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nº 110 | maio de 2006
CORRESPONDENTE
AGÊNCIA SEM
CLIENTE, BANCO
SEM BANCÁRIOS
NOSSA CAIXA
O DOCE NINHO
DOS TUCANOS
FILHOS DO SAMBA
OS ESPELHOS DE
JOÃO NOGUEIRA E
BADEN POWELL
NENHUMA
˜ FOI
CANÇAO
` TOA
A
Os festivais mexeram
com os rumos da música
e da política brasileira
Jair Rodrigues e
Chico Buarque no
encerramento do
festival de 1966
cartaaoleitor
Publicação mensal do Sindicato dos
Bancários e Financiários de São Paulo, Osasco e
Região – Rua São Bento, 413, Centro, São Paulo,
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Correspondente bancário na região onde mais existem agências bancárias no País
criatividade do brasileiro, cantada em verso e prosa e representada, para o bem, nas páginas dessa revista – seja pelos campeões dos festivais e pelos pródigos filhos de Baden
Powell e João Nogueira –, também funciona para o mal. Obra
dessa química original, cursos são criados na USP, maior universidade pública da América Latina, mas só para quem pode pagar. Ou, para quem só pode pagar pouco, uma modalidade de atendimento bancário que recebe contas em lotéricas, lojas, mercadinhos.
O correspondente bancário surgiu com a função de atender a população sem acesso aos bancos – aquelas de regiões onde as instituições financeiras não tinham coragem de instalar uma agência por
não dar lucro. A partir desses rincões, os banqueiros gostaram da experiência: tanto que o correspondente bancário transformou-se em
mais uma maneira de o sistema financeiro economizar. E não só com
o atendimento prestado à população de renda “pouco interessante”,
como com o trabalho daqueles que, por trás dos mais modestos balcões, fazem trabalho de bancário, mas não são reconhecidos como
tal, nem na profissão, nem nos direitos. Economia às custas de atendimento e emprego precários só podia ser coisa da mente criativa dos
banqueiros.
Mas nem toda criatividade está a serviço da avareza. É o que mostram os especialistas que estão levando a homeopatia para o Sistema Único de Saúde, melhorando a eficácia e reduzindo custos de tratamentos. Ainda no clima de bom e barato, um passeio pelas curvas
da estrada velha de Santos reserva boas surpresas.
A
A diretoria
[email protected]
REVISTA DOS BANCÁRIOS |
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TRABALHO
Bancarização
sem bancário
MAURICO MORAIS
DO LADO DA AGÊNCIA
Casa lotérica na rua Boa Vista,
conhecida como “rua dos bancos”
no centro de São Paulo
Eles estão em lotéricas, farmácias,
supermercados, lojas, e também trabalham para
os bancos, que encontraram nos correspondentes
bancários um modo barato de esvaziar agências de
clientes e, no futuro, por que não de bancários?
Por Cláudia Motta e Elisângela Cordeiro
lém de fazer uma fezinha, comprar
remédios ou qualquer outro produto, é possível colocar as contas em dia
em estabelecimentos das mais variadas finalidades. Tudo por intermédio
do correspondente bancário. Essa
modalidade de serviço ganhou vulto nesta década e
representa, do ponto de vista dos clientes, facilidade no pagamento sem enfrentar filas e constrangimentos com as portas giratórias. Para o comércio,
os correspondentes trouxeram aumento da circulação de pessoas que, em alguns casos, impulsionam
as vendas em até 80%. Para os bancos, é uma for-
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REVISTA DOS BANCÁRIOS
ma de baratear e transferir serviços que querem ver
longe das agências. O emprego da mão-de-obra do
correspondente bancário contratado pelas instituições financeiras cresce a uma velocidade espantosa,
sem deixar claro a cargo de quem estão as respostas de questões como segurança, condições de trabalho e proteção dos direitos trabalhistas.
De acordo com o Banco Central do Brasil, os correspondentes foram criados com o objetivo de ocupar os espaços deixados pelos “ajustes de mercado”,
ou seja, os locais onde não é financeiramente interessante para os bancos manter uma agência em
funcionamento. Com o tempo, e por liberalidade do
com a consultoria KPMG, das cerca de 8 milhões
de contas abertas em 2004, 90% foram por meio
dos corbans. Em 2005, mais de 1 bilhão de transações movimentaram cerca de R$ 29 bilhões. O perfil de atendimento, a população de baixa renda, fica evidente: cada operação movimentou em média
R$ 20,28. O fenômeno não é exclusividade nacional. Em países como França, Alemanha, Japão, Holanda, África do Sul, México, e com estratégias distintas, os correspodentes são responsáveis por trabalhar com a população não bancarizada.
Origem
Esse tipo de serviço foi identificado pela primeira
vez em 1973. De lá para cá, seis resoluções liberaram e ampliaram o leque de atuação dos correspondentes bancários. O termo foi cunhado em resolução do BC de 1999. Hoje, eles podem quase tudo:
pagamentos, recebimentos de contas diversas, recepção e encaminhamento de proposta de abertura de
contas e depósitos, pedidos e análises de empréstimo e financiamento e cadastro, proposta de emissão de cartão de crédito, seguros, títulos de capitalização. Em tese, surgiram para atuar em localidades onde os bancos, por conveniência, não queriam
estar. Mas a partir de 2000, quando coincidentemente começa a disparada no número de pontos de correspondentes, o BC acabou com a limitação que previa a instalação dos corbans somente em praças desassistidas por agências bancárias.
Em tese,
os corbans
surgiram para
atuar em
localidades
onde os
bancos, por
conveniência,
não queriam
estar. Mas a
partir de 2000,
o BC acabou
com a
limitação
MAURICO MORAIS
próprio BC, passaram a conviver, porta a porta, com
grandes agências bancárias. Em seminário sobre o
tema realizado em São Paulo, no mês de abril, o então diretor de Normas e Fiscalização do Sistema Financeiro do BC, Sérgio Darcy, informou que os correspondentes estão na base de uma das principais
políticas sociais do governo Lula: as microfinanças.
Aliados às cooperativas de crédito e ao microcrédito, os “corbans”, como costumam ser chamados nesses eventos, foram criados no final dos anos 90 e
hoje são importante via de acesso dos cidadãos aos
programas de transferência de renda, a exemplo do
Bolsa-família.
Além de estar na base de tão fundamental pirâmide, os corbans figuram hoje dentre as principais
preocupações do sistema financeiro. Sérgio Darcy
deixou o hotel em que ocorria o citado seminário
voando para outra apresentação do BC sobre o mesmo tema. Somente no mês de abril, pelo menos três
eventos com essa abordagem foram realizados na
cidade de São Paulo. O interesse não é à toa. Em
sua exposição, Darcy menciona a existência de
90.424 pontos de correspondentes distribuídos por
todo o País até 2005, um crescimento de 42,38%
em relação aos 63.509 pontos existentes no ano 2000.
Entre 2000 e 2005 as agências bancárias tradicionais
passaram de 16.396 para 17.572, aumento de 7%.
Os números são, por vezes, desencontrados, já que
o próprio Banco Central reconhece sua dificuldade
em fiscalizar esse apressado crescimento. De acordo
PREGOS E PARAFUSOS Loja de ferragens na rua Florêncio de Abreu, também no centro de São Paulo. A Federação dos Bancos não vê problemas
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A Federação Brasileira de Bancos (Febraban), naturalmente, não vê problemas nisso. Destaca o forte impacto social do correspondente para a população de rincões que antes tinha que se deslocar para
pagar um carnê ou receber a aposentadoria. “Mesmo nos grandes centros há uma economia substancial para a população que, por exemplo, ao pagar
uma conta em um mercado próximo, deixa de gastar, muitas vezes, o equivalente a 10% do valor de
uma conta apenas com transporte”, comenta a entidade, por intermédio de sua assessoria. E ressalta
ainda que a atuação dos corbans é feita de forma
“absolutamente acessória” à sua atividade principal.
“Evidentemente, cada instituição financeira deve proceder a uma análise criteriosa das empresas que são
contratadas.”
Diante da questão trabalhista, a federação dos bancos acredita que, como a atuação dos trabalhadores
correspondentes é “completamente acessória” à atividade principal do estabelecimento contratado, seus
empregados estão vinculados à outra categoria profissional. “Não há qualquer justificativa para criação
de vínculo entre esse empregado e o banco contratante. O correspondente deve aplicar a convenção ou
o acordo coletivo da categoria correspondente aos
seus empregados.”
Empregos e responsabilidade
O diretor do Banco Central, Sérgio Darcy, conta que
tem recebido inúmeras consultas a respeito da responsabilidade final dos bancos e alerta: “Correspondente bancário tem que ter atuação acessória, se ti6
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REVISTA DOS BANCÁRIOS
GERARDO LAZZARI
Porém...
Os trabalhadores não pensam assim. “Os correspondentes vêm de uma proposta de bancarização que
está sendo distorcida”, avalia o presidente do Sindicato dos Bancários de São Paulo, Osasco e Região,
Luiz Cláudio Marcolino. “Os bancos estão se aproveitando das filas que eles mesmos criaram e da dificuldade de acesso que as pessoas mais humildes
têm às agências bancárias. Empurram serviços e
usuários que não lhes interessam para os correspondentes. Economizam com o pagamento de trabalhadores e com a manutenção das agências, mas prestam um atendimento precário. Podem estar criando
um grave problema para o futuro, inclusive com
questões trabalhistas”, avalia.
Marcolino lembra que o primeiro passo nesse sentido foi a informatização dos serviços. “Os clientes
e usuários, apesar de pagarem altas tarifas, são empurrados ao auto-atendimento dos caixas eletrônicos, telefones ou internet. Uma economia enorme
para os bancos, já que uma operação na boca do caixa custa cerca de R$ 1,10 enquanto que nesses meios
eletrônicos fica em torno de R$ 0,10”, destaca o presidente do Sindicato. Os correspondentes recebem
por documento autenticado valores variáveis, de
acordo com o contrato, entre R$ 0,10 e R$ 0,50 por
autenticação. Mais economia para os bancos, que
querem seus funcionários vendendo produtos para
clientes de poder aquisitivo mais atraente e batendo
cada vez mais as absurdas metas.
PRECARIZAÇÃO DO TRABALHO E DO ATENDIMENTO
Luiz Cláudio Marcolino: “Os bancos empurram serviços e usuários que não lhes
interessam para os correspondentes. Economizam com o pagamento de trabalhadores
e com a manutenção das agências, mas prestam um atendimento precário”
ver exclusividade, vira franchising”. Para ele, esse é
um processo irreversível, mas é preciso tomar cuidado para não se transformar em outra coisa. Darcy
destaca que, graças aos corbans, desde 2002 nenhum
município brasileiro está desassistido dos serviços
bancários: em 1999, eram 1.679 as cidades sem acesso a esse tipo de serviço.
A Rede Fácil é um exemplo. Com 2.200 correspondentes atuando no estado de Goiás, processa cerca de 3 milhões de contas por mês. Fernando Cabral, um dos responsáveis pela empresa, foi ao seminário em São Paulo, perguntar ao diretor do BC
sobre a possibilidade de isentar os correspondentes
de CPMF. “Às vezes não consigo fazer o depósito
no banco e sou obrigado a colocar todo o dinheiro na minha conta”, contou Cabral, expondo um
flanco de fragilidade na segurança desse tipo de serviço. Cabral também falou das dificuldades que tem:
“Sou eu que contrato carro-forte, segurança, nem
sempre compensa”.
Para os bancos compensa e muito. De acordo com
Maria Diamices Chevalier, do Banco Regional de
Brasília, a instalação de uma agência bancária pode
custar entre R$ 300 mil e R$ 400 mil. Um posto de
atendimento bancário, em torno de R$ 70 mil. Os
gastos com um correspondente – mesmo com o tipo de relação de extrema responsabilidade como a
do BRB, que disponibiliza treinamento e subsidia
segurança – ficam na casa dos R$ 18 mil.
A implementação dos correspondentes bancários
tem sido, assim, uma forma barata, encontrada pelos bancos, de esvaziar agências de clientes e, no futuro, por que não de bancários? Enquanto os estabelecimentos comerciais celebram o maior movimento em suas lojas, nas agências o advento dos
correspondentes, se não gerou, ainda, redução no
nível de emprego no setor – que continua na casa
dos 400 mil postos de trabalho no Brasil –, com certeza impede a criação de novas vagas.
“Quanto menos a população for às agências, menor será a necessidade de funcionários dentro dela,
o que reflete diretamente na redução de custos com
salários e infra-estrutura e interessa muito aos bancos”, ressalta o presidente do Sindicato dos Bancários, Luiz Cláudio Marcolino. Dados da Febraban
revelam que entre 1994 e 2004, o número médio de
empregados por agência caiu de 33 para 23. Em
contrapartida, o número de contas correntes aumentou: a média de 67 contas por bancário em 1993,
passou para 184 em 2004. “Toda iniciativa de uma
instituição financeira é seguida pelas outras empresas com o objetivo de ocupar mercado, principalmente se a novidade representar redução de custos,
o que quase sempre passa pela precarização do emprego. O risco é de os bancos trocarem os funcionários das agências pelos correspondentes bancários”, alerta.
