala-se em águas, muitas águas, construção de barragens, transposição das águas do rio
São Francisco. Acacianamente falando, a questão da água é vital para o Nordeste, mas ela
pode jorrar aos borbotões, e, não resolverá os problemas crônicos da economia nordestina, se
não ocorrerem mudanças nas estruturas arcaicas existentes na região que, engendram
problemas sociais de dimensões alarmantes e desumanas.
0 professor Celso Furtado, evidentemente, foi o alvo preferencial das "pedradas" atiradas pelo
desespero dos reacionários. Em determinada ocasião pensou que a guerra estava perdida:
"Agora, já não me cumpria senão me afastar discretamente, fazendo votos para que o meu
sucessor mantivesse alta a bandeira que havíamos levantado. Saí em passeio pelo meu sertão
de origem, em plena estação seca, e dei asas à fantasia, antecipando a transfiguração daquelas
terras ásperas mediante a proliferação de oásis onde se repeteria o milagre da multiplicação
dos frutos do trabalho humano. É caminhando à noite, sob céu estrelado que o sertanejo se
deixa arrebatar pelo orgulho de sua terra. Os ventos que prolongam os alísios avançam céleres
pelo horizonte aberto, e o mundo inteiro parece estar ao alcance da vista."
Mas, os setores progressistas da sociedade nordestina, reagiram:
"A notícia logo se difundiu, e a reação foi considerável em várias capitais nordestinas. Pude
constatar, não sem alguma surpresa, que a idéia de que um novo Nordeste começava a ser
construído penetrara no espírito de pessoas dos mais variados segmentos sociais. De todos os
lados, vinham mensagens de encorajamento. Dois dias depois,- surgiu no Ceará um
"manifesto" de apoio à Operação Nordeste, assinado por 28 presidentes de sindicatos de
trabalhadores e dezenas de líderes de classe e estudantis, ao mesmo tempo que se organizava
um ato público com a presença de operários, jangadeiros, estudantes, escritores, jornalistas,
radialistas e o povo em geral, de onde saíram mensagens ao Congresso Nacional. No Recife, o
comércio fechou em sinal de protesto e houve grande aglomeração de gente no centro da
cidade, onde foi improvisado um comício que contou com a presença do governador do
estado. Os estudantes “entraram" o senador Argemiro Figueiredo, e o proclamaram persona
non grata na cidade. De todos os lados, surgiam apelos ao Congresso em favor da instituição
da Sudene.”
A Sudene foi muito mais do que uma "agência administrativa". A partir dela, o Nordeste
emergiu como entidade política. Não foi um projeto improvisado, tirado do bolso do colete de
um burocrata qualquer. No momento mesmo, em que escrevo esta biografia, tenho em mãos,
seu Primeiro Plano Diretor que, analisa e planeja, desde a modificação da estrutura industrial
do Nordeste, à reorganização e reequipamento de indústrias tradicionais, a racionalização do
abastecimento d'águas, passando por investimentos ligados à saúde pública, à educação de
base, etc, etc, etc.
Seria uma omissão, imperdoável, se eu não mencionasse, ainda que, en passant, o Dr.
Clehanto de Paiva Leite, grande economista brasileiro falecido em 1992. 0 Dr. Clehanto de
Paiva Leite foi um incansável batalhador na defesa dos interesses do Brasil (desnecessário
dizer do Nordeste), tanto no exercício de sua profissão quanto nos governos, nos quais,
exerceu influência: Getúlio Vargas (no segundo governo), Juscelino Kubistchek e João
Goulart. Foi grande amigo de Celso Furtado, desde a adolescência, sendo citado várias vezes,
na autobiografia desse último.
Em 1962, no regime parlamentar do presidente João Goulart, Celso Furtado foi nomeado
primeiro titular do Ministério do Planejamento. Elaborou o Plano Trienal, que foi apresentado
à nação por Goulart, por ocasião do plebiscito que, objetivava confirmar o parlamentarismo
ou restabelecer o presidencialismo. No ano de 1963, Celso Furtado deixou o Ministério do
Planejamento e retornou à superintendência da SUDENE.
0 Golpe Militar de 64
Em 04 de abril de 1964, por força do Ato Institucional no 1, teve os seus direitos políticos
cassados por dez anos e, em meados do mesmo mês, partiu do Rio de Janeiro para Santiago
do Chile. Seria o começo do longo exílio ao qual foi submetido pela ditadura militar que se
instaurou no Brasil.
0 Dr. Celso Furtado, que voltara para o Brasil decidido a dar sua contribuição na luta para
enfrentar "os dois desafios no futuro imediato: completar a industrialização e deter o processo
de crescentes disparidades regionais", viu seu projeto desmoronar. Informado do golpe,
juntou-se ao governador Miguel Arraes, no Palácio das Princesas.
