OUTRAS PAIXÕES 1

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OUTRAS PAIXÕES 1
OUTRAS PAIXÕES
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OUTRAS PAIXÕES
Editores: Christian von Koenig e Ismael A. Schonhorst
Capa e Diagramação: Fabiano R. de Sousa
Revisão: Christian von Koenig
Foto da capa: Dolla Photo Club
Autor ­ fiore26
br.dollarphotoclub.com/stock­photo/macchina da scrivere/68022914
Conselho Administrativo:
Christian von Koenig
Ismael A. Schonhorst
Fabiano R. de Sousa
Pedro Jung Tavares
Apoio
editorananquim.com.br
Site do projeto:
paixoesclandestinas.com
Todos os direitos reservados. Proibida a reprodução de qualquer parte desse livro por
meios físicos ou digitais, sem permissão escrita.
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OUTRAS PAIXÕES
Projeto
PAIXÕES CLANDESTINAS
OUTRAS PAIXÕES
HISTÓRIAS SELECIONADAS
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OUTRAS PAIXÕES
Não aprendi muito nesta vida, mas carrego pelo
menos uma valiosa lição: todos temos uma história para
contar e cada um sabe o drama pelo que passou ou por
qual ainda passa. Eu contei a história de meu amor e de
minhas viagens no romance Paixões Clandestinas e aqui,
novamente ao lado da Editora Nanquim, tenho um
grande orgulho e muita comoção ao apresentar estas
Outras Paixões.
São narrativas igualmente emocionantes de amor e de
paixão, sejam elas fiéis à realidade ou fictícias, mas nem
por isso menos verdadeiras para quem as sente. Neste e­
book nossos prezados leitores encontrarão as 50 histórias
selecionadas pelo público do Projeto Paixões Clandestinas:
Outras Paixões, inscritas por autores e autoras das mais
variadas regiões do Brasil e até d'além mar. Os contos
refletem as mais variadas facetas do tema, segundo a
percepção única de cada um.
Também encontram­se aqui diversos relatos que eu
mesmo tive o prazer de reunir em outras viagens, à
procura dessas outras paixões. São confissões de
felicidade, de tristeza, de saudade... englobando nesta
pequena coletânea a profundidade do drama humano.
Eu e a Editora Nanquim desejamos a todos uma ótima
e apaixonada leitura!
Com carinho,
Christian von Koenig.
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OUTRAS PAIXÕES
Projeto
PAIXÕES CLANDESTINAS
OUTRAS PAIXÕES
A história de Mercedes
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OUTRAS PAIXÕES
Eu sou de José Bonifácio, lá no estado de São Paulo,
pra lá de Rio Preto. O meu pai era o que mais tinha
(gesto de dinheiro). Tinha muitas fazendas, muito gado, e
comprou um sobradão que era o cartão­postal da cidade.
Fui para lá com seis anos. Crescemos lá, estudamos
lá, casamos lá. Casei com ele (Otoniel) contra a vontade.
De tanto ele amolar, meu pai enfezou e foi marcar o
casamento.
Ah, foi muito triste, viu... Não gostava dele, não
queria casar com ele. Daí quem eu gostava mesmo
(Vitório), ficou.
Desde o dia que Otoniel me viu ele não sossegou
mais. Falou que se eu não casasse com ele ele ia me
matar e se matar, aí minha mãe e meu pai ficaram com
medo e fizeram o casamento. Meu Deus do céu...
Eu e minha irmã fomos ao cartório para assinar os
papéis, porque no dia do casamento ia ser um rebuliço
danado. Aí Vitório estava esperando eu passar. Coitado;
amarelo, chorando.
“Mercedes, você não casa, Mercedes... Fala na hora
que não quer casar com ele, que você não casa. Meu pai
vai adiantar a minha idade mais um ano pra nós
casarmos logo.”
A família dele gostava de mim. Eu chegava na casa
dele – eu tinha 14 anos, ele tinha 14 também – e iam tirar
porcelana do fundo do baú para servir para mim.
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OUTRAS PAIXÕES
Ele chorava, eu chorava. Parecia que eu estava
hipnotizada, sabe? Todo mundo falava: “Mercedes,
quando a pessoa vai casar fica tão alegre, mas você está
tão triste”. Aí eu falava: “Ah, vocês não sabem o que está
aqui dentro (aponta para o coração)”.
Depois que eu casei nós tínhamos um alambique de
pinga na entrada da cidade e eu fui morar lá nesse
alambique. Ali era a estrada do Vitório passar. Ele
passava olhando, olhando, olhando lá para a minha casa.
Às vezes eu estava no quintal e me recolhia ligeiro e
ficava olhando pela gretinha da janela até ele sumir.
Otoniel foi caprichoso, não digo que não, mas foi
ciumento que queria me pôr dentro de um baú e fechar.
Eu não podia olhar uma coisa que ele já queria ver o que
era. Nunca tocou no nome do Vitório, nunca.
Quando ele queria me namorar e eu não queria, os
dois ficavam bebendo e quebrando as coisas no
restaurante, brigando lá. Quebravam tudo e depois iam
pagar. Eu lá no sobradão dormindo nem sonhava, só
ouvia o boato que saía.
A minha mãe falava: “Nenê, ele é um moço bom de
família”.
Aí eu: “Mas eu não gosto nem de olhar pra cara desse
moço”.
“Olha, se você não casar com o Otoniel, com o
Vitório você não casa, não.”
“Por quê? Eu vou casar com quem eu gosto, não vou
casar para fazer boniteza para ninguém”, mas a mãe não
queria, aí Otoniel criou asa mais ainda.
Hoje eu estou com 91 anos. Faz vinte e seis anos que
fiquei viúva.
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OUTRAS PAIXÕES
A minha filha passou uma internet para
Fernandópolis, para saber do Vitório. Eu falei assim: “Eu
estou viúva, se ele estiver viúvo nós podemos contrair
um casamento bonito”. Mas aí o homem do cartório
falou assim: “O Seu Vitório morreu, ele morreu novinho
com quarenta a cinco anos, em 69”.
Infelizmente não deu certo. Até hoje eu penso nele; do
outro nem lembro.
Quando não tem que dar certo, não dá. Eu passei uma
vida de tristeza, mas criei meus filhos todos sadios, todos
estudaram, quatro filhos homens e cinco filhas mulher. É
tudo isso a minha vida.
Relato dela.
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Projeto
PAIXÕES CLANDESTINAS
OUTRAS PAIXÕES
Além das palavras
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OUTRAS PAIXÕES
Ou: A tampa da panela dele
Dentre os quase dez milhões de passageiros
transportados nos ônibus da cidade de São Paulo todos
os dias, você vê operários, playboys, manos, minas,
pretos, brancos, loiros ou morenos, albinos, afro­albinos,
moicanos, carecas, médicas, enfermeiros, engenheiros,
domadores de leão, adestradores de poodles, professores
de etiqueta, noivos tirando fotos para o casamento, casais
terminando relacionamentos, pessoas narrando
acontecimentos íntimos no telefone celular, entregadores
de flores, vendedores de planos funerários, garis, pessoas
jogando papel no chão, colando chiclete no teto e
passando meleca no vidro, deficientes físicos e mentais
de toda sorte, vendedores de bala, de caneta, de
brinquedo, de pamonha, de peixe e de mãe, domésticas
reclamando das patroas, patroas reclamando das
domésticas, pessoas carregando baldes, melancias,
micro­ondas e pintinhos tingidos de rosa choque,
adolescentes falando em dialeto próprio e ouvindo, em
volume máximo, as últimas novidades do funk carioca e
do sertanejo universitário. Recordo­me de ter lido em
algum lugar que um tubarão morto foi encontrado no
metrô de Nova York. Uma descoberta desse tipo, em
algum ônibus paulista, não me surpreenderia – se fosse
um jacaré gigante, turquesa, com bolinhas laranjas e sete
patas, saído das águas do Rio Pinheiros, o fato talvez
merecesse alguma atenção.
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OUTRAS PAIXÕES
No meio desse caos, conheci um passageiro que em
nada contribuía para toda essa confusão e sonoridade.
Ainda assim, ele foi o personagem da história mais
inusitada já presenciada por mim em um coletivo. Passo
a dividi­la com você.
…
– Bom dia, Seu Rolando!
Não faço ideia de como Seu Xerxes, o velho cobrador,
sabia o nome dele, se é que realmente sabia. É possível
que tenha inventado. Afinal, em três anos de viagens
naquele ônibus, que saía do Terminal Grajaú em direção
à Praça da Sé, eu nunca ouvi a voz daquele passageiro.
Jamais o vi retribuir o cumprimento de Seu Xerxes.
Soltava somente um murmúrio, que poderia significar
tanto um “Bom dia” quanto um “Me deixa em paz”. O
cobrador devia acreditar na primeira hipótese, pois nunca
deixou de cumprimentá­lo e sorrir.
O nome, verdadeiro ou não, combinava com nosso
herói. Era tão antiquado quanto ele. Observando
atentamente Seu Rolando, acredito que ele devia ter uns
quarenta e cinco anos, mas aparentava muito mais,
graças à expressão severa e aos trajes um tanto
anacrônicos e desalinhados. Blusa social sintética,
gravata descombinada, sapato social descascado, óculos
de lentes grossas. Sempre carregava algum livro antigo,
grande, que na maioria das casas só serviria para escorar
pé de mesa ou exibir para as visitas. Imaginava que fosse
bibliotecário, escriturário, algum operário das letras e do
passado, desprendido do mundo das aparências.
Passada a catraca, Seu Rolando dirigia­se ao banco
dele. Sim, dele. Dia após dia, ele se sentava no mesmo
lugar, uma poltrona individual, próxima à porta do meio.
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OUTRAS PAIXÕES
O ônibus não ficava muito cheio naquele horário, perto
do almoço, e os passageiros eram basicamente os
mesmos. A convivência diária e a sisudez de Seu
Rolando serviam como título de propriedade.
Ele passava a viagem inteira lendo, imune às
conversas e ao mundo ao seu redor. A impressão que
transmitia era a de que nada que pudesse acontecer seria
mais importante que o seu livro ou mais interessante que
a sua própria vida.
Nós descíamos juntos no ponto final. Eu partia para a
São Francisco e ele tomava o rumo oposto. Nunca
esbarrei nele nos arredores, nem peguei com ele o ônibus
da volta. Eu gostava de imaginar, às sextas­feiras, que o
encontraria tomando cerveja em um dos vários botecos
da região, aproveitando o happy hour e ouvindo um
pagodinho. A ideia sempre me fazia sorrir.
Tudo começou a mudar numa segunda­feira
ensolarada de novembro.
Naquele dia, entrei no ônibus, sonolento, passei meu
bilhete no leitor e me sentei. Estava olhando para o nada
quando Seu Rolando entrou, se dirigiu à roleta e parou
subitamente. Só então notei que Seu Xerxes não estava
lá. Seu lugar era ocupado por um jovem com dreadlocks
e fones de ouvido enormes, de cor verde­limão. Seu
Rolando ainda hesitou um pouco, mas passou o bilhete e
tomou o rumo de praxe. Sentado, deu mais uma olhada
para o cobrador e, em seguida, abriu seu livro do dia. O
ônibus partiu.
Alguns pontos depois, Eliane, uma senhorinha
simpática e escandalosa, já velha conhecida de todos,
entrou no veículo.
­ Uai, minha gente! Cadê o Seu Xerxes?
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OUTRAS PAIXÕES
O jovem cobrador não lhe deu atenção. Foi o
motorista quem respondeu:
– Seu Xerxes teve um derrame na madrugada de
sábado para domingo. A neta dele passou ontem na
garagem para avisar o pessoal. Está no hospital. A
família acha que ele não volta a trabalhar. O rapazinho
simpático aí é só um quebra­galho. Amanhã deve vir um
cobrador novo.
Todos permaneceram em silêncio. Xerxes era como
uma instituição local. Não havia quem não gostasse do
velhinho doce e trabalhador – salvo, possivelmente, o
Seu Rolando, que não emitia juízo de opinião, nem
deixava escapar qualquer expressão que nos permitisse
imaginar o que pensava.
No dia seguinte, realmente havia um novo cobrador,
ou melhor, uma nova cobradora. Usava crachá. Eu nunca
tinha visto cobradores usando crachá antes. Seu nome
era Maria. Cumprimentei­a, e ela respondeu com um
belo sorriso, que me impeliu a sorrir de volta. Gostei dela
de imediato. Na casa dos quarenta anos, tinha cabelos
castanho­claros, na altura dos ombros, era magra e um
pouco baixinha. Uma mulher bonita.
Pouco depois, Seu Rolando entrou no ônibus e
dirigiu­se à catraca. Tirou o bilhete do bolso e, quando ia
passá­lo no leitor, avistou a nova cobradora. Congelou
por alguns segundos, após os quais enrubesceu. Maria
lançou­lhe um olhar intrigado, seguido de um sorriso
tímido. Seu Rolando deu um suspiro, abaixou a cabeça e
passou o bilhete no leitor, bem rápido. Ato contínuo,
fugiu para o banco dele. Durante a viagem, abriu e
fechou seu livro várias vezes, mas não conseguiu
completar a leitura. Olhava de soslaio a nova cobradora,
visivelmente incomodado. Quando chegamos ao ponto
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OUTRAS PAIXÕES
final, ele desceu muito mais depressa que o habitual.
Na quarta­feira, Seu Rolando não apareceu.
Na quinta, ele retornou, e daí pra frente as mudanças
foram cada vez mais intensas. Trajava calças jeans e uma
camisa polo. O sapato social destoava, mas a melhora em
sua aparência era visível. Entrou no ônibus mais
pausadamente, passou o bilhete no visor e… Surpresa
das surpresas: sorriu para a cobradora. Maria sorriu de
volta. Em seguida, Rolando foi ocupar seu posto e abriu
o livro que carregava. Mas novamente ele não leu.
Continuava observando Maria furtivamente. Em alguns
momentos, ela notou e desviou o olhar.
Na sexta­feira, ele sorriu novamente. A resposta de
Maria foi um sorriso mais longo e doce que o do dia
anterior. Quando passou por mim em direção a seu
banco, reparei que Rolando não carregava um tijolo
como de costume, mas um livrinho azul. Fiquei curioso.
Quando descemos do ônibus, tive o cuidado de
bisbilhotar e consegui ver o título: “Como fazer amigos e
influenciar pessoas”.
Na segunda­feira, novas mudanças. Seu Rolando não
pagou a passagem usando bilhete, como de costume.
Pagou em dinheiro. Quando foi entregar a quantia, seus
dedos tocaram de leve os dedos de Maria. Ambos
coraram. Fiquei chocado ao perceber que Seu Rolando
não trouxera livro algum. Ao invés de ler, ficou olhando
ao redor. Parecia estar reparando, pela primeira vez, o
que faziam os demais passageiros, e tentando identificar
o que eles liam.
Na terça­feira, novo pagamento em dinheiro, novo
toque, novos sorrisos e um certo constrangimento
adolescente. Eu já encarava a situação como uma novela,
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OUTRAS PAIXÕES
aguardando ansiosamente os próximos capítulos.
Naquele dia, ele carregava um livro preto, e contive o
riso ao ler o título: “Crepúsculo”. Minha intuição do dia
anterior estava correta. Nos últimos meses, quase todas
as mulheres no ônibus (ou melhor, de todos os ônibus, de
todas as cidades do Brasil, de acordo com os relatos que
chegaram a mim) carregaram algum dos livros desta
série. Um fenômeno inexplicável! Seria alucinação
coletiva?
Na quarta, na quinta e na sexta­feira, Rolando e Maria
já tinham um ritual silencioso e bem estabelecido de
alegria e timidez ao se encontrarem.
Eu não era o único a perceber.
Naqueles três dias, Seu Rolando não portava livros,
mas sim revistas femininas. E na sexta­feira, quase caí da
cadeira quando vi que, ao invés de ocupar seu banco,
Rolando sentou­se bem na frente, a apenas duas cadeiras
de distância de Maria.
– Eu não acredito que o Seu Rolando tá gostando
dela! O que será que ele viu nessa bruaca aí? – reclamou
Eliane, sentando­se ao meu lado, sua voz um tanto
indignada, revelando sentimentos ocultos. Levantei os
ombros. Eu realmente não imaginava. Estava mais
curioso é para saber o que diabos ela vira nele.
Uma nova semana se iniciou.
Naquele dia, Seu Rolando entrou e se dirigiu à roleta.
Não pagou em dinheiro como vinha fazendo – voltou a
usar o bilhete eletrônico. Trocou um olhar rápido com
Maria, um pequeno sorriso, abaixou a cabeça e se dirigiu
rapidamente ao último banco do ônibus. Maria ficou
desconcertada. Parecia haver lágrimas em seus olhos.
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OUTRAS PAIXÕES
Só ao descer do ônibus, ao lado de Rolando, entendi o
que ocorreu. O título do livro do dia era “Cinquenta Tons
de Cinza”. Dessa vez eu não consegui conter as
gargalhadas, ou melhor, só as segurei até que ele se
distanciasse de mim ao sair do veículo. Havia sangue
naquelas veias!
Para minha decepção, e visível tristeza de Maria, Seu
Rolando não apareceu na terça. Nem na quarta. Nem na
quinta.
Na sexta­feira, o suspense dos dias anteriores foi
recompensado.
Seu Rolando entrou no ônibus trajando um terno azul,
sapatos reluzentes, camisa social branca – tudo moderno
e alinhado. Usava óculos novos, daquele tipo sem aro.
Rejuvenesceu dez anos, no mínimo. Trazia um buquê de
rosas vermelhas. Deixou que todos os demais
passageiros passassem à frente. Para a sorte de Maria,
atualmente quase todo mundo usa o bilhete eletrônico,
porque se alguém pagasse em dinheiro, creio que ela não
conseguiria receber e muito menos calcular o troco, de
tanto que tremia. Finalmente, todos ocuparam seus
lugares, seja sentados, seja de pé. Os olhares estavam
fixos no casal.
Seu Rolando tremia e suava. Ficou parado por alguns
segundos, como se estivesse juntando forças, e
finalmente se dirigiu à roleta. Pagou em dinheiro a
passagem. Quando Maria foi pegar a quantia, ele segurou
delicadamente suas mãos e alisou seus dedos. Sorriu e
entregou as flores.
Foi a primeira vez que ouvi a voz dele. Era bonita.
– Minha querida. Será que poderia te dizer algumas
palavras?
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OUTRAS PAIXÕES
Maria não estava vermelha, estava roxa. Assentiu com
a cabeça.
Seu Rolando tirou uma folha do bolso da frente do
paletó e passou a ler o discurso que segue. O momento
era mágico. Posso jurar que não me esqueci de palavra
alguma.
– Minha querida. Há muitos anos, feri e fui ferido por
palavras. Desde então, passei a achar que nesse mundo
se fala demais. Fiz um voto de silêncio, que por quase
duas décadas observei. Mas na primeira vez que a vi,
soube que não poderia mais sustentar minha decisão.
Pior. Compreendi que, na verdade, meu voto não havia
sido fruto de qualquer ímpeto virtuoso, mas sim do medo
de me machucar novamente. Era um voto de luto. Ao
invés de me tornar alguém melhor, só fez com que eu me
transformasse em um miserável.
Ele parou, tirou um lenço do bolso e enxugou
levemente o suor da testa. Em seguida, continuou:
– Desde aquela terça­feira abençoada, minha vida
mudou. Você me trouxe de volta. No início, fiquei
atordoado. Não consegui ler, trabalhar. Tive febre.
Queria entender o ocorrido, o motivo de tanto assombro.
Compreender a razão pela qual, entre tantas mulheres
que cruzaram meu caminho, só uma me causou esse
efeito. Tentei esmiuçar o meu desejo, sem sucesso, pois o
amor que sinto – repito, o amor – nada tem de racional.
Ele simplesmente é. Quando entendi isso, minha
angústia inicial cessou.
Ele silenciou por mais alguns segundos, e em seguida
soltou pesadamente o ar.
– Passei a sentir um desejo imenso de me comunicar.
Eu nunca havia percebido como estava carente de
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OUTRAS PAIXÕES
contato com o mundo exterior, após tantos anos
afundado em livros e em meus próprios pensamentos. Só
que não sabia mais como. Não fazia ideia do que
pensavam as pessoas, do que ocupava a cabeça das
mulheres. Tentei desesperadamente adquirir algum
conhecimento que pudesse me ajudar na tarefa de chegar
até você. No processo, percebi que não poderia
enquadrá­la nos modelos femininos retratados nos livros
e revistas que pude pesquisar, tão simplistas e caricatos.
Não. Você é diferente, eu sei – não sei explicar como,
mas sei. Você é única. Desejo imensamente conhecê­la e
compartilhar da sua vida, se me permitir.
Ele abaixou o papel, olhou diretamente para os olhos
de Maria, e terminou, agora sem ler e sem tremer.
– Eu perguntaria isto hoje: posso compartilhar a vida
com você? Perguntaria, porque sei que é o que quero.
Mas sei que soaria insano. Você não me conhece. Então
lhe pergunto, apenas, se me daria a chance de um café.
Por alguns segundos, o ônibus silenciou. O veículo
chegou a parar até que uma saraivada de buzinas tirou do
transe o motorista.
Maria enfim se moveu. Tirou do bolso uma pequena
caderneta vermelha, com a capa florida, pegou uma
caneta e pôs­se a escrever freneticamente. Terminada a
tarefa, tirou a folha e a entregou a Seu Rolando, que leu e
abriu um largo sorriso.
Eles se olharam, deram as mãos. Em seguida, se
beijaram longamente. Todos aplaudiram. Naquele
momento, não pude evitar de pensar que toda história de
amor é um pouco clichê. Pensando bem, um pouco não,
um bocado!
…
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OUTRAS PAIXÕES
Minha curiosidade nunca foi tão grande.
Vi que, quando eles se beijaram, a nota de Maria caiu
no chão. Sinalizei para Eliane, que estava bem perto da
roleta e entendeu perfeitamente o que eu queria, dando
um jeito de pegar o papel. Ela levantou, me entregou
discretamente a folha e desceu no ponto seguinte, com
lágrimas nos olhos.
A nota dizia o seguinte:
“Meu querido. Desde que o vi, sonhei com um
momento assim. Assim como você, minha vida mudou
assim que o vi. Era inexplicável: eu sabia que você era a
pessoa certa. Ao mesmo tempo, temia sua reação quando
conhecesse minha realidade. Sou surda e muda desde
que nasci. Mas agora meu medo acabou. Havia, como
sempre sonhei, alguém no mundo reservado para mim,
talhado para o silêncio. Sei ler lábios. Nunca na vida
alguém me disse tão belas palavras. Minha resposta não
poderia ser outra. Sim, para as duas perguntas.”
Depois daquele dia, Maria e Seu Rolando não
apareceram mais no ônibus. Meses se passaram. Eu me
formei. Seu Xerxes, contrariando todos os prognósticos,
voltou ao trabalho, sorridente como nunca, falando um
pouco enrolado e manco de uma perna. Eliane arrumou
um namorado, Manoel, que conheceu no próprio ônibus.
Na última sexta­feira, quando saí do trabalho, vi
Rolando e Maria, de mãos dadas, sentados num boteco
na Praça da Sé. Um grupo improvisado tocava pagode.
Seu Rolando, sorrindo, tamborilava os dedos na mesa,
acompanhando o ritmo.
daniclau
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OUTRAS PAIXÕES
Projeto
PAIXÕES CLANDESTINAS
OUTRAS PAIXÕES
Semana Santa
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OUTRAS PAIXÕES
Sexta­feira da Paixão
Cristo morreu pelos meus pecados. É o que dizem.
Sempre detestei essa afirmação, como detesto qualquer
coisa que tenha a ver com o não­visível. Não quero que
ninguém morra pelos meus pecados. Dos meus pecados
cuido eu. E meu pecado maior naquela sexta­feira
maldita foi ter deixado Clarissa ir embora. Ou será que
fui eu quem a mandei embora? Talvez as duas coisas. Só
recordo que a vi jogando algumas roupas na mochila
velha e sair de casa batendo ruidosamente a porta. Ainda
pensei em correr atrás dela, mas desisti. Fiquei em casa
ouvindo CDs de blues e olhando com cara de idiota para
o bacalhau dessalgado em cima da pia. Iríamos fazer um
bacalhau à Gomes de Sá. Clarissa não comia carne nos
dias da Semana Santa. Para mim, isso era uma besteira,
eu teria adorado preparar uma picanha mal passada
naquela noite, mas a paixão por Clarissa me fazia
respeitar suas opiniões, pelo menos algumas delas.
Pensei que Clarissa voltaria, mas, me enganei. Tomei
alguns tranquilizantes para poder dormir, com o coração
pesado de tristeza e de paixão.
Sábado de Aleluia
Aleluia! Clarissa telefonou. Não falou praticamente
nada, balbuciou meia dúzia de palavras. Mas telefonou.
Disse que estava tudo terminado e que na semana
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OUTRAS PAIXÕES
seguinte pegaria suas coisas no apartamento. Pensei em
implorar para que voltasse, em sugerir que
conversássemos, mas nada falei. Escutei o que ela falou
até que pareceu que ela fosse chorar e ela então desligou
o celular.
Resolvi ir a uma igreja católica. Claro, desprezava o
catolicismo, como a todas as demais religiões, mas senti
vontade de ver os fiéis louvando um ser superior.
Contudo, quando estacionava o carro próximo a uma
igreja, mudei de ideia repentinamente e decidi beber algo
na praia. Olhar o mar costumava me acalmar. Bebi
demais, contudo, e voltei para casa totalmente bêbado,
arriscando bater o carro ou ser pego pela polícia
dirigindo embriagado. Não aconteceu nem uma coisa
nem outra. Talvez fosse melhor se eu tivesse morrido.
Domingo de Páscoa
Acordei de ressaca. Bebi quase um litro de água e tive
de ver na geladeira os ovos de chocolate que Clarissa
havia comprado para a gente. Estávamos juntos havia
três anos e todo domingo de Páscoa ela me dava um ovo
de chocolate. Como sabia que eu não compraria um para
ela, tratava de se presentear com um ovo, quase sempre
de chocolate branco. Joguei os dois ovos fora. Também
atirei o bacalhau na lata de lixo. Em seguida, vomitei e,
me sentindo menos enjoado, decidi recomeçar minha
vida. Tomei um bom banho, recorri a um analgésico
potente e me resolvi a sair da cidade. Joguei em uma
mochila algumas roupas, o laptop, a escova de dentes e
alguns livros. Iria a uma pousada litorânea para pensar na
vida nova que teria de levar. Estava abrindo a porta do
carro quando o celular tocou. Clarissa, com voz
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OUTRAS PAIXÕES
lacrimosa, disse que queria conversar e retomar nosso
casamento. Pediu desculpas e exigiu que eu as pedisse.
Perguntou se eu não queria encontrá­la em um bar­
restaurante onde costumávamos ir. Concordei. Subi ao
apartamento para deixar a mochila e rumei ao
supermercado mais próximo, para comprar dois ovos de
chocolate…
Cefas Carvalho
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OUTRAS PAIXÕES
Ultimato
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OUTRAS PAIXÕES
Eu estou vivendo uma história de amor complicada,
difícil.
Casei com uma pessoa há quinze anos, nós
trabalhávamos juntos, temos um filho e no começo deste
ano ele foi embora. Eu estava achando que seria a
melhor coisa nos separarmos, porque a relação estava
desgastada.
Comecei a trabalhar em outro lugar. Aí ele foi me
procurar, quando já estava com outra pessoa.
Na verdade ele estava com ela há tempos, muito antes
de sair de casa. Estávamos separados, mas ainda vivendo
juntos, e ele já estava envolvido com essa pessoa.
Ele me procurou mesmo assim e nós recomeçamos.
Virei amante, ao invés de esposa. Voltamos a trabalhar
juntos e estamos assim até agora.
Ainda está muito apegado a essa pessoa e é provável
que vá me deixar para ficar com ela. Havia voltado para
casa, mas foi procurá­la e voltou para ela. Continua
namorando as duas ao mesmo tempo.
Diz que gosta muito dela, que está muito confuso…
Estava sempre me pedindo mais tempo, mais tempo,
mais tempo, mas eu dei o ultimato para ele decidir. É
provável que vá ficar com ela.
Apesar de dizer que me ama muito, acho que ele quer
ficar com ela.
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OUTRAS PAIXÕES
É uma história louca. Eu estou aguardando, mas não
tenho esperanças.
Érica K.
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OUTRAS PAIXÕES
A história Dele
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OUTRAS PAIXÕES
Eu o conheci num hotel, em uma viagem. Até então
eu tinha ficado com dois meninos, então foi o terceiro
menino com que eu fiquei. Foi diferente.
Era no tempo do MSN; ele passou o dele errado e eu
passei o meu certo. Eu o adicionei e não apareceu nada.
Passou um tempo e veio uma solicitação de amizade de
alguém que eu não conhecia. Aceitei e vi a foto... Mas o
nome não batia com o que ele tinha me dito.
A gente começou a conversar e ele contou que passou
o nome errado, que estava com medo, pois não sabia se
era isso que ele queria para a vida dele – a gente era bem
novo ainda. Na minha cabeça também passava isso de
“será que estou fazendo isso certo?”; eu nunca tinha
contado para os meus pais ou para os meus amigos.
Acabou que a gente foi conversando, se encontrando
– eu gostava dele e ele, de mim – e foi legal. A gente
virou amigo e começou a namorar em 2009, e
namoramos durante todo 2010.
No verão de 2011, na praia, estava quente naquele dia
e ele estava reclamando de pressão baixa, e daí
simplesmente desmaiou. A gente chamou a ambulância,
ele foi para o hospital e fizeram exames e exames:
constataram que ele tinha leucemia mieloide aguda.
Tinha 17 anos na época.
Eu soube antes mesmo do que ele. Estava junto no
hospital quando a mãe dele foi chamada e, como eu era
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OUTRAS PAIXÕES
próximo da família e sempre fui muito bem tratado, ela
me contou para juntos contarmos a ele. Fez o tratamento
de janeiro a junho. Ele morreu no dia 10 de junho de
2011.
A leucemia é uma doença triste. Ela acaba com a
pessoa e com a família de uma maneira que desestrutura.
Tu vais ao hospital e vês uma criança de seis anos que
diz que no próximo mês vai ter o aniversário, daí tu
voltas em três semanas e ela não está mais lá.
Várias vezes ele disse: “Vai, pode terminar. Segue a
tua vida, não precisas ficar aqui”, mas eu continuei. E
quando ele estava no hospital eu não deixava de sair com
os amigos, porque vi que se parasse de viver a minha
vida e dissesse que não fiz nada, não teria sobre o que a
gente conversar.
Eu via pessoas morrerem, ele via pessoas morrerem.
Eu tinha que ir ao cinema e falar “chegou tal filme, a
gente pode assistir depois”, ou que lançou tal livro, tal
jogo, para ter o que conversar.
Foi uma coisa com a qual eu acabei crescendo, porque
eu tinha uma mentalidade diferente: “é de longe, não me
atinge”, e do nada me atingiu.
Teve épocas difíceis para mim. Não queria gostar das
pessoas porque tinha medo de me machucar de novo.
Hoje eu lembro com bastante carinho disso tudo.
Foi um relacionamento legal, ele foi uma pessoa legal
e já superei bastantes coisas relacionadas a isso. Eu
brinco, faço piada, mostro vídeos engraçados da gente...
Não é sempre assim, claro. Tem datas que me marcam
mais, como o Dia dos Namorados – ele morreu em 10 de
junho e o Dia dos Namorados é logo em seguida.
29
OUTRAS PAIXÕES
É um amigo que morreu, infelizmente, mas a vida
continua. Ficou uma lembrança boa.
Relato dele.
30
OUTRAS PAIXÕES
Projeto
PAIXÕES CLANDESTINAS
OUTRAS PAIXÕES
O amante
31
OUTRAS PAIXÕES
O peito tem a pele enrugada e os pelos crespos. A mão
de Márcia descansa sobe ele. A testa gela e o suor
começa a secar. Suas coxas se esparramam no colchão. A
flacidez é clara. Ela escorrega para o lado e ele se sente
desamparado. No quarto só o barulho do ar
condicionado.
O dia entardece. Um caminhão dá ré. Um aperto no
peito, uma intromissão, uma ameaça em forma sonora.
Seus movimentos tornam­se mais lentos. Sente fome, e
observa que o hotel oferece um serviço de lanche no fim
de tarde. Pede duas saladas de frutas e um suco de
laranja. O sexo no meio da tarde é um hábito que cultiva
desde que se separou.
Se levanta e anda até ao banheiro. Seu cabelo parece
mais ralo que o normal. Márcia não faz comentários
sobre seu corpo. Teria se relacionado com muitos
homens antes dele? Tem raiva. Sente um calafrio. Precisa
se controlar. Horas depois, no elevador, Márcia lhe
pergunta se ele tem uma esposa. “Não tenho”, Jonas diz,
abrindo a porta do carro.
Márcia entra no lado do passageiro. O sinal está
fechado. O parque tem grandes eucaliptos. Sombras
alongadas cobrem os corredores na pista de exercícios.
“Onde vocês se conheceram?” Ele pergunta. “Quem?”
Ela diz distraída, olhando as mensagens no telefone.
“Você e seu marido”, ele continua. Mas ela não
responde.
32
OUTRAS PAIXÕES
São Paulo está congestionada, é um fim de sexta­
feira. Um transeunte passa pelo carro pedindo esmola.
Unhas sujas. Uma sombrinha quebrada. No
estacionamento do aeroporto, Jonas sente um
abafamento. Márcia o beija rapidamente e sai sem
agradecer. Ele franze a testa. Espera um pouco e desce.
Tenta se convencer de que é normal agir daquela
maneira.
O salão de beleza fica no terceiro andar. Quando
entra, ela está de avental, organizando papéis no caixa.
Leva um susto e deixa o telefone cair. Naturalmente, ele
diz que quer fazer as unhas. Lhe indicam uma cadeira. A
manicure já vem. Ela parece confusa. E se o marido
descobrir que ela trai? A mão na água quente a acalma.
“Márcia, me ajude.” O homem é magro, com uma
barba por fazer. Usa calça moletom e uma blusa de um
time de futebol. “Mamãe!” A menina corre e abraça
Márcia pela cintura. Uma senhora de cabelos loiros
levanta os olhos da revista. Está com uma toca no cabelo.
A cabelereira e o homem sobem para o segundo andar. A
filha senta­se próxima à entrada. Tira um caderno cor­de­
rosa da bolsa e começa a desenhar.
Jonas odeia pensar no próprio casamento. Ouve
risadas no andar de cima. Um momento passa. Márcia
reaparece para atender uma cliente. O alicate cutuca o
canto do seu dedo indicador. O marido se chama Rubens.
A manicure inspeciona as suas mãos. São peludas e com
dedos grossos. Paga a unha com dinheiro e procura pelos
olhos de Márcia. É ignorado.
No café do aeroporto, encontra o marido tomando
chope. Jonas se aproxima e pede um salgado com café.
Tenta não encarar. Rubens a reconhece. Ele retorna ao
33
OUTRAS PAIXÕES
carro e fica parado em frente à direção por cerca de dez
minutos. Tem a sensação de que o automóvel diminuiu
de tamanho, está sufocado ali dentro. Abre o vidro e
dirige em direção à saída. Promete a si mesmo que nunca
mais vai procurar Márcia. Mulheres casadas aumentam a
sua sensação de solidão. À noite, em casa, liga para a ex­
esposa.
Inesperadamente ela atende. Diz que quer vê­la
novamente. Sim? Ele se arrepende, mas já é tarde.
Bárbara é dez anos mais nova do que ele. Viveram vinte
e cinco anos juntos. Agora, mora sozinha numa casa de
cinco quartos. Se encontram num restaurante italiano.
“Você sentiu saudade?” Ela pergunta. “Não. Mas
estou entediado.” Ele é incapaz de uma delicadeza. Ela
ri. A voz é pausada, dona de si. Não tem intenção de se
apaixonar por ele novamente. Gosta de viver sozinha.
Não tem amantes. Isso é o que ela diz. Ele não que falar
de si mesmo. Conversam sobre os filhos. Ele lamenta
que está sem fantasias. A vida está cheia delas, ela
afirma, basta saber escolher. No dia seguinte, liga para
Márcia.
Ela está deitada, acabou de acordar. Quando o
telefone toca, não atende. Jonas é rico. Acha que pode
tudo. Se conheceram numa loja de vitaminas. É velho,
precisa de suplementos. Mas ela sente uma afinidade por
ele. Gosta da forma de como ele lhe faz perguntas. É
educado, fino. Rubens detesta conversar. A rotina não é
uma aventura.
O marido lê o jornal e come uma xícara de cereal com
leite. Está menos ansioso, o salão começa a dar lucro.
Chega ao aeroporto e os sons da vizinhança chamam a
sua atenção. Quase nunca tem tempo de ouvir, tão
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OUTRAS PAIXÕES
apressado que sempre está. Os aviões passam com
frequência sobre o edifício. O ritmo de pessoas é intenso,
funcionários de companhias aéreas ou homens de
negócio. O hall central tem um pé­direito alto, e as
cadeiras são quadradas, em couro preto e cinza. Uma
grande tapeçaria enfeita a parede principal. Rubens usa
uma camisa amarela social, uma jaqueta de risca de giz e
uma calça preta. O barulho das turbinas é ensurdecedor.
“Por que você me traía?” Bárbara pergunta, na noite
anterior. “Não gosto de me sentir preso a ninguém”,
Jonas desabafa. A sua imagem, tão segura do outro lado
da mesa, o intimida. Ele passa a mão nos cabelos. Ralos.
Os dois ficam sem se falar por algum tempo. Sabe que o
encontro não foi uma boa ideia. Finalmente pede a conta.
Nunca imaginava vê­la assim, tão separada dele. Pensa
em Márcia, no início do casamento. Quando sai do
restaurante, sente uma palpitação no peito. Tem medo de
morrer.
“Obrigado”, ele diz, antes de ir embora. Mais tarde,
Márcia aparece no seu apartamento. Seu visual é
convidativo. Está vestida com uma saia vermelha florida,
uma blusa branca tricotada. “Eu estava por perto, resolvi
dar um pulo aqui”, ela afirma. “Vamos entrar”, ele diz, a
abraçando pela cintura. Ela não quer que ele apareça no
salão novamente. Ele não tem nenhuma expectativa. Está
cansado, o corpo envelhecido. Ela adora se olhar no
espelho. Quer ir a um restaurante caro, onde o marido
não possa ir. Mas naquela noite, prefere assistir
Casablanca.
No fim de semana, encontra a ex­esposa numa
churrascaria que costumavam frequentar juntos. Está
acompanhada de um senhor alto, bem mais elegante que
ele. O local é movimentado e o chão gorduroso,
35
OUTRAS PAIXÕES
escorregadio. Ele pensa em cumprimentar o casal mas
decide esquecer. Está numa mesa próxima, e pode ouvir
a conversa. Falam sobre assuntos domésticos. A neta,
Luísa, irá se apresentar no teatro da escola no sábado. Na
saída, são obrigados a dizer alô. Jonas pergunta se eles
precisam de carona e eles dizem que não, vão chamar um
táxi. Ela havia dito que estava sozinha. A gente se vê por
aí. Em casa, liga para a mãe, que apesar de idosa, está
lúcida. Ela o parabeniza por ter saído com Bárbara.
“Finalmente você tomou juízo”, enfatiza. “Um homem
na sua idade não pode ficar sozinho.” Ele não se explica,
e passa o dia pensando na ex­esposa, nas infidelidades e
na vida. Pergunta se tudo aquilo valeu a pena. Conclui
que prefere não saber. E procura um filme antigo para
assistir.
Desirée Jung
36
OUTRAS PAIXÕES
Projeto
PAIXÕES CLANDESTINAS
OUTRAS PAIXÕES
Terça­feira de verão
37
OUTRAS PAIXÕES
Ela esperou que todo inverno passasse. E nomeou
bem uma terça­feira de verão. Era uma noite já iniciada.
Mas o calor queimante quase iluminava, quase criava dia
sem ofender as estrelas. Eu sabia que ela viria. Aguardei
despreocupadamente. Caminhando pelo apartamento
como quem caminha em busca de uma brisa.
Tocou a campainha. Ela não ouviu meus passos.
Capturei­lhe o corpo todo dentro da forma bojuda do
olho mágico. Vinha escondendo apenas o que cismamos
não poder mostrar. Imaginei o calor de sua pele e o
cheiro natural que lhe caldeirava a nuca.
Ao meu beijo sua boca esteve fria. Amarrada.
Quadrada. Sem curva alguma. Perguntei se estava tudo
bem. Ela respondeu “não”, mas que ficaria melhor. Refez
o nó dos cabelos. Sentou a bolsa sobre minha mesa.
Meus olhos desarmaram­se, abandonados e frágeis.
Ela disse não podermos mais. Eu olhei pela janela e
na rua alguém passava rindo alto. Como aquilo me
penetrou diabolicamente! Ela no sofá com um short que
só escondia o que cismamos não poder mostrar. Pensei
em ir nadar. O motivo, segundo ela, era ela mesma. Eu
estava isento de qualquer conta, culpa ou benefício.
Senti­me torto como o armário que acaba de perder o
calço que tanto lhe aprumava as quinas.
Ela se foi com a boca fria. Amarrada. Quadrada. Sem
curva alguma. Sai à rua. Era ainda terça­feira de verão.
38
OUTRAS PAIXÕES
Escondiam­se apenas o que cismamos não poder mostrar.
Ainda bem que ela esperou que todo inverno passasse.
Rafael Alvarenga
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OUTRAS PAIXÕES
Projeto
PAIXÕES CLANDESTINAS
OUTRAS PAIXÕES
A história de Suelen
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OUTRAS PAIXÕES
Ela o conheceu com 14 anos, através de um primo
dele, e se interessou pelo rapaz de 17. Então, três ou
quatro meses depois, ele puxou o assunto numa festa em
que estavam e aí começaram a conversar.
Ela gostou ainda mais dele nos meses que se
seguiram, mas de repente deram um tempo por uma
situação que surgiu. Enquanto estiveram separados,
Suelen esperava que eles voltassem, o que aconteceu
passados mais alguns meses. Eles se reencontrarem por
acaso numa festa como aquela em que conversaram pela
primeira vez.
Após o retorno veio o pedido de namoro para os pais,
numa relação que durou sete anos. Ele construiu a
própria casa por influência dos pais, enquanto Suelen
deixava­se guiar pela pouca experiência de vida que
tinha até então.
No entanto, ela refletiu se era esse o futuro que queria
para si. Com o tempo as diferenças entre as naturezas e
as necessidades de cada um começaram a se manifestar
mais evidentemente, por isso ela precisou tomar uma
decisão.
Nova Veneza é uma cidade pequena, com apenas
13.000 habitantes, onde vigora o respeito ao núcleo
familiar. Isso impôs a Suelen um dilema: "O que
dificultou tomar essa atitude foi a família mesmo, o que
a família ia pensar. Porque, querendo ou não, já estava
traçado um futuro para nós dois. Uma casa, uma vida a
41
OUTRAS PAIXÕES
dois..."
A separação foi bastante complicada não só para o
casal, mas também para as pessoas próximas deles por
causa dos laços criados entre as suas famílias. Somente
aos poucos os familiares aceitaram e entenderam o
porquê do que aconteceu.
Hoje os dois vivem tranquilos, cada um seguindo os
próprios planos e desejando a felicidade um do outro,
onde seus caminhos os levem. Sobre como descobrir se
alguém é a pessoa certa para se estar ao lado, ela
completa: “Não existe uma fórmula, só convivendo com
a pessoa dia após dia para saber. Relacionamento é isso:
dia a dia”.
Conforme o relato dela.
42
OUTRAS PAIXÕES
Projeto
PAIXÕES CLANDESTINAS
OUTRAS PAIXÕES
Uma distração fatal
43
OUTRAS PAIXÕES
Já faz muito tempo que, em uma cidade totalmente
desconhecida por mim, eu encontrei você e nunca mais
te esqueci. Aconteceu em um daqueles momentos em
que a gente precisa usar nossa reserva, nesses momentos
sociais em que o silêncio e a solidão nos invadem e nos
distraem, levando embora o nosso olhar e a nossa
atenção, como se fosse uma necessidade carnal do
espírito. Foi bem assim que eu a vi, sem olhar, e você me
viu. É que quando te descobri na multidão, você já
olhava pra mim. E era um olhar tão firme e tão doce que
me prendeu até o fundo da alma.
Olhei ao meu redor para desfazer os enganos de ser o
premiado por aquele teu inesperado olhar. Mas ele era
mesmo pra mim. Você parecia emanar uma alma inteira
por aqueles seus olhos vivos e castanhos, cravando­a
profundamente em meu espírito. A multidão ao redor era
grande e barulhenta, e mesmo assim o seu olhar não
parava de me segurar, até que você desapareceu, levada
por outras pessoas.
Isso foi há muito tempo e eu não esqueci. Não porque
eu tente não esquecer. É que, de vez em quando, sua
imagem simplesmente invade a minha mente, com toda
aquela força que emanou de você pra mim, naquela
noite. E eu sei bem que é impossível encontrá­la
novamente. Eu nem sei seu nome, não faço ideia de onde
a procurar, nem mesmo essa sua imagem eu gravei
direito. Faz tanto tempo… mas apesar dessa desolação,
44
OUTRAS PAIXÕES
desse fracasso, o que você me deu eu não pude mais
perder. Você me abençoou com um tipo único de
esperança. É que agora, apesar da sua ausência, você me
deixou pra sempre com uma misteriosa presença em
mim.
Moça da cidade desconhecida, da solidão em meio à
multidão, eu nunca me esqueci de você. E quem dera
você soubesse. Quem dera pudesse lhe dizer tudo isso
que você não sabe e que nunca vai saber. Fico
imaginando onde poderá estar agora. Em alguma casa
simples, deitada no sofá? Sorrindo? Apressada em
direção a algum compromisso? Distraída numa conversa
de amigos? Pensativa? Não, eu não sei como você está.