O Sindicato elaborou e entregou ao Ministério do
Trabalho e Emprego um dossiê que defende a regulamentação dos empregados em postos de correspondentes bancários. Também vem realizando encontros com diretores do Banco Central e de outros
ministérios para tratar do tema. O BC sinaliza a cria-
ção de um projeto de lei que regulamente de vez o
serviço. “Esses trabalhadores estão ligados ao comércio, mas fazem trabalho de bancário, e não foram
contratados para isso. Essa situação deve mudar para o bem de todos, inclusive dos usuários, que estarão mais seguros sendo atendidos por um profissional reconhecido”, diz Marcolino. “A população não
vive mais sem os correspondentes bancários e os bancos não têm como assumir esses serviços em sua rede”, avalia Tarcisio Luiz Dalvi, titular da área na Caixa Econômica Federal. Na Caixa, responsável por
grande parte dos programas sociais do governo federal, das 3,5 bilhões de operações realizadas em
2005, 1,3 bilhão passaram pelos 13 mil correspondentes bancários ligados ao banco público.
Clientes
Utilizar os serviços bancários oferecidos nos estabelecimentos comerciais deve ser uma opção do cliente e não uma imposição de atendimento do sistema financeiro. Esta é a avaliação do Procon, órgão
estatal de defesa do consumidor, que destaca entre
as indicações de que os bancos selecionam os clientes que mais lhe interessam financeiramente, a reformulação no layout das agências e a modificação
da estrutura de atendimento, voltado à recepção personalizada de potenciais investidores, com o aumento do número de gerentes.
Para o Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor (Idec), a tentativa de afastar os clientes das
agências é uma prática constante dos bancos. “Inicialmente veio a informatização dos serviços, o que
levou o BC a lançar uma norma de que o banco
não poderia se negar a atender os clientes que preferem ser tratados por caixas humanos”, lembra Marcos Guedes, advogado e gerente jurídico do Idec. Na
mesma linha, o Procon orienta os clientes que se
sentirem discriminados a exigir seus direitos de cidadão, podendo até processar o banco e cobrar indenização por danos morais.
O atendimento por meio dos correspondentes,
além de baratear custos, traz outro atrativo para as
instituições financeiras: os corbans estão fora da legislação de segurança e dos 15 minutos de espera
para atendimento. O Procon defende a extensão da
aplicação da Lei das Filas, como é conhecida, também para correspondentes bancários. “Há a necessidade de o legislador municipal estudar a abrangência desta Lei”, avalia a diretora do órgão Marli
Aparecida Sampaio.
O Idec alerta ainda sobre o respeito às regras do
Código de Defesa do Consumidor, já que o cumprimento das normas de proteção aos clientes – seja para garantir segurança ou qualidade na prestação de
serviços – é de responsabilidade solidária entre os
prestadores envolvidos, no caso, correspondentes e
instituições financeiras. Caso os bancos consigam ficar fora das regras do código, como buscam por meio
de Ação Direta de Inconstitucionalidade em análise
no Supremo Tribunal Federal, a responsabilidade legal pela prestação de serviços, por meio de correspondentes bancários, ficará por conta exclusivamente dos donos dos estabelecimentos comerciais. ❚
Uma agência
bancária pode
custar entre
R$ 300 mil e
R$ 400 mil.
Um posto de
atendimento,
em torno de
R$ 70 mil.
Os gastos
com um
corban ficam
na casa dos
R$ 18 mil
REVISTA DOS BANCÁRIOS |
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POLÍTICA
Usa
e joga fora
Os tucanos apreciam o verbo investigar
se o alvo é o governo alheio. Mas se a
sujeira está em seu próprio ninho, preferem
abafar. O uso da Nossa Caixa a serviço de
aliados do PSDB é só uma pequena amostra
cada semana surgem novas
publicações. As incursões do
ex-governador do Estado
pelo mundo da comunicação, digamos, “alternativa”,
vêm causando alguma dor
de cabeça ao pré-candidato do PSDB à Presidência da República. A mais recente, denunciada discretamente pelos jornais em
meados do mês de abril, é uma revista da
Federação Paulista de Futebol que circulou entre os anos 2004 e 2005. Na edição
PAULO PEPE
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REVISTA DOS BANCÁRIOS
nº 5, o então chefe do governo está na capa. Em outras cinco páginas da revista há
propagandas do governo do estado – duas
delas do banco Nossa Caixa.
Essa não foi a primeira publicação em
que anúncios pagos por recursos públicos
fizeram par com entrevistas e capas em que
figuravam o ex-governador. A revista Ch’an
Tao, de propriedade do acupunturista de
Geraldo Alckmin, Jou Eel Jia, também traz
o pré-candidato ao Planalto na capa e acumula anúncios, dessa vez da Companhia de
JAILTON GARCIA
BOM-HUMOR
Sindicato faz sátira
de Lu Alckmin na
Assembléia Legislativa
(abaixo) e na porta da
matriz da Nossa Caixa,
no Centro
Apuração
O ex-governador, assim como outras lideranças do PSDB, a exemplo do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, são
unânimes em discursar que tudo deve ser
apurado. Só esqueceram de avisar a bancada tucana na Assembléia Legislativa. O
mês de abril foi consumido em inúmeras
tentativas de parlamentares do PMDB, do
PT e de outros partidos que não compõem
a base do governo, pela instalação de Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) para apurar todas as denúncias de aparelhamento do banco Nossa Caixa. Estão sendo convocados ou convidados a depor muitos dos personagens acima. A bancada de
deputados ligados ao governo tem recorrido a todos os artifícios possíveis para evitar os depoimentos.
O Sindicato dos Bancários, que há meses trava um intenso embate com o gover-
no contra a privatização do banco e suas
subsidiárias, mais uma vez entrou na parada. Desta vez, com uma série de manifestações para exigir respeito à instituição
pública e as devidas apurações das denúncias. Um desfile de modas patrocinado por
“Da Lu Alckman” lembrou o escândalo dos
400 modelitos chiques “doados” à ex-primeira dama do estado por um estilista.
Também foram distribuídos centenas de
fogões de brinquedo aos deputados esta-
uma entre 69 denúncias com pedido de
CPI que a bancada governista joga para
baixo do tapete (veja quadro).
E para esconder a sujeira, parece que vale ir buscá-la onde estiver. É essa a suspeita que paira sobre o episódio ocorrido com
o corregedor da Assembléia Legislativa, deputado Romeu Tuma Jr. (PMDB). Ele teve seu escritório político invadido no início de abril e muitos documentos importantes, relativos à sindicância que apura essas denúncias, desapareceram. “Não posso
acusar ninguém, mas minha experiência de
27 anos como delegado me diz que há algo errado. Nenhum bem material foi levado, somente os documentos”, conta Tuma.
ISRAEL ANTUNES/FOLHA IMAGEM
Transmissão de Energia Elétrica Paulista
(Cteep). O acupunturista também é proprietário de um spa em que professores da
rede estadual faziam cursos. O Sistema de
Informações Gerenciais da Execução Orçamentária, da Secretaria da Fazenda de SP,
informa que em 2005 foram pagos R$ 354
mil em diárias a esse spa, pela Secretaria de
Educação – acusação que, então governador, Alckmin negava.
A onda de denúncias começou pelo depoimento ao Ministério Público do ex-gerente de marketing da Nossa Caixa, Jaime
de Castro Júnior. Ele informou que o banco público operou com duas empresas de
publicidade, por mais de um ano, sem a
licitação obrigatória por lei. Veículos de comunicação de uma série de deputados da
base governista na Assembléia foram beneficiados por anúncios da Nossa Caixa,
veiculados por essas empresas que atuavam sem licitação. Castro assumiu parte
da culpa e apontou envolvimento de Roger Ferreira, ex-secretário de Comunicação
de Alckimin; de Carlos Eduardo Monteiro, presidente do banco; e de Daniel Rodrigues Alves, do departamento jurídico.
NOTÍCIA COM “TOTAL ISENÇÃO”
Além do ex-governador como assunto de capa,
revistas de amigos dos tucanos tinham em
comum farta propaganda do governo de SP
duais, numa alusão ao pagamento duplicado de fornos que foram doados pela Nossa Caixa às padarias comunitárias do estado – a gestão tucana do banco lançou a
inovadora promoção “pague 1.000 e leve
500”. O Sindicato acompanha a pressão popular nas sessões que dizem respeito à instalação da CPI, para que essa não seja mais
Usa e joga fora
A Nossa Caixa é o último banco público
do estado de São Paulo, mas vem sendo
ameaçada pela possibilidade de privatização, principal marca do modo tucano de
governar. Foi assim com o Banespa, vendido em novembro de 2000 para o grupo
espanhol Santander. E com outras empresas como CPFL, Eletropaulo, rodovias e
ferrovias estaduais, Comgás, CESP. A Nossa Caixa foi dividida em sete subsidiárias.
A primeira, de cartões de crédito, teve a
venda barrada, em 2005, por força de ação
judicial promovida pelo Sindicato. Depois
foi a vez da subsidiária de previdência e
seguros que, a despeito da ação dos bancários, foi para o controle da também espanhola Mapfre.
E já está previsto para este mês de maio
o leilão da subsidiária de capitalização. A
Mapfre foi retirada desse processo, pelos
mesmos erros apontados pela Justiça na ação
contra a venda da subsidiária de seguros. “A
Justiça já reconheceu o caráter privatista desse processo de venda das subsidiárias e informou que é inconstitucional privar o estado de seu último banco público. Esse modo de governar do PSDB já prejudicou muito o país, com a privatização de importantes empresas públicas em níveis federal e estadual. Isso tem que parar”, diz Raquel Kacelnikas, diretora do Sindicato. ❚
O QUE OS TUCANOS PAULISTAS ESCONDEM
Algumas das 69 denúncias que tiveram pedidos de CPIs engavetadas pelo PSDB na Assembléia Legislativa
Irregularidades em empréstimos à Eletropaulo, privatizada
pelo governo em 1998.
■ Problemas de precariedade no abastecimento de água
pela Sabesp.
■ Suspeitas de desvio de verbas e de irregularidades nas
obras do Rodoanel, do Metrô, de rebaixamento da calha do
rio Tietê e da Companhia Habitacional de Desenvolvimento
Urbano.
■
Irregularidades na gestão da Febem.
Desvios de recursos e má gestão dos recursos da TV Cultura.
Indícios de corrupção nos programas Viva Leite e Alimenta
São Paulo.
■ Aumento da violência policial no estado.
■ Prática de tráfico de influências na contratação de leiloeiros
e empresas para a realização de leilões da administração direta e indireta.
■
■
■
REVISTA DOS BANCÁRIOS |
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EDUCAÇÃO
Excelência
ilegal
Ministério Público denuncia
inconstitucionalidade de cobrança em
cursos de especialização oferecidos
pelas fundações da USP
Cida de Oliveira
m certificado de pós-graduação latu sensu com a
marca da prestigiada Universidade de São Paulo. Era
tudo o que queria o tecnólogo Laércio Rodrigues Gomes. Disposto a melhorar seu currículo e
ter mais chances no concorridíssimo mercado de trabalho, submeteu-se ao também concorrido processo seletivo da Fundação Carlos Alberto Vanzolini, vinculada à Escola Politécnica da USP. Aprovado, cursa hoje um programa que tem duração de dois anos. Ao final, receberá o
título de especialista em administração industrial. As aulas acontecem duas vezes
por semana, no período noturno, num
dos prédios da renomada Poli. “Os professores são excelentes e há uma boa infra-estrutura, com instalações, equipamentos e material didático adequados.
Além disso, o preço da mensalidade, R$
459, é acessível se comparado a cursos oferecidos por outras instituições, como a
U
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REVISTA DOS BANCÁRIOS
FGV”, elogia o pós-graduando. “Melhor
que isso, só se for de graça.”
Sonho de muitos estudantes como
Laércio, o fim da cobrança de mensalidade deste e de tantos outros cursos oferecidos pelas chamadas fundações de
apoio da USP há muito vem sendo defendido por alunos e professores. O debate em torno do tema, mais acalorado
no período entre 2000 e 2002, parece reacender, mesmo que aos poucos, desde que
o Ministério Público (MP) entrou com
uma ação na Vara da Fazenda Pública pedindo o fim das mensalidades naquela
universidade. “A prática é ilegal. Não se
pode usar o espaço público com fins particulares”, resumiu Luiz Fernando Rodrigues Pinto Junior, promotor de Justiça da
Cidadania da Capital.
A questão, segundo ele, é simples: os artigos 206 e 207 da Constituição Federal são
claros quanto ao princípio da gratuidade
do ensino em estabelecimentos oficiais. “As
fundações até podem continuar oferecen-
do cursos pagos, desde que fora das dependências da universidade estadual”, ressaltou. O MP chegou a pedir, via liminar,
a paralisação dos programas enquanto a
Justiça não julgar o processo. O juiz negou o pedido, entendendo que a continuação das aulas não representa danos à instituição de ensino.
