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www.spbancarios.com.br nº 110 | maio de 2006 CORRESPONDENTE AGÊNCIA SEM CLIENTE, BANCO SEM BANCÁRIOS NOSSA CAIXA O DOCE NINHO DOS TUCANOS FILHOS DO SAMBA OS ESPELHOS DE JOÃO NOGUEIRA E BADEN POWELL NENHUMA ˜ FOI CANÇAO ` TOA A Os festivais mexeram com os rumos da música e da política brasileira Jair Rodrigues e Chico Buarque no encerramento do festival de 1966 cartaaoleitor Publicação mensal do Sindicato dos Bancários e Financiários de São Paulo, Osasco e Região – Rua São Bento, 413, Centro, São Paulo, CEP 01011-100, tel. (11) 3188-5200. www.spbancarios.com.br Presidente Luiz Cláudio Marcolino Diretor de Imprensa Hugo Tome Aquino Diretoria Adozinda Praça de Almeida, Adriana Oliveira Magalhâes, Aladim Takeyoshi Iastani, Alexandre de Almeida Bertazzo, Alexandro Tadeu do Livramento, Ana Paula da Silva, Ana Tércia Sanches, André Luis Rodrigues, Antonio Alves de Souza, Antônio Inácio Pereira Junior, Antonio Joaquim da Rocha, Antonio Saboia Barros Junior, Bruno Beneduce Padron, Camilo Fernandes dos Santos, Carlos Miguel Barreto Damarindo, Clarice Torquato Gomes da Silva, Claudio Luis de Souza, Cleuza Rosa da Silva, Daniel Santos Reis, Daniela Santana da Costa, Edison José de Oliveira, Edson Carneiro da Silva, Edvaldo Rodrigues da Silva, Elaine Cutis Gonçalves, Elias Cardoso de Morais, Ernesto Shuji Izumi, Flavio Ferraz Dutra, Flávio Monteiro Moraes, Irinaldo Venancio de Barros, Ivone Maria da Silva, Jackeline Machado, João de Oliveira, João Gomes da Silva, João Paulo da Silva, João Vaccari Neto, José do Egito Sombra, José Osmar Boldo, Jozivaldo da Costa Ximenes, Juarez Aparecido da Silva, Juvandia Moreira Leite, Karina Carla Pinchieri Prenholato, Leandro Barbosa da Silva, Leonardo Martins Pereira, Luiz Carlos Costa, Manoel Elidio Rosa, Marcelo Defani, Marcelo Gonçalves, Marcelo Peixoto de Araujo, Marcelo Pereira de Sá, Marco Antonio dos Santos, Marcos Antonio do Amaral, Marcos Roberto Leal Braga, Maria Cristina Castro, Maria Cristina Corral, Maria do Carmo Ferreira Lellis, Maria Helena Francisco, Maria Selma do Nascimento, Mario Luiz Raia, Marta Soares dos Santos, Mauro Gomes, Neiva Maria Ribeiro dos Santos, Nelson Ezidio Bião da Silva, Nelson Luis da Silva Nascimento, Onísio Paulo Machado, Osmar Rodrigues de Carvalho Junior, Paulo Roberto Salvador, Paulo Rogério Cavalcante Alves, Rafael Vieira de Matos, Raimundo Nonato Dantas de Oliveira, Raquel Kacelnikas, Ricardo Correa dos Santos, Ricardo de Almeida , Rita de Cassia Berlofa, Rogerio Castro Sampaio, Roseane Vaz Rodrigues, Rubens Blanes Filho, Sandra Regina Vieria da Silva, Tania Teixeira Balbino, Vagner Freitas de Moraes, Valdir Fernandes, Vera Lucia Marchioni, Walcir Previtale Bruno, Washington Batista Farias, William Mendes de Oliveira Diretores honorários Ana Maria Érnica, José Ricardo Sasseron, Maria da Glória Abdo, Sérgio Francisco da Silva Editores Paulo Donizetti de Souza - MTb 20.198 Vander Fornazieri - MTb 20.301 Impressão Bangraf tel. (11) 6947-0265 Capa Acervo Iconographia Tiragem 100 mil exemplares. Distribuição domiciliar gratuita aos associados GERARDO LAZZARI Telefones Sede: 3188-5200. Oeste: 3836-7872. Norte: 6979-7720. Leste: 6191-0494. Sul: 5641-6733. Paulista: 3284-7873. Osasco: 3682-3060. Centro: 3188-5295 Correspondente bancário na região onde mais existem agências bancárias no País criatividade do brasileiro, cantada em verso e prosa e representada, para o bem, nas páginas dessa revista – seja pelos campeões dos festivais e pelos pródigos filhos de Baden Powell e João Nogueira –, também funciona para o mal. Obra dessa química original, cursos são criados na USP, maior universidade pública da América Latina, mas só para quem pode pagar. Ou, para quem só pode pagar pouco, uma modalidade de atendimento bancário que recebe contas em lotéricas, lojas, mercadinhos. O correspondente bancário surgiu com a função de atender a população sem acesso aos bancos – aquelas de regiões onde as instituições financeiras não tinham coragem de instalar uma agência por não dar lucro. A partir desses rincões, os banqueiros gostaram da experiência: tanto que o correspondente bancário transformou-se em mais uma maneira de o sistema financeiro economizar. E não só com o atendimento prestado à população de renda “pouco interessante”, como com o trabalho daqueles que, por trás dos mais modestos balcões, fazem trabalho de bancário, mas não são reconhecidos como tal, nem na profissão, nem nos direitos. Economia às custas de atendimento e emprego precários só podia ser coisa da mente criativa dos banqueiros. Mas nem toda criatividade está a serviço da avareza. É o que mostram os especialistas que estão levando a homeopatia para o Sistema Único de Saúde, melhorando a eficácia e reduzindo custos de tratamentos. Ainda no clima de bom e barato, um passeio pelas curvas da estrada velha de Santos reserva boas surpresas. A A diretoria [email protected] REVISTA DOS BANCÁRIOS | 3 TRABALHO Bancarização sem bancário MAURICO MORAIS DO LADO DA AGÊNCIA Casa lotérica na rua Boa Vista, conhecida como “rua dos bancos” no centro de São Paulo Eles estão em lotéricas, farmácias, supermercados, lojas, e também trabalham para os bancos, que encontraram nos correspondentes bancários um modo barato de esvaziar agências de clientes e, no futuro, por que não de bancários? Por Cláudia Motta e Elisângela Cordeiro lém de fazer uma fezinha, comprar remédios ou qualquer outro produto, é possível colocar as contas em dia em estabelecimentos das mais variadas finalidades. Tudo por intermédio do correspondente bancário. Essa modalidade de serviço ganhou vulto nesta década e representa, do ponto de vista dos clientes, facilidade no pagamento sem enfrentar filas e constrangimentos com as portas giratórias. Para o comércio, os correspondentes trouxeram aumento da circulação de pessoas que, em alguns casos, impulsionam as vendas em até 80%. Para os bancos, é uma for- A 4 | REVISTA DOS BANCÁRIOS ma de baratear e transferir serviços que querem ver longe das agências. O emprego da mão-de-obra do correspondente bancário contratado pelas instituições financeiras cresce a uma velocidade espantosa, sem deixar claro a cargo de quem estão as respostas de questões como segurança, condições de trabalho e proteção dos direitos trabalhistas. De acordo com o Banco Central do Brasil, os correspondentes foram criados com o objetivo de ocupar os espaços deixados pelos “ajustes de mercado”, ou seja, os locais onde não é financeiramente interessante para os bancos manter uma agência em funcionamento. Com o tempo, e por liberalidade do com a consultoria KPMG, das cerca de 8 milhões de contas abertas em 2004, 90% foram por meio dos corbans. Em 2005, mais de 1 bilhão de transações movimentaram cerca de R$ 29 bilhões. O perfil de atendimento, a população de baixa renda, fica evidente: cada operação movimentou em média R$ 20,28. O fenômeno não é exclusividade nacional. Em países como França, Alemanha, Japão, Holanda, África do Sul, México, e com estratégias distintas, os correspodentes são responsáveis por trabalhar com a população não bancarizada. Origem Esse tipo de serviço foi identificado pela primeira vez em 1973. De lá para cá, seis resoluções liberaram e ampliaram o leque de atuação dos correspondentes bancários. O termo foi cunhado em resolução do BC de 1999. Hoje, eles podem quase tudo: pagamentos, recebimentos de contas diversas, recepção e encaminhamento de proposta de abertura de contas e depósitos, pedidos e análises de empréstimo e financiamento e cadastro, proposta de emissão de cartão de crédito, seguros, títulos de capitalização. Em tese, surgiram para atuar em localidades onde os bancos, por conveniência, não queriam estar. Mas a partir de 2000, quando coincidentemente começa a disparada no número de pontos de correspondentes, o BC acabou com a limitação que previa a instalação dos corbans somente em praças desassistidas por agências bancárias. Em tese, os corbans surgiram para atuar em localidades onde os bancos, por conveniência, não queriam estar. Mas a partir de 2000, o BC acabou com a limitação MAURICO MORAIS próprio BC, passaram a conviver, porta a porta, com grandes agências bancárias. Em seminário sobre o tema realizado em São Paulo, no mês de abril, o então diretor de Normas e Fiscalização do Sistema Financeiro do BC, Sérgio Darcy, informou que os correspondentes estão na base de uma das principais políticas sociais do governo Lula: as microfinanças. Aliados às cooperativas de crédito e ao microcrédito, os “corbans”, como costumam ser chamados nesses eventos, foram criados no final dos anos 90 e hoje são importante via de acesso dos cidadãos aos programas de transferência de renda, a exemplo do Bolsa-família. Além de estar na base de tão fundamental pirâmide, os corbans figuram hoje dentre as principais preocupações do sistema financeiro. Sérgio Darcy deixou o hotel em que ocorria o citado seminário voando para outra apresentação do BC sobre o mesmo tema. Somente no mês de abril, pelo menos três eventos com essa abordagem foram realizados na cidade de São Paulo. O interesse não é à toa. Em sua exposição, Darcy menciona a existência de 90.424 pontos de correspondentes distribuídos por todo o País até 2005, um crescimento de 42,38% em relação aos 63.509 pontos existentes no ano 2000. Entre 2000 e 2005 as agências bancárias tradicionais passaram de 16.396 para 17.572, aumento de 7%. Os números são, por vezes, desencontrados, já que o próprio Banco Central reconhece sua dificuldade em fiscalizar esse apressado crescimento. De acordo PREGOS E PARAFUSOS Loja de ferragens na rua Florêncio de Abreu, também no centro de São Paulo. A Federação dos Bancos não vê problemas REVISTA DOS BANCÁRIOS | 5 A Federação Brasileira de Bancos (Febraban), naturalmente, não vê problemas nisso. Destaca o forte impacto social do correspondente para a população de rincões que antes tinha que se deslocar para pagar um carnê ou receber a aposentadoria. “Mesmo nos grandes centros há uma economia substancial para a população que, por exemplo, ao pagar uma conta em um mercado próximo, deixa de gastar, muitas vezes, o equivalente a 10% do valor de uma conta apenas com transporte”, comenta a entidade, por intermédio de sua assessoria. E ressalta ainda que a atuação dos corbans é feita de forma “absolutamente acessória” à sua atividade principal. “Evidentemente, cada instituição financeira deve proceder a uma análise criteriosa das empresas que são contratadas.” Diante da questão trabalhista, a federação dos bancos acredita que, como a atuação dos trabalhadores correspondentes é “completamente acessória” à atividade principal do estabelecimento contratado, seus empregados estão vinculados à outra categoria profissional. “Não há qualquer justificativa para criação de vínculo entre esse empregado e o banco contratante. O correspondente deve aplicar a convenção ou o acordo coletivo da categoria correspondente aos seus empregados.” Empregos e responsabilidade O diretor do Banco Central, Sérgio Darcy, conta que tem recebido inúmeras consultas a respeito da responsabilidade final dos bancos e alerta: “Correspondente bancário tem que ter atuação acessória, se ti6 | REVISTA DOS BANCÁRIOS GERARDO LAZZARI Porém... Os trabalhadores não pensam assim. “Os correspondentes vêm de uma proposta de bancarização que está sendo distorcida”, avalia o presidente do Sindicato dos Bancários de São Paulo, Osasco e Região, Luiz Cláudio Marcolino. “Os bancos estão se aproveitando das filas que eles mesmos criaram e da dificuldade de acesso que as pessoas mais humildes têm às agências bancárias. Empurram serviços e usuários que não lhes interessam para os correspondentes. Economizam com o pagamento de trabalhadores e com a manutenção das agências, mas prestam um atendimento precário. Podem estar criando um grave problema para o futuro, inclusive com questões trabalhistas”, avalia. Marcolino lembra que o primeiro passo nesse sentido foi a informatização dos serviços. “Os clientes e usuários, apesar de pagarem altas tarifas, são empurrados ao auto-atendimento dos caixas eletrônicos, telefones ou internet. Uma economia enorme para os bancos, já que uma operação na boca do caixa custa cerca de R$ 1,10 enquanto que nesses meios eletrônicos fica em torno de R$ 0,10”, destaca o presidente do Sindicato. Os correspondentes recebem por documento autenticado valores variáveis, de acordo com o contrato, entre R$ 0,10 e R$ 0,50 por autenticação. Mais economia para os bancos, que querem seus funcionários vendendo produtos para clientes de poder aquisitivo mais atraente e batendo cada vez mais as absurdas metas. PRECARIZAÇÃO DO TRABALHO E DO