livro 30 anos do aipd - Secretaria dos Direitos da Pessoa com

Transcrição

livro 30 anos do aipd - Secretaria dos Direitos da Pessoa com
Imagem da Capa. Fundo composto por três faixas horizontais nas cores laranja, branca e azul. Sobre a primeira faixa, laranja, temos o número “30”, em branco,
estilizado do selo que celebra os 30 anos do AIPD. O número três representa uma pessoa em cadeira de rodas e o zero o globo terrestre. Na segunda faixa, branca,
desenho no formato de sombra, em preto e verde, de um grupo de pessoas, com e sem deficiência, comemoram com braços levantados em direção aos 30 Anos. Na
última faixa, azul, título do livro na cor branca: “30 anos do AIPD – Ano Internacional das Pessoas Deficientes, 1981-2011”.
1
2
30 Anos do AIPD
Ano Internacional das Pessoas
Deficientes 1981/2011
3
4
30 Anos do AIPD
Ano Internacional das Pessoas
Deficientes 1981/2011
São Paulo, 2011
5
Catalogação na fonte
São Paulo (Estado). Secretaria dos Direitos da Pessoa com Deficiência.
Memorial da Inclusão.
30 anos do AIPD: Ano Internacional das Pessoas Deficientes 1981-2011. /
Secretaria dos Direitos da Pessoa com Deficiência, Memorial da Inclusão. – São
Paulo: Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2011.
412 p.
ISBN 978-85-64047-01-3
1. Pessoas com deficiência.
Inclusão social.
2. Direitos das pessoas com deficiência. 3.
CDD 362.4
Proibida a reprodução total ou parcial sem a autorização
prévia dos editores
Direitos reservados e protegidos
(lei no 9.610, de 19.02.1998)
Foi feito o depósito legal na Biblioteca Nacional
(lei no 10.994, de 14.12.2004)
Impresso no Brasil 2011
SECRETARIA DE ESTADO DOS DIREITOS
DA PESSOA COM DEFICIÊNCIA
Av. Auro Soares de Moura Andrade, 564
01156-001 Barra Funda São Paulo SP
Tel. (11) 5212-3700
6
SUMÁRIO
APRESENTAÇÃO | Governador Geraldo Alckmin
30 anos construindo a democracia 9
INTRODUÇÃO | Secretária de Estado Linamara Rizzo Battistella
Celebrando os 30 anos do AIPD: Uma história de lutas e conquistas de direitos
11
CAPÍTULO 1
Memórias da Luta: Protagonistas do AIPD 19
Histórias dessa história
21
Redemocratização, movimento e preparação para o AIPD
Estratégias de luta
24
27
Convivência integrada
29
Tragédia pessoal x fenômeno social
Embate paradigmático
34
35
37
O Ano Internacional das Pessoas Deficientes
38
Reuniões, seminários, conselho estadual e Constituinte 40
A mobilização mundial 41
O movimento, o AIPD e seu legado de mudanças 42
As pessoas com deficiência e a mobilização hoje 43
Referências bibliográficas 44
Encontros, congressos, coalizão nacional e entidades
CAPÍTULO 2
Da exclusão à participação plena na sociedade:
Um panorama internacional dos 30 anos do AIPD 89
Antes do AIPD
89
Décadas de 1940 a 60: Cooperação técnica da ONU
1970/1980: Década da Reabilitação
90
1974: Primeiras demonstrações públicas
1976: Proclamação do AIPD
91
94
1977: Direitos das pessoas surdocegas
1979: Divulgação do símbolo do AIPD
1979: Tema do AIPD
89
94
94
95
1979: O início do movimento e o AIPD
95
7
1980: Primeiro debate sobre o AIPD 97
1980: Comissão Nacional do AIPD 98
1980: Missão brasileira às Nações Unidas 101
1980: Primeira cidade brasileira a abrir o AIPD 102
Durante o AIPD
102
102
1981: Acessibilidade arquitetônica
103
1981: O AIPD em São Paulo 104
1981: O MDPD no AIPD 105
1981: O AIPD em Bauru 107
1981: O AIPD na TV 108
1981: O AIPD com humor 108
1981: Papel da mídia 109
1981: Uma rampa histórica
1981: A mídia repercutindo atividades do AIPD
112
1981: O apagar das luzes do AIPD
Depois do AIPD
110
113
1982: Programa de Ação Mundial
113
113
1983-1992: Década das Pessoas com Deficiência
1985: Criação do CEAPD
114
1988: Pessoas com Deficiência na Constituinte
114
1992: Dia Internacional das Pessoas com Deficiência
1993: Normas sobre a Equiparação de Oportunidades
116
117
117
2006: Os 25 anos do AIPD
2006: Enfim, a Convenção da ONU
118
2007-2009: O Brasil e a Convenção da ONU
119
Da exclusão (1981) à participação plena na sociedade (2011)?
Referências bibliográficas
119
120
CAPÍTULO 3
A gênese do movimento da pessoas com deficiência: a fase
heroica, as associações pioneiras e os líderes fundamentais 145
Sem intermediários nem tutelas
146
Cenário político e econômico perverso
Invisibilidade, saber e poder
147
148
150
Clube dos Paraplégicos de São Paulo (CPSP) 150
Associações pioneiras e intrépidos líderes
154
156
Associação Brasileira de Deficientes Físicos (Abradef)
Fraternidade Cristã de Doentes e Deficientes (FCD)
Na “fase heroica” do movimento
158
8
Os “dinossauros”
158
163
Referências Bibliográficas 169
No andar de cima
CAPÍTULO 4
Fazendo história: o movimento social pela perspectiva de seus líderes 173
Ana Rita de Paula
176
186
Canrobert de Freitas Caires
Geraldo Marcos Labarrère Nascimento
205
224
Isaura Helena Pozzatti 247
José Roberto Amorim 274
Lilia Pinto Martins 290
Luiz Baggio Neto 302
Gilberto Frachetta
Sandra Maria de Sá Brito Maciel
Wilson Akio Kyomen
313
331
CAPÍTULO 5
O esporte na inclusão da pessoa com deficiência no Brasil 353
Apresentação
353
Um pouco da história do movimento
No mundo 354
No Brasil 358
Os protagonistas dessa história
Os coadjuvantes dessa história
Aldo Miccolis 369
354
365
368
Pequena cronologia do Esporte Adaptado no Brasil
Referências bibliográficas
370
382
CAPÍTULO 6
Memorial da Inclusão: os caminhos da pessoa com deficiência 385
CURRÍCULO DOS AUTORES
Ana Maria (Lia) Morales Crespo
408
408
408
Crismere Gadelha
Elza Ambrósio
Romeu Kazumi Sassaki
409
Suzana Lopes Salgado Ribeiro
Vanilton Senatore
409
409
9
10
30 ANOS CONSTRUINDO
A DEMOCRACIA
O Governo do Estado, por intermédio da Secretaria de Estado dos
Direitos da Pessoa com Deficiência, tem o prazer de publicar este livro que conta
a história dos movimentos sociais em defesa dos direitos das pessoas com
deficiência por meio de memórias e reflexões de suas principais lideranças.
Em 2011, ocasião em que se comemora o trigésimo aniversário do “Ano
Internacional das Pessoas Deficientes” (AIPD), instituído pela Organização das
Nações Unidas, é de fundamental importância que celebremos o significado desta
data e os avanços obtidos nas últimas décadas.
Desde meados dos anos 50, as pessoas com deficiência têm se
organizado e exigido políticas públicas que lhes assegurem direitos básicos,
conforme a própria ONU havia estabelecido na declaração Universal dos Direitos
Humanos, em 1946.
No Brasil, esses movimentos sociais começaram em São Paulo, em 1979,
e espalharam-se para o restante do país. Sua organização foi impulsionada, dois
anos depois, pelo AIPD.
Também é de São Paulo o primeiro conselho estadual na área da
deficiência, instituí-do por Franco Montoro, em 1984. Sua criação respeitou as
decisões do 1º Seminário Estadual da Pessoa Deficiente, realizado naquele
mesmo ano. Na ocasião, foi discutida ainda a política estadual para esse
segmento da população.
Desde então sociedade civil, imprensa e poder público contribuíram para
que novas iniciativas ganhassem força, tais como a multiplicação de conselhos
específicos pelo país, a criação de secretarias em todos os níveis de governo, as
políticas de inclusão nos campos da saúde, educação, cultura e esportes, entre
outras áreas.
O Governo do Estado de São Paulo tem aprofundado as suas ações.
Exemplo disso é a Rede de Reabilitação Lucy Montoro, as Paraolimpíadas
Escolares, a acessibilidade em estações de trem e metrô, o Memorial da Inclusão
e os Encontros de Tecnologia e Inovação para Pessoas com Deficiência.
As reflexões aqui apresentadas sobre os 30 anos do AIPD têm uma
dimensão pedagógica clara: comemorar lutas e conquistas que contribuíram para
assegurar direitos das pessoas com deficiência. É um importante reconhecimento
daquilo que já foi feito e um incentivo para que tenhamos metas cada vez mais
ambiciosas. Boa leitura a todos.
Geraldo Alckmin
Governador do Estado de São Paulo
11
CELEBRANDO OS 30
ANOS DO AIPD:
UMA HISTÓRIA DE LUTAS E
CONQUISTAS DE DIREITOS
Desde 1957, por decisão da Assembleia Geral, a Organização das
Nações Unidas (ONU) conclama os países-membros, por meio dos Anos
Internacionais, a refletirem sobre questões pouco conhecidas que necessitam de
políticas públicas inovadoras por parte dos governos e conscientização da
sociedade global.
Sendo assim, em 1976, a ONU proclamou 1981 o Ano Internacional das
Pessoas Deficientes (AIPD), com o lema “Participação plena e igualdade”, para
colocar em prática um plano de ação em nível internacional, regional e nacional,
com ênfase na equiparação de oportunidades, reabilitação e prevenção de
deficiências.
Numa das mais inspiradas charges1 alusivas ao AIPD, vemos, num canto
da tirinha, um homem em cadeira de rodas sendo assediado por inúmeros
repórteres com seus microfones, câmeras e holofotes. No canto oposto, um
homem faz um gesto de afastamento e diz para uma criança que tenta lhe vender
alguma coisa: “Nem vem! Teu ano já passou!”
Como toda charge, esta é engraçada porque exagera até o ponto do
ridículo a realidade que todos conhecemos. Por isso, não ficamos surpresos
quando, em 1982, Ano Internacional de Mobilização pelas Sanções à África do
Sul, foi a vez de as pessoas com deficiência receberem um chega-pra-lá da
mídia. Mas, se o senso comum nos diz que o interesse da mídia e, por extensão,
da sociedade nos Anos Internacionais só dura, quando muito, 12 meses, por que
celebramos o 30º aniversário do AIPD?
Historicamente, as pessoas com deficiência foram ignoradas por
sociedades e governos. Marginalizadas, tratadas de forma assistencialista,
sujeitas a estigmas, discriminação e tuteladas por famílias, instituições e
profissionais, as pessoas com deficiência nem mesmo tinham o direito de falar por
si mesmas.
Inspiradas pelo AIPD, milhares de pessoas com deficiência ao redor do
mundo se deram conta de que eram cidadãos plenos de direitos e se sentiram
estimuladas a mobilizar seus pares para mudar a realidade injusta em que viviam.
No Brasil, ainda que anteriormente já existissem diversas organizações
de pessoas com deficiência voltadas a defender os interesses de seus
associados, foi apenas dois anos antes de 1981 que, pela primeira vez na
história, indivíduos com deficiência – estimulados pela mobilização da
sociedade brasileira pela redemocratização do país e muito cientes das
oportunidades que seriam oferecidas pelo AIPD –, começaram a se organizar
1
. Publicada no Folhetim, suplemento do jornal Folha de S. Paulo, em 25 de janeiro de 1981, dedicado ao AIPD.
12
nacionalmente, enquanto segmento social, pela conquista e reconhecimento de
sua condição de cidadãos plenos de direitos. Assim, já em 1980, o movimento
organizado das pessoas com deficiência dedicou-se a discutir as estratégias
para o Ano Internacional das Pessoas Deficientes.
A importância do AIPD para a mobilização das pessoas com deficiência
e para a conscientização da sociedade e dos governos já estava na pauta das
discussões e reuniões preparatórias para a realização do 1º Encontro Nacional
de Entidades de Pessoas Deficientes. Esse encontro pioneiro aconteceu em
Brasília, entre 22 e 25 de outubro de 1980, e teve mais de 500 participantes, a
maioria pessoas com deficiência. Durante esse evento histórico, o movimento
decidiu suas estratégias nacionais, criou a Coalizão Nacional Pró-Federação de
Entidades de Pessoas Deficientes 2 (composta por 25 entidades de dez Estados
brasileiros) e entregou ao presidente da República 3 um manifesto contra o fato
de que não havia representantes das pessoas com deficiência na Comissão
Nacional do Ano Internacional das Pessoas Deficientes. Depois dessa e de
outras manifestações, o governo incluiu, na qualidade de consultor da Comissão
Nacional, José Gomes Blanco, representante da Coalizão Nacional.
Em São Paulo, estimuladas pelo AIPD e seu lema, antigas associações
juntaram esforços a novas organizações que surgiam por todo o Brasil. Desse
modo, entidades que já atuavam há anos, tais como Associação Brasileira de
Deficientes Físicos (Abradef), Associação de Assistência ao Deficiente Físico
(AADF), Clube dos Paraplégicos de São Paulo (CPSP), Associação de Deficientes
Visuais e Amigos (Adeva), Fraternidade Cristã de Doentes e Deficientes (FCD),
Sociedade dos Deficientes Visuais do Brasil (Sodevibra) e Associação de
Integração do Deficiente (Aide), se aliaram às recém-criadas organizações
reivindicatórias que começavam a surgir, como, por exemplo, Núcleo de
Integração de Deficientes (NID), Movimento pelos Direitos das Pessoas
Deficientes (MDPD), Associação dos Paraplégicos e Deficientes Físicos do Brasil
(APDFB) e Associação de Paraplégicos de Taubaté (Aparte).
Em 12 de dezembro de 1980, o movimento paulista de pessoas
deficientes realizou o primeiro evento de lançamento do Ano Internacional das
Pessoas Deficientes, em Ourinhos, cidade do interior de São Paulo.
Também por iniciativa do Movimento pelos Direitos das Pessoas
Deficientes, com apoio de diversas organizações paulistas, com a participação de
cerca de 400 pessoas com deficiência, foi realizada a cerimônia oficial de abertura
do AIPD, na Câmara Municipal de São Paulo, em 14 de março de 1981.
No Brasil, o evento mais emblemático de 1981 foi o 1º Congresso
Brasileiro de Pessoas Deficientes, realizado pela Coalizão Nacional, em Recife,
cujo objetivo principal foi reivindicar mudanças nos serviços de reabilitação e exigir
a eliminação das barreiras ambientais e sociais que impediam (e ainda impedem)
a inclusão das pessoas com deficiência. Mas, assim como aconteceu em todo o
mundo, aqui também o Ano Internacional foi marcado por um sem-número de
reuniões, seminários, simpósios, mesas-redondas, debates e uma infinidade de
palestras, notícias, entrevistas e reportagens divulgadas pela mídia.
2
. Mais tarde, a Coalizão se desfez e foram criadas organizações nacionais focadas nos tipos de deficiência, sem
que isso significasse o enfraquecimento do movimento. Ao contrário, isso possibilitou o maior desvelamento do
caráter heterogêneo do movimento e o aprimoramento das reivindicações específicas, mantendo o segmento
unido na luta comum por direitos.
3
. João Batista de Oliveira Figueiredo foi o 30º presidente do Brasil, no período de 1979 a 1985.
13
Nenhuma oportunidade para ampliar a mobilização das pessoas
deficientes e esclarecer a sociedade sobre suas reivindicações foi desperdiçada. A
inédita visibilidade propiciada pelo AIPD contribuiu para levar à sociedade as
primeiras reivindicações do movimento e para governos iniciarem discussões
sobre políticas públicas. Sobretudo, serviu para conscientizar as próprias pessoas
com deficiência e para multiplicar suas organizações representativas.
As discussões em torno dos objetivos do AIPD serviram para conceber o
novo discurso dos militantes e para fundamentar as reivindicações desse
movimento recém-criado no Brasil. Desde o início, ficou claro que a construção da
própria cidadania passava pela edificação de uma nova identidade e isso requeria
a adoção de novos termos para substituir os até então utilizados: “defeituoso”,
“inválidos” e “retardados” entre outras palavras carregadas de preconceitos, que
reduziam os indivíduos à sua deficiência. Por inspiração do Ano Internacional, logo
no começo do movimento, os ativistas brasileiros adotaram o termo “pessoas
deficientes” para afirmar e exigir o reconhecimento de que antes da deficiência
vem a pessoa, o ser humano, e assim inaugurar uma nova relação com a
sociedade.
O Ano Internacional também contribuiu para difundir para a sociedade o
conceito de que, contrariando mitos, as pessoas deficientes não formam um
segmento homogêneo, pois, pessoas com deficiência física, intelectual, visual,
auditiva ou com múltipla deficiência enfrentam barreiras diferentes, de natureza
distinta e que devem ser superadas de modos diversos.
A partir das discussões suscitadas pelo AIPD, a deficiência deixou de ser
considerada uma tragédia pessoal e passou a ser compreendida como uma
condição que existe numa relação entre o meio ambiente e as pessoas
deficientes, cabendo à sociedade eliminar todas as barreiras culturais, físicas ou
sociais que impedem o acesso das pessoas com deficiência aos diversos
sistemas que se encontram à disposição dos demais cidadãos.
Por estímulo do Ano Internacional, do seu lema “Participação Plena e
Igualdade” e das recomendações do Programa de Ação Mundial para as Pessoas
com Deficiência, aprovado pela ONU, em 1982, embasado nas discussões
motivadas pelo AIPD, o movimento das pessoas com deficiência conseguiu com
que as questões que lhes diziam respeito, antes, historicamente ligadas à religião
ou à medicina, fossem, enfim, deslocadas para o campo das Ciências Sociais e
dos Direitos Humanos. Desse modo, o AIPD lançou as bases para a construção
de uma sociedade inclusiva, na qual todos os cidadãos se beneficiam quando as
pessoas com deficiência têm a oportunidade de liderar o seu próprio processo de
desenvolvimento.
Ciente disso, a Assembleia Geral da ONU adotou, em 2010, a resolução
“A Realização dos Objetivos do Milênio para as Pessoas com Deficiência para
2015 e além” que levando em consideração a importância e alcance da
Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência promove a integração
da deficiência nos Objetivos do Milênio, incentiva maior participação das pessoas
com deficiência nos processos de desenvolvimento e apela para uma Reunião de
Alto Nível sobre deficiência e desenvolvimento em 2012.
Não por acaso, o tema do Dia Internacional das Pessoas com Deficiência
deste ano será “Juntos por um mundo melhor para todos: Incluindo pessoas com
deficiência no desenvolvimento”. Esse tema reforça a certeza de que os Objetivos
do Milênio de acabar com a extrema pobreza e a fome, promover a igualdade
entre os sexos, erradicar doenças que matam milhões, reduzir a mortalidade
infantil, melhorar a saúde materna, atingir o ensino básico universal e fomentar
novas bases para o desenvolvimento sustentável dos povos não podem ser
14
alcançados sem a inclusão plena e efetiva das pessoas com deficiência e sua
participação em todas as etapas do processo.
Além disso, para nós do continente americano, há o compromisso de
fazer avançar o respeito aos direitos e ampliar políticas públicas para as pessoas
com deficiência, até 2016, último ano da Década das Américas pelos Direitos e
pela Dignidade das Pessoas com Deficiência, com o lema “Igualdade, dignidade e
participação”, declarada pela Assembleia Geral da Organização dos Estados
Americanos (OEA).
Portanto, celebrar os 30 anos do Ano Internacional das Pessoas
Deficientes é mais do que honrar velhos líderes e resgatar antigas histórias, por
mais importante que isso seja. Celebrar os 30 anos do AIPD é oferecer uma
perspectiva histórica para que os novos ativistas estejam preparados para os
próximos desafios. E apontar para o futuro.
Neste livro, que celebra os 30 anos do AIPD, temos o capítulo “Memórias
da Luta: Protagonistas do AIPD”, a partir de entrevistas com líderes, colhidas pelo
Projeto História Oral, do Memorial da Inclusão, Crismere Gadelha, Suzana Ribeiro
e Lia Crespo traçam um painel da história do movimento das pessoas com
deficiência, no Brasil.
No capítulo “Da exclusão à participação plena na sociedade: Um
panorama internacional dos 30 anos do AIPD”, Romeu Sassaki nos traz um
panorama com os mais importantes fatos e momentos que marcaram a história
das pessoas com deficiência, desde antes, durante e depois de 1981, no Brasil e
no mundo.
No capítulo “A gênese do movimento das pessoas com deficiência no
Brasil: A fase heroica, as associações pioneiras e os líderes fundamentais”, Lia
Crespo discorre sobre a fase inicial e presta homenagem a alguns dos líderes do
movimento.
O capítulo “Fazendo história: O movimento social pela perspectiva de
seus líderes” possibilita um mergulho em dez relatos, marcados pela emoção e
pelo bom humor. São seis entrevistas colhidas pelo projeto de História Oral, do
Memorial da Inclusão, e quatro relatos originalmente feitos para a tese de
doutorado de Lia Crespo, “Da invisibilidade à construção da própria cidadania: Os
obstáculos, as estratégias e as conquistas do movimento social das pessoas com
deficiência no Brasil, através das histórias de vida de seus líderes”.
O capítulo “O esporte na inclusão da pessoa com deficiência no Brasil”,
escrito por Vanilton Senatore, trata da história do Paradesporto no Brasil e sua
importância para a inclusão para as pessoas com deficiência.
No capítulo “Memorial da Inclusão: Os caminhos das pessoas com
deficiência”, Elza Ambrósio, Crismere Gadelha e Lia Crespo tratam da história da
criação e dos principais documentos que compõem a exposição desse memorial.
Esperamos que – através das informações e reflexões oferecidas pelos
autores dos capítulos, dos relatos feitos pelos ativistas, dos documentos e
fotografias aqui incluídos – o leitor possa vislumbrar como esses líderes pioneiros
atuaram no movimento social e político das pessoas com deficiência e tornaram
emblemática essa jornada iniciada há 30 anos.
Linamara Rizzo Battistella
Secretária de Estado dos Direitos
da Pessoa com Deficiência
15
Imagem. Carta para a Década de Oitenta.
Rehabilitation International. Carta para a Década de Oitenta.
“A CARTA PARA A DÉCADA DE OITENTA foi aprovada pela Assembléia Geral da Rehabilitation International, em seu 14º Congresso Mundial, realizado em
Winnipeg, no Canadá, em junho de 1980.
Está sendo apresentada ao mundo como uma importante contribuição para o ANO INTERNACIONAL DAS PESSOAS DEFICIENTES.
Traduzida pela Comissão Estadual de Apoio e Estímulo ao Desenvolvimento do Ano Internacional das Pessoas Deficientes – São Paulo.
DECLARAÇÃO.
Hoje, mais de 500 milhões de pessoas são deficientes no mundo. Em cada país, uma em cada dez pessoas é deficiente devido a um problema físico, sensorial ou mental.
Elas têm o mesmo direito que toda a humanidade tem de crescer e de aprender, de trabalhar e de criar, de amar e ser amado, mas vivem em sociedades que não
aprenderam ainda a respeitar plenamente esses direitos para todos os seus cidadãos com deficiências. São-lhes muitas vezes negadas oportunidades e responsabilidades
que deveriam ser suas.
Mais de 350 milhões de pessoas com deficiência vivem sem a ajuda de que necessitam para viver uma vida plena. Elas vivem em todas as nações, em todas as partes do
mundo, mas a grande maioria vive, sem dúvida, em áreas com incipiente desenvolvimento social e econômico. Nesses lugares a pobreza junta-se à deficiência para
envenenar as esperanças e diminuir a vida das crianças, dos adultos e das famílias.
Estimativamente 25% dos membros de qualquer comunidade estão impedidos pela existência de deficiências, da plena expressão das suas capacidades. Este percentual
inclui não apenas pessoas deficientes, mas também famílias e aqueles que as assistem e as sustentam. Qualquer sociedade que não conseguir dar uma solução efetiva a
esses problemas aceitará não apenas uma imensa perda de recursos humanos, mas também um cruel desperdício de potencial humano.
Através da História, a humanidade tem levantado barreiras físicas e sociais que excluem da plena participação em suas comunidades as pessoas julgadas diferentes
devido a alterações físicas ou mentais. Edifícios e meios de transporte são, na maioria dos casos, inacessíveis a muitas pessoas com deficiência.
A informação e a beleza não alcançam aquelas cuja visão, ou audição, ou compreensão esteja prejudicada. O calor da associação humana é bloqueado para crianças e
adultos cujas capacidades físicas ou mentais são diferentes da maioria das pessoas. Educação, emprego produtivo, serviços públicos, recreação e outras atividades
humanas são negados a muitos ou permitidos apenas segregadamente. Para pessoas com deficiências as mais sérias, que jamais conseguirão ser capazes de atividade
independente, muitas vezes tem havido absoluta negligência ou esforços insuficientes para ajudar em seu desenvolvimento pessoal e para melhorar a qualidade de suas
vidas.
Conhecimento e experiência já existem para capacitar cada nação a remover as barreiras que excluem as pessoas deficientes da vida de suas comunidades. É possível a
cada nação abrir todas as suas instituições e sistemas a toda a sua população. O que está faltando muitas vezes é o desejo político de proclamar e de passar para a ação as
orientações necessárias para concretizar esse objetivo. Uma nação que deixa de dar cobertura a esse desafio, fracassará na compreensão de seu real valor.
Pobreza e guerra não causam apenas deficiência, mas também afetam a disponibilidade de recursos para sua prevenção e reabilitação. Os objetivos deste documento
requerem, para sua plena concretização, portanto, uma distribuição mais equitativa dos recursos do mundo e relações entre nações, que sejam baseadas na razão e na
cooperação.
Nesta Década deve ser o objetivo de todas as nações reduzir a incidência da deficiência e desenvolver as sociedades para respeitarem os direitos das pessoas deficientes,
dando boa acolhida á sua plena participação. Por essas razões é promulgada esta CARTA PARA A DÉCADA DE OITENTA. Seus objetivos, cada um de igual
importância e prioridade, poderão ser alcançados apenas quando houver uma modificação básica das atitudes de cada sociedade para com a deficiência e de suas
respostas aos problemas das pessoas deficientes.
Os objetivos são:
Deslanchar em cada nação um programa para a prevenção de tantas anomalias quanto possível, e assegurar que os serviços necessários de prevenção atinjam
toda família e toda pessoa.
Assegurar que toda pessoa com deficiência e toda família que tenha um membro deficiente recebam os serviços de reabilitação e outros tipos de apoio e
assistência que sejam necessários para reduzir os efeitos incapacitantes da deficiência e tornar possível a cada pessoa viver uma vida plena e ter um papel
construtivo na sociedade.
Tomar todas as medidas necessárias para assegurar a integração mais completa possível e a participação equânime de pessoas deficientes em todos os aspectos
da vida de suas comunidades.
Disseminar informações quanto a pessoas deficientes e seu potencial, bem como a respeito das deficiências, sua prevenção e tratamento, a fim de aumentar o
conhecimento público e a consciência desses problemas e de sua importância para toda a sociedade.
É importante que cada país prepare um Plano Nacional completo para atingir esses objetivos à luz dos princípios enunciados neste documento e de suas próprias
circunstâncias. O plano deveria envolver todos os setores mais significativos da vida nacional e ser um componente de alta prioridade em todos os programas de
desenvolvimento nacional: deveria prover meios para a participação plena das pessoas com deficiências em tais programas.
É essencial que cada nação tenha em seu governo uma repartição ou um indivíduo de nível elevado, diretamente responsável junto ao Chefe de Estado ou de Governo,
conforme o caso, para dirigir a preparação de Plano Nacional e para coordenar a sua implementação. Essa repartição ou essa pessoa deveria ser auxiliada por um
organismo consultor nacional, incluindo representantes de todos os departamentos governamentais relevantes, organizações de pessoas deficientes e grupos voluntários
e profissionais.
A CARTA PARA A DÉCADA DE OITENTA é uma declaração de consenso sobre medidas para possibilitar à humanidade garantir e incrementar os deveres
e os direitos de toda pessoa, tanto aquela que é chamada de deficiente, quanto aquela que não é.”
Colaboração Imprensa Oficial do Estado S/S – IMESP.
Legenda: Acervo digital Memorial da Inclusão. Doação Cedipod.
16
CAPÍTULO
1
17
18
Memórias da Luta:
Protagonistas do AIPD
Crismere Gadelha, Lia Crespo e Suzana Ribeiro
Por inspiração do lema “Nada sobre nós, sem nós”, em meados de 2009,
decidimos buscar, junto aos próprios protagonistas do movimento das pessoas
com deficiência, os mais de 700 documentos que hoje compõem a Exposição
Memorial da Inclusão: Os caminhos das pessoas com deficiência4.
Enquanto o material era colhido, reproduzido e devolvido aos seus
guardiões, tão concentrados estávamos nas tarefas de concretizar a exposição,
que não notamos, de imediato, que semeávamos um campo fértil. Aos poucos,
fomos sendo envolvidos pela narrativa dos duros embates para a conquista de
direitos, das brigas entre amigos seguidas do reatar de laços, dos eventos
recheados de histórias pitorescas, dos acampamentos memoráveis e das viagens
inesquecíveis. Muitos dos militantes, familiares e representantes de instituições
manifestaram o desejo de doar seus documentos, tão ciosamente guardados
durante mais de 30 anos, para a formação de um acervo histórico disponível à
consulta de pesquisadores e interessados no movimento social das pessoas com
deficiência.
Em 3 de dezembro de 2009, na inauguração oficial da Exposição do
Memorial da Inclusão, durante o Seminário “Memórias, Conquistas e o Futuro
do Movimento Social das Pessoas com Deficiência no Brasil”, boa parte dos
personagens homenageados compartilhou com o público lembranças muito caras
ao movimento. Ao concluir essa primeira fase (porque ela é uma obra aberta, em
constante evolução), percebemos que a exposição Memorial da
4
. www.memorialdainclusao.sp.gov.br.
19
Imagem. Retratos coloridos dos 23 entrevistados contemplados no capítulo. Os retratos, no tamanho aproximado de 2 por 2, estão dispostos no interior de um quadro no
formato oval, de cor laranja, tendo como marca d’água o logo do AIPD. Abaixo há a legenda e lista dos nomes: Adelino Ozores Neto Segundo; Ana Maria Morales
Crespo (Lia Crespo); Antonio Carlos Munhoz (Tuca Munhoz); Aparecida Akiko Fukai; Célia Camargo Leão; Celso Zoppi; Cíntia de Souza Clausell; Cláudia Marques
Maximino; Francisco Núncio Serignoni (Chico Pirata); Gonçalo Aparecido Pinto Borges; Ilda Mitico Saito; Iracema Alves Lazari; João Batista Cintra Ribas; Leila
Bernaba Jorge Klas; Linamara Rizzo Battistella; Márcia Cruz; Maria Amélia Vampre Xavier; Maria de Lourdes Ribeiro; Marisa do Nascimento Paro; Marta de Almeida
Machado; Nilza Lourdes da Silva; Suely Harumi Satow e Wanderley Ferreira dos Santos.
20
Inclusão mostra uma história multifacetada, bordada como uma colcha de
retalhos, na qual cartas, relatórios, cartazes, fotos, revistas e vídeos se entrelaçam
a memórias e afetos que tais documentos fizeram emergir. Naquele momento,
apresentou-se com vigor e clareza a necessidade premente de criarmos o Projeto
de História Oral e o Banco de Memórias da Inclusão.
Iniciamos a concretização desses projetos logo nos primeiros meses de
5
2010 . Na primeira fase do Projeto de História Oral, foram entrevistadas pessoas
que atuaram desde o início do movimento e, especialmente, durante 1981, o Ano
Internacional das Pessoas com Deficiência (AIPD). As entrevistas privilegiaram o
diálogo com os colaboradores, considerando as memórias e subjetividades de
cada um. Nesse processo de intervenção e mediação, deu-se a construção das
narrativas relativas às vivências pessoais e às experiências do grupo formado em
torno da identidade comum a todos, essencialmente marcada pela invisibilidade e
pela busca da inclusão.
Para a realização desse registro, foi elaborado um roteiro com perguntas
sobre a infância, formação, envolvimento na militância, atuação durante o AIPD,
vivência em relação à questão da deficiência e percepção quanto às conquistas e
ao caminho trilhado. Apesar da existência desse roteiro inicial, o que prevaleceu,
no momento do encontro, foi o respeito ao modo de os entrevistados tratarem os
assuntos sugeridos e a importância que deram a eles. Desse modo, a propoºsta
foi descobrir os temas relevantes nas diversas histórias de vida, sem precisar
trazer à tona fatos históricos preestabelecidos (MEIHY, 2005 e RIBEIRO, 2007).
Neste capítulo, apresentamos uma ínfima parte do tesouro colhido pelo Memorial
da Inclusão.
Histórias dessa história
A maior parte dos entrevistados, bem como suas famílias, foi fortemente
marcada pelo quase completo desconhecimento e despreparo dos profissionais
para lidar com suas deficiências e necessidades específicas. Além dessas
dificuldades, as famílias também se viam às voltas com sentimentos contraditórios.
Por um lado, havia o discernimento intuitivo para lidar com o filho deficiente, o
desejo de estimular seu desenvolvimento para que tivesse um futuro. Por outro,
não faltavam dúvidas, sentimentos de culpa, vergonha e medo decorrentes do
desconhecimento das causas e significados da deficiência:
Meu filho nasceu com síndrome de Down, alteração no cromossomo 21, e
encarei, na hora, com uma revolta tão grande... Até então, eu era completamente
independente. Enfrentava muito bem as calçadas, andava com aparelho
ortopédico, mas com muita desenvoltura. Frequentava festas e namorei bastante,
não nego. “Qual é o problema do bebê?” Naquele tempo, o termo era
mongoloide, então, falei: “Ele é mongoloide.” A funcionária do hospital
respondeu: “A senhora está no lugar errado, porque aqui só cuidamos de loucos.
Não conheço mongoloide.” Perguntei: “Então, se você não conhece, não tem
algum médico a quem possa perguntar para onde eu devo ir?” (...) Aí, começou a
minha luta, porque não perdoei que esse hospital do governo não tivesse
funcionários capacitados para falar comigo e me dar uma resposta. Ela insistia:
“Ele é louco?” Eu falei: “Não, que eu saiba.
5
. O Memorial da Inclusão realizou 32 entrevistas em 2010, as quais compõem o Banco de Memórias da
Inclusão. Essas entrevistas foram conduzidas por Suzana Lopes Salgado Ribeiro. O Banco é complementado
pelas 6 entrevistas realizadas por Ana Maria Morales Crespo, a Lia Crespo, por ocasião de sua pesquisa de
doutoramento em História Social, na Universidade de São Paulo. Lia Crespo doou suas entrevistas ao Projeto
Memorial da Inclusão.
21
Não! Não é louco. Ele tem mongolismo e precisa ser tratado.” Disseram: “Mas nós não
sabemos como!” E o Heitor rindo, brincando com a chupeta, com o ursinho e com a
girafinha. (Iracema Alves Lazzari)
Um médico deitou o Ricardo, para tirar radiografia, e me disse assim: “A cabeça desse
menino não tem nada que funcione. Nada! Ele tem a cabeça de um velho.” (...) A minha
ideia era fugir com o Ricardo para algum lugar longe, onde ninguém nos conhecesse. Foi
a minha primeira grande crise de angustia! Passei a noite virando de um lado para o outro.
(...) Quando fundamos a Apae de São Paulo, em 1960, havia o chamado modelo médico,
então os pais e mães eram totalmente ignorados. Por exemplo, os médicos da época (não
os ligados à Apae e à PUC, porque esses eram de outro tipo) diziam assim: “Quantos
filhos o senhor tem?” Se o pai respondesse: “Ah, tenho três.” O médico dizia: “Pois é,
então, esqueça este aqui, porque não vai dar em nada. Vai ser como um vegetal. Coloque
em algum lugar, um internato qualquer e esqueça que ele existe.” Como se isso fosse
possível para um pai e uma mãe. Os pais ficavam apavorados. As famílias grã-finas, de
fazendeiros, escondiam o filho que nasceu com deficiência. Botavam lá em São Carlos,
bem longe, com uma pessoa tomando conta dele. Muitas vezes, os filhos, os outros
irmãos, não sabiam que tinha nascido uma criança com deficiência. Acontecia tudo isso!
Quer dizer, havia uma vergonha. Era uma coisa horrorosa ter um filho com deficiência. Era
porque alguma coisa de mal tinha sido feito, sinal que algo seu estava errado. (...) Daí,
surgiu o Projeto Momento da Notícia, da Apae. (Maria Amélia Vampré)
Até os 17 ou 18 anos, tinha muito preconceito com relação à minha própria deficiência. É
até possível entender um pouco o motivo. Até os 40 e poucos anos, usei aparelho
ortopédico. Um equipamento pesado, que passou por poucas atualizações. (Nesse
sentido, as órteses se desenvolveram muito menos do que as próteses.) Era um aparelho
que me machucava e causava ferimentos. Por usar aparelhos, passei minha infância e
adolescência ouvindo da minha família inteira: “O meu filho se livrou da cadeira de rodas.”
Como se ela fosse um objeto horrível. Ainda hoje, existe uma imagem preconceituosa em
relação a ela. No imaginário popular, é tida como uma prisão. Mas, na verdade, é o
contrário! A cadeira de rodas é a liberdade! Então, apenas depois dos 40 anos tive uma
cadeira de rodas. (João Baptista Cintra Ribas)
Lembro que, na minha infância, morava no décimo andar de um prédio, na Avenida São
João. Quando nasci, foi aquele choque. Foi um susto, pois minha irmã não tinha nada. Eu
era a segunda filha e nasci sem pernas e sem braços. Minha mãe dizia que queria muito
me jogar pela janela e pular em seguida! Não fez isso porque tinha a minha irmãzinha dois
anos mais velha. (...) Fiquei internada na AACD (Associação de Assistência à Criança
Defeituosa). Na verdade, minha mãe começou minha reabilitação com 8 meses, porque
nasci com os pés grudados, os quais ela teve uma percepção brilhante de pedir para o
médico tirar para que eu pudesse usar as próteses. Os médicos falavam: “Imagina, a
senhora é louca! Sua filha nunca vai andar!” Não se sabia as perspectivas de vida das
vítimas da talidomida. Mesmo quando nasci, o médico se perguntou: “O que aconteceu?”
Começaram a fazer uma pesquisa. Minha mãe falou que passou muito mal com enjoos:
“O médico me receitou e tomei dez comprimidos.” Minha mãe não teve nenhum enjoo na
primeira gravidez, só passou mal na minha. (Cláudia Marques Maximino)
Lembro que eu não queria estudar por causa da minha mão, que não tinha coordenação
fina para escrever. Uma vez, minha mãe teve um ataque de nervos e jogou todos os meus
livros para o alto: “Se você não quiser ser nada na vida, não estuda mais, fica aí jogada
num canto.” Chorei pra caramba, recolhi todos os meus livros e cadernos falando: “Não.
Eu quero estudar!”(...) Fiz o colegial e depois entrei na PUC para fazer Filosofia, em 1972.
Essa era uma época brava! (...) Lia todos os textos de Filosofia e também coisas como
literatura. Todo mundo ficava espantado: “Puxa, essa menina lê e faz tudo isso!” Depois
de seis meses, começou a me dar uma dor de cabeça que não
22
passava com nada. Se fizesse um pouquinho mais de esforço, parecia que o
crânio ia esmagar o meu cérebro. (...) Eu e minha mãe fomos procurar médicos.
Foi quando um médico perguntou: “A sua filha faz coisas perigosas, tipo subir no
telhado? A sua filha deixa as roupas espalhadas pela casa?” E foi continuando
com essas perguntas. Aí, a minha mãe falou: “Calma. Não é nada disso que o
senhor está pensando. Uma ‘retardada mental’ não consegue chegar até o
segundo ano de Filosofia, na PUC, em São Paulo.” (Suely Harumi Satow)
Muitos dos entrevistados mantêm uma relação indissociável com os
centros de reabilitação, nos quais estiveram internados, durante a infância e
adolescência. Criados nas décadas de 1920-1930, com seu auge nas décadas de
1960 e 1970, os centros de reabilitação continuam ativos até hoje. São instituições
baseadas na disciplina rígida, apoiadas no atendimento conforme os tipos de
deficiência (que na maior parte das vezes desconsidera necessidades e desejos
individuais) e, profundamente, calcadas no “modelo médico da deficiência e no
discurso científico tido como verdade absoluta, que desqualifica todas as outras
possibilidades de entendimento e todos os outros conhecimentos tidos como não
científicos” (NALLIN, 1994, p.39)6. Os entrevistados se deram conta de que a
reabilitação física e o conforto arquitetônico das entidades de assistência à pessoa
com deficiência não garantiam a inclusão. Fora dos muros dos centros de
reabilitação e das associações de assistência – com suas dependências
acessíveis –, as pessoas com deficiência se deparavam com o contexto social
totalmente inacessível e, quase sempre, preconceituoso. Ainda que algumas
pessoas tivessem conhecimento de como a questão da deficiência era tratada em
outros países, sob a égide do paradigma da integração, ninguém questionava que
a responsabilidade de mudar essa realidade era inteiramente do indivíduo:
Na AACD era tudo acessível: rampa, cama adaptada, cadeira de roda, banheiro
espaçoso, cadeira de banho. Nesse mundo, você tem certa independência. Aí,
você vai para casa e encontra degrau, não dá pra subir ao quarto, tem que
dormir na sala, no banheiro não cabe a cadeira, é degrau em tudo quanto é lado,
não tem rampa, as pessoas não sabem te pegar, ninguém treinou a família para
você ir para casa. “Opa, espera lá, vamos ter que ver isso aqui! Vamos ter que
mudar essa realidade. As pessoas vão ter que aprender a lidar comigo e eu vou
ter que aprender a lidar com os ambientes!” Mas, em 1976, o movimento das
pessoas deficientes ainda não existia no Brasil. Nossa atuação ainda era muito
individual. As únicas associações que existiam eram a AACD e a Apae. Mas,
elas não brigavam pelos direitos das pessoas com deficiência. Elas se
preocupavam só com o tratamento, em mandar a pessoa para casa. Mas, sem a
preocupação de saber se a pessoa seria produtiva. Quando saí da AACD, em
1976, a exclusão da pessoa com deficiência era total. Você não tinha direito de
trabalhar, de estudar. Mas, a gente sabia da realidade das pessoas com
deficiências no mundo, através do contato com o pessoal que vinha fazer
intercâmbio na AACD. Vinha gente do Chile, da Colômbia, do Peru, de Portugal,
da Espanha. A gente começou a ver os movimentos dos EUA, por conta,
inclusive, da guerra do Vietnã e de outras guerras que estavam acontecendo. As
pessoas com deficiência, nos EUA, já em 1975, começaram a se impor
perguntando pelos seus direitos. Isso acabou gerando reflexos no Brasil. Em
1980 começou o movimento. Eu estava fora do hospital havia quatro anos.
(Adelino Ozores)
6
. CRESPO, Ana Maria Morales. Da invisibilidade à construção da própria cidadania. Os obstáculos, as
estratégias e as conquistas do movimento social das pessoas com deficiência no Brasil, através das histórias de
vida de seus líderes. Tese de doutorado, FFLCH/USP, 2009.
23
Dentro da AACD, a gente tomava contato com os outros paraplégicos. Sempre
falavam: “Aqui dentro é uma beleza, não tem escada, tem banheiro adaptado. As
entidades são muito boas com a gente aqui, mas, lá fora, não têm nenhuma
representatividade. Não mudam o mundo lá fora.” Fui tomando contato. Eu me
lembro da Akemi, uma japonesa que morava lá dentro da AACD. Ela me apresentou
o MDPD. Ela falou: “Esse pessoal formou um movimento que está fazendo
reivindicações, lutando para que aconteçam algumas coisas. Quando você sair daqui,
vai ver a realidade. Não vai ter ônibus. Provavelmente, na escola em que você
estuda, não vai ter banheiro. Não vai ter adaptações. Você vai ver que tudo é
diferente. Se isso não começar a ser mudado, nunca vai mudar.” Isso foi em 1980.
(Wanderley Ferreira dos Santos)
Minhas cirurgias foram feitas no HC (Hospital das Clínicas). Mas, a preparação dos
aparelhos ortopédicos e a reabilitação sempre foram feitos na AACD, onde aprendi a
nadar. Mas, a minha relação com as outras crianças com deficiência era distante,
como se a deficiência nos distanciasse, em vez de nos aproximar. Não era uma
relação gostosa. Acho que eu não via a minha própria deficiência de uma maneira
boa também. Não via de uma maneira positiva. (Tuca Munhoz)
Redemocratização, movimento
e preparação para o AIPD
A “fase heroica” do movimento das pessoas com deficiência coincide com
o mandado do general João Batista Figueiredo (1979-1985). Durante seu governo,
foi dada continuidade à abertura política, iniciada no governo de Ernesto Geisel
(1974-1979), e foi promulgada a Lei da Anistia7. Em 30 de abril de 1981, ocorreu o
chamado atentado do Riocentro, um frustrado ataque à bomba, durante um show
comemorativo do Dia do Trabalhador. Foi nesse contexto, a exemplo de inúmeros
setores da sociedade – como os negros, as mulheres, os homossexuais, os semterra (GOHN, 1997 e 2003) –, que as pessoas com deficiência também se
mobilizaram por direitos.
A invisibilidade social dessas pessoas também foi uma das marcas dos
anos de ditadura no Brasil. A mídia evitava veicular imagens de pessoas com
deficiência e as instituições prestadoras de serviço para essas pessoas as
representavam perante todas as instâncias.
Assim, ainda que a sociedade estivesse em processo de abertura, é interessante
notar que o regime militar mantinha vigilância sobre todos aqueles que se destacavam pelo
inconformismo em relação ao status quo. Prova disso é que o Memorial da Inclusão, em
pesquisa no Arquivo Público do Estado, descobriu que não apenas o militante do
Movimento pelos Direitos das Pessoas Deficientes (MDPD), Cândido Pinto de Melo (19478
9
2002) , foi vigiado pelo Dops . Também, há registro da atuação de Isaura Helena Pozzatti
e Maria de Lourdes Guarda (1928-1996), ambas, à época, da coordenação da
Fraternidade Cristã de Pessoas com Deficiência. Ainda que pareça inacreditável, de
acordo com a documentação encontrada, os
7
. Nome popular da Lei n° 6.683, promulgada em de 28 de agosto de 1979, graças à Campanha da Anistia,
organizada pela sociedade brasileira.
8
. Cândido tornou-se paraplégico, no dia 28 de abril de 1969, aos 22 anos, quando sofreu um atentado desferido
pelas forças do regime militar. Ele era presidente da União dos Estudantes de Pernambuco (UEP), entidade
cassada pela ditadura.
9
. Departamento de Ordem Política e Social (Dops), criado em 1924, foi o órgão do governo brasileiro, utilizado
principalmente durante o Estado Novo e mais tarde no Regime Militar de 1964, cujo objetivo era controlar e
reprimir movimentos políticos e sociais contrários ao regime no poder.
24
“arapongas” estiveram presentes, colheram e anexaram em seu relatório os
folhetos distribuídos durante o primeiro ato público realizado pelo movimento, em
1981, em frente ao Teatro Municipal, no centro da cidade de São Paulo. Portanto,
não julguemos como mera paranoia ou fantasia os receios dos ativistas em defesa
dos direitos das pessoas com deficiência:
Acho que em 1979 ou 80, fazíamos reunião da equipe de coordenação da FCD, na
igreja do Carmo, lá na Rua Monsenhor Passalacqua. Naquela ocasião, tínhamos que
pedir licença para o Dops. Sim, pedir licença para o Dops, mandar a relação dos
nomes dos participantes e dizer o motivo da reunião! Em uma ocasião, estávamos
em Parelheiros, acho que num encontro de formação ou coisa parecida, e a gente
começou a aprender a letra daquela música Caminhando (Pra não dizer que não falei
das flores), do Geraldo Vandré. Um dos participantes era medroso que só e falou:
“Não! Essa música a gente não deve cantar porque se o Dops aparece por aqui o que
vai acontecer? Todos os aleijadinhos vão ser presos!” Tinha repressão, sim! Nossa
Senhora! (Ilda Mitico Saito)
O MDPD se caracterizou mais por elaborar as leis. Tinha o Cândido Pinto de Melo
que vinha do movimento estudantil. Ele era uma pessoa com muita visão política.
Quando houve aquele encontro, no sítio em Ibiúna10, o exército cercou os estudantes
e ele foi preso. Cândido contava isso para mim. Esse fato inclusive é relatado no livro
do Zuenir Ventura, chamado “1968: o ano que não acabou”. O Cândido, às vezes,
contava essas histórias. Via também, pela personalidade dele, muita liderança e
conhecimento. Sem dúvida o Cândido era o grande líder em todos esses eventos.
Era bom para conversar com políticos. Ele conversava de igual para igual. As
pessoas o reconheciam como um líder. (Wanderley Ferreira dos Santos)
Em 1975, quando começam as Declarações de Direitos e começava a existir um
movimento de ação mundial, o Brasil vivia o auge do período revolucionário. Por mais
que tivéssemos conexão com o mundo de fora, as repercussões internas sobre
qualquer ação mundial eram muito tímidas. Havia algum tipo de temor com relação à
organização dos movimentos comunitários. Não era bem visto ter uma associação de
bairro, ou um centro acadêmico. Certamente, numa fase de pouca liberdade, uma
questão como essa acaba ficando muito diluída. Acho que desaprendemos, em
algum momento, a participar e olhar para o outro. O sentido de alteridade fica
diminuído quando se é privado de liberdade. E não era uma privação ostensiva,
explícita. Em 1975, não se via mais ninguém sendo preso. A movimentação estudantil
começava a ser um pouco mais normal, mas ainda existia muito temor, essa era a
verdade. 1981 sinaliza uma coisa que é maior do que o movimento de luta pelos
direitos das pessoas com deficiência. Era mais do que um movimento de luta, era um
movimento que reuniu efetivamente toda a sociedade. Acho que teve uma
importância grande para as famílias e associações que trabalhavam com a
deficiência intelectual e acho que foi um momento importante para esse grupo de
pessoas. Porque, se de um lado, as questões que envolvem a deficiência física e até
a visual tinham uma razoável aceitação social, a deficiência intelectual ainda estava
muito circunscrita às entidades. (Linamara Rizzo Battistella)
Em função da preparação para o Ano Internacional das Pessoas
Deficientes e para a década mundialmente dedicada às pessoas com deficiência,
sob a proteção da Carta para a Década de Oitenta, da Reabilitation Internacional,
muitos grupos se uniram e passaram a atuar juntos.
10
. Cerca de mil estudantes que participavam do 30º Congresso da UNE, iniciado clandestinamente num sítio, em
Ibiúna, no sul do Estado, foram presos por soldados da Força Pública e policiais do Dops. Publicado na Folha de
S. Paulo, domingo, 13 de outubro de 1968, (http://almanaque.folha.uol.com.br/brasil_13out1968.htm).
25
Passaram-se os anos, tinha uma entidade aqui outra ali. Havia o NID, a Associação
de Integração do Deficiente (Aide), a FCD e outras. Éramos pequenos, então por que
não nos unirmos para uma coisa maior, fazer um movimento de luta por direitos?
Então nós fundimos, unimos todas essas entidades, viramos um movimento. O
MDPD foi fundado! Entreguei a Aide para o MDPD. Começamos a exigir que o metrô
tivesse elevadores, rampas, que as calçadas fossem modificadas, que o ensino do
braile fosse feito nas escolas como obrigatoriedade, como lei, exigindo salas brailes,
livros confeccionados gratuitamente e professores itinerantes. Uma porção de
exigências. (...) Quando o movimento começou, eram oito coordenadores. Tinha o
Cândido, o Rui, o Gilberto e outras pessoas. Acho que a Lourdes estava e eu
também fazia parte. Nós nos reuníamos uma vez por mês. Quando o movimento
começou a tomar vulto, fomos participar, em Brasília, de alguns eventos. A coisa
começou a pegar em vários Estados e começamos a fazer parte de uma executiva
nacional. (Leila Bernaba Jorge Klas)
Em 1979 e 80, a turma se reunia. Era um grupo maravilhoso, não havia briga, era só
discussão dos problemas, das leis. Porque as leis eram feitas de cima para baixo,
mandando na gente. Quisemos acabar com isso. No movimento, formaram-se os
grupos de trabalho: barreiras arquitetônicas, saúde, transporte, cultura. Eu peguei o
grupo de transporte e barreiras arquitetônicas. A gente começou a lutar juntos. (Nilza
Lourdes da Silva)
O Romeu já sabia de entidades que tinham sido formadas e convidou o pessoal do
NID para participar das reuniões. O movimento estava bem ativo mesmo. Uma vez
por mês, nós nos reuníamos numa sala de aula, nas Faculdades Metropolitanas
Unidas (FMU), ou onde fosse possível. Sempre havia mais de 80 pessoas, a maioria
com deficiência, que se colocavam em círculos concêntricos. Vinha gente do interior
participar. Isso aconteceu, regularmente e sem falhas, durante um ou dois anos
seguidos, até a criação do Conselho Estadual, em 1984. Foi o Romeu quem trouxe a
novidade do Ano Internacional para a gente. Em 1980, fizemos, em São Paulo, vários
encontros paulistas e nacionais, preparatórios para o Ano Internacional, que
envolveram muita gente e foram bem interessantes. (Lia Crespo)
O movimento social ampliou e recriou o espaço público, bem como
transformou a imagem das pessoas com deficiência, ao dispensar seus antigos
porta-vozes (os médicos, os padres, os políticos) e passar a falar por si mesmos.
E, o mais importante, se fizeram ouvir. E isso só foi possível, como grupo ou
coletivo, por meio da “cidadanização” de seus membros.
Passei realmente a me ver como uma cidadã. Não mais como indivíduo, que
deveria estar resolvendo as coisas isoladamente, mas como uma cidadã que
tinha direitos e que deveria exigir que os direitos fossem respeitados. (Lia
Crespo)
Excetuando-se aqueles poucos que já tinham uma atuação política
anterior ao movimento, todas as outras aprenderam as habilidades para negociar
e harmonizar interesses diferentes, participando das reuniões. Algo, por vezes,
impensável na vida dessas pessoas, antes da entrada no movimento social.
Assim, os militantes repensaram uma concepção de Estado e Sociedade em
termos contemporâneos. Ultrapassaram a esfera de suas preocupações
particulares e se empenharam ativamente em modificar a realidade de todas as
pessoas que enfrentavam dificuldades semelhantes. Sabem que seus destinos
estão atrelados à sorte dos demais cidadãos. Portanto, é natural que os militantes
do movimento das pessoas com deficiência se interessem ativamente pelo que se
passa na sociedade em geral. Assim, é natural que “esses mesmos homens e
mulheres” se tornem “sujeitos ativos da política explícita”
26
(Castoriadis, 1992, p.113). Desse modo, extrapolando os limites das necessidades
das pessoas com deficiência e, ao mesmo tempo, elevando os interesses dessas
pessoas a patamares mais altos, diversos militantes, treinados nas lides do
movimento, seguiram a vida política. Entre os entrevistados temos os exemplos da
deputada estadual Célia Leão e do vereador Celso Zoppi.
Estratégias de luta
Como um movimento multifacetado, os diversos grupos de pessoas com
deficiência tinham estratégias diferentes de atuação que se completavam. O NID,
além de dedicar-se a disseminar sua filosofia de atuação, através de um bemhumorado jornal, e elaborar políticas públicas, também se destacava por “forçar” o
acesso e o atendimento às pessoas com deficiência, enquanto consumidoras que
são, ao reunir-se em teatros, cinemas e eventos culturais diversos. A FCD
notabilizou-se por buscar as pessoas com deficiência onde quer estivessem em
situação de marginalidade (prisões, asilos, hospitais e, mesmo, residências
familiares), para “resgatar” a autoestima e mobilizá-las para a causa. O MDPD
teve forte atuação na elaboração de leis para assegurar direitos, discutiu
profundamente as principais questões e travou o bom combate contra o modelo
médico da deficiência. E todos organizaram e participaram de várias
manifestações públicas em protesto contra a falta de acesso, algumas
consideradas hoje simbólicas, como a realizada no metrô, durante a qual uma
militante se acidentou na escada rolante, e a passeata em frente ao Teatro
Municipal, no centro de São Paulo.
Às vezes, Romeu, Ana Rita e eu varávamos a noite escrevendo documentos, como,
por exemplo, propostas para a criação de um órgão que coordenasse a política para
as pessoas com deficiência no Estado de São Paulo. (...) Em 1982, houve as
primeiras eleições democráticas para governador, senador, deputados estaduais e
federais, depois da abertura política. Foi uma época bastante fervilhante. O NID
organizou mesas-redondas, com os principais partidos políticos, para discutir a
questão da pessoa com deficiência. Fizemos uma série de reivindicações e
reclamações quanto à falta de acesso aos locais de votação. Fui muitas vezes a
Brasília para levar nossas reivindicações aos políticos. (Lia Crespo)
Saíamos juntos, íamos à feira de Utilidades Domésticas (UD), ao cinema, ao teatro.
Íamos a lugares mais amplos, numa turma, para chamar a atenção mesmo! Estávamos
lá para ser vistos e aceitos. A gente passava na rua e as pessoas olhavam e
admiravam. Chocava um pouco. (...) Diziam: “Nossa! O que esse bando está fazendo
aqui? Vão pedir esmola?” Esse tipo de comentário pejorativo era comum, pois as
pessoas deficientes que normalmente eram vistas nas ruas pediam esmolas.
Queríamos mudar essa percepção, para uma imagem em que se visse que temos a
limitação, mas, no restante, somos humanos, com tantos interesses quanto os outros.
Podemos gostar de cinema, de teatro, de shows como qualquer outro. (...) Eram
frequentes as nossas atividades e eventos. Em 1981, no Ano Internacional, o NID
participou de uma feira de artesanato, realizada na Praça Roosevelt. Quem quisesse
podia expor. A gente fez algo sobre barreiras arquitetônicas. (Marisa do Nascimento
Parro)
A lei da talidomida era de 1982 e me dava direito a quatro salários mínimos. Só que o
governo, durante o processo inflacionário, deixou de aplicar a correção monetária e o
valor foi desvalorizado. No passado, existia só uma associação de pais e amigos das
vítimas, a ABTV (Associação Brasileira das Vítimas de Talidomida), do Rio Grande do
Sul, com regionais em Minas e São Paulo. Essa associação era forte. Eu ligava e
perguntava: “O que vocês estão fazendo? Por que a nossa pensão está assim?” Eles
respondiam, fazendo corpo mole: “Estamos entrando com ação, mas...” (...) Falei “Já
27
que esse povo não faz nada eu vou fazer!” Consegui colocar, de graça, um anúncio
no jornal, com o título “Vitima da talidomida faça parte do grupo” e divulguei meu
telefone. (...) Meia dúzia de pessoas me telefonou. Estava todo mundo com uma
pensão pior do que a minha, pois isso depende do grau da limitação da pessoa.
Comecei a andar atrás de políticos. Sentava nos gabinetes e falava: “Não saio daqui
enquanto não conseguir contar e comprovar minha triste história.” Eu dizia: “Olha, eu
fiz uma faculdade, mas não consigo emprego por conta de transporte e outras
dificuldades. Como é que eu vou fazer?” Sentei lá com o senador, que disse que ia
me arrumar uma audiência com o ministro da Previdência. Mas, era muito engraçado,
porque quem era a Cláudia? Quem era essa associação de São Paulo? (Cláudia
Marques Maximino)
Em 1980 e 1981, no Ano Internacional, tivemos as mesas-redondas, durante as quais
se discutiu todos os problemas. O grupo de transportes, do qual fiz parte, se reunia
toda sexta-feira, durante muito tempo na ABNT (Associação Brasileira de Normas
Técnicas). Tinha muita gente da USP, sociólogos, médicos, pessoas especializadas
em barreiras arquitetônicas. A discussão era grande e bem movimentada. Foi um
movimento que abriu para a participação de todos. A primeira vez em que a gente fez
uma manifestação, pela implantação da acessibilidade no metrô, uma amiga
batalhadora, a Helena Melo de Oliva, caiu da escada rolante, porque o segurança
não soube levá-la. Foi terrível! Ela tinha feito quimioterapia. Usava peruca, que foi
longe. Tudo foi muito constrangedor e triste. Estávamos mostrando ao povo que
precisávamos de acessibilidade. Precisávamos que as barreiras fossem eliminadas!
(Nilza Lourdes da Silva)
Em 1981 tivemos o Ano Internacional das Pessoas Deficientes. Tínhamos uma luta
muito grande. O NID tinha um jornalzinho chamado “O Saci”. Eu fazia a ilustração e a
diagramação, a Lia fazia os textos. Ela é uma excelente jornalista, tem uma cabeça
maravilhosa. Ana Rita cedia a casa dela, em Pinheiros, perto da USP, para que a
gente fizesse “O Sacizinho”. A gente varava a noite. Algumas pessoas rodavam os
originais no mimeógrafo, para podermos espalhar o jornal. A gente fazia da nossa
vida uma sátira, era muito gozado. Fazíamos piada das nossas aventuras, das
nossas loucuras, das nossas reuniões. (Gonçalo Aparecido Pinto Borges)
O metrô chegou em São Paulo e não fez acesso para deficiente. Daí eu falei: “Gente,
não adianta ficar pedindo, a gente tem que entrar com uma ação na Justiça.” Acho
que foi a primeira ação pelos direitos que o movimento moveu, contra a Companhia
do Metrô. (Márcia Cruz)
Durante o Ano Internacional do Deficiente, a Fraternidade fez um encontro, que durou
uns nove dias, se não me engano. Ficamos na casa de retiro São José, que foi
emprestada. Fiquei lá, com todo mundo, fazendo as coisas. Era festa de São João. Ah,
foi muito lindo! Vieram os deficientes visuais, o pessoal do Sul. Todo mundo! Vieram
também os hansenianos, entre eles, um moço, cujo apelido era Bacurau. Ele fazia
muitas músicas, escrevia e cantava muito bem. Foi muito lindo este Ano Internacional!
(...) Levamos os deficientes para o metrô. Eles perguntavam: “Por que não tem rampa?”
Naquele dia, o metrô atrasou três horas. Tinha uma moça que estava com câncer que
rolou pela escada, porque o segurança não soube segurá-la. Daí, os outros não
queriam descer. Um deficiente chamado Edson, de Campinas, que tinha uma
fragilidade óssea, falava para mim: “Lourdes, manda parar a escada rolante para eu
descer.” Falei para o segurança: “Para a escada para ele descer, porque agora eles
estão com medo.” Porque não dava para passar. Não tinha banheiro adaptado, nem
elevador. Nada. A partir daí, começaram a pôr elevador, fazer rampa, a agilizar as
coisas. Melhorou um pouco. Esse é o tipo de trabalho que os colaboradores da FCD,
como eu, fizeram de coração. (...) Foi logo que a gente começou a Fraternidade. Ah,
como eu gostei desse trabalho! (Maria de Lourdes de Ribeiro)
Em 1981, houve muita manifestação de rua. A gente parava o trânsito na Avenida
Paulista. Era para que as pessoas nos vissem, porque elas diziam: “Cadê? Não
existe deficiente!” Aí, a gente ia,
28
todo mundo, para a rua, para que a sociedade nos visse. Para o governo ver que a
gente estava lá. (Aparecida Akiko Fukai)
A gente foi conquistando os caminhos. As leis foram obrigando as empresas a abrirem
vagas de trabalho, fazendo as escolas serem inclusivas, forçando os bancos e as igrejas
a terem acessibilidade. Às vezes, tínhamos de fazer um barraco. Lembro que uma vez
eu queria entrar no banco. Disseram que não estavam achando a chave. Perguntaram
se podiam me atender lá fora. Até poderia. Mas, e se eu precisasse mesmo entrar? E se
acontecesse o mesmo com uma pessoa que não conhecesse seu direito? Em função
disso, pensei: “Hora do barraco. Então, vamos pro barraco!” Dei 5 minutos para acharem
a chave. A menina não achou e chamei a polícia. Foi engraçado porque a polícia chegou
em 3 minutos e, junto com ela, acharam a chave. Naquela época, não entrei com
processo, mas, soube de pessoas que entraram. (...) Por isso, digo que, quando exerço
meu direito, estou exercendo o direito de todas as pessoas com deficiência. Não posso
me omitir, às vezes, até de fazer um barraco. Estou exercitando o meu direito por conta
daquele que desconhece o direito dele. A gente está brigando e conquistando direitos. A
gente milita 24 horas. Tem outras passagens e situações interessantes. Vou num
restaurante e faço o garçom e o proprietário me carregarem pelas escadas. Faço isso
uma vez, duas, três vezes. Quando põem a rampa, vou “trabalhar” outro restaurante.
Porque cansei de ser carregado, como aqueles heróis românticos, subindo e descendo
escada com minha cadeira, dando tchau pra todo mundo. Quer dizer, virando o centro
das atenções. Quero entrar como cidadão comum em um restaurante, cinema ou
qualquer lugar, pela porta da frente, como todo mundo faz, sem ter que entrar pela
cozinha. (Adelino Ozores)
Julgo que o Ano Internacional foi muito importante para a tomada de consciência da
pessoa com deficiência. Mostrou que era preciso deixar aquela vida de reclusão,
deixar de ficar dentro de casa, entre quatro paredes. Quando se via na rua uma
pessoa com deficiência, ela estava esmolando ou indo para o hospital. Fora isso, não
se via pessoa com deficiência no dia a dia da cidade. Então, essa tomada de
consciência fez com que a pessoa com deficiência fosse à luta, começasse a
participar e motivar outras pessoas a também saírem de casa. A FCD tinha e tem o
objetivo de visitar a pessoa com deficiência. Para nós, essa questão da visita, do
contato pessoal, é fundamental. Além de levar esperança, leva experiência. Uma
coisa é uma pessoa visitar um deficiente e esse pensar: “Ela fala isso porque não
está na minha pele!” Agora, quando a pessoa com deficiência visita outras pessoas
com deficiência, esse argumento cai por terra. (Celso Zoppi)
A luta desse movimento social “foi o confronto violento não apenas de
interesses, mas de mundos contraditórios.” (Rancière, 1996, 375) É importante
refletir o significado do simples fato de pessoas deficientes estarem nas ruas e
suas demandas serem objeto de discussão pública. O que isso representou em
um país com uma estrutura social e cultural como a brasileira.
Os na época considerados “deficientes” enfrentaram conscientemente
esse debate e com isso alargaram o espaço público de sua atuação, pois ela
passa a ser ao mesmo tempo ação “perturbadora” e política. Criando sujeitos
capazes de mediar o mundo em conflito no qual vivem e direcionar suas escolhas
por meio de suas experiências.
Convivência integrada
Nossos entrevistados viveram a infância, a adolescência e o começo da
idade adulta, durante o paradigma da integração. De acordo com esse modelo, a
deficiência era uma tragédia pessoal, que podia ser minorada se o indivíduo se
submetesse ao processo de
29
reabilitação indicado pelos especialistas. Somente depois de devidamente
“consertada” – para ficar o mais “normal” possível –, e após ter adquirido a
educação e a qualificação profissional compatíveis com suas limitações e
potencialidades, a pessoa com deficiência estaria apta para conviver na
sociedade, sem que esta fosse instada a mudar o que quer que fosse. Claro que
essa “permissão” implicava que a pessoa deveria estar equipada e disposta a
enfrentar e vencer todas as barreiras que encontrasse pelo caminho. Sem
dúvida, estavam mais bem preparadas para enfrentar esses desafios as pessoas
que contavam com o empenho, o apoio e o estímulo da família. Evidentemente,
só as mais aptas – física e psicologicamente – e as habilitadas (ou reabilitadas)
conseguiram desfrutar dos benefícios da convivência integrada nos mais
variados ambientes socioculturais, tendo a oportunidade de desenvolver sua
independência e autonomia:
Desde pequenininha, acho que aprendi isso com meus pais, porque eles também
sempre falaram: “Você vai ser igual, vai estudar, vai ser alguém!” E, se não fizesse,
tomava castigo, não fui tratada com diferença. Era arteira, quando aprontava, era
punida. “Ah, não vai estudar? Não vai ter férias!” O meu medo era não ter minhas
férias no interior! Então, tinha que estudar. Hoje lembro com alegria disso! Acho que
a família é tudo. (...) Não me via como deficiente, eu me via – lógico – diferente,
precisando de algumas coisas, mas, uma pessoa que tem que viver, trabalhar, se
divertir, estudar, que tem obrigações e deveres. Então, a família foi tudo. E não tem
que superproteger, nem tratar diferente. (Cláudia Marques Maximino)
Minha mãe era uma pessoa muito inteligente e sempre me encaminhou. Fez o
possível para que eu tivesse acesso a tudo. (...) Eu tinha uma vida absolutamente
normal. Minha mãe me incentivava a subir no balanço sozinha, mesmo usando
aparelho nas duas pernas. Nunca me senti excluída de nada. Ela sempre procurava
formar um ambiente, conversar com as pessoas. Estudei na mesma escola a vida
toda, na Caetano de Campos. Depois, fiz secretariado no Mackenzie, fiz concurso
público e comecei a trabalhar logo. (Marcia Cruz)
Tive várias pessoas que me auxiliaram, mas o maior mérito é do meu pai e a da minha
mãe. Foram as pessoas que me alavancaram, me empurraram e me ajudaram muito.
Quando nasci, eles foram aconselhados, aqui em São Paulo, por psicólogos, a não me
tratar com superproteção. Isso foi uma grande vantagem. Hoje, sou uma pessoa
atrevida, extrovertida. (Gonçalo Aparecido Pinto Borges)
Quando eu tinha por volta de 14 anos, meu pai chegou em casa com um
equipamento de encadernação. Não sei se é isso, mas, o que consigo entender hoje
é que talvez ele não soubesse muito em que eu poderia trabalhar. Comprou um
equipamento para um trabalho realizado sentado. Comecei a fazer um pouco daquilo,
mas, encostei o equipamento rapidamente. Logo depois, ele me trouxe uma máquina
de escrever – que também é usada para trabalhos sentados –, e uma série de fichas
do banco, onde ele trabalhava, para que fossem datilografadas. Com cada ficha
daquela eu tirava uns centavinhos. Foi o primeiro dinheirinho que ganhei trabalhando.
Lembro que comprei um casaco! Essa história é muito interessante porque meu pai
não sabia muito bem se eu poderia trabalhar ou não, mas, mesmo assim, foi
arriscando possibilidades. (João Baptista Cintra Ribas)
Fui muito bem acolhida pelas irmãs de São José, no Pavilhão Fernandinho, da Santa
Casa de Misericórdia de São Paulo. E delas recebi importante orientação de
comportamento diante da vida. A essas alturas, eu já tinha uma deficiência física, que
nem sei explicar para você a razão. Também, não fui informada. (...) As irmãs me
explicaram que, com o tempo, ela poderia evoluir para pior e que eu deveria me
preparar para me manter independentemente. (...) Há tantos anos já se preocupavam
com a acessibilidade! (...) Elas me disseram: “É melhor escolher uma profissão que,
30
se você não puder ir, as pessoas possam vir até você, de modo a que você possa
trabalhar, inclusive, em casa”. Então, foi o que aconteceu. Eu me tornei jornalista.
(Iracema Alves Lazzari)
Quando jovem, frequentei a biblioteca Monteiro Lobato, onde o pessoal do
Instituto Padre Chico também frequentava. Depois, no Colégio Caetano de
Campos, onde estudei, também convivi com cegos. (...) A Clélia Ferraz, irmã de
um vizinho que estudava comigo, tinha pólio. A gente brincava junto. (...) Acho
que essa convivência resultou em alguma coisa. Quando eu soube que não ia
melhorar do acidente, não foi tão traumático. (Adelino Ozores)
O apoio familiar relatado pela maior parte dos entrevistados não impediu
que tivessem ciência de que grande parte das pessoas com deficiência vivia (e
ainda vive) totalmente à margem da sociedade. Diante dessa avassaladora
realidade, o movimento organizado lançou estratégias para mobilizar pessoas com
deficiência asiladas em instituições ou isoladas em suas próprias casas. Para isso,
era preciso começar por reconhecer e proclamar sua dignidade como ser humano,
independentemente de qual fosse a sua deficiência e o grau de comprometimento
cognitivo, sensorial e/ou físico:
Minusvalido, em espanhol, significa deficiente. Mas, no nosso caso, tem outro
significado. Se alguém disser que você é menos válido, como vai se sentir?
Escutando isso, repetidas vezes na sua vida, você acaba até achando que realmente
não vale nada. (...) Então, como falar para a pessoa e para a família que ela precisa
sair de casa? A família vai dizer: “Pra quê? O que você quer fazer lá? Você é menos
válido, só vai dar trabalho! Por que você vai querer sair?” Acho que uma das
questões mais difíceis é a da família. (...) E isso é muito cruel porque, sem o apoio
familiar, em que o deficiente vai se apoiar?! (...) Então, um dos objetivos da FCD era
tirar o deficiente de dentro de casa. Como tirar? Não era esperando que o deficiente
fosse até a Associação ou procurasse o Movimento. O Movimento ia até ele. Com
isso, havia a oportunidade de conhecer o deficiente no seu meio familiar e trabalhar,
ao mesmo tempo, a família. Era uma coisa muito difícil e continua sendo. Dessa
forma, garimpávamos os fraternistas. (...) Saindo de casa, a pessoa começa a
enxergar o mundo através de uma perspectiva diferente. O primeiro passo é fazer
com que a pessoa se sinta valorizada como ser humano, perceba que tem
capacidade para a vida, para a luta. E, através dessa valorização, você começa a
procurar outras possibilidades que a vida oferece ou pode oferecer. Essa é a principal
proposta da FCD. (Ilda Mitico Saito)
As narrativas sugerem que o engajamento dos entrevistados na luta por
direitos foi motivado pela solidariedade aos que não puderam, como eles,
vivenciar contextos familiares e sociais positivos.
Nunca tive o problema de barreiras! Meus pais me criaram de tal forma que nunca
ouvi: “Não faça isso porque você é deficiente.” Para mim a deficiência era coisa mais
natural, quer dizer, isso não era motivo, nunca serviu de bengala para mim. Em 1976,
através de uma reportagem no jornal Folha de S.Paulo, fiquei sabendo de pessoas
portadoras de deficiência que estavam se constituindo num grupo. Tinha um número
para contato e telefonei. Eu tinha que ajudar o outro. (Ilda Mitico Saito)
Eu me lembro que, na década de 1980, quando começaram aqueles movimentos, as
pessoas estavam batalhando por emprego. Eu brincava dizendo que tinha que batalhar
por aposentadoria, porque já estava perto de me aposentar. (...) Nessa época, eu andava
só de aparelho ortopédico, sem bengalas, sem nada. Então, falava: “Não tenho muito que
reivindicar, minha vida está pronta, é só viver, curtir, enfrentar os problemas, resolver.”
Mas, depois de tanto a Neuza falar, um dia pensei: “Vamos nessa reunião, vou pra ver.”
Gostei muito do Cândido. Ele tinha uma cabeça muito boa.
31
Falei: “Acho que posso ajudar.” A gente fazia aqueles ofícios para entidades e
organizações, que não tinham acesso, para hotéis que não tinham rampa, essas
coisas básicas de acessibilidade. Comecei a participar do Movimento pelos Direitos
das Pessoas com Deficiências. (Márcia Cruz)
Todavia, a militância no movimento também se deu em virtude de
vivências pessoais relacionadas ao preconceito e à discriminação. Pois, ficar livre
dessas experiências desagradáveis não fazia parte do “contrato de adesão” à
sociedade integrada.
Quando fui reprovada pelo departamento médico da Prefeitura de São Paulo, procurei a
direção da AACD. Eu era professora estagiária, na AACD, na época. Também procurei
ajuda do Movimento pelos Direitos das Pessoas Deficientes (MDPD). O coordenador,
Cândido Pinto de Melo, me aconselhou a entrar com uma ação, como uma bandeira
contra o preconceito em relação à pessoa com deficiência. O MDPD fez um relatório para
o Departamento Médico e a Secretaria de Higiene e Saúde – a assinatura é do Gilberto
Frachetta. Mesmo com carta do Movimento e do diretor clínico da AACD, fui considerada
inapta pela segunda vez. Tive de entrar com recurso. Foi quando uma junta médica da
AACD fez um relatório dizendo que minha ataxia espinocerebelar encontrava-se, até o
momento, estacionada. O médico da Prefeitura dizia: “E se você ficar numa cadeira de
rodas? Como é que vai fazer?” (...) Só fui considerada apta, para o exercício do magistério
na rede municipal, por determinação do Mario Covas, que era o prefeito naquele período.
Na época, tinha ainda esse preconceito. Hoje, ainda existe. Mas, naqueles tempos, o
deficiente era alguém que tinha de ficar em casa. Eram pessoas que não estavam no
mercado de trabalho. (Marta de Almeida Machado)
Além daqueles que entraram na luta a partir da criação de pequenos
grupos de amigos ou “companheiros de reabilitação”, há os que foram convidados
a participar das reuniões por um conhecido e aqueles que encontraram na mídia,
sobretudo a partir de 1981, a chamada para participar do movimento. Até então,
muitos não conviviam com outras pessoas com deficiência, fora dos centros de
reabilitação:
Fiz, em 1979, uma viagem de turismo, pelos Estados Unidos, com minha sobrinha de 11
anos de idade. Estivemos em todos os parques de diversão que existiam naquele país.
Todos tinham acesso. Havia muitas pessoas com deficiência por todos os lugares. Pensei:
“Por que no Brasil não posso ter as mesmas facilidades?” Fiquei com isso na cabeça. No
final daquele ano, ao prestar o vestibular da PUC, conheci um rapaz com paralisia
cerebral impedido de fazer a prova de redação porque não podia escrever. Ana Rita de
Paula (que também fazia o exame) e eu achamos aquilo muito injusto. Tentamos resolver
o problema, mas, não conseguimos. Contei a ela sobre minha viagem. Isso despertou na
gente o desejo de mudar a realidade vivida no Brasil. No começo de 1980, ela me
convidou para uma reunião em sua casa. Fomos eu, meu irmão e minha prima. Ana Rita
convidou uma garota que conhecera no vestibular da USP: a Nia (Maria Cristina Correia).
Esta conhecia a Marisa Paro que, por sua vez, era amiga da Araci Nallin, que já havia feito
contato com o Romeu Sassaki e assim por diante. Romeu trouxe a notícia de outros
grupos, formados na mesma época, que se reuniam em um determinado lugar. Com os
outros grupos a história foi meio parecida. Pessoas que, até então, não conheciam outras
pessoas com deficiência, de repente, por causa do movimento, passaram a se conhecer,
trocar experiências e juntar forças. (Lia Crespo)
No local onde fazíamos reabilitação, havia uns 50 deficientes. Havia cegos, surdos,
amputados, com hanseníase, enfim, gente com todo tipo de deficiência. Todos faziam sua
reabilitação com os mesmos terapeutas. Pegamos uma amizade muito grande. Senti que
poderíamos nos unir e fazer uma entidade, alguma coisa forte, para lutar pelos direitos
das pessoas deficientes. Eu havia prestado e passado num concurso público e eles me
rejeitaram por causa da deficiência. (...) Dali, surgiu a
32
vontade, a gana de fazer alguma coisa por todos. Não só pelos cegos, mas, por todos os
deficientes. Afinal, onde estávamos, aquele que tinha paraplegia ajudava o outro que não
enxergava. O que não enxergava ajudava a levar uma cadeira. Havia aquela troca boa de
ser humano! A gente nunca é deficiente. Tem apenas um pedaço que não está dando
certo, mas, o outro vem e completa. Conhecemos a Lourdes Guarda, que era uma
deficiente maravilhosa que vivia deitada numa maca e morava num hospital. (...) Eu de um
lado, ela, do outro, fizemos uma assembleia. Participaram vários deficientes. (...) E assim
começamos a participar do movimento. (Leila Bernaba Jorge Klas)
Comecei a participar do movimento em 1980. O Rui tinha uma associação, a Aide. (...) Eu
me especializei em legislação do portador de deficiência e escrevi uma matéria que saiu
na Folha de S.Paulo. O Rui leu e me telefonou: “Olha, tenho uma entidade. Você participa
de algum grupo?” Respondi que não. “Então, vem aqui na reunião!” (Cintia de Souza
Clausell)
Em 1981, ainda não tinha me envolvido em nenhum movimento. Li no jornal algumas
coisas sobre o Movimento pelos Direitos das Pessoas Deficientes (MDPD). Fui ver do que
se tratava. Dentre os participantes, com vários tipos de deficiência, só tinha eu e mais uma
menina com paralisia cerebral (PC). Aí, o “vírus” me pegou e fui em frente na minha
militância. (Suely Harumi Satow)
Um belo dia, a Lia escreveu uma carta que foi publicada num jornal. Ela estava muito
brava porque os outros não davam nada pela gente! Falei para minha mãe: “Quero
conhecer essa menina.” Passou, não procurei... Um pouco depois, chegou o Ano
Internacional das Pessoas Deficientes. A Ilda Mitico anunciou no jornal que ia ter um
grande encontro organizado pela Fraternidade. Falei para meus pais: “Eu vou nesse
encontro!” Eles ajudaram e me deixaram lá, de manhã. Foram passear no clube e, à tarde,
lá pelas 5 ou 6 horas, foram me buscar. Esse encontro era pelo Ano Internacional, tinha
umas mil pessoas. (...) Fui com a cara e a coragem, nunca tinha saído sozinha de casa.