Caixa preta
Para a Associação dos Docentes da USP
(Adusp), a questão não é tão simples. “Esses cursos são uma caixa-preta na qual
começamos a fuçar de 2000 para cá”, disse César Minto, presidente da entidade.
Os levantamentos a que ele se refere resultaram em um dossiê sobre as atividades das mais de 30 fundações vinculadas
à USP, além do livro Universidade Pública e Fundações Privadas: Aspectos Conceituais, Éticos e Jurídicos (www.adusp.org.br/cadernos/fundacao.pdf), finalizado no segundo semestre de 2004. Nas
primeiras das 154 páginas, o texto afirma
que instituições como essas, privadas e
sem fins lucrativos, ditas de apoio à universidade, são organismos que ao longo
das últimas décadas disseminaram-se de
forma ampla e preocupante no âmbito do
ensino superior público.
Ainda segundo o documento, um intenso trabalho de pesquisa e análise desses organismos na USP permitiu constatar que
elas têm representado a privatização e a
desvirtuação de atividades de ensino, pesquisa e extensão em uma instituição de caráter estritamente público. Esse processo,
segundo a Adusp, começou a acentuar-se
principalmente a partir de 1987, quando
houve crescimento ininterrupto de cursos
DENTRO DE CASA No prédio da Poli, no
campus da USP, funciona a Fundação Carlos
Alberto Vanzolini, que promove cursos pagos
TRABALHANDO COM O INIMIGO César Minto,
da Adusp, questiona também a participação
nos cursos pagos de quem deveria,
na verdade, combater essa política
pagos e das fundações. O avanço foi brecado em 2002, devido à pressão de entidades representativas, quando a pró-reitoria de pós-graduação decidiu suspender a
autorização para novos cursos pagos de especialização.
“A ligação dos professores da universidade com essas instituições é outra questão”, ressaltou César Minto. Ele refere-se
ao fato de várias autoridades, como reitores, diretores, chefes de departamento e
coordenadores – a quem caberia fiscalizar as fundações e seu relacionamento
com a universidade – participarem ou terem sido participantes delas, quando não
dirigentes. Além disso, há distorções provocadas pela quebra da isonomia salarial.
Em muitos casos, a remuneração adicional obtida pelas atividades ali desenvolvidas chega a superar o salário em duas vezes ou mais.
Fundações lucrativas
Dados da Coordenadoria de Administração Geral, que serviram de base ao documento da Adusp, sustentam que essas instituições criadas para apoiar a universidade têm sido mais apoiadas do que apoiadoras. Entre 1999 e 2000, somente 21 das
30 fundações efetuaram repasses. O total
repassado no período somou R$ 22 milhões. Em 1999 foram R$ 9 milhões; em
2000, R$ 13 milhões. O orçamento da USP,
vinculado ao repasse de 5,0295% da cotaparte do ICMS, foi de R$ 918 milhões em
1999 e R$ 1,173 bilhão em 2000. Assim, os
repasses das 21 fundações foram equivalentes a, respectivamente, apenas 1% e 1,5%
do total do orçamento da universidade.
André Kaysel Velasco Cruz, graduando
em ciências sociais e diretor do Diretório
Central de Estudantes, enxerga outro aspecto negativo. “Na odontologia de Ribeirão Preto, algumas disciplinas estavam sendo tiradas da grade curricular e incluídas
em cursos pagos”. Justamente aqueles que
usam como chamariz o nome da USP.
A cobrança de mensalidades, que envolve aspectos legais, éticos e políticos, tornou-se uma espécie de tabu na cúpula da
USP. Ninguém quer falar sobre o assunto.
A reitoria não se pronuncia por causa dos
inúmeros compromissos assumidos pela
nova reitora, Suely Vilela, segundo afirmou
sua assessoria de imprensa.
Já a pró-reitoria de Cultura e Extensão
Universitária responde que a legislação da
universidade determina que os cursos de
extensão, como são considerados todos
aqueles que cobram mensalidade, sejam
geridos por uma unidade ou órgão ligado a ela. “A gestão administrativa e financeira das atividades de extensão podem
ser compartilhadas com entidades de
apoio, mediante contrato ou convênio,
desde que a conveniência para a universidade seja devidamente justificada. Tendo em vista as características e os objetivos de cada curso de extensão, poderão
ser cobradas taxas para a seleção, inscrição e custeio, a critério da unidade ou órgão”, afirmou o pró-reitor Sedi Hirano,
acrescentando que os recursos financeiros
captados por essas atividades são regidos
pelas normas em vigor na USP e pela legislação estadual e federal.
Dona de uma das maiores receitas, segundo documento da Adusp, a Fundação
Vanzolini se limitou a afirmar, através de
sua assessoria, que gerencia os cursos de
especialização ofertados pelo departamento de engenharia de produção da Escola Politécnica mediante convênios. Cursos esses que deveriam ser gratuitos, conforme o Ministério Público. ❚
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11
A vida
MEMÓRIA VIVA
Menino olha quadro que relembra o
massacre em que seu pai foi morto
depois de Eldorado
O massacre de Carajás escancarou para a sociedade brasileira,
a miséria, a violência, a exploração no campo e seus reflexos
na pobreza das cidades Por Luciano Delion
ez anos se passaram e Avelino Germiniano, agricultor de 51 anos, ainda traz
alojadas no corpo balas
disparadas pelos policiais
na tragédia que ficou mundialmente conhecida como o Massacre de
Carajás. “Fui tirando aos poucos. Tenho
três ainda, mas me considero vitorioso
por estar contando uma história dessas”.
O sentimento de Avelino é compartilhado pelas 690 famílias que vivem no assentamento 17 de Abril, área de 18 mil
hectares da antiga Fazenda Macaxeira, latifúndio improdutivo que só foi desapropriado após o sacrifício humano dos semterra. Na tarde de 17 de abril de 1996, a
PM do Pará investiu contra os três mil
trabalhadores que participavam de uma
manifestação do MST na rodovia PA-150,
próxima à cidade de Eldorado dos Cara-
D
12
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REVISTA DOS BANCÁRIOS
jás. Dezenove caíram mortos ali mesmo,
três morreram em seguida por causa das
seqüelas e outros 75 ficaram feridos, no
corpo e na alma. A repercussão do massacre iniciou um novo capítulo na história da luta pela terra. “A sociedade brasileira acordou para a situação de miséria, violência e exploração em que vivem
os trabalhadores no campo”, avalia Marina dos Santos, da coordenação nacional
do MST.
No Brasil, apenas 26 mil proprietários
detêm 46,8% do total da área cadastrada
para produção agrícola. O governo federal
afirma que está fazendo sua parte. “Em
2005, o Incra assentou 127 mil novas famílias, o maior desempenho da reforma
agrária da história do País”, relata em documento o Ministério do Desenvolvimento Agrário. “Nos três anos do atual governo, os assentamentos realizados somam
245 mil famílias, que representam a geração de mais de 850 mil postos de trabalho no campo.” O documento aponta, ainda, que em 2005 foram investidos R$ 2,3
bilhões, mais da metade na obtenção de
terras por desapropriação e compra de
imóveis. O restante, em assistência técnica, educação, moradia, construção de estradas, eletrificação e obras de infra-estrutura. O governo afirma que cumpriu 95%
da meta de assentar 260 mil famílias, nos
três primeiros anos. Até o final desse mandato, quer completar 400 mil famílias assentadas.
Os movimentos sociais acham, no entanto, que o governo ainda está devendo.
O MST reivindica, para este ano, o assentamento imediato das 170 mil famílias
acampadas à beira de estradas pelo País e
a atualização do índice de produtividade,
que define as terras passíveis de desapro-
PATRÍCIA SANTOS/FOLHA IMAGEM
TERRA
MARCELO CASAL/ABR
priação. A Contag, confederação que reúne 3,6 mil sindicatos representantes de 15
milhões de trabalhadores rurais, também
quer a atualização do índice. “O usado
atualmente é de 1976”, afirma Paulo de Tarso Caralo, secretário de Política Agrária da
Contag. O geógrafo Ariovaldo Umbelino,
professor da USP e especialista em Política Agrária, afirma que a tabela com os novos índices de produtividade já existe e que
a pressão de latifundiários e do agronegócio impede a sua aplicação.
Umbelino mostra que o pequeno produtor é quem sustenta a agricultura no
Brasil. São quase 4 milhões de pequenas
propriedades, numa área de 123 milhões
de hectares que absorvem 95% da mãode-obra do campo e respondem pela maior
parte da produção de alimentos: 53,6% dos
vegetais. Enquanto isso, cerca de 32 mil
grandes propriedades ocupam dez milhões
de hectares a mais, absorvem apenas 0,3%
da mão-de-obra e produzem 15,2% dos
cultivos. Essa agricultura voltada ao agronegócio aposta na monocultura, principalmente para exportação, e resulta na degradação do meio ambiente.
MST e Contag acusam o agronegócio e
os latifundiários de promoverem a desigualdade e a violência no campo. Segundo estudos da Comissão Pastoral da Terra, foram assassinados no País, nos últi-
SOBREVIVENTE
No assentamento
17 de Abril, José Carlos exibe
tomografia que mostra a bala
que ainda carrega na cabeça
mos 20 anos, 1.500 trabalhadores rurais e
lideranças. Apenas 76 casos foram a julgamento. A morosidade e a omissão dos poderes Judiciário e Legislativo contribuem
com essa situação.
A questão fundiária só alcança avanços
porque os trabalhadores seguem a luta, relembra Miguel Pontes da Silva, agricultor
do assentamento 17 de Abril. “Consegui a
terra, constituí família, tenho casa, meu tra-
balho. Acho que se não tivesse acontecido
isso, a gente ainda estava lutando, beirando essas estradas, nos acampamentos. E hoje, tudo o que nós temos aqui, devemos a
esses companheiros que tombaram”. ❚
Os depoimentos dos agricultores do assentamento 17 de Abril foram extraídos
do documentário Eldorado dos Carajás –
10 anos, produzido pelo Setor de Comunicações do MST
O RECONHECIMENTO DE UMA FAMÍLIA
Assim como a luta pela terra, Dida e Darci sempre acreditaram que a luta
pelo amor e contra o preconceito valem a pena. E estão vencendo
A notícia de que seria finalmente assentada teve um significado
especial para Zildenice Ferreira dos
Santos, a Dida: “Depois de sete
anos de acampamento, conseguir
um lote é uma vitória. Mas para
mim o mais importante é ter a Darci no mesmo contrato, sermos reconhecidas como uma família”, enfatiza. “Eu queria ter essa segurança para minha companheira. Se
acontecer qualquer coisa comigo,
fico tranqüila, sabendo que o lote
é de nós duas”. Dida e sua companheira Darci Maria Batista da
Costa são uma das 181 famílias assentadas em abril deste ano pelo
Instituto Nacional de Colonização e
Reforma Agrária (Incra) no Assentamento Zumbi dos Palmares, localizado em Iaras, município a 270
quilômetros da capital paulista.
Juntas há três anos, a união do
casal é uma situação que foi sendo assimilada pelo círculo de parentes, amigos e pela comunidade, e que se consolidou com a gradativa superação das dificuldades.
Darci era casada na época em que
se conheceram – na virada de 2000
–, e houve momentos de tensão
com o ex-marido, que não aceitava a sua escolha. Além do preconceito, havia a preocupação dele
com os quatro filhos, mas hoje chegaram a um entendimento. A reação do ex-companheiro fez com
que a coordenação do acampamento enfrentasse abertamente a
questão, e a avaliação é a de que
o processo educou as pessoas para uma postura de respeito quanto às opções de cada um.
O reconhecimento, por parte de
um órgão governamental, de que
elas representam uma unidade familiar fortaleceu a confiança no futuro em comum e numa vida melhor para elas e os filhos. Darci
concorda, e relembra: “Foi uma felicidade muito grande conseguir o
lote, onde a gente vai prosperar.
Minha filha mais velha, a Janete,
de 18 anos, também está animada”. Os seus outros três filhos moram atualmente com o ex-marido,
mas vêm sempre visitá-la nos finais de semana e se divertem muito com Dida, que gosta de fazer
bagunça com as crianças.
A moradia improvisada, os utensílios, tudo ainda é precário, mas
a limpeza e a organização nos dois
pequenos cômodos demonstram o
capricho de Dida e Darci. As duas
têm experiência anterior com agricultura e demonstram entusiasmo
para iniciar efetivamente as atividades produtivas no lote. Dida ajudou o pai na lavoura até 1994,
quando a família deixou o Rio Grande do Norte e se mudou para São
Paulo: “Meu pai era meeiro, e a
gente plantava milho, feijão, maxixe...” Já Darci é de Borebi, um município potiguar próximo, e foi cria-
da com uma família que tinha gado leiteiro – tanto que no acampamento era ela quem ajudava a tirar o leite a ser distribuído.