Em nota introdutória aos Contos da Vida Expedicionária, o professor Celso anotou:
"A mensagem de um autor assume sua forma mais nítida em seus escritos de caráter
autobiográfico. 0 dito socrático 'Conhece-te a ti mesmo refere-se ao empenho com que cada
um de nós busca desvendar os segredos que ofuscam nossa própria vida. E nada ajuda mais a
autoconhecer-se do que refletir sobre o destino dos seres humanos”
Essas observações valem também, em certa medida, para quem conta a vida de alguém,
especialmente a de um homem como o professor Furtado, cuja presença na história brasileira
recente é tão significativa. Embora, eu tenha vívida a consciência de que, da memória à
história, o caminho é delicado, às vezes ilusório e cheio de nuances, não posso resistir à
tentação de uma confidência furtiva que brotou das minhas próprias lembranças da infância.
Mas, vou barricar-me por detrás do relato do Dr. Assis Lemos, em seu livro, Nordeste: o
Vietnã que não houve.
"Arraes, então, solicitou que nós - estavamos num veículo com placa da Paraíba - déssemos
uma volta em frente aos quartéis de Exército, ou seja, Parque 13 de Maio, Derby, Cinco
Pontas, etc, para verificar se havia qualquer anormalidade Eram 03h30m, do dia 01 de abril.
Fizemos o percurso, e tudo estava normal, sem qualquer movimentação de tropas. Recife
estava absolutamente calma àquela hora. Voltamos ao Palácio e fizemos o relato. Arraes
tentou novo telefonema, sem conseguir: as ligações para o Rio continuavam interrompidas.
Às 0600 horas, saíamos para nova inspeção. Rodamos alguns metros e logo encontramos o
Parque 13 de Maio totalmente tomado por tanques, metralhadoras e centenas de soldados,
ocupando todos os espaços. Voltamos dali mesmo e comunicamos a Arraes que incontinente,
ligou para o general Justino Alves, pedindo informações sobre a movimentação das tropas. A
resposta foi que se tratava de simples manobras de rotina. justino reafirmou, novamente, sua
fidelidade ao Presidente...”
Arraes convocou uma reunião em Palácio para às 0800 horas, com toda as lideranças
sindicais, para transmitir o apelo do General Justino ( o general Justino solicitou ao
governador que este interferisse junto às lideranças sindicais, para que evitassem a greve geral
decretada pela CGT, PUA e Federação Nacional dos Ferroviários). A reunião começou
exatamente na hora marcada às 8h05m, se não me engano, o Prefeito Pelópidas Silveira e
Celso Furtado entraram no recinto avisando que o “Repórter Esso” acabava de anunciar o
apoio de Justino e do IV Exército ao golpe militar.
"Celso Furtado, em declaração ao Jornal 'A União', através do documento "Revolução de 64,
30 anos depois" declara: "À saída dos militares havia grande nervosismo no Palácio, pois
tropas do exército haviam cercado a área enquanto se parlamentava. A certa distância, o
coronel Castilho parou, como para esperá-lo, e disse em voz alta: "Governador: o senhor está
deposto por ordem do IV Exército."
Arraes respondeu: "Deposto, não. Poderei estar preso. Ninguém pode tirar meu mandato que
me outorgou o povo. Considero uma desatenção que me hajam cercado enquanto
conferenciávamos a portas fechadas."
0 coronel, sempre meio desorientado, respondeu: "Não houve cerco, apenas mudança de
guarda. 0 senhor pode retirar-se para sua residência." Arraes disse: "Aqui é minha casa. Só
saio preso."
0 ex-deputado Assis Lemos continua:
"Quando saí do Palácio - eram 08h30m - com Osmar de Aquino, Laurindo e Arroxelas, as
tropas já se postavam na frente, ocupando toda a praça. Vi quando Gregório Bezerra saiu
sozinho, num Jipe, sem ser molestado, e nós atravessaríamos por entre as fileiras das tropas e,
ainda diante do Palácio, trocamos idéias sobre o que fazer.
Fiquei assistindo ao espetáculo de longe. Vi alguns protestos isolados de estudantes e
populares, e fui cortar o cabelo, numa barbearia do centro.
Num choque com militares, morreram dois estudantes: Jonas Albuquerque Barros e Ivan
Rocha Aguiar.
Pensava bastante no que fazer. Como não chegasse a qualquer conclusão, almocei e, em
seguida, tomei o ônibus em busca da casa de Osmar de Aquino. Acolheu-me com o maior
carinho, inclusive sua extraordinária esposa Dona Miríam, seus filhos Laura e Antonio
Eduardo.
Permaneci lá do dia 01 até 06 de abril, quando fui preso por uma patrulha do Exército, em
trajes civis."
No bairro do Espinheiro, no Recife, a rotina de nossa vida familiar não mudou durante os
primeiros dias do golpe. Nós, as crianças, acompanhávamos a situação com a mesma
tranqüilidade tensa que víamos nos adultos. Não havia medo aparente, mesmo na noite em
que levaram Assis Lemos, o clima foi o de controle, embora, meu irmão e eu tenhamos ficado
tristes, pela impotência diante dos “trajes civis" com metralhadoras enormes, por termos de
abandonar nossa casa, nosso pai com destino ignorado.