Foi bom, eu era tão caipira! As pessoas diziam: “Cida, entra na Fraternidade, vai ter
reunião, vai lá!” Entrei na Fraternidade, fiquei alguns anos, mesmo que algumas coisas
não tivessem nada a ver comigo. Mas, fiquei. Queria sair de casa e pensei: “Preciso me
esforçar”. (Aparecida Akiko Fukai)
No dia 26 de março de 1981 – eu me lembro muito bem, foi um domingo –, minha amiga
Isaura me convidou para participar de uma assembleia que ia ter no colégio Anchietano,
em São Paulo. Ia ter muitos deficientes, gente de cabeça para cima, otimista e, aí, eu fui.
Na época, pegava ônibus, usava muleta canadense. No Anchietano é que tomei contato
com um grande número de pessoas com deficiência. Tinha a Lourdes Guarda, a Neuza, a
Ilda, a Célia Leão, o Chico Pirata. Tinha o José Carlos Barbosa, também muito atuante.
Todos tinham tomado em suas mãos esse compromisso de luta. Foi muito legal! Não foi
assustador ver muitas pessoas com deficiência, porque a minha cabeça já tinha sido
trabalhada antes. (Celso Zoppi)
Até começar a ter vida social mais intensa, conhecia poucas pessoas, quase ninguém. A
não ser na escola, que tinha uma ou outra pessoa com deficiência. Apenas, quando
resolvi entrar para o movimento, pude conhecer muito mais portadores de deficiência. Isso
foi em 1981. Quando aconteceu o Ano Internacional das Pessoas com Deficiência. Ouvia
falar muito sobre um movimento organizado. Mas não tinha a clareza que tenho hoje. Foi
quando me perguntei: “Por que não? Por que tenho que ficar excluído, se também tenho
deficiência?” Ninguém me chamava de deficiente na minha casa. Pelo contrário, quando
resolvi ingressar, acho que toda minha família levou um susto, como se eu não fosse
“daquela turma”. E, obviamente, eu sou. Minha primeira experiência no movimento foi
muito interessante. Havia lido num jornal um anúncio de uma palestra sobre sexualidade
daquela sexóloga Maria Helena Matarazzo. Se não me engano, era a faculdade onde o
Romeu Sassaki dava aula de Serviço Social para deficientes. Fui lá. Confesso que a
minha primeira impressão foi de susto, quando cheguei e vi uma sala que tinha 50
pessoas, todas deficientes. Mesmo assim, não desisti.
33
Fiquei muito apreensivo ao assistir aquilo porque, na verdade, era como se eu estivesse
ingressando no mundo de pessoas com a identidade parecida com a minha. Lembro muito
nitidamente que as três primeiras figuras que vi dentro do movimento: foram a Lia; o irmão
dela, o Kico, e o Romeu Sassaki. Depois, entrei para o NID e comecei, aos poucos, a me
relacionar com essas pessoas. (João Baptista Cintra Ribas)
Busquei trabalhar um pouco em casa e, junto com algumas outras pessoas, criamos um
movimento que se chamava Movimento de Cidadania do Deficiente. Na época, não se
falava “pessoa”. Nesse movimento, fizemos várias cartas para Brasília, para os
consulados, pedindo informações de como era nos outros países. Recebemos alguns
retornos da Holanda. Não tive, assim, uma militância muito em grupo com o pessoal, até
porque tinha muita dificuldade de locomoção, na época, por ser tetra e estar na cadeira.
Também não tinha quem me levasse. Trabalhava em casa, tentando desenvolver outras
coisas, mas acabava fazendo uma militância no sentido de estar informado e informando.
(Adelino Ozores)
No caso dos narradores deste projeto, essa luta política tem plataforma
definida. A busca dos iguais e de uma vida mais participativa motiva a formação e
as ações do grupo. Isso pode ser notado nas palavras dos narradores, que
apresentam sua entrada na luta, como formadora de si. É a partir daí que passam a
sentir-se parte e a significar suas vidas. Ou seja, a militância lhes deu segurança e
foi a saída, não só para o narrar, mas para o viver de forma plena.
Nesse sentido, pensando na possibilidade de escolha, pode-se dizer que
na luta política homens e mulheres trilham um caminho para a conquista da
cidadania, para o alargamento de um espaço público (CHAUÍ, 1996).
Tragédia pessoal x fenômeno social
A vivência da deficiência é um processo transversal à classe social.
Assim, a troca de experiências entre pessoas com diferentes níveis de
escolaridade e condição econômica diversa, mas, ao mesmo tempo, com histórias
de vida muito semelhantes, promoveu uma nova maneira de perceber a própria
deficiência e a sociedade:
Eu lia muito, sempre fui muito próximo da leitura, desde pequeno. (...) Todo dia lia o
Jornal da Tarde e o Estadão. Aos 19 anos, um dia, lendo o Estadão, vi uma notinha
sobre uma reunião com pessoas com deficiência. Fiquei curioso e decidi participar.
Pedi para uma tia, que tinha carro, me levar. Foi ali que conheci a Lia e a Ana Rita.
Nessa reunião, comecei a ver a deficiência de maneira diferente. Foi meu rito de
passagem. Eu trabalhava no Banco Real. Ia de ônibus, de São Caetano até a
Avenida Paulista, todos os dias. Sempre precisava de ajuda, seja do motorista ou de
outra pessoa, para subir no ônibus. Achava isso horrível e me causava um mal muito
grande. Eu me culpava muito por isso. Pensava: “Sou uma pessoa errada, carrego
um problema.” Até que, um dia, nessa relação com outras pessoas com deficiência,
passei a ver que o errado era o ônibus e não eu. Foi quando a ficha caiu pela
primeira vez! Isso é o que a gente chama hoje de ver a deficiência enquanto um
fenômeno social e não uma tragédia pessoal. Essa primeira reunião a que eu fui deu
origem ao antigo NID (Núcleo de Integração de Deficientes). (Tuca Munhoz)
Considerava a minha deficiência por pólio apenas uma fatalidade, uma dessas coisas
que acontecem. A deficiência do meu irmão gêmeo, o Kiko, também tinha sido uma
fatalidade de natureza diferente. A gente achava que não havia responsáveis, nem
culpados pela nossa deficiência. A gente
34
não se considerava vítima de nada. Pelo contrário, éramos super-heróis. Pela
primeira vez, no NID e no movimento, estávamos discutindo nossas questões e como
resolver problemas com outras pessoas que tinham vivência semelhante. De repente,
a gente começou a perceber que a coisa não era bem assim. Não éramos vítimas,
mas havia responsáveis. A pólio ainda estava atacando muitas pessoas e o governo
não controlava a doença. Ou seja, deixamos de pensar a deficiência como algo
individual ou pessoal, para pensá-la como um fenômeno coletivo, muito mais amplo.
Isso mudou a nossa cabeça. Demos o salto: paramos de pensar a deficiência como
uma situação que a gente tinha que resolver sozinha. Começamos a perceber que a
deficiência era mais da sociedade do que da gente. Isso é uma coisa que se diz hoje,
mas já dizia na “era jurássica”, só que, talvez, não usássemos as mesmas palavras.
A gente realmente pode dividir a vida entre antes e depois do movimento, porque há
uma diferença muito grande na forma como a gente se via, via o mundo e via o outro.
(Lia Crespo)
Passei a assumir a deficiência. Digo assumir, porque a Lourdes Guarda falou uma vez
no movimento: “O deficiente não tem que aceitar a deficiência, tem que assumir a
deficiência.” Isso me marcou muito. (...) No finalzinho de 1980 e começo de 1981, eu
conheci a FCD. Na época era chamada Fraternidade Cristã de Doentes e Deficientes.
Agora, chama-se Fraternidade Cristã das Pessoas com Deficiência. Aquele ano de
1981 foi marcante na minha vida porque comecei a viver, a conhecer um foco diferente.
Esse se comprometer com o outro, se envolver numa causa foi muito importante.
Conheci Maria de Lourdes Guarda, uma pessoa fabulosa! Além dela, muitas outras
pessoas me fizeram aprofundar aquela tomada de consciência que estava tendo ao
assumir a deficiência. (Celso Zoppi)
Embate paradigmático
Os entrevistados concordam que o Ano Internacional das Pessoas
Deficientes foi de enorme valor para tornar a pessoa com deficiência e suas
reivindicações visíveis para a sociedade. O movimento social, pelo grau de
maturidade de seus trabalhos e capacidade de mobilização, soube aproveitar a
visibilidade do Ano Internacional para pressionar as instâncias políticas e sociais a
atenderem suas necessidades. Durante o Ano Internacional, se revelaram mais
claramente as questões ligadas ao paradigma da integração, sustentado
ideologicamente pelo modelo médico da deficiência, vigente desde a criação dos
centros de reabilitação, nos anos 1920/1930.
Para o modelo médico, a deficiência é um “problema” do indivíduo. O
atendimento dos profissionais da área de reabilitação tem por objetivo obter a cura
ou a adaptação, da maneira mais “normal” possível, da pessoa ao ambiente. Ou
seja, pelo modelo médico, cabe à pessoa a tarefa de tornar-se apta a participar da
sociedade tal qual existe.
O modelo social da deficiência começou na década de 1960, no Reino
Unido e Estados Unidos, em contraponto às abordagens biomédicas. O modelo
social sustenta ideologicamente o paradigma da inclusão, que passou a ser
disseminado a partir de 1990. Esse modelo entende a deficiência como uma
questão eminentemente social e transfere para a sociedade a responsabilidade
pelas desvantagens enfrentadas pelos indivíduos deficientes.
Para o modelo social da deficiência, o “defeito” numa estrutura do corpo
(ou a ausência parcial ou total de um membro ou órgão) é a “lesão” – uma
característica como o sexo ou a cor da pele. Já a deficiência é considerada uma
categoria social tal como gênero, classe e etnia, portanto, sujeita a mecanismos
de exclusão. A deficiência é a desvantagem resultante do preconceito, da
discriminação, da falta de acessibilidade da sociedade. De acordo com esse
35
conceito, a desvantagem vivida pelo indivíduo depende muito mais das condições
do ambiente social do que dos “defeitos” que o corpo da pessoa possa apresentar.
Estimular uma pessoa com deficiência recém-adquirida a se aposentar,
ainda em idade ativa, por exemplo, pode ter boas intenções, porém reflete um
conjunto de valores sociais contrários ao lema do AIPD, “participação plena e
igualdade”, ou seja, participação plena na sociedade e igualdade de direitos e
equiparação de oportunidades.
Esse embate paradigmático transparece nas entrevistas como intrínseco
ao atendimento médico e educacional oferecido pelas prestadoras de serviço e
pelo governo, bem como, aos valores culturais e às dificuldades na conquista dos
direitos sociais. Assim, emerge também a diferença assistencialismo/paternalismo
e participação social, entidades “para” e entidades “de” deficientes:
Era época da integração da pessoa portadora de deficiência, que era obrigada a entrar
naquela estrutura já existente sem nenhuma adaptação para conseguir um lugar, um
emprego. Era um sacrifício muito grande porque não tinha um toalete adaptado, as portas
eram estreitas. Tudo era muito difícil! Mas, se não aceitasse essa condição, não tinha
como conseguir trabalho. (...) Na concepção da inclusão, o meio é obrigado a fornecer as
condições necessárias para eu desempenhar meu trabalho. Na integração, não. Tinha que
se adaptar à condição que existia. Não tinha nem um toalete, por exemplo, que é o
mínimo, uma questão de respeito ao ser humano. (Ilda Mitico Saito)
Naquele tempo, era o modelo médico. Quer dizer, os médicos não falavam comigo. Ou
melhor, falavam assim: “O filho da senhora tem disritmia paroxística difusa.” Eu não
entendia nada daquilo. O tempo foi passando, as associações de pais e as próprias
pessoas com deficiência foram se arregimentando e formando outras associações. Hoje
existem muitas. (...) A Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, de
2008, foi uma das coisas mais importantes que fizeram. Foi um divisor de águas, entre o
chamado modelo médico, que existia durante muito tempo, e o chamado modelo social,
que é o modelo de hoje. Não é que ignore a deficiência da pessoa, mas a deficiência
depende muito do entorno da pessoa. (Maria Amélia Vampré)
Eu me acidentei no dia 8 de junho de 1980. Tinha 25 anos de idade, estava no último ano
de faculdade e era Oficial de Justiça, já há seis anos. (...) O juiz da vara na qual
trabalhava me orientou: “A melhor coisa é você se aposentar. Aqui dentro, não tem como
você trabalhar. A estrutura aqui não comporta uma pessoa em cadeira de rodas. Não tem
banheiro.” Falei: “Mas, não dá para mudar isso?” Ele falou: “Não, você sabe que nunca
teve ninguém de cadeira de rodas aqui!” Acabaram me aposentando. Ele ainda
argumentou: “Como você virá trabalhar? Você vai ter que ter carro.” Fui vendo que caía
muito o meu rendimento. Eu tinha que ser aposentado mesmo. Mas, vi que me aposentar
foi muito ruim para mim, porque fiquei à parte. (Wanderley Ferreira dos Santos)
A gente tinha que derrubar a barreira do preconceito. A gente batia muito nisso, desde 1981.
Naquele começo, a sociedade se incomodava com as pessoas com deficiência indo para a
rua, indo a clubes, igrejas, festas, enfim, fazendo as atividades do dia a dia. A sociedade não
estava acostumada com aquilo. Foram necessários vários anos para derrubar essa barreira.
Por quê? O que era marcante na mentalidade do povo? Era o assistencialismo, o
paternalismo. Para a sociedade, era muito mais cômodo, ao invés de permitir o acesso na
escola, dizer: “Você não precisa ir à escola. A gente pega lá o livro pra você.” Era muito
marcante essa questão do paternalismo e do assistencialismo. E não era nem por mal, era a
cultura que vinha de muitos e muitos anos, séculos. E como derrubar? (Celso Zoppi)
Não se usava “inclusão” ou os conceitos “modelo médico da deficiência” e “modelo social
da deficiência”. Mas nós percebemos que o “modelo médico” era extremamente injusto, e
deveria ser colocado outro paradigma para equacionar esses problemas. Foi
extremamente importante! (Lia Crespo)
36
O Ano Internacional das Pessoas Deficientes
Com o lema “Participação Plena e Igualdade”, o AIPD é considerado um
marco no movimento das pessoas com deficiência. Serviu para que as entidades
das pessoas com deficiência, com a cobertura da mídia, levassem até a sociedade
suas reivindicações. Simultaneamente, através de eventos com centenas de
participantes, os militantes lançaram suas estratégias de ação e seus objetivos
para o futuro. O movimento social das pessoas com deficiência soube aproveitar a
atenção que as esferas governamentais, empresarial e a mídia concederam ao
tema proposto pela ONU para o ano de 1981. Tais esferas e a própria sociedade,
até então, acostumadas a encontrar nas instituições e entidades para pessoas
com deficiência a representação de suas necessidades, foram surpreendidas por
um discurso tão desconhecido quanto novo, inaugurado pelas próprias pessoas
com deficiência, que reivindicavam não assistência, mas direitos. O AIPD mudou a
forma como os profissionais de reabilitação e a sociedade percebiam esse
segmento da população.
Quando trabalhava, não sei quem sugeriu que eu fizesse uma imagem para a Globo. Foi
feita uma gravação em que eu aparecia trabalhando na farmácia. Essa imagem, com
outras de vários deficientes trabalhando, foi veiculada, durante o ano inteiro do Ano
Internacional. Isso para provar que a pessoa com deficiência era capaz de trabalhar, de
ser independente. (...) A repercussão foi tão grande que isso foi parar num show do
Roberto Carlos, quando foi lançado o Ano Internacional, no réveillon. No dia seguinte, dia
de Ano Novo, estava dando plantão na farmácia, quando meu primo – que mora no
Paraná, em Foz do Iguaçu – me telefonou: “Eu te vi, prima.” Quer dizer, foi uma
repercussão muito positiva. Abriram muitas portas de trabalho para os deficientes. Mas,
acontece que os deficientes não estavam preparados. (Ilda Mitico Saito)
Durante o Ano Internacional, a TV Globo ligava para a Lourdes, por exemplo, dizendo:
“Precisamos de deficientes, pois vão inaugurar um ônibus acessível na Paulista.” Isso de
madrugada! A gente chegava lá e não era o ônibus, mas, o motorista é que havia sido
treinado para carregar pessoas deficientes. Cada roubada! E a gente aceitava, tinha que
aproveitar a oportunidade. Se a Globo chamava, como dizer não? (Lia Crespo)
Em 1980, quando ainda era secretário do Bem-Estar Social de Piracicaba/SP, recebi a
visita de um grupo de pessoas com deficiência que veio pedir apoio para a organização do
Ano Internacional, em 1981. Era um grupo da Fraternidade Cristã de Pessoas com
Deficiência (FCD), de Piracicaba. Disse: “Eu apoio. Vamos lá.” Naquela época, não tinha
muita consciência dessas coisas da área da pessoa com deficiência. Eu tinha uma
deficiência, mas nunca tinha trabalhado em nada nesse sentido. Tinha sofrido alguns
preconceitos e alguma discriminação, mas nada que considerasse significativo. Nada
disso acontecia dentro da minha família, nem com os amigos. Logo, deixei a Secretaria,
mas, continuei com o grupo e me engajei na Fraternidade. Organizamos o Ano
Internacional e fizemos um grande evento na Câmara Municipal, que não tinha elevador.
Era uma escadaria enorme para chegar ao Salão Nobre. Mesmo assim, enchemos o local
com pessoas com deficiência e pessoas sem deficiência. (Chico Pirata)
Aquele ano de 1981 foi marcante na minha vida porque comecei a viver, a conhecer um
foco diferente de vida. Esse se comprometer com o outro, se envolver numa causa foi
muito importante. Como era o Ano Internacional, tudo estava fervilhando. Eram muitas
entidades, muitos movimentos surgindo, a pessoa com deficiência aparecia em flashes na
televisão com o objetivo de uma conscientização da sociedade. Costumo dizer que aquele
Ano Internacional não serviu para os governantes
37
implantarem programas de atenção às pessoas com deficiência. Nesse aspecto, acho que
os governantes, nos três níveis, ficaram restritos a essa campanha que mostrou que a
pessoa com deficiência fazia parte da sociedade e que esta deveria se modificar para
reverter aquela situação excludente. Valorizo muito o Ano Internacional. Foi uma forma de
despertar a pessoa com deficiência para ir à luta. (...) Aquele ano foi muito importante,
tanto que muitos núcleos da FCD foram formados. No Brasil, chegou a cerca de 280
núcleos. Foi o momento de militância, um movimento de base! A proposta do Ano
Internacional era na mesma linha da proposta da FCD: entender a pessoa com deficiência
como agente transformador da sociedade, como protagonista! (Celso Zoppi)
No Ano Internacional, eu fazia parte de uma subcomissão nacional. Deram umas 12
passagens aéreas para participarmos das reuniões em Brasília. A subcomissão era ligada à
parte jurídica. Como era advogada e deficiente, eu tinha alguns projetos de lei na cabeça.
Havia feito um projeto grande com todos os itens: reabilitação, saúde, a parte técnica,
barreiras arquitetônicas. Tudo. Até fiz parte de uma subcomissão da confecção de leis no
Ministério da Justiça. Uma vez por mês, tinha reuniões, eram muito bonitas e tal, mas nunca
vi nada produtivo ou concreto sair dali. (Leila Bernaba Jorge Klas)
O presidente não veio falar conosco, nem nos recebeu. Estávamos em mais de 200
deficientes. Naquela época, ele foi falar em cadeia de TV: “Hoje estamos comemorando o
Ano Internacional do Deficiente Físico”. Quer dizer, o sensorial não existia. Na verdade,
tínhamos consciência que portador de deficiência no Brasil era um grupo à parte. A
igualdade na Legislação só veio a partir de 1988. (Gonçalo Aparecido Pinto Borges)
Vendo esses recortes de programas voltados para as pessoas com deficiência no mundo
inteiro, comecei a entender melhor o significado do Ano Internacional. A ideia é que,
quando as Nações Unidas fazem uma ação como essa, estão longe de almejar resolver o
problema. Mas, sim, despertar a competência da população e dos governantes. Acho que
tivemos um ano de sucesso porque a discussão foi a tônica e se a gente não conseguia
ter resposta para todos os problemas pelo menos descobrimos quais eram os problemas.
Importante lembrar o fato de, a partir do Ano Internacional, termos tido a década da
pessoa com deficiência. Isso nos ajudou porque um ano é muito pouco tempo. (Linamara
Rizzo Battistella)
Encontros, congressos, coalizão
nacional e entidades
Dois eventos nacionais são especialmente lembrados pelos protagonistas
do AIPD. O primeiro deles foi o 1º Encontro Nacional de Entidades de Pessoas
Deficientes, realizado entre 22 e 25 outubro de 1980, em Brasília. Tornou-se um
marco histórico por reunir mais de 500 participantes para discutir a política
nacional relativa às pessoas com deficiência. Outro evento emblemático foi o 2°
Encontro Nacional de Entidades de Pessoas Deficientes, realizado de 25 a 30 de
outubro de 1981, simultaneamente, ao 1° Congresso Brasileiro de Pessoas
Deficientes, em Recife (PE). Messias Tavares de Souza, um dos organizadores,
declarou na ocasião, ao jornal O Estado de S.Paulo, que o objetivo desse evento,
com mais de 600 deficientes, foi “reivindicar mudanças no sistema de atendimento
aos deficientes, nos programas de reabilitação e na luta contra as barreiras
ambientais e sociais”. Ambos os encontros nacionais foram precedidos de
reuniões preparatórias nos vários Estados e em Brasília.
O 1° Encontro de Delegados de Pessoas Deficientes, que aconteceu em
Vitória (ES, 16-18 de julho de 1982), decidiu que o 3° Encontro Nacional de
Entidades de Pessoas Deficientes
38
seria realizado em São Bernardo do Campo (13-17 de julho de 1983). A partir do
3º Encontro Nacional, a Coalizão Pró-Federação Nacional de Entidades de
Pessoas Deficientes (oficializada em 1980, em Brasília) foi praticamente extinta.
Em seu lugar, foram criadas as organizações nacionais separadas por tipos de
deficiências: Federação Nacional de Educação e Integração dos Surdos (Feneis,
1987); Organização Nacional das Entidades de Deficientes Físicos (Onedef,
1984); Federação Brasileira de Entidades de e para Cegos (Febec, 1984). Essas
organizações nacionais se aliaram ao Movimento de Reintegração das Pessoas
Atingidas pela Hanseníase (Morhan), que havia sido criado em 1981.
O Encontro Nacional que houve em Brasília foi um encontro épico. Viajamos 18 horas
num ônibus com motorista que a Lourdes arrumou com algumas empresas. Lotou de
pessoas com deficiência. Ela mesma foi na maca. Foi muito sacrificado. Assim como nós,
pessoas, do Brasil inteiro, também foram com muita dificuldade. Esse Encontro foi
memorável. A gente já tinha participado de vários encontros com pessoas com deficiência.
Mas, é grande o choque cultural que se tem quando entra num recinto e vê 500 pessoas
com deficiência! Foram discutidos vários assuntos. Houve embates políticos, discussões e
divergências de opinião. A parte da logística ficou com o pessoal de Brasília. Tiveram
muita dificuldade. O pessoal estava alojado em exército, em convento, em clubes, casas
de família, de amigos. Quando nosso ônibus chegou, não havia alojamento para nós. Mas,
deram um jeito e começaram a espalhar a gente por Brasília. Só que os ônibus eram
poucos, nenhum acessível. Rodava, rodava, rodava e parava: “Fulano, agora é você!”
Desciam o Romeu e o motorista. Tiravam a cadeira de rodas do cara. Tiravam o cara.
Botavam o cara na cadeira de roda. Romeu e o motorista entravam no ônibus e começava
de novo. Rodava, rodava, parava: “Agora, é você, Sicrano!” Havia umas 15 pessoas no
ônibus. Como era noite e todos os prédios se parecem em Brasília, a impressão que se
tinha era que o ônibus rodava, rodava, rodava e parava sempre em frente ao mesmo
prédio. Eu me senti num episódio daquela antiga série de TV “Além da Imaginação” 11.
Fomos os últimos a ser entregues. Era madrugada. Lembro-me do Romeu deitado no
meio do ônibus, no chão, exausto, depois de ter trabalhado o dia inteiro. (Lia Crespo)
No encontro nacional de Brasília, foi criada a Coalizão Nacional, que reunia entidades de
todos os tipos de deficiência. Em Recife, no Congresso Brasileiro, as quatro áreas de
deficiência disputavam espaço. Mas, era uma disputa saudável. Não era para atender o
ego de ninguém, nem de nenhuma instituição. É que cada um queria ver a sua luta
atendida. Havia os deficientes visuais, os deficientes auditivos, os deficientes físicos e o
pessoal do Morhan (dos hansenianos). Os deficientes mentais, como eram chamados, na
época, não participaram. Essa disputa já apontava para as quatro organizações nacionais,
separadas por áreas de deficiência, criadas após a dissolução da Coalizão Nacional. Foi
quando surgiu a Onedef (Organização Nacional de Entidades de Deficientes Físicos), da
qual o Rui e eu fizemos parte da coordenação. (Celso Zoppi)
Fui para Brasília, em outubro de 1980, para o Congresso Nacional. (...) Já estava
reabilitada! Fui com a minha cadeirinha, tinha 25 anos. (...) Aí, vi como era bom viver na
cadeira de rodas! Vi como minha cadeira de rodas era linda, como bengalas eram bonitas,
como surdos que faziam sinais eram felizes. Vi o cego que dava trombada na parede e ria!
Quem tinha deficiência mental nos ajudava muito. Todos ali eram como todo mundo, com
alegria e tristeza, com anseios, sonhos e desejos! Deu mais vontade de viver. Uma amiga
minha, Isaura Pozzatti, disse: “Célia, tem um amigo meu do Rio que quer fazer uma
entrevista sobre mercado de trabalho para a pessoa com deficiência. Quer
11
. Além da Imaginação (The Twilight Zone) é uma série de televisão americana criada, em 1959, por Rod
Sterling e dirigida por Stuart Rosenberg, apresentando histórias de ficção científica, suspense, fantasia e terror.
39
entrevistar pessoas que tenham ficado deficientes para saber se estão trabalhando ou
não. (...) Ele contou que tinha uma pesquisa, que mostrava que, de fato, não tinha
mercado de trabalho para deficiente. Empregador, empresário não empregava deficiente,
além disso, tinha a falta de escolaridade. Então falei: “Acho que estou no caminho certo
por estar neste Congresso!”(Célia Leão)
Reuniões, seminários, conselho estadual
e Constituinte
Depois do AIPD, o movimento das pessoas com deficiência se mobilizou
para a criação de organismos estaduais e municipais, integrados por organizações
representativas da sociedade civil, que coordenassem as políticas públicas para
esse segmento social.
Existem vários documentos, e até notícias de jornal, contando como o NID começou a
discutir a criação de um órgão estadual, em 1982. O movimento fez reuniões mensais,
entre 1983 e 1984, para organizar um seminário, durante o qual se discutiria a política
estadual para as pessoas deficientes e como deveria ser esse órgão estadual. Em 1984,
foi realizado esse seminário, aqui em São Paulo, que reuniu toda a comunidade engajada
– 300 ou 400 pessoas –, representantes de entidades de e para deficientes. Se não me
engano foi na AACD. No próprio seminário, elegemos nossos representantes para o
Conselho. Em 1984, o governador Franco Montoro, num decreto, criou o Conselho
Estadual para Assuntos da Pessoa Deficiente que, depois de alguns anos, virou Conselho
Estadual para Assuntos da Pessoa Portadora de Deficiência e agora se chama Conselho
Estadual para Assuntos da Pessoa com Deficiência. (Lia Crespo)
Incentivamos, divulgamos e implementamos, junto a outras pessoas, o Fórum das
organizações de pessoas com deficiência, daqui de São Paulo, do qual participavam
Romeu Sassaki e Robinson de Carvalho (médico já falecido, de Ourinhos), além de
representantes de Taubaté; eu, de Piracicaba, e o pessoal das entidades de São Paulo:
Fraternidade, MDPD, NID e vários movimentos. Logo depois do Ano Internacional, nós
demos continuidade a esse fórum, que resultou no 1º Seminário Estadual das Pessoas
com Deficiência, depois da eleição do Franco Montoro, em 1983. (Chico Pirata)
Entre 1987 e 1988, o país se preparava para escrever a nova
Constituição Federal. Nos primeiros anos da década de 1980, o movimento social
trabalhou e preparou as propostas que iriam ser apresentadas aos constituintes. O
contexto social brasileiro era bastante propício. Com o fim do regime militar e a
redemocratização, muitos grupos se organizavam e lutavam para serem
representados e contemplados na nova Carta Magna do país. As leis que orientam
o tratamento e asseguram os direitos das pessoas com deficiência presentes na
Constituição, promulgada em 1988, são resultado da movimentação social dos
anos anteriores. São herdeiras da organização e mobilização inspiradas no AIPD.
Surge o movimento pela Constituinte. Fizemos uma coisa muito interessante, com o apoio,
inclusive, do governo Montoro: realizamos reuniões setoriais para discutir o deficiente na
Constituinte. Nós tivemos 19 reuniões. Na época, tínhamos 500 e poucos municípios.
Fizemos 19 reuniões em diferentes regiões do Estado. A primeira e a última foram aqui
em São Paulo, para discutir o que deveria estar contemplado na Constituinte. (Linamara
Rizzo Battistella)
No ano internacional, não participei dando palestras. Fiquei direcionada para a legislação
do portador de deficiência. (...) Em 1988, coletamos assinaturas dos portadores de
deficiência ou de não
40
deficientes, para que nossas propostas fossem incluídas na Constituição. Nessa época, fui
falar de legislação em Recife, Fortaleza, Manaus, Brasília, Paraná, Minas Gerais, Rio de
Janeiro. Havia pessoas que nunca tinham ouvido falar nisso. (...) Toda a parte de
legislação, eu compilei. Uma pessoa trabalhava comigo e eu coordenava. O Fundo Social
de Solidariedade me pediu permissão para editar o meu trabalho. Falei que sim. (...) Foi
feito um livreto sobre direitos das pessoas portadoras de deficiência, com trechos da
Constituição do Estado de São Paulo, da Lei Orgânica do Município de São Paulo e mais
alguma coisa do Estatuto da Criança e do Adolescente. O título ficou sendo “Direito das
Pessoas Deficientes”. Tenho até um exemplar daqueles antigos. (...) Foram feitos mais de
30 mil livretos. A gente viajava e levava. Fez muito sucesso o livreto. (Cintia de Souza
Clausell)
Cada entidade nacional fez um fórum. Houve reuniões em Minas Gerais e Belo Horizonte.
Houve, também, uma grande reunião em Manaus, durante a qual foi feito o fechamento
das propostas que seriam encaminhadas por duas pessoas de cada área de deficiência.
Dois deficientes físicos, que eram da Onedef, dois da Federação dos Cegos, dois da dos
deficientes auditivos e dois do Morhan. Esse foi um momento marcante. A maioria
daquelas propostas foi contemplada e faz parte hoje da Constituição Federal. Até o Ano
Internacional, havia uma postura da sociedade. A partir de 1981, havia outra postura e
nova Constituição. (Celso Zoppi)
A partir do Ano Internacional, tudo foi se consolidando. Foram sendo criados conselhos. O
primeiro foi no Estado de São Paulo. Depois começaram a surgir os outros conselhos
estaduais e municipais também, em Pernambuco, no Rio Grande do Sul, em Minas Gerais
e em outros Estados. Discutimos e aprovamos 14 propostas para serem encaminhadas
para fazer parte da Constituição. E todas foram aprovadas. Lógico que tinha outras
propostas individuais dos deputados e de outros grupos. Mas, o movimento organizado
apresentou 14 propostas, que passaram a fazer parte da Constituição, promulgada em 4
de outubro de 1988. (Chico Pirata)
A mobilização mundial
A mobilização mundial em torno do Ano Internacional foi muito intensa. A
troca de experiência entre pessoas com deficiência de diferentes países
estabeleceu novos parâmetros para a mobilização e universalizou. A
internacionalização da luta teve continuidade para além do AIPD.
Soube do 1º Congresso Mundial da Pessoa Deficiente, organizado pelas Nações Unidas
e pela DPI (Disabled People International, que seria realizado no Canadá. Escrevi dizendo
que gostaria de participar. Mas, não tinha recursos. Quando retornei do 1º Congresso, em
Recife, recebi um telegrama comunicando que mandariam uma passagem. Tive que ir
sozinho, com a cara e a coragem. Foi uma experiência difícil, mas muito bonita. Nunca
tinha saído do país. Mas, tinha força adquirida na FCD. Formamos o Conselho Mundial
das Pessoas Deficientes e os Conselhos Continentais. Como era só eu do Brasil, acabei
fazendo parte do Conselho Latino-Americano e, depois, simultaneamente, do Conselho
Mundial. Foi um choque saber que estaria assumindo tamanha responsabilidade. Não
sabia se teria força e condições de desenvolver. Mas, felizmente, depois, houve todo um
acompanhamento. A gente se comunicava muito com o Canadá e com Singapura. As
reuniões eram anuais. E, assim, foi-se delineando o que a pessoa com deficiência queria
da sociedade e dos governantes. O básico mesmo era a questão da acessibilidade.
Depois, a gente foi perceber que era uma questão muito restrita à pessoa com deficiência
física. Ao mesmo tempo, no Congresso Mundial, tinha ficado estabelecido que a questão
da comunicação era fundamental: o braile e a língua de sinais, inclusive com intérpretes
presentes nos eventos. Na época, não havia a preocupação de
41
detalhar por temas (educação, saúde, transporte etc.) o que hoje a gente chama de
políticas públicas. O grande arcabouço era a acessibilidade. E, a partir daí, se fazer
presente na sociedade. Eu passava, aos militantes de vários Estados do Brasil, as
informações sobre as discussões do Congresso Mundial e do Conselho Latino-Americano.
Na época, lembro que Rosangela Berman também estava muito atuante, no Rio de
Janeiro. Aqui, além de outras pessoas da FCD, havia o saudoso amigo Rui Bianchi.
(Celso Zoppi)
Participei, em 1990, de um seminário, no Vaticano, a respeito das pessoas com
deficiência. Esse seminário foi fruto do Ano Internacional, da melhoria de consciência em
nível internacional. A Igreja também começou a se manifestar. (Chico Pirata)
O movimento, o AIPD e seu legado
de mudanças
A atuação do movimento, inspirado pelo AIPD, deixou um legado de
mudanças lembrado pelos entrevistados.
A sociedade mudou muito, do começo do movimento para cá. Houve a aprovação de leis
que acabaram modificando não só a paisagem arquitetônica, mas, também, a própria
cultura. Na medida em que passou a conviver com mais pessoas com deficiência, a
sociedade se transformou. Isso transformou as próprias pessoas com deficiência, mesmo
aquelas que não participavam do movimento. Elas usufruem dessa nova condição. Essa é
a principal conquista que a gente teve! Essa nova maneira de ver as pessoas com
deficiência. (Lia Crespo)
A maioria dos Estados que tinham entidades de pessoas com deficiência atuou junto às
assembleias legislativas para, também, ver contempladas suas questões na Constituição
Estadual. E nós, aqui em Americana, também fizemos esse trabalho, em 1990, quando foi
elaborada a Lei Orgânica do Município. Nós, da FCD, naquele momento, tivemos uma
atuação muito forte, muito importante, tanto que a maioria das propostas que
apresentamos foi contemplada na nossa Lei Orgânica. Não importa se em Americana
tinha 10, 100 ou mil deficientes. Acontece que o acesso tem que ser para todos e isso
precisava ser um direito constitucional. Esses três instrumentos legais: Constituição
Federal, Estadual e Lei Orgânica são muito importantes para o segmento. É uma base
sólida que permite que a gente possa falar de transporte acessível ou de transporte
adaptado, no caso da frota existente. Permite que se fale da inclusão do aluno com
deficiência na rede regular de ensino, de práticas esportivas acessíveis e de saúde. (...)
Batemos em muitas portas. Muitos bateram a porta na nossa cara. Mas, tenho certeza de
que a gente conseguiu, de 1981 até agora, grandes conquistas num curto espaço de
tempo. A sociedade está ideal? Não, não está. Toda essa inclusão está acontecendo?
Não está da maneira como deveria ser. Mas, se compararmos 1981 e 2011, houve um
avanço muito grande, num curto espaço de tempo. (Celso Zoppi)
As relações entre o antes e o depois do contato com a luta política, entre
discurso pessoal e discurso militante, entre passado e presente aparecem o tempo
todo nas falas dos entrevistados. É mostrando essas relações que as narrativas
fazem sentido. Assim, parece afirmar que só é suportável lembrar de tudo aquilo
acontecido no passado, porque o presente é diferente. E aqui é importante
explicar o que é diferente. O que parece relevante é a transformação do assumirse e do passar a ser. É no ser que a diferença se define. Em um novo ser, com
uma identidade de grupo, mais autoconfiante que, ao narrar sua história, reafirma
sua capacidade
42
de atuar para mudar sua realidade. É olhando por esse prisma que se pode
entender a ação do grupo e a importância de tudo que foi realizado, que vai além
da conquista de direitos ou da aprovação de leis.
As pessoas com deficiência
e a mobilização hoje
Da leitura dessas histórias, podemos concluir que a inclusão é uma luta
de todos e que nossa sociedade fica melhor quando convive com pessoas que
nos ensinam o exercício da cidadania e sobre ser um cidadão com direitos.
Podemos, certamente, constatar a mudança social operada por esse conjunto de
pessoas com deficiência, mas é importante salientar que o caminho deve
continuar a ser percorrido.
O artigo foi escrito pelo Brasil. Estávamos, em Brasília, 40 pessoas, (...) todo mundo
trabalhando junto, discutindo, e desenhamos para a Convenção da Pessoa com
Deficiência um artigo que define o que é a pessoa com deficiência. (...) Ficou escrito ali
que todas as deficiências são agravadas pelo meio físico. Se o ambiente estiver ajustado,
sou menos deficiente ou não sou deficiente. Deixo de ser deficiente, dependendo da
situação, porque o meio físico é totalmente acessível. Veja você como o conceito de
deficiência muda. Quer dizer, sou uma pessoa com deficiência que passa a ser totalmente
integrada de acordo com o meio físico. Essa questão tem que ser vista, lida e assimilada.
É uma questão nova, aprovada e sancionada, agora, em 2009, 2008. (...) As pessoas têm
que ter essa consciência, entender o peso dos artigos da Convenção. Temos que (...)
começar a discutir a questão da cidadania e colocar isso na grade curricular das escolas,
das faculdades. (Adelino Ozores)
Com o passar do tempo, com a conquista da redemocratização, os movimentos populares
caíram um pouco. (...) Também, por causa das conquistas legais, os movimentos se
desarticularam e partiram para outro nível de luta, que é mais atuar junto ao Legislativo,
Judiciário e Ministério Público. Portanto, a organização das pessoas com deficiência se
modificou. O Brasil tem as melhores leis do mundo. Acho que a grande luta das pessoas
com deficiência hoje é fazer com que as leis que já existem sejam cumpridas. Não se trata
de privilégios. Não queremos privilégios. Queremos direitos. Somos diferentes e a lei tem
de tratar diferentemente os diferentes. Isso para todos os grupos. (...) Caso a gente se
prepare para tentar acolher os mais frágeis, acolhemos todos. Acho que essas duas
coisas são marcantes no atual desenvolvimento do movimento das pessoas com
deficiência: cumprir as leis que já existem e ter cuidado com a acessibilidade para que
todos possam ser acolhidos nessa sociedade. (Chico Pirata)
Essas conquistas são muito importantes. Mas, na verdade, nem todas as pessoas com
deficiência usufruem delas. Como era antes e continua sendo, a maioria das pessoas com
deficiência ainda está totalmente isolada, internada em instituições, ou escondida dentro
de casa. Quer dizer, mudamos muita coisa. Mudamos o discurso, principalmente. Mas,
ainda há muito preconceito, há muito a ser feito, ainda há barreiras a serem eliminadas.
Muita gente não tem reabilitação, muita gente que não tem uma cadeira de rodas para sair
de casa. Muitos não frequentam a escola porque não têm como ir. (Lia Crespo)
Ainda que essa possibilidade de acesso a bens sociais e culturais não
seja desfrutada por todas as pessoas com deficiências, em um livro que celebra
os 30 anos do Ano Internacional das Pessoas Deficientes, importa lembrar a
relevância do registro das memórias que
43
remetem a uma história do cotidiano e da vida privada. E, neste caso, também,
revela – por uma perspectiva diversa – outra história. Desse modo, pluraliza a
possibilidade da construção do conhecimento sobre um grupo de pessoas a partir,
e não à parte, de suas próprias reflexões.
Um conhecimento é construído no diálogo, levando em conta identidades
e convicções. As entrevistas que geraram as reflexões expressas neste capítulo,
por sua natureza mais subjetiva, humaniza toda uma história e nos ajuda a
compreender uma luta que foi, em si, também humanizadora de seus sujeitos.
Esse exercício, portanto, passa a ser válido, na medida em que preserva e divulga
narrativas e memórias de um momento central de nossa história contemporânea.
Mas, para além disso, as histórias de vida dos protagonistas do AIPD relembram o
legado e a identidade desse grupo, ao retomar sua pertença a um movimento que
se formou e enraizou em torno da luta pelo “direito de ser”. Esse direito foi
conquistado pela luta das pessoas que este texto apresentou. No mais, cabe
ainda assegurar que os direitos sejam respeitados por todos.
Referências bibliográficas
CASTORIADIS, C. Os intelectuais e a história. In: As encruzilhadas do labirinto 13.
O mundo fragmentado. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1992.
CHAUÍ, M. Público, privado, despotismo. In: Novaes, A. (org.) Ética. São Paulo:
Companhia das Letras, 1996, p.345 – 390.
CRESPO, A. M. M. Da invisibilidade à construção da própria cidadania. Os
obstáculos, as estratégias e as conquistas do movimento social das
pessoas com deficiência no Brasil, através das histórias de vida de seus
líderes. Tese de doutorado, FFLCH/USP, 2009.
GOHN, M. G. Teoria dos movimentos sociais. Paradigmas clássicos e
contemporâneos. São Paulo: Loyola, 1997.
__________. Conselhos gestores e participação sociopolítica. São Paulo: Cortez,
2003.
MEIHY, J. C. S. B. Manual de História Oral. São Paulo: Loyola, 2005.
NALLIN, A. Reabilitação em instituição: suas razões e procedimentos. Análise de
representação do discurso. Brasília: Corde - Coordenadoria Nacional para
integração da pessoa portadora de deficiência, 1994.
RANCIÈRE, J. O dissenso. In: NOVAES, A. (org). A crise da razão. São Paulo:
Companhia das Letras, 1996.
RIBEIRO, S. L. S. Visões e perspectivas: documento em história oral. Oralidades,
São Paulo, nº. 2 – jun/dez 2007, pp. 35-45.
44
Seguem 40 páginas de documentos do
Departamento de Ordem Política e Social –
DOPS. Tais páginas não constituem um
único documento. São páginas dispersas da
documentação do DOPS, atualmente sob a
guarda do Arquivo Público do Estado de São
Paulo. A maior parte dos documentos referese a Cândido Pinto de Melo; há também
referência a Maria de Lourdes Guarda e a
Isaura Helena Pozzatti; e reprodução de
material do movimento social da pessoa com
deficiência, coletado pelo DOPS.
45
Imagem. Capa da Ficha de Cândido Pinto de Melo, fl1.
Contém Brasão do Estado de São Paulo e carimbos: “Ordem Política” e “Fichado”.
Secretaria Segurança Pública
Departamento de Ordem Pública Social
Campos para preenchimento: Nº; Ano 196_; Interessado; Procedência; Assunto e Data de Distribuição.
Contém carimbo no campo Nº: “145050”
Campo “interessado” consta nome completo de Cândido escrito à mão.
Campo “assunto” consta os nomes dos pais de Cândido, escritos à mão: “Álvaro Quintino de Souza Melo, Elionor Pinto Pessoa de Melo”.
46
Imagem. Secretaria de Segurança Pública
Dependência “Sistema de Informação” (D.O.P.S.)
Contém carimbo no formato de três quadrados para preenchimento, com numeração manuscrita: 52-Z 0 9588
Cândido Pinto de Melo
Filho de: Álvaro Quintino de Souza Melo e Dna Elinor Pinto Pessoa de Melo.
Nasc. em 04/05/1.947 - Nat. de João Pessoa – PB.
Res; Rua Estevam de Oliveira, 105 – B. Vista – Recife.
50-Z-9-11380
Consta arquivado neste S.I., enviado pela Secr. da Seg. Pública de Recife, seus antecedentes;
Em 04/04/1.966, o epigrafado foi preso pela polícia local para aveguações e identificado sob o n° 36.131, por exercer atividades subversivas. Na mesma data, foi
apreendida na residência do citado, máterial de caráter subversivo, constando no auto da apreensão.
Em 04/04/1.966, foi remetido o ofício s/n°, tendo ficado à disposição das autoridades e posterior foi posto em liberdade.
Em 29/04/1.967, foi condenado pelo Cons. Permanente de Justiça do Exercito, a pena de um (1) ano de prisão, sob acusação de haver tentado subverter a ordem pública
social do País.
Em 12/10/1.968, foi preso na companhia de outros estudantes na cidade de Ibiúna/SP, quando participava do XXX Congresso da UNE.
Em 26/02/1.970, foi remetido ao Dr. Auditor da 7° Região Militar o inquerito instaurado contra o citado, por infringir o dispositivo da Lei da Seg. Nacional.
Em 10/03/1.970, o Cons. Permanente da Justiça do Exército decretou a prisão preventiva.
50-Z-694/657/658/656.
O jornal “Última Hora”, publicou que na cidade de Recife, foram apreendidos grandes quantidades de máterial subversivo e diverso exemplares da “Carta Aberta aos
Professores”, firmada pelo epigrafado, presidente da UEP, entidade estudantil fechada por decisão do Governo da República.
50-Z-9-13172.
S.G.SS.P Mod 27
47
Imagem. Arquivo Geral – DOPS –
Informação n° 2323/76
DSS
Em atendimento ao que foi solicitado no OF. n.° 76 do HOSPITAL DAS CLINICAS DA FACULDADE DE MEDICINA DA UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO, e
com data de 03.12.76, temos a informar:
Cândido Pinto de Melo.
Consta neste Arquivo, o nome de CÂNDIDO PINTO DE MELO, filho de Álvaro Quintino de Sousa Melo e de Elinor Pinto Pessoa de Melo, natural de João Pessoa –
Paraíba, solteiro, nascido aos 4.5.1947, engenheiro, residente à Praça Benedito Calixto, n°186 – ap.104. Capital - São Paulo. R.G. n°4.036.788.
Acha-se aqui prontuariado desde 12.10.1968, ocasião em que foi preso como incurso na LEI DE SEGURANÇA NACIONAL (caso de Ibiúna). Foi indiciado em
inquérito policial juntamente com outros estudantes. Os autos foram remetidos à Justiça Militar da 2ª auditoria da 2ª H. H. Mem. 18.10.1968.
Apresentou 4 (quatro) Certidões, como segue:
1ª Auditoria da 2ª CJM, data de 24.1.74, certificando NADA CONSTAR, contra CANDIDO PINTO DE MELO;
3ª Auditoria da 2ª CJM, data de 23.1.74, certificando NADA CONSTAR, contra CANDIDO PINTO DE MELO;
2ª Auditoria da 2ª CJM, data de 24.1.74, certificando que, o requerente figurou como acusado no processo 67/68, versando sobre a realização do XXX Congresso da
extinta UNE, tendo sido declarada EXTINTA A PUNIBILIDADE PELA PRESCRIÇÃO DA AÇÃO PENAL, em decisão do Conselho Permanente de Justiça da 2ª.
Auditoria da 2ª CJM, datada de 15.12.72, já transitada em julgado. Certifica, ainda, não constar naquela Auditoria, qualquer condenação, ação penal ou inquérito em
andamento, com relação ao já referido CANDIDO PINTO DE MELO; -segue-
48
Imagem. Continuação do documento anterior.
-2Arquivo Geral – DOPS
Cont.da Informação n° 2323/76
Auditoria da 7° C.J.M. - Recife/PE, datada de 1.2.74, certificando que CANDIDO PINTO DE MELO, não tem, no momento, nenhum processo tramitado naquela
Auditoria, tendo, todavia, respondido naquele Juízo, aos processos n° 80/66 e 15/70, sendo em 1° Instância condenado no 1° a pena de 1 ano de detenção como incurso
no artigo 33, inciso IV, do DL 314/67 e absolvido no segundo, enquanto que, em 2ª Instância, foi absolvido no primeiro e teve a sentença confirmada no segundo
processo, CERTIFICANDO, ainda, que CANDIDO PINTO DE MELO, também figurou ser o indiciado nos processos n°s 01/68 e 91/70, originados de inquérito
instaurados para apurar atividades subversivas, mas não chegou a ser denunciado.
É o que temos a informar. Porém, não podemos afirmar tratar-se do solicitado, pois não nos foram fornecidos dados qualificativos do mesmo.
Quanto aos demais, NADA CONSTA.
São Paulo, 8 de dezembro de 1976.
Astolfo Castro Ferraz
Enc. do setor
49
Imagem. Arquivo Geral
MM/51
Informação N° 347/74 [numeração escrita à mão]
ATESTADO N° 024653/74
CANDIDO PINTO DE MELO, filho de Alvaro Quintino de Sousa de Melo e de Elinor Pinto Pessoa de Melo, natural de João Pessoa-Paraíba, solteiro, nascido aos
4.5.1947, engenheiro, residente à Praça Benedito Calixto, n° 186 - apto. 104 Capital/São Paulo. ° R.G. nº 4.036.788.
Acha-se aqui prontuariado desde 12.10.1968, ocasião em que foi prêso como incurso na LEI DE SEGURANÇA NACIONAL (caso de Ibiúna). Foi indiciado em
Inquérito Policial juntamente com os outros estudantes. Os autos foram remetidos à Justiça Militar da 2° Auditoria da 2° PN, em 18.10.68.
Apresentou 4(quatro) CERTIDÕES, como segue:
1ª Auditoria da 2ª C.J.M., datada de 24.1.74, certificando NADA CONSTAR, contra CANDIDO PINTO DE MELO;
3ª Auditoria da 2ª C.J.M., datada de 23.1.74, certificando NADA CONSTAR, contra CANDIDO PINTO DE MELO;
2ª Auditoria da 2ª C.J.M., datada de 24.1.74, certificando que, o requerente figurou como acusado no Processo 67/68, versando sôbre a realização do XXX Congresso
da extinta UNE, tendo sido declarada EXTINTA A PUNIBILIDADE PELA PRESCRIÇÃO DA AÇÃO PENAL, em decisão do Conselho Permanente de Justiça da 2ª
Auditoria da 2ª C.J.M., datada de 15.12.72, já transitada em julgado. Certifica, ainda, não constar naquela Auditoria, qualquer condenação, ação penal ou inquérito em
andamento, com relação ao já referido CANDIDO PINTO DE MELO;
Autoria da 7ª C.J.M., Recife/PE, datada de 1.2.74, certificando que CANDIDO PINTO DE MELO, não tem, no momento, nenhum processo tramitando naquela
Auditoria, tendo todavia, respondido naquele Juízo, aos processos n°s 80/66 e 15/70, sendo os 1ª Instância condenado na 1ª pena de 1 ano de detenção como incurso no
artigo 33, inciso IV, do DL 314/67 e absolvido no segundo, enquanto que, em 2ª Instância, foi absolvido no primeiro e teve a sentença confirmada no segundo
processo, CERTIFICANDO, ainda, que CANDIDO PINTO DE MELO, também figurou como indiciado nos processos n°s 01/68 e 91/70, ori- - segue-
50
Imagem. Continuação documento anterior.
Arquivo Geral
(continuação da informação n° 347/74 [numeração escrita à mão]).
originados por inquéritos instaurados para apurar atividades subversivas, mas não chegou a ser denunciado.
Informado por Marcial Macias,
São Paulo, 10 de Outubro de 1974.
Argemiro Laurindo Carbonelli.
Chefe de Arquivo Geral – DOPS.
51
Imagem. Departamento de Ordem Política Social
NMR
Informação n° 592/70
Arquivo Geral
Atendendo Ofício 238 – DSS/70 de 15 de maio p.p., da Delegacia de Segurança Nacional – Secção Administrativa, passamos a informar o seguinte.
“Acha-se aqui prontuário desde ................. 12.10.1968, CÂNDIDO PINTO DE MELO, filho de Alvaro Quentino de Souza Melo e Elinor P. Pessoa de Melo, nasc. aos
4.5.1947 – Nat. João Pessoa – Paraíba, ocasião em que foi preso como incurso na LSN (Caso Ibiúna).
Indiciado em inquérito policial juntamente com outros estudantes, os autos foram remetidos à Justiça Militar da 2ª Auditoria da 2ª RM, em 18.10.68..-.-.-.-.-.-.-.-.-.-.-.-.-.-.-.-.-.-.-.-.-.-.-.-.-.-.-.-.-.-.-.-.-.-.-.-.-.-.-.-.-.-.
São Paulo, 4 junho de 1970
CHEFE DO ARQUIVO GERAL DEOPS
ARGEMIRO LAURINDO CARBONELLI
52
Imagem. Documento com itens para preenchimento de dados. Dados datilografados.
SECRETARIA DA SEGURANÇA PÚBLICA
Departamento de Investigação
Serviço de Identificação
Delegacia: Departamento de Ordem Política e Social
REGISTRO GERAL Nº ..........
Nome: CÂNDIDO PINTO DE MELO
Vulgo: .........
Filiação: (pai) ALVARO QUENTINO DE SOUZA MELO e (mãe) ELINOR P. PESSOA DE MELO
Idade: (declarada ou aparente) 21 anos. (Sabendo o dia em que nasceu, convém registrar)
Nascido no dia 4 de maio de 1947
Estado civil: solteiro
Profissão: (declarada) estudante
Nacionalidade: vrasileira
Lugar onde nasceu: JOÃO PESSOA – Paraíba (sendo estrangeiro, há quanto tempo veiu para o país e a data, sabendo-a)
Instrução: superior
Residência: (declarada) rua estavao de oliveira, 105 RE
Data da prisão: 12 – 10 – 1968
Data da identificação: 16 – 10 – 1968
Motivo da prisão: LEI DE SEG. NACIONAL
Forma da prisão: (em flagrante, por mandado, etc.) PORTARIA
Está sendo processado: SIM
Estado em que se acha o processo: ...........
Juízo Criminal do processo ou da sentença: ........
Notas sobre a marcha do processo: .......
Religião: CATÓLICA
Conduta: .......
Observações: - Os dados acima devem ser todos obrigatóriamente preenchidos.
Assinatura da autoridade policial
HAVENDO FOTOGRAFIA, COLOCAR AQUI
IMPRESSÕES DA MÃO DIREITA
53
Imagem. Documento com itens para preenchimento de dados. Dados datilografados.
CARACTERES CROMÁTICOS, ETC.
Cutis branca
Cabelos castanhos
Barba raspada
Bigodes raspado
Sobrancelhas sim
Olhos castanhos
Estatura: (sendo possível, em centímetros) 1,72
Corpo: normal
MARCAS PARTICULARES, CICATRIZES E TATUAGENS
Notas e informações diversas sobre prisões, processos, condenações, identificações anteriores, lugares onde tem residido nos últimos cinco anos, etc.
ASSINATURA DO IDENTIFICADO
[consta assinatura de Cândido Pinto de Melo].
54
Imagem. Documento com itens para preenchimento de dados, em três campos. Dados datilografados.
1º Campo. Topo da página.
D.F.S.P. Logo do Governo de São Paulo. Instituto Nacional de Identificação.
Contém campo para as digitais de ambas as mãos, preenchido.
Campo Ano de Nascimento consta a “1947”.
2º Campo. Itens para preenchimento, número 38 a 55. Aqui reproduzido apenas os preenchidos.
Sigla Estadual: PE; Reg. Estadual: 631.377-Recife; delegacia: DOPS; Data: 12-10-1968; Nome: Candido Pinto de Melo; Pai: Alvaro Quintino de Sousa Melo; Mãe:
Elinor Pinto Pessôa de Melo; Data de Nasc.: 4-5-1947; Nacionalidade: Brás.; Naturalidade: J.Pessoa-PB; Sexo: masc.; Cor: branca; 1,72; Residência: R. Estevão de
Oliveira, 105- Boa Vista Pernambuco; Incidência Penal: Lei de Segurança Nacional; Estado civil: Solteiro; Grau de instrução: Superior inc.; Data do fato: 12/10/1968;
Hora: 7 hs; Local da ocorrência: Ibiúna.
3º Campo. Informações Policiais.
Motivo da detenção: Reunião proibida por lei; Local: Ibiúna – Est. De S.Paulo; Data: 12-10-1968; Hora: 7hs; Documento de identidade: Diversos.
Consta assinatura do “Responsável pelas Informações”
4º VIA Cópia para o arquivo da Delegacia de Polícia.
S.G.-2-68 – S.A.C. – S.S.P. – Mod. 158 – 40.000
55
Imagem. Continuação do documento anterior; também em três campos.
1º Campo. Topo da página.
Seg. Estadual: 631.377 – recife; Delegacia: DOPS; Data: 12-10-1968; Nome: Candido Pinto de Melo; Incidência Penal: reunião proibida por Lei; Assinatura do
identificado [consta assinatura de Candido].
Mão Esquerda [consta digitais da ponta e da extensão dos dedos]; Polegares [consta digitais]; Mão Direita [consta digitais da ponta e da extensão dos dedos].
2º Campo. Itens para preenchimento, número 56 a 71. Aqui reproduzido apenas os preenchidos.
Cútis: Branca; Olhos: Castanhos escuros; Cabelos: Castanhos; Tipo de Cabelo: Ondulado; Bigos ou barba: raspados; Altura: 1,71-1,75; Compleição: Médio;
3º Campo. Para Uso do Instituto Nacional de Identificação.
Consta as digitais do Polegar Direito e do Polegar Esquerdo.
56
Imagem. Seis retratos de pessoas fichadas pelo DOPS, entre elas Cândido Pinto de Melo, jovem. Abaixo do retrato consta o número 101.
Nesta publicação, os demais retratos estão fora de foco, para preservar suas identidades.
57
Imagem. Doze retratos de pessoas fichadas pelo DOPS, entre elas Cândido Pinto de Melo, mais velho que no documento anterior. No retrato consta o número 236.
Nesta publicação, os demais retratos estão fora de foco, para preservar suas identidades.
58
Imagem. Lista de nomes, numeração de 207 a 266. Na frente dos nomes figura a informação “banido” ou “preso”. Os nomes estão ticados a caneta, nas cores azul e
vermelha. O número 236 corresponde a “Cândido Pinto de Melo (“Hilton”) – Preso”.
Nesta publicação, os demais nomes estão fora de foco para preservar suas identidades.
59
Imagem. Documento em quatro tópicos, para preenchimento de informações.
Secretaria de Segurança Pública do Estado de São Paulo
Departamento Estadual da Ordem Política Social
N° 101
I – Qualificação. Nome: Cândido Pinto de Melo; Codinome: [nada consta]; Nacionalidade: Brasileira; Onde Nasceu: João Pessoa; Estado: Paraíba; Estado Civil:
Solteiro; Idade: 25 Nascido aos 04.05.1947; Filiação: Alvaro Quintino de Sousa Melo e de Elinor Pinto Pessoa de Melo; Residência: Rua Estevam de Oliveira, 105 –
Boa Vista – Recife; Profissão: Estudante; Lugar onde Exerce Atividade: [nada cosnta].
II – Doc. Identidade. Cart. Identidade: RG 4.036.788; Titulo eleitor: [nada consta]; Certidão Militar: [nada consta].
III – Organização. UNE
IV – Histórico. Estudante da Escola de Engenharia da Universidade de Pernambuco...//
Indiciado no Inquérito Policial n°15/68 instaurado por esta DEOP, por infração da Lei de Segurança Nacional, como participante do 30° Congresso da extinta UNE.
Autos remetidos a Justiça Militar aos 13.10.1968....///
23.2.1973 - Conforme ofício n. 358, da 2º Auditoria, o epigrafado teve declarado extinta sua punibilidade pela prescrição da ação penal, já transitada em julgado...///
Ordem Social informa: Oficio n. de 15.5.70, da Delegacia de Segurança Social de Recife, e ofício do P.J. de Recife, que manda recolher o fichado, por se encontrar
internado no Hospital da Assistência da Criança Defeituosa do Estado de São Paulo, solicitando ainda sêja preso e recolhido à prisão competente, podendo o mesmo
ficar detido no Hospital, desde que sejam permitidos reais condições para tal. Solicita, ainda, que seja informado do cumprimento daquele mandado de prisão...////
Informação da PM de São Paulo:
1970 – Figura, juntamente com Alan de Melo Marinho de Albuquerque e outros, em Inquérito, contendo nomes de terroristas localizados em “aparelhos” desbaratados
pela polícia. Tal inquérito refere-se à organização subversiva ALN...///
29/DEZEMBRO/71 – Nesta data, Ney Francisco do Vale, prestou declarações no DOI, dizendo quando o nominado, militante do PCBR fôra baleado em Recife,
ficando paralítico...//
No rodapé da página consta carimbo com numeração manuscrita: 50C 22 8227.
60
Imagem. Documento. Original no modo paisagem.
Seu nome consta do livrete “Torturas e Mortes de Presos Políticos”
Doc. Pasta Diversos Pasta 17 Doc. 7 Fls.18
61
Imagem. Fotocópia da capa e contracapa de livro.
BRASIL: Tortura e Morte de Presos Políticos. 1970.
Na borda da fotocópia consta manuscrito: Fichario e Arquivo O.S. p/anotar e arquivar. Doc 7.
62
Imagem. Fotocópia das páginas 34 e 35 do livro BRASIL: Tortura e Morte de Presos Políticos.
BELO HORIZONTE. No dia 28 de novembro de 1968 foram presos no Bairro do Hôrto, em Belo Horizonte, e levados para a 4º Companhia de Comunicações, os
Padres Assumpcionistas Michel Marie Le Ven, Francisco Xavier Berthou, Hervé Croguenae e o diácono José Geraldo da Cruz. Segundo o advogado Ariosvaldo de
Campos Pires, encarregado pela arquidiocese de Belo Horizonte para fazer a defesa, “êles foram mantidos em regime de absoluta incomunicabilidade, enquanto eram
submetidos a longos e penosos interrogatórios”. O Arcebispo de Belo Horizonte D. João Rezende Costa denunciou publicamente o fato de os acusados terem
respondido aos inquéritos, completamente nus e debaixo da pressão de constantes torturas. Notas oficiais da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (7 de dezembro
de 1968, assinada pelo Secretário Geral D. Aluísio Lorscheider) e da Conferência dos Religiosos do Brasil (10 de dezembro de 1968, assinada pela diretoria),
protestaram em vão contra a prisão e contra as torturas infligidas aos padres presos. Houve notas oficiais de protesto por parte de todos os setores, inclusive dos cardeais
Jaime de Barros Câmara, do Rio de janeiro, Agnello Rossi de São Paulo e Vicente Scherer de Pôrto Alegre.
Os padres acusados continuam respondendo a intermináveis inquéritos. Como conseqüência da prisão dos padres assumpcionistas em Belo Horizonte, foi aberto um
processo contra a Juventude Operária Católica (JOC) envolvendo ao todo 800 líderes católicos de todo o Brasil. Dêstes, foram ouvidos até o momento cerca de 100,
entre os quais o Presidente Nacional, Gibor Sullik, que foi preso por soldados armados de metralhadora, na sede da Conferência dos Bispos do Brasil, no Rio de Janeiro,
Ladeira da Glória, 98.
Pe. Henrique. O Pe. Antônio Henrique Pereira Neto foi morto, nas ruas da cidade de Recife na noite do dia 26 de maio de 1969.
Era assessor do Arcebispo de Olinda e Recife, D. Helder Câmara para assuntos de juventude. Uma nota divulgada no dia 27 de maio de 1969, assinada por D. Helder
Câmara e pelo Conselho Presbiteral da Arquiodiocese afir- 34 –
ma que “a vítima, entre outras torturas, foi amarrada, arrastada e recebeu três tiros na cabeça”. Antes da morte do Pe. Henrique, o Palácio de Manguinhos, sede do
arcebispado foi pichada com inscrições pró-govêrno militar. A casa da Rua Giriquiti, onde funciona o Secretariado regional da Conferência dos Bispos, foi crivada de
balas durante a noite. A residência de D. Helder Câmara, na Igreja das Fronteiras, em Recife, foi alvejada e pichada. O líder estudantil Cândido Pinto de Melo, amigo de
D. Helder Câmara, foi alvejado em plena rua central de Recife. Sua medula ficou seccionada e por isto o estudante ficou inutilizado para o resto da sua vida.
Depois da morte do Pe. Henrique, D. Helder Câmara disse à imprensa que existe uma lista de mais de 30 pessoas, encabeçadas pelo seu nome, de pessoas que devem ser
eliminadas da mesma forma como o foi o Pe. Henrique. A existência da lista foi comunicada a D. Helder Câmara, através de ameaças telefônicas anônimas.
Volta Redonda. O Secretário Geral do Sindicato dos Metalúrgicos, Sr. Genival dos Santos, está há seis meses internado porque seu estado de saúde é precário como
conseqüência das torturas que sofreu durante os quatro meses em que esteve preso durante o ano de 1969. Genival dos Santos teve seu cargo no Sindicato cassado e foi
demitido como funcionário da Companhia Siderúrgica Nacional, por ato assinado pelo Presidente Costa e Silva. A denúncia contra as torturas que sofreu Genival dos
Santos, foi levada à imprensa pelo Bispo de Volta Redonda D. Waldir Calheiros de Novaes. Em conseqüência destas denúncias, D. Waldir Calheiros foi acusado de
difamação contra as Fôrças Armadas. Atualmente está correndo um IPM contra D. Waldir acusado de difamar as Fôrças Armadas.
Os bispos que integram a Comissão Central da Conferência dos Bispos do Brasil, lideradas pelos Cardeais Agnello Rossi de São Paulo, Jaime de Barros Câmara do Rio
de Janeiro, Vicente Scherer de Pôrto Alegre, e Eugênio Salles do Salvador, enviaram a D. Waldir no dia 20 de setembro de 1969 uma carta na qual se afirma entre
outras coisas: “aqui lhe estamos trazendo nossa palavra de fraterna e inteira solidariedade, diante dos sofrimentos que o têm amargurado
- 35 –
63
Imagem. Página de documento constando 7 nomes de servidores do Hospital das Clínicas/SP, entre eles o de Cândido. Os demais nomes estão ocultados nesta
publicação para preservar suas identidades. No topo da página, manuscrito “arquive-se”.
Hospital das Clínicas – Faculdade de Med. Da Univ. de S.Paulo.
RELAÇÃO de serv. Recém admitidos no Hosp. das Clínicas da Fac. de Med. De S. Paulo:
CÂNDIDO PINTO DE MELO, Portador da Cédula de Identidade nº 4.036.788, expedida em S.P. aos 25/10/1971, filho de Alvaro Quintino de Souza Melo e de Elinor
Pinto Pessoa de Melo, nascido em 4/5/1947 na Cidade de Joao Pessoa – Estado da Paraíba, e residente à Casa do Ator, nº 107 – V. Olimpia – S.P.
No rodapé consta carimbo com numeração manuscrita: 50C 118 220.
64
Imagem. Documento. Original no modo paisagem.
Ficha N° 1. 516
MELO, Candido Pinto de
Brasileiro, nat. João Pessoa, PB, solteiro, 21 anos, filho de Alvaro Quintino de Souza Melo e de Elinor Pinto Pessoa de Melo, residente a Rua Estevão de Oliveira, 105 –
Boa Vista – Recife. Estudante da Escola de Engenharia da Universidade de Pernambuco.
18.10.68 – Indiciado em inquérito policial n° 15/68, instaurado por esta DEOP, por infração da Lei de Segurança Nacional, como participante do 30° Congresso da
extinta UNE. Autos remetidos nesta data à Justiça Militar.
Indiciados nestes inquéritos: 694 elementos
V.Verso
65
Imagem. Documento. Original no modo paisagem.
MELO, CANDIDO PINTO DE
Ficha n°2
Recife
2/6/78 – Inf. Folha de São Paulo: A 2ª Câmara Criminal do Tribunal de Justiça de Recife, decidiu por unanimidade acolher o recurso do Promotor Paulo Amazonas,
para processar o major José Ferreira dos Anjos, da Policia Militar de Pernambuco, como o responsável pela prática de violências e lesões corporais gravíssimas contra o
nominado fato ocorrido a 28/4/1969. Doc. na pasta Justiça, digo, Diversos.
66
Imagem. Documento. Original no modo paisagem.
MELO – Candido Pinto
Vulgo “Hilton” [manuscrito]
Preso Vulgo Preso
30-z-160-14893
67
Imagem. Documento. Original no modo paisagem.
MELO – Cândido Pinto de
filho de Alvaro Quintino De Souza Melo e de Elinor Pnto Pessoa de Melo.
INF. p/o DOPS, em 7/5/74; 52-Z-0-9588
68
Imagem. Documento. Original no modo paisagem.
23/2/73 – Conf.. o ofício n° 358 da 2ª Auditoria o epigrafado teve declarada extinta sua punibilidade pela prescrição da ação penal, já transitada em julgado.
05/10/73 – Conforme relação n/data da Sec.Seg. Pública do Estado de Pernambuco:
o Conselho Permanente de Justiça do Exército decretou a prisão preventiva do
epigrafado, conf. of. 199 de 11/3/70, da Auditoria da 7ª Reg. Militar, em 26/08/1970, o inquérito policial foi remetido à Auditoria da 7° Reg. Militar por haver o
epigrafado incorrido na Lei de Seg. Nacional, como elemento ligado à A.L.N. (Aliança Libertadora Nacional) e que participou, de assaltos, terrorismo e outro atentado
ao regime da Lei vigente no País.
Conf.of. 439 de 13/5/70 encontra-se recolhido no Hospital da Associação da Criança Defeituosa, no Estado de São Paulo. - (Documento PB 12/73- encaminhado ao
S.I.-)
69
Imagem. Documento. Original no modo paisagem.
MELO – Cândido Pinto de
ref. Ao Mov. De Ibiúna=1968=
QUAL: 50-C-22-8227
70
Imagem. Documento. Original no modo paisagem.
MELO - Candido Pinto
Filho de Alvaro Quintino de Souza Melo e de Elionor Pinto Pessoa de Melo, 21 anos, natural de João Pessoa, PB, solteiro, Estudante da Escola de Engenharia da Univ.
de Pernambuco, residente à R. Estevão de Oliveira, 105 – Boa Vista – Recife.
Assunto – 18.10.68 – Indiciado no inquérito policial n° 15/68 instaurado por esta DEOP, por infração da L.S.N., como participante do 30° Congresso da extinta UNE.
Autos remetidos nesta data à Justiça Militar. Indiciados deste inquérito: 694 elementos.
23.2.73 – Conf.. of. 358 da 2ª Auditoria o epigrafado teve declarada extinta sua punibilidade pela prescrição da Ação Penal, já transitada em julgado.
05.10.73 – Cof. relação n/data da Sec. de
(vide verso)
71
Imagem. Documento. Original no modo paisagem.
05.10.73 - Conf. relação n/data da Sec.Seg.Publica do Estado de Pernambuco: O Conselho Permanente de Justiça do Exército decretou a prisão preventiva do
epigrafado, conf. of. 1999 de 11/3/70, da Auditoria da 7ª RM, em 26/8/70, o inquérito policial foi remetido à Auditoria da 7ª RM por haver o epigrafado incorrido na
L.S.N, como elemento ligado à ALN (Aliança Libertadora Nacional) e que participou de assaltos, terrorismos e outros atentados ao regime da Lei vigente no país. Cof.
of. 439 de 13 de maio/ 1970, encontra-se recolhido no Hospital da Associação da Criança Defeituosa do Est. de S. Paulo.
Assunto: Em 4.4.74 requereu um atestado de seus antecedentes políticos-sociais. Anexou em seu pedido três certidões das 22 das Auditoria sendo que na 1ª e 3ª CJM
nada consta e 2ª CJM consta que o processo 67/68 em que o nominado figurou como acusado teve sua pena
segue
72
Imagem. Documento. Original no modo paisagem.
MELO CANDIDO PINTO
Ficha 2
Cont.- em que o nominado figurou como acusado, teve extinta a puniblidade, digo punibilidade pela prescrição da pena. Anexou, ainda, uma certidão da 7ª CJM =
Recife-PE-, na qual consta que respondeu naquela Juízo aos processos 80/66 e 15/70 sendo que no primeiro foi condenado a pena de hum ano de detenção e absolvido
no segundo processo. Que figurou como indiciado nos processos 01/68 e 91/70 mas não chegou a ser denunciado. Em suas petições dirigidas às Auditorias, declarou
ser Engenheiro, residente à Rua Humaitá, 18 – Botafogo – Guanabara.
Em 28/06/1974 – O Hospital das Clinicas solicitou informações declarando que o epigrafado reside - À casa do Autor n° 107 – Vila Olímpia –SP- Capital.
Foi informado a respeito o Hospital das Clínicas com a informação de n°592/74
73
Imagem. Documento. Original no modo paisagem.
MELO – Cândido Pinto de
Func. Do Hosp. Das Clínicas / qaulif
50-Z-118-220
74
Imagem. Documento. Original no modo paisagem.
MELO – Cândido Pinto de
Em 8/80 – componente da chapa 1 – cand. ao Sind. Engenheiros – anexo a info. 638-B/80
DI/DOPS
20-C-44-11863
1c
75
Imagem. Documento. Original no modo paisagem.
MELO – Cãndido Pinto de
Em 8/80 – componente da chapa 1 – cand. Sind. Engenheiros-anexo a info. 638-B/80-DI/DOPS
20-C-44-11861
1c
76
Imagem. Documento. Original no modo paisagem.
MELO – Cãndido Pinto de
S/qualif.
Prof.
Termo de declarações 29.03.77
50-K-104-2685
50-K-104-2684
77
Imagem. Folder.
Sindicato dos Engenheiros
Chapa 1
Diretoria. Titulares: Horácio Ortiz/ Cid Barbosa Lima Jr./ Luiz Dias Ferreira / Eduardo Albertin/ Antonio Marsiglia Neto / Hilton Barlach.
Suplentes: Jacob Teubl / Roberto Ribeiro dos Santos / Antonio Carlos Thereso Mattos / Geraldo Leite / José Augusto Ramos Soares / Allen Habert.
Oposição e Renovação
Conselho Fiscal
Titulares: José Ivandro Dourado Rodrigues / Wolfgang Stein / Candido Pinto de Melo.
Suplentes: Antonio de Souza / Clara Emilia Lima Hartmann / Samuel Ribeiro Giordano.
Delegados representantes junto à Federação Nacional dos Engenheiros.
Titulares: Antonio Octaviano / Francisco Marsiglia.
Suplentes: Antonio Luiz Rigo / Ald Lommez.
Eleições em primeira convocação: dias 30 de junho, 1º e 2/7. Regularize seu pagamento até 19/6. Vote para renovar.
Consta no topo do folder inscrição manuscrita: Prezado colega cumprimentando-o cordialmente, venho, solicitar seu honroso apoio à chapa 1 – “Oposição e
Renovação” por nós liderada. É um grande instrumento na luta pela profissão e pelo país. Contando com seu entusiasmo abraço-o.” Assina Horácio Ortiz.
Rodapé consta carimbo com numeração manuscrita: 20-C-44-11863
Todos os nomes do folder estão ticados com caneta nas cores vermelho e azul.
78
Imagem. Folder.
Sindicato dos Engenheiros no Estado de São Paulo
Consta lista de candidatos da Chapa 1 e da Chapa 2, para os cargos de Diretoria: efetivos e suplentes; Conselho Fiscal: efetivos e suplentes; Delegados Representantes à
Federação Nacional dos Engenheiros.
Todos os nomes estão ticados com caneta nas cores vermelho e azul. Há o número 529 e 239 manuscrito junto à expressão Chapa 1 e Chapa 2, respectivamente.
Rodapé do documento consta carimbo com numeração manuscrita: 11-861.
79
Imagem. Capa de documento com carimbo de “CONFIDENCIAL”.
Contém Brasão do Estado de São Paulo,
Secretaria da Segurança Pública.
Departamento Estadual de Ordem Política e Social – DEOPS
Serviço de Informações
São Paulo, em 07/Abril/81
1.
Assunto: Manifestação de Pessoas Portadoras de Defeitos Físicos
2.
Origem: A Fonte
3.
Classificação:
4.
Difusão: À comunidade de informações
5.
Referência:
6.
Difusão desde a origem:
7.
Anexo:
INFORM ação Nº 188=B/81
Anexo xerox de relatório deste DOPS, sobre manifestação de Pessoas Portadoras de Defeitos Físicos, realizada hoje, nas escadarias do Teatro Municipal – Capital.
Foram distribuídos na ocasião, os panfletos “MOVIMENTO PELOS DIREITOS DAS PESSOAS DEFICIENTES”, “NENHUM PAÍS É SUFICIENTEMENTE RICO
PARA DISPENSAR A MÃO-DE-OBRA DAS PESSOAS DEFICIENTES” da Associação Brasileira dos Deficientes Físicos – ABRADEF, e “DIA NACIONAL DE
CONCENTRAÇÃO”.
Consta carimbo com numeração manuscrita: 20-C 44 16514
80
Imagem. Panfleto do MDPD.
Movimento Pelos Direitos Das Pessoas Deficientes
Breve Histórico
Em meados de 1979, visando analisar e propor soluções para os problemas que afligem os portadores de deficiência, um grupo de pessoas deficientes iniciou contatos
com indivíduos e entidades interessados neste assunto.
Este grupo surgiu em um momento onde o amadurecimento de pessoas portadoras de deficiência levou-as a manifestações públicas a respeito das injustiças sociais que
recaem sobre elas, fruto de atitudes preconceituosas de toda sociedade. Desse modo, a imagem equivocada sobre a pessoa deficiente começou a mudar graças à união e
coordenação de esforços.
A organização inicial desse grupo constava de reuniões mensais regulares onde os participantes, em clima descontraído e fraterno, expunham seus pontos-de-vista e
indicavam os caminhos básicos do movimento. Chegou-se à conclusão de que não se tratava da necessidade de formar uma nova entidade, mas um movimento flexível,
ágil e atuante no sentido de levar as pessoas deficientes a se organizarem na luta pelos seus direitos.
Em dezembro desse ano, com as bases de atuação definidas, com o nome de Movimento pelos Direitos das Pessoas Deficientes, o grupo lançou sua Carta-Programa e
elegeu, por um ano, uma coordenação geral, que foi apresentada oficialmente à imprensa na Assembléia Legislativa do Estado de São Paulo.
A história do MDPD – Movimento dos Direitos das Pessoas Deficientes, é a história de todo movimento popular autêntico que nasce pela raiz. Nasceu pequeno e cresce
à medida em que pessoas deficientes tomam consciência de que devem lutar por seus direitos de cidadania e exigir em plena participação e igualdade social.
O MDPD É APOIADO POR 12 ENTIDADES: AADF (Ourinhos), ABRADEF (SP), AIDE (SP), CEDRIS (SP), CPSP (SP), FCD/SP, FLCB (SP), NID (SP), QUINTA
RODA (SP), SODEVIBRA (SP), SORRI (Bauru), UNADEF (SP).
Correspondência: Rua Joaquim Antunes 611/53
05415 São Paulo SP
Contatos: Lourdes (284-5493) – Leila (65-6739)
Na lateral do documento consta data e carimbo com numeração manuscritos: 7/4/81 12:00hs, 20-C 44 16513
81
Imagem. Panfleto da FCD.
Dia Nacional de Concentração
Fraternidade Cristã de Doentes e Deficientes (FCD)
1981 – Ano Internacional das Pessoas Deficientes
A Fraternidade Cristã de Doentes e Deficientes promove esta concentração, no âmbito internacional (5 continentes). Visa com isto a conscientização, ou seja, transmitir
à população o fato de que as pessoas deficientes (físico, mental, sensorial...), como cidadãos íntegros e participantes da vida na sociedade, têm direito ao transporte,
estudo, trabalho, reabilitação e lazer, direito este fundamental a pessoa humana, deficiente ou não. A própria ONU (Organização das Nações Unidas) instituiu que, nos
países membros, 1981 seja o Ano Internacional das Pessoas Deficientes, com tema: Plena Participação e Igualdade.
Tendo uma limitação física, sensorial ou mental, o deficiente não está limitado de ser uma pessoa normal, que possa trabalhar, estudar, passear, casar, enfim, não está
limitado de viver.
UM POUCO DE HISTÓRIA...
A FCD é um movimento internacional, ecumênico, nascido em 1.942 na cidade de VUrdun, França, através Monsenhor Henry François. Ele, com mais 50 deficientes,
perceberam juntos que a deficiência não lhes havia tirado os valores e capacidades e, com todas as limitações, estavam vivos e esta vida deveria ser vivida com
intensidade.
No Brasil, iniciou-se em 1.972, no Rio Grande do Sul. Contamos atualmente com mais de 70 núcleos, em vários Estados.
OBJETIVOS DA FCD...
Pretende o desenvolvimento integral dos doentes e deficientes, tanto no plano humano como espiritual.
Contribui para que nós deficientes nos integremos com outros deficientes, com a sociedade, uma vez que também somos sociedade.