Dida, integrante da coordenação
do núcleo de assentamento, explica que ela e Darci planejam o cultivo de feijão, milho, mandioca e
amendoim, além da pecuária leiteira, conforme as reuniões com as
demais famílias. Como qualquer
outra família assentada há pouco
tempo, o casal alterna momentos
de expectativa e ansiedade com
os novos desafios que passam a
enfrentar com o recebimento do lote. Como qualquer família, preocupam-se com os filhos, contam do
namoro da mais velha e relatam
histórias sobre os mais novos. Elas
gostariam de oficializar a união,
mas enquanto isso não é possível,
comemoram o fato de terem sido
assentadas juntas. Segundo Dida,
da mesma forma que na luta pela
terra nunca pensou em desistir,
mesmo nos momentos mais difíceis, sempre continuou acreditando: “E vamos dar continuidade,
dentro do que pode ser feito”.
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ENTREVISTA
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REVISTA DOS BANCÁRIOS
Intactos
espelhos
Marcel teve em Baden um rigoroso
pai-professor. Violão: insista, toque, ouça,
repita. E Diogo, num zigue-zague incansável,
fugiu das caneladas e foi fazer canções como
as que fez seu pai Por Paulo Donizetti de Souza
les se conheceram ainda crianças. Moleques de brincar juntos, de correr entre as árvores na casa do pai
de um deles, em Itanhangá (região da Barra da Tijuca, zona oeste do Rio de Janeiro). Cresceram juntos. Curtiram muita música juntos. E que músicas!
E perderam os pais com um intervalo de apenas três
meses, em 2000: João Nogueira morreu em junho, aos 58 anos,
e Baden Powell, em setembro, aos 63. Louis Marcel, filho de Baden, tem 24 anos – e não teve dúvida em escolher o violão, instrumento que tornou o seu pai um dos músicos mais conhecidos do mundo. Meia-atacante de talento e flamenguista como o
pai, Diogo, 26 anos, filho de João, ainda tentou o futebol. Mas
uma contusão no joelho fez com que ele se voltasse para a música, seguindo os passos do pai, sambista do primeiro time. Dos
pais, além da veia musical – e brasileiríssima –, receberam conselhos básicos, como ter honestidade, humildade, “ser sincero,
não querer passar por cima de ninguém”, explica Diogo, carioca
da Barra, que escolhe repertório para o seu primeiro CD. O amigo Marcel lançou ano passado o primeiro disco no Brasil. Nascido em Paris, onde o pai morou, tem três trabalhos no exterior.
Agora, os amigos de infância ensaiam um projeto que inclui turnê lá fora. E o nome não poderia ser mais sugestivo: DNA Nogueira Powell. “Começa na obra dos nossos pais e continua na
nossa. Tem de começar devagarzinho”, explica Marcel. Tradição
é assim. Diogo – que em março ganhou Davi, seu primeiro filho –, certamente concorda.
RODRIGO QUEIROZ/BYTE BEACH
E
Revista dos Bancários – E se você não fosse músico, o que seria?
Marcel Baden Powell – Não sei, mas com certeza seria um péssimo qualquer coisa. Aqui em casa sempre teve muita música, a
todo instante. Por exemplo, o meu irmão (Philippe, 28 anos, pianista), quando criança, dormia ouvindo Chopin. E a gente foi crescendo dessa maneira. Acho que, inconscientemente, ele (Baden)
foi contaminando a gente com música. Até que chegou uma hora em que a gente foi pedir aula. A princípio, ele não queria muito, dizia que não tinha paciência. Ele disse que ia nos colocar com
uma professora, mas nós dissemos “queremos ter aula com você”.
RdB – Já você tentou ser jogador de futebol...
Diogo Nogueira – Comecei com 10 anos no Barra Futebol Clube, que não existe mais, onde é a sede do Vasco agora. O meu
pai sempre falou: “Você segue o caminho que quiser, não vou
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atrapalhar em nada, se precisar eu te ajudo”. Sempre me chamava para fazer parte da banda dele, como backing vocal, mas como uma diversão, nada sério. Eu me dediquei mesmo ao futebol.
RdB – Você foi parar no E.C. Cruzeiro, de
Porto Alegre.
Diogo – Cheguei lá, comecei a treinar com o grupo, depois de um mês os dirigentes começaram a
fazer contrato, já estava jogando de titular. Chegou
no terceiro mês, que era o último de testes, teve um
amistoso para o técnico realmente selecionar os jogadores que iam assinar com o clube e fazer parte
do campeonato estadual. Nesse jogo, peguei uma
bola, driblei o quarto-zagueiro, veio o lateral e torceu o meu joelho (esquerdo). Aí fiquei meio desanimado, já tinha 23 anos, era complicado entrar no
futebol com essa idade. E tinha uma segunda opção, de ser cantor. Abracei a música com todas as
forças. Antes de acontecer isso tudo, já vinha fazendo um trabalho com o Marcel, ele me chamava para cantar com ele nos bares.
RdB – Como vocês se conheceram?
Marcel – Pelos nossos pais.
Diogo – Meu pai era muito amigo do Baden, saía
lá de casa de madrugada, chegava aqui, acordava o
Baden, “eu vim aqui só pra ouvir você tocar”, essas
coisas.
Marcel – Nesta mesma casa, que tem várias histórias...
Diogo – Então, conheço Marcel desde pixotinho,
ficava correndo por aí, brincando.
Diogo
Marcel
RdB – E o Baden professor, como era?
Marcel – Ele começou a pegar firme (depois de
aceitar ser professor). Ele falou: “Vocês vão ter de
ser escravos do instrumento, escravos da música”.
Só não quis ser professor no primeiro instante, porque depois foi até demais (risos). Eram oito, dez horas por dia, que era o tempo que ele praticava... Era
muito exigente com ele mesmo. Mas esse negócio
de ficar estudando várias horas depende, às vezes
você tem de deixar o instrumento quieto.
RODRIGO QUEIROZ/BYTE BEACH
RdB – Que semelhanças ou diferenças você vê entre seu estilo de tocar e o dele?
Marcel – Semelhanças, todas. As diferenças ainda
vão nascer. Tenho 14 anos de carreira, meu pai tinha 50. Claro que você tem de criar a sua identidade musical. Nesse disco (Aperto de Mão, lançado
em outubro do ano passado), já consegui um pouco, mas é uma coisa que está se formando ainda.
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REVISTA DOS BANCÁRIOS
RdB – Ainda é difícil fazer música no Brasil?
Marcel – Depende. Claro que lá fora tem mais
aceitação, mas aqui também tem o seu mercado.
Quando a gente vai para o exterior, percebe que tem
um interesse maior, até por causa de papai, que fez
uma carreira muito boa lá fora.
RdB – Você também tem medo de avião,
como ele?
Marcel – Não. Ano passado mesmo eu estava viajando bastante e às vezes você pára pra pensar... Se
eu começar a ter medo estou frito. Só agora que comecei a me preocupar um pouco, mas nada comparado ao medo que ele tinha. Acho que ele acabou se acostumando.
RdB – E que tipo de música você gosta?
Marcel – De uma maneira geral, escuto música
brasileira. Adoro João Bosco, Djavan, Ivan Lins, Noel,
Gilberto Gil, Leny Andrade, gosto muito dela... Estou sempre ouvindo, sempre comprando, inclusive
uma galera nova que está chegando aí.
RdB – Gosta de um pop rock, por exemplo?
Marcel – Não sou muito fã, sou mais a música
genuinamente brasileira mesmo. Ouço muito esses
novos instrumentistas também. Na Lapa, também
tem muito movimento, muita coisa de música instrumental. Estou toda hora comprando disco, o meu
carro parece uma discoteca.
RdB – Você foi ver o show dos Rolling Stones (na praia de Copacabana)?
Marcel – Não. Eu estava na Bahia, mas não teria
vontade de ver, não é muito a minha praia... Mas um
cara que curte, e eu sou fã dele, mas não porque ele
curte isso, é o Armandinho, que para mim, no bandolim, não tem outro. Quando fui fazer o show na
Bahia em fevereiro, ele falou que foi ver o show dos
Rolling Stones... Mas eu continuo fã dele...
RdB – O Marcel não viu os Rolling Stones.
E você?
Diogo – Não gosto muito não, mas gosto d´O
Rappa...
Marcel – Esse é legal.
Diogo – O som é bem legal, tem uma verdade ali...
Marcel – D2 também é legal.
Diogo – A gente fez até um trabalho com a obra
do meu pai, alguns trechos... (Canta: “Sorria/Meu
bloco vai descendo a cidade/Vai haver carnaval de
verdade/O samba não se acabou/Sorria/O samba
mata a tristeza da gente/Quero ver o meu povo contente/Do jeito que o rei mandou”). Acho interessante essa mistura do rap com o samba.
Marcel – O meu irmão trabalhou com o D2 durante um ano e meio. Ele também usou um trecho
do Canto de Ossanha (de Baden e Vinícius de Moraes) nesse último CD.
RdB – E você, o que gosta de ouvir?
Diogo – Baden, João... Chico (Buarque), Nélson
Cavaquinho, Noel Rosa, gosto de coisas bem lá pra
trás. Desde criança. Praticamente na barriga eu já
estava na roda de samba.
RdB – Você já tem até comunidade no Orkut...
Diogo – Graças a Deus, as pessoas têm aceitado
o nosso trabalho. É difícil um jovem da nossa idade cantar um samba na linha mais tradicional, e o
jovem parar e ouvir. As pessoas estão aceitando mui-
Violão Vadio
to mais o samba mais antigo do que esses pagodes,
que não têm cultura nenhuma. Não tenho nada contra os pagodes de hoje em dia, mas acho que a tradição tem de ser mantida sempre.
DIVULGAÇÃO
RdB – Marcel contou que o pai resistiu um
pouco a ser professor, mas depois virou um
carrasco. E o seu pai?
Diogo – Ele dava toques mais no lance da melodia: corta a frase, não prolonga... Coisas básicas do
canto. Ele também nunca teve aula de canto, era
abrir a garganta e soltar aquele grave proeminente.
(Baden Powell/Paulo César Pinheiro)
RdB – E como foi quando você e seu pai
cantaram juntos pela primeira vez?
Diogo – Dividindo o palco, foi uma loucura, porque cantei para 30 mil pessoas na Bahia. Eu tremia.
Foi emocionante, maravilhoso. Eu tinha 16, 17 anos.
Marcel – Na primeira vez, eu tinha 9 anos, foi numa boate, era o último dia da temporada. O Raphael Rabello (violonista, morto em 1995) sentado
na primeira fila... Toquei choro, Brasileirinho, coisas “facinhas”... De lá para cá, a gente começou, fizemos o primeiro disco, viajamos, ele começou a
ensinar como sobe no palco, como pisa...
RdB – Você está para lançar o primeiro CD.
É difícil?
Diogo – É difícil, porque você tem de lidar com
inveja, pessoas que querem usar você para ganhar dinheiro, dar uma pernada. Você tem de estar sempre
atento, buscar as pessoas certas. Para viver de música, tem de estar sempre correndo atrás de trabalho.
Marcel – É engraçado, porque nas outras profissões tem uma parada que não tem na música. Por
exemplo, você está fazendo uma faculdade de Medicina, Direito, tem sempre um estágio, você tem
uma remuneração pequena ou média... Eu nunca vi
ninguém fazer estágio de música. Tem mês que dá,
outro que não dá...
RdB – Tem alguma música de que você
gosta mais?
Marcel – Violão Vadio (Baden e Paulo César Pinheiro), gosto pra caramba.
RdB – Para você, Espelho é inevitável...
Diogo – É uma música muito forte, difícil de cantar. Tem vezes que engasga e não dá, porque você
acaba enxergando um filme. (Pára alguns segundos)
É difícil. Você bota emoção, engole um pouquinho
e vai que vai. ❚
Espelho
(João Nogueira e Paulo César Pinheiro)
DIVULGAÇÃO
RdB – E como sobe no palco? Não é só
subir? (Um olha para o outro, e os dois sorriem).
Diogo – Não, o palco é um altar.
Marcel – E a música é uma entidade.
Diogo – Tem de fazer uma oração, e entrar com
força.
Marcel – Não vou citar nomes, mas tem gente
que pisa no palco e você vê logo que o cara não
tem tarimba.
Novamente juntos, eu e o violão
Vagando devagar por vagar
Cantando uma canção qualquer, só por cantar
Mercê da solidão
Vagueando em vão por aí
Nós vamos seguir, outra rua, outro bar
Outro amigo, outra mão
Qualquer companheira, qualquer direção
Até chegar a qualquer lugar
Qualquer que seja a morte a esperar
Jamais meu violão me abandonará
Se eu vivi, foi inútil viver
Já mais nada me resta saber
Quero ouvir meu violão gemer
Até me serenizar
Nascido no subúrbio nos melhores dias
Com votos da família de vida feliz
Andar e pilotar um pássaro de aço
Sonhava ao fim do dia ao me descer cansaço
Com as fardas mais bonitas desse meu país
O pai de anel no dedo e dedo na viola
Sorria e parecia mesmo ser feliz
Ê, vida boa
Quanto tempo faz
Que felicidade!