ATENDIMENTO Luiz Cláudio Marcolino: “Os bancos empurram serviços e usuários que não lhes interessam para os correspondentes. Economizam com o pagamento de trabalhadores e com a manutenção das agências, mas prestam um atendimento precário” ver exclusividade, vira franchising”. Para ele, esse é um processo irreversível, mas é preciso tomar cuidado para não se transformar em outra coisa. Darcy destaca que, graças aos corbans, desde 2002 nenhum município brasileiro está desassistido dos serviços bancários: em 1999, eram 1.679 as cidades sem acesso a esse tipo de serviço. A Rede Fácil é um exemplo. Com 2.200 correspondentes atuando no estado de Goiás, processa cerca de 3 milhões de contas por mês. Fernando Cabral, um dos responsáveis pela empresa, foi ao seminário em São Paulo, perguntar ao diretor do BC sobre a possibilidade de isentar os correspondentes de CPMF. “Às vezes não consigo fazer o depósito no banco e sou obrigado a colocar todo o dinheiro na minha conta”, contou Cabral, expondo um flanco de fragilidade na segurança desse tipo de serviço. Cabral também falou das dificuldades que tem: “Sou eu que contrato carro-forte, segurança, nem sempre compensa”. Para os bancos compensa e muito. De acordo com Maria Diamices Chevalier, do Banco Regional de Brasília, a instalação de uma agência bancária pode custar entre R$ 300 mil e R$ 400 mil. Um posto de atendimento bancário, em torno de R$ 70 mil. Os gastos com um correspondente – mesmo com o tipo de relação de extrema responsabilidade como a do BRB, que disponibiliza treinamento e subsidia segurança – ficam na casa dos R$ 18 mil. A implementação dos correspondentes bancários tem sido, assim, uma forma barata, encontrada pelos bancos, de esvaziar agências de clientes e, no futuro, por que não de bancários? Enquanto os estabelecimentos comerciais celebram o maior movimento em suas lojas, nas agências o advento dos correspondentes, se não gerou, ainda, redução no nível de emprego no setor – que continua na casa dos 400 mil postos de trabalho no Brasil –, com certeza impede a criação de novas vagas. “Quanto menos a população for às agências, menor será a necessidade de funcionários dentro dela, o que reflete diretamente na redução de custos com salários e infra-estrutura e interessa muito aos bancos”, ressalta o presidente do Sindicato dos Bancários, Luiz Cláudio Marcolino. Dados da Febraban revelam que entre 1994 e 2004, o número médio de empregados por agência caiu de 33 para 23. Em contrapartida, o número de contas correntes aumentou: a média de 67 contas por bancário em 1993, passou para 184 em 2004. “Toda iniciativa de uma instituição financeira é seguida pelas outras empresas com o objetivo de ocupar mercado, principalmente se a novidade representar redução de custos, o que quase sempre passa pela precarização do emprego. O risco é de os bancos trocarem os funcionários das agências pelos correspondentes bancários”, alerta. O Sindicato elaborou e entregou ao Ministério do Trabalho e Emprego um dossiê que defende a regulamentação dos empregados em postos de correspondentes bancários. Também vem realizando encontros com diretores do Banco Central e de outros ministérios para tratar do tema. O BC sinaliza a cria- ção de um projeto de lei que regulamente de vez o serviço. “Esses trabalhadores estão ligados ao comércio, mas fazem trabalho de bancário, e não foram contratados para isso. Essa situação deve mudar para o bem de todos, inclusive dos usuários, que estarão mais seguros sendo atendidos por um profissional reconhecido”, diz Marcolino. “A população não vive mais sem os correspondentes bancários e os bancos não têm como assumir esses serviços em sua rede”, avalia Tarcisio Luiz Dalvi, titular da área na Caixa Econômica Federal. Na Caixa, responsável por grande parte dos programas sociais do governo federal, das 3,5 bilhões de operações realizadas em 2005, 1,3 bilhão passaram pelos 13 mil correspondentes bancários ligados ao banco público. Clientes Utilizar os serviços bancários oferecidos nos estabelecimentos comerciais deve ser uma opção do cliente e não uma imposição de atendimento do sistema financeiro. Esta é a avaliação do Procon, órgão estatal de defesa do consumidor, que destaca entre as indicações de que os bancos selecionam os clientes que mais lhe interessam financeiramente, a reformulação no layout das agências e a modificação da estrutura de atendimento, voltado à recepção personalizada de potenciais investidores, com o aumento do número de gerentes. Para o Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor (Idec), a tentativa de afastar os clientes das agências é uma prática constante dos bancos. “Inicialmente veio a informatização dos serviços, o que levou o BC a lançar uma norma de que o banco não poderia se negar a atender os clientes que preferem ser tratados por caixas humanos”, lembra Marcos Guedes, advogado e gerente jurídico do Idec. Na mesma linha, o Procon orienta os clientes que se sentirem discriminados a exigir seus direitos de cidadão, podendo até processar o banco e cobrar indenização por danos morais. O atendimento por meio dos correspondentes, além de baratear custos, traz outro atrativo para as instituições financeiras: os corbans estão fora da legislação de segurança e dos 15 minutos de espera para atendimento. O Procon defende a extensão da aplicação da Lei das Filas, como é conhecida, também para correspondentes bancários. “Há a necessidade de o legislador municipal estudar a abrangência desta Lei”, avalia a diretora do órgão Marli Aparecida Sampaio. O Idec alerta ainda sobre o respeito às regras do Código de Defesa do Consumidor, já que o cumprimento das normas de proteção aos clientes – seja para garantir segurança ou qualidade na prestação de serviços – é de responsabilidade solidária entre os prestadores envolvidos, no caso, correspondentes e instituições financeiras. Caso os bancos consigam ficar fora das regras do código, como buscam por meio de Ação Direta de Inconstitucionalidade em análise no Supremo Tribunal Federal, a responsabilidade legal pela prestação de serviços, por meio de correspondentes bancários, ficará por conta exclusivamente dos donos dos estabelecimentos comerciais. ❚ Uma agência bancária pode custar entre R$ 300 mil e R$ 400 mil. Um posto de atendimento, em torno de R$ 70 mil. Os gastos com um corban ficam na casa dos R$ 18 mil REVISTA DOS BANCÁRIOS | 7 POLÍTICA Usa e joga fora Os tucanos apreciam o verbo investigar se o alvo é o governo alheio. Mas se a sujeira está em seu próprio ninho, preferem abafar. O uso da Nossa Caixa a serviço de aliados do PSDB é só uma pequena amostra cada semana surgem novas publicações. As incursões do ex-governador do Estado pelo mundo da comunicação, digamos, “alternativa”, vêm causando alguma dor de cabeça ao pré-candidato do PSDB à Presidência da República. A mais recente, denunciada discretamente pelos jornais em meados do mês de abril, é uma revista da Federação Paulista de Futebol que circulou entre os anos 2004 e 2005. Na edição PAULO PEPE A 8 | REVISTA DOS BANCÁRIOS nº 5, o então chefe do governo está na capa. Em outras cinco páginas da revista há propagandas do governo do estado – duas delas do banco Nossa Caixa. Essa não foi a primeira publicação em que anúncios pagos por recursos públicos fizeram par com entrevistas e capas em que figuravam o ex-governador. A revista Ch’an Tao, de propriedade do acupunturista de Geraldo Alckmin, Jou Eel Jia, também traz o pré-candidato ao Planalto na capa e acumula anúncios, dessa vez da Companhia de JAILTON GARCIA BOM-HUMOR Sindicato faz sátira de Lu Alckmin na Assembléia Legislativa (abaixo) e na porta da matriz da Nossa Caixa, no Centro Apuração O ex-governador, assim como outras lideranças do PSDB, a exemplo do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, são unânimes em discursar que tudo deve ser apurado. Só esqueceram de avisar a bancada tucana na Assembléia Legislativa. O mês de abril foi consumido em inúmeras tentativas de parlamentares do PMDB, do PT e de outros partidos que não compõem a base do governo, pela instalação de Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) para apurar todas as denúncias de aparelhamento do banco Nossa Caixa. Estão sendo convocados ou convidados a depor muitos dos personagens acima. A bancada de deputados ligados ao governo tem recorrido a todos os artifícios possíveis para evitar os depoimentos. O Sindicato dos Bancários, que há meses trava um intenso embate com o gover- no contra a privatização do banco e suas subsidiárias, mais uma vez entrou na parada. Desta vez, com uma série de manifestações para exigir respeito à instituição pública e as devidas apurações das denúncias. Um desfile de modas patrocinado por “Da Lu Alckman” lembrou o escândalo dos 400 modelitos chiques “doados” à ex-primeira dama do estado por um estilista. Também foram distribuídos centenas de fogões de brinquedo aos deputados esta- uma entre 69 denúncias com pedido de CPI que a bancada governista joga para baixo do tapete (veja quadro). E para esconder a sujeira, parece que vale ir buscá-la onde estiver. É essa a suspeita que paira sobre o episódio ocorrido com o corregedor da Assembléia Legislativa, deputado Romeu Tuma Jr. (PMDB). Ele teve seu escritório político invadido no início de abril e muitos documentos importantes, relativos à sindicância que apura essas denúncias, desapareceram. “Não posso acusar ninguém, mas minha experiência de 27 anos como delegado me diz que há algo errado. Nenhum bem material foi levado, somente os documentos”, conta Tuma. ISRAEL ANTUNES/FOLHA IMAGEM Transmissão de Energia Elétrica Paulista (Cteep). O acupunturista também é proprietário de um spa em que professores da rede estadual faziam cursos. O Sistema de Informações Gerenciais da Execução Orçamentária, da Secretaria da Fazenda de SP, informa que em 2005 foram pagos R$ 354 mil em diárias a esse spa, pela Secretaria de Educação – acusação que, então governador, Alckmin negava. A onda de denúncias começou pelo depoimento ao Ministério Público do ex-gerente de marketing da Nossa Caixa, Jaime de Castro Júnior. Ele informou que o banco público operou com duas empresas de publicidade, por mais de um ano, sem a licitação obrigatória por lei. Veículos de comunicação de uma série de deputados da base governista na Assembléia foram beneficiados por anúncios da Nossa Caixa, veiculados por essas empresas que atuavam sem licitação. Castro assumiu parte da culpa e apontou envolvimento de Roger Ferreira, ex-secretário de Comunicação de Alckimin; de Carlos Eduardo Monteiro, presidente do banco; e de Daniel Rodrigues Alves, do departamento jurídico. NOTÍCIA COM “TOTAL ISENÇÃO” Além do ex-governador como assunto de capa, revistas de amigos dos tucanos tinham em comum farta propaganda do governo de SP duais, numa alusão ao pagamento duplicado de fornos que foram doados pela Nossa Caixa às padarias comunitárias do estado – a gestão tucana do banco lançou a inovadora promoção “pague 1.000 e leve 500”. O Sindicato acompanha a pressão popular nas sessões que dizem respeito à instalação da CPI, para que essa não seja mais Usa e joga fora A Nossa Caixa é o último banco público do estado de São Paulo, mas vem sendo ameaçada pela possibilidade de privatização, principal marca do modo tucano de governar. Foi assim com o Banespa, vendido em novembro de 2000 para o grupo espanhol Santander. E com outras empresas como CPFL, Eletropaulo, rodovias e ferrovias estaduais, Comgás, CESP. A Nossa Caixa foi dividida em sete subsidiárias. A primeira, de cartões de crédito, teve a venda barrada, em 2005, por força de ação judicial promovida pelo Sindicato. Depois foi a vez da subsidiária de previdência e seguros que, a despeito da ação dos bancários, foi para o controle da também espanhola Mapfre. E já está previsto para este mês de maio o leilão da subsidiária de capitalização. A Mapfre foi retirada desse processo, pelos mesmos erros apontados pela Justiça na ação contra a venda da subsidiária de seguros. “A Justiça já reconheceu o caráter privatista desse processo de venda das subsidiárias e informou que é inconstitucional privar o estado de seu último banco público. Esse modo de governar do PSDB já prejudicou muito o país, com a privatização de importantes empresas públicas em níveis federal e estadual. Isso tem que parar”, diz Raquel Kacelnikas, diretora do Sindicato. ❚ O QUE OS TUCANOS PAULISTAS ESCONDEM Algumas das 69 denúncias que tiveram pedidos de CPIs engavetadas pelo PSDB na Assembléia Legislativa Irregularidades em empréstimos à Eletropaulo, privatizada pelo governo em 1998. ■ Problemas de precariedade no abastecimento de água pela Sabesp. ■ Suspeitas de desvio