Se a ditadura militar ensinou alguma coisa aos filhos dos perseguidos, foi que a dignidade é
um valor inestimável do espírito humano, sobretudo, se ela é testada em situações-limite. Na
atual conjuntura política brasileira, tristemente marcada pela curvatura de espinha e pela
venalidade, se perguntássemos como vai a dignidade dos nossos políticos, só teríamos a
responder, numa contornação huxleyana da ignorância: menos na moda do que a arte.
Essa digressão mostra que, se nos amplos processos históricos estruturais, o tempo da longa
duração braudeliana, as interrelações são menos transparentes, no episódico, no tempo-curto,
da dialética da duração de Fernand Braudel, pessoas e fatos se entrelaçam de forma mais
visível.
Vejamos como o Dr. Celso Furtado viveu aqueles primeiros dias de abril de 1964. Após
deixar o Palácio do Governo, o superintendente da SUDENE foi para casa:
"Havia que cuidar do imediato. 0 cachorro, meu companheiro de longas caminhadas nas
areias da praia, dei-o ao filho do vizinho, que a ele se afeiçoara. 0 que havia de utensílios de
copa e cozinha, dei-os à senhora que cuidava da casa. Os livros, Osmário Lacet, meu chefe de
gabinete e amigo de todas as horas, encarregou-se de providenciar seu encaixotamento e
despacho para o Rio de Janeiro. Dois dias depois de meu enclausuramento voluntário, visitoume um dos mais graduados militares - eram vários, quase todos especialistas - que
trabalhavam sob minhas ordens na SUDENE e nas empresas por esta criadas. Mostrou-me
constrangido um papel assinado pelo comandante do IV Exército, incumbindo-o de me
substituir, pequeno fato que vinha me alertar de que já não vivíamos em estado de direito,
instalara-se no país uma ditadura militar. Mas, pelo menos, era alguém que tinha respeito à
obra que havíamos realizado. Prontifiquei-me a ir com ele até a SUDENE para entregar-lhe as
chaves de meu gabinete, o que me permitiu recolher meus papéis pessoais, os quais foram
transportados para minha residência em veículo oficial. Muitos de meus auxiliares mais
diretos haviam buscado refúgio pois a caça às bruxas já se desencadeara.
Despedi-me das pessoas presentes, acompanhado do oficial superior que me substituía e que
se esforçava para dar a impressão de que tudo se passava "entre antigos". Atravessava pela
última vez a porta daquela instituição que surgira e adquirira fama mundial sob minha
direção. Era muito mais do que uma agência administrativa. Graças a ela, emergira o Nordeste
como entidade política. Tudo tivera de ser disputado palmo a palmo. Aquele mesmo edifício
do IAPI, em parte ocupado pelo comando da SUDENE, fora por nós invadido na calada da
noite, forma a que tivemos de apelar para fazer prevalecer decisões superiores contra
manobras da baixa burocracia.
No mundo moderno, o Estado é uma arena onde se confrontam os interesses mais diversos.
As circunstâncias podem favorecer estes ou aqueles grupos, mas nem sempre são alheias à
vontade dos atores, como havíamos comprovado com freqüência. Sem ousar, não se
conhecem os limites do possível, e muita coisa é possível no plano político se o povo não está
privado do direito de organizar-se e de participar da contenda... Nunca me ocorrera pensar que
a Operação Nordeste tivesse um ponto final tão melancólico, com seu comandante saindo
sub-repticiamente, em meio a pessoas que, temendo comprometer-se, evitavam cumprimentálo..."
0 Exílio
Alguns dias depois, o comandante partia:
"Em poucos minutos meu avião decolava rumo ao Pacífico. Sentira certa angústia ao cortar o
ultimo vínculo com o mundo que por tanto tempo dera sentido à minha vida. Dedicara anos a
organizar minha fantasia, na esperança de um dia transforma-la em instrumento de ação a
serviço de meu pobre e desvalido Nordeste. Agora, essa fantasia estava desfeita, desmoronara
como uma estrela que se estilhaça Era como se uma enxurrada tudo houvesse arrastado.
Subitamente, deparei à direita do avião o perfil altaneiro dos picos gelados dos Andes. Deixeime levar pelo deslumbramento. Eram os vastos horizontes do mundo com seu sedutor canto
de sereias. Senti ligeiro calafrio, como se meu adormecido espírito de cavaleiro andante
fizesse sinais de despertar."
Optei por transcrever o belo e comovente relato do professor Celso Furtado quando partia,
com sua fantasia desfeita, mas já antevendo os “os vastos horizontes do mundo” para mostrar
que, além de poeta, ele faz jus à frase célebre de Euclides da Cunha: "0 sertanejo é, antes de
tudo, um forte."