E que vontade de tocar viola de verdade
E de fazer canções como as que fez meu pai
Num dia de tristeza me faltou o velho
E falta lhe confesso que ainda hoje faz
E me abracei na bola e pensei ser um dia
Um craque da pelota ao me tornar rapaz
Um dia chutei mal e machuquei o dedo
E sem ter mais o velho pra tirar o medo
Foi mais uma vontade que ficou pra trás
Ê, vida à toa
Vai no tempo vai
E eu sem ter maldade
Na inocência de criança de tão pouca idade
Troquei de mal com Deus por me levar meu pai
E assim crescendo eu fui me criando sozinho
Aprendendo na rua, na escola e no lar
Um dia eu me tornei o bambambã da esquina
Em toda brincadeira, em briga, em namorar
Até que um dia eu tive que largar o estudo
E trabalhar na rua sustentando tudo
Assim sem perceber eu era adulto já
Ê, vida voa
Vai no tempo, vai
Ai, mas que saudade
Mas eu sei que lá no céu o velho tem vaidade
E orgulho de seu filho ser igual seu pai
Pois me beijaram a boca e me tornei poeta
Mas tão habituado com o adverso
Eu temo se um dia me machuca o verso
E o meu medo maior é o espelho se quebrar
REVISTA DOS BANCÁRIOS |
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SAÚDE
A homeopatia
chega ao SUS
A despeito do
desconhecimento
de seus métodos
e de contrariar
interesses nem
sempre científicos,
a homeopatia evolui
com a ciência médica
e já traz avanços
também ao sistema
público de saúde
Por Cristina Judar e
Miriam Sanger. Fotos
de Gerardo Lazzari
18
|
REVISTA DOS BANCÁRIOS
utilização da homeopatia
nos tratamentos de saúde
sempre foi assunto polêmico em todo o mundo. Primeiramente por basear-se
em fundamentos difíceis de
serem compreendidos: como aceitar uma
corrente que determina que a substância
que induz a um certo sintoma possa também curar a doença que o provoca? Como compreender que extratos ínfimos de
matérias minerais, vegetais e animais possam ter o mesmo poder de cura dos antibióticos? Mas não apenas isso. Por trás da
polêmica que gira em torno do assunto há
também interesses financeiros. Afinal, a
medicina tradicional ocidental está estabelecida há séculos – e trazendo grandes lucros à potente indústria farmacêutica internacional.
Frente a esse panorama, a inclusão ofi-
A
cial da medicina homeopática no Sistema
Único de Saúde (SUS) brasileiro foi considerada uma grande vitória por médicos,
entidades e pelos pacientes que a utilizam.
A aprovação da Política Nacional de Medicina Natural e Práticas Complementares
– que inclui a homeopatia – pelo Conselho Nacional de Saúde, concluída em fevereiro de 2006, possibilitará o atendimento gratuito a um número muito maior de
pacientes e trará benefícios definitivos não
só ao público – em especial o de baixa
renda, sem possibilidades de acesso à rede privada de atendimento –, mas também ao governo. “Inúmeros trabalhos realizados dentro e fora do serviço público
de saúde demonstram que pacientes tratados com a homeopatia custam menos”,
afirma a farmacêutica Márcia Gutierrez,
que atua há 20 anos na área, é diretora do
ICEH-Escola de Homeopatia e membro
da Associação Brasileira de Farmacêuticos
Homeopatas.
Essa economia tem três motivadores
principais: os remédios são mais baratos,
a média de atendimento anual por paciente é reduzida e a homeopatia raramente
utiliza exames complementares para seus
diagnósticos. Segundo a cardiologista-homeopata Walcymar Estrela, membro da
Comissão de Saúde Pública da Associação
Médica Homeopática Brasileira e ex-chefe
do Departamento de Terapêuticas NãoConvencionais do SUS de Juiz de Fora
(MG), sua experiência com a utilização da
homeopatia na saúde pública comprova estas afirmativas. “Em Juiz de Fora, gastamos, anualmente, cerca de 18 reais com o
tratamento homeopático de cada paciente. Além disso, ele retorna menos – em média, três vezes por ano – e raramente necessita de atendimentos emergenciais, mesmo quando apresenta problemas de saúde
crônicos”, enumera Walcymar. Outro fator
de impacto no custo é a baixa utilização
de tecnologia instrumental. “De cada 100
pacientes atendidos, apenas cinco são encaminhados para a realização de exames”.
Por tudo isso, a medida proporcionará
uma redução sensível nos gastos com saúde pública. “O custo da medicina tradicional está cada vez mais alto, tornando-se praticamente inviável ao Estado”, afirma Márcio Armani, cirurgião infantil e vice-presidente da Associação Paulista de Homeopatia. Mas existe um aspecto que ainda precisa ser equacionado: o sistema público terá
de criar condições para atender ao número
crescente de pacientes. “O exercício da homeopatia não é simples. Como o processo
é mais detalhado e a consulta leva mais tempo, será necessário ajustar o atual padrão de
atendimento ambulatorial”, afirma.
BARATO E EFICIENTE Márcia Gutierrez: “Inúmeros trabalhos realizados dentro e fora do serviço
público de saúde demonstram que pacientes tratados com a homeopatia custam menos”
REVISTA DOS BANCÁRIOS |
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Jogo de interesses
Em alguns países, como a Índia, a homeopatia faz parte das políticas de saúde pública. Outros a baniram: na Argentina, por
exemplo, ela é proibida em algumas províncias. No Brasil, cerca de 9 milhões de
pessoas tratam-se com homeopatia. Com
a inclusão no SUS, este número certamente crescerá. Isso não quer dizer, no entanto, que a polêmica em torno de sua eficiência se esvaziará. De tempos em tempos, são publicadas pesquisas – que muitas vezes não identificam a serviço de quem
foram produzidas – lançando novas informações ao mercado.
Em agosto do ano passado, por exemplo, a revista médica britânica The Lancet
publicou uma delas, realizada pela Universidade de Berna, na Suíça, que apresentava a seguinte conclusão: os pacientes
tratados com remédios homeopáticos não
tiveram resultados diferentes dos obtidos
por aqueles que apenas ingeriram doses
de placebo (substâncias que não provocam efeito sobre o organismo). Conforme avaliaram os estudiosos da instituição,
os remédios homeopáticos teriam apenas
efeito psicológico. “Essas pesquisas são
subsidiadas por grandes laboratórios e indústrias farmacêuticas, que, anualmente,
movimentam milhões com a patente de
medicamentos”, acredita Armani. “Mesmo
que a homeopatia não seja uma real ameaça a esses gigantes, tirando deles apenas
um pequeno percentual de lucro, essas
empresas são tão gananciosas que, sempre que possível, utilizam a mídia para
nos combater”.
A homeopatia apresenta, para uns,
ares de “bruxaria”. Para outros, é
a solução para qualquer tipo
de problema de saúde –
mesmo aqueles que, aparentemente, surgem
PARECIA INSOLÚVEL
Ana Lúcia buscou
na homeopatia a
cura para suas
constantes dores
de cabeça: “Hoje
sou muito mais
tranqüila e
equilibrada”
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REVISTA DOS BANCÁRIOS
sem nenhuma causa. A professora de educação infantil Ana Lúcia Jaen buscou o método para fugir de um sintoma que parecia insolúvel. “Todos os dias, no final do
expediente, sentia dores de cabeça, e acabava com elas com um comprimido de
AAS (ácido acetilsalicílico).” Preocupada
com os efeitos nocivos da ingestão diária
do medicamento, Ana resolveu procurar
um homeopata. “Após uma consulta de
uma hora, o médico receitou que eu tomasse duas ‘bolinhas’ em jejum e retornasse após 40 dias para uma nova consulta.
Não acreditei que fosse dar certo. Perguntei o que deveria fazer caso tivesse dores
durante esse período. Ele sorriu e disse que,
caso precisasse, poderia ligar para ele. E
não precisei ligar. As dores simplesmente
desapareceram”, conta Ana Lúcia. Atualmente, a professora – que também já tratou com a homeopatia problemas de bursite e sintomas de tensão pré-menstrual –
passa por consultas de acompanhamento
a cada seis meses. “Hoje sou muito mais
tranqüila e equilibrada. Para a homeopatia, a questão do equilíbrio é fundamental. Ela ajuda a atingir esse estado de espírito e, com isso, ficamos menos propensos
a adoecer.”
Dominar o problema
A microempresária Ângela Amado considerou ter esgotado as tentativas com a alopatia. Há cerca de 12 anos, seu filho Ricardo, na época com 9 anos, sofria sérias
crises de bronquite, que eram solucionadas com visitas ao pronto-socorro e emprego de inalações, antibióticos e antiinflamatórios. “Seguindo os conselhos de minha sogra e de uma amiga, procurei a homeopatia, pensando que não ia obter nenhuma melhora”, conta Ângela. Logo na
primeira crise, o médico receitou para seu
filho algumas medicações, que deveriam
ser tomadas de hora em hora. Passado um
mês, Ricardo teve outra crise, da qual se
recuperou rapidamente. A partir daí, começou a tomar os remédios em intervalos
cada vez maiores e em dosagens mais fracas. “Surpreendentemente, três meses após
o início do tratamento as crises pararam.
Hoje ele usa a homeopatia para tudo, até
para gripes”, revela Ângela. “Tenho a im-
O QUE É HOMEOPATIA
A palavra homeopatia vem do grego homoios (semelhante) e pathos (doença). Está baseada na “lei da semelhança”, segundo a qual quanto mais os efeitos de uma determinada substância ingerida se aproximam dos sintomas do paciente, maior será a sua capacidade de cura. O tratamento é totalmente focado no indivíduo, e não na doença – psique e
corpo são considerados indissociáveis e o que se busca é o equilíbrio emocional e físico.
Por essa razão, o médico homeopata aplica, durante a consulta, a anamnese, ou seja,
um verdadeiro questionário a respeito de diferentes aspectos da vida da pessoa, não se
restringindo apenas às informações sobre a doença. Se o diagnóstico clínico é enxaqueca, por exemplo, o médico vai inquirir o paciente a respeito de suas modificações de humor, de transpiração, seu apetite, seu sono, suas características cotidianas, as situações
que deflagram crises etc. Por isso as sessões costumam ser longas.
Os remédios homeopáticos são prescritos individualmente, em forma de glóbulos (bolinhas de açúcar imersas na substância determinada) ou gotas – além de pastilhas e pó
para aspiração, fórmulas menos utilizadas –, seguindo critérios rígidos de dinamização,
uma técnica que visa ao desenvolvimento da força medicamentosa latente na substância
através de sucessivas diluições e sucussões. O médico alemão Samuel Hahnemann, um
revolucionário insatisfeito com a medicina de sua época, foi o responsável pela sistematização, em 1796 – considerado o ano de nascimento da homeopatia –, de todos os conhecimentos gerados sobre o tema nos séculos anteriores.
ODONTOLOGIA DE RESULTADO
Joyce: “Com a homeopatia, posso
fazer a associação entre o emocional
e o físico e tenho sucesso em
90% dos casos”
pressão de que, depois do tratamento, ele
descobriu ser capaz de dominar o problema e hoje é uma pessoa mais segura, confiante, saudável e feliz.”
Diversas especialidades médicas também
estão encontrando novos caminhos através das técnicas homeopáticas, como a
odontologia. A dentista-homeopata Joyce
Mattos é um desses exemplos. A médica
atende a pacientes especiais, em tratamento pré ou pós-câncer e que são submetidos a quimioterapia ou radioterapia na cabeça e no pescoço. “Os pacientes irradiados apresentam secura na boca, ardência
e inflamações na mucosa bucal. Na alopatia, nem existe tratamento eficaz para ardência. Com a homeopatia, posso fazer a
associação entre o emocional e o físico e
tenho sucesso em 90% dos casos. Em apenas uma semana, o problema se reduz incrivelmente ou é curado por completo”.
Joyce, que também realiza extrações e
implantes dentários, raramente faz uso de
antibióticos. Antes e depois do procedimento cirúrgico, ela costuma receitar alguns remédios homeopáticos, capazes de
deixar o paciente mais calmo – o que faz
com que, durante a operação, ele salive
pouco e sofra menos sangramento. “Normalmente, os pontos levam cerca de uma
semana para serem retirados. Com a homeopatia, o pós-operatório é muito melhor e a recuperação é mais rápida. Com
isso, a remoção dos pontos pode ser feita
em um tempo menor.” ❚
Para saber mais
■ Associação Médica Homeopática Brasileira
(www.amhb.org.br/nuke) ■ Associação Paulista
de Homeopatia (www.aph.org.br) ■ Associação
Brasileira de Farmacêuticos Homeopatas
(www.abfh.com.br)
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CAPA
FOTOS: ACERVO ICONOGRAPHIA
DISPARADA DE EMOÇÕES
Em 1966 o povo estava dividido: de um
lado os torcedores de A Banda, de Chico
Buarque, do outro os apaixonados por
Disparada, de Geraldo Vandré (página
ao lado), interpretada por Jair Rodrigues.
Como num bom clássico de futebol,
deu empate e os dois subiram ao
palco juntos para cantar
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Há quatro décadas, festivais
marcaram a história musical brasileira
e abalaram a estrutura política do País.