Mas o que você deu pra mim, essa sua presença
constante e tão absoluta, isso eu não consigo mais perder.
Foi um tipo de ilusão que, como todas as outras
fantasias, é tão real. E isso tudo é mesmo tão real que,
ainda que não esteja de fato aqui comigo, você
demonstra uma magistral vontade própria, aparecendo
sempre quando quer, e de surpresa. E eu me surpreendo
toda vez com essa sua enigmática insistência em voltar,
com essa sua capacidade de ir e vir sem nunca deixar de
ficar. Voltas que a fazem tão viva dentro de mim…
E como eu queria. Queria tanto que você soubesse
que nesse mundo maldito em que tudo que é tocado por
mim desaparece, você ainda permanece dessa forma em
mim, com toda a sua imortalidade forjada em meu
espírito, uma segunda existência sua, num só instante
lançada eternamente sobre a minha solidão.
Glauber Costa
45
OUTRAS PAIXÕES
Projeto
PAIXÕES CLANDESTINAS
OUTRAS PAIXÕES
Amor de alguém
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OUTRAS PAIXÕES
História é uma palavra com origem no antigo termo
grego historie, que significa “conhecimento através da
investigação”. A História é uma ciência investigativa do
passado da humanidade e do seu processo de evolução.
Adoro saber o significado das palavras, sua orige.
Adoro também saber a origem de tudo. Vivo
investigando. Nasceu onde? Qual a origem? Significa o
quê? Adoro história... Vivo meu presente procurando
saber tudo o que posso sobre o passado.
Não sou historiadora, mas hoje aqui vou contar a
minha história. A minha grande história de amor.
Desde sempre quis um grande amor. Suspirava ao ver
namorados de mãos dadas, pessoas abraçadas, as trocas
de carinhos. Era meio que intrusa a observar conhecidos
e anônimos felizes nas ruas, nas praças, nos metrôs… em
todo lugar. Porque o amor está em todo o luga e pode ser
encontrado em qualquer lugar.
Todo mundo parecia já ter encontrado seu amor,
menos eu. Eu, solitária, a sonhar, a procurar… Queria
encontrar o amor e parecia que ele sempre se escondia de
mim. Me sentia triste em saber que nunca tinha sido
também o amor de alguém.
Não sei se há uma idade certa pro amor acontece. O
que sei é que eu achava que comigo já havia passado do
tempo.
Sou linguista. Fiz meu doutorado em Paris. Quando
47
OUTRAS PAIXÕES
fui pra lá estudar, levei na mala o sonho de meu amor
encontrar. “Seria a perfeição… um amor em Paris”,
pensava eu, sonhava eu.
Não aconteceu.
Quando voltei ao Brasil, quatro anos de solidão
depois, fui estudar uma língua indígena em extinção no
interior da Amazônia.
Que diferença do mundo europeu. A selva, o rio, as
matas… que beleza de imensidão, quanta história para
conhecer. E lá estava eu, igualzinha de sempre, querendo
fazer acontecer a minha história de amor.
Cheguei a Nhamunda…. Você pode saber tudo sobre
essa bela cidadezinha no Google e pode ver fotos
também.
Na minha segunda noite lá, o pessoal do hotelzinho
em que fiquei me recomendou o Festival da Pesca do
Tucunaré.
Fui. Por alguns momentos os casais apaixonados não
foram a minha atenção – lembre que sou neurótica com
isso. Fiquei encantada com os peixes, com as pessoa,
com a música… com tudo à minha volta. Meu olhar
curioso se deliciava com a beleza exótica, perfumada,
saborosa desse lugar.
Me distraí caminhando pelo lugar. Me distraí a olhar
as águas do rio Nhamundá. Não vi quando Carlos se
aproximou… Ele me viu, ele me notou. O amor, até que
enfim, me encontrou.
Rosangela Calza
48
OUTRAS PAIXÕES
Projeto
PAIXÕES CLANDESTINAS
OUTRAS PAIXÕES
A história de Vivian
49
OUTRAS PAIXÕES
Vivian recorda de Edson de um tempo em que jamais
imaginaria a importância que teriam um para o outro, ele
então um viciado em crack. Antes de o conhecer de
verdade, ela o temia; lembra­se de voltar tarde para casa
e vê­lo fora de si pelas ruas de Tubarão.
Mas o amor os encontraria.
Dez anos depois, Vivian namorava justamente o irmão
de Edson, sem ainda ter conhecido este. Foi na noite em
que celebrava o pedido de namoro que ela conheceu
aquele que se tornaria o seu esposo.
Ele havia mudado. Estava longe de ser o sujeito que
avistava nas ruas.
Ela e Edson dançaram naquela noite, algo que marcou
muito os dois. Era a primeira prova de uma afinidade que
só aumentaria com o passar do tempo.
O namoro com o irmão não deu certo, enquanto
Vivian e Edson continuaram a se ver como amigos por
um ano, sem mencionarem o que sentiam um pelo outro.
Tinham receio de se abrirem por causa do irmão dele.
Então, depois de um ano de amizade, os dois se
declararam. Em seguida decidiram viver juntos. No
entanto, nem tudo foi tão simples.
Pelo passado dele, a família de Vivian obrigou­a a
escolher: se preferisse ficar com ele, deveria partir
imediatamente e não olhar para trás. Ela assim o fez.
50
OUTRAS PAIXÕES
Após dois meses de união, Edson teve uma recaída.
Uma noite, ao voltar para casa, encontrou­o diferente;
aquela visão partiu­lhe o coração. Ainda assim ela disse
para si mesma: “se eu escolhi esse caminho vou ter que
encarar junto com ele”. Colocou­o no banho e
conversaram francamente.
A partir daí sempre que ele fosse comprar a droga ela
o acompanharia, porque ambos temiam que um dia não
voltasse para casa. Aos poucos Vivian conseguiu
convencê­lo a consumir menos. Cinco pedras, três
pedras, duas pedras...
Quando chegaram a uma pedra disse­lhe que deveria
comprar uma para si também ou não o deixaria usar. O
vício foi mais forte nele e de fato comprou­lhe a pedra.
Em casa ela pegou aquilo nas mãos e falou com o
coração diante de Edson: “isso está nos destruindo, quero
que tu faças o mesmo que eu faço”, e jogou a pedra na
privada.
Depois de muita luta, muita dedicação e muito amor,
hoje Edson está há sete anos livre das drogas. Nesse
meio­tempo se casaram e ele, vindo de uma família
conturbada, pôde reatar os laços com seu pai. Ela
também voltou a falar com a própria família.
Para ele, Vivian é a mulher da sua vida; por tudo que
ela demonstrou, Edson com certeza é o homem da vida
dela. Os dois vivem muito felizes.
Conforme o relato dela.
51
OUTRAS PAIXÕES
Projeto
PAIXÕES CLANDESTINAS
OUTRAS PAIXÕES
A história de Francisca e Júlio
52
OUTRAS PAIXÕES
Trabalho e família evoluíram juntos para Francisca e
Júlio. Não se pode contar a história do casal sem
mencionar as Lojas Fátima.
Júlio veio para Criciúma aos dezesseis anos, sob os
cuidados de seu irmão mais velho, então empenhado em
tornar­se padre. Depois que este abandonou o seminário,
começaram uma pequena livraria com artigos religiosos
ao lado da Igreja Matriz da cidade. A livraria se chamava
Nossa Senhora de Fátima.
Algum tempo depois, foi num baile do City Club que
Francisca e Júlio se conheceram, ela mais nova do que
ele. Casaram­se em 1963, Francisca começou a trabalhar
como professora e Júlio assumiu a livraria.
Os filhos vieram, quatro ao todo, e os negócios
prosperaram. Após doze anos no magistério, Francisca
passou a acompanhar lado a lado as atividades do marido
na loja. Como ela diz, sempre foi uma mediadora nas
situações; acalmava aqui ou animava ali quando preciso.
E nem sempre foi fácil, pois como todo casal que
batalha junto eles passaram por dificuldades. Os pais de
Júlio foram rígidos na questão financeira e não
permitiam desperdícios, o que o próprio Júlio passou a
seus filhos quando precisaram.
Nesse ponto pode­se ver uma maior alegria nos olhos
de Francisca. Quando fala dos filhos e dos netos, tem a
confiança de que passarão adiante o que aprenderam
53
OUTRAS PAIXÕES
sobre o trabalho e sobre construir uma família. São eles
que darão continuidade às Lojas Fátima, já com seis
estabelecimentos.
Ela recomenda aos netos: “Não deixem nada
acontecer se naquele momento vocês não acreditarem
que aquela pessoa é a pessoa das suas vidas”, e você sabe
que ela fala com convicção, pois basta olhar o casal para
perceber que eles encontraram as pessoas das suas vidas.
Conforme o relato deles.
54
OUTRAS PAIXÕES
Projeto
PAIXÕES CLANDESTINAS
OUTRAS PAIXÕES
Dois
55
OUTRAS PAIXÕES
Estudavam juntos desde a quinta série.
Renato estava na sala de aula, esperando seu amor
chegar, batucando com o lápis sobre a mesa, entediado,
era cedo ainda…
Álvaro, apesar de estudar com ele desde a quinta
série, era três anos mais velho, pois viera de uma cidade
muito pequena do interior, e começara os estudos
tardiamente, tinha muita dificuldade com aprendizado.
Era alto, um pouco desengonçado, lembrava aqueles
bonecos de posto de gasolina, tiravam muito sarro dele
até a oitava série, mas depois pararam, primeiro por ser
sério, depois porque estava mais alto e era mais velho
que todos ali, um pouco menos desengonçado, e
acabaram deixando­o de lado. Tinha apenas um único
amigo, também quieto e solitário no fundo da sala, mas
mais jovem e mais baixo que ele: Renato.
Aproximaram­se de forma bem vagarosa desde a
quinta série, mas foram tornar­se amigos mesmo na
oitava, e começaram a namorar no primeiro colegial.
Estavam hoje no terceiro colegial, namoro firme,
várias pessoas sabiam, muitos desconfiavam, sofriam um
pouco de preconceito, mas já estavam praticamente
acostumados. Se é que um dia se acostuma ao
preconceito.
Foi no primeiro colegial, quando faleceu a avó de
Álvaro, com quem morava, além de com um tio mais
56
OUTRAS PAIXÕES
velho, é que ele começou a frequentar a casa de Renato.
A princípio, seus pais foram com a sua cara, mas algo
aconteceu, que fez com que seu pai não gostasse mais da
presença dele ali.
Assim como foi lenta a sua aproximação como
amigos, também o foi como amantes. Trabalhos e
trabalhos da escola, videogame, e outras razões para que
Álvaro fosse visitar Renato pelo uma vez por semana,
ficavam horas em seu quarto, tocavam­se por engano, e
vibravam de dentro a fora. Isso até o dia em que
começaram a discutir por causa um jogo de videogame,
uma discussão em tom de ironia e brincadeira, pois eram
calmos demais para discutirem e gostavam­se demais. E,
no meio dessa discussão, seus olhos se encontraram e
ficaram estáticos, a lerem­se reciprocamente. Beijaram­
se. Dali para o amor foi um pulo.
É claro que as visitas de Álvaro continuaram
frequentes, inclusive nas férias, e os pais de Renato
gostavam muito dele. Mas o pai de Renato, que era
extremamente preconceituoso, estava começando a
suspeitar de que houvesse algo além de amizade entre
ambos, apesar de ter menos contato com Álvaro, pois
quando esse estava lá, geralmente estava trabalhando.
Descobriram­se ali, naquele pequeno quarto com
mofo nas paredes e com móveis antigos, enquanto os
pais de Renato trabalhavam, à tarde, depois da escola,
mas sua mãe chegava mais cedo.
Passou­se um ano, dois anos, estavam já iniciando o
terceiro e último ano do Ensino Médio. Tinham planos
de começarem logo a trabalhar, morarem juntos,
adotarem uma criança, serem, enfim, um casal pleno e
feliz. Mas tropeçaram na ignorância e no preconceito
alheios…
57
OUTRAS PAIXÕES
Seu pai era religioso, bebia além da conta, tinha
amigos que não eram, realmente, boas companhias. E já
cobrava de Renato uma namorada havia tempos, bastante
desconfiado de sua homossexualidade. Quando via
Álvaro, mal olhava em sua cara, o clima começou a ficar
pesado, e Álvaro estava começando a se preocupar, mas
Renato não se preocupava, disse que logo tudo iria
passar e seu pai se acostumaria. Não foi o que aconteceu.
Certo dia chegou mais cedo, não os pegou na cama,
mas pegou­os num abraço, tão simples, tão sincero, e o
amor, sentimento que o pai de Renato não conhecia,
pulou em seus olhos frustrados e infelizes, e ele quase
pulou em cima dos dois, pronto para espancá­los. Mas
decidiu não fazer nada, conseguiu se segurar, pois não
estava bêbado.
Desde esse dia o pai de Renato disse que não queria
mais Álvaro lá, nem perto de seu filho, nem de sua
família. Álvaro não foi mais lá, mas continuaram se
vendo, escondidos, entre suspiros e gemidos, e braços
que seriam curtos se tornavam longos, sonhavam com
sua casa, com seu amor cultivado entre quatro paredes,
mas livre.
E assim mantiveram seu amor em cativeiro.
Naquele dia, quando já se passavam dez minutos
desde o início da aula e nem Álvaro, nem o professor
chegavam, Renato começou a sentir algo estranho.
De repente o professor entra, calado, mesmo diante
das piadinhas sobre seu atraso, não era de se atrasar,
olhou direto no fundo da sala como para certificar­se de
que Renato estava lá, seus olhos o miraram rapidamente,
e neles se viu algo fundo, estava pensativo. Pigarreou.
Renato engoliu em seco. Bom dia! Tenho uma má notícia
58
OUTRAS PAIXÕES
para dar­lhes, o nosso colega de classe, Álvaro… Ele
faleceu ontem à noite. Olhou de canto para Renato, sabia
que eles eram namorados, perguntaram­lhe o que havia
acontecido, fora assassinado na porta de sua casa, às dez
da noite.
Foi quando estava voltando do encontro com Renato.
Em alguns momentos sentiu que estavam sendo
seguidos, disse a Renato, que pensou que ele estava
apenas preocupado, afinal, quem os estaria seguindo?
Mas há alguns dias tivera uma discussão séria com seu
pai, e estava disposto a sair de casa, acabara de arrumar
um emprego e estava procurando uma pequena casa para
morar. E seu pai o ameaçara, ameaçara seu namorado,
tinha amigos que realmente fariam qualquer serviço sujo
para ele, mas não imaginou que ele tivesse coragem…
Quando o professor deu a notícia, tudo fez sentido,
depois tudo perdeu o sentido.
A primeira vez que o viu, quando ele se sentou ao seu
lado, com um olhar de canto, a primeira vez que se
beijaram, risadas, olhares, abraços, amor. Sentiu uma
forte pontada em seu coração e saiu imediatamente da
sala, com um gosto gelado em sua boca.
André Mascarenhas
59
OUTRAS PAIXÕES
Projeto
PAIXÕES CLANDESTINAS
OUTRAS PAIXÕES
Sofismando
60
OUTRAS PAIXÕES
É má a maré.
Em certa época, duma dessas feitas em que havia
perdido a Felicidade pela primeira vez, assuntei muito
dentro de mim e cheguei à conclusão de que a dita perdida
de fato consumado existia, por deveras. Bem que se não,
não sabia direito o que ainda havia de me suceder. Pois
veja, vou te contar piazote. Na primeira instância perdi um
amor desses amores de enfado e comodismo. Sofri, chorei.
Senti falta da dita por um bom tempo, e nesse tempo fui
infelizinho. Mas buscava o tesaurus perdido, queria minha
doce e dourada Felicidade de volta, ô se queria! Saí fora
por aí andando, vivendo e me satisfazendo. Não fui feliz
nem desinfeliz nesse meio tempo, mas fui algo
preenchido, fui sim. Saí e farreei com moça alta loira
bonita feia magra gorda mediana ruiva japa mulata louca
capenga. Saí com um mundaréu de mulher e lambi os
beiços em minha hedônica peregrinagem. Voltei a sorrir
finalmente depois de uma epifania paga à vista, mas retirada
a prazo. Voltei a sorrir cheio de dentes, sem amarelo nem
forçado, sorrindo por sorrir, feito pinto no lixo.
Aí então veio o conluio dos astros das estrelas dos
planetas da astrologia horóscopo zodíaco sagitariano 1º
decanato, foi sim.
Encontrei a danada que tatuou meu coração pulsante
fraquinho, fraquinho que se recuperava de doença de amor
quebrado. A danada limpou bem o coração e fez dele novo
feito folha. Ficou lindo, todo mecânico em quilowatts
61
OUTRAS PAIXÕES
hora por quilômetro quadrado de joules e amperes bem
fortes. Tinindo ficou e louco por ela. Fui feliz pacas, e
sorria para qualquer coisa que me topava na rua. Cacete!
Foi bacana demais, ô se foi. Ela era danada de boa e
danada de meu amor que só meuzinho. Amormeuzinho,
sim, eu chamava a danada desse modo, bem sofisma.
Mas aí então veio Destino em sua grande biga puxada
por cães negros e passou com a roda de ferro bem por
cima do coração elétrico motorizado e o partiu em
pedaços. Conto pra ti que na verdade verdadeira quem
puxou a roda pra cima do coraçãozinho pequetito foi a
danada, foi sim! Despedaçou o pobre bicho e saiu que
saiu cantando poeira na carona da biga negra.
Foi­se embora a danada e me deixou aqui, sofrido no
quebrado do quebranto.
Aí então sofismo comigo mesmo, depois de bem
alimentado e bem bebido, cadê meu talismã? Felicidade
se foi com a danada. Levou roubado na algibeira, e agora
'tou que cão sem dono. Já era, escafedeu­se a jaguara.
Assunto comigo mesmo bem pensado e mal falado que a
Felicidade se foi pra nunca mais. Dantes ela tinha se perdido,
mas foi facilmente reencontrada. Sem problemas, sem
mistérios. São Longuinho me ajudou. Agora? Ih piá! Agora
foi roubada, e a ladra fugiu pra não sei onde, nem quero saber.
Fico aqui, sem jeito olhando a maré, vir e voltar.
Vir e voltar.
Subindo e descendo, como meu humor feito mar de
lágrima salgada.
J. Pinto Fernandes
62
OUTRAS PAIXÕES
Projeto
PAIXÕES CLANDESTINAS
OUTRAS PAIXÕES
A história de Darci
63
OUTRAS PAIXÕES
Desde o primeiro instante você percebe que Darci não
é uma mulher de meias­palavras. Com 76 anos de vida e
56 anos de casada, essa senhora não carrega quaisquer
visões mágicas sobre o amor. Ela sabe que viver é uma
luta diária e se chegou até aqui ao lado de Clivaumir, seu
esposo, é porque foi mais forte do que a vida.
Os dois se conheceram quando ela tinha 17 e ele 24.
Na época ela namorava um outro rapaz, que num baile
deu­lhe as costas para falar com outra e por causa disso
ela resolveu tirar Clivaumir para dançar, já que ele não
era muito disso. E, como ela mesma diz, por teimosia
eles continuam juntos até hoje.
Não foi uma vida fácil, admite. O ponto mais crítico
da sua união com Clivaumir foi o problema de
alcoolismo deste, que graças à ajuda de Darci conseguiu
superar. Foram muitos anos numa batalha silenciosa,
pois ela não queria revelar aos três filhos nem às outras
pessoas o que acontecia em casa. “Eu chorava, mas eles
nunca me viram chorar. Se eles perguntassem, eu dizia:
ah, tô gripada.”
Tudo mudou quando ela resolveu interná­lo numa
clínica. Tomou­o pela mão, levo­o de ônibus até lá e
prometeu­lhe o quarto filho, que viria a se chamar
também Clivaumir, como o pai. De volta à casa, a
tentação de voltar a beber foi grande, principalmente
quando se juntava com os amigos. Ele tinha medo de que
o achassem mandado pela mulher, então Darci o pôs na
64
OUTRAS PAIXÕES
linha:
– Que bom que és um mandado pela mulher, porque
pelo menos tens uma!
Hoje em dia Clivaumir tem se revelado um bom
cozinheiro, na medida das suas limitações, e cuida da
casa direito, garante sua esposa. Eles só querem
aproveitar o que construíram na paz de Nova Veneza e
receber as visitas regulares dos filhos, que estão todos
bem e moram pela região. E não nos esqueçamos dos
bailes do Carnaval local, em que sempre estiveram
presentes e não deixarão de ir.
Para quem quiser conhecê­la, a Dona Darci
continuará lá em seu salão, disposta a contar com
orgulho a sua história, entre um cigarro e outro. Eu
também teria orgulho em seu lugar. Ela merece.
Conforme o relato dela.
65
OUTRAS PAIXÕES
Projeto
PAIXÕES CLANDESTINAS
OUTRAS PAIXÕES
Era uma vez o Amor
66
OUTRAS PAIXÕES
Garimpava em um sebo do centro velho da cidade e o
título de um livro me chamou a atenção:
“Era uma vez o amor mas tive de matá­lo.”
Pense que aquele título, que me pareceu bem
interessante, cabia melhor em uma canção. E tinha
relativa razão: folheando­o, descobri na contracapa a
informação que o título derivava de uma música da
banda Sex Pistols.
Não levei o livro, pois tive que escolher entre ele e
outros, de autores que havia me comprometido a ler;
também não ouvi a canção, pois em questão de música o
punk rock inglês não é bem um gênero que me atraia. O
problema é que fiquei com aquele título na cabeça:
“Era uma vez o amor mas tive de matá­lo.”
Era capaz de ouvi­lo em meio a burburinho do
restaurante a quilo onde costumava almoçar, diluído nos
ruídos urbanos da cidade, trazido pela brisa fria de cada
entardecer. Quando dormia, ouvia­o sussurrado suave na
voz de Tércia, como se ela ainda ocupasse o seu lugar, ao
meu lado esquerdo, no nosso leito conjugal.
“Era uma vez o amor mas tive de matá­lo.”
Não soube através de ninguém. Quando as suas cartas
pararam de chegar e as minhas a serem devolvidas pelo
correio, eu tive a certeza de que dentro de mim algo
havia se rompido. Pela primeira vez levei a sério o que
me pareceu premonitório.
67
OUTRAS PAIXÕES
Bateu em mim o desespero dos impotentes. Gastei
mais do que podia com telefonemas para o número que
ela me deixara para ligar em caso de urgência e recebi
respostas atravessadas, de pessoas sem o mínimo de
consideração, e em um idioma que eu não dominava.
Aquela porta me foi fechada.
Achei e temi que ela estivesse morta, mas não o
Amor. E atravessei as noites como quem cruza descalço
um mar de vidro estilhaçado, consumido pela culpa de
ter permitido que ela partisse. Ouvia à exaustão as fitas
cassete que ela me enviara com o que chamava de trilha
sonora do nosso amor. Entre estas canções não se
encontrava aquela dos Sex Pistols.
Uma madrugada, em uma daquelas fitas, detectei,
quase que por acaso, um diálogo curto porém devastador.
Atento, perscrutei mil vezes o seu conteúdo até entender,
ou em meu ciúme conjecturar, que se tratava de uma
conversa entre um homem e uma mulher. A voz
feminina, eu podia jurar, era a dela, Tércia. Relaxados,
como se descansassem de fazer amor e compartilhassem
íntimos um cigarro, riam. Certamente de mim.
Inoculado de ciúme, engendrei mil maneiras de me
matar, de matá­la, ou de matá­los; mas não cogitei em
momento algum assassinar o Amor que para mim ainda
era, como reza o soneto famoso, um sentimento imortal.
Depois disso, abalado, rastejei como um réptil que
digere a poeira estéril dos dias. Encharquei de álcool as
minhas noites vazias e incinerei nas chamas frias do
rancor as minhas parcas expectativas. Mas estava vivo. E
permiti ao meu corpo o consolo de outros corpos.
Passou. Ficou somente a lembrança. E aquela ideia
tola de que o Amor não pode morrer jamais.
68
OUTRAS PAIXÕES
Os anos correram. Nossos caminhos, talvez por mútua
intenção ou por conspiração dos astros, voltaram a se
cruzar. Ela falou em reatarmos, em darmos sequência
àquela história interrompida, em encaixarmos as peças
soltas da estrutura desarticulada que um dia ousamos
edificar.
Não acreditei que ainda apostasse no Amor. Eu agora
tinha dúvidas e não dispunha de recursos emocionais que
me permitissem arriscar novamente.
Tudo o que ela pedia era uma nova chance. Posterguei
a resposta.
Uma noite, outra noite, sem qualquer remorso ou
culpa, me vi a botar um ponto final naquela história.
Como cantava o Sex Pistols, como escreveu o escritor
colombiano Efraim Medina Reyes em seu livro, incapaz
de esconder minhas mãos sujas de sangue e de disfarçar
a minha covardia, tive de lhe confessar:
“Era uma vez o amor mas tive de matá­lo.”
Chico Pascoal
69
OUTRAS PAIXÕES
Projeto
PAIXÕES CLANDESTINAS
OUTRAS PAIXÕES
Sabor aos quarenta
70
OUTRAS PAIXÕES
A provocação iniciou­se com pequenas mordiscadas
nos lóbulos das orelhas. Palavras abusadas que roçavam
a pornografia, mas que variavam com a delicadeza com
que ele beijava os meus mamilos. Ao prenúncio do
prazer que beira o incômodo, eu o respondia com
gemidos de fêmea irritada e ansiosa pelo toque mais
sacana.
No jogo das sensações em que eu acabava de entrar,
davam­me satisfação os gestos largos com que ele me
realizava como mulher. Lábios afogueados, besuntavam
o meu corpo do pescoço até a virilha. Cada parte
arrepiada incitava­o ainda mais. A extensão daquele
momento fazia­me querê­lo todo dia. Impossível. Seria
ilógico prendê­lo a um relacionamento, qualquer que
fosse. Ele nasceu para ser assim, livre, selvagem,
insaciável.
Naquele ritual entre os nossos corpos lubrificados, a
língua do macho era protagonista. Foi a atuação mais
sincera que já tive entre as minhas coxas. Sei que a
linguagem é pesada, mas eu estava no cio. Se não
estivesse não teria falado coisas que jamais diria a
homem algum. A química perfeita se denunciava pela
mistura dos cheiros de gozo dos nossos corpos.
Quem chegasse ao quarto e se deparasse com aquele
cenário, teria apenas uma noção da volúpia entre nós
dois. Cama em desarranjo, calcinha na cabeceira do
espelho, vinho derramado no chão. O esperma nos
71
OUTRAS PAIXÕES
lençóis apenas evidenciava momentos que só dois
animais sedentos de sexo poderiam saber. Mas…
infelizmente tudo tem um final e preciso terminar essa
história. Não porque tenha acontecido alguma quebra de
encanto. Claro que não. O que houve foram intervalos de
tempo entre os vários momentos do nosso caso.
Devido ao curto espaço desta narrativa, deixo­lhe um
pouco da minha experiência como mulher. Até aqui nada
de novo. A novidade foi que isso aconteceu quando eu
acabara de completar quarenta anos. Após a minha
segunda separação, gozei pela primeira vez. Agora
ponho fim no que lhe conto. Sobretudo, porque estou às
pressas para cair de boca e nos braços deste ser fabuloso
que pintei com as cores da luxúria para o nosso deleite,
meu e dele, porque toda mulher tem o direito de se sentir
desejada.
Erick Bernardes
72
OUTRAS PAIXÕES
Projeto
PAIXÕES CLANDESTINAS
OUTRAS PAIXÕES
A história de Maria G.
73
OUTRAS PAIXÕES
Aos 24 anos eu me formei professora de História aqui
mesmo em Florianópolis e fui trabalhar em uma escola,
onde conheci um professor de Língua Portuguesa, Paulo,
também com 24 anos. Nós nos apaixonamos e tivemos
um relacionamento de sete anos.
Ele era uma pessoa muito culta. Nós viajávamos juntos,
íamos a peças de teatro, cinemas, shows; eu vivi tudo isso
junto com ele. Nós éramos mais do que namorados,
tínhamos um amor de alma, de cumplicidade.
Compramos um terreno juntos, mas não chegamos a
casar. O Paulo era muito metódico e tudo tinha que ser
mais, mais, mais. Nesse meio­tempo eu fui trabalhar em
outro colégio e ele foi fazer mestrado. Daí compramos
um terreno lá no Campeche, construímos a casa,
decidimos economizar mais um pouco...
Quando fez sete anos, tivemos uma briga e
terminamos. Um mês depois ele começou a desmaiar no
colégio, passar mal na rua... Eu achava aquilo estranho,
então fui saber por uma amiga minha que ele estava com
leucemia.
Liguei para o Paulo e falou que ia me procurar para
contar toda a história, que não queria me assustar. Em
seguida nós nos reaproximamos – ele se lamentando,
porque amava a vida e gostava muito de aprender –, mas
não mais como namorados, agora como grandes amigos.
Ele ficou treze anos com leucemia. Em 2008, em
74
OUTRAS PAIXÕES
março nós fomos a São Paulo para vermos uns shows,
sempre como amigos, aí quando chegou junho ele piorou
muito e teve de ser internado. Em agosto ele morreu.
Passei dez anos sozinha porque eu não conseguia
aceitar outra pessoa. Eu só fui conhecer alguém que me
convenceu a dar uma chance para mim mesma agora, em
2012. Guardo isso com alegria e considero uma boa
história, porque não é aquela história de amor
tradicional... (risos)
Relato dela.
75
OUTRAS PAIXÕES
Projeto
PAIXÕES CLANDESTINAS
OUTRAS PAIXÕES
Falava das minhas “desgraças”,
hoje escrevo a nossa tragédia
76
OUTRAS PAIXÕES
Foi um momento na minha vida como outro qualquer
– uma desgraça! Repetitivos e infortúnios fracassos
constantes. Tais desapontamentos realmente mexem com
o psicológico de uma garota, ainda mais ela sendo
destoante da sociedade. Sim… Falarei da minha vida
amorosa – outra desgraça! Que se juntava às coisas
banais e fazia com que meu maior estímulo para levantar
da cama fosse para assistir a reprises de séries escolares
com jovens feias sendo escolhidas pelos garotos mais
bonitos do colégio como suas namoradas. Por que tal
façanha só ocorre na TV? A vida era muito cruel mesmo,
e ainda sambava na minha cara quando descobria que a
feia da série, na verdade, teve de se maquiar bastante
para conseguir parecer feia, porque, na íntegra, ela era
mais bonita do que todas as meninas que eu já tinha
conhecido na minha vida.
Assim, foi nesse espirito de revolta, de luta e como
forma de evitar tomar antidepressivos que decidi criar
um novo plano de metas para minha existência: decidi
não esperar mais. Dessa vez era oficial e todas as fichas
já haviam caído. Eu já sabia que não existiam chances de
eu acordar um dia e ter me transformando em uma Miss
Universo como resultado da minha “fase de
crescimento”, que não podia nem mais pensar que
poderia encantar um herdeiro de um conglomerado
milionário vindo do outro lado do mundo e fazê­lo
desistir do dinheiro para poder se casar comigo, e que
jamais teria alguém tão apaixonado por mim que viria se
77
OUTRAS PAIXÕES
declarar na porta da minha casa a cavalo, nem mesmo de
van… Então segui em frente.
Influenciada, agora, por melodramas românticos e
humorísticos sobre rompimento de relações, me tornei
fiel ao dito “acredite e faça você mesma acontecer”.
Impressionante como tais dizeres quando ditos por
celebridades, acompanhados de uma música de fundo
altamente motivacional, nos fazem acreditar que
podemos conseguir qualquer coisa. Quer saber?
Desgraça também!
Porém, minha realidade, como já disse, sempre jogou
contra mim. Como conseguir ser amada e admirada
enquanto não possuía artifícios corporais “rebolantes”
em escala master e altamente magnetizados para atrair
alguém? Deveria incorporar um papel que pudesse cobrir
esses espaços que não preenchia.
Pensei em uma mudança radical, talvez fosse uma boa
ideia. Mas como perder a minha personalidade, meu eu
de verdade? Esquecer quem se é ia contra a principal
ideia dos filmes de rompimento, de cujus princípios
agora eu era adepta. Então fiquei do mesmo jeito… A
mesma desgraça!
Passei a pedir ajuda aos amigos e às pessoas mais
próximas. “Como fazer para me dar bem no ramo
amoroso?”, enchia todas as conversas com essa pergunta.
Falando de sapatos, nada me impedia de citar o sapatinho
de cristal de Cinderela e fazer alusão a sua grande
conquista com o príncipe; falavam de sono durante a
aula e eu sempre achava uma forma de comentar como a
Bela Adormecida havia conseguido um príncipe
encantado até enquanto dormia; conversavam sobre algo
como água e por que não citar as águas do Atlântico por
onde passou o Titanic e Rose e Jack se apaixonaram
78
OUTRAS PAIXÕES
perdidamente somente por se apaixonar mesmo. Tudo
que meus amigos diziam e faziam era uma perfeita
desculpa para reclamar do meu estado dolorido de
solteirice eterna. Isso posto, meu vocabulário agora era
composto apenas por alusões a contos de fadas e a filmes
bregas.
Numa tarde de quinta me deparei com um concurso
na internet. O tema era amor. Por algum motivo achei
que poderia participar, pois, mesmo não tendo
experiência nesse campo superestimado da vida, serviria
como um passatempo. Pedi ajuda mais uma vez aos
meus resistentes, pacientes e gentis amigos. Achei que
pudessem relatar algumas experiências românticas ou
quase piegas e assim eu poderia juntar com a minha
escrita, que nunca antes tinha sido ridicularizada, e talvez
tivesse chance de mostrar algum ponto de vista. Um
conto fictício, mas não mais que um conto.
Só que, pelo jeito, já tinha incomodado demais
aqueles que estavam ao meu redor. Disseram que meus
assuntos estavam monótonos e que não queriam ouvir
mais nada. Me deixariam caso não ficasse de boca
fechada dali em diante. Chorei. Resmunguei muito.
Chorei mais um pouco.
Já alterado com o meu show, um amigo mais ou
menos próximo se levantou da mesa em que todos se
reuniam e andou na minha direção. Me levantou
rapidamente da cadeira, de uma só vez, com um puxão
no meu braço. Me segurou e ainda relaxado tascou­me
um beijo. Um beijo na boca! Meu primeiro beijo…
– Não era isso que queria? Acabar com esse estado de
virgindade de beijos? Pronto, resolvido. Agora, cale­se! –
ele disse, agora alterado, como quem expulsa alguém
indesejado da casa no meio da noite.
79
OUTRAS PAIXÕES
Cai lentamente (ou talvez assim só na minha cabeça)
em movimento retilíneo uniforme. No chão. Não podia
acreditar que depois de esperar 16 anos para ter um
momento digno de realização amorosa, aquele momento
havia sido arrancado tão abruptamente de mim e que, por
mais que quisesse negar, no fundo tinha sido eu a
causadora de tudo aquilo. Assim sendo, jamais existiria
outra chance de ter a renomada primeira vez. Fiquei
sentada lá, sem poder sair, imóvel e boquiaberta,
processando mais uma derrota para minha lista de
desgraças à la Dostoievski, em tamanho.
Apesar de tudo, o beijo tinha sido muito bom. E por
um momento, analisando o gosto bom que ainda sentia
em minha boca, cheguei a dar razão a minha luta – de
fato eram aqueles gratificantes porém pequeninos gestos
que eu estava perdendo, sendo sozinha e desabraçada
nessa vida. Contudo, logo esqueci essa ideia. Pois já
tinha enfurecido os amigos, aqueles que sempre me
deram afeto, os trocando por uma realidade construída
com possibilidades platônicas.
Logo em seguida fui ajudada a me levantar pelos
outros que estavam no restaurante e dali em diante fiquei
calada. Nada saía da minha boca, todavia meus
pensamentos falavam e me insultavam a mil por hora.
Como fui burra. E como poderia, por um momento
sequer, ter apreciado um beijo que tinha sido concedido
para me calar e humilhar? Passei o final de semana que
se seguiu pensando nisso.
Felizmente, recebi algumas visitas corrompidas por
compaixão que me apoiaram no ocorrido no restaurante.
“Foi muita maldade o que ele fez”, repetiam as meninas.
“Você só queria escrever um conto, oras”, completavam
as outras. Porém nunca deixavam de relembrar e de
80
OUTRAS PAIXÕES
ressaltar: “claro que você não precisava ter nos enchido
tanto com esse assunto”, ou “podia pelo menos ter
escrito seu próprio conto, você sabia que já tinha passado
dos limites”. Sim, tinha passado dos limites, mas não
tendo história de amor nenhuma, como escreveria meu
próprio relato? Escreveria sobre minhas tragédias, as
mesmas que me colocaram no estado de coitada e
condenada?
Enfim, voltei. Fui normalmente à escola na segunda­
feira. Decidi ficar mais reclusa, de cabeça baixa, como
sinal de arrependimento e digna de dó. Passei as aulas
sentada comportadamente e, impressionantemente,
prestando atenção na matéria, apesar de ter ainda assim
de perceber as rodinhas comentando sobre mim, de ver
pessoas apontando para mim e algumas rindo de mim.
Mais tarde, lá pela quarta aula, ele apareceu – o
justiceiro incrédulo que tinha feito justiça em nome de
todos, mesmo que violentamente, e eu continuava a
considerá­lo um amigo (ficando afastado por um
momento), mesmo dadas as circunstâncias. Ele
conversava com os outros meninos, estes pareciam
querer convencê­lo a pedir desculpas porque já tinham
dó da minha pessoa. Todavia, ele não parecia se
comover, não parecia quer ceder. E, falando
sinceramente, eu não achava mais que ele tinha sido tão
cruel comigo, dadas também as circunstâncias que eu
tinha criado.
De repente ele começou a se aproximar. Nesse
momento quis morrer, e podia ter morrido sim. Meus
batimentos foram nas alturas, acelerados por causa do
conflito em minha mente que me julgava por ter sido
decepcionada por um amigo, por ter gostado do beijo, e
me sentir culpada pelos dois casos. Me afundei na
81
OUTRAS PAIXÕES
carteira e me encolhi na jaqueta do uniforme.
Ele, com seus olhos brilhando estranhamente,
sinalizou que eu me levantasse. Fiz o que ele pediu.
Logo já estava de pé, mas ainda não olhava nos seus
olhos. Eu olhava para baixo. “Preciso falar com você”,
ele disse. Me virei para o menino, olhei para seu rosto,
ainda assim fazendo muito esforço. Me posicionei como
se estivesse me esquivando de um soco iminente, só que
agora olhava mesmo para ele.
– Gostou do meu beijo? – o garoto me perguntou,
com um sorriso sarcástico.
Aquela pergunta me afetou muito! Eu tinha gostado
sim do beijo, mas aquilo já era provocação. Então meu
olhar, que antes pedia por misericórdia e gritava de tanta
vergonha, mudou para raiva. Não me contive, mandei o
dedo para o indivíduo. Ainda bem que percebi o erro
logo, e completei o gesto com um pedido de desculpas,
em voz baixa, claro.
– Você estava insuportável! – ele continuou.
– Eu sei – completei.
Então ele ficou me olhando por alguns instantes. Me
olhava estranho, com aquele olhar brilhante.
– Não vai me falar se gostou do beijo? – indagou
novamente. Prontamente o olhei feio e deixei bem claro
que essa pergunta me incomodava. – Sabe, não sei como
vou dizer isso, – continuou – mas o povo quer que eu me
desculpe com você. No início, achei que devia fazer isso
mesmo, só que agora não me arrependo mais do que fiz.
– Como assim? Como não? – indaguei assustada.
– Só não me arrependo – ele disse esfregando um pé
no chão como quem sente vergonha de algo.
82
OUTRAS PAIXÕES
Não entendi nada, mas imaginei que aquilo pudesse
ser um insulto e por isso virei as costas e saí andando.
– Eu não me arrependo. Na verdade, quero ajudá­la a
ter um conto! – ele gritou enquanto me afastava. – Se me
deixar…
– Não se arrepende e ainda quer me ajudar a escrever
um conto. Qual o sentido disso? – perguntei, muito
zangada.
– Não, eu não quero ajudá­la a escrever! Quero ser o
sortudo a fazer parte do seu conto, ser aquele que a fez
ter um! Desculpa – de repente as palavras saíram da boca
dele, do mesmo menino de quem eu fugia segundos
atrás.
Todos que estavam próximos se viraram para ver a
cena. Fiquei boquiaberta por alguns instantes e depois
segui caminhando, agora mais lentamente, porém ainda
para longe.
– Eu gostei do nosso beijo. Foi incrível, na verdade.
Sinto muito por ter sido tão cruel e ter desperdiçado seu
momento. Mas eu ainda sim amei nosso beijo. Talvez
nunca tenha feito alguém ficar pensando o dia todo em
você antes, me atrevo a dizer que é porque nunca
ninguém quis se aproximar de você, infelizmente. Agora
acho injusto a sua antiga condição Só que eu, mesmo
sem querer, acabei me aproximando e… Você é sim
inesquecível! Fiquei honrado pela chance e passei horas
desejando que você também tivesse gostado. Será você
pode me dar uma chance? Me daria a permissão de me
aproximar de novo? De verdade, por livre e apaixonada
vontade? – foram as suas últimas palavras, à medida que
eu me distanciava.
Cheguei em casa chorando. Joguei todos os meus
83
OUTRAS PAIXÕES
contos de fada fora e fiz questão de apagar da minha
mente tudo o que um dia desejei sobre o amor. Não sei se
entenderam, mas, para mim, aquela cena mostrou que
tudo o que aconteceu era melhor do que princesas com
seus príncipes e as plebeias com suas almas gêmeas. Ele
também tinha gostado do beijo, ele também ficou
pensando no que aconteceu entre a gente. Era a meu
momento, eu tinha conseguido! Por meios tortos, mas
alguém me amava e, supreendentemente, pude desafogar
minha alma e declarar que o sentimento era recíproco. E
então, “não mais que de repente” eu tinha meu próprio
namorado, um quase poeta e um conto. Meu conto, não
só baseado de fatos reais, mas totalmente composto por
fatos reais.
Agora ele está sentado ao meu lado, lendo este conto
à medida que escrevo. Percebo de relance seu sorriso.
– Meu poeta, – começo a dizer – adoraria registrar
nossa tragédia de final feliz, posso?
Ele diz que sim. E ainda ganho mais um daqueles
beijos, o que não é nenhuma desgraça, hehe.
Beatriz Lobo Miranda
84
OUTRAS PAIXÕES
Projeto
PAIXÕES CLANDESTINAS
OUTRAS PAIXÕES
A história do rapaz que nunca
amou a moça
85
OUTRAS PAIXÕES
Palavras! Preciso delas para contar a história do
rapaz que nunca amou a moça. Um rapaz esquisito que
ficava com a moça para ter do que desgostar. E uma
moça boba, esperançosa, de tudo perfeito e feliz. Faz
tempo que isso aconteceu, mas ainda lembro. Nada fez
o destino. O rapaz agiu sozinho: desmanchou o
namoro com o coice da palavra não. E o rapaz não
pagou nenhum castigo até hoje. É milionário de não
sei de quê. E a moça tem um filho feio de um outro
rapaz que ela não gosta nada. Esse novo rapaz, pai do
filho feio da moça, sabe um pouco sobre o passado
dela. Entretanto, por nada desconfia do que ela ainda
pensa. A moça faz para o rapaz que ela não gosta tudo
aquilo que queria fazer para o que ela ainda gosta. E
desse jeito vai pondo, por cima dos afazeres, uma
pelúcia de felicidade.
O menino, seu filho feio, vai mal na escola. E não
gosta de ir pescar com o pai nos fins de semana.
Prefere ficar no balcão da venda do avô materno. Mas
como não se encontra em dar um troco sequer, o avô
também lhe vai reprovando aos empurrões.
E essa mãe bem informada sabe que o rapaz
antigo, ainda bem lembrado, tem uma filha linda e
inteligente. Um dia a mãe chegou a pensar em como
se sentiria satisfeita, e talvez vingada – quem sabe?
–, se seu filho desposasse essa menina. Para que,
através de uma contiguidade do amor, ela
86
OUTRAS PAIXÕES
reencontrasse o rapaz.
Nunca aconteceu. Para isso jamais achei palavras.
Rafael Alvarenga
87
OUTRAS PAIXÕES
Projeto
PAIXÕES CLANDESTINAS
OUTRAS PAIXÕES
A história de Letícia
88
OUTRAS PAIXÕES
“A história começa há um ano e meio”, Letícia conta.
Ele, doze anos mais velho, trabalhava no mesmo lugar
que ela quando se envolveram. Logo ele lhe disse que
não era a única na vida dele, pois namorava outras duas
mulheres, mas como ela não procurava nada sério no
momento aquilo lhe serviu.
“Eu me interessava por ele e o achava inteligente,
mais pela atração, então quis ficar com ele. No início ele
disse que ia se separar e eu não quis, só que depois eu fui
gostando dele. E também descobrindo mais coisas... E
essas coisas eu não tenho como mudar, já são da índole
dele.”
Atraída pela conversa, pois, como diz, “eu gosto
bastante de ler, então homem só me atrai pela
inteligência, se tem algo para compartilhar”. É claro que
a atração física desempenhou um papel importante nessa
história, no entanto essa boa impressão dele se desfez
quanto mais ela o conhecia.
“Ele tem uma vida que nunca vai ser condizente com
a minha. Não adianta, não posso insistir nisso. Só que eu
já deixei de conhecer pessoas legais por causa dele. Eu
esperava que ele mudasse de vida, mas isso nunca vai
acontecer.”
Não desejando conviver com isso, Letícia tomou a
iniciativa de se afastar dele. Contudo, a paixão perdura,
ainda depois das ameças da parte dele e de tudo que ele
89
OUTRAS PAIXÕES
lhe fez. “Mesmo dizendo 'não', ele é tão machista ao
ponto de dizer que ele tem que terminar com ela. Mulher
não pode terminar com ele”, comenta uma amiga.