A vida do paraibano Celso Furtado é, efetivamente, um tesouro de fábula.". Escrever sobre
ela, sem infligir o relato linear, é quase irresistível. Por isso, remeto o leitor para à cronologia
da vida e obra do economista, elaborada pela jornalista, tradutora e editora Rosa Freire
d'Aguiar, mulher de Celso Furtado, que integra a reedição ampliada dos três volumes de sua
obra autobiográfica, editada pela editora Paz e Terra e, que, também encontra-se disponível na
edição especial do Correio das Artes, suplemento de "A União", de 31 de outubro de 1997. A
cronologia mencionada, aliás me foi extremamente útil na elaboração desta biografia.
Os Anos 30 na Paraíba
Isto posto, voltemos para os anos 30, para a cidade da Paraíba, que logo passaria a chamar-se
João Pessoa. Celso Furtado recorda-se do surgimento de João Pessoa no cenário político da
Paraíba:
"Quando eu tinha oito anos, surgiu um chefe político no estado (já minha família se trasladara
para a capital), que convulsionou profundamente a vida de toda a comunidade. No espírito da
população, esse político - João Pessoa fundia as imagens do chefie e do milagreiro. Dirigindose ao povo como se fora seu protetor e passando por cima de todos os formalismos legais,
conseguiu ele mobilizar a população de forma só comparável aos movimentos religiosos. Eu
ouvia crédulo, das domésticas de minha casa, as histórias desse homem que se disfarçava
"numa pessoa qualquer" para praticar o bem nos bairros mais humildes. 0 assassínio brutal
desse homem (exatamente no dia em que eu completava os meus dez anos) provocou uma tal
angústia coletiva que ainda hoje não posso me recordar sem me emocionar. Diversas vezes
acompanhei aquelas domésticas em longas procissões pelas ruas da cidade, seguindo um
andor sobre o qual ia uma fotografia de João Pessoa de corpo inteiro. Creio que no espírito do
povo havia mais tristeza do que revolta. A perplexidade diante de forças que pairam por cima
de tudo e uma resignação que raia pelo masoquismo e se traduz na frase "alegria de pobre não
pode durar'' foram as impressões mais fortes que me ficaram das conversas que ouvia ao
acompanhar essas procissões."
Ainda no ginásio, Celso Furtado já estava influenciado intelectualmente por três correntes de
pensamento: a positivista, a marxista e a teoria antropológica da cultura, elaborada pela
ciência social norte-americana.
"Com estas três perspectivas, o positivismo, o marxismo mannheiniano e a sociologia
americana, eu estava preparado para enfrentar qualquer coisa. Tudo isso acontece quando eu
ainda estava no Ginásio. Ai, passei' a organizar seminários e debates, li livros estrangeiros e
abri as portas. Tive a fortuna de que tudo isso aconteceu antes de 1937 porque, com a ditadura
Vargas, o Brasil se fechou, passou a haver policiamento do que se lia, restrições à liberdade
de imprensa, etc. 0 período que vai de 1930 a 1937, quando ingressei no mundo como pessoa
pensante, foi extraordinariamente rico no Brasil porque o país reencontrou-se com seus
problemas."
0 Cavaleiro Andante
Aos dezenove anos, Celso Furtado foi embora da Paraíba, foi morar no Rio de Janeiro. Mas, a
infância e parte da juventude passadas entre Pombal e a capital do estado, formaram no seu
espírito certos elementos que ele considera como invariantes, "dos quais dificilmente eu
poderia libertar-me sem correr o risco de desestruturar minha própria personalidade."
Esses elementos, que o professor Celso chama de idéias-força, são três:
"A primeira idéia é a de que a arbitrariedade e a violência tendem a dominar no mundo dos
homens. A segunda é a de que a luta contra esse estado de coisas exige mais que simples
esquemas racionais. A terceira é a de que essa luta é como um rio que passa: traz sempre
aguas novas, ninguém a ganha propriamente e nenhuma derrota é definitiva."
Pelo que vimos acompanhando da trajetória do professor Furtado, não é difícil compreender a
gênese das três idéias-força que se formaram no seu espírito. A primeira, é, sem dúvida, fruto
de suas experiências na infância. A segunda nos evoca o episódio da morte de João Pessoa, "a
perplexidade diante de forças que pairam por cima de tudo" "este estado de coisas exige mais
que simples esquemas racionais"... Decerto, muitos outros episódios contribuíram para essas
constatações que aliás, são um filão que venho garimpando nas obras do Dr. Celso, sobretudo,
em sua autobiografia intelectual, uma vez que, constituem um material precioso para a
história das mentalidades, abordadas avant la lettre.
A terceira idéia-força, não demanda qualquer comentário, está na essência da própria atuação
do professor Celso Furtado.