Hoje a fórmula sobrevive, mas faltam
ouvidos e espaço para a boa
música brasileira
Por Vitor Nuzzi
Estava à toa na
vida
R
festival”, compara o produtor.
Antes do que ficou conhecido como o
Festival da Record, a TV Excelsior havia
feito dois festivais. Em abril de 1965, com
vitória de Arrastão (Edu Lobo e Vinícius
de Moraes), interpretada por Elis Regina,
e em junho de 1966, com Porta-estandarte (de Geraldo Vandré e Fernando Lona)
em primeiro lugar, defendida por Tuca e
Airto Moreira. A própria Record havia organizado um concurso no final de 1960,
sem tanta repercussão – ganhou O Pescador, de Newton Mendonça. Mas o festival
FINAL DE COPA
Zuza era engenheiro
de som no festival de
1966, considerado um
evento comparável à
Copa do Mundo
ANA OTTONI/FOLHA IMAGEM
esponda rápido, e não vale
acionar o Google: quem ganhou os festivais de música
de 1966 e de 2005? É possível que você não saiba nenhuma das respostas. Mas
também é possível que o resultado de 40
anos atrás seja mais conhecido que o do
ano passado. Em outubro de 1966, duas
composições terminaram empatadas, ao final de um processo que começou com a
seleção de 36 entre 2.635 inscritas, até chegar a doze. Era o 2º Festival da Música Popular Brasileira, o primeiro promovido pela TV Record. Há quatro décadas, as vencedoras foram A Banda, do novato Chico
Buarque – que naquele ano lançou o seu
primeiro LP –, e Disparada, do à época
mais conhecido Geraldo Vandré, em parceria com Théo de Barros. Em setembro
de 2005, no festival organizado pela TV
Cultura e que teve 5.198 inscrições, houve apenas uma vencedora: Contabilidade,
de Danilo Moraes e Ricardo Teperman.
À frente das duas competições, Solano
Ribeiro sustenta que qualidade continua
sobrando na música brasileira. “Hoje em
dia, a produção musical só peca pela falta de exposição. Essa geração está muito
mais preparada do que aquela, que era de
músicos intuitivos”, afirma. Para ele, faltam referências à atual geração. “No primeiro festival (na extinta TV Excelsior,
em 1965), a referência era a Bossa Nova.
No segundo, a referência era o primeiro
AGÊNCIA ESTADO
CAMINHANDO
E CANTANDO
Hoje recluso,
Geraldo Vandré
foi o maior ícone
da era dos
festivais
de 1966 representou uma explosão. “A música era uma válvula de escape. Mas tivemos uma série de coincidências. Além de
a televisão privilegiar música de qualidade, tivemos uma geração de compositores
talentosíssimos”, lembra Solano Ribeiro.
De fato, a safra era farta. No LP do festival de 1966, nem todos os intérpretes puderam estar presentes, por motivos de contrato com gravadoras. Assim, Jair Rodrigues, Nara Leão, Roberto Carlos e Elza Soares tiveram de dar lugar a... Chico Buarque, Geraldo Vandré, Maysa e Paulinho da
Viola. O LP traz curiosidades como, Canção de não Cantar, de Sérgio Bittencourt,
defendida por Hebe Camargo.
O júri também tinha gente do ramo, como o jornalista Sérgio Cabral, o professor
Décio Pignatari e os maestros Júlio Medaglia e César Camargo Mariano. As reuniões
eram realizadas na casa do pai de Júlio, no
Alto da Lapa, em São Paulo – com direito a um boneco de borracha batizado de
Sdruff. O boneco tinha um apito que servia para identificar os trabalhos de má qualidade – um prenúncio do que mais tarde
seria a buzina do Chacrinha. Para música
ruim, a única saída era sdruffar. “O Sdruff
servia para relaxar. A gente tocava sinos,
gritava, cantava”, lembra Solano, falando
do clima dos encontros. “Era sempre uma
reunião muito democrática, cordial.” Nem
tudo era obra-prima, mas os programas de
música na Record já mostravam que havia uma geração promissora.
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Faltam ouvidos
“Para quem estava no meio, ficou evidente que havia uma grande florada na música brasileira. Não é no festival que a gente começa a perceber isso”, lembra o crítico Zuza Homem de Mello, engenheiro de
som na época do evento de 1966 – muitos daqueles músicos, observa, já apresentavam programas na televisão. “Aquela final foi um acontecimento nacional, parecia uma final de Copa do Mundo. Lembro
de pessoas que me procuravam para conseguir uma entrada, quem conseguia era
considerado um sortudo”, recorda. O talento musical continua existindo, afirma
Zuza. “Está se deixando vazar pelos dedos
muita coisa boa. O que falta são ouvidos
mais apurados para perceber que isso existe”, diz ele, para quem o Brasil vive “o auge do mau gosto”.
Intérprete de Disparada, em 1966, o cantor Jair Rodrigues concorda. Para ele, faltam oportunidades para que os bons compositores apareçam. “Tem muita coisa para ser mostrada, mas precisa ter abertura.
Nos barzinhos, na noite, você encontra. Na
televisão e no rádio, está difícil”, comenta.
Para ele, é um erro tentar comparar festivais e épocas tão diferentes. “Não haverá
festivais iguais àqueles. Éramos felizes, e
sabíamos. Fizemos história, e estamos na
história. Mas ainda há muita coisa para ser
dita musicalmente.”
Vice-campeão no festival da Cultura com
Achou! – parceria com Luiz Tatit, interpretada pela cantora Ceumar –, Dante Ozzetti também se queixa da falta de espaço. “Falta de talento não tem. Hoje, os músicos são
melhores tecnicamente, e os arranjadores
também. Mas o cara faz uma música e só
consegue apresentá-la em pequenos espaços. Está ruim até para os medalhões.”
Ele também ressalta a diferença de estrutura entre os atuais e os antigos festivais. “Naquela época, você tinha uma efervescência cultural vinda das universidades,
e a TV encampou isso. Os artistas e compositores eram contratados da Record e tinham exposição diária na mídia. Hoje, a
TV deixou de apresentar o que é novo,
criativo”, compara Dante.
PASSEIO NO PARQUE Gilberto Gil era só mais um baiano que morava em São Paulo quando foi...
Chico x Vandré: empate?
“É curioso pensar que A Banda de Chico
e Disparada de Vandré empataram nesse
concurso, quando se tem em mente que
aquela canção de Chico, que o tornou definitivamente popular, está muito aquém
de sua grandeza como poeta e músico, enquanto a Disparada é muito superior ao
que Vandré fez antes ou depois.” A análise sobre o resultado do festival de 1966
promovido pela Record é de Caetano Ve-
loso, em seu livro Verdade Tropical, de 1997.
O resultado de 1966 dá o que falar até hoje. Zuza Homem de Mello sustenta que o
júri escolheu A Banda, mas decretou o empate por imposição de Chico. A mesma
versão é defendida no livro Chico Buarque, da jornalista Regina Zappa. “Isso não
é uma polêmica”, diz Zuza, enfático. “Não
existe contestação, nem duas versões do
mesmo fato. Simplesmente eu estava com
os votos.”
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O organizador do festival contesta, e fala em especulação. “Antes da decisão, se fez
uma reunião, e nela prevaleceu, sim, o Chico. Mas o consenso era de ver primeiro as
apresentações, quando ficou evidente que
o empate seria o resultado mais justo”, afirma Solano Ribeiro. “Foi empate mesmo.
No último dia, o auditório ficou dividido.
Foi algo que iluminou a cabeça dos jurados, e o público também ficou feliz”, diz
Jair Rodrigues.
nagem à Força Aérea Brasileira. Pode ser
visto às vezes andando pelo centro de São
Paulo. Jair Rodrigues conversou com Vandré, por telefone, em meados do ano passado. “Ele perguntou quando eu iria fazer
um disco só com as músicas dele.”
FOTOS: ACERVO ICONOGRAPHIA
QUEM LÊ TANTA NOTÍCIA?
No início Caetano era só alegria,
mas em 1968 foi vaiado com
É Proibido Proibir
...premiado com Edu Lobo no festival de 1967
As trajetórias dos compositores seriam
bem distintas. Chico voltou ao País em
1970, após pouco mais de um ano na Itália, e retomou uma carreira de sucesso. Prepara-se para lançar mais um CD, Carioca,
em maio. Depois de vagar por Chile e França, Vandré retornou ao Brasil de forma nebulosa, em 1973. Fez música esporadicamente, mas se recusou a voltar ao mercado – sua obra mais conhecida desde então
é Fabiana, composta em 1985 em home-
Cenas de festival
“Então é isso que é a juventude que diz que
quer tomar o poder?”, dizia um transtornado Caetano Veloso diante da platéia que,
em setembro de 1968, o impedia de cantar
É Proibido Proibir no Teatro da Universidade Católica (Tuca), em São Paulo. “Aquilo
não foi em função da música, mas uma posição equivocada daquela juventude, que
teoricamente deveria estar atenta, engajada,
mas não entendeu o recado.” Eram tempos
de ditadura militar, e É Proibido Proibir foi
considerada música “alienada”.
Na final do festival da Record de 1967,
o compositor Sérgio Ricardo não conseguiu cantar Beto Bom de Bola, sob as vaias
e os protestos. “Vocês são uns animais!”,
gritou. Para completar, quebrou o violão
no banco e o arremessou na direção da
platéia. “Foi uma cena marcante, independentemente de estar certo ou errado. Hoje, provavelmente essa cena seria cortada”,
comenta Zuza Homem de Mello. “A televisão é completamente diferente. Os programas são mais pilotados, há um rigor
que não existia em termos de acabamento. Isso dava uma naturalidade maior.” Protestos à parte, o festival de 1967 premiou
simplesmente: Ponteio (Edu Lobo e Capinam), Domingo no Parque (Gilberto Gil),
Roda Viva (Chico Buarque), Alegria, Alegria (Caetano Veloso) e Maria Carnaval e
Cinzas (Luiz Carlos Paraná).
Chico Buarque e Geraldo Vandré se
“enfrentariam” novamente no 3º Festival
Internacional da Canção (FIC), organizado pela Globo em 1968. O júri escolheu Sabiá, de Chico e Tom Jobim, deixando Pra não Dizer que não Falei das
Flores (ou Caminhando) em segundo lugar. O público que lotava o Maracanãzinho vaiou, considerando a música de
Vandré mais politizada. Pouco tempo depois, seria proibida. “Os militares foram
agressivamente contrários (à vitória de
Caminhando). Deram um recado muito
claro”, lembra Solano Ribeiro. No final
daquele ano, viria o Ato Institucional número 5 (AI-5), que marcou o endurecimento do regime militar e da perseguição a seus opositores.
Em 1971, vários artistas – como Chico
Buarque, Edu Lobo, Paulinho da Viola e
Tom Jobim – inscreveram composições no
6º Festival Internacional da Canção (FIC),
organizado pela Globo, e as retiraram de
última hora para protestar contra a censura. Foi o próprio diretor artístico do festival, Gutemberg Guarabira – simpatizante da Aliança Libertadora Nacional (ALN),
grupo de oposição ao governo –, que organizou a “conspiração”. Ele depois formaria trio com Sá e Zé Rodrix – e, posteriormente, a dupla Sá&Guarabira. O protesto
era contra o governo, mas criou problemas entre os músicos e a emissora. A jornalista Regina Zappa relata que um representante da Globo pediu ao Dops o enquadramento de todos os participantes do
protesto – e, sem sucesso, processou Chico Buarque por este tê-lo chamado de informante da polícia. A música inscrita por
Chico, Que Horas São?, nem existia.
A Globo manteve os FICs até 1972 – a
vencedora foi Fio Maravilha, de Jorge Ben
(hoje, Benjor). A Record manteve os seus
festivais em 1968 (São São Paulo, Meu
Amor, de Tom Zé) e 1969 (Sinal Fechado,
de Paulinho da Viola). Até a extinta Tupi
entrou em campo, em 1979, premiando
Quem me Levará sou Eu, de Fagner e Dominguinhos, com destaque para Canalha,
de Walter Franco.
A Globo correu atrás e organizou um
festival em 1980 (MPB Shell). Deu Agonia
(Mongol), cantada por Oswaldo Montenegro. Voltou à carga em 1981, (Purpurina
de Jerônimo Jardim, por Lucinha Lins). E
em 1982 (Pelo Amor de Deus, de Paulo Debétio e Paulinho Rezende, com Emílio Santiago). A emissora investiria mais uma vez
em festivais em 1985, quando Tetê Espíndola defendeu a vencedora Escrito nas Estrelas, de Carlos Rennó e Arnaldo Black. A
última foi em 2000, com vitória de Tudo
Bem, Meu Bem, de Ricardo Soares.
Para Solano Ribeiro, a fórmula não é ultrapassada. “San Remo (Itália) está fazendo o seu 56º festival. Em Viña del Mar
(Chile), já são 42 anos. O festival da Cultura foi feito dentro de um critério sério,
conseguiu fazer um painel representativo
do que é a música popular no Brasil. Mas
o júri deixou o festival conservador, dava
a impressão de que estavam em busca da
composição perdida”, critica. Para Zuza, o
festival de 2005 “não trouxe nenhum novo valor à MPB”.