Atualmente nosso trabalho se estende aos Hansenianos (leprosos). Não os evite, são pessoas como nós, que podem viver normalmente na sociedade pois, a hanseníase
tem cura, não precisando ficar isolados em leprosários. Visite-os.
Acreditamos que a luta dos deficientes, é a mesma luta do negro, índio, operário, etc..., ambos marginalizados. Esperamos que, unidos e conscientes, consigamos reconquistar o nosso lugar e os nossos direitos, para uma vida digna na sociedade.
Convidamos você, deficiente ou não, a participar e ajudar na construção de um mundo melhor, mais justo e humano.
Entidades que apóiam a Fraternidade:
ADEVA- Associação dos Deficientes Visuais e Amigos
Clube dos Paraplégicos de São Paulo
ARPDB- Associação de Reabilitação Profissional do Deficiente do Brasil
ABRADEF - Associação Brasileira dos Deficientes Físicos
SODEVIBRA – Sociedade dos Deficientes Visuais no Brasil
NID – Núcleo de Integração dos Deficientes
QUINTA RODA
MDPD – Movimento dos Direitos das Pessoas Deficientes
UNADEF – União Nacional dos Deficientes Físicos
AIDE – Associação de Integração dos Deficientes
Maiores Informações:
Equipe Nacional: Maria de Lourdes Guarda (Coordenadora). Fone: 284-5493
Equipe Regional: Isaura Helena Pozzatti (Coordenadora). Fone: 251-3433
No canto inferior direito consta carimbo do Departamento de Ordem Política e Social com numeração manuscrita: 20-C 44 16511. Os nomes de Maria de Lourdes e
Isaura estão ticados a caneta nas cores azul e vermelha.
82
Imagem, Folder da ABRADEF. Contém símbolo do AIPD e logo da Associação: um pirata com perna de pau, gancho na mão direita e um tapa-olho. Sorrindo ele
levanta com o braço esquerdo uma bandeira escrita ABRADEF
ABRADEF – Associação Brasileira dos Deficientes Físicos.
(Ex-Associação dos Deficientes Físicos do Est. São Paulo) Fundada em 11-10-61
Registrada no Serviço Social do Estado de São Paulo e Secretária da Promoção Social
Rua Rio Grande nº 71 – Fone 71-7186 – Vila Mariana – Cep 04018 – São Paulo
“Nenhum país é suficientemente rico para dispensar a mão de obra das pessoas deficientes”.
Tendo em vista o ANO INTERNACIONAL DAS PESSOAS DEFICIENTES, neste ano de 1981, proclamado pela ONU Assembléia Geral das Nações Unidas, a
ABRADEF – ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE DEFICIENTES FÍSICOS, nos seus 20 anos de existência, lança a CAMPANHA ADOTE UM DEFICIENTE, para a
construção de sua sede própria OFICINA ABRIGADA DE TRABALHO.
ABRADEF – é uma entidade com objetivos de promover a reintegração social do deficiente físico, através da defesa de seus direitos e colocação no mercado de
trabalho da mão de obra do deficiente.
ENTIDADE – dirigida por pessoas deficientes e para pessoas deficientes: da assistência a um elevado numero de deficientes, sem sede própria, subsistindo tão somente
das mensalidades de associados, e dentro de nossas possibilidades lutamos para poder proporcionar melhores condições de vida ao deficiente, quanto: trabalho,
alimentação, vestuário, habitação, previdência, transporte, educação, recreação, esporte etc...
SEDE PRÓPRIA: todas as pessoas deficientes tem direito a segurança econômica e social e um nível de vida decente e, de acordo com suas capacidades,
desenvolvendo atividades, produtivas e remuneradas, assim sendo temos como meta construir uma grande oficina abrigada de trabalho, para deficientes. Não
esquecendo que o número de pessoas deficientes em nosso país, ultrapassa a população de qualquer país da América Latina.
AJUDE-NOS A AJUDAR AS PESSOAS DEFICIENTES
Na lateral direita do documento consta carimbo do Departamento de Ordem Política e Social com numeração manuscrita: 20-C 44 16512.
83
Imagem. Documento. Original no modo paisagem.
POZZATTI – Isaura Helena
4.81- da Equipe Nac. da Campanha da Fraternidade Cristã de Doentes e Deficientes
20-C-44-16511
b
84
Imagem. Documento. Original no modo paisagem.
GUARDA – Maria de Lourdes
4.81 – coordenadora – ref. Dia Nacional de Concentração.-Fraternidade Cristã de Doentes e Deficientes. Fone:-284-5493
20-C-44-16511
85
86
CAPÍTULO
2
87
88
Da exclusão à participação plena
na sociedade: Um panorama
internacional dos 30 anos do AIPD
Romeu Kazumi Sassaki
Com certeza, as atividades comemorativas do Ano Internacional das
Pessoas Deficientes (AIPD), realizadas em 1981, contribuíram decisivamente
para o avanço do processo de conscientização de todos os povos a respeito
dos direitos das pessoas com deficiência.
Em que sentido essa contribuição foi decisiva? É o que será apresentado
no presente texto, subdividido em três partes: I–Antes do AIPD. 2–Durante o
AIPD. 3–Depois do AIPD.
Antes do AIPD
É justo e oportuno que se resgate o importantíssimo papel
desempenhado, principalmente no campo da educação e do trabalho para
pessoas com deficiência, por milhares de profissionais e organizações durante
cerca de 50 anos antes do AIPD.
Décadas de 1940 a 60: Cooperação técnica da ONU
A Organização das Nações Unidas (ONU) – que, na sua Assembleia
Geral de 1976, proclamou 1981 como o AIPD – iniciou trabalhos de promoção do
bem-estar e dos direitos das pessoas com deficiência já na década de 40 do
século 20, prosseguindo-os por 30 anos até o início dos anos 80. E ampliou cada
vez mais a sua área de atuação por todo o ano de 1981,
89
por toda a Década das Nações Unidas das Pessoas com Deficiência (1983-1992),
pelo restante do século 20 e até os dias de hoje, em que o mundo comemora o
30° aniversário do AIPD.
A atuação da ONU no Brasil – através da assistência técnica provida por
peritos internacionais em prevenção de deficiências, educação e reabilitação física
e profissional – foi desenvolvida nas décadas de 1950 e 60, realizando seminários
e estudos em grupo, disseminando publicações técnicas, capacitando equipes,
implantando centros de reabilitação e concedendo bolsas de estudos (no meu
caso, obtidas para estagiar em programas de reabilitação profissional nos EUA em
1966 e no Reino Unido em 1967).
1970/1980: Década da Reabilitação
Imagem. Logo da Década da Reabilitação. No interior de um quadrado amarelo, medalhão de bronze com relevo: homem em cadeira de rodas cercado por pessoas em
pé: um casal de idosos, um rapaz jovem e três crianças, uma delas acarecia um cachorro. O Medalhão é circundado pela expressão “A Década da Reabilitação 1970 –
1980”
Proclamada pela Rehabilitation International, a Década das Nações
Unidas das Pessoas com Deficiência foi comemorada mundialmente, dando
destaque à importância dos programas de reabilitação física, psicológica, social e
profissional. Essa década foi importante por ter provocado o surgimento do
conceito de “reintegração das pessoas reabilitadas” na sociedade, ainda, portanto,
sob a inspiração do “modelo médico da deficiência”, formulado por especialistas.
Note-se que o conceito “modelo social da deficiência”, cuja formulação foi
efetuada por ativistas com deficiência, começou a ser disseminado somente no
início da década de 1990. (SASSAKI, 2010, p. 44-48)
Durante essa Década, foram adotados pela Assembleia Geral da ONU
dois documentos: em 1971, a Declaração dos Direitos das Pessoas Deficientes
Mentais (sim, exatamente com estas palavras) e, em 1975, a Declaração dos
Direitos das Pessoas Deficientes (também com estes termos), ambas as quais
foram consideradas revolucionárias naqueles tempos. Nelas ficou estampada a
ideia de que pessoas com deficiência intelectual ou com deficiência de qualquer
tipo eram titulares dos mesmos direitos humanos que quaisquer outras pessoas
90
tinham, além de terem direito a usufruir medidas específicas correspondentes às
necessidades especiais resultantes do tipo de deficiência de cada pessoa.
Entre essas medidas específicas, constavam aquelas referentes à
proteção contra a exploração, aos procedimentos jurídicos, ao acesso a serviços
comuns, ao desenvolvimento de suas habilidades e à aceleração do processo de
sua integração na sociedade. Também conhecido como “integração social”, esse
processo foi praticado nas décadas de 1960 e 70 e significava que poucas
pessoas com deficiência já reabilitadas (e, de preferência, com certa
escolaridade e alguma qualificação profissional) podiam ser integradas na
sociedade, ou seja, encaixadas nos espaços delimitados por barreiras
arquitetônicas e atitudinais da escola comum ou da empresa comum, por
exemplo. Note-se que o paradigma da “inclusão” só surgiria 20 anos depois.
1974: Primeiras demonstrações públicas
Imagem. Foto em preto e branco. Legenda: Cidadãos com deficiência protestam nas ruas centrais de Nova York. Foto: United Cerebral Palsy of New York City
Pessoas com deficiência da cidade de Nova York bloquearam o trânsito
para protestar contra o programa de racionamento de gasolina, que havia sido
implantado pelo Governo do Estado de Nova York em 1974. A demonstração
resultou vitoriosa, pois eles obtiveram isenção do programa, o que lhes propiciou
continuarem comprando gasolina sem restrições e, consequentemente, dirigirem –
e/ou serem conduzidos em – automóveis adaptados.
Esse fato teve como tema central para as pessoas com deficiência a
garantia de sua mobilidade por meio do transporte movido a gasolina. Em outras
palavras, foi defendido o direito de ir e vir. A importância histórica desse fato,
que poderia ter outros temas centrais e ocorrido em outras cidades dos EUA,
pode ser mais bem entendida se considerarmos que, naqueles tempos, não
havia coordenação de esforços tanto das próprias pessoas com deficiência
quanto dos governos, esforços no sentido de atender a todos os direitos
humanos e liberdades fundamentais desse segmento populacional; e, mesmo
assim, aquelas pessoas conseguiram exercer uma pressão bem-sucedida sobre
o governo. (REHABILITATION INTERNATIONAL, 1975, p.9)
91
Imagem. Capa da publicação “News From the Iypd Secretariat”, com logo da ONU para o AIPD. Contém foto em branco e preto de quatro pessoas, dois homens e duas
mulheres, uma delas em cadeira de rodas, com legenda: “The Secretary-General talking to Mrs. Adamson (in wheel chair). Right: Mr. Ripert (Under Secretary-General,
Department of International Economic and Social Affairs). Centre: Mrs. Z. L. N’ Kanza (Executive Secretary of Iypd).”
NEWS FROM THE IYDP SECRETARIAT. International Year Of Disabled Persons 1981 Full Participation And Equality, n. 2, p. 45, Aug. 1980. Legenda: Capa do
livreto da ONU sobre o AIPD, de agosto/1980
92
Imagem. Logo da ONU (nas cores rosa e vermelho): “International Year of Disabled Persons 1981”
93
1976: Proclamação do AIPD
A Assembleia Geral da ONU, em sua 102ª reunião plenária, proclamou 1981
como o “International Year for Disabled Persons” (IYDP), através da Resolução
31/123, de 16/12/76. Esse nome foi traduzido no Brasil como “Ano Internacional para
Pessoas Deficientes” (AIPD). Como se observa, nessa resolução e em todos os
outros documentos elaborados e disseminados pela ONU a respeito do AIPD nos
anos de 1976 a 1979, o nome oficial adotado foi “International Year for Disabled
Persons”. Entretanto, a preposição inglesa “for” comporta duas traduções para o
português: “para” e “por”. “Para” indica direcionalidade: de algo (ano internacional)
para alguém (pessoas com deficiência). “Por” indica motivação: algo em favor de
alguém. Então, além de “Ano Internacional para Pessoas Deficientes”, a tradução
poderia ser “Ano Internacional por Pessoas Deficientes”.
Entretanto, ambas as traduções e a expressão em inglês causaram
protestos, porque elas se refletiam numa atitude de condescendência,
complacência, benevolência – coisa que as pessoas com deficiência já não
aceitavam mais. Sugestões que circularam pelo mundo durante o mencionado
período levaram a ONU a corrigir o nome do ano.
Assim, a partir de 1980, o nome foi alterado para “International Year of
Disabled Persons” (Ano Internacional das Pessoas Deficientes”). A preposição
inglesa “of” indica procedência, ponto de partida (Donde saiu? De quem partiu? Das
pessoas com deficiência.) e posse (De quem é? Das pessoas com deficiência.).
Seguem exemplos do uso do novo nome nos boletins circulares sobre o AIPD, na
série de livretos “News from the IYDP Secretariat” e na divulgação do símbolo do
AIPD.
1977: Direitos das pessoas surdocegas
A Conferência Mundial Helen Keller sobre Serviços para Jovens e Adultos
Surdocegos, realizada em Nova York, EUA, adotou em 16/9/1977 a Declaração
dos Direitos das Pessoas Surdocegas. Assinaram esse documento diversas
organizações não-governamentais ligadas a pessoas surdocegas. O Conselho
Econômico e Social da ONU decidiu, em sua primeira sessão de 1979, submeter
essa declaração à 34ª sessão plenária da Assembleia Geral como parte da
documentação do AIPD. (UNITED NATIONS, 1979)
1979: Divulgação do símbolo do AIPD
Imagem. Logo da ONU para o AIPD, na cor azul.
94
Em 1979, a ONU lançou o livro oficial para divulgar as programações do
AIPD. O símbolo do AIPD representa duas pessoas, sendo que uma delas não
tem deficiência e a outra tem. Elas se dão as mãos, numa atitude mútua de
solidariedade e de apoio em plano de igualdade, circundadas pelos dois ramos de
loureiro do emblema da ONU. O fato de uma pessoa com deficiência e uma
pessoa sem deficiência estarem posicionadas no mesmo nível chamou muita
atenção, porque até então a sociedade sempre imaginava a pessoa com
deficiência em um nível inferior ao de outras pessoas.
1979: Tema do AIPD
Quando a ONU proclamou o AIPD, o tema era apenas Participação
Plena. (UNITED NATIONS, 1977)
Mas, diante de várias manifestações, a ONU decidiu expandir o tema
original para Participação Plena e Igualdade, através da Resolução 34/154, de
17/12/1979, que também adotou o Plano de Ação do AIPD. Para explicar o motivo
da expansão do tema do AIPD, a Assembleia Geral destacou que Participação
Plena significava “participação das pessoas com deficiência em todos os aspectos
da vida da sociedade e no desenvolvimento da sociedade onde elas vivem”; e que
Igualdade se referia “às condições de vida iguais às de outros cidadãos da
mesma sociedade e ao igual compartilhamento da melhoria das condições de vida
resultantes do desenvolvimento social e econômico”. Além disso, “estes conceitos
deveriam ser aplicados de igual maneira e com igual urgência a todos os países,
independentemente do nível de desenvolvimento de cada um”. (UNITED
NATIONS, 1980).
1979: O início do movimento e o AIPD
Até 1979, as associações de pessoas com deficiência (PcD) atuavam de
forma isolada e separada uma da outra e os objetivos eram mais voltados à
sobrevivência pessoal de seus membros ou assistidos. Contrapondo-se a essa
situação, realizou-se em 1979, em São Paulo, a primeira reunião de organização
do movimento de luta em defesa dos direitos das pessoas com deficiência.
A primeira reunião foi realizada com 15 pessoas fortemente motivadas
pelo desejo de organizar o movimento em defesa dos direitos das pessoas com
deficiência. Rapidamente, em poucos meses, as reuniões mensais atraíram o
interesse de mais de 50 pessoas.
Esse movimento de lutas já havia caminhado algumas semanas quando
incluímos o Plano de Ação da ONU para o AIPD. Eu tinha sido bolsista da ONU
em 1966 e 1967, e, desde então, recebia publicações da ONU. Otto Marques da
Silva tinha sido funcionário da ONU em Nova York e também recebia muitas
informações. Vivíamos trazendo novidade para o pessoal. Em 1979, quando
começamos as reuniões, levamos todo o material da ONU e começamos a
discutir: “Olha, 1981 vai ser o Ano Internacional das Pessoas Deficientes.” Nós
já havíamos decidido criar o movimento quando, em 1979, soubemos que 1981
seria o Ano Internacional. Acho que, no Brasil, nós fomos pioneiros em divulgar
o Ano Internacional, primeiro em São Paulo e, depois, no resto do País.
(SASSAKI, in LANNA JR, 2010, p. 409)
95
Imagem. Foto colorida. Várias pessoas em reunião, sentadas em círculo. Maria de Lourdes Guarda na maca. Legenda: David Bastos, Sergio Del Grande, José Bistafa,
Evaldo Doin, Heloísa Chagas, Tom Frist, Lourdes Guarda e Vinicius Andrade. Foto: R.Sassaki.
Imagem. Foto colorida. Dois homens sentados em cadeira escolar. Legenda: Tom Frist e Robinson de Carvalho. Foto: R.Sassaki.
96
1980: Primeiro debate sobre o AIPD
Em 10/5/1980, a Coalizão Pró-Federação Nacional de Entidades de
Pessoas Deficientes realizou o primeiro evento específico para debater o Plano de
Ação da ONU para o AIPD.
Imagem. Foto em preto e branco. Três pessoas, um homem e uma mulher, em cadeiras de rodas, com papel e caneta. Legenda: Isaura Pozzatti, Candido Melo e Heloísa
Chagas. Foto: R.Sassaki.
Imagem. Foto em preto e branco de reunião. Várias pessoas com deficiência em círculo. Legenda: Maria de Lourdes Guarda, Isaura Helena Pozzatti, Rui Bianchi do
Nascimento, Otto Marques da Silva, José Evaldo de Melo Doin, Candido Pinto de Melo, Sergio Del Grande, Araci Nallin, Lia Crespo, Kico Crespo, Luiz Alfabeti (em
pé), (moça não identificada), Thomas Ferran Frist, João Bistafa, (talvez) Heloísa Chagas, Claudio Vereza. Foto: R.Sassaki.
97
1980: Comissão Nacional do AIPD
O governo brasileiro, através do Decreto 84.919, de 15/7/1980, criou a
Comissão Nacional do Ano Internacional das Pessoas Deficientes e nomeou seus
membros. Mas, paradoxalmente, nenhuma pessoa com deficiência havia sido
incluída, muito menos para representar todo o segmento das pessoas com
deficiência, estimado em 12 milhões de pessoas. Diante de tamanho absurdo, a
Coalizão Pró-Federação Nacional de Entidades de Pessoas Deficientes, reunida
em Brasília em 22 a 25 de outubro de 1980, decidiu entregar pessoalmente uma
carta de protesto ao presidente da República, João Batista Oliveira Figueiredo.
Foto em branco e preto. Na quadra de basquete da Universidade de Brasília, vê-se centenas de pessoas sentadas juntas, várias delas em cadeira de rodas. Uma rampa de
madeira comprida ocupa quase toda a parede do fundo. Legenda: Abertura do Encontro Nacional em Brasília. Foto: R.Sassaki
Dizia a carta: “... resolve solicitar a Vossa Excelência providências legais
no sentido de que sejam incluídos representantes desta Coalizão na Comissão
Nacional do Ano Internacional das Pessoas Deficientes”. As fotos mostram as
assinaturas dos líderes e Cândido Pinto de Melo:
98
Imagens. Foto em preto e branco de Cândido Pinto de Melo; e página de assinaturas da Carta de Protesto ao Presidente da República, João Batista Oliveira Figueiredo.
Associação Brasileira dos Deficientes Físicos (SP)
Associação dos Deficientes Motores (PE)
Associação Riograndense de Paralíticos e Amputados (RS)
Núcleo de Integração de Deficientes (SP)
Sociedade dos Deficientes Visuais no Brasil (SP)
Associação dos Deficientes Físicos de Brasília (DF)
Associação dos Deficientes Visuais e Amigos (SP)
Associação de Integração dos Deficientes (SP)
Associação dos Deficientes Físicos do Paraná (PR)
Associação dos Deficientes Físicos do Mato Grosso do Sul (MS)
Fraternidade Cristã dos Doentes e Deficientes Físicos (PE)
Clube dos Amigos da Associação Brasileira Beneficente de Reabilitação (RJ)
Fraternidade Cristã dos Doentes e Deficientes Físicos (RS)
Fraternidade Cristã dos Doentes e Deficientes Físicos (SP)
Associação de Assistência ao Deficiente Físico (SP)
Sociedade Amigos do Deficiente Físico (RJ)
Organização Nacional de Reabilitação e Assistência ao Excepcional (RS)
Fraternidade Cristã dos Doentes e Deficientes Físicos (SC)
Associação Brasileira dos Deficientes Físicos e Sensoriais (SC)
Associação dos Deficientes Físicos do Estado do Rio de Janeiro (RJ)
À Sua Excelência
Senhor General João Batista Oliveira Figueiredo
Digníssimo Presidente da República Federativa do Brasil
Legenda: Todos os principais jornais destacaram esta carta. O Movimento pelos Direitos das Pessoas Deficientes (MDPD) também divulgou o fato.
99
Imagem. Jornal O Globo, de 11 de agosto de 1980; e, ao lado, detalhe do Boletim MDPD, 1981 Ano 1– nº 1.
O GLOBO - ANO LVI – Rio de Janeiro, segunda-feira, 11 de agosto de 1980 – Nº 17.094
Deficientes pedem a Figueiredo para mudar Decreto
SÃO PAULO (O GLOBO) - A elaboração de um documento para pedir ao presidente João Figueiredo de uma mudança no decreto 84.919, que institui a Comissão
Nacional do Ano Internacional das Pessoas Deficientes, foi um dos resultados da reunião da Coalizão Pró-Federação Nacional das Pessoas Deficientes, terminada
ontem.
De acordo com Heloisa Chagas, do Movimento da Pessoa Deficiente do Estado de São Paulo, a ONU, ao instituir o Ano Internacional da Pessoa Deficiente, em 1981,
recomendou aos governos que, ao criarem uma comissão para o evento, incluíssem um deficiente.
— No decreto não há a inclusão de representantes dos deficientes, o que achamos errado. Mas nosso pedido não é para incluir qualquer deficiente, é para que um
membro da Coalizão dela participe — explicou Heloísa.
Ela justificou o pedido afirmando que a Coalizão é a única entidade a nível nacional que congrega representantes das pessoas deficientes, com 23 organizações de nove
Estados, mais o Distrito Federal.
Paulo Roberto Guimarães Moreira, da Associação dos Deficientes Físicos do Estado do Rio de Janeiro, disse que a principal reivindicação da Coalizão é pelos direitos
do deficiente:
— Falta uma assistência de direito para nós. Não queremos favores, nem que tenham pena de nós, apenas queremos ter o direito que outros cidadãos têm. Apesar de
pagarmos impostos e encargos sociais como qualquer um, não podemos, a maior parte de nós, nos locomover, com facilidade nos ônibus, por exemplo.
Outro participante da reunião, Messias Tavares de Souza, da Fraternidade Cristão do Doente e Deficientes Físicos, explicou que a Coalizão é aberta a qualquer entidade
interessada. Ele fez um apelo, para que os interessados escrevam para Caixa Posta 11.180, em Brasília, a fim de obter informações sobre a organização.
Boletim MDPD, 1981 Ano 1 – nº 1.
O nosso protesto
Em nossa última reunião geral de 8/2, o plenário protestou de forma veemente quanto ao comportamento da presidente da Comissão Nacional para o AIPD que quase
não se dirigiu às PD e não quis receber os Coordenadores do MDPD presentes na Abertura do AIPD em Bauru-SP. Tendo em vista estes acontecimentos e os anteriores,
que refletem a forma como esta Comissão foi nomeada, imposta e sem participação de representantes de Pessoas Deficientes, o plenário, por maioria de votos, resolveu
renegá-la. Entretanto, visando aprofundar a discussão, a Coordenação resolveu incluir o assunto na pauta da próxima reunião (21/03 FMU - Av. Stº Amaro), para
definir-se a forma de como será traduzida esta decisão.”
E deu certo, pois o Decreto foi modificado e incluiu o representante da
Coalizão Nacional de Entidades de Pessoas Deficientes, José Gomes Blanco,
apesar de colocá-lo como Consultor, conforme mostra o Relatório Final da
Comissão Nacional do AIPD. Em todo o caso, foi uma vitória do segmento das
pessoas com deficiência:
100
Imagem. Detalhe do Relatório Final da Comissão Nacional do AIPD.
Consultores
Doutor Francisco José da Costa Almeida
Assessor da Direção Geral do Centro Nacional de Educação Especial – MEC
Doutor Hilton Baptista
Vice-Presidente da Rehabilitation Internacional para a América Latina
Senhor José Gomes Blanco
Representante da Coalizão Nacional de Entidades de Pessoas Deficientes
Coronel Luiz Gonzaga de Barcellos Cerqueira
1980: Missão brasileira às Nações Unidas
Dorina de Gouveia Nowill, representando a Delegação Brasileira na
Assembleia Geral da ONU, em outubro de 1980, quando discursou sobre o tema do
AIPD, destacou-se pelo detalhamento dos conceitos de “Participação Plena” e de
“Igualdade”. Foi cuidadosamente preservado, no acervo do AIPD, o texto desse
discurso nas versões em braile e impressa (foto abaixo).
Imagem. Capa de publicação.
Brazilian Mission To The United Nations
Iii Committee
Statement By The Adviser Of The Delegation Of Brazil Ms. Dorina Nowill
On Item 79: International Year For The Disables In The Thirty-Fifth Session Of The General Assembly
New York, October 1980
747 Third Avenue – New York, N.Y. 10017
101
1980: Primeira cidade brasileira a abrir o AIPD
“Como parte da preparação para o ano seguinte, Ano Internacional das
Pessoas Deficientes, em 12 de dezembro de 1980, a cidade de Ourinhos/SP
realizava o primeiro evento de abertura do AIPD, com palestra de Romeu
Sassaki”. (CRESPO, 2009, p. 129-130)
Imagem. Foto colorida. Mesa de abertura do AIPD, em Ourinhos, com quatro participantes. Atrás da mesa faixa com logo da ONU: “1981 Ano Internacional das
Pessoas Deficientes – Participação Plena e Igualdade”. Legenda: Romeu Sassaki faz palestra de abertura do AIPD.
Durante o AIPD
Um dos aspectos do AIPD que causou grande impacto na sociedade foi o
próprio nome do ano.
Enquanto o conhecimento da Declaração dos Direitos das Pessoas
Deficientes Mentais (Resolução 2.856-XXVI, de 20/12/1971) e da Declaração dos
Direitos das Pessoas Deficientes (Resolução 3.447-XXX, de 9/12/1975; Resolução
31/82, de 13/12/1976, sobre a implementação dessa declaração) ficava restrito
aos meios especializados, o nome “Ano Internacional das Pessoas Deficientes” foi
divulgado ampla e constantemente por todas as mídias, daí despertando a
atenção da sociedade para o termo “Pessoas Deficientes”. Era comum
atendermos jornalistas e outros profissionais que, para publicar entrevistas e
artigos técnicos, nos perguntavam com certa perplexidade e curiosidade: “Então,
os deficientes são pessoas? Por quê?”
Nada surpreendente para nós. Para eles, sim, pois até então a sociedade
sempre se referiu às pessoas com deficiência sem acrescentar a palavra
“pessoas”. Por exemplo: “os deficientes”, “os incapacitados”, “os inválidos”, “os
aleijados”, “os excepcionais”, “os defeituosos”, “os coitadinhos”, “os subnormais”,
“os infradotados”, “os retardados” e assim por diante.
1981: Acessibilidade arquitetônica
Tendo como gancho o AIPD, a Federação do Comércio do Estado de São
Paulo convidou o Núcleo de Integração de Deficientes (NID) para dar uma
capacitação a todos os
102
engenheiros e arquitetos do órgão, sobre acessibilidade arquitetônica, com a
finalidade de adaptar os prédios do Serviço Social do Comércio (Sesc) existentes
e de projetar com acesso suas futuras unidades.
Imagem. Foto colorida. Numa sala ampla, 16 pessoas se reúnem em volta de uma mesa oval.
Legenda: Lia Crespo, Romeu Sassaki, Alice Mory e Nia Corrêa capacitando engenheiros e arquitetos. Foto: Sesc.
1981: Uma rampa histórica
Também apoiado nas comemorações do AIPD, aconteceu um fato inédito em
julho de 1981, em São Paulo. O Movimento pelos Direitos das Pessoas Deficientes
(MDPD) conseguiu que o secretário municipal de Cultura, Mário Chamie, autorizasse a
construção de uma rampa provisória, feita de madeira, na entrada do Teatro Municipal
de São Paulo. Embora fosse provisória, aquela rampa representou uma conquista.
Para nós, essa foi uma vitória porque foi a única maneira de as pessoas com
deficiência poderem entrar e assistir, como todo mundo, a uma apresentação do
maestro Isaac Karabtchevsky. O ator Renato Consorte foi um dos nossos grandes
apoiadores. Foi ele quem nos apresentou ao secretário para convencê-lo a fazer a
rampa.
Imagem. Foto colorida. Detalhe externo do Teatro Municipal de São Paulo. Porta de ferro, escadaria e rampa. Um homem em cadeira de rodas desce a rampa com a
ajuda de outro homem, ao lado uma pessoa desce a escada. Legenda: Rampa provisória no Teatro Municipal. Foto: R.Sassaki
103
1981: O AIPD em São Paulo
O governo paulista nomeou os 17 membros da Comissão Estadual de
Apoio e Estímulo ao Desenvolvimento do Ano Internacional das Pessoas
Deficientes, sendo 11 representantes de órgãos do governo, quatro
representantes de instituições particulares de reabilitação, um representante do
Centro de Desenvolvimento de Recursos para Integração Social (Luís Celso
Marcondes de Moura) e um representante do Movimento pelos Direitos das
Pessoas Deficientes (José Evaldo de Mello Doin).
Essa comissão trabalhou duramente realizando reuniões temáticas,
produzindo materiais de divulgação, coletando ideias e soluções, disseminando
informações etc. O resultado, que foi positivo em todos os sentidos, foi todo
colocado no relatório final.
Imagem. Capa de relatório oficial. Sob fundo azul, logo da ONU para o AIPD, na cor branca. Informações da capa: Casa Civil do Governador. Relatório da Comissão
Estadual de Apoio e Estímulo ao Desenvolvimento do Ano Internacional das Pessoas Deficientes. Legenda: Capa do relatório da comissão paulista
104
Em 12/9/1981, foi realizado o 1º Encontro Estadual de Pessoas
Deficientes com a participação de várias lideranças da capital e do interior do
Estado de São Paulo, bem como de outros Estados.
Imagem. Duas fotos coloridas. A da esquerda, círculo de pessoas em reunião. Foto da direita, numa sala ampla, lotada de pessoas, quatro pessoas posam para foto.
Legenda: Ativistas Luís Celso de Moura, Carlos Burle, Thereza Stummer, Romeu Sassaki
1981: O MDPD no AIPD
O Movimento pelos Direitos das Pessoas Deficientes (MDPD) organizou a
sessão de abertura oficial do AIPD, ocorrida em março de 1981 na Câmara
Municipal de São Paulo. Iniciando a sessão, a ativista cega Odete Cláudia
Nascimento fez a leitura do texto em braile da Declaração dos Direitos das
Pessoas Deficientes, da ONU, após o que recebeu intensos aplausos. No
numeroso público estavam representados quase todos os Estados do País. O
presidente do MDPD, Cândido Pinto de Melo, ocupou a coordenação da mesa dos
trabalhos. Participaram o juiz Renato Talli, o jurista Dalmo Dallari e o secretário
dom Luciano Mendes, da CNBB, entre outras autoridades. Foi lida a carta do
representante residente da ONU no Brasil, P. Koenz, que apoiou o evento e
aprovou a Carta-Programa do MDPD.
105
Imagem. Foto reproduzida de jornal em tom amarelado. Informações sobre a foto: “A abertura oficial brasileira do Ano Internacional dos Deficientes foi feita neste fim
de semana”. Legenda: A Câmara Municipal, lotada para cerimônia.
106
1981: O AIPD em Bauru
No dia 17 de janeiro de 1981, na cidade de Bauru/SP, foi inaugurada a
sede própria da Sorri-Bauru, com 3 mil metros quadrados de área construída.
Na mesma ocasião, foi realizada a abertura do AIPD daquela região, com
a presença de autoridades e centenas de pessoas procedentes de diversas
cidades.
Imagem. Foto em preto e branco. Detalhe da mesa de abertura do AIPD, em Bauru. Atrás dos integrantes da mesa, faixa do AIPD. Legenda: Roger Ackley, presidente
da ALM (EUA); Helena Bandeira de Figueiredo, presidente da Comissão Nacional para o AIPD; Oswaldo Sbeghen, prefeito de Bauru; Silas Braga Reis, presidente da
Sorri-Bauru; Hein Schaapveld, embaixador da Holanda; e Abrahim Dabus, deputado estadual. Foto: Jornal da Sorri, ano I, n.1
Imagem. Foto em preto e branco. Em ambiente externo, vinte pessoas aproximadamente posam para foto. Legenda: Líderes paulistanos do movimento das pessoas com
deficiência.
107
1981: O AIPD na TV
A Rede Globo produziu e, em 31/12/80, apresentou vinhetas para a
abertura do Ano Internacional das Pessoas Deficientes. Tive a oportunidade de
realizar uma análise das vinhetas e publicá-la para uso do MDPD e alunos de
cursos de jornalismo. A maioria dos filmes não conseguiu o intento de contribuir
para educar o telespectador, de acordo com a Declaração de Sundberg.
Imagem. Capa de publicação. Ilustração de uma pessoa em cadeira de rodas em frente a uma escadaria. Título: “Pessoas Deficientes e TV: Análise de uma
reportagem”. Contém logo do AIPD. Legenda: Livreto com análise das vinhetas
1981: O AIPD com humor
A fim de mostrar uma síntese do AIPD, destaquei dois cartuns, dentre os
milhares que refletiram as situações das pessoas com deficiência no Brasil e
publicados durante o ano de 1981. O primeiro deles, de autoria de Jota, mostra
um batalhão de profissionais da mídia entrevistando uma pessoa com deficiência
sob a luz de fortes holofotes, enquanto uma criança que se aproximava para
vender balinhas é afastada por um jornalista que diz: “Nem vem! O teu ano já
passou!”, referindo-se ao ano de 1979, o Ano Internacional da Criança (AIC). O
cartum previa que, assim como a criança voltou a ser esquecida logo que acabou
o AIC, a pessoa com deficiência, em destaque durante o AIPD, poderia vir a
acabar no esquecimento.
108
Imagem. Cartum. Legenda: Cartunista: Jota 1981
O outro cartum, de autoria de Ricardo Ferraz, um dos militantes com
deficiência, mostra o segmento das pessoas com deficiência impedido por
barreiras (arquitetônicas, culturais e sistêmicas) de participar na vida da
sociedade.
Imagem. Cartum. Um homem em cadeiras de rodas está parado em frente a escultura da palavra não, cuja altura é superior a do homem. Legenda: Cartunista: Ricardo
Ferraz 1981
1981: Papel da mídia
Em 1981, a Unesco aprovou a Declaração de Sundberg que, no artigo 10,
diz: “Tendo em vista da influência da mídia sobre as atitudes do público e com
vistas a aumentar o nível de consciência e solidariedade públicas, o conteúdo das
informações disseminadas pela mídia, assim como
109
o treinamento dos profissionais da mídia, precisam incluir aspectos
correspondentes aos interesses e necessidades das pessoas com deficiência e
ser preparados consultando suas associações.” O nome do documento foi dado
em tributo a Nils-Ivar Sundberg, que morreu naquele ano, após dirigir a Unesco
por 13 anos seguidos, sempre demonstrando interesse pela situação das pessoas
com deficiência (Unesco, 1981).
1981: A mídia repercutindo atividades do AIPD
Começando em 1980, a mídia esteve bastante ocupada e alvoroçada
para preparar noticiários e matérias jornalísticas (impressas, radiofônicas ou
televisadas) sobre a comemoração do AIPD. Sem comentários, destaco uma
pequena amostra da enorme quantidade desses noticiários e reportagens:
• “Em 1981, a atenção da ONU para 400 milhões” (Jornal do Brasil, 24/1/80).
• “1981, o ‘Ano Internacional dos Deficientes’” (Gazeta da Zona Norte, 16/3/80).
• “No Brasil, deficientes físicos continuam sendo discriminados” (Folha de S.Paulo,
27/4/80).
“Em
SP, 25 mutilados por dia” (Folha de S.Paulo, 27/4/80).
•
• “Deficientes se reúnem e se preparam para um encontro nacional, em outubro”
(Correio Braziliense, 24/6/80).
• “Problemas dos deficientes físicos debatidos em SP” (Folha de S.Paulo, 22/7/80).
• “Deficientes físicos: Eles são 12 milhões de esquecidos reclamando contra a
discriminação” (Diário Popular, 22/7/80).
“O
pedido desses homens: igualdade” (Jornal da Tarde, 22/7/80).
•
• “Congresso discute propostas” (Folha de S.Paulo, 23/7/80).
• “Congresso termina com recomendações sobre deficientes” (Folha de S.Paulo,
24/7/80).
“Deficientes
físicos: Discutidas todas as dificuldades, prossegue luta pela
•
reabilitação” (Diário Popular, 24/7/80).
“Deficientes
e discriminação” (O Estado de S.Paulo, 24/7/80).
•
• “Deficientes físicos na luta pela integração na sociedade” (Diário Popular, 10/8/80).
• “Deficientes pedem a Figueiredo para mudar Decreto” (O Globo, 11/8/80).
• “Os 28 milhões de paraplégicos reivindicam seus direitos” (A Gazeta, 28/9/80).
• “Deficientes pedem o fim da discriminação” (O Estado de S.Paulo, 19/10/80).
• “Nos Estados, quadro de quase esquecimento” (O Estado de S.Paulo, 19/10/80).
• “Meta: federação nacional” (O Estado de S.Paulo, 19/10/80).
• “Deficientes querem participação na comissão do governo” (Folha de S.Paulo,
25/10/80).
• “Cegos: Eles se preparam para o Ano Internacional dos Deficientes” (Jornal da
Tarde, 28/11/80).
110
• “Movimento aprova programa para defesa dos deficientes” (O Globo, 7/12/80).
• “Deficientes aprovam os planos de ação para 1981” (O Estado de S.Paulo,
7/12/80).
• “Paraplégicos querem ajuda do governo para acabar com obstáculos” (A Gazeta,
7/12/80).
• “Deficientes querem respeito e Justiça” (Diário Popular, 7/12/80).
• “81, Ano do Deficiente Físico” (O Estado de S.Paulo, 16/12/80).
• “Deficientes: plano global com Ludwig” (O Estado de S.Paulo, 19/12/80).
• “Comissão faz plano para Ano do Deficiente” (Folha de S.Paulo, 19/12/80).
• “Um ano de luta pelos direitos do deficiente” (Folha de S.Paulo, 1°/1/81).
• “Um símbolo para 1981, o Ano Internacional dos Deficientes” (Jornal da Tarde,
2/1/81).
“Começa
um ano de muita luta para os deficientes” (Shopping News, 4/1/81).
•
• “Questão de direito” (Folha de S.Paulo, 5/1/81).
• “Deficientes” (Folha de S.Paulo, 9/1/81).
• “1981 Ano Internacional das Pessoas Deficientes” (Página Um, 10/1/81).
• “Deficientes lutam para acabar com paternalismo” (Folha de S.Paulo, 14/1/81).
• “Ano do deficiente físico” (Folha de S.Paulo, 16/1/81).
• “Promoção do Ano Internacional da Pessoa Deficiente em Ribeirão Preto”
(A Cidade, 20/1/81).
“Deficientes
físicos: nem inúteis, nem coitados” (Folhetin, Folha de S.Paulo,
•
25/1/81).
• “Aviso à consciência no ano do deficiente” (Folha de S.Paulo, 25/1/81).
• “Agora, a luta política” (Folhetin, edição Folha de S.Paulo, 25/1/81).
• “A batalha do moinho de vento” (Folhetin, Folha de S.Paulo, 25/1/81).
• “Mais iguais” (Folha de S.Paulo, 28/1/81).
• “Deficientes acusam comissão nacional” (Folha de S.Paulo, 28/1/81).
• “12 milhões de brasileiros são deficientes físicos” (O Recado, 12/2/81).
• “Deficientes intensificam a luta por seus direitos” (Folha de S.Paulo, 14/2/81).
• “Deficientes mostram valor e coragem na luta pelos seus direitos” (Gazeta de
Santo Amaro, 21/2/81).
• “Independência para os deficientes” (Folha de S.Paulo, 28/2/81).
• “Pouco de concreto” (Folha de S.Paulo, 3/3/81).
• “A campanha pelos direitos dos deficientes” (Jornal da Tarde, 13/3/81).
• “Deficientes divulgarão programa para este ano” (Folha de S.Paulo, 13/3/81).
• “Ano Internacional: 1981, das Pessoas Deficientes” (Diário Nippak, 13/3/81).
• “Deficientes intensificam a luta por seus direitos” (Folha de S.Paulo, 14/3/81).
• “Deficientes iniciam a campanha” (O Estado de S.Paulo, 14/3/81).
111
• “Um mundo físico difícil de ser conhecido e enfrentado a cada dia” (Folha de
S.Paulo, 14/3/81).
• “Cegos se unem para derrubar preconceitos” (Shopping News, 15/3/81).
• “Declaração dos Direitos abre Ano do Deficiente” (Folha de S.Paulo, 15/3/81).
• “O NID contesta a Globo” (Folhetin, Folha de S.Paulo, 15/3/81).
• “Aberto o Ano do Deficiente” (O Estado de S.Paulo, 15/3/81).
• “Deficientes não querem concessões” (Diário Popular, 15/3/81).
• “Em defesa dos deficientes: A abertura oficial brasileira do Ano Internacional dos
Deficientes foi feita neste fim de semana” (Jornal da Tarde, 16/3/81).
• “Deficientes iniciam Ano Internacional” (Folha da Tarde, 16/3/81).
• “Deficientes promovem passeata” (A Tribuna, 21/3/81).
• “Deficientes fazem passeata por maior integração” (A Gazeta, 21/3/81).
• “Deficientes querem o fim da discriminação” (A Tribuna, 21/3/81).
• “Deficientes físicos realizam passeata e fazem comício” (A Gazeta, 21/3/81).
• “Grupo quer fim da discriminação a cegos no trabalho” (Folha de S. Paulo,
22/3/81).
• “Deficientes mobilizam-se” (Folha de S. Paulo, 25/3/81).
• “Deficiente não pede favor, só iguais oportunidades” (Dirigente Industrial, São
Paulo, v. XXII, n.4, abril/81).
“Deficientes,
uni-vos” (O Estado de S. Paulo, 12/4/81).
•
• “Deficientes: professor repudia discriminação” (Folha da Tarde, 12/5/81).
• “Deficientes terão seu 1° Congresso” (Folha de S. Paulo, 14/8/81).
• “Deficientes vêem o país consciente do problema” (O Estado de S. Paulo, 23/3/82).
1981: O apagar das luzes do AIPD
À medida que se aproximava o fim do ano de 1981, percebíamos que o
período de 12 meses seria muito curto para que o AIPD realizasse todas as ações
planejadas. Mas, também relembramos que a proposta do AIPD nunca foi a de
resolver, no espaço de um ano, todos os problemas relacionados à situação das
pessoas com deficiência.
Nesse sentido, constatamos que a principal finalidade do AIPD foi muito
bem alcançada, ou seja, conseguimos despertar a atenção da sociedade para a
dura e complexa realidade vivida pelas pessoas com deficiência, assim como
conscientizá-la sobre a sua responsabilidade de mudar essa realidade. Em
1981, acabamos transformando o AIPD na base sólida a partir da qual foi
iniciado o longo processo de reconstrução da sociedade ao longo de muitas
décadas pela frente. No AIPD, acabamos aprendendo a identificar, analisar,
equacionar e solucionar corretamente os desafios oferecidos pelas pessoas
com deficiência à sociedade como um todo.
112
Depois do AIPD
Muitos foram os desdobramentos produzidos pelo AIPD, importantes para
uma série de finalidades: Dar continuidade às ações de médio e longo prazos
iniciadas em 1981, concluir ações inacabadas, iniciar ações em lugares que não
foram contemplados em 1981 e outras mais. Os problemas levantados durante o
AIPD foram tantos que ninguém duvidava que seriam necessários vários anos ou
décadas para solucioná-los.
Soluções em forma de documentos e em forma de ações – é o que
veremos na parte III deste capítulo.
1982: Programa de Ação Mundial
Em 3/12/1982, a Assembleia Geral da ONU adotou o Programa de
Ação Mundial para Pessoas com Deficiência, através da Resolução 37/52. Um
dos mais densos documentos da ONU, esse Programa trouxe diretrizes para a
elaboração de estratégias mundiais de promoção da “participação plena” e da
“igualdade” por parte das pessoas com deficiência na vida social e no
desenvolvimento de cada país. Trata-se, portanto, do primeiro resultado direto
das ações do AIPD.
Considerado avançado para a época, o Programa Ação Mundial para
Pessoas com Deficiência serviu como uma das fontes de referência, 20 anos
mais tarde, para a elaboração do rascunho da Convenção sobre os Direitos das
Pessoas com Deficiência (ou 24 anos mais tarde, para a sua adoção pela
Assembleia Geral da ONU. De fato, o rascunho absorveu conceitos como o de
equiparação de oportunidades e o da relação entre a deficiência e o ambiente .
1983-1992: Década das Pessoas com Deficiência
Outro importante produto do AIPD foi a proclamação da Década das
Nações Unidas das Pessoas com Deficiência, através da Resolução 37/53, de
3/12/1982. A Década serviu como parâmetro de tempo destinado à
implementação do Programa de Ação Mundial para Pessoas com Deficiência.
O então secretário-geral da ONU, Javier Perez de Cuellar, disse em nota
de imprensa publicada em 19/4/1983:
“Esta proclamação salienta a determinação da comunidade internacional de
levar adiante o ímpeto dado pelo Ano Internacional das Pessoas Deficientes
em 1981 para a prevenção da deficiência e a equiparação de oportunidades
para as pessoas com deficiência, assim como a sua reabilitação na sociedade.
Nós temos a responsabilidade de encorajar e ajudar pessoas com deficiência
a conduzirem vida útil e significativa. Isto não pode ser feito como um ato de
caridade e sim porque é o direito delas e porque a sociedade como um todo
pode progredir somente se a cada um de seus membros forem dados pleno
reconhecimento e respeito à sua dignidade e ao seu valor inerentes”.
(CUELLAR, 1983)
113
1985: Criação do CEAPD
A primeira Diretoria do Conselho Estadual para Assuntos da Pessoa
Deficiente (CEAPD), de São Paulo, tomou posse em 1°/2/1985, no Palácio dos
Bandeirantes.
Imagem. Foto em preto e branco. Mesa de evento com seis membros. Legenda: Ativista Araci Nallin discursa. Foto: R.Sassaki
Bem sabiam os ativistas de direitos das pessoas com deficiência como,
por exemplo, Araci Nallin, que a sua participação neste Conselho estava
diretamente relacionada com as propostas contidas no Programa de Ação Mundial
para Pessoas com Deficiência, da ONU, conforme segue:
“Participação de pessoas com deficiência na tomada de decisões. (91) Os estadosmembros devem aumentar sua assistência às organizações de pessoas com deficiência e
ajudá-las a organizar e coordenar a representação de seus interesses e de suas
preocupações. (92) Os estados-membros devem procurar estimular ativamente e por todos
os meios possíveis o desenvolvimento de organizações de pessoas com deficiência ou que
as representem. Em muitos países existem organizações, em cuja composição e órgãos de
direção exercem influência decisiva as próprias pessoas com deficiência ou, em alguns
casos, suas famílias. Muitas dessas organizações não têm meios de exercer influência e de
lutar por seus direitos. (93) os estados-membros devem estabelecer contatos diretos com
essas organizações e lhes proporcionar canais para que possam exercer influência sobre as
políticas e decisões governamentais em todos os campos que lhe concernem. Os estadosmembros devem prestar o apoio financeiro que, nesse sentido, seja necessário às
organizações de pessoas com deficiência. (94) As organizações e outras entidades de todos
os níveis devem assegurar que as pessoas com deficiência possam participar de suas
atividades na medida mais ampla possível”. (NAÇÕES UNIDAS, 2001, p. 39)
1988: Pessoas com Deficiência na Constituinte
Tivemos uma participação grande na Assembleia Constituinte. Nós, do
movimento, trabalhamos no ano de 1987 inteiro em âmbito nacional. Acontece que
o anteprojeto da Constituição, escrito pela Câmara Federal, já estava pronto em
1986, sem termos sido consultados.
114
Imagem. Jornal Etapa, 1987.
“Emenda Popular é defendida por Messias na Constituinte”. Contém foto em preto e branco de Messias Tavares, com legenda: “Messias Tavares de Souza Coordenador
da ONEDEF foi o indicado para defender a Emenda dos deficientes”.
Em Brasília, no dia 28 de agosto, por ocasião da apresentação da Emenda Popular pelo Movimento das Pessoas Portadoras de Deficiências à Constituinte, o
Coordenador da ONEDEF, Messias Tavares, indicado pelo grupo para defender o documento, proferiu o seguinte discurso:
PERSPECTIVA HISTÓRICA DA CIDADANIA.
Exmº Deputado Ulysses Guimarães – Presidente da Assembléia Nacional Constituinte, Exmºs parlamentares constituintes, demais autoridades, Senhores, Senhoras,
Companheiros de luta.
Todo nosso esforço, até aqui, de luta pela inserção social, conquistas dos direitos do cidadão burguês, mínima necessária a nossa dignidade contemporânea, tem sido
bloqueado pela insensibilidade de uma sociedade hostil, violenta e insensata. Mais uma vez verificamos nossas conquistas darem alguns passos para a frente e outros
para trás: a sociedade brasileira, representada pelas suas autoridades, realmente se recusa a compreender a importância de nossa luta, que não é absolutamente nossa,
mas dela (dessa sociedade) como um todo.
Gostaríamos de lembrar que a nossa lua por cidadania não é separada de nenhum segmento igualmente injustiçado. Tanto que nem gostaríamos de chamar a atenção
para o fato de que ninguém é cidadão cercado de meios-cidadãos por todos os lados: “É impossível ser feliz se os outros não o forem”, dizia Hegel”.
A Polis grega antiga fundamenta a cidadania na escravidão, onde os cidadãos são iguais, mas nem todos são cidadãos. A Polis romana segue o mesmo caminho. O
mundo feudal não possui cidades nos seus 1000 anos de obscurantismo e lenta acumulação de capital. O Burgo, fruto das trocas, impostas por essa acumulação milenar,
criará a cidade, o indivíduo, a família burguesa, o cidadão que é aquele que pode ir e vir, neste território sem dono particular. É nesse território, burgo ou cidade, que se
exercerá a cidadania burguesa, a liberdade abstrata, conquistada pela revolução industrial inglesa, em termos econômicos, e pela revolução política francesa com a
Queda da Bastilha. Liberdade abstrata, porque se pode ser ou ter, apenas no papel, ou na imaginação, mas o modo de produção e distribuição não permite que isto se
realize, de fato. O cidadão socialista não é escravo dos particulares capitalistas, mas é da universalidade do Estado. Há que se encontrar, no socialismo autogestionário
ou no capitalismo do bem-estar social, o respeito à identidade e à diferença. Há que se construir uma Constituição sob o pano de fundo da necessidade contemporânea
de se respeitar o ser humano, nos seus aspectos universais, particulares e singulares, sob pena de não se respeitar o cidadão em todas as dimensões.
É por isso que nós, os portadores de deficiências, aceitamos ser iguais, bem como exigimos o respeito às nossas particularidades e singularidades, que não é privilégio
nosso, mas um atributo próprio de todos os seres.
A CONSTITUINTE E OS PORTADORES DE DEFICIÊNCIA
A organização de entidade de cunho assistencial e paternalistas, no Brasil, começou há mais de 30 anos. Cabe a ela, historicamente e ainda hoje, desafogar a consciência
pesada, coletiva, do sistema “feudal” e capitalistas emergente, provocada pela miséria progressiva e a crescente perda do valor do ser humano, em prol do culto à
máquina, ao capital.
No decorrer dos anos 50 e 60, a miséria causada pela pobreza e deficiências, se organiza nos grandes centros. A esmola disfarçada ou o subemprego, como a venda
organizada de balas, vêm criar as primeiras iniciativas de organização, sem liberdade ou usando a exploração, o que perdura até hoje.
Na década de 70, os portadores de deficiência, bem como os negros, as mulheres e outros grupos da sociedade civil, resolvem se organizar, por uma questão de
sobrevivência. O abandono e a atomização, pelos quais passam as minorias, chegam a um grau insuportável. Surgem, então, pelos recantos mais politizados do País,
associações que, ainda usando o lazer como pretexto, promovem a conscientização, comandadas por líderes eventuais e raros. Implantam-se então as discussões
regionais, sem que cada um saiba da existência dos outros.
De 1979 até nossos dias, formam-se as organizações nacionais de cegos, hansenianos, portadores de deficiências físicas, surdos ostomizados, talassêmicos, diabéticos,
renais crônicos, paralisados cerebrais, entre outros, sem que haja uma representação geral destes segmentos, como resposta a uma necessidade, que já se faz sentir.
Entretanto, surgem algumas conquistas de poder governamental, que já não é eventual, nos vários tipos e níveis, mas se esboça, como início de uma conquista
sistemática, em resposta à consciência, da necessidade de se ocupar o poder, para se alterar a realidade.
O trabalho integrado, entre o movimento nacional dos portadores de deficiência e alguns representantes do Governo, permite uma preparação para a Constituinte. Em
todas as regiões do País se trava uma discussão, tendo como objetivo a Constituinte.
A primeira polêmica se estabelece em torno da forma, como a Constituição deveria tratar do assunto. Seria em um espaço especial em que tudo que dissesse respeito ao
segmento fosse contemplado, criando-se assim marginalização magna? Ou se colocaria as especificidades em cada artigo ou assunto a elas relacionados? Os
conservadores, reacionários e desinformados queriam a “facilidade” das “tutelas especiais”, os progressistas queriam compatibilizar a identidade com a diferença, caso a
caso.
Em outubro de 1986, realizou-se em Belo Horizonte a “III Reunião de Entidades Nacionais, Conselhos e Coordenadorias das Pessoas Portadoras de Deficiência”, em
que se fundiram, em plenário, duas propostas longamente trabalhadas: uma, realizada, sob a coordenação do Cenesp – Centro de Ensino Especial – e Instituto Benjamin
Constant, que trazia o tom do movimento nacional de cegos; e outra coordenada pelo MDPD – Movimento pelos Direitos das Pessoas Deficientes de São Paulo - e
defendida pelo Programa de Cultura e Portadores de Deficiência do Ministério da Cultura, que trazia o tom do movimento nacional dos portadores de deficiência física.
A fusão dessas propostas, trabalhadas em plenário, originou um documento de 14 itens com inúmeros signatários, que conseguiu substancial aceitação, sendo
finalmente ratificado, em Brasília, na “IV Reunião de Entidades Nacionais, Conselhos e Coordenadorias de Pessoas Portadoras de Deficiência”, em março de 1987. Este
documento, que deveria ser entregue ao presidente da Assembléia Nacional Constituinte, acabou sendo oficialmente entregue ao presidente da Subcomissão do Negro,
Populações Indígenas, Pessoas Deficientes e Minorias, deputado Ivo Lech, em razão do não comparecimento do deputado Ulysses Guimarães.
O Relatório inicial da Subcomissão, acima citada, tinha o tom do relatório da Federação Nacional das Apaes – Associações de Pais e Amigos dos Excepcionais. Estava
em jogo a vitória do passado assistencialista e paternalista e o presente de luta por direitos burgueses, mínimos e necessários à cidadania, à possibilidade de sermos
sujeitos além de objetos, das políticas da sociedade e do governo.
Vieram a Brasília, mais uma vez, as lideranças mais significativas do movimento nacional de portadores de deficiência para pressionar os constituintes, ou antes,
esclarecer seus argumentos e a imperiosa necessidade de mudança. Dezesseis páginas de emendas foram propostas e aceitas em sua maioria, o que trouxe, como
resultado, um relatório avançado, sem, no entanto, desmerecer as reivindicações assistenciais.
O Substituto da Comissão da Ordem Social ratificou a tendência em se manter a luta por cidadania ou direitos como objetiva os 14 itens da proposta do movimento
nacional dos portadores de deficiência. Representou, além disso, um corte substancial nos artigos assistencialistas e paternalistas, que permaneceram no relatório da
Subcomissão das Minorias. Retirou-se, contudo, o artigo que protege o portador de deficiência, realmente pobre e incapaz, de prover sua subsistência, isenta de tributos
todas as instituições que lidam com a questão dos portadores de deficiência. Ambas as incorreções deverão ser objeto de emendas no decorrer do processo
constitucional. Mesmo assim, o substituto da Ordem Social mostra um avanço que as forças progressistas não esperavam.
O RETROCESSO
O substitutivo do Relator Constituinte Bernardo Cabral, de agosto de 1987, representa um golpe rude em quase todas as nossas conquistas na Constituinte. Anos,
décadas de discussões, avanços, crescentes consciência, transformação do preconceito em conceito se esvai, frustrando compromissos unânimes dos parlamentares que,
em Assembléia, tecem a Constituição.
Eis as perdas:
1A) Nos Direitos Individuais voltamos a deixar de existir juridicamente, constitucionalmente, para retornar ao campo aberto da injustiça e discriminações.
B) A prevenção das deficiências escapa novamente da responsabilidade do poder público. C) Não há mais atribuições de responsabilidades impostas por leis, àquelas
que produzem, em larga escala as deficiências, no trabalho desprotegido, na violência das políticas atentas ao ativo e fugidias ao passivo, que elas acarretam.
2- Nos dão um presente de grego, quando querem que os “deficientes físicos” se eximam do voto. Muito obrigado, mas os portadores de deficiência, portam-na apenas,
como diz a terminologia adequada, e somos suficientemente eficientes para votar, e os acessos e os processos de votação não forem deficientes: o voto, para nós, é um
direito, não um dever.
3- Ter que tolerar a assistência social para quem já tomou consciência de seus direitos civis é um incômodo, pois ela tem um ranço do paternalismo e assistencialismo,
que não está sendo repugnado apenas, em nosso discurso, mas nas seqüelas que nos marcam dia a dia: o assistencialismo é crime hipócrita que procura esconder as
responsabilidades políticas. Mesmo assim, com o caráter de habilitação e reabilitação, com vistas à integração na vida econômica e social do país, este assistencialismo
ainda era palatável: dava para ser digerido. No entanto, no Novo Relatório ele se torna restrito à habilitação e fala em integração à vida comunitária. Não queremos as
festinhas para nos alegrar como fazem, também de forma distorcida, com os velhos, queremos e vamos participar da vida econômica e social do país.
4 – Um dos primeiros direitos de qualquer animal ainda mais do ser humano é o direito natural do ir e vir. É um direito que tem que ser Constitucional. Como se poderá
viver, se não se pode locomover-se? Até isto nos retiraram neste Novo Relatório.
5 – As isenções de tributos à pesquisa, ensino, habilitação e reabilitação e tratamento, relativas aos portadores de deficiência não são privilégio, é sim uma pequena
compensação às 24horas de preconceito nos 365 dias do ano, ao longo de toda nossa história. É um pequeno reparo às múltiplas injustiças que nos fazem exilados
internos dos palácios, das ruas, das instituições, de nossas próprias casas.
6 – No que se refere à educação, queremos dizer que não temos por meta a educação especial, mas as técnicas especiais de educação. A educação deve ser uma só, não
deve haver duas educações, mas particularidades na sua transmissão.
Na esperança de que nossa indignação seja direcionada para a correção dos recentes descaminhos que a Constituição tomou em relação aos portadores de deficiências,
confiamos na competência, seriedade e compromisso social dos Senhores Constituintes.
Muito Obrigado!
Legenda: Jornal Etapa set’87p.3
115
Se compararmos o anteprojeto de 1986 com a Constituição que veio a ser
aprovada em 1988, veremos a grande diferença, o quanto nós conseguimos
interferir. O anteprojeto era muito fraco, com aquela visão antiga, paternalista,
sobre pessoas com deficiência. Ali, realmente, nós crescemos. Tanto que
constituímos uma comissão e fizemos várias reuniões para fechar nossas
propostas para a Constituição. Cândido Pinto de Melo foi o coordenador aqui em
São Paulo, Carlos Burle Cardoso, em Porto Alegre, e Messias Tavares de Souza
foi nosso porta-voz no Congresso Nacional, em Brasília. Eu era o secretário, fazia
as atas. Viajamos bastante. Fechávamos cada artigo e o entregávamos ao
Messias, que ia para Brasília brigar com os deputados federais e os senadores.
Todo mundo sabia que Messias não era apenas uma pessoa, ele era o
representante do movimento. Foi, realmente, uma vitória muito grande. (SASSAKI,
in LANNA JR, 2010, p. 410)
1992: Dia Internacional das Pessoas com Deficiência
Através da Resolução 47/3, a Assembleia Geral da ONU, em sua 37ª
reunião plenária, em 14/10/1992, declarou o dia 3 de dezembro de cada ano
como o Dia Internacional das Pessoas com Deficiência. Na referida resolução,
constou o nome “International Day of Disabled Persons” (Dia Internacional das
Pessoas Deficientes). E assim ficou até 2007, quando então a ONU comunicou
a substituição do termo “Disabled Persons” por “Persons with Disabilities”.
Desde então utilizamos o nome oficial “Dia Internacional das Pessoas com
Deficiência”.
Essa data comemorativa foi instituída no último ano da Década das
Nações Unidas das Pessoas com Deficiência. Nos considerandos da Declaração
do Dia 3 de Dezembro como o Dia Internacional das Pessoas com Deficiência, é
citado que:
“a Década das Nações Unidas das Pessoas com Deficiência foi um período para
a tomada de consciência e de medidas de ação orientadas a contribuir com o
melhoramento contínuo da situação das pessoas com deficiência e a
equiparação de oportunidades para elas; a necessidade de ações mais vigorosas
e mais amplas em todos os níveis para satisfazer os objetivos da Década e o
Programa Mundial de Ação para Pessoas com Deficiência; a importância do
desenvolvimento e o cumprimento das estratégias de longo prazo para a
completa colocação em prática do Programa de Ação Mundial para Pessoas com
Deficiência para além da Década, com o objetivo de construir uma sociedade
para todos para o ano 2010”. (NAÇÕES UNIDAS, 1992)
A ativista Agnes Fletcher escreveu: “Nós temos direitos, necessidades e
habilidades como quaisquer outras pessoas. Daqui para a frente, nós temos o
nosso Dia Internacional todos os anos para falarmos ao mundo sobre estes
direitos, necessidades e habilidades e assegurarmo-nos de que eles serão
respeitados”. (FLETCHER, 1996, p. 5)
116
1993: Normas sobre a Equiparação de Oportunidades
Um dos produtos diretos da Década das Nações Unidas das Pessoas
com Deficiência foi a adoção do documento Normas sobre a Equiparação de
Oportunidades para Pessoas com Deficiência. Ele foi adotado pela Assembleia
Geral da ONU na 48ª sessão em 20/12/1993, através da Resolução 48/96. O
documento traz 22 normas agrupadas em três áreas: I – Requisitos para a
igualdade de participação; II – Áreas-alvo para a igualdade de participação; III –
Medidas de implementação.
Segundo o documento:
“(24) O termo ‘equiparação de oportunidades’ significa o processo através do qual os
diversos sistemas da sociedade e do ambiente, tais como serviços, atividades,
informações e documentação, são tornados disponíveis para todos, particularmente
para pessoas com deficiência. (25) O princípio de direitos iguais implica que as
necessidades de cada um e de todos são de igual importância e que essas
necessidades devem ser utilizadas como base para o planejamento das comunidades
e que todos os recursos precisam ser empregados de tal modo que garantam que cada
pessoa tenha oportunidade igual de participação. (26) Pessoas com deficiência são
membros da sociedade e têm o direito de permanecer em suas comunidades locais.
Elas devem receber o apoio que necessitam dentro das estruturas comuns de
educação, saúde, emprego e serviços sociais. (27) Na medida em que as pessoas com
deficiência conquistam direitos iguais, elas devem também ter deveres iguais. À
medida que esses direitos estão sendo conquistados, as sociedades devem aumentar
suas expectativas em relação às pessoas com deficiência. Como parte do processo de
equiparação de oportunidades, devem ser tomadas medidas que auxiliem pessoas com
deficiência a assumir plena responsabilidade como membros da sociedade”. (NAÇÕES
UNIDAS, 1996, p. 14-15)
2006: Os 25 anos do AIPD
O Centro de Vida Independente Araci Nallin (CVI-AN), com apoio de
alguns parceiros, organizou e realizou o Seminário “O AIPD 25 Anos Depois.
1981: Ano Internacional das Pessoas Deficientes. 2006: As Memórias, as
Conquistas e o Futuro”, no Hotel Novotel Jaraguá Convention, em São Paulo/SP,
nos dias 3 e 4 de dezembro de 2006.
Como membro do CVI-AN e também como coorganizador das atividades
do AIPD em 1981, tive o privilégio de ser designado para ministrar a palestra de
abertura do citado seminário. A palestra foi intitulada como “Memórias do Ano
Internacional das Pessoas Deficientes: Pessoas, Histórias e Conquistas”.
Foi uma experiência profundamente gratificante preparar o texto da
palestra e intercalá-lo com imagens ocupando 72 slides em PowerPoint. À
medida que me lembrava das pessoas que, como eu, viveram o dia a dia do
AIPD, fui tomado por emoções de todas as tonalidades. Minha memória
registrou muitos fatos engraçados, tristes, agradáveis e desagradáveis que
aconteceram em 1981. Para me lembrar de tudo, contribuíram bastante as
fotos, os livros, as revistas, os recortes de jornais, as cartas datilografadas (não
existia computador, não!) e outros materiais, que colecionei sistematicamente.
Batia uma saudade enorme quando eu via fotos de companheiros que morreram
117
ou que simplesmente sumiram do movimento. As emoções não se restringiram
às longas horas de preparação da palestra. Elas foram multiplicadas e tomaram
conta de mim enquanto eu apresentava a palestra, reconhecendo na plateia a
presença de várias das pessoas cujas fotos estavam sendo projetadas e
explicadas por mim. Haja coração!
A respeito daquele seminário, vou acrescentar aqui alguns depoimentos
obtidos pela Lia (Ana Maria Morales Crespo) para a tese de doutorado em História
que ela defendeu em 29/1/2010. De cada depoimento selecionei a parte que se
refere àquele seminário.
“Pude encontrar pessoas que não via há muitos anos. Encontrar esses amigos e
ver essas pessoas realizadas, cada uma na sua área, foi uma coisa muito
emocionante. Ao mesmo tempo, também me emocionei ao ver as pessoas que
ingressaram no movimento muito tempo depois. Elas também estavam lá se
solidarizando e confraternizando com os ditos ‘jurássicos’. Foi um processo muito
legal que reacendeu em mim aqueles ideais que me movimentaram na época do
ingresso no vestibular. Pude reencontrar essa energia, essa utopia que me
moveu e que continua me movendo”. (DE PAULA, in CRESPO, 2009, p. 211)
“Considero de grande importância a realização do seminário comemorativo
dos 25 anos do Ano Internacional das Pessoas Deficientes, que aconteceu em
dezembro de 2006, em São Paulo, por iniciativa do Centro de Vida
Independente Araci Nallin, com apoio de outras organizações, entre elas, a
Sorri-Brasil. Durante o evento, pudemos ouvir o relato das lideranças
‘jurássicas’, primeira geração do movimento pela defesa dos direitos das
pessoas com deficiência, compartilhando com as novas gerações a
compreensão histórica e as conquistas”. (BUENO, in CRESPO, 2009, p. 234)
“O Brasil tem problemas com a história, sobretudo a recente. Não é preciso
saudosismo, mas é necessário saber o que já foi feito para fazer algo novo. Além
de resgatar, é preciso apontar para a frente. Por isso, o evento comemorativo
dos 25 anos do AIPD foi fabuloso! A gente reviu a história do movimento, os
colegas e a própria trajetória. Coisas que a gente deixa para trás, mas que, na
verdade, contribuíram para a nossa própria personalidade. Resta saber em que
medida aquele resgate foi só um reconhecimento ou se também impulsionou
algumas ações que vieram em seguida e se vai inspirar as que devem vir”.
(BAGGIO NETO, in CRESPO, 2009, p. 257)
“O evento comemorativo dos 25 anos do AIPD, realizado em 2006, em São
Paulo, foi como uma viagem no tempo. Foi emocionante reencontrar os velhos
companheiros e saber que aqueles que já se foram não foram esquecidos. Acho
que poucas vezes na vida tive emoções tão fortes. As amizades que fizemos
naquela época ainda se mantêm vivas, porque foram construídas sobre um
movimento solidário”. (DE FREITAS, in CRESPO, 2009, p. 278)
2006: Enfim, a Convenção da ONU
Vinte e cinco anos depois do AIPD, o Comitê Ad Hoc instituído pela
ONU aprovou, em 25/8/2006, o texto da Convenção sobre os Direitos das
Pessoas com Deficiência (CDPD), que levou cerca de quatro anos para ser
elaborado. Em 13/12/2006, a Assembleia Geral da ONU adotou a CDPD através
da Resolução A/61/106. Em 3/5/2008, a CDPD entrou em vigor no mundo.
118
2007-2009: O Brasil e a Convenção da ONU
Em 30/3/2007, o Brasil assinou a CDPD na sede da ONU, em Nova York.
Em 9/7/2008, o Senado e a Câmara Federal ratificaram a CDPD com equivalência
de emenda constitucional, através do Decreto Legislativo n. 186. Em 1/8/2008, o
Brasil depositou a ratificação da CDPD na sede da ONU. Em 25/8/2009, o Brasil
promulgou a CDPD através do Decreto nº 6.949.
O Artigo 8 da CDPD, que trata da conscientização, é semelhante ao
Artigo 10 da Declaração de Sundberg, citado anteriormente, mas com a vantagem
de que, no Brasil, a CDPD foi incorporada à Constituição Federal. Ele diz o
seguinte:
“Os Estados Partes se comprometem a adotar medidas imediatas, efetivas e
apropriadas para: (a) Conscientizar toda a sociedade, inclusive as famílias, sobre
as condições das pessoas com deficiência e fomentar o respeito pelos direitos e
pela dignidade; (b) Combater estereótipos, preconceitos e práticas nocivas em
relação a pessoas com deficiência, inclusive aqueles relacionados a sexo e
idade, em todas as áreas da vida; (c) Promover a conscientização sobre as
capacidades e contribuições das pessoas com deficiência”. (NAÇÕES UNIDAS,
in BRASIL, 2010, p. 26)
E prossegue estabelecendo que as medidas para esses três objetivos
incluem, por exemplo, o incentivo a todos os órgãos da mídia para retratar as
pessoas com deficiência de maneira compatível com o propósito da CDPD.
Da exclusão (1981) à participação plena
na sociedade (2011)?
A grosso modo, sim. No Brasil, em 1981, os estudos propiciados pelo
AIPD nos permitiram constatar que as pessoas com deficiência se encontravam
muito excluídas da maior parte das oportunidades desfrutadas por pessoas sem
deficiência. Em 2011, constatamos que as pessoas com deficiência estão tendo
mais acesso aos sistemas comuns da sociedade; portanto, há mais participação
hoje do que 30 anos atrás.
Contudo, se passarmos um pente fino nessas constatações, verificamos
que a exclusão ainda não foi extinta e que a maioria das pessoas com deficiência
ainda não está participando nem um pouco das oportunidades disponíveis ao
restante da população geral. Como se explica isso?
Ao longo dos últimos 30 anos, a qualidade e a quantidade dos bens
melhoraram de fato a qualidade de vida de uma pequena quantidade de pessoas
com deficiência. Estivemos sempre buscando e valorizando a qualidade dos
serviços, programas, equipamentos e outros bens, mas raramente (talvez nunca)
estivemos investindo em recursos e estratégias capazes de levar essa qualidade
para a totalidade das pessoas com deficiência. Temos conseguido beneficiar, na
melhor das hipóteses, 20% dessa totalidade. Resultado: em pleno século 21,
vários milhões de pessoas com deficiência residentes no Brasil estão excluídos
tanto quanto os poucos milhões de pessoas com deficiência que existiam em
1981.
Talvez nós tenhamos estado equivocados ao acreditar que legislações e
políticas públicas, automaticamente, fariam chegar os bens a TODAS as pessoas
com deficiência. Se não criarmos, com urgência, os recursos e estratégias para
atingir todo o segmento, correremos o risco de constatar esse mesmo tipo de
desigualdade social daqui a 30 anos.
119
Referências bibliográficas
BRASIL. Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência e Protocolo
Facultativo. Brasília: Secretaria Nacional de Promoção dos Direitos da
Pessoa com Deficiência, 2010.
CRESPO, Ana Maria Morales. Da invisibilidade à construção da própria
cidadania. Os obstáculos, as estratégias e as conquistas do movimento
social das pessoas com deficiência no Brasil, através das histórias de
vida de seus líderes. Tese de doutorado em História, apresentada à
Universidade de São Paulo e aprovada em 29/1/2010. São Paulo, 2009.
CUELLAR, Javier Perez. Mensagem do Secretário-Geral da ONU. Carta-Circular
n. 2, de 19/4/1983. Nova York: Nações Unidas, 1983.
FLETCHER, Agnes. Ideias práticas em apoio ao Dia Internacional das Pessoas
com Deficiência; 3 de Dezembro. (Original publicado em Londres em
1993). São Paulo: Prodef/Apade, 1996.
LANNA JR, Mário Cléber Martins (comp.). História do Movimento Político das
Pessoas com Deficiência no Brasil. Brasília: Secretaria de Direitos
Humanos. Secretaria Nacional de Promoção dos Direitos da Pessoa com
Deficiência, 2010.
NAÇÕES UNIDAS. Programa de Ação Mundial para as Pessoas com Deficiência.
2ed. Brasília: Corde, 2001.
NAÇÕES UNIDAS. Normas sobre a equiparação de oportunidades para pessoas
com deficiência. (Original publicado pela ONU em Nova York em 1994).
São Paulo: Apade/CVI-AN, 1996.
NAÇÕES UNIDAS. Declaração do Dia 3 de Dezembro como o Dia Internacional
das Pessoas com Deficiência. Nova York: Nações Unidas, 1992.
REHABILITATION INTERNATIONAL. Barrier free design: a report of a United
Nations Expert Group Meeting. International Rehabilitation Review, Nova
York, primeiro trimestre de 1975, vol. XXVI, n. 1, edição especial.
SASSAKI, Romeu Kazumi. Inclusão: construindo uma sociedade para todos. 8ª
ed. Rio de Janeiro: WVA, 2010.
UNESCO. Declaração de Sundberg. (Aprovada na Conferência Mundial sobre
Ações e Estratégias para Educação, Prevenção e Integração, organizada
pelo Governo Espanhol em cooperação com a Unesco e realizada em
Torremolinos, Málaga, Reino da Espanha, nos dias 2 a 7 de novembro de
1981).
UNITED NATIONS. IYDP Plan of action – Resolution 34/158, June 13, 1979.
Nova York: Division for Economic and Social Information, 29 julho 1980.
UNITED NATIONS. IYDP Liaison Circular 3/79. Genebra: Centro de
Desenvolvimento Social e Assuntos Humanitários da ONU, setembro de
1979.
UNITED NATIONS. International Year for Disabled Persons – Resolution 31/123,
December 16, 1976. Nova York: Assembleia Geral, 2 fevereiro 1977.
120
Imagem. Jornal Folha de S. Paulo, Quinta-feira, 1º de janeiro de 1981.
Um ano de luta pelos direitos do deficiente. Ligia Sanches.
Segundo determinação da ONU, este é o Ano Internacional da Pessoa Deficiente, e deverão ser discutidos todos os problemas ligados ao transporte, legislação,
reabilitação, prevenção e atendimento hospitalar, em todos os países. O Brasil já tem uma comissão nacional nomeada pelo presidente para o Ano, que entretanto ainda
não se pronunciou a respeito do que vai ser desenvolvido. Por isso mesmo — e apesar da ONU procurar a união dessa população — as iniciativas estão sendo isoladas.
No início de dezembro, Ourinhos já abriu seu Ano Internacional, formando uma comissão paritária com deficientes e não, e em São Paulo o Movimento Pelos Direitos
das Pessoas Deficientes, que congrega 12 entidades paulistas, anuncia para este mês uma campanha de conscientização da entidade. Em seguida serão realizadas mesasredondas, a primeira marcada para 21 de fevereiro, em local a ser confirmado na rua Joaquim Antunes, 611, ap.53.
Como tantas situações de gravidade, a do deficiente físico não é observada pela comunidade e, principalmente, pelos responsáveis pelo bem estar de toda a população.
Ele não pode, salvo em raríssimas oportunidades, assistir a um filme ou peça de teatro, sessões no Municipal, freqüentar uma biblioteca ou visitar um museu. Um
deficiente que utilize cadeira de rodas não pode, jamais utilizar os transportes públicos: os ônibus têm portas estreitas demais e degraus muito altos, e o metrô só pode
ser alcançado por escadarias ou escadas rolantes.
São Paulo tem 2 milhões e duzentos mil deficientes físicos, o Brasil todo tem 12 milhões deles que, na grande maioria dos casos, estão jogados em asilos, escondidos
em suas casas, ou por vergonha da família ou sem condição alguma de locomoção, e estão ainda em raros e não tão eficientes centros de reabilitação. Já a minoria, que
pode ser contada sem grande cansaço, está nas ruas como vendedores ambulantes, ou, privilegiados, nas escolas e em algum emprego.
Um centro. O Núcleo de Integração de Deficientes foi criado por três deficientes, jovens que, casualmente, se encontraram no começo do ano passado prestando
vestibular. Do primeiro contato veio a amizade e dela a necessidade de discussão de seus problemas e daí a formação de um núcleo que lutasse por uma série de direitos
dos deficientes. O NID, agora com 30 integrantes, está pronto a receber mais gente, e os contatos podem ser feitos durante a semana pelos telefones 813-1130, 70-3847
e 263-2624.
Maria Cristina Correa, Ana Rita de Paula, Ana Maria Morales Crespo e seu irmão José Francisco Morales Crespo são alguns dos iniciantes do NID que, atualmente, luta
por coisas bem específicas: conscientizar a sociedade e o deficiente de seus direitos civis e humanos promovendo a divulgação desses direitos; fazer o levantamento da
legislação atual referente aos direitos dessas pessoas e lutar por seu cumprimento; denunciar e lutar contra a discriminação; derrubar os esteriótipos existentes em
relação à pessoa deficiente construindo uma imagem mais real, onde ela não apareça como super-herói ou coitadinho; e tornar evidente a existência dessas pessoas,
incentivando-as a saírem às ruas, terem vida social.
É justamente para promover o desenclausuramento dos deficientes que eles estão fazendo um levantamento dos locais públicos e suas condições de utilização: “Somos
cidadãos como todos os outros” — diz Cristina — “nossos pais pagam impostos e temos direito a tudo que as outras pessoas têm. Só que a gente sabe que os transportes
coletivos não oferecem condições mínimas de segurança para os deficientes, que é difícil circular pelas ruas com cadeiras de rodas porque as guias são altas, que os
táxis, quando não se recusam ao transporte dos deficientes, cobram mais caro que deveriam. Por outro lado, diversão também é proibida para nós quase sempre, visto
que a maioria dos cinemas têm escadas difíceis, não têm rampas de acesso, e quando podem ser atingidos, não têm banheiros de tamanho suficiente para o acesso da
cadeira de rodas”.
Discriminação. Outra denúncia que o NID quer fazer é contra as empresas, que geralmente (apesar de existir uma lei determinando que cada uma deve admitir de 2 a
5% de empregados deficientes), são discriminatórias, deixando sempre de lado o deficiente, de maneira velada, dizendo que a vaga já foi preenchida etc.: “A gente
sempre aparece como um D. Quixote, um super-herói que tem que vencer todas as dificuldades e, se conseguimos emprego, temos que ser mais abnegados que os
outros, mais produtivos”, diz Ana Maria. “Acontece que a sociedade tem que absorver o deficiente, encará-lo como uma pessoa para poder se desenvolver como as
outras. A colocação do “coitadinho” é errada, como do super-herói. As empresas devem ter honestidade suficiente para admitir um deficiente quando seu teste
demonstrou que tem mais capacidade que uma pessoa normal e também não admiti-lo se não for bom. Só não pode ignorá-lo arbitrariamente”.
O Núcleo participou, em Brasília, do 1º Encontro Nacional de Entidades de Pessoas Deficientes, quando 39 entidades foram representadas e aprovaram propostas que
vão desde as lutas pelo direito ao trabalho — com reivindicação de aposentadoria com 100% do salário por não terem outra fonte de renda e concessão de Bolsas de
Estudos vinculadas a programas de reabilitação — até pedidos de acessos públicos fáceis, urbanização de áreas de periferia, revisão da sinalização do trânsito e reserva
de vagas especiais identificadas pelo símbolo internacional em todos os transportes coletivos que tenham entrada facilitada; assistência médico-hospitalar, divulgação e
cumprimento das leis em benefício dos deficientes e criação de um departamento Esportivo que abranja esse grande público.