Ouso pensar que Celso Furtado, embora muito jovem, já saiu da Paraíba "pronto" a lapidação,
como é natural, foi se fazendo no processo de sua vida. Guimarães Rosa traduzirá melhor o
que quero dizer: "0 Senhor... Mire veja: o mais importante e bonito do inundo, é isto: que as
pessoas não estão sempre iguais, ainda não foram terminadas - mas que elas vão sempre
mudando. - Afinam ou desafinam "
0 professor Celso Furtado, às vésperas de completar 80 anos, continua "afinando"
Mas, vamos "visitá-lo" ainda aos vinte anos, já morando no Rio de Janeiro.
"No Rio de Janeiro fizera meus primeiros estudos universitários e aí tinha o meu melhor
círculo de amigos. Criara raízes na cidade, quando ainda se habitava nos bairros centrais.
Vivera na Lapa e na Glória, naquelas pensões de estudantes, onde dividíamos um quarto entre
dois. A exigüidade de espaço deslocava a vida social para os cafés, onde ficávamos a discutir
noite adentro. Então, eu fazia algum jornalismo e era ligado, como amador, ao meio musical...
Viver no centro do Rio de janeiro, nessa época, significava poder ir a pé aos concertos, não
perder as raras exposições de pintura, aproveitar algum conferencista de passagem, conversar
com os amigos nas praças e nos cafés...''-'''
Aos vinte anos, ele ingressou na Faculdade Nacional de Direito, e começou a trabalhar como
jornalista na Revista da Semana. Posteriormente, o Dr. Furtado colaborou, com reportagens e
artigos, no Panfleto, no Observador Econômico e Financeiro, na revista Conjuntura
Econômica (quando em agosto de 1948, juntou-se ao quadro de economistas da Fundação
Getúlio Vargas), criou em 1954, também no Rido de Janeiro, com um grupo de amigos, o
Clube dos Economistas que, lançou a revista Econômica Brasileira, para citar algumas
publicações, nas quais exerceu o jornalismo,
Em 1943, ainda estudante de Direito, foi aprovado no concurso do DASP para Assistente de
Organização, e no de Técnico de Administração do Departamento do Serviço Público do
Estado do Rio de Janeiro. Em 1944, cursou o CPOR (Corpo de Preparação de Oficiais da
Reserva) e, em novembro do mesmo ano, concluiu o curso da Faculdade de Direito.
Os Vastos Horizontes do Mundo
Após a conclusão do curso de Direito, o "espírito de cavaleiro andante" do professor Celso
Furtado parece ter sido definitivamente despertado. Foi convocado para a Força
Expedicionária Brasileira e, em janeiro de 1945, embarcou para a Itália como aspirante a
oficial da FEB. Em agosto do mesmo ano, retornou
ao Brasil, depois de ter sofrido um acidente em missão, na ofensiva final dos aliados, no
Norte da Itália, e, de ter sido tratado num hospital norte-americano para onde foi recolhido.
Em 1946, publicou, por conta própria, seu primeiro livro: Contos da Vida Expedicionária, À
guisa de prefácio, o professor Celso Furtado, nos adverte:
"Os fatos narrados nestes contos são substancialmente verdadeiros. Mas, porque são traços
gerais, não pertencem a ninguém, Muitos nos encontraremos aí, entretanto, não nos faltará a
certeza de que as experiências gerais couberam a todos nós""
No entanto, os contos foram escritos na primeira pessoa, e, são "substancialmente
verdadeiros". Embora, efetivamente, muitos se encontrem ali, eles relatam experiências
pessoais. Se, o Dr. Ronald de Queiroz, fazendo uma referência à obra científica do professor
Furtado, anotou a “elegância, o bom gosto na expressão, o bom gosto sóbrio que às vezes
resvala para um leve toque na sensibilidade e na emoção", o que dizer, então, dos Contos da
Vida Expedicionária?
Numa entrevista, elaborada com vistas à minha tese de doutorado, amolei o professor
Furtado: "Escrevendo extraordinariamente bem como o faz não tem projeto de publicar um
romance à maneira de J. K. Galbraith ?" A resposta:
- "... Meus primeiros escritos foram literários e de ficção, Mas não se pode fazer tudo...
Desculpo-me dizendo que só escrevo quando tenho algo significativo a dizer."
Embora, o Dr. Celso diga que:
"Eles (os contos) refletem o deslumbramento de um jovem saído do interior do Nordeste
brasileiro face à riqueza de uma velha civilização que parece desmoronar”
os Contos da Vida Expedicionária, são verdadeiramente deliciosos; lendo-os passamos da
emoção mais pura ao incontido, sem falar das impressões, das observações veladoras de uma
perspicácia aguda, de uma acuidade rara numa pessoa tão jovem.
Para aguçar a curiosidade do leitor desta biografia citarei, por alto, alguns fragmentos desses
contos:
... "Eu senti, subitamente, olhando aquele horizonte escuro uma saudade atroz do meu tempo
de criança, da minha caminhada desconchavada e da voz suave da minha avó que me contava
histórias do outro mundo... 0 silêncio voltou. E, como por magia, eu me senti criança ouvindo
uma história da minha avó com o coração opresso pela mais pungente emoção. Eu tinha
vontade de dizer a minha avó que daria a vida para que a princesinha não sofresse mais. Mas
guardava os meus soluços para mim só, quando a luz se apagasse e o vento solto rugisse de
encontro à janela."