de verbas e de irregularidades nas obras do Rodoanel, do Metrô, de rebaixamento da calha do rio Tietê e da Companhia Habitacional de Desenvolvimento Urbano. ■ Irregularidades na gestão da Febem. Desvios de recursos e má gestão dos recursos da TV Cultura. Indícios de corrupção nos programas Viva Leite e Alimenta São Paulo. ■ Aumento da violência policial no estado. ■ Prática de tráfico de influências na contratação de leiloeiros e empresas para a realização de leilões da administração direta e indireta. ■ ■ ■ REVISTA DOS BANCÁRIOS | 9 EDUCAÇÃO Excelência ilegal Ministério Público denuncia inconstitucionalidade de cobrança em cursos de especialização oferecidos pelas fundações da USP Cida de Oliveira m certificado de pós-graduação latu sensu com a marca da prestigiada Universidade de São Paulo. Era tudo o que queria o tecnólogo Laércio Rodrigues Gomes. Disposto a melhorar seu currículo e ter mais chances no concorridíssimo mercado de trabalho, submeteu-se ao também concorrido processo seletivo da Fundação Carlos Alberto Vanzolini, vinculada à Escola Politécnica da USP. Aprovado, cursa hoje um programa que tem duração de dois anos. Ao final, receberá o título de especialista em administração industrial. As aulas acontecem duas vezes por semana, no período noturno, num dos prédios da renomada Poli. “Os professores são excelentes e há uma boa infra-estrutura, com instalações, equipamentos e material didático adequados. Além disso, o preço da mensalidade, R$ 459, é acessível se comparado a cursos oferecidos por outras instituições, como a U 10 | REVISTA DOS BANCÁRIOS FGV”, elogia o pós-graduando. “Melhor que isso, só se for de graça.” Sonho de muitos estudantes como Laércio, o fim da cobrança de mensalidade deste e de tantos outros cursos oferecidos pelas chamadas fundações de apoio da USP há muito vem sendo defendido por alunos e professores. O debate em torno do tema, mais acalorado no período entre 2000 e 2002, parece reacender, mesmo que aos poucos, desde que o Ministério Público (MP) entrou com uma ação na Vara da Fazenda Pública pedindo o fim das mensalidades naquela universidade. “A prática é ilegal. Não se pode usar o espaço público com fins particulares”, resumiu Luiz Fernando Rodrigues Pinto Junior, promotor de Justiça da Cidadania da Capital. A questão, segundo ele, é simples: os artigos 206 e 207 da Constituição Federal são claros quanto ao princípio da gratuidade do ensino em estabelecimentos oficiais. “As fundações até podem continuar oferecen- do cursos pagos, desde que fora das dependências da universidade estadual”, ressaltou. O MP chegou a pedir, via liminar, a paralisação dos programas enquanto a Justiça não julgar o processo. O juiz negou o pedido, entendendo que a continuação das aulas não representa danos à instituição de ensino. Caixa preta Para a Associação dos Docentes da USP (Adusp), a questão não é tão simples. “Esses cursos são uma caixa-preta na qual começamos a fuçar de 2000 para cá”, disse César Minto, presidente da entidade. Os levantamentos a que ele se refere resultaram em um dossiê sobre as atividades das mais de 30 fundações vinculadas à USP, além do livro Universidade Pública e Fundações Privadas: Aspectos Conceituais, Éticos e Jurídicos (www.adusp.org.br/cadernos/fundacao.pdf), finalizado no segundo semestre de 2004. Nas primeiras das 154 páginas, o texto afirma que instituições como essas, privadas e sem fins lucrativos, ditas de apoio à universidade, são organismos que ao longo das últimas décadas disseminaram-se de forma ampla e preocupante no âmbito do ensino superior público. Ainda segundo o documento, um intenso trabalho de pesquisa e análise desses organismos na USP permitiu constatar que elas têm representado a privatização e a desvirtuação de atividades de ensino, pesquisa e extensão em uma instituição de caráter estritamente público. Esse processo, segundo a Adusp, começou a acentuar-se principalmente a partir de 1987, quando houve crescimento ininterrupto de cursos DENTRO DE CASA No prédio da Poli, no campus da USP, funciona a Fundação Carlos Alberto Vanzolini, que promove cursos pagos TRABALHANDO COM O INIMIGO César Minto, da Adusp, questiona também a participação nos cursos pagos de quem deveria, na verdade, combater essa política pagos e das fundações. O avanço foi brecado em 2002, devido à pressão de entidades representativas, quando a pró-reitoria de pós-graduação decidiu suspender a autorização para novos cursos pagos de especialização. “A ligação dos professores da universidade com essas instituições é outra questão”, ressaltou César Minto. Ele refere-se ao fato de várias autoridades, como reitores, diretores, chefes de departamento e coordenadores – a quem caberia fiscalizar as fundações e seu relacionamento com a universidade – participarem ou terem sido participantes delas, quando não dirigentes. Além disso, há distorções provocadas pela quebra da isonomia salarial. Em muitos casos, a remuneração adicional obtida pelas atividades ali desenvolvidas chega a superar o salário em duas vezes ou mais. Fundações lucrativas Dados da Coordenadoria de Administração Geral, que serviram de base ao documento da Adusp, sustentam que essas instituições criadas para apoiar a universidade têm sido mais apoiadas do que apoiadoras. Entre 1999 e 2000, somente 21 das 30 fundações efetuaram repasses. O total repassado no período somou R$ 22 milhões. Em 1999 foram R$ 9 milhões; em 2000, R$ 13 milhões. O orçamento da USP, vinculado ao repasse de 5,0295% da cotaparte do ICMS, foi de R$ 918 milhões em 1999 e R$ 1,173 bilhão em 2000. Assim, os repasses das 21 fundações foram equivalentes a, respectivamente, apenas 1% e 1,5% do total do orçamento da universidade. André Kaysel Velasco Cruz, graduando em ciências sociais e diretor do Diretório Central de Estudantes, enxerga outro aspecto negativo. “Na odontologia de Ribeirão Preto, algumas disciplinas estavam sendo tiradas da grade curricular e incluídas em cursos pagos”. Justamente aqueles que usam como chamariz o nome da USP. A cobrança de mensalidades, que envolve aspectos legais, éticos e políticos, tornou-se uma espécie de tabu na cúpula da USP. Ninguém quer falar sobre o assunto. A reitoria não se pronuncia por causa dos inúmeros compromissos assumidos pela nova reitora, Suely Vilela, segundo afirmou sua assessoria de imprensa. Já a pró-reitoria de Cultura e Extensão Universitária responde que a legislação da universidade determina que os cursos de extensão, como são considerados todos aqueles que cobram mensalidade, sejam geridos por uma unidade ou órgão ligado a ela. “A gestão administrativa e financeira das atividades de extensão podem ser compartilhadas com entidades de apoio, mediante contrato ou convênio, desde que a conveniência para a universidade seja devidamente justificada. Tendo em vista as características e os objetivos de cada curso de extensão, poderão ser cobradas taxas para a seleção, inscrição e custeio, a critério da unidade ou órgão”, afirmou o pró-reitor Sedi Hirano, acrescentando que os recursos financeiros captados por essas atividades são regidos pelas normas em vigor na USP e pela legislação estadual e federal. Dona de uma das maiores receitas, segundo documento da Adusp, a Fundação Vanzolini se limitou a afirmar, através de sua assessoria, que gerencia os cursos de especialização ofertados pelo departamento de engenharia de produção da Escola Politécnica mediante convênios. Cursos esses que deveriam ser gratuitos, conforme o Ministério Público. ❚ REVISTA DOS BANCÁRIOS | 11 A vida MEMÓRIA VIVA Menino olha quadro que relembra o massacre em que seu pai foi morto depois de Eldorado O massacre de Carajás escancarou para a sociedade brasileira, a miséria, a violência, a exploração no campo e seus reflexos na pobreza das cidades Por Luciano Delion ez anos se passaram e Avelino Germiniano, agricultor de 51 anos, ainda traz alojadas no corpo balas disparadas pelos policiais na tragédia que ficou mundialmente conhecida como o Massacre de Carajás. “Fui tirando aos poucos. Tenho três ainda, mas me considero vitorioso por estar contando uma história dessas”. O sentimento de Avelino é compartilhado pelas 690 famílias que vivem no assentamento 17 de Abril, área de 18 mil hectares da antiga Fazenda Macaxeira, latifúndio improdutivo que só foi desapropriado após o sacrifício humano dos semterra. Na tarde de 17 de abril de 1996, a PM do Pará investiu contra os três mil trabalhadores que participavam de uma manifestação do MST na rodovia PA-150, próxima à cidade de Eldorado dos Cara- D 12 | REVISTA DOS BANCÁRIOS jás. Dezenove caíram mortos ali mesmo, três morreram em seguida por causa das seqüelas e outros 75 ficaram feridos, no corpo e na alma. A repercussão do massacre iniciou um novo capítulo na história da luta pela terra. “A sociedade brasileira acordou para a situação de miséria, violência e exploração em que vivem os trabalhadores no campo”, avalia Marina dos Santos, da coordenação nacional do MST. No Brasil, apenas 26 mil proprietários detêm 46,8% do total da área cadastrada para produção agrícola. O governo federal afirma que está fazendo sua parte. “Em 2005, o Incra assentou 127 mil novas famílias, o maior desempenho da reforma agrária da história do País”, relata em documento o Ministério do Desenvolvimento Agrário. “Nos três anos do atual governo, os assentamentos realizados somam 245 mil famílias, que representam a geração de mais de 850 mil postos de trabalho no campo.” O documento aponta, ainda, que em 2005 foram investidos R$ 2,3 bilhões, mais da metade na obtenção de terras por desapropriação e compra de imóveis. O restante, em assistência técnica, educação, moradia, construção de estradas, eletrificação e obras de infra-estrutura. O governo afirma que cumpriu 95% da meta de assentar 260 mil famílias, nos três primeiros anos. Até o final desse mandato, quer completar 400 mil famílias assentadas. Os movimentos sociais acham, no entanto, que o governo ainda está devendo. O MST reivindica, para este ano, o assentamento imediato das 170 mil famílias acampadas à beira de estradas pelo País e a atualização do índice de produtividade, que define as terras passíveis de desapro- PATRÍCIA SANTOS/FOLHA IMAGEM TERRA MARCELO CASAL/ABR priação. A Contag, confederação que reúne 3,6 mil sindicatos representantes de 15 milhões de trabalhadores rurais, também quer a atualização do índice. “O usado atualmente é de 1976”, afirma Paulo de Tarso Caralo, secretário de Política Agrária da Contag. O geógrafo Ariovaldo Umbelino, professor da USP e especialista em Política Agrária, afirma que a tabela com os novos índices de produtividade já existe e que a pressão de latifundiários e do agronegócio impede a sua aplicação. Umbelino mostra que o pequeno produtor é quem sustenta a agricultura no Brasil. São quase 4 milhões de pequenas propriedades, numa área de 123 milhões de hectares que absorvem 95% da mãode-obra do campo e respondem pela maior parte da produção de alimentos: 53,6% dos vegetais. Enquanto isso, cerca de 32 mil grandes propriedades ocupam dez milhões de hectares a mais, absorvem apenas 0,3% da mão-de-obra e produzem 15,2% dos cultivos. Essa agricultura voltada ao agronegócio aposta na monocultura, principalmente para exportação, e resulta na degradação do meio ambiente. MST e Contag acusam o agronegócio e os latifundiários de promoverem a desigualdade e a violência no campo. Segundo estudos da Comissão Pastoral da Terra, foram assassinados no País, nos últi- SOBREVIVENTE No assentamento 17 de Abril, José Carlos exibe tomografia que mostra a bala que ainda carrega na cabeça mos 20 anos, 1.500 trabalhadores rurais e lideranças. Apenas 76 casos foram a julgamento. A morosidade e a omissão dos poderes Judiciário e Legislativo contribuem com essa situação. A questão fundiária só alcança avanços porque os trabalhadores seguem a luta, relembra Miguel Pontes da Silva, agricultor do assentamento 17 de Abril. “Consegui a terra, constituí família, tenho casa, meu tra- balho. Acho que se não tivesse acontecido isso, a gente ainda estava lutando, beirando essas estradas, nos acampamentos. E hoje, tudo o que nós temos aqui, devemos a esses companheiros que tombaram”. ❚ Os depoimentos dos agricultores do assentamento 17 de Abril foram extraídos do documentário Eldorado dos Carajás – 10 anos, produzido pelo Setor de Comunicações do MST O RECONHECIMENTO DE UMA FAMÍLIA Assim como a luta pela terra, Dida e Darci sempre acreditaram que a luta pelo amor e contra o preconceito valem a pena. E estão vencendo A notícia de que seria finalmente assentada teve um significado especial para Zildenice Ferreira dos Santos, a Dida: “Depois de sete anos de