Já existe a idéia da formação de uma federação das entidades, para que todas as lutas sejam levadas a nível nacional mas, como diz Cristina, “ela só deve ser feita em
bases sólidas, bem discutida e planejada, para ser efetiva; e ainda é um pouco cedo para acontecer. Então, por enquanto, continuamos atuando pelo NID e mantendo
contato com outras entidades daqui. O que queremos deixar claro é que o Núcleo não é fechado, aliás sermos abertos é uma plataforma. Acreditamos que a integração
tem que começar por nós, então estamos prontos tanto a receber deficientes como não deficientes, porque afinal há muitas pessoas que querem ajudar, e ser deficiente
também não é atestado de idoneidade. Sabemos que outros grupos não aceitam pessoas normais e que existe uma fobia de serem manipulados, o que dá para entender
por que já surgiram até entidades fantasmas de deficientes, enganando muita gente”.
A mãe de Cristina, dona Dora, chama a atenção de que o Censo não aproveitou a chance de recensear os deficientes e localizá-los, “pois eles estão escondidos, muitas
vezes nem trabalham nem estudam, acabando como párias da sociedade. A sociedade discrimina, os amigos discriminam e muitas vezes uma família não recebe
convites por ter um deficiente entre seus membros, Então acho que junto com entidades de deficientes devem existir outras para os pais de deficientes, para que saibam
o que é realmente o deficiente, como agir e como viver”.
Outro ponto para o qual eles querem chamar a atenção se refere aos meios de divulgação, como a TV: “Afinal, diz Francisco, “ela tem que deixar de mostrar o
deficiente como uma pessoa sem direito a nada, nem ao amor, ao sexo, e colocá-lo como pessoa real, com seus problemas, e não deixar passar e reforçar mais os
preconceitos, como foi feito pela promotora Maria Cláudia Foz num programa da Hebe Camargo”.
Legenda: Acervo digital Memorial da Inclusão. Doação Romeu Sassaki.
121
Imagem. Jornal Folha de S. Paulo, de 14 de janeiro de 1981.
Deficientes lutam para acabar com paternalismo. Cecília Pires.
Contém três fotos em preto e branco: 1. Homem falando. Com os braços sobre uma mesa ele gesticula com a mão direita. Legenda: José Evaldo de Mello Doin; 2. Lia
Crespo, sentada numa cadeira comum, muleta canadense sob a cadeira, escreve numa máquina de escrever. Legenda: Não importa o problema, mas sim o trabalho; 3.
Num saguão, dois homens orientam a colocação da faixa “1981 Ano Internacional das Pessoas Deficientes – Participação Plena e Igualdade” e Lia Crespo escreve
numa máquina de escrever sobre mesa redonda. Legenda: 1981 foi declarado pela ONU o Ano Internacional dos Deficientes Físicos.
Desmascarar a atitude paternalista com relação ao deficiente físico e recuperar todas as suas prerrogativas enquanto cidadão participante da sociedade é o principal
objetivo do Movimento pelos Direitos das Pessoas Deficientes, sediado em São Paulo, que está organizando uma série de eventos para marcar a passagem do Ano
Internacional das Pessoas Deficientes.
O tema central escolhido pela Organização das Nações Unidas (ONU) para o debate em torno dos deficientes é “Participação Plena e Igualdade”. E neste título está
contida toda uma nova visão com relação ao deficiente físico, que resultou da revisão de antigos valores estabelecidos, desde o modelo médico imposto ao deficiente,
até sua segregação na comunidade.
Esta segregação, na opinião de José Evaldo de Mello Doin, um dos coordenadores do Movimento, não é simples questão de retórica, mas uma constatação real, que
parte dos próprios organismos governamentais e termina na família, último elo da corrente que separa, aprisiona e oprime o deficiente. Basta dizer que um fundo da
ONU destinado à recuperação dessas pessoas, no valor de US$ 450 milhões está congelado, porque o Brasil não decretou prioridade para a reabilitação dos deficientes.
A situação deste grupo peculiar de pessoas, calculado no Brasil em torno de 12 milhões, é particularmente agravado nos países do Terceiro Mundo, onde as condições
de vida são duplamente sacrificadas para os grupos minoritários.
A dificuldade de acesso a qualquer tipo de participação dos grupos oprimidos fica muito clara neste único exemplo: o Brasil desconheceu a existência dos deficientes
físicos no Censo Demográfico realizado no ano passado, o que impede que se calcule exatamente o número e as características dessa camada da população brasileira.
Organização. Como única saída para retirar o deficiente físico brasileiro de sua condição de segregado, José Evaldo de Mello Doin defende a conscientização deste
grupo de pessoas e sua organização para defesa de seus direitos. A luta apenas começou, pois, segundo Doin, “90 por cento dos deficientes brasileiros não se
consideram cidadãos”.
O processo de conscientização do deficiente em qualquer país subdesenvolvido é naturalmente mais difícil, em função das barreiras econômicas que a maioria enfrenta
no caminho de superação dos entraves à sua participação. Uma prótese (substituição de um órgão deficiente por um aparelho art ificial), por exemplo, está custando em
torno de Cr$ 140 mil. “Como um deficiente pode considerar-se um cidadão, se ele não tem condições nem ao menos de andar, pois não pode comprar um aparelho?” —
pergunta Doin.
Os problemas de saúde do deficiente são os mesmos de qualquer brasileiro, diferentes apenas na proporção. Não existe qualquer programa de saúde a nível nacional.
Por isso, segundo Doin, os integrantes do Movimento defendem a criação de uma política nacional de reabilitação e integração social, para que o Estado assuma suas
responsabilidades, fornecendo assistência médica digna para seus deficientes, e acessível a todas as camadas da população.
Exemplo de Ourinhos. A primeira grande vitória da organização dos deficientes é o início de um projeto-piloto na cidade de Ourinhos destinado à reabilitação e
integração dos deficientes. Na semana passada, foi decretada nesta cidade a prioridade para este tipo de programa e criado um fundo de integração social, com a
destinação de um prédio na periferia para a implantação da Reabilitação Simplificada.
“O termo Reabilitação Simplificada deverá ser muito ouvido, daqui por diante” — explica Romeu Kazumi Sassaki, especialista em reabilitação e consultor do Centro de
Desenvolvimento de Recursos para Integração Social (Cedris). “Após 60 anos de programas de reabilitação nos moldes tradicionais, os técnicos começam a descobrir
que o trabalho tradicional de reabilitação é muito sofisticado, de custos altíssimos e poucos centros são capazes de oferecer”.
Além disso, o tratamento tradicional atingia uma parcela insignificante de deficientes. Segundo estudos da Onu, em termos mundiais,
122
do total de 500 milhões de pessoas portadoras de deficiências físicas cerca de 300 milhões não estão recebendo serviços de reabilitação. Vivem em meio à pobreza,
fome, ignorância, doença, miséria e desesperança.
“A tecnologia simplificada de reabilitação consiste basicamente na utilização de métodos, equipamentos e pessoal que envolvam a participação do público no processo
de reabilitação, utilizando uma programação dinâmica mas suficientemente simples para que a comunidade a acompanhe. Utilizam-se recursos materiais da própria
realidade local me termos de equipamentos e aparelhagens auxiliares mais simples e em termos de participação da pessoa deficiente nas escolas, no trabalho, no lazer e
na família” — explica o técnico.
A tecnologia simplificada de reabilitação está sendo implantada no México sob o patrocínio da Organização Panamericana da Saúde e assemelha-se aos projetos
realizados em países como Uganda, Quênia, Zâmbia e Tanzânia. O fato de ele ter surgido na África explica a tentativa de resposta das comunidades pobres mundiais à
falta de instrumentos, especialmente econômicos, para atender aos deficientes.
O método, que agora será aplicado em Ourinhos, implica na participação do deficiente como cliente, como consumidor, no livre exercício de seus direitos. Ele agora
não será um mero objeto da assistência médica, onde os técnicos impingem o tratamento. Na moderna tendência, os clientes de reabilitação têm uma atitude crítica,
discutem e planejam com técnico o tratamento que mais lhes convém.
Comunidade. “O mais importante nesse novo processo, é que toda a comunidade participa da reabilitação, a começar pela própria família” — conta Kazumi. Isto
significa a reabilitação total, psicossocial, econômica, profissional, educacional, familiar, cultural. Para isso, pesquisamos o que a comunidade tem em termos de
artesanato, escola, programas de saúde. Tudo é colocado em função da reabilitação, para a integração completa do deficiente enquanto cidadão”.
Neste caminho de reabilitação, a comunidade aprende a conviver com o deficiente e vê a pessoa se transformar, acompanhando sua recuperação e integração ao meio.
Em Ourinhos, o Movimento pretende contratar uma série de profissionais para criar uma equipe multidisciplinar de trabalho. Para isso, está reivindicando verbas,
fundos e legislação específica ao programa, como parte dos direitos que a comunidade de deficientes brasileiros não pretende apenas pleitear, mas exigir.
No trabalho, a realização. “Recusei-me a passar a vida numa mesa de operações. Minha opção de vida foi a profissionalização, a carreira universitária. Escolhi ser
cidadão, ocupar meu espaço, participar integralmente”.
Nesta filosofia de vida, José Evaldo de Mello Doin resume todo o conceito de integração do deficiente à sociedade, defendido pelo Movimento pelos Direitos das
Pessoas Deficientes. Professor universitário de História Econômica, Doin está preparando sua tese de doutorado, sem desligar-se de suas raízes, do próprio processo de
conscientização que o levou a optar pela profissão, estudando a História da Reabilitação.
“Existe um modelo médico, Foi sempre a partir deste modelo que se estudou o paraplégico, o deficiente físico, E para o médico, naturalmente, o que interessa é a
fisiologia. Mas nunca nos perguntaram qual a parte de nós mesmos que queríamos reabilitar. E nós queremos uma reabilitação integral. Muitas vezes, optamos por
sacrificar a estética, para uma participação social maior. É preciso dar o direito ao deficiente de escolher o tipo de reabilitação que ele quer. Ser operado a vida toda ou
não, seguir uma carreira ou não. Queremos discutir a terapêutica”.
Radicalmente contra as campanhas “de amparo”, como aquelas destinadas à doação de cadeira de rodas, Doin defende os direitos e prerrogativas dos deficientes, que
pagam impostos, e portanto se credenciam a exigir que o Estado cumpra sua obrigação, fornecendo os instrumentos necessários para a integração deste grupo na
comunidade.
“Se eu sou um cidadão, portanto uma pessoa integrada à sociedade, participante do processo de produção, eu pago impostos, gero rendas. Portanto, tenho direitos. É
necessário que a comunidade se conscientize que as necessidades diferenciadas de um deficiente não podem ser atendidas em forma de dádiva ou de esmola, como
também, por outro lado, não podem ser encaradas como privilégios”.
123
Isto também é com você: a luta é de todos nós. Construir rampas em lugar de escadas, colocar elevadores em ônibus, criar mecanismos legais de integração do
deficiente na sociedade, como por exemplo, uma lei que torne obrigatória a contratação de uma determinada parcela de deficientes em cada empresa, este é o caminho
defendido pelo Movimento pelos Direitos das pessoas Deficientes.
“Pretendemos criar um movimento informal, sem a preocupação de formular estatutos, para congregar pessoas interessadas nessa problemática, no sentido de fortalecer
as reivindicações e o poder de pressão dos deficientes. Nosso objetivo é modificar as instituições que cerceiam a participação dessa parcela da população e o próprio
comportamento da comunidade em relação a esse segmento social. Por isso, procuramos inserir o problema do deficiente na problemática maior da realidade brasileira”.
Nesse processo de conscientização, que deve partir do deficiente e envolver toda a sociedade para a participação democrática de todo indivíduo em seu meio, Doin
chama particularmente a atenção da família para o problema do paraplégico.
“Algumas famílias escondem seu deficiente de todo o meio social, com vergonha da aparência física. Geralmente, a atitude da família é a de repulsa, diante do ser que
não tem uma estética agradável à vista. Outros apostam no sucesso profissional de seu parente deficiente, e o utilizam como um trunfo, numa visão preconceituosa e
alienante. É preciso que essa visão seja radicalmente mudada, a partir da própria família. O deficiente é um ser diferenciado, não incompleto. Ele não exige pena, mas
respeito, Ele não quer superproteção, nem atitudes paternalistas, mas reivindica apoio e amor”.
Para lembrar. “A honestidade não é apenas a melhor política. É a única que pode dar certo. Não há atalhos ou sistemas que nos salvem. Esperança de adulto começa
com a consciência da realidade.”
Legenda: Acervo digital Memorial da Inclusão. Doação Romeu Sassaki.
124
Imagem. Jornal Folha de S. Paulo — Um jornal a serviço do Brasil —. Sexta-feira, 16 de janeiro de 1981. Editorial.
Ano do deficiente físico
Depois do Ano Internacional da Criança, a Organização das Nações Unidas escolheu, para uma campanha de esclarecimento e valorização, o deficiente físico. Este,
além das dificuldades específicas que enfrenta, encontra obstáculos ainda maiores em preconceitos e atitudes sociais, resultantes da ignorância e da insensibilidade que
ainda prevalecem entre nós.
O deficiente físico se vê assim retiro à margem da sociedade, muitas vezes segregado em grupos homogêneos, sendo alienado progressivamente do convívio com o
resto da humanidade. O próprio direito ao trabalho lhe é, com freqüência, negado, reservando-se-lhe tarefas menores e mal remuneradas. Seu direito à cidadania é, de
fato, negado pela negligência com que meios necessários à sua educação lhe são oferecidos. Sua mobilidade é reduzida pela carência de meios propícios à sua
locomoção e seu amor próprio ofendido pelo tratamento complacente a que é submetido.
Há, portanto, um longo caminho a percorrer. E este Ano Internacional do Deficiente Físico será um primeiro passo para que cheguemos onde deveríamos ter começado.
Legenda: Acervo digital Memorial da Inclusão. Doação Romeu Sassaki.
125
Imagem. Jornal Folha de S. Paulo – Folhetim – 15 de março de 1981.
O NID contesta a Globo
Em carta publicada no Folhetim nº 213, a coordenadora da campanha da Rede Globo relativa ao Ano Internacional da Pessoa Deficiente, Virgínia Cavalcanti, fez várias
acusações ao NID — Núcleo de Integração de Deficientes. Sentimo-nos na obrigação e no direito de esclarecer os leitores deste jornal sobre os fatos.
Não é verdade a alegação de Virgínia Cavalcante de que o NID “resolveu sabotar” o trabalho da Coalizão Nacional de Entidades de Pessoas Deficientes. O NID
reconhece a representatividade e o trabalho dessa entidade. O NID funcionou apenas como intermediário entre a equipe de Virgínia Cavalcante, por sugestão dela
mesma, e as outras entidades de São Paulo. Portanto, não e verdade que o NID tentou “convencê-la a entrevistar somente pessoas de outros Estados que fechassem
politicamente com o NID”. Outros Estados sequer foram cogitados em nossas sugestões.
Em nenhum momento o NID sugeriu que fossem filmados apenas deficientes “universitários, freqüentadores de museus”. Sugerimos, isso sim, que cenas desse tipo
fossem também mostradas, pois de fato existem deficientes que freqüentam museus, tanto quando existem deficientes que vendem chiclés nos semáforos das avenidas.
Seria discriminação excluir qualquer um dos dois.
Por outro lado, a afirmação de Virginia Cavalcante de que “todas as outras entidades concordaram em que a campanha deveria ser principalmente dirigida ao deficiente
carente”, resultou no fato de que apenas 23% das pessoas mostradas são carentes. Não é verdade, também, que o NID tenha feito reivindicações elitistas do tipo
“gasolina mais barata para deficientes”. Isso seria privilégio, e quem conhece o NID sabe que não reivindicamos privilégios, mas direitos.
O roteiro que Virginia Cavalcanti alega ter seguido, “exceto nas situações irreais”, não foi elaborado apenas pelo NID, mas foi fruto de uma reunião das seguintes
entidades: FCD, Adeva, Unadef, Aide, Quinta Roda e pessoas não vinculadas a entidades. Embora tivéssemos expressado verbalmente o desejo de participar do
trabalho de edição, não é verdade que o NID recebeu convite com essa finalidade e recusou.
O Movimento pelos Direitos das Pessoas Deficientes (MDPD), em carta enviada a João Carlos Magaldi, da diretoria da Globo, expressou desejo de “opinar sobre as
imagens antes de irem ao ar”, preocupado “quanto à possibilidade de veicular imagens conflitantes com os desejos e anseios das pessoas deficientes”. Nem mesmo após
essa carta, o NID ou qualquer entidade de São Paulo, pôde participar do trabalho de edição.
A Globo, em ofício nº 854/80 de 2/12/80, deixou claro que este trabalho era de exclusiva competência da Comissão Nacional do Aipd, competência, aliás, que o NID
coloca publicamente em dúvida, se levarmos em conta o desastroso resultado final da campanha. NID — Núcleo de Integração de Deficientes.
Legenda: Acervo digital Memorial da Inclusão. Doação Romeu Sassaki.
126
Imagem. Reprodução completa do Folhetim nº 210, de 25 de janeiro de 1981, constituído de 16 páginas.
Capa. Folhetim. São Paulo, domingo, 25 de janeiro de 1981. Ilustração: imagem de três pessoas no formato negativo fotográfico, nas cores vermelha e rosa. No primeiro
plano, homem de costas para o observador, em cadeiras de rodas. Na diagonal, cruzado nas costas da pessoa com deficiência, o título do Folhetim “Deficientes físicos
nem inúteis, nem coitadinhos”.
Página 1
127
Ilustração. Ao lado da estátua Vênus de Milo, um senhor, de terno, barba e óculos, com o dedo em riste fala com outro senhor, de uniforme e chapéu: “O nome dela é
Vênus de Milo! Se não quiser ser demitido pare de apresentá-la aos turistas como ‘miss acidente do trabalho!’”.
Que tudo não se acabe em 31 de dezembro...
Depois das Mulheres e das Crianças, chegou a vez dos deficientes terem o seu Ano Internacional, instituído pela ONU. Assim, nos próximo doze meses, eles serão
assunto na imprensa, enquanto a televisão aproveita para sensibilizar os telespectadores que se imobilizam diante dela. Surgirão, talvez, algumas campanhas comovidas
com o problema e muitos discursos encherão páginas e páginas de anais, enquanto o trânsito e os acidentes de trabalho continuarão a sua trágica tarefa de gerar, dia após
dia, exércitos de mutilados sob a complacência de todos nós. Entretanto, entre ter o ano internacional dos deficientes físicos e não ter anda, melhor assim.
No mínimo haverá uma chance de despertar as atenções para o tema, acender discussões e estabelecer, quem sabe, algumas metas a serem alcançadas no sentido de que
o deficiente tenha seu lugar na sociedade, contribuindo na produção de riquezas e lutando, como todos, por uma justa distribuição dos benefícios.
Quase sempre os preconceitos servem, neste e nos demais casos, para encobrir o problema, para minimizar a sua gravidade e para manter, principalmente, um quadro
geral de injustiça.
Os preconceitos que insistem em separar o deficiente dos demais têm suas raízes plantadas na nossa cultura e não será fácil eliminá-los. Mas, se deixarmos de tratar os
deficientes como um “coitadinho” ou como um inútil ou como um super-herói, preferindo reconhecer a sua deficiência e respeitá-lo como um cidadão nosso igual,
dando-lhe o direito de realizar-se como pessoa, talvez consigamos caminhar bastante no sentido de superar os sentimentos preconceituosos que, é bom que se repita,
existem de ambos os lados. Neste Folhetim procuramos não apenas levantar os problemas mais urgentes que estão na pauta das reivindicações e luta dos deficientes
físicos no Brasil, mas dar a eles a palavra. Através das suas histórias pessoais, como as do deputado Thales Ramalho e da Guta da TV Globo, ou como, no outro
extremo, as histórias dos deficientes confinados na penitenciária do Estado, o leitor poderá observar as dimensões mais amplas do problema.
E verá, assim, que não se trata de uma questão a ser equacionada num simples e simbólico Ano Internacional, e que os direitos reclamados pelos deficientes físicos são,
na sua natureza, os direitos a que todo cidadão deve ter acesso, independente de suas limitações e deficiências de qualquer espécie. (O.M.)
Cartas
Um inimigo de John Lennon.
A carta de Maurício F. Masson, no Folhetim n.208, me deixou curioso. O que Lennon e os Beatles fizeram de tão importante para revolucionar a cultura dos anos 60? E
por que nosso povo – e todos os povos – fizeram tanto rebu com a morte de Lennon? Para mim, não passou de uma pessoa como nós e pior: um gringo aproveitador da
nossa ignorância como outros tantos. LUCIANO STURBA (São Paulo, Capital)
Uma discussão sobre o inimigo de Lennon.
“Sturba, não perturba”
O Luciano não pertence à geração dos “trintões” que curtiu a beatlemania ou, em bom português, ele está cuspindo no prato que comeu. Até o seu sobrenome Sturba
vem rimar com não perturba, meu irmão. LUIZ CARLOS BATISTA DE MOURA (Indaiatuba, SP)
A origem do senso crítico.
Quando encontro pessoas como Luciano Sturba, incapazes de entender a obra de Lennon e dos Beatles e a revolução cultural que eles provocaram no mundo, respondo
de uma maneira simples, mas real: se não fosse por Lennon e os Bealtes, ele provavelmente, nem teria condições de desenvolver o senso crítico necessário para escrever
a idiotice sobre o tal “gringo”. EDUARDO LEÃO WAISMAN (São Paulo, Capital)
Uma atitude grosseira.
Com relação à carta do Sr. Luciano Sturba (Folhetim n.209), gostaria de salientar o seguinte: concordo em partes com a opinião dele, por exemplo, quando pergunta o
que os Bealtes fizeram de tão importante para revolucionar a cultura nos anos 60. Contudo, não posso aceitar quando ele, grosseiramente, diz que Lennon não passou de
um gringo aproveitador da ignorância alheia. SÉRGIO LOUREIRO FILHO (Paranaguá, PR)
Ah, enfim inteligência.
Até que enfim surgiu entre a correspondência dos leitores, um cara esclarecido, o Sr. Luciano Sturba, que não viu motivo de tanto rebu com a morte de John Lennon. A
morte em si é um acontecimento triste, seja lá de quem for, mas merece maior manifestação de pesar quando se trata de vultos que deixaram atrás de si grandes
realizações em prol da humanidade. Até mesmo os plantadores de feijão, que falta ao nosso povo, devem ser homenageados depois de mortos. Muito mais do que um
simples guitarrista. JOSIAS DE PAULA BUENO (Campinas, SP)
Uma página de Beatles.
Como leitor assíduo do Folhetim, gostaria que vocês publicassem uma página inteira sobre os imortais Beatles, principalmente sobre John Lennon. MARCELO
ALTERMAQUIAN (Osasco, SP)
Música também é arte e cultura.
Em sua carta sobre Lennon (Folhetim n.209), Luciano Sturba deixou bem clara a sua ignorância. Se ele não sabe que música é arte e arte é cultura, então não está com
nada. Deu para perceber que ele não sabe nada sobre Beatles. Simplesmente, Lennon e os Beatles foram chave da abertura para a música pop, o que é, por si só, uma
revolução. NESTOR ABICAIR (Piraçununga, SP)
Uma ajuda na campanha.
Que felicidade encontrar alguém como Luciano Sturba. Concordo plenamente com a sua respeitável opinião: John Lennon é mesmo um “gringo aproveitador”. Aliás,
vou até ajudar o Luciano em sua campanha antigringo, fornecendo-lhe nomes de outros “gringos aproveitadores” já falecidos: Martin Luther King, Gandhi, Jimmi
Hendrix, Janis Joplin, João 23, Saint-Exupéry e, porque não, o filho do Criador, Jesus Cristo, nascido no distante Oriente Médio e que nunca veio ao Brasil, apesar dos
brasileiros, até hoje lamentarem a sua morte. YOLE SAKIAMA (São Paulo, Capital).
No fundo, ele gostava de John.
Entre as besteiras escritas por Luciano Sturba, em carta para o Folhetim n.209 sobre John Lennon, havia uma coisa certa: “... e por que nosso povo – e todos os povos –
fizeram tanto rebu com a morte de Lennon?” Realmente, isso só não aconteceu com uma minoria que vive fora do mundo, como o Luciano. Basta perguntar para
qualquer pessoa (da maioria pensante, é claro), o porquê do rebu. E ela vai explicar que a mensagem dos Beatles não esteve restrita aos EUA ou Inglaterra, mas
influenciou o mundo inteiro, até mesmo a MPB, eu e o Luciano. AUGUSTA MARIA BERTOLDI (Ribeirão Preto, SP).
Canções de Paz e Amor.
Li no Folhetim n.207 uma leitora que escreveu a respeito da morte de John Lennon. Ela diz que foi um bom começo e que não deveria ter recebido as homenagens que
lhes foram prestadas. Discordo dessa leitora, pois Lennon, juntamente com Paul, George e Ringo, deixou uma obra indescritível. Jamais o mundo esquecerá as canções
em favor da paz que os Beatles cantaram. CARLOS HENRIQUE PIRES BORGES (Uberaba, MG)
São Paulo emocionante.
Como em todos os domingos, li com atenção o Folhetim n.209, e como este trouxe tanta coisa relacionada a São Paulo, foi uma motivação maior para ler e reler...
E não posso deixar de dizer: o texto de Carlos Queiroz Teles, sob o título “Mobilizações Paulistanas”, me emocionou profundamente. Maravilhoso! Obrigado, Carlos.
CELIA M. STUNQUI (São Paulo, Capital).
Para comprar o folhetim
1.
Escrevo para pedir um favor. Quando saiu o Folhetim sobre John Lennon, meu pai não comprou o jornal. Se for possível gostaria de receber o exemplar.
YLARA ALMEIDA (São Paulo, SP).
2.
Perdi o Folhetim n.205, sobre o consumo. Eu gostaria muito que vocês enviassem esse exemplar. LUCAS DE OLIVEIRA (São Bernardo do Campo, SP)
3.
N. do R. – Os números atrasados da “Folha” podem ser adquiridos no Departamento de Venda Avulsa, Rua Barão de Campinas, 346, CEP 01202, São
Paulo, Capital. Os jornais são guardador durante 60 dias a partir da data de publicação e vendidos pelo dobro do preço do últ imo exemplar nas bancas. Os interessados
do interior podem pedir a remessa do jornal por carta, mas não devem esquecer de anexar o pagamento correspondente ao número de exemplares pedidos.
O seqüestro salvador.
Uma sugestão ao ministro Delfim Neto, grátis e eficaz como Doril. No início da semana, 52 reféns norte-americanos foram libertados pelos revolucionários iranianos,
graças ao pagamento de 10 bilhões de dólares. Daí imaginei que aí pode estar o fim dos problemas brasileiros. O Delfim sugere, o grupo palaciano aprova e o pessoal do
Alto Araguaia, como bons brasileiros, parte imediatamente para a ação e, num ato heróico, entramos para a história mundial. Se 52 norte-americanos valem 10 bilhões
de dólares, 310 valem 60 bilhões. Ora, 310 pessoas não são nada, são menos do que a lotação de vagão de subúrbio paulista. REINALDO FRANCISCO BEINOTTI
(Araras, SP).
A vergonhosa mulher-macaco.
No Parque Dom Pedro, aqui em São Paulo, há espetáculos horrendos. São pessoas que ganham a vida explorando a classe baixa, através de diversões inescrupulosas.
No princípio de janeiro, pude presenciar um tumulto no local: pessoas correndo como loucas após assistirem uma mulher se transformar em macaco. E por incrível que
pareça as pessoas pagavam para assistir tal vexame. E as autoridades onde estão? Por que não tomam uma atitude? Será que a população não tem nada melhor para
fazer? MARCIA LACYS (São Paulo, Capital)
Troco ou vendo. Gostaria de trocar ou vender os seguintes Folhetim: 141, 142, 144, 149, 151, 152, 153, 154, 155, 166, 168, 175, 176, 178, 180, 197 , 198, 192 e 209.
JOSÉ CARLOS FRANCISCO DE PAULA (Cx. Postal 135, Poá, SP).
Todas correspondência deve ser endereçada a: Folha de S. Paulo – FOLHETIM – Alameda Barão de Limeira, 425 – São Paulo, Capital – CEP 01202
Página 2
128
Ilustração. Desenho em preto e branco, composto de várias imagens, assinado por Petrucio. Rosto de criança com balão de fala vazio; quadro com reprodução de janela
de ferro com vidros, entre os quais há um onde os personagens de quadrinhos Mandrake e Lothar conversam; quadro com a reprodução de personagem de quadrinhos:
figura toda de preto, chapéu e só aparecem os olhos; num piso quadriculado, no formato de um tabuleiro de xadrez, homem em cadeira de rodas.
O amigo paraplégico do mocinho, por Marcos Rey.
Creio que entre todos os personagens que bolei, o mais dinâmico, alegre e otimista é o Gino, um órfão de dezoito anos de idade, neto de italianos, que vive com a tia
numa velha casa do Bixiga. Poucos o conhecem porque ainda está em fase de revisão e montagem. Só em março é que injetarão em suas veias de papel o sangue negro
das impressoras quando começará a circular em sua cadeira de rodas.
Falei em bolação mas na verdade Gino é o mais impremeditado tipo que coloquei em letra de forma. A princípio não passava dum figurante, sem recheio nem perfil,
criado apenas para dialogar com o seu primo, Leo Fantini, este, sim, um personagem de corpo inteiro, com sombra, hálito e carteira de identidade.
Nem paraplégico o Gino ainda era, identificado holywoodessamente como o “amigo do mocinho”, que num momento da história, um romance infanto-juvenil, ajudava
o primo a escapar duma perigosa quadrilha de contrabandistas de tóxicos. Mero dialogador, faltavam-lhe o guarda-roupa e as características de personagem.
Lembrei então dos amigos das grandes criações da ficção. Desde Sexta-Feira, o companheiro de Robson Crusoé, que eles existem com grande vigor. Vejam, isto dá até
uma idéia que talvez merecesse um estudo? Os amigos dos Mocinhos. Se não me engano Erich Von Muller abordou o tema. Certamente num trabalho assim Dr.
Watson, gordo e tardo, ocuparia todo um capítulo, amigo fidelíssimo que foi de Sherlock Holmes. Lothar, fâmulo e braço direito de Mandrake, estaria na lista. Os sete
anões, amiguinhos de Branca de Neve, diriam presente. Chita compareceria como amiga ideal do Tarzã, mais leal que a própria Jane, acho. Jim das Selvas era tão ligado
a Chandú que alguém o chamou o Gide das Selvas. Isso sem falar dos amigos ursos, saudações polares, como Escobar foi de Bentinho. Mas em todos casos, observem,
havia ou há uma grande diferença anatômica entre os heróis e seus amigos e de temperamento também.
Decidi então que o amigo-primo de Leo Fantini, o herói do livro, deveria ter suas marca própria, que não fosse, como nos casos aludidos, por gordura, cor, sexo ou
tamanho. Rejeitei também tipos caricatos, colonizados e psicológica ou financeiramente dependentes. Nasceu então o Gino paraplégico. Mas uma deficiência física não
basta para caracterizar uma personagem. Nem para santificá-lo. Por outro lado não quis fazer dele um caso excepcional, um campeão de basquete sobre rodas capaz de
encestar todas as suas dificuldades. Qualquer escritor que se preza não desenha personagens exemplares, Gino, portanto, seria um rapaz com as pernas paralisadas e não
um modelo ou protótipo. Com muita energia represada Gino foi para Leo mais que um ouvinte. Leo não deveria apenas fugir dos contrabandistas mas também contraatacar. Jogador de xadrez, era um lutador aparentemente tranqüilo que aprendera a fazer lances dissimuladores e perigosos. A imobilidade forçada ensinara-lhe muita
coisa e não ter pressa fora a mais importante. Sabia que um xeque, mesmo não mortal, pode sacudir um rei e desnorteá-lo. Entraram num acordo. Gino participaria com
a cabeça e Leo com as pernas até a vitória final contra a quadrilha.
A essa altura, é claro, tive de segurar o personagem paraplégico para que não ficasse mais sedutor que o próprio herói. Mesmo sem as pernas ameaçava centralizar toda
a ação do enredo. Tive então que me demorar em suas dificuldades físicas para que passasse o bastão para Leo. Um descuido de minha parte e ele viraria um mocinho
de enlatado.
Gino porém tinha uma barreira: as escadas. Seu inimigo mais direto: o degrau. Sua cadeira de rodas era um veículo confortável e não queimava gasolina mas não valia
nada ante uma diferença de nível. “Se não fosse as escadas eu seria até mais ligeiro que as pessoas que têm boas pernas”, costumava dizer. E todo seu bom-humor ia
para o brejo ao chegar a uma esquina. Passeios só ao redor do quarteirão. Em elevadores podia entrar mas como fazer para apertar o botão do vigésimo andar? Cinema,
só pela televisão. Em toda a parte sempre os degraus para atrapalhar.
- São os degraus que me impedem de vencer na vida – dizia ao primo. – Para ir a qualquer emprego teria que subir escadas.
- Você é tradutor, ganha dinheiro sem sair de casa.
- Mas às vezes gostaria de sair – respondia. Não se faz carreira dentro de um único quarteirão.
Enquanto combatiam os contrabandistas, que pretendiam acabar com a vida de Leo, testemunha dum crime num hotel de luxo onde trabalhava como bell boy, Gino
lançava indagações à procura duma profissão de futuro para um paraplégico. Bem informado, garantia ao primo que todas as faculdades tinham escadas, o que o
impedia de ser advogado, médico ou engenheiro sem depender dos outros. Mas devia haver um grande emprego ou uma profissão que lhe permitisse uma subida sem ter
que galgar degraus.
Um dia em que esse era o assunto, Gino deu um largo sorriso, e à sua maneira brincalhona, anunciou ao primo e herói do livro:
- já sei o que vou ser, caro Leo. As aflições acabaram.
- O que você vai ser?
- Presidente da República.
-?
A solução só podia ser arquitetônica:
- Parece que existe uma rampa no Palácio da Alvorada...
Arquitetos: embelezem com rampas seus edifícios.
Marcos Rey, romancista e contista, publicou entre outros livros “Café na Cama”, “Soy Loco por Ti, América” e “Malditos Paulistas”. Para crianças, “Não era uma vez”.
Tem no prelo um infanto-juvenil, tema deste artigo, “O Mistério do Cinco Estrelas”.
Página 3
129
Disputando a Olimpíada dos Deficientes, Beatriz conquistou três medalhas de ouro para o Brasil
As medalhas olímpicas da paralítica Beatriz.
Beatriz Schneider Santos teve poliomelite aos sete meses e ficou com ao membros inferiores atrofiados. Grávida, ela está sentada na sala de sua casa. Uma sala
decoradas com medalhas e troféus. Porque Beatriz já participou de três olimpíadas para deficientes físicos, entre 1974 e 1976. Na primeira , na Inglaterra, venceu em
três modalidade de natação e ganhou três medalhas de ouro, além de algumas de prata e bronze.
Vitórias difíceis, mas não sofridas.
— Se eu não estivesse bem estruturada psicologicamente teria me desesperado em 1974. Quando fui convidada para participar do campeonato Olímpico da Inglaterra, a
AACD conseguiu que a ACM cedesse sua piscina aquecida para treinar. Já que estávamos no inverno. Treinava às 6 horas da manhã. Entusiasmei-me pela Associação e
procurei tornar-me sócia. Depois de muitas desculpas comecei a desconfiar de alguma coisa. Por fim, a secretária muito sem jeito disse que o diretor rejeitou minha
proposta, porque uma pessoa como eu iria impressionar os demais sócios. Permitiram que treinasse atendendo a um pedido especial. Aí entendi porque seis horas da
manhã. Fui também barrada numa companhia de aviação.
Beatriz não quis dizer o nome, porque, hoje, conhece deficientes que trabalham lá. A bibliotecária Silvia Kairalla, com o mesmo problema, foi também rejeitada, devido
à sua deficiência física e esta é mínima. “Prestei concurso de bibliotecária da Prefeitura, entre centenas de candidatos fui classificada, porém, não fui admitida por ser
deficiente física.”
Perigosa solidão.
Outro problema gravíssimo que o deficiente enfrenta ao chegar a adulto é em nível afetivo. “A crianças percebe, mas de uma forma ou de outra está protegida de
alguma maneira pelo simples fato de ser criança – diz Sílvia. Falo das crianças de bom nível social, porque a criança não deficiente de nível baixo já é rejeitada e sofre
por outros motivos.”
Para Silvia Kairalla, é muito difícil falar dos deficientes de maneira geral, porque teve pouco contato com eles. Beatriz, no entanto, que freqüentou a AACD durante 12
anos como externa, onde fazia sua reabilitação, “acha que os valores humanos estão se perdendo e é claro que isto apareça mais, em relação ao deficiente. É importante
para a vida do deficiente que ele não se isole, que lute pelos seus direitos como lutei pelos meus. O deficiente deve procurar freqüentar ambientes diferentes do seu,
conviver e participar de reuniões de pessoas não deficientes, mesmo que isto lhe custe um grande sacrifício e seja marginalizado muitas vezes. Não deve pensar: porque
sou deficiente me é negado o amor e devo namorar só deficientes. Deve encarar sua vida afetiva e sexual normalmente. Muitos podem dizer que falo assim, porque
casei com um não deficiente, mas sempre pensei desta forma”.
“Não perdi as esperanças de implantar o esporte obrigatório para o deficiente brasileiro. É preciso conscientizarmo-nos de que o esporte é saudável, útil e vai ajudar
muito na reabilitação do deficiente. Talvez não seja fácil colocar em execução, devido a diversos componentes como custos, mão-de-obra especializada, trabalho,
adaptações que não temos. Quando voltei das olimpíadas voltei encantada com que vi. Havia piscinas, onde a pessoa podia entrar com cadeira de rodas ou bengalas.
Todos desde o paraplégico até o deficiente com problemas mentais fazem ginástica, jogam pingue-pongue, basquete, praticam natação.”
Difícil de carregar.
As olimpíadas para deficientes existem desde 1952 e ocorrem logo em seguida à Olimpíada normal. O Brasil começou a participar em 1974.
- O tratamento e atenção que o deficiente recebe na Inglaterra, Estados Unidos, Canadá, Suécia, países que visitei, é maravilho so. Lá o deficiente freqüenta qualquer
lugar ou clube. Aqui, quando os dirigentes não impedem são os acessos aos recintos que dificultam sua participação.
Tanto Beatriz como Silvia acham que “integrar não é criar centros especiais para o deficiente. Integração é unir o deficiente junto a pessoas normais, adaptar os clubes
também para deficientes, dando condições de um melhor entrosamento entre eles. Desta forma diminuiriam os preconceitos, as piedades, as misérias humanas e as
pessoas passariam a conviver e a ver o deficiente como alguém tão capaz e agradável quanto ele”.
Silvia acha que “não há preocupação por parte da sociedade de entender e se ligar ao deficiente. Isso é percebido nas próprias manifestações públicas e em filmes
ligados ao problema do deficiente. No filme “Amargo Regresso” as pessoas riram na cena do sexo. Uma cena foi uma coisa linda, pois mostrou que, apesar de
paraplégico, ele pode fazer sexo dentro de suas limitações e satisfez a pessoas da mesma forma, o filme mostrava que era possível. Tive vontade de matá-las”.
Elas admitem que existe tanta coisa errada, que “não vemos como integrar bem o deficiente”.
O que o deficiente espera em seu ano é o apoio por parte do governo e da comunidade que o cerca. O homem deve ter em mente que a deficiência não ocorre só com os
outros, ele ou alguém de sua família podem adquirir um tipo qualquer de deficiência, que os impeça também de gozar a liberdade de poder correr, ouvir ou ver a luz das
estrelas. É desta conscientização e luta harmônica entre deficientes e não deficientes que se conseguirá uma melhor qualidade de vida para o portador de defeitos físicos
ou mentais.
Reuniões sociais, bazares e discursos pomposos podem ser muito gratificantes para quem organiza, mas o deficiente precisa de muito mais. Ele precisa viver numa
comunidade que o aceite, entenda e o ajude a lutar por seus direitos, que em última análise dão os direitos do Homem. R.N.
Um acidente de carro e João Carlos Pecci teve de recomeçar a vida
Profissão: andar.
Foi tudo muito rápido, ansioso por ver a namorada que passava uns dias banhando-se nas praias do Cabo Frio, João Carlos Pecci pegou o automóvel e se foi estrada
afora. De repente, a curva, a derrapada, o brusco movimento de pescoço e o deslocamento da sexta vértebra de sua coluna vertebral: a medula atingida.
Tudo isso aconteceu em 1968, quando o economista Pecci tinha 26 anos de idade, quando não perdia uma oportunidade sequer de estar junto aos amigos, “de agarrar a
vida como todo jovem”. E essa sede não se acabou quando deitado, vislumbrando apenas o teto branco do hospital, recebeu a informação de que estava paralisado e que
os diagnósticos médicos não eram nada animadores em relação à sua recuperação.
— A partir desse dia – relata Pecci em seu livro “Minha profissão é andar” -, eu continuaria a ser homem, mas teria de construir uma natureza nova. Aquela que eu
possuíra durante 26 anos, atirou-se fora. Assim como se joga no chão um papel de bala.
A disposição de Pecci, contudo, de recuperar tudo aquilo que seu corpo ainda pudesse proporcionar transformou-se num elemento básico para que pudesse circular mais
ou menos livremente pela cidade, atualmente.
Esforço.
— Foi muita ginástica, muita teimosia e muito apoio moral da família que jamais procurou me esconder. A família ajudou no que foi e é necessário mas jamais tentou
bloquear minha personalidade.
Para Pecci, “essas são as condições mínimas que um deficiente físico deve ter para buscar a reintegração”.
— Entretanto – ressalta – é evidente que a minha condição social, privilegiada em relação à esmagadora maioria da população, e por conseguinte dos deficientes, deume oportunidade para que pudesse me sentir recuperado. Porém, como nem todos têm essa possibilidade, acho que essas condições mínimas só podem ser garantidas a
todos se ocorrer uma reformulação completa na estrutura social do país.
Profissão.
Além da recuperação física, ele considera igualmente importante o aspecto psicológico do paciente, cuja recuperação “Só pode acontecer a partir do momento em que o
deficiente passe a ser produtivo, a partir do trabalho”. Pecci, por exemplo, incapacitado de exercer a profissão de economista – “ eu teria de ficar muito tempo sentado e
isso prejudicaria meus exercícios físicos” – tratou logo de arranjar outra profissão. E acabou despertando seu potencial artístico, durante muitos anos adormecido na
insensibilidade de conhecer suas próprias virtude.
- Acredito – diz ele – que o grande problema do deficiente é o delimitar de suas capacidades. A gente tem de alterar muitos hábito arraigados e isso nem sempre é fácil.
Contudo, se a gente puder se dedicar a atividade para as quais podemos utilizar todas as nossas energias, sem dúvida fica mais fácil. Se não podemos praticar o futebol,
praticamos o xadrez; se não podemos ser vendedores, podemos ser artistas.
O número
Mesmo assim, Pecci lembra que nada adianta o esforço do deficiente na superação de alguns problemas se não se dispõe de hospitais e centros apropriados para a
recuperação, mesmo que parcial, de um defeito físico. Por isso, ele acha que o Ano Internacional do Deficiente pode ser produtivo se “o Estado se conscientizar de sua
responsabilidade social e se as pessoas se conscientizarem de que uma pessoa deficiente possui partes ativas em seu corpo, de eficiência limitada”.
Ele defende também a organização dos deficientes em associações realmente representativas, capazes de reivindicar melhores condições de vida.
- Que reivindique, pelo menos, o direito de saber quanto somos em todo o país, visto que as estimativas existentes são totalmente furadas, versando em torno de 15
milhões em todo o Brasil. (J.B.)
Ilustração da página. Rodapé com quadrinho, assinado por Nilson. Um homem sentado numa mesa entrevista candidatos a um emprego. Primeiro candidato: um homem
com muletas. Entrevistador diz: “O senhor não tem as pernas perfeitas? Sinto muito, não posso empregá-lo! Afinal isto é uma firma estatal e não um órgão de caridade!
Segundo candidato: uma mulher cega, com bengala. Entrevistador diz: “Não tem visão? Sinto muito! Não posso empregá-la!” Terceiro candidato: um homem faz sinais
em libras. Entrevistador diz: “Não tem a fala? Sinto muito...”. Quarto candidato: um homem todo de preto com um sorrisinho nos lábios. Entrevistador diz, apertando a
mão do candidato: “Não tem caráter? O emprego é seu!”.
Página 4
130
Advogado paraplégico diz que Estado é responsável pela reintegração social do deficiente.
A falsa liberdade.
Há, no Brasil, cerca de 28 milhões de deficientes físicos, a maior parte de baixa renda. Nesta fantástica estatística – que representa mais de 30% da população do País –
não se encontram incluídos os chamados portadores de “mazelas” interiores, como a debilidade mental, a surdez e a mudez, por exemplo. Na verdade, perto de 1 milhão
de brasileiros usam muletas, quase 160 mil tem braços ou pernas artificiais, 4 milhões são deficientes cardíacos e 20 milhões de pessoas sofrem de lesões permanentes
que afetam o sistema muscular e os órgãos sensoriais. Uma legião que compõe o alarmante exército de 500 milhões de “diferentes” espalhados por todo o mundo.
A reunião destes dados é resultado de um paciente trabalho de pesquisa – com freqüentes consultas aos arquivos da Organização das Nações Unidas – feito pelo
capitão-de-mar-e-guerra reformado Wilson Leitão Quintela, nos último 16 anos. Quintela, um ex-campeão em diversos esportes, hoje com 50 anos, está incluído nestes
números: ele é paraplégico, conseqüência de uma queda domiciliar que o obrigou a trocar a subchefia de Logística na Marinha, pela prática de advocacia filantrópica.
Isso, após infrutíferas tentativas de conseguir um emprego digno.
Previdência Imprevidente
Quintela faz severa críticas ao sistema oficial de assistência ao deficiente físico, que ele prefere chamar de “diferente”. As pessoas portadoras de uma “anomalia
sensória, emocional ou outro tipo de lesão ou fraqueza caracterizável que iniba ou perturbe o desempenhar de suas funções básicas” – segundo definição da ONU –
recebem o mínimo de atenção por parte do Ministério da Assistência e Previdência Social não exatamente por falta de recursos, pois o orçamento do Maps para este ano
é de Cr$ 1 trilhão.
“No Brasil, previdência é sinônimo de imprevidência”, constata o militar, enumerando nos dedos os centros especializados em reabilitação no País. Ele cita como
“entidades idôneas” apenas o Sarah Kubitschek, de Brasília, o Pan, do Inamps, e o Centro Naval Marcílio Dias, ambos no Rio. “Estes centros são bem intencionados,
mas esbarram nas dificuldades do Sistema Previdenciário Brasileiro – onde a maioria das pessoas só pensa em tirar proveitos, e não em ajudar. No dia em que não
houver mais aqueles que se dediquem às causa filantrópicas, será decretada a falência da previdência oficial no país.”
Quintela estende suas críticas ao total desinteresse do governo em criar condições que facilitem a sobrevivência do deficiente. Em sua opinião, é fundamental que se
coloque em prática uma série de normas técnicas – já em poder da Secretaria de Obras Públicas do Rio – que incluem: estacionamento cobertos próximos aos centros de
emprego e comércio; pisos de caimentos certos e estáveis; rampas com caimento de 6%; patamares a cada 10 metros; portas abrindo sempre para fora, com batentes
formando seu prolongamento; corrimãos prolongados com empunhadura de 5 cm; lavatórios onde caibam cadeiras de roda, com barras e alças para facilitar os
movimentos; sinalização em fundo escuro e audiovisual etc.
— No Brasil, entrar num aeroporto, no metrô ou sair de casa é briga de cego em tiroteio – desabafa Quintela.
Contra o paternalismo.
Quintela – pai de cinco filhos e avô de três netos – entende que chegou a hora do governo assumir a responsabilidade pela assistência aos deficientes físicos.
— Nós sempre somos utilizados em função de angariar fundos para campanhas de fins inconfessos – diz ele, numa crítica velada às promoções de entidades que se
dizem especializadas no gênero.
Ele chama a atenção para a força de trabalho que representam os diferentes no Brasil embora só 1% deles chegue a ocupar tarefas remuneradas, assim mesmo em
condições de subemprego. Estudos da ONU, no entanto, já provaram que os surdos são paranormais de grande produtividade em máquinas barulhentas ou em serviços
que demandem plena atenção, os cegos são excelentes para trabalhos com computação eletrônica, os daltônicos foram os melhores observadores aéreos nos últimos
conflitos, e quase tudo o que se faz de pé, pode-se fazer sentado.
Por tudo isso, ele quer ver regulamentada a emenda constitucional, elaborada pelo também deficiente deputado Thales Ramalho (PP-PE), e a criação do Fundo
Financeiro Nacional para Reabilitação e Amparo aos Deficientes, um anteprojeto de lei elaborado pelo instituto dos Advogados do Brasil, que deverá entrar em
discussão ainda este ano. Este fundo possibilitaria a instalação de vários “escritórios” por todo o País, onde um grupo especializado agiria em função de orientar, alocar
trabalho e preparar uma lei básica para a defesa dos direitos dos excepcionais. Isto já existe nos Estados Unidos com o nome de “evocate for the disable”.
Socialista de direita.
Quintela, ex-funcionário da Legião Brasileira de Assistência – e que se auto-define como “socialista de direita” – ainda sonha com a liberação da Área do Posto 6, em
Copacabana, no Rio, para a construção da primeira praia para deficientes e velhos do Brasil. Este projeto, elaborado pelo arquiteto Paulo Penna Firmo, da prefeitura
carioca, depois de receber o aval das autoridades que ingerem no assunto – inclusive o do presidente da República – tropeçou numa insólita alegação “técnica” do
secretário de Segurança do Rio, general Edmundo Murgel: a de que os aleijados atrapalham o livre trânsito das ambulâncias do serviço de Salvamento do Posto 6.
Resignado com este insucesso que espera ser parcial, Quintela prefere lembrar duas vitórias: a inauguração da Praça Garota de Ipanema, também no Rio, apropriada
para o deficiente físico e a criação – que realizou junto com uma equipe da Marinha – de uma cadeira de rodas adaptada aos padrões brasileiros, produzida a um custo
equivalente a 1/8 da similar americana, pela Baxman, de São Paulo.
“Ninguém vive sem gostar de si próprio”, por Maria Rosa Pecorelli
Se no Brasil ser mulher já significa um problema, imagine se esta mulher for uma deficiente física: agora, se ela conseguiu ocupar posições que muito homem gostaria
de atingir, mas não teve competência para tal, então é que a barra pesa, a pressão aumenta. A gente incomoda mesmo, e eles não no aceitam
Longe de ser um desabafo sofrido, este tipo de confissão é pouico comum vindo da psiquiatra Wanya Lopes Cançado. Apesar de ter sido vítima de uma paralisia infantil
aos três anos de idade, ela conta que jamais deixou o problema torná-la uma pessoa amarga, mesmo enfrentando uma séria discriminação.
— No nosso país – diz ela – existe uma coisa que não ocorre na maior parte do mundo: o preconceito contra o diferente. Um absurdo, se pensarmos que Roosevelt
governou os Estados Unidos sobre uma cadeira de rodas.
Wanya parece acostumada à discriminação, embora seja detentora de vários títulos em sua especialidade, como o de psiquiatria preventiva, obtido em Amsterdã, na
Holanda, ou o de especialização, da Universidade de Roma.
— Ao retornar da Europa, lá por 62, tentei um emprego no Banco do Brasil. Eles, porém, não aceitavam deficientes físicos, como creio que ainda faz o Itamarati.
Acabei, então, sendo indicada pelo catedrático Leme Lopes para o antigo Iapc, onde trabalhei de 63 a 79, como qualquer pessoa normal, cumprindo expediente e
fazendo plantão.
Os Privilegiados
Calmamente instalada em sua clínica de psicoterapia, em Ipanema, no Rio, Wanya se considera, hoje, uma mulher realizada. No entanto, garante ter plena consciência
de integrar uma minoria privilegiada, que teve oportunidade de sair do Brasil para se tratar no exterior.
—Temos de admitir que somos um país subdesenvolvido também em matéria de reabilitação. – Quem é pobre, ou fica entrevado numa cama, ou encontra pouquíssimas
opções de centros beneficentes de tratamento. Lugares, inclusive, pouco aparelhados para dar um atendimento correto.
O que falta, segundo ela, é uma política nacional de conscientização das pessoas e, principalmente, dos legisladores, criar e regulamentar leis que protejam o
excepcional, será a garantia de uma nova concepção de vida, no que diz respeito até mesmo à arquitetura e à urbanização das cidades.
— Este é um bom ano para começarmos a pensar em conjunto, já que estamos no Ano Internacional do Deficiente Físico. Em Brasília, por exemplo, o diretor da
Empresa Brasileira de Transportes Urbanos, Gil Cesar Moreira de Abreu, regulamentou o ônibus padronizado, com entradas baixas para as cadeiras de roda. Embora
excelente, continua sendo uma medida isolada. É preciso criar os escritórios de defesa do excepcional em todo o País. É preciso conscientizar a população.
No caminho da vida
A filha do ex-médico do Botafogo do Rio e titular desse e da seleção do Brasil em 1938, o “Nariz”, acabou sendo a causa do afastamento de seu pai do futebol. Em 41,
a família tentaria uma vaga para Wanya – que fora vítima de uma epidemia de pólio que se espalhou pelo Brasil em 39 – num hospital de Nova York, em meio aos
mutilados da Segunda Guerra. O jeito foi seguir para a Geórgia, e sofrer um tratamento – de seis meses – no mesmo hospital onde Roosevelt passava suas férias.
De alguém que sequer andava, a futura psiquiatra passou a praticar equitação e a nadar, esporte que cultiva até hoje, por considerar o melhor exercício terapêutico para
os paraplégicos, uma vez que mexe com todos os músculos.
Já de volta, depois de rejeitada como aluna pelo Colégio Bennet, no Rio, terminou seus estudos em Belo Horizonte, onde nasceu. Durante o 5 ano de medicina da
Faculdade do Triângulo Mineiro, Wanya voltaria aos Estados Unidos não mais como alguém carente, mas como a “embaixatriz da gratidão” do povo brasileiro a Jonas
Salk, descobridor da vacina contra a paralisia infantil.
Mesmo sendo obrigada a ter uma vida um pouco sedentária, Wanya se locomove com certa facilidade sobre suas muletas. Vive cercada de amigos, mantém uma vida
intelectual intensa, gosta de sentar num bar pra bater um bom papo, e chegou mesmo a casar e ser mãe de uma menina.
Segundo ela, a vida sexual daqueles que sofrem paralisia infantil é normal, uma vez que seu problema se concentra na área motora e não na sensitiva. Ao contrário do
que ocorre com aqueles que sofreram uma secção no corno posterior da medula, os paraplégicos.
— Minha gravidez foi normal, até o quinto mês pude trabalhar, só afastando-me por me sentir muito pesada. Fiz cesariana no oitavo mês, e dei à luz a uma menina
linda, perfeita, hoje com 8 anos.
Como psicoterapeuta, Wanya Cançado garante não sofrer qualquer discriminação por parte dos clientes “normais”. Mas ela já tratou de alguns casos de pacientes com
deficiências físicas, que a procuravam, principalmente, por não se adaptarem ao meio social
— Na verdade, não queremos que a sociedade nos aceite: nós é que a aceitamos. Meu maior objetivo com os pacientes diferentes era torná-los integrados a eles
mesmos, cientes de suas potencialidades e incapacidades, para depois integrá-los ao meio ambiente. Porque não existe ninguém, nem os ditos perfeitos fisicamente, que
consiga viver em sociedade sem gostar de si mesmo.
Página 5
131
Totalmente cego desde os 35 anos de idade, o professor Azis Simão, titular de Sociologia da Universidade de São Paulo, lembra que “uma coisa é ser deficiente, outra é
ter uma deficiência”. Para ele, deficiente é também o astrônomo, que precisa de instrumentos para realizar o seu trabalho.
Somos todos deficientes.
Contém retrato em preto e branco do professor Azis Simão, de perfil, segurando uma cigarrilha entre os lábios.
Não adianta insistir. O professor Azis Simão, titular de sociologia da USP, não irá dizer uma só palavra a respeito da sua experiência como deficiente visual. Uma
porque, como este é o ano dos deficientes, ele acha que poderiam pensar que estaria se aproveitando da promoção da ONU, para fazer sua própria promoção pessoal.
Mas o motivo principal, ele revela entre dois sorrisos francamente maliciosos:
— Uma coisa é ser deficiente, outra é ter uma deficiência. Há diferenças, percebe? Deficiente também é o astrônomo que precisa de instrumentos. Então, todos, de uma
forma ou de outra, são deficientes.
Mesmo assim, numa conversa mais informal, ele poderá fazer pequenas confidências. Aí ele dirá, por exemplo, que seu problema – o tipo de problema, isso ninguém
consegue arrancar dele – começou quando ele tinha por volta de seus 25 anos. Depois, durante dez anos, mesmo com o problema das vistas, pode andar sem precisar da
ajuda de outras pessoas. No fim deste tempo ficou totalmente cego:
— Ora, mas aí eu já estava intelectualmente desenvolvido. Com um lugar na sociedade. Quanto ao Ano Internacional do Deficiente, acho uma iniciativa interessante na
medida em que possa conscientizar a população, principalmente de países subdesenvolvidos, para o deficiente. E fazer com que essa população veja, nele, um cidadão
comum com direitos iguais de participar de coisas como produção e renda.
A uniformidade e os preconceitos.
Ex-chefe do departamento de Ciências Sociais, os alunos mais antigos do professor Azis contam dele histórias a respeito de sua incrível memória. É comum, no meio de
aula, algum aluno fazer-lhe alguma pergunta e não ser logo atendido. Quem não conhece, pode pensar que foi distração do velho professor. Nada disso pois, lá pelas
tantas, e isso depois que o aluno até esqueceu da pergunta, ele virá com uma resposta perfeita, detalhada. E ainda dirá o nome do aluno que fez a pergunta.
— Acontece que hoje é de reconhecimento geral que a questão das chamadas “pessoas deficientes” deve ser tratada considerados os dois aspectos solidários da vida de
qualquer pessoa: o social e o individual. A especificidade dessas “pessoas deficientes”, não lhes retira os fundamentos da condição humana comuns a todos, nem os
reduz a uma categoria uniforme, mesmo quando portadores de igual deficiência. E aí é que está o problema, pois a abstração daquela condição comum e a aceitação da
idéia e uniformidade acarreta as variadas formas de preconceitos que sofrem.
Essas coisas, bem que o professor – atualmente, ele é presidente da Comissão de Pós Graduação da Faculdade de Filosofia – gostaria de estar dizendo de uma outra
maneira: “por escrito”, como fazia há um bom tempo. Bem, mas isso foi quando ele ainda colaborava para os jornais. Alguns já extintos, como “A Platéia” ou “A
Hora”.
Além daqueles artigos em jornais, o professor Azis também publicou em 1966, o livro “Sindicato e Estado”, cuja segunda edição está no prelo.
— Além disso, as tecnologias especiais vêm, cada dia mais, fornecendo valiosos recursos materiais, educacionais e psicológicos para a adequação a que nos referimos.
Contudo, é chocante o atraso social quanto às possibilidades de acesso a tais recursos, o que é reconhecido pela própria inst ituição do Ano Internacional das Pessoas
Deficientes.
Uma sala de aula para deficientes
Agora, se alguém quiser fazer o professor feliz da vida, pergunte-lhe a quantas anda o projeto para a implantação de uma sala de aula, na USP, especialmente para os
alunos deficientes visuais. Verdade que esse projeto – que, por sinal, já está concluído, pois a sala poderá ser entregue já neste primeiro semestre – foi coordenado por
Victor Ivan Toro, diretor da Divisão de Promoção Social da Coseas – Coordenadoria da Saúde e Assistência Social da escola. Mas o professor Azis foi um dos seus
maiores incentivadores:
— Imagine uma sala de aula só para deficientes...
Uma sala muito especial, inteiramente adaptada aos alunos. Os móveis, por exemplo, não têm bordas com ângulos agudos, alguns são mesmo fixos na parede. Haverá
locais para gravações de aulas, um outro só para audição. E tudo partiu de sugestões dos próprios alunos, que, isso em 1976, reclamaram do despreparo da USP para
recebê-los. Onde, afinal, estavam as salas, o material didático adequado? Mas o assunto deste espaço é outro. Mas abrangente. E o professor reata o fio de sua conversa:
— Certamente, os deficientes visuais não representam a única área da sociedade em que se observam discriminações de categoria e dificuldades na participação nos
bens materiais e culturais.
Para o professor, isso coloca a questão dos deficientes menos privilegiados, economicamente, “como um caso particular de uma situação geral”:
— Suas limitações pessoais são agravadas por sua situação de classe social. Daí, suas reivindicações deverem ser entendidas não como pedidos de vítimas do destino,
mas como reclamação de cidadãos que têm o direito de participar da produção e da renda.
E de quem deve partir a iniciativa do reconhecimento dos deficientes como cidadãos comuns?
— O próprio Estado deve reconhecê-los assim, limpando as leis, regulamentos, praxes de disposição e efeitos marginalizantes. Em segundo lugar, é preciso que a
questão seja tratada seriamente nos planos e orçamentos, globais ou setoriais. Sem isso, o Ano Internacional das Pessoas Deficientes poderá terminar com ínfimos
resultados: reuniões de especialistas, projetos arquivados, programas sentimentais na TV e construção de algumas rampas.
Neste caso, conclui o professor Azis Simão, poderá haver a repetição do que aconteceu no Ano Internacional da Criança:
— Muito barulho que, no fim, deu em nada.
(Entrevista a José Paulo Borges)
Cego desde os 15 anos, Roberto Isnard é hoje um bem sucedido profissional na área de telecomunicações.
O radioamadorismo fez a fama de Roberto
Quando os russos soltaram seu primeiro Sputinik, ele entrou em contato com um colega em Leningrado e conseguiu matérias, para jornalistas amigos seus, com tantas
informações que um jornal paulista parou suas máquinas para mudar a primeira página. Quando a primeira mulher foi colocada numa nave espacial, também foi graças
à sua ajuda que os brasileiros puderam acompanhar o assunto.
Hoje, Roberto Isnard, aos 54 anos, não se considera mais um homem do radioamadorismo, mas das telecomunicações. Mas ele ainda opera seu equipamento na faixa
PY todas as manhãs, antes de ir ao trabalho e, às vezes, à noite depois do jantar. Ficou popular como radioamador, atividade que desenvolve desde 1954, quando a
tecnologia era bastante precária.
Gravando os discursos de Carlos Lacerda
Há 7 anos, Isnard trabalha como Diretor de Relações Públicas da GTE, uma empresa de telecomunicações. E assessora o governo do Estado na área há muitos anos. Em
60 foi parar no Palácio do Governo pelas mãos de Carvalho Pinto. O equipamento de comunicações do Palácio era muito obsoleto, só a partir de 67/68 as microondas
passaram a ser utilizadas. Mesmo assim, ele comenta, sem deixar transparecer orgulho ou arrependimento, que ajudou o movimento de 64:
— Fiz parte da equipe de radioamadores. O Jango tinha cortado as comunicações, então o Lacerda discursava, eu gravava e passava para as rádios.
O entusiasmo era tanto que Isnard foi conhecer Lacerda no aeroporto de Congonhas depois do episódio de 31 de março. E foi convidado para almoçar com Júlio de
Mesquita e Carlos Lacerda. No dia seguinte a fotos dos três estava nos jornais. Assim, Isnard foi despedido por Adhemar de Barros, que justificou a demissão por Isnard
ser “amigo dos meus inimigos”. Mais tarde, com Abreu Sodré, voltou ao Palácio Bandeirantes e criou um centro de comunicações com um conselho composto só de
engenheiros de telecomunicações, excluindo-se a si mesmo.
Na época já se queria dedicar mais exclusivamente ao trabalho de Relações Públicas na Ultragás. E já não tinha tempo paras seu “hobby”. Antes tinha um escritório
particular e podia dispor do tempo que quisesse para se comunicar com o Brasil todo e com o resto do mundo. E como gosta de frisar, já não havia tanta necessidade de
radioamadores para salvamentos ou socorros ou para veicular informações.
Roberto Isnard é casado com dona Luiza, especialista em educação de excepcionais, responsável pela criação do Serviço Especial criado no governo Natel, que entrou
em funcionamento no governo Sodré. Isnard diz que dona Luiza sempre defendeu a educação de excepcionais junto a crianças normais. Para o casal, a excepcionalidade
ou a deficiência física não podem impedir a participação do indivíduo na sociedade. E é claro que ambos encaram com a maior naturalidade a cegueira de Isnard.
Quando terminava o ginásio Mackenzie, em 41, ele foi vítima de uma infecção que atingiu o nervo ótico. A medicina ainda não conhecia o antibiótico e Isnard ficou
cego.
— É preciso que se encare o seguinte problema: não considerar o deficiente que atingiu tal posição, mas sim uma pessoa em tal posição que tem deficiência. Cada
indivíduo dentro da sua profissão desenvolve sua capacidade de trabalho ou não, independente de uma deficiência física. Acho que cabe a mim ter uma conduta, comigo
mesmo, de respeito.
“É preciso ter mais senso de dignidade”
Roberto Isnard garante que nunca ninguém colocou obstáculos ao seu trabalho por ele não enxergar. Ele se coloca como profissional competente, não se deixou
estereotipar:
— O indivíduo deficiente precisa ter mais senso de dignidade. Tem que deixar de vender o estereótipo. É preciso se respeitar para que os outros te respeitem. Cabe a
cada um vencer suas próprias deficiências. Sei que há umas bem mais pesadas, como as dos deficientes mentais. E é claro que eu não podia ser piloto de avião.
Isnard ri muito da própria observação, é bem-humorado e, evidentemente, se expressa facilmente. Em seu trabalho viaja para vários Estados, conversa com a área
ministerial, faz tudo sozinho. Só para ir e voltar ao trabalho é que precisa da carona de um colega. E pode sempre contar com a boa vontade de dona Luiza caso precise
de transporte. Isnard diz que no seu trabalho dentro da empresa e nas viagens jamais alguém perguntou se a falta de visão o atrapalha. Se atrapalha, ninguém percebe.
— Não é o mundo que tem problemas com o excepcional. É ele que tem com a sua excepcionalidade. Essas obras de assistência social entraram por um caminho errado
de supervalorização da deficiência. Essa campanha da tevê que, ouvi, parece mais preocupada em explorar a excepcionalidade, como sobras sociais, do que em
melhorar a vida dos deficientes.
Isnard conta que outro dia, um casal amigo estava vendo televisão com a filha pequena. Quando mostraram uma criança cega numa classe escolar normal, o casal achou
magnífico. A criança teve uma atitude muito mais saudável que seus pais. Estranhou os comentários. Simplesmente achou aquilo supernormal. É por coisas como essa,
que Isnard, com toda razão, debate contra a supervalorização das deficiências. Na empresa onde trabalha, por exemplo, ele não é o único empregado que apresenta
deficiência. Na fábrica há cegos e surdos na linha de montagem de telefones. E eles trabalham tão bem quanto os outros. Diante dessa constatação, Roberto Isnard
repete o que acha fundamental para um deficiente?
— Respeitar-se, ter senso de dignidade, não se deixar explorar, se estereotipar.
Ele conseguiu isso. É um profissional gabaritado que tem deficiência de visão. E não um cego que – nossa! – chegou a diretor de uma empresa.
Página 6
132
Um deputado em cadeira de rodas.
O deputado Thales Ramalho (PMDB-PE) é um dos quatro parlamentares com deficiência física do Congresso Nacional. Contudo, mais do que qualquer outro, Thales,
desde que se tornou paraplégico há oito anos, vem usando a tribuna em defesa dos 12 milhões de deficientes existentes no Brasil. Em 1978, ele propôs e conseguiu
aprovar a emenda constitucional n. 12, assegurando direitos a esta minoria. Neste depoimento ao correspondente José do Patrocínio, em Recife, Thales Ramalho fala do
problema da deficiência física no País
Contém duas fotos de Thales Ramalho, em preto e branco. Uma no formato de retrato; e a outra, sentado na cadeira de rodas, cumprimentando o Presidente João
Figueiredo, com legenda: “Na abertura do Ano Internacional do Deficiente Físico, Thales encontrou-se com Figueiredo”.
“Eu me elegi pela primeira vez deputado federal em 66, mas tomei posse em 1967. E foram anos difíceis porque logo em 68 veio a decretação do Ato n.5, o Congresso
foi posto em recesso e ficou fechado durante longos meses. E ele só reabriu, realmente, em 70, que era um ano eleitoral. Então, eu me candidatei a outro mandato e fui
reeleito. Precisamente em abril de 71 fui eleito secretário do então MDB, encontrando um partido destroçado pelas cassações, pelas violências. Basta dizer que nos
4.000 municípios brasileiros o parido tinha diretório municipal somente em quinhentos e poucos. E não tinha sequer diretório regional em Goiás, no Mato Grosso e nos
territórios. E foi uma luta imensa que o deputado Ulisses Guimarães e eu empreendemos, então, para levantar o partido. Fizemos juntos muitas viagens pelo País
percorrendo território, Estado por Estado.
Foi exatamente em abril de 72, um ano após minha eleição para a secretaria geral do partido, que tive um acidente vascular cerebral – uma trombose – que me tornou
hemiplégico, totalmente paralisado do lado esquerdo. E foi, então, que conheci esse universo formidável, fantástico mas completamente ignorado, que é universo do
deficiente. É um universo mesmo, inclusive pela sua amplitude porque pelas estatísticas mais responsáveis, como da Organização Mundial da Saúde, temos no Brasil
cerca de 20 milhões de deficientes.
A descoberta de um outro universo.
Foi quando passei a conviver com deficientes tanto aqui como no Exterior, que comecei a me sensibilizar, primeiro, pela própria necessidade da minha reabilitação e,
depois, pelo impacto que sofri, pois até então, eu como milhões de brasileiros hoje, não tinha noção do que é esse mundo dos deficientes. Os deficientes no Brasil vivem
segregados, principalmente pelas barreiras físicas que o cercam, mas também pela falta de assistência e pelo preconceito.
Fiquei quatro meses afastado da minha atividade parlamentar e da minha atividade partidária. Fui para uma cadeira de rodas, levantei-me e continuei minha atividade
parlamentar sem limitação nenhuma. E continuei assim até que, em 76, sofri um acidente que atingiu exatamente o lado perfeito, a perna direita, que era a minha perna
de sustentação. Ela foi arrebentada, fraturada onze vezes além de um esmagamento do fêmur, que me levou mais tarde, em 79, a fazer uma substituição do quadril.
Hoje, tenho um quadril de acrílico e metal, portanto sou meio biônico.
Eu gostaria de ressaltar que em nenhum instante deixei de exercer a minha atividade parlamentar e partidária, os compromissos e até a minha atividade social. Enfim,
nunca me senti homem incapacitado para exercer as minhas atividades por causa das minhas limitações físicas
O deficiente e a Constituição.
Na verdade, a própria limitação da locomoção, leva o homem a repensar tudo. No meu caso, foi exatamente a partir de 1972, trabalhei mais e me senti mais útil no
exercício do meu mandato, inclusive com relação à própria problemática do deficiente brasileiro. Não existia no Brasil, até 1978, nenhuma lei, nenhuma preocupação
oficial com relação ao deficiente em geral, não somente ao deficiente físico, mas ao mental, aos hansenianos, por conviver com os deficientes, eu me comprometi
comigo mesmo a me lançar de corpo e alma na defesa dos direitos dos deficientes.
Foi então que idealizei e concretizei uma emenda à Constituição, assegurando os direitos constitucionais aos deficientes brasileiros. O Brasil é o sexto país do mundo a
inscrever no seu texto constitucional direito às pessoas portadoras de deficiências. Apenas as Constituições mais modernas, da Espanha, Portugal, Alemanha Ocidental,
Suécia e Noruega possuem similares. Mas em países como Inglaterra e Estados Unidos existem leis amplas de proteção aos deficientes.
A Emenda n.12 hoje incorporada ao texto da Constituição Brasileira, assegura os seguintes direitos: 1º educação gratuita para a criança defeituosa. 2º - o direito de
reabilitação, de reinserção no processo político, econômico e social do País. 3º - proíbe a discriminação com relação ao trabalho, à admissão no serviço público. 4 – o
direito de acesso a qualquer lugar que é o direito que qualquer cidadão tem, sem que seja impedido – como nós os deficientes somos – pelas barreiras físicas são as
piores e maiores do que as barreiras do preconceito, as barreiras sociais.
Nós vivemos num mundo de granito. Brasília é uma cidade construída contra o deficiente, contra o velho, contra a criança. Não há degraus mais altos do que os das
escadarias de Brasília. Os edifícios são cheios de campos, verdadeiros precipícios. Enfim, cito Brasília porque é uma cidade nova, com 21 anos, planejada, construída
para ser adaptada ao terceiro milênio. No entanto, Brasília talvez seja, das cidades brasileiras, a mais cruel para os deficientes.
Um novo homem com a deficiência.
Considero o deputado Thales Ramalho depois do acidente muito mais atuante, mais voltado para a utilidade política e social do seu mandato e até mais amadurecido
para a compreensão dos problemas do mundo. Na verdade, o deputado Thales Ramalho de minha simpatia pessoal é o deputado Thales Ramalho deficiente físico.
Na verdade, procuro demonstrar que a deficiência não é fator limitativo, nem impeditivo para qualquer tipo de atividade. Eu poderia citar várias pessoas portadoras de
deficiências física, que são pessoas que têm a maior projeção em setores da vida nacional. Por exemplo, Roberto Carlos que já era deficiente quando começou a carreira
artística. O Wilson Martins, autor de uma das obras mais sérias publicadas neste País, “A História da Inteligência Brasileira”.
O próprio ministro Golbery do Couto e Silva, que é deficiente visual. Ele tem apenas um olho e por esse olho tem visto o Brasil da maneira muito aguda e lúcida. E uma
infinidade de outras pessoas.
Enfim, o que queremos é a concretização dos direitos essenciais. À vida do deficiente, é regulamentar essa emenda Constitucional, e, através da legislação ordinária,
ampliar as pequenas conquistas que nós já fizemos. Essa é a nossa luta e é uma luta que só poderá ter êxito se a comunidade brasileira for conscientizada do problema.
O Ano Internacional do Deficiente foi instituído para isso, para chamar a atenção para esse tipo de problemas que, no caso brasileiro, atinge mais de 10% da população,
são 20 milhões de deficientes.”
Página 7
133
[Páginas centrais do Folhetim]
Ilustração colorida de um homem de muletas atravessando rua com circulação de carros. Assina Grilo 81.
O Núcleo de Integração de Deficientes quer mudar a imagem do deficiente e recusa protecionismos
“Nem coitadinhos nem super-heróis”, por Cristina Mucci.
Em São Paulo, um grupo de deficientes físicos se une para lutar contra o preconceito e o paternalismo. “Nem coitadinho nem super-herói.” Este é o lema do NID –
Núcleo de Integração de Deficientes – criado no ano de 80 com o objetivo de “promover a integração social da pessoa deficiente e desenvolver o respeito às suas
capacidade e dificuldades”.
Sem estatutos ou hierarquia “para não atrapalhar o bom funcionamento do grupo”, diferente de muitas outras entidades do gênero na sua concepção, o NID não presta
serviços de atendimento em reabilitação física ou profissional, não funciona como agência de emprego, nem angaria fundos para a compra de distribuição e aparelhos
ortopédicos, por exemplo.
“Nosso trabalho, diz Ana Maria Morales Crespo, a Lia, coordenadora do NID, é conscientizar a comunidade e os próprios deficientes sobre os direitos que temos
enquanto cidadãos e enquanto pessoas. É divulgar esses direitos, lutar por eles e denunciar a discriminação e o preconceito com que a sociedade sempre tratou seus
deficientes.”
E quais são esses direitos? “Direito a uma reabilitação decente, à educação, ao trabalho, direito de acesso aos lugares públicos através da construção de calçadas
rebaixadas, de rampas ao invés de escadas, e portas largas o suficiente para permitirem a passagem de uma cadeira de rodas. Direito às garantias mínimas que todo
cidadão deve ter. Afinal, apesar da sociedade e da maioria dos deficientes não estarem conscientes disso, nós somos cidadãos. Doze milhões deles, segundo estimativas
da ONU para o Brasil. Dois milhões, só no Estado de São Paulo.”
O peralta saci, um símbolo.
Para lutar por seus objetivos o NID publica um jornalzinho, “O Saci”, personagem escolhido por ser negro e perneta, que “se não fosse lenda faria parte do bloco dos
discriminados”; é umas das 12 entidades que fazem parte do Movimento pelos Direitos das Pessoas Deficientes do Estado de São Paulo e “sai a campo” sempre que
necessário.
Do ano passado para cá, várias vezes os membros do NID recorreram à seção de cartas dos jornais para protestar, fazer denúncias, como no caso do Dr. Sabin e a
questão da erradicação da pólio no Brasil. “Estas cartas – conta Ana Maria – motivaram as pessoas interessadas e a imprensa a nos procurar.”
As pessoas do NID são na sua maioria deficientes, o que não as impede de ir às ruas, aos lugares públicos para divulgar o Movimento. “No ano passado – diz Ana Rita
de Paula, membro do NID –, estivemos na Bienal do Livro para distribuir nossos folhetos e jornais. Chamamos muito a atenção porque as pessoas não estão
acostumadas a ver deficientes nas ruas ou em lugares públicos como qualquer ser humano normal, e aí está a raiz do preconceito: a comunidade não reconhece seus
deficientes, não convive com eles.”
E o que o NID quer afirmar é que a pessoa deficiente pode levar uma vida normal, desde que respeitadas as suas limitações. Mas as barreiras são muitas, a começar pela
atitude de vergonha, constrangimento e pena com que a comunidade e a família têm para com eles. “A televisão, diz Ana Maria, que é um meio de comunicação tão
poderoso, ao invés de nos ajudar a desfazer estereótipos e preconceitos, só tem mostrado a incapacidade, o lado ruim das deficiências.” E cita uma novela da Globo,
“Chega Mais”, onde uma das personagens, uma ex-guerrilheira e ex-paraplégica, dizia para seu parceiro romântico, Toni Ramos: “Você estava habituado a me ver como
uma pessoas reduzida a uma cama. Agora você me vê como uma mulher.”
Uma campanha mal recebida.
Nem a campanha da Globo para o Ano Internacional das Pessoas Deficientes escapa às críticas do NID. “Nós ficamos muito animados quando Da. Virgínia Cavalcanti,
responsável pela campanha, nos pediu para darmos sugestões, para assessorá-la aqui em São Paulo – conta Ana Maria. Ela chegou a afirmar que os deficientes dariam o
tom da campanha para o Ano Internacional. A partir de um pré-roteiro fornecido pela Globo, fizemos correções, sugerimos cenas mostrando coisas cotidianas na vida
do deficiente, sem passar a imagem de coitadinho. Nas discussões ela se mostrou aberta mas na hora de fazer a campanha nada foi considerado e o resultado está aí.”
“Nós achamos que uma campanha – continua Ana Maria – deve mostrar os problemas, as dificuldades, mas principalmente mobilizar a comunidade para resolvê-los,
apontar as soluções. E isto a campanha não fez. Ela não convoca as pessoas a lutarem contra as barreiras para os deficientes. Funciona na base do coitadinho, mostrando
o deficiente quase sempre isolado, a tristeza de ter um deficiente na família, o pavor de ter um filho deficiente, como se a prevenção dependesse exclusiva e
principalmente da mãe. Alguns filmes “afirmam” que o deficiente pode ser integrado, mas o tom que permeia toda a campanha é: ser deficiente é horrível. Como lidar
com duas idéias tão incompatíveis?”
O pessoal do NID acha que se o tema principal do Ano é “Participação Plena e Igualdade”, todas as campanhas deveriam enfatizar os direitos à integração, motivar a
comunidade para lutar por isso.
O NID não quer leis protecionistas.
“Que empresa acredita na capacidade de trabalho de um deficiente? Pergunta Ana Rita de Paula. “Para começar o deficiente não consegue nem se candidatar. Quando
isto acontece e ele passa na seleção é fatal que perca o lugar para uma pessoa com a mesma capacidade, mas sem qualquer defeito físico. O empregador só dá trabalho a
um deficiente para pagar um salário menor – que ele aceita por uma questão de sobrevivência e por acreditar que está recebendo um favor – ou quando o deficiente se
mostra superempregado, exigindo-se dele um superdesempenho”.
Para o NID, exigir superdesempenho também é discriminação, como é discriminação existirem leis especiais para os deficientes.
No Brasil não há uma legislação especial para os deficientes, “mas tem de boa vontade, só que com uma visão nada clara dos problemas querendo impor, por exemplo,
que as empresas dêem trabalho a um número “x” de deficientes só porque são deficientes”.
“Nossa luta – diz Ana Maria Morales – é que as leis garantam os direitos que são de todo mundo, como acesso a lugares públicos, punição aos empregadores que não
empregarem deficientes porque são deficientes, como não empregar um negro porque é negro. E antes de se pensar em leis, tão burladas no Brasil, o fundamental é
conscientizar a comunidade.
Leis impostas de cima para baixo, surgidas aleatoriamente têm efeitos duvidosos. Qualquer lei, para ser cumprida, deve ser conseqüência da luta, de uma necessidade
real.”
As barreiras arquitetônicas.
Um dos principais problemas do deficiente que mora na cidade é conseguir sair de casa. As barreiras são muitas e quase instransponíveis. “uma rampa – explica Ana
Maria – pode ajudar uma pessoa que anda em cadeira de rodas e não atrapalha ninguém. Um corrimão é fundamental numa escada, para quem usa muletas e também
não atrapalha ninguém. Mas as cidades foram feitas para as pessoas normais.