A princesinha em questão, era uma menina de seis anos, cujos pais morreram no bombardeio
de Pisa, e era chamada Velhinha, pois o medo fez com que os seus cabelos ficassem
completamente brancos.
Quem poderia, por exemplo, imaginar o "Celso tão cara-fechada", no seguinte episódio:
..."Um dia em que apareci no hotel triunfante, com uma garrafa de cachaça nas mãos e, na
outra, uma de laranjinha, Cláudio exclamou. Vamos fazer uma festança com os americanos.
Se você me permite organizo um grupo cosmopolita, lá no bar, e vaí ser divertido e curioso...
As apresentações foram ligeiras: dois oficiais americanos, um oficial inglês da Rodésia, dois
príncipes da Abissínia. Em quarenta minutos, a aguardente havia transtornado todas as
cabeças: eu fiz uma demonstração de coreografia negra brasileira, dançando alguns passos de
maracatu e gritando bum-bum; um dos príncipes abissínios concedeu uma entrevista creio
arrojada - a um jornalista inglês que se abeirava da garrafa mágica”
Ou ainda:
... "Às nove horas da manhã reunimo-nos na Marina Grande para um passeio à Gruta Azul.
Encontrei' o Cláudio - com uma senhora - digo senhora porque era mulher que havia muito
transpusera o promontório dos trinta ... e que ele nos apresentou com tanta graça de salão logo
percebi - era uma judia dinamarquesa que vivia com um escritor russo de quem eu nunca
ouvira falar. Uma dessas criaturas insuportáveis - para mim - criadas no meio cosmopolita de
Genebra, desleixamente vestidas num magasin de Paris, com um curso de arte em Florença.
Eu não conseguia compreender como o meu amigo ia levar pessoa tão exótica para passeio
tão lírico. Abracei num sentimento de conforto a minha Mimi, e dispus-me a contemplar a
paisagem.”
0 Professor Eugênio Gudin disse a respeito de Celso Furtado: "Celso tem demasiada
imaginação para ser um economista." Nosso economista maior considerou que "Foi o maior
elogio que já me fizeram porque a imaginação é a qualidade mais rara. A criatividade pura se
manifesta na imaginação. O importante é discipliná-la, canalizá-la e usá-la bem. Eu encontrei
uma maneira de canalizar minha imaginação de forma frutífera e construtiva na economia, na
análise social.”
A sensibilidade do Professor Celso Furtado, é perceptível, entre outras coisas, pelo seu
interesse pelas paisagens. Nos contos, as descrições são belíssimas, diria mesmo, poéticas:
``A famosa estrada traçada pelos romanos banha a costa, por toda a Riviera italiana, ora
subindo centenas de metros, ora formando um dente no rochedo ora descendo ao nível da
praia. 0 Mediterrâneo é azul na faixa litorânea e acinzenta num horizonte raso. As pequenas
incrustadas na pedra e nos fundos dos vales exibem os seus telheiros seculares numa ausência,
à distância, de toda vida humana, constituem um quadro bucólico."
"A costa capresa é umi poema visita, uma festa de colorido. A muralha de rocha, fendida de
grutas de todos os formatos, recebe o beijo braco das águas azuis e mostra aqui uma fortaleza
moura, ali esconde um castelo romano lá descobre a mansão de marfim de um poeta
moderno."
"Ali sentado, junto àquela mesa de pedra de um so lance de vista eu descortinava o Vesúvio e
o velho palácio de Tibério, separados pela baía de Nápoles. E, à minha frente, como se me
guiasse e inspirasse, uma esfinge de pedra debruçava o olhar no infinito. 0 instante mágico
dessa revelação me aguçou de tal maneira a sensibilidade que, por um instante, julguei estar
de posse de todas os segredos da alma humana”
A CEPAL
Mas, não apenas nos contos encontramos essa percepção da natureza, que em nada sugerem
"deslumbramento de um jovem saído do interior do Nordeste brasileiro face à riqueza de uma
velha civilização". já no "promontório dos trinta" trabalhando na CEPAL, viajando para a
Conferência de Montevidéu, não perde a ocasião de olhar-sentir o ambiente natural:
"Vieram-me ao espírito as emoções da travessia dos Andes em avião monomotor, que nos
pinta com força Saint-Exitpéry em Terra dos homens. A imensidão dos blocos de montanha
que eu deixava para trás e a profundidade que ganhava a vista na transparência do ar davamme a sensação de navegar com o planeta pelo espaço. Respirava exausto mas abria os olhos
maravilhado. Tudo parecia ser espaço, no tempo imóvel.”
Na bagagem e na cabeça, o professor Celso levava o "notável Estudo de 1949, cujos cinco
primeiros capítulos foram redigidos por Prebisch (Raúl), e que seria apresentado à conferência
de Montevidéu em maio de 1950."