“Por que aceito isso e ainda o amo? Eu não entendo o
porquê. A única coisa que eu quero é ficar longe dele e
ter paz.”
Conforme o relato dela.
90
OUTRAS PAIXÕES
Projeto
PAIXÕES CLANDESTINAS
OUTRAS PAIXÕES
A história de Willy e Célia
Zumblick
91
OUTRAS PAIXÕES
Os dois nasceram em Tubarão, ele em 1913 e ela em
1915. Quando jovens, existia uma rixa entre clubes da
sociedade; o pai era de um lado, ela, de outro. Então
houve uma leve rejeição do namoro por parte dos pais
deles porque eram de clubes diferentes.
Como pintor, no colégio ele já desenhava e dali
continuou se aperfeiçoando, sem ter um mestre ou
frequentar uma escola de arte. Ele sempre dizia que ele
tinha uma luz, uma estrela que o ajudava a desenvolver
as pinturas.
Depois o meu avô por parte de mãe foi embora para
Timbó, aí eles noivaram enquanto o pai continuou
morando aqui, cuidando da relojoaria do pai dele, que
depois virou ótica, e a mãe ficou um ano lá porque
naquele tempo não se podia vir, a não ser de navio.
Ficaram noivos por um ano sem contato. Casaram­se em
1937.
Eles tiveram sempre uma vida muito saudável, uma
vida de muito amor, integridade e respeito. Jamais ouvi o
pai ou a mãe levantarem a voz. Eles tinham uma vida
plena em sociedade, a mãe o ajudava muito nas festas de
clube e estava sempre presente na ótica. Com 85 anos ela
ainda vinha à loja.
Foi inaugurado o Museu Willy Zumblick no ano
2000. Era o maior sonho da vida dele poder colocar
todas as grandes obras num museu para perpetuá­las.
Criciúma e Brusque já haviam oferecido o espaço, mas
92
OUTRAS PAIXÕES
ou ele colocaria aqui ou enrolaria as pinturas, porque de
Tubarão não gostaria que elas saíssem. Uma semana
depois de inaugurar o museu, ele fechou o ateliê e
daquele dia em diante não pintou mais. Tinha conseguido
realizar o sonho da sua vida.
Ela se foi em 2005, enquanto ele, em 2008. Quando
ela faleceu ele sofreu muito, não saiu mais e ficou cada
vez pior; eles eram muito amigos, um não fazia nada sem
o outro e se completavam. Deixam muita saudade.
Relato da filha do casal, Maria Elisa.
93
OUTRAS PAIXÕES
Projeto
PAIXÕES CLANDESTINAS
OUTRAS PAIXÕES
Lembranças
94
OUTRAS PAIXÕES
Faz um mês que ele se foi.
No meu quarto, repleto de lixo e cacos de sonho,
ainda sinto seu perfume. Um perfume nítido mas quase
inexistente, fruto da lembrança das noites quentes de fim
de verão.
Mas ainda o sinto em todos os lugares.
No corredor onde tantas vezes nos esbarramos sem
querer (às vezes por querer), onde eu ainda preciso
passar todos os dias. Nos rostos que eu ainda vejo todos
os dias, e dos quais não posso fugir. Na cama, agora
imensa, onde todas as noites senti o calor de seu corpo.
Faz um mês que ele foi para longe.
Não tão longe aonde eu não possa ir.
Não tão perto que eu possa alcançá­lo.
O sol está se pondo mais uma vez. Mais uma noite
sem ele.
*****
Caminho pelo corredor, sentindo o frio da chave
machucando minhas mãos. Hoje está tão frio, preciso de
um abraço quente, braços que me envolvam, me apertem
contra um peito forte e aconchegante, preciso de lábios
suaves que toquem os meus e me lembrem de que eu
ainda consigo amar.
Eu preciso dele.
95
OUTRAS PAIXÕES
O quarto está tão bagunçado, igual ao meu coração.
Suas lembranças estão espalhadas pelo carpete, dentro do
armário, no disco do computador. O primeiro bilhete
dele, escrito com tanto cuidado; a toalha que ele usava
todos os dias depois do banho quente e perfumado; a
camisa usada e não lavada que ainda tem um leve cheiro
do seu corpo; fotos digitais que vão mostrar, para
sempre, o lindo sorriso que me encantou desde o
primeiro dia.
Ele precisa de mim?
O telefone ao lado da cama ainda toca. Mas ouço
somente vozes estranhas, palavras ininteligíveis, barulho
de vozes ao fundo. Nunca mais poderei ouvir sua voz
através desse fone.
Porque ele se foi.
Ainda me lembro da primeira vez que vi seu rosto,
corado, forte, ornado com um par de olhos brilhantes e
puros, e um sorriso de satisfação em me conhecer.
Ainda lembro da última vez que vi pessoalmente seu
rosto, aqueles mesmos olhos brilhantes agora úmidos,
querendo se desviar dos meus, seus braços
delicadamente me afastando dele, tentando inutilmente
criar uma distância que ainda não existia entre a gente.
Eu penso nele.
O chão do quarto repleto de cacos de esperança
perdida, somente esperando que eu os recolha e os
coloque na lixeira. Na tela do computador vejo um
sorriso que só existe agora em meus sonhos.
A caixa de mensagens está cheia, mas nenhuma delas
me interessa. As palavras de que eu mais preciso são
agora inacessíveis, talvez inexistentes.
96
OUTRAS PAIXÕES
Pela fresta da cortina entreaberta, um tímido raio de
luar tenta inutilmente vencer a escuridão do quarto. Nem
sei mais quantas estrelas estão brilhando na noite de céu
limpo e de lua cheia. Porque o céu do meu coração está
agora permanentemente nublado.
Eu sonho com ele.
O sono custa a chegar, e quando chega, eu o rejeito. Já
não faz muito sentido deitar­me nessa cama quase vazia,
sem seu cheiro, sem seu calor, sem seus braços para me
aconchegar, sem o som da sua respiração para me ninar.
O relógio, sempre impiedoso, continua avançando no
tempo. Os minutos viram horas, e as horas viram
eternidades. Tão longa é a noite sem ele.
Sem ele.
Meu peito dói, uma dor que eu poucas vezes
experimentei. Meu coração parecendo que vai explodir,
minha cabeça num turbilhão de pensamentos sem nexo,
misturando o passado com o futuro, a realidade com a
imaginação, o sonho com o pesadelo. Dói tanto, mas as
lágrimas não surgem. Apesar disso, sinto meu coração se
afogando. O desejo e a dor penetrando em meu corpo,
como uma espada afiada.
Faz um mês que ele se foi. Mas a realidade é
impiedosa. A realidade não espera a ferida do coração
cicatrizar.
Ele está longe. Não tão longe que eu não possa
alcançar. Mas descubro, agora, que seu coração está
ainda mais longe. Tão longe que eu não posso mais
alcançar.
Um amor que tão rápido nasceu e tão logo pereceu.
Uma rosa selvagem, de cores vivas e de perfume sensual.
97
OUTRAS PAIXÕES
Agora, só restam os espinhos que perfuram minha alma.
Foram tão curtos os dias que passei com ele.
E tão longa é a noite sem ele.
Nancy Keiko
98
OUTRAS PAIXÕES
Projeto
PAIXÕES CLANDESTINAS
OUTRAS PAIXÕES
A história de Arnaldo
99
OUTRAS PAIXÕES
O pai de Arnaldo era taxista em Telêmaco Borba,
Paraná, assim como o pai de Anna Júlia. Os dois
senhores então investiram juntos em um negócio, com
planos de melhorarem suas vidas. Graças a essa
sociedade os dois jovens se aproximaram.
Ela vinha de uma família grande e pacata; ele
carregava o espírito aventureiro e independente de seu
pai, mas ela sempre o apoiou e desde que se conheceram
foram íntimos um do outro. Casaram­se em 1949,
quando ele tinha 26 anos e ela, 21.
Tiveram três filhos, um homem e duas mulheres, ao
longo de um casamento que durou por décadas, até o
falecimento de Anna Júlia. Depois de passar por muitas
lutas, agora cheio de histórias para contar dos seus 91
anos de idade, Arnaldo declara:
“Foi uma vida abençoada. E disso tudo tirei proveitos
enormes. Eu posso definir a minha vida com o seguinte:
fui feliz, [tive uma] família feliz."
Relato dele.
100
OUTRAS PAIXÕES
Projeto
PAIXÕES CLANDESTINAS
OUTRAS PAIXÕES
Paixão no cais
101
OUTRAS PAIXÕES
Todos os dias, os barcos desembarcavam no cais do
Delta do Parnaíba, muitas vezes cheio de esperança, pois
traziam consigo peixes, caranguejos e outros pescados
que moviam grande parte da economia da cidade.
Carlos era um pescador jovem, 23 anos, moreno alto e
de corpo atlético, com cabelos encaracolados. Sua
presença deixava as mulheres suspirando, ainda mais que
sempre era notada pelo fato de andar sem camisa. Era a
primeira vez que estava na cidade de Parnaíba, pois era
viajante, deixava peixes nas cidades litorânea do Brasil,
acredita­se que nem mesmo o rapaz lembrava­se de onde
vinha.
Perto dali, encontrava­se a “Casa de Lena”, era um
prostíbulo que existia nas proximidades do cais, ponto
bem estratégico, por sinal, visto que muitos homens
passavam por ali. Madame Lena, como era conhecida
Maria Madalena, era uma senhora de 40 anos que
cuidava do local.
Priscila era filha de Lena, uma jovem de 18 anos,
cabelos longos e castanhos, uma morena tipicamente
nordestina, que deixava os homens “babando”. Como
atingira a maior idade, deveria iniciar na casa de sua
mãe. Para ela, não era estranha a ideia, visto que suas
irmãs já estavam a certo tempo neste ramo.
Certa noite, Priscila estava andando pela praia, ao
entardecer, o sol se pondo deixava um tom amarelado em
torno da praia. Ela acaba encontrando o jovem Carlos,
102
OUTRAS PAIXÕES
que estava se preparando para partir. Parece mágico o
encontro de ambos, iniciam uma longa conversa que
acaba com os dois deitados nos fundos do barco, os
outros pescadores ainda não haviam chegado. Ali,
amam­se intensamente. Para Priscila, sua primeira vez.
Priscila conta toda sua vida para Carlos, após seu
momento de amor. Ele indaga o porquê de ela não
resistir a essa vida, nem entrava, já que ainda não havia
vendido seu corpo. A jovem olha nos olhos do rapaz,
promete fazer isso, o que ela desenvolveu pelo rapaz, era
algo forte. Após esse momento, o rapaz volta para sua
vida errante, nunca mais Priscila o veria.
Priscila mudou de vida. Bateu o pé na parede e como
o tempo tornou­se enfermeira. Sempre que podia, ela ia à
praia, não para tomar sol ou para nadar, mas à espera
daquele navio, onde seu grande amor estava, aquele
amor que a livrou de uma vida insana e sem objetivos.
José de Sousa Magalhães
103
OUTRAS PAIXÕES
Projeto
PAIXÕES CLANDESTINAS
OUTRAS PAIXÕES
Meu amor, meu amorzinho
104
OUTRAS PAIXÕES
Num dia sem igual lhe dei a mão numa oração e não
deixei de a olhar e de sentir seu coração.
Convidaram­me para uma festa anos sessenta em seu
lar. Fui só para a observar e semanas depois acabei por
ajudar a organizar o seu aniversário, para ter assunto e
para ouvir sua voz. Eu pedia o salgado que sobrou e você
não me dava chance nem ouvido, muito menos os
salgados.
Chamava­a para sair e você nunca aceitava, sempre
inventando histórias. Numa armação de seu irmão, aonde
iam pessoas de montão, saímos juntos para jogar boliche,
sendo uma enorme diversão, e tomamos um açaí de que
você não gostava até então e hoje ama de paixão.
Mesmo assim você ainda continuava não me dando
bola, mas pelo seu cansaço e pela minha persistência
fomos ao cinema e assistimos a um filme para nunca
esquecer. Na matinê de sábado, A Noiva Cadáver fomos
ver, pois não queria a oportunidade perder.
Beijei­a e foi mágico, inesquecível, pois o mundo
parou e do filme nem sei mais. Quando saí me assustei,
pois você me pediu em namoro sem dó no coração e me
fez ir à sua casa pedir ao seu pai a sua mão. O meu medo
foi tanto que demorei uma hora para chegar à sua
mansão.
Chegando à sua casa, estava lotada. Não sabia onde
olhar, a casa cheia de pessoas esperando, pessoas que
105
OUTRAS PAIXÕES
nunca tinha visto, e eu ali para falar ao seu pai meus
sentimentos e sonhos. E ele logo me pergunta qual era
minha intenção com você.
Na hora respondi, sem pensar e sem saber o que iria
acontecer, que queria namorá­la e um dia casar com
você.
Como sempre cumpro minhas promessas e nunca
desisto, hoje estou com você, tenho uma linda família e
você será meu amor, meu amorzinho por toda a vida.
Washington Lanfredi
106
OUTRAS PAIXÕES
Projeto
PAIXÕES CLANDESTINAS
OUTRAS PAIXÕES
A história de Sheila
107
OUTRAS PAIXÕES
O inferno de Curitiba começa logo ao lado da
Catedral. As calçadas são ocupadas por gente cansada do
trabalho, a caminho de casa, e por aqueles que acabavam
de começar o dia. São moradores de rua, viciados,
traficantes, seguranças, garotos e garotas de programa,
algumas longe de serem ainda garotas. Eu me perguntava
como poderia haver amor no meio disso tudo.
Cansado de caminhar e com frio, entrei num desses
lugares. No palco uma das mulheres dançava ao som de
Still Got the Blues, o que me deu um palpite de que ela
seria diferente das outras que me olhavam, sentadas ao
longo do balcão, à espera.
Depois do show ela veio perguntar o meu nome e se
apresentou como Sheila. Prefiro o nome verdadeiro, que
me confidenciou no fim da noite, e que guardarei em
segredo. Fui sincero com ela, disse que era escritor e que
não estava atrás de sexo, mas de uma história de amor.
Eu não estava nos seus planos, afinal ela era bonita e
poderia conseguir outro, mas gostávamos das mesmas
músicas e talvez por isso decidiu ficar por perto até o
fim. Mesmo assim ainda não sei quem ela era realmente.
Às vezes não percebia quem me falava, se a profissional
ou a mulher por trás. Pelas histórias que me contou
entendi que ali jamais poderia ser ela mesma.
Ela também nunca sabia quem estava na frente dela.
Havia malucos de todos os tipos; já foi ameaçada,
roubada e existia sempre o risco de ser reconhecida fora
108
OUTRAS PAIXÕES
dali.
Nesse ramo o amor à primeira vista é apenas um
teatro para quem esteja disposto a pagar. Contudo, nem
isso impediu que encontrasse o amor com o tempo e pelo
hábito. Como dizem, a confiança não se compra.
Infelizmente as suas histórias eram tão obscuras
quanto as minhas. Houve um cara com quem trabalhava
ali e com quem esteve junto. Ele acabou por se matar;
“drogas...”, ela concluiu e enterrou o assunto.
Então apareceu esse piloto que vinha vê­la todas as
noites até o momento em que ela disse: “Não precisa
mais pagar, eu já estou apaixonada por você”, só não me
contou o que aconteceu com ele. “Final feliz” por ali
quer dizer outra coisa.
Sheila revelou por fim que estava com alguém que a
ajudava bastante e esperava sair disso, mas não sabia
quando o conseguiria. Não ganha tanto quanto se pensa
que as mulheres nesse negócio ganham e o sonho de ter
o próprio salão de beleza parecia ainda distante de se
realizar.
Espero que ela consiga, pois das histórias que ouvi a
dela foi com a que mais me identifiquei e a que me deu
menos esperança.
Conforme o relato dela.
109
OUTRAS PAIXÕES
Projeto
PAIXÕES CLANDESTINAS
OUTRAS PAIXÕES
Romance agalopado
110
OUTRAS PAIXÕES
O que surge é uma mistura do som e da imagem.
Chega e é resultado de instantes distintos. Finalmente sai
da cabeça. É som de guitarra equalizada e distorcida por
efeito de equipamento eletrônico. Som sincopado,
imagem difusa. A batida é raivosa, brutal. E rápida. Tudo
é muito rápido. Ao mesmo tempo é bem pensada e
estuda cada passo. Quantos botões são necessários para
afinar a compreensão de um homem sobre o bicho­
mulher?
Explode um repicar de rabeca, saído do sertão sem
chuva e de pôr do sol alaranjado e descoberto. A
lembrança vem em flashes. Acendem e apagam no
pensamento. Cruzamentos de dados e sentimentos que
ficaram muito longe. Dez eles eram ao todo. Entre
meninos e meninas de onze a dezessete anos e “quase
dezoito”. Interrompe o reco­reco. Barulho de folhas
secas pisadas, cocheira fedendo a bicho que vive numa
paz que o humano desconhece. Walt Whitman diria desse
finito sossego que carregam, quase em oração: Lampião
e seu bando rezam. A cartilha é mostrada em tela grande.
Do que me lembro foi mais ou menos assim: juntos
sairiam numa cavalgada. Não havia cavalos e éguas para
todos. Uma estava prenhe – avisou o cocheiro. Apontou
para a efígie ovalada de fêmea quase castanha erguida
incrédula sob os cascos. Alguns resolveram­se em pares.
O espírito de ventura não permitiria que ela fosse na
garupa do namorado. Não diria sobre ela, mais nova que
ele. Ele menos bravo.
111
OUTRAS PAIXÕES
Aquele episódio deixaria marcas. Reproduziria nela
uma viva captura do instante. Do medo que não tinha
nenhum e de um adaptar­se habilidoso que fazia dela
sempre pronta, sagaz. A menina era assim. Aos onze anos
adorava cavalos. Naquele dia subiu com coragem e
nenhum mito de dor numa égua prenhe. Tirou da
cocheira o animal de pelo castanho que esperava a hora
de seu potro. Saía com a coragem cega de quem tem
impulsos maiores que as mãos. Medo sentia somente
agora enquanto escrevia e discorria em estilo que ainda
não conhecia, como bicho desabalado corria os dedos em
teclas de letras e de palavras vazias de significado; a
imagem da cavalgada já a possuía, a ideia de livrar­se
dela dominava conversas e tardes inteiras de alegria em
estar com os amigos. Não suportava a ideia de repetir
uma vez que fosse que ali ainda estava presa ao ritmo da
história, do modo que acontecera, e que a prendia.
O círculo derradeiro da pedra jogada no rio de sua
vida pelo primeiro namorado. Uma promessa que durou
três anos inteiros e a devoção a compreender
mecanismos espíritas. Provou de marcas delicadas e
escurecidas nas extremidades do seu peito, onde
carregava com coragem, seu coração puro estava cheio
de sonhos honestos, infantis e também medonhos.
Somente de conhecer o mundo, de sair por aí
cavalgando. Não aceitou a garupa, porque não aceitaria.
Mesmo que não tivesse surgido dela a ideia para o
passeio, da oportunidade de respirar ar puro no campo
em cima do bicho suando suas pernas e joelhos, assentos
e selas.
Sentia como um mesmo animal quando subia neles.
Talvez também porque tivesse a mania de levantar o
queixo quando o vento que batia em seus cabelos.
112
OUTRAS PAIXÕES
Lembrava que ele, o vento, vinha viajando de longe,
como um dia também gostaria e faria. E fez. Em cidades
do interior, de onde o vento não soprava para ela o
litoral. Foi para onde podia mandar notícia aos que
ficaram. E voltar quando queria.
Montou na égua prenha. Todos se acomodaram aos
pares com os animais. Seguiram passeio como quem
segue viagem. A aventura jovem, iniciada em horas de
meia­tarde. Sentia sua égua mais macia, redonda,
ovulada. O bicho que carregava na barriga não se mexia,
já estava em momento de encaixe na bacia. Maduro,
feito fruta, brilhando. Sabia da ousadia que cometia a
cada passo da cavalgada.
Foram na frente ela e a égua pré­parida, para logo
ficar para trás. Bem atrás. O namorado não se
conformava, ofendido dela não aceitar a anca do
quadrúpede que comandava. Ele, desde menino, gostava
também dos bichos, e melhor que todos os amigos
montava neles num dos poucos traços de segurança de
menino autônomo, o que não se parecia em nada o que
era em outras horas da vida que levava. Pais que
brigavam, irmãs que tinham direito a dança e cursos de
línguas, ele mais velho, tinha as chances, e desperdiçava.
Ali não, sentia­se seguro, cavaleiro. Estava para se tornar
o que todos esperavam.
Ela na Universidade, Ele a meio palmo, Ali, nos
caminhos estreitos de terra batida no campo, no comando
do bando de meninos e meninas, Ela na égua prenha,
bem atrás. A turma inteira que só galopava. Voltou um
par de vezes acelerando o animal com o passo do outro
que montava. Não tinha jeito. A égua a cada passo mais
pesada. Levaram mais de meia hora no trajeto
costumeiro, no cruzamento que alongava o passeio,
113
OUTRAS PAIXÕES
aconteceu o que cocheiro avisou como resultado de
desobediência.
No instante em que o animal percebeu que a tortura ia
ser prolongada, mexeu a cabeça puxando os arreios,
dando salpicos com as patas traseiras até que se
transformassem em pinotes que a turma ia identificando
aos gritos da amazonas montada. Disparou o conjunto de
três seres vivos numa campina sem árvore nem sombra.
A égua ia que ia, desembestada. Até a chegada do
estábulo na fazenda contava­se uns cinco quilômetros.
Metade de tudo somado em menos de alguns minutos
tinha sido devorado pelas patas ligeiras do animal que
queria voltar para casa. Isso acontecia a todos eles
quando reconheciam o caminho, mas aquela fêmea já
estava indisposta desde a hora que o passeio começara.
O namorado vinha no encalço a um par de
quilômetros, parecia mais o Zorro, herói de história em
quadrinhos, foi emparelhando o cavalo e a égua, justo na
hora que namorada já tinha dominado o susto do disparo
e o movimento disforme impresso pela velocidade.
Estava agarrada ao pescoço da égua, diminuiu o atrito do
vento e os cabelos ainda voavam às chicotadas na cara.
Sabia que tinha feito errado.
Compreendia agora a pressa do animal que queria
parir sossegada e se juntara à égua como parceira pelo
único jeito que se dava, agachando o pescoço também
longo, parecido com do animal, amarrando na fêmea os
braços compridos e finos, feito pele revestindo osso
puro. Ainda tentou olhar nos olhos da égua, sentiu que
suas forças acabavam, mas aprendeu com naquele
minuto como é que não se desiste por nada debaixo do
céu e em cima do mundo. Não seria ela, aprendeu com a
égua, um bicho que deixaria de lutar pela vida.
114
OUTRAS PAIXÕES
Emparelhados os animais, o ritmo já não era mais o
mesmo, o namorado puxou as rédeas juntando bem o
cavalo na égua, gritava vermelho, com a veia pulando do
lado da boca, com o gosto de sangue de um joelho
ralado. Os calcanhares roçavam no estribo. Saíram dali
mais carne viva e cor­de­rosa, que nem porco às vésperas
de um dia de festa em família. Pense numa pegada
rock’n roll.
O jeito era soltar o pescoço da égua e agarrar do
mesmo modo o corpo do cavaleiro, que naquele exato
instante, sem saber por que o que ela odiava mais que
nunca, ia obrigá­la a saber que deveria também amar
mais que tudo e que todos que naquela vida. Passou­se
para o animal comandado pelo comandante de tudo,
controlador da situação. Ele foi fechando os olhos para
não enxergar mais o branco dos olhos esbugalhados em
caras perplexas de meninos e meninas amedrontados.
Aquele jeito que ele deu, ela não daria. Daria o jeito
dela, isso sim. Pensou antes daquilo tudo que contaria a
aventura em estribilho de vitória dela mesma, uma vez
que chegaria sã e salva à fazenda da tia. Ele estragou
tudo, estragou a história que contaria aos netos da irmã
em algazarra de domingos. Nas rodas de amigos, nas
páginas dos jornais, quem sabe um dia. Agora, havia um
herói. E não uma heroína.
Chegou à fazenda minutos depois da égua vingada
estar já na coxia. Ela na garupa do namorado herói, que
sorria e sorria e sorria. Ouviu mais de mil vezes a
história ser contada e recontada pela própria mãe, que
não dava valor para sua valentia. Não esqueceu nunca
mais, e guardou bem guardada a certeza de que ele tirara
dela a vitória de chegar primeiro a casa, mesmo que aos
bofes na boca, refeita do pensamento de um erro, pois o
115
OUTRAS PAIXÕES
risco valia a pena pela aventura vivida. Algo que
conquistaria com a teimosia e com uma coragem
desinformada.
Atrás do páreo com o espírito de futuro engenheiro
mecânico, vinha o namorado. Risadas do destino, escuta­
as até hoje, não quer ser mais perturbada. Ainda que seja,
continua subindo sozinha em selas pelo caminho,
trazendo à tona apenas a voz fina da avó materna que
desde pequena ouvia dizer:
“Quando o cavalo selado aparecer, não pergunte para
onde vai, não queira saber. Suba sem nenhuma dúvida,
depois, com as rédeas na mão, domine o destino, o
futuro. Não dê ouvidos para o que vão dizer. Não abra
mão nunca da aventura de quem quer muito mais nessa
vida saber.”
E vem ficando cada vez mais atenta aos mascarados
desse mundo. Esses heróis que ficam guardados anos e
anos em homens que ainda eram meninos quando a
vontade nasceu. De salvar a donzela em grande perigo.
Virando alguém poderoso sobre um cavalo que não era
seu.
A história da corrida pertencia a ela, mas a namorada
salva seria posse dele. Para sempre. Justo ela, a
adolescente indomável, destinada a ser mulher crescida
com aquela vontade danada de aventura que não estanca
nunca. Mais que isso, só lhe enche de saliva a boca.
Molha os dentes todos até a garganta.
Quando se depara com o precipício, é invadida até
nos pulmões, no coração, na cintura, nos quadris, e vai
deixando as pernas rentes com o dorso do bicho que a
carrega, furando feito tronco crasso o túnel de um tempo
que ainda não está aqui.
116
OUTRAS PAIXÕES
Num modo agalopado de trazer o futuro, fazer de si
mesma um erro calculado responsável pelo surgimento
do homem adormecido no que antes era menino
assustado. Foi o modo dela, fazendo brotar do músculo
sem sangue e acovardado dele uma coisa pulsante, que
afinal ergueu um troféu, a tal namorada, sentindo na
boca antes seca, o gosto úmido de vitória. Sob a trilha
sonora de uma Ópera Prima.
Geórgia Alves
117
OUTRAS PAIXÕES
Projeto
PAIXÕES CLANDESTINAS
OUTRAS PAIXÕES
A história de R.
118
OUTRAS PAIXÕES
Existe muito preconceito hoje em dia, ainda, com
relação a um homem casar com uma mulher que tenha
filhos, seja separada, divorciada... Eu sofri muito
preconceito. Era o “kit pronto”.
Eu fiquei viúva muito cedo, com dezenove anos.
Tinha casado com dezessete anos, estava grávida de uma
filha e tinha uma de quatro meses. Nos quatro primeiros
anos eu sempre chorava.
Se saísse à rua e visse um casal com filhos, eu
chorava porque não acreditava que realmente um homem
pudesse me assumir com duas filhas. Então só pensava
em trabalhar e em sustentar as duas, porque o amor seria
bem complicado.
O que eu mais queria era juntar de novo uma família
para elas. Como eu tive e sempre acreditei que a base de
tudo é a família, eu queria isso para elas. Hoje elas são
duas criaturas maravilhosas e deram certo na vida. Acho
que elas se espelharam muito naquilo que eu passei.
Sempre as fiz entender a minha história e o porquê de
elas não terem tudo o que as outras pessoas tinham.
Eu conheci o meu segundo marido aos 25 anos,
através de uma amiga minha, só que teve muita
resistência da família dele. Eu era uma mulher sozinha,
viúva, e ele era dois anos mais jovem do que eu.
No começo era um namoro, claro, sem nenhum
compromisso, mas ele passava uma coisa boa, como
119
OUTRAS PAIXÕES
passa até hoje. Terminamos duas ou três vezes em função
da pressão da família dele. Nesse meio­tempo perdi a
minha mãe e a minha irmã em três meses, e foi aí que ele
veio conversar comigo e voltamos em definitivo.
Eu deixei bem claro que nós só teríamos alguma coisa
séria a partir do momento em que eu pudesse ter as
minhas filhas junto. A razão de eu acordar todo dia e ter
enfrentado tudo o que enfrentei são as minhas filhas.
Foram a minha fortaleza e a minha bússola, porque com
dezenove anos, viúva, sem fazer nada... Foi através delas
que eu consegui.
Até então era a minha ex­sogra que me ajudava a
cuidar. A família do meu primeiro marido me apoia até
hoje. No dia que eu ganhei o meu terceiro filho a minha
ex­sogra faleceu. Ela dizia que só partiria tranquila
quando eu achasse uma pessoa responsável. E ela o
achava responsável, foi a única pessoa que a família do
meu ex­marido aceitou.
Eu acho uma história comum, mas quem passa por
isso sabe das dificuldades do dia a dia, porque por muito
menos os casais se separam. Qualquer problema é cada
um para o seu lado e acabou.
Temos que acreditar nas coisas, acreditar em algo e ir
atrás, embora não seja fácil. Tivemos tempestades,
tivemos brigas como qualquer casal, mas estamos lá
firmes e fortes. Criamos duas filhas, tivemos mais um;
hoje temos uma neta. Somos uma família bem unida e
estamos há vinte anos juntos.
Relato dela.
120
OUTRAS PAIXÕES
Projeto
PAIXÕES CLANDESTINAS
OUTRAS PAIXÕES
Igual a zero
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OUTRAS PAIXÕES
Na calçada, ela já não estava mais desacompanhada e
o Huguinho que a puxava pela mão lhe dava a falsa
sensação mista de proteção e de liberdade que ela tanto
reclamava. Parecia feliz. Devia estar. O sorriso
contagiante e constante lhe davam a impressão que tudo
estava muito bem. Seguiam em frente.
Eles haviam se conhecido em um bar. Na verdade, foi
ali que ela o avistou pela primeira vez e, por ser expert
em traçar perfis de desconhecidos com base em leitura
de gestos e de vestimentas, vislumbrou ali uma
possibilidade de sucesso em relacionamento. Na ocasião
ele estava com um grupo de amigos e era, de longe, o
menos entrosado. Os amigos pareciam mais intelectuais,
enquanto ele não dava impressão de acompanhar o
raciocínio, ficando vidrado no celular.
Foi muito fácil depois para ela identificá­lo entre os
que haviam feito check­in no Foursquare e fazer em
seguida o possível para entrar em contato. Seus
relacionamentos amorosos anteriores não haviam sido
nada produtivos e ela estava mesmo em busca de alguém
que a diminuísse menos e somasse mais. Não precisava
ser nenhum Don Juan ou um poço de inteligência. Só um
passatempo já bastaria para suprir a carência e se divertir
com alguém que passava 4 horas por dia na academia e
bem longe de qualquer leitura.
Uma semana de conversas pela internet já foi o
suficiente para marcarem um encontro e em poucas
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OUTRAS PAIXÕES
semanas já haviam assumido um namoro. Os familiares
de ambos estranharam e comentavam entre si que um
não tinha nada a ver com o outro. O brutamontes sabia
apenas repetir a todos que Eduardo e Mônica tinham
dado certo, enquanto ela tentava esquecer que as
semelhanças com o par da canção iam muito além.
Ela buscava sorrir o tempo todo, até porque não tinha
por que não fazê­lo. Já não tinha mais motivos para
chorar, para se entristecer. As cobranças, os barracos e os
nervos agora haviam ficado no passado dos ex e o fato
de o atual mal compreender tudo que passava na cabeça
dela a deixava aliviada de uma certa forma. Ele já estava
mais do que satisfeito: vivia na ilusão de que tudo estava
correndo às mil maravilhas, mas só até que…
Só que “Até que…” não existia na vida deles. Eles se
completavam. Ela falante, ele calado. Ela pensando, ele
malhando. Ela sorrindo, ele também. Se eram felizes?
Ninguém sabe. Nem eles tinham certeza disso. Mas pra
que queriam ter certeza disso? Seguiam em frente.
Dudu Zen
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OUTRAS PAIXÕES
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PAIXÕES CLANDESTINAS
OUTRAS PAIXÕES
Irrupção
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OUTRAS PAIXÕES
A carteira de canhoto era mais desconfortável que a
de destros. Chegar atrasada significava não poder trocá­
la, pois todas já estavam ocupadas. Menos o seu lugar.
Pelo menos ali eles respeitavam o implícito lugar
marcado na sala – não como sua antiga turma.
Mas a pilha de livros em que deitava ainda era mais
confortável do que encarar o desprezível professor por
cinquenta minutos diretos. Sua cabeça doía, parecia que
um pedreiro tentava abrir seu crânio, como o concreto. O
suéter da escola pinicava seu pescoço.
Noventa reais para a droga do suéter pinicar.
– …Ei, sente direito!
Mensalidade de mil e setecentos, para ainda ter que
usar um uniforme que pinica.
– …Levanta a cabeça por favor!
– Por quê? – respondeu ela, abrindo os olhos e
olhando para cima, ainda deitada sobre os livros.
– Como? – o professor pareceu surpreso com a
resposta.
– Por que você quer que eu sente direito?
Ele pareceu mais confuso ainda. A turma toda o
olhava.
– Para prestar atenção na aula! Eu…
– Você estava explicando porque moléculas polares
125
OUTRAS PAIXÕES
são dipolo permanente, enquanto as apolares são dipolo
induzido. – disse, ficando ereta na cadeira, encarando­o.
– Eu não preciso estar ‘sentando direito’ para ouvir o que
sai do seu microfone.
Ela não percebeu, mas todos perceberam que ela
provavelmente não devia ter acrescentado a última parte.
A expressão de alunos do ensino médio, quando alguém
está prestes a se ferrar, é universal.
– Por que não vai lá fora falar com a Lúcia?
– E eu digo o que para ela?
– Apenas vá! – não chegou a ser um grito, mas com
certeza pareceu, graças ao microfone.
A garota se levantou, lentamente, tirando a franja do
rosto enquanto descruzava as pernas. Cambaleou por
entre as mochilas de sua fileira de carteiras, não olhou
para ninguém. Não se importou se a observavam ou não.
O que falavam ou não. Simplesmente não se importava
mais.
Abriu a porta e a bateu ao sair, de leve, mas o
suficiente para fazer a classe prender a respiração e olhar
o professor novamente, que apenas suspirou e voltou
para sua explicação.
Seguiu o corredor do terceiro ano até o final, onde os
armários ficavam de um lado e a escada para o primeiro
andar, do outro. Seus passos eram arrastados, o cadarço
do All Star estava desamarrado e queria evitar um tombo
– ao mesmo tempo em que queria evitar amarrá­lo. Ela
era esse tipo de pessoa.
A sala da cordenadora estava aberta. A mulher de
quarenta anos, loira, olhava alguma coisa no computador.
Provavelmente o Facebook.
126
OUTRAS PAIXÕES
Deu uma leve batida na porta e entrou, sem esperar
ser convidada. Sentou­se na cadeira em frente à
escrivaninha.
– O André me mandou.
– E porque ele te mandou?
– Talvez porque ele não goste do fato de que eu não
preciso estar olhando para ele para poder ouvi­lo.
As sobrancelhas não pintadas de Lúcia ergueram­se
ligeiramente, enquanto as rugas de sua testa marcavam
sua tez. Ela se endireitou na cadeira, dando um meio
sorriso. Precisava recompor­se. Passando levemente a
língua pelo lábio inferior, falou, seu tom mais
condescendente impossível:
– Sabe, os professores andam preocupados com você.
– Por quê? – foi a vez dela de ficar surpresa. – Minhas
notas abaixaram?
– Não, não – exclamou, olhando para o computador,
mais por reflexo do que por necessidade. – Na verdade,
elas aumentaram.
– Então qual o problema?
– Bom, dizem que você anda muito calada e passa o
intervalo inteiro deitada sobre a carteira e…
São tantos problemas que nem sei por onde poderia
começar. Talvez pelo fato de nós sermos liberados dez
minutos depois do pré­vestibular. Nesse meio tempo o
restaurante já está lotado e sobram apenas os restos do
almoço. Mas você não, né, Lúcia? Sempre sai quinze
minutos antes, e come primeiro. Pensa que ninguém vê,
mas você não come tão rápido quanto pensa, não. Ser a
última turma do corredor também. Quase impossível ser
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OUTRAS PAIXÕES
o primeiro da fila no intervalo. Os salgados de frango
com catupiry sempre acabam primeiro. Nem lembro da
última vez que o comi. Seria bom se o Euclides usasse
uma calça social mais larga – ou então uma cueca ao
invés de samba canção. Ninguém merece ter que ver o
pau do professor balançando. Nem a mulher dele
andando que nem um pinguim pelo tablado – enfatizando
o tamanho do Euclidão. Amigos que se esquecem de que
você mudou de sala. Melhores amigos que começam a
namorar e apenas te esquecem. Namoradas que te trocam
por um cara.
O fato dessa escola ser toda espelhada. A cor azul do
vidro. O modo cinza­azulado que o céu fica nos dias
nublados. O fato de o ensino médio ser presencial. O
incômodo e desgastante jeito daquelas pessoas de serem.
O fato de que a cada dia mais me pego pensando em qual
faca na minha cozinha abriria o meu pulso mais
facilmente.
– …Talvez você queira falar com o psicólogo da
escola? Ou com o padre?
Padre. Que tipo de escola tem um padre? Talvez o do
tipo que cobra quase dois mil de mensalidade, mas
mesmo assim não compra um retroprojetor decente. Do
tipo que tem umas prioridades bem estranhas. Do tipo
que eu não deveria frequentar.
Se eu pudesse simplesmente sair. Esquecer os últimos
dois anos e meio que passei nesse lugar e com essas
pessoas. Esquecer a garota que partiu meu coração
idealizador e tirou­me a virgindade antes que estivesse
pronta. Esquecer a primeira vez que usei maconha. A
primeira vez que senti uma amizade verdadeira. A
primeira e última vez que fiz uma escolha simplesmente
para desagradar alguém.
128
OUTRAS PAIXÕES
Mas é mesmo…
Eu não me importo.
Então eu posso simplesmente sair.
A garota levantou­se. Lúcia segui­a com os olhos,
ainda esperando que ela a respondesse. Apenas a imitou
quando a viu atravessando a porta, sem dar ouvidos aos
seus chamados.
– …Já a ligação iônic…
O professor observou a porta se abrir e estático, assim
como a turma, observou a garota adentrar, dirigir­se ao
seu lugar e Lúcia, pairando no portal, chamando­a.
– O que você está fazendo? – perguntou, enquanto ela
e André trocavam olhares atônitos.
– Pegando minhas coisas – empurrou seus cadernos e
estojo para dentro da mochila de qualquer jeito, não se
preocupando em guardar os livros. – Vou embora daqui.
Pôde sentir os olhares a seguindo, mesmo quando
ainda estava agachada e tirou os cabelos dos olhos
verdes. Atravessou o corredor congestionado de
mochilas, sorrindo, pensando em como essa era a última
vez. Teve até vontade de chutar algumas delas para
comemorar. Mas pensou que era melhor não.
– Aonde você pensa que vai? – É a última vez que
vou ouvir esse microfone irritante.
– Embora, não ouviu? – esbravejou, parando a alguns
passos de Lúcia, de costas para as duas primeiras fileiras
de carteiras da sala. De costas para ela.
– Lúcia, por que você não liga para os pais del…?
– Não, Lúcia, não há necessidade de ligar para a
minha mãe. Ela não vai querer vir me buscar, além de só
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OUTRAS PAIXÕES
se aborrecer quando você a liga desnecessariamente.
Principalmente para avisar que eu não vim para aula. –
ela tirou os olhos do professor por um momento, para
olhá­la, mas seu corpo não mexeu um centímetro. Tentou
imitar sua condescendência o melhor possível – Se eu
não vim, ela sabe. Eu tenho mais o que fazer do que ir
matar aula. – André fez menção de que iria dizer alguma
coisa, mas ela não lhe deu a oportunidade de começar. –
Aprendo mais rápido lendo sozinha do que sendo
obrigada a ouvir esse microfone que você usa como
tentativa de esquecer que é apenas um professor de
ensino médio. Se eu não precisar olhar pro seu bigode
mal depilado mais nenhum minuto, poderei ser
finalmente feliz.
– E…
– NÃO! – ela estava gritando. Com um professor.
Gritando. – CANSEI.
Olhos foram arregalados. Olhares trocadas. Sorrisos
segurados.
– QUEM QUE ESCOLHERIA FICAR POR
OBRIGAÇÃO EM UMA ESCOLA QUE TEM UM
PADRE? QUE TEM UMA ORAÇÃO TODA MANHÃ?
COM ESSE TIPO DE GENTE? – continuou, dessa vez
virando para os alunos, gesticulando. Olhou para ele
novamente – Com professores de meia­idade que comem
as alunas de dezoito. Com tanta gente escrota… E que
não entende.
O professor deu um passo em sua direção, olhando
dela para Lúcia, como se buscasse sua ajuda para lidar
com a situação.
– Por que não nos acalmamos e…
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OUTRAS PAIXÕES
– PORRA.
Sua mão correu em encontro à porta, atravessando a
janela de vidro que ornamenta a parte lateral da mesma.
Lúcia sobressaltou­se com o movimento, assim como
todos os outros presentes. O barulho foi estrondoso, mas
rápido, fazendo com que as pessoas hesitassem se
realmente aconteceu ou fora apenas imaginação. Porém,
os cacos manchados de sangue aos pés da garota não
mentiam.
Ela retirou a mão do orifício da porta, lentamente. Sua
cabeça abaixada e os cabelos tampando sua expressão da
visão de Lúcia. Os alunos podiam apenas ver suas costas
e ombros mexendo devido a sua respiração pesada.
Ficando ereta, cambaleou até que ficasse de frente
para André, que a olhava aturdido, como praticamente
todos ali.
Tentou fechar a mão, mas sentiu uma dor lancinante.
Percebeu que um caco de vidro estava enterrado entre
seu dedo do meio e o anelar. Com a outra mão, puxou­o
sem hesitar – ele tinha cerca de um centímetro. O sangue
jorrou, mas pelo menos conseguiu fechá­la, apesar do
incomodo.
Seus olhos fitaram sua cadeira vazia. Ao seu lado
estava sua única amiga ali, que também fora trocada de
turma. Aparentava mais branca do que o normal, e seus
longos dedos seguravam o celular como se tivesse sido
interrompida no meio de uma importante mensagem.
Uma das gêmeas chorava silenciosamente.
Olhou para uma das pessoas na primeira carteira. Não
chegava a ser amiga, mas era a mais perto.
– Dullius, me empresta um pedaço de papel? – disse,
andando até ela.
131
OUTRAS PAIXÕES
A garota acordou do transe e balançou a cabeça,
arrumando o óculos sobre o nariz. Arrancou um pedaço
de papel de seu caderno e entregou à outra.
– E um lápis? – não esperou pela resposta, apenas
pegou o que estava ao lado do caderno.
Escreveu uma combinação de seis números, com certa
dificuldade devido ao estado de sua mão direita. Não se
importou com o sangue que deixara no lápis após usá­lo.
Caminhou em direção a Lúcia e ofereceu­a o papel.
– Este é o número do meu armário, e essa é a
combinação – a mulher o pegou, sem entender o que
deveria fazer com a informação. – Pegue os meus livros
e doe para a biblioteca.
Sem perceber, tirou a franja dos olhos, usando a mão
ensanguentada. Quando virou­se para a turma, um traço
de sangue partia da bochecha direita e seguia na
diagonal, passando perto do olho e sobre o nariz, até o
lado esquerdo da testa. O sangue era quase da mesma cor
que os seus cabelos, dando a impressão de ser apenas
alguns fios rebeldes.
Seus olhos pararam na primeira fileira, em frente à
porta e ao lado da parede, terceira carteira. De lá,
encontrou os olhos cor de avelã a encarando. Sua boca
estava entreaberta, igual quando tomava fôlego após um
longo beijo. Seus cabelos loiros estavam presos atrás das
orelhas, coisa que só fazia quando estudava ou precisava
se concentrar.
Olhou­a por alguns segundos, tentando capturar
aquele momento o mais precisamente possível. Sabia que
seria a última vez em que a veria. Pelo menos
pessoalmente.
132
OUTRAS PAIXÕES
– Espero que seja feliz na sua vida de hétero – a frase
saiu como um deboche, graças à falha tentativa de sorrir
e de dizer aquilo sinceramente ao mesmo tempo.
Mas ela apenas virou­se e saiu da sala. Não se
importava mais em ser mal interpretada. Nas próximas
semanas falariam apenas o que quisessem, não importava
que fosse verdade ou não.
Desceu a escada de dois em dois degraus, querendo
sair dali o mais rápido possível. Nem percebeu que
alguém a seguia – apesar de seus passos baterem no piso
frio mais vezes que os dela, por não estar pulando os
degraus.
Foi apenas quando já estava no corredor do primeiro
andar que ouvira ser chamada.
– Espere!
Parou abruptamente. Entre as pessoas que pensara que
a seguiriam, ela não era uma delas.
– Vocês está bem?
A garota loira tentou aproximar­se, olhando para sua
mão, que pendia ao lado de seu corpo, como se não
funcionasse mais.
– O que você quer, Isadora?
– Você nunca me chama assim. – ela parou, assustada
por ouvir o próprio nome.
– Bom, acho que perdi o direito de te chamar de Isa,
não é? – ficaram em silêncio por algum tempo, ambas
relembrando o momento em que flagrara a garota
beijando o melhor amigo, apenas uma semana após
terem terminado. – Mas não posso dizer que não
esperava por isso.