E para muitos jovens talentos que não
conseguem espaço para mostrar sua arte,
a fórmula festival continua sendo uma boa
alternativa. Dezenas deles acontecem todos
os anos pelo País. O 1º Festival da Nova
Canção Brasileira, o CantaCUT, recebeu
919 inscrições e selecionou doze, com a final marcada para de abril em São Paulo –
dias 29, com show de Chico César, e 30,
com a bênção de Jair Rodrigues, padrinho
do concurso. ❚
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COMPORTAMENTO
Há muitas versões
para a chegada do
jogo de truco ao
Brasil. Mas o fato,
mesmo, é que ele
saiu da roça, ganhou
o asfalto e entrou
na faculdade
Por Cássio Ventura.
Fotos de Paulo Pepe
A arte de
ganhar no
grito
arde de sábado, princípio de
outono, clima ameno. A despeito da atmosfera, a temperatura acusava ligeira elevação no acanhado interior do
bar Zap, no Brás. Principalmente quando alguém berrava o nome do
jogo: truco! De impassíveis, só os troféus
de acrílico que repousavam sobre a mesa
em frente ao balcão, aguardando a hora de
T
ir pra casa dos vencedores.
Esse jogo de cartas, outrora restrito a pequenas cidades do interior – a ponto de
ter sido identificado como “jogo caboclo”
–, migrou para a cidade grande e é mania
até nos ambientes escolares, nos pontos de
táxi, vestiários de fábricas, reuniões familiares, enfim, nos mais variados círculos
freqüentados por mais de quatro pessoas,
independentemente de sexo ou idade.
JOGO DE CENA Mesa de truco no centro acadêmico da Faculdade de Engenharia do Mackenzie: boa conversa, brincadeiras, muito teatro até que...
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Amanda. “Aprendi a jogar truco com 15
anos, mas só agora estou me graduando”,
diverte-se Marina. “Foi nas constantes partidas aqui no bar que fui me soltando, ficando mais malandra, catimbeira e maliciosa”.
Se os alunos da universidade instalada
no Brás procuram o bar para se entregar
a essa barulhenta modalidade de carteado,
seus colegas de Higienópolis calejam os dedos nas cartas sem sair do campus. Na 3ª
Olimpíada de Boteco do Centro Acadêmico da Faculdade de Engenharia do Mackenzie, o truco foi uma das concorridas
modalidades.
Ao contrário das habituais rodadas de
truco, o jogo dos futuros engenheiros do
Mackenzie parecia xadrez – truqueiros
quietos, pensativos, jogando em ritmo paquidérmico. As raras trucadas, quase sussurradas, eram abafadas pelo alarido vindo da mesa de sinuca ao lado. Diferente
das partidas disputadas pelos estudantes de
Direito da mesma universidade que, numa
mesa espremida num canto do Centro Acadêmico, jogavam o velho e bom truco. Esgoelado, com murros na mesa e ganho no
grito, com o blefe campeando solto – o verdadeiro espírito do jogo, lúdico, descontraído, em que a recompensa maior é a saudável confraternização entre amigos.
“O truco saiu da palhoça iluminada a
lamparina, ganhou o asfalto, entrou na faculdade e virou doutor”, brinca Milton
George Thame, da Federação Paulista de
Truco (FPT). Faz sentido. No torneio do
Bar Zap (zape é a principal carta do jogo), boa parte das duplas era formada por
alunos da Universidade Anhembi-Morumbi, ali pertinho. As duplas se revezavam nas
mesas. Terminada uma partida, os truquei-
ros se levantavam e os lugares eram ocupados por outros competidores.
Marina Rinaldi, estudante de Jornalismo
de 20 anos, fazia dupla com Amanda Bueno, aluna de Publicidade de 18 anos. Dizem ter paixão pelo truco desde o início
da adolescência. “É um jogo de muita adrenalina”, considera a futura jornalista. “Dentre todos os jogos de baralho é, disparado,
o mais divertido e emocionante”, emenda
Truco interrompido
Suas características peculiares fazem do
truco uma das modalidades de lazer mais
procuradas em clubes, associações de classe e sindicatos. “O interesse pelo truco aqui
é bastante significativo, só perde para o futebol”, afirma Fábio Canova, diretor de esportes do Esporte Clube Banespa. Há parceiros que se conhecem na mesa de jogo,
ficam amigos e formam duplas fixas, que
disputam vários torneios juntos.
Essa argamassa que solidifica amizades
construídas em meio ao carteado caboclo
pode ser observada também entre os taxistas. Eles podem ser vistos jogando em
qualquer praça ou esquina onde haja ponto de táxi. “As partidinhas aqui no ponto
são apenas um aquecimento para o que
...chega a hora da decisão. Aí nem sempre vence a dupla que tem as melhores cartas, mas a que se comunicou melhor e sabe gritar mais alto
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AS BELAS DA MESA
Amanda e Marina formam dupla no Bar Zap:
“Dentre todos os jogos de baralho é, disparado, o mais divertido e emocionante”
vem nos fins de semana, quando nos reunimos na casa de colegas e, aí sim, o truco rola por horas a fio, sempre regado a
cerveja e temperado com churrasco, que
ninguém é de ferro”, segreda um taxista,
que prefere não se identificar. O anonimato se explica – o Departamento Municipal
de Transportes Públicos proíbe os jogos
nos pontos de táxi, sob pena de multa para os infratores. “O chato é que geralmente a partida é suspensa assim que aparece
um passageiro”, conta ele, revelando uma
nova modalidade de jogo – o truco interrompido.
As origens
O truco chegou ao Brasil junto com os
imigrantes europeus. Apesar de sua gênese obscura e da falta de fontes confiáveis
sobre suas origens, há quem afirme tratarse de jogo milenar. “Há indícios de que o
truco já era conhecido dos antigos etruscos, que jogavam com cartas entalhadas em
madeira”, especula Milton George Thame.
O presidente da Federação Paulista de Truco, fundada em 1987, prossegue na viagem
tempo adentro. “Consta que os vikings
eram grandes truqueiros”, afirma (será blefe?). “O quatro de paus do baralho espanhol é ilustrado com a imagem de quatro
porretes iguais aos usados pelos vikings durante as batalhas.”
Há versões de que o truco teria vindo
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POCKER CAIPIRA Fazer o adversário passar vergonha diante de uma boa mão é parte do jogo
com os portugueses nos primórdios da colonização. Outros consideram que o jogo
foi trazido pelos imigrantes italianos em
fins do século 19. No Rio Grande do Sul,
assim como na Argentina, teria sido introduzido pelos espanhóis na época das Missões.
A própria palavra “truco” seria uma derivação do termo “trucco”, palavra italiana
de múltiplos significados. “Pode significar
máscara, maquiagem, estratagema, tramóia, blefe, no sentido de trapacear, enganar alguém”, explica Ornella Accasto, professora de italiano no Spazio Italiano, da
cidade de Santo André.
Etrusco ou ibérico, italiano ou nórdico,
o fato é que o truco se disseminou pelo
País. Era jogado na roça nos momentos de
descanso após a “bóia”; quando a noite
caía, as cartas eram iluminadas a lampari-
CHEIAS DE GRAÇA Não é brincadeira, não. Esses são alguns dos sinais criados pelas meninas
para se comunicarem durante o jogo. O entrosamento da dupla é a diferença entre vitória e derrota
O truco é comentado também por Padre Antonio Vieira, nas páginas da História do Futuro:
“É uma história nova sem nenhuma novidade, é uma perpétua novidade, sem nenhuma cousa de novo... o seu grito é suficiente para trazer dos lugares mais longínquos, os adeptos do popular jogo caboclo de nossa terra, o truco, para uma ‘racha’
onde a vitória será uma confraternização
de todos os participantes... Assim, a cada
evento, a história do truco registra uma
nova página de seus feitos, com discípulos
de seus ancestrais, perpetuando os ensinamentos, sem nenhuma cousa de novo, apenas ratificando para o nosso futuro essa
hereditariedade de quase dois milênios.”
na. Alastrou-se pelas pequenas cidades do
interior, invadiu o ambiente fabril, ganhou
o espaço urbano e hoje não aceita restrição imposta por diferenças sociais, de gênero, idade ou espaço físico.
Atualmente, há federações de truco em
pelo menos outros sete estados – Minas
Gerais, Goiás, Mato Grosso, Mato Grosso
do Sul, Paraná, Santa Catarina e Rio Grande do Sul –, além do Distrito Federal. A
federação paulista, segundo Thame, congrega 23 clubes da capital e interior. Em
setembro de 1986, a Lei Estadual 5.285 instituiu, no segundo domingo de julho, o
Dia do Truco.
O truco na Literatura
O jogo de truco aparece naquela que é considerada a obra seminal da literatura modernista brasileira, Macunaíma, na qual
Mário de Andrade inventa suas origens:
“Paimã ficou danado. Agarrou quatro
paus no mato, uma acapurana um angelim um aipó e um carará, e veio com eles
pra cima de Maanape:
“– Sai do caminho, porqueira! Jacaré não
tem pescoço, formiga não tem caroço! Comigo é só quatro paus na ponta da unha,
jogador de caça falsa!
“Então Maanape ficou com muito medo e jogou, Truco! o herói no chão. Foi assim que Maanape com Paimã inventaram
o sublime jogo do truco. Paimã sossegou.”
O jogo
O jogo de truco é disputado em duplas ou,
menos comumente, em trios. São usadas
40 cartas (excluem-se do baralho os 8, 9 e
10). São distribuídas três cartas para cada
jogador e uma (o “vira”) é aberta sobre a
mesa. Ninguém pode saber que cartas os
outros têm. Os parceiros se comunicam
por sinais. Cada jogador mostra uma carta de cada vez, em sentido horário; quem
deu as cartas (o “pé”), mostra por último.
O que mostrar a carta maior, inicia a próxima rodada.
Ao fim de três rodadas (uma “mão”), ganha um tento quem venceu pelo menos
duas rodadas, exibindo cartas de maior valor. A partida termina quando uma dupla
(ou trio) soma 12 tentos.
No tipo de jogo mais comumente jogado, a carta de menor valor é o 4, superado pelo 5, que é superado pelo 6, e assim
por diante, até o 3, carta de maior valor.
Os naipes não fazem diferença.
A únicas cartas que podem superar o 3
são as chamadas “manilhas”. Entre as manilhas os naipes fazem diferença. A de paus
(chamada zape) supera a de copas (chamada sete-copas), que supera a de espada
(chamada espadilha), que supera a de ouro (sete-ouro), nesta ordem. As manilhas
são definidas como uma acima daquela
que fica aberta na mesa durante a distribuição.
Por exemplo: se o “vira” for um 5, então as “manilhas”, a carta mais valiosa será um 6 de paus; seguido pelo 6 de copas,
o 6 de espadas e o 6 de ouro. Se for uma
Dama, as manilhas serão os Valetes (sim,
no truco o Valete é superior à Dama). Se
for um Rei, as manilhas serão os Ases.
Há uma versão antiga e pouco usual de
jogo em que as manilhas permanecem imutáveis: o chamado “jogo de manilhas velhas”. A versão mais corrente, no entanto,
é essa descrita acima, chamada de “ponto
acima”. Esse modo se consolidou por dificultar tramóias como marcação de cartas
com as unhas ou “seguir” as manilhas com
o dedinho durante o embaralhamento.
Uma “mão” passa a valer três tentos, em
vez de um, quando um jogador pede “truco!”. Se o adversário aceitar, o “trucador”
tem de mostrar uma carta superior; o adversário pode “correr” ou dobrar a aposta
da “mão”, pedindo “seis”. A aposta da partida pode ainda ir a “nove”. Mesmo quando se chega a esse clímax (a queda termina em doze tentos), pode não haver nenhuma carta respeitável em jogo – no truco, o blefe é tão poderoso quanto ter a sorte de pegar boas cartas.
Os parceiros podem olhar as cartas um
do outro quando a dupla atinge onze tentos; se decidirem prosseguir o jogo, a mão
valerá automaticamente três tentos – e nesse caso ninguém mais pode trucar; se não
prosseguirem por achar que o jogo não está bom, entregam apenas um tento à dupla adversária. Quando ambas as duplas
chegam à mão de onze, as cartas não podem ser vistas pelos parceiros.
As possibilidades de sinais são vastas.
Existem sinais tradicionais – para duplas
não habituadas a jogar junto – como também é possível se combinarem outras formas. Mas há que se tomar cuidado ao
emitir sinais ao parceiro – afinal, o adversário pode estar à espreita, mirando
de rabo de olho. No truco, todo cuidado
é pouco. ❚
Serviço
Para entrar em contato com a FPT, basta acessar o site www.trucofpt.com.br ou ligar para (11)
6692-6694. A internet, aliás, é pródiga em sites
sobre truco. Qualquer ferramenta de busca despeja na tela do computador centenas de sites
sobre o assunto, inclusive picaretagens que tentam atrair incautos com promessas de ganhos
com apostas. Nesse caso, corra!
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VIAGEM
Se você
pretende...