acampamento, conseguir um lote é uma vitória. Mas para mim o mais importante é ter a Darci no mesmo contrato, sermos reconhecidas como uma família”, enfatiza. “Eu queria ter essa segurança para minha companheira. Se acontecer qualquer coisa comigo, fico tranqüila, sabendo que o lote é de nós duas”. Dida e sua companheira Darci Maria Batista da Costa são uma das 181 famílias assentadas em abril deste ano pelo Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) no Assentamento Zumbi dos Palmares, localizado em Iaras, município a 270 quilômetros da capital paulista. Juntas há três anos, a união do casal é uma situação que foi sendo assimilada pelo círculo de parentes, amigos e pela comunidade, e que se consolidou com a gradativa superação das dificuldades. Darci era casada na época em que se conheceram – na virada de 2000 –, e houve momentos de tensão com o ex-marido, que não aceitava a sua escolha. Além do preconceito, havia a preocupação dele com os quatro filhos, mas hoje chegaram a um entendimento. A reação do ex-companheiro fez com que a coordenação do acampamento enfrentasse abertamente a questão, e a avaliação é a de que o processo educou as pessoas para uma postura de respeito quanto às opções de cada um. O reconhecimento, por parte de um órgão governamental, de que elas representam uma unidade familiar fortaleceu a confiança no futuro em comum e numa vida melhor para elas e os filhos. Darci concorda, e relembra: “Foi uma felicidade muito grande conseguir o lote, onde a gente vai prosperar. Minha filha mais velha, a Janete, de 18 anos, também está animada”. Os seus outros três filhos moram atualmente com o ex-marido, mas vêm sempre visitá-la nos finais de semana e se divertem muito com Dida, que gosta de fazer bagunça com as crianças. A moradia improvisada, os utensílios, tudo ainda é precário, mas a limpeza e a organização nos dois pequenos cômodos demonstram o capricho de Dida e Darci. As duas têm experiência anterior com agricultura e demonstram entusiasmo para iniciar efetivamente as atividades produtivas no lote. Dida ajudou o pai na lavoura até 1994, quando a família deixou o Rio Grande do Norte e se mudou para São Paulo: “Meu pai era meeiro, e a gente plantava milho, feijão, maxixe...” Já Darci é de Borebi, um município potiguar próximo, e foi cria- da com uma família que tinha gado leiteiro – tanto que no acampamento era ela quem ajudava a tirar o leite a ser distribuído. Dida, integrante da coordenação do núcleo de assentamento, explica que ela e Darci planejam o cultivo de feijão, milho, mandioca e amendoim, além da pecuária leiteira, conforme as reuniões com as demais famílias. Como qualquer outra família assentada há pouco tempo, o casal alterna momentos de expectativa e ansiedade com os novos desafios que passam a enfrentar com o recebimento do lote. Como qualquer família, preocupam-se com os filhos, contam do namoro da mais velha e relatam histórias sobre os mais novos. Elas gostariam de oficializar a união, mas enquanto isso não é possível, comemoram o fato de terem sido assentadas juntas. Segundo Dida, da mesma forma que na luta pela terra nunca pensou em desistir, mesmo nos momentos mais difíceis, sempre continuou acreditando: “E vamos dar continuidade, dentro do que pode ser feito”. REVISTA DOS BANCÁRIOS | 13 ENTREVISTA 14 | REVISTA DOS BANCÁRIOS Intactos espelhos Marcel teve em Baden um rigoroso pai-professor. Violão: insista, toque, ouça, repita. E Diogo, num zigue-zague incansável, fugiu das caneladas e foi fazer canções como as que fez seu pai Por Paulo Donizetti de Souza les se conheceram ainda crianças. Moleques de brincar juntos, de correr entre as árvores na casa do pai de um deles, em Itanhangá (região da Barra da Tijuca, zona oeste do Rio de Janeiro). Cresceram juntos. Curtiram muita música juntos. E que músicas! E perderam os pais com um intervalo de apenas três meses, em 2000: João Nogueira morreu em junho, aos 58 anos, e Baden Powell, em setembro, aos 63. Louis Marcel, filho de Baden, tem 24 anos – e não teve dúvida em escolher o violão, instrumento que tornou o seu pai um dos músicos mais conhecidos do mundo. Meia-atacante de talento e flamenguista como o pai, Diogo, 26 anos, filho de João, ainda tentou o futebol. Mas uma contusão no joelho fez com que ele se voltasse para a música, seguindo os passos do pai, sambista do primeiro time. Dos pais, além da veia musical – e brasileiríssima –, receberam conselhos básicos, como ter honestidade, humildade, “ser sincero, não querer passar por cima de ninguém”, explica Diogo, carioca da Barra, que escolhe repertório para o seu primeiro CD. O amigo Marcel lançou ano passado o primeiro disco no Brasil. Nascido em Paris, onde o pai morou, tem três trabalhos no exterior. Agora, os amigos de infância ensaiam um projeto que inclui turnê lá fora. E o nome não poderia ser mais sugestivo: DNA Nogueira Powell. “Começa na obra dos nossos pais e continua na nossa. Tem de começar devagarzinho”, explica Marcel. Tradição é assim. Diogo – que em março ganhou Davi, seu primeiro filho –, certamente concorda. RODRIGO QUEIROZ/BYTE BEACH E Revista dos Bancários – E se você não fosse músico, o que seria? Marcel Baden Powell – Não sei, mas com certeza seria um péssimo qualquer coisa. Aqui em casa sempre teve muita música, a todo instante. Por exemplo, o meu irmão (Philippe, 28 anos, pianista), quando criança, dormia ouvindo Chopin. E a gente foi crescendo dessa maneira. Acho que, inconscientemente, ele (Baden) foi contaminando a gente com música. Até que chegou uma hora em que a gente foi pedir aula. A princípio, ele não queria muito, dizia que não tinha paciência. Ele disse que ia nos colocar com uma professora, mas nós dissemos “queremos ter aula com você”. RdB – Já você tentou ser jogador de futebol... Diogo Nogueira – Comecei com 10 anos no Barra Futebol Clube, que não existe mais, onde é a sede do Vasco agora. O meu pai sempre falou: “Você segue o caminho que quiser, não vou REVISTA DOS BANCÁRIOS | 15 atrapalhar em nada, se precisar eu te ajudo”. Sempre me chamava para fazer parte da banda dele, como backing vocal, mas como uma diversão, nada sério. Eu me dediquei mesmo ao futebol. RdB – Você foi parar no E.C. Cruzeiro, de Porto Alegre. Diogo – Cheguei lá, comecei a treinar com o grupo, depois de um mês os dirigentes começaram a fazer contrato, já estava jogando de titular. Chegou no terceiro mês, que era o último de testes, teve um amistoso para o técnico realmente selecionar os jogadores que iam assinar com o clube e fazer parte do campeonato estadual. Nesse jogo, peguei uma bola, driblei o quarto-zagueiro, veio o lateral e torceu o meu joelho (esquerdo). Aí fiquei meio desanimado, já tinha 23 anos, era complicado entrar no futebol com essa idade. E tinha uma segunda opção, de ser cantor. Abracei a música com todas as forças. Antes de acontecer isso tudo, já vinha fazendo um trabalho com o Marcel, ele me chamava para cantar com ele nos bares. RdB – Como vocês se conheceram? Marcel – Pelos nossos pais. Diogo – Meu pai era muito amigo do Baden, saía lá de casa de madrugada, chegava aqui, acordava o Baden, “eu vim aqui só pra ouvir você tocar”, essas coisas. Marcel – Nesta mesma casa, que tem várias histórias... Diogo – Então, conheço Marcel desde pixotinho, ficava correndo por aí, brincando. Diogo Marcel RdB – E o Baden professor, como era? Marcel – Ele começou a pegar firme (depois de aceitar ser professor). Ele falou: “Vocês vão ter de ser escravos do instrumento, escravos da música”. Só não quis ser professor no primeiro instante, porque depois foi até demais (risos). Eram oito, dez horas por dia, que era o tempo que ele praticava... Era muito exigente com ele mesmo. Mas esse negócio de ficar estudando várias horas depende, às vezes você tem de deixar o instrumento quieto. RODRIGO QUEIROZ/BYTE BEACH RdB – Que semelhanças ou diferenças você vê entre seu estilo de tocar e o dele? Marcel – Semelhanças, todas. As diferenças ainda vão nascer. Tenho 14 anos de carreira, meu pai tinha 50. Claro que você tem de criar a sua identidade musical. Nesse disco (Aperto de Mão, lançado em outubro do ano passado), já consegui um pouco, mas é uma coisa que está se formando ainda. 16 | REVISTA DOS BANCÁRIOS RdB – Ainda é difícil fazer música no Brasil? Marcel – Depende. Claro que lá fora tem mais aceitação, mas aqui também tem o seu mercado. Quando a gente vai para o exterior, percebe que tem um interesse maior, até por causa de papai, que fez uma carreira muito boa lá fora. RdB – Você também tem medo de avião, como ele? Marcel – Não. Ano passado mesmo eu estava viajando bastante e às vezes você pára pra pensar... Se eu começar a ter medo estou frito. Só agora que comecei a me preocupar um pouco, mas nada comparado ao medo que ele tinha. Acho que ele acabou se acostumando. RdB – E que tipo de música você gosta? Marcel – De uma maneira geral, escuto música brasileira. Adoro João Bosco, Djavan, Ivan Lins, Noel, Gilberto Gil, Leny Andrade, gosto muito dela... Estou sempre ouvindo, sempre comprando, inclusive uma galera nova que está chegando aí. RdB – Gosta de um pop rock, por exemplo? Marcel – Não sou muito fã, sou mais a música genuinamente brasileira mesmo. Ouço muito esses novos instrumentistas também. Na Lapa, também tem muito movimento, muita coisa de música instrumental. Estou toda hora comprando disco, o meu carro parece uma discoteca. RdB – Você foi ver o show dos Rolling Stones (na praia de Copacabana)? Marcel – Não. Eu estava na Bahia, mas não teria vontade de ver, não é muito a minha praia... Mas um cara que curte, e eu sou fã dele, mas não porque ele curte isso, é o Armandinho, que para mim, no bandolim, não tem outro. Quando fui fazer o show na Bahia em fevereiro, ele falou que foi ver o show dos Rolling Stones... Mas eu continuo fã dele... RdB – O Marcel não viu os Rolling Stones. E você? Diogo – Não gosto muito não, mas gosto d´O Rappa... Marcel – Esse é legal. Diogo – O som é bem legal, tem uma verdade ali... Marcel – D2 também é legal. Diogo – A gente fez até um trabalho com a obra do meu pai, alguns trechos... (Canta: “Sorria/Meu bloco vai descendo a cidade/Vai haver carnaval de verdade/O samba não se acabou/Sorria/O samba mata a tristeza da gente/Quero ver o meu povo contente/Do jeito que o rei mandou”). Acho interessante essa mistura do rap com o samba. Marcel – O meu irmão trabalhou com o D2 durante um ano e meio. Ele também usou um trecho do Canto de Ossanha (de Baden e Vinícius de Moraes) nesse último CD. RdB – E você, o que gosta de ouvir? Diogo – Baden, João... Chico (Buarque), Nélson Cavaquinho, Noel Rosa, gosto de coisas bem lá pra trás. Desde criança. Praticamente na barriga eu já estava na roda de samba. RdB – Você já tem até comunidade no Orkut... Diogo – Graças a Deus, as pessoas têm aceitado o nosso trabalho. É difícil um jovem da nossa idade cantar um samba na linha mais tradicional, e o jovem parar e ouvir. As pessoas estão aceitando mui- Violão Vadio to mais o samba mais antigo do que esses pagodes, que não têm cultura nenhuma. Não tenho nada contra os pagodes de hoje em dia, mas acho que a tradição tem de ser mantida sempre. DIVULGAÇÃO RdB – Marcel contou que o pai resistiu um pouco a ser professor, mas depois virou um carrasco. E o seu pai? Diogo – Ele dava toques mais no lance da melodia: corta a frase, não prolonga... Coisas básicas do canto. Ele também nunca teve aula de canto, era abrir a garganta e soltar aquele grave proeminente. (Baden Powell/Paulo César Pinheiro) RdB – E como foi quando você e seu pai cantaram juntos pela primeira vez? Diogo – Dividindo o palco, foi uma loucura, porque cantei para 30 mil pessoas na Bahia. Eu tremia. Foi emocionante, maravilhoso. Eu tinha 16, 17 anos. Marcel – Na primeira vez, eu tinha 9 anos, foi numa boate, era o último dia da temporada. O Raphael Rabello (violonista, morto em 1995) sentado na primeira fila... Toquei choro, Brasileirinho, coisas “facinhas”... De lá para cá, a gente começou, fizemos o primeiro disco, viajamos, ele começou a ensinar como sobe no palco, como pisa... RdB – Você está para lançar o primeiro CD. É difícil? Diogo – É difícil, porque você tem de lidar com inveja, pessoas que querem usar você para ganhar dinheiro, dar uma pernada. Você tem de estar sempre atento, buscar as pessoas certas. Para viver de música, tem de estar sempre correndo atrás de trabalho. Marcel – É engraçado, porque nas outras profissões tem uma parada que não tem na música. Por exemplo, você está fazendo uma faculdade de Medicina, Direito, tem sempre um estágio, você tem uma remuneração pequena ou média... Eu nunca vi ninguém fazer estágio de música. Tem mês que dá, outro que não dá... RdB – Tem alguma música de que