133
OUTRAS PAIXÕES
Ao dizer isso, continuou a andar em direção à saída, à
sua liberdade. Mas, ao mesmo tempo, Lúcia e o
professor André apareceram ao pé da escada,
aparentando recém saídos de um transe.
– Estão ligando para a sua mãe, talvez seja melhor
esperar ela chegar aqui. – disse ele.
– Vamos até a enfer…
– NÃO! – gritou, parando para poder encará­los.
Tinha chegado perto da catraca e já tinha aberto a
mochila para pegar sua carteirinha de estudante. O
porteiro, que estava sentado em sua mesa perto da saída,
sobressaltou­se e levantou­se. – PARECE QUE VOCÊS
SÃO BURROS OU NÃO QUEREM SE TOCAR.
Os quatro olhavam para a garota. Ela começara a suar,
e o sangue em sua testa começara a escorrer para seu
rosto, obrigando­a a limpá­lo, mas realmente só fazendo
tudo piorar.
– Você e você provavelmente são as últimas pessoas
que quero ver na vida. – exclamou, apontando tanto para
o professor quanto a ex­namorada. – ESSA ESCOLA DE
MERDA, é o último lugar que quero ver na vida.
– Por que a gente não senta ali no sofá e conversa um
pouco? – disse Lúcia, aproximando­se e pegando a
mochila da garota do chão.
A única coisa que lembrou foi uma fúria irradiar de
dentro de si. Talvez gritara mais também. Isa certamente
o fez. E o porteiro levantou­se da cadeira tão rápido, que
ela caiu no chão. Assim como Lúcia.
Ao abrir os olhos, percebeu que o quarto estava
escuro. Sentia­se tonta e sua cabeça girava. Tivera o
sonho mais estranho. Não lembrava exatamente dele,
134
OUTRAS PAIXÕES
apenas que se passara na sala de aula e que havia gritos.
E tinha quase certeza que no fim atacara Lúcia, o que era
esquisito, pois gostava bastante dela. Uma porta abriu
silenciosamente e percebeu uma silhueta adentrar o
recinto – alguém que tentava não fazer barulho.
– Ah, você está acordada – disse uma mulher de voz
mansa, após uma fraca tentativa de comunicação da
garota. – Sua garganta está bem arranhada, falar irá doer
por um tempo. Aqui, beba um pouco de água.
Ela levou um copo de plástico até os seus lábios,
segurando o canudo para que ela bebesse. Não entendia
quem era aquela pessoa no seu quarto, oferecendo­lhe
água, mas sua sede era muita, e as perguntas tinham que
esperar.
– Não se preocupe, você vai ficar bem logo.
Não conseguia ver o seu rosto claramente, mas
percebeu que ela sorria. Colocando o copo em cima de
uma mesa, a mulher pegou uma seringa do bolso do seu
jaleco. Com habilidade, destampou­a e injetou o líquido
transparente no saco de soro.
Confusa, percebeu que o soro estava ligado ao seu
braço esquerdo.
Olhou ao redor do quarto e percebeu que não estava
em sua cama, muito menos em sua casa.
– Isso vai te ajudar a dormir mais – a mulher saiu tão
silenciosamente quanto entrou.
Sua cabeça girava e fios de cabelo tampavam­lhe os
olhos. Tentou tirá­los do rosto, mas quando tentou erguer
a mão, ela parou no meio do caminho. Uma tira de pano
prendia­a à cama.
135
OUTRAS PAIXÕES
Forçando os olhos, pôde ver que a mão direita estava
toda enfaixada.
Sua mente já estava enevoada de sono quando
percebeu que não havia sonhado.
Amanda Marchi
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OUTRAS PAIXÕES
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OUTRAS PAIXÕES
É namoro ou amizade
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OUTRAS PAIXÕES
Quando pequeninos, a afeição também brota com o
codinome namoro. É uma relação mutante. Volta e meia,
com um novo affair a cada semana. Não há tempo nem
para os familiares e para os professores decorarem os
nomes dos afetos. Daí pode surgir a questão: é namoro
ou amizade?
A maioria nem sabe que está namorando, os meninos
principalmente. É amizade, entende? Amizade pura.
Sincera. Fofa. Sem mágoas ou cobranças tolas. Um laço
com perdão expresso. Não há perda de tempo com DR
ou com dar um tempo na relação. A regra é clara: pular,
correr, gritar, estudar juntos, bagunçar… Namorar na
infância é brincar pra valer.
Mal saído dos cueiros, o meu levado vizinho dizia à
minha mãe que era meu namorado. Detalhe, eu nem
sabia falar. Vez ou outra, segundo Dona Eva, esse
furacãozinho aparecia lá em casa, batia um papo com ela
e me dava um oi… É obvio que as nossas mães achavam
uma gracinha.
Com cinco anos, fui picada por marimbondos no
parquinho ao lado da minha escola. Foi bem na véspera
do meu aniversário. Como consolo e, com direito a
cartinha, meu suposto paquera abiscoitou o colar de
miçangas da irmã e me deu de presente. Um luxo!
Um ano depois, troquei de escola e de amigo­
namorado. Minha mãe ganhou um puxão de orelha da
138
OUTRAS PAIXÕES
minha candidata a sogra, que ficou bravíssima ao
encontrar bilhetinhos na mochila do filho… Moral da
história: aprendi cedo o que é ciúme de sogra, mas não
perdi o amigo, é claro. Minha mãe a tranquilizou, a
encanação boba passou e a nossa amizade durou por
muitos anos.
Beijos, abraços ou mãos dadas, de modo geral,
acontecem a pedido de adultos que acabam por forçar
um teatro desconfortável entre as crianças. No namorico
pueril se trocam desenhos, bilhetes, doces, segredos nada
sigilosos, emoticons no bate­papo. O amor na infância
vem por simpatia. É gostar de estar e de se divertir
juntos. E não minta. Você também já ouviu: tá
namorando, tá namorando, tá namorando!
Cintia Brasileiro
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OUTRAS PAIXÕES
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OUTRAS PAIXÕES
A história de Roseane
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OUTRAS PAIXÕES
Eu tive um relacionamento em que me apaixonei e
ele, não. Foi olhar e gostar. Depois dele eu nunca mais
tive ninguém.
Nesse relacionamento ele já tinha quatro filhos, cada
filho com uma mulher, e hoje tem seis. No começo eu só
sabia de dois, da mesma mulher. Eu cuidava dos meninos
nos finais de semana, quando vinham com a gente. Aí
descobri que ele tinha uma menina; depois, através de
umas fotos, descobri outro.
Ele era muito mulherengo, o vício dele era mulher. Eu
sofri muito; era doente por ele. Passei noites em claro na
janela, esperando ele vir. Eu sabia quando chegava em
casa e havia estado com outra. Não vivia a minha vida,
vivia a vida dele. Hoje não, porque já passou aquilo tudo.
Era aquele relacionamento que vai e volta. A gente se
separou e voltou, separou e voltou, e eu engravidei. Ele
já estava com uma outra grávida e eu não sabia. Dizia
assim “tu não és a mulher da minha vida”. Negou a filha,
mas quando nasceu ele viu que era a cara dele.
A minha filha nasceu no mesmo ano em que ele teve
outro. Ela está com 14 anos.
Hoje me dedico à causa animal. Não pretendo ter
mais ninguém.
Relato dela.
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OUTRAS PAIXÕES
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PAIXÕES CLANDESTINAS
OUTRAS PAIXÕES
Nossas teorias
142
OUTRAS PAIXÕES
Eu conheci você sem grandes expectativas, me pareceu
raso, só mais um em meio a outros. Conversamos
levianamente. Em um papo qualquer citei Foucault (o
epistemólogo que mais admiro) e você rebateu, também o
citando e ainda indagou­me se já havia lido Bakunin e
fiquei impressionado, abriu um leque de possibilidades.
Conhecemo­nos em um dos seus típicos atrasos, que só fui
descobrir depois de sua recorrência, e foi bom, nada
extraordinário, mas bom. No dia seguinte vamos juntos
para o centro e eis que na parada de ônibus (mais
movimentada da cidade) me beija e ali já penso que você
pode ser para a vida. Estamos juntos já faz um tempo, este
que já desmitificou a idealização, a realidade bate na porta
e vai de nós suportarmos as imperfeições e manias do
outro que são escancaradas na nossa cara. Alguns pontos
são ajustados, algumas lágrimas correm e em alguns
momentos o silêncio se perpetua agonizando a ambos. Em
meio aos nossos sorrisos e choros (pelo menos da minha
parte) ficam aqueles “eu amo você” abafados no receio de
admitir um sentimento tão intenso e abstrato no meio do
caos que envolve o nosso redor. Não vivemos de grandes
dramas, mas os que temos já dão o que falar. Mas quando
eu o vejo, olho no olho, e consigo decifrar o que está
sentindo, aí, só aí, eu tenho certeza do que sinto e sei que
será para sempre, seja o quanto for este “para sempre”.
Darlam do Nascimento
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OUTRAS PAIXÕES
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PAIXÕES CLANDESTINAS
OUTRAS PAIXÕES
O homem da aurora e do ocaso
144
OUTRAS PAIXÕES
O nome do rapaz era Yosef. Diziam que era um nome
estranho e eu tenho de concordar com isso. Não sei nem
pronunciar direito essa palavra. É de origem árabe ou
algo do tipo? Bem, ainda assim, mais estranho que ele, o
nome não era.
Mas o que faz algo ser estranho? São as opiniões que
vêm sobre aquilo que é assim considerado. E o que
tornava Yosef estranho era o fato de ele se apaixonar
facilmente pelas pessoas. Talvez não seja nem esse
termo, ou talvez seja… Digamos que ele se apaixonava
de um modo eufemista, sem exageros sentimentais ou
grandes atrações corporais. Ele simplesmente sentia algo
diferente dentro dele mesmo: um anjo, um demônio e um
deus.
Com poucos anos, ele já sentia aquele sentimento
diferenciado com facilidade e, com o tempo, percebeu o
fardo disso. Na primeira série, as garotas não percebiam
o que ele dizia quando falava que gostava delas ou
quando escrevia o nome delas na areia, dentro de um
coração. Ele era estranho para elas e, com isso, o pobre
rapaz era ignorado e aquele sentimento complexo
acabava sendo escondido dentro dele.
E os anos se passaram e em cada um deles ele
encontrava uma nova estrela para colocar dentro do
universo do seu coração. Algumas eram radiantes como
o Sol, outras eram tão fúteis, apesar de brilharem dentro
dele, enquanto outras morriam nele como qualquer
145
OUTRAS PAIXÕES
estrela e o que restava era um buraco negro que devorava
o próprio rapaz e suas inúmeras paixões. Tornou­se um
homem da aurora e do ocaso, e, a cada sentimento
guardado, mais ele se perdia no mundo.
Um dia, ele começou a listar todas as pessoas das
quais adquiria todos aqueles sentimentos e a lista não era
pequena: a dama que observava as flores diariamente na
floricultura do bairro, uma jovem da idade dele que ele
sempre encontrava no cinema e com quem acabava
discutindo sobre filmes; a bela mulher que trabalhava no
mercadinho ao qual ele tanto ia (só para encontrá­la),
uma das colegas de escola dele que sempre parecia tão
bela com toda a sua intelectualidade, a cantora que
aparecia em vários festivais da cidade… Ad infinitum…
Ele nunca conseguiria ter alguma coisa com qualquer
uma delas, pois sabia lá no fundo que não podia
confessar­lhes seu amor, pois isto só iria feri­lo mais.
Entretanto, enquanto esse sentimento o feria de um lado,
o sentimento de viver sem um par o feria também. No
fim, decidiu amar unicamente a Deus e com isso tentou
virar padre. Três dias depois, já havia desistido do
objetivo: apaixonou­se por uma noviça. Já não podia
seguir nem uma busca por unicamente amar a Deus, e
com isso decidiu amar algo que pensou ser o melhor para
uma pessoa como ele: a morte.
Foi até um prédio qualquer e se sentou na borda dele
onde ficou olhando para o seu fim ainda com dúvida:
deveria mesmo amar a morte ou esperar que algum outro
amor pudesse salvá­lo? Olhou por vários minutos, em
silêncio, até perceber que havia outra pessoa por ali: uma
mulher de cabelos escuros, um corpo belo de várias
maneiras e uns olhos radiantes, que logo o fizeram dizer:
146
OUTRAS PAIXÕES
– O que você faz aqui?
– Nada demais. Acho que você não precisa saber. Mas
e você?
– Bem, pode­se dizer que eu andava pensando em me
jogar daqui.
– Interessante, eu também estava pensando em fazer
isso. Qual o seu nome?
– É um nome meio estranho. Yosef. É árabe, sabe?
– Saquei. Meu nome é Carine.
– Você tem um nome mesmo bonito… Quer tomar um
café um dia desses?
– Que tal agora? Isso de pensar em me matar me dá
uma sede.
– Então vamos lá! Prefere café ou cappuccino?
– Eu gosto mais de um cappuccino.
– Que bom. Eu também adoro…
E assim se seguiu uma nova história. Não sei bem o
que aconteceu com eles depois, mas dizem que
começaram um relacionamento ou algo assim. É incrível
como um quase suicídio pode unir pessoas. Isso chega a
ser excentricamente romântico.
Conrado MPL
147
OUTRAS PAIXÕES
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PAIXÕES CLANDESTINAS
OUTRAS PAIXÕES
Um amor impossível
148
OUTRAS PAIXÕES
Eu era apenas uma jovem cheia de sonhos. Estava
com uma amiga e voltávamos para casa depois de alguns
dias de férias fora do país. Enquanto esperávamos já
dentro do ônibus na estação rodoviária do local,
conversávamos alegremente sobre nossas impressões dos
dias ensolarados do verão que acabáramos de passar.
De repente ele entrou no ônibus, era jovem, bonito,
com um corpo atlético. Veio sentar­se no banco em
frente ao nosso. Então nossos olhos se cruzaram; aqueles
olhos profundos, serenos, fortes como raio no meio de
uma tempestade. Meu coração disparou. Senti mil
centelhas incendiarem todo o meu ser; parecia que
minh’alma havia saído do meu corpo e entrado num
outro universo.
Eu sabia que o amor não começa na palavra, e sim no
olhar, porque palavras são passageiras, mas um olhar
dura toda uma vida. Ele sorriu, acomodou sua bagagem e
tornou a sair do ônibus. Ficamos ali, minha amiga e eu,
conversando sobre nossas vidas, porém confesso que
estava meio anestesiada e não lembro muito bem o que
lhe respondia. Eu me apaixonei completamente de forma
irreversível. Naquele momento eu soube que minha vida
nunca mais seria a mesma.
Será que ele voltaria? Sim, voltou, mas não
totalmente só, com ele entrou uma jovem muito
simpática que nos sorriu antes de sentar­se. Sabíamos
que a viagem seria longa (42 horas) então começamos a
149
OUTRAS PAIXÕES
nos conhecer. Eles eram casados e tinham duas filhinhas
e estavam indo a São Paulo visitar o irmão da jovem. Foi
uma viagem inesquecível. Rimos muito, brincamos,
cantamos e quando chegamos ao nosso destino nos
despedimos com abraços apertados, trocas de endereços
e promessas de voltar a nos vermos.
Já em minha cidade, voltei às minhas atividades
normais, porém a forte sensação daquele primeiro
momento ainda estava sufocada dentro de mim. Resolvi
voltar nas férias de inverno àquele país. Afinal, eu tinha
amigas muito queridas lá, e não era a primeira vez que
passaria férias com elas.
No dia seguinte à minha chegada, com o coração aos
pulos liguei para os amigos que havia feito no ônibus no
ultimo verão. Ele atendeu e demonstrou muita alegria ao
ouvir minha voz e sem esperar resposta disse que estava
vindo me buscar para jantar na casa deles. Fui
acompanhada das amigas com quem estava hospedada.
Foi uma noite maravilhosa, relembramos nossa
agradável viagem de ônibus, as meninas eram
encantadoras e passaram a me chamar de tia, e eu estava
super feliz.
Depois do jantar ele pegou seu violão e começou a
cantar. A casa era bem alegre, e além das minhas amigas
e eu, estavam também alguns amigos deles, pois era
costume se reunirem para uma noitada divertida. A voz
rouca dele enchia meu coração, e nas frases românticas
das músicas, sempre seus olhos procuravam os meus. É
verdade que quando dois lábios não podem se beijar,
dois olhos se beijam na troca de um olhar. Eu sentia sua
carícia, seus beijos através daquele olhar profundo.
Durante anos passei minhas férias na companhia
dessa gente maravilhosa. Sempre que nos encontrávamos
150
OUTRAS PAIXÕES
havia muita emoção em seu abraço de boas­vindas,
porém nunca, em momento algum, trocamos uma única
palavra sobre qualquer possível sentimento que existisse
entre nós. Eu já fazia parte da família e tinha uma
admiração e um respeito muito grande pela minha amiga
e pelas suas filhas.
Depois de alguns anos também eu me casei. Mesmo
casada, ia com meu marido visitá­los, mas já não com
tanta frequência. O impacto da chegada ainda era igual
ao do primeiro encontro. Porém tudo o que sentia estava
guardado num cantinho muito escondido da minha alma.
Eu sempre soube que jamais deveria revelar meus
sentimentos, eles eram o fruto proibido.
Um dia, uma das amigas que eu sempre visitava
adoeceu, e eu tive que ir vê­la. Estava sozinha pois meu
marido não pode se ausentar do trabalho. Minha amiga
estava impossibilitada de ir buscar­me no aeroporto,
então, para minha surpresa, pediu para que ele fosse me
buscar. Ficamos pela primeira vez a sós, e enquanto nos
dirigíamos à casa de minha amiga, ele confessou seu
amor por mim.
Disse que desde a primeira vez que me viu naquele
ônibus não pôde mais pensar em outra coisa que não o
desejo de ter­me entre seus braços, “foi como se uma luz
irradiasse de você e enchesse meu coração de amor”,
dizia ele. Eu também o amava e disse que eu soube que
era ele, no exato momento em que nossos olhares se
cruzaram pela primeira vez.
Mas não, não tínhamos o direito de ferir pessoas
queridas ligadas a essa estória. Não, não podíamos,
tínhamos que ser fortes e sensatos. Nunca seríamos
felizes sabendo que outras pessoas sofreriam por nossa
causa. Então trocamos o nosso único beijo de amor.
151
OUTRAS PAIXÕES
Nunca havia experimentado uma sensação tão profunda.
Ficamos algum tempo abraçados e choramos muito.
Alguns anos depois desse encontro ele ficou muito
doente. Por telefone me disse que se algo pior
acontecesse, queria que eu tivesse a certeza que me
levaria em seu coração. Foi muito doloroso saber que
uma semana depois ele partiu. Minha amiga contou­me
que sua última palavra foi meu nome. Nunca vou
esquecê­lo, e até hoje nas noites de solidão sinto seus
lábios tocando os meus, no nosso único beijo de amor.
Maria
152
OUTRAS PAIXÕES
Projeto
PAIXÕES CLANDESTINAS
OUTRAS PAIXÕES
Esperando­te
153
OUTRAS PAIXÕES
Olhando o teu rosto corado, mas frio, as pálpebras
cerradas e teu o peito pulsando ritmado da mesma forma
que minha esperança brilha através dos meus olhos,
queria que soubesses que estou aqui, contigo, e assim
ficarei aguardando o teu regresso.
Nós… Sempre juntos com nossas diferenças e brigas
que nunca duravam mais que alguns segundos, porque tu
estavas sempre certo. E teimoso, agia da tua maneira
escolhendo o caminho mais difícil, quando só abrir a
porta bastaria. Tu, imponderado… Seguiu dirigindo na
noite de tempestade, pois só lembrou do nosso
aniversário de madrugada. Tu… No escuro, cantando
pneus para desviar do veículo… O susto, o impacto e tua
ausência…
Depois as noites nos bancos do hospital, teu coma
induzido, o vazio da espera, a fome da tua voz e o
silêncio como resposta. Eu já me ausentei de mim
mesma porque esse vácuo de desabrigo é como
despencar de uma montanha. Daria tudo para te ouvir
novamente, ouvir­te cantando para mim as músicas
bregas dos anos oitenta e sentir teu corpo colando no
meu para me fazer dançar mesmo sem querer; com teu
jeito brincalhão que conseguia tudo sem insistência.
Depois seguíamos para o quarto onde nos tornávamos
um só no dueto do santo ato de comunhão e de partilha.
Em ti me agarrei naquela tarde de férias em Niterói, e
ainda na fila do supermercado firmei morada em teu
154
OUTRAS PAIXÕES
peito, adiantando na mente o sabor dos teus lábios.
Ficamos juntos aquém do tempo, devorando os medos e
suprindo nossos anseios. Como queria beber teu hálito
mais uma vez e te ver retirando as mechas morenas que
emolduravam o teu rosto. Parar o mundo só para ver­te
caminhando com pés desnudos no chão frio, com teu
sorriso abobalhado me falando entre os dentes repetidas
vezes que eu era tua menina e me fazer dormir contigo
velando meu sono.
Agora estou aqui, velando teu silêncio gelado,
separada pela fina membrana de realidades opostas.
Queria poder mergulhar nessa incerteza e te resgatar das
garras do coma que te mantém preso e me faz caminhar
sozinha… sem ti. A cada passo deste caminho, sofro e
definho. A cada noite e a cada dia em que te procuro
através de tempestades de dúvidas que me amedrontam,
não me ausento do teu leito, porque mesmo fraca, me
torno forte por ti, por esse amor não me deixa ir para
casa sozinha.
E fico aqui te esperando. Esperando que despertes e
que possamos caminhar juntos no caminho que ainda nos
resta na harmonia desarmonizada que só faz algum
sentido para nós.
Aqui estou eu, esperando.
Esperando… Por ti.
Maria Silva
155
OUTRAS PAIXÕES
Projeto
PAIXÕES CLANDESTINAS
OUTRAS PAIXÕES
A história de Fernanda
156
OUTRAS PAIXÕES
Você já teve uma história que basicamente aconteceu
só pela internet, em que as pessoas nunca se viram?
Eu esse americano, achando que tinha 35 anos e era
solteiro, e fiquei conversando com ele durante vários
meses, horas todos os dias, até que eu descobri que na
verdade tinha 49 anos, dois filhos e acabado um
relacionamento de uma forma meio trágica. Ele era trinta
anos mais velho do que eu.
Fiquei muito sentida, porque ele mentiu para mim.
Entendi que era por insegurança da parte dele, porque
tinha sofrido rejeições e tentava parecer melhor do que
era pelo medo de que a pessoa o deixasse. Mas eu jamais
ia partir por ele ser mais velho.
Foi um momento complicado porque eu saí do Rio
Grande do Sul para vir para cá e não tinha ninguém por
perto, então eu estava vulnerável em vários aspectos. Ele
era meio que uma figura paterna, porque era mais mais
maduro e eu o admirava.
Mas ele queria cobrar de mim uma fidelidade muito
estranha, porque a gente não se via e não tinha nenhuma
possibilidade próxima de se ver. Ele tinha uma
concepção de me esperar e eu, na minha urgência de 20
anos, não consegui. Eu me relacionei com outra pessoa e
contei para ele, então parou de falar comigo. Foi aí que
pensei 2eu realmente gostava dele...”
Quando voltei a falar com ele, quatro meses depois, já
157
OUTRAS PAIXÕES
estava se relacionando com outra pessoa. Mesmo sendo
virtual, significou mais do que muitas pessoas que eu
conheci na vida real. Eu nunca tinha conhecido alguém
que me entendesse tão bem quanto ele; criei uma
conexão com ele que eu sei que nunca vai se desfazer.
Ele está lá com a vida ele, num relacionamento
estável, e a gente se fala com muito carinho. Ainda gosta
de mim, só que não da mesma forma, claro. É engraçado,
eu diferenciava muito a vida real da vida online, mas na
verdade as duas coisas estão fundidas. Você está
conversando com uma pessoa: ela existe, tem
sentimentos, mora num lugar, tem um passado, um
futuro... Eu torço muito para que ele seja feliz.
Relato dela.
158
OUTRAS PAIXÕES
Projeto
PAIXÕES CLANDESTINAS
OUTRAS PAIXÕES
A história de Mariana
159
OUTRAS PAIXÕES
Eu conheci o meu marido no Orkut. Nós nos falamos
por uns dois meses e não demos bola.
Ele em nada me chamou a atenção. Eu o achava um
bobo, um idiota que só falava bobagens e ele achava a
mesma coisa de mim. Ninguém queria nada com nada.
Por isso que no começo não deu muito certo.
Eu tinha acabado de terminar um relacionamento, ele
também. Era verão e ninguém estava muito aí. Nós nos
falamos e nos encontramos poucas vezes.
Continuamos não dando bola, mas ficamos dois anos
juntos. Fizemos uma festa de casamento; o nosso filho
nasceu. Ele tinha um ano e pouco quando terminamos.
Estava ruim, sabe, tanto que brigamos e nos separamos.
Foi uma briga e acabou.
Eu e o meu marido ficamos praticamente sem nos
falarmos nesses nove meses separados, apesar de termos
um filho. Só nos encontramos por duas vezes para
assinar os papéis da separação.
Aí a dez dias de assinar a terceira etapa, que era a
última, eu o chamei para conversarmos. Na verdade eu
queria saber porque tínhamos terminado. Eu acho que
estava de porre.
Em dez dias já estávamos morando junto. Mês
passado fez cinco anos que voltamos.
Eu acho que era destino. Depois que conversamos,
vimos que a ex­namorada dele morava no prédio em
160
OUTRAS PAIXÕES
frente ao meu, ele a buscava todo dia no mesmo colégio
que eu estudava e parava o carro no lugar em que eu
estava sempre almoçando.
Era tanto destino que precisamos terminar e ficar
separados para entender que não era sozinhos que
queríamos ficar. Com certeza se não tivéssemos
terminado, não estaríamos juntos até hoje.
Quando lembramos dessas histórias, damos risada. Já
planejo uma nova festa de casamento, porque por tudo o
que passamos merecemos uma nova comemoração, e
talvez um novo filho... A ideia é ficarmos velhinhos
juntos.
Relato dela.
161
OUTRAS PAIXÕES
Projeto
PAIXÕES CLANDESTINAS
OUTRAS PAIXÕES
Seu Camilo
162
OUTRAS PAIXÕES
Seu Camilo era um professor educado, além de ser
fiel à Dona Lúcia, sua esposa. Não podia nem pensar em
cometer adultério, pois amava sua companheira, uma
relação de 30 anos, nada se arrependendo neste tempo.
Ainda mais agora que Dona Lúcia estava em viagem
visitando os netos recém­chegados. Dona Lúcia, como
era assim chamada pelo próprio esposo, nunca o
perdoaria por uma infidelidade nesse tempo de sua
ausência. Pois bem, eis que Marina, a mais recente aluna
particular de Seu Camilo, entra na residência na ânsia de
ter suas aulas pré­agendadas de literatura, a qual era uma
das suas paixões. Seu Camilo era professor aposentado, e
os bicos de aulas particulares complementavam sua
aposentadoria. Seu Camilo, muito pomposo, como bom
professor de literatura, a convidou para entrar e ficar à
vontade. Marina caminhava em direção à sala que Seu
Camilo ministrava suas aulas particulares, percebendo
que ele a acompanhava com o olhar a cobiçando, a
espiando de cima abaixo. Marina sabia que tinha lá seus
dotes sensuais, e explorá­los era sua especialidade.
Valorizava muito bem cada centímetro de suas coxas e
de seu quadril bem definidos, dadas suas horas de
malhação, o que hoje a deixavam em atraso com a
literatura, a ponto de ter que recorrer a um professor
particular. Sabia muito bem que os homens
enlouqueciam quando salientava seu busto com uma
pequena blusa branca transparente de fecho, que usava
em dias de vento Norte como aquele. Prontamente
163
OUTRAS PAIXÕES
Marina sentou­se bem à frente de Seu Camilo, e, entre
uma explicação e outra, o professor de literatura, com
óculos de lentes arredondadas a meio nariz, não hesitava
e sua explicação sempre terminava olhando pra um
pouco mais acima dos livros sob a mesa, onde ficavam
os fartos seios de Marina, com o fecho da blusa
entreaberto, tamanho calor daquele mês de dezembro.
Calor este já sufocante para ambos, principalmente para
o professor que tinha que concentrar­se na explicação.
Seu Camilo, já não aguentando a pressão, ofereceu uma
limonada para sua aluna, fazendo assim uma leve pausa
nos livros. Marina ficou pela sala, porém, como sempre a
curiosidade a possuiu. Tentou sem êxito abrir um armário
da sala, o dito armário das particularidades do
matrimônio do casal da casa. Mas Marina foi tomada por
susto quando Seu Camilo chegando com a jarra de suco e
lhe indagou:
Seu Camilo: Açúcar ou adoçante na limonada?
Marina: 3 gotas de adoçante.
Certa de não perder a forma e seu tempo de academia.
Marina indagou: O que o Sr. guarda neste belo
armário de madeira trancado a chaves?
Pronto; agora além de estar sob pena de cometer
adultério, Seu Camilo teria que explicar suas fantasias
sexuais de casamento com o seu terno e com o vestido de
noiva de Dona Lúcia, que se encontravam ali guardados.
Seu Camilo: Nada de muito importante, apenas umas
roupas velhas de casamento.
Certo de que Marina não iria se interessar por roupas
de casamentos
Marina: Eu adoro roupas de época. O Sr. pode me
164
OUTRAS PAIXÕES
mostrar?
O professor não teria desculpas, teria que mostrar as
roupas. Seu Camilo então sabia que estava a sós em casa
e, certo de que ninguém ficaria sabendo, abriu o armário.
E ali estavam elas. O terno ainda impecável, o vestido
ainda com véu e grinalda como Dona Lúcia deixara.
Marina então não hesitou, e foi sacando­as do armário e
experimentando o vestido. Convicta de que eram apenas
roupas de épocas sem valor sentimental algum. Fez Seu
Camilo experimentar o terno que ainda cabia nele como
uma luva. Para Marina, ainda que seus seios ficassem
apertados, o vestido lhe deu bem.
Marina: Mas o Sr. poderia insinuar que estava
casando comigo?
Seu Camilo: E sua aula? Indagou.
Marina: Outro dia recuperamos com horas extras.
Então ambos foram para a frente da casa, imbuídos
em cumprir aquela tarefa. Marina muito ligeira deu de
mão em umas flores que enfeitavam o passador da sala,
enquanto Seu Camilo procurava seu chapéu para
complementar a fatiota. Eis que desembarca na frente
Dona Lúcia, sua filha e sua neta recém­chegada.
Resolveram fazer uma surpresa. E agora? Como explicar
a situação, as roupas e a aluna? A bela e sensual Marina,
vestida de noiva na frente da casa? Dona Lúcia não teve
dúvidas; Camilo tinha ludibriado a sua nova aluna e
ainda por cima usou as roupas do seu casamento para
fazê­lo, roupas tãos usadas nas noites românticas que o
casal teve nos seus 30 anos de cumplicidade. Dona Lúcia
não deu tempo para maiores explicações, Seu Camilo a
tinha traído na sua ausência, apesar de sua fidelidade
durante todo casamento. E foi logo pedindo divórcio,
165
OUTRAS PAIXÕES
retirando a aliança do dedo, não queria amargar uma
traição para o resto da vida. Seu Camilo não teve
argumentos, perdeu a aluna, as roupas, e o pior: uma
relação conjugal de 30 anos com Dona Lúcia, única
mulher que amou em toda sua vida
Rafael Pacheco
166
OUTRAS PAIXÕES
Projeto
PAIXÕES CLANDESTINAS
OUTRAS PAIXÕES
A história de Alice e Batista
167
OUTRAS PAIXÕES
A função do meu pai era acompanhar essas
mercadorias que iam e vinham no trem. Ele ficava no
Rio de Janeiro, fazendo viagens para os outros locais.
Foi aí que ele conheceu a cidade de Urussanga.
Ele já ia retornar, mas ficou sabendo que tinha uma
máquina chamada Marion, uma máquina enorme que tira
carvão. Ele disse “vou ficar aqui” e ficou num hotel no
centro da cidade, chamado Alfredo Gazola. Isso foi em
1971.
Ele foi jantar num restaurante e nesse restaurante a
minha mãe era gerente, no Tropical. Foi amor à primeira
vista; foi um choque grande nele, nela, nas pessoas,
porque a minha mãe tinha 17 anos e ele, 33. Ela acabou
dando o troco para ele e ele escreveu o dia em que eles
se conheceram.
Aí ele ficou um pouco mais na cidade além do que era
o dever dele. Ele deveria voltar ao Rio, apresentar o
relatório, enfim... Acabou mandando uma
correspondência para lá dizendo que estava com
problema e ficou aqui.
Aqui ele conheceu a família, conheceu os amigos e a
vida dela. A minha mãe era uma moça interessante,
bonita. Ele disse: “Não aguento, vou ter que te levar”.
“Não, mas eu não sou assim de namorar”, porque o
negócio era sério. O meu avô era um italianão brabo.
E lá foi meu pai naquela semana conhecer a família.
168
OUTRAS PAIXÕES
Acontece que o meu pai também era músico e ele acabou
trazendo a família através da música. Ele foi agradando,
era bom de papo e já tinha todo aquele carioquês dele...
Um ano depois eles noivaram, um ano depois eles
casaram, um ano depois eu nasci. E assim vem toda uma
história devido à bendita da Marion!
Relato da filha, Alice.
169
OUTRAS PAIXÕES
Projeto
PAIXÕES CLANDESTINAS
OUTRAS PAIXÕES
O tempo perdido
170
OUTRAS PAIXÕES
Enquanto esperava o início do show do Morrissey, ele
foi até a lanchonete. Naquela noite, informaram, não
venderiam nada que contivesse carne, por ordem da
produção. Para ele estava tudo bem, nem fazia questão.
Às vezes comemos não pela vontade, mas pelo vício –
pensou enquanto pedia um refrigerante. O saguão estava
apinhado de gente diferente, vestida de modo não
convencional, com seus assuntos estranhos, conversando
animadamente sobre quase, quase nada.
Ainda hoje, ouvir Smiths traz uma estranha sensação
de perda e desapego, como se algo houvesse se partido
ou estivesse destoado numa realidade distante. Como o
fim de um sonho que nem chegou a ter começo.
E então, como que saída diretamente de alguma
espécie de devaneio, ele a viu: parecia alguém que
conhecia de alguma outra situação e que talvez por isso
chamasse sua atenção em meio a tanta gente e a memória
remetia para algum lugar próximo demais, mas seu olhar
deteve­se com mais afinco em seu belo porte, nas pernas
esguias, no decote sugestivo. Bom, definitivamente era
alguém que ele ainda não conhecia. E era linda, com sua
saia de veludo ocre, um casaco preto e botas da mesma
cor e uma boina vermelha, o que lhe conferia certo ar de
mistério. E as botas!
Ah… uma mulher de botas é sempre perigosa –
pensou, sorrindo.
O tempo então congelou. Como numa cena em slow
171
OUTRAS PAIXÕES
motion , ela já não caminhava: deslizava, suave e leve
como num sonho. Parou, acendeu um cigarro. E
continuou deslizando em direção a ele com seu jeito sexy
de fumar. Por alguns segundos, aquele clichê lembrou­
lhe de alguma diva do cinema americano, etérea,
distante, terrivelmente bela e inalcançável. Talvez Greta
Garbo ou Rita Hayworth, mas naquele momento ele não
saberia dizer com precisão se alguma das duas fumava.
Sempre achara deselegante e sem graça mulheres
fumando, mas ela demarcava seu espaço com elegância e
beleza. E se fazia linda. E inalcançável.
Pelo menos era essa a impressão que ele tinha até o
momento em que ela o olhou. Dessa vez não havia
sorriso, apenas um olhar fixo, misterioso. Outro cliché de
cinema. De repente, ele se deu conta de que devia estar
com cara de tonto, olhando para aquela mulher como se
estivesse vendo um ser de outro planeta. Ela riu do seu
aparente embaraço e disse­lhe qualquer coisa que ele não
entendeu bem.
– Eu perguntei se você está se sentindo bem! –
repetiu.
Sua boca desenhava cada palavra com a mesma
sutileza com que caminhava, deixando atrás de sí uma
estranha sensação de perda. E as palavras desenhadas
daquela maneira pareciam carregar consigo uma inocente
e atordoante malícia, capaz de fazer um seminarista
mudar suas convicções no instante seguinte. Ele disse
alguma coisa sobre ela ser linda e tal. Ela enrubesceu,
como se tivesse sido pega no contrapé. Era, de certa
forma, sua confissão de culpa imediata, como se o rubor
fosse assim uma espécie de confissão afetiva.
Ela deu uma longa tragada e desviou os olhos. E riu
172
OUTRAS PAIXÕES
meio sem jeito, ou talvez aquele fosse mesmo o seu jeito
de ser e jogou a cabeça para trás, para em seguida olhá­lo
novamente. Em seguida fez qualquer comentário sobre
alguma coisa, mas ele já não estava prestando atenção no
que ela dizia.
Tinha um belo perfil: virava a cabeça toda vez que
tragava o cigarro, como muitos fumantes fazem quando
estão com alguém que não fuma, o que, no seu caso, era
feito com um charme irretocável.
Disse ser metódica, procurava fazer as coisas com
relativa calma, ritualizava situações aparentemente
banais, tornando­as ricas de sentido e grandeza.
Esforçava­se para viver um passo por vez. E adorava
conversar. Bom, isso ele já tinha percebido. Embora suas
palavras fossem pausadas e entremeadas de citações de
tudo o quanto visse ou lesse, seu discurso e filosofia de
vida eram centrados numa vivacidade e numa coesão de
ideias pouco comuns para alguém da sua idade.
Melancolicamente impulsiva e triste, já sonhara em
ser atriz de teatro, embora todos teimassem em
convencê­la do contrário. Tinha desenvoltura, era
desinibida ao extremo e tímida na medida do charme,
com aquele olhar rodrigueano que comove e instiga.
Achava­se parecida com a personagem feminina do
clássico de Milan Kundera. Sabia a letra de algumas
canções de João Gilberto e Tom Jobim. Lia Álvares de
Azevedo, Mário Quintana e venerava Vinicius de
Moraes, o poeta que ousou, de modo furioso, romper as
fronteiras entre o ofício poético e a vida. Ela tinha a clara
certeza de que Para uma menina com uma flor fora
escrito especialmente para ela. Nada mal, nada mal.
– Bem, é melhor a gente entrar – disse por fim, dando
173
OUTRAS PAIXÕES
uma última tragada.
Nada mais parecia ter importância. Ele apenas a
acompanharia. Para onde quer que fosse. Ela jogou o
cigarro, que já não era mais um cigarro, era uma guimba
manchada de batom vermelho, num daqueles coletores
de lixo que tem uma espécie de cinzeiro na parte de
cima. E ele então pensou em Greta Garbo amassando
uma guimba num cinzeiro enorme. E emoldurando com
seu andar os olhares atônitos à sua volta.
Caminharam em silêncio até chegarem próximo ao
palco. As luzes apagaram­se e uma espécie de histeria
tomou conta do ambiente. Naquele momento ela
apertou sua mão com força, como velhos conhecidos,
como se precisasse ser contida em sua alegria
angustiadamente bela e melancólica. Bela como
Hairdresser on Fire que abriu o show, já perto das onze
horas. Melancólica como o cenário, com suas cortinas
dramaticamente vermelhas. Bastou Morrissey desfiar
sua poesia sofrida, falando de perdas, saudades e
desencontros para ele notar que, definitivamente, não
caberia naqueles pragmáticos anos 90. Naquele recém­
moderno mundo pop não havia mais por que sofrer, não
havia quem idolatrar com reverência e sincretismo.
Características típicas de uma geração marcada por
certo vazio.
Baudelaire avisou que Last Night I Dreamt seria a
última canção da noite. Depois, as luzes acenderam­se ao
som de My Way na voz de Sinatra. Olhou para ela, que
estava com os olhos umedecidos. Não falaram nada.
Nem era preciso. Os olhos diziam tudo. Abraçaram­se
como cúmplices e ficaram ali, os corações batendo em
dobro. O que sobrou foi um amontoado de pétalas
espalhadas pelo chão, com seu multicolorido disforme, e
174
OUTRAS PAIXÕES
a impressão de que algo, de alguma maneira, fora
resgatado, reconquistado.
O tempo perdido, talvez.
Wallace Puosso
175
OUTRAS PAIXÕES
Projeto
PAIXÕES CLANDESTINAS
OUTRAS PAIXÕES
Marília
176
OUTRAS PAIXÕES
Naquele fim de tarde, Marília esperava. Ah, era
terrível o sentimento de angústia durante a espera
naquele fim de tarde. Tardava a tarde. Tardava o dia.
Tardava o tempo. Gota a gota, caíam as areias da velha
ampulheta do tempo imemorável e sem início. Tardava o
Gonzaga. Marcara às seis. Dizia o bilhete. Olhava as
rosas. Marília o esperava ansiosamente, sentada num
banco próximo ao chafariz da Praça da Liberdade.
A ânsia aumentava a cada instante e o retumbar do
tic­tac do seu relógio era uma eterna tortura para o
coração, que esperava. Marília temia. Seu idílio com o
Gonzaga chegara a um ponto tal que ou o assumiam
publicamente e arcavam com as consequências disso, ou
abdicavam dele em definitivo. Só não mais podiam
continuar a longa série de obtusos encontros no pequeno
e discreto hotel Gontijo, da rua dos Tupinambás, no
centro da capital mineira.
Gonzaga. Marília o amava. Aliás, este não é o
primeiro casal Gonzaga e Marília da história mineira. É,
contudo, o meu e o de agora.
Vinte anos mais velho que ela e seu chefe imediato no
local onde estagiava, ele temia o desfecho dessa sua
louca aventura. Um escândalo de adultério poria em
risco o seu casamento – coisa que, francamente, embora
há muito já cambaleasse e sobrevivesse de aparências,
lhe era muito cara –, e sua ascendente carreira de
funcionário de autarquia educacional do governo de
177
OUTRAS PAIXÕES
Minas. Além disso, pensava na própria Marília, que
poderia ser duplamente prejudicada, vindo a perder o
estágio duramente conseguido graças a um
empurrãozinho de um seu tio­avô, amigo do Secretário
de Educação, e a ter de enfrentar a enxurrada de
represálias da tradicional família, que nunca a admitiria
amásia de um homem casado. Gonzaga questionava a
grandeza do sentimento que nutria. Seria esse sentimento
suficientemente forte para suportar tamanhas intempéries?
Por tudo isso, era um homem em conflito.
Duas semanas antes do dia da espera, a situação se
agravara. Por um vacilo de colegial malandro que cabula
a aula, ambos foram surpreendidos em despedida na
porta do referido hotel. Os olhos de águia de Borges,
colega e rival do Gonzaga na disputa de uma almejada
promoção funcional, flagraram­nos num suspirante beijo.
Dias depois, rumores na repartição já começavam a
causar certo desconforto às intenções ascensionais do
Gonzaga. Seu diretor, Dr. Clóvis, o olhava com
desconfiança. As jovens do setor procuravam evitar­lhe o
contato. As senhoras viravam­lhe a cara. Os homens
riam­se discretamente pelos cantos.
Do trabalho para o lar, o boato do affaire se espalhou
como uma epidemia de gripe sazonal, num efeito
dominó. Aurora, sua esposa, suspirava tristemente
lânguidos ais. Seus filhos o olhavam com o
desconcertante olhar repreensivo da revolta, filha da
vergonha com a decepção. Como se vê, o pobre Gonzaga
começava a declinar moralmente nos dois sítios em que,
malgrado os problemas, sentia­se um soberano impoluto
e intocável.
“Estou acamado. Não vou trabalhar. Cancele a
agenda de hoje. Me espere na praça, no final da tarde.
178
OUTRAS PAIXÕES
Se não aparecer até as seis, é porque não vou. Abra,
então, o envelope azul. Só abra nessa ocasião. Faça
exatamente como lhe digo. Beijos do teu Gonzaga.”
Esperando, Marília relia o bilhete. Esperava e
obedecia cegamente, como qualquer apaixonada. Seu
olhar era perdido. Mirava longamente o ramal das rosas
vermelhas enviadas naquela manhã para o trabalho, com
o bilhete e o misterioso envelope. Essa atitude do
Gonzaga deu­lhe esperanças. Afinal, ele lhe enviara
rosas na repartição!
Sem ao menos imaginar o verdadeiro conteúdo do
envelope azul e sem mesmo ousar pretender abri­lo antes
da hora determinada, Marília olhou em volta. Próximo ao
chafariz, viu duas crianças correrem frescas e felizes
sobre as alvinegras pedras portuguesas macadaminzadas
do calçamento. Pareciam voar. Gritava o menino:
“Avante, Sininho! Temos que encontrar o Gancho!”
Marília teve um instante de alento para a sua tensão ao se
deparar com a inocência da Terra­do­Nunca daquele
intrépido Peter Pan. Seu relógio de pulso tocou seis
horas. Era o chamado de volta à realidade.
Ainda esperou mais quinze minutos. Enfim,
convenceu­se: por algum motivo, o Gonzaga não iria.
Seguindo as instruções, abriu, mãos tremendo, o
envelope:
“Acabo de transferi­la, em caráter irrevogável, para
o gabinete do Dr. Clóvis. Não me procure mais,
definitivamente! Adeus!! Gonzaga.”
Estática, Marília sentiu apenas o bater frenético de seu
coração no peito inflame e o feixe d’água amarga e
salgada rolando­lhe pela rubra face. Aérea, andou a esmo
por alguns instantes, deixando pender da mão o ramal de
179
OUTRAS PAIXÕES
flores. Murcha, qual a desesperança do cair da folha
outonal, deixou­se conduzir pelas pernas, atonitamente,
mecanicamente, até o ponto de ônibus. Foi para casa,
onde amargurou a dor infrene dos rejeitados. Sozinha,
isolada no seio da família que pretendia enfrentar pela
causa do amor, teve de aprender a trilhar a dura jornada
da fênix.