As curvas da Estrada Velha de Santos ainda
seduzem com seu belo visual e monumentos
que contam parte da história brasileira
Por Maria Angélica Ferrasoli.
Fotos de Jailton Garcia
ão nove quilômetros de curvas acentuadas morro abaixo, pontuadas por insidiosos
insetos cujas picadas só começam a arder na manhã seguinte, em companhia do
cansaço nas pernas. Dependendo do dia, à
impertinência dos borrachudos soma-se a
dos barulhentos adolescentes e seus atarantados professores. Mas fazer o percurso a pé na estrada velha de Santos, ou Caminho do Mar, no trecho reaberto há exatos dois anos, vale a pena, se houver disposição para uma viagem muito mais longa do que esta que liga os municípios de
São Bernardo a Cubatão: dali é possível retroceder no tempo, exercício de imaginação que tem como pano de fundo a Mata
Atlântica, este belo cenário que, se já viveu tempos melhores, ainda consegue encantar com seus perfumados lírios-do-brejo e as curiosas “bananas-de-macaco”.
S
ALÉM DO OLHAR As bromélias (alto) dividem
espaço na Serra do Mar com espécies pouco
conhecidas, como a “banana de macaco”
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SAÚDE
Um pouco de
alongamento
antes da longa
descida
ORGANIZE SEU GRUPO
São apenas 3 reais por pessoa,
com direito à assessoria de 3
monitores e subida de ônibus
ENERGIA
Os dutos de água da usina
Henry Borden descem 720
metros até o nível do mar
Por módicos 3 reais, pagos na entrada
do portal Caminhos do Mar Pólo Ecoturístico (km 42 da SP-148), o visitante tem
direito ao acompanhamento de três monitores, esclarecimentos sobre a história da
estrada, fauna e flora da região e os vários
monumentos ali erguidos no centenário da
independência (1922). De quebra, recebe
também informações sobre a hidroelétrica Henry Borden, localizada em Cubatão,
cujos dutos escalam a serra a 720 metros
do nível do mar, e tem garantido o transporte em ônibus para a volta. Os guias fixam as regras: vale parar e fotografar, mas
não se deve levar nada dali, muito menos
deixar lixo.
Antes do primeiro passo, há alongamento, com atenção especial aos joelhos, mais
exigidos na longa descida. “Não há limitação de idade para participar; vai depender
da saúde da pessoa”, explica a gerente-executiva do Pólo, Lúcia Regina Silveira. No
caso de crianças pequenas, porém (a partir de 7 sete anos), é necessária a presença de pelo menos um dos pais.
A partida começa com surpresas. A melhor delas é que a maior parte do passeio
acontece em território cubatense: naquela
que já foi considerada a cidade mais poluída do mundo, florescem manacás, imbaúbas, begônias, bromélias, árvores de
palmito e samambaias-açu. A bicharada,
embora nem sempre visível, também pode comparecer com tucanos, maritacas, surucuás, bichos-preguiça e veados-mateiros.
“Depois de dois anos conseguimos ver um
quati, no mês passado”, comemora o coordenador dos monitores, Jorge Luiz Vargas.
Menos de cinco minutos de caminhada e
chega-se à divisa São Bernardo/Cubatão,
estrada da Maioridade, assim batizada em
1846, em homenagem ao golpe que seis
anos antes antecipara a ascensão de Pedro
II ao trono. É a boa e velha estrada de SanREVISTA DOS BANCÁRIOS |
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tos, ou do Vergueiro, Caminho do Mar, SP148... Os nomes, que já foram muitos, designam a mais charmosa e eficiente de todas as tentativas lusitanas de vencer a serra e atingir o Planalto, fosse o trajeto em
lombo de burro, carroça ou automóvel, como se podia fazer até 1992.
Longa travessia
Até se tornar a Estrada Velha, porém, a travessia foi longa. E indigesta para muitos
portugueses. No afã das primeiras décadas
em solo estrangeiro, os gajos teriam tentado se aventurar por antiga trilha indígena.
Embora os tupiniquins não fossem canibais, já não se podia ter tanta certeza quanto aos tamoios. Assustados, os europeus teriam buscado outra via, com provável ajuda do padre José de Anchieta. Só entre 1790
e 1792 surge um caminho com pedras e
traçado em ziguezague, inaugurando a primeira pavimentação na região da Serra do
Mar. A obra, ordenada pelo governador
Bernardo José Maria de Lorena, foi usada
para escoar o açúcar até o porto. Trecho
dela integra o rol de atrações do passeio: é
a Calçada do Lorena, percurso que se pode realmente chamar de acidentado (ainda
mais se tiver chovido no dia anterior).
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Dos vários monumentos que se pode observar (são nove no total, mas nem todos
no atual roteiro), pelo menos um ainda
ecoa na memória dos que conheceram a
estrada no final do século passado. A Casa de Pedra – na verdade, Pouso Paranapiacaba, que também já foi conhecida como moradia da marquesa de Santos – passava por reforma no início de abril. “Essa
história de que a marquesa e Dom Pedro
se encontravam ali não é real, porque a casa é de 1922”, explica a monitora Raquel
de Assis. A marquesa amante do imperador morreu em 1867. “Mas Mário de Andrade costumava visitar o Pouso, gostava
de escrever admirando a paisagem”, conta.
Ilustres que passaram pela via desde o século 19 também estão registrados no painel de azulejos pintados do Rancho da
Maioridade, outro ponto de descanso e reabastecimento, já no km 47. Na curva que o
rodeia há ainda vestígios do pavimento de
macadame original do Caminho do Mar,
de 1913. Cinco anos antes, porém, já rodara por ali o primeiro automóvel, num percurso de mais de 35 horas de viagem. E outros treze depois a rodovia se tornaria a primeira a ser revestida em concreto armado
na América Latina, inaugurando período de
NO LOMBO DE BURROS
O Rancho da Maioridade é um dos
monumentos da Estrada de Santos.
Ponto de descanço para os turistas,
o local exibe painéis de azulejos que
retratam personalidades que por ali
passaram. É um belo retrato das dificuldades
do caminho até sua pavimentação com
macadame (um “antecessor” do
concreto), em 1913
HISTÓRIA A Calçada do Lorena foi construída
entre 1790 e 1792 e foi o primeiro caminho
pavimentado para se vencer a Serra do Mar
intensa atividade. Mesmo com a primeira
pista da via Anchieta, em 1947, continuou
a ser usada como rota alternativa, até sua
interdição definitiva na década de 90.
“Não sabia nem da existência dessa estrada, quanto menos de todos esses monumentos”, admirava-se o estudante Murilo de Lima Silva, 16 anos, que com sua
turma de colégio visitou o local pela primeira vez em abril passado. Um dos mais
interessados nas informações dos guias,
Murilo, acostumado às viagens com a escola, considerou o passeio como “dos mais
legais” entre os que já realizou. “Não é só
a história, tem ar puro, natureza”, destacou. Além da fauna e flora há várias pequenas quedas d’água pelo caminho e bicas potáveis, sinalizadas. Em dias de pouca neblina, à história e natureza acrescenta-se o visual dos mirantes, com as cidades litorâneas e o Atlântico espraiados ao
pé da serra.
O projeto que permite o acesso ao local
tem por trás cinco secretarias de Estado,
parcerias com o governo federal e a iniciativa privada e a Fundação Energia e Saneamento como gestora. Somados aos grupos de estudantes e visitantes, o número
dos que passaram por ali desde 2004 che-
ga perto dos 90 mil (até fevereiro passado), abrigando inclusive atividades especiais, como a maratona dos cadeirantes, no
início deste ano, e o rally Caminhos do
Mar. Atualmente, segundo a gerente-executiva Lúcia Silveira, o projeto busca patrocínio de R$ 70 mil para continuar a oferecer o passeio também para alunos das
escolas públicas.
“É uma iniciativa que já desenvolvemos
com a Sabesp e que permite transporte e
ingresso livres, além de material didático
e treinamento de professores. Para a empresa participante há descontos por intermédio da Lei Rouanet”, antecipa, lembrando a preocupação de preservar e transmitir conhecimentos às novas gerações. Ao
lado dos seres da mata, caiapós, tupiniquins, imperadores e poetas do passado –
que voltam a pulsar a cada novo grupo de
visitantes –, a tribo do futuro agradece. ❚
Serviço
Para fazer o passeio no Caminho do Mar é preciso agendar pelo telefone (13) 3372-3307 e seguir cuidados básicos, como usar tênis anti-derrapante, levar protetor solar, repelente e um lanchinho leve. Informações adicionais pelo site
www.fphesp.org.br (link Caminhos do Mar)
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ARTIGO
futuro
Em defesa do
O eixo em torno do qual giram José Serra e Geraldo
Alckmin é movido pelas mesmas engrenagens que
moviam Fernando Henrique Cardoso. O passado
é um estado de dor Por Cido Sério
amarga experiência da privatização
pela qual passamos no Banespa, há
quase seis anos, permite hoje fazer
uma avaliação mais embasada sobre
o processo em curso na Nossa Caixa
e suas conseqüências para todos os
bancários. A venda fatiada das sete subsidiárias em
que foi dividido o banco representa uma privatização disfarçada. Além disso, PSDB e PFL atuam no
estado para que a entrega do último banco público paulista a banqueiros nacionais e estrangeiros seja só questão de tempo.
Conhecemos bem os resultados dessa política que
favorece os banqueiros em detrimento dos trabalhadores e da sociedade. Já passamos por isso. As
primeiras vítimas são os próprios funcionários do
banco e, na seqüência, a categoria bancária como
um todo. O estrago é previsível: PDV, demissões,
piora nas condições de trabalho, aumento do assédio moral e do desrespeito aos direitos.
Mas por que a privatização da Nossa Caixa afetaria negativamente os demais bancários? Primeiro,
porque os funcionários dos bancos públicos têm
papel fundamental nas campanhas salariais unificadas. A capacidade de mobilização desse segmento tem contribuído de forma decisiva para conquistas que beneficiam toda a categoria. É inegável que
a redução do número de bancos públicos diminui
o poder de fogo dos trabalhadores.
Em segundo lugar, a piora nas condições de trabalho em um banco privatizado dá oportunidade
aos banqueiros de tentar nivelar por baixo as políticas de recursos humanos nas demais instituições.
Com o aumento da participação dos grupos privados no sistema financeiro – qualquer que seja o seu
idioma –, nos referenciais de salário e de relações
trabalhistas, passam a vigorar as regras do capitalismo selvagem. Não é mais o banco privado que
procura se igualar ao estatal em alguns aspectos e
sim este que assume cada vez mais o perfil do banqueiro, no que ele tem de pior.
Por fim, a venda da Nossa Caixa reforçará o modelo econômico introduzido no Brasil pelo ex-presidente Fernando Collor e ampliado nos oito anos
PAULO PEPE
A
Cido Sério é presidente
da Associação dos
Funcionários do Grupo
Santander Banespa,
Banesprev e Cabesp
(Afubesp) e diretor da
federação estadual
cutista dos Bancários
(Fetec/CUT-SP)
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do governo Fernando Henrique Cardoso. Modelo
responsável, entre outras coisas, pela entrega de
grande parte do patrimônio público e pelo aumento brutal do desemprego. Por termos essa compreensão de todos os prejuízos que a privatização da Nossa Caixa trará ao conjunto dos bancários e da sociedade é que temos nos posicionado ao lado de
seus trabalhadores e participado de várias atividades em defesa do banco. Também nos solidarizamos com todos os cidadãos e cidadãs deste estado
que exigem a instalação de uma CPI na Assembléia
Legislativa de São Paulo, para investigar denúncias
de irregularidades na utilização da estrutura do banco em benefício de amigos e deputados da base do
ex-governador Geraldo Alckmin.
Queremos que a história da Nossa Caixa tenha um
final diferente da do Banespa. Que os entreguistas do
patrimônio público não atinjam seus objetivos. E, por
experiência própria, sabemos que parte desse jogo estará sendo decidida nas próximas eleições.
O eixo em torno do qual giram José Serra e Geraldo Alckmin é movido pelas mesmas engrenagens
que moviam Fernando Henrique Cardoso. Alckmin
coordenou a venda das empresas do setor elétrico
do estado e participou do processo de concessão das
rodovias – todo consumidor deveria lembrar isso ao
pagar a conta de luz e os pedágios. Ele também contribuiu para a entrega do Banespa.
Serra foi ministro de FHC e no pouco tempo em
que ocupou a Prefeitura de São Paulo aprovou o
projeto das Organizações Sociais (OSs), terceirizando a gestão de diversos setores, entre os quais o da
Saúde – a privatização do serviço público está sendo considerada ilegal pelo Ministério Público.
No âmbito nacional, o país vive um momento de
recuperação de estragos, apesar de todos os percalços. Em janeiro, fevereiro e março deste ano, por
exemplo, o país alcançou os menores índices de desemprego dos últimos cinco anos. Quem exerceu o
poder por mais de uma década e deixou mais estragos do que conquistas, já pode ser observado por
seu legado. A volta da turma de FHC significa a
volta a um passado do qual São Paulo e o Brasil
querem distância. ❚

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