Em fevereiro de 1949, Celso Furtado mudou-se para Santiago do Chile para trabalhar na
Comissão Econômica para a América Latina (CEPAL), órgão das Nações Unidas, que se
transformará na única escola de pensamento econômico surgida no Terceiro Mundo até
hoje." Quando o Dr. Furtado foi integrar seus quadros, a CEPAL, havia sido recém-criada, e
ali, ele dedicou-se a pesquisas e elaboração dos seus primeiros escritos de economia.
0 ano de 1949, também foi importante para o Dr. Celso Furtado, por outra razão: ele e sua
primeira mulher, a física Lúcia Tosi, tiveram o primeiro filho, Mário.
Em 1950, Raúl Prebisch assumiu a secretaria executiva da CEPAL e Celso Furtado foi
nomeado diretor da Divisão de Desenvolvimento. 0 professor Celso Furtado permaneceu na
CEPAL de 1949 até 1957. Foi um período de produção e atividades intensas. Foi encarregado
de missões em diversos países latino-americanos: Argentina, México, Venezuela, Equador,
Peru e Costa Rica.
Em março de 1950, seu primeiro ensaio de análise econômica, "Características gerais da
economia brasileira", foi publicado pela Revista Brasileira de Economia, da Fundação Getúlio
Vargas.
0 professor Furtado passou o ano de 1951, visitando universidades dos Estados Unidos, "para
informar-se sobre o debate, que então se inicia, em torno dos aspectos teóricos do
desenvolvimento."
Em 1952, publicou na Revista Brasileira de Economia, seu artigo "Formação de Capital e
Desenvolvimento Econômico", que, teria circulação internacional, uma vez que, foi traduzido
para o International Economic Papers, órgão da Associação Internacional de Economia.
Em 1953, num período importante da vida brasileira, instalou-se no Rio de Janeiro para
presidir o Grupo Misto CEPAL-BNDE:
"Em começos de 1953, quando de novo fixei-me no Rio de janeiro, o debate ideológico
desbordara de todos os lados. A discussão em torno da política do petróleo polarizava as
opiniões. 0 Partido Comunista, desesperançado de retornar à legalidade - o que aparentemente
esperara fazer com o retorno de Vargas - deslizara para extremo radicalismo, que extravasava
verbalmente na campanha popular de "0 petróleo é nosso." Mas a coisa não ficava na
estridêncía da campanha de rua. Havia certa consciência de que o país se encaminhava para
decisões importantes, o que levam uns a cerrar fileiras e outros a tentar ocupar posições de
força."
0 Grupo Misto foi formado por economistas da CEPAL e do BNDE, e elaborou um estudo
sobre a economia brasileira, enfatizando sobretudo, as técnicas de planejamento. 0 relatório
final foi editado em 1955, e será a base do Plano de Metas do governo de Juscelino
Kubistchek.
1954 foi um ano significativo para o professor Celso Furtado: nasceu seu segundo filho,
André, e seu primeiro livro de economia foi publicado, sob o título A Economia Brasileira:
"Utilizei o título de A Economia Brasileira para que não houvesse dúvida de que minha
preocupação central era aprofundar o conhecimento da problemática de meu país. Santa Rosa,
pintor paraibano, prontificou-se a desenhar a capa.”
Em outubro de 1953, o professor Furtado retornou a Santiago, à sede da CEPAL, mas, em
janeiro de 1956, mudou-se para a Cidade do México, pois havia sido incumbido de dirigir um
estudo sobre a economia mexicana. No mesmo ano, foi publicado no Brasil, seu livro Uma
Economia Dependente, o segundo de uma série que excede trinta. já mencionamos que, no
ano de 1957, Celso Furtado afastou-se da CEPAL, com uma licença sem vencimentos, para
fazer estudos de pós-graduação na Inglaterra. Antes de viajar, porém, proferiu no Rio de
janeiro, no Instituto Superior de Estudos Brasileiros, ISEB, dez conferências reunidas em
livro, em 1958, sob o título Perspectivas da Economia Brasileira.”
Celso Furtado Hoje
Urge que avancemos no tempo. Os limites deste trabalho, não permitem que eu me detenha,
mais demoradamente, em certos momentos da atuação do intelectual público Celso Furtado.
Nos anos setenta, oitenta e noventa, do século que finda, as atividades do professor Celso
foram intensas.
Transcreverei a cronologia desses trinta anos, realizada pela jornalista Rosa Freíre d'Aguiar,
para não cair na tentação de fazer comentários e, extrapolar o formato da coletânea de A
União, contrariando o Dr. Nelson Coelho.
1970 - No correr do decênio que se inicia, faz viagens a vários países da África, Ásia e
América Latina, em missão de agências das Nações Unidas.
1972 - Passa um semestre como professor na American University, em Washinton D.C..