Aquelas rosas­adeus pendidas de suas mãos foram
catadas e despetaladas por Peter Pan e Sininho. Em seus
voos rasantes e piruetas no ar e em suas perseguições e
fugas ao Gancho, eles distribuíram suas pétalas entre o
vento e as gotas da chuva artificial do chafariz. Cada
pétala esvoaçante no escarlate céu crepuscular era um
fragmento de sonho de amor… um beijo roubado, um
afago, um carinho, um toque, um desejo, um gozo, uma
hora desprendida e dedicada a um amor preterido e
fracassado… Cada pétala era um sentimento expurgado,
moído e liberto, esfarelado, feito em pó, farelo de terra
reinventado em pozinho mágico de pirlimpimpim.
Ricardo Tupiniquim Ramos
180
OUTRAS PAIXÕES
Projeto
PAIXÕES CLANDESTINAS
OUTRAS PAIXÕES
A história de Thomás e Náthaly
181
OUTRAS PAIXÕES
Thomás e Náthaly se conheceram em Florianópolis,
por causa de uma amiga em comum. Os dois ficaram
juntos entre outubro e dezembro de 2012, quando
Thomás teve de se mudar para o Rio de Janeiro, onde
permaneceu até agosto deste ano. Voltou a Florianópolis
para estar perto dela.
Como se não bastasse a distância enfrentada nos
últimos dois anos, a família dela é contra esse
relacionamento. Além disso há a diferença de idade: ele
tem 20 anos; ela, 15.
No tempo em que eles estiveram separados matavam
as saudades pela internet e com visitas dele a cada três
meses. No entanto, não foi o bastante para os dois.
“Abandonei tudo para ficar com ela. Trabalhava em
laboratório... Lá a minha vida era bem melhor e minha
mãe não queria que eu viesse para cá. A gente aqui não tá
legal por causa da família dela. Lá a minha família ajuda
mais do que a dela, que só quer separar.”
Quando pergunto quais são os planos para o futuro,
Thomás responde:
“Agora é esperar ela fazer 18 para vir morar comigo
no Rio.”
Boa sorte para os dois.
Relato deles.
182
OUTRAS PAIXÕES
Projeto
PAIXÕES CLANDESTINAS
OUTRAS PAIXÕES
Minha vida pertence a ti
183
OUTRAS PAIXÕES
Meu nome é Kátia*. Sempre me achei uma mulher
sozinha, apesar de ter alguns pretendentes, porém
nenhum que realmente me completasse.
No trabalho, sempre fui vista como uma mulher fatal,
que era desejada por vários de meus colegas. Me
arrisquei a ficar com alguns, mas logo vi que nenhum
deles nutria um sentimento verdadeiro.
Sempre fui uma boa funcionária. Aqui no Shopping
Rio Sul era muito solicitada para treinar os novos
funcionários da empresa em que eu trabalhava, fazendo a
cobrança do estacionamento.
Novos funcionários vinham numa frequência quase
que rotativa. Alguns eram efetivados, e muitos eram
dispensados depois de poucos meses de trabalho. Me
lembro de ter treinado um jovem, com apenas 19 anos.
Com certeza era seu primeiro emprego. Esse jovem era
um rapaz franzino e tímido, que tentava se mostrar
empenhado em aprender todo o serviço.
Depois do curto período de treinamento, apenas três
dias, o jovem foi efetivado. No início sequer procurei
guardar o nome dele em minha mente, afinal, era apenas
mais um colega de serviço.
O jovem passou a conviver comigo e com os demais
colegas de equipe. Eram raras as vezes em que vinha
conversar comigo, e eram raras as vezes em que
trabalhávamos juntos na mesma cabine de cobrança.
184
OUTRAS PAIXÕES
Confesso que no começo o achava um chato! Além de
muito caladão, tentava mostrar serviço e isso me deixava
nervosa! Como um jovem pirralho poderia se destacar
dessa maneira?
Mas tudo começou a mudar quando começamos a
trabalhar juntos. Aos poucos fui conhecendo mais e mais
de sua vida, de seus problemas e de seus interesses.
Fomos ficando amigos, nos interessávamos um pelo
outro. Ele começou a fazer questão que eu fosse me
despedir dele.
Seu nome é Eduardo. Eduardo começou a me ver
apenas como uma amiga, mas eu, sem perceber, já estava
querendo vê­lo mais e mais. Enquanto nossos colegas me
viam como a mais “gostosa”, Eduardo me via como uma
pessoa amiga, em quem podia confiar.
Nossa amizade foi crescendo, até que um dia Eduardo
assumiu que estava gostando de mim. Marcamos então
nosso primeiro encontro no Réveillon de Copacabana.
Eu fui na frente, com minha mãe, ele me encontraria
depois, pois seu turno de trabalho terminaria às duas da
manhã.
Isso foi no dia 01/01/2001. Me lembro de que nessa
virada de ano choveu muito e, quando fui encontrar­me
com Eduardo, eu estava ensopada! Nos encontramos em
frente ao Shopping Rio Sul, e quando Eduardo me viu
molhada daquele jeito, imediatamente, voltou para
dentro do Shopping, indo até seu armário, e trouxe uma
toalha para que eu me secasse.
O resto da noite correu maravilhosamente bem, nos
conhecemos melhor, e ele me contou que tinha uma
namorada 18 anos mais velha que ele. Se tem duas
coisas que me encantaram no Eduardo foram: seu
185
OUTRAS PAIXÕES
cavalheirismo e sua sinceridade.
Pouco tempo depois, ele deixou a namorada para ficar
comigo, e com isso levamos nosso namoro muito a sério,
sem contar para ninguém do nosso trabalho.
Ficamos noivos em 17/11/2001, e só depois do
noivado nossos colegas de trabalho ficaram sabendo de
nosso relacionamento. No dia 09/06/2002 começamos a
morar juntos. Não nos casamos oficialmente, as
dificuldades da vida nos fizeram pular essa etapa.
Durante todo nosso tempo de casado, tivemos altos e
baixos. Passamos por muitas alegrias e muitas crises, que
serviram para nos amadurecer ao longo dos anos.
No dia 23/11/2003 nasceu nosso primeiro filho,
Richard, e no dia 01/01/2010, o nosso caçula, Rafael.
Infelizmente, no dia 11/10/2011, minha mãe, que
sempre morou conosco, faleceu. E a partir daí eu tive a
certeza de que Eduardo não era apenas o homem que eu
amava ou o pai dos meus filhos. Eduardo era meu pilar
de sustentação que me deu força e amparo quando tive
que seguir sem minha amada mãe.
Mas o que me deixa mais feliz ainda é saber que não
só ele é meu pilar de sustentação. Eu também sou o dele,
e por isso, hoje, nosso castelo é tão forte e sólido.
Mesmo depois de todo esse tempo juntos, ele ainda
prepara meu café da manhã, todos os dias. Ainda hoje,
Eduardo faz carinho em minha nuca. Mesmo com filhos
crescidos, nós nos beijamos a qualquer hora do dia, e
dizemos, para quem quiser ouvir, que nos amamos, que
nos desejamos.
Temos uma família maravilhosa. Podemos não ser
aquela família rica que estampa as capas de revista, mas
186
OUTRAS PAIXÕES
em nosso lar há muito amor e carinho, e isso não
trocamos por nada.
Quando éramos namorados ele me dizia uma linda
frase, e até hoje o ouço dizer cada doce palavra dela com
o mesmo amor…
“Minha vida a ti pertence!”
Eduardo C. Duque
*Essa é a minha história de amor com minha esposa, Kátia,
narrada do ponto de vista dela.
187
OUTRAS PAIXÕES
Projeto
PAIXÕES CLANDESTINAS
OUTRAS PAIXÕES
Eram eles três
188
OUTRAS PAIXÕES
Era Júlia, Ricardo e essa tal de paixão. Essa que
classificam como emoções que mexem e desestruturam o
coração. Júlia era uma menina magrinha, estatura
mediana, cabelos cacheados, nem feia, nem bonita, usava
jeans rasgado e camisas legais. Adorava quadrinhos,
estagiava no jornal local e uma vez por semana era
voluntária na AD, associação que ajudava drogados em
recuperação. A maior parte do tempo estudava,
trabalhava e planejava cada passo dos seus sonhos.
Ricardo era o tipo filhinho de papai, machista, lindo,
alto, malhado, olhos castanho­escuros, jogava no time de
basquete da faculdade. Um garanhão, desejado por todas
as meninas da faculdade.
Júlia olhou para ele pela primeira vez em uma
cafeteria no centro da cidade, aquele instante foi
suficiente para ela perceber que o sol existia apenas para
iluminar o sorriso dele. O seu coração palpitava
aceleradamente. Júlia pensou que talvez o bolo de
chocolate lhe fizera mal, pois havia muitos calafrios na
barriga. Ricardo, estudante de direito, tinha um nariz
simetricamente perfeito, um sorriso de propaganda de
creme dental, ar esnobe, jeito de riquinho, e estava
sentado com um amigo de faculdade de Júlia, do curso
de jornalismo. Paulo percebeu a presença de Júlia, a
chamou levantando a mão direita. Júlia se aproximou,
com a voz trêmula, perguntou se Paulo iria para a aula de
fotografia na terça­feira, Paulo respondeu que sim.
Esqueceu­se de apresentar os dois. E ela disse “até lá” e
189
OUTRAS PAIXÕES
foi embora.
Duas semanas depois, em um sábado à noite, Júlia,
que odiava sair de casa, a convite e insistência de sua
amiga Suzi, decidiu ir para uma dessas baladas que
reunem os universitários amantes de música sertaneja.
Logo que chegou, viu Ricardo. Ele estava com Roberta,
estudante de publicidade, ela era tão bonita que dava dó
de olhar. E mesmo que não quisesse, Júlia desejava de
alguma forma estar no lugar de Roberta. Às 2h40 da
matina, Suzi havia decido ir embora com uma carinha
qualquer. Júlia resolveu fazer o mesmo, mas sozinha.
Quando chegou à saída encontrou Ricardo, bêbado e
com cara de cachorro abandonado. Júlia decidiu lhe
oferecer uma carona. Deixou o rapaz em casa, sem ter
trocado uma palavra com ele no caminho. Na segunda­
feira Júlia recebeu um obrigado do moço, que depois das
idiotices da noite de sábado não parecia mais tão bonito
assim. Depois sempre acontecia um olá e um oi, todas as
vezes que eles se encontravam sem querer na faculdade.
Entre conversas, cafés, solicitações de amizades nas
redes socais, eles se beijaram na mesma cafeteria que
Júlia o viu pela primeira vez. Júlia achou que estava no
céu, que estava no paraíso. Agora eram efetivamente eles
três, Júlia, Ricardo e esse tal de namoro. E mesmo
felizes, eles eram opostos demais. Ricardo pegou todas
as mulheres que queria, mas sempre achou que mulher
para casar era a que viveria à margem dos sonhos dele.
Mas por Júlia ele tentou, até deixou de ir às baladas,
aprendeu a ler quadrinhos e a ser mais humano. Júlia
aprendeu a gostar de basquete e de leis. Parecia estar
tudo programado, se não fosse a tal da razão.
Depois de dois verões e de uma paixão intensa, de
idas e vindas, Júlia se formou e ganhou uma bolsa de
190
OUTRAS PAIXÕES
mestrado na Espanha, e dessa vez não deu para abaixar a
cabeça e concordar com a posição de Ricardo, ele apenas
lhe disse “você fica”. Ela chorou, arrumou as malas,
pensou nos seus sonhos, e pediu paciência para ele.
Tentou explicar que eram apenas dois anos e ele podia ir
visitá­la sempre que uma saudade louca batesse. Eles se
amariam por e­mails, cartas, telefonemas, mensagens,
mas no fundo ela sabia aquela proposta seria apenas uma
tentativa, Ricardo não concordaria.
E novamente eram eles três Ricardo, Júlia e a razão.
Júlia sabia que seu coração nunca mais amaria, nem
veria o paraíso ao beijar outra pessoa. Foram dias lindos
de sol, dias de abstinência, de liberdade ao lado de
Ricardo. Mas para Júlia amor e prisão não combinavam.
O tempo passou, agora Júlia está no terceiro ano do
doutorado, leciona no curso de jornalismo da faculdade
da Espanha e escreve contos sobre amor e vida
veiculados aos domingos em um grande jornal espanhol.
Escreveu dois romances que viraram best­sellers. Seus
mocinhos e vilões sempre são inspirados nos lados
opostos de Ricardo, que era amoroso, porém controlador.
Ricardo seguiu os passos do pai, é um juiz dedicado,
competente e respeitado, e casou com Carla, arquiteta
loirinha. Eles têm dois filhos, um cachorro, uma bela
casa de praia, e lembranças de viagens para Disney.
Júlia e Ricardo se viram em uma bela tarde ao pôr do
sol em um café na cidade de Madri, era janeiro, ele
estava em uma dessas viagens em família. Eles se
olharam intensamente e todo aquele sentimento surgiu de
forma avassaladora. Depois de cinco minutos, Júlia se
levantou sem terminar de beber seu café, e simplesmente
saiu, tendo a plena certeza que Ricardo continuava lindo,
simplesmente incrível. E Ricardo, ao ver Júlia ainda mais
191
OUTRAS PAIXÕES
bela, serena, magra e leve, entendeu porque nunca, nem
por um segundo conseguiu esquecer seus olhos, muito
menos olhar para alguém com a mesma magia que
olhava os seus cabelos cacheados balançados pelo vento.
Jani Di
192
OUTRAS PAIXÕES
Projeto
PAIXÕES CLANDESTINAS
OUTRAS PAIXÕES
A história de Darwin
193
OUTRAS PAIXÕES
Eu sou uruguaio. Morei dezessete anos no Rio Grande
do Sul. Fui casado por doze anos. Foi um relacionamento
bom – não vou dizer que não foi bom, tanto que durou –,
mas se desgastou.
Morava no lado uruguaio, na fronteira com o Brasil, e
atravessei a ponte para ir a um baile com os amigos. Eu
tinha 17 anos na época. A gente fez uma aposta para
trová­la e eu fui lá. Depois de cinco anos começou a
desgastar.
Eu era vendedor, viajava muito. Rolou muita cobrança
e traições. Primeiro ela descobriu a minha traição e por
último ela me traiu, por vingança. Ela falou assim para
mim, o que até hoje eu guardo: “Bala trocada não dói”.
Resolvi abrir mão da relação. Fazia dez anos que a
gente estava casado; não tinha filhos, mas tinha uma vida
bem estruturada, então pela própria pressão da família eu
voltei.
Todo mundo apostava que a gente desse uma chance.
Foram mais dois anos empurrando com a barriga, só de
aparências. Tentei conversar várias vezes com ela:
“Vamos ser felizes os dois. Nós não somos felizes. Não
deu...” A vida continua e ela se casou com outra pessoa.
Eu estive por três anos no Uruguai, mas não me
adaptei depois de estar por tanto tempo no Brasil. Fiz um
curso de barman e comecei a trabalhar no bar de um
brasileiro, em Punta del Este. Quando fechou ele me
194
OUTRAS PAIXÕES
chamou para trabalhar no outro restaurante dele, no Rio
de Janeiro. Depois uns amigos me convidaram para
passar uma temporada aqui em Florianópolis. Fui
ficando e já faz quatro anos que estou aqui.
Depois dessa relação estive por um ano sozinho, então
conheci a Janaína – muito bonita, muito simpática – na
mesma cidade e na mesma balada em que conheci a
minha primeira esposa. Faz sete anos que a gente está
junto.
Ela me acompanha em tudo quanto é lugar e nós
temos planos de ter filhos. É incrível, estive com uma
pessoa por doze anos e não sentia o que sinto por esta
outra. É mais do que amor, é cumplicidade. Eu não vou
cometer os erros que cometi no passado. Agora eu tenho
certeza de que encontrei a pessoa certa.
Relato dele.
195
OUTRAS PAIXÕES
Projeto
PAIXÕES CLANDESTINAS
OUTRAS PAIXÕES
As duas faces do Amor'al
196
OUTRAS PAIXÕES
Até algum tempo, a profissão de contínuo foi muito
conhecida, pois era exercida por uma pessoa, de qualquer
idade, desde que empregada em um escritório, mais
comumente em repartições públicas, e que prestava os
serviços bancários, de entregas, de correios e outras
atividades que denominamos hoje como as de office­boy.
Valdemar, um tipo simpático, franzino, com olhos
claros e pequenos que lhe davam um semblante maroto;
fino nos gestos e muito educado no falar, um verdadeiro
bom de papo, era um profissional dessa área. Profissional
mesmo, pois nunca se atrasava no horário de chegada ao
serviço, jamais faltara um dia sequer e era extremamente
cumpridor de seus deveres no trabalho. Casado há
muitos anos, vinte e cinco, mais ou menos, com Divina,
uma esposa dedicada, meiga, de poucas palavras e muita
afável, com quem tinha três filhos, um deles homem.
Nada deixava faltar para a família desde que adaptado ao
salário de funcionário público. Até seguro de vida ele
tinha, estando como beneficiária a esposa, assim gostava
de divulgar.
Por motivo de uma crise conjugal, ocorrida após dez
anos de casados, iniciou­se minha amizade com o casal.
Divina, em prantos, veio ao meu escritório e queria a
separação do Valdemar, alegando motivos para ela
trágicos. Porém, após uma breve conversa, se pôde
observar que não eram de nenhuma gravidade, apenas
discórdias conjugais, um pequeno desentendimento de
197
OUTRAS PAIXÕES
marido e mulher. Reunidos os três, não foi difícil de
minha parte apaziguar os ânimos e conciliar o
entendimento entre ambos, em vez de promover a
procurada separação.
Por isso e por passar o casal a viver em paz, formou­
se entre nós uma amizade duradoura e sincera que se
estendeu além do profissionalismo, passando a nos
tornarmos amigos particulares, incluindo a companhia
dos nossos familiares e com mútuas visitas às
residências. Amizade sincera gera confidências e Divina
não se cansava de confessar que fora uma tola naquela
ocasião do desentendimento, que não tivera razão para
desacreditar de seu querido Valdemar, mostrando a quem
quisesse ver e ouvir o seu amor pelo marido, e
demonstrando uma ternura imensa, sem exigir nenhuma
prova dele. Anos seguidos fui testemunha daquele
verdadeiro idílio existente entre ambos, daquela paz
duradoura entre Divina, Valdemar e seus filhos. Ele
permanecia fiel ao seu trabalho na repartição, pontual,
cumpridor de seus deveres em todos os dias úteis da
semana e dedicando o domingo à companhia da família e
os sábados ao seu divertimento preferido, ao seu hobby
único: jogar tênis no Clube Inglês.
Algumas pessoas estranhavam o gosto do Valdemar, o
seu passatempo preferido não coerente com um contínuo
de repartição pública, portanto incompatível com seu
salário, com seu modo de vida e com a condição social
dos frequentadores daquele clube e daquele esporte.
Porém, Valdemar respondia a quem o questionava
dizendo que o que o atraía e o fascinava era o
comportamento, a finesse e o trajar empregado na
atividade esportiva dos companheiros daqueles encontros
aos sábados. Por isso, Valdemar saía todas as semanas
198
OUTRAS PAIXÕES
muito bem arrumado, com sua melhor camisa, calça
vincada, sapatos polidos, barba raspada, cabelos sempre
bem cortados e sobre a cabeça um boné tipo italiano,
levando sua maleta de mão e sua raquete. Por anos, a
rotina seguia com Valdemar saindo para seu trabalho ou
para seu lazer e se despedindo carinhosamente da
querida Divina todas as manhãs e voltando ao anoitecer,
menos aos domingos, pois os domingos eram sempre e
sempre dedicados exclusivamente aos seus queridos
familiares.
Naquele fatídico dia o telefone de meu escritório
tocou e a notícia veio violenta, atordoando meus
pensamentos, já que Divina, aos prantos, com a voz
embargada dizia que o Valdemar havia sido internado às
pressas, socorrido diretamente na repartição, em estado
grave. Corri imediatamente para o hospital. Porém, ao
chegar, Valdemar já estava a caminho do necrotério,
corpo coberto dos pés a cabeça, atingido por um
fulminante colapso do miocárdio.
No funeral muito simples, caixão modesto e barato,
somente familiares e amigos mais chegados consolavam
a viúva, envolvida em um vestido preto obtido às pressas
que mal contornava seu corpo de curvas já não
acentuadas, mas simbolizava seu luto e externava seu
imenso sofrimento. Desesperada, bradava ao mundo seu
amor pelo defunto, as qualidades daquele que por vinte e
cinco anos tivera por companheiro fiel e dedicado.
Mergulhada em desespero, chegou a desmaiar por duas
vezes durante o velório, e a dor da esposa enlutada era
compartilhada por amigos e parentes presentes na
caminhada da última morada.
Do Clube Inglês não se viu ninguém, nem um
representante, nem um companheiro de esporte, nem
199
OUTRAS PAIXÕES
uma coroa de flores, nenhuma mensagem de condolências,
nem mesmo uma simples rosa. Nada.
Até a missa de sétimo dia a viúva continuava
depressiva, derramando lágrimas dia e noite, apesar da
tentativa de todos de consolá­la, porém com pouco êxito,
pois Divina só enaltecia as qualidades do falecido.
O tempo, no entanto, é o remédio de tudo e para tudo.
Alguns dias mais, parcialmente aliviada de seu
sofrimento, encarando a realidade, corajosamente Divina
juntou os pertences e as roupas de seu querido esposo
para doar a algum necessitado. Camisas, calças, meias,
sapatos, tudo separado e embalado carinhosamente na
esperança de que alguém, com as mesmas virtudes e com
os mesmos valores do seu Valdemar, fizesse proveito
daquelas vestimentas. Um a um dos vestuários foram
lavados, passados e dobrados, especialmente aquela
calça branca de gabardina, uma das preferidas e que ele
usou recentemente quando de suas idas ao clube, aos
sábados. Revisava antecipadamente toda a peça,
verificando cuidadosamente quando notou um papel
sutilmente colocado bem no fundo do bolso traseiro,
quase imperceptível. Era um envelope cuidadosamente
dobrado, alisadinho, trazendo no seu interior uma carta.
Curiosa antes, trêmula depois, Divina abriu o
envelope e começou a ler o conteúdo, notando antes uma
forma de boca aplicada no papel branco, como se fosse
uma marca d’água, sombreada em vermelho. Mais
atentamente percebeu que era a forma de um beijo
transferido de lábios pintados e firmado no fundo do
papel da missiva. Em linhas carinhosamente escritas,
uma delicada caligrafia feminina expressava declarações
de amor eterno a Valdemar. A data era recente, mas as
juras indicavam a continuidade em viver intensamente na
200
OUTRAS PAIXÕES
forma como todos os sábados que já passaram juntos por
tantos e tantos anos que já se foram: uma vida! Carinhos
e declarações afetivas transbordavam do papel,
escorriam carregando a tinta rubra do batom e atingiam
Divina com a mesma violência das lavas derramadas de
um vulcão em erupção. A confissão expressa da
missivista pela predileção do falecido em acariciar os
seus cabelos longos envoltos no rosto, foi como um soco
no estômago, já revirado, da leitora. O sutil perfume do
papel tão bem guardado entupia suas narinas, sufocando­
a. As letras manuscritas com tanto carinho enchiam seus
olhos de lágrimas, inundando­os como a terrível invasão
das águas em um navio naufragando. A sua rosada pele
agora refletia um branco mais intenso do que o do papel
que tinha em mãos. Seu coração disparado palpitava
descontroladamente a cada palavra que lia e sua razão
não aceitava a existência daquele momento, como
atingida por um golpe no peito. Chegou às portas do
desfalecimento ao deparar com o nome assinado ao final,
abreviado: LÚ.
Sentou na cama daquele quarto que venerava, que
tinha em seu teto e em suas paredes o testemunho das
tantas e quantas vezes que se entregara de todas as
formas ao seu querido marido, por tantos anos, sem
jamais cogitar tal situação. Vagarosamente, corajosamente
procurou ordenar seus pensamentos e voltar a seu
discernimento. Lentamente a tontura foi passando e deu
lugar a um leve sentimento de rancor, que cada vez mais
se avolumava como se quisesse sair por todos os poros
de seu corpo em brasa. Uma raiva incontrolável passou a
exteriorizar de todas as formas e através de todos os
nervos de seu corpo tenso. Uma tremedeira, agora de
furor, esbugalhou seus olhos; suas narinas, não mais
entupidas, em chamas soltavam lavas e de sua boca
201
OUTRAS PAIXÕES
zangada saiu um grito alto, forte, violento, nunca dito
antes:
– Filho da puta!
E caiu desmaiada, deixando a singela missiva escorrer
por seus dedos, pela mão mil vezes furada e dilacerada
por suas unhas cravadas, molhada pelo suor de todo o
seu corpo.
Socorrida, Divina ficou em observação médica por
um dia, no pronto­socorro mais próximo. Alta obtida,
cabeça no lugar à base de sedativos, passou a analisar o
passado com lembranças de um nome que lhe ferira
mortalmente, gravado com ferro ardente no seu cérebro:
LÚ. Então era ela! Lucimeire, a copeira da repartição!
Valdemar, algumas vezes, em conversa familiar
enaltecera a qualidade daquela biscate, elogiando o sabor
do café que ela servia. Chegou a mudar de marca, por
várias vezes, do pó de café comprado na tentativa de
igualar com o de sua casa o sabor daquele feito na
repartição pública. Ah! O que ele queria mesmo,
concluiu, era sentir o aroma da piranha, mesmo de longe,
durante os dias da semana. E a panqueca? Jamais comera
outra panqueca igual à da Lucimeire, dizia o verme de
quando em vez. Aos poucos e devagar o raciocínio
funcionava, trazendo esclarecimentos: e os amigos do
Clube Inglês, que sequer vieram ao velório? Não
poderiam vir mesmo, pois não existiam! E a raquete de
tênis, sempre polida, impecável, cordoalhas sempre
rígidas, não se conservavam por ser importada, de alta
qualidade e sim por não serem nunca usadas! Boné
italiano no clube inglês, por que nunca pensei nisso? Mas
é lógico que na repartição não se fazem panquecas!
Passados alguns dias, não sabendo ainda exatamente se
seus sentimentos eram de raiva intensa ou só de tristeza,
202
OUTRAS PAIXÕES
só vazio, sentindo apenas uma vontade de ajoelhar diante
da tumba, apenas ajoelhar ali perante a sua morada eterna,
Divina resolveu ir ao cemitério cuidar do túmulo, lavar e
desfazer­se das flores e das coroas enviadas pelos amigos
no funeral, pois já deviam estar podres e mal cheirosas.
Não foi o que viu, pois encontrou a laje límpida, com as
pedras lavadas e polidas, e dois vasos com flores, um de
cada lado, de rosas vermelhas e de cravos brancos
adornando a cama final do descarado, do cretino, do sem­
vergonha. Sobre a lápide julgou ver escrito um nome,
quase apagado, como querendo esconder por mais tempo a
verdade, um pó, quase uma sombra: LÚ.
Irada, raivosa, num acesso de fúria atirou longe os
vasos, chutou as rosas e os cravos, pisoteou centenas de
vezes o tampo em granito que selava a cova, gritando mil
palavrões, xingando cada um dos ex­amantes com todos
os nomes feios que conhecia, fazendo palco para uma
cena que se não fosse trágica, seria hilária.
Dias depois, mais calma, até arrependida de sua fúria
anterior, voltou ao cemitério e encontrou novamente a
laje límpida, com as pedras lavadas e polidas, e dois
vasos com flores, um de cada lado, de rosas vermelhas e
de cravos brancos adornando a cama final do
desavergonhado. Sobre a lápide julgou ver escrito um
nome, quase apagado, como querendo esconder por mais
tempo a verdade, um pó, quase uma sombra: LÚ.
Sem perder a tranquilidade, desta vez simplesmente
abaixou a cabeça, relaxou todos os músculos possíveis
do corpo, deixou os ombros caírem e, suspirando fundo,
volteou em direção à saída, caminhando a passos
vagarosos pelas silenciosas alamedas daquele campo
santo. Ao transpor o portal principal e passar sob a sombra
de uma frondosa árvore, teve a cruel sensação de ver no
203
OUTRAS PAIXÕES
solo a luz projetada pelos raios do sol transposta por entre
alguns de seus ramos e de suas folhas, formando um
escrito em letras garrafais, um nome: LÚ…
Nunca mais retornou àquele supulcrário.
Ligou­me outro dia a Divina, querendo saber se
poderia anular o casamento feito há mais de vinte e cinco
anos com o Contínuo, forma como se referia ao falecido
desde que se recusava a pronunciar novamente o nome
daquele desprezível verme, conforme suas próprias
palavras. Respondi que não, mesmo porque ela não era
mais casada, pois passou à condição de viúva, seu estado
civil atual. Do outro lado da linha ouvi sua risada, entre
as palavras “É mesmo… É mesmo…”. Perguntei­lhe se
estava bem e como resposta ouvi que nunca estivera
melhor, era livre, recebia pensão do Estado e até uma
boa casa havia comprado com o dinheiro do seguro de
vida, deixando de pagar aluguel, como sempre fez o
Contínuo. Mesmo a distância percebi que aquele sorriso
de escárnio estava marcado com uma linha espessa
trazendo à mostra várias rugas recém­chegadas à sua
face plúmbea. E ouvi mais risos, tantos que foram
gradativamente aumentando, aumentando até se
transformarem em gargalhadas cada vez mais fortes,
mais ruidosas e mais duradouras, que me obrigaram a
desligar o telefone após algum tempo, sem poder
concluir se foram gargalhadas de ciúme, de vingança ou
de satisfação.
Hoje ainda penso que era o gargalhar de uma louca.
Flávio Dias Semim
204
OUTRAS PAIXÕES
Projeto
PAIXÕES CLANDESTINAS
OUTRAS PAIXÕES
Loucuras de amor
205
OUTRAS PAIXÕES
– Alô!
– Fernanda?
– Oi, amor, eu estava com saudades!
Desse modo iniciava­se nossa conversa por telefone
todos os dias de manhã, depois de eu conhecê­la, assim
que mudou­se para o bairro. Minha casa era separada da
sua simplesmente por alguns metros e um canteiro onde
os bem­te­vis cantavam nas árvores, parecendo chamar
alguém. Apenas alguns veículos e alguns cães asquerosos
insistiam em desafiar o sossego do local. Na sua casa
ouvia­se somente, e muito raramente, a voz da sobrinha
mimada e o movimento discreto de sua irmã.
Fernanda viera para a capital em busca de estudos e
do sonho de um bom emprego. Quando eu a vi de minha
janela, meu coração disparou. Senti algo diferente, que
nunca sentira por mulher alguma, nem mesmo por minha
esposa. Fora amor à primeira vista. Morena alta, de
corpo escultural, com os cabelos cacheados e negros
batendo na bunda redonda e protuberante, ela parecia
uma deusa de bronze esculpida pelos melhores artistas
no auge de suas inspirações. Tinha apenas dezessete
anos. Eu já estava com trinta e nove.
Todos os dias, Fernanda saía no quintal com uma
vassoura e com um balde de lixo nas mãos para limpar a
sujeira das folhas e a terra deixada pelos ventos noturnos.
Às vezes, nos movimentos de inclinação e momentos de
206
OUTRAS PAIXÕES
descuido, seus belos seios, soltos e altaneiros, se
descobriam parcialmente. Sentado numa cadeira, eu
observava tudo atentamente. Percebi que ela também me
olhava discretamente. Um sorriso lascivo saía de sua
boca de lábios finos e sensuais.
Certo dia, em sua limpeza de rotina, Fernanda
apareceu usando um vestido puído de tecido simples e
barato. Porém, nada disso tirava­lhe a beleza e
sensualidade. Beleza essa, quase indescritível mesmo
pelos mais inspirados e apaixonados dos poetas em noite
de lua cheia. Ela já havia me visto no mesmo canto da
garagem, sempre a observá­la. Num instante,
subitamente, uma lufada de vento levantou a barra do
seu vestido acima dos joelhos, deixando entrever parte
de suas lindas e torneadas coxas. Enrubescida,
percebendo meu olhar de delírio, mostrou­me um
sorriso tímido e bastante peculiar. Ajeitou rapidamente a
roupa, acenou timidamente e entrou.
À noite, Fernanda saiu toda lépida e faceira, seguindo
até à escola onde estudava. Passou em frente ao jardim e
sorriu para mim, ajeitando os cabelos sensualmente.
Parecia me fazer um convite. Eu, munido pela paixão,
numa coragem súbita, abri imediatamente o portão,
liguei o carro e a segui. Na esquina eu a alcancei. Ela,
após uma certa resistência e algum charme, entrou no
carro. Levei­a para um local ermo e escuro, longe de
nossas casas e dos olhares curiosos. Nossos corações
disparavam, com ambas as respirações tornando­se
ofegantes. Estacionei embaixo de uma grande árvore
florida. Puxei­a para o meu lado e, pela primeira vez,
nos beijamos ardentemente.
De dia, ela em seu quintal e eu no meu, namorávamos
de longe com acenos, beijinhos e juras de amor por
207
OUTRAS PAIXÕES
telefone. Porém, os encontros íntimos só aconteciam
uma vez por semana. Fernanda, com medo de alguma
coisa, resistia às minhas propostas de mais encontros.
Provavelmente, medo de sua irmã, que era evangélica,
descobrir e, principalmente, do fato de eu ser casado.
Mesmo assim, estávamos completamente apaixonados.
Eu quase não me alimentava nem dormia direito. Todos
os dias, bem cedo, eu ligava. Sua voz macia, ao atender o
telefone, fazia­me esquecer de tudo e de todos. Minha
esposa não desconfiava de nada, preocupando­se apenas
com os afazeres da casa e com as crianças.
A noite estava chuvosa, com nuvens densas e
escuras. Encontrava­me em casa sozinho. Minha
mulher saíra para uma festinha de aniversário, com
minhas filhas. Fernanda apareceu no quintal. Linda e,
como sempre, num vestido simples e muito sensual. Ela
fechava o portão, pois sua irmã acabara de sair para um
culto na igreja. Mandei um beijo para ela e entrei.
Coloquei uma música para tocar e, sem titubear, liguei
para sua casa. De minha janela a vi correndo para
atender o telefone:
– Oi, amor!
– Oi, Fernanda! Vem aqui em casa, eu preciso de
você! Estou sozinho!
– Está bem, me aguarda que estou indo!
Pela primeira vez senti firmeza em sua voz. Deixei o
portão aberto e esperei. A ânsia me sufocava, com uma
excitação incontrolável tomando conta de meu corpo. De
repente o portão se abriu. Meu coração parecia querer
sair pela boca. Subitamente, o céu escureceu e uma
chuva forte caiu. Os raios, seguidos de fortes trovões,
iluminavam a rua banhada pelas enxurradas. Puxei
208
OUTRAS PAIXÕES
Fernanda, abraçando­a fortemente, passando a beijá­la
sofregamente no rosto, no pescoço, nas orelhas e na boca
de hálito quente. Ela, por sua vez, também me apertava,
com suas unhas finas arranhando minhas costas. Era uma
loucura total. Loucura de amor, loucura de paixão.
Ambos soltávamos frêmitos de deleite, extasiados e com
desejos mútuos.
A chuva, como que nossa cúmplice, cessara no
mesmo instante do final do ato de amor. Fernanda
ajeitou a roupa e os cabelos. Nada parecia amedrontá­la.
Deu­me um longo beijo de despedida, saindo com uma
fisionomia serena. Atravessou lentamente a rua
molhada, com seu andar sensual. Olhou mais uma vez
para trás, sempre sorrindo, sumindo diante da escuridão
da noite.
De manhã, não avistei Fernanda como de costume.
Liguei para sua casa e ninguém atendera. Tudo parecia
estranho. Um misto de medo e tristeza tomou conta de
meus pensamentos. À tarde, para meu espanto, eu a vi
saindo com uma enorme mala. Ela, que ainda acenou
para mim, partiu sem avisar. Fiquei do meu canto
boquiaberto e inerte. Nunca mais soube notícias de
minha deusa.
O meu amor por Fernanda não fora efêmero, pelo
contrário, fora um amor forte, verdadeiro, devastador.
No início da separação passei a imaginá­la em toda
parte, procurando­a pelos lugares mais difíceis e
improváveis, sempre a perguntar em solilóquio “onde
está meu amor?”. No entanto, apesar da perda, a cada
dia passei a sentir­me mais vivo e fortalecido.
Até hoje, depois de vários anos que conheci
Fernanda, ainda não consegui olvidá­la. Amiúde,
209
OUTRAS PAIXÕES
lembro­me da frase de uma música que ela me recitou,
soprando ao meu ouvido: “agimos certo sem querer, foi
só o tempo que errou”.
Vicente de Melo
210
OUTRAS PAIXÕES
Projeto
PAIXÕES CLANDESTINAS
OUTRAS PAIXÕES
A história de Alide e Luis Alberto
211
OUTRAS PAIXÕES
Com apenas 15 anos, a bela jovem de Passo Fundo já
tinha uma história trágica para contar. Ela conhecera e se
enamorara por um rapaz chamado Luis Alberto, que
trabalhava como aviador. Para a tristeza de Alide, esse
Luis Alberto, o primeiro da sua vida, faleceu.
Depois dele, apareceu outro Luis Alberto, aviador
como o primeiro. E, como o primeiro, não chegou a
desfrutar a vida ao lado dela, pois também faleceu.
Imaginem como deve ter se sentido a jovem quando
por duas vezes perdeu os seus amores assim em
circunstâncias tão similares e inusitadas. O mais curioso,
no entanto, ainda está por vir.
Então surgiu um terceiro homem, namorador e bem­
apessoado. O seu nome era Luis alberto, como os dois
outros que passaram pelo caminho de Alide. E vocês
querem saber o que ele fazia da vida? Sim, ele também
era aviador.
Assim, por teimosia do acaso ou do destino, Alide
enamorou­se por aquele que se tornaria o seu Luis
Alberto para todo o sempre. Os dois tiveram um desses
namoros à antiga, com direito a beijo roubado no fundo
do quintal e a um pai desconfiado que se sentava entre
eles quando iam ao cinema.
A morte só veio encontrar o terceiro Luis Alberto após
algumas décadas de um casamento bem­humorado e
apaixonado. “Eu me apaixonava por ele toda vez que
acordava”, Alide conta à sua família.
212
OUTRAS PAIXÕES
Ainda hoje, decorridos vários anos do falecimento
dele, a agora avó Alide sente­se unida ao seu Luis
Alberto tanto quanto sempre foi. Com a aliança no dedo,
com um armário cheio de recordações da feliz união e
comemorando cada aniversário de casamento, segue à
espera do reencontro com o seu amado, embora, se lhe
perguntarem a respeito, dirá que nunca se afastaram.
“Minha avó diz que ele ainda está com ela”, revela a
neta de Alide e Luis Alberto, Thalita, quem me conta
essa história.
Relato de Thalita, a neta.
213
OUTRAS PAIXÕES
Projeto
PAIXÕES CLANDESTINAS
OUTRAS PAIXÕES
Cabelos de labaredas
214
OUTRAS PAIXÕES
Que fosse eu a herdeira do baú, ninguém estranhou.
Dos netos todos, sempre fui a preferida. Disfarçar ela
sequer tentava. Diziam que era a semelhança o que nos
tornava inseparáveis, cúmplices. Gastávamos horas
brincando de misturar nossos cabelos, para depois
adivinhar de quem era cada fio. Vê, não somos iguais?
ela perguntava, em frente ao espelho. Temos as mesmas
labaredas. Sim, éramos iguais, uma diferença apenas. Por
que os meus olhos são verdes, vovó? Ela não respondia,
apenas me olhava, apenas me admirava. Minha pergunta
fazendo­a flutuar, os pensamentos atravessados pelas
lembranças. Mas nada disso eu sabia, pequena que era.
Muito menos podia imaginar aquela saudade na alma, no
corpo – saudade incrustada em cada recanto, em cada
fibra.
O baú. Agora era meu. Minha avó chamava­o de
Fênix. Foi tudo o que sobrou do incêndio. A casa toda
destruída e ele ressurgido das cinzas, intacto. Fazia­me
acreditar ser esta a razão de tamanha preciosidade. Os
olhos castanhos aveludavam­se no cuidado de interditá­
lo à chave, dentro do armário da biblioteca. Isso no
tempo em que era preciso mantê­lo longe das minhas
mãos curiosas.
E ali estava o diário, escondido sob linhas e agulhas
de crochê. Na capa, duas letras num monograma. As
folhas todas preenchidas com a caligrafia de minha avó,
inconfundível, precisa, de alfabetizadora. No entremeio,
215
OUTRAS PAIXÕES
envelopes com cartas. Nas cartas, uma letra masculina,
vertida em poemas. Poemas. Escritos para ela, assinados
apenas com Z, a letra que se entrelaçava ao A, inicial do
seu nome.
Já havia anoitecido no dia em que se conheceram. A
reunião de professores prendeu­a na escola uma hora a
mais. Ao sair da venda em frente à praça, logo na
esquina, não conseguiu evitar o escorregão na calçada,
ainda úmida da garoa daquela tarde. Constrangida,
tentava recompor­se, quando ouviu às suas costas: Vejo
que precisa de ajuda, senhorita. A voz grave pontilhou
suas vértebras, uma a uma, enquanto tentava livrar seu
olhar do movimento das mãos morenas, juntando as
maçãs esparramadas no chão. Deixa que eu carrego.
Você mora por aqui? Ainda sem ter visto o verde
daqueles olhos, verde da floresta quando chove, sentiu
que os pensamentos a subjugavam, tirando­lhe a razão.
Mas ainda conseguiu dizer: Não precisa. Meu marido
está aqui perto. Obrigada. O marido a aguardava, de fato,
e estranhou que estivesse tão perturbada. O que foi?
Problemas com a madre? Talvez não tenha notado que os
cabelos dela pareciam mais afogueados que nunca.
Semanas se passaram até que ele aparecesse em frente
à escola, confundido com os pais à espera dos filhos, na
saída. Naquela noite mesmo ela incluiu nas novenas uma
nova intenção. Virgem Maria, me ajuda, preciso tirar este
homem da cabeça. Preciso. Mesmo que isso tenha se
tornado uma súplica, inócua mostrou­se a intercessão
divina. O tempo deixou de ser contado em horas,
semanas ou meses; só existia, só fazia sentido, quando
ele estava. E assim como ele estava, podia desaparecer
sem aviso, sem promessa de volta. Na sua ausência, o
consolo dos poemas, os que redesenhavam as
216
OUTRAS PAIXÕES
lembranças, os que se moldavam aos desejos de minha
avó. O carimbo no envelope, o único vestígio do seu
paradeiro.
Desistiu das orações no instante em que soube do
bebê germinado em seu ventre. Não, ele não viu a
barriga crescer, não tomou o filho como seu, não
acompanhou as peripécias do menino adorado por todos,
o caçula da família. Viu­o uma única vez, no último
encontro que tiveram, quando o presente foi entregue
para a criança de dois anos. Mas os poemas de amor,
estes, nunca deixaram de vir, em tempos imprevisíveis,
descompassados, marca já conhecida na vida de minha
avó. Ela apenas continuava presa ao fio daquelas
palavras, a respiração sempre em suspenso, vigiando a
hora do carteiro chegar.
Sem conhecer endereço para respostas, escrevia tudo
no seu diário, juntando ao dia correspondente as cartas
recebidas. Não havia mais esperança de que esse amor
definhasse – carecia do necessário abandono. Por isso, da
saudade já nem precisava falar. O que contava era do
menino que crescia. Da formatura, do casamento. Do
filho deles tornado pai. É cada dia mais linda nossa neta.
Tem cabelos iguais aos meus e hoje quis saber de onde
veio o verde dos seus olhos. Bastaria que visse você uma
vez. Bastaria.
Eu, a neta preferida, refletindo o horizonte do amor
que nunca puderam silenciar. Diante da morte, ela
decidiu. A eternidade seria longa demais para tal segredo.
Ana Luiza Tonietto Lovato
217
OUTRAS PAIXÕES
Projeto
PAIXÕES CLANDESTINAS
OUTRAS PAIXÕES
Se o destino quis assim
218
OUTRAS PAIXÕES
Assim que as dificuldades que advieram com a grande
crise provocada pela perda de preço do café, que era o
grande gerador de riquezas de então, os Pederneiras
tiveram que se adequar à nova condição de vida.
O enorme casarão na parte alta da cidade e os
diversos carros da família ficaram apenas nas doces
lembranças de um passado que não voltaria mais.
A maior preocupação do chefe do clã era que os filhos
continuassem a ter o mesmo nível de estudo que vinham
tendo. Se teriam que ir às escolas de bicicleta ou de
coletivo era o que menos o preocupava.
Outra preocupação que deixou de ter foi manter um
alfaiate e uma costureira à disposição de todos.
– Um aviso moçada: os únicos luxos que manterei
serão os estudos de línguas estrangeiras, as aulas de balé
e as de aprendizagem de qualquer instrumento… O resto
que vá pros diabos. Quem quiser ter dez pares de sapatos
ou trinta gravatas que vá capinar lotes sujos pela cidade.
– As mulheres? Uai, lavar chão, lavar roupa, cozinhar
em casas de família…
Falava assim, com determinação. Nem Deus sabia o
quanto sofria por dentro. Adorava aqueles filhos,
aprazia­lhe dar­lhes o melhor que pudesse.
Costumava ficar na janela do casarão vendo quando
eles saíam para as escolas ou para as festas, cada um no
seu belo carro e em suas belas vestimentas.
219
OUTRAS PAIXÕES
Emocionava­se mais – nunca revelou pra ninguém –
quando via o seu primogênito sair garboso, ora dentro de
uma calça jeans, ora dentro de um summer bem ajustado
ao corpo, e também quando via a caçula, uma poesia que
anda, loirinha, delicada, saindo com algum dos irmãos.
Um dia a esposa o logrou na janela, demoradamente
olhando a cena e os seus olhos estavam marejados de
lágrimas. Há muito não choravam juntos…
A vida seguiu em frente levando cada Pederneira de
um jeito. Os primeiros a ir foram os pais. Primeiro o
marido e não muito tempo depois, a mãe.