“O Código de Obras, continua, jamais deveria aprovar plantas de edifícios públicos que não possibilitassem o acesso aos deficientes. Alguns deputados, depois de uma
reunião que tivemos com eles na Assembléia Legislativa, elaboraram um projeto, que deve ser discutido e votado este ano, para tornar “a casa do povo” um modelo de
lugar acessível aos deficientes”.
Os membros do NID sabem que a luta contra as barreiras arquitetônicas vai levar muito tempo, mas já começaram, com auxílio de uma arquiteta, a fazer um
levantamento dos locais de lazer (teatro, cinema, museus, parque, etc) em São Paulo que são mais acessíveis às pessoas deficientes.
Ano Internacional, mais um engodo?
O Ano Internacional das Pessoas Deficientes foi instituído pela ONU, por sugestão da Líbia e seu tema principal é “Participação Plena e Igualdade”. A ONU
estabeleceu que as pessoas deficientes deveriam ser consultadas e participar ativamente na organização das atividade do Ano, como membros das Comissões Nacionais
de cada país. Segundo os membros do NID, no Brasil isto não está acontecendo. “Como sempre, as decisões são tomadas a nível de cúpula.”
Nomeados pelo presidente da República, fazem parte da Comissão Nacional, vários membros dos Ministérios e a presidente é uma “prima do Figueiredo”, Helena
Bandeira de Figueiredo.
Subcomissões estavam previstas para funcionar como suporte da Comissão Nacional onde os deficientes teriam ampla participação. “Na verdade – reclama Ana Maria
Morales, que oficiosamente faz parte de uma dessas subcomissões –, elas não estão trabalhando e a Comissão Nacional tem se reunido sem a participação destas
pessoas. A presidente alega que não recebeu oficialmente nossa indicação e tudo continua como está. Até agora não fui apresentado para ninguém um plano de trabalho.
Por isso não sabemos o que o governo está preparando para o Ano Internacional
“Os deficientes não estão sendo consultados em nenhuma instância – acrescenta Ana Rita de Paula –, por mais que a Presidente afirme demagogicamente e o contrário.
A Comissão Nacional tem, também, uma verba de Cr$ 50 milhões para distribuir entre as entidades ligadas aos deficientes. Temos sérias dúvidas quanto ao uso deste
dinheiro. Quem será os beneficiados? Aqueles que contarem com as boas graças dos membros da Comissão Nacional.
Se a atitude da Comissão prevalecer, o NID não acredita que o Ano Internacional vá trazer algum benefício aos deficientes, “como o Ano Internacional da Criança que
nada trouxe de positivo para os principais interessados. “Temos esperança que o Ano Internacional das Pessoas Deficientes – conclui Ana Maria Morales –, seja um
ponto de partida para que os deficientes ampliem seu movimento e desenvolvam um trabalho, independente de se contar com apoio oficial.”
Para Ivan Ferraretto, da AACD, a luta pela integração é triste e difícil
A batalha do moinho de vento, por Regina Nascimento.
A pergunta que se faz no Ano Internacional do Deficiente é: quem é realmente o deficiente: o indivíduo portador de anomalia física, mental ou a família e a sociedade
que o cercam?
134
No Brasil, segundo a Organização Mundial da Saúde, vivem cerca de 20 milhões de deficientes, representando um grave problema social. A grande maioria é
marginalizada, confinada em seus próprios lares ou nas poucas instituições beneficentes criadas, especialmente, para atendê-los. Entidades formadas por princípios
religiosos como a Casa da Criança André Luís, que congrega uma população de 828 deficientes, todos excepcionais, com problemas de locomoção e coordenação
motora e a Associação de Assistência à Criança Defeituosa, fundada pelo médico Renato Bonfim, falecido, com o intuito de tratar, reabilitar e educar o deficiente físico.
A medicina tem se desenvolvido muito nestes últimos anos, procurando melhorar as condições físicas e psicológicas do deficiente, tornando-o capaz, sempre que o caso
não vá a extremos, de se autoprovir e desta forma integrar-se na sociedade. Mas é neste ponto que todos os esforços médicos esbarram e revoltam. Como integrar o
deficiente se não há uma infra-estrutura econômica, cultura e educacional?
Para Ivan Ferrareto, diretor clínico e cirurgião chefe da Associação de Assistência à Criança Defeituosa (AACD) e convidado oficial do Ministério da Saúde do gabinete
do presidente Ronald Reagan para representar a América do Sul no Simpósio organizado pelo Instituto Nacional de Pesquisas em Reabilitação, o maior evento do Ano
Internacional da Pessoa Deficiente, esta é uma pergunta fácil de responder, mas de difícil solução.
“Reabilitar e integrar o deficiente é um dos problemas mais graves com que nos defrontamos. O deficiente só será integrado após um esforço sobre-humano dele
próprio, se tiver sorte de encontrar um lugar que o aceite, porque ele não pode contar com o apoio dos órgãos públicos ou da sociedade.”
“Hoje – afirma Ferraretto – conseguimos corrigir deformidades. Posso dizer sem medo que já conseguimos reabilitar o deficiente físico, a ponto de em muitos casos
colocá-lo novamente de pé, andando. Contudo, a maior dificuldade em integrar o deficiente é cultural. A parte educacional fica relegada a segundo plano. Geralmente é
entregue a entidades como a nossa e estas não têm condições de atender à imensa população de deficientes que as procuram. Lutamos com muitas dificuldades e o
auxílio que recebemos do governo é mínimo.”
A AACD foi fundada em 1950, com a finalidade de auxiliar e reabilitar o deficiente físico. Atualmente, possui 600 pacientes, interno e externos, com uma equipe de
mais de 300 funcionários especializados. Ministra cursos anuais de nível internacional para a formação de técnicos em aparelhos ortopédicos. O curso dura seis meses e
já formou técnicos vindos da África, Ásia, Europa e América. Os aparelhos fabricados na AACD são exportados para o Vietnã, América do Sul e Líbano. O dinheiro
arrecadado é investido na própria AACD, entidade particular sem fins lucrativos. O paciente paga de acordo com suas possibilidades ou, em vários, casos, não paga
nada.
“É triste diz Dr. Ferraretto ver o sacrifício do deficiente e saber que está lutando contra moinhos de vento. O deficiente compete em condições de inferioridade, não
porque seu potencial intelectual seja menor, mas porque foi-lhe negada a educação. De, modo geral, ele vem de camadas socais sem os mínimos recursos econômicos.
Ele precisa de escolas especiais e as poucas existentes são caras. E sem apoio da família, sem o transporte para se locomover como estudar?”
“O deficiente precisa de sua própria legislação”
Ferraretto diz que “há casos de deficiente tão graves que não tem capacidade para trabalhar em indústrias comuns. Para eles, criou-se oficinas abrigadas, que funcionam
em regime de contratos entre a entidade e a firma que oferece o serviço. O governo ainda não provê o esteio deste tipo de oficina e os gastos são muitos grandes. Além
disso, elas não oferecem ao deficiente nenhuma garantia trabalhista, já que ele trabalha sem carteira profissional”
Por tudo isto é preciso que neste Ano Internacional do Deficiente não fiquemos preocupados em organizar festinhas, mas juntemos nossos esforços por uma legislação,
que regule o que está na Constituição em defesa do deficiente, observa Ferraretto.
“Já foi encaminhado um projeto ao presidente João Figueiredo. A gente não pode ficar parado ou só desfrutando os donativos. Não podemos esperar que o patrão diga:
“Vou ajudar o Brasil e vou proteger esse deficiente.” O patrão só se deixa comover, quando se mexe em seu bolso e se criarmos uma legislação adequada, que lhe traga
vantagens, sem dúvida, ele utilizará mais serviços do deficiente. É preciso que o próprio deficiente e todos os que trabalham por ele se unam com um único ideal:
melhores condições de vida para o deficiente. Gostaria de receber suas adesões para que, inclusive, possa representá-los bem nos Estados Unidos”.
A psicóloga Eidemara Fadini Tavares, da AACD, lembra que “se o deficiente vítima de um acidente ou traumatismo ficar em casa sem trabalhar será um homem
acabado, complexado, desesperado e provocará atritos em família.”
Segundo ela, é muito difícil conseguir com que a pessoa aceite sua deficiência física após o acidente. “O trabalho de reabilitação, tanto psicológico como físico
despende muitos gastos, esforços e energia do paciente e de quem trabalha com ele. É preciso muita força de vontade e tempo para que o paciente comece a aceitar sua
nova condição de vida e a se interessar por outra atividade diferente da anterior.”
“O centro de reabilitação propicia tudo isto, mas como o deficiente vai se sustentar – pergunta o Dr. Ferreretto – se o Inamps simplesmente o aposenta com 70% do
salário que recebia e não providencia os demais recursos de reabilitação? Temos em nossa instituição centenas de aposentados pelo Inamps. Ora, um paciente
paraplégico custa à associação cerca de 200 mil cruzeiros por mês. Quem vai pagar isto? O Inamps não paga. O doente não pode. Conclusão: acabamos financiando a
entidade mais rica da Nação. E o último donativo que recebemos desse órgão foi de 50 mil cruzeiros há dois anos. Há três, lutamos para conseguir credenciamento do
Inamps, mas não entendo por que, ainda, não recebemos.”
Neste Ano Internacional do Deficiente, diz Dr. Ferraretto, “É preciso que o governo se conscientize do problema do deficiente, que não marche com os países
desenvolvidos apenas na implantação de usinas nucleares, mas que siga as outras nações no programa de reabilitação do deficiente”.
Amor, carinho, trabalho
Na Casa André Luis, os três itens da integração.
O Nosso Lar – Casa da Criança André Luis foi fundada em 1949 e funciona em Guarulhos. 40% de seus recursos vêm da verba de convênios com o Estado e recebe
crianças da Febem e da Coordenadoria de Saúde Mental. Os outros 60% provém dos associados, donativos em espécie, doações em dinheiro, roupas. Não aceita nada
dos pais das crianças internadas, nem mesmo trabalho para não dar idéia de paga em serviço. Possui atualmente 828 internos, tendo uma pajem para cada seis crianças.
A filosofia da Casa André Luis é a reabilitação da criança, mesmo que seu cão seja tão grave, que esta não ultrapasse em 0,1% sua melhora. As crianças da Casa André
Luis são, geralmente, muito pobres e o seu nível de excepcionalidade é grande. Segundo seu administrador, a Casa André Luis foi formada por um grupo de espíritas,
sob orientação dos próprios espíritos, tendo mais tarde apoio de Chico Xavier, que achou muito boa a idéia de se cuidar de crianças com deficiências múltiplas.
Ainda jovem, bonita, a médica Emilia Polverine, diretora clínica da Casa da Criança André Luis, há sete anos, dedica todo seu tempo às crianças ali internadas. Ela não
tem fins de semana. “Considero estas crianças como meus filhos e olhe que o deficiente mais velho tem 38 anos. Você pode me perguntar por que 38 anos? E a resposta
é muito triste. Pelos estatutos da nossa instituição a criança só deveria estar aqui até os 18 anos, mas como deixá-lo partir se a própria família não o aceita de volta e a
sociedade não lhe oferece condições de vida?”
“A nossa luta aqui no André Luis é muito árida. A maioria de nossas
Páginas 8 e 9
135
crianças apresenta um grau de excepcionalidade muito grande, tanto sensoriais como motoras e muitas delas aparentes, chegando a chocar a pessoa despreparada e que
não está preparada para conviver com eles. Mas eles são criaturas incríveis cheias de amor para dar.
“O problema do deficiente no Brasil é muito grave e no caso dos nossos internos a coisa pode ser catalogada como desesperadora. Só uma vontade muito grande nos faz
continuar e buscar diariamente soluções para a melhor reabilitação e integração destas crianças. Os pais se envergonham de ter um filho deficiente. Ninguém aceita a
idéia. Todos sonham com um filho presidente da República. As crianças são escondidas em casa, sem os mínimos recursos para sua reabilitação, já que a maioria
pertence a um nível sócio-econômico muito baixo, que não tem condições sequer para sua subsistência.”
A Casa André Luis existe porque muitas famílias não têm condições ou não querem assumir o filho excepcional. “É comum casos de pais que, simplesmente,
abandonam e esquecem a idéia de um dia ter tido um filho deficiente. O que a gente nota também é aquele tipo de visita compulsória para descansar a consciência. Tudo
isso é muito deprimente. A gente se sente lesado, sabendo que desde os dois anos trabalhou uma criança, reabilitou-a, aproveitou seus mínimos recursos potenciais e
conseguiu fazer dela um ser capaz de se cuidar sozinho e depois de tanto esforço ninguém o quer. Nossa luta é diária, mas acreditamos que o Ano Internacional da
Pessoa Deficiente conscientize pelo menos a Nação do grande drama que vive o deficiente.”
Respeito e muito amor.
Emília Polverini diz que “é muito difícil, por enquanto, integrar o deficiente na Casa André Luis, pois o atual esquema da Previdência Social não prevê uma ajuda
substancial à criança com defeitos múltiplos”.
— Nossas crianças e adolescentes não precisa, de piedade. Eles precisam de respeito e muito amor. Eles são muito queridos e têm excesso de amor para dar. Quando
saímos para excursões a primeira reação das pessoas é de espanto, receio e curiosidade, mas eles se colocam tão à vontade, sorriem para eles com tanta doçura que em
pouco tempo se integram plenamente. Então, por que ter medo e esconder a criança defeituosa? A solução não estará na maior integração entre deficientes e não
deficientes. O que é comum torna-se natural?
“Mas isto tudo não impede nossa preocupação – firam a médica. – Como criar condições de vida satisfatória para o adulto da Casa André Luis? Como dar-lhes um
futuro tranqüilo se a família e a sociedade não os aceita? Como colocá-los dentro de uma empresa se há falta de empregos para os mais habilitados? A única alternativa
está sendo estudada e posta em prática. Nossa luta é conseguir do governo apoio para a criação de novas oficinas abrigadas, onde nossos internos possam prestar seus
serviços. Paralelo a isto formaremos pensionatos. Ali eles viverão e terão sua liberdade. Nosso deficiente precisa saber que é livre e como tal deve viver livremente.”
“Claro que está longe de ser a solução ideal – diz Emília – mas até agora é a única maneira de dar melhores condições de vida para a criança que nos deu tanto amor e
satisfação. Desta forma também estaremos abrindo mais lugares para tantos outros deficientes, que precisam ser reabilitados.” (R.N.)
Ilustração em preto e branco. Três imagens de uma mesma pessoa em cadeira de rodas, com cartaz de reivindicação na mão: “Nossos Direitos”. (1) Foco sobre a mão
com cartaz; (2) pessoa de corpo inteiro empunhando cartaz; (3) imagem anterior no formato de um selo para emissão de cartas. Assinatura de Fausto.
Com o Movimento pelos Direitos das Pessoas Deficientes, uma minoria de 12 milhões de pessoas começa a agir politicamente.
Agora, a luta política
Nos Estados Unidos, a organização do movimento foi mais fácil, durante os efervescentes anos sessenta. Em um país do Terceiro Mundo, como o Brasil – reconhece
Romeu Kazumi Sassaki –, as barreiras para a participação social dos deficientes são maiores. Mas ainda assim, a semelhança de seus iguais norte-americanos, os
deficientes físicos brasileiros estão dispostos a lutar por seus direitos de cidadania. Afinal, 12 milhões de pessoas formam uma respeitável minoria no País.
Romeu trabalha há 20 anos como consultor em reabilitação de deficientes e faz parte da coordenação do Movimento pelos Direitos das Pessoas Deficientes do Estado
de São Paulo, criando em 1979.
— O Brasil começou a pensar em reabilitação só a partir de 1950. Os poucos centros que existem estão localizados nas grandes cidades e o primeiro obstáculo é chegar
até ela. Quando os deficientes conseguem, ou não são atendidos ou sequer encontram o lugar adequado para o seu caso. Os poucos privilegiados se deparam com um
atendimento quantitativamente insuficiente. As entidades não estão aparelhadas com recursos materiais, financeiros e humanos suficientes para satisfazer às
necessidades individuais da clientela. Faltam pessoas adequadamente treinadas, os salários são baixos, falta know-how. Um centro de reabilitação, para dar um
atendimento global, é um investimento caro, sofisticado, então fica mais fácil, como tem ocorrido aqui ultimamente, a proliferação de clínicas que dão atendimento
isolado (fonoaudiológico, fisioterápico), que são bem mais lucrativas.
“O relacionamento com o cliente dentro dos centros de recuperação é sempre de cima para baixo – reclama Romeu. Ninguém pergunta para ele como gostaria de ser
reabilitado. O cliente é sempre um ser inferior.”
Reabilitação simplificada.
A resposta dos países em desenvolvimento, como México e a África, aos altos custos da reabilitação, tem sido descentralizar os serviços, atendendo aos deficientes na
sua própria região utilizando técnicos e recursos próprios, com a participação ativa do cliente, da família e de setores da comunidade no processo de reabilitação.
É por esta alternativa que o Movimento está lutando e, segundo Romeu, já conseguido a primeira vitória em Ourinhos, no estado de São Paulo, onde foi iniciado um
projeto piloto destinado à reabilitação e integração dos deficientes.
“Porque falar em prevenção de deficiências num país que não tem uma política nacional de saúde é ir um pouco longe demais –, diz Romeu. Só com uma política global
haveria condições de se prevenir deficiências. As causas são tantas e a falta de segurança no trabalho, a subnutrição, a desnutrição, falta de atendimento à gestante, à
infância, não são fatores negligenciáveis.”
A pressão que os deficientes começam a fazer sobre as entidades que os atendem e sobre o Estado é, na opinião de Romeu, a resposta mais eficiente ao descaso com que
foram tratados até agora. (C.M.)
Os endereços do movimento.
As entidades que fazem parte do Movimento pelos Direitos das Pessoas Deficientes são:
Abradef – Associação Brasileira de Deficientes Físicos. Rua Rio Grande, 71, Vila mariana, fone 71-7186 — São Paulo, Capital — Presta assistência ao comerciante
autônomo.
AADF – Associação de Assistência ao Deficiente Físico. Rua José Esteves Mano Filho, 227, CERP 19.900, Ourinhos — São Paulo — Presta atendimento em
reabilitação e colocação profissional.
Aide – Associação de Integração dos Deficientes. Rua Raul Pompéia, 586, fone 65-6739, Pompéia, São Paulo, Capital — Presta serviço em colocação profissional.
Cedris – Centro de Desenvolvimento de Recursos para Integração Social. Av. Bem-te-vi, 89, CEP 04524, São Paulo, Capital — Presta serviço em consultoria e
atendimento de profissionais e entidades que desejem realizar projetos e pesquisas em reabilitação.
CPSP – Clube dos Paraplégicos de São Paulo. Rua Homem da Costa, 44, fone 298-0585, Vila Paiva, CEP 0273, São Paulo, capital — Entidade voltada para a prática de
esportes.
FCD/SP – Fraternidade Cristã dos Doentes e Deficientes, Regional São Paulo. Hospital Matarazzo, quarto 259, AL. Rio Claro, 190, fone 284-5493, bela Vista, CEP
01332, São Paulo, Capital. — Presta vários tipos de assistência aos deficientes.
NID – Núcleo de Integração de Deficientes. Rua Guaipá, 1263, Vila Leopoldina, fones: Dias úteis: 813-1130 — 70-3847 e 263-2624; sábados à partir das 13 horas:
260-3364 e 260-1478;
Sodevibra – Sociedade dos Deficientes Visuais do Brasil. Praça da Sé, 300 — 4º andar s/407 — Centro, fone 34-1053, São Paulo, capital. — Presta serviços aos
ambulantes cegos.
Sorri – Sociedade para Reabilitação e Reintegração do Incapacitado. Rua Bolívia, 663, Bauru — Estado de São Paulo — Centro de Reabilitação.
Unadef – União Nacional dos Deficientes. Av. São João, 324 — 7 — sala 701, fone 223-0755, São Paulo, capital. — Defesa dos vendedores ambulantes.
Profissionalização do paraplégico “A Quinta Roda”. Av. Heitor Penteado, 1739/171. CEP 262-3456, São Paulo, Capital.
Fundação para o Livro do Cego no Brasil. Rua Diogo de faria, 585 — São Paulo, Capital.
Endereço do Movimento pelos Direitos das Pessoas deficientes: Rua Joaquim Antunes, 611/53, fone 284-5493, CEP 05415, São Paulo, Capital.
Página 10
136
Contém foto em preto e branco de homem pintando a lateral de um prédio, com a segurança de uma corda. Legenda: “A Previdência Social só paga a reabilitação em
caso de acidente de trabalho”.
A comunidade tem responsabilidade em relação ao deficiente físico, mesmo que ele não produza
“Estamos falando de gente, não de tijolos”.
Para o professor Doutor Fernando Boccolini, presidente da Sociedade Brasileira de Medicina Física e Reabilitação, “já é hora de deixar de tratar o deficiente físico
como um simples tijolo, uma peça produtiva facilmente substituível, e passarmos a tratá-los como um ser vivo”. Nesta entrevista ao repórter João de Barros, Boccolini
fala de suas experiências, analisa a situação brasileira e diz temer, neste Ano Internacional do Deficiente, “a ação dos políticos que empunha bandeiras coloridas de
esperança em troca de promoção pessoal”.
FOLHETIM – Qual o panorama do deficiente, sua situação, no Brasil?
BUCCOLINI – O panorama geral do deficiente em todo o Brasil não é animador. Na realidade não se tem nenhum dado estatístico correto para se saber, pelo menos
com uma aproximação aceitável o número de deficientes que existem e que precisam ser tratados. Todos os dados que atualmente são fornecidos por jornais, revistas e
outros meios de comunicação e devem ser interpretados com certa cautela, pois não exprimem absolutamente a realidade.
Nas cidades de maior porte, já existem centros de reabilitação, uns mais completos, outros mais rudimentares, que dão uma assistência total, embora às vezes precária,
às pessoas que deles necessitem. São Paulo, que é um gigante, dispõe em sua Capital de grandes Centros de Reabilitação que atendem adultos e crianças. Estes Centros
pertencem a entidades privadas e podem ser citados facilmente: Associação de Assistência à Criança Defeituosa, Lar Escola São Francisco, Santa Casa de Misericórdia
de São Paulo e o Serviço Social da Indústria com três grandes Centros de Reabilitação: Santo André, Ipiranga e Vila Leopoldina. O Hospital das Clínicas da
Universidade de são Paulo mantém um Serviço de Medicina Física. Existem ainda Centros Especializados tais como o da Fundação para o Livro do Cego no Brasil, o
Centro de Reabilitação de Hansenianos e um Centro de Reabilitação para Tuberculosos, parcialmente desativado. Um sem número de pequenos centros particulares
existem que cuidam mais do aspecto físico e não são acessíveis a pessoas desprotegidas.
Destaque especial merecem os centros de reabilitação profissional do INPS existentes em várias capitais do País que se restringem porém a pessoas acidentadas no
trabalho – não trata de incapacidades resultantes de moléstias ou em pessoas que tenham tido acidentes ou moléstias fora do trabalho. Em outros Estados brasileiros, o
panorama não é muito diferente: uns mais outros menos, existem centros que as vezes não são eficientes nem suficientes.
Em outros países do mundo, especialmente aqueles que foram flagelados duramente pelas guerras, o atendimentos a deficientes é muito mais completo e numeroso pois
os governos se viram obrigados a tratar com seriedade e eficiência os veteranos de guerra, a quem os mesmo governos devem assistência.
Utopia brasileira.
FOLHETIM – Qual a imagem que normalmente se faz de um deficiente?
BUCCOLINI – A educação do povo com relação a deficiência física e mesmo mental, não existe entre nós. Para nós, um deficiente é um aleijado sem serventia alguma:
falar em reabilitação de um acidentado com defeito físico, parece utopia em um País cuja mão de obra sobra e é barata. Não se considera o elemento homem como fator
principal e primordial a ser reaproveitado. Lembramos uma máxima usada durante a guerra que “vale muito mais um piloto com um salário relativamente alto do que
um avião muito mais caro, chegando a casa dos milhões de dólares” – um avião se faz em série e a vontade: um piloto experimental é muito mais difícil de se fazer.
Nosso governo até agora não tem tomado nenhuma providência completa e enérgica ou pelo menos eficiente neste campo. Existem leis, existe barulho, mas resultados
mesmo, não se vê em parte alguma. Na verdade, a reabilitação tem servido muito a políticos menos leais que, empunhando bandeiras coloridas de esperança, apenas
buscam sua promoção pessoal para obtenção da simpatia e votos eleitorais do público.
FOLHETIM – O “Ano Internacional das Pessoas Deficientes” pode alterar o quadro?
BUCCOLINI – A atual campanha que se desenvolve com a denominação de “Ano Internacional do Deficiente Físico” é meritória e desejável. Vai chamar a atenção
para os problemas desconhecidos do grande público, que ficará assim sabendo da realidade das coisas – meio caminho andado para se obter cooperação. Serve também
para sensibilizar governos para que ajudem efetivamente na solução ou na ajuda devida aos deficientes. Ela será bandeira brilhante e cheia de esperanças, presa a um
mastro alto e multicolorido que a colocará bem no alto de uma torre, para que possa ser vista por todo mundo. Particularmente a nós aqui no Brasil, o que nos está
faltando na realidade, é uma torre sólida e compacta na qual possamos fincar este símbolo de esperanças.
Atualmente estamos enfeitando e construindo o mastro, procurando desfraldar nossa bandeira, mas não estamos procurando saber quanto tijolos necessitaremos para
construir esta torre que sem dúvida alguma será a base.
Os tijolos desta torre de que falamos, simbolicamente representam o deficiente. Dados estatísticos completos devem ser obtidos por censo rigoroso, organizado e levado
a efeito pelos governos federal, estadual e municipal para saber exatamente ou com uma aproximação bastante grande, quantos e quais deficientes precisarão ser
atendidos. Como calcular e projetar atendimento representado por centros de reabilitação por tecnólogos para movê-los se não sabemos quantas pessoas precisam ser
atendidas? A nosso ver urge que se projete e se execute um inquérito cuja unidade seja o Município, seguido pelo Estado e concluído pelo governo do País. Só assim
teremos a certeza de que está bandeira de esperança presa a este mastro refulgente, não ficará encostada a um canto escuro de um ministério qualquer, mas certamente
tremulará no alto desta torre construída com o rigor matemático que a engenharia requer para a solidez de sua estrutura - nem grande demais nem excessivamente
pequena.
Não devemos nos esquecer de que o acidentado ou o portador de defeito físico não é um simples tijolo mas sim um ser vivo que, privado do seu “status” por um defeito
sério e grave, privado do direito de trabalhar, tolido por barreiras arquitetônicas quase insuperáveis, dependente de seus familiares a quem de início sustentava, espera
nosso atendimento e compreensão para poder ocupar seu lugar na sociedade como qualquer ser humano “normal”. Suas frustrações, desilusões e preocupações deverão
merecer da comunidade em que vive, não piedade, nem caridade, mas sim compreensão e ajuda moral para que possa, novamente sentir-se gente.
Apenas para acidentes no trabalho
O tratamento médico de um acidentado grave ou de qualquer deficiência física provocada por doença é feita pelo Inamps, em termos de assistência previdenciária. O
INPS paga as diárias do segurado e caso ele registre seqüelas que o impedem de retornar à sua profissão, o paciente é submetido a uma perícia médica que determina
sua invalidez ou capacidade de recuperação para o trabalho. Assim o deficiente fica aposentado pelo INPS ou passa pela reabilitação profissional do mesmo instituto.
Na verdade, só os muito velhos com outras patologias são classificados como inválidos, também em função do mercado restrito de trabalho. Se não é caso de
reabilitação, o paciente fica no Inamps. E se vai para o INPS, não pode contar com piscina, por exemplo, uma vez que a entidade não mantêm convênio com instituição
bem equipada como o Sesi. Existe apenas um convênio, para deficientes visuais.
O tratamento fisioterápico do serviço de reabilitação do INPS objetiva o fornecimento de condições de reeducação do segurado, no sentido de torná-lo capaz de
trabalhar os deficientes fazem ginástica, exercícios e massagens para o desenvolvimento muscular, aplicações de aparelhos antiinflamatórios, aprende a andar em barras
paralelas, é instruído a colocar e usar uma orótese no caso de mutilações. Há ainda forno de Bier, banhos de parafina, massagens no turbilhão, e aparelhos de ondas
curtas e ultra-som.
O problema, é claro, começa antes disso. Como o INPS hoje só cuida dos benefícios, onde está incluída a reabilitação, cabe ao Inamps a assistência médica
propriamente dita. E não é qualquer segurado que pode recorrer ao INPS, mas apenas aqueles que são vítimas de acidentes de trabalho. Um acidente de trânsito grave,
coisa bastante comum, não dá direito à reabilitação. A não ser que o paciente esteja em serviço. Se algum segurado perder a perna num passeio, só pode contar com o
INPS para pagamento de suas despesas no Inamps. A prioridade é do acidentado de trabalho e nesse caso o atendimento do INPS é bem abrangente, incluindo doenças
como dermatite de contato no item deficiências físicas. Em caso de acidente de trabalho o INPS paga inclusive auxílio acidente permanente através da perícia médica,
independentemente do salário que o trabalhador venha a receber por outro trabalho, mas para receber o auxíliuo precisa ficar comprovada a necessidade de mudança de
profissão
No INPS os que precisam aprender uma nova profissão em função de uma deficiência contam com uma equipe multidisciplinar composta de médico, enfermeiro,
psicólogo, sociólogo, fisioterapeuta, terapeuta ocupacional e da palavra, e professores, tanto de ensino básico para alfabetização como de ofícios. Os deficientes passam
o dia todo no Instituto e têm transporte para casa. Recebem alimentação, medicamentos, instrumentos de trabalho e próteses, se for o caso.
Só no primeiro trimestre do ano passado o centro de reabilitação do Ipiranga gastou quase 3 milhões de cruzeiros. O material, caríssimo, é todo importado. A previsão
orçamentária para próteses para esse trimestre é de 8 milhões de cruzeiros, que serão aplicados no centro do Ipiranga e nos centros das cidades de Santos, Campinas e
Bauru. Segundo funcionários do INPS que trabalham no setor, a maior dificuldade não é de verba, mas de pessoal. É que há poucos técnicos habilitados ao tratamento
de deficientes, e a empresa privada paga melhores salários que a entidade previdenciária. E o volume de trabalho é bem grande, dizem os funcionários, uma vez que o
técnico, além de saber uma profissão, tem que ensiná-la e saber tratar com deficientes. Um bom torneiro, por exemplo, prefere trabalhar numa fábrica.
Mais de três mil deficientes foram submetidos à reabilitação profissional pelo INPS só no primeiro semestre de 1980. Quase metade conseguiu recuperação para o
trabalho, mas a grande maioria em funções menores do que as exercidas antes do acidente. Alguns abandonaram a reabilitação. Outros, em maior número, constam no
relatório como casos encerrados por outras complicações de saúde, paralelas à deficiência principal. (V.A.)
Página 11
137
Ilustração em preto e branco. Homem com chapéu, máscara e nariz de palhaço, sem os antebraços, escreve com caneta tinteiro num papel sobre um tripé. Vários
homens com paletó e gravata observam. Assinado por Petrucio.
O pequeno comércio ambulante garante a sobrevivência de uma minoria marginalizada
Olha o rapa! por João de Barros
Logo cedinho, após aquecer o peito com um cafezinho feito pela patroa, José Roberto Nascimento, 30 anos, vendedor de bijouterias toma assento em sua máquina, uma
surrada cadeira de rodas, e qual um piloto motorizado desliza seu automóvel pelas ruas e avenidas que separam o Bairro do Limão da Praça do Patriarca, no centro da
cidade.
Quase ao mesmo tempo, o pernambucano Manuel Jacinto de Oliveira, 25 anos, deixa a pensão onde mora, no Largo Coração de Jesus, Campos Elíseos, auxiliado por
um colega de quarto que o conduz até o ponto de ônibus. Com um pouco de sorte ele conseguirá um banco vazio na condução – às vezes alguém cede o lugar – caso
contrário Mané terá de ajoelhar-se num canto qualquer por quinze minutos, tempo que normalmente demora para chegar ao centro da cidade. Lá, seu ajudante José
Antônio o espera com a banca improvisada sobre a cadeira de rodas.
José Roberto e Manuel Jacinto, ambos vítimas de paralisia infantil, trabalham a menos de duzentos metros um do outro e se conhecem apenas de “oi”, “oba”, “tchau”.
Mas, há outras inúmeras identidades entre eles. No trabalho, por exemplo, padecem do mesmo problema: perseguição da Prefeitura. Os dois já batalhavam bastante uma
licença com o administrador regional da Sé, Vitor Davi, mas até agora nada. Aconteceu até uma “coisa incrível”, diz José Roberto:
- A prefeitura, mesmo sabendo que sou deficiente e tenho dificuldade de locomoção, concedeu-me licença de ambulante, o que quer dizer que eu não posso desfrutar de
um “ponto” para o meu comércio. Em outras palavras: querem que eu circule com a minha cadeira de rodas pela cidade. Já pensou eu pilotando a “máquina” em plena
rua Direita apinhada de gente?
Olha o chaveiro e cuidado com o rapa!
Jacinto teve ainda sorte pior: não deram licença alguma. Por isso, quando chegam os fiscais o sufoco é enorme porque muitas vezes o plano de emergência bolado por
ele para tais ocasiões – que é sigiloso – não dá certo. Quando isso ocorre o jeito é pagar a multa da Prefeitura se quiser continuar a profissão para a qual foi empurrado
após sucessivas negativas das empresas em contratá-lo para uma função burocrática qualquer. Sem alternativas, longe dos pais que o abandonaram com uma tia aos 12
anos de idade, ele se viu obrigado a vender doces na Praça da Sé. E se tornou um “verdadeiro comerciante”.
- Olha o chaveiro gravado. É só setenta o chaveiro gravado.
Com José Roberto aconteceu de maneira diferente. Há nove anos atrás, depois de freqüentar muito a quadra da Escola de Samba Mocidade Alegre do Bairro do Limão,
Zé Roberto arriscou “um passo importante na vida”. Chegou perto da “bela Wilma” e, sem titubear, arriscou:
- A gente precisa sair dessa e casar, juntar os trapos, enfim, fazer alguma coisa.
- É pra já – respondeu ela com convicção.
José Roberto sabia que o amor dos dois era coisa séria porque já transavam há algum tempo “numa boa”. Porém, uma resposta assim, tão incisiva, o desconcertou. Não
que ele não quisesse viver com ela. Queria e muito. Mas aquele “é pra já” lançou uma dúvida terrível em sua mente: “Será que eu quero isso mesmo?”
Querendo ou não, não havia escapatória. Ele sempre acreditou que “quem pergunta quer resposta, seja ela qual for”. E se a resposta era um sim, e ele havia tomado a
iniciativa de pedi-la em casamento, já não podia vacilar. Marcou o casamento para pouco tempo depois. Teve que dar um duro danado e vender bilhetes adoidado pelas
ruas para equipar uma minúscula casa no bairro mesmo.
E que felicidade aqueles primeiros meses de casório. Era amorzinho daqui, queridinha pra lá. Um ano depois pintou uma criança para aumentar a satisfação. Entretanto,
com o passar dos anos, a chama inicial daquele amor foi-se apagando, “principalmente por problemas financeiros”. Até que depois de oito anos juntos, Wilma, com a
mesma segurança de uns anos atrás, desabafou:
- Vou me mandar. Acho que não dá mais para a gente viver junto. A partir de hoje, cada um na sua
E desapareceu
José passou um tempo numa fossa danada embora soubesse que a vida entre os dois estava se arrastando. E resolveu tocar a bola pra frente, “mas avancei nem até o
meio-campo”.
- Eu estava tranqüilo, trabalhava normalmente não esquentava muito a cabeça. Aí apareceu a maravilhosa Nair, uma mulher extremamente compreensiva, legal, que
conseguiu me amarrar.
Mendigos ou explorados?
Com a nova parceira, José Roberto já está há dois anos em “perfeita harmonia” porque “ela trata muito bem o filho do primeiro casamento, sem falar, lógico, do nosso
bebê que é uma graça”.
Jacintho, por sua vez, é mais arredio. Sem dúvida, tímido. Não gosta muito de falar da sua vida sentimental e garante que “vive apenas para o trabalho”. Lazer, só
televisão.
- O diabo – conta Jacintho – é que os vinte mil cruzeiros que ganho por mês estão contados. Nunca sobra nada. Quando sobra a gente tem que pagar as multas da
prefeitura porque não consegue um meio de regularizar a situação.
- “Temos direito ao trabalho” – esbravejam os dois que, embalados, aproveitam a oportunidade para criticar o “tratamento dispensado aos deficientes físicos do País”.
- Nós enfrentamos o trânsito perigoso, não dispomos de alguns serviços indispensáveis – passarelas, telefones etc – e somos tratados como seres inúteis pelas
autoridades. Tudo isso sem falar que a assistência médica dispensada aos deficientes é, por incrível que pareça, muito pior que àquela dispensada aos demais brasileiros.
Por isso, embora permaneçam céticos em relação ao que possa vir a acontecer neste ano Internacional da Pessoa Deficiente, eles esperam que a Prefeitura deixe de tratálos como “marreteiros”. Aliás, o administrador Vitor Davi costuma dizer que “muitos dos que possuem um “ponto” para trabalhar no Centro acabam alugando as bancas
para os exploradores profissionais”.
- Isso – continua – sem citar os que, mesmo com ponto garantido, passam, além de vender seus produtos, a esmolar em praça pública, transformando-se em verdadeiros
mendigos.
Mendigos? Diz assustado Zé Roberto. “Ora, se eu tenho pouco é porque alguém está ficando com o meu”
Os artistas sem mão
A Editora dos Artistas Pintores sem Mãos tem apenas quatro associados – dois no Estado de São Paulo e dois no Rio de Janeiro. Mas não se trata de uma entidade sem
importância. Funcionando desde 1962, a Editora faz parte de um movimento internacional de valorização do artista deficiente, daí sua vinculação à União de Artistas
que Pintam com a Boca ou com o Pé (UAPBP), com sede na Suíça.
É a UAPBP quem garante uma bolsa de estudo para todo associado da editora, que sobrevive graças à comercialização artística dos deficientes. E de nenhum outro tipo
de auxílio financeiro, privado ou governamental. Na verdade, a Editora deposita algumas esperanças futuras no Estado, como explica a secretária Margarete Henrique
Bastos:
- Se nós conseguíssemos a isenção de impostos teríamos condições de abrir uma escola com professores para dar orientação. Então, os pintores de outros estados
poderiam fazer estágio aqui. Mas isso é uma idéia para o futuro
O artista
O trabalhador autônomo em propaganda, Gonçalo Aparecido Pinto Borges é um dos associados da Editora. Ele começou a desenhar na Associação de Assistência à
Criança Defeituosa, mas reconhece que foi a bolsa de estudo da Editora que permitiu seu desenvolvimento como artista. Aliás, estudar Arte nas escolas convencionais
pode ser um obstáculo intransponível para um deficiente físico. Conta Gonçalo:
- Quando a Editora tentou me colocar na Panamericana de Artes, eu fui fazer um teste e o rapaz disse: “Ele desenha mas não vai poder entrar, pois iria chamar a atenção
dos outros e atrapalhar a aula”. Coisa mais imbecil. E eles queriam que eu fizesse o curso por correspondência!
(Sandra de Souza)
Página 12
138
Eles são sete no Carandiru, duplamente presos: na cadeia e na cadeira de rodas
Ilustração em preto e branco. No pátio de uma prisão, um homem em cadeira de rodas possui uma corrente em sua perna esquerda. Uma das rodas da cadeira de rodas é
a bola de ferro da extremidade da corrente. Sobre o muro guardas fazem a vigilância.
Duas vezes prisão, por José Paulo Fontes.
Os deficientes físicos confinados a penitenciária do Estado, contam todas as histórias parecidas. Casos de enfrentamento com a polícia, de vítimas que reagiram de
discussões e tiroteios na hora de dividir o dinheiro roubado. Um tiro na espinha, uma violenta pancada na cabeça, uma bala encravada no pulmão. Depois, a cadeira de
rodas. Dos setes presos nessas condições – ou oito se contarmos aquele homem que chegou em dezembro e que fica de costas na cama, paralisado, consta que ainda
com uma bala no pulmão direito – estão no hospital da Penitenciaria, todos eram homens fisicamente normais.
Mas de todas essas histórias de violência, uma precisa ser contada. Não se pense que o personagem deste caso foi parar na cadeia sem maiores motivos. Ivan dos Santos,
o personagem, hoje com 24 anos, deverá sair do presídio só daqui a vinte e tantos anos, caso cumpra pena integral. Ele foi preso por uns cavalarianos da PM, no Parque
Dom Pedro, três dias depois do Carnaval de 1977, dentro de um ônibus. É ele quem conta.
- Eu vinha de Santo André e estava indo para Vila Talarico, quando eles me pegaram. Dei azar, umas das minhas vítimas me reconheceu e me alcaguetou para os
“homens”. Eu era foragido do Paraná, havia sido preso por assaltos, e me pegaram ali no ônibus, com as duas armas. Nem deu para reagir.
Ivan foi levado para o 1° distrito policial, ali mesmo no parque D. Pedro. Ninguém sabia quem ele era.
- Me puseram num pau-de-arara aí apareceu outra vítima e me reconheceu também. Quando os “homens” souberam quem eu era ficaram uma fera. Eles diziam que eu
estava pensando que eu era mais esperto do que eles por não ter falado. E me puseram de novo no pau-de-arara.
Ivan afirma que depois foi levado para o DOPS. Mais tarde para o DEIC, no Brigadeiro Tobias.
- Fiquei na mão da policia uns 75 a 80 dias. E sempre no pau-de-arara. No princípio, eu ainda sentia as pernas. Um dia, não senti mais. Fiquei assim como sou hoje por
causa daquelas torturas.
Um homem revoltado, este Ivan. No começo de 1980 fez greve de fome, no presídio, por não concordar com as condições de tratamento, segundo ele.
Por isso, foi “fechado”, de acordo com o jargão da cadeia. Ou seja, recebeu pena disciplinar: durante certo tempo, não pode sair da cela, para tomar sol com os outros.
Ivan é o único preso deficiente do Hospital da Penitenciaria que trabalha. Ele costura bolas para uma fábrica. Para costurar uma bola, ele diz levar apenas duas horas. Se
as remessas das fabricas forem boas, consegue ganhar uns dois mil cruzeiros por mês. Com esse dinheiro já conseguiu economizar 5.500 cruzeiros – ele pretende
comprar um aparelho de fisioterapia.
Mas eu gostaria era de cumprir pena em prisão domiciliar. Em casa posso trabalhar mais, contratar alguns moleques, costurar muito mais bolas, não depender só das
remessas das fábricas. Se eu já estou preso na cadeira de rodas por que ficar na cadeia também?
Presos na cadeia e na cadeira de rodas.
Por que ficar na cadeia, também? Está questão é crucial, nos casos dos presos deficientes físicos. O próprio diretor da Penitenciária, doutor Bruno Irineu Vizotto, os
define como duplamente presidiários da cadeia e da cadeira de rodas. Mas existe um entrave, digamos burocrático em tudo isso. Acontece que os presos estão divididos
entre sentenciados e detentos provisórios. Os sentenciados pertencem realmente a penitenciária estão com sua situação carcerária ligada, diretamente aquele presídio. Já
detentos provisórios, como a palavra define, não estão ligados burocraticamente a penitenciária. Não podem, por exemplo pedir transferência para algum albergue ou
solicitar prisão domiciliar. Não podem nem mesmo trabalhar na cadeia. Dos presidiários deficientes apenas dois – e Ivan é um deles – são sentenciados.
- De uns dois anos para cá, com a colaboração do Juiz Corregedor dos Presídios, Laércio Talli, conseguimos amenizar o problema dos presos deficientes, transferindo
uns bons números deles para o regime de prisão domiciliar. A experiência tem sido boa, tanto que não tenho tido notícia de que eles tenham dado problemas lá fora.
Pelo menos, dos que saíram nenhum voltou até agora.
Esta afirmação é do diretor Bruno Irineu Vizotto. Ele concorda que o Hospital da Penitenciária não seja, realmente, o lugar ideal para os presos deficientes físicos. É
verdade que no Hospital existe um serviço de fisioterapia, mas que não está inteiramente equipado para um tratamento que propiciasse o máximo de recuperação.
- O ideal – continua o doutor Bruno – seria termos um local apropriado onde eles pudessem cumprir a pena. Um local dotado de todas as condições de fisioterapia. Esse
lugar só não foi providenciado, talvez, por que o número de presos deficientes ainda não seja significativo. No Estado, não deve haver mais do que o número que temos
na penitenciária, pois todos são enviados para cá.
E os hospitais particulares por acaso não receberiam tais presos?
- Eles não recebem – explica o diretor – evidentemente, por não querer ter em suas mãos um doente que, além de tudo , pode ser dotado de alta periculosidade.
Estranhas, a situação penitenciária destes homens. Por não serem presos comuns, não podem ficar juntos com os outros sentenciados. Por isso ficam nas celas dos
hospitais da cadeia. Mas lá acabam se transformando em outro problema, como explica o diretor da Divisão de saúde da Penitenciaria, Doutor Antônio Delfino
Machado Neto.
- Veja tivemos um preso deficiente que ficou dez anos aqui no Hospital. Durante esse tempo todo pode ser que ele tenha ocupado o lugar de um preso realmente doente,
pois embora paralítico, seu problema era outro, de fisioterapia. Nosso tratamento de fisioterapia consiste em banhos quentes, massagens, mas claro que o hospital do
presídio não é o local adequado para eles. No entanto, temos que mantê-los aqui, às vezes durante anos e anos.
E eis que chegamos ao nó do problema dos presos deficientes físicos. Os hospitais particulares não recebem, não existe um tipo de prisão preparado para recebê-los, e
no hospital da penitenciaria não há como tratá-los convenientemente. O que fazemos então com estes homens? Esta é uma pergunta que a não ser com a solução da
prisão domiciliar, permanece sem resposta convincente.
Bibi,o homem da canequinha.
Mas voltemos ao hospital onde estão presos com problemas físicos. Ouçamos uma história famosa por aqui de um destes homens que passou anos e anos por aqui por
estes lados da penitenciaria do Estado. Por sinal, hoje ele vive em prisão domiciliar, Bibi – digamos que esse seja este o seu apelido – tinha um estranho hábito. Ele
ficava um tempo enorme curvado, olhando para uma caneca de metal que segurava com as mãos. Coisas de doente, diziam. E ninguém mais ligava para Bibi. De vez
em quando acontecia da lata escapar de seus dedos e cair, fazendo barulho. Quando isso acontecia, os presos se agitavam em suas celas individuais. Mas logo aquele
alvoroço passava e lá estava outra vez o homem contemplado a canequinha. Pois bem, um dia descobriram o motivo daquela agitação. Tratava-se de um sinal, o barulho
feito por Bibi, comunicando aos presos a presença de algum funcionário. Em suas celas todos tratavam de esconder os cigarros de maconha.
Hora do almoço. Claudio de Oliveira ou como todos conhecem esse preto, mirrado, baixinho, “Passo preto” se arrasta amparado no ombro de um funcionário para a sua
cela. Impossível entender o que diz “Passo preto” (de “pássaro preto” aquele passarinho negro brilhoso). Contam que ele chegou a cadeia num estado deplorável. A
metade da cabeça rachada.O homem ficou dias e dias em coma. Mais tarde, foi parar na cadeira de rodas. Reagiu e hoje não quer mais saber da cadeira. Só que
praticamente perdeu a fala.
Repare, também naquele outro negro, silencioso e forte numa cadeira de rodas. Os presos não souberam dizer seu nome. Mas a primeira coisa que se nota nele é um
buraco fundo do lado esquerdo do crânio. Foi preso por estupro.Violentou uma menina mas foi descoberto. Levou uma tremenda surra que teve o crânio afundado.
Depois disso, perdeu a voz, o sentido das coisas. É um vegetal sobre uma cadeira de rodas.
Observe agora, Julmir Carlos Ferreira (branco, alto, 22 anos). Foi preso por assalto a um restaurante. O comerciante reagiu e acertou um tiro na espinha de Julmir. Seu
parceiro de assalto conseguiu fugir, mas Julmir ficou paralítico. Solto passou a fumar maconha como nunca para esquecer aquela vida. A polícia o prendeu em flagrante
com tóxicos.
Mas o que não pode deixar de ser notado é o estado das cadeiras de rodas no presídio. Velhas cadeiras, algumas enferrujadas. Elas pertencem ao Estado apenas Claudio
Rodrigues Dudu é o dono de sua cadeira. Mais nenhum outro preso. Assim quando saírem terão que deixar este instrumento na penitenciaria. Por isso eles pedem ao
sairmos do hospital:
- Faz um apelo para o pessoal para nos doar cadeiras. É só entrar em contato com a gente.
- Dá uma força pra gente lá fora. E Romantiezer Feitosa dos Santos de 32 anos, ainda encontra tempo para dizer.
- Eu até escrevi uma carta para o presidente da República, contando nossos problemas. Não sei se ele recebeu. Mas não recebi resposta até agora.
Página 13
139
A poliomielite não impediu que Alexandre Santos falasse com o mundo, como radioamador e radialista.
Falando com o mundo, por José Paulo Borges
Contém foto em preto e branco de Alexandre Santos. Legenda: Alexandre Santos, o melhor plantão esportivo durante dez anos.
Pelo sim, ou pelo não é que o time de futebol dos meninos do Lar Escola São Francisco era mesmo um time de valentes. E olha que do goleiro ao ponta esquerdo eram
todos meninos paraplégicos, fisicamente deficientes. Mesmo assim, não era lá um time de gostar de perder – do time dos meninos da rua. O mais engraçado acontecia
em alguma dividida mais violenta entre os garotos “normais” e um dos internos do Lar Escola São Francisco.
- O menino do time da rua logo pedia desculpas quando, sem querer, chutava um dos nossos na perna de pau. Ele nem imaginava que se doía, era nele mesmo.
Memórias do senhor Antônio Hélio Spindolo, 39 anos, veterano de goleiro, do timinho do Lar Escola São Francisco. Antônio o quê...? Um cidadão anônimo,
certamente. Mas se dissermos que esse Hélio Spindolo é um conhecido locutor esportivo da Rádio e Televisão Bandeirantes, Alexandre Santos, são a mesma pessoa aí
sim tudo se esclarece. Mas a história de pseudônimo será contada logo em seguida. Por enquanto, basta que se recorde daquela tarde na fazenda São José, em São João
da Barra, quando o menino Alexandre (fiquemos com o codinome famoso), então com 2 anos e meio sentiu-se mal.
- Eu lembro que estava tentando pegar filhotes de uma porca, quando ela correu atrás de mim. Eu corri do chão quente do brejo para o frio do cimento. Depois falei para
minha mãe que eu não estava bem. E não me recordo de mais nada.
Era a paralisia infantil. Só na fazenda São José, das oitos crianças atacadas pelo mal – ainda não existia a vacina Sabin – apenas duas se salvaram.
Fui tratado com o que chamavam de “banho de fumeração”, com ervas ferventes. Salve-me mas até ai pelos meus quatro anos eu era totalmente paralítico. Depois desta
idade que eu pude me arrastar pelo chão. Mas nem por isso vou dizer que eu era uma criança infeliz. Fazia minhas traquinagens também.
Certa vez Alexandre segurou com força o rabo de um bezerro e claro, foi arrastado pelo animal. Resultado: acabou batendo, vio lentamente, numa parede.
- Minha mãe coitada, pensou que eu tivesse morrido.
Na Escola.
Em busca de um tratamento melhor para o filho paralítico, seus pais, os agricultores italianos Silvio e Maria Spindolo, mais os outros oitos filhos do casal, tiveram que
abandonar a roça pela cidade grande. Em São Paulo, o velho Silvio trabalhou duro até internar Alexandre com 7 anos incompletos no Lar Escola São Francisco.
- O Lar Escola é um trabalho muito importante, realizado pela sua criadora Maria Ecilda Campos Salgado, uma senhora que com o dinheiro de sua viuvez, montou uma
instituição para deficientes físicos. Fui um dos seus cinqüentas primeiros alunos.
Uma coisa que deixava o menino Alexandre louco da vida é quando ele chamava algum garoto que não fosse deficiente para a brigar e este, por causa do seu defeito não
quisesse brigar. Para Alexandre, aquilo era mais que uma ofensa.
- Preferiria brigar e não que sentissem pena de mim, pois era um menino com outro qualquer.
O radialista sentiu na pele o drama do preconceito para com os deficientes físicos assim concluiu o primário no Lar Escola, e teve que procurar outro colégio. Num
deles — um colégio de religiosos com certo nome na praça – foi recusado simplesmente, porque a escola prezava muito a sua tradição de fazer bonito nos desfiles.
Assim não dava mesmo para aceitar aquele menino que com sua deficiência estragaria tudo na avenida. Finalmente foi aceito na Escola SENAI Roberto Simonsen.
- Na época eu já gostava de locução. Imitava o Pedro Luiz irradiando nossas partidas de botão. Aí foi realizado um concurso para escolher o locutor do grêmio da
escola. Eu me inscrevi e para minha surpresa, fui o vencedor.
Não se pode dizer que a estréia de Alexandre – ou melhor, o desconhecido Antônio Hélio – numa festa da escola, tenha sido um sucesso. O rapaz tava tão nervoso que
sua voz mal saía da garganta. Mas mesmo com o fracasso, ele persistiu.
- Sou uma pessoa muito religiosa. Por isso pode ser coincidência ou não, mas depois fui a Tambaú, falar com padre Donizetti Lima, famoso pelas graças que consegue,
topei com recorte de jornal que dizia: “Você quer ser locutor?” era o anúncio da escola de locução do professor Norme Pinheiro. Me inscrevi e depois de três meses já
fazia locução em uma novela da rádio América como parte de uma espécie de estágio da escola.
A Teimosia Valeu.
O rapaz então foi procurar emprego na difusora. Lá o aconselharam a procurar emprego na Bandeirante. Justo a emissora onde brilhavam locutores como Edson Luiz, o
Fiore Gigliotti. Dava para concorrer com esse pessoal? Mesmo assim fez o teste. Foi reprovado.
Mas tarde na rua me encontrei com o Sergio Galvão e o Fiore. E não é que o Fiore me chamou pelo nome? Como ele havia me reconhecido, achei que devia voltar e
fazer mais um teste. Sou uma pessoa muito persistente, teimosa mesmo. E quando eles me viram outra vez na emissora admiraram minha obstinação. Viram que eu
queria trabalhar em rádio de qualquer maneira. Então para aprender me deram uma radioescuta. Depois fiz o plantão esportivo.
Nesse ponto, Antônio Hélio Spindolo passa ser apenas um nome no registro de nascimento para dar lugar ao Alexandre Santos. E isso por que na época já havia outro
locutor com o nome de Antônio Hélio.
Escolhi Alexandre em homenagem ao meu irmão, falecido, e Santos por que contrai paralisia infantil justamente no dia de Todos os Santos.
Isso a mais de 20 anos. E não demorou muito, seu nome passou a ser conhecido em todo Brasil. Durante dez anos, foi eleito o melhor plantão esportivo do país. Mas
apesar do sucesso Alexandre Santos ainda ia conhecer outro tipo de preconceito.
- Agora eu já ganhava um bom dinheiro, e resolvi que era hora de comprar um carro. Mas quem disse que as auto-escolas me aceitavam como aluno? Os instrutores não
admitam que um deficiente físico pudesse dirigir. Alguns me aconselhavam a desistir. Diziam que eu jamais iria dirigir. Até por insistência minha consegui ser aceito
numa auto-escola da Penha.
(O locutor pede que se abra um parêntese em sua conversa. É que ele não poderia deixar de agradecer a um punhado de pessoas que o ajudaram em sua carreira. ”Gente
que viu nele não um deficiente físico, mas o ser humano. Gente como o seu João Sayad, o Guga, o seu Samir, o Fiore, o Edson...” Com o que fechamos o parêntese)
O Ídolo da Escola.
Nas Festas e Comemorações do Lar Escola São Francisco, Alexandre Santos sempre aparece. E que o pessoal da escola o tem como ídolo. Exemplo até:
- Lá estão pessoas com problemas maiores que o meu, mas que estão lutando para superá-los. Alguns me pedem “script” para que possa treinar e serem também gente
de rádio um dia. Bem pelo menos eu sei que aqui na Bandeirantes eu sei que não existe nenhum preconceito em contratar deficientes físicos. Aliás hoje em dia neste
meio de comunicação que é o rádio as coisas estão mais fáceis para esta gente. Quando comecei era mais difícil. Mas é evidente que prefiro citar nome dos lugares ou
situações onde encontrei dificuldades.
O locutor não gosta de comentar, mas contam-se algumas histórias a seu respeito. Pequenas histórias de preconceito e mesmo inveja. Como aquela do radialista, que
certamente por não suportar o sucesso do Alexandre, tripudiava de sua deficiência física. Hoje essa pessoa sofre de uma terrível doença na garganta. Outro que
desprezou o locutor – um funcionário subalterno – um dia teve um dos filhos com o mesmo mal.
Mas é preciso que se contem duas ou três coisas mais a respeito deste homem. Fala-se por exemplo que Alexandre é um excelente nadador. Ele faz 50m em 36
segundos. Marca respeitável, como se vê. Ou então que dentro dos padrões aceitos de sucesso, ele só pode ser definido como uma pessoa bem sucedida. Basta que se
mostre sua casa – esplendida casa - na fechadíssima Chácara Flora; nos seus dois carros e na sua bem sucedida carreira de publicitário.
Mas não precisa comentar isso ai. Prefiro que se diga que tenho três filhos: o Mauricio de 8 anos, o Guilherme de 7 anos e a Ana Luiza de dois anos. E que os dois
meninos são verdadeiros goleadores em seus times de futebol. Eles estão fazendo gols que eu não fiz e isso me realiza plenamente.
Um dos seus caprichos foi comprar lá mesmo na Chácara Flora, um terreno só para os meninos jogarem bola. Às vezes Alexandre Santos volta a ser apenas Antônio
Hélio Spindolo e joga também. No gol, naturalmente. Como nos bons tempos do Lar Escola São Francisco.
Página 14
140
O escritor André Carvalho, autor de “Menino Preso na Gaiola”, vê alguns perigos no Ano Internacional do Deficiente Físico
Sem falsa piedade.
“Se o ano servir para conscientizar a sociedade que o deficiente físico é muito mais marginalizado que o operário, o negro ou o semita ou ainda qualquer outro pária
social, vamos conseguir momentos muito melhores”. A opinião é do jornalista, editor e escritor André Carvalho, ao falar sobre o ano Internacional do Deficiente Físico,
instituído pela Organização das Nações Unidas.
Deficiente físico e preso a uma cadeira de rodas durante sua infância e adolescência, André Carvalho acha que o deficiente “trai uma das coisas que o homem leva mais
em consideração: o padrão físico”. E saliente que “o pobre agride a classe média ou a rica, num fato social, enquanto o deficiente agride a família num fato físico”.
E lembra os padrões de beleza impostos pela sociedade até mesmo quando uma criança está fazendo alguma peraltice. A mãe repreende e tempo depois a criança pára.
Ela logo diz “tá vendo como você é bonito, ao invés de dizer como você é inteligente”.
Para André Carvalho, quando nasce uma criança deficiente, “a família se sente traída em suas expectativas mais íntimas”, pois todos – pais, tios, avós – estão
condicionados a “esperar uma pessoa no padrão normal”. Daí sua afirmação de que eles são “os marginalizados de todos os marginais”.
Aceitação.
André Carvalho acha que a aceitação do deficiente físico deva se dar “no sentido mais amplo e irrestrito da palavra, condenando a abdicação dos pais à vida pelo filho
deficiente”. A seu ver, essa é uma aceitação “pacífica e culposa”, quando eles deveriam “suprir naquilo que não podemos fazer”, pois o deficiente é uma pessoa
diferente, mas não especial para merecer favores”.
Daí ele destacar a necessidade de se incentivar os deficientes a encontrar “formas alternativas para resolver seus problemas”, como forma de viver o mais próximo do
normal possível. E ressalta a força dada por seu pai, para que se sentisse normal, quando estava preso a uma cadeira de rodas:
“Eu era presidente de um time de futebol e, em minha casa, faziam-se bailes e minha função era de discotecário”, conta o escritor, ressaltando que várias vezes “a
cabeça é condicionada a não topar desafios”.
Atualmente vivendo completamente integrado à vida produtiva e tendo a consciência exata de suas limitações físicas, não se recusando a falar sobre elas, André
Carvalho confessa que “durante muito tempo só pensei que deveria viver da cabeça”. Essa situação o fez “neurastêmico e chato”. E reconhece que “estava fazendo um
jogo, não me aceitando”.
“Se todos os deficientes físicos conseguissem traduzir essa palavra – aceitação –, teria grandes resultados, mas essa tradução teria de ser ampla e irrestrita. Mentir para
si, achando-se igual aos outros, é burrice.”
Esse Ano Internacional do Deficiente Físico poderá tornar a situação do mesmo pior “na medida em que a pessoa for posta numa situação inferiorizada”, admite o
escritor e jornalista. E salienta que isso poderá ocorrer caso não se tenha uma porta de saída. Do outro modo “o que se vai conseguir é mais falsa piedade”. (Fernando
Magaldi).
“O preconceito era meu”
Maria Augusta Barbosa Matos, ou melhor, a poderosa Guta, diretora de Elenco da Rede globo de Televisão, não se considera uma deficiente física, tampouco conhece
mais a fundo o problema que atinge 30 por cento da população brasileira. Vítima de um tombo aos quatro anos de idade, no qual quebrou a coluna, Guta prefere se
definir – nesta entrevista a Maria Rosa Pecorelli – como alguém que traz apenas um defeito físico, mas que jamais deixou de trabalhar apesar das constantes e
fortíssimas dores.
Contém foto em preto e branco de Maria Augusta, sorrindo.
- Eu me mantenho à base de analgésicos comprados nos Estados Unidos, pois não me submeto a usar o colete recomendado pelos médicos. Prefiro suportar a dor e ir
fazendo operações de recuperação: há quatro anos, por exemplo, tirei um pedaço da tíbia para enxertar na coluna, pois estava com a medula exposta; há uns três anos,
retirei um tumor ósseo. Isso tudo é conseqüência direta da má postura.
No rádio, o seu grito de independência
Segundo Guta, em nenhum momento de sua vida se sentiu rejeitada ao procurar trabalho e nem mesmo no tempo de escola, na cidade de Ribeirão Preto, onde nasceu.
Ao Contrário, Guta acha que a grande preconceituosa era ela mesma, por receber uma superproteção da família.
- Eles não deixavam que eu fizesse nada – lembra. Então, ao me formar no ginásio, já em 1945, decidi dar meu grito de independência. Contra a vontade deles fiz um
concurso para a Rádio Clube de Ribeirão Preto (PRE-7), e tirei o primeiro lugar.
Em seis meses, e tendo apenas 15 anos, ela passou de simples locutora comercial e pesquisadora da publicidade que entrava nos horários comerciais da emissora, a
diretora de seu departamento. Ali se “criou” e, durante os 17 anos que passou na rádio, foi adquirindo experiência no ramo da publicidade.
- Isso me deu muita força para lutar – diz ela, pois descobri que tinha uma cabeça perfeitamente equilibrada, e possuía condições de executar tudo o que desejasse.
Assim, consegui me vencer, superando a timidez e chegando mesmo a fazer um programa de auditório. Nesta época, todos os anos eu recebia de três a quatro convites
de agências de São Paulo para ir trabalhar lá. Relutei, até que em 1962 saí de Ribeirão para integrar a equipe da Lintas Publicidade Internacional.
Na própria rádio a Guta conheceu o atual diretor superintendente da Globo, o Boni, então um simples funcionário da Lintas, que patrocinava alguns programas da
emissora. Tornaram-se amigos e jamais se perderam de vista: só por “brincadeira”, na base da camaradagem. A Guta chegou a fazer contatos entre o Boni (já na Globo)
e vários atores, promovendo encontros em sua própria casa.
- Um dia ele me perguntou se não era melhor eu deixar de executar serviços para a televisão “de graça” – ri – e começar logo na Globo. Aceitei. Como houve um
incêndio na emissora, em São Paulo, todos viemos para o Rio. A 2 de janeiro de 1970 já estava instalada aqui, e começava a dar andamento em minha primeira novela
na direção da Divisão de Elenco: “Pigmaleão 70”. Atualmente são três novelas diárias, fora os especiais, “um trabalhão danado”.
Verdadeira “mãe” para os artistas
Do escritório da Guta saem todos os capítulos datilografados e mimeografados, chega toda a correspondência dos atores, são dados todos os avisos, desde a modificação
do horário de gravações, seus locais etc., até a notificação de uma doença, um problema qualquer com alguém da equipe. A pequena Guta é uma espécie de “public
relations” de um departamento (o artístico) que congrega 255 pessoas.
Fora isso, depois de completada a escala principal dos papéis das novelas, coisas que ficam a cargo dos diretores, autores e dirigentes da empresa – “os homens do
dinheiro, que dão a palavra final” – Guta escolhe os demais artistas. Ela sabe quem está parado, quem pode voltar ao vídeo para uma participação especial, se o ator está
em casa ou viajando...e por aí vai. Enfim, uma tarefa que lhe toma o dia inteiro:
- Chego às 8 e só saio às 7 da noite, mas ainda encontro tempo para cuidar do meu jardim, pois adoro mexer na terra.
Talvez por nunca ter se casado ou podido ser mãe, Guta transfere todo o seu amor maternal para os atores. Estes, em grande maioria, aceitam isso com a maior
naturalidade, e não tomam qualquer decisão sem pedir seu conselho ou opinião. Prática que, aparentemente, contradiz umas das histórias que circulam sobre ela, de que
a Guta é uma mulher austera, agressiva e de difícil trato.
- Como sou uma pessoa que sabe realizar bem o meu trabalho – explica – e até por temperamento, exijo muito dos outros. No trato com os artistas, a coisa fica
diferente: procuro ajudá-los no que me é possível, pois acredito que é preciso ajudar ao próximo. Quantas vezes não fui buscar médico para um, fiquei com o filho de
outro, aqui na sala, enquanto sua mãe gravava um capítulo? Agora, se o ator atuou mal, se está barrigudo, usando uma roupa ou um cabelo horríveis, então sou franca:
dou-lhe logo um puxão de orelhas, reclamo, dou bronca. Porque só uma mãe tem coragem de dizer que seu filho não vai bem.
Roberto Carlos e o preconceito alheio.
A partir de 1972, depois de tornar-se cliente dos doutores Osvaldo Pinheiro Campos e Miguel Vieira, seus ortopedistas, e diretores da Associação Brasileira Beneficente
de Reabilitação (a ABBR, no Rio), Guta passou a ter um contato mais direto com os deficientes físicos. As crianças, sua maior paixão (“sou mãe frustrada”), a
comoveram. Desde então, ela costuma promover shows beneficentes para a entidade, que Guta sabe ser muito pobre, sem condições de dar uma boa assistência ao
deficiente, principalmente às crianças com paralisia cerebral.
- Em 1979, por exemplo – afirma – promovemos um espetáculo no Canecão, com a presença de vários artistas da casa, como a Ioná Magalhães, o Chico Anísio, o
diretor de novelas Régis Cardoso, além de alguns cantores. O Roberto Carlos, que dizem jamais ter dado uma entrevista sobre o seu problema físico, fechou o
espetáculo, e se propôs a participar de qualquer outro, quantas vezes forem necessárias. Sabe, tem muita gente preconceituosa nesse mundo, e vai ver que nunca
chegaram para o Roberto Carlos e fizeram uma pergunta direta.
Sem estar informada de dados estatísticos – “e só assim é que a gente pode afirmar alguma coisa – Guta parece preferir manter-se distante do problema do deficiente no
Brasil. Enquanto não pega o avião que, ainda este ano, a levará à China, ela continua dando “sua pequena ajuda”, pedindo aos atores que doem quantias à ABBR, ou
que as firmas dêem uma ajuda para o lanche das crianças da entidade.
Página 15
141
Contracapa. “Vira-lata, uma página que dá suas mancadas", com dez piadas alusivas à deficiência, sendo 6 delas na forma de charge e 4 na forma de texto. Charges, da
esquerda para a direita: 1 - De Nilson: Jesus Cristo, em cadeira de rodas, carrega uma cruz e se depara com vários degraus; 2 - De Glauco e Laerte: Um rapaz em
cadeira de rodas é paparicado pelos parentes "Filhinho, vai Toddynho?", "Quer desligar a TV?", "Qué balinha? Tem balinha!". O rapaz explode e grita "Chega!" e os
parentes saem correndo. Ele diz "Quero ser tratado igual!". Os parentes voltam sentados numa cadeira de rodas "Toddynho?", "Balinha?"; 3 - De Jota: Um homem em
cadeira de rodas é assediado por diversos jornalistas, enquanto isso, um homem afasta uma criança carregando uma caixa dizendo a ela: "Nem vem! Teu ano já
passou!"; 4 - De Laerte: Toca a campainha e antes de atender, o homem olha pelo olho mágico. Ele vê um homem com um narigão. Quando abre a porta, vê que o
narigão não era só um efeito do olho mágico; 5 - De Luscar: Uma pessoa em cadeira de rodas lê o aviso "Em caso de incêndio não use o elevador"; 6 - De Nilson: Um
rapaz em cadeira de rodas toca piano, depois faz cálculos complexos numa lousa, e mais adiante faz uma escultura. Em todas essas atividades, ele é aplaudido por um
homem. No final, esse mesmo homem, sentado atrás de uma mesa, diz para o rapaz na cadeira de rodas: "É! Competente você é mesmo! Acontece que a vaga de
datilógrafo já foi preenchida, entende?". Piadas na forma de texto: De Benemar: 1 - "Deficiência física não influencia em nada. Delfim Neto, por exemplo, manipularia
dados até se fosse maneta"; 2 - "Diante às dificuldades dos deficientes físicos o governo dá uma de João-sem-braço". De Nagao: 3 - "Depois do ano dos deficientes,
tudo volta ao normal"; 4 - "O pior cego é aquele que faz vista grossa".
Página 16
Legenda: Folhetim, nº 210, do Jornal a Folha de São Paulo, de 25 de janeiro de 1981. Acervo digital Memorial da Inclusão. Doação Lia Crespo.
142
CAPÍTULO
3
143
144
A gênese do movimento da
pessoas com deficiência: a fase
heroica, as associações pioneiras
e os líderes fundamentais
Lia Crespo
Internacionalmente, a luta pelos direitos das pessoas deficientes tem mais
de 50 anos de história, pois começou nos Estados Unidos e na Europa, depois da
Segunda Guerra Mundial, com a volta dos ex-combatentes mutilados, e ganhou
grande impulso a partir de 1960, com a luta pelos direitos civis.12
Embora, desde os anos 1950, existissem associações de pessoas
deficientes que lutavam em defesa dos interesses dos próprios associados,
considera-se que o movimento das pessoas deficientes, propriamente dito,
começou em 1979/1980, quando a essas associações pioneiras aliaram-se as
novas organizações, cuja característica marcante era a defesa dos direitos de todo
o segmento social e não apenas de seus próprios membros. Nas palavras de
Romeu Sassaki, ativista do movimento e consultor em inclusão:
A mobilização paulista foi acionada por várias associações de pessoas com
deficiências físicas e visuais que já existiam (como, por exemplo, AbradefAssociação Brasileira de Deficientes Físicos, AADF-Associação de Assistência
ao Deficiente Físico, CPSP - Clube dos Paraplégicos de São Paulo, AdevaAssociação de Deficientes Visuais e Amigos, FCD-Fraternidade Cristã de
Doentes e Deficientes, Sodevibra-Sociedade dos Deficientes Visuais do Brasil,
Aide-Associação de Integração do Deficiente) e que, no passado, haviam atuado
isoladamente, embora tivessem objetivos semelhantes: a luta pela sobrevivência
elou a prática de atividades esportivas e socioculturais. (SASSAKI, 1979)
. Mais informações em “The Disability Movement and Its History”, de David Pfeiffer, 1995, disponível no site
http://www.independentliving.org/docs3/pfeiffer95.html, e “Disability Culture: Beginnings - A Fact Sheet”, de
Steven E. Brown, disponível no site http://www.independentliving.org/docs3/brown96a.html, acessados em
1º/7/2009.
12
145
No final dos anos 1970 e início dos 1980, a sociedade brasileira se
mobilizava pela democratização do país e diversos setores tradicionalmente
discriminados começaram a lutar por direitos e contra o preconceito. Inspiradas,
sem dúvida, por esse momento histórico sui generis, as pessoas deficientes – até
então, invisíveis para a sociedade – passaram a se organizar em um movimento
nacional para reivindicar não apenas direitos e cidadania, mas, também, o
reconhecimento de sua existência, numa sociedade mais inclusiva, ainda que não
usassem exatamente esses termos.
Estimuladas pelo momento histórico singular e atraídas por esse objetivo
inovador, as associações já existentes se uniram às novas organizações, com o
objetivo de formar um órgão em nível nacional para reivindicar direitos e denunciar
o preconceito e a discriminação contra as pessoas com deficiência na sociedade.
Assim, a partir de 1979/80, as associações pioneiras
procuraram formar uma frente unida com as novas associações que começavam
a surgir (como, por exemplo, NID-Núcleo de Integração de Deficientes, MDPDMovimento pelos Direitos das Pessoas Deficientes, APDFB- Associação dos
Paraplégicos e Deficientes Físicos do Brasil, Aparte - Associação de
Paraplégicos de Taubaté. (SASSAKI, 1979)
Sem intermediários nem tutelas
Das primeiras reuniões – realizadas, em 197913, na Associação de
Assistência à Criança Deficiente14 (AACD), em São Paulo – participavam
organizações de pessoas deficientes, indivíduos com deficiência não ligados a
entidades, familiares e profissionais da área da reabilitação, geralmente, sem
deficiência. (SASSAKI, 2003). Dentre os assuntos tratados, destacava-se a
programação para o Ano Internacional das Pessoas Deficientes (1981).
Conforme relato de Romeu Sassaki, o papel do Estado de São Paulo foi
fundamental para a difusão do movimento:
As primeiras reuniões desse movimento recém-nascido começaram no segundo
semestre de 1979. Daí por diante, usamos todo o tempo disponível para preparar
o conteúdo das reivindicações e as ações que seriam desencadeadas,
nacionalmente, em 1981. Vinha gente de todo lugar para participar das reuniões
em São Paulo. (...) Sem descartar o fato de que sempre houve líderes atuando
isoladamente em outras partes do Brasil, São Paulo foi o primeiro Estado em que
diversas pessoas e entidades se organizaram por um objetivo comum. A
mobilização para valer, aquela que deu origem ao movimento, propriamente dito,
15
começou aqui em São Paulo, em 1979.
Nesses encontros, sentia-se e verbalizava-se o clamor pela mudança da
mentalidade que a sociedade tinha dos deficientes. Nas palavras de Sassaki:
13
. O penúltimo ano da Década da Reabilitação (1970-1980), proclamada pela Rehabilitation International.
14
. À época, chamada Associação de Assistência à Criança Defeituosa.
15
. Em entrevista para minha tese de doutorado.
146
Até então, vigorava o paternalismo humilhante com relação às necessidades e
potencialidades das pessoas deficientes. Até então, era comum que às pessoas com
deficiência não fossem permitidos voz e voto nas pequenas e nas grandes decisões que
afetavam sua vida. Por demasiado longo tempo, essas pessoas vinham sendo tratadas
como se não fossem capazes de falar ou decidir por si mesmas sobre suas necessidades ou
como se elas não tivessem a coragem de denunciar publicamente injustiças a que vinham
sendo submetidas a título de constituírem uma minoria dentro da população geral. (
SASSAKI,1979)
Para Cândido Pinto de Melo, ativista representante do Movimento pelos
Direitos das Pessoas Deficientes (MDPD), o movimento das pessoas deficientes
foi resultado do anseio das pessoas com deficiência de assumirem, elas mesmas,
seu destino. Chegara o momento histórico de romper com o passado injusto, a
hora de desqualificar antigos tutores e porta-vozes, a vez de os cidadãos com
deficiência “poderem ser eles próprios agentes de sua própria história e poderem
falar eles mesmos de seus problemas sem se interporem intermediários nem
tutelas”. (MELO, 1990)16
Para Araci Nallin, representante do Núcleo de Integração de Deficientes
(NID), o movimento promoveu uma mudança fundamental no status assumido
pelas pessoas deficientes e na perspectiva com que as questões que dizem
respeito à deficiência eram percebidas pela sociedade:
A mobilização das pessoas deficientes, no sentido de uma luta reivindicatória, é fato
bastante recente na história de nosso país. Os grupos com esta característica começaram
a surgir em fins de 1979 e início de 1980. Período que coincidiu com o início da “abertura”
política que permitiu o debate de vários temas e a organização de diversos setores da
comunidade. Antes deste período, a questão das pessoas deficientes era ligada à religião
ou à medicina, e seus porta-vozes eram os religiosos e os profissionais de reabilitação. O
assunto deficiência e deficientes era abordado com uma visão caritativa ou científica. A
organização dos grupos com caráter reivindicatório significou que a direção e os objetivos
de luta fossem assumidos pelos diretamente interessados: as pessoas deficientes. E a
questão dos deficientes passou a ser tema também das Ciências Sociais. (NALLIN,
1990)17
Cenário político e econômico perverso
Para Cândido Pinto de Melo, o cenário político e econômico adverso
enfrentado, na ocasião, por toda a população brasileira e que era, especialmente,
perverso para as pessoas com deficiência, também teve influência na formação do
movimento, sua mobilização e seu objetivo de envolver amplos setores para
transformar a sociedade. Assim, no final da década de 1970 e início dos anos
1980,
surgia em São Paulo uma grande apreensão por parte dos portadores de
deficiência mais conscientes frente ao agravamento da situação econômica do
país e as consequências desta situação sobre o segmento dos portadores de
deficiência. Esta apreensão foi se transformando em ações mobilizadoras e
organizativas, contagiando portadores de deficiência, profissionais ligado à área
16
. Em documento lido e debatido durante o Encontro Paulista de Pessoas Deficientes, realizado em Jundiaí (SP),
em 7 e 8 de abril de 1990, que avaliou os dez anos do movimento.
17
. Em documento lido e debatido durante Encontro Paulista de Pessoas Deficientes, realizado em Jundiaí (SP),
em 7 e 8 de abril de 1990, que avaliou os dez anos do movimento.
147
e algumas instituições de assistência aos deficientes e associações de deficientes
existentes. O eixo principal desta ação era a necessidade de se ter uma ação política, e
não assistencial, mais aglutinadora e de maior repercussão que levasse à mobilização dos
portadores de deficiência e contagiasse as entidades que lhes prestam assistência, os
órgãos oficiais e governos. (MELO,1990)18
Desse modo, enquanto, até o final dos anos 1970, as associações
pioneiras não atuassem em conjunto com suas congêneres, as novas
organizações já nasceram com caráter político, mobilizador e aglutinador.
Sobretudo – ao contrário das suas antecessoras –, propunham a transformação
da realidade em que viviam. Para as novas organizações, o grau de acessibilidade
que apresenta e a equiparação de oportunidades que oferece a todos os seus
cidadãos, incluindo aqueles com deficiência, são a pedra de toque de uma
sociedade mais justa e civilizada.
Para que esses objetivos específicos fossem atingidos, líderes e
participantes do movimento cuidavam para que os debates e as decisões fossem
cuidadosamente registrados. Essa documentação possibilitou o desenvolvimentos
do discurso e da filosofia adotados pelo movimento e, principalmente, permitiu sua
difusão às organizações não só de São Paulo, mas, também, de outros Estados.
No dizer de Sassaki:
desde as primeiras reuniões, sabíamos como era importante fazer anotações e escrever
um relatório, o qual, depois, era copiado e distribuído na reunião seguinte. Isso era feito
religiosamente. Nesse relatório, havia a divulgação de quem tinha estado presente, os
assuntos discutidos e o que tinha sido resolvido na reunião passada. É muito bom falar e
discutir, mas, é o registro que possibilita a evolução das ideias. Essa documentação
funcionou como uma semente que foi levada por muita gente, para ser germinada na sua
terra, no seu bairro, no seu cantinho. Foram o registro e a divulgação das ideias – depois,
transformadas em filosofia, conceitos, princípios e até bandeiras de luta – que
possibilitaram a mobilização, cada vez maior, de pessoas e entidades. (Romeu Kazumi
Sassaki)19
Assim, “com o surgimento da voz coesa e firme dessa minoria oprimida”,
cujo movimento se organizou em 1979 e teve seu auge em 1981, Ano
Internacional das Pessoas Deficientes (AIPD), ficaram muito claras as
reivindicações mais importantes e algumas das principais insatisfações.
(SASSAKI, 1979)
Dentre essas, sobressaíam a extrema dificuldade para se obter órteses e
próteses e os serviços de reabilitação (física, profissional e social) que “não
estavam atendendo às necessidades das pessoas com deficiência, nem
qualitativamente (a cada pessoa) nem quantitativamente (a todas as pessoas).
(SASSAKI, 2004)
Invisibilidade, saber e poder
Até o início do movimento, era inquestionável que as instituições da área
da reabilitação detivessem o saber científico sobre a deficiência, pois, como disse
o filósofo Michel Foucault (1926-1984), em nossa sociedade, “a ‘verdade’ é
centrada na forma do discurso
18
. Em documento lido e debatido durante o Encontro Paulista de Pessoas Deficientes, realizado em Jundiaí (SP),
em 7 e 8 de abril de 1990, que avaliou os dez anos do movimento.
19
. Em entrevista para minha tese de doutorado.