você gosta mais? Marcel – Violão Vadio (Baden e Paulo César Pinheiro), gosto pra caramba. RdB – Para você, Espelho é inevitável... Diogo – É uma música muito forte, difícil de cantar. Tem vezes que engasga e não dá, porque você acaba enxergando um filme. (Pára alguns segundos) É difícil. Você bota emoção, engole um pouquinho e vai que vai. ❚ Espelho (João Nogueira e Paulo César Pinheiro) DIVULGAÇÃO RdB – E como sobe no palco? Não é só subir? (Um olha para o outro, e os dois sorriem). Diogo – Não, o palco é um altar. Marcel – E a música é uma entidade. Diogo – Tem de fazer uma oração, e entrar com força. Marcel – Não vou citar nomes, mas tem gente que pisa no palco e você vê logo que o cara não tem tarimba. Novamente juntos, eu e o violão Vagando devagar por vagar Cantando uma canção qualquer, só por cantar Mercê da solidão Vagueando em vão por aí Nós vamos seguir, outra rua, outro bar Outro amigo, outra mão Qualquer companheira, qualquer direção Até chegar a qualquer lugar Qualquer que seja a morte a esperar Jamais meu violão me abandonará Se eu vivi, foi inútil viver Já mais nada me resta saber Quero ouvir meu violão gemer Até me serenizar Nascido no subúrbio nos melhores dias Com votos da família de vida feliz Andar e pilotar um pássaro de aço Sonhava ao fim do dia ao me descer cansaço Com as fardas mais bonitas desse meu país O pai de anel no dedo e dedo na viola Sorria e parecia mesmo ser feliz Ê, vida boa Quanto tempo faz Que felicidade! E que vontade de tocar viola de verdade E de fazer canções como as que fez meu pai Num dia de tristeza me faltou o velho E falta lhe confesso que ainda hoje faz E me abracei na bola e pensei ser um dia Um craque da pelota ao me tornar rapaz Um dia chutei mal e machuquei o dedo E sem ter mais o velho pra tirar o medo Foi mais uma vontade que ficou pra trás Ê, vida à toa Vai no tempo vai E eu sem ter maldade Na inocência de criança de tão pouca idade Troquei de mal com Deus por me levar meu pai E assim crescendo eu fui me criando sozinho Aprendendo na rua, na escola e no lar Um dia eu me tornei o bambambã da esquina Em toda brincadeira, em briga, em namorar Até que um dia eu tive que largar o estudo E trabalhar na rua sustentando tudo Assim sem perceber eu era adulto já Ê, vida voa Vai no tempo, vai Ai, mas que saudade Mas eu sei que lá no céu o velho tem vaidade E orgulho de seu filho ser igual seu pai Pois me beijaram a boca e me tornei poeta Mas tão habituado com o adverso Eu temo se um dia me machuca o verso E o meu medo maior é o espelho se quebrar REVISTA DOS BANCÁRIOS | 17 SAÚDE A homeopatia chega ao SUS A despeito do desconhecimento de seus métodos e de contrariar interesses nem sempre científicos, a homeopatia evolui com a ciência médica e já traz avanços também ao sistema público de saúde Por Cristina Judar e Miriam Sanger. Fotos de Gerardo Lazzari 18 | REVISTA DOS BANCÁRIOS utilização da homeopatia nos tratamentos de saúde sempre foi assunto polêmico em todo o mundo. Primeiramente por basear-se em fundamentos difíceis de serem compreendidos: como aceitar uma corrente que determina que a substância que induz a um certo sintoma possa também curar a doença que o provoca? Como compreender que extratos ínfimos de matérias minerais, vegetais e animais possam ter o mesmo poder de cura dos antibióticos? Mas não apenas isso. Por trás da polêmica que gira em torno do assunto há também interesses financeiros. Afinal, a medicina tradicional ocidental está estabelecida há séculos – e trazendo grandes lucros à potente indústria farmacêutica internacional. Frente a esse panorama, a inclusão ofi- A cial da medicina homeopática no Sistema Único de Saúde (SUS) brasileiro foi considerada uma grande vitória por médicos, entidades e pelos pacientes que a utilizam. A aprovação da Política Nacional de Medicina Natural e Práticas Complementares – que inclui a homeopatia – pelo Conselho Nacional de Saúde, concluída em fevereiro de 2006, possibilitará o atendimento gratuito a um número muito maior de pacientes e trará benefícios definitivos não só ao público – em especial o de baixa renda, sem possibilidades de acesso à rede privada de atendimento –, mas também ao governo. “Inúmeros trabalhos realizados dentro e fora do serviço público de saúde demonstram que pacientes tratados com a homeopatia custam menos”, afirma a farmacêutica Márcia Gutierrez, que atua há 20 anos na área, é diretora do ICEH-Escola de Homeopatia e membro da Associação Brasileira de Farmacêuticos Homeopatas. Essa economia tem três motivadores principais: os remédios são mais baratos, a média de atendimento anual por paciente é reduzida e a homeopatia raramente utiliza exames complementares para seus diagnósticos. Segundo a cardiologista-homeopata Walcymar Estrela, membro da Comissão de Saúde Pública da Associação Médica Homeopática Brasileira e ex-chefe do Departamento de Terapêuticas NãoConvencionais do SUS de Juiz de Fora (MG), sua experiência com a utilização da homeopatia na saúde pública comprova estas afirmativas. “Em Juiz de Fora, gastamos, anualmente, cerca de 18 reais com o tratamento homeopático de cada paciente. Além disso, ele retorna menos – em média, três vezes por ano – e raramente necessita de atendimentos emergenciais, mesmo quando apresenta problemas de saúde crônicos”, enumera Walcymar. Outro fator de impacto no custo é a baixa utilização de tecnologia instrumental. “De cada 100 pacientes atendidos, apenas cinco são encaminhados para a realização de exames”. Por tudo isso, a medida proporcionará uma redução sensível nos gastos com saúde pública. “O custo da medicina tradicional está cada vez mais alto, tornando-se praticamente inviável ao Estado”, afirma Márcio Armani, cirurgião infantil e vice-presidente da Associação Paulista de Homeopatia. Mas existe um aspecto que ainda precisa ser equacionado: o sistema público terá de criar condições para atender ao número crescente de pacientes. “O exercício da homeopatia não é simples. Como o processo é mais detalhado e a consulta leva mais tempo, será necessário ajustar o atual padrão de atendimento ambulatorial”, afirma. BARATO E EFICIENTE Márcia Gutierrez: “Inúmeros trabalhos realizados dentro e fora do serviço público de saúde demonstram que pacientes tratados com a homeopatia custam menos” REVISTA DOS BANCÁRIOS | 19 Jogo de interesses Em alguns países, como a Índia, a homeopatia faz parte das políticas de saúde pública. Outros a baniram: na Argentina, por exemplo, ela é proibida em algumas províncias. No Brasil, cerca de 9 milhões de pessoas tratam-se com homeopatia. Com a inclusão no SUS, este número certamente crescerá. Isso não quer dizer, no entanto, que a polêmica em torno de sua eficiência se esvaziará. De tempos em tempos, são publicadas pesquisas – que muitas vezes não identificam a serviço de quem foram produzidas – lançando novas informações ao mercado. Em agosto do ano passado, por exemplo, a revista médica britânica The Lancet publicou uma delas, realizada pela Universidade de Berna, na Suíça, que apresentava a seguinte conclusão: os pacientes tratados com remédios homeopáticos não tiveram resultados diferentes dos obtidos por aqueles que apenas ingeriram doses de placebo (substâncias que não provocam efeito sobre o organismo). Conforme avaliaram os estudiosos da instituição, os remédios homeopáticos teriam apenas efeito psicológico. “Essas pesquisas são subsidiadas por grandes laboratórios e indústrias farmacêuticas, que, anualmente, movimentam milhões com a patente de medicamentos”, acredita Armani. “Mesmo que a homeopatia não seja uma real ameaça a esses gigantes, tirando deles apenas um pequeno percentual de lucro, essas empresas são tão gananciosas que, sempre que possível, utilizam a mídia para nos combater”. A homeopatia apresenta, para uns, ares de “bruxaria”. Para outros, é a solução para qualquer tipo de problema de saúde – mesmo aqueles que, aparentemente, surgem PARECIA INSOLÚVEL Ana Lúcia buscou na homeopatia a cura para suas constantes dores de cabeça: “Hoje sou muito mais tranqüila e equilibrada” 20 | REVISTA DOS BANCÁRIOS sem nenhuma causa. A professora de educação infantil Ana Lúcia Jaen buscou o método para fugir de um sintoma que parecia insolúvel. “Todos os dias, no final do expediente, sentia dores de cabeça, e acabava com elas com um comprimido de AAS (ácido acetilsalicílico).” Preocupada com os efeitos nocivos da ingestão diária do medicamento, Ana resolveu procurar um homeopata. “Após uma consulta de uma hora, o médico receitou que eu tomasse duas ‘bolinhas’ em jejum e retornasse após 40 dias para uma nova consulta. Não acreditei que fosse dar certo. Perguntei o que deveria fazer caso tivesse dores durante esse período. Ele sorriu e disse que, caso precisasse, poderia ligar para ele. E não precisei ligar. As dores simplesmente desapareceram”, conta Ana Lúcia. Atualmente, a professora – que também já tratou com a homeopatia problemas de bursite e sintomas de tensão pré-menstrual – passa por consultas de acompanhamento a cada seis meses. “Hoje sou muito mais tranqüila e equilibrada. Para a homeopatia, a questão do equilíbrio é fundamental. Ela ajuda a atingir esse estado de espírito e, com isso, ficamos menos propensos a adoecer.” Dominar o problema A microempresária Ângela Amado considerou ter esgotado as tentativas com a alopatia. Há cerca de 12 anos, seu filho Ricardo, na época com 9 anos, sofria sérias crises de bronquite, que eram solucionadas com visitas ao pronto-socorro e emprego de inalações, antibióticos e antiinflamatórios. “Seguindo os conselhos de minha sogra e de uma amiga, procurei a homeopatia, pensando que não ia obter nenhuma melhora”, conta Ângela. Logo na primeira crise, o médico receitou para seu filho algumas medicações, que deveriam ser tomadas de hora em hora. Passado um mês, Ricardo teve outra crise, da qual se recuperou rapidamente. A partir daí, começou a tomar os remédios em intervalos cada vez maiores e em dosagens mais fracas. “Surpreendentemente, três meses após o início do tratamento as crises pararam. Hoje ele usa a homeopatia para tudo, até para gripes”, revela Ângela. “Tenho a im- O QUE É HOMEOPATIA A palavra homeopatia vem do grego homoios (semelhante) e pathos (doença). Está baseada na “lei da semelhança”, segundo a qual quanto mais os efeitos de uma determinada substância ingerida se aproximam dos sintomas do paciente, maior será a sua capacidade de cura. O tratamento é totalmente focado no indivíduo, e não na doença – psique e corpo são considerados indissociáveis e o que se busca é o equilíbrio emocional e físico. Por essa razão, o médico homeopata aplica, durante a consulta, a anamnese, ou seja, um verdadeiro questionário a respeito de diferentes aspectos da vida da pessoa, não se restringindo apenas às informações sobre a doença. Se o diagnóstico clínico é enxaqueca, por exemplo, o médico vai inquirir o paciente a respeito de suas modificações de humor, de transpiração, seu apetite, seu sono, suas características cotidianas, as situações que deflagram crises etc. Por isso as sessões costumam ser longas. Os remédios homeopáticos são prescritos individualmente, em forma de glóbulos (bolinhas de açúcar imersas na substância determinada) ou gotas – além de pastilhas e pó para aspiração, fórmulas menos utilizadas –, seguindo critérios rígidos de dinamização, uma técnica que visa ao desenvolvimento da força medicamentosa latente na substância através de sucessivas diluições e sucussões. O médico alemão Samuel Hahnemann, um revolucionário insatisfeito com a medicina de sua época, foi o responsável pela sistematização, em 1796 – considerado o ano de nascimento da homeopatia –, de todos os conhecimentos gerados sobre o tema nos séculos anteriores. ODONTOLOGIA DE RESULTADO Joyce: “Com a homeopatia, posso fazer a associação entre o emocional e o físico e tenho sucesso em 90% dos casos” pressão de que, depois do tratamento, ele descobriu ser capaz de dominar o problema e hoje é uma pessoa mais segura, confiante, saudável e feliz.” Diversas especialidades médicas também estão encontrando novos caminhos através das técnicas homeopáticas, como a odontologia. A dentista-homeopata Joyce Mattos é um desses exemplos. A médica atende a pacientes especiais, em tratamento pré ou pós-câncer e que são submetidos a quimioterapia ou radioterapia na cabeça e no pescoço. “Os pacientes irradiados apresentam secura na boca, ardência e inflamações na mucosa bucal. Na alopatia, nem existe tratamento eficaz para ardência. Com a homeopatia, posso fazer a associação entre o emocional e o físico e tenho sucesso em 90% dos casos. Em apenas uma semana, o problema se reduz incrivelmente ou é curado por completo”. Joyce, que também