O primogênito, Maurício, passou a gerir os negócios
que os pais deixaram, a orientar a vida dos irmãos mais
novos e, sobretudo, a usar a mesma firmeza na
distribuição dos recursos buscando prepará­los para a
vida, pois foi esse o último pedido do seu velho.
A situação provocada pelo crash levou algum
patrimônio que consistia em imóveis na cidade, ações em
grandes empresas, bens móveis, saldos bancários, mas
deixou o que chamavam de bagaceira, ou seja, uma
fazenda de bom tamanho ainda precisando de
investimentos, um sítio perto de onde residiam e umas
cabeças de gado. Partindo daí, o velho ainda deu uma
boa equilibrada nas coisas.
Um costume dos seus pais era acertar as coisas da
família em família, e para isso promoviam reuniões
periódicas.
Após as exéquias da mãe, quando assumiu de vez a
direção de tudo, marcou a sua primeira reunião como
gestor. Estavam todos presentes: Marília, que lhe
sucedia, e depois Luis, Mariana, Celso e Cristina. Ele, o
mais velho, com 38, e a mais nova, com 15 anos. Ele já
220
OUTRAS PAIXÕES
com curso universitário completo e fazendo doutorado,
Marília em vias de se formar e os outros ainda fora das
universidades. Após colocar que manteria as disposições
deixadas pelos pais e sobre isso não haveria discussão,
passou a elaborar para cada um o objetivo a ser
alcançado. Nada impôs a nenhum deles.
Eles assumiram uma função dentro da organização
familiar, respeitando­se os horários de escolas e demais
obrigações estudantis, mas cada um com uma função na
manutenção da casa.
Ele e o mano ficaram com os encargos que mais
exigiam dedicação. Delegou ao irmão a função de
gerenciar os trabalhos do sítio, ficando com a gerência da
fazenda e das demais necessidades.
Como o sítio era perto da cidade onde moravam,
Marília ajudava Luis na direção dos serviços, quando por
motivo ou outro ele não podia fazê­lo. Era exímia
motorista, dominava com maestria um cavalo por menos
domado que fosse e entendia das coisas da fazenda.
Como tudo funcionasse como um relógio suíço, a
família passou a despertar a simpatia de toda a
sociedade. Eram vistos como modelos a serem seguidos.
E eram belos.
Isso obrigava Maurício e Luis a ficarem atentos. Com
três irmãs parecendo fadas de histórias em quadrinhos…
E não davam moleza.
– Ai, meu amigo, como você é chato!
Até Marília cortava um doze nas mãos dos irmãos.
Nas rodinhas de jovens, ela costumava dizer que na
próxima encarnação ou nasceria homem ou se agarraria
nas paredes do útero para não sair.
221
OUTRAS PAIXÕES
– Uai, Marília, por que quer ser homem na próxima.
Menina, o serviço mais pesado é o deles.
– Que mais pesado que nada. Além de serem os
mandões, ainda têm outras regalias.
– Por exemplo, fala uma.
– Vou falar mais de uma: um homem tem dois pares
de sapatos e um par de botas e está maravilhoso para ele.
Quantos pares de sapatos você tem? Um homem sai com
uma manchinha na camisa e outro homem nem repara.
Sai você com uma manchinha na blusa pra ver. A sua
melhor amiga vai dizer que a sua blusa estava imunda.
Um homem sai sem pentear o cabelo até pra ir à missa.
Sai você sem passar pelo menos dez horas no
cabeleireiro pra ver o que acontece.
O seu jeito de ser, sua postura determinada, sua
inteligência e sua cultura fizeram dela o objetivo, o alvo,
a meta a ser alcançada por todos os jovens da cidade.
Logo os pais passaram a ocupar lugar no quesito
saudade e foram entrando no ritmo da própria vida, dos
próprios sonhos e envoltos em seus particulares
problemas.
Maurício conheceu Solange, que se apaixonou por
Maurício e lhe deu Luciana.
Luis, mesmo com a desaprovação do irmão,
encontrou Mercedes e com ela se amasiou.
Como continuou residindo na mesma casa dos irmãos,
para ela trouxe a amante, que apesar de boa moça era
muito liberal e isso criava alguns constrangimentos,
sobretudo quando se levantava e ia à mesa do café da
manhã com suas roupas, digamos, um pouco escassas.
Maurício falou com o irmão, mas nada adiantou.
222
OUTRAS PAIXÕES
Alegou que isso não era bom exemplo para a irmã
caçula.
Marília não estava nem aí, como se diz; aliás, gostava
da “cunhada” e até começou a imitá­la.
Mas o pior veio da esposa de Maurício. Ciúmes…
Ciúmes, como se sabe, vem do medo de perder algo
ou alguém. No caso, alguém.
E não surgiu de graça na pobre mulher.
Por mais que Maurício rezasse, pedisse a Deus, não
conseguia deixar de pensar na cunhada.
Sonhava com ela, dormindo ou acordado. Fazia os
castelos mais mirabolantes, possuía­a de todas as formas
e não foram poucas as vezes nas quais se pegava
masturbando pensando nela.
Já não suportava olhar para o irmão.
Solange percebeu o drama do marido, tinha até pena
dele.
Mudaram de residência; foram morar em outro bairro.
Aparentemente a paz voltou a reinar.
Luis ficou com a amante­esposa na casa, junto com os
outros irmãos.
Maurício e a esposa quase não apareciam, nem nas
festivas da família. Foram os primeiros sinais de
desagregação familiar. Um dia, Luis, doente, pediu que
Marília fosse até ao sítio levar mantimentos, sal para o
gado e o salário do funcionário. Para não ir sozinha, já
que o tempo estava chuvoso, pediu à cunhada que lhe
fizesse companhia.
Combinaram com Luis que se o tempo piorasse,
dormiriam no sítio e retornariam no outro dia.
223
OUTRAS PAIXÕES
Fizeram boa viagem, cantaram pelo caminho,
contaram piadas imundas e tudo o mais, tudo isso regado
a algumas latinhas de cerveja que tinham levado em um
isopor.
Cumprida a exigência da viagem, não retornaram à
cidade mesmo o tempo tendo ficado mais firme.
Foram assistir o ocaso nas margens do rio que
limitava a fazenda. Lugar paradisíaco, hora do
Ângelus…
Mais distante, o gado achegava­se à cerca em grupos.
Lá longe o grito do Jaó chamando pela companheira e o
voo rasante do nhambu xintan indo pra perto do chororó.
Na corredeira pulavam os lambaris e as piaparas em
suas vidas que pareciam orações da natureza aos céus.
Um silêncio respeitoso adveio com o último raio do
sol.
E nele algo transbordou sem que se esperasse, sem
que houvesse o menor sinal anterior.
Marília deitou suavemente a cunhada na verde relva,
abriu­lhe a blusa e começou a beijar­lhe os seios.
Primeiro delicadamente e depois, tomada de uma volúpia
como se estivesse tomada por mil demônios.
Suas mãos caminharam sôfregas pelas pernas da
parceira, arrancando­lhe a calcinha e entrando nela
primeiro com os seus dedos e depois com os seus lábios
que entre beijos e sussurros, murmuravam frases
desconexas.
Ficaram ali por muito tempo. O capataz, que tinha
ficado preocupado com as patroas, foi ao encontro delas
de maneira silenciosa e discreta, e presenciou boa parte
do acontecido.
224
OUTRAS PAIXÕES
– Mãe de Deus!
Um sentimento de posse começou a tomar conta de
Marília com relação à cunhada, agora sua amante. Não
se conformava em sabê­la nos braços do marido, seu
irmão.
– Ódio… Ah, Deus! Será que estou odiando o meu
irmão?
Por mais que procurasse afastar esses pensamentos,
eles vinham com mais força.
Todos os cuidados tomados começaram a deixar
pontos falhos. Se estavam juntas à mesa, se acariciavam
por baixo da toalha. Quando se cruzavam propositalmente
no banheiro, trocavam beijos apaixonados e carícias das
mais íntimas.
Como eram mulheres, o irmão não se incomodava se
elas demorassem no banheiro durante o banho e assim
todos os dias elas faziam um sexo intenso. Quando
deveriam enjoar, saciarem­se de tanto que se
entregavam, aconteceu o contrário: quanto mais se
davam, mais se queriam.
O capataz, cada vez que via Maurício, sentia a
tentação de contar­lhe o ocorrido naquela noite, mas a
sua mulher o impedia.
– Criatura, elas vão negar. Vai terminar por ser a sua
palavra contra a delas. E depois, como você vai encarar o
senhor Luis? Aqui temos nosso presente garantido e o
nosso futuro até que em boas mãos, pois eles são gente
boa e gostam de nós. PelamordeDeus, homem!
O serviçal ficou de bico calado.
– Lourenço, por que eu sempre tenho a impressão que
você tem algo pra me contar? Você está com problemas,
225
OUTRAS PAIXÕES
doente, precisando de dinheiro, qualquer coisa na
família?
Ele orava com fervor, aprendeu novas orações para
que os céus o ajudassem a ficar de boca fechada.
E ficou.
O tempo passou sem que algo mudasse e as duas
amantes foram relaxando na guarda… De resto, é o que
sempre acontece.
Um dia, Maurício percebeu algo estranho.
– Eita, tô vendo coisa. Não pode ser, devo estar louco.
Um dia, Cristina, agora com 21 anos, chegou à casa
meio fora de hora. Seu irmão tinha ido até a fazenda.
Quando passou pelo quarto da sua irmã, ouviu uns
sorrisos estranhos. Curiosa como toda mulher, prestou
mais atenção e ficou pasma:
– Eu amo você, não vivo sem você. Amo os seus
seios, as suas pernas, gosto muito quando sinto que você
está gozando comigo.
– Tô doida. Mulher com mulher… Não pode ser.
Quem será que está aí com minha cunhada?
Abriu a porta e viu quem eram as duas que estavam
nuas e abraçadas como se uma fossem.
Bem que insistiram para que ficasse calada, mas a
raiva tomou conta dela quando se lembrou dos sorrisos
maliciosos, das frases entrecortadas dos amigos nas
rodas de bate papo.
Saiu correndo feito louca rumo à casa de Maurício.
Atravessou a rua sem olhar e foi violentamente
atropelada por um carro em alta velocidade. Foi jogada
longe e prontamente encaminhada ao hospital mais
226
OUTRAS PAIXÕES
próximo.
Toda a cena do atropelamento foi assistida por
Maurício.
Como já diz famosa lei, se uma coisa começa bem,
tem a possibilidade de terminar mal. Se começa mal…
Mas a história daquela família tinha tudo para
terminar desmentindo a tal lei. A quebradeira vinda com
a crise econômica poderia ser um sintoma que aquela
história estava começando mal e que a chance de
terminar mal era considerável.
Mas a garra e a firmeza de caráter do patriarca
contornaram as dificuldades surgidas e deram um timão
seguro para que os filhos pudessem navegar em águas
calmas.
Todos haviam estudado nas melhores escolas,
recebido uma educação cultural esmerada que somadas à
educação do berço, preconizava para todos um final
feliz.
Mas Deus escreve certo por linhas tortas ou o capeta
escreve torto nas linhas certas.
No cemitério, um túmulo de cores claras ao lado de
um outro, duplo, daqueles de buraco no chão, coberto
por parcas gramas.
Luis, no auge do desespero e vítima de violenta
emoção, antes de enlouquecer complemente, acaba com
as vidas das amantes e hoje vive os seus dias de total
alheamento em um nosocômio estadual.
Maurício, aparentando muito mais idade do que a que
realmente tem, cuida da própria família e dos irmãos que
ficaram.
227
OUTRAS PAIXÕES
Dizem que nada acontece sem que Deus queira….
Também acho.
Hamilton Brito
228
OUTRAS PAIXÕES
Projeto
PAIXÕES CLANDESTINAS
OUTRAS PAIXÕES
Os ex­namorados
229
OUTRAS PAIXÕES
Faltava um minuto para as sete da noite e, quando ela
olhou pela janela, ele acabara de estacionar pontualmente
o carro. Olhou o celular pela última vez antes de guardá­
lo no bolso e, quando abriu a porta, uma surpresa: ela
estava impressionantemente mais linda nesse segundo
encontro, muito mais que da primeira vez que ele a havia
visto, deslumbrante num vestido leve, salto discreto e
uma maquiagem que cobre tudo que há de errado.
Maravilhada ficou ela também, não só pelas rosas
vermelhas e brancas que trazia nas mãos, mas pelo
perfume caro que exalava de seus poros e pelo seu porte
extremamente elegante, um tanto diferente do visual bem
despojado do primeiro encontro.
Beijou­lhe as costas das mãos, elogiou­a rebuscadamente
e apressou­se em abrir a porta do carro, cavalheirismo
arcaico ao qual ela nunca se acostumara com o anterior.
Embalados ao som romântico de Barry White e Marisa
Monte logo chegaram ao restaurante que ela havia
proposto, cujo ambiente e refinamento muito o
agradaram. A reserva previamente feita a surpreendeu:
uma clássica luz de velas em um local reservado não
tinham passado pela imaginação fértil da moça, com
relação àquele gentleman que ela estava para conhecer.
Num papo agradabilíssimo descobriram mais
afinidades do que se costuma se encontrar em primeiros
encontros e buscaram não falar de planos para o futuro:
não era o momento. O interesse de ambos cresceu ainda
mais e quase não houve tempo para desviar o
230
OUTRAS PAIXÕES
pensamento para os outros. No final, ele obviamente se
ofereceu para pagar a conta e ela ficou aliviada em ver
no retrovisor do carro que o batom não tinha manchado o
dente e nem o cabelo tinha encrespado com a chuva fina
que caía. Deixou­a em casa, mas não antes de darem um
belo beijo apaixonado e trocarem palavras carinhosas
que eram a garantia de muitos mais encontros.
Tão pronto se viram sozinhos, suspiraram profundamente,
repousando o corpo tenso — Edson na poltrona do carro,
Marina no sofá da sala. Num misto de esperança e medo,
pegaram ao mesmo tempo seus respectivos celulares,
devidamente configurados no mais absoluto silencioso. E
com a estranha sintonia de metades de laranjas
diferentes, frustraram­se com a falta de torpedos ou
ligações perdidas naquela noite que ansiassem por sua
leitura. Enganaram­se novamente mais a si mesmos.
Dudu Zen
231
OUTRAS PAIXÕES
Projeto
PAIXÕES CLANDESTINAS
OUTRAS PAIXÕES
O beijo
232
OUTRAS PAIXÕES
Os olhares infantis. Desejos atrás da porta em
disfarces evidentes. Recatados. Assim um ao outro se
viam. Não houve como. Nos olhares se avistaram. Ali
mesmo se acharam naquele esconde­esconde, mas não se
encontravam no termômetro do contratempo.
Foi amor­amor. Retraídos nesse sentimento, aqueles
adolescentes comiam­se com os olhares em cada soturna
despedida. Cada voz sempre abafada no desejo de um
toque de pele com pele.
– Quando? Assim o silêncio foi rompido.
– Talvez… Dessa forma o encontro foi selado.
Riscaram a amarelinha, emudeceram.
Um dedo, empurrado pela mão, tocou o do outro. O
silêncio morou ali quando os lábios dela procuraram os
dele. E não se contiveram no aperto de ternura, nas bocas
unidas encontraram o carinho de uma vida.
Quanto mais se aprofundavam no ato daquele beijo,
um ao outro se encontravam, aumentando­lhes o desejo.
Os braços fortes, as mãos carinhosas passeavam­lhe nas
costas. Os lábios se desgrudaram descendo, os dele, no
pescoço dela. Enquanto ela gemia, ele a mordiscava e o
beijo não parava de praticar a sua ação.
Num ímpeto, os jovens se contiveram. Desgrudaram­
se por um instante. Foi bastante esse tempo para deixá­la
inteira louca. Novamente ela buscou conforto naquela
boca; no que ele a afastou, deixando­a à deriva. Ela não
233
OUTRAS PAIXÕES
entendeu o interromper daquele culto. Aceitou tão logo
ele a deitou no chão.
Quanto mais um dava ao outro, muito mais os dois
queriam. A verdade de um era aquilo que o outro
consumia. Era tudo tão composto naquela dupla anatomia,
quanto mais um se entregava, muito mais o outro sugava.
E foram os sentidos em ambos explorados, partiram
do abstrato para atos mais concretos. Tudo fora revelado
pelo canal daqueles poros e os corpos já eram mapas
para exploração do tal dueto.
Escavou com sua língua uma gruta para entrar, ela era
uma sereia e ele o seu mar. E de tanto que lambeu o sal
ficou mais doce, pois se assim não fosse não seria amor.
Muitos beijos surgiam descendo da boca ao colo. Já
era demais para ele suportar o fecho ecler.
Naquele instante, ele foi homem e a fez sua mulher.
Ele a amou e a amou enquanto ela o beijava. Pedia ao
cavalheiro que em sua anca cavalgasse e ele, naquela
luta, deleitando­se na garupa, dentro dela se ajeitou.
No enlace chave daquelas pernas, entregou­se
inteiramente àqueles gestos tão suaves. Aproveitando
aquele ensejo de prazeres e afins, trancou­se inteiro
naquele avesso de cetim.
Lá pelas tantas, de tantos disfarces, revelou a sua face
e ao lado dela descansou.
Viu­a sem o véu, tomou o que era seu: ela – o seu
troféu – e ajoelhado, sorrindo, ele orou.
Alcançou o altar e, sobre ele, o Homem novamente a
amamentou.
Rita Lavoye
234
OUTRAS PAIXÕES
Projeto
PAIXÕES CLANDESTINAS
OUTRAS PAIXÕES
A história de Jane
235
OUTRAS PAIXÕES
Primeiro, foram dois casamentos que não deram certo.
É difícil dizer que não vais repetir os mesmos erros,
porque tens um modo de pensar, de ser, de agir. Mas
conforme vais avançando na tua vida, tu vais moldando
aquilo ali, ponderando mais. Um dos erros que eu
cometia era a falta de confiança na pessoa, o famoso
ciúme. No primeiro casamento sentia um tipo de ciúme
que no segundo casamento já não era tão intenso, eu fui
aprendendo.
Na primeira vez talvez eu nem sentiria, mas a outra
pessoa começou a sentir ciúme. Acho que acontece
muito isso: quando o rapaz passa a sentir muito ciúme
parece que aquilo passa para a gente. Por que tanto
ciúme se eu não estou dando motivo?
A gente vai amadurecendo, vai depositando confiança
mesmo. Ou tu confias ou tu não confias, mas podes
trabalhar isso também; às vezes vem umas pontadinhas
de desconfiança e tu dás uma volta nela e faz ficar tudo
bem de novo.
A mulher tem que ser muito segura e ter uma auto­
confiança muito grande para sentir que se aquela pessoa
está com ela é porque está a fim. Só que também é uma
troca; o que falta no homem é exteriorizar o sentimento.
Os homens não falam muito e a mulher tanto quer ver
em atitudes quanto quer ouvir.
No segundo casamento eu estava mais desencucada.
Tenho uma filha casada e uma filha pré­adolescente que
236
OUTRAS PAIXÕES
vai passar por tudo isso ainda. Pelo o que eu passei posso
aconselhá­las. No meu caso, se eu falasse com a minha
mãe ela botaria lenha na fogueira. A gente às vezes
precisa desabafar com alguém e vai muito do que se
ouve nessas horas.
Relato dela.
237
OUTRAS PAIXÕES
Projeto
PAIXÕES CLANDESTINAS
OUTRAS PAIXÕES
A visita da jovem senhora
238
OUTRAS PAIXÕES
Norinha chegava às 17 horas, via São Paulo. Maria
Dalva pagou um dia extra à diarista (que vinha há muitos
anos duas vezes ao mês, sempre na segunda­feira,
arrastando uma perna varicosa), o apartamento ficou um
brinco. Não queria que a comadre, amiga de infância, a
chamasse de “velha relaxada”, numa de suas brincadeiras
quase ofensivas. Norinha nunca se casara, tivera alguns
casos passageiros, uns mais e outros menos duradouros.
Era bonita, a danada, numa longínqua juventude. Olhos
grandes, escuros, rostinho ovalado, corpo de bailarina.
Devia andar atualmente pelos 65 anos; ela, Maria Dalva,
já ia pros 70 em breve.
Maria Dalva ficou viúva há uns 15 anos. O marido,
Josias, morreu inexplicavelmente, de complicações no
estômago. Era um cinquentão elegante, vaidoso, de
ombros estreitos e pernas finas, procurando sempre
esconder a barriguinha de cerveja. Escanhoava­se quase
diariamente e já começava a pintar os cabelos, ainda
abundantes. Maria Dalva era consideravelmente ciumenta.
Não tinha a autoconfiança da amiga, que batizara seu
único filho, agora quase quarentão. Um dia, falara ao
marido, num tom entre brincalhão e ameaçador: se
souber que você me trai com alguém, sou capaz de matar
os dois.
Eram quase três horas da tarde. A limpeza do
apartamento estava concluída, o banheiro, grande e
antigo, cheirando a lavanda; trocara toda a roupa de
cama do quarto de hóspedes, sem uso desde a última
239
OUTRAS PAIXÕES
visita da amiga, isso antes do falecimento do marido.
Após aquela temporada, Norinha havia conhecido um
português, grisalho e educadíssimo, e aceitara o convite
de se mudar para Portugal. De lá, mandava sempre
cartões postais, nas datas memoráveis. Os postais não
informavam dos desvãos de sua vida lá em terra
estranha. Há menos de um mês, Maria Dalva recebera
uma mensagem pela internet, no correio eletrônico do
filho: meu quartinho ainda está disponível? Ficarei uma
semana no Brasil, chegarei aí no dia 17.
Às 16 horas, Maria Dalva tirou do estacionamento do
prédio o Palio 99, riscado e amassado nas laterais,
utilizado apenas nos dias de compra no supermercado. O
porteiro sempre lhe perguntava: quando vai trocar a
condução? Para ela, o Palio era isso mesmo, uma
condução. Pra que trocar? Não tinha mais a vaidade dos
jovens, não precisava mostrar status que não tinha.
Assumia sua idade, era uma futura vovó, com direito a
ficar tranquilamente com seu tricô e suas novelas. Sua
linha do passado era bem maior do que a do futuro.
Parou no posto da esquina e mandou colocar um quarto
de tanque de combustível. Depois, fez uma conversão à
direita, e pegou a reta que ia até o aeroporto. O
movimento ali já era intenso, era o segundo e último
pouso de avião da tarde. Executivos de grandes e médias
empresas iam ou voltavam de São Paulo. Motoristas
dessas empresas enfileiravam os carros diante do prédio
do aeroporto. Foi difícil conseguir uma vaga.
Chegou ainda com 15 minutos de antecedência. Parou
num estande para olhar capas de revistas, comprou
pastilhas de hortelã, sem açúcar, para limpar o hálito do
resquício dos temperos do almoço. Depois, através da
grande vidraça, acompanhou o pouso da aeronave.
240
OUTRAS PAIXÕES
Quase não reconheceu a amiga. Miúda, serelepe,
estava com os cabelos curtos, pintados de vermelho. O
rosto lisinho, provavelmente obra de algum competente
cirurgião plástico. Vestia calças cor­de­rosa, um casaquinho
do mesmo tom e calçava sandálias de saltinho, no afã de
parecer um pouco mais alta. A idade apenas transparecia
nas mãos, com leves manchas escuras e veias saltadas.
Com mostras exageradas de alegria, Norinha estreitou a
amiga nos braços.
No trajeto para casa, Norinha atropelava as palavras,
tinha muito para contar e principalmente para lembrar: a
juventude, o curso normal, as amizades, os namoricos no
escurinho do cinema – tempo bom. Maria Dalva ouvia
em silêncio.
Norinha chegou afogueada, depois de quatro lances
de escada, o prédio, de quatro pavimentos, não tinha
elevador.
– Hum, isto aqui não mudou nada. É capaz de estar
com as mesmas teias de aranha daquela época – brincou.
– Não gosto de mudanças. Me sinto bem aqui, neste
ambiente.
– Ainda sentes falta dele?
– Dele?
– Do Josias, de quem mais?
– Me acostumei.
O bule esmaltado de café estava posto à mesa,
juntamente com as xícaras de porcelana, presentes de
casamento, que Maria Dalva guardava como um tesouro.
Um pão cortado em fatias, manteiga de pacote, queijo
muçarela e barrinhas de açúcar, além de adoçante. A
copa conjugada à sala era espaçosa, característica das
241
OUTRAS PAIXÕES
antigas construções. Encostado a uma das paredes, o
oratório com portas de treliças; a mesa de madeira
escura, pesadona, com cadeiras de espaldar alto, assoalho
de tacos com verniz já desbotado. O tom escuro dos
móveis e a claridade abafada por cortinas davam ao
ambiente um ar lúgubre, triste, quase sufocante. Numa
das superfícies do oratório havia uma grande caixa
envernizada, com as bordas já desgastadas: era o
faqueiro de prata que Maria Dalva havia herdado da mãe.
Já não o utilizava há muitos anos, a última vez fora numa
festinha de aniversário do marido. Na realidade, os
talheres serviam mais como enfeite, vestígios de uma
ascendência mais abastada, as facas de fio embotado não
serviam para cortar nada.
Norinha estava louca por um banho. Saiu do banheiro
displicentemente, de camisola e com a cabeça envolta
numa toalha. As pernas brancas iam terminar num
tornozelo fino, as extremidades dos pés apresentavam
discretos joanetes. Tomou duas xícaras de café puro e
devorou duas fatias de pão com queijo. Ficaram
conversando até quase meia­noite, com pausa para Maria
Dalva assistir ao capítulo de sua novela.
Norinha parou na porta do quarto de hóspedes. Passou
o olhar longamente pelas paredes, a janela tipo
guilhotina com cortina branca, rendada, a cama antiga,
larga, o piso de tacos desgastados. Tudo como lhe ficara
na lembrança. Soltou um suspiro. Por meses fora ali seu
ninho de amor. Duas noites por semana Maria Dalva saía
para sessões no centro espírita, do qual era vice­
presidente. Havia uma sessão fechada, para os trabalhos,
e uma noite de atendimento ao público, em que se davam
“passes” e distribuíam remédios e gêneros alimentícios.
Norinha tomava banho, vestia o beibidol cor de rosa sem
242
OUTRAS PAIXÕES
nada mais por baixo e aguardava recostada na cama, com
um travesseiro entre as pernas. Isso o deixava louco,
dizia Josias. Sem se importarem com mais nada,
afundavam no colchão macio, prodigalizando­se loucas
carícias. Josias era um safado. Olhando seu jeito manso,
discreto, de funcionário subalterno, não se imaginava o
comportamento lascivo, o jeito debochado de lhe apertar
e sugar as partes pudendas, a delícia de seus beijos
molhados.
A princípio, Norinha resistiu aos avanços do
compadre, não desejava conspurcar uma amizade de
juventude, nunca desejaria magoar Maria Dalva. Mas sua
natureza libidinosa foi mais forte, a solidão atual, o
aconchego do quarto, as mãos teimosas de Josias, que
insistiam em boliná­la, levantando por trás seu vestido,
tudo isso concorreu para vencer os escrúpulos e prostrá­
la abandonada às carícias do macho. Já no exterior,
poucos meses depois, ainda chorou quando soube da
morte inesperada do compadre.
Foram tempos idos e vividos, como dizia o poeta.
Agora iria dedicar a semana à amiga, tirá­la daquele
isolamento de eterna viúva, espanar­lhe as “teias de
aranha”; sairiam a tomar chope, dar passeios longos e
divertidos, procurar as amigas de juventude.
Antes de se deitar, Maria Dalva foi à cozinha, já de
pijama de algodão e chinelinho de pano; destampou uma
garrafa térmica e encheu meia caneca de leite morno,
depois voltou a seu quarto, abaixou­se, afastou as franjas
do cobertor que cobriam a parte lateral da cama e dali
tirou um vidrinho de um fundo falso. Derramou umas
cinco gotas do líquido incolor na caneca, mexeu­o
lentamente com uma pazinha de madeira, jogou a
pazinha numa lixeira e dirigiu­se ao quarto da amiga.
243
OUTRAS PAIXÕES
Bateu de leve na porta, e entrou com um sorriso manso,
de pura bondade e cortesia:
– Querida, trouxe um leitinho quente pra você dormir
melhor.
Hilton Görresen
244
OUTRAS PAIXÕES
Projeto
PAIXÕES CLANDESTINAS
OUTRAS PAIXÕES
Retrato ao amanhecer
245
OUTRAS PAIXÕES
Acordei meio confuso, sem saber bem onde a
realidade começava e terminava, e completamente em
polvorosa devido aos meus sonhos sempre tão
fantásticos, mesmo que às vezes aterrorizantes. Ainda
não tinha aberto os olhos quando ouvi a respiração suave
ao meu lado. Então aquilo tinha sido real – e o primeiro
sorriso daquele novo dia cobriu meu rosto como se tudo
fosse felicidade.
Abri os olhos e continuei imerso na escuridão, já que
o sol ainda não tinha dado a graça de sua companhia.
Enquanto meus olhos se acostumavam à pouca claridade
dos postes da rua que as cortinas de tom pastel deixavam
entrar no quarto, virei de lado e fiquei observando o
homem deitado ali, a boca levemente entreaberta. Aos
poucos comecei a enxergar os contornos de seu corpo de
ombros largos e de pernas grossas por causa dos esportes
frequentes – tudo nele era tão erótico, quase
pornográfico! Até sua barba mal feita me chamava a
atenção.
Aproximei minha mão do seu peito, mas não lhe
toquei. Sabia que se eu começasse ali, dificilmente
conseguiria parar. Pousei­lhe um beijo rápido na
bochecha e me afastei, com medo de ficar preso ali pela
eternidade, sem jamais conseguir me desvencilhar dele.
Levantei e fui ao banheiro do meu quarto. Olhei­me no
espelho enquanto escovava dentes, observando algumas
pequenas falhas no rosto – não, não vou me ligar nelas.
Já estou farto de pensar nisso.
246
OUTRAS PAIXÕES
Voltei ao quarto e abri um pouco as cortinas, o
suficiente apenas para que eu pudesse me encostar à
janela para observar o mundo lá fora. Sempre fui
acostumado a acordar cedo, antes mesmo do amanhecer.
Foi uma mania que adquiri ainda quando morava com os
meus pais e com meus irmãos mais novos. A partir das
seis horas da manhã tudo era tão caótico, cheio de
gritaria sobre o pagamento de contas, o brinquedo que
quebrou, choro de criança que não quer tomar banho e
tampouco ir à escola. Tudo turbulento demais para mim.
C’était trop turbulent!
E foi assim que comecei a acordar cedo, no mesmo
instante em que todos ainda estavam no universo além­
consciência. A casa era finalmente um recanto de
solitude. Eu podia andar pelos corredores pensando nos
personagens que lia nos velhos livros da biblioteca do
meu avô. Imaginava o que eu faria naquelas situações,
das mais aterradoras histórias de horror cósmico de H. P.
Lovecraft até os romances de Jane Austen. Ah! Solidão,
solidão!
Continuei com o hábito mesmo quando fui morar
longe, noutro estado, longe dos meus pais, irmãos e
amigos. Mas não por causa deles. Percebi que era bom
acordar antes do mundo e vê­lo despertando, com o sol a
aparecer no céu e os pássaros começando seus cantos
agudos. Tenho feito isso desde então, e muitos dos meus
ex­namorados achavam estranho que eu apreciasse tanto
a solidão. Um deles – aquele cheio de neuroses, devo
ressaltar – costumava dizer que era porque eu não
gostava o suficiente dele e que preferia estar longe.
Alegava me amar. Duvido disso.
Preciso dessa calmaria no início do meu dia para
poder me expandir e pensar, sem dúvida alguma. Mas é
247
OUTRAS PAIXÕES
tão difícil achar alguém que se encaixe perfeitamente
nessas nossas pequenas manias, que nos faça rir mesmo
quando estamos tristes, e ainda nos enlouqueça na cama
e nos conforte e suporte nos momentos difíceis. É árdua
essa tarefa de achar um companheiro e muitas vezes
acreditei que jamais encontraria, pois preferia ter apenas
a mim a aceitar menos do que o grande amor.
Naquele momento em que eu pensava sobre todas
essas coisas de amores e futuro, os pássaros começavam
a cantar e a voar de uma direção para outra, agitados. O
sol começava a surgir por detrás uma grande árvore de
formato estranho por entre as árvores. Abri a janela e
respirei aquele ar único, ainda sem a fumaça que os
automóveis soltam enlouquecidamente ao longo do dia.
Solidão, tão bela – mas sei que a partir de um momento
cansa. Aliás, o que me traz a felicidade é o equilíbrio
perfeito dum e doutro, com pequenas margens de erro.
Um pouco de solidão pela manhã para abstrair, um
pouco mais tarde para ler e escrever, e um mundo de
amor e paixão.
Quando estava quase pronto para aceitar a turbulência
do dia, o corpo de Guilherme me surpreendeu,
abraçando­me pelas costas. Bom dia, amor – ouvi sua
voz qual veludo, que eu só podia imaginar pertencer a
deuses, gregos, romanos, egípcios, africanos. Seu corpo
quente por causa do sono encostava diretamente em
minha pele e sua respiração sobre o meu pescoço me
deixou arrepiado. Virei o rosto e lhe dei um beijo.
Perfeito. No exato instante em que a solidão já deixava
de me agradar, ele chegou a mim, e finalmente pareceu
que eu poderia ter os dois, tudo o que eu poderia querer
na vida. Sem ser sufocado, sem pressão – os dois livres,
mas querendo ficar ali.
248
OUTRAS PAIXÕES
– Vamos ter um futuro maravilho, sabias?
– Vamos começar esse futuro daqui a trinta segundos,
então?
– Como vamos fazer isso?
– Vamos para debaixo daquele lençol ali e fazer coisas
maravilhosas lá – e me arrastou em direção à cama,
preso num abraço cheio de calor e de desejo, com sua
barba roçando no meu rosto.
E antes de ir, fechei a janela. Não a da rua, mas a da
solidão completa, apenas para talvez a abrir durante o
próximo amanhecer.
Bruno Eleres
249
OUTRAS PAIXÕES
Projeto
PAIXÕES CLANDESTINAS
OUTRAS PAIXÕES
Primeiro amor
250
OUTRAS PAIXÕES
Do fundo do salão eu o avistei.
Era tão belo!
Seu corpo deslizava suavemente, embalado pelo som
daquela música fantástica…
De longe observava cada um de seus movimentos, e
atraídos meus olhos estavam.
Como que levado por uma atração inexplicável, ele
me olhou. Senti um fogo queimar dentro de mim.
Minhas mãos responderam, prontamente molhadas pelo
suor, provocado pelo nervosismo do momento. Ele
sorriu, eu sorri. Era o mais belo sorriso já visto pelo
brilho dos meus olhos. Tão encantada eu estava. Era o
amor! Tinha certeza! Só podia ser o tal amor, até então
desconhecido por mim.
Veio em minha direção, enquanto intimamente todo o
meu eu preparava­se para recebê­lo…
Já podia sentir seus braços em volta de minha cintura
enquanto bailássemos pelo salão. Seu cheiro, já
imaginava como seria. O calor do corpo, a maciez de
suas mãos.
Oh, o amor! Como era belo o amor!
Estava amando à primeira vista; e ele estava ali, a
poucos metros do meu corpo.
Porém, antes mesmo que eu me levantasse para
recebê­lo, uma moça surge na penumbra. Aceita seu
251
OUTRAS PAIXÕES
abraço, e saem para bailar, enquanto meu coração sofre
pela primeira vez uma decepção.
Enquanto vejo eles deslizarem pelo salão, ao som
daquela música marcante, já sinto cada vez mais aquela
ausência de alguém que nunca esteve presente.
A necessidade de tê­lo um pouquinho, só um pouquinho!
Nada mais.
Meus olhos observam tristes com lágrimas teimosas a
rolar, enquanto os dois bailam no salão. Perfeitos,
sincronizados. Como se seus corpos fossem só um.
Retiro minha alma, ou o que sobrou dela, e vou,
desejando ardentemente viver mais uma vez esta
emoção.
A emoção do amor!
Arlete Klens
252
OUTRAS PAIXÕES
Projeto
PAIXÕES CLANDESTINAS
OUTRAS PAIXÕES
A história de Fares
253
OUTRAS PAIXÕES
No Centro de Balneário Camboriú há um restaurante
libanês chamado Fares. Em seu cartaz vê­se uma foto de
uma família unida e sorridente, os Fares. Ao ver essa foto
eu sabia que ali encontraria uma grande história, contada
pelo patriarca da família.
Antes de se tornar um dono de restaurante, o Sr. Fares
trabalhou por muito tempo como jornalista no Líbano, ao
longo de toda a guerra civil libanesa, que durou de 1975
a 1990, e mais além. Em 2006, depois dos bombardeios
israelenses no Líbano, a família decide mudar­se
definitivamente para o Brasil.
Esta não foi a primeira vez que estiveram aqui. Entre
1990 e 1998 a família cuidou de um pequeno comércio
em Foz do Iguaçu, para então retornar à terra natal. Fares
conheceu a sua esposa, Mahasen, enquanto trabalhavam
como voluntários numa clínica, no começo dos anos
1980. Assim ele me descreveu o primeiro encontro:
– Eu entra clínica. Essa clínica ajuda pobre. Ela
também trabalha lá. A primeira vez entra, olha para ela.
Poc, poc – corazón…
Os trinta e três anos de casamento foram marcados
por muitas mudanças e por muitos perigos, tudo isso
enquanto criavam seus três filhos. Como jornalista e
perseguido político por causa da guerra, Fares foi
obrigado a fazer várias idas e vindas entre o Líbano e
outros lugares. Sozinho ou com a família, passou por
França e Suíça até se estabelecer no Brasil.
254
OUTRAS PAIXÕES
Sua família sobreviveu à guerra, ao Hezbollah, aos
conflitos com a Síria e com Israel. O passado deste
senhor é cheio de escapadas milagrosas; enquanto
trabalhava, as bombas estouravam ao redor e numa noite,
ao voltar para casa de carro, um míssil caiu ao seu lado,
na estrada. Fares continuou a dirigir. Por sorte, o míssil
falhou e não explodiu, para alívio de Mahasen, que
sempre ficou nervosa com as atividades políticas do
marido.
Como conseguiram encontrar o amor e viver num
cenário desses? Ele explicou que os incidentes não
ocorrem em todos os lugares ao mesmo tempo e, no fim,
as pessoas se adaptam. “Aqui tem guerra, ali não tem.
Ali continua a vida. Não normal, claro.”
Hoje em dia os Fares estão bem adaptados ao Brasil,
cada um cuidando da sua carreira e dos negócios da
família. Quem passar por Balneário Camboriú pode
conhecer mais dessa história.
Conforme o relato de Fares.
255
OUTRAS PAIXÕES
Projeto
PAIXÕES CLANDESTINAS
OUTRAS PAIXÕES
Maria e o equilibrista
256
OUTRAS PAIXÕES
Maria era uma moça muito distraída e desajeitada.
Quando tinha dez anos de idade, ela quase colocou fogo
na cozinha dos pais enquanto tentava apenas encher o
filtro de água. Não me pergunte como isso aconteceu. A
verdade é que as mãos dela estavam sempre cobertas por
esparadrapos e seus jeans tinham furos nos joelhos.
Acidentes a seguiam o tempo todo. Ela era muito
paparicada pelo pai, que constantemente contava sobre a
vez que ela quase dirigiu a caminhonete dele por uma
avenida, acidentalmente, quando tinha apenas cinco anos
de idade.
Ela tinha duas irmãs e um irmão, todos preocupados
com o que chamavam de Condição Peculiar de Maria.
Que era a capacidade dela de tropeçar, escorregar, cair,
derrubar… tudo quanto é coisa, e que acontecia com ela
constantemente.
Apesar disso, ela era uma companhia agradável, com
um sorriso charmoso mais que exuberante e de índole
modesta e inofensiva, sempre explodindo em gargalhadas
com os próprios erros.
Você pode imaginar o número de vezes que ela
tropeçou na rua para ser resgatada quase imediatamente
por algum jovem, que sorriria encantadoramente, para
então ser puxado de lado pelo irmão, por uma das irmãs
ou pela mãe, que diriam:
– Ela tem uma condição peculiar…
257
OUTRAS PAIXÕES
Assim, ela cresceu linda e imaculada, exceto pelos
seus pequenos acidentes.
Mas Maria tinha muitos sonhos e um dia o circo
chegou à cidade.
A verdadeira mágica do circo não é somente a tenda
colorida ou o cheiro de pipoca e de algodão doce. É que
o circo tem uma mágica para cada pessoa. Alguns
precisam ver o domador de leões; outros, o lançador de
facas com a venda sobe os olhos, e sentem um calafrio
quando dizem que a moça amarrada no alvo é a sua
amada esposa; alguns precisam ver o mágico com a sua
cartola, muitos amam os palhaços, outros precisam ver
os acrobatas, ou o homem­bala, a contorcionista, o
homem forte ou os elefantes ou o devorador de fogo.
Para Maria, a magia foi o equilibrista.
Quando ela viu aquele homem, lá no alto, vestido com
um macacão verde e uma capa branca, pulando em um
cabo como se estivesse na calçada, Maria tinha certeza
de que ele cairia. Afinal de contas, para ela, apenas subir
a escada era um feito heroico. Ele foi anunciado pelo
mestre de picadeiro:
– Atenção, senhoras e senhores, para o anjo capaz de
unir o céu e a terra, o mestre do horizonte, o infalível
João, o desafiador da Gravidade na sua ducentésima
trigésima quarta apresentação consecutiva sem uma
queda.
No primeiro dia, Maria foi com o irmão, que adorou a
magrinha garota contorcionista, que conseguia entrar em
uma pequena bolsa e fechar o zíper sempre sorrindo. No
segundo dia, ela foi com a irmã mais velha, que adorou
tanto o devorador de fogo que chegou a lamber os
beiços, murmurando “hummm” e acariciando a barriga.
258
OUTRAS PAIXÕES
No terceiro dia, ela foi com a sua irmã mais nova, que
amou o momento no qual o mágico começou a fazer
surgir da sua cartola um coelho atrás do outro. No quarto
dia, ela foi com os pais que adoraram o lançador de
facas, tanto que até Maria ficou um pouco preocupada.
Finalmente, no último dia, foi sozinha e descobriu a
mágica do circo.
Primeiro, descobriu que o tempo fluía de maneira
diferente. Se no primeiro dia João estava se apresentando
pela ducentésima trigésima quarta vez, no segundo já era
a centésima vigésima terceira e, na última noite, era a
quatrocentésima quinquagésima sexta apresentação.
E então, apesar da distância entre eles, apesar de ela
estar sentada no meio de uma multidão, João estava
olhando diretamente para ela todos os dias. Os olhos
escuros de Maria saltando com excitamento e ansiedade
o tempo todo atraiu sua atenção, e isso foi o que ele disse
quando conversaram depois do show:
– Nunca vi alguém tão impressionado como você.
Ninguém aqui sequer acredita que eu vou cair. Mas você
acredita.
Ela concordou, incapaz de explicar para ele a razão.
Então, caiu. Ele a amparou e perguntou:
– O que aconteceu? Você está bem?
– Oh, eu apenas tropecei – ela disse, sentido o braço
dele segurando­a com uma firmeza que ela nunca sentiu
antes.
– Mas você não estava nem andando… – ele disse,
sentido o coração dela saltando feito louco, como ele
nunca sentiu antes.
E eles gargalharam. Ela tropeçou, ele a segurou, eles
259
OUTRAS PAIXÕES
gargalharam, ela tropeçou, ele…
Era algo tão impossível, tão incrível, Maria e João
juntos, que a família dela só percebeu que eles estavam
juntos quando ele se encontrava na sala de visitas da casa
pedindo a mão de Maria em casamento. Eles ficaram tão
estupefatos com o sorriso que ela deu ao dizer “sim”,
deixando um copo de água cair sobre ele, e com a calma
de João quando apanhou o copo no ar, deixando apenas
algumas poucas gotas espirrarem, que o vocabulário
deles sofreu uma redução. Especialmente, as palavras
negativas sumiram.
Não era que eles não gostassem de João. Não, ele era
educado, respeitoso e considerado. Mas eles tinham tanto
medo do que aconteceria com Maria que se reuniam
quase todos os dias lamentando:
– Oh, o que será da pobre Maria!
– Quando entrar na igreja!
– Quando colocar o anel!
– Quando lançar o buquê!
– Oh, meu Deus, ela é capaz de acertar um avião
passando no céu!
– Ela ai tropeçar no vestido!
– Ela vai quebrar o salto do sapato!
– Não, esses problemas não serão grandes, porque
estaremos por perto. Assim como durante a festa. É
quando ela ficar sozinha com ele, por muito tempo, que
teremos problemas de verdade. Tantos desastres podem
acontecer!
Todos concordaram, balançando a cabeça, com o
rosto pálido de tanto terror.
260
OUTRAS PAIXÕES
Muitas coisas ocorreram durante a cerimônia, mas se
eu for registrar tudo o que aconteceu, esta história teria
tantos volumes que nem mesmo todas estantes da
biblioteca pública seriam o suficiente para guardá­la.
Basta dizer que três horas depois do previsto, Maria e
João estavam casados.
João começou a pressentir que algo estava errado
durante a festa. Depois que receberam os cumprimentos
dos convidados, ele tentou escapar para uma sacada,
esperando beijar sua esposa apropriadamente – o mais
próximo que ela conseguiu acertar foi no nariz dele, na
cerimônia – e o irmão dela veio até ele, como se tivesse
algo importante para dizer, mas apenas balbuciava
incoerentemente quase­palavras. João pensaria que ele
estava bêbado, exceto que ele não bebia. Quando
conseguiu se livrar do irmão, viu que a irmã mais velha
havia levado Maria para o banheiro para ajeitar a
maquiagem. Maria usava pouca maquiagem, mas, ainda
assim, ficaram no banheiro por quase meia hora. Quando
ela saiu e foram para a sacada, encontrou um grupo de
pessoas, levado pela irmã mais nova para observar a lua.