148
científico e nas instituições que o produzem”. Era natural, portanto, que as
instituições da área da reabilitação tivessem (e, de certa forma, ainda tenham) o
poder conferido por esse saber, afinal, “poder e saber estão diretamente
implicados.” (FOUCAULT, 2004)
No entanto, também conforme Foucault, existe um “jogo complexo e
instável”, no qual o discurso
pode ser, ao mesmo tempo, instrumento e efeito de poder, e também obstáculo,
escora, ponto de resistência e ponto de partida de uma estratégia oposta. O
discurso veicula e produz poder, reforça-o, mas, também, o mina, expõe, delimita
e permite barrá-lo.(...) Não existe um discurso do poder de um lado e, em face
dele, um outro contraposto. (FOUCAULT, 2005)
E, porque “o poder se exerce em rede”, aqueles que estão submetidos ao
poder também podem exercê-lo, pois eles jamais “são o alvo inerte ou consentidor
do poder”. (FOUCAULT, 2002) Desse modo, não há um “fora” do poder. Onde há
saber, há poder. Ao mesmo tempo em que sempre novos saberes nascem todos
os dias, em nossa sociedade disciplinar20, novos sujeitos lutam contra as forças
que tentam reduzi-los a objetos ou à invisibilidade.
Ao se insurgirem contra aqueles que, historicamente, sempre falaram
sobre e no lugar das pessoas com deficiência, ou seja, familiares, religiosos,
cientistas, políticos, beneméritos e filantropos, em geral, mas, principalmente, os
profissionais
da
área
da
saúde,
os
antigos
“pacientes”21
fizeram a crítica do modelo de reabilitação vigente, quando colocaram em dúvida
seu discurso e sua “verdade científica” sobre a deficiência.
Assim, como nos ensina Madel Therezinha Luz, sem que suspeitassem e
por ironia do destino, as instituições dedicadas à reabilitação gestaram, elas
mesmas, outro saber, outro discurso.
Pois, na verdade, se a história das instituições é a história do discurso
dominante, do discurso da classe que detém o poder na sociedade, ela é
também a história da resistência ao discurso dominante, a história da luta por
outro discurso, pelo discurso de outros. (LUZ, 1979)
Assim, quando muitas pessoas “reabilitadas” pelas instituições saíram da
invisibilidade, começaram a se organizar e a falar por si mesmas, dando início ao
movimento social das pessoas com deficiência, ainda que relutantemente, a
sociedade começou a perguntar às instituições que tipo “de saber vocês querem
desqualificar (...), qual sujeito falante,(...) qual sujeito de experiência e de saber
vocês querem minimizar quando dizem: ‘Eu, que faço esse discurso, faço um
discurso científico e sou cientista?’” (FOUCAULT, 2005)
E porque, segundo Foucault, o discurso é sempre um produto das
relações de poder, portanto, produz saberes e constrói a realidade, as pessoas
com deficiência começaram a mudar sua vida na sociedade brasileira a partir do
momento em que passaram a falar por si mesmas e instauraram seu próprio
discurso.
20
. De acordo com Foucault, porque é mais eficaz e econômico vigiar do que punir, na sociedade disciplinar, os
indivíduos são distribuídos em espaços individualizados, classificatórios, combinatórios, isolados, hierarquizados,
tais como família, escola, fábrica, universidade e, eventualmente, prisão, asilo e centro de reabilitação,
desempenhando funções diferentes segundo o objetivo específico de cada um.
. Não por acaso, para as instituições da área da reabilitação, as pessoas com deficiência são “pacientes”, cujo
termo, conforme Foucault, designa o “supliciado”, que “é submetido a uma série de provas, de severidade
graduada, e que ele ganha ‘aguentando’, ou perde “confessando”, vide em FOUCAULT. Michel. Vigiar e Punir.
21
149
Desse modo, o momento histórico vivido pela sociedade brasileira e a
insatisfação crescente das pessoas com deficiência (especialmente, aquelas que
tinham sido “reabilitadas” pelas instituições, até então existentes) combinaram-se
para que o movimento eclodisse,
Simultaneamente, em diversas cidades do País, de início sem nenhuma
comunicação ou coordenação entre os grupos. Porto Alegre, Curitiba, Rio de
Janeiro, Recife, São Paulo, Salvador, Brasília, Ourinhos e outras cidades
registraram a presença de movimentos organizados por pessoas com deficiência
que, uma vez estabelecida a comunicação entre eles, começaram a realizar
frequentes encontros de âmbitos local, regional e nacional, para uma troca de
ideias e tomada de decisões. (SASSAKI, 2003)
Associações pioneiras e intrépidos líderes
Para celebrar os 30 anos do Ano Internacional das Pessoas Deficientes
(1981), este livro traz a narrativa de diversos ativistas que viveram a “fase heroica” 22
do movimento das pessoas com deficiência. Entretanto, antes que os
autodenominados “jurássicos”23 nos encantem com suas memórias e sejam nossos
guias nessa viagem no tempo, 30 anos atrás, é justo e essencial conhecer as
histórias das associações pioneiras e os intrépidos líderes que antecederam o
movimento das pessoas com deficiência, ao qual juntaram forças na primeira hora.
Clube dos Paraplégicos de São Paulo (CPSP)24
Imagem. Emblema do Clube dos Paraplégicos de São Paulo. Sobre um quadrado preto, círculo em azul contendo no centro uma foca amarela, com camiseta, sentada
numa cadeira de rodas de basquete, rodopiando uma bola na pata esquerda. Em torno da figura, seguindo o traçado redondo lê-se “C.P.S.P. – Clube dos Paraplégicos de
São Paulo”. Legenda: Emblema do Clube dos Paraplégicos de São Paulo.
22
. Ou seja, a primeira fase do movimento das pessoas com deficiência, numa analogia com as fases do
Movimento Modernista.
23
. Em meados dos anos 1990, durante um seminário de capacitação em vida independente, promovido pelo
Centro de Vida Independente do Rio de Janeiro (CVI-Rio), alguém, na brincadeira, começou a usar o termo
”jurássico” para se referir aos líderes que haviam começado o movimento. O apelido pegou e quase todos os
antigos ativistas têm orgulho de dizer que são “jurássicos”.
24
. Mais informações no link http://www.cpsp.com.br/htm/historia.htm, acessado em 16/4/09.
150
O Clube dos Paraplégicos de São Paulo (CPSP) foi fundado em 28 de
julho de 1958, inspirado na Federação Internacional de Esportes de Stoke
Mandeville, organização internacional pioneira no esporte em cadeira de rodas,
criada em 28 de julho de 1948, pelo neurologista britânico Ludwig Guttman,
considerado o “Barão de Coubertin” dos Jogos Paraolímpicos.
Sérgio Del Grande, o idealizador do Clube dos Paraplégicos de São
Paulo, nasceu em 12 de outubro de 1936, na cidade de São Paulo, onde sempre
viveu.25
Filho de industriais italianos, Sérgio faleceu em 11 de maio de 2005. Enquanto
viveu, foi a “cara” do CPSP. Em sua homenagem, foi criado o Troféu Sérgio Del
Grande de Atletismo e Natação.26
Imagem. Foto colorida do Troféu Sérgio Del Grande, que consiste em retrato de Sérgio Del Grande com moldura dourada sobre parede de tijolos. Sob a foto placa com
o nome de Sérgio. Sérgio veste terno marrom, camisa branca e gravata cor de vinho. No lado esquerdo do peito há o adesivo do Clube dos Paraplégicos de São Paulo.
Sérgio sorri. Legenda: Trofeu Sergio Del Grande.
Aos 15 anos, Sérgio cursava o 1º Científico27 no Arquidiocesano28,
tradicional colégio paulistano que só aceitava alunos do sexo masculino e no qual
tinha ingressado aos 10 anos. A escola tinha quatro campos de futebol, nos quais
os alunos faziam aulas de Educação Física. No dia 28 de outubro de 1951, um
sábado, por volta das 16 horas, durante um treino de futebol, Sérgio bateu as
costas na trave do gol, depois de cabecear uma bola. Naquela época, as traves
feitas de madeira não eram cilíndricas, mas retangulares, tipo viga, com cantos
que formavam quinas muito acentuadas.
25
. Mais informações, em http://www.cpsp.com.br/htm/historia.htm e
http://www.centroruibianchi.sp.gov.br/sis/lenoticia.php?id=575.
26
. Mais informações no link http://www.cpsp.com.br/_homenageado.html, acessado em 16/4/09.
27
. Na época, havia o ensino primário (com quatro séries) e o ensino secundário, que era dividido em duas etapas:
o 1º ciclo era o ginasial (com quatro séries) e o 2º ciclo se subdividia em clássico, científico e normal (com três
séries).
28
. Mais informações no endereço
http://www.marista.org.br/index.cfm?FuseAction=noticias.Detalhe&nNoticia=7040&unecod
=2, acessado em 9/5/2009.
151
Del Grande tentou voltar ao jogo, mas não tinha forças nem para chutar a
bola. Trocou de roupa e conseguiu pegar o bonde para voltar para casa. Quando
chegou, precisou de ajuda para subir os degraus da entrada e a escada para seu
quarto, no segundo andar. No dia seguinte, já não ficava em pé. Renomados
neurologistas, dentre os quais Renato da Costa Bonfim29, foram chamados e reunidos
em torno de sua cama. Decidiram que Sérgio ficaria um mês internado no Instituto
Paulista, do qual um dos médicos era diretor.
Depois de um ano de fisioterapia domiciliar, Del Grande foi mandado ao
Kessler Institute For Rehabilitation30, nos Estados Unidos. O trecho entre São Paulo e
Rio de Janeiro foi feito num Douglas DC-331. Do Rio, Sérgio e seu pai embarcaram
num Super Constelation, da Pan-Am32, com destino a Nova York, com escalas em
Belém (PA) e Porto Rico.
Após desembarcarem no Aeroporto de La Guardia (NY), enfrentaram, numa
ambulância, os 100 quilômetros que os separavam da cidade de West Orange (New
Jersey), local do centro de reabilitação, onde foram recebidos pelo próprio doutor
Kessler. A viagem toda havia levado 24 horas.
Orientado pelo instrutor, Sérgio aprendeu a usar um veículo adaptado, cedido
ao centro de reabilitação por uma das grandes indústrias automobilísticas americanas.
Meses depois, recebeu a licença para dirigir.
No Instituto Kessler, a prática de esportes era parte indispensável do
processo de reabilitação. Sérgio optou pelo basquete em cadeira de rodas, pois sua
altura, 1,85cm, favorecia a prática dessa modalidade esportiva. Aos sábados, havia
competições com outros institutos de reabilitação. Os internos também frequentavam
restaurantes, boates, parques de diversões, cinema, partidas de basebol, lutas de
boxe etc.
Quando voltou para o Brasil, Del Grande trouxe com ele uma supermoderna
cadeira de rodas dobrável e seu Chevrolet Bel Air 1956. O veículo era automático,
com alavanca de mudança de marchas na coluna da direção e já veio adaptado para
Sérgio. O mecanismo, depois, foi usado como modelo para que outros deficientes
também pudessem dirigir no país.
Por sugestão de Sérgio Del Grande, Renato Bonfim trouxe ao Brasil, para
jogos demonstrações, os Pan-Am Jets, a equipe de basquete em cadeira de rodas,
formada por funcionários com deficiência da empresa de aviação Pan-Am.
Em novembro de 1957, os Pan-Am Jets se apresentaram duas vezes, em
São Paulo, para um Ginásio do Ibirapuera lotado e uma vez no Maracanãzinho, no Rio
de Janeiro. Na ocasião, o jogador americano Junius Kellogg33 sugeriu a Del Grande
fundar uma equipe de basquete em cadeira de rodas. Kellogg foi o primeiro
jogador de basquete afro-americano da
29
. Fundador da Associação de Assistência à Criança Deficiente. Mais informações no endereço
http://www.aacd.org.br, acessado em 8/5/ 2009.
30
. Mais informações no endereço http://www.kessler-rehab.com, acessado em 8/5/ 2009.
31
. O Douglas DC-3 foi um avião bimotor para uso civil que revolucionou o transporte de passageiros nas décadas
de 1930 e 1940. Mais informações no endereço http://pt.wikipedia.org/wiki/Douglas_DC-3, acessado em 8/5/
2009.
32
. A Pan American World Airways, mais conhecida como Pan Am, foi a principal companhia aérea estadunidense
da década de 1930 até o seu colapso em 1991. Mais informações no endereço
http://pt.wikipedia.org/wiki/Pan_American_World_Airways, acessado em 8/5/2009.
33
. Junius Kellogg nasceu em 16 de março de 1927 e faleceu em setembro de 1998. Treinou os Pan Am Jets e o
Brooklyn Whirlaways. Foi o principal treinador da equipe norte-americana de basquete sobre cadeira de rodas,
durante os Jogos de Stoke Mandeville (1957, 1958, 1959, 1961), e do time americano de basquete em cadeira de
rodas, na Paraolimpíada de Tóquio, em 1964. Foi alçado ao Hall da Fama da Associação Nacional de Basquete
em Cadeira de Rodas, dos EUA, em 1981. Kellogg trabalhou durante muitos anos no conselho de administração
da Associação de Veteranos Paralisados e para a cidade de Nova York, de 1966 até a sua morte em 1998.
Recebeu o título de Doutor Honorário, da Faculdade de Direito de Manhattan, em 1997. Fonte:
http://en.wikipedia.org/wiki/Junius_Kellogg e http://www.nwbahof.org/hofmembersDetails.cfm?ID=29 acessados
em 8/5/2009.
152
Faculdade de Manhattan, nos Estados Unidos. Em 1951, notabilizou-se por
denunciar um esquema de corrupção nos jogos universitários de basquete, cuja
investigação envolveu 32 jogadores, sete faculdades e 86 jogos, ocorridos entre
1947 e 1950. Depois de formar-se em Direito, em 1953, pela Faculdade de
Manhattan, fez parte da equipe original dos famosos Harpem Globe-trotters34. Em
1954, sofreu uma lesão medular durante um acidente de carro e ficou paraplégico.
E, então, tornou-se um entusiasta dos esportes em cadeira de rodas.
Imagem. Duas fotos lado a lado. Foto colorida de Junius Kellog jovem, antes do acidente que o deixou paraplégico. Nesta foto, Junius veste camiseta com escrito
“Original - Harlem – Globetrotters”. Segunda foto, em preto e branco, Junius Kellog mais velho, com camisa e blazer esportivos. Em ambas as fotos, o atleta sorri.
Legenda: Junius Kellog.
Para ajudar Del Grande na empreitada, Kellogg despachou de Nova York
uma cadeira própria para a prática do basquete em cadeira de rodas. Sob a
condição de que fossem doadas dez unidades à futura equipe de atletas
deficientes, Sérgio permitiu que uma empresa copiasse e fabricasse esse modelo
de cadeira de rodas.
Del Grande buscou os futuros atletas nos centros de reabilitação da
época em fevereiro de 1958, começou os treinamentos no Hospital das Clínicas
(HC) de São Paulo. Com o apoio da Federação Paulista de Futebol e,
principalmente, de Paulo Machado de Carvalho35, os Ases da Cadeira de Rodas –
a equipe de basquete do futuro CPSP – se apresentaram, em fevereiro de 1958,
no Ginásio de Esportes Baby Barioni.36
34
. Mais informações http://www.harlemglobetrotters.com/, acessado em 3/7/2009.
35
. Paulo Machado de Carvalho nasceu em 9/11/1901 e morreu em 7/3/ 1992. Em 1931, fundou a Rádio Record
e a Associação das Emissoras de São Paulo. Ao lado de João Havelange, então presidente da Confederação
Brasileira de Desportos (CBD), foi dirigente do futebol brasileiro, tendo sido chefe das delegações campeãs
mundiais de 1958 (Suécia) e 1962 (Chile), o que lhe valeu o apelido de “Marechal da Vitória”. O Estádio do
Pacaembu leva o seu nome desde 1961, como homenagem prestada pelo então prefeito Prestes Maia.
http://pt.wikipedia.org/wiki/Paulo_Machado_de_Carvalho, acessado em 8/5/2009.
36
. O Complexo Olímpico da Água Branca e o Departamento de Educação Física e Esporte (Defe) foram
inaugurados em 1945. Recebeu esse nome em homenagem a Horácio G. Barioni, descendente de italianos,
carinhosamente chamado de “Baby”, que foi militante desportista de “bola ao cesto”, cronista esportivo,
incentivador e idealizador dos Jogos Abertos do Interior, oficializados em 1936, na cidade de Montes Altos.
Mais informações no endereço http://www.sejel.sp.gov.br/baby/historia.htm, acessado em 8/5/2009.
153
Imagem. Foto em preto e branco. Num pátio, cinco atletas treinam basquete em cadeiras de roda. Um deles bate a bola no chão. Ao fundo vê-se carros da década de
1950 e os blocos de andares do Hospital das Clínicas, de São Paulo. Legenda: Sérgio Del Grande treina basquete no HC.
Em 28 de julho de 1958, foi fundado o Clube dos Paraplégicos de São
Paulo, com a presença, entre outros, de Paulo Machado de Carvalho, Vicente
Fiola e toda a delegação de futebol que se sagrara campeã mundial, na Suécia,
em 1958.(ARAÚJO,1997)
Sérgio Del Grande também foi pioneiro na luta para que pessoas
deficientes tivessem isenção de impostos na importação de veículos automáticos,
sem similares nacionais. Seu empenho por uma lei nesse sentido começou
durante a presidência de Jânio Quadros, passou pelo governo de João Goulart e
acabou tendo êxito em 1965, no governo de Castelo Branco. E foi com seu
irresistível Chevrolet Malibu, importado sem impostos em 1966, que Sérgio
conquistou sua futura esposa, a Miss Mato Grosso Irene Aparecida Hotta, que
havia ficado paraplégica num acidente com o Fusca que ganhou no concurso de
beleza. Sérgio Del Grande se fez presente logo nas primeiras reuniões do
movimento, realizadas em 1979.
Associação Brasileira de Deficientes Físicos
(Abradef)
Fundada em 1961, em São Paulo, a Abradef atuava em defesa,
principalmente, dos interesses dos vendedores ambulantes que atuavam na
cidade de São Paulo. Segundo edição especial da revista Abradef, relativa ao 1º
Seminário Estadual da Pessoa Deficiente37 (publicada em 1985), David Pinto
Bastos, 60 anos, era presidente da entidade desde 1968 e uma de sua s principais
lideranças. David ficou deficiente aos 14 anos, quando perdeu parte do braço
direito na oficina da Litografia Bonsucesso, que funcionava na Rua General
Osório, em São Paulo. Ele tinha um banca de doces no Viaduto do Chá, em frente
ao prédio da antiga Companhia Light.
37
. Nesse evento, foi criado o Conselho Estadual Para Assuntos das Pessoas Deficientes.
154
Imagem. Foto colorida. Mesa com participantes de Evento. Legenda: Encontro de Deficientes Físicos, 1980. Da esquerda para a direita, Sérgio Del Grande, Vinícius
Tavares, David Pinto Bastos, Evaldo Doin e Otto Marques da Silva.
Embora fosse mais dedicada aos interesses dos ambulantes, a Abradef
organizou, nos dias 17 e 18 de janeiro de 1980, o 1º Encontro de Deficientes
Físicos, na Câmara Municipal de São Paulo, no qual foram discutidos
amplamente os direitos das pessoas com deficiência em geral. Em 1980,
através de David e do advogado paraplégico Vinícius Andrade, a Abradef
engajou-se imediatamente no movimento das pessoas com deficiência que
começava.
Com uma personalidade exuberante, não raro, David se envolvia em
discussões acaloradas, durante as reuniões do movimento. Geralmente, os
desentendimentos ocorriam porque ele defendia propostas que as lideranças
mais “modernas” rejeitavam. Por exemplo, David defendia a gratuidade da
passagem nos meios de transporte para deficientes e a criação de um incentivo
fiscal para as empresas empregarem pessoas com deficiência 38. A maior parte
das novas lideranças dava mais ênfase à acessibilidade física nos ônibus, trens
e metrô e acreditava que o direito ao trabalho era inalienável e que o incentivo
fiscal a empresas acabaria por incentivar o preconceito e aumentar a
humilhação às pessoas deficientes.
Numa reunião, realizada em 2 de agosto de 1980, que discutiu a
estruturação do movimento em São Paulo, David se retirou do recinto, com seu
grupo, depois de ter sido mandado “calar a boca” por Zé Maria, da Fraternidade
Cristã de Doentes e Deficientes (FCD). O incidente gerou uma discussão
“filosófica”, no movimento. Rui Bianchi do Nascimento 39 fez um alerta “para o
fato de que David, assim como outras pessoas que estão em situação financeira
ou cultural menos favorecida do que a maioria das pessoas que compõem o
Comitê40 sentem-se, de certa forma, como se nós as estivéssemos deixando à
margem das decisões, menosprezando suas ideias e negando-lhes o direito de
falar”. Cândido Pinto de Melo
38
. Conforme entrevista publicada na edição especial da revista Abradef já citada.
39
. Mais informações no endereço http://www.centroruibianchi.sp.gov.br/, acessado em 28/6/2009
40
. Ainda se discutia que nome o movimento de São Paulo teria. Naquele momento, nós o chamávamos de
“Comitê”.
155
argumentou que o correto seria “dar ênfase às coisas que nos unem e nos
tornam iguais, independentemente, de condição financeira ou intelectual.”
Evaldo Doin propôs que se votasse uma “moção contra as reações
intempestivas de David”. Zé Maria se desculpa por ter mandado David “calar a
boca” e vota contra a moção. No final, foi aprovado que Romeu Sassaki
procuraria o presidente da Abradef para prestar-lhe “sua solidariedade, assim
como a do Comitê”, permitindo que David pudesse “desabafar e voltar às boas
conosco.” Nessa reunião, o movimento de São Paulo aprovou a decisão de
tentar “influenciar os organizadores do Censo 80 a levarem em conta a
existência de pessoas deficientes”.41
Fraternidade Cristã de Doentes e Deficientes (FCD)
Agora chamada Fraternidade Cristã de Pessoas com Deficiência, a
FCD é um movimento internacional que teve origem, em 1945, na França.
Chegou ao Brasil somente em 1972, por intermédio do jesuíta Vicente Ma sip,
criador do primeiro núcleo em São Leopoldo (RS). Em dezembro de 1977, a
FCD chegou a São Paulo, por intermédio de Maria de Lourdes Guarda –
considerada um símbolo da luta em defesa dos deficientes –, e espalhou-se
rapidamente pelo país. A FCD se autodenomina um “movimento popular, leigo
e ecumênico de doentes e deficientes” e “identificado com a missão
evangelizadora que Cristo anunciou” 42.
Maria de Lourdes nasceu em 22 de novembro de 1926, em Salto (SP), e
faleceu dia 5 de maio de 1996, em São Paulo. Sonhava ser freira, como havia feito
sua irmã Leonor, que entrara para a Congregação das Filhas de São José e
tornara-se irmã Conceição.
Antes disso, contudo, precisava tratar de umas dores nas costas que a
atormentavam. Os médicos consultados encaminharam-na ao Hospital Matarazzo.
No decorrer de cinco anos, fez diversas cirurgias, cujo resultado – conforme
prefácio escrito pelo companheiro de luta no movimento, o jesuíta Geraldo Marcos
Labarrère do Nascimento, para o livro “Um quarto com vista para o mundo, a vida
de Maria de Lourdes Guarda”, de Margarida Oliva e Guilherme Salgado Rocha
(Edições Loyola, 1998) – foi a
amputação acima do joelho direito, atrofia total da outra perna, extração dos
ossos dos quadris, sonda vaginal permanente, parafusos na coluna, caneleta de
gesso, também permanente, nas costas, da altura do pescoço até o joelho;
gaiola de madeira, constante, sobre as pernas, para evitar que o lençol tocasse
diretamente o corpo, dificultando a débil circulação sanguínea; separação da
família e confinamento, quase total, por trinta anos, no quarto de um hospital.
Maria de Lourdes era uma pessoa tão especial que, no dia 9 de agosto de
1972, resolveu fazer uma festa para celebrar com amigos 25 anos da paralisia que
a mantinha deitada numa cama do Hospital Matarazzo. Não se tratava de
comemorar a deficiência, mas, a vida
41
. Os originais dessa ata, redigida por mim, fazem parte do acervo de Romeu Sassaki.
42
. Mais informações nos endereços http://cantinhoamigoespecial.blogspot.com/2009/03/fcd-de-sao-paulo.html,
acessado
em
16/4/2009;
http://www.fraterbrasil.org.br/FRATERNIDADE.htm
e
http://www.entreamigos.com.br/textos/vidaind/aconpar.htm, acessados em 24/6/2009.
156
plena de alegrias e realizações que ela conquistara para si. E, segundo padre
Geraldo, ela havia decidido, doravante, dedicar-se a servir aos que dela se
aproximavam. Passou a bordar para se sustentar e “acolhia a todos, do modo
mais completo, carinhoso e absoluto (...), quando poderia ter amargado puro
rancor contra Deus e o mundo.”
Imagem. Foto em preto e branco. Maria de Lourdes Guarda, deitada na maca, com um caderno aberto entre as mãos, sorri. Legenda: Maria de Lourdes Guarda, em
1980.
Segundo padre Geraldo, Lourdes, nesse estágio de sua vida,
madura de coração e alma, ela saiu em busca de quem servir. Já não se
contentou que batessem à sua porta, mas enfrentou o mundo, os caminhos e
as distâncias. As pessoas avessas, as dificuldades brutais e os custos
elevados renderam-se à sua frente. A Fraternidade Cristã de Doentes e
Deficientes foi sua causa, sua bandeira, a quem ela deu a vida. (...) De
penitenciárias a colônias de hansenianos; de favelas a acampamentos de
sem-terra; de campos de futebol para ver seu time favorito (São Paulo) a
cinemas e sorveterias; de shows do Roberto Carlos a passeatas de protesto
nas avenidas mais movimentadas de San Jose da Costa Rica, na América
Central; de celebrações diminutas, na casa de um abandonado portador de
deficiência física, a concentrações de Corpus Christi, monumentais, de 100
mil, 400 padres, 12 bispos e o cardeal, na Praça da Sé (SP). Ela foi a tudo.
Visitou, deu força, apoiou o que pôde, sem limites. (OLIVA,1998)
A FCD está espalhada pelo mundo todo e, de fato, é a única organização
de deficientes que se faz representar, através de seus núcleos capilares,
praticamente em quase todos os Estados e em grande parte dos municípios
brasileiros.
Tal como Sérgio Del Grande e David Pinto Bastos, Maria de Lourdes
Guarda se engajou no movimento, logo durante as primeiras reuniões, em 1979,
trazendo sua experiência de vida e luta para enriquecer a atuação dos novos
pioneiros, os “jurássicos”.
157
Na “fase heroica” do movimento
O preconceito e a discriminação contra as pessoas com deficiência
grassavam e não havia nenhuma acessibilidade arquitetônica. As reuniões e
encontros envolviam sempre uma aventura pelo desconhecido ou pelo sobejamente
conhecido cenário inacessível. Tomar um avião, um ônibus ou metrô, pernoitar num
alojamento para atletas, convento ou quartel, usar o banheiro de um estabelecimento
ou, simplesmente, atravessar uma rua eram atividades impossíveis, difíceis,
desconfortáveis e, até mesmo, perigosas, que exigiam certa ousadia de quem
usasse uma cadeira de rodas ou uma bengala branca. Por sorte, em sua maioria, os
líderes eram ainda jovens e muitos foram os que colocaram em risco seus
empregos, sua carreira acadêmica e, no limite, até mesmo, sua saúde e integridade
física, para dedicar-se, abnegadamente, à luta pelos direitos das pessoas com
deficiência. É impossível falar de todos eles e, muito menos, contar suas histórias,
todas interessantes em suas singularidades e semelhanças. Alguns dos jurássicos
estão meio “aposentados” do movimento. Outros continuam na “ativa”. Infelizmente,
muitos já não estão entre nós.
Os “dinossauros”
Otto Marques da Silva, profissional da área da reabilitação, participou
das primeiras reuniões do movimento. Por ter trabalhado na Organização das
Nações Unidas (ONU), recebia muitas informações e traduziu muitos documentos
sobre o Ano Internacional das Pessoas Deficientes (AIPD). Foi consultor em
Reabilitação, representando o Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da
Universidade de São Paulo, na Comissão Estadual de Apoio e Estímulo ao
Desenvolvimento do Ano Internacional das Pessoas Deficientes.
Imagem. Retrato colorido de Otto Marques da Silva. Em frente a um arranjo de flores, Otto, de terno e gravata, sorri, enquanto segura um troféu com a mão direita.
Legenda: Otto Marques da Silva.
158
Autor do livro “A Epopeia Ignorada: a pessoa deficiente na história do
mundo de ontem e de hoje” (1987) e atualmente coordenador-geral do Centro
de Referências Faster. 43
Heloísa Chagas é psicóloga. Ficou paraplégica aos 22 anos, em 1972.
Fez reabilitação na Associação de Assistência à Criança Defeituosa (AACD), de
São Paulo, onde trabalhou como psicóloga logo depois de se graduar, em 1976.
Em 1979, coordenou o Setor de Psicologia.
Imagem. Foto colorida de Heloísa Chagas durante evento comemorativo dos 25 anos do AIPD. Heloísa olha sorrindo para o esqueleto de dinossauro (em madeira),
símbolo do pioneirismo dos protagonistas do AIPD. Sua mão esquerda segura a para dianteira do dinossauro, que está em pé. Atrás de ambos, vê-se banner do evento.
Legenda: Heloisa Chagas.
Em 1975, fez parte do primeiro time de basquete feminino em cadeira de
rodas do Clube dos Paraplégicos de São Paulo. Participou das primeiras reuniões
que dariam origem ao movimento social das pessoas com deficiência. Em 1996,
fundou o Centro de Vida Independente de Curitiba, cidade onde ainda vive.
Cláudio Vereza44 tem 57 anos e começou sua atuação pública no meio
popular e nas Comunidades Eclesiais de Base (CEB’s). Foi um dos pioneiros na
luta em defesa de direitos das pessoas com deficiência, no Espírito Santo (ES).
Suas atividades partidárias se iniciaram com a fundação do Partido dos
Trabalhadores (PT) no Espírito Santo, em 1980. Elegeu-se deputado estadual pela
primeira vez em 1986, quando ajudou a elaborar a Constituição Estadual do
Estado do Espírito Santo. Entre 1996 e 1998, presidiu a Comissão Parlamentar de
Inquérito (CPI) da Assembleia Legislativa, que investigou a realidade do sistema
penitenciário, e a Comissão Especial dos ex-presos políticos,
43
. Mais informações no endereço http://www.crfaster.com.br/apres.htm, acessado em 3/7/2009.
44
. Mais informações no endereço http://www.claudiovereza.com.br/, acessado em 20 de setembro de 2009.
159
que apurou os atos praticados pelo regime militar no ES, no período de 1961 a
1979. Foi presidente da Assembleia Legislativa no biênio 2003/2004. Em 2006 foi
reeleito para o seu quinto mandato de deputado estadual, com 33.726 votos.
Imagem. Foto colorida de Cláudio Vereza durante evento comemorativo dos 25 anos do AIPD. Cláudio posa ao lado do esqueleto de dinossauro (em madeira), símbolo
do pioneirismo dos protagonistas do AIPD. Legenda: Claudio Vereza.
Izabel Maria Loureiro Maior é médica fisiatra, especialista em Políticas
Públicas e Gestão Governamental. Ativista do movimento de vida independente,
foi a primeira pessoa com deficiência a comandar (2002-2011) a Secretaria
Nacional de Promoção dos Direitos da Pessoa com Deficiência (antiga Corde45),
da Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República.
Fez carreira no Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão desde
janeiro de 2000. É professora, com mestrado, do Departamento de Clínica Médica
(Medicina Física e Reabilitação) da Faculdade de Medicina da UFRJ, desde
setembro de1984. É membro titular da Sociedade Brasileira de Medicina Física e
Reabilitação, da Associação Médica Brasileira (desde 1981) e da Academia
Brasileira de Medicina de Reabilitação. Foi conselheira do Conselho Nacional de
Direitos da Pessoa Portadora de Deficiência (Conade/SEDH). É autora do livro
“Reabilitação Sexual do Paraplégico e Tetraplégico” (Revinter, 1988).
45
. A Coordenadoria Nacional para a Integração da Pessoa Portadora de Deficiência (Corde) foi criada pela Lei nº
7.853, de 1999. A função da Corde era implementar a Política Nacional para Integração da Pessoa com
Deficiência, proposta pelo Conselho Nacional dos Direitos da Pessoa Portadora de Deficiência (Conade), órgão
criado pela Medida Provisória nº 1799-6/99, formado por representantes de órgãos públicos e de organizações da
sociedade civil eleitos por seus pares. Em maio de 2003 o Conselho, através da Lei nº 10.683, passou a ser
vinculado ao Gabinete da Presidência da República por meio da Secretaria Especial dos Direitos Humanos.
160
Imagem. Foto colorida de Izabel Maria Loureiro Maior. Na parede de fundo vê-se parte de um banner, azul e branco, com a inscrição “Direitos da Pessoa com
Deficiência”, tendo ao lado mapa do Brasil. Legenda: Izabel Maria Loureiro Maior.
Rosangela Berman Bieler sofreu um acidente de carro aos 19 anos, em
1976, e ficou tetraplégica. Dois anos depois, formou-se em Jornalismo, pela PUCRJ, e tornou-se líder estudantil. Foi Cofundadora do Centro de Vida Independente
do Rio de Janeiro (CVI-RJ), organizou os encontros internacionais de pessoas
com deficiência, DEF’Rio 92 e 95, dos quais participaram cerca de 3 mil pessoas
representantes de 19 países.
Imagem. Foto colorida de Rosangela Berman Bieler durante evento comemorativo dos 25 anos do AIPD. Rosangela olha sorrindo para o esqueleto de dinossauro (em
madeira), símbolo do pioneirismo dos protagonistas do AIPD. Atrás de ambos, vê-se banner do evento. Legenda: Rosangela Berman Bieler.
161
Em 1997, organizou a Conferência Mundial sobre Mulheres e Deficiência
nos Estados Unidos, que reuniu mais de 600 mulheres de 80 países. Em 2004,
por sua atuação e contribuições significativas pelos direitos e inclusão das
pessoas com deficiência, recebeu o prêmio Kessler Awards da Rehabilitation
International (RI), entidade de prestígio mundial fundada em 1922, que integra 200
organizações filiadas em 90 países. Uma honraria concedida a apenas três
pessoas a cada quatro anos. Rosangela fez mestrado em “Inclusão social das
pessoas com deficiência”, na Universidade de Salamanca, Espanha. Vive em
Nova York, onde exerce o cargo de assessora sênior da Seção de Crianças com
Deficiência, Gênero, Direitos e Ação Cívica, da Divisão de Políticas e Práticas do
Unicef.
Messias Tavares de Souza tem 69 anos, é tetraplégico e mora em
Recife (PE). Desde 1980, participa do movimento das pessoas com deficiência.
Representou a região Nordeste na Coalizão Nacional de Entidades de Deficientes
e coordenou a Organização Nacional de Entidades de Deficientes Físicos
(Onedef).
Imagem. Retrato colorido de Messias Tavares de Souza.
Organizou o 1º Congresso Brasileiro das Pessoas Deficientes, realizado
entre 26 e 30 de outubro de 1981, em Recife. Messias fez a defesa, na
Assembleia Nacional Constituinte, da emenda popular para garantir os direitos das
pessoas deficientes. Foi um dos iniciadores da Coordenadoria Municipal para
lntegração da Pessoa Portadora de Deficiência (Corde-Recife). Foi presidente do
Conselho Estadual dos Direitos da Pessoa com Deficiência (Coned-PE) e membro
do Conselho Nacional dos Direitos da Pessoa Portadora de Deficiência
(Conade/SEDH)46. Atualmente, é conselheiro suplente de ambos os órgãos.
46
. O Conselho Nacional dos Direitos da Pessoa Portadora de Deficiência (Conade) foi criado para acompanhar e
avaliar o desenvolvimento da política nacional para inclusão da pessoa com deficiência e das políticas setoriais
de educação, saúde, trabalho, assistência social, transporte, cultura, turismo, desporto, lazer e política urbana
dirigidos a esse grupo social. O Conade faz parte da estrutura básica da Secretaria Especial dos Direitos
Humanos da Presidência da República (Lei nº 10.683/03, art. 24, parágrafo único). Mais informações no endereço
http://www.mj.gov.br/conade/, acessado em 18/8/2009.
162
Romeu Kazumi Sassaki é formado em serviço social, consultor de
inclusão social com experiência profissional há 51 anos e especialista em
assuntos de pessoas com deficiência (emprego apoiado, legislação, reabilitação
profissional, educação inclusiva, empregabilidade, mídia). Pensador sobre as
questões relativas à deficiência, Romeu é um dos mais importantes
divulgadores das questões relativas às pessoas com deficiência, autor do livro
“Inclusão. Construindo uma sociedade para todos” 47, além de outras obras e de
inúmeros artigos sobre inclusão social, todos fundamentais aos estudiosos do
assunto. Ativista do movimento em defesa dos direitos das pessoas com
deficiência há 32 anos, Romeu esteve presente às primeiras reuniões, em 1979.
Sempre com sua indefectível câmera, fotografou os participantes e fez
anotações em todas as reuniões e todos os eventos a que esteve presente,
sempre dando carona para diversas pessoas deficientes. Organizado, possui o
maior e mais completo acervo sobre o movimento das pessoas com deficiência.
Foi Romeu que conscientizou os militantes sobre a importância de fazer o
registro dessa história impossível de ser contada sem ele.
Imagem. Foto colorida de Romeu Kazumi Sassaki durante evento comemorativo dos 25 anos do AIPD. Romeu sorri para o esqueleto de dinossauro (em madeira),
símbolo do pioneirismo dos protagonistas do AIPD, e o cumprimenta com a mão direita. Atrás de ambos, vê-se banner do evento. Legenda: Romeu Kazumi Sassaki.
No andar de cima
José Evaldo de Mello Doin foi professor de História, portador de sequelas
de poliomielite e um dos primeiros e principais líderes do movimento em defesa dos
direitos das pessoas deficientes. Foi dele a iniciativa para que o movimento pudesse
se reunir, uma vez por mês, durante cerca de dois anos, nas dependências das
Faculdades Metropolitanas Unidas (FMU), em São Paulo, onde dava aulas. José
Evaldo morria de medo de andar de avião, no entanto, várias
47
.
O
livro
está
em
sua
7ª
edição.
Mais
informações
no
endereço
http://storewvaeditora.locasite.com.br/loja/produtos_info.php/manufacturers_id/2/products_id/4?PHPSESSID=fe39e999db75
0f7c4f900a2084876c8e, acessado em 11/7/2009.
163
vezes, enfrentou sua fobia para participar das reuniões preparatórias para o
Encontro Nacional de Entidades de Pessoas Deficientes, em Brasília, em 1980.
Numa dessas viagens, Romeu Sassaki me contou que Evaldo sentou-se ao seu
lado. Romeu teve de segurar a mão dele o tempo todo, encorajando-o a aguentar a
provação. Para vir de Franca a São Paulo, participar do evento comemorativo dos
25 anos do Ano Internacional das Pessoas Deficientes, em 200648, Evaldo – ao ver
o avião na pista – foi tomado pelo antigo medo, rejeitou a passagem que havia
recebido dos organizadores do evento e veio de táxi. Chegou como um ogro,
fazendo mil exigências, mas, em pouco tempo, conquistou a todos. Sua palestra e
seu discurso de despedida emocionaram a plateia de velhos jurássicos e novos
militantes. Era grande amigo de Cândido Pinto de Melo (ver em seguida) e, quando
soube de sua morte, sofreu muito. Evaldo iniciou sua formação superior na
Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Franca. Completou o curso de História
na Universidade de São Paulo. Lecionou em várias universidades até transferir-se
para a Unesp, de Franca. Obteve, em sua carreira universitária, os títulos de doutor
e livre-docente. Publicou vários artigos em revistas especializadas e editou livros
importantes para a pesquisa histórica nacional. Homem de vasta cultura
humanística, Doin interessou-se pela literatura, e, sob o pseudônimo de “Jeval”,
editou poemas de reconhecida sensibilidade. Filiou-se ao Partido Verde e participou
das eleições parlamentares de 2006 como candidato a deputado estadual. Morreu
na madrugada do dia 25 de abril de 2009, em virtude de câncer no pulmão.
Imagem. Foto colorida de José Evaldo de Melo Doin durante evento comemorativo dos 25 anos do AIPD. Evaldo finge estar com medo do esqueleto de dinossauro (em
madeira), símbolo do pioneirismo dos protagonistas do AIPD. Atrás de ambos, vê-se banner do evento. Legenda: José Evaldo de Melo Doin.
Cândido Pinto de Melo nasceu em 4 de maio de 1947 e faleceu em 31
de agosto de 2002. Era presidente da União de Estudantes de Pernambuco, um
braço da União Nacional
48
. Mais informações no endereço http://www.usc.br/nidb/noticias/seminario_aidp.htm, acessado em 14/7/2009.
164
dos Estudantes (UNE). Por isso, foi perseguido e, em 28 de abril de 1969, sofreu
um atentado em Recife e ficou paraplégico aos 21 anos. Cândido terminou o curso
de Engenharia respondendo a processos pela Lei de Segurança Nacional (LSN),
assistindo às invasões policiais nos hospitais e na sua casa, com os amigos e
familiares sendo revistados, ameaçados e perseguidos. A vivência hospitalar
levou-o a se especializar na engenharia biomédica. Tornou-se um profissional
respeitado nessa área, compôs a equipe do doutor Jesus Zerbini e foi funcionário
do Hospital das Clínicas, em São Paulo. Pouco antes de sua morte, Cândido tinha
deixado o HC para assumir um cargo no governo de Pernambuco.
Imagem. Retrato colorido de Cândido Pinto de Melo. Cândido sorri.
Jamais se revoltou pela deficiência. Uma vez, ele me disse que, na
hora em que foi baleado e caiu no chão, sabia que tinha ficado deficiente, mas
que havia escolhido viver. No entanto, nunca se conformou com a impunidade
dos responsáveis pelo atentado. Cândido foi pioneiro do movimento organizado
das pessoas deficientes, em 1979, em São Paulo, e foi um dos mais
importantes líderes do Movimento pelos Direitos das Pessoas Deficientes
(MDPD).49
Robinson José de Carvalho nasceu em 20 de fevereiro de 1947, na
cidade de Varginha, Minas Gerais, e faleceu aos 58 anos, em 16 de dezembro
de 2005. Era médico ortopedista e cidadão honorário de Ourinhos, em
reconhecimento aos serviços prestados ao município e pela atuação na vida
pública.
49
.
Mais
informações
no
endereço
http://www.torturanuncamaisrj.org.br/artigos.asp?Refresh=2008071603163072158429&Codartigo=25, acessado em 3/7/ 2009.
165
Em 1975, tornou-se membro do Corpo Clínico da Santa Casa de
Misericórdia de Ourinhos e lançou as bases da Associação de Assistência ao
Deficiente Físico (AADF), importante entidade de Ourinhos. Incansável na luta, de
1979 a 1985, Robinson viajava de Ourinhos a São Paulo, infalivelmente, uma vez
por mês, para participar das reuniões do movimento, no qual atuou sempre de
forma ponderada, esfriando os ânimos, quando a situação ficava tensa. Por ironia
do destino, no início dos anos 1990, seu sobrinho, Alexandre Baroni50, sofreu um
acidente e ficou tetraplégico. Incentivado pelo tio, tornou-se um dos novos líderes
do movimento. Robinson José de Carvalho foi um dos pioneiros na defesa das
pessoas com deficiência, causa que abraçou até o final da vida.
Imagem. Retrato colorido de Robinson José de Carvalho. Robinson sorri.
Rui Bianchi do Nascimento nasceu em 4 de novembro de 1949 e
faleceu em 6 de setembro de 2001, em decorrência de complicações de sua
deficiência, Osteogenesis Imperfecta, conhecida como a doença dos ossos de
vidro. Rui Bianchi teve mais de 23 fraturas em todo o corpo. Aos 15 anos, após
passar oito anos tentando recuperar-se de uma fratura na perna esquerda, decidiu
amputá-la. Cinco anos depois, amputou também a perna direita. Rui era graduado
em Biblioteconomia e Editoração, pela ECA-USP, e, em junho de 2001, obteve o
grau de Mestre em Ciências da Comunicação, na mesma universidade, com a
dissertação “Visão parcial da deficiência na imprensa: Revista Veja (1981-1999)”.
Rui trabalhou como bibliotecário da USP e do Município de São Paulo.
Começou sua militância em 1980, na Fraternidade Cristã de Doentes e
Deficientes e no Movimento pelos Direitos das Pessoas Deficientes, do qual foi
coordenador em 1980 e 1985. De 1988 a 1990, ocupou o cargo de coordenadorgeral da Organização Nacional de Entidade de Deficientes Físicos (Onedef) e
representou o Brasil na Disabled People’s International Latino
50
. Mais informações no endereço http://sentidos.uol.com.br/canais/materia.asp?codpag=5136&cod_canal=3,
acessado em 14/7/2009.
166
-Americana (DPI). Em 1990, com alguns amigos, criou o Centro de Documentação e
Informação do Portador de Deficiência (Cedipod), para divulgar informações sobre
legislação, direitos civis, transportes e eliminação de barreiras arquitetônicas.51
Imagem. Retrato colorido de Rui Bianchi do Nascimento. Rui sorri.
Araci Nallin nasceu em 22 de maio de 1957 e faleceu em 14 de junho de
1993, um pouco depois de obter o título de mestre em Psicologia pela USP, com a
dissertação “Reabilitação em Instituição: suas razões e procedimentos. Análise de
Representação do Discurso”, um dos mais instigantes e belos textos sobre o
assunto.
Imagem. Foto em preto e branco de Araci Nallin. Araci sorri.
51
. Mais informações nos endereços http://www.cedipod.org.br/ e http://www.centroruibianchi.sp.gov.br/, ambos
acessados em 12/7/2009.
167
Devido a severas sequelas de poliomielite contraída aos quatro anos de
idade, lutou muito para conquistar um estilo de vida independente. No final dos
anos 1970, Araci e alguns amigos formaram um grupo dirigido às atividades de
cultura e lazer. Em 1980, aliou-se a outras pessoas com deficiência para criar o
Núcleo de Integração de Deficientes (NID), organização de caráter reivindicatório
em defesa dos direitos das pessoas com deficiência. Araci era funcionária
concursada da Secretaria de Saúde do Estado de São Paulo, tendo participado da
criação e atuado, ao lado de Ana Rita de Paula, no Programa de Atenção à Saúde
da Pessoa Portadora de Deficiência do Estado de São Paulo. Pouco antes de sua
morte, assumiu a coordenação do programa homônimo do Município da Cidade de
São Paulo. O Centro de Vida Independente Araci Nallin recebeu esse nome em
homenagem a ela.52
Francisco Augusto Vieira Nunes, o Bacurau, descobriu que tinha
hanseníase aos 10 anos de idade. Por conta disso, teve de abandonar os
estudos. Mais tarde, formou-se professor.
Imagem. Foto colorida de Francisco Augusto Nunes, o Bacurau. Sentado numa mesa, Bacurau datilografa em máquina de escrever.
Com o apoio de Thomas Frist, fundou o Movimento de Reintegração das
Pessoas Atingidas pela Hanseníase (Morhan). Bacurau enfrentou e combateu o
preconceito e a discriminação que prejudicam severamente as pessoas que têm
essa doença. Em 1981, engajou-se no movimento das pessoas com deficiência e
foi um de seus líderes mais respeitado. Faleceu em 1997, aos 57 anos, vítima de
câncer no pulmão e na cabeça.
No dizer de Ana Rita de Paula, doutora em Psicologia Social e militante
do Núcleo de Integração de Deficientes (NID)53:
52
. Mais informações no endereço http://www.cvi.org.br,a cessado em 3/7/2009.
53
. Entrevistada para minha tese de doutorado.
168
“No começo do movimento, tivemos lideres fundamentais. E uma coisa legal em
relação a eles é que tinham uma força pessoal muito grande. E não estou falando
de super-heróis, não estou falando de gente que se destaca, que faz coisas
grandiosas, extraordinárias. Estou falando de gente que tem força para lidar com
o cotidiano tão adverso assim, de gente que construiu sua vida de forma
participativa, interessante, em uma situação muito adversa.”
Espero que este capítulo honre a memória e a luta de todos os nossos
“líderes fundamentais”.
Referências Bibliográficas
ARAÚJO, Paulo Ferreira de. Deporto Adaptado no Brasil: origem,
institucionalização e futuro. Tese de Doutorado, Unicamp, Campinas,
1997.
FOUCAULT, Michel. História da Sexualidade, vol. 1. A vontade de Saber. Trad.
Maria Thereza da Costa Albuquerque e J.A. Guilhon Albuquerque. Rio de
Janeiro, Edições Graal, 2005. 16ª ed.
CRESPO, A.M.M. Da invisibilidade à construção da própria cidadania. Os
obstáculos, as estratégias e as conquistas do movimento social das
pessoas com deficiência no Brasil, através das histórias de vida de seus
líderes. Tese de doutorado, FFLCH/USP, 2009.
FOUCAULT, Michel. Microfísica do poder. Roberto Machado (org. e trad). Edições
Graal, Rio de Janeiro, 2004. 20ª ed.
FOUCAULT, Michel. Em defesa da sociedade. Trad. Maria Ermantina Galvão. São
Paulo, Martins Fontes, 2002.
FOUCAULT. Michel. Vigiar e Punir. Trad. Raquel Ramalhete. Petrópolis, Editora
Vozes. 2004.
LUZ, M. T. As instituições médicas no Brasil: instituição e estratégia de
hegemonia. Rio de Janeiro: Graal, 1979.
MELO, Candido Pinto de. Portadores de Deficiência: Dez anos de lutas, vitórias e
poucas conquistas, 1990, mimeo. Documento lido e debatido durante
Encontro Paulista de Pessoas Deficientes, realizado em Jundiaí (SP), em
7 e 8 de abril de 1990 , que avaliou os 10 anos do movimento.
NALLIN, Araci. A organização das pessoas deficientes: Reflexões sobre dez anos
de luta. São Paulo, 1990, (mimeo). Documento lido e debatido durante
Encontro Paulista de Pessoas Deficientes, realizado em Jundiaí (SP), em
7 e 8 de abril de 1990 , que avaliou os 10 anos do movimento.
OLIVA, Margarida, ROCHA, Guilherme Salgado. Um quarto com vista para o
mundo, a vida de Maria de Lourdes Guarda, São Paulo, Loyola, 1998.
SASSAKI, Romeu. Uma Breve História dos Movimentos de Pessoas com
Deficiência, 1979, mimeo.
SASSAKI, Romeu Kazumi. Vida Independente – História, movimento, liderança,
conceito, filosofia e fundamentos. Reabilitação, emprego e terminologia,
julho, 2003.
SASSAKI, Romeu Kazumi. Vida Independente na era da sociedade inclusiva. São
Paulo, RNR, 2004.
SILVA, Otto Marques da. A Epopéia Ignorada: A pessoa deficiente na história do
mundo de ontem e de hoje. São Paulo, Cedas, 1987.
169
170
CAPÍTULO
4
171
172
Fazendo história: o movimento social
pela perspectiva de seus líderes
Entrevistas
A história é feita com documentos escritos e
sem documentos escritos... Com tudo o que a habilidade do historiador lhe
permite utilizar para fabricar o seu mel, na falta das flores habituais. Logo, com
palavras. Signos. Paisagens e telhas. Com as formas do campo e as ervas
daninhas. (...) Numa palavra, com tudo o que, pertencendo ao homem, exprime o
homem, demonstra a presença, a atividade, os gostos e as maneiras de ser do
54
homem. (Febre, 1949, ed. 1953, p. 428 apud LE GOFF, 2003, p.530)
Neste capítulo “Fazendo história”, assim como no capítulo “Memórias da
Luta: Protagonistas do AIPD no Brasil”, tal habilidade é favorecida por tratar-se de
material advindo de relatos de primeira mão dos protagonistas do movimento social
da pessoa com deficiência no Brasil.
No capítulo “Memórias da Luta...”, as memórias foram trabalhadas pelas
autoras a partir de trechos dos relatos de 23 protagonistas. Tais trechos foram
organizados como uma espécie de diálogo entre os militantes quanto aos temas
por eles expostos nas entrevistas realizadas pelo Projeto Banco de Memórias da
Inclusão. Em “Fazendo história”, oferece-se o relato de mais dez líderes dessa
história. Seis relatos são o resultado de entrevistas realizadas pelo Projeto Banco
de Memórias da Inclusão, do Memorial da Inclusão: padre Geraldo, Gilberto
Frachetta, Isaura Helena Pozzatti, José Roberto Amorim, Sandra de Sá Brito
Maciel e Wilson
54
. LE GOFF, Jacques. História e memória.Trad. Irene Ferreira, Bernardo Leitão e Suzana Ferreira Borges, Ed.
Unicamp, Campinas, 2003.
173
Akio Kyomen. Os outros quatro são entrevistas feitas para a pesquisa de
doutoramento de Lia Crespo: Ana Rita de Paula, Canrobert de Freitas Caires, Lilia
Pinto Martins e Luiz Baggio Neto. Essas narrativas são o resultado das entrevistas
trabalhadas55, compreendidas como documentos históricos, tendo sido revistas,
corrigidas, modificadas e reconhecidas como autênticas por seus autores.
A história oral de vida, ao mesmo tempo em que se interessa pelas
condições sociais que influenciaram e deram sentido às vidas singulares, também
procura a história do indivíduo para entender a natureza dos grupos.
A matéria-prima da história oral de vida é o relato construído a partir de
memórias selecionadas pelos narradores. Não é, portanto, um registro “objetivo”,
“incondicional”, “isento”, “imparcial”. Pelo contrário, só guardamos na memória o
que é importante para nós. A memória narrada se altera conforme a fase da vida.
Ela não é apenas o relato do passado. Também revela o presente e permite
vislumbrar o futuro.
Se a narrativa da nossa história pessoal é uma escolha daquilo que é
importante o suficiente para ser registrado em nossa memória, a história dos
grupos é a soma dos registros considerados significativos por seus membros. A
capacidade de compartilhar essa memória, como produtores e receptores, é o que
possibilita a cada um de nós pertencer a um grupo e estabelecer nossa
identidade. O compartilhamento criativo e dinâmico da memória, entre o indivíduo
e o grupo, constitui a memória social. Na perspectiva da história oral, porque o
indivíduo não representa o coletivo, nem o conjunto é homogêneo, num mesmo
grupo, podem existir e existem múltiplas histórias.
É importante ressaltar aqui algo já dito no capítulo primeiro, o de que o
Banco de Memórias da Inclusão, representado nesta fase de formação pelas 33
entrevistas explicitadas neste livro, nasceu simultaneamente à Exposição
Memorial da Inclusão: os Caminhos da Pessoa com Deficiência.
O Memorial da Inclusão56 reúne documentos (escritos, fotos, atas, livros,
revistas, cartazes, vídeos) guardados por décadas pelos militantes do movimento
social da pessoa com deficiência. Os protagonistas do AIPD de “Fazendo história”
e de “Memórias da luta” são homenageados no Memorial da Inclusão e
acompanharam de perto a sua inauguração. A estreita relação entre o processo
de constituição do Memorial da Inclusão, enquanto narrativa histórica por meio de
documentos sobre o AIPD e o movimento social no Brasil, e a história oral dos
protagonistas dessa história dá ao conjunto de materiais (documentos expostos e
entrevistas) a peculiaridade de contribuir sobremaneira para uma visão mais
completa da luta e conquista de direitos das pessoas com deficiência. Por meio
das entrevistas, as reivindicações, os temas e os embates paradigmáticos tratados
pelo movimento social, desde o AIPD, convencem pela persuasão do vivido.
Além dos 33 relatos que compõe este livro comemorativo dos 30 anos do
AIPD, os demais capítulos são também documentos escritos por militantes do
movimento de luta por direitos das pessoas com deficiência: Elza Ambrósio,
Romeu Sassaki, Lia Crespo e Vanilton Senatore.
. “Trabalhar uma entrevista equivale a algo como tirar os andaimes de uma construção quando essa fica
pronta.” MEIHY, José Carlos Sebe Bom. Manual de História Oral. São Paulo, Loyola, 2005.
55
56
. Cuja história será apresentada no último capítulo deste livro.
174
Conforme Ecléa Bosi57, para compreender verdadeiramente alguma coisa,
não é suficiente
a simpatia (sentimento fácil) pelo objeto de pesquisa, é preciso que nasça uma
compreensão sedimentada no trabalho comum, na convivência, nas condições
de vida muito semelhantes. (...) é preciso que se forme uma comunidade de
destino para que se alcance uma compreensão plena de uma dada condição
humana. Comunidade de destino já exclui, pela sua própria enunciação, as
visitas ocasionais ou estágios temporários no locus da pesquisa. Significa sofrer
58
de maneira irreversível (...) o destino dos sujeitos (estudados). (BOSI, 1987).
Afora o elo inquestionável que reúne relatos de militantes e autores de
capítulos – assim como inspirou a realização do Memorial da Inclusão –, a mesma
comunidade de destino é compartilhada pelos demais pesquisadores envolvidos
no projeto deste livro. Para esses, “sofrer de maneira irreversível o destino dos
sujeitos estudados” emerge do potencial que as reivindicações, a forma de luta e
os êxitos logrados pelas pessoas com deficiência têm de tornar nossa sociedade
mais inclusiva. Não se trata, portanto, de conquistas que beneficiam apenas um
dado segmento social, mas, sim, todos os cidadãos.
Esperamos que você leitor – ao mergulhar nestas histórias repletas de
emoção e bom humor – também se sinta fazendo parte dessa nossa comunidade
de destino.
57
. Escritora e professora do Instituto de Psicologia da USP.
58
. BOSI, E. Memória e sociedade: Lembranças de velhos. São Paulo: T.A. Queiróz e Edusp, 1987.
175
Ana Rita de Paula
Imagem. Retrato colorido de Ana Rita de Paula. Contêm epígrafe: “O AIPD foi extremamente importante para a organização e difusão dos movimentos das pessoas
deficientes significou a possibilidade de difusão das necessidades, das ideias, das reivindicações das pessoas deficientes, em nível internacional. Para nós, o AIPD
significou ampliação e impulso para as organizações recentemente criadas”
eu nome é Ana Rita de Paula, nasci em 26 de janeiro de 1962, sou psicóloga e
tenho uma deficiência física congênita e progressiva. Tenho algumas
qualidades e alguns defeitos. Gosto de brincar dizendo que, dentre os defeitos,
sou tolerante demais e muito impulsiva. Entre as qualidades, sou tolerante demais
e, às vezes, ousada, vulgo impulsiva.
A questão da deficiência permeia minha vida pessoal, acadêmica e
profissional. Vivo a deficiência no meu cotidiano, como pessoa. Usei a deficiência
como tema do meu mestrado e do meu doutorado. E, profissionalmente, também
trabalhei – na Secretaria de Estado da Saúde e no Fundo Social de Solidariedade do
Estado de São Paulo – com a questão das pessoas com deficiência.
Em termos acadêmicos, durante o mestrado, quis compreender as
vivências e as representações sociais da condição feminina associada à condição
da deficiência física. Entrevistei mulheres e homens deficientes físicos para saber
um pouco da história de vida de cada um. Uma das coisas que pude concluir desse
estudo é que, ao mesmo tempo em que a deficiência e a condição feminina são dois
fatores de desvantagem social, um sobreposto ao outro e, portanto, um agravando o
outro, essa vivência também é tida como uma vivência de compensação. Ao mesmo
tempo em que a deficiência e a condição feminina se sobrepõem no aspecto
negativo, a sexualidade, por exemplo, pode ser vista como algo que repara e
restaura a pessoa com deficiência. É interessante notar como situações e vivências
tão opostas acontecem, às vezes, na mesma pessoa. A mesma pessoa que se
sente sobremarginalizada relata – nas situações em que vive a sexualidade – como
a condição feminina é restauradora de sua inteireza como pessoa. Isso é muito
legal.
No doutorado, tentei mostrar e divulgar a situação degradante de vida das
pessoas com deficiência internadas nas chamadas instituições totais ou instituições
asilares. Tomei em análise e descrevi o cotidiano da população internada de uma
instituição asilar daqui de São Paulo, que já fechou, mas que era emblemática das
instituições existentes em nosso país. Uma característica relevante que descobri
com esse trabalho é que, ao contrário do que se pensa, não existem asilos
específicos só para pessoas deficientes ou asilos só para idosos ou clínicas
psiquiátricas só para pessoas com doenças mentais. Na verdade, o que existe é a
instituição do asilo que desconsidera essas diferenças. Numa instituição para
deficientes, há pessoas com deficiência física, com deficiência mental e também
idosos, alcoólatras, psicóticos. Da mesma forma, num asilo para velhos, além de
idosos, há pessoas deficientes jovens e, às vezes, até crianças. Há uma mistura da
clientela, uma indefinição do objeto dessas instituições. O que existem mesmo são a
marginalização e a segregação como objeto da institucionalização. O abandono e a
miséria são as reais razões para a internação.
No pós-doutorado, vou dar continuidade a essa busca de compreensão do
processo de asilamento iniciado no doutorado. Vou acompanhar uma instituição, em
Salvador, que já vem fazendo uma série de ações e desenvolvendo estratégias para
se abrir e desmontar os mecanismos de segregação e asilamento, a partir da
criação de lares com apoios para essas pessoas morarem na comunidade. Meu
trabalho será acompanhar o processo de implementação dessas
M
176
moradias inclusivas para pessoas com deficiência. Também continuo trabalhando com a
temática do mestrado, ou seja, com a questão da sexualidade. Escrevi o livro
Sexualidade e deficiência, rompendo o silêncio (Expressão e Arte, 2006), com o objetivo
de fazer a sociedade e os profissionais (não exatamente os profissionais especializados
na área da deficiência, mas, por exemplo, os professores) a refletirem sobre a condição
humana, portanto sexual, das pessoas com deficiência. Apesar de, hoje em dia, o
discurso estar mais aberto, a gente fala ainda de um modo exterior. Dificilmente, a gente
fala das vivências íntimas que a gente tem. Então, se a sexualidade continua sendo um
tabu, quando há a deficiência associada, discutir o assunto fica ainda mais difícil. Mas, a
situação mudou bastante desde 25 anos atrás, quando começou o movimento das
pessoas deficientes. Acompanhando a mudanças das representações que a sociedade
tem do que é a pessoa deficiente, houve alteração também em relação à sexualidade
das pessoas com deficiência. Hoje em dia, um número muito menor de pessoas se
espanta ou fica indignado com uma pessoa deficiente vivendo uma vida sexual ativa,
tendo filhos, tendo parceiros, vivenciando essa condição.
Nunca convivi, na infância e adolescência, com outras pessoas deficientes.
Isso só veio a acontecer, em 1980, quando prestei vestibular na Universidade de São
Paulo (USP) e na Pontifícia Universidade Católica (PUC). Naquela época (não sei se
ainda hoje é assim), as pessoas com deficiência ou com alguma necessidade especial,
para realizarem a prova, eram colocadas em salas específicas. Na USP, intuitivamente,
colhi nomes e endereços de pessoas para manter contato futuro. Na PUC, aconteceu
um incidente. O Edgard, um dos rapazes que fazia o exame, tinha paralisia cerebral e,
por não conseguir escrever, estava reivindicando que outra pessoa escrevesse a prova
por ele. Mas a coordenação do vestibular não permitiu. Ele zerou em redação, o que
eliminou qualquer possibilidade de passar na PUC. As pessoas que estavam ali ficaram
muito indignadas. Mas, não bastava a indignação. A indignação tinha que produzir
algum efeito. Era preciso tomar uma atitude. Nós tentamos várias coisas, entre elas,
falar com dom Paulo Evaristo Arns. Infelizmente, não conseguimos reverter a situação.
Felizmente, o rapaz passou em outra universidade. Não sei mais dele hoje. Perdi o
contato. Mas imagino que tenha se formado, que esteja tudo bem. Esse incidente
significou um passo importante para a gente montar uma organização não
governamental voltada para a defesa dos direitos das pessoas com deficiência.
Depois do vestibular, reuni em minha casa algumas pessoas que havia
conhecido durante o vestibular na USP e na PUC. Montamos um grupo chamado Núcleo
de Integração de Deficientes (NID), que tinha como característica a mobilização, a
denúncia de violação de direitos e a organização das pessoas deficientes para
reivindicarem suas necessidades junto ao poder executivo.
Mas, não era só o NID que estava sendo formado naquele momento. Uma
série de outras organizações também com caráter reivindicatório estava surgindo, na
área da deficiência e em outras áreas. Na verdade, a gente vivia um momento histórico
especial, com a abertura política no Brasil, com a volta dos anistiados e com a
mobilização da sociedade em vários setores e a eclosão de vários movimentos por
direitos. Havia, então, o movimento dos negros, das mulheres, dos homossexuais, o
movimento contra a carestia. E as pessoas deficientes também estavam se organizando
a partir desse clima social que havia na época. Passamos a ter contato com grupos de
pessoas deficientes de outros Estados, como Rio de Janeiro e Brasília.
Acho que o primeiro evento mais significativo do movimento foi o 1º Encontro
Nacional de Entidades de Pessoas Deficientes, que reuniu, entre 22 e 25 de outubro,
em Brasília, mais de 500 participantes, estabeleceu os rumos do movimento nacional e
culminou com a criação da Coalizão Nacional de Entidades de Pessoas Deficientes.
As pessoas deficientes conseguiram realizar esse encontro sem nenhum
patrocínio, sem apoio algum do poder executivo, legislativo ou de empresários.
Provenientes de vários Estados brasileiros, os participantes viajaram até o local do
evento, a Universidade de Brasília (UnB), com recursos conseguidos com a
comunidade na cidade de origem ou por conta própria.
177
Quando chegavam, ficavam hospedados, na capital, em conventos, alojamentos
esportivos e do Exército. Muitas famílias locais cederam quartos e até apartamentos
vazios para que os participantes ficassem hospedados. Essa foi uma experiência
interessante também para a comunidade de Brasília, que teve a oportunidade de
conviver com as pessoas deficientes.
Após o primeiro encontro nacional – um evento extremamente significativo
–, ocorreram outros com o mesmo caráter. E o mais legal disso é que esses eventos
foram crescendo em número de participantes. O segundo encontro nacional,
realização em 1981, já pela Coalizão Nacional (criada durante o Encontro Nacional
em Brasília, em 1980), chamou-se 1º Congresso Brasileiro de Pessoas Deficientes
e reuniu, num amplo local em Recife, quase 2 mil participantes, com um número
aproximado de 600 pessoas deficientes ou mais. Organizado por Messias Tavares
de Souza, um dos líderes do movimento, o encontro de Recife foi marcante e
recebeu bastante atenção da mídia na época, até porque foi realizado em 1981,
escolhido pela Organização das Nações Unidas (ONU) como o Ano Internacional
das Pessoas Deficientes (AIPD).
O AIPD foi extremamente importante para a organização e difusão dos
movimentos das pessoas deficientes. Significou a possibilidade de difusão das
necessidades, das ideias, das reivindicações das pessoas deficientes, em nível
internacional. Para nós, o AIPD significou ampliação e impulso para as
organizações recentemente criadas. As organizações puderam se difundir por todo
o Brasil e ampliaram a possibilidade de intercâmbio entre os movimentos regionais.
Para mim, pessoalmente, 1981 foi um ano repleto de atividades. Foi o
início de um novo ciclo de vida, pois tinha acabado de entrar no Instituto de
Psicologia da USP e tentava me estruturar para morar sozinha. Começava a vida
adulta com muita garra, com imensas possibilidades que se abriam à minha frente.
Pude reconhecer, em mim, uma intenção que já existia, desde minha infância: a
ideia de trabalhar com a questão da deficiência, não só, clinicamente, como
psicóloga, mas também como alguém que podia compreender a deficiência como
um fenômeno social e historicamente construído. Alguém que podia transformar a
dimensão individual e pessoal da deficiência numa dimensão social e coletiva, de
grupo. Então, o ano internacional foi muito importante, nesse aspecto. Foi quando
comecei a me firmar como pessoa, cidadã, pessoa com deficiência, estudante, dona
de casa, enfim, como alguém que estava tomando a vida nas próprias mãos.
Nos últimos anos, por causa da minha deficiência, que progrediu bastante
e tornou mais difícil sair de casa, eu me afastei um pouco dos movimentos. Por isso,
foi muito emocionante o evento “O AIPD 25 Anos Depois, 1981: Ano Internacional
das Pessoas Deficiente. 2006: As Memórias, as Conquistas e o Futuro”, realizado
pelo Centro de Vida Independente Araci Nallin e um grupo de organizações
apoiadoras, nos dia 3 e 4 de dezembro de 2006, em São Paulo. Pude encontrar
pessoas que não via há muitos anos. Encontrar esses amigos e ver essas pessoas
realizadas com suas carreiras consolidadas, reconhecidas socialmente, cada uma
na sua área, foi uma coisa muito emocionante. Ao mesmo tempo, também me
emocionei ao ver as pessoas que ingressaram no movimento muito tempo depois.
Elas também estavam lá se solidarizando e confraternizando com os ditos
“jurássicos”. Foi um processo muito legal que reacendeu em mim aqueles ideais que
me movimentaram na época do ingresso no vestibular. Pude reencontrar essa
energia, essa utopia que me moveu e que continua me movendo.
O AIPD e os encontros nacionais foram muito importantes para a
mobilização e consolidação do movimento, cuja militância significava travar uma
batalha cotidiana. Mas, além disso, era preciso estar sempre atento às propostas
governamentais e do poder legislativo e escrever frequentemente para os jornais,
para denunciar e levantar bandeiras, era necessário levar adiante a concretização
dessas reivindicações. Para isso, havia, por exemplo, as reuniões que discutiam a
organização e mobilização do movimento e os encontros estaduais ou municipais
que deram origem aos conselhos de direitos compostos por representantes da
comunidade. Os conselhos
178
de direitos pretendiam ser um órgão do poder executivo, cujo processo de decisão
deveria estar nas mãos das pessoas deficientes. Supunha-se que o ideal seria
juntar, nesses órgãos, os movimentos de pessoas deficientes, as instituições
prestadoras de serviço na área da deficiência e os representantes do poder
executivo, ou seja, das secretarias de Estado ou, no caso do âmbito municipal, das
secretarias municipais.
Em 1984, de 21 a 23 de setembro, foi realizado o 1º Seminário Estadual da
Pessoa Deficiente, que contou com a participação de cerca de 700 representantes
de pessoas deficientes e de prestadoras de serviço na área da deficiência de
diversas cidades do Estado de São Paulo. Esse seminário definiu a política estadual
em relação às pessoas com deficiência, determinou como deveria ser o Conselho
Estadual para Assuntos da Pessoa Deficiente (CEAPD) e elegeu os conselheiros
representantes da sociedade civil para a primeira gestão. Naquele mesmo ano, o
então governador Franco Montoro oficializou essas decisões através de um
decreto.59 Depois, ao longo da década, outros conselhos semelhantes foram criados
em diversos Estados, mas o CEAPD foi o pioneiro do gênero no Brasil. Entretanto,
ao contrário do que se possa imaginar, foi uma batalha conseguir a instalação
desses conselhos e posso garantir que foi uma luta diária atuar no CEAPD, para
cuja primeira gestão tive a oportunidade de ser eleita conselheira suplente de Araci
Nallin, a representante titular do NID.
Havia no CEAPD disputas de espaço e de representação bastante difíceis.
Eram lutas cotidianas, aparentemente, por coisas pequenas, detalhes, mas que, no
fundo, eram muito importantes. Por exemplo, as reuniões eram agendadas para
dias de semana porque os funcionários das entidades prestadoras de serviço e os
representantes do governo queriam que elas acontecessem durante seu período
normal de trabalho. No entanto, as pessoas deficientes não trabalhavam no poder
público. Muitas tinham sua própria carreira e seus empregos sem nada a ver com a
deficiência. Para essas pessoas era muito mais complicado faltarem ao trabalho ou
mesmo pedirem dispensa para participarem de reuniões. Porém, os representantes
do governo e os representantes das entidades prestadoras de serviço formavam a
maioria e decidiram que as reuniões aconteceriam durante a semana, no horário
comercial, prejudicando a participação das pessoas deficientes.
Aos poucos, a gente começou a ver que as pequenas e grandes decisões
acabavam sempre privilegiando os setores governamentais e das entidades
prestadoras. Outro exemplo demonstrativo desse fato foi a questão do carro. O
conselho estadual tinha direito a um veículo para sua diretoria. As pessoas
deficientes reivindicavam uma perua tipo van, para transportar pessoas em cadeira
de rodas. Mas, a Aida, presidente de então, que era uma pessoa não deficiente e
representante da Secretaria de Promoção Social, exigiu e obteve um carro oficial
comum.
A própria eleição da presidência foi um exemplo marcante de como os
setores que representavam o governo e as prestadoras de serviço dominavam o
processo de decisão dentro do conselho em detrimento dos interesses das pessoas
deficientes. Outras gestões também corroboraram essa mesma tendência, elegendo
representantes das entidades prestadoras. Na época, foram pequenos os períodos
em que a presidência foi exercida pelas pessoas deficientes. No entanto, é
importante deixar claro que, na verdade, a gente não reivindicava que,
necessariamente, fosse eleita para a presidência do conselho uma pessoa com
deficiência, mas, sim, que fosse escolhida uma pessoa oriunda do movimento de
pessoas deficientes. A questão não era representar, no próprio organismo, a
deficiência, mas, sim, ser a representante de um setor, de uma
59
. O Conselho Estadual para Assuntos da Pessoa Deficiente, criado pelo artigo 1º do Decreto nº 23.131, de 19
de dezembro de 1984, passou a denominar-se Conselho Estadual para Assuntos da Pessoa Portadora de
Deficiência (CEAPPD) a partir do Decreto nº 40.495, de 29 de novembro de 1995.
179
parcela componente do conselho. Todas essas disputas de poder provocavam extremo
desgaste pessoal e dos grupos e o conselho andou sempre com muita dificuldade.
Depois do conselho estadual, no final de 1985, houve, no município de São
Paulo, o processo de constituição do Conselho Municipal da Pessoa Deficiente (CMPD),
que funcionou somente durante o ano de 1986, na gestão de Jânio Quadros. E a gente
sabia que muitos outros conselhos estaduais e municipais estavam sendo criados por
todo o Brasil.
Outro tipo de evento importante para o movimento foram os seminários, os
congressos, os encontros técnicos, que passaram a contar com a participação de
militantes dos movimentos de pessoas deficientes, ou seja, pela primeira vez, as
próprias pessoas deficientes estavam sendo ouvidas e discutindo suas questões.
Começava a esvanecer a divisão rígida entre pessoas com deficiência, profissionais e
estudiosos da área. Essas posições, essas instâncias sociais começavam a se mesclar
cada vez mais com o aparecimento de pessoas deficientes que estudaram e se
tornaram profissionais especialistas, por exemplo, em reabilitação e acessibilidade, e
passaram a discutir teoricamente essas questões na sociedade brasileira.
Por exemplo, nós, do NID, e uma derivação do NID, o GEAR-Grupo de
Estudos de Alternativas em Reabilitação, com o apoio do jornal Folha de S.Paulo,
montamos um seminário para discutir o modelo assistencial em reabilitação e possíveis
alternativas a esse modelo, dado que as críticas ao processo de reabilitação, tal como
vinha historicamente acontecendo, foram feitas pelos movimentos com muita
propriedade e profundidade.
Desde aquela época, a gente tinha uma série de reivindicações explícitas nas
áreas da saúde, educação, trabalho, acessibilidade, meios de transporte, cultura, esporte,
lazer etc. Em termos de saúde, os movimentos já reivindicavam que a rede pública
oferecesse equipes e serviços de reabilitação, de forma gratuita, nas unidades básicas de
atendimento. Nós basicamente reivindicávamos a difusão de um novo modelo
assistencial, no qual as pessoas deficientes tivessem voz ativa e decisória no próprio
processo de reabilitação, uma rede hierarquizada de assistência no sistema público, com
atendimento prioritário às necessidades das pessoas mais carentes. No que diz respeito à
educação, a gente lutava pela então chamada educação integrada, hoje, educação
inclusiva. Lutávamos pela criação, difusão e implementação de cursos profissionalizantes
e pela abertura do mercado de trabalho para as pessoas com deficiência. A gente
reivindicava a existência de espaços de esporte e de lazer que também considerassem as
necessidades específicas das pessoas deficientes. A gente queria que o transporte e os
espaços públicos fossem acessíveis a todos os tipos de deficiência. Uma reivindicação
importante que tem sido atendida de modo bem satisfatório é o acesso às zonas
eleitorais. E, perpassando todas essas reivindicações, tínhamos alguns objetivos muito
concretos, objetiváveis, como, por exemplo, o de incluir a voz das pessoas com deficiência
como mais uma voz social que devesse ser ouvida, prioritariamente, de forma privilegiada.
Queríamos que as reivindicações e as questões das pessoas deficientes não fossem
relegadas a um segundo plano, mas, sim, que fossem incluídas em todos os programas e
projetos governamentais e não governamentais. E, por fim, almejávamos construir o
exercício da nossa cidadania, numa realidade que desrespeitava os direitos de quase
todos. Isso era e é uma coisa bastante difícil.
Nós tínhamos inúmeros documentos com listas e listas de reivindicações. Mas,
basicamente, queríamos que os direitos e as necessidades das pessoas com deficiência
fossem atendidos nos mesmos espaços das outras pessoas; que esses direitos fossem
alvo de políticas públicas que garantissem o exercício da cidadania; que cada pessoa
em particular pudesse ter um novo espaço dentro da família, da comunidade e que
fosse reconhecida como pessoa, como ser humano e que isso valesse para todas as
pessoas deficientes de forma universalizada. Sobretudo, reivindicávamos que a
participação das pessoas deficientes fosse uma exigência, naturalmente, incluída na
discussão de todas as políticas públicas e, particularmente, naquelas diretamente
ligadas às pessoas deficientes. Hoje, isso é traduzido numa frase muito feliz: “Nada
sobre nós
180
sem nós”60. Mas, na verdade, esse conceito já estava presente, desde os primórdios
do movimento e, nesse aspecto, a gente avançou consideravelmente. Acho que
conquistamos coisas concretas, como aumento de serviços ao lado de uma
transformação cultural.
Fazendo um balanço rápido, acho que, se eu perguntar a uma pessoa
deficiente, isoladamente, se a vida dela melhorou, pode ser que ela diga que não
muito, porque a situação socioeconômica do Brasil não melhorou. A gente não teve,
efetivamente, uma redistribuição de renda, uma diminuição das desigualdades
sociais, uma melhora na assistência à saúde, educação, ao trabalho. Eu acho que
isso andou – se é que andou – muito pouco. E é obvio que a questão das pessoas
deficientes está intimamente ligada a essas questões macroestruturais. Então, se
essas questões não avançam, o atendimento às necessidades das pessoas
deficientes também fica prejudicado.
Mas houve uma mudança radical na representação que a sociedade faz
das pessoas com deficiência. Nosso desejo de transformar as pessoas deficientes –
de meros espectadores, pacientes, passivos – em agentes sociais, aconteceu,
efetivamente, sem dúvida. A mídia, por exemplo, quando vai tratar dessa questão,
não ouve mais (somente, pelo menos) os profissionais, a universidade e/ou as
instituições especializadas, mas busca, principal e fundamentalmente, os
movimentos. Essa mudança é fundamental. Outra mudança importante foi o que
aconteceu em relação à acessibilidade. A gente não conseguiu tornar as cidades
totalmente acessíveis. Mas, sem dúvida, há muito mais locais com acessibilidade,
hoje, do que naqueles anos. É obvio que ainda existem construções extremamente
novas que não são acessíveis. A Universidade de São Paulo mesmo, muitas vezes,
peca nas reformas e nas construções de seus prédios. Com certeza é preciso fazer
mais. Mas, já foram dados passos decisivos. A questão da reabilitação e do
atendimento à saúde está, definitivamente, posta na rede pública. Isso significa que
todas as pessoas deficientes são atendidas satisfatoriamente, com qualidade, com
respeito? Como acontece com o restante da população, a resposta é não. Mas, pelo
menos, a gente conseguiu entrar na fila da desassistência ou da má assistência que
tem toda a população. E isso (embora possa parecer muito louco) é um avanço
porque, até então, a unidade de saúde não era nem pensada como um lugar que
poderia ser frequentado por pessoas com deficiência. Não tinha sanitários para
cadeiras de rodas, por exemplo. A gente não tinha lugar nem na fila. Hoje, as
pessoas deficientes, pelo menos, têm a possibilidade de entrar na fila.
A educação, hoje, no Brasil, está pari passo com muitos países
desenvolvidos que implementam a Educação Inclusiva em seus sistemas
educacionais. É obvio que isso ainda está muito no começo. A gente ainda está
experimentando formas de concretizar isso na prática. Mas nós estamos
trabalhando nesse sentido. Por exemplo, ontem mesmo, soube de uma boa notícia:
pela primeira vez, no Estado de São Paulo, temos mais alunos com deficiência
atendidos de forma inclusiva pela rede pública do que alunos atendidos pelas
instituições especializadas. Entretanto, o recurso que vai para as instituições
especializadas é quase o triplo daquele destinado ao serviço público. Isso
demonstra a falácia do argumento de que o serviço público atende mal gastando
muito. O serviço público atende ainda mal, mas atende muito e com custo muito
baixo. Se a gente tiver condição de mudar isso e, pelo menos, dividir mais
equanimente os recursos, teremos condições de melhorar muito a educação
pública, pois, o que acontece com as pessoas deficientes é um exemplo do que
acontece com o alunado como um todo, na verdade.