realiza extrações e implantes dentários, raramente faz uso de antibióticos. Antes e depois do procedimento cirúrgico, ela costuma receitar alguns remédios homeopáticos, capazes de deixar o paciente mais calmo – o que faz com que, durante a operação, ele salive pouco e sofra menos sangramento. “Normalmente, os pontos levam cerca de uma semana para serem retirados. Com a homeopatia, o pós-operatório é muito melhor e a recuperação é mais rápida. Com isso, a remoção dos pontos pode ser feita em um tempo menor.” ❚ Para saber mais ■ Associação Médica Homeopática Brasileira (www.amhb.org.br/nuke) ■ Associação Paulista de Homeopatia (www.aph.org.br) ■ Associação Brasileira de Farmacêuticos Homeopatas (www.abfh.com.br) REVISTA DOS BANCÁRIOS | 21 CAPA FOTOS: ACERVO ICONOGRAPHIA DISPARADA DE EMOÇÕES Em 1966 o povo estava dividido: de um lado os torcedores de A Banda, de Chico Buarque, do outro os apaixonados por Disparada, de Geraldo Vandré (página ao lado), interpretada por Jair Rodrigues. Como num bom clássico de futebol, deu empate e os dois subiram ao palco juntos para cantar 22 | REVISTA DOS BANCÁRIOS Há quatro décadas, festivais marcaram a história musical brasileira e abalaram a estrutura política do País. Hoje a fórmula sobrevive, mas faltam ouvidos e espaço para a boa música brasileira Por Vitor Nuzzi Estava à toa na vida R festival”, compara o produtor. Antes do que ficou conhecido como o Festival da Record, a TV Excelsior havia feito dois festivais. Em abril de 1965, com vitória de Arrastão (Edu Lobo e Vinícius de Moraes), interpretada por Elis Regina, e em junho de 1966, com Porta-estandarte (de Geraldo Vandré e Fernando Lona) em primeiro lugar, defendida por Tuca e Airto Moreira. A própria Record havia organizado um concurso no final de 1960, sem tanta repercussão – ganhou O Pescador, de Newton Mendonça. Mas o festival FINAL DE COPA Zuza era engenheiro de som no festival de 1966, considerado um evento comparável à Copa do Mundo ANA OTTONI/FOLHA IMAGEM esponda rápido, e não vale acionar o Google: quem ganhou os festivais de música de 1966 e de 2005? É possível que você não saiba nenhuma das respostas. Mas também é possível que o resultado de 40 anos atrás seja mais conhecido que o do ano passado. Em outubro de 1966, duas composições terminaram empatadas, ao final de um processo que começou com a seleção de 36 entre 2.635 inscritas, até chegar a doze. Era o 2º Festival da Música Popular Brasileira, o primeiro promovido pela TV Record. Há quatro décadas, as vencedoras foram A Banda, do novato Chico Buarque – que naquele ano lançou o seu primeiro LP –, e Disparada, do à época mais conhecido Geraldo Vandré, em parceria com Théo de Barros. Em setembro de 2005, no festival organizado pela TV Cultura e que teve 5.198 inscrições, houve apenas uma vencedora: Contabilidade, de Danilo Moraes e Ricardo Teperman. À frente das duas competições, Solano Ribeiro sustenta que qualidade continua sobrando na música brasileira. “Hoje em dia, a produção musical só peca pela falta de exposição. Essa geração está muito mais preparada do que aquela, que era de músicos intuitivos”, afirma. Para ele, faltam referências à atual geração. “No primeiro festival (na extinta TV Excelsior, em 1965), a referência era a Bossa Nova. No segundo, a referência era o primeiro AGÊNCIA ESTADO CAMINHANDO E CANTANDO Hoje recluso, Geraldo Vandré foi o maior ícone da era dos festivais de 1966 representou uma explosão. “A música era uma válvula de escape. Mas tivemos uma série de coincidências. Além de a televisão privilegiar música de qualidade, tivemos uma geração de compositores talentosíssimos”, lembra Solano Ribeiro. De fato, a safra era farta. No LP do festival de 1966, nem todos os intérpretes puderam estar presentes, por motivos de contrato com gravadoras. Assim, Jair Rodrigues, Nara Leão, Roberto Carlos e Elza Soares tiveram de dar lugar a... Chico Buarque, Geraldo Vandré, Maysa e Paulinho da Viola. O LP traz curiosidades como, Canção de não Cantar, de Sérgio Bittencourt, defendida por Hebe Camargo. O júri também tinha gente do ramo, como o jornalista Sérgio Cabral, o professor Décio Pignatari e os maestros Júlio Medaglia e César Camargo Mariano. As reuniões eram realizadas na casa do pai de Júlio, no Alto da Lapa, em São Paulo – com direito a um boneco de borracha batizado de Sdruff. O boneco tinha um apito que servia para identificar os trabalhos de má qualidade – um prenúncio do que mais tarde seria a buzina do Chacrinha. Para música ruim, a única saída era sdruffar. “O Sdruff servia para relaxar. A gente tocava sinos, gritava, cantava”, lembra Solano, falando do clima dos encontros. “Era sempre uma reunião muito democrática, cordial.” Nem tudo era obra-prima, mas os programas de música na Record já mostravam que havia uma geração promissora. REVISTA DOS BANCÁRIOS | 23 Faltam ouvidos “Para quem estava no meio, ficou evidente que havia uma grande florada na música brasileira. Não é no festival que a gente começa a perceber isso”, lembra o crítico Zuza Homem de Mello, engenheiro de som na época do evento de 1966 – muitos daqueles músicos, observa, já apresentavam programas na televisão. “Aquela final foi um acontecimento nacional, parecia uma final de Copa do Mundo. Lembro de pessoas que me procuravam para conseguir uma entrada, quem conseguia era considerado um sortudo”, recorda. O talento musical continua existindo, afirma Zuza. “Está se deixando vazar pelos dedos muita coisa boa. O que falta são ouvidos mais apurados para perceber que isso existe”, diz ele, para quem o Brasil vive “o auge do mau gosto”. Intérprete de Disparada, em 1966, o cantor Jair Rodrigues concorda. Para ele, faltam oportunidades para que os bons compositores apareçam. “Tem muita coisa para ser mostrada, mas precisa ter abertura. Nos barzinhos, na noite, você encontra. Na televisão e no rádio, está difícil”, comenta. Para ele, é um erro tentar comparar festivais e épocas tão diferentes. “Não haverá festivais iguais àqueles. Éramos felizes, e sabíamos. Fizemos história, e estamos na história. Mas ainda há muita coisa para ser dita musicalmente.” Vice-campeão no festival da Cultura com Achou! – parceria com Luiz Tatit, interpretada pela cantora Ceumar –, Dante Ozzetti também se queixa da falta de espaço. “Falta de talento não tem. Hoje, os músicos são melhores tecnicamente, e os arranjadores também. Mas o cara faz uma música e só consegue apresentá-la em pequenos espaços. Está ruim até para os medalhões.” Ele também ressalta a diferença de estrutura entre os atuais e os antigos festivais. “Naquela época, você tinha uma efervescência cultural vinda das universidades, e a TV encampou isso. Os artistas e compositores eram contratados da Record e tinham exposição diária na mídia. Hoje, a TV deixou de apresentar o que é novo, criativo”, compara Dante. PASSEIO NO PARQUE Gilberto Gil era só mais um baiano que morava em São Paulo quando foi... Chico x Vandré: empate? “É curioso pensar que A Banda de Chico e Disparada de Vandré empataram nesse concurso, quando se tem em mente que aquela canção de Chico, que o tornou definitivamente popular, está muito aquém de sua grandeza como poeta e músico, enquanto a Disparada é muito superior ao que Vandré fez antes ou depois.” A análise sobre o resultado do festival de 1966 promovido pela Record é de Caetano Ve- loso, em seu livro Verdade Tropical, de 1997. O resultado de 1966 dá o que falar até hoje. Zuza Homem de Mello sustenta que o júri escolheu A Banda, mas decretou o empate por imposição de Chico. A mesma versão é defendida no livro Chico Buarque, da jornalista Regina Zappa. “Isso não é uma polêmica”, diz Zuza, enfático. “Não existe contestação, nem duas versões do mesmo fato. Simplesmente eu estava com os votos.” 24 | REVISTA DOS BANCÁRIOS O organizador do festival contesta, e fala em especulação. “Antes da decisão, se fez uma reunião, e nela prevaleceu, sim, o Chico. Mas o consenso era de ver primeiro as apresentações, quando ficou evidente que o empate seria o resultado mais justo”, afirma Solano Ribeiro. “Foi empate mesmo. No último dia, o auditório ficou dividido. Foi algo que iluminou a cabeça dos jurados, e o público também ficou feliz”, diz Jair Rodrigues. nagem à Força Aérea Brasileira. Pode ser visto às vezes andando pelo centro de São Paulo. Jair Rodrigues conversou com Vandré, por telefone, em meados do ano passado. “Ele perguntou quando eu iria fazer um disco só com as músicas dele.” FOTOS: ACERVO ICONOGRAPHIA QUEM LÊ TANTA NOTÍCIA? No início Caetano era só alegria, mas em 1968 foi vaiado com É Proibido Proibir ...premiado com Edu Lobo no festival de 1967 As trajetórias dos compositores seriam bem distintas. Chico voltou ao País em 1970, após pouco mais de um ano na Itália, e retomou uma carreira de sucesso. Prepara-se para lançar mais um CD, Carioca, em maio. Depois de vagar por Chile e França, Vandré retornou ao Brasil de forma nebulosa, em 1973. Fez música esporadicamente, mas se recusou a voltar ao mercado – sua obra mais conhecida desde então é Fabiana, composta em 1985 em home- Cenas de festival “Então é isso que é a juventude que diz que quer tomar o poder?”, dizia um transtornado Caetano Veloso diante da platéia que, em setembro de 1968, o impedia de cantar É Proibido Proibir no Teatro da Universidade Católica (Tuca), em São Paulo. “Aquilo não foi em função da música, mas uma posição equivocada daquela juventude, que teoricamente deveria estar atenta, engajada, mas não entendeu o recado.” Eram tempos de ditadura militar, e É Proibido Proibir foi considerada música “alienada”. Na final do festival da Record de 1967, o compositor Sérgio Ricardo não conseguiu cantar Beto Bom de Bola, sob as vaias e os protestos. “Vocês são uns animais!”, gritou. Para completar, quebrou o violão no banco e o arremessou na direção da platéia. “Foi uma cena marcante, independentemente de estar certo ou errado. Hoje, provavelmente essa cena seria cortada”, comenta Zuza Homem de Mello. “A televisão é completamente diferente. Os programas são mais pilotados, há um rigor que não existia em termos de acabamento. Isso dava uma naturalidade maior.” Protestos à parte, o festival de 1967 premiou simplesmente: Ponteio (Edu Lobo e Capinam), Domingo no Parque (Gilberto Gil), Roda Viva (Chico Buarque), Alegria, Alegria (Caetano Veloso) e Maria Carnaval e Cinzas (Luiz Carlos Paraná). Chico Buarque e Geraldo Vandré se “enfrentariam” novamente no 3º Festival Internacional da Canção (FIC), organizado pela Globo em 1968. O júri escolheu Sabiá, de Chico e Tom Jobim, deixando Pra não Dizer que não Falei das Flores (ou Caminhando) em segundo lugar. O público que lotava o Maracanãzinho vaiou, considerando a música de Vandré mais politizada. Pouco tempo depois, seria proibida. “Os militares foram agressivamente contrários (à vitória de Caminhando). Deram um recado muito claro”, lembra Solano Ribeiro. No final daquele ano, viria o Ato Institucional número 5 (AI-5), que marcou o endurecimento do regime militar e da perseguição a seus opositores. Em 1971, vários artistas – como Chico Buarque, Edu Lobo, Paulinho da Viola e Tom Jobim – inscreveram composições no 6º Festival Internacional da Canção (FIC), organizado pela Globo, e as retiraram de última hora para protestar contra a censura. Foi o próprio diretor artístico do festival, Gutemberg Guarabira – simpatizante da Aliança Libertadora Nacional (ALN), grupo de oposição ao governo –, que organizou a “conspiração”. Ele depois formaria trio com Sá e Zé Rodrix – e, posteriormente, a dupla Sá&Guarabira. O protesto era contra o governo, mas criou problemas entre os músicos e a emissora. A jornalista Regina Zappa relata que um representante da Globo pediu ao Dops o enquadramento de todos os participantes do protesto – e, sem sucesso, processou Chico Buarque por este tê-lo chamado de informante da polícia. A música inscrita por Chico, Que Horas São?, nem existia. A Globo manteve os FICs até 1972 – a vencedora foi Fio Maravilha, de Jorge Ben (hoje, Benjor). A Record manteve os seus festivais em 1968 (São São Paulo, Meu Amor, de Tom Zé) e 1969 (Sinal Fechado, de Paulinho da Viola). Até a extinta Tupi entrou em campo, em 1979, premiando Quem me Levará sou Eu, de Fagner e Dominguinhos, com destaque para Canalha, de Walter Franco. A Globo correu atrás e organizou um festival em 1980 (MPB Shell). Deu Agonia (Mongol), cantada por Oswaldo Montenegro. Voltou à carga em 1981, (Purpurina de Jerônimo Jardim, por Lucinha Lins). E em 1982 (Pelo Amor de Deus, de Paulo Debétio e Paulinho Rezende, com Emílio Santiago). A emissora investiria mais uma vez em festivais em 1985, quando Tetê Espíndola defendeu a vencedora Escrito nas Estrelas, de Carlos Rennó