Apesar do prédio bloquear a lua, que era melhor
observada na sacada do outro lado, onde ele encontrou os
pais de Maria e um grupo de convidados mais velhos,
que estava lá tomando um ar e deixando o salão de dança
para os mais jovens.
Uma vez que Maria gargalhava e quase caiu da
beirada da sacada, na piscina logo abaixo, ele deixou
aquilo de lado e levou­a para dançar.
Entretanto, assim que se ajeitaram, a irmã mais velha
pediu para dançar com ele, por que amava muito aquela
canção e ninguém queria ser o seu par. O que ele achou
muito estranho, pois haviam muitos outros jovens livres
261
OUTRAS PAIXÕES
na pista de dança e ela era definitivamente bonita, com
olhos cor de mel que aqueciam a mais fria noite de
inverno. Mas assim que pararam, foi a vez da irmã mais
jovem vir, também afirmando que não conseguia um par,
exigindo que ele dançasse com ela. Mais uma vez, ele
viu outros jovens livres e ele ponderava o que havia de
errado com ela, pois ainda que se vestisse mais
simplesmente do que as irmãs, seu sorriso era tão
cativante e jovial que agradaria a qualquer um que o
visse. Mas não foi o fim de tudo. Quando eles pararam, a
mãe veio afirmando que ele lhe prometera uma dança – o
que ele havia feito realmente, ainda que apenas
brincando – e que o joelho do marido não o permitia
dançar, então pediu que dançassem. Todo o tempo, Maria
hora dançava, hora tropeçava, hora pisava nos pés dos
outros com o irmão. Quando a música pausou, ele deixou
o local, afirmando estar cansado, antes que o pai e o
irmão também viessem exigindo uma dança.
As esquisitices não acabaram aí. Quando chegou o
momento de fatiar o bolo, ele descobriu que foi
substituído pelo irmão, enquanto as irmãs levavam Maria
para jogar o buquê…
Que foi jogado pela mãe, rindo como uma colegial.
Apesar de tudo isso, Maria estava feliz e, quando a
festa terminou, João suspirou aliviado, pensando que
daquele momento em diante haveria somente ele e
Maria. Eles alugaram um quarto no mesmo hotel da festa
e entraram no elevador. Quando a porta se fechava,
ouviram um “espera”, então outro e outro e mais outro.
Toda a família entrou no elevador e, para a surpresa dele,
desceram no mesmo andar que ele e Maria, retirando
chaves do bolso, chaves que percebeu, tinham números
dos quartos adjacentes ao quarto deles.
262
OUTRAS PAIXÕES
– Esperem – ele disse, parando no corredor. A irmã já
puxava Maria pela mão.
– Sim? Algo errado? Você quer que nós olhemos se o
quarto é seguro?
– Não precisa. Eu já averiguei – disse o irmão. –
Talvez você queira que eu a carregue nos braços? É bem
mais seguro se eu a carregar mesmo.
– Oh, eu posso ajudar Maria a trocar de roupa. Vestido
de casamento é muito perigoso – disse a irmã mais nova.
– Talvez Maria devesse dormir conosco – disse o pai.
– Nós nos vemos amanhã no café da manhã?
– Ótima ideia, eu sou muito boa em passar manteiga e
geleia no pão…
– Não, não – todos ficaram em silêncio com a
surpresa. Era Maria falando. – Mãe, pai, Marcos, Sara e
Melissa, eu não sou a sua menininha mais. Casei. Com
João. Se vocês vissem o jeito que ele anda na rua sem
trombar em ninguém. Se pudessem vê­lo descendo a
escada espiral de ferro com aqueles degraus estreitos do
nosso prédio sem escorregar. Se o vissem subindo o
portão do parque, de noite quando estavam fechados,
esticando todo o corpo e o braço, equilibrando­se na
ponta dos pés, sem ao menos atrapalhar o cabelo, para
colher um Jasmim branco para mim, vocês teriam
certeza, como eu tenho, de que nunca estive tão segura
como quando estou com ele.
Ao terminar, Maria saiu andando pelo corredor até a
porta do quarto, sem tropeçar. O único que não estava
pasmo, olhando para ela, era João. Ele endireitou a
gravata, empinou o corpo e marchou adiante:
– Com licença – disse.
263
OUTRAS PAIXÕES
Maria e João esperaram a família dela entrar nos
quartos, com a cabeça baixa, talvez para esconder uma
lágrima de felicidade e orgulho. Então, ele a ergueu nos
braços. Ela colocou os braços ao redor do pescoço dele.
Ele abriu a porta e deu passo para frente…
– Ai, ai, ai – Maria berrou.
– O quê? – ele disse.
– Minha cabeça! Seu desastrado! Você acertou a
minha cabeça na parede. Dói…
João empalideceu, olhando por sob o ombro,
esperando que as portas dos outros quartos se abrissem e
que sua sonhada noite com Maria estivesse perdida.
Então ela cutucou o peito dele.
– Você me dá um beijo para sarar depois – ela ria e
massageava a cabeça. – Agora, marche!
Maria e João finalmente estavam sozinhos. Devemos
deixá­los também, certo? Ao menos até a manhã, quando
o sol se elevar no horizonte e o telefone começar a tocar.
João Camilo de Oliveira Torres
264
OUTRAS PAIXÕES
Projeto
PAIXÕES CLANDESTINAS
OUTRAS PAIXÕES
Outro dia
265
OUTRAS PAIXÕES
Seu nome é Maria, menina bela. Outro dia a
encontrei, num domingo, em uma tarde de outono, ela
estava no escorrega, usando fraldinha, brinco de bolinha
e maria­chiquinha. Foi amor à primeira vista, fui falar
com ela, mas antes mamãe me chamou para tomar o meu
leitinho na mamadeira.
Outro dia trompei com ela na rua, estava de
mochilinha nas costas e de uniforme da escolinha, nossa!
Ela estava incrível, foi nesse dia que tomei uma atitude
inacreditável, falei oi.
Outro dia no laboratório de Química, fiquei no mesmo
grupo que ela, falei tudo o que eu sabia, e ela ficou
realmente encantada com tanta inteligência.
Outro dia, chegando a casa, logo após o trabalho,
sentei no sofá, e em seguida ela chegou me trazendo a
notícia, estava grávida, foi um momento de muita
alegria, que se repetiu algumas vezes.
Hoje, aos oitenta, dos muitos anos já vividos, de
tantos fatos acontecidos, estou ainda ao lado dela, para
amá­la ainda mais, até que chegue outro dia.
Haristom Willy Ferreira Monção
266
OUTRAS PAIXÕES
Projeto
PAIXÕES CLANDESTINAS
OUTRAS PAIXÕES
Apoteose
267
OUTRAS PAIXÕES
Quando queremos contar uma história, podemos
começar de centenas de maneiras diferentes, assim como
encerrá­la. Aqui não terei esse problema, sendo que me
manterei fiel aos reais acontecimentos. A diversidade
humana funciona da mesma maneira, só que, às vezes,
ela é simplesmente ignorada; credo, etnia e orientação
são partes dela. Nos completam e definem o que fazemos
ou o caminho que trilhamos em nossas vidas. Acredito
nisso, não existe destino; tudo o que nos sucede são atos
de outras pessoas e nossos próprios.
Durante minha vida, sempre sonhei em simplesmente
viver cada dia, sem pretensões e vontades. Mas, como as
melhores histórias, esta começa de maneira inesperada.
Enquanto eu andava, minha mente era inundada por
tudo que havia à minha volta; as cores, os sons, as
centenas de pessoas caminhando sem destino certo – o
que era hilário –, todos iam a algum lugar e nenhum ao
mesmo tempo. Elas seguiam o que se esperava que
seguissem, sem confrontarem suas existências. E talvez,
apenas talvez, eu estivesse passando por uma crise
existencial naquele momento.
A vida continuava, o tempo nunca parava, mesmo
quando eu fugia de mim mesmo e da escola. O primeiro
horário deveria ser de Matemática, mas o professor não
havia vindo, então ninguém ia perceber minha falta até o
recreio, quando talvez alguém me procurasse para passar
cola na prova, que seria no último horário. E, como
268
OUTRAS PAIXÕES
sempre, eu me mantinha informado; a prova foi adiada
depois que descobriram que alguém entrou na Sala dos
Professores para roubar o gabarito. Isso havia acontecido
há apenas meia hora.
Quando entrei na biblioteca da cidade, os olhos de
Gus se encontraram com os meus. Ele era a única pessoa
que eu podia definir como amigo naquele lugar. Sempre
tive problemas com interação humana… Me sentei na
mesma mesa e percebi que ele estava lendo.
– O que está lendo agora? – Perguntei. Na verdade fiz
isso apenas para quebrar o gelo, pois odiava o silêncio.
– O novo romance do Riordan.
– Espera, você conseguiu Blood of Olympus antes da
pré­venda? – Eu estava impressionado, havia sido
lançado há poucas horas, e ele já estava na metade.
– Sim e não.
– Como assim? Vai começar a fazer mistério agora?!
– Tá bom, eu consegui ontem. Minha mãe trabalha
com uma mulher, e a filha dela trabalha no Porão da
Torre. Ela ganha as remessas da Amazon, então consegui
antes de todos.
Eu estava boquiaberto. A livraria à qual se referira era
a única da cidade em que você conseguia um livro que
não era de 2 ou 3 anos atrás.
– Usando hack de novo? Se der um spoiler eu te
mato, escutou? – Disse tentando me manter firme, o que
não deu certo, pois ele era bem maior que eu.
– Achei que você gostaria de saber o que acontece
com o Nico. – Ele pegou pesado dessa vez, bem na
ferida.
269
OUTRAS PAIXÕES
– Okay, pode falar. – Enquanto ele explicava eu
prestava atenção em sua expressão, em sua barba que
estava crescendo, e que o cabelo escuro mantinha o
contraste com pele branca e com os olhos castanhos.
Admito que não consegui prestar muita atenção no que
ele dizia. O tempo foi passando, de novo implacável, e
saímos da biblioteca em direção à praça.
– Então o que quer fazer agora? – Ele perguntou.
– Que tal um chocolate­quente?
– Eu quero um brownie.
Nós fizemos os pedidos e sentamos à mesa. Eu apoiei
a minha cabeça em seu ombro.
– Você sabe por que sua mãe está fazendo isso, não é?
– Ele demorou um pouco para responder.
– Sobre eu ir embora? Não acho que ela iria querer
agradar a mim só para me convencer a ir. Você sabe, ela tem
ficado bem emocional esses dias por causa do divórcio. É
obvio que vou com ela, mas perder você seria horrível…
– Não termine a frase, tá?! Você não vai me perder.
Irei vê­lo sempre que vier visitar seu pai. Não será muito
tempo, mas será o suficiente.
– Tem razão. – Disse ele, passando a mão por meus
cabelos. Eu olhava atentamente o semáforo, onde um
homem fazia malabarismo com diversos objetos. Se alguém
me pedisse para definir a vida, seria aquilo: algo sendo
jogado para o alto, para a sorte de alguém conseguir pegar.
– Eu amo você, sabia? – Disse pressionando meus
lábios aos dele, e imaginando o futuro.
Robert White
270
OUTRAS PAIXÕES
Projeto
PAIXÕES CLANDESTINAS
OUTRAS PAIXÕES
Amor: aliança e valor
271
OUTRAS PAIXÕES
Afrodite sonhava com a supremacia do amor. No
sonho, a deusa estava perto da fonte dos desejos.
Aproximou­se de Juno e de Vesta. Cansadas das
separações e desencontros, elas queriam aproximar os
casais. Amor, um espelho de desejos. Amor, concretude
dos deuses. Amor humano. Amor financeiro.
O primeiro encontro deu indícios de um afastamento.
Eles se conheceram na igreja. Paulo, na época, estava um
pouco acima do peso. Chegou com o violão e com a voz.
Pensava ele serem suficientes para conquistar as
mulheres. Aliás, era especialista nesse critério. Um
jovem que, com ou sem violão, atraía as damas. Tinha
um sorriso encantador capaz de derreter qualquer
donzela. Homem disputadíssimo. Compromisso sério?
Nem pensava. Nem queria.
Características enaltecedoras comentaram as deusas.
Mudará a opinião. E Débora usou os azuis para
aproximar ou distanciar? Confesso que tais dotes ficaram
despercebidos pela pequena. Olhos do afastamento. Na
época, ela estava comprometida. Paulo não sabia.
Desanimaram as deusas. Porém, não desistiram. Sopros
de coragem, ele precisava.
Cheio de charme e convencido, o conquistador
mandou um recado, no dia seguinte, em que destacava os
atrativos da moça. Ela leu e respondeu a mensagem:
– Não sinto interesse por homens com a barriga
saliente.
272
OUTRAS PAIXÕES
A resposta foi como uma bomba. O homem só não foi
chamado explicitamente de gordo, mas leu as
entrelinhas. Imaginem como se sentiu. Uma mistura de
ódio com dor de amor recalcado. Maldita gordura ou
panela sem tampa? Na hora, sem pestanejar, respondeu:
– Muito menos gosto de mulher esnobe e mimada.
Foi uma réplica indiferente, sem significado nenhum
para ela. Percebe­se, leitor, que houve o interesse, mas
faltaram a reciprocidade e a correspondência à altura.
Juno sentiu­se ofendida. Empurrãozinho cruel, gritava
Vesta. Culpa da Juno, balbuciou Afrodite.
Após algumas semanas, Paulo começou a namorar
uma vizinha dele. Não pensava mais na jovem cantora.
Início de uma separação. Se ao menos, pode assim ser
chamado. Nem ensaiavam mais na mesma equipe.
Seguiram rumos diferentes. Brotavam em vasos separados.
Aproximação. Promessa das deusas.
Tempo vai, tempo vem, e os dois terminaram os
relacionamentos que pareciam ser para sempre. Não se
sabe se por coincidência ou se existe mesmo destino, os
rompimentos aconteceram em datas próximas. Nenhum
sabia o que havia acontecido com o outro. Seriam as
ninfas soprando a favor do casal?
Nos finais de semana aconteciam os ensaios, cada
grupo em um determinado horário. Aconteceu que o
violonista da equipe da Débora adoeceu e tiveram que
convidar outro. O único disponível era Paulo. Foi
inesperado. Parecia casual. Nasceu o primeiro olhar
misterioso e comprometedor. Ele sorriu. Ela sorriu. Eles
sorriram. Botão de rosa.
Após o ensaio, os adolescentes saíram e foram lanchar
em uma praça próxima à igreja. Era costume da maioria
273
OUTRAS PAIXÕES
deles. Paulo e Débora ficaram próximos um do outro.
Primeiro a conversa era em grupo. Perceberam certa
afinidade e passaram a conversa a dois. Dois apaixonados,
dois enamorados, dois encantados, dois fascinados. Sim,
dois. Um lugar apenas: perto do chafariz. Foi por acaso?
Ele se ofereceu para levá­la a casa. Ela aceitou. Foi a
oportunidade para o pedido em namoro. A resposta foi
“não”. Pediu um tempo para pensar. Estava muito
confusa. Trocaram os números dos celulares e os e­mails.
Deram um abraço longo e se separaram. As deusas
somente lamentaram. Desistiram?
Mal Paulo entrou em casa, recebeu a seguinte
mensagem “O amor é um sentimento inexplicável. Não
sei o que sinto por você. Só sei que dentro de mim, você
acendeu uma chama. Estou sem saída. Não pense em
mim como namorada. Isso eu não quero. Desculpe”. O
rapaz gelou e entendeu que entre eles não seria
construído um castelo de amor. E resolveu dormir.
Porém, só deitou na cama. Dormir, não conseguia.
Presença da deusa Themis.
Isso aconteceu em um sábado. Passaram­se uns 40
minutos da primeira mensagem e o sinal de uma nova.
Ele não queria nem olhar, mas não resistiu “Paulo,
encontrei você no Facebook. Vi o seu perfil, as fotos. Se
quiser, poderá aparecer em minha casa, amanhã. Aceito o
pedido de namoro”. Vibração total. Houve justiça,
insinuaram as deusas.
O coração de Paulo acelerou e ele não conseguia
acreditar. Dormir ou ficar acordado, a partir daquele
momento, era insignificante. Pausa para as deusas.
Saíram com Zeus, Baco e Dionísio. Menos Vesta.
Ao raiar do dia seguinte, nascia para eles não apenas
274
OUTRAS PAIXÕES
um novo dia, mas o namoro, o primeiro beijo e um
relacionamento sério. Um casal perfeito. Eles
conversavam muito e se entendiam. Resolveram marcar
a data do noivado.
Faltavam exatos quinze dias para o tão esperado
noivado. Mas cadê as alianças? Detalhe importante e
indispensável: faltava o dinheiro. Paulo ficou desempregado,
só fazia os chamados “bicos” e descolava o suficiente
para pagar algumas contas, o aluguel e a comida. Menos
mal, pensava ele.
Bateu a tristeza, mas não o desespero. Sabia que tudo
se resolveria. Em uma conversa com José, que era
pedreiro, surgiu a esperança e a solução. Esse amigo
disse que certa vez conseguiu a façanha de fazer um anel
com uma torneira. Com certeza, conseguiria fazer as
alianças. Só precisaria de duas torneiras de tamanhos
diferentes. A serra e a lixa ele já possuía.
Ao final do dia, seguiram ao apartamento de Paulo. O
tanque e a pia do banheiro ficaram sem as torneiras. Não
preciso explicar o porquê. Ao serem lixadas e serradas se
transformaram em um lindo par de alianças. Paulo juntou
as economias e seguiu a uma relojoaria para que o
símbolo do vínculo e da união recebesse um banho de
ouro e os nomes dos pombinhos enamorados.
Chegou o dia do noivado. Eles receberam bastantes
elogios. As alianças ficaram perfeitas. Até pelo menos o
dia seguinte.
Débora, que trabalhava em um escritório numa cidade
vizinha, saía de manhã e só voltava à noite. Era muito
competente e os patrões, um casal de advogados,
permitiam à moça ficar no computador durante o
intervalo do almoço. Porém, nesse dia, um após o noivado,
275
OUTRAS PAIXÕES
a jovem dedicou­se somente à aliança. Parecia opaca.
Resolveu lustrá­la. Afrodite, Juno e Vesta tentaram
impedir.
De repente, toca o celular de Paulo. Era a noiva
desesperada, avisando ao rapaz que ele fora trapaceado.
Disse que ao tentar limpar a aliança, a peça ficou
desbotada e horrível. O homem emudeceu, gaguejou, não
conseguia falar. No final, teve que contar a verdade.
Débora apenas chorava e repetia:
– Você fez as alianças de torneira?
Veja, caro amigo, as surpresas relacionadas com o
amor. Uma história cômica e, ao mesmo tempo,
dramática. Sem recursos. Metal. Símbolo. Criatividade.
Sonho. Desilusão. Ponto final. Insistiu. Sofrimento.
Assim como os movimentos decorrentes na música,
percebeu Paulo ser o relacionamento dele e da Débora.
Primeira fase, lenta, os olhos se conheceram. Distanciamento
dos azuis e castanhos. Na próxima etapa, muita agitação.
Mexeu profundamente com os sentimentos. Aceitação.
Por fim, a desilusão. Fase funesta. Sim, para ele tudo
estava perdido. Tragédia. Jamais seria perdoado, pensou.
As deusas resgatarão o relacionamento? Tudo acabado?
Amor e valor. Enigmas.
Choro de emoção e reconhecimento. Amor real.
Pensou Débora.
O patrão da moça, assustado com a choradeira, havia
se aproximado e ouviu, sem querer, a conversa. Assim
que Débora desligou o celular, disse ter ficado muito
emocionado com a história e avisou que os presentearia
com um par de alianças. Ela não se conteve, disse que
não precisava. Mas acabou aceitando e convidando os
patrões para serem os padrinhos dela.
276
OUTRAS PAIXÕES
Depois de tudo resolvido, veio o casamento, algumas
discussões, pequenas brigas. Nada para abalar o amor
entre os dois. A descoberta do material que os anéis de
noivado foram confeccionados era sempre motivo de
muitos risos. Os dois ingressaram com afinco nos estudos.
Conseguiram bons empregos. Estabilizaram. Vieram os
filhos. Dois meninos. Conseguimos, enfatizavam as
deusas.
Reflexo no espelho da vida de todos os momentos. O
verdadeiro amor reflete a beleza interior. Perfeito.
Valores vencidos. Sonhos realizados. Sonhos para serem
ainda realizados. Vida a dois. Dois multiplicado por dois.
Enfim, resistiram a tudo e a todos, simplesmente por
haver entre eles o amor verdadeiro. Aquele que vem da
alma e é capaz de enxergar beleza além dos olhos e sentir
a presença alheia mesmo a longas distâncias. Tornou­se
eterno por ser cultivado para esse fim. Como afirma
Antoine de Saint­Exupéry “O verdadeiro amor nunca se
desgasta. Quanto mais se dá mais se tem.”
Saiu. Foi buscar os dois na escola. Não! Grita Débora.
O carro do Paulo? Branco. Não! Três vítimas? Não!
Acidente fatal? Não! Os três? Não! Cadê as deusas?
Rosa Silva
277
OUTRAS PAIXÕES
Projeto
PAIXÕES CLANDESTINAS
OUTRAS PAIXÕES
A história de Sergio
278
OUTRAS PAIXÕES
Ela era uma amiga, uma irmã. A gente cresceu junto
em São Leopoldo, Rio Grande do Sul, e se conheceu
quando eu me mudei para esse bairro, com cinco anos.
Greice era minha vizinha.
A gente já ficou amigo na primeira semana, estudou
no mesmo colégio e para mim era como uma irmã
mesmo. Não era um amor platônico em que se fica
gostando da melhor amiga o tempo todo e não se declara.
Eu contava as minhas histórias para ela e vice­versa.
Ela começou a namorar cedo, com 15 anos. Aos
dezoito ela disse que ia casar, aí eu me liguei. Esse foi o
estalo.
Eu fingi que estava tudo bem, mas uma amiga me
entregou. Aí que vem o clichê, pois adivinha o que a
Greice disse: “Por que não falou?” e que se eu tivesse
falado antes poderia ter sido diferente.
O cara com quem ela casou me odiava. Todos os
nossos amigos em comum foram ao casamento, então
nesse dia não teve como não saber onde estavam. Era um
domingo, fiquei em casa, não fiz nada demais…
A gente não se viu depois disso. Ela se casou, foi
morar numa cidade vizinha, em Novo Hamburgo, teve
filhos e não voltou mais para o bairro. Hoje em dia em
acho que a gente teria dado em nada.
Relato dele.
279
OUTRAS PAIXÕES
Projeto
PAIXÕES CLANDESTINAS
OUTRAS PAIXÕES
Um encontro
280
OUTRAS PAIXÕES
Era noite e a música alta fazia vibrar os tímpanos de
todos os que estavam no ginásio. Jorge estava lá, numa
das mãos a cerveja, na outra a mão da Moça. Assistiam
ao show de uma banda que ele achava muito ruim, mas
sabia que agradava muito à Moça. Ele só a levara ao
show porque tinha certeza de que a comeria depois de
duas horas um som péssimo. Não prestava atenção na
música e pensava só em que motel levaria a Moça sem
gastar muito dinheiro.
Sentiu algo bater no seu pé e, em seguida, um líquido
entrando pelo tênis e molhando a meia. Olhou para baixo
e viu uma Garota, extremamente desastrada ou um pouco
bêbada, não sabia ao certo, já se levantando após
recolher o copo. A Garota levantou­se com um pedido de
desculpas saltando dos lábios, enquanto ele ensaiava um
palavrão, prestes a proferir. Ambos levantaram os olhos e
se olharam profundamente, como muitas vezes já haviam
feito. Eram amigos de amigos. Já foram apresentados
umas três vezes, ele se lembrava, pelos amigos que
sempre esqueciam que eles já haviam sido apresentados.
Nas poucas vezes que se viram trocaram palavras
tímidas e desconfortáveis, mas se olharam muito.
Sempre tinham alguém ao lado; em um dos lados, pelo
menos. Da última vez era ela, de mãos dadas com um
fortão, meio rato de academia e suposto lutador, que
nada tinha a ver com a Garota. Jorge já havia lançado
algumas indiretas e quase fora percebido pelo lutador,
que não entendeu o que se passava. A Garota, fingindo
281
OUTRAS PAIXÕES
não notar, disparava­lhe olhares flamejantes todas as
vezes que se encontravam.
No show, cumprimentaram­se com um sorriso
amarelo. Dois beijos no rosto e ele percebeu: ela estava
ligeiramente bêbada. A Garota se desculpou novamente
pela cerveja no pé. Jorge tentou apresentar a Moça que
havia levado, mas era a “melhor música” e a Moça
evocava a letra aos gritos, alternando com elogios ao
cantor­não­tão­bonito­assim. Jorge perguntou o que a
Garota fazia naquele show, e então ela mostrou uma
amiga também enlouquecida com o hit de sucesso.
– É Jorge, né?!
– E você, Letícia.
Jorge passava muito tempo pensando em Letícia e, em
noites solitárias, imaginava suas mãos tocando­lhe o
corpo. Mas o que lhe sobrava eram somente as mãos.
Será que ela não sabia o nome dele? Letícia sabia, apesar
de se fazer desentendida. Mantinha encontros secretos
com ele em seus sonhos e, em todos, ele sussurrava em
seu ouvido com a voz rouca de vontade.
O encontro era tenso, como todos os que haviam tido.
Isso porque a tensão sexual que os cercava era tão grande
que emperrava qualquer possibilidade de contato mais
próximo. Conversaram mais um pouco sobre o show
ruim, perguntaram sobre os amigos em comum, mas o
som alto demais impedia que se escutassem. A cada
resposta de Jorge, Letícia sentia o bafo quente perto de
seu pescoço e, assim, ligeiramente bêbada, imaginava
que ele dizia palavras muito diferentes daquelas ao pé do
seu ouvido. Quando Letícia respondia, com sua voz
suave, o cabelo passando pelo rosto de Jorge e o seio
encostando levemente em seu braço, ele a imaginava nua
282
OUTRAS PAIXÕES
e entregue.
Permaneceram por alguns minutos conversando sobre
amenidades. E foi então que Letícia tomou um gole de
coragem, que desceu tão difícil quanto o resto de cerveja
quente que carregava. Perguntou se a Moça era namorada
de Jorge. Ele apressou­se em negar. Letícia sorriu
aliviada. Naquele momento, fez­se um silêncio entre
eles, apesar do alto barulho que fazia no local. Ambos
sentiram o coração acelerar. Decidiram falar ao mesmo
tempo e, quando viraram um para o outro seus lábios se
esbarraram por uma fração de segundos, e os corações
agora pareciam beija­flores. Ela, vermelha, abaixou
levemente a cabeça e fechou os olhos, sentindo a boca
quente de Jorge aproximar­se e ele dizendo com um
sussurro em seu ouvido “Andei pensando em você…”.
Ela sentiu uma mão apertar­lhe o braço e abriu
rapidamente os olhos. Sua amiga, tropeçando nas
próprias pernas, agarrou­se para não cair. Letícia olhou
para Jorge e decidiu sair de lá rapidamente, arrastando
sua amiga bêbada, antes que a Moça gritante, já
debruçada sobre ele perguntasse “Quem é essa?”.
Debora Baracho
283
OUTRAS PAIXÕES
Projeto
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Amor platônico
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OUTRAS PAIXÕES
O amor sempre foi clandestino para mim, quando era
adolescente. Se pararmos para pensar que clandestino era
algo feito às escondidas, eu sempre me apaixonei do
modo clandestino, era escondido principalmente da
pessoa que eu gostava. Ou será que era melhor dizer
platônico?
Mas o meu maior defeito, quando tinha lá meus
quinze anos, era que eu não conseguia ficar de boca
fechada, não conseguia guardar das minhas amigas por
quem eu tinha uma quedinha e isso não acabava bem.
Você pode imaginar como uma adolescente pode ser
cruel quando quer?
Eu era boca aberta mesmo. Estudava em uma sala só
de meninas. Era inocente e achava que todas as meninas
eram amigas de todas, como se fôssemos unidas, como
se pudéssemos contar tudo para todos. É claro que eu
estava muito enganada. E mesmo hoje que já me
aproximo dos quarenta outonos, tenho que me frear
quando começo a falar, senão pareço papagaio e despejo
tudo o que estou pensando, principalmente quando estou
chateada. É como se todos fossem obrigados a serem
terapeutas de plantão.
Voltando para a história. Da janela de minha sala de
aula eu avistava a janela do terceiro ano. Uma sala cheia
de meninas sem graça e de rapazes populares. Um deles
me deixava louca. Ele era lindo. Alemão e jogador de
futebol. Já disse tudo. Foi nessa época que comecei a
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OUTRAS PAIXÕES
gostar de futebol e a torcer pelo São Paulo Futebol
Clube, dá para imaginar o motivo? Ele sentava na última
carteira da sala, ao lado da janela, e quando eu não
estava admirando seu talento com a bola, ficava sentada
suspirando na janela.
É claro que ele sabia. Ele me via ao longe. Fingia que
não se importava. Fingia que eu não estava lá.
Numa dessas sessões de admiração compulsiva acabei
contando para uma das meninas da sala. Ela era dois
anos mais velha que eu, morena e alta. Passava um
batom vermelho para ir à escola e andava com a calça
jeans justa e rebolando. Pobre de mim, nunca me
importei com roupas de marca, gostava do meu cabelo
louro comprido e tinha o rosto salpicado de sardas. Era
óbvio que ele nunca gostaria de mim.
Minha autoestima acabaria no buraco. A melhor
amiga dessa menina era prima do melhor amigo dele, um
roqueiro que nunca desgrudava dele. Um covarde, diga­
se de passagem, tinha que ver como ficou lá no
Playcenter!
Essa menina convenceu o primo a apresentá­lo para a
amiga dela. E a tragédia estava feita! De modo clandestino
os dois foram ficando juntos. Descobri, um tempo
depois, que ele gostava era de uma morena, gostosona,
coisa que eu nunca seria.
Fiquei arrasada vendo as outras falando pelas minhas
costas e dando risadinhas. Principalmente, quando num
dia que a escola estava relaxada, com os professores
fechando notas e nós nos divertindo com conversas pelos
pátios e jogando bola eu percebi que a amiga dela falava
de mim para ele e o amigo. Eles riam muito. É claro que
ela deve ter dito que eu pagava mico suspirando por ele e
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OUTRAS PAIXÕES
desejando conhecê­lo.
Tudo foi extremamente vergonhoso para mim. Acabei
me calando um pouco e parei de falar sobre mim mesma.
Com o tempo a gente supera as decepções. Amores
vieram e se foram. Quando eu já tinha passado dos vinte
e cinco, estava eu pesquisando os nomes das minhas
amigas pelo Orkut, principalmente aquelas de quem
tinha perdido o contado, e acabei encontrando o nome
dele na comunidade de minha escola. Eu me lembro de
ter entrado na página e de ter fuçado nas fotos e só.
Um tempo depois ele me adicionou e conversamos
virtualmente. Não sentia mais nada por ele. Era apenas
uma parte do meu passado que queria esquecer, e continuar
vivendo. Porém ele continuou insistindo. Conversávamos
muito, conversas privadas. Ele era divertido e tínhamos a
mesma profissão. Coincidência?
É claro que ele tinha sido casado. Ficou, inclusive,
com aquela menina da escola por muito tempo, mesmo
com ela desdenhando da situação. No último ano da
escola, que graça a Deus não estudamos juntas, ela ficou
grávida, mas perdeu o bebê. E ele, que sofreu e aprendeu
muito com aquele relacionamento desastroso, acabou
partindo para outra.
Um tempo depois de nossas conversas furtivas pela
internet, ele me convenceu e acabamos nos encontrando
para conversar num shopping grande e abarrotado.
Pensei inclusive que ele não me reconheceria ou que
desistiria quando me visse.
Mas a vida é um mistério. Não se pode entender o
coração humano. Ele realmente gostava de mim e estava
feliz em me ter por perto. Fomos ao cinema. Jantamos.
Falamos de trabalho. Fizemos planos para encontros
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OUTRAS PAIXÕES
futuros.
Depois de algumas idas ao shopping, num dia
sossegado, longe da algazarra e do barulho. No início de
uma sessão no cinema, ele me beijou. Tudo se encaixava.
Tudo fazia sentido naquele momento. Sofri porque
precisava crescer primeiro para saber aproveitar a todas
as nuances que a vida ofereceria. Ele precisava
amadurecer e saber valorizar uma mulher pelo que ela
era e não apenas por sua aparência física e por seu
sorriso fácil.
Hoje, mais de vinte anos depois de ter terminado o
Ensino Médio, sou casada com ele e muito feliz.
Brincamos com nosso menino no pequeno sítio onde
moramos, afastado da loucura da cidade, curtindo a
natureza. Na festa de casamento, um ano depois de nosso
reencontro (os preparativos para o casamento foram
rápidos) minhas antigas amigas ficaram chocadas ao ver
quem era o noivo. Nosso relacionamento foi às
escondidas até decidirmos que nos casaríamos. Só Deus
para entender tudo que passei para desfrutar de toda essa
alegria que vivo agora.
Guacira Maffra
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Cinquenta tons de azul
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OUTRAS PAIXÕES
Do que mais sinto falta na minha terra é o céu. No Rio
de Janeiro, ele ou está completamente nublado ou
completamente azul. Sinto falta dos amarelos e dos
laranjas colorindo o pôr do sol. Dos tons de cinza quando
a seca finalmente acaba e as chuvas alagam as
tesourinhas. Das cores dos ipês que eu podia ver da
janela do meu quarto. Da sombra quadriculada dos
longos corredores dos prédios antigos da Asa Sul,
aqueles onde a luz do sol atravessa os cobogós, fazendo
o piso parecer um interminável tabuleiro de xadrez.
Mas o azul é o que é constante agora.
O cobalto do mar, misturado com a areia e a espuma
das ondas, o brandeis do céu límpido sem nuvens, e o
dodger dos olhos dela.
Agora não basta eu ver esta cor todos os dias na
paisagem, também o vejo ao fechar os olhos, ou até
mesmo nos meus sonhos acordados. Neles eu esqueço
como a vida é complicada, como estou a esmo chegando
à beira de um precipício, abandonada ao acaso. Neles eu
me pego sendo observada por estes olhos, que veem
acompanhados de um sorriso branco e de uma piscadela
sutil, apenas para mim.
Esqueço que mal a conheço, que quase nada sei a seu
respeito e vice versa. Esqueço pelo que passei, como
sempre, e entro no mesmo círculo vicioso de costume.
Mas ao mesmo tempo me recordo do sorriso, da risada e
da fala compulsiva. Do modo alegre que me cumprimenta
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OUTRAS PAIXÕES
quando retorno alguma ligação perdida.
Ela é meio maluca, e acho que se faz de desentendida,
mas nada que é muito fácil tem graça. Ainda espero pelo
momento em que vou ver aqueles olhos azuis bem de
perto, fechando­se ao meu toque.
Se não… Pelo menos sentir alguma coisa fora do
normal me mantém viva.
Amanda Marchi
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OUTRAS PAIXÕES
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OUTRAS PAIXÕES
Uma família feliz
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OUTRAS PAIXÕES
Naquela pequena agência de publicidade, Leonardo
era quase todo o departamento de criação. A agência
havia se especializado na publicação de anúncios em
jornais e revistas e na criação de folders. Assim, ela
resumia­se a, praticamente, ao departamento de criação,
uma central de captação, um centro de digitalização dos
anúncios e três rapazes, os quais tinham como incumbência
todo o trabalho externo da agência, que constituía visitar
clientes, especialmente aqueles que não anunciavam há
um tempo, e na distribuição dos anúncios aos veículos
nos quais seriam publicados ou distribuídos.
Leonardo criava e editava os textos para os anúncios e
folders, para clientes com maior poder aquisitivo, além
do tradicional símbolo do telefone ou do simples clip art,
buscava adaptar fotos ou imagens ilustrativas.
Olívia trabalhava no CPD da agência, era muito boa
com o Corel e com o Photoshop, ou seja, ela digitalizava
as ideias de Leonardo, dando­lhes forma estética
agradável.
Leonardo tinha esposa, mas não era segredo para
ninguém que sofria com as inconsequências e exigências
de Thaissa. Ela gostava de roupas e de calçados e não
resistia a passar o dia no Shopping, comprando o que não
podiam pagar.
Depois de ficarem inadimplentes no cartão de crédito,
não demorou a Leonardo perceber que não podia deixar
na responsabilidade de Thaissa o dinheiro do mercado,
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OUTRAS PAIXÕES
da padaria, da luz, do aluguel ou da diarista, ou ela o
gastaria com as coisas dela.
Num final de semana, Thaissa, para desespero de
Leonardo, sumiu sem aviso nenhum, nem atendia o seu
celular. Só reapareceu na segunda­feira, como se nada
tivesse acontecido, e unicamente para pegar algumas de
suas coisas.
– Achei alguém que sabe me apreciar melhor. Depois
volto para buscar o resto das minhas coisas – e Thaissa,
ante um Leonardo estupefato, se foi.
Olívia namorava uma pessoa muito especial; ninguém
conseguiria ser um peso morto tão eficientemente quanto
ele. Além de mulherengo, preguiçoso e dominador, fazia
como se estivesse fazendo um favor a Olívia, por estar
com ela.
– Olívia, eu não me conformo de ter criado você para
cair na conversa de um cafajeste deste tipo – dizia­lhe o
pai.
Edno vivia aprontando o tempo todo, quando não era
uma coisa, era outra; e para acreditar nas suas inumeráveis
desculpas, só uma idiota como Olívia.
Abandonado por Thaissa, Leonardo ficou muito
abatido. Olívia se condoeu muito com a situação do
colega de trabalho e, muito simpática, esforçava­se por
levantar o animo do amigo.
Primeiro, longos bate­papos na firma, depois na
lanchonete ou no restaurante da esquina na hora do
almoço, então um lanchinho depois do expediente, um
cineminha, para assistirem a um filme que interessava
aos dois. E Olívia foi se apercebendo da diferença entre
um homem como Leonardo e um cafajeste como Edno.
Para alegria do seu pai, mandou o moço andar.
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OUTRAS PAIXÕES
Num domingo convidou Leonardo para almoçar na
casa dos pais dela e ele, sem titubear, aceitou o convite e
foi. Na segunda­feira começaram um relacionamento
mais sério e, logo após o divórcio de Leonardo, casaram­
se.
Instado pela esposa, Leonardo passou a procurar um
novo emprego, em agências de porte maior. Enviou
alguns currículos e, finalmente, acabou por se inscrever
em uma agência de recolocação. Passadas algumas
semanas foi convidado a participar de uma entrevista,
pela agência de recolocação, todavia, na filial de São
Paulo. No dia aprazado ele compareceu pontualmente.
Na saída achou que fora bem na entrevista, mas que a
sua experiência, em uma agência pequena, não o ajudava
muito.
Foi com muita alegria que receberam o contato da
agência informando­os de que ele havia sido selecionado
para o emprego. O salário inicial oferecido era duas
vezes maior que o dele e o de Olívia juntos na pequena
agência e, para completar, como ele vinha de outra
cidade, teria direito a um apartamento funcional,
gratuitamente, por três anos. Não havia como resistir.
Sampa! Lá vamos nós!
Fernando e Nathalia, casados há quase trinta anos,
tinham uma vida estável e tranquila. Nathalia era funcionária
concursada da Assembleia Legislativa. Fernando advogava,
tinha um pequeno escritório próximo ao metro Santana,
mas não nutria paixão especial pelo seu trabalho.
Através do deputado ”X”, Nathalia ficou sabendo da
chegada de uma ONG que iria assumir a saúde em pelo
menos quatro cidades paulistas, uma no litoral, duas na
região noroeste do estado e outra na RMC, região
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OUTRAS PAIXÕES
metropolitana de Campinas. A ONG desejava instalar um
escritório central em São Paulo, Capital, visto que
pretendia expandir sua atuação no estado. Nathalia achou
que era a oportunidade de Fernando mudar de vida e
gestionou junto ao deputado para que o marido
gerenciasse o escritório.
– Dr., ele é de absoluta confiança.
Havia quem estivesse interessado no acanhado
escritório de Fernando e, com um bom salário em vista,
ele o repassou, mas guardou alguns clientes, filé mignon
– apesar do trabalho na ONG daria para conciliar.
Nos três anos que se seguiram, a ONG ia muito bem.
Mais algumas cidades pequenas foram adicionadas ao
seu rol de clientes e Fernando, ao demonstrar sua
eficiência, teve consideráveis melhorias salariais, mas
por fora.
Foi nesse período que as duas famílias se tornaram
vizinhas de porta e os casais acabaram por se tornarem
bons amigos.
Nos primeiros três meses, em Sampa, a vida de
Leonardo conduzia­se de forma bem normal; saía cedo
para o trabalho e retornava pela tardezinha. O metrô
facilitava tudo. Trazia alguns serviços para casa, que
Olívia digitalizava para ele com muito gosto.
Repentinamente a agência se agitou: cliente novo, de
grande porte, vindo se estabelecer no Brasil e precisando
tornar sua marca conhecida. Leonardo foi escalado na
equipe que trabalharia no projeto.
– É uma grande oportunidade, meu amor – dizia,
feliz, para a esposa.
Olívia concordava, só achava meio chato que ele
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OUTRAS PAIXÕES
talvez tivesse que fazer uns serões. A vida deles mudou
muito; Leonardo saía mais cedo de casa e chegava muito
tarde. Cansado, arriado, mal comia alguma coisa e já caía
na cama a dormir. Nos finais de semana o celular não
parava, mal dava para conversar com o marido. Olívia
começava a se sentir muito sozinha.
Bomba, estourou uma bomba, foi notícia até no Jornal
Nacional. A ONG ligada ao deputado “X” estava metida
em complicadas falcatruas. Em questão de poucas
semanas o emprego de Fernando foi­se embora e ele,
para completar, encontrava­se envolvido em uma grande
confusão.
Fernando passou a ficar em casa praticamente todos
os dias e só lhe restava de ocupação os seus clientes
especiais. A duvida o assolava: abro ou não abro um
novo escritório?
– Resta­me tão pouco tempo para a aposentadoria...
Nathalia também está à porta dela, e agora?
– Não, não abre nada, não, querido! – disse Nathalia.
Vou antecipar minha aposentadoria, vendemos este
apartamento e nos mandamos para nossa casinha em
Ubatuba. Só preciso aguardar mais uns três ou quatro
meses, completar um decênio na gratificação para poder
dar entrada na aposentadoria.
Fernando e Olívia, solitários em casa, passaram a se
encontrar todos os dias, combinavam de ir ao mercado, à
feira, à padaria e, também, para outras coisas menos
agradáveis de fazer, como pagar as contas e enfrentar a
fila do banco.
– Vamos pedir comida japonesa? – perguntou Olívia
num dos bate­papos.
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OUTRAS PAIXÕES
– Vamos – concordou Fernando. E ligou para o China
in the Box.
Sentaram, os dois, à mesa da cozinha de Olívia.
Inesperadamente, olhos nos olhos, um leve toque na mão
e… a comida esfriou na mesa enquanto o sofá ferveu,
naquela tarde.
Olívia havia três meses sentia carência da presença do
marido. Fernando, um cinquentão, ao conquistar uma
moça bonita como Olívia, se sentia mais homem, mais
viril. Quase todas as tardes se encontravam para um
“exercício”. Passadas duas semanas, naquela tarde,
Olívia sentiu algo diferente. Seu corpo reagiu de maneira
diversa, algo inexplicável, mas imediatamente ela soube:
havia engravidado. Como não se preocupava em
engravidar com Leonardo nem pensou no caso com
Fernando, mais um grande erro.
Olívia cortou as tardes com Fernando, que insistiu um
pouco, mas logo respeitou a decisão da amiga e passaram
a se ver muito raramente. Em contrapartida, passou a
exigir que Leonardo comparecesse todo dia e a toda hora
possível, mesmo estando exausto e protestando seu
cansaço. Passados uns 30 ou 40 dias, mostrou ao marido
um teste de gravidez, daqueles de farmácia, positivo,
logo confirmado em laboratório.
Leonardo ficou bobo de alegre. Imediatamente
diminuiu o ritmo de trabalho – afinal não precisava ser o
primeiro a chegar e o último a sair –, organizando sua
vida de forma que tivesse mais tempo para a esposa e
para o filho que viria, sem prejudicar seu trabalho.
Junior era o único xodó do pai, até que Olívia
resolveu engravidar novamente. Nasceu­lhes D’Ea, em
homenagem à avó de Olívia, que se foi um pouco antes
298
OUTRAS PAIXÕES
do nascimento da menina.
Hoje são uma família feliz e completa.
André George Moricz
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OUTRAS PAIXÕES
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OUTRAS PAIXÕES
Chapéu branco:
a paixão de Hellena
300
OUTRAS PAIXÕES
Um sonho? Talvez, mas um sonho tão real que ainda
hoje, após 39 anos, sinto todo o sentimento que me
consumia na época. Estava eu sentada na pracinha do
mercado público, tinha lá meus dezesseis anos de idade,
idade certa para se apaixonar? Acho que não, pelo menos
minha mãe sempre falava que não. Só sei que andava
meio triste, sentia vontade de encontrar alguém com
quem compartilhar minhas alegrias, tristezas, me sentia
só, e realmente precisava de alguém.
Acordei decidida a achar alguém, mas sabia eu que
não seria naquele banco de praça, só sabia que precisava
estar ali.
Eram mais ou menos cinco e quarenta e cinco da tarde,
mal sabia eu que minha vida mudaria dali em diante, havia
me arrumado toda como se estivesse adivinhando, passei
meu batom cor de rosa, que havia usado pela primeira vez,
olhei o quase pôr do sol, sem nada para fazer, como se
esperasse algo acontecer de repente.