. Em 2004, “Nada Sobre Nós Sem Nós” (Nothing About Us Without Us) foi escolhido como tema para o Dia
Internacional das Pessoas com Deficiência (3 de dezembro), proclamado pela Assembleia Geral da ONU, em
outubro de 1992, para promover o conhecimento sobre assuntos relacionados a pessoas com deficiência e
mobilizar apoios para garantir sua dignidade, seus direitos e seu bem-estar. A cada ano, a ONU escolhe um tema
especial para o Dia Internacional das Pessoas com Deficiência.
60
181
Em relação ao mercado de trabalho, é inegável, hoje, que as empresas
estão buscando pessoas deficientes. Verdade que é para atender a uma
legislação61. Mas essa legislação foi necessária para que uma nova ordem, uma
nova lógica se estabelecesse no mercado e essas pessoas tivessem seu lugar
garantido. Se a gente continuar nessa linha, vamos ter as pessoas participando em
condições de igualdade com os demais.
Uma área que evoluiu muito pouco é a dos transportes. Essa área, sem
dúvida, pouco avançou porque está fundamentada no investimento tecnológico de
alto custo. Para um país em desenvolvimento como o Brasil é muito difícil
concretizar essas reivindicações. Mas não acho que isso deva desestimular os
líderes dos movimentos. Pelo contrário, a gente precisa se concentrar mais nessa
necessidade.
No começo do movimento, tivemos lideres fundamentais. E uma coisa legal
em relação a eles é que tinham uma força pessoal muito grande. E não estou
falando de super-heróis, não estou falando de gente que se destaca, que faz coisas
grandiosas, extraordinárias. Estou falando de gente que tem força para lidar com o
cotidiano tão adverso assim, de gente que construiu sua vida de forma participativa,
interessante, em uma situação muito adversa. Hoje, é mais fácil. As pessoas
deficientes têm mais possibilidades de se realizar em termos educacionais,
profissionais, afetivos, sexuais, tudo isso. Os líderes do movimento viveram
situações muito mais adversas. Duas pessoas foram os grandes representantes
dessa força. Uma delas foi Maria de Lourdes Guarda, que viveu uma condição
incapacitante severa e, sem grandes posses financeiras, reorganizou a vida e trouxe
junto com ela muitas pessoas que tirou da estagnação. A outra pessoa foi o
Cândido Pinto de Melo, principalmente, por sua visão política e humanista. O
Cândido fazia, através da própria pessoa, a junção da política dos direitos humanos
em geral com a política dos direitos das pessoas deficientes. Ele era a
personificação dessas duas lutas em uma só.
Após um processo de desmobilização das pessoas deficientes, a gente
vive hoje outro momento histórico. É inegável que já se passaram muitos anos do
movimento de luta pelas Diretas Já. De lá para cá, exceto o impeachment do
Fernando Collor, a gente não viveu mais nada tão forte coletivamente como aquilo.
E, infelizmente, as pessoas se desmobilizaram. Mas não há o que lamentar. Eu
acho que a gente tem que encarar os fatos conforme eles vão se desenvolvendo.
Hoje, as pessoas deficientes ocupam espaços importantes no governo. E talvez seja
a partir daí que a gente deva trabalhar. Sem acabar, obviamente, com os
movimentos, mas, sim, mantendo esse germe, essa luzinha acesa.
Acho que uma de nossas principais conquistas é que o nosso destino está
mais amarrado e mais próximo do destino da população inteira. O futuro das
pessoas deficientes depende fundamentalmente do futuro do Brasil. Falar isso, hoje,
parece óbvio, mas, antes não era tão óbvio assim. Há algum tempo, se houvesse
avanços sociais, isso significava avanço para algumas pessoas e não,
provavelmente, para as pessoas com deficiência, que ficavam sempre deixadas de
lado, em último lugar. Hoje, acho que os avanços sociais englobam mais as
pessoas com deficiência.
Hoje, fala-se muito na inclusão. Mas a gente já falava as mesmas coisas 26
anos atrás. Na verdade, eu acredito numa história que se desenvolve não pela
ruptura. Os movimentos não rompem com situações anteriores. Quer dizer, algumas
vezes, eles rompem, mas, na maioria das vezes, há um processo de transformação
lenta, gradual, no qual uma ideia se inicia lá atrás, se desenvolve e se implementa
com o passar do tempo. Não acredito em revoluções, mas em construção.
61
. Lei 8.213, de 1991.
182
Imagem. Diário Popular, 24 de julho de 1980.
“Deficientes físicos: discutidas todas as dificuldades, prossegue luta pela reabilitação”.
A criação de uma coalizão nacional de entidades que se dediquem à reabilitação de deficientes físicos; a institucionalização do Ano Internacional do Deficiente Físico; a
implantação de matéria sobre reabilitação de deficientes físicos nos currículos de medicina, psicologia, serviço social, educação, enfermagem e terapia ocupacional; a
conscientização de que o deficiente físico tem capacidade produtiva; a alteração e adaptação da sinalização viária; a ampliação de incentivos fiscais para as empresas
que admitirem deficientes físicos nos seus quadros. Estas são algumas das propostas do 2º Congresso Brasileiro de Deficientes Físicos, que se realizou na Pontifícia
Universidade Católica de São Paulo o dia 21 até ontem.
O deficiente, físico ou visual, diz Maria da Penha Boucinhas, responsável pelo projeto-piloto que a Companhia de Engenharia de Tráfego (CET), está implantando,
“tem muitos problemas de locomoção numa cidade como São Paulo. Uma pessoa normal se movimenta na velocidade de 1,3 m/s, enquanto um deficiente, idosos e
gestantes percorrem 0,45 m/s. Para atender a essas pessoas, a CET criou um programa-piloto de rotas especiais, que consiste na adaptação de calçadas, guias e
sinalização. A primeira rota já funciona nas imediações do Lar e Escola São Francisco”.
Mercado de trabalho. “O mercado de trabalho está saturado em muitos campos e fechado em outros — explica Laurecy Mello Ribeiro, técnica da Multi-Empregos
SENAC — para o deficiente físico a situação se agrava, não só pelo defeito em si, mas pela própria construção dos edifícios. Além disso há dificuldade de transporte,
locomoção e todos os problemas das cidades grandes”.
Laurecy Ribeiro trabalhou durante 10 anos na reabilitação de deficientes físicos, e devido à sua experiência na área ela foi convidada a participar do Congresso. Para ela
“é preciso sensibilizar o empresário que o deficiente físico tem capacidade produtiva, desde que lhe seja dada uma função que se compatibilize com o seu defeito”.
A Lei 6297 dispõe que todas as despesas com treinamento de pessoal sejam descontadas do Imposto de Renda das empresas. O Congresso de Deficientes propôs que a
lei seja estendida também ao treinamento com deficientes físicos.
Sexualidade. “Quando se fala em deficientes físicos, discute-se tudo, desde barreiras arquitetônicas até mercado de trabalho. Menos um assunto tabu, vital a todos os
seres humanos: a sexualidade”, afirmou Ana Maria Moraes Crespo, 26 anos, solteira, jornalista, deficiente física. “Ninguém fala sobre isso, é como se fossemos seres
assexuados”.
Maria Cristina Corrêa, 26 anos, estudante de Direito, endossa: “O que o homem vê na mulher é em primeira instância o seu corpo. E nós temos “n” pontos de
desvantagem em relação às outras mulheres. Os homens sempre nos vêem como amigas. Nada mais”.
Para Luis Celso Marcondes Moura, 35 anos, casado, psicólogo, deficiente físico “o grande problema está na aceitação do defeito pelo próprio deficiente. Não é fácil
encontrar pessoas que vejam outras qualidades que não as físicas (que na verdade são importantes num primeiro momento), e é realmente difícil para os não deficientes
descobrirem valores de caráter em pessoas portadoras de defeito físico. O que conta, no caso, será o nível de maturidade de cada um”.
Legenda: Diário Popular, 24 de julho de 1980. Acervo digital Memorial da Inclusão. Doação Romeu Sassaki.
183
Imagem. Matéria Jornal Shopping News – City News. 18 de setembro de 1982.
“Deficientes: em vez de pedir, agora eles vão cobrar dos políticos”, por Fernando Barros. Contém foto em branco e preto de mulher em cadeira de rodas, com legenda
“Ana Rita: ‘Temos um longo caminho pela frente’”.
As pessoas deficientes de São Paulo vão manter intercâmbio com os partidos políticos. Assim, esperam conseguir a criação de leis eficazes, fugindo da simples
demagogia. O ciclo de debates ‘Os partidos políticos e as questões das pessoas deficientes” será aberto quinta-feira, às 20 horas, na Paróquia São Luis (Rua Bela Cintra,
985), com a presença de Hélio Bicudo, Sérgio Santos e Erothildes Medeiros, candidatos, respectivamente, a vice-governador, deputado estadual e vereador pelo Partido
dos Trabalhadores. E pode ser visto como sinal de mudança de mentalidade, segundo os organizadores do encontro, ligados ao Núcleo de Integração de Deficientes
(NID). ‘As pessoas deficientes estão deixando de procurar os políticos para pedir favores, numa mentalidade de assistencialismo e caridade. A gente quer romper com
isso e formar a imagem do deficiente como integrante do processo social e político’, explica Ana Rita de Paula, representante do grupo.
Ela e seus companheiros pretendem ouvir os planos de cada partido em relação à comunidade e também fazer ouvir as suas reivindicações, evitando assim, conforme
diz, que as leis sejam criadas de cima para baixo, sem o necessário conhecimento de causa. Além disso, afirma ela, ‘o debate amplo diminui a possibilidade do uso
demagógico das reivindicações’ — que, aliás, não são poucas.
Nos encontros com os políticos, os organizadores pretendem expor a necessidade de serem abertas classes para deficientes mentais em escolas públicas (‘a segregação
em escolas especiais é um absurdo’, protesta Ana Paula), onde, além disso, a falta de acesso arquitetônico bloqueia a freqüência dos portadores de deficiências físicas,
ao passo que a inexistência de professores especializados marginaliza os deficientes auditivos e visuais.
Também a questão do trabalho será abordada: ‘Se o desemprego já é grande, imagine a nossa situação’, desabafa a representante do NID. Na sua opinião, a falta de
oportunidade empurra a maior parte dos deficientes para o subemprego: ‘Eles não estão nas esquinas da Avenida Brasil vendendo mentex porque querem: é o que resta
para eles, e isto reforça a imagem de coitadinho do deficiente’.
Com relação aos salários, também será apresentado um quadro onde impera a discriminação — ‘a mesma que ocorre com mulheres e negros’, segundo Ana. Quanto aos
transportes, será defendida a necessidade de adaptá-los. Outra proposta em pauta: eliminação de impostos ou criação de subsídios para as fábricas de equipamentos
especiais, já que uma cadeira de rodas comum, por exemplo, está custando cerca de Cr$ 100 mil.
Mobilizar e conscientizar. O NID pretende levar aos partidos a sua preocupação com o pequeno número de centros de reabilitação existentes, quase todos particulares.
‘Pagamos impostos como todo mundo; este serviço deveria ser prestado pelo Estado’, diz Ana Rita. Para ela, também a prevenção deve ser mais bem estudada:
‘Campanhas isoladas não solucionam o problema. O número de deficientes está diretamente ligado às condições de vida. É preciso melhorar ao mesmo tempo os
serviços de saneamento e abastecimento, por exemplo’.
Segundo estimativa da Organização das Nações Unidas, 10% da população de qualquer país é constituída por deficientes. Considerando a existência de um grupo tão
expressivo, o NID tem se esforçado para mobilizar estas pessoas e conscientizar a sociedade em geral — algo que, acredita, só o debate amplo pode conseguir. ‘Temos
um longo caminho pela frente’, comenta Ana Rita, lembrando que o ciclo a ser inaugurado quinta-feira representa um marco: pela primeira vez os deficientes tomam a
iniciativa de atuar politicamente. Afinal, afirma, ‘temos o direito de decidir sobre nossas vidas’.
O NID vem realizando uma série de palestras e seminários relacionados à questão dos deficientes e mantém grupos de estudos atentos para realizar projetos visando á
conquista dos seus direitos. Há um ano, por exemplo, foi elaborado um guia para o lazer de deficientes em São Paulo, indicando cinemas, bibliotecas, museus, teatros,
restaurantes e parques. Pronto o roteiro, o NID concluiu que, paralelamente, outros problemas deveriam ser resolvidos como a falta de transportes adequados para que
esses locais fossem alcançados. ‘Nenhuma atitude isolada vai ser solução’, diz Ana Rita. Por isso, a entidade resolveu fazer o convite aos políticos, até agora, porém,
aceito apenas pelo PT. Mas a representante do NID avisa que não há pressa: ‘Temos até novembro para esperar que os outros partidos se manifestem’.
Legenda: Shopping News, 18 de julho de 1982. Acervo digital Memorial da Inclusão. Doação Romeu Sassaki.
184
Imagem. Foto em preto e branco. Mesa de reunião com toalha de renda. Na parede, atrás da mesa, faixa “Ano Internacional dos Deficientes – Participação Plena e
Igualdade”, com símbolo do AIPD. Na mesa estão presentes três mulheres e um homem. Legenda: Reunião preparatória para o AIPD, ocorrida em 26 de fevereiro de
1980, no Colégio Anchietanum/S.P. Ana Rita de Paula, Leila Bernaba Jorge, Adolfo Perez Esquivel e Lia Crespo. Acervo digital Memorial da Inclusão. Doação Lia
Crespo.
Imagem. Foto colorida. Vinte pessoas posam para a foto num saguão. Legenda: 2º Congresso Brasileiro de Reintegração Social, julho de 1980, Pontifícia Universidade
Católica (PUC), São Paulo. Otto Marques da Silva, Araci Nallin, Luiz Celso Marcondes de Moura, Romeu Sassaki, Marisa Paro e Ana Rita de Paula. Acervo digital
Memorial da Inclusão. Doação Lia Crespo.
185
Canrobert de Freitas Caires
Imagem. Retrato colorido de Canrobert de Freitas Caires. Contêm epígrafe: “O AIPD fez a diferença. Se a ONU não tivesse declarado 1981 como o Ano Internacional,
todo e qualquer movimento que a gente tivesse feito, naquele momento, teria sido algo localizado. Não teria a repercussão que teve, com o apoio da imprensa e a
mobilização da sociedade, de autoridades nacionais e internacionais.”
ofri um acidente em 1973, num mergulho de piscina. Na época, tinha 16 anos,
morava em Araçatuba, interior de São Paulo, e fazia parte da equipe de
natação do clube Corinthians da cidade. Num domingo sem competição,
acabei dando um mergulho e batendo o rosto no ombro de um amigo meu que
estava nadando. Houve a compressão entre a sexta e a sétima vértebra da
cervical. Na época, houve uma paralisação total, ou seja, tetraplegia. Fiquei quatro
dias no hospital, mas a equipe médica achou que não tinha condições de fazer o
tratamento lá e me encaminhou para São Paulo. Cheguei, no Hospital das Clínicas
(HC), em 11 de janeiro e saí dia 11 de dezembro de 1973. Costumo até brincar
com os médicos, dizendo: “Olha, pega leve, porque tenho um ano de ‘residência’
no HC.”
Meu irmão e meu pai ficaram em Araçatuba. Junto comigo, vieram minha
mãe e minhas irmãs. Enquanto estive no hospital, elas ficaram cada uma na casa
de um parente. Em dezembro, alugaram uma casa em Pinheiros, para ficar perto
do hospital. Quando tive alta, fui para lá e fiquei 5 ou 6 anos fazendo ambulatório
no HC.
No início, a previsão médica era de que eu não sairia mais da cama.
Achei impossível e apostei com eles que não ia ser assim. Acho que, a partir daí,
minha relação com a deficiência fez um desvio para um pensamento bem positivo.
Não fiquei lutando contra a deficiência, mas, sim, para ganhar uma aposta.
Quando os médicos falaram que eu poderia começar a sair, a ir para
cadeira de rodas, os meus amigos, lá do clube de Araçatuba, fizeram um baile,
arrecadaram uma grana e compraram uma cadeira de rodas muito bonita,
vermelha, com encosto para a cabeça. No dia em que a colocaram na enfermaria,
chorei de emoção. Chamei todo mundo para ver que cadeira linda eu tinha
ganhado. Tive a felicidade ou a sorte, sei lá, de mudar um pouco o foco da coisa.
Não tinha perdido tudo, estava, sim, conquistando alguma coisa. Minha relação
com a deficiência sempre foi de conquista, não de perda.
Na ocasião, havia também outros problemas familiares. Meu pai estava
se distanciando da gente. Isso contribuiu para desviar um pouco a atenção da
família e minha experiência teve só a medida certa de preocupação e
planejamento familiar. Acho que conseguimos administrar tudo muito bem. A
gente não dramatizava as coisas. Encarava e topava toda parada. Só voltei a
estudar em 1975, com a ajuda de minha irmã que, no trajeto até a escola, nas
descidas, pegava carona na minha cadeira de rodas e, nas subidas, me
empurrava. A gente ia morrendo de rir da possibilidade de cair no meio da rua.
Contando, às vezes, as pessoas não acreditam, mas a gente se divertiu bastante.
Estávamos numa grande aventura.
Quando chegamos a São Paulo, éramos todos muito caipiras. Minha
irmã jurava que Araçatuba já tinha metrô há muito tempo. Confundia metrô com
trem, essas coisas. Mamãe teve mais problema porque, além da separação, via
o filho caçula naquela situação. Teve que assumir boa parte das
responsabilidades. Para ela, foi mais dramático, como
S
186
sempre é para toda mãe qualquer coisa que envolva os filhos. Mas, minhas
irmãs e eu não tivemos problema nenhum.
As pessoas estranhas nunca entendem quando falo isso, mas, não fiquei
dramatizando muito a deficiência. Qualquer pessoa que conviveu comigo, na
época, pode testemunhar que não estou minimizando, nem sublimando a
situação.
Aliás, por volta de 1978, – quando consegui uma vaga na Divisão de
Reabilitação Profissional de Vergueiro (DRPV), que se tornou a Divisão de
Medicina de Reabilitação (DMR)62, do Hospital das Clínicas –, uma profissional de
lá, minha amiga até hoje, me disse: “Can, mas, não é possível. Você está
passando por uma crise muito grande! Você tem que estar sublimando!” Eu falava:
“Mas, não tenho crise! Não ia mais sair da cama e estou levando a minha vida
numa boa. Para mim, está tudo ótimo!” Acho que ser uma pessoa mais prática e
objetiva acabou me ajudando muito nesse sentido. Deve ser muito difícil para
quem resiste a uma coisa que é inevitável. Acho que a pessoa sofre muito mais do
que sofri.
Até o acidente, eu era só um garotão, meio que pequeno-burguês, muito
preocupado com minhas competições de natação. Depois, comecei a ter uma
visão mais crítica da política, das questões sociais. Todos os meus amigos tinham
ficado em Araçatuba. Não tinha amigos meus mesmo. Pegava carona nos amigos
que minhas irmãs iam fazendo, aqui em São Paulo. Na DRPV, tive, pela primeira
vez, a oportunidade de fazer novas amizades. Chegava de manhã e saía no final
do dia. Havia uma equipe de profissionais jovens e bastante idealistas. Nossas
relações extrapolaram a relação paciente/profissional. Desde aquela época, até
hoje, a gente cultiva essa amizade.
No Hospital das Clínicas, havia reabilitação física, única e
exclusivamente. Mas, lá, na Vergueiro, era diferente. Havia até uma história de
que um deficiente tinha cedido o terreno com o compromisso de que a DRPV
fizesse reabilitação profissional. Havia uma oficina muito grande, com marcenaria
e outros tipos de trabalhos. Acabei sendo encaminhado para fazer um curso de
desenho mecânico e projetista de ferramentas, no Senai.
Na DRPV, vivia-se um momento muito fértil, muito fecundo. Havia uma
equipe de profissionais e um grupo de pacientes, clientes, predispostos a outra
abordagem na questão da reabilitação. Os profissionais que passaram por lá se
lembram daquela época como a melhor fase do centro de reabilitação.
Naquela época, as organizações de pessoas com deficiência eram
raríssimas. A gente só conhecia a Associação Brasileira de Deficientes Físicos
(Abradef), que não era lá um exemplo muito bom a ser seguido. Estimulados de
forma extraoficial pelos fisioterapeutas e assistentes sociais da DRPV, já que,
profissionalmente, não podiam se envolver, começamos a pensar na
necessidade de criar uma associação para defender nossos direitos. É difícil
saber se a idéia partiu dos profissionais ou dos pacientes, tamanha era a
ebulição do momento. Talvez, de repente, num sábado à noite, numa das
saídas, meio às escondidas, para tomar um chope, a gente tenha se
questionado: “Por que não?” Por que não fazer nossas próprias reivindicações e
lutar pelos nossos direitos? Acho que a ideia surgiu assim. No começo,
estávamos a Leila Bernaba Jorge e eu. Depois, vieram outras pessoas, como o
Rui Bianchi e uma patota bastante interessante. Assim, por volta de 1978,
nasceu
62
. A Divisão de Medicina de Reabilitação é uma unidade integrante do Hospital das Clínicas, inaugurada em 13
de janeiro de 1975. Inicialmente denominada Divisão de Reabilitação Profissional de Vergueiro (DRPV), atendia
pessoas portadoras de deficiência em fase produtiva e visava à capacitação profissional e à reinserção desses
pacientes no mercado de trabalho. Em 18/7/1994, sua denominação foi alterada para Divisão de Medicina de
Reabilitação – DMR, http://www.hcnet.usp.br/haux/dmr/.
187
a Associação de Integração do Deficiente (Aide 63), uma entidade legalizada,
estabelecida e registrada, com CNPJ, INSS etc. Até onde sei, uma das
primeiras, se não a primeira entidade a atender todos os tipos de deficiência.
Depois de um ano, mais ou menos, começamos a ouvir falar de um grupo
que se reunia, se não me engano, numa das salas das Faculdades Metropolitanas
Unidas (FMU). Começamos, então, a participar das reuniões do Movimento pelos
Direitos das Pessoas Deficientes (MDPD), que tinha essa característica de
movimento mesmo. Não era legalmente constituído. Era uma arena, da qual
participavam todas as pessoas e entidades mobilizadas naquele “levante dos
sentados”. Era um espaço aberto a todos. E, como estava chegando 1981, o ano
declarado pela Organização das Nações Unidas (ONU) como o Ano Internacional
das Pessoas Deficientes (AIPD), a gente levou tudo muito a sério. As reuniões da
Aide eram marcadas em períodos distintos, para que pudéssemos participar das
reuniões na FMU.
Quando participava das reuniões do movimento, a gente levava a voz
da Aide. Não era a voz do Canrobert, do Rui ou da Leila. Mas, sim, sempre, era
a voz da pessoa jurídica, do grupo. Depois de uns quatro ou cinco anos, o
MDPD sentiu necessidade de se constituir legalmente e a Aide estava com
dificuldade para manter um número de participantes que fosse representativo.
Houve a unificação e o MDPD adotou o CNPJ da Aide 64. Mas, no momento em
que se tornou uma entidade legalmente constituída, o MDPD deixou de ser
aquela arena na qual todas as entidades de reuniam e começou a perder um
pouco da sua força.
As coisas eram difíceis, naquela época. Para ter uma ideia, por incrível
que pareça, depois de ter ficado deficiente, nunca estudei num colégio onde
pudesse usar o banheiro. Essa experiência nunca tive. No colégio Fernão Dias,
em Pinheiros, eu entrava por uma portinha, lá nos fundos. Tinha que chegar uma
meia hora antes. Dar um berro e esperar alguém avisar o responsável para abrir o
portão. Ainda que não tenhamos obtido todos os frutos com os quais sonhamos,
acho que a realidade hoje é totalmente diferente daquela. Se, para alguns, ainda é
ruim, eles não têm ideia de como a realidade era muito mais complicada. Não
tínhamos nenhuma legislação que focasse os nossos direitos. Nenhum ônibus era
adaptado. Ainda não temos a quantidade e a qualidade de ônibus acessíveis que
gostaríamos, mas, já temos mais de 500 deles. São poucos, mas já temos até
laboratórios clínicos adaptados. Hoje, você pode fazer um exame laboratorial com
certo conforto, sem constrangimento por não ter um toalete para usar. Tivemos
uma evolução muito grande. A duras penas, a realidade está menos cruel para
com as pessoas que fogem um pouco do padrão.
Quando começamos, na Aide, não tínhamos uma ideia pronta dos direitos
que reivindicávamos. É gozado, mas, a gente não falava em direitos. As ideias
foram sendo buriladas nas reuniões do MDPD, naqueles encontros com todo
mundo discutindo e brigando. Naquelas reuniões ácidas que, às vezes, a gente
fazia. Nós mesmos não nos entendíamos em muitos temas. Acho que foi quando
aconteceram outros “Por que não?” Alguém perguntava: “A gente vai pedir isso?”
e outro respondia: “Ué, por que não?” A gente sempre se surpreendia até com as
próprias ideias. Lembro-me da primeira vez em que ouvi falar em “adaptar todos
os ônibus”. Aquilo, para mim, ficou uma coisa meio assim: “Ô, meu, cai na real!”
Era uma coisa tão
63
. Embora não haja na grafia da sigla o acento circunflexo, Canrobert pronuncia o nome da entidade como Aidê,
segundo ele, para diferenciá-lo do nome de sua irmã, Aide.
64
. Na ata realizada em 9-01-82, publicada no Diário Oficial do Estado de São Paulo, de 14-07-82, a Aide
aprovou a minuta da Carta Programa da entidade, que passou a denominar-se Movimento pelos Direitos das
Pessoas Deficientes-MDPD.
188
utópica! “Imagina, adaptar todos os ônibus! Ninguém vai querer fazer isso.” Mas,
aí, aparecia o “por que não?” Acesso aos lugares públicos para todos? Por que
não?
A questão das cotas para as pessoas com deficiência nas empresas, por
exemplo, ainda hoje é um ponto polêmico. Mas, por que não? Está mudando a
realidade de vida de muita gente. Então, por que não? E o papel social das
empresas? Acho que, algum dia, em algum momento, quando alguém falou em
férias trabalhistas também causou esse espanto. E alguém respondeu: “Por que
não?”
Acho que a gente teve muito “por que não?” nas nossas reuniões.
Amadurecemos com o crescimento do movimento. Aos poucos, fomos elaborando
e ampliando nossas reivindicações. Por que não mudar as leis municipais e
estaduais? Por que não participar da Assembleia Constituinte e fazer constar
nossos direitos na Constituição? Fomos crescendo no e com o movimento.
Em 1980, estive no 1º Encontro Nacional de Entidade de Pessoas
Deficientes, que aconteceu, de 22 a 25 de outubro, em Brasília. Em 1981, participei
do encontro nacional que houve em Recife65. O encontro de Brasília foi numa época
em que meu irmão morava lá. Fiquei no apartamento dele, o que facilitou as coisas,
porque as vagas eram reduzidas no alojamento. Foi um encontro fantástico. Em
Recife, fiquei na casa de uma tia. Uma tia muito zelosa que ficou revoltada comigo
porque, nos últimos dias, arrumei uma namorada e preferi ficar no alojamento. A
revolta era maior ainda porque a namorada era paulista. “Mas, meu filho, tu vem até
aqui para se envolver com uma paulista! Isso é uma desonra para nós, mulheres
daqui!”
Nesses encontros, a impressão era de que estávamos num
acampamento de refugiados de guerra. Talvez houvesse uns 10% de pessoas
com algumas regalias. Mas, a maioria esmagadora dos mais de 500 participantes
era pessoas muito humildes. As mais humildes que eu tinha visto na vida, até
então. Você olhava e se espantava: “Nossa, mas, tem tanto deficiente assim no
Brasil?” E aquilo ali era só uma representação pífia da quantidade real da
população com deficiência. Ver aquele mundo de amputados e cadeirantes, num
mesmo lugar, me causou um tipo de choque cultural profundo.
Era como se o Brasil inteiro fosse deficiente. A primeira impressão dos
encontros de Brasília e de Recife, para mim, foi um grande choque. O pessoal do
Norte e do Nordeste mostrava uma realidade completamente diferente para nós.
Embora os problemas fossem os mesmos, ou seja, falta de acesso aos imóveis,
aos transportes públicos etc., o grau de dificuldade enfrentado por muitas pessoas
era muito maior. No encontro de Recife ou de Brasília, não lembro ao certo,
conheci um deficiente que morava numa palafita. Não consigo me imaginar
andando de cadeira e sobrevivendo numa coisa daquelas. Eu me senti muito
burguês, naqueles encontros. Ia e voltava de carro. Dormia no apartamento do
meu irmão. Conseguimos passagens e fomos de avião. Lá, ficamos sabendo de
gente que tinha ido de perua, de caminhão, de jardineira, de pau de arara... O
pessoal do Amazonas, por exemplo, viajou dias e dias de barco, para chegar a
uma cidade e depois tomar não sei mais quantos outros meios de transporte para
chegar ao local do encontro.
Num desses encontros, tive contato com uma pessoa do interior de Goiás
que há 20 anos não saía da casa. Quer dizer, as pessoas estavam confinadas. A
gente via essas coisas e se
65
. Esse encontro, denominado 1º Congresso Nacional de Pessoas Deficientes, foi organizado pela Coalizão PróFederação de Entidades de Pessoas Deficientes, ocorreu entre os dias 26 e 30 de outubro e, segundo matéria
publicada no jornal Folha de S. Paulo, em 14-8-81, teve o apoio da Comissão Nacional do Ano Internacional das
Pessoas Deficientes e do governo do Estado de Pernambuco.
189
sentia pequeno, em relação à bravura e resistência daquele pessoal. Ao mesmo
tempo, havia um sentimento de orgulho por testemunhar as pessoas tão humildes
se levantando, lutando e resistindo em defesa de seus direitos, sem passividade.
Houve momentos em que fiquei com os olhos lacrimejando, ao ver essas pessoas
seriamente envolvidas e dispostas a todo e qualquer tipo de sacrifício para chegar
e se fazer ouvir. Para mim, foi emocionante.
Hoje, as pessoas não acreditam no que a gente fazia para poder se
organizar. Mesmo em São Paulo, a maior cidade da América Latina, com o polo
tecnológico que a gente já tinha, com todos os recursos completamente
diferenciados do resto do País, havia uma tremenda dificuldade para conseguir um
espaço no qual a gente pudesse se reunir. Fazíamos reuniões nas faculdades, nas
associações, igrejas etc. A dificuldade de locomoção obrigava a gente a uma via
sacra. Quem tinha um carro saia recolhendo quantas pessoas fosse possível. Às
vezes, o motorista fazia duas ou três viagens. Bem ou mal, aqui em São Paulo,
hoje, você entra em contato com as empresas, com a prefeitura, consegue uma van
do Atende66. Existe um número razoável de ônibus mais ou menos adaptados.
Facilita bastante. Naquela época, não. As pessoas quase se arrastavam por quatro
ou cinco quadras para poder chegar até o local das reuniões.
Aqueles encontros foram um tipo de renascimento. Uma coisa fantástica.
Seria muito difícil reproduzir aquela atmosfera, quando se somaram a resistência à
ditadura e a possibilidade de almejar um mundo melhor, em todos os aspectos.
Tudo funcionou para que o movimento acontecesse. Foi um momento muito fértil e
não apenas para nós. O mesmo aconteceu na literatura, na música, no teatro, no
cinema. Foi como se tudo estivesse numa panela de pressão que eclodiu naquele
momento. Sinto orgulho de ter feito parte daquele movimento. Valorizou muito a
minha vida. Só pela experiência da mobilização das pessoas com deficiência, para
mim, valeria a pena viver dez vidas iguais a essa que estou vivendo.
A gente tinha uma predisposição para transformar tragédia em comédia.
Tudo era motivo para festejar. A gente quebrava o pau nas reuniões e depois ia
para uma lanchonete, com a Maria de Lourdes Guarda na maca e tudo. De
repente, chegavam 20, 30 pessoas, 10 cadeirantes, uma maqueira, cegos,
deficientes auditivos... O pessoal do restaurante ficava apavorado! Foi uma
experiência fantástica. Tudo que acontecer agora vai ser uma pequena
reprodução do que já aconteceu naquela época.
Aqui em São Paulo, a gente fez muitas mesas-redondas com o Crea67 e
representantes de outras categorias profissionais. Fiz várias reuniões com o
Detran68, para discutir a falta de critério deles para avaliar uma pessoa com
deficiência na hora de tirar a carteira de motorista.
Tive a felicidade de uma das terapeutas ocupacionais da Vergueiro, a
Ilíada Cardiária, me ligar dizendo: “Can, fiquei sabendo que o Banco Real está
contratando pessoas com deficiência. Você não quer fazer entrevista?” Fui e
comecei a trabalhar lá, com banheiro adaptado e tudo. Justiça seja feita, o Banco
Real foi uma das primeiras grandes empresas que se adequou para contratar
pessoas com deficiência.
Foi uma época muito interessante. O chefe estava lá, todo cheio de si, e,
de repente, o telefone tocava. Ele dizia: “Can, é do gabinete do governador, estão
querendo falar com
66
. O Serviço de Atendimento Especial (Atende), criado pelo decreto nº 36.071, de 9 de maio de 1996, é uma
modalidade de transporte porta a porta, gratuito, com regulamento próprio, oferecido pela Prefeitura do Município
de São Paulo, destinado às pessoas com deficiência física com alto grau de severidade e dependência,
impossibilitadas
de
utilizar
outros
meios
de
transporte
público.
http://portal.prefeitura.sp.gov.br/secretarias/transportes/acoes/0002
67
. Conselho Regional de Engenharia, Arquitetura e Agronomia de São Paulo.
68
. Departamento Estadual de Trânsito de São Paulo.
190
você.” Embora fosse divertido ver o chefe nessa situação, para mim, isso criava
certa resistência desnecessária no banco. As chefias imediatas ficam nervosas
quando você tem esse tipo de contato. Em 1981, Maluf era o governador. Ele criou
a Comissão Estadual de Apoio e Estímulo ao Ano Internacional. Lembro bem
disso porque foi um momento à parte da nossa história. A gente tinha sempre uma
resistência muito grande em tratar com o Maluf, tanto por causa da sua origem
política como pela forma demagógica de ele governar, o que também nos
contrariava bastante. Houve ocasiões em que, diante de propostas “bemintencionadas” dele, tivemos que deixar claro que, pelos nossos estatutos, não
podíamos ter nenhuma posição político-partidária. Nessas horas, Maluf,
simplesmente, batia no nosso ombro e dizia com aquele jeito nasalado de falar:
“Então, sinto muito, não podemos fazer nada.”
A gente estava começando a sair do regime autoritário e Maluf
representava tudo o que a sociedade rejeitava. Entre a gente, havia discussões
homéricas para decidir quem iria à reunião com ele. A maioria dizia: “Não quero
ver esse homem na minha frente.” Encarar o Maluf era estar diante de tudo
aquilo que a gente condenava. Era difícil negociar, participar de reuniões e sair
em fotografias ao lado dele. Tínhamos muito medo de dar a impressão de que a
gente estava promovendo o governo dele. Era complicado na nossa cabeça.
Mas, justiça seja feita, assim como era ele, poderia ter sido qualquer outro o
nosso – entre aspas – inimigo externo que nos unia e com quem teríamos de
lutar para reverter a situação das pessoas com deficiência.
Hoje, acho graça quando me lembro da primeira ideia que tive em
relação à ditadura. Era moleque, lá em Araçatuba, e um vizinho meu tinha um
cachorro, daqueles policiais, bonitos, que se chamava Castelo. Um dia,
brincando, na maior ingenuidade, chamei o Castelo de “Presidente”. O pai do
meu amigo ficou apavorado. Ele me pegou pelo colarinho e disse: “Nunca mais
quero ouvir você falar um negócio desses!” O presidente do Brasil era o Castelo
Branco69. Até então, para mim, o país era governado, sei lá, por um rei, um
príncipe, uma coisa distante. Depois, eu ficava me policiando para não chamar o
Castelo de Presidente. Mas, às vezes, encontrava o cachorro, verificava se não
tinha ninguém perto, e sussurrava “Presidente!”
No interior de São Paulo, a lavagem cerebral tinha sido bem-feita.
Qualquer manifestação estudantil era qualificada de “coisa de baderneiros”. Os
pais tinham sempre muito medo da aproximação com os “baderneiros”. Volta e
meia, ouvia-se a orientação: “Se eles vierem, você muda de calçada. Nada de
puxar assunto!” A mesma recomendação que era feita em relação às mulheres
desquitadas e aos espíritas. Aquela era uma região bastante católica. Por isso,
sofri muito quando o irmão mais velho de um amigo foi vítima da ditadura. Ele era
estudante, foi preso e torturado com choque. Ficou completamente pirado. Minha
família era de uma cultura tradicional. Não tinha uma leitura crítica da situação. Eu
era alertado para evitar uma aproximação com aquela família, mas, ao mesmo
tempo, percebia o sofrimento do Elder e da mãe dele.
Quando conheci o Cândido Pinto de Melo, fiquei chocado ao descobrir
que ele era um daqueles “baderneiros” e que, por causa disso, tinha ficado
paraplégico. Foi como se tivesse havido um terremoto na minha cabeça. Conhecer
a história do Cândido foi como um desvendando daquele lado oculto que não pude
entender na adolescência. Percebi que tinha sido enganado a vida inteira.
69
. Marechal Humberto de Alencar Castelo Branco foi o primeiro presidente do regime militar instaurado pelo golpe
militar de 1964.
191
Para mim, o Cândido sempre foi um mito, nunca consegui vê-lo como um
igual, como um semelhante. Guardadas as devidas proporções, em termos de
representatividade, conhecer o Cândido foi como conhecer o Che Guevara.
Cândido estava num outro nível. A vida particular dele não existia. Ele era
daquelas pessoas que não tinha como separar vida particular de atuação política,
era tudo uma coisa só. Uma ou outra vez, tivemos divergências de opinião. Essa
dificuldade de comunicação, talvez, ocorresse porque, para mim, ele estava acima
da gente ou, então, podia ser porque eu não conseguia enxergar o que ele tentava
explicar. É difícil conversar com alguém que você admira muito. Acho que o
destino não foi justo com o Cândido. Acho que ele deveria ter terminado como
deputado federal ou alguma outra coisa que fizesse justiça ao papel que ele
desempenhou na história.
Para mim, o AIPD foi um divisor de águas. O “Canrobert de antes de
1981” e o “Canrobert de depois de 1981” são pessoas totalmente diferentes.
Naquele ano, começamos a discutir um plano muito mais profundo, uma coisa
maior até do que a gente imaginava. A gente começou a falar em Constituinte, em
leis maiores. Começamos a falar de questões profundas e importantes. A gente
começou a falar de um país diferente e de como – de forma muito ativa e
participante – a gente iria se inserir nele. Não iríamos mais esperar que as
entidades que “guardavam direitinho” dos deficientes cuidassem da gente.
Queríamos definir os nossos papéis e decidir o nosso próprio destino.
Foi um marco. Os novos militantes – as pessoas com deficiência que
estão começando agora a se envolver com o movimento – precisam ter uma
noção da amplitude dos anos de 1980, 1981 e 1982. Foi uma explosão, uma
fogueira, cuja chama ficou acesa até 1988, quando a gente conseguiu levantar
mais de um milhão de assinaturas para levar nossas reivindicações à Assembleia
Nacional Constituinte.
O AIPD fez a diferença. Se a ONU não tivesse declarado 1981 como o
Ano Internacional, todo e qualquer movimento que a gente tivesse feito, naquele
momento, teria sido algo localizado. Não teria a repercussão que teve, com o
apoio da imprensa e a mobilização da sociedade, de autoridades nacionais e
internacionais. Realizamos encontros nacionais e, embora a gente não tenha
participado, houve encontros internacionais também. O AIPD foi um amplificador
poderoso para nossas reivindicações. O próprio encontro da Aide com o
movimento foi, justamente, para que pudéssemos nos preparar para o AIPD. A
gente nem pensava em 1988 porque esse ano nem existia na nossa imaginação.
O que havia era aquele clima de “temos que nos preparar para o Ano
Internacional”. Então, só por ter motivado esse nosso encontro, o AIPD foi
fundamental. Se não fosse isso, talvez, a Aide tivesse sido só mais uma entidade.
Por causa do AIPD, a gente saiu da discussão da calçadinha, da portinha mais
larga e começamos a falar de leis municipais, estaduais e de Constituição. Acho
que tudo isto foi resultado direto de 1981.
Os anos de 1980 e 1981 foram bastante ricos, inclusive em termos de
conflitos. Lembro-me também das inúmeras reuniões que fizemos com a Rede
Globo para discutir as vinhetas referentes ao AIPD que eles queriam colocar no ar,
durante o ano de 1981. Nossa luta era para impedir que divulgassem imagens
piegas e preconceituosas. Convencê-los a mostrar os deficientes de forma positiva,
mais altiva. Não estive pessoalmente nas reuniões com a Rede Globo, mas,
participei daquelas em que nossos representantes nos colocavam as questões. Os
ânimos se exaltavam porque o que se discutia era muito subjetivo. Até que ponto o
foco de uma câmera ou determinada imagem eram apelativos ou não? Não havia
uma tabela a ser seguida, claro. Aquilo nunca tinha sido feito antes, e, realmente, as
discussões ficavam muito acaloradas.
O ano de 1981 ficou como uma referência da realidade social que
vivíamos. Durante o AIPD, houve o choque entre a cultura antiga e a nova, aquela
que teria que prevalecer
192
daquele momento em diante. A partir de 1981, nada mais seria como antes.
Deixamos bem claro que estávamos fincando nossos próprios alicerces e não
queríamos ser apadrinhados, nem tutelados.
Todos os confrontos internos ou externos que tivemos serviram para
fortalecer o movimento. O evento comemorativo aos 25 anos do AIPD, realizado
em 2006, em São Paulo, foi como uma viagem no tempo. Foi emocionante
reencontrar os velhos companheiros e saber que aqueles que já se foram não
foram esquecidos. Acho que poucas vezes na vida tive emoções tão fortes. As
amizades que fizemos naquela época ainda se mantêm vivas, porque foram
construídas sobre um movimento solidário. Todos nós estávamos no mesmo
barco. Um dando carona para o outro. Dividíamos o que tínhamos e fazíamos
vaquinhas para pagar as despesas. Tudo isso fortaleceu as relações. Pessoas
que, na época, tinham muitas divergências e viviam em conflito, hoje, são grandes
amigos. A gente berrou bem alto quando todo mundo queria que a gente ficasse
quietinho e bem-comportado. Foi uma aventura muito rica para todos nós. No
aspecto social, acho que muitas coisas não aconteceram como a gente gostaria.
Mas, em termos pessoais, não tenho direito de reclamar.
Para mim, o movimento extrapolou e muito as expectativas. Ganhei
muito, isto é, no aspecto existencial – que isso fique bem entendido – porque,
financeiramente, não ganhei nada. Pelo contrário, paguei para participar. As
contas não batiam. Colocávamos do nosso bolso. Até hoje, é assim.
Em 1986, na época em que começou a formação dos conselhos, o MDPD
já tinha incorporado a Aide e eu, raramente, vinha para São Paulo. Quem
participava dos conselhos eram o Gilberto e o Galeno. Não sei se o resultado
esteve à altura do que a gente propunha. Mas, acho que os conselhos foram
válidos. Na esteira dos nossos, foram criados o Conselho do Idoso, o Conselho da
Mulher...
Não sei se o mesmo aconteceu com os conselhos dos outros segmentos
sociais, mas, em São Paulo, houve um uso político-partidário que acabou
desvirtuando o papel que os conselhos municipal e estadual da pessoa com
deficiência poderiam ter. Na minha avaliação, houve falhas das pessoas
deficientes e dos políticos do momento, que manipulavam o conselho para que
fossem eleitos representantes de seu interesse.
Por sua vez, as pessoas com deficiência criavam um escudo muito
exagerado, em relação a alguns políticos. Lembro-me de representantes das
pessoas com deficiência, que participavam do conselho, que se recusavam a
participar de reuniões com o Maluf, na época em que ele era prefeito. Acho que
essa foi uma falha. No momento em que você representa uma entidade, um
conselho, seja o que for, as coisas não podem ser encaradas de forma pessoal.
Você não representa a si mesmo, mas, sim, a organização, a pessoa jurídica. A
partidarização prejudicou a atuação dos conselhos. Mas, faço essa crítica com
muito cuidado, porque nunca fui conselheiro, não estava lá no momento, não
vivenciei essas coisas. Não tenho o direito de criticar de forma aguda uma coisa
da qual não participei. Não colaborei para que fosse diferente, nem para que fosse
igual. Mas, faço essa avaliação, como alguém que conhecia o movimento e as
pessoas que dele participavam.
Acho que, hoje em dia, está muito complexo agregar e mobilizar pessoas.
Não consegui ainda ter uma leitura muito clara deste momento em que estamos.
Não sei se é a ressaca de um período muito fértil ou se é falta de renovação de
lideranças. Mas, acho que, em todos os aspectos, não só no das pessoas com
deficiência, há essa dispersão, esse enfraquecimento. Antigamente, os artistas
lançavam um disco e você comprava. De 11, 12 músicas, havia oito pelas quais
você se apaixonava logo de cara. Hoje, para você conseguir garimpar duas ou três
músicas que goste, é preciso vasculhar muita coisa.
193
Após a abertura política, dos anos 1990 para cá, não sei o que
aconteceu, mas, cada um se acomodou no seu canto. No nosso grupo – tirando
meia dúzia de pessoas que são quase sacerdotes –, houve acomodação. A
quebra de expectativa ou a falta de um inimigo comum esfriou um pouco a
mobilização. Acho que os conselhos vieram nessa fase de esfriamento. O vulcão
já tinha explodido e a lava já estava esfriando. Talvez, o pecado tenha sido os
conselhos terem nascido no momento inadequado. Se tivessem acontecido antes,
teriam sido mais efervescentes e consequentes.
A abertura política enfraqueceu a oposição. Tudo se concentrava no MDB.
O pluripartidarismo não veio a partir de uma consciência política, uma evolução
política da nossa sociedade. Veio apenas como uma força estratégica para demolir
um pouco a oposição. Quando veio a abertura, já não eram dois grupos que se
chocavam. Era um grupo muito forte e vários grupinhos pulverizados. Se o inverno é
rigoroso, as flores são mais brilhantes. Nos países em que os invernos são
rigorosos, a primavera é uma coisa fantástica, uma explosão de cores. A gente teve
o regime militar, foi um inverno muito forte, muito intenso por um período muito
longo. Quando floriu, foi tudo de uma vez, uma explosão. Não que a gente faça
apologia ao inverno político, mas acho que uma coisa leva a outra. Você poda a
árvore e ela brota forte. Talvez, as próximas gerações consigam brotar fortes sem
necessidade de uma poda, sem o inimigo em comum. Nosso movimento não era só
pelos direitos das pessoas com deficiência. Éramos cidadãos contra a ditadura.
Naquela época, não podia haver agrupamento de pessoas, mas havia resistência a
isso. Éramos muito estimulados e inspirados pelos movimentos culturais.
Nossas reivindicações eram educação, saúde, transporte, trabalho e
lazer. Esses cinco itens eram totalmente inquestionáveis. Não sejamos tão cruéis
e autocríticos em relação a nós mesmos. Nós conquistamos muitas coisas.
É importante o fato de termos consolidado nossos direitos na Constituição.
Muita coisa ainda está na dependência das regulamentações, mas, são conquistas
que não foram fáceis.
A nossa situação ainda está muito a desejar. A sociedade ainda está
longe de ser o que queremos, mas, isso também não significa que fizemos pouco.
Ao contrário, tivemos grandes conquistas. Os jovens têm o compromisso de
aperfeiçoar os alicerces que construímos.
Durante o evento comemorativo aos 25 anos do AIPD e, antes disso, nas
feiras de equipamento para deficientes, pude perceber que tem um pessoal jovem
se envolvendo, batalhando duro. Mas, eles têm a desvantagem de não contar com
o clima favorável à mobilização que desfrutamos na nossa época. Fazíamos
reuniões todo mês com mais de cem pessoas. No salão, formávamos três ou
quatro fileiras de cadeiras em círculos concêntricos. Vinha gente de várias cidades
do interior de São Paulo e até de outros Estados. Havia muito poder no nosso
grito. Quando comecei no movimento, havia pessoas que eu visualizava como
estando um degrau acima de mim. É o caso do Cândido e da Maria de Lourdes
Guarda que, apesar de morar no Hospital Matarazzo e usar uma maca para se
locomover, se comunicava com a América Latina inteira. Também estavam um
nível acima do meu o Gilberto Frachetta, o Luiz Baggio, o pessoal do NID (Núcleo
de Integração de Deficientes). O Bacurau, do Morhan (Movimento de
Reintegração de Pessoas Atingidas pela Hanseníase), lá de Manaus, foi uma
pessoa cuja liderança também me marcou muito. Havia o pessoal da Adeva
(Associação de Deficientes Visuais e Amigos) que vivia se envolvendo em
polêmicas, mas, cuja atuação e persistência na luta eram admiráveis.
A Leila chamou muito minha atenção para a questão da deficiência visual,
uma coisa complicada, não só para os não deficientes, mas, também, para nós
que temos deficiência física. Aprendi muito com sua postura apaziguadora, mas
firme em suas posições. Havia também o pessoal da Associação de Assistência
ao Deficiente Físico de Ourinhos (AADF), de Ourinhos,
194
dentre os quais se destacava o médico Robinson José de Carvalho, cujas
ponderações eram sempre muito pertinentes. Também participavam o Romeu
Sassaki, o Otto Marques da Silva e o Thomas Frist. Essas pessoas fizeram a
diferença. Para mim, que estava saindo de uma ignorância política e tinha
acabado de chegar ao movimento, essas pessoas eram uma referência muito
importante. Faziam reflexões que, na minha cabeça, apareciam pela primeira vez.
Era um privilégio observar e ouvir pessoas como o Rui Bianchi do Nascimento, por
exemplo. Contrariando sua aparência física, cuja fragilidade era até meio
assustadora, o Rui tinha uma força argumentativa poderosa. Essas pessoas todas
me iluminaram.
Ninguém ficava discutindo aquela rampinha que precisava ser feita.
Discutiam-se questões muito mais profundas, mais conceituais. O debate era
sobre o procedimento (como a rampa tinha que ser feita), mas, também, ao
mesmo tempo, definia-se o conceito (o que aquela rampa representava). Não
queria só subir o degrauzinho. Eu queria meu direito de ir e vir. Eram questões
bastante complexas e, por não serem concretas, davam margem a muita
polêmica, muita discussão. Num minuto, você era inimigo mortal do outro ali do
lado, um minuto depois, todos estavam juntos na lanchonete.
Se for analisar, não se consegue chegar a uma conclusão clara sobre se
o conflito de opiniões entre as várias entidades atuantes prejudicou ou alimentou
o movimento. Porque as duas coisas aconteceram: a oposição de ideias
prejudicou em alguns aspectos e alimentou em outros. Tudo bem que a
unanimidade é burra, mas acho que, se tivesse havido um pouco menos de
divergência, talvez, a gente tivesse avançado mais. Mas, por outro lado, se não
tivesse havido os conflitos, a gente não teria levantado tantas opções. Não dá
para saber como teria sido. Mesmo porque éramos marinheiros de primeira
viagem em tudo. Sobretudo, em questões políticas. Vínhamos de uma noite muito
longa. A gente tinha até medo de reivindicar determinadas coisas. E esse medo
criava fantasmas. Até que ponto eu podia peitar um governador? Não sei. Era
uma autoridade. E, naquela época, as autoridades eram inquestionáveis. Acho
que todos esses elementos compuseram o painel que a gente viveu. Uma coisa
realmente era uníssona: a gente não queria aquele papel de coitadinho. Isso
alimentou todas as nossas atividades, nossas ações. Isso nos permitiu conquistar
nossa dignidade. Nossa geração desconhece esse conceito do coitadinho.
Imagine! Que coisa absurda! Eu até brinco com as pessoas. Existem duas formas
de andar, uma delas é em pé, a outra é sentado. Eu levo a vantagem de estar
sentado.
Havia o movimento nacional, que englobava entidades de todo o Brasil, e
havia entidades que englobavam as diversas deficiências. Algumas só tinham
deficientes físicos, como era o caso da Associação Brasileira de Deficientes
Físicos (Abradef), com basicamente só paraplégicos que trabalhavam como
ambulantes. Havia a Adeva, que era só de deficiente visual. O berço da Aide foi a
DRPV, que atendia a todas as deficiências, nenhuma foi excluída. Esse berço
permitiu a nossa heterogeneidade. E nossa convivência foi superlegal. A
convivência entre as pessoas com vários tipos de deficiência, na Aide, não foi
conflitante porque a gente já participava de um grupo bastante heterogêneo na
DRPV. A presença dos deficientes visuais e auditivos para nós era
importantíssima, porque, muitas vezes, eu não estava levando em consideração
as necessidades deles. Eu ficava pensando na rampinha e não lembrava que o
piso tinha que ser feito de forma a ser detectado por eles. Foi uma experiência
muito rica. Foi fundamental tê-los ao nosso lado nos ensinando como nos adaptar
às necessidades deles. Para isso, a Leila teve um papel importante. O movimento
– como era um fórum formado por várias entidades e pessoas com tipos diferentes
de deficiência – já nasceu heterogêneo. Em termos de movimento nacional,
depois houve uma separação. Fomos juntos até certo período e depois as
deficiências se separaram. O que acho que não foi tão antinatural assim.
195
Aqui, em São Paulo, essa base heterogênea criou uma amizade solidária
que permanece até hoje. Então, talvez, se a gente for fazer uma reunião para
discutir algum assunto importante no Estado de São Paulo, a gente não vai
conseguir excluir os deficientes visuais e os deficientes auditivos, até porque são
amigos nossos pessoais. Para nós, esse distanciamento entre as deficiências não
é tão significativo, tão preocupante. Agora, nos movimentos macro, aí, sim, você
vai ver os guetinhos formados a partir das necessidades específicas de alguns
desses grupos que se identificam entre si. Acho que de todas as modalidades de
deficiência, os deficientes auditivos são os que mais facilmente podem ser
descritos como sendo um grupo compacto, fechado, até pelas próprias
características da deficiência deles. É óbvio que participando de um movimento
em nível nacional – com entidades representativas de outras deficiências –, a
histórica relação fraternal que nos une deixa de existir e os deficientes auditivos
vão acabar se fechando no grupo deles. Mas, não acho que isso seja por
desconsideração às necessidades dos outros grupos. Não seria legal se isso
acontecesse. Em termos nacionais, o ideal seria que as questões fossem sempre
universais.
Atualmente, qualquer liderança sofre para reunir meia dúzia de pessoas
para discutir questões políticas. Mas, os novos militantes têm a vantagem de
poder usar a internet, para se comunicar com pessoas que estejam em qualquer
lugar do planeta. Ninguém pode mais se queixar de falta de informação. Basta um
clique no mouse do computador e, em segundos, puxa tudo via internet.
A nossa geração se beneficiou de um momento histórico que nos impelia
ao agrupamento. Mas, a informação era uma joia rara que precisava ser
garimpada com muita dificuldade e muito esforço. Lembro que passamos dois dias
inteiros, lá naqueles arquivos mofados da prefeitura de São Paulo, para levantar a
legislação sobre calçadas, e não conseguimos coisíssima nenhuma!
Já não tenho tanta resistência física como antes. Eu saía do banco, ia
para reuniões. Das reuniões, ia para as comemorações. Chegava em casa lá
pelas 3 horas da madrugada. Às 6 da manhã, acordava para ir trabalhar. Hoje,
isso para mim é completamente inviável. Seria um desrespeito para comigo
mesmo. Tenho que respeitar minhas limitações. Atualmente, a gente tem mais
necessidade de se reunir para conversar sobre assuntos além do universo da
deficiência. Vamos discutir cultura, falar sobre música, fazer um churrasco, comer
uma pizza, tomar um chope. A tragédia de ontem é a piada de hoje. E temos
muitos motivos para rir!
Acho que a gente não tinha muito a noção da importância, mas, tenho
certeza de que todos os que tiveram a oportunidade sentem muito orgulho por
terem participado do movimento. Eu só tenho a agradecer por ter convivido com
um grupo de pessoas que me enriqueceu muito, me trouxe consciência e lucidez,
que ampliou minha mente, meu conceito de vida e de sociedade. Não vivo no país
ideal que nós sonhamos, mas, não jogo mais papel no chão, nem mato mais
passarinho.
Quando chegar o momento de fazer um levantamento dos prós e contras
da minha vida, vou me sentir aliviado. Eu me sinto profundamente privilegiado –
presenteado, até – por ter assimilando o conteúdo humano e adquirido o
conhecimento que as pessoas que fizeram parte do movimento puderam me
oferecer.
Minha única angústia é pensar que tudo pode se perder. Muitas vezes,
você quer que as coisas continuem para que você não seja excluído da história.
Espero que deem continuidade ao nosso trabalho. Não para que nos valorizem
nessa continuidade, mas para que o processo evolua. Para que as novas
tecnologias que não estavam ao nosso alcance – como a Internet – possam ser
utilizadas para conquistar os frutos que nós ainda não conquistamos.
196
Imagem. Diário Popular. São Paulo – domingo, 10 de agosto de 1980 - Brasil.
Deficientes querem se integrar. Os deficientes físicos prosseguem sua luta pela plena integração na sociedade. Para traçar diretrizes a serem discutidas em outubro, em
Brasília, durante o I Encontro Nacional das Pessoas Deficientes, eles estão reunidos desde ontem, no Ginásio de Esportes da rua Germanie Burchad. (página 3).
Deficientes físicos na luta pela integração na sociedade. Contém foto em preto e branco de reunião de pessoas com e sem deficiência.
Depois de um movimentado encontro no mês passado, aqui em São Paulo, os deficientes físicos vão se reunir novamente — e desta vez em Brasília — para realizarem
o I Encontro Nacional das Pessoas Deficientes. Será entre 23 e 25 de outubro próximo e terá como objetivo amplo a integração das pessoas deficientes na sociedade,
pela sua plena valorização como ser humano.
Desde ontem, vários representantes de 25 entidades de 10 Estados brasileiros que compõem a coalizão pró-Federação Nacional de Entidade de Pessoas Deficientes
estão reunidos, no Ginásio de Esportes da Secretaria de Esportes e Turismo, à rua Germanie Bouchard, debatendo as formas de encaminhamento dos trabalhos durante o
encontro em Brasília. Outro assunto na pauta das delegações é o Ano Internacional das Pessoas Deficientes, que será comemorado em 1981. Nesse período, os
deficientes e suas entidades deverão redobrar os esforços pela conquista de seus direitos, levando à comunidade as discussões relativas aos seus interesses necessidades
e experiências.
Segundo representantes de outros Estados, o encontro realizado em julho teve boa repercussão na comunidade. Ontem pela manhã, os delegados das entidades de
pessoas deficientes discutiam os regimentos das organizações, debates que continuam hoje, no mesmo local.
Legenda: Diário Popular, 10 de agosto de 1980. Acervo digital Memorial da Inclusão. Acervo Romeu Sassaki.
197
Imagem. Documento do Movimento Pelos Direitos das Pessoas Deficientes.
Movimento pelos Direitos das Pessoas deficientes. Press-Realise. O Movimento pelos Direitos das Pessoas Deficientes convida os interessados e, em particular, as
pessoas deficientes, a participar da Solenidade de Abertura de sua programação para o Ano Internacional das Pessoas Deficientes, a realizar-se no próximo sábado, dia
14 de março, às 15:00hs., no Plenário do Palácio Anchieta, Câmara Municipal de São Paulo, Viaduto Jacareí, 100.
A programação que se seguirá à abertura será constituída de 8 Mesas redondas, conforme segue: (Anexo Programação Detalhada): Data – Horário – tema: 25/abril – 13
às 17:30hs – Espaço Urbano; 23/maio – 13 às 18:30hs – Mercado de Trabalho/ 27/junho – idem – Transporte Individual e Coletivo; 18/julho – idem – Assistência
Médica e Reabilitação; 29/agosto – idem – Legislação Específica; 19/setembro – idem – Lazer; 17/outubro – idem – Educação e Ensino Profissionalizante;
21/novembro – idem – Relações Humanas e Sociais.
Todas as mesas redondas realizar-se-ão no Colégio Anchietanum, Rua Apinagés, 2.033, altura da Rua Heitor Penteado 1.200 – Sumaré.
A importância deste evento e dos demais que o seguirão pode ser assim traduzida:
1 São as Pessoas Deficientes, através deste Movimento, que estão elas mesmas, fazendo a SUA programação para o Ano Internacional das Pessoas Deficientes,
instituído pela O.N.U. (Organização das Nações Unidas) que, em sua última Assembléia Geral de 1980, “insistia sempre na participação das pessoas deficientes”.
2 Esta importância é relevada quando, até hoje, no país, não existe uma programação oficial para comemoração do Ano Internacional das Pessoas Deficientes, no que
pese ser de responsabilidade dos Governos de países membros da O.N.U., a constituição de comissões nacionais que realizem esta programação.
3 Procura-se veicular corretamente e reparar erros cometidos em pronunciamentos oficiais das autoridades brasileiras, que têm se referido ao “Ano Internacional das
Pessoas Deficientes”, como “Ano Internacional dos Deficientes Físicos”, “Ano Internacional dos Inválidos”, “Ano Internacional da Pessoa Deficiente” ou outras
denominações. Observe-se que a denominação correta é das Pessoas Deficientes. DAS (pertencente às e não para as) PESSOAS DEFICIENTES porque abrange não
apenas um tipo de deficiência, mas todo o conjunto de deficiências (mentais, sensoriais, físicas etc), como é definido pela DECLARAÇÃO UNIVERSAL DOS
DIREITOS DAS PESSOAS DEFICIENTES (Resolução adotada pela Assembléia Geral das Nações Unidas, 9 de dezembro de 1975, Comitê Social, Humanitário e
Cultural).
4 Busca-se com esta abertura e programação, a “Plena Participação e Igualdade”, tema estabelecido para o Ano Internacional, através da conscientização da sociedade e
do Estado para os direitos das pessoas deficientes.
5 Procura-se também retirar as pessoas deficientes de suas casas e de sua marginalização para que, unidos e conscientes, conquistem seu espaço na sociedade,
construindo uma sociedade mais justa, fraterna e de igualdade de direitos entre seus cidadãos.
Movimento pelos Direitos das Pessoas deficientes.
Legenda: Acervo digital Memorial da Inclusão. Acervo Romeu Sassaki.
198
Imagem. Jornal da tarde, de 13 de março de 1981.
A campanha pelos direitos dos deficientes. Amanhã será aberta a programação do Movimento pelos Direitos das Pessoas Deficientes. “As pessoas deficientes não
reivindicam benefícios que tenham características de dádiva, privilégios ou concessões, mas reivindicam o que é de pleno direito delas como cidadãos de um país e
seres humanos integrais”.
Este é um trecho da Carta Programa do Movimento pelos Direitos das Pessoas Deficientes. Ele mostra, e bem, toda a filosofia das campanhas que serão feitas durante
este Ano Internacional das Pessoas Deficientes, com um só objetivo: conscientizar a todos de que os deficientes existem em grande número e merecem ocupar um
espaço na sociedade.
Só no Brasil existem mais de 12 milhões de pessoas deficientes, que querem dar a sua participação, “em plena igualdade de condições, onde não haja discriminação e
sim um tratamento normal e nenhum paternalismo. Pessoas que querem desfrutar das mesmas coisas que as pessoas normais desfrutam, mas que precisam apenas de
uma atenção diferente”, como diz a Carta Programa. E é isso que o Movimento pelos Direitos das Pessoas Deficientes pretende, como explicou uma das suas
coordenadoras, a advogada Leila Bernaba Jorge.
Leila, presidente da Associação de Integração dos Deficientes e deficiente visual diz: “A situação dos deficientes, hoje é bastante ruim, pois estamos esquecidos”.
— As pessoas deficientes procuram colocação e são sempre barradas, quer em concursos públicos ou em empresas particulares. Por isso, às vezes, nem encontram
condições de sair da cama do hospital.
Leila se considera uma pessoa “privilegiada”. Além de coordenar a Comissão Jurídica do MDPD, ela exerce plenamente a sua profissão, em seu escritório particular.
“Mas fui barrada em um concurso público e ninguém quis empregar-me”. Por casos assim, diz ela, é que é importante a Associação de Integração de Deficientes, “que
cuida da colocação dos deficientes no trabalho”.
— A Associação foi criada em outubro de 1978. Passamos mais de um ano nos estruturando. Agora, depois de alguns contatos com empresários, já conseguimos boas
coisas. Na Feira de Automóveis Antigos, por exemplo, irão trabalhar 100 pessoas deficientes, na fiscalização e na coordenação. O Banco Comind também nos procurou
para colocação de pessoal, como acontece no Banco Real, onde já há mais de 50 deficientes trabalhando.
A abertura da programação do Movimento pelos Direitos das Pessoas Deficientes, para este Ano Internacional das Pessoas Deficientes, irá acontecer amanhã, às 15
horas, no plenário da Câmara Municipal de São Paulo, no viaduto Jacareí, 100. A partir daí, várias mesas-redondas serão realizadas, mensalmente, no Colégio Anchieta,
numna rua Apinagés, 2033 (Sumaré), sempre a partir das 13 horas, nos dias 25 de abril, 23 de maio, 27 de junho, 18 de julho, 29 de agosto, 19 de setembro, 17 de
outubro e 21 de novembro.
Alguns dos objetivos das mesas-redondas, segundo a carta programa: “Reparar erros cometidos em pronunciamentos oficiais das autoridades brasileiras, que se têm
referido ao Ano Internacional das Pessoas Deficientes como ‘Ano Internacional dos Deficientes Físicos’, ‘Ano Internacional dos Inválidos’, ‘Ano Internacional da
Pessoa Deficiente’; encontrar, com esta programação, a ‘Plena Participação e Igualdade’, tema estabelecido para o Ano Internacional, através da conscientização da
sociedade e do Estado, para os direitos das pessoas deficientes; e retirar as pessoas deficientes de suas casas e de sua marginalização para que, unidos e conscientes,
conquistem seu espaço na sociedade, construindo uma sociedade mais justa, fraterna e de igualdade de direitos entre seus cidadãos”.
Legenda: Jornal da Tarde, 13 de março de 1981. Acervo digital Memorial da Inclusão. Acervo Romeu Sassaki.
199
Imagem. Quatro páginas (pp 17-21) da Revista EUP (União dos Estudantes de Pernambuco), homenagem a Cândido Pinto de Melo. As páginas da revista são na cor
azul marinho, com cabeçalho nas cores verde e laranja e textos na cor branca.
Página 17. Cabeçalho da página com o nome “Cândido Pinto”. Metade direita da página contém foto de Cândido, de perfil, sorridente, de bigode, sem barba, cabelos
grisalhos. Veste Camisa branca, paletó preto e gravata marrom. Abaixo da imagem, sobre faixa branca, título da matéria: “Um líder perseguido mas nunca derrotado –
Símbolo da resistência à repressão militar, o presidente da UEP em 69 nunca deixou de atuar em prol da democracia”, por Thais Queiroz. Rodapé na cor azul contendo
endereço WWW.estudantepe.com
200
Páginas 18. Contém seis fotos distribuídas entre as páginas: 1 - Cândido sentado na cadeira de rodas, de perfil, em meio a uma reunião com vários estudantes da União
dos Estudantes de Pernambuco. Ele está com barba e os cabelos escuros; 2 - Cândido discursando, a seu lado, dois estudantes. Cândido está com barba e os cabelos
escuros; 3 - Cândido bem jovem, magro, sem barba, cabelo e bigode escuros. Sentado na cadeira de rodas, rodeado por quatro pessoas com bengalas, todos sorriem; 4 Cândido bem jovem, magro, costeletas e bigode preto. Cândido está de pé e treina andar com muletas axilares, amparado por uma enfermeira. 5 – Cândido mais velho,
mais gordo, o cabelo começa a ficar grisalho, porém barba e o bigode ainda são pretos. De corpo inteiro, na cadeira de rodas, ao fundo uma parede de tijolo; 6 – Close
de Cândido, mais velho, barba e cabelos pretos, poucos cabelos grisalhos. Cândido sorri.
Conteúdo da matéria: “A União dos Estudantes de Pernambuco (UEP) sempre se manteve afinada com os movimentos populares do Brasil na luta pela democracia. Foi
o que aconteceu durante a vigência do Estado Novo de Getúlio Vargas (1937-1945) e anos mais tarde, nos ‘tempos de chumbo’ da Ditadura Militar (1964-1985).
Durante essa segunda fase, principalmente entre o final da década de 1960 e o início dos anos 1970, o fogo cruzado entre os dois lados políticos era intenso. O marechal
Costa e Silva decreta, no dia 12 de dezembro de 1968, o Ato Institucional nº5 (AI-5), que permitia a cassação de direitos estudantis e políticos. Há um confronto direto
entre o Governo e seus opositores. Muitos deles pagaram um alto preço por defenderem este ideal. O estudante de engenharia Cândido Pinto de Melo, presidente da
UEP, foi um deles. Em 1969, ano marcado por este cenário tenso, sofreu um atentado que o deixou paralítico até o seu falecimento, em 2002.
Cândido Pinto também era filiado ao Partido Comunista Revolucionário Brasileiro (PCBR) e ainda fazia parte do Diretório Central Estudantil (DCE) da Faculdade de
Engenharia Eletrônica da UFPE, onde organizava assembléias, reunia estudantes e membros da sociedade em manifestações contrárias ao governo. Uma tarefa nada
fácil, pois ele presidia uma entidade considerada ilegal pelo regime militar. ‘Com o endurecimento do governo, em 1968, a UEP foi colocada na clandestinidade. Todos
nós resolvemos continuar mesmo assim, mas as coisas foram ficando mais difíceis’, explica o jornalista Marcelo Mário de Melo, colega de Cândido, perseguido pela
ditadura e preso por ‘oito anos, 43 dias e 12 horas’, como costuma dizer. Com seu incansável espírito de luta em prol do direito
201
Página 19.
dos estudantes, Cândido não descansava: estava sempre envolvido em movimentos que tinham o objetivo de garantir os direitos que lhes eram negados. ‘Ele brigava
muito pelos direitos dos estudantes. Chegou a ser preso aos 17 anos por fazer um cartaz contra o reitor da UFPE’, conta sua viúva, a enfermeira Joana Cecília
Figueiredo de Melo, que está preparando um livro sobre a trajetória política do marido. Em 11 de outubro de 1968, Cândido Pinto representou Pernambuco no 30º
Congresso da UNE, em Ibiúna, interior de São Paulo. Aquele que seria o grande encontro da resistência estudantil nacional foi frustrado pelos militares, antes mesmo
do início, resultando na prisão de 920 jovens. Cândido estava entre eles. Era o fim oficial do movimento estudantil brasileiro.
A intensa repressão às forças contrárias ao regime em Pernambuco culminaria em um atentado contra o líder estudantil, que não lhe tirou a vida, mas o deixou sem
andar até o fim de seus dias. A tentativa criminosa que tinha o objetivo de calar a voz dos estudantes acontece na noite de 29 de abril de 1969. Por volta das 22h,
Cândido aguardava o ônibus em uma parada próxima ao viaduto da Torre, quando uma caminhonete Rural verde se aproximou de repente. Dentro dela havia três
homens encapuzados. Um deles tentou levá-lo à força para o veículo. O universitário reagiu e levou dois tiros – o primeiro passou de raspão no rosto, o segundo atingiu
a coluna. Em entrevista concedida ao Jornal do Commercio no dia 18 de abril de 1999, o ex-líder da UEP contou os detalhes do
202
Página 20.
crime do qual foi vítima: ‘Na hora, me senti como uma marionete, caindo no chão sem sentir minhas pernas’. Ao chegar ao hospital, socorrido por pessoas que
passavam no momento, Cândido ainda lembrou que tentou proferir um discurso, mas apenas sangue saía de sua boca. ‘Falar era uma maneira de me manter vivo, eu
precisava reagir. E, se morresse, queria que soubessem o que tinha acontecido’, declarou na época. No dia seguinte, assim que tomaram conhecimento do fato através de
uma nota tímida publicada nos jornais, os estudantes reagiram. Protestaram fervorosamente em frente ao hospital onde Cândido estava internado. ‘Todos os estudantes
quiseram doar sangue para Cândido, até chegar a um ponto que o hospital não tinha mais vidros para fazer a coleta’, conta Joana Melo.
Ainda no hospital, mesmo sem poder se mexer, guardas armados vigiavam o estudante dia e noite, impedindo-o até mesmo de ver a família. Uma ação que despertou a
revolta de políticos e figuras importantes da sociedade na época. ‘Dom Hélder Câmara se solidarizou e vereadores do MDB, partido da oposição, fizeram
pronunciamentos contra o atentado na câmara do Recife’, recorda o amigo de Cândido. Desenganado pelos médicos locais, que afirmaram que Cândido não seria capaz
nem de manter-se sentado, a família do estudante resolveu mudar-se para São Paulo. Ele ficou em repouso na Associação de Assistência à Criança Deficiente – AACD.
Não demorou muito para que os militares paulistas soubessem de sua permanência no hospital e tratassem de mantê-lo sob custódia dentro do próprio centro médico.
Mesmo com todas essas dificuldades, Cândido não deixou de lado a ação política. Concluiu a faculdade, fez
203
Página 21.
Mestrado em Engenharia aplicada à Medicina, onde conheceu sua esposa, Joana Melo. Com ela teve dois filhos, Ana Luiza e Bruno. Ingressou no movimento dos
portadores de deficiência, fundando a entidade nacional e filiou-se ao PT de São Paulo logo no início da história do partido. Joana lembra que, nos tempos pré-anistia, a
família procurava esconder os reais motivos da paralisia do engenheiro. ‘Ele não poderia dizer que havia sofrido um atentado. Para as pessoas que não conheciam sua
história ele contava que tinha sido um acidente de carro, senão ele poderia ser perseguido. Apenas quando veio a anistia é que ele contou a verdade’. Durante os 33 anos
que se seguiram do atentado até sua morte, em 31 de agosto de 2002, aos 55 anos, este incansável militante nunca deixou de lutar por justiça pelo que sofreu. Nas vezes
em que esteve em Pernambuco, sempre buscou a revisão de seu processo. Mesmo morando em outro estado por mais de três décadas, Cândido Pinto nunca deixou de
ser, de fato e direito, o presidente da União dos Estudantes de Pernambuco. ‘Depois do atentado ele continuou mandando comunicados e mensagens’ afirma o jornalista
Marcelo Mário de Melo. O merecido reconhecimento hoje está presente no nome da própria entidade. No dia 6 de setembro de 2005, a UEP foi reativada e passou a
adotar o nome União dos Estudantes de Pernambuco – Cândido Pinto. Nome de um líder que foi perseguido, mas nunca derrotado pela Ditadura Militar.”
Legenda: Revista UEP: 65 Anos. s/d. Acervo digital Memorial da Inclusão. Doação Joana Melo.
204
Geraldo Marcos Labarrère Nascimento
Imagem. Retrato colorido do padre Geraldo. Contêm epígrafe: “Depois do movimento iniciado e de várias ações, tivemos um ano muito importante: o Ano
Internacional das Pessoas Deficientes (1981). Lembro-me que, naquele ano, houve aqui, no Brasil, um congresso nacional das pessoas com deficiência, em Recife, ao
qual muita gente esteve presente.”
eu nome é Geraldo Marcos Labarrère Nascimento. Nasci em 11 de dezembro
de 1940, em Belo Horizonte/MG. Estudos secundários na mesma BH,
terminando com o técnico em contabilidade. Entrei para ser jesuíta em
fevereiro de 1966, aos 25 anos, no noviciado, em Vila Kostka, Itaici,
Indaiatuba/SP.
Antes disso, com um grupo de amigos da vizinhança de minha casa,
formamos um pequeno clube, chamado Araguaia, para promover festas e bailes.
Em 2009, conseguimos reunir 52 remanescentes desse grupo, num almoço
memorável, ofertado pelo amigo Antônio José de Almeida Carneiro, com direito
posterior a um álbum de fotos. Servi o Exército, no 12º Regimento de
Infantaria/BH, durante 1959 (em 2009 fizemos também o reencontro de 50 anos
desse grupo e, de cem que éramos na 1ª Companhia, reunimos cerca de 60
provectos senhores). Depois do serviço militar, consegui trabalho numa
revendedora de automóveis, onde entrei como office-boy e saí como chefe de
escritório e sócio, no decorrer de cinco anos. Trabalhava durante o dia e estudava
à noite.
Lá, na escola noturna, certa vez, apareceu um rapaz, bem mais novo que
eu, Claudino Borges Guimarães, aluno do Científico do Colégio Loyola, falando de
Deus e de um grupo de jovens, o GGN (Grupo Gente Nova), que atuava numa
favela. Fiquei muito impactado com a desenvoltura dele e com seu testemunho
sobre a religião e a favela. Perguntei a ele se qualquer um poderia entrar para o tal
grupo. Ele disse que sim. No seguinte sábado apareci lá. E fiquei.
Muito antes disso, aos 12 ou 13 anos, tive uma experiência negativa, para
mim muito forte, com a Igreja Católica. Em uma confissão, ao declarar minhas
faltas de castidade, o padre começou a perguntar sobre todos os detalhes e
circunstâncias da “falta”, o que me assustou muito. Em decorrência, fiquei mais de
dez anos sem entrar em uma igreja e com raiva de tudo o que se relacionasse
com Ela.
O relato do Claudino mexeu comigo. Fui conversar com ele: “Você é
seminarista?” Respondeu: “Não.” Perguntei em seguida: “Como, então, você fala
sobre Deus, Igreja e favela com tanta tranquilidade?” (Eu pensava,
equivocadamente, que assuntos sobre religião eram só para pessoas meio
efeminadas, e ele era bem “firme”). Ele falou-me sobre o GGN e a atuação do
grupo na favela Bico do Papagaio, em Belo Horizonte... Fiquei curioso e quis
saber se qualquer um poderia participar. Ele disse que sim.
Fui no sábado seguinte. Fiquei entusiasmado com o que vi. O grupo se
dividia em várias equipes: uma de visitas (que ia, de casa em casa, anotando as
maiores dificuldades e, conforme fosse, informava para as outras equipes); uma
de saúde (que tentava conseguir consultas, remédios ou hospitais); uma de
mantimentos (que cuidava das questões de alimentação); e uma de construções
(que trabalhava na reforma dos barracões, consertos e arranjar materiais). Entrei
nessa.
M
205
Passávamos o domingo trabalhando na favela, cada qual na sua função.
No sábado, acontecia a reunião do grupo, nas dependências do Colégio Loyola,
onde morava o nosso assessor, padre Pedro Américo Maia, jesuíta. Ali
resolvíamos todas as coisas, planejávamos a atuação, e tínhamos nossa tarde de
formação. A participação nesse grupo e o padre me fizeram um bem imenso, que
não tem paga.
Inicialmente, pensei que eu iria ajudar os favelados, pois, conforme
pensava, eu é que tinha “condições” (materiais, econômicas, financeiras, culturais,
de estudo etc.) para ajudar os “coitados” (que moravam em casas de papelão, de
tábua e de lona; não tinham estudos, saúde e, às vezes, nem comida). Mas,
conforme o tempo foi passando, fui percebendo que eles é que me ajudavam.
Durante os quatro ou cinco anos em que atuei por lá, ocorreu uma grande
mudança interna em mim. Silenciosamente eles transformaram meu coração, de
alguém voltado demasiadamente para as coisas exteriores da aparência, para
alguém preocupado com o bem comum.
Essa experiência marcou meu futuro. Pouco a pouco fui investindo nos
valores do ser e relativizando os valores do ter. A observação das vidas das
pessoas com quem me relacionava na favela, especialmente a família do Sr.
Geraldo (presidente dos Vicentinos), D. Iracema e filhos, foi deixando vir à tona o
que eu tinha de melhor: de autenticidade, de retidão, de generosidade, de
capacidade de dedicação... Ou seja, conforme diz a espiritualidade oriental, o
Deus que vivia neles despertou o Deus que vivia em mim (mais tarde, no contato
com as pessoas com deficiência, ocorreria o mesmo – os pobres são portadores
de salvação). Não entendia como eles tinham tanta sabedoria, mesmo sem
possuir nada ou sem estudo quase nenhum. Como eram generosos e conseguiam
distribuir o pouquinho que tinham. Aquilo me impressionou tanto que pensei,
também eu, em ser capaz de doar a vida, e resolvi ser padre. Então, aos 24 anos,
em novembro de 1964, deixei o emprego e fiquei, por orientação do padre Marcelo
de Carvalho Azevedo, provincial dos jesuítas, mais um ano rezando, refletindo e
me confirmando sobre a vocação ao sacerdócio. Vendi os dois lotes que havia
comprado, doei o dinheiro (parte para o grupo de jovens GGN, que me formou) e
entrei para o noviciado dos jesuítas (2-2-66), em Itaici, no interior de São Paulo.
Minha experiência com pessoas com deficiência começou na família. Tive
uma tia-avó, Tia Zizinha, que morava conosco em Belo Horizonte. Ela teve uma
doença que a deixou paralisada do lado direito do corpo e se movimentava com
dificuldade, arrastando a perna. Era uma pessoa muito religiosa. Então, com meus
6 ou 7 anos, a acompanhava, diariamente, à missa das 6 da manhã, na capela do
Colégio Loyola, que ficava a cinco quadras de onde morávamos. Eu dava o braço
para ela e, bem cedinho, por nosso andar lento, saíamos para não perder o
horário.