e Arnaldo Black. A última foi em 2000, com vitória de Tudo Bem, Meu Bem, de Ricardo Soares. Para Solano Ribeiro, a fórmula não é ultrapassada. “San Remo (Itália) está fazendo o seu 56º festival. Em Viña del Mar (Chile), já são 42 anos. O festival da Cultura foi feito dentro de um critério sério, conseguiu fazer um painel representativo do que é a música popular no Brasil. Mas o júri deixou o festival conservador, dava a impressão de que estavam em busca da composição perdida”, critica. Para Zuza, o festival de 2005 “não trouxe nenhum novo valor à MPB”. E para muitos jovens talentos que não conseguem espaço para mostrar sua arte, a fórmula festival continua sendo uma boa alternativa. Dezenas deles acontecem todos os anos pelo País. O 1º Festival da Nova Canção Brasileira, o CantaCUT, recebeu 919 inscrições e selecionou doze, com a final marcada para de abril em São Paulo – dias 29, com show de Chico César, e 30, com a bênção de Jair Rodrigues, padrinho do concurso. ❚ REVISTA DOS BANCÁRIOS | 25 COMPORTAMENTO Há muitas versões para a chegada do jogo de truco ao Brasil. Mas o fato, mesmo, é que ele saiu da roça, ganhou o asfalto e entrou na faculdade Por Cássio Ventura. Fotos de Paulo Pepe A arte de ganhar no grito arde de sábado, princípio de outono, clima ameno. A despeito da atmosfera, a temperatura acusava ligeira elevação no acanhado interior do bar Zap, no Brás. Principalmente quando alguém berrava o nome do jogo: truco! De impassíveis, só os troféus de acrílico que repousavam sobre a mesa em frente ao balcão, aguardando a hora de T ir pra casa dos vencedores. Esse jogo de cartas, outrora restrito a pequenas cidades do interior – a ponto de ter sido identificado como “jogo caboclo” –, migrou para a cidade grande e é mania até nos ambientes escolares, nos pontos de táxi, vestiários de fábricas, reuniões familiares, enfim, nos mais variados círculos freqüentados por mais de quatro pessoas, independentemente de sexo ou idade. JOGO DE CENA Mesa de truco no centro acadêmico da Faculdade de Engenharia do Mackenzie: boa conversa, brincadeiras, muito teatro até que... 26 | REVISTA DOS BANCÁRIOS Amanda. “Aprendi a jogar truco com 15 anos, mas só agora estou me graduando”, diverte-se Marina. “Foi nas constantes partidas aqui no bar que fui me soltando, ficando mais malandra, catimbeira e maliciosa”. Se os alunos da universidade instalada no Brás procuram o bar para se entregar a essa barulhenta modalidade de carteado, seus colegas de Higienópolis calejam os dedos nas cartas sem sair do campus. Na 3ª Olimpíada de Boteco do Centro Acadêmico da Faculdade de Engenharia do Mackenzie, o truco foi uma das concorridas modalidades. Ao contrário das habituais rodadas de truco, o jogo dos futuros engenheiros do Mackenzie parecia xadrez – truqueiros quietos, pensativos, jogando em ritmo paquidérmico. As raras trucadas, quase sussurradas, eram abafadas pelo alarido vindo da mesa de sinuca ao lado. Diferente das partidas disputadas pelos estudantes de Direito da mesma universidade que, numa mesa espremida num canto do Centro Acadêmico, jogavam o velho e bom truco. Esgoelado, com murros na mesa e ganho no grito, com o blefe campeando solto – o verdadeiro espírito do jogo, lúdico, descontraído, em que a recompensa maior é a saudável confraternização entre amigos. “O truco saiu da palhoça iluminada a lamparina, ganhou o asfalto, entrou na faculdade e virou doutor”, brinca Milton George Thame, da Federação Paulista de Truco (FPT). Faz sentido. No torneio do Bar Zap (zape é a principal carta do jogo), boa parte das duplas era formada por alunos da Universidade Anhembi-Morumbi, ali pertinho. As duplas se revezavam nas mesas. Terminada uma partida, os truquei- ros se levantavam e os lugares eram ocupados por outros competidores. Marina Rinaldi, estudante de Jornalismo de 20 anos, fazia dupla com Amanda Bueno, aluna de Publicidade de 18 anos. Dizem ter paixão pelo truco desde o início da adolescência. “É um jogo de muita adrenalina”, considera a futura jornalista. “Dentre todos os jogos de baralho é, disparado, o mais divertido e emocionante”, emenda Truco interrompido Suas características peculiares fazem do truco uma das modalidades de lazer mais procuradas em clubes, associações de classe e sindicatos. “O interesse pelo truco aqui é bastante significativo, só perde para o futebol”, afirma Fábio Canova, diretor de esportes do Esporte Clube Banespa. Há parceiros que se conhecem na mesa de jogo, ficam amigos e formam duplas fixas, que disputam vários torneios juntos. Essa argamassa que solidifica amizades construídas em meio ao carteado caboclo pode ser observada também entre os taxistas. Eles podem ser vistos jogando em qualquer praça ou esquina onde haja ponto de táxi. “As partidinhas aqui no ponto são apenas um aquecimento para o que ...chega a hora da decisão. Aí nem sempre vence a dupla que tem as melhores cartas, mas a que se comunicou melhor e sabe gritar mais alto REVISTA DOS BANCÁRIOS | 27 AS BELAS DA MESA Amanda e Marina formam dupla no Bar Zap: “Dentre todos os jogos de baralho é, disparado, o mais divertido e emocionante” vem nos fins de semana, quando nos reunimos na casa de colegas e, aí sim, o truco rola por horas a fio, sempre regado a cerveja e temperado com churrasco, que ninguém é de ferro”, segreda um taxista, que prefere não se identificar. O anonimato se explica – o Departamento Municipal de Transportes Públicos proíbe os jogos nos pontos de táxi, sob pena de multa para os infratores. “O chato é que geralmente a partida é suspensa assim que aparece um passageiro”, conta ele, revelando uma nova modalidade de jogo – o truco interrompido. As origens O truco chegou ao Brasil junto com os imigrantes europeus. Apesar de sua gênese obscura e da falta de fontes confiáveis sobre suas origens, há quem afirme tratarse de jogo milenar. “Há indícios de que o truco já era conhecido dos antigos etruscos, que jogavam com cartas entalhadas em madeira”, especula Milton George Thame. O presidente da Federação Paulista de Truco, fundada em 1987, prossegue na viagem tempo adentro. “Consta que os vikings eram grandes truqueiros”, afirma (será blefe?). “O quatro de paus do baralho espanhol é ilustrado com a imagem de quatro porretes iguais aos usados pelos vikings durante as batalhas.” Há versões de que o truco teria vindo 28 | REVISTA DOS BANCÁRIOS POCKER CAIPIRA Fazer o adversário passar vergonha diante de uma boa mão é parte do jogo com os portugueses nos primórdios da colonização. Outros consideram que o jogo foi trazido pelos imigrantes italianos em fins do século 19. No Rio Grande do Sul, assim como na Argentina, teria sido introduzido pelos espanhóis na época das Missões. A própria palavra “truco” seria uma derivação do termo “trucco”, palavra italiana de múltiplos significados. “Pode significar máscara, maquiagem, estratagema, tramóia, blefe, no sentido de trapacear, enganar alguém”, explica Ornella Accasto, professora de italiano no Spazio Italiano, da cidade de Santo André. Etrusco ou ibérico, italiano ou nórdico, o fato é que o truco se disseminou pelo País. Era jogado na roça nos momentos de descanso após a “bóia”; quando a noite caía, as cartas eram iluminadas a lampari- CHEIAS DE GRAÇA Não é brincadeira, não. Esses são alguns dos sinais criados pelas meninas para se comunicarem durante o jogo. O entrosamento da dupla é a diferença entre vitória e derrota O truco é comentado também por Padre Antonio Vieira, nas páginas da História do Futuro: “É uma história nova sem nenhuma novidade, é uma perpétua novidade, sem nenhuma cousa de novo... o seu grito é suficiente para trazer dos lugares mais longínquos, os adeptos do popular jogo caboclo de nossa terra, o truco, para uma ‘racha’ onde a vitória será uma confraternização de todos os participantes... Assim, a cada evento, a história do truco registra uma nova página de seus feitos, com discípulos de seus ancestrais, perpetuando os ensinamentos, sem nenhuma cousa de novo, apenas ratificando para o nosso futuro essa hereditariedade de quase dois milênios.” na. Alastrou-se pelas pequenas cidades do interior, invadiu o ambiente fabril, ganhou o espaço urbano e hoje não aceita restrição imposta por diferenças sociais, de gênero, idade ou espaço físico. Atualmente, há federações de truco em pelo menos outros sete estados – Minas Gerais, Goiás, Mato Grosso, Mato Grosso do Sul, Paraná, Santa Catarina e Rio Grande do Sul –, além do Distrito Federal. A federação paulista, segundo Thame, congrega 23 clubes da capital e interior. Em setembro de 1986, a Lei Estadual 5.285 instituiu, no segundo domingo de julho, o Dia do Truco. O truco na Literatura O jogo de truco aparece naquela que é considerada a obra seminal da literatura modernista brasileira, Macunaíma, na qual Mário de Andrade inventa suas origens: “Paimã ficou danado. Agarrou quatro paus no mato, uma acapurana um angelim um aipó e um carará, e veio com eles pra cima de Maanape: “– Sai do caminho, porqueira! Jacaré não tem pescoço, formiga não tem caroço! Comigo é só quatro paus na ponta da unha, jogador de caça falsa! “Então Maanape ficou com muito medo e jogou, Truco! o herói no chão. Foi assim que Maanape com Paimã inventaram o sublime jogo do truco. Paimã sossegou.” O jogo O jogo de truco é disputado em duplas ou, menos comumente, em trios. São usadas 40 cartas (excluem-se do baralho os 8, 9 e 10). São distribuídas três cartas para cada jogador e uma (o “vira”) é aberta sobre a mesa. Ninguém pode saber que cartas os outros têm. Os parceiros se comunicam por sinais. Cada jogador mostra uma carta de cada vez, em sentido horário; quem deu as cartas (o “pé”), mostra por último. O que mostrar a carta maior, inicia a próxima rodada. Ao fim de três rodadas (uma “mão”), ganha um tento quem venceu pelo menos duas rodadas, exibindo cartas de maior valor. A partida termina quando uma dupla (ou trio) soma 12 tentos. No tipo de jogo mais comumente jogado, a carta de menor valor é o 4, superado pelo 5, que é superado pelo 6, e assim por diante, até o 3, carta de maior valor. Os naipes não fazem diferença. A únicas cartas que podem superar o 3 são as chamadas “manilhas”. Entre as manilhas os naipes fazem diferença. A de paus (chamada zape) supera a de copas (chamada sete-copas), que supera a de espada (chamada espadilha), que supera a de ouro (sete-ouro), nesta ordem. As manilhas são definidas como uma acima daquela que fica aberta na mesa durante a distribuição. Por exemplo: se o “vira” for um 5, então as “manilhas”, a carta mais valiosa será um 6 de paus; seguido pelo 6 de copas, o 6 de espadas e o 6 de ouro. Se for uma Dama, as manilhas serão os Valetes (sim, no truco o Valete é superior à Dama). Se for um Rei, as manilhas serão os Ases. Há uma versão antiga e pouco usual de jogo em que as manilhas permanecem imutáveis: o chamado “jogo de manilhas velhas”. A versão mais corrente, no entanto, é essa descrita acima, chamada de “ponto acima”. Esse modo se consolidou por dificultar tramóias como marcação de cartas com as unhas ou “seguir” as manilhas com o dedinho durante o embaralhamento. Uma “mão” passa a valer três tentos, em vez de um, quando um jogador pede “truco!”