1973 - Setembro: inicia seu ano letivo como professor da Universidade de Cambridge,
Inglaterra, ocupando a cátedra Simon Bolívar. É nomeado Fellow do King's College.
1976 - Passa um semestre como professor na American University, em Nova York.
1977 - Dirige um seminário sobre Problemas Brasileiros na Universidade Católica de São
Paulo,
1978 - Integra o Conselho Acadêmico da Universidade das Nações Unidas, sediada em
Tóquio, fazendo por três anos uma série de viagens ao Japão.
1979 - Após a anistia, retorna com freqüência ao Brasil, reinserindo-se na vida política. Filiase ao PMDB, como membro do diretório nacional. Casa-se com a jornalista Rosa Freire
d'Aguiar.
1982 - Como diretor de pesquisas da Escola de Altos Estudos em Ciências Sociais, dirige em
Paris, durante três anos letivos, seminários sobre a economia brasileira e internacional.
1985 - janeiro: é convidado pelo recém-eleito presidente Tancredo Neves para participar da
Comissão do Plano de Ação do Governo (COPAG).
Agosto: é designado embaixador do Brasil junto à Comunidade Econômica Européia, em
Bruxelas, assumindo o posto em outubro. Integra a Comissão de Estudos Constitucionais,
presidida por Afonso Arinos, para elaborar um projeto de nova Constituição.
1986 - Março: é nomeado pelo presidente José Sarney para o cargo de Ministro da Cultura,
sendo o responsável pelo primeiro projeto de Lei de Incentivos Fiscais à Cultura.
1987 - Integra a South Commission, criada e presidida pelo presidente Julius Nyerere, e
formada exclusivamente por países do Terceiro Mundo para formular uma política para o Sul.
1993 - Nomeado membro da Comissão Mundial para a Cultura e o Desenvolvimento, da
ONU/ UNESCO, presidida por Javier Pérez de Cuéllar, cujo relatório é apresentado em 1995.
1996 - Integra a Comissão Internacional de Bioética da UNESCO.
1997 - Fevereiro: é criado pela Academia de Ciências do Terceiro Mundo, com sede em
Triete, o Prêmio Celso Furtado, a ser conferido a cada dois anos ao melhor trabalho de um
cientista do Terceiro Mundo no campo da economia política.
Agosto : é eleito para a Academia Brasileira de Lêtras.
Conclusão
..."De diversas maneiras, podemos influenciar a realidade social em que estamos inseridos. A
forma como atua o trabalhador intelectual é das menos espetaculares, o que não impede que,
por vezes, seja das mais eficazes. Todos reconhecemos que somos tributários de algum
homem ou mulher de pensamento, em quem nos inspiramos para enfrentar eficazmente
situações complexas. Certo: a influência intelectual que recebemos também pode ser
negativa. Em todo caso, nos períodos em que a história parece acelerar-se, as controvérsias
doutrinárias se acirram, aumentando a responsabilidade das pessoas que exercem influência
intelectual e moral. Com o avanço da globalização da informação, cresce o poder das modas
doutrinárias o que se traduz em maior influência das pessoas que constituem esse grupo social
particular que é identificado como intelligentzia, o qual em certas circunstâncias atua como
consciência crítica da sociedade.
Não é fácil, e particularmente, não é cômodo pensar fora das correntes em voga. Galileu não
foi o único a pagar alto preço por esse atrevimento, 0 tipo de repressão mais corrente é o
ostracismo. Ora, é o pensamento a contracorrente que estimula a consciência crítica e amplia
a percepção das contradições latentes na tessitura social.
0 declínio da contestação lúcida e a submissão às correntes de pensamento na moda inibem e
anulam a criatividade cultural.
... Meu trabalho de teorização teve como ponto de partida um desacordo com essa visão
convencional de nossa realidade econômica. Abandonando os esteriotipos das doutrinas
importadas e procedendo a uma leitura atenta dos dados disponíveis - dados quase sempre
rejeitados por pruridos acadêmicos - fiz sem dificuldades constatações surpreendentes.
A satisfação que me trouxe ouvir as palavras generosas aqui pronunciadas em torno de minha
contribuição intelectual, eu não seria capaz de expressá-la com palavras Fa-lo-ei
comprometendo-me a persistir nos meus esforços de criar os instrumentos que ajudarão a
superar o subdesenvolvimento, quiçá o maior dos desafios que enfrentarão os homens nos
séculos vindouros.” Trata-se de um trecho do discurso do professor Celso Furtado, na ocasião
em que recebeu o título de Doutor Honoris Causa da Universidade Federal da Paraíba.
Temos visto, que o Dr. Celso vem cumprido a promessa, continua escrevendo, publicando
livros, nos ensinando a compreender a situação econômico-social, do Brasil e do mundo.
Evidentemente, o professor Celso Furtado, cometeu erros, como todo mundo, mais os acertos
têm sido incomensuravelmente maiores.
Concluo este trabalho, parafraseando João Pinheiro Neto:
"Ave Celso"