Quando me preparava para deixar aquele banco e
direcionar­me à minha casa, eis que um homem surge à
minha frente, alto, cabelos claros e olhos castanhos
também claros e algo que me chamou muito minha
atenção, ele usava um chapéu branco. Ele me perguntou
se eu estava ali esperando alguém, eu disse que não, e
perguntei se ele estava esperando alguém. Resposta:
Sim, você. Uma chama de emoção me consumiu, apesar
de achar que foi uma cantada barata. Conversamos muito
301
OUTRAS PAIXÕES
aquela noite, seu nome era Eduardo, nossa conversa se
estendeu por horas, depois por dias, até que com uma
semana, demos nosso primeiro beijo.
Começamos uma bela história de amor, sempre estava
usando seu chapéu branco, ele nunca quis me dizer o
porquê de gostar tanto daquele chapéu, já que ele sempre
usava o mesmo. Fazíamos tudo juntos, lanchávamos,
brincávamos, estudávamos, era tudo mesmo, até que
certo dia, em sua casa… Hum, naquele dia, chovia, fazia
frio, muito frio, foi ali que tivemos nossa primeira noite
de amor, foi lindo… A partir dali, tinha certeza que
Eduardo, era o homem de minha vida.
Resolvemos nos casar, mas meus pais não permitiram,
só lembro que chorei muito naquela noite, senti vontade
até de tirar a própria vida, quando senti uma coisa boa em
mim, olhei a janela e estava ali uma rosa vermelha, com
uma mensagem pregada nela dizendo “você será muito
feliz, não se preocupe”. Fiquei melhor, e me tranquilizei.
No outro dia, resolvi aparecer naquele mesmo banco
da praça para agradecer o presente, quando cheguei lá
encontrei apenas seu chapéu branco em cima do banco.
Senti que nunca mais o veria, e assim aconteceu, desde
aquele dia nunca mais vi Eduardo e seu chapéu branco.
Todos dizem que ele só quis brincar comigo, mas não
acho, sinto que o que ele realmente me amou, e hoje
tenho Eduardo Jr. para confirmar isso. Por que não o vi
mais, só o destino terá a missão de me explicar. Hoje,
com 55 anos, tenho certeza que esse foi meu maior amor.
José de Sousa Magalhães
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OUTRAS PAIXÕES
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OUTRAS PAIXÕES
A história de Ivonira
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OUTRAS PAIXÕES
Olha, meu filho, foi uma história... Eu acho que
quando tem que ser, acontece.
Namorar, isso é das moças. A gente tem que
namorar... Como aqui no Ribeirão não era um lugar onde
tivesse muitos moços, eu ia passear na casa da minha
irmã no continente e foi lá que a gente se encontrou e se
gostou.
Só que ele se iludiu com outra garota. Ele estava
pensando que nada tinha acontecido, mas engravidou a
menina, depois eu fui saber. A família dela foi em cima.
Ele tinha saído daqui e foi para casa. Quando chegou, a
mãe dele falou assim: “Ó, aqui tem um problema para
resolver. A mãe da menina veio se queixar de que a
menina engravidou.”
Ele achou no direito, depois de fazer as coisas erradas,
de casar com a outra no cartório. Viveu ainda dez anos
com a guria. Vê o que é a vida... Nesses dez anos eles
ficaram numa boa e eu aqui em casa não estava nem aí.
As pessoas diziam que eu era apaixonada por ele, porque
não apareceu nesse intermédio mais ninguém de quem eu
pudesse gostar. Se aparecesse outra pessoa que servisse
para eu conviver, eu pegava.
Depois de dez anos ela não quis mais saber dele, daí
gostou de outro cara, o enganou e foi embora. Eu já sabia
que não tinha dado certo porque a mãe dele tinha vindo
aqui em casa. “O meu filho deixou a esposa. Ela fez uma
sujeira com ele, traiu com o próprio cunhado...” Eu
304
OUTRAS PAIXÕES
disse: “Bem feito, agora ele aprende!”
Quando a gente era para ficar junto e não tinha
problema, ele não quis. A gente não ia fazer um
casamento, mas ia se juntar, porque hoje ninguém mais
casa. O casamento é aquele que bem vive, né?
Um belo dia ele veio com a mãe dele, com vergonha
de vir sozinho. Depois de dez anos ele diz: “Eu vim aqui
falar contigo, nada deu certo, eu me arrependi do que
fiz” e não sei o quê...
Ele disse que estava partindo para o desquite. E eu
disse que tudo bem, na cara dele, assim como estou
falando contigo. “Depois que você desquitar, depois que
você trouxer o papel para eu ler, porque também não sou
burra, eu vou pensar.” Não queria ninguém me
incomodando; não queria que a outra viesse com filho no
braço para discutir comigo.
Então a gente fez um partido. Se ele aceitasse viver
junto com a minha mãe o partido estava feito. Se desse
certo, deu, se não desse... Ele aceitou e a gente se juntou.
Eu casei com ele com 40 anos e fui ter a minha filha com
42. Foram vinte e sete anos juntos.
Nunca bateu em mim, nunca chegou bêbado, porque
não queria ver homem meu em bar, nunca virou mesa...
E era um homem honesto, graças a Deus. Foi uma
convivência boa. Ele gostava de mim e eu gostava dele.
Faz agora quatro anos que ele faleceu. A minha vida foi
assim.
Relato dela.
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OUTRAS PAIXÕES
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PAIXÕES CLANDESTINAS
OUTRAS PAIXÕES
Uma pequena gata, aveludada e
com grandes olhos azuis
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OUTRAS PAIXÕES
Domingo. Eu acabara de chegar do clube, fazia um
frio de junho, estava cansado e resolvi tomar banho,
antes de ver o que havia no freezer para jantar. Foi o que
fiz e, enquanto sentia a água quente escorrendo gostosa
pelas minhas costas, comecei a pensar se, em vez de me
envolver numa batalha com os congelados, não seria
melhor ideia comer fora, tranquilamente, em algum lugar
onde eu não precisasse preparar o jantar e, talvez, ainda
que por sorte, encontrasse alguém para uma conversa
inteligente.
Grossas meias, cômodos tênis, jeans e uma blusa
quente, foi o que vesti, enquanto me decidia se,
finalmente, sairia ou ficaria em casa. Assim estava posta
a questão. Antes, porém, preguiçoso, abri o notebook,
investigando se havia mensagens. Deletei a primeira e a
segunda, mas a terceira me intrigou:
“Oi. Não nos conhecemos, mas não consigo me
impedir de lhe dizer. Ontem sonhei com você. No sonho,
você estava na minha cidade para assistir a uma
conferência e nos encontramos casualmente na plateia,
procurando lugar. Você gentilmente me permitiu
passagem e, depois, como havia lugar, sentou­se ao meu
lado. A conferência foi ótima e não muito longa. Você
fez dois ou três comentários e eu idem. Ao terminar,
saindo, você me perguntou se eu achava boa ideia se
jantássemos juntos e, como nada tinha comido desde o
almoço, concordei. Eu estava na minha cidade, sugeri o
restaurante que mais me agradava e você não teve muita
307
OUTRAS PAIXÕES
escolha.
“Foi ótimo e houve uma coincidência: ambos pedimos
camarões, que estavam deliciosos, assim como o vinho e
as framboesas com chantilly, na sobremesa. Acordamos
abraçados e, só então, percebi que eu sonhara. Como eu
encontrei seu e­mail? Descubra, se tiver interesse.
Beijos.”
Li e reli três ou quatro vezes a mensagem. Nessa
altura, já não mais pensava em sair para comer e,
provavelmente, me contentaria com um sanduíche e com
um chá quente, só para poder ficar pensando naquela
estranhíssima história.
Quem seria aquela moça e como descobrira meu e­
mail? Se não me conhecia – como afirmara no início da
mensagem – como poderia sonhar comigo? O que
significaria, de verdade, aquela história de que havíamos
“acordado abraçados”?
Que sugestões existiriam na mensagem e o que
pretendia com a irrecusável provocação:
“Descubra se tiver interesse”?
Eu estava intrigadíssimo e sabia que me sentiria
desprezível se não descobrisse resposta para todas essas
perguntas.
Poderia ser alguém que me conhecesse e a mentirinha
inicial seria apenas provocativa: “Não nos conhecemos,
mas…”. Sim, a pessoa tinha de me conhecer e estava
fingindo estímulos e desafios.
Em segundo lugar, deveria ser uma mulher. Um
homem, mesmo por piada e com as liberdades de hoje,
não me procuraria com uma conversa dessas.
Por terceiro, parecia óbvio – com a alusão sobre
308
OUTRAS PAIXÕES
minha visita à sua cidade – que seria uma mulher que eu
conhecera em algum lugar, aqui ou fora, mas que morava
em outro lugar que não na Capital. Onde? Eu ainda não
sabia, mas pelo menos, não seria aqui.
Uma quarta pergunta, tornava ostensiva outra pista:
era uma mulher erudita, ou preocupada com atividades
culturais ou, ainda – que delícia – uma jovem estudante.
Sim, porque, ao referir que me encontrara em visita à
sua cidade para assistir a uma palestra, isso significava
que nós ambos éramos dedicados a esse tipo de
prestigiada atividade.
Contudo, antes de tentar resposta para uma quinta
pergunta, percebi de repente que ia me envolvendo
emocionalmente cada vez mais com o resultado daquela
pesquisa. Enquanto isso ocorria, tinha terminado meus
sanduíches, meu chá e esquecera, completamente, a ideia
de jantar fora. Acendera um pequeno aquecedor portátil,
de tal forma que também o frio já não mais me
incomodava.
Quis voltar para minha pesquisa, mas não consegui,
pois nem mais me lembrava de qual seria a próxima
pergunta a responder. Seria cansaço? Eu, que chegara
tarde, desejando banho quente e cama? Irritadíssimo,
resolvi suspender a faina detetivesca, enviei uma
mensagem – para a hipótese dela voltar – e desliguei. A
mensagem era a seguinte: “Adoro camarões, gosto muito
de palestras e estou precisando acordar abraçado”.
Como fui dormir, a eventual resposta eu só
encontraria depois, talvez no dia seguinte, se houvesse.
Sendo segunda­feira, passei o dia todo trabalhando
muito e, para ser sincero, me esqueci daquele texto. No
final, fui jantar com minha irmã, na casa dela, passando
309
OUTRAS PAIXÕES
um tempo bastante agradável, como sempre, e retornei
muito tarde. Caí na cama e dormi até às sete da manhã, já
na terça feira.
Naquele dia, por mera coincidência, voltei mais cedo
para casa e, como de hábito, fui conferir eventuais
mensagens. A primeira, eu deletei. A segunda, era da
minha “amiga” inominada. Só podia ser dela, pois dizia
simplesmente: “Eu também.”. Com isso respondia a
mensagem que eu deixara, para uma eventual visita. Eu
não conseguia pensar em quanto mais precisaria fazer
para alcançá­la. Havia, pois, que ser tão ousado quanto
ela e, sendo honesto, dizer isso: quero conhecê­la, não
consegui meios para encontrá­la e peço que me dê seu
endereço eletrônico ou seu telefone, ou ambos, para que
possamos atingir nossos objetivos que parecem ser os
mesmos. Foi o que fiz, desenhando essa mensagem em
meu e­mail. Depois desliguei e fui dormir.
No dia seguinte, terminadas minhas obrigações no
escritório, retornei cedo e diretamente para casa, desta
vez não por coincidência, mas porque agora desejava
conferir no notebook se teria havido uma nova visita.
Havia sim, mas, lendo, eu me senti ofendido. Dizia
simplesmente: “Você me pareceu mais inteligente e as
pessoas eruditas costumam ser mais perspicazes. Você
ainda não me localizou porque não se dedicou a isso,
com afinco e com inteligência emocional. Repasse suas
anotações, se é que as fez. Dou­lhe um prazo de dois
dias. Se você não fizer progresso, esqueça. Beijos.”
Fiquei ensandecido. Não apenas porque ela me
diminuíra, dizendo que eu lhe parecera “mais
inteligente”, mas também porque me dera um prazo que,
na minha opinião, era muito curto.
De repente, quase explodi, ao perceber que na última
310
OUTRAS PAIXÕES
mensagem ela, intencionalmente ou não, me dera nova
pista: ela me conhecia sim! Pois ao dizer “você me
pareceu mais inteligente e as pessoas eruditas são mais
perspicazes”, ela, na realidade, sugeria que já me
conhecia e isso poderia ser uma dica de como ela achara
meu e­mail.
Então, o que eu tinha que fazer era tentar identificar
como isso acontecera. Ela afirmara que me havia
encontrado numa palestra. Então o que eu tinha que fazer
era repassar todas as conferências a que eu fora, ao longo
do último mês.
A partir daí pareceu fácil porque, afinal, eu não vou a
palestras todos os dias.
Na realidade, eu havia assistido a três conferências,
nas últimas quatro semanas, sendo uma na Capital e
outras duas em cidades do interior do Estado. O
problema, agora mais fácil, era saber em qual das duas.
Vibrei quando me propus a seguinte questão: ela
dissera que, no seu sonho, nós havíamos ido jantar após a
palestra. Assim, passei a conferir o horário das
conferências. Uma ocorrera em Jundiaí, com início às
dez horas da manhã. Impossível, portanto, o jantar. A
outra ocorrera em Campinas e terminara por volta de
nove e meia.
Derrubei a cadeira, ao me levantar, tal a minha
alegria, pulando pela sala. Encontrara, no jantar, a
resposta. Quase. Faltava ainda alguma coisa, mas com
um pouco da inteligência que ela duvidara que eu
tivesse, chegaria lá. Vasculhei minhas anotações, feitas
quando da conferência em Campinas.
Todavia, eu não me lembrava de, em nenhum
momento, ter ocorrido qualquer tipo de encontro ou
311
OUTRAS PAIXÕES
simples troca de ideias com minha desconhecida amiga.
Nem mesmo me sentara ao lado dela, pois – eu me
recordava bem – de ambos os lados, na fila onde eu
ficara, se haviam sentado dois senhores. Assim, como
poderia ela ter me identificado?
De repente, como sempre acontece, fez­se a luz: minha
cópia da Inscrição para Perguntas, no final da palestra. Ali
devem constar todos os dados do inquiridor e da qual, uma
vez terminada a conferência, eu já não mais necessitava.
Aquele papel então ficara dentro do envelope original, em
plástico transparente, sobre minha poltrona quando eu me
levantara, após o encerramento. Na ficha de inscrição
havia meu nome completo, endereço eletrônico, celular,
tudo, enfim, como de hábito.
Ela, provavelmente, ocupando uma cadeira próxima,
estivera me olhando durante a palestra – quanta vaidade!
– e, encerrada a conferência, simplesmente se permitira
apanhar o tal envelope, sobre a poltrona, tão logo eu me
retirara. Fácil!
Adotei, imediatamente, um procedimento inverso.
Fugindo ao lento processo utilizado por ela, com a
flagrante intenção de me provocar, cuidei de conseguir
pela Internet o telefone dela, visando contato direto.
Hoje eu não moro mais na Capital. Consegui minha
transferência para Campinas, onde dou aulas na
Fundação Histórico Geográfica e moro com ela.
Eduardo Monteiro
312
OUTRAS PAIXÕES
Projeto
PAIXÕES CLANDESTINAS
OUTRAS PAIXÕES
Pantomima
313
OUTRAS PAIXÕES
Um trovão abafou o violento bater da porta. Com a
respiração acelerada, ele entrou no apartamento, deixou a
mochila cair no chão e procurou por algo que o ajudasse
a voltar para dentro da própria mente, da qual desejava
nunca ter saído. A maldita timidez ao menos era segura.
Viu o velho Zafu, esquecido havia semanas no canto da
sala. Sentou­se e esperou pela concentração, que não
veio. Contrariado, voltou à técnica iniciante de contar as
respirações, de um a dez. Um, a primeira visão que teve
dela, no aeroporto, passando a língua nos lábios
ressecados, que ele imediatamente quis curar. Dois, a
eletricidade quando a tocou pela primeira vez. Três, o
maxilar de contornos triangulares que ele tanto acariciou
em sua imaginação. Quatro, os olhos levemente puxados,
sempre iluminados. Cinco, o sorriso, o sorriso. Seis, o
jeito agitado, empolgado com a vida. Sete, as noites sem
dormir. Como entender, como explicar, como agir? Oito,
a viagem com amigos. Nove, o desespero. Nunca seria
leve e feliz como ela, jamais conseguiria acompanhá­la.
Dez, ela merece alguém melhor, e naquela praia não
faltavam opções. Onze… Onze! Droga. Levantou­se,
passou as mãos pelo rosto e cabelo, molhados de suor. O
que fazer? O saco de pancadas! No caminho para a
sacada, apertou automaticamente o play do aparelho que
ficava na estante da sala. As caixas de som explodiram
com uma das músicas estilo grunge que ela lhe
apresentou. “I ain’t afraid to let it out, I’m unafraid to
take that fall, but I have found beyond all doubt, we say
314
OUTRAS PAIXÕES
more by saying nothing at all…” Socou o aparelho, que
caiu, levando junto uma garrafa de vinho.
A campainha tocou.
Pelo olho mágico ele fitou, atônito, a visita inesperada:
completamente molhada, os cabelos negros grudados no
rosto sério; ainda usava a saída de praia amarela, a bolsa
de palha, os chinelos. Ouviu então o som da maçaneta.
Só naquele momento lembrou de respirar. Não havia
trancado a porta. Quando tentou segurar, já era tarde.
Agora bem perto dela, pode ver que não era só a água
da chuva que molhava aquela face. E isso ele não podia
suportar.
Contornou o rosto dela com as mãos. A mesma
corrente elétrica. Daí pra frente, foi como se seu corpo
funcionasse sozinho, acompanhado pelo dela, numa
coreografia ensaiada sem que qualquer dos dois
soubesse. Tudo em perfeita sincronia, como deveriam ser
não só as primeiras vezes, mas também todas as outras.
Beijos intensos, colo, sofá; carícias delicadas, urgentes,
impensáveis e crescentes; roupas desaparecendo; pele,
suor, vinho, chuva, sal, saliva, lágrimas; corpos
entrelaçados se movendo; mãos mostrando o que ele
jamais conseguiria expressar em palavras.
daniclau
315
OUTRAS PAIXÕES
Projeto
PAIXÕES CLANDESTINAS
OUTRAS PAIXÕES
Amores em segredo
316
OUTRAS PAIXÕES
Quando Nívea chegou a casa, o filho já lá estava a
jantar, a cozinheira Antónia tinha­lho preparado.
– Boa tarde, mãe. Vem jantar comigo. –Aclamou Gastão.
– Já vou, mas terá de ser depressa, pois tenho ainda
que preparar as aulas de amanhã. – Confessou sentando­
se à mesa.
Comeram e depois cada um foi para o seu quarto.
Nívea não podia usar o escritório porque o marido estava
lá a escrever os textos para o jornal do dia seguinte.
Normalmente vinha tarde para a cama e já não estavam
juntos há muitos meses.
Na manhã seguinte os três voltaram aos seus
trabalhos. Nívea foi lecionar Psicologia para a faculdade,
Gastão foi para a aula de alemão e Arnaldo para a
redação. Ficavam relativamente perto uns dos outros,
embora a mãe e o filho ficassem mais perto por estarem
ambos na universidade de Coimbra.
Na hora do almoço, Gastão foi almoçar, como sempre,
com Cesário, Eliana e Camila. Cesário decidiu declarar­
se a Camila mesmo na presença dos outros. Ela ficou um
pouco espantada com a coragem dele à frente dos
restantes e corou sem palavras.
– Dou­te tempo para te mentalizares na minha proposta
e te preparares para a tua nova vida… comigo. – Proferiu
sorrindo, colocando­lhe uma mão em cima da dela.
Então ela decidiu que iam tentar. Os outros riram.
317
OUTRAS PAIXÕES
Nesse instante Cesário olhou para Gastão e incentivou­o:
– Devias fazer o mesmo. A Eliana também me parece
ansiosa por um beijo teu.
– Eu!? Não estou, não. O que eu quero é passar o ano
e tirar o curso para um dia ser tradutora.
– Eu também penso assim. – Concordou Gastão. –
Somente quero estudar para um dia ser um bom docente
de alemão e inglês.
– Tu e ela estão mesmo bem um para o outro. Muito
envergonhadinhos.
– Sou quase como tu. Demoraste cinco anos para te
declarares. – Proferiu sorrindo, acrescentando de seguida:
– Eu bem sei que gostas dela desde o primeiro ano.
– Pois, – acrescentou Eliana – estás sempre a tentar
engatar as das outras turmas… admiro­me tu a querê­la e
ela querer­te.
– Estás interessada? – Perguntou, espantado.
– Não.
– Eu sou mais corajoso do que ele. O Gastão
demorará décadas para se declarar. – E sorriu olhando­o.
– Somente estou a mangar contigo. Nada de stress.
– Para de gozar com ele. – Intrometeu­se Camila. – Se
queres namorar comigo não poderás dizer piadas parvas
e rebaixar os outros. Porta­te bem. Eles não merecem.
– Ó, Camila fica sempre do meu lado, gosta de tudo
aquilo que eu fizer.
No sábado seguinte eles saíram juntos os quatro para
irem a um bar, mas à determinada altura o casalinho
ausentou­se para um sítio mais calmo para curtir.
Estavam a gostar muito de estar juntos que pensaram em
318
OUTRAS PAIXÕES
oficializar o namoro brevemente com a família. Voltaram
a casa de táxi.
No domingo à tarde, o irmão de Camila, Cláudio, fora
à casa de Gastão pedir­lhe um jogo de computador para
desanuviar do estudo.
– Tu não tens nada para estudar? – Inquiriu Gastão,
admirado.
– Estudo depois. Precisava da ajuda da tua mãe para
estudar Psicologia. Ela já me ajudou e eu subi a nota,
sem ela não consigo estudar com pachorra.
– Então vai dizer a ela. Minha mãe está no escritório
porque o meu pai hoje vai chegar mais tarde.
Ele lembrou­se como era para lá chegar, agradeceu e
despediu­se do amigo. Desceu as escadas e bateu na
porta do escritório. Nívea sorriu ao vê­lo. Deixou­o
entrar e perguntou o que queria.
– Queria que me explicasse umas matérias em que
tenho dúvidas. – Declarou enquanto fechava a porta atrás
de si.
Ela explicou­lhe o que ele não compreendia.
Cláudio agradeceu e perguntou quanto custava, mas
ela não quis cobrar porque era um amigo do filho e não
era muito.
O jovem gostou do que ouvira, assim como do sorriso
dela. Contudo, apenas se levantou da cadeira e baixou a
cabeça saindo. Nívea achou­o estranho, mas não falou no
assunto.
O estágio da turma de Línguas estava para breve e
Gastão sentia­se mais próximo de Eliana. A futura
tradutora andava a conquistar corações e o amigo sentia­
se ameaçado, pois ela era tão reservada para ele que
319
OUTRAS PAIXÕES
Gastão ficava com ciúmes, mesmo sem ela dar trela a
quem se aproximava mais para conversar ou para pedir
apontamentos.
Um dia, a sós, Gastão manifestou os seus sentimentos:
– Eu queria que os dias de faculdade não acabassem.
Bem, estou a mentir. – Declarou embaraçado. – Eu
queria era que os momentos que nós temos juntos não
terminassem. E tu?
– Eu também gosto muito da tua companhia. Nunca te
esqueças que moramos na mesma cidade e que ficaremos
para sempre amigos.
– Parecia que me conhecias tão bem e afinal ainda
não percebeste o que queria dizer.
– Percebi. Deixa essa poeira baixar. Os ânimos estão
exaltados por causa do final do curso, mas não significa
mais nada.
– Queres enganar a ti própria? Tens vergonha de
mim? Crescemos praticamente juntos, sabes quais as
minhas intenções.
– Pois, é por isso. Não se confunde amizade com amor.
– Não queres arriscar um beijo? Ninguém está a ver. –
E olhou à volta, fazendo­a olhar também.
– Agora não. Não estou preparada para isso, não sei bem
por quê. Deve ser por causa da reviravolta universitária.
– Não insisto. Porém, sabes que devíamos tentar.
– Agora só quero acabar este estágio e começar a
trabalhar. Quando isso acontecer logo se vê. Até lá,
falamos normalmente.
– Aceito. – Retorquiu ele.
320
OUTRAS PAIXÕES
Cláudio já arranjara uma namorada, Bianca, estudante
de enfermagem, como ele. Curtira com ela, mas achava
que não gostava o suficiente. Ela não parecia muito
interessada, depois só queria estudar sozinha e falava
pouco na curtição.
– Assim não tem graça. Gostava de estudar contigo.
– Gostava mais quando eras somente amigo.
– Ok, afasto­me. Eu também estudo bem sozinho.
Cláudio ficou triste, não conseguira ficar mais de um
mês com a rapariga e gostava dela a sério. Pensava
noutras colegas, mas elas não mostravam muito
interesse, queria apenas estudar e tirar altas notas. Ele já
estava farto daquela vida de estudante e ainda tinha mais
um ano. As professoras achavam­no um menino e não
lhe davam muita trela. Tinha que arranjar alguém de
fora. Mas quem?
Nas férias de Verão, Nívea foi para a praia com o filho
e duas amigas, a Eduarda levou os filhos Cláudio e
Camila; e a Gertrudes, a filha Eliana.
Cláudio, Camila e Gastão prepararam­se logo para
jogar futebol na areia junto ao Cesário, que lá estava.
Eliana ficou deitada numa toalha a ler um livro de novela
de época, junto de sua mãe Gertrudes e das outras
mulheres.
A bola ia algumas vezes para perto das senhoras que
eram muito apreciadas pelos homens nos seus fatos de
banho ou biquínis! Quase todos os dias de verão foram à
praia juntos.
As aulas universitárias voltaram e com elas novos
estudos, novas alegrias e tristezas, novos romances,
sonhos, planos, amigos e novas noitadas. Era o ano do
321
OUTRAS PAIXÕES
estágio de Cláudio. Correu bem, no geral, tentou
concentrar­se mais e melhores notas positivas apareceram,
terminando o curso com média de quinze valores.
Gastão e Eliana já estavam a namorar e a trabalhar.
Cesário e Camila também já tinham um emprego e o
casamento marcado. Nívea dava as suas aulas de
Psicologia como sempre.
A meio do ano letivo começou a desconfiar que o
marido andava a enganá­la porque ele saía da redação e
não voltava direto para casa. A primeira vez ficou muito
preocupada se lhe tinha acontecido alguma coisa. Ele
nunca fazia isso! Sempre que tinha algum compromisso
importante avisava­a antes. Porém, Arnaldo estava
estranho, já não falava muito com ela, já não era
romântico, dormiam apenas e não havia carinhos.
Um dia ligou para a redação a perguntar se ele vinha
já a casa. Ele disse que tinha um compromisso. Ela não
gostou do seu tom de voz e resolveu ir até ao seu
trabalho. Ficou no carro à espera de ele sair e seguiu­o.
Onde iria ele às dez horas da noite!
Ainda em Coimbra, ele estacionara na berma da
estrada, perto dum restaurante novo. Entrou no edifício e
a esposa foi atrás pouco depois. Viu­o lá sentado à mesa
com uma loura! Sentou­se noutra mesa afastada e pediu
um café quando o garçom a abordou. Olhou­os de
soslaio e verificou que já estavam muito íntimos. Ficou
triste, quase chorou.
“Mas eu estou longe, pode não ser o que parece” ,
pensou.
Então resolveu pedir ao empregado de mesa, dando­
lhe uma gorjeta:
– Poderia fazer­me o favor de perguntar àquele casal o
322
OUTRAS PAIXÕES
que são um ao outro?
– Com certeza, minha senhora.
Ele foi lá e quando voltou disse a Nívea:
– Eles são casados. O que deseja mais?
– Nada. Obrigada. – E saiu com as lágrimas nos
olhos.
Voltou para casa e ligou logo para Gertrudes, que era
advogada, para tratar do divórcio.
– Tens a certeza de que é isso que queres?
– Claro. Não suporto traições.
– Devias falar com ele primeiro. O Arnaldo precisa
concordar. Se for amigável é mais fácil, embora ainda
demore algum tempo.
Na manhã seguinte, na cozinha, ela confrontou o
marido sobre uma amante, mentindo:
– Já sei o teu segredo. Ela ligou para mim a contar
tudo o que há entre vocês.
– Não sei do que estás a falar. – Balbuciou denteando
um pedaço de pão.
– Já sei que tens uma amante há algum tempo e que
há promessas de amor futuro.
– Não é possível.
– Quero o divórcio. – Declarou com prontidão,
colocando as mãos em cima da mesa.
– Por acaso tu tens algum e queres que eu também
tenha?
– Não mudes a conversa. – Protestou, intimando – Eu
sei mais do que tu pensas.
323
OUTRAS PAIXÕES
– Estou tão bem aqui contigo e com o Gastão. – Disse
ele, levantando­se da mesa enquanto bebia o café,
resmungando. – Mas eu quero a minha liberdade.
– Assim não. Fica com ela e eu vou­me embora daqui.
– Não faças isso. – E olhou­a, depois de abandonar a
chávena no lava­louças. – Para que gastar dinheiro com
advogados? Estamos bem assim…
– Nós já não temos uma relação, parecemos uns
estranhos, nem falamos, apenas trabalho e mais trabalho.
Ele pegou­lhe nas mãos e perguntou:
– Que queres que façamos para inovar o nosso
relacionamento?
– Nada. – E baixou os olhos afastando­se. – Eu sei
que tu estiveste com uma mulher num restaurante e
tiveste a lata de a apresentar como tua esposa. Se queres
esse título para ela então deixa­me, vai com ela, não me
enganes. – E começou a chorar sentando­se na cadeira da
cozinha.
– Andaste a seguir­me? Já não confias em mim? –
Gritou desiludido. – Detesto que me vigiem. Parece que
já não és a mesma. Agora queres controlar­me todos os
passos!
– Não é isso. Somente quero mais atenção.
– Eu tenho o trabalho. Foi com uma amiga da redação
que eu jantei.
– Pois, é sempre isso que dizes: amigas e colegas de
trabalho, mas afinal tens uma amante.
– Então queres mesmo acabar?
– Sim. Já falei com a Gertrudes e ela vai tratar de
tudo, falta o teu consentimento.
324
OUTRAS PAIXÕES
– Está bem. Se é assim que queres, assim será.
– Porque não admites que tens outra?
– Ainda me custa acreditar que isso me tenha
acontecido. Mas me apaixonei mesmo por uma colega de
trabalho. Ela chegou lá há pouco tempo e cativou­me.
– Podes calar­te. Vai­te embora. – Ordenou exaltada
sem o olhar.
– Eu ainda não tive sexo com ela. – Confessou.
– Ai não! Por quê?
– Porque ainda não chegamos a essa parte. Não tenho
amante, no fundo.
– Então por que disseste que era a tua mulher? –
Confrontou­o.
– Porque estou a gostar mais dela do que de ti. Pensei,
de fato, em te trocar, mas ainda não tinha bem a certeza.
Estás a ajudar­me a decidir. – E sorriu andando para a
sala.
– Então isso quer dizer que vamo­nos divorciar? –
Bradou.
– Sim e vou tentar ser mais feliz com ela. –
Proclamou aproximando­se da porta de saída,
despedindo­se.
Ela ficou triste, mas desta vez não chorou, pensou em
arranjar também alguém, mas será que queria outra
pessoa para a fazer sofrer?
No outro dia ela voltou para casa dos seus pais e
Gastão ficou com o pai naquela casa em que o viu
nascer. Quando foi para a praia contou também às
amigas o que lhe sucedera. Eduarda ficou espantada:
– Pareciam um casal tão amigo!
325
OUTRAS PAIXÕES
– Mas ele já se cansou de mim. – Desabafou,
voltando­se depois para a Gertrudes, informando: – Vê
se tratas do divórcio depressa que quero que esse assunto
acabe.
– Vou tentar dar prioridade ao teu processo, mas tenho
outros mais antigos.
– Mas eu sou a tua amiga, tenho prioridade. Eu pago
bem.
– Sim. Vou dar prioridade ao teu.
Nívea gostava de ver os rapazes a jogar futebol. O
Cláudio jogava melhor que o filho, parecia mesmo um
jogador profissional. Mas o Gastão era melhor que o da
outra em muitas matérias da escola. Ela estava orgulhosa
do filho por lhe seguir as pisadas, apesar de não lecionar
a sua disciplina, era professor de inglês e alemão.
Uma tarde de verão, na bolsa de praia dela, apareceu
um bilhete em letras garrafais:
ESTOU APAIXONADO E ANDO À PROCURA DE
PARCEIRA.
GOSTARIA DE A VER A SÓS HOJE ÀS 21H NESTA
PRAIA.
UM ADMIRADOR SECRETO
Ela viu o bilhete ao chegar a casa e remexer na mala,
sorriu ao lê­lo. Adorou a ideia de ter um admirador
secreto e depois de um banho e do jantar, não hesitou em
ir, merecia alguém. Disse aos pais, que viam televisão:
– Vou dar uma volta para espairecer. Não se
preocupem que eu volto antes da meia­noite. – E sorriu.
– Sim, filha. – Responderam ambos sorridentes.
Ela foi de carro até ao local combinado. Não estava
326
OUTRAS PAIXÕES
frio e ainda não escurecera totalmente e havia candeeiros
públicos por perto. Ao chegar lá, antes de chegar à areia,
ao lado de uns bancos, reparou que havia um homem de
pé, voltado de costas, com um chapéu preto, uma t­shirt
branca e uns calções de ganga preta a combinar com os
chinelos. Pareceu­lhe familiar aquela estatura. Ele
voltou­se ao sentir os passos dela e achegou­se mais.
Também tinha óculos tal como ela.
– Quem és tu? – Perguntou corajosamente.
Ele acercou­se e estendeu o braço para lhe dar a rosa,
informando:
– O seu admirador secreto. Se não fosse assim não
tinha graça. – Acrescentou, entregando­lhe a flor.
Ela ficou surpreendidíssima quando pegou na flor e se
apercebeu de quem se tratava. Ele olhou­a de cima a
baixo, averiguando a sua saia xadrez e a sua blusa
branca, lisonjeando:
– Está muito bonita.
Ela agradeceu um pouco embaraçada, confessando
depois:
– Nunca pensei que fosses tu.
– Não tive coragem de lho dizer pessoalmente, mas
gostaria de me envolver consigo.
– Estás louco!?
– Já ando há algum tempo a gostar de si. Já tive com
outras, mas depois penso sempre em si.
– Eu tenho a idade da tua mãe e sou amiga dela, sou
mãe de um rapaz da tua idade que é teu amigo e da tua
irmã, nós… – e movimentou a mão em desacordo – não
podemos, não faz sentido. – E, dito isso, voltou­se.
327
OUTRAS PAIXÕES
– Espere. Não saia assim. – Ordenou suavemente
agarrando­lhe o pulso direito. – É por ser assim tão
chegada que me fui apaixonando.
Quando ela o olhou ele retirou o chapéu e pôs na
cabeça dela para brincar e fazê­la rir. O que, de fato,
aconteceu. E rapidamente tirou do bolso dos calções uma
máquina digital e tirou­lhe uma foto.
– Faça uma pose.
Como ninguém estava a ver ela deixou­se levar e
colocou as mãos na cintura. Cláudio estava a gostar cada
vez mais dela.
– Dê uma volta.
Ela virou­se de costas e voltou o rosto. Tiraram mais
algumas fotos e a seguir ambos se dirigiram até um
banco que estava perto. Ficaram lá sentados a ver as
estrelas e o mar.
Nívea pensou:
“Foi bom ter vindo. Sinto­me mais jovem, mais amada.”
– Queres dizer­me alguma coisa? – Inquiriu ele.
– Fala tu.
– Que pensou do meu bilhete?
– Gostei de o receber, depois da decepção com o meu
marido, era disso que estava a precisar. Somente pensei
que era alguém para a minha idade.
– Você deixa­me muito excitado.
Ela baixou a cabeça sem saber o que dizer. A noite
estava quente e ela não tinha frio nos braços nem nas
pernas.
A seguir Cláudio propôs­lhe:
328
OUTRAS PAIXÕES
– Quer ir até a um bar comigo?
Ela encarou­o com um olhar de quem não acreditava
no que estava a ouvir.
– Tu, afinal, queres mesmo um relacionamento?
– O meu bilhete foi bem claro.
– Não é adequado o nosso envolvimento.
– Bem… Mas você é divorciada.
– Mesmo assim, a diferença de idade é muita.
– Estiquei­me. – Respondeu atrapalhado. – Então
falemos de qualquer coisa. Eu espero o tempo que for
preciso.
– Não é questão de tempo… Tens de me esquecer.
– Não faça isso.
– Eu quero encontrar alguém, não nego, mas da minha
idade.
– Gosta de que tipo de música?
Pensou em não responder e ir embora, mas depois disse:
– Não sou muito exigente, ouço qualquer coisa. Mas
essencialmente pop e baladas.
– O meu favorito é pop/rock. Vamo­nos dar bem,
certamente. – E sorriu aproximando­se mais.
– Não insistas.
– Diz que não pode, mas não diz que não quer.
– Porque me falas assim? Vou dizer à tua mãe. –
Brincou seriamente.
– Diga, pode ser que não se zangue, já que é sua
amiga.
329
OUTRAS PAIXÕES
– Nem pensar. Não quero perder a sua amizade.
– E a sessão de fotos? Não teve valor?
– Tenho de ir. – E levantou­se. – Já passam das dez.
Ele levantou­se também e foi até ela, roubando­lhe
um beijo. Ela excitou­se e lembrou­se do seu marido. Há
tanto tempo que não tinha um beijo e um carinho!
– Porque não me afastou?
– Não sei. – Balbuciou baixando a cabeça indo em
direção ao carro.
Cláudio foi atrás dela e gritou­lhe:
– Toma o meu número de telemóvel?
Ela ignorou e abriu o carro.
– Vou­te dizer coisas que já não estás habituada a
ouvir.
Olhou­o e sorrindo atirou­lhe as palavras:
– Sério! Quais? As da idade da pedra?
Ele estacou a sua caminhada até ao seu carro e riu à
socapa.
– Procura alguém da tua idade. – Aconselhou
entrando no carro.
– Pois, talvez ainda não saibam tais coisas. Porém,
quero dizê­lo a si. – E chegou perto do carro dela.
Ela ignorou­o e arrancou com o veículo. Ele não
insistiu, entrou no seu carro e abalou atrás dela. Depois
teve uma ideia estapafúrdia e acelerou até cento e vinte
quilómetros e ultrapassou­a, atravessando o carro na
estrada mais à frente. Ela travou assustada.
Cláudio veio até ao carro dela e Nívea não parava de
rir.
330
OUTRAS PAIXÕES
– Parece que gostas mesmo muito de mim. – Deixou
escapar.
– Dê­me o seu número de telemóvel ou e­mail.
– Eu vou­te dar que é para ver se chego a casa, mas
não esperes que te envie alguma coisa.
– Vou lutar até ao fim por si.
Trocaram os números e ele enviava­lhe quase todas as
noites mensagens de bons sonhos e Nívea nunca
respondia.
No início de outro ano letivo, Nívea mudara­se para
um apartamento em Coimbra, dizia aos pais que não
queria estar longe da universidade, mas no fundo o que
ela queria era independência e esquecer que o seu
casamento fracassara e que voltara para a casa de
solteira. Além disso, ela esperava ocultamente que o seu
admirador secreto voltasse e que fosse morar com ela.
Quando pensava em Cláudio e na cena da praia sentia­se
uma adolescente. Nunca teve coragem de contar a quem
tinha confiança o que se estava a passar consigo. Nem o
próprio Cláudio sabia da sua mudança de sentimentos.
Não conseguira apagar o número dele do telemóvel, nem
as mensagens, nem o e­mail, nem a sessão de fotos, da
sua memória.
O novo verão na praia fora triste, não se sentia à
vontade com as amigas para falar do admirador secreto.
Não lhe apetecia ver os rapazes jogar. Pensou em ir
nadar e lá ficar, mas não podia fazer isso, o seu filho não
merecia. Então num ato brusco tirou o telemóvel e
enviou uma mensagem ao admirador secreto. Será que
ainda o era?! As amigas estavam deitadas na areia e nem
se apercebiam do que ela fizera. Cláudio demorou para
ver a sms. Ela resolveu ler um livro deitada na areia
331
OUTRAS PAIXÕES
como as outras.
Já tinha chegado ao carro com o Gastão quando sentiu
o sinal de mensagem, mas ignorou, embora tivesse a
curiosidade à flor da pele. Quando chegou a casa deixou
o filho ir ao wc primeiro e foi ver a mensagem do
telemóvel.
– Nunca pensei que fosse esperar tanto tempo para se
decidir a aturar­me. Encontro na praia às 21h. Bjs.
Desta vez o casal ficou sentado num banco a
conversar. Pareciam dois amigos. Ela confessou:
– Eu estou arrependida, um pouco, de te ter enviado a
tal mensagem, mas como estou sozinha no apartamento
lembrei­me de nós o ano passado na praia.
– Não precisas dizer mais nada. – Concluiu Cláudio
achegando­se para ela, beijando­a com ternura.
A conversa tomara um novo rumo, ele excitadíssimo
mostrou­lhe o quanto era homem. Ela ficou envergonhada.
– Falemos de nós: então queres ficar mais tempo com
os encontros na praia?
– Sim. É um local tão bonito e aconteceu­nos coisas
tão românticas aqui. – E sorriu.
– Vem comigo. – Pediu erguendo­se do banco e
levando­a pela mão para a areia.
– Para onde me levas? – Perguntou com um ligeiro
sorriso, entusiasmada com a ideia de estar com ele na
praia.
– Que tal o jogo do apanha na praia? – Propôs.
– Já fizeste isso com alguém?
– Sim. Mas contigo será especial. – E abraçou­a, antes
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OUTRAS PAIXÕES
de fugir para ela o apanhar.
– Não corras tanto, senão não consigo.
Ele parou e ela afastou­se, dando uns passos atrás,
afastando­se para um lado e para o outro sorridente.
– Surpreendes­me! – Exclamou sem a apanhar.
Ela gostou da brincadeira, mas deixou­se apanhar.
Parecia cena tirada de novela! Com o marido nunca
houvera semelhante coisa. Depois desse jogo ambos
pensaram em dar um mergulho.
– É pena somente virmos para aqui de noite. –
Lamentou ele.
Ela concordou.
– Gostaria de nadar contigo. E se nos
aventurássemos? – Sugeriu aproximando­se da água,
querendo levá­la também.
– A água deve estar fria. É melhor não. – Replicou
Nívea, recuando.
– Olha, eu vou entrar. – Informou Cláudio deixando
os chinelos na areia e despindo a camisa.
Ela baixou a cabeça para não o ver em tronco nu. Ele
desafiou­a:
– Não queres ir comigo? – E estendeu­lhe uma mão.
– É melhor ficar aqui. Vai tu. – Concluiu cruzando os
braços.
– Prometes que não te vais embora?
– Prometo.
Então ele tirou os calções de ganga e correu para o
mar. Nívea ficou a vê­lo e achou­se tonta por estar ali na
praia àquelas horas com um rapaz mais novo que o filho.
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OUTRAS PAIXÕES
Pensou em ir embora, mas algo a prendia àquele sítio.
Como poderia ser pecado ser feliz?! Estava a ter uma das
melhores noites!
Seus encontros foram cada vez mais frequentes e
deliciosos. Ele fora para o apartamento dela durante uns
dias e tinha a cópia da chave. Mentira à família dizendo
que ia para casa duma ex­colega com quem namorava.
– Não gosto nada de esconder coisas à tua mãe. Ela
não me vai perdoar de eu andar contigo.
– Ela não tem de te perdoar de nada, estarmos juntos é
bom, é justo sentirmo­nos bem. – E abraçou­a.
– Mesmo assim não vou arriscar contar a alguém.
Como consegues mentir e não sentir remorso?
– Não faço nada de mal. Fazer­te feliz é mau? –
Sondou, beijando­a em seguida.
– Claro que não. Se pudéssemos contar a todos ia ser
tão bom! – Desabafou com ar sonhador.
– Pois era, mas iam todos ficar escandalizados.
– É verdade, o meu pai de certeza que lhe daria um
ataque e a minha mãe ia ficar muito desiludida. A tua
família nunca mais me falaria, esperam que te cases
como a Camila com uma da tua idade e eu sou uma
divorciada da idade da tua mãe. – Lamentou com as
lágrimas nos olhos.
Ele enxugou­as suplicando:
– Não chores, parte­me o coração. Estás comigo, tens
de estar alegre. – E beijou­a com muito carinho para que
ela se excitasse e se esquecesse da tristeza.
De vez em quando, Cláudio fazia­lhe surpresas. Já lhe
dera um anel prateado que servira para marcar o dia em
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OUTRAS PAIXÕES
que o admirador secreto apareceu. Cantava karaoke para
ela, assim como ela para ele. Dava­lhe rosas, comprava
frutos afrodisíacos, champanhe, espalhava rosas pelo
quarto e acendia velas de cores diferentes cada dia. Ela
comprara pizza para comerem, de outras vezes galinha e
outros alimentos para preparar jantares deliciosos para
ambos.
Muitas vezes parecia que o resto do mundo não
existia e que eram apenas eles a habitar o planeta, como
se o mundo fosse o apartamento.
Uma noite foram a uma discoteca na cidade do Porto
juntos. Adoraram parecer um casal à frente das outras
pessoas e saírem do seu lugarejo! Mas mantiveram
sempre segredo da sua relação para não fazerem sofrer
entes queridos.
Lénia Aguiar
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OUTRAS PAIXÕES
Projeto
PAIXÕES CLANDESTINAS
OUTRAS PAIXÕES
HISTÓRIAS SELECIONADAS
A Editora Nanquim apoia e
utiliza softwares open source.
Foram utilizados os seguinte softwares
para a elaboração desse livro:
GIMP
INKSCAPE
SCRIBUS
Fonte utilizada: Liberation Serif, corpo 12.
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