. Se o adversário aceitar, o “trucador” tem de mostrar uma carta superior; o adversário pode “correr” ou dobrar a aposta da “mão”, pedindo “seis”. A aposta da partida pode ainda ir a “nove”. Mesmo quando se chega a esse clímax (a queda termina em doze tentos), pode não haver nenhuma carta respeitável em jogo – no truco, o blefe é tão poderoso quanto ter a sorte de pegar boas cartas. Os parceiros podem olhar as cartas um do outro quando a dupla atinge onze tentos; se decidirem prosseguir o jogo, a mão valerá automaticamente três tentos – e nesse caso ninguém mais pode trucar; se não prosseguirem por achar que o jogo não está bom, entregam apenas um tento à dupla adversária. Quando ambas as duplas chegam à mão de onze, as cartas não podem ser vistas pelos parceiros. As possibilidades de sinais são vastas. Existem sinais tradicionais – para duplas não habituadas a jogar junto – como também é possível se combinarem outras formas. Mas há que se tomar cuidado ao emitir sinais ao parceiro – afinal, o adversário pode estar à espreita, mirando de rabo de olho. No truco, todo cuidado é pouco. ❚ Serviço Para entrar em contato com a FPT, basta acessar o site www.trucofpt.com.br ou ligar para (11) 6692-6694. A internet, aliás, é pródiga em sites sobre truco. Qualquer ferramenta de busca despeja na tela do computador centenas de sites sobre o assunto, inclusive picaretagens que tentam atrair incautos com promessas de ganhos com apostas. Nesse caso, corra! REVISTA DOS BANCÁRIOS | 29 VIAGEM Se você pretende... As curvas da Estrada Velha de Santos ainda seduzem com seu belo visual e monumentos que contam parte da história brasileira Por Maria Angélica Ferrasoli. Fotos de Jailton Garcia ão nove quilômetros de curvas acentuadas morro abaixo, pontuadas por insidiosos insetos cujas picadas só começam a arder na manhã seguinte, em companhia do cansaço nas pernas. Dependendo do dia, à impertinência dos borrachudos soma-se a dos barulhentos adolescentes e seus atarantados professores. Mas fazer o percurso a pé na estrada velha de Santos, ou Caminho do Mar, no trecho reaberto há exatos dois anos, vale a pena, se houver disposição para uma viagem muito mais longa do que esta que liga os municípios de São Bernardo a Cubatão: dali é possível retroceder no tempo, exercício de imaginação que tem como pano de fundo a Mata Atlântica, este belo cenário que, se já viveu tempos melhores, ainda consegue encantar com seus perfumados lírios-do-brejo e as curiosas “bananas-de-macaco”. S ALÉM DO OLHAR As bromélias (alto) dividem espaço na Serra do Mar com espécies pouco conhecidas, como a “banana de macaco” 30 | REVISTA DOS BANCÁRIOS SAÚDE Um pouco de alongamento antes da longa descida ORGANIZE SEU GRUPO São apenas 3 reais por pessoa, com direito à assessoria de 3 monitores e subida de ônibus ENERGIA Os dutos de água da usina Henry Borden descem 720 metros até o nível do mar Por módicos 3 reais, pagos na entrada do portal Caminhos do Mar Pólo Ecoturístico (km 42 da SP-148), o visitante tem direito ao acompanhamento de três monitores, esclarecimentos sobre a história da estrada, fauna e flora da região e os vários monumentos ali erguidos no centenário da independência (1922). De quebra, recebe também informações sobre a hidroelétrica Henry Borden, localizada em Cubatão, cujos dutos escalam a serra a 720 metros do nível do mar, e tem garantido o transporte em ônibus para a volta. Os guias fixam as regras: vale parar e fotografar, mas não se deve levar nada dali, muito menos deixar lixo. Antes do primeiro passo, há alongamento, com atenção especial aos joelhos, mais exigidos na longa descida. “Não há limitação de idade para participar; vai depender da saúde da pessoa”, explica a gerente-executiva do Pólo, Lúcia Regina Silveira. No caso de crianças pequenas, porém (a partir de 7 sete anos), é necessária a presença de pelo menos um dos pais. A partida começa com surpresas. A melhor delas é que a maior parte do passeio acontece em território cubatense: naquela que já foi considerada a cidade mais poluída do mundo, florescem manacás, imbaúbas, begônias, bromélias, árvores de palmito e samambaias-açu. A bicharada, embora nem sempre visível, também pode comparecer com tucanos, maritacas, surucuás, bichos-preguiça e veados-mateiros. “Depois de dois anos conseguimos ver um quati, no mês passado”, comemora o coordenador dos monitores, Jorge Luiz Vargas. Menos de cinco minutos de caminhada e chega-se à divisa São Bernardo/Cubatão, estrada da Maioridade, assim batizada em 1846, em homenagem ao golpe que seis anos antes antecipara a ascensão de Pedro II ao trono. É a boa e velha estrada de SanREVISTA DOS BANCÁRIOS | 31 tos, ou do Vergueiro, Caminho do Mar, SP148... Os nomes, que já foram muitos, designam a mais charmosa e eficiente de todas as tentativas lusitanas de vencer a serra e atingir o Planalto, fosse o trajeto em lombo de burro, carroça ou automóvel, como se podia fazer até 1992. Longa travessia Até se tornar a Estrada Velha, porém, a travessia foi longa. E indigesta para muitos portugueses. No afã das primeiras décadas em solo estrangeiro, os gajos teriam tentado se aventurar por antiga trilha indígena. Embora os tupiniquins não fossem canibais, já não se podia ter tanta certeza quanto aos tamoios. Assustados, os europeus teriam buscado outra via, com provável ajuda do padre José de Anchieta. Só entre 1790 e 1792 surge um caminho com pedras e traçado em ziguezague, inaugurando a primeira pavimentação na região da Serra do Mar. A obra, ordenada pelo governador Bernardo José Maria de Lorena, foi usada para escoar o açúcar até o porto. Trecho dela integra o rol de atrações do passeio: é a Calçada do Lorena, percurso que se pode realmente chamar de acidentado (ainda mais se tiver chovido no dia anterior). 32 | REVISTA DOS BANCÁRIOS Dos vários monumentos que se pode observar (são nove no total, mas nem todos no atual roteiro), pelo menos um ainda ecoa na memória dos que conheceram a estrada no final do século passado. A Casa de Pedra – na verdade, Pouso Paranapiacaba, que também já foi conhecida como moradia da marquesa de Santos – passava por reforma no início de abril. “Essa história de que a marquesa e Dom Pedro se encontravam ali não é real, porque a casa é de 1922”, explica a monitora Raquel de Assis. A marquesa amante do imperador morreu em 1867. “Mas Mário de Andrade costumava visitar o Pouso, gostava de escrever admirando a paisagem”, conta. Ilustres que passaram pela via desde o século 19 também estão registrados no painel de azulejos pintados do Rancho da Maioridade, outro ponto de descanso e reabastecimento, já no km 47. Na curva que o rodeia há ainda vestígios do pavimento de macadame original do Caminho do Mar, de 1913. Cinco anos antes, porém, já rodara por ali o primeiro automóvel, num percurso de mais de 35 horas de viagem. E outros treze depois a rodovia se tornaria a primeira a ser revestida em concreto armado na América Latina, inaugurando período de NO LOMBO DE BURROS O Rancho da Maioridade é um dos monumentos da Estrada de Santos. Ponto de descanço para os turistas, o local exibe painéis de azulejos que retratam personalidades que por ali passaram. É um belo retrato das dificuldades do caminho até sua pavimentação com macadame (um “antecessor” do concreto), em 1913 HISTÓRIA A Calçada do Lorena foi construída entre 1790 e 1792 e foi o primeiro caminho pavimentado para se vencer a Serra do Mar intensa atividade. Mesmo com a primeira pista da via Anchieta, em 1947, continuou a ser usada como rota alternativa, até sua interdição definitiva na década de 90. “Não sabia nem da existência dessa estrada, quanto menos de todos esses monumentos”, admirava-se o estudante Murilo de Lima Silva, 16 anos, que com sua turma de colégio visitou o local pela primeira vez em abril passado. Um dos mais interessados nas informações dos guias, Murilo, acostumado às viagens com a escola, considerou o passeio como “dos mais legais” entre os que já realizou. “Não é só a história, tem ar puro, natureza”, destacou. Além da fauna e flora há várias pequenas quedas d’água pelo caminho e bicas potáveis, sinalizadas. Em dias de pouca neblina, à história e natureza acrescenta-se o visual dos mirantes, com as cidades litorâneas e o Atlântico espraiados ao pé da serra. O projeto que permite o acesso ao local tem por trás cinco secretarias de Estado, parcerias com o governo federal e a iniciativa privada e a Fundação Energia e Saneamento como gestora. Somados aos grupos de estudantes e visitantes, o número dos que passaram por ali desde 2004 che- ga perto dos 90 mil (até fevereiro passado), abrigando inclusive atividades especiais, como a maratona dos cadeirantes, no início deste ano, e o rally Caminhos do Mar. Atualmente, segundo a gerente-executiva Lúcia Silveira, o projeto busca patrocínio de R$ 70 mil para continuar a oferecer o passeio também para alunos das escolas públicas. “É uma iniciativa que já desenvolvemos com a Sabesp e que permite transporte e ingresso livres, além de material didático e treinamento de professores. Para a empresa participante há descontos por intermédio da Lei Rouanet”, antecipa, lembrando a preocupação de preservar e transmitir conhecimentos às novas gerações. Ao lado dos seres da mata, caiapós, tupiniquins, imperadores e poetas do passado – que voltam a pulsar a cada novo grupo de visitantes –, a tribo do futuro agradece. ❚ Serviço Para fazer o passeio no Caminho do Mar é preciso agendar pelo telefone (13) 3372-3307 e seguir cuidados básicos, como usar tênis anti-derrapante, levar protetor solar, repelente e um lanchinho leve. Informações adicionais pelo site www.fphesp.org.br (link Caminhos do Mar) REVISTA DOS BANCÁRIOS | 33 ARTIGO futuro Em defesa do O eixo em torno do qual giram José Serra e Geraldo Alckmin é movido pelas mesmas engrenagens que moviam Fernando Henrique Cardoso. O passado é um estado de dor Por Cido Sério amarga experiência da privatização pela qual passamos no Banespa, há quase seis anos, permite hoje fazer uma avaliação mais embasada sobre o processo em curso na Nossa Caixa e suas conseqüências para todos os bancários. A venda fatiada das sete subsidiárias em que foi dividido o banco representa uma privatização disfarçada. Além disso, PSDB e PFL atuam no estado para que a entrega do último banco público paulista a banqueiros nacionais e estrangeiros seja só questão de tempo. Conhecemos bem os resultados dessa política que favorece os banqueiros em detrimento dos trabalhadores e da sociedade. Já passamos por isso. As primeiras vítimas são os próprios funcionários do banco e, na seqüência, a categoria bancária como um todo. O estrago é previsível: PDV, demissões, piora nas condições de trabalho, aumento do assédio moral e do desrespeito aos direitos. Mas por que a privatização da Nossa Caixa afetaria negativamente os demais bancários? Primeiro, porque os funcionários dos bancos públicos têm papel fundamental nas campanhas salariais unificadas. A capacidade de mobilização desse segmento tem contribuído de forma decisiva para conquistas que beneficiam toda a categoria. É inegável que a redução do número de bancos públicos diminui o poder de fogo dos trabalhadores. Em segundo lugar, a piora nas condições de trabalho em um banco privatizado dá oportunidade aos banqueiros de tentar nivelar por baixo as políticas de recursos humanos nas demais instituições. Com o aumento da participação dos grupos privados no sistema financeiro – qualquer que seja o seu idioma –, nos referenciais de salário e de relações trabalhistas, passam a vigorar as regras do capitalismo selvagem. Não é mais o banco privado que procura se igualar ao estatal em alguns aspectos e sim este que assume cada vez mais o perfil do banqueiro, no que ele tem de pior. Por fim, a venda da Nossa Caixa reforçará o modelo econômico introduzido no Brasil pelo ex-presidente Fernando Collor e ampliado nos oito anos PAULO PEPE A Cido Sério é presidente da Associação dos Funcionários do Grupo Santander Banespa, Banesprev e Cabesp (Afubesp) e diretor da federação estadual cutista dos Bancários (Fetec/CUT-SP) 34 | REVISTA DOS BANCÁRIOS do governo Fernando Henrique Cardoso. Modelo responsável, entre outras coisas, pela entrega de grande parte do patrimônio público e pelo aumento brutal do desemprego. Por termos essa compreensão de todos os prejuízos que a privatização da Nossa Caixa trará ao conjunto dos bancários e da sociedade é que temos nos posicionado ao lado de seus trabalhadores e participado de várias atividades em defesa do banco. Também nos solidarizamos com todos os cidadãos e cidadãs deste estado que exigem a instalação de uma CPI na Assembléia Legislativa de São Paulo, para investigar denúncias de irregularidades na utilização da estrutura do banco em benefício de amigos e deputados da base do ex-governador Geraldo Alckmin. Queremos que a história da Nossa Caixa tenha um final diferente da do Banespa. Que os entreguistas do patrimônio público não atinjam seus objetivos. E, por experiência própria, sabemos que parte desse jogo estará sendo decidida nas próximas eleições. O eixo em torno do qual giram José Serra e Geraldo Alckmin é movido pelas mesmas engrenagens que moviam Fernando Henrique Cardoso. Alckmin coordenou a venda das empresas do setor elétrico do estado e participou do processo de concessão das rodovias – todo consumidor deveria lembrar isso ao pagar a conta de luz e os pedágios. Ele também contribuiu para a entrega do Banespa. Serra foi ministro de FHC e no pouco tempo em que ocupou a Prefeitura de São Paulo aprovou o projeto das Organizações Sociais (OSs), terceirizando a gestão de diversos setores, entre os quais o da Saúde – a privatização do serviço público está sendo considerada ilegal pelo Ministério Público. No âmbito nacional, o país vive um momento de recuperação de estragos, apesar de todos os percalços. Em janeiro, fevereiro e março deste ano, por exemplo, o país alcançou os menores índices de desemprego dos últimos cinco anos. Quem exerceu o poder por mais de uma década e deixou mais estragos do que conquistas, já pode ser observado por seu legado. A volta da turma de FHC significa a volta a um passado do qual São Paulo e o Brasil querem distância. ❚