Antes de ser padre, durante o curso de Filosofia, em São Paulo, na
Faculdade Nossa Senhora Medianeira, das Faculdades Anchieta (Fasp), conheci
um padre jesuíta, Duato Quitapenas, que trouxe o movimento da FCD –
Fraternidade Cristã de Pessoas com Deficiência para a América Latina. Ele era
espanhol e trabalhava no Peru. Era chamado de Quitapenas, se não me engano,
porque, mesmo sendo muito doente e cheio de sequelas de operações, não ficava
paralisado em suas dores e dificuldades, mas conseguia ser alegre e animado,
“quitando as penas”, suas próprias e de todos os que se aproximavam dele.
O movimento da FCD nasceu na França, em 1942, com o monsenhor
Henri François, e se espalhou pelo mundo. Em 1968, esse padre Quitapenas, que
começara o trabalho em Lima, no Peru, como foi dito, deu uma palestra na
faculdade de Filosofia, onde eu estudava. Compareci e achei muito interessante,
pois ele era cativante. Mas, como na época,
206
trabalhava na parapsicologia, com o padre Oscar Quevedo, não me envolvi muito.
Mas teve um colega que se interessou, Vicente Masip, também espanhol,
pertencente à Província do nordeste.
Terminamos nosso curso de filosofia e fomos transferidos para São
Leopoldo/RS, para seguir os estudos de teologia. Já no primeiro ano, 1971, o
Vicente, que havia acompanhado ao Peru e aprendido com o padre Quitapenas,
começou com algumas reuniões de pessoas com deficiência na faculdade. Então,
quando aconteciam estes encontros, eu ajudava a descer e subir os cadeirantes
nos ônibus ou Kombis, nas chegadas e saídas. Fiquei só nisso, nos cinco anos
que por lá passei, pois meu trabalho pastoral principal era no atendimento de
pessoas que passavam por algum problema sério, “espiritual ou psicológico”,
relacionados a fenômenos da parapsicologia.
Depois, já ordenado sacerdote (15 de fevereiro de 1975), vim para São
Paulo (1976), como vice-diretor do Centro Latino Americano de Parapsicologia,
junto ao padre Quevedo, seu diretor. Ali, no Clap, sigla que utilizávamos, foi
admitida uma secretária, Janete Vega Lomparte, peruana, que conheceu a FCD lá
em seu país, com o padre Quitapenas. Uma grande coincidência, caminhos de
Deus! Ela chega a São Paulo, como imigrante, é contratada pelo Clap para ser
minha secretária. Depois, fica conhecendo uma tal de Maria de Lourdes Guarda,
que vivia deitada numa cama. A Janete todos os dias, ao final do expediente de
trabalho, me falava: “Olha, tem uma senhora que conheci, que mora no Hospital
Matarazzo e gostaria que você fosse lá para conhecê-la.” Nunca eu encontrava
tempo para ir e se passaram meses com aquele convite repetitivo. Mas chegou o
dia. Decidi aceitar, mesmo sem muito querer, mais para me livrar da insistência.
Conheci a Lourdes, em maio de 1977, e não nos desgrudamos mais, por
dez anos. Comecei a visitá-la constantemente, mais de uma vez por semana, eu
que morava lá no km 26 da Via Anhanguera. Ela, por sua vez, 1977, morava no
mesmo hospital, no mesmo quarto, na mesma cama e na mesma posição, desde
1947.
Até que, após tantos encontros, começamos a pensar num jeito de
colocar rodinhas em sua maca, para que pudéssemos, ao menos, conversar
noutro lugar que não o quarto, no jardim do hospital, por exemplo, e tomar um
pouco de ar lá fora. Ela ficou ressabiada, mas topou: “Será que vai dar certo?
Vamos ver.” E deu certo. Ela estava feliz, gostava de ficar conversando embaixo
das árvores, se bem que os passarinhos, às vezes, mandassem seu recado.
Graças a Deus, nenhum acertou o rosto.
Começamos a trabalhar juntos a partir de então. Promovemos um
encontro de pessoas com deficiência na paróquia do Colégio São Luís. Tínhamos
conhecido o juiz corregedor dos presídios, dr. Laercio Tali, e a esposa dele, Maria
Inês, que participavam do movimento de casais da paróquia. Pedimos a ele para
autorizar as pessoas com deficiência, do presídio do Carandiru, para irem ao
nosso encontro, e ele topou. Ele mesmo e a esposa também foram.
O encontro foi um sucesso, encheu de gente o subsolo da paróquia, ao
todo umas 70 pessoas, entre deficientes e colaboradores. Vieram dez presidiários,
todos cadeirantes, acompanhados por vários agentes. No encontro, mais
coincidências. Um presidiário cadeirante, baleado na coluna em um confronto,
perguntou para a gente: “Quem é aquele senhor ali, naquela cadeira de rodas?”
Respondi: “É o dr. Adalberto (Deodato), um advogado aposentado, que sofreu um
acidente automobilístico.” E o presidiário revelou: “Eu gostaria de conversar com
ele, pois, antes de ser cadeirante, assaltei sua casa.” Os dois foram apresentados,
conversaram bastante e ficaram se correspondendo. O assaltante amigo do
assaltado. Ele relatou que, na época, nenhum dos dois era deficiente. Voltas que a
vida dá.
207
Voltando a falar sobre a Lourdes, ela realmente era uma pessoa especial.
Havia sido professora primária em Salto, no interior de São Paulo, próximo a Itu.
De repente, começou a sentir umas dores na coluna. O médico achou que poderia
ser um caso simples e que uma operação resolveria com facilidade. A cirurgia foi
feita e, como não teve sucesso, fizeram outra para consertar a anterior. Depois,
uma terceira, uma quarta, uma quinta e uma sexta.
Nessas operações ela teve de amputar um pé, devido ao surgimento de uma
gangrena. Depois, amputou um pouco mais acima, até que perdeu a perna direita.
Sobrou um pequeno cotoco, que a ajudava muito, como apoio, nas higienizações.
Mais adiante, acabou também tirando um osso do quadril, deixando a perna esquerda
solta, que, sem ligação óssea, apenas com a carne e sem movimentos, atrofiou. Ficou
tão fina e delicada que nem o próprio lençol podia se apoiar sobre ela, pois prejudicava
a circulação. Desse modo, a perna era calçada com uns travesseiros, para
permanecer em posição inclinada, superior à do corpo, facilitando o fluxo sanguíneo.
Foi feita, então, uma armação de madeira, colocada sobre as pernas, para sustentar o
lençol.
Devido a esse problema no quadril e ainda outro na coluna, que teve de
receber vários pinos metálicos, ela precisou ficar numa espécie de canaleta de
engesso, nas costas, do pescoço até o joelho, a vida toda. Além disso, precisou
utilizar uma sonda permanente na bexiga, o que lhe trazia os constantes
incômodos das infecções urinárias. Assim, ela viveu, numa grossa canaleta de
gesso que, curiosamente, não lhe provocou nenhuma escara. Algo
impressionante! Ela não podia sentar-se, passou a vida deitada e nem por isso,
deixou de viajar o Brasil todo e parte da América Latina, batalhando pelo Reino de
Deus.
Quando se fala sobre uma pessoa que viveu 50, dos 69 anos de sua vida,
nas condições em que ela viveu, pode-se pensar que seria uma pessoa
pessimista, amargurada, sofrida, “coitadinha”. Entretanto, uma das coisas que
primeiro chamava a atenção, de quem a conhecia, era sua fisionomia aberta,
alegre, esperançosa, positiva.
A Lourdes era uma mulher forte, bonita, saudável, contente, torcedora do
time de futebol do São Paulo. Mesmo com todas as suas dificuldades, vivia da
forma mais independente possível. Porque sabia que morreria se limitasse sua
vida ao fato de não conseguir alcançar um copo de água sequer, que estivesse a
mais de meio metro de distância, já que movimentava – e com dificuldade –
apenas os braços e a cabeça.
Foi nesse cenário difícil que ela decidiu se dedicar inteiramente aos
outros. Assim, passou os dias pensando em como ajudar a resolver todos os
pedidos que recebia. Eram pessoas que precisavam de uma cadeira de rodas, de
uma bengala, de uma muleta, de um remédio, de uma consulta, de uma
internação, de uma roupa, de um emprego… Eram maridos e esposas com
problemas familiares: separações, traições, drogas, filhos... Eram pessoas que
passavam por São Paulo e não tinham onde ficar... hospedavam-se no quarto de
hospital que ela morava, por alguns dias ou por longos tempos, meses e meses.
Todos e todas eram recebidos, sem distinção de raça, credo, condição física,
profissão ou partido, ricos e pobres, solteiros, casados e suas proles. Alguns lhe
traziam problemas, outros, durante a hospedagem, a ajudavam a colocar em dia
as correspondências e a despachar, para os grupos da Fraternidade, do mundo
todo, os pacotes de Cartas Abertas (2 mil exemplares), revista da FCD Nacional,
cuja sede ficava aí mesmo, nesse quarto de hospital.
Ela ouvia tudo, mil coisas, alegres ou tristes. O filho que não passou no
vestibular e vinha buscar consolo. O pai que perdeu a filha querida. A mãe que
pedia para ela abençoar a recém-nascida. O advogado cuja empresa ia falir e ele
estava a ponto de se suicidar, precisava de orações e paz para a alma. A outra
(uma mulher muito querida, cujo nome não vou citar e vocês vão compreender
logo a razão, pois ela fez um bem enorme aos outros, sem nada retirar
208
para beneficiar a si própria), que queria ajudar os deficientes e estava disposta a
pagar tudo que eles precisassem. Pagou uma coisa, pagou outra, e outra, e mais
outra, e dezenas de necessidades foram atendidas, por um tempo não curto, para
pessoas que realmente precisavam. Nada foi doado de supérfluo, de luxo, nada foi
jogado ao ar. Entretanto, como tudo tem seu tempo, bateu à porta da Lourdes –
pois era o local onde as pessoas iam pedir o socorro – a Polícia Federal,
perguntando se era ali que estavam fabricando notas falsas. Quase foi presa, pois
pensaram que ela era a falsificadora ou conivente com o crime. Perceberam sua
situação física, mas chegaram a olhar até debaixo do gesso, vendo se escondia
algo. Demorou um pouco mais para entenderem que ela não tinha possibilidades,
da cama, de controlar a entrada ou saída de alguém, em seu quarto (no hospital
não havia controle de portaria para os apartamentos), tanto para pedir algo, como
para ofertar alguma coisa. Contudo, não a deixaram em paz, antes de firmarem
grande amizade, que durou por muitos anos.
A Lourdes atendia, escutava, falava, encaminhava... Foi uma heroína do
céu, um dom de Deus para a humanidade.
Colocamos as rodinhas em sua cama e promovemos aquele encontro na
paróquia do Colégio São Luís, na Avenida Paulista, e assim começou o
movimento. Lembro que, na mesma paróquia, houve um bingo. Estavam
sorteando um carro. A Lourdes ganhou várias cartelas de jogo e deu uma para eu
marcar. Quando começaram a cantar as pedras, quase todos os números
constavam da cartela que estava comigo. Comecei a marcar e marcar..., até
que… dei um pulo, ganhei o carro! Um automóvel alinhado, não me lembro da
marca. Mas não ganhei sozinho, terminamos juntos, uma senhora e eu. Subimos
ao palco e dividimos o carro ao meio, cada um ficou com 50%.
Com o dinheiro que conseguimos, pudemos comprar uma Kombi usada
do instituto de pastoral vocacional e juventude, Anchietanum, no bairro do
Sumarezinho, onde eu morava. O veículo estava em boas condições, um dono só,
sem trombadas maiores, nem adulterações, ou seja, bom para nós. Ainda nos
fizeram um preço camarada e recebemos o tanque cheio. Compramos o veículo e
tiramos os dois bancos de trás, para ter espaço para a cama da Lourdes, quando
precisássemos sair.
Começamos visitando o asilo do bairro Jaçanã, na zona Norte da cidade
de São Paulo, uma obra administrada pelas irmãs de São José de Chamberry, as
mesmas da Santa Casa de Misericórdia. A diretora do Jaçanã, na época, era a
irmã Célia, que nos deu grande apoio para trabalharmos com os internos, entre os
quais fizemos muitas amizades: Neuza, Alice... Quanta gente abandonada pela
família havia lá! Era uma benção o dia de nossa visita, para eles e para nós.
A Neuza (Aparecida dos Santos) já morava ali há 9 anos, cadeirante,
jovem, robusta, cheia de vitalidade, mas sem nenhuma perspectiva de sair dali. A
gente sabe como são esses depósitos humanos, custeados com verba pública,
sempre escassa e, muitas vezes, desviada, apesar do enorme esforço das irmãs
em administrar o pouco que chegava até elas. As meninas, os meninos e idosos
internos tinham de se levantar a partir das 8 da manhã, quando chegavam as
funcionárias que, pouco a pouco, iam colocando os internos nas cadeiras de
rodas. Daí a pouco, a partir das 15 horas, começavam a retornar aos leitos, para
se deitar, pois às 16 horas as funcionárias iriam embora. Depois desse horário,
ninguém tinha condições de ajudá-los a subir na cama. Ou, se depois de subir,
durante a noite caíssem no chão, aí passariam até a manhã, machucados ou não.
Os vigilantes noturnos, além de poucos, eram para o patrimônio, portaria e algo
mais. Na instituição, que ocupava bem mais de cinco quadras, com cerca de 150
moradores. Todos precisando de algum tipo de auxílio pessoal. A maioria passava
209
sem beber água e sem urinar, do momento em que era colocado na cama até o
momento em que era descido, no dia seguinte, isto é, das 16 da tarde às 8 da
manhã: 16 horas. Não havia quem pudesse ajudar. Se fizermos as contas, a
Neuza, jovem cheia de vida, dos nove anos que passou ali, seis ela esteve sobre
uma cama, pois eram dois terços de cada dia no leito, não por maldade, mas por
condicionamento de horário dos funcionários. Apesar do bom tratamento, é uma
vida muito judiada.
Mais tarde, três ou quatro anos participando da Fraternidade, ela arranjou
um jeito de estudar, terminar a formação do segundo grau, fazer um curso técnico,
prestar concurso em um banco, onde trabalhou como telefonista, alugar um
apartamento para dividir com alguém as despesas e, por fim, preferiu morar
sozinha, vivendo a sua independência até o final de seus dias.
Com o grande incentivo de dom Paulo Evaristo Arns, cardeal arcebispo
de São Paulo, um santo anjo do céu para nós, o movimento cresceu rápido.
Fundamos vários núcleos da FCD na cidade: Jaçanã (Neuza), Belenzinho (José
Carlos), Carrão (Irene), Freguesia do Ó, Itapecerica da Serra (Carlito), Centro
(Maria Cristina, Nilza). Quanta gente pôde sair de seus isolamentos forçados,
ressurgir das “catacumbas” da estrutura social!!! Bondades de Deus.
Depois, com aquela Kombi ganha no bingo, criamos asa, e fomos para as
cidades do interior do Estado: Jundiaí, Campinas, Americana, Santa Bárbara
d’Oeste, Piracicaba, Ourinhos, Marília, Lins, Andradina, Presidente Prudente,
Ubatuba... Com isso, a FCD foi se espalhando como fogo na palha. Na Kombi iam,
nos começos, quase sempre: a Lourdes Guarda, a Isaura Helena Pozzati, a Neide
Silva, o Nicolau e eu. Com o tempo, muita gente foi entrando e colaborando e foi
variando o grupo das viagens. Fomos nos revezando... Aurélia, dr. Paulo (é preciso
ir registrando os nomes de todos e todas), porque esses foram os caminhos de
Deus na terra.
Em 1980, foi realizada uma assembleia nacional da Fraternidade em São
Bernardo do Campo. Fomos eleitos para a coordenação da entidade no país. A
Lourdes ficou como coordenadora nacional, a Célia Camargo Leão (cadeirante),
como vice-coordenadora e eu, para conselheiro.
Começamos a viajar pelo Brasil. A Lourdes ocupava nove assentos do
avião, por causa da maca. Deitávamos o encosto de nove cadeiras e a cama, já
sem os pés, era colocada sobre as seis próximas das janelas. As outras três eram
levantadas para sua posição normal e aí, sentávamos nós, Célia, Mauricio Silva e
eu.
As viagens eram possíveis porque a Lourdes, àquelas alturas, com seus
mais de 34 anos de hospital, estabeleceu um grande leque de relacionamentos.
Pessoas dos mais diversos campos sociais iam visitá-la. Alguns porque se
encantavam com sua força espiritual e saíam sentindo-se reconfortados por Deus.
Para muita gente ela foi uma verdadeira fonte de água pura. O presidente da
companhia aérea Transbrasil foi um desses, encantado por ela e seu trabalho. Por
isso, a cada um, dois ou três meses, durante quatro anos de nosso mandato
nacional, passou a nos dar as passagens para irmos a qualquer lugar do Brasil
realizar os trabalhos da Fraternidade: encontros, reuniões, congressos,
assembleias... Fomos para toda parte: Minas Gerais, Rio de Janeiro, Santa
Catarina, Rio Grande do Sul, Mato Grosso, Pará, Ceará, Paraíba, Pernambuco e
Bahia. Durante o mandato dessa Equipe Nacional, 1981-84, ajudamos a iniciar
mais de 250 grupos de pessoas com deficiência pelo país, inclusive entrando em
presídios e colônias de hansenianos, apoiando os começos de seu movimento,
Morhan, na Paraíba, com o Marçal.
Em Mato Grosso, por exemplo, combinamos um encontro em Alta
Floresta, no interior do Estado. Para isso, em Cuiabá, Plínio e amigos
conseguiram uma avioneta, um teco
210
-teco. Mas, como entrar naquele aviãozinho nós quatro: Lourdes, Célia, Maurício e
eu? Desmontamos a maca e a Lourdes foi, praticamente, com a cabeça no colo
do piloto e, nós outros três, mais a cadeira, os pés da maca e as malas, atulhados
no fundo. E o sufoco não acabou aí. Quando chegamos à cidade, o padre, com
quem havíamos combinado, disse: “Vocês me desculpem, não vamos ter o
encontro porque, aqui, não tem deficientes, a cidade é pequena.” Falei: “Meu
Deus, padre, como o senhor não nos avisou? Fizemos uma viagem dessas,
saímos de São Paulo, viemos até aqui, nessas condições dificílimas e, agora,
voltar sem nada? Jamais.” Combinamos, então, Maurício e eu, de sairmos pelas
ruas convidando os deficientes que encontrássemos. Quarenta e três, daqueles
“invisíveis” (nem o padre os enxergava), participaram do encontro. Engraçado que
havia 18 mineiros entre eles. O padre ficou sem jeito, mas Deus nos abençoou.
Imaginem, corria o ano de 1983/84 e a única coisa que aquele pessoal recebia na
cidade era compaixão e piedade. Ninguém os via como pessoas de direito,
necessitadas de cuidados e atenção, ao menos da paróquia.
Saímos de lá iluminados e os deficientes, acesos, prometendo dar um
trabalho enorme a todo mundo para conseguirem ser atendidos em suas
necessidades. Somente a sensação que eles tiveram, de não serem únicos,
isolados, mas formarem um grande grupo de pessoas, de estabelecerem
relacionamentos, de se entenderem, já teria valido a pena irmos tão longe.
Voltamos outras vezes ao Mato Grosso, o mesmo time (Lourdes, Célia,
Maurício e eu). Uma delas, de Kombi. Foram horas e horas de estrada, 1.565
quilômetros. Aquela Kombi não era das mais novas, mas, mesmo assim, levou a
gente pelo interior desse Brasil, num esforço maluco. Lembro que, certa vez, já
eram 3 da madrugada e estávamos na estrada, desertíssima, e a gasolina
acabando. O ponteiro já não mexia. O posto de gasolina não chegava. A luzinha
do painel acesa. “Santa Misericórdia! Vamos ficar sem gasolina aqui, nesse
matão, nessa escuridão, sem uma viva alma por perto.” A Lourdes na cama e a
Célia no colchão, sobre o motor, para descansar do banco, lá atrás. O Maurício ao
meu lado, cochilando. Como vamos fazer se pararmos? E se precisarem ir ao
banheiro ou de água? O último posto, pelo qual nós passamos, estava em tão más
condições, que resolvemos não comprar nada nem reabastecer, imaginando que
logo mais haveria outro na estrada. Que nada, mais de quatro horas de viagem e
nada. Eu pensei: “Nem vou anunciar que a gasolina está acabando, pois só vai
dar pânico.” Eu rezava e rezava.
Estava ficando desesperado, com muito medo. De repente, depois de
longa subida, quando começa a descida, avisto, na outra encosta, umas luzinhas.
Pensei comigo: “Meu Deus! Tomara que seja um posto.” E era! A gasolina da
Kombi deu conta de chegar até manifestar as primeiras trepidações no
paralelepípedo do posto e parou. Pouco mais de dez, 20 metros antes da bomba
de combustível. Com as trepidações no piso, a parada e o clarão, o pessoal
acordou. “Ué, o que foi isso?”, perguntaram. “Acabou a gasolina”, disse eu. “Como
assim, aqui na porta do posto e você não disse nada?” Respondi: “Isso mesmo,
graças a Deus!” Só então contei o meu drama.
Pairava uma grande proteção do Amor sobre nós e podíamos repetir com
São João, éramos os discípulos que Jesus amava. O que permanece até hoje.
Não havia limites para a Lourdes. Isso impressionava muito. Enquanto
todos nós reclamávamos por qualquer coisa, ela chegava a ter queimaduras, nas
costas, por causa do gesso e do calor do Mato Grosso. Tinha bolhas nas costas, o
gesso queimava. Como se fosse um bronzeado de sol. Mesmo assim, ela não
abria a boca para lamuriar.
Havia certa animação, certo reboliço quando a gente chegava a algum
lugar. Todo mundo queria ter o privilégio de ajudar a descer e subir a Lourdes na
Kombi. Ela, pessoalmente,
211
já era pesada e mais, com todo aquele aparato: gesso, cama, rodas, armação de
madeira, travesseiros. Os homens da região, bombeiros, soldados, toda a
rapaziada e até os idosos queriam participar: “Deixa que eu ajudo! Deixa que eu
ajudo!” Era uma espécie de troféu, de benção carregá-la.
Outra coisa interessante é que muita gente, quando ia visitá-la no
hospital, passava a mão em seu braço, ainda que de modo meio disfarçado,
escondido, fazendo de conta que olhava para outro lado, e, depois, ao sair do
quarto, se benzia, como se ela fosse uma pia de água benta ou uma santa. Ou
seja, de alguma forma, as pessoas percebiam que era uma mulher extraordinária.
A Lourdes dizia sempre que nenhuma dificuldade impede a vida. Mas,
pode impedir a gente de fazer o bem, se a gente usa a dificuldade para se
esconder atrás dela, como desculpa. A opção de ajudar ou não os outros é
anterior às dificuldades, ou seja, alguém não ajuda seu próximo não é porque
está difícil, mas porque sua postura já era de não ajudar. A dificuldade se torna,
então, somente uma desculpa. Isso é o que ela queria dizer. Ela superou todos
os obstáculos que lhe apareceram no caminho e ajudou muita gente, de todos
os jeitos e maneiras. Tendo falecido dia 5 de maio de 1996, atualmente está em
processo de canonização. A fase diocesana de seu processo terminou em
julho/agosto do ano passado e foi para Roma, remetido à Cúria do Vaticano,
para a segunda etapa, reconhecida como Serva de Deus.
Vamos ver se a Igreja consegue canonizá-la, colocá-la nos altares, mas
não para torná-la uma pessoa diferente do que foi. Apenas, para que ela seja
conhecida como alguém que, tendo sido desta terra, humana como a gente, mas
limitadíssima, ainda assim, dedicou a sua vida para os outros. Ela não se
escondeu atrás de nenhuma de suas enormes dificuldades, mas ajudou a tornar
este mundo um lugar melhor.
Porém, mesmo dentro de um mesmo grupo como a Fraternidade, existe
oposição de alguns deficientes. São aqueles que acham que é bobagem esse
negócio de enfrentar todo um processo, em Roma, para Lourdes ser canonizada.
Acham que é gasto inútil, coisa à toa.
Mas também há, graças a Deus, muitas pessoas que pensam o contrário.
Pessoas que acham que insistir, em Roma, com o nome e a vida dela, poderá
chamar a atenção da humanidade para a defesa da vida, dom de Deus. Ela, por
exemplo, mesmo sendo tão limitada, encheu de vida tanta gente. Ela é um
símbolo de garra, de fé, de esperança, de coragem, de incrível amor pelo próximo.
Vai ser um exemplo fortíssimo para muita gente de que, de fato, um impedimento
físico não tira o “ser” de ninguém. Pode reforçar nossa crença de que todas as
pessoas têm, por assim dizer, a responsabilidade de ajudar a salvar o mundo.
Acho que, se a Igreja realizar isso, será um exemplo muito grande e
bonito. Seria o reconhecimento de uma entrega linda para a salvação do mundo.
Até porque foi exatamente isso que Jesus veio fazer: salvar o mundo ajudando as
pessoas a perceberem que somos irmãos e irmãs, filhos e filhas do mesmo Pai.
Dizíamos nas reuniões da Fraternidade que ninguém vai entrar no céu, no
paraíso ou na felicidade, escondido atrás de uma bengala, de muleta, de uma
cadeira de rodas ou atrás de uma maca. Não adianta pensar que, no céu, por
estar numa cama, a pessoa terá o primeiro lugar da fila. Não tem isso, não! Quem
morre e chega diante de Deus é a pessoa e não os aparelhos que ela possa ter
usado em vida. Do mesmo modo, o pobre ou o rico, o importante e o não
importante, o que vai chegar com ele serão suas ações pela construção de outro
mundo possível. Suas vidas consumidas no serviço aos outros. Quem vai ser feliz
será o construtor do Reino de Deus.
212
A Lourdes foi alguém que entendeu esse processo muito claramente,
muito profundamente. Deus ama as pessoas e atua através delas. Acho que
nossa querida amiga foi uma grande mensageira do amor de Deus!
Na trajetória de fundação de núcleos da FCD, em vários lugares,
entendemos a necessidade de fazer a nossa parte, mesmo não tendo as condições
ideais. Mesmo vendo que aquilo ali parecia que não daria fruto algum. Para nós
cabia semear e plantar, pois outros iriam colher.
Ainda ontem, estive em um jantar com velhos conhecidos do movimento e
das lutas das pessoas com deficiência. Pude participar porque estava passando
por São Paulo, já que moro em Goiânia atualmente. Foi um encontro com vários
deficientes daqueles tempos antigos, de 1977, 1978, 1980. Encontrei com essas
pessoas e comentamos justamente sobre o início da Fraternidade, numa época
em que não havia muitos deficientes nas ruas por total falta de acessibilidade.
Sabemos que ainda hoje há dificuldades, mas o cenário mudou muito. Um
cadeirante na rua nos anos de 1970 ou 1980 era um fenômeno! Todo mundo
ficava olhando. Muita gente até dava esmola, só porque a pessoa era um
cadeirante.
Uma vez, saí com um rapaz, daqui de São Paulo, que se chama José
Carlos Barbosa dos Santos, muito querido. Ele é tetraplégico, cadeirante,
professor de inglês e era coordenador estadual do movimento. Saí empurrando
sua cadeira. Estávamos no meio do caminho, quando avistamos uma senhora que
vinha em nossa direção, à distância aproximada de uma quadra.
Notei que ela olhava, parava e mexia na bolsa. Parava, andava um
pouco, tornava a parar e mexer na bolsa. Eu falei: “Zé Carlos, acho que você vai
ganhar uma esmola.” Ele falou: “O que é isso, menino!” Respondi: “Acho que vai,
sim, porque aquela senhora lá do outro lado está com uma atitude meio esquisita,
fuçando tanto naquela bolsa que sinto que vai sair um troquinho para você.”
O Zé Carlos continuou duvidando: “Ah não… Imagina! Não fala isso, não.”
Insisti e brinquei: “Vai sim! Vamos ficar um pouquinho mais ricos com esta
caminhada.” Lá fomos nós, até que a mulher se aproximou e, de fato, deu 10
centavos a ele, que até agradeceu...
As coisas eram assim, entre o final dos anos 1970 e início da década de
1980. Acredito que esse comportamento acontecia pelo fato de os deficientes não
circularem pelas ruas. Quando saíam, todo mundo ficava olhando, por isso, muitos
tinham vergonha de sair de casa.
Lembro que acontecia algo interessante, quando começávamos a formar
um núcleo da Fraternidade num bairro. Uma das estratégias era buscar
informações nas farmácias, onde as famílias comparavam alguns remédios
específicos para certas doenças. Nessas abordagens, os atendentes sempre
informavam onde moravam os deficientes locais e quais eram suas deficiências.
Porém, quando chegávamos ao endereço para confirmar, as famílias
negavam: “Deficiente, aqui? Não temos não.” Respondíamos que havíamos
recebido a informação por parte do farmacêutico. Mesmo assim ouvíamos: “Não,
não tem não, deve ser em outra casa.” Era a negação pela vergonha, que
demandou todo um trabalho imenso para reverter esse quadro.
Até porque ninguém fica deficiente ou nasce nessas condições por
querer. Mesmo assim, os pais tinham vergonha, talvez porque a nossa criação, a
nossa cultura leve a esse sentimento de culpa. A dificuldade não é vista como
parte da vida, parece que nossa educação é numa dinâmica infantil, para uma
vida que fosse mágica. De tal modo que, frente a uma deficiência, logo se quer
procurar um culpado. E, para não “mexer na ferida”, pensava-se que era melhor
esconder ou negar a existência dela. Por isso, o movimento enfrentou muitas
barreiras no começo.
213
Faço registro que, na Igreja Católica da América Latina, existiam dois
movimentos voltados às pessoas com deficiência: um deles é o Esperança Cristã,
liderado, na época, pelo padre jesuíta chileno Aldo Giacchi, a quem a Lourdes
conheceu em 1975, durante um encontro realizado por esse grupo, no Colégio
São Luís. Dois anos depois, em maio de 1977, nós nos conhecemos, por meio da
Janete, peruana, que era minha secretária na Parapsicologia e havia conhecido a
Fraternidade em sua terra natal, como disse anteriormente.
O Esperança Cristã valoriza mais a doença, a enfermidade e a
deficiência. A teoria deles é a de que, com as orações da pessoa que sofre, com o
seu sacrifício, com as suas dificuldades enfrentadas no viver, o deficiente pode se
oferecer a Deus para a salvação do mundo e das almas. Dessa forma, termina por
fazer uma espécie de valorização do que falta na pessoa, ou seja, a deficiência,
como se essa fosse uma graça.
Já, a Fraternidade, iniciada na França, com monsenhor Henri François,
busca valorizar exatamente o que cada indivíduo possui. Assim, a pessoa não é
identificada com a perna que não tem, com o olho que não enxerga, com o ouvido
que não escuta. Ela é o que é, e não o que tem ou deixa de ter. Perna, olho,
braço, mão, são importantíssimas, mas não fazem uma pessoa, são partes dela,
mas não são ela. Não se perde a essência ao se perder os membros. Essa é a
grande diferença entre os dois movimentos. Até o próprio Deus se identifica assim
para Moisés: “Eu sou aquele que sou.” (Êx. 3,14)
Lembro-me de um deficiente do nosso grupo – que podia usar tanto
cadeira de rodas quanto muletas canadenses. Certa vez foi ao metrô de São
Paulo, nos seus começos. Quando chegou de cadeira de rodas na roleta da
estação Sé, um segurança ou um atendente disse: “Ah, não dá para o senhor
passar por causa da roleta. A cadeira de rodas não passa...” Ele respondeu:
“Olha, mas se o senhor puder me ajudar, posso dar alguns passos.” E foi logo
pegando as muletas e dizendo: “Eu passo de muletas e o senhor atravessa a
cadeira para mim. O senhor pode fazer isso?” A resposta do funcionário, meio
irritado com a insistência, foi: “Não, rapaz. Você não está entendendo que o metrô
não é para aleijado?”
O rapaz, então, guardou as muletas, voltou para a cadeira e foi embora.
Quando chegou à reunião do grupo, ele contou tudo o que tinha passado. Além da
indignação, a pergunta que surgiu imediatamente foi: “Como o metrô não é para
aleijado, se é a condução mais fácil, rápida e acessível, para a gente?” Resultado:
reunimos cerca de 150 aleijados numa tarde, na própria estação Sé, para
descermos na terceira estação depois, com o título de ir visitar o Centro Cultural
Vergueiro.
Havia deficientes de todos os tipos: de bengala, de cadeira de rodas, de
maca, cegos, surdos, uma moça careca, de peruca, pois fazia quimioterapia etc.
E, quando essa moça, Heleninha, foi descer a escada rolante, a peruca dela caiu
e alguém logo gritou: “A cabeça da moça rolou na escada.” Ou seja, foi aquela
confusão! Parecia uma guerra mundial. O metrô parou! Se um aleijado dava
confusão, imaginem com 150, era como se acabasse o mundo! Então, os
funcionários tiveram de embarcar todos no meio daquela bagunça!
Na estação Vergueiro, foi outra confusão durante nossa saída. Depois
disso, além do fato de termos chamado a atenção da imprensa, também
entramos com uma ação na Justiça. Nossa causa foi ganha no Supremo, dez
anos depois, em 1988, e o metrô foi obrigado a estabelecer acessos e colocar
elevadores em todas as estações que fossem construídas após aquele ano.
Além disso, a companhia teve de disponibilizar, nas outras estações,
funcionários que ficassem à disposição para ajudar quando um deficiente
estivesse esperando nas escadas fixas ou rolantes, levar até o vagão e avisar
aos encarregados a estação em que iria descer.
214
Entendemos isso como um ganho institucional. Com ações como essa e
com a atuação dos movimentos, as coisas foram mudando. Pouco a pouco, foram
conquistadas rampas, banheiros, elevadores em vários espaços como as igrejas e
outros locais onde existiam apenas escadarias.
As pessoas que não têm problemas não pensam na diferença que a
altura mínima de um tapete pode fazer para uma pessoa deficiente. Para ele,
isso é quase um muro! É um empecilho enorme para as cadeiras de rodas,
assim como para aquele indivíduo que não tem força no braço. Hoje existe a
cadeira motorizada, mas, na época, a gente chamava de “cadeira elétrica!”
Então, brincávamos: “Perdão! Não quero cadeira elétrica, não, quero cadeira
motorizada.” Até conseguirmos firmar o nome, muito deficiente disse que
sentava em “cadeira elétrica!”
Depois do movimento iniciado e de várias ações, tivemos um ano muito
importante: o Ano Internacional das Pessoas Deficientes (1981). Lembro-me de
que, naquele ano, houve aqui no Brasil um congresso nacional das pessoas com
deficiência, em Recife, ao qual muita gente esteve presente. Inclusive a Lourdes,
eu e outras pessoas da FCD, além de membros de outros movimentos, como a
Elza e seu esposo, o Ruizinho; o Cândido, o Gilberto e mais um monte de gente.
Assim, pudemos perceber o quanto os grupos – muitos não relacionados à Igreja
– estavam se mobilizando. Aqui em São Paulo, aconteceu muito isso.
Todos se encontraram lá em Recife. Eram muitas pessoas, mesmo com
todas as dificuldades dos locais do encontro, que não possuíam adaptação no
banheiro ou rampas. Quer dizer: a grande luta inicial já começava na hora de
enfrentar a falta de infraestrutura para a organização do evento dos movimentos
em âmbito nacional.
Quando chegamos em Recife, já havia cerca de 48 ou 50 grupos
organizados pelo padre Vicente Masip, com a ajuda do Messias, recifense
cadeirante que tinha sido coordenador nacional. Então, com a coordenação da
Lourdes, chegamos a outros cantos do país e passamos para 250 núcleos da
FCD.
Havia uma espécie de tendência ou expectativa inicial da pessoa com
deficiência, em relação ao movimento, baseada na importância que a sociedade
dá para a aparência. Baseadas nessa valorização, as primeiras reivindicações dos
grupos eram voltadas sempre para bens materiais. Então, a tendência natural da
pessoa com deficiência era lutar imediatamente por cadeiras de rodas, bengalas,
muletas e até por uma Kombi.
O pensamento básico era: “Bom, então, no nosso grupo aqui,
conseguimos reunir dez deficientes, se a gente conseguir uma Kombi, nós vamos
conseguir ir para vários lugares com mais facilidade.” Mas a Fraternidade não
brigava por causa de coisas materiais.
A Fraternidade lutava, e luta até hoje, em primeiro lugar, pela mudança de
visão com relação ao deficiente. A sociedade reforça uma imagem de que as
pessoas com deficiência são coitadinhas, pobrezinhas, infelizes, tristes,
incapazes... Esse preconceito expresso por alguém machuca, mas, quando essa
concepção é assumida pela própria pessoa com deficiência, mata a sua vida.
Como alguém vai ajudar um indivíduo que não se vê como passível de ajuda?
Como tentar solucionar um problema se a própria pessoa o vê sem solução
possível? A coisa fica muito mais difícil.
Então, a Fraternidade procura trabalhar esse aspecto. Somos feitos à
imagem de Deus, do mesmo jeito que qualquer outra pessoa, apesar das
dificuldades que possamos ter a mais ou a menos que alguém, cujos membros
sejam perfeitos. Além disso, as dificuldades podem ser externas, visíveis, como as
do nosso pessoal de pessoas com deficiência, ou internas, que não se podem ver,
mas que também são dificuldades. E não dá para comparar dificuldades,
215
pois cada qual tem o seu peso. Como diz o poeta, algo mais ou menos assim:
cada um é que sabe a alegria ou tristeza de ser o que é. O importante é se
entender como pessoa, com direitos e deveres, seja em que circunstancias forem.
O Ruizinho mesmo, esposo da Elza, é um exemplo interessante. Ele tinha
aquela doença chamada popularmente de “osso de vidro”, cuja vítima tem de
amputar todas as partes que quebram em seu corpo. Então, ele perdeu as pernas,
ficou só com o toquinho do corpo atrofiadinho. Não podia comer muito, não podia
fazer várias coisas, porque os ossos fraturavam facilmente. Por isso, viveu anos e
anos em casa.
Depois que ampliou sua visão a respeito de sua doença e de si, ele
saiu, foi fazer curso, formou-se em Biblioteconomia e foi bibliotecário da USP.
Comprou um baita carro automático. Viveu a vida. Não parou na deficiência. Por
falar nisso, um dia, ele foi assaltado na rua, quando parou no sinal. Veio um
cara com um revólver, de um lado, e outro cara, do outro lado, dizendo:
“Assalto! Vamos descendo do carro! Vai pulando fora logo!” Ele ficou paralisado.
Como iria descer? Os bandidos insistindo: “Vamos! Vamos desgraçado, sai daí!”
Até que um deles abriu a porta e viu aquele toquinho de gente em cima
do banco, com as mãozinhas e os bracinhos fininhos, com o carro todo
automático. Desconcertados, eles mandaram ele embora. Rui, mais do que
depressa, arrancou com o carro. Quando chegou na reunião, contou a história e
terminou assim: “Até que enfim valeu a pena ser aleijado!”
Basta lembrar o exemplo da Lourdes. Quando é que ela pensou que iria
poder rodar o mundo, passar pela América Latina? Ela foi fazer passeata na Costa
Rica, América Central! Deitada na maca, segurava o cartaz, enquanto nós a
empurrávamos: “Fraternidade sim, violência não.” No meio da avenida central de
San José, a capital do país. Aquele monte de cadeirantes e ela com aquela maca
enorme! Parou o trânsito! Parava o mundo! Dá para imaginar uma cena dessas,
em 1981?
Ou seja, de fato, todos nós temos que contribuir para a salvação do
mundo. Ninguém fica impedido disso, apenas por ser portador de alguma
deficiência. Não tem isso, não. Todo mundo tem de se engajar nessa oração do
mundo, porque, senão, não vai para frente, não! Ainda existe muita dificuldade,
por isso, não podemos parar.
Certamente, hoje, é mais fácil andar e ocupar as ruas, o espaço público.
Mas ainda há milhares de outras conquistas a serem alcançadas. Não saberia
dizer, dentre elas, qual é a mais importante. Talvez, dentre elas, uma importante é
saber que as lutas de um grupo ou categoria de pessoas são muito semelhantes
às de outros grupos. Há a necessidade de fazermos redes de atuação, de darmos
as mãos para outros segmentos, reivindicando sobre as dificuldades deles para
que as necessidades de todos e todas possam ser conquistadas.
Vivi uma experiência interessante em Goiânia, onde moro há 20 anos,
trabalhando com jovens e também assessorando o mandato da vereadora Cidinha
Siqueira, uma deficiente muito bacana, que teve pólio e é tão reduzidinha que
quase não dá conta de rodar a própria cadeira.
Em 2007 ou 2008, no Dia Internacional das Pessoas com Deficiência,
comemorado em 3 de dezembro, ela organizou uma solenidade para marcar o dia
internacional, numa praça, a Praça do Cruzeiro, que é uma das praças centrais da
cidade. Foram convidados o prefeito, secretários, deputados, vereadores,
coronéis, procuradores do Estado, representantes do Ministério Público, da
polícia, enfim, várias autoridades da cidade para participarem daquela solenidade.
Como é de praxe, foram feitos muitos discursos, todos falando bem da pessoa
com deficiência, como era de se esperar. Todos valorizaram a data. O prefeito foi
o último a
216
falar e foi bem sucinto, como que a dizer “terminamos, podemos ir”. Entretanto, a
Cidinha havia conseguido 50 cadeiras de rodas, que foram colocadas atrás do
palanque, escondidas. Então, ao final, ela disse: “Agora, vocês vão experimentar
andar na cadeira de rodas, aqui na praça, para ver como são nossas dificuldades.”
A vereadora conseguiu que as autoridades “rodassem” pela praça.
O calçamento do local é com lajotas de barro que, com o tempo,
terminam se deteriorando. Conforme os obstáculos foram aparecendo, a Cidinha
foi comentando: “Aqui é um lugar plano. Imaginem se fosse uma ladeira!” Teve
mais surpresas. Ela arranjou uns tampões de ouvido e deu para todo mundo
perceber a realidade do surdo. Teve ainda o tampão de olho e a bengala, para
provar a vida doce do deficiente auditivo e visual. Foi fantástico!!! E sabem qual foi
o resultado disso?
No ano seguinte, o município entregou 430 ônibus adaptados com
elevador, para todas as linhas. Ou seja, se a pessoa não vive a experiência não
tem sensibilidade suficiente para perceber as dificuldades do outro. Um obstáculo
no meio da calçada pode causar transtorno para muita gente, e não só para o
deficiente, mas, também, para quem quebrou a perna e temporariamente usa
cadeira, para o idoso, para a gestante...
Certas pessoas podem levar um tempão para atravessar uma quadra,
porque seus movimentos são muito lentos, pois têm de desviar de uma pedrinha
ou de um graveto no chão porque não conseguem, simplesmente, pisar por cima,
já que arrastam os pés lentamente ao caminhar. É importantíssimo que tenhamos
esse tipo de percepção e sensibilidade em relação às dificuldades do outro.
Cidinha é alguém que vive essas situações no seu cotidiano e decidiu
assumir uma posição. Com isso, conseguiu ser muito querida e respeitada por
todos os partidos, mesmo sendo de um deles, o PT. As autoridades não eram do
partido dela, mas estavam lá, e “caíram na armadilha”, por assim dizer.
Vejo isso como uma grande mudança. O deficiente, que ficava dentro de
casa, sendo entendido, muitas vezes, como vergonha para a família, hoje, pode se
lançar a desempenhar qualquer função. Tudo isso em função da luta de muitos
movimentos pelo bem comum.
Lá em Brasília, tiveram de adaptar todo o plenário do Congresso Nacional
com rampas de acesso. Mesmo assim, no dia de experimentar o acesso na
Câmara, para ver se dava para ir até a tribuna, uma deputada falou: “É... até aqui
está bom. Mas só que ainda não consigo ir a uma reunião na sala da Presidência
da Casa.”
Assim, eles perceberam a necessidade de mais mudanças no local para
se tornar completamente acessível. Parece que isso está previsto para julho de
2011. Até porque a presença de um deficiente requer mudanças completas no
espaço. É só pensar na possibilidade de ela ser eleita para a mesa diretora, que
fica em outro local.
É comum que não percebamos as necessidades das outras pessoas e
fiquemos concentrados apenas em nós mesmos. Essa postura faz com que
imaginemos que, se nós passamos por determinado lugar, outros também
poderão passar. Não é bem assim. Temos de estar atentos para as necessidades
dos outros! Ainda que não saibamos quais sejam, mas precisamos ajudá-los a
conquistarem.
Por isso, acredito que o espaço político também tenha de ser ocupado.
Da mesma forma que várias mulheres tomaram posse em diversas áreas do
governo federal recentemente. É a primeira vez que temos tantas mulheres nos
ministérios. Isso é importante porque há pontos que só elas enxergam. Pois, só as
mulheres é que sabem o que passaram durante a vida toda para se firmarem
profissionalmente e terem seu espaço na sociedade.
217
Vejo que um mundo comandado apenas por homens fica,
necessariamente, incompleto de um lado. As mulheres veem o que nós não
vemos, e vice-versa. O mundo precisa ser uma obra comum e não só de um
grupo, de um segmento, de uma só categoria de pessoas. Um mundo comum tem
mais chance se ser mais justo e igualitário, mais completo.
Hoje, pela manhã, estava refletindo sobre o papel da igreja nos dias
atuais. Percebo que estamos ainda muito limitados. Somos uma organização
que, em sua hierarquia, é formada apenas por homens. Isso nos faz, sem
dúvida, mais pobres, mais incapazes de atender à dor da humanidade.
Infelizmente, não conseguimos, ainda, aceitar isso. Acho que, mesmo depois de
tanto tempo de luta das mulheres, do feminismo, ainda falta muito para nos
darmos conta das imensas dores dos empobrecidos. Nós, cristãos como um
todo, precisaríamos nos interessar muito mais pelas realidades da vida, abrindo
nossas portas a todos os grupos: mulheres, deficientes, negros, indígenas e
tantos outros que nem conhecemos.
Ainda excluímos muito, impedimos muito, dificultamos muito a vida uns
dos outros, ainda estamos muito centrados em nós mesmos, preocupando-nos
somente ou principalmente com nossas próprias coisas. Não diria que é por
malícia, não. Às vezes é até com boa intenção. Mas, isso não é suficiente. Tem de
ter, de fato, a experiência da sensibilidade para perceber que quanto maior o
número de pessoas que puderem contribuir, tanto melhor e mais rico poderá ser o
resultado final.
Nós ainda precisamos dar muitos passos. O simples fato de se falar em
sacerdócio feminino acende o alerta em muitas cabeças purpuradas e em outras
pretendentes. Falar em união homoafetiva faz abrir os horrores de outros,
possivelmente mordidos por alguma mosca azul. Desejar a eleição de um papa do
terceiro mundo é blasfêmia para alguns que se pensam senhores do mundo.
Mencionar, no Brasil, a necessidade de revisão da lei de anistia, que indultou
criminosos comuns, em crimes de lesa humanidade, faz soltarem-se os cachorros
de muitas cúpulas fardadas e fanatizadas. Todos estes são tabus em pleno século
21.
A humanidade nasceu para muito mais, mas tem medo do futuro,
esconde seus talentos debaixo da terra, apesar de se postar muito religiosa e
temente a Deus.
Ontem, lia sobre essa questão. Há pena de morte e prisão perpétua para
homossexuais em muitos países. Parece que são 72 nações. É tão absurdo que
parece que a ONU vai discutir esse tema como um verdadeiro desrespeito aos
direitos humanos.
Digo que não deveríamos ter medo da realidade, da vida e das coisas.
Deus é maior. Há aquele ditado que diz mais ou menos assim: “Não fale para
Deus que você tem um grande problema. Fale para o seu problema que você tem
um grande Deus.”
“Se Deus é por nós, quem será contra nós?”, dizia São Paulo. E foi
acreditando nisso que a juventude, organizada em pastoral, lançou a Campanha
Nacional contra a Violência e o Extermínio de Jovens, que começou entre nós e
vai se espalhando por toda a América Latina.
Vamos entrar de peito na luta pela justiça e igualdade entre todos e
todas, pois só teremos a ganhar na realização do bem comum. Ao nos
aproximarmos das pessoas a quem julgávamos que iríamos ajudar, saímos
muito mais completos do encontro, pois percebemos que fomos muito mais
ajudados do que pudemos ajudar. Foi essa a experiência que vivi no contato
com os movimentos das pessoas com deficiência, ou, como disse antes, no
contato com os moradores da favela do Papagaio, em Belo Horizonte, meu
grande ninho do sentido da vida.
218
Imagem. Capa da Revista Cartas Abertas, de 1987
Cabeçalho: Cartas Abertas – Fraternidade Cristã de Doentes e Deficientes – Ano XIV – nº 57 – Junho de 1987. Três fotos em branco e preto: 1 - Maria de Lourdes
Guarda na maca e milhares de pessoas na rua; 2 – Maria de Lourdes na maca, rodeada de crianças, no fundo vê-se freiras; 3 – Maria de Lourdes e um grupo de pessoas,
com e sem deficiência, posam para foto num pátio, em frente a uma construção. Rodapé: FCD – 15 Anos de Fraternidade no Brasil.
Referência bibliográfica: CARTAS ABERTAS. FCD: 15 ANOS DE FRATERNIDADE NO BRASIL. São Paulo: Escolas Profissionais Salesianas, jun 1987
Acervo digital Memorial da Inclusão. Doação Cedipod.
219
Imagem. Matéria da Folha da Tarde – São Paulo, segunda-feira, 16-3-1981.
Deficientes iniciam Ano Internacional. Contém foto: Maria de Lourdes Guarda deitada na maca tendo ao seu lado dois homens e uma mulher. Legenda: “Da. Maria de
Lourdes vive há 34 anos presa à cama.”
Perto de 400 pessoas, portadoras de deficiências físicas, foram sábado à Câmara Municipal participar da solenidade de abertura do Ano Internacional da Pessoa
Deficiente, que terá continuidade, em São Paulo, com a realização de mesas-redondas e organização das “fraternidades” nos bairros e junto aos sindicatos e outras
entidades de classe.
Odete Cláudio Machado, cega, leu de uma publicação em Braille o texto da Declaração dos Direitos da Pessoa Deficiente, abrindo a cerimônia, que contou com a
presença do secretário-geral da CNBB, d. Luciano Mendes de Almeida, do deputado federal Horácio Ortiz, presidente do Sindicato dos Engenheiros do juiz-corregedor
de Presídios, Renato Talli, e de representantes de diversas entidades de assistência.
O Movimento pelos Direitos das Pessoas Deficientes – MDPD, que organizou a solenidade, programou para o restante do ano uma série de atividades através das quais
pretende, entre outras coisas, “conscientizar a sociedade a respeito da verdadeira imagem da pessoa deficiente como ser humano, defender seus direitos, eliminar
barreiras ambientais, atualizar a legislação específica e denunciar os casos de exploração e humilhação”.
Cândido Pinto de Mello e José Evaldo de Mello Doin, dois dos oito coordenadores do MDPD, ressaltaram que a organização “tem caráter político não partidário, existe
há dois anos e se constitui em instrumento de pressão dos deficientes, rejeitando qualquer forma assistencialista de tratamento aos deficientes”.
Dificuldades. A maioria dos presentes à abertura do Ano Internacional da Pessoa deficiente teve muita dificuldade para chegar ao plenário da Câmara, onde se realizou
a solenidade. Da. Maria de Lourdes Guarda, por exemplo, que devido a uma doença que provocou a calcificação de parte da sua coluna, vive há 34 anos deitada numa
cama de rodas, teve que ser levada por quatro pessoas. Ela participa de entidades assistenciais há cerca de dez anos e acha que “o melhor resultado que se pode obter
com o Ano Internacional da Pessoa Deficiente é uma conscientização do povo e das autoridades no sentido de que nós temos capacidade de produzir, mas é preciso criar
as condições para isso”.
Legenda: Acervo digital Memorial da Inclusão. Doação Romeu Sassaki.
220
Imagem. Documento.
FCD – Fraternidade Cristã de Doentes e Deficientes Físicos – Equipe Regional de S.Paulo - Alameda Rio Claro, 190 – 01332 – S. Paulo.
Declaração.
Para fins de credenciamento junto às reuniões preparatórias do congresso nacional de pessoas deficientes, convocadas pela Associação de Deficientes Físicos de
Brasília, declaramos que as seguintes pessoas compõem a delegação paulista: Ana Maria Morales Crespo, Benedito de Paula e Silva, Carlos Lelis Faleiros, Heloisa
Helena Ferrari Chagas, Isaura Helena Pozzatti, José Evaldo de Mello Doin, Leila Bernaba Jorge, Romeu Kazumi Sassaki, Thomas F. First, Vinicius G. Vianna de
Andrade.
São Paulo, 17 de junho de 1.980.
Assinam: Maria de Lourdes Guarda, Responsável Regional da FCD ; Pe. Geraldo M.L. Nascimento S.J., Conselheiro Regional da FCD
Legenda: Acervo digital Memorial da Inclusão. Doação Heloísa Chagas
221
Imagem. Foto em preto e branco. Maria de Lourdes dentro da Kombi com a qual viajava por todo o país. Os bancos da Kombi eram retirados para dar espaço à maca.
Nesta foto vê-se apenas o último banco. Foto de Varner Morandini Jr. Acervo digital Memorial da Inclusão.
Imagem. Foto em preto e branco. Maria de Lourdes Guarda em reunião do Movimento. Da esquerda para a direita: Luiz Celso Marcondes de Moura, José Evaldo de
Mello Doin, Candido Pinto de Melo, Rui Bianchi do Nascimento, Leila Bernaba Jorge, Robinson José de Carvalho e Maria de Lourdes Guarda. In: Deficientes mostram
valor e coragem na luta pelos seus direitos. Gazeta de Santo Amaro, São Paulo, 21-2-1981.
Acervo digital Memorial da Inclusão. Doação Romeu Sassaki.
222
Imagem. Foto colorida. Maria de Lourdes entre padre Geraldo Marcos Labarrére Nascimento e a hoje deputada Célia Leão. Atrás deles, uma faixa diz: Sejam Bemvindos. Acervo digital Memorial da Inclusão. Doação irmã Leonor Guarda.
Imagem. Foto colorida. Em primeiro plano, Maria de Lourdes e três pessoas em cadeira de rodas. Ao fundo, sentadas, aproximadamente, 18 freiras com hábitos na cor
branca. Ao centro, um homem de pé, de costas para o observador (provavelmente, padre Geraldo). Acervo digital Memorial da Inclusão. Doação irmã Leonor Guarda
223
Gilberto Frachetta
Imagem. Foto colorida de Gilberto Frachetta durante evento comemorativo dos 25 anos do AIPD. Gilberto olha sorrindo para o esqueleto de dinossauro (em madeira),
símbolo do pioneirismo dos protagonistas do AIPD, e o cumprimenta com a mão direita. Atrás de ambos, vê-se banner do Evento. Contêm epígrafe: “Percebemos que
os governos da época queriam ‘tomar conta’ do Ano Internacional e que suas ações eram estruturadas no sentido de que os deficientes fossem representados pelas
autoridades. Decidimos organizar e construir o ‘nosso’ Ano Internacional. Começamos a trabalhar nesse sentido já em 1980”
eu nome é Gilberto Frachetta. Como sou descendente de italianos, a
pronúncia é “Fraqueta”. Nasci em 2 de maio de 1941, em casa, nas mãos de
uma parteira, na Vila Anglo-Brasileira, um bairro pobre na época, localizado
na zona oeste da cidade de São Paulo.
Acabo de completar 69 anos. Fui o segundo filho. Depois vieram mais
três irmãos, sendo dois gêmeos, e uma irmã. Assim, somos seis filhos, meu pai e
minha mãe. Uma família mediana, considerando os padrões daquela época. Hoje,
ela seria considerada enorme. Naquele tempo, era comum ter quatro, cinco ou até
dez filhos.
A rua onde morávamos, na Vila Anglo, terminava na Praça Cruzeiro, um
morro sem saída com uma cruz. Daí esse nome. Esse bairro, com suas ruas de
terra e sem água encanada, ficava ali no meio, rodeado por outros bairros “mais
ricos”, ou de classe média, como a Vila Pompeia, o Sumarezinho, a Vila Ipojuca, a
Vila Romana, todos asfaltados, arborizados, com energia elétrica, telefone e tudo
mais. Para a criançada era excelente, porque a gente brincava na rua com
tranquilidade.
Diariamente, jogávamos futebol, bolinha de gude e palmo a calha, um
jogo que consistia em perseguir a bolinha do outro e, se batesse nela, ficava com
a bolinha do adversário. Também brincávamos de mão na mula, uns ficavam com
as costas agachada e a mão no joelho, outros vinham, batiam com uma mão nas
costas e pulavam. Ttinha outra brincadeira na qual duas turmas, uma de cada lado
da rua, tinham o objetivo de atravessá-la. Só que para passar para o outro lado,
tinha que ir pulando em um pé só. A regra era ser perneta! Na hora de cruzar para
a outra calçada, alguém vinha tentar te derrubar. Acredito que, apesar da
pobreza, nossa infância foi melhor do que a daquela meninada dos bairros ricos
ao redor.
Minha infância foi assim… Havia briguinhas também, claro… De vez em
quando, a gente inventava outras brincadeiras. Porque brincadeira é algo que
inventávamos o tempo todo. Ah! Também brincávamos de bafo com figurinhas,
taco. Lembro também de rodar peão, de fazer carrinho. Mas, não era de rolimã,
porque não funcionava em rua de terra, o carrinho tinha roda de madeira e, vira e
mexe, a gente tinha de passar sebo para deslizar melhor...
Sobre meus estudos, fiz o antigo primário e secundário, hoje chamado
ensino fundamental. Depois, quando cursei o segundo grau, atual ensino médio,
aconteceu um problema. Meu pai, que era funcionário público, teve sua função
rebaixada por um decreto do Jânio Quadros, que era o governador na época.
Nesse período, o Jânio eliminou do funcionalismo público algumas categorias que
eram definidas por letras. Assim, meu pai, que era funcionário letra D, o que
significava ser encarregado de seção, foi rebaixado e seu salário diminuiu. Isso
era ilegal! Por isso, aos 12 anos, tive de começar a trabalhar. Com isso, meus
estudos ficaram atrasados. Depois voltei, fiz um curso técnico de Agrimensura e,
por fim, a faculdade de Economia, na Universidade de São Paulo. Naquela época,
1968, o curso ficava na rua Dr. Vila
M
224
Nova, paralela com a Maria Antônia, onde ficavam a Faculdade de Filosofia
Ciências e Letras da USP e, do outro lado, o Mackenzie.
Trabalhei como agrimensor numa empresa, exatamente no momento em
que as companhias começaram a se informatizar. Por isso, fiz um curso de
computação e desenvolvimento de sistemas. Pensei: “Agora, vou fazer um curso
de administração.” Prestei vestibular e passei na USP. Mas, tive uma surpresa
logo no primeiro ano, porque ele era básico para Economia, Administração
Pública, Administração de Empresas, Ciências Atuárias e Contábeis. Gostei tanto
de Economia que mudei de opção logo no segundo ano.
Naquele ano, 1968, discutia-se uma reforma universitária, então, havia uma
grande mobilização. Esse clima atingia não só os estudantes, mas, também, outros
setores, como os movimentos dos trabalhadores. Eu estava lá quando aconteceu a
famosa briga entre os alunos da USP e os do Mackenzie. Foi um acontecimento
que entrou para a história como sendo uma briga do Mackenzie com o pessoal da
Filosofia, da USP. Mas, nós, alunos de Economia, fomos os primeiros a ocupar a
faculdade na luta pela reforma universitária. Depois, aconteceu a ocupação da
Faculdade de Direito, lá no Largo São Francisco e, aí sim, a de Filosofia, perto da
data do congresso da UNE, em Ibiúna, onde muitos estudantes foram presos. Era
calouro nessa época. Essa briga aconteceu porque os estudantes da USP estavam
arrecadando dinheiro para fazer o congresso e o pessoal do Mackenzie veio
provocar, pois tinham uma visão ideológica contrária ao nosso pessoal. A
provocação foi aumentando dia a dia até que aconteceu o quebra-pau. Foi uma luta
desigual porque, enquanto a gente usava pedras, o pessoal do Mackenzie vinha
com espingardas, rifles e tochas de fogo que terminaram por causar incêndio no
prédio da Filosofia.
Naquela época, eu ainda não estava na cadeira de rodas. O edifício tinha
dois pavimentos e, quando tudo começou a pegar fogo, eu estava no andar de
cima. Uma garota e um rapaz estavam comigo. Logo chegou o Corpo de
Bombeiros que nos resgatou. Fui um dos últimos a sair de lá. Depois desse início
cheio de aventura, fiz todo o meu curso na Cidade Universitária, no Butantã.
Durante esses anos de estudante, fiz parte do centro acadêmico da
faculdade. Cheguei a ser eleito para a secretaria. Depois, prenderam o presidente
e o vice-presidente não quis assumir, o primeiro secretário estava sendo
perseguido pela polícia política, quem deveria assumir era o secretário. Então,
acabei assumindo o posto. Por causa dos trabalhos como presidente do centro
acadêmico, só consegui fazer duas disciplinas durante aquele período. Era o
mínimo para não ser reprovado. Em 1970/71, passei a integrar o DCE da USP,
que tinha uma diretoria própria.
Assim, minha formatura foi acontecer em 1975. Em janeiro daquele ano,
eu e mais cinco colegas da faculdade decidimos viajar para o Recife, em
Pernambuco. Fomos de carro e, no segundo dia de viagem, aconteceu o acidente
que me deixou paraplégico. Foi em um município chamado Realeza, distrito do
município Manhuaçu, em Minas Gerais, na Rodovia Rio-Bahia. Acho que a uns
100 quilômetros de Governador Valadares, a cidade mais conhecida da região.
Durante a viagem, éramos quatro homens e duas mulheres num veículo
que tinha quatro portas. Na época, cinto de segurança praticamente nem existia e,
caso existisse, naquele carro não tinha. Eu estava atrás e, quando caímos, a porta
do meu lado abriu. Fui jogado para fora. Machuquei a coluna. Quebrei a vértebra e
tive lesão medular. Foi essa lesão que afetou meus movimentos das pernas. Os
outros passageiros não tiveram ferimentos graves. A motorista machucou o ombro
e os outros tiveram apenas escoriações.
225
Como Realeza não tinha infraestrutura para atendimento médico, fui
levado para Manhuaçu, onde os médicos fizeram uma radiografia e falaram:
“Olha, aqui a gente não pode fazer muita coisa.” Quando ouviram isso, meus
amigos alugaram um aviãozinho, desses táxis-aéreo, e me trouxeram para o
Hospital das Clínicas (HC), de São Paulo. Ao chegar ao HC, fui internado no
Instituto de Ortopedia. Por coincidência, um rapaz da enfermagem conhecia meu
pai e, na hora em que viu o sobrenome Frachetta, ficou assustado e foi verificar.
Viu quem era eu e tentou me ajudar. Procurou o médico ortopedista, diretor da
ortopedia, mas ele estava de licença. Acabei operado por um médico que era
iniciante. Foi sua primeira cirurgia. Descobri, tempos depois, que a cirurgia não
foi bem-feita. E, além disso, que o médico tinha esquecido uma atadura de gaze
nas minhas costas. Fiquei com ela por cinco anos no meu corpo!
Enquanto estava internado, perdi meu pai, que faleceu em março de
1975. Meu processo de retomada começou em dezembro de 1975. Recebi alta e
fui para casa. Não víamos pessoas deficientes trabalhando em empregos formais
naquela época. Elas eram vistas na rua fazendo comércio ambulante, vendendo
guloseimas ou pedindo ajuda. Pensei: “E agora? O que vou fazer da vida?” Eu
estava com 33 anos.
Tornar-se deficiente é um processo estranho porque, geralmente, não
recebemos “oficialmente” a notícia. Vamos descobrindo aos poucos… Vemos que
trocamos de leito como os outros, até que percebemos outras pessoas saírem da
cadeira de rodas e a gente não. O médico dizia: “Tudo bem. Vamos lá, você vai
andar ainda...” Mas, conforme o tempo passa, a gente vai percebendo que nossa
situação é mais grave do que pensávamos. E o meu caso ainda foi agravado por
um erro médico.
Antes de viajar para Recife, estava tentando mudar de trabalho. Havia
conseguido um emprego como economista na Deca, do grupo Itaú, com sede no
bairro do Paraíso. Mas, veio o acidente e fiquei fora do mercado. Nesse momento,
tive a ideia de fazer um curso de Rádio e TV por correspondência. Era uma escola
norte-americana, Occidental School, com uma bolsa que ganhei do Lyons, através
do pai de um amigo, pois não tinha condições de pagar. Assim, montei uma banca
num quarto e comecei a consertar rádio e televisão. Fui vivendo disso.
Nossa situação melhorou devido a um processo que ganhamos contra o
Estado, por causa daquela lei do Jânio. Assim, pudemos alugar uma casa na
Pompeia, numa rua com água encanada e tudo mais. Antes, usávamos água de
poço. Houve uma melhora de qualidade de vida, sem dúvida. Lá conheci um
pessoal, fiz novas amizades, embora continuasse frequentando a Vila Anglo. Fui
tocando a vida até que, em 1978, um amigo, mais bem-informado e que havia
cursado Engenharia, me disse que conhecia um cara que também estava na
cadeira de rodas. Ele e outros estavam formando um movimento de deficientes.
A pessoa que ele conhecia era o Cândido Pinto de Melo, uma pessoa
atuante no movimento. Conheci novas pessoas que me davam carona e, entre o
fim de 1978 e o início de 1979, comecei a frequentar efetivamente esse grupo,
chamado Movimento pelos Direitos das Pessoas Deficientes (MDPD). Foi
participando desse movimento que comecei a me conscientizar a respeito da
situação na qual me encontrava. Comecei a lutar pelo que, na época,
chamávamos de “integração social”. Um dos aspectos que chamavam muito a
atenção era o lado econômico. Era visível que só participavam do movimento
pessoas com infraestrutura para se locomoverem. Provavelmente, eu era um dos
participantes mais pobres, portanto, um dos poucos sem condução própria.
226
A participação nesse grupo foi importante, porque me deu muita
consciência, não apenas sobre a situação, mas também sobre os pontos que
deveriam estar nas pautas de reivindicações. Por isso, acho que o legado que
esse movimento deixou foi tirar o deficiente de dentro de casa para que
começasse a lutar por seus direitos.
A situação do deficiente naquela época era muito complicada. Um dos
grandes problemas era a falta de acessibilidade. Porque isso, praticamente,
impedia a saída de casa daqueles que não tinham recursos. Não havia ônibus
adaptados, o que dificultava e muito a entrada nesses veículos. Por isso a
discussão sobre o direito de ir e vir foi muito importante. Outro ponto marcante foi
o processo de reabilitação. Na época, a reabilitação era focada somente nas
partes física e médica. Percebemos que esse processo deveria ser ampliado, que
ele deveria dar condições para que a pessoa replanejasse sua vida e superasse
aquela situação traumática.
É complicado quando alguém, em um determinado momento, começa a
perceber que as outras pessoas podem fazer coisas que ele não pode. Essa
diferença faz com que enxergue a si como um indivíduo limitado. Na época, a
gente chamou isso de “trauma psicossocial”. Nosso objetivo era discutir a melhor
forma de elaborar um novo projeto de vida. Concluímos que tanto nós quanto o
restante da sociedade teríamos de estar preparados para essa realidade. Por isso,
a reabilitação deveria incluir outros aspectos da vida. Naquele momento, era
fundamental superar o trauma da limitação! E, praticamente, nenhum centro de
reabilitação possuía profissionais capacitados para lidar com essa questão.
Quando muito, havia uma assistente social que viabilizava que o hospital
emprestasse uma cadeira de rodas e lençóis. Foi o meu caso quando saí do HC,
num momento em que minha família estava numa situação financeira muito ruim.
Era o máximo que essa profissional fazia.
E não queríamos muito na época. Queríamos o que chamávamos de
“integração social”, hoje denominada “inclusão social”. Percebemos, assim, que a
primeira coisa a ser conquistada era a acessibilidade. Em segundo lugar, viria
esse novo tipo de reabilitação, com enfoque mais ampliado. Pois, com o passar do
tempo, percebemos que, no aspecto profissional, ou as pessoas não tinham
profissão ou tinham que mudar de área para trabalhar. Por isso, era necessário
que a reabilitação incluísse esse ponto também. Percebemos que o oferecido não
era suficiente.
Acompanhando essa discussão, surgia o tema da escolaridade. Porque a
pessoa com deficiência não poderia parar seus estudos ou não ter acesso a eles.
Outros pontos que surgiram foram a questão cultural, o esporte e também o direito
de ter uma participação política e social, como ter o direito de votar. Isso porque,
na época, o deficiente era isento de votar. Ao mesmo tempo, não havia incentivo
por parte de ninguém para que essas pessoas votassem. Havia uma cultura que
marginalizava os deficientes, como se fôssemos cidadãos de segunda categoria.
Essa visão fazia os deficientes serem vistos como pessoas que não poderiam
fazer mais nada em suas vidas, deveriam ser sustentados e cuidados por
familiares.
Nesse cenário, era óbvio que não tínhamos acesso a praticamente
nenhum tipo de serviço oferecido pela sociedade. Naquele momento, apenas as
pessoas com muito poder aquisitivo podiam passar por bons processos de
reabilitação. Era um tratamento pago e de elite. O restante da população ficava
completamente marginalizado.
Foi a partir desse cenário que nossa pauta começou a ser construída.
Nesse sentido, o ano de 1980 foi muito importante e frutífero para o movimento.
Porque 1981 seria o Ano Internacional das Pessoas Deficientes, sendo que o
anterior havia sido dedicado à criança e o seguinte seria focado no idoso.
227
Percebemos que os governos da época queriam “tomar conta” do Ano
Internacional e que suas ações eram estruturadas no sentido de que os
deficientes fossem representados pelas autoridades. Decidimos organizar e
construir o “nosso” Ano Internacional. Começamos a trabalhar nesse sentido já em
1980.
O movimento era livre. Qualquer deficiente ia lá e participava das
reuniões, já entrava com direito ao voto. Ainda não havia uma diretoria, uma
autoridade nomeada ou eleita para representar o grupo, mas havia uma
coordenação que permitia uma estrutura organizada. As reuniões aconteciam nas
Faculdades Metropolitanas Unidas, que ficava em uma das travessas da Avenida
Santo Amaro. Outros locais que serviram como sede foram o Colégio
Anchietanum, em Perdizes, e uma escola que ficava na Avenida 9 de Julho.
Interessante perceber que, desde aqueles tempos, todos esses lugares possuíam
uma estrutura acessível para nós deficientes, exceto nos sanitários.
O movimento foi se estruturando e, em 1981, organizamos várias mesasredondas sobre as barreiras arquitetônicas que os deficientes tinham de superar
para ter acesso a alguns espaços. Essa era a questão principal da época. Tanto
que convidávamos pessoas das áreas de arquitetura e engenharia para
participarem dessas discussões. No fim daquele ano, tínhamos quase que uma
pauta completa de reivindicações. Algo que foi gestado aos poucos, mas que
focava com seriedade a questão da “integração social”, como dizíamos. Um
conjunto que ia além da questão do espaço público.
Era uma nova forma de olhar a deficiência, que abrangia a discussão
sobre quais serviços a sociedade oferecia para as pessoas deficientes. Uma visão
que pressupunha todas as áreas temáticas que formam a sociedade organizada.
Por isso, a palavra de ordem, a frase do Ano Internacional era “Igualdade Plena e
Oportunidades Iguais de Participação”. Isso dava esse sentido de amplitude que a
gente defendia e que fez com que a luta continuasse e nos levasse às ruas.
Porém, nesse momento, aconteceu uma coisa comigo. Saiu o resultado
de uma causa trabalhista que iniciei devido a muitas irregularidades ocorridas na
época em que eu era estagiário. Como a causa foi favorável a mim, recebi uma
boa quantia referente a quatro anos de trabalho. Com isso, pude quitar minhas
dívidas, comprar um carro – um Opala hidramático adaptado – e adequar minha
carteira de motorista. Pude também passar por uma cirurgia em uma instituição
cara como o Hospital Albert Einstein.
Exatamente quando havia conquistado minha independência, no sentido
de ir e vir, sentia dores insuportáveis nas costas. Eu havia aprendido, nesse meiotempo, que os ortopedistas apenas analisavam a parte óssea. Então, uma amiga
me indicou um bom neurocirurgião, que diagnosticou uma compressão medular.
Depois de várias radiografias e uma mielografia, o diagnóstico era compressão
medular. A surpresa foi descobrir que o motivo dessas dores era a tal atadura de
gaze que o médico do HC havia esquecido dentro de mim em 1975, cinco anos
antes! A gaze foi removida e o médico limpou tudo. Fui transferido para o leito. No
dia seguinte, ele me contou tudo e me deu a atadura. Fiquei realmente indignado.
Guardo comigo o laudo até hoje. Eu, que já estava ficando corcunda por não
aguentar aquela dor que dificultava até minha entrada no carro, entre outras
coisas, considero que foi, de fato, após essa operação que passei a viver ou
reviver…
Voltando à agenda do Ano Internacional, a preparação incluiu várias
mesas-redondas alternadas. Numa semana a gente abordava um tema, na
seguinte, outro assunto era discutido e assim por diante. Desse modo, durante
cerca de cinco meses, cobrimos quase todos
228
os pontos que considerávamos importantes. A partir do resultado de cada
encontro, compilamos cada questão e conseguimos montar uma pauta de
reivindicações.
Entre 1979 e 1981, conseguíamos reunir 200 ou 300 pessoas nas
reuniões. Era algo espetacular, com um círculo grande de participantes. Além
disso, havia pessoas que não eram deficientes, mas estavam lá, interessados em
participar. Tinha também um pessoal – deficientes ou não – de outras cidades.
Essa conexão permitiu que fizéssemos encontros fora da cidade de São Paulo.
Depois do evento do Ano Internacional, pudemos apresentar, como
resultado, todas essas necessidades em uma pauta completa. O processo foi
longo e conseguimos formalizar todas as reivindicações apenas no final de 1986.
Foi o tempo necessário para a articulação entre os movimentos de São Paulo e
dos outros Estados.
Nesse período foi criada também a Onedef (Organização Nacional de
Entidades de Deficientes Físicos), focada no deficiente físico. Ao mesmo tempo,
havia outra que lidava com o surdo e outra para os deficientes visuais. Aqueles
com deficiência mental, que hoje chamamos de “deficiência intelectual”, eram
representados por instituições como a Apae (Associação de Pais e Amigos dos
Excepcionais) e o Instituto Pestalozzi.
Em 1986, ocorreu uma reunião em Belo Horizonte na qual fechamos a
pauta de reivindicações que foi apresentada na Assembleia Nacional Constituinte,
em 1987. Foi interessante, porque fizemos um documento que abrangia todas as
áreas, todos os setores, que foi apresentado não por um parlamentar constituinte,
mas, por nós, deficientes, através de Emenda Popular.
A Constituição permitia que, com um mínimo de assinaturas, um grupo de
cidadãos poderia apresentar propostas diretamente ao plenário em Brasília. O
movimento se organizou e foram colhidas assinaturas em vários Estados. Fui o
responsável pela ação aqui em São Paulo. Arrecadamos, em todo o Brasil, algo
em torno de 51 mil assinaturas. Dessas, cerca de 25 mil – 50% das assinaturas –
foram conseguidas em São Paulo. Para apresentar nossas propostas, montamos
uma Comissão Nacional, composta por cinco pessoas – eu entre elas –, para
irmos até a capital federal.
Lá, fomos recebidos pelo presidente da Assembleia Constituinte, o
deputado Ulisses Guimarães. Acho que deve haver alguma foto disso. Depois,
em 1988, houve a aprovação da Constituinte e tudo o que está na Constituição é
fruto dessa nossa pauta. Acho que apenas duas reivindicações não entraram.
Uma delas propunha que, caso os deficientes recebessem algum auxílio-doença
ou pensão – fosse do INSS (Instituto Nacional de Seguro Social) ou de outro
instituto –, e voltassem a trabalhar, eles teriam esse benefício suspenso apenas
temporariamente. O trabalho seria a principal fonte de renda dessas pessoas.
Mas, se em um determinado momento, a pessoa ficasse desempregada, voltaria
a receber aquela pensão. Achávamos isso muito importante porque, mesmo sem
trabalho, o indivíduo continua consumindo. Já, quando a pessoa volta a
trabalhar, ela passa a ser alguém que, além de consumir, produz e contribui para
a sociedade e para o INSS. Ou seja, ela “está” cidadão. Por isso, era uma
questão de cidadania, de autoestima, que traria muitos benefícios para a
sociedade. Mas, eles não aceitaram. Disseram que era um seguro-desemprego
e que não iam colocar isso na Constituição.
229
O outro ponto que não entrou foi a solicitação de que todos os meios de
comunicação eletrônicos, principalmente a televisão, tivessem uma forma de
comunicação para os deficientes auditivos, algo como o legenda oculta (closed
caption) que temos hoje em dia. Fizemos esse pedido porque acreditávamos que
a informação deveria chegar a todos. Os parlamentares sugeriram colocar um
sistema assim apenas nas TVs públicas. Não aceitamos. Tinha que ser também
para as particulares.
É preciso esclarecer que havia algumas divergências no movimento.
Um setor achava importante haver cotas de emprego, por exemplo. Outros
discordavam, argumentando que o deficiente tinha de se profissionalizar como
qualquer pessoa e o resultado do seu trabalho deveria ser avaliado como
qualquer outro. Eles entendiam que, com uma profissão, tendo cultura,
conhecimento, acessibilidade, os deficientes teriam condições de concorrer com
qualquer outra pessoa. Por outro lado, os “cotistas” apontavam que a realidade
não era bem assim. Diziam que as cotas eram necessárias enquanto houvesse
desigualdade social.
Estou sintetizando as duas opiniões da época. Não houve consenso.
Decidiu-se deixar essa questão para a assembleia constituinte, e foi aprovado que
as cotas valeriam somente para o serviço público. Essa situação mudou com a
chegada da Lei federal nº 8.213, pouco tempo depois. Ela tratava da questão do
INSS e trazia um artigo criando cota também para as empresas privadas. É lá que
está a obrigatoriedade de as empresas acima de 100 empregados terem uma
porcentagem de trabalhadores com deficiência.
Veja como os pontos de vista mudam com o tempo. Hoje, percebemos
que, de fato, essa política afirmativa já era uma posição correta naquela época.
Digo isso porque – mesmo que algumas pessoas com deficiência estejam
contratadas atualmente –, até os nossos dias, os deficientes não têm todas as
condições ideais para concorrerem com outras pessoas no mercado de trabalho.
Acredito que a questão de trabalho vá muito além de um emprego e de
uma remuneração. Há um significado muito importante de realização pessoal
também. Porque, à medida que um indivíduo trabalha e tem uma renda própria,
diminui a sua dependência ou, até mesmo, chega à sua independência. É, sem
dúvida, um modo de inclusão. Do mesmo modo que aconteceu com as mulheres.
Elas conquistaram coisas que não imaginavam conquistar. Cada vez dependem
menos dos maridos. Primeiro foi: “Bom, agora eu não dependo mais para minhas
coisas pessoais, pelo menos, agora, para o meu batom, você não precisa mais me
dar o dinheiro!” Ela foi indo: “Não preciso mais disso, não preciso mais daquilo.
Daqui a pouco nem preciso de marido!”
Lembro-me de que um deputado apresentou ao Congresso uma
proposta muito “criativa”. Ele queria que as empresas descontassem do
Imposto de Renda, mais ou menos, o equivalente aos salários que elas
pagassem às pessoas com deficiência. Combatemos isso e, felizmente,
conseguimos derrubar essa proposta. Ficou claro para nós que as admissões
iriam ocorrer muito mais pelo benefício que a contratante teria do que pela
capacidade do profissional em questão. Aceitamos apenas a ideia de que as
empresas pudessem abater algum tipo de imposto, caso fizessem adaptações
nas suas instalações. Entendemos que essa seria uma ação correta, porque,
desse modo, a empresa estaria apenas recuperando o investimento que fez
para tornar o ambiente acessível para os empregados com deficiência.
Em 1989, veio a Lei federal nº 7.853, que é bastante abrangente. Então,
foram criadas outras leis federais: a nº 10.048 e a de nº 10.098. Se reunirmos
essas leis veremos que é quase um estatuto. Porque quase tudo que precisamos
como deficientes está lá. Apenas um problema: não há punições para quem não
cumpri-las. Essa é nossa maior questão hoje.
230
Tudo o que conquistamos desde os anos 1980, em termos de legislação,
mudou a forma de relacionamento com as autoridades. Até 1988, não existia
praticamente nenhuma legislação. Havia apenas uma emenda constitucional, acho
que de 1977, referente a espaços com acessibilidade. Era uma emenda que
pouco dizia e precisava de regulamentação. Ela foi feita por um deputado que
ficou paraplégico.
Antes de 1988, íamos às autoridades e recebíamos tapinhas nas costas,
ouvíamos promessas e a “justificativa” de que faltava uma legislação apropriada
para tratar o tema. O que faltava era vontade política. Os políticos não
enxergavam nenhum benefício em tratar das necessidades dos deficientes.
Depois da Constituição, vieram as leis. Os deficientes passaram a ter
respaldo legal. Mas, havia outro problema: a legislação não determinava prazo. E
os projetos precisam ser incluídos no orçamento. Enfim, surgiram outros entraves.
Mesmo assim, houve uma mudança de cenário e podíamos conversar “de igual
pra igual”, lembrando aos políticos que poderiam ser substituídos nas próximas
eleições.
Sem dúvida, a legislação melhorou as condições de cidadania. Duas coisas
mudaram: a existência de uma legislação e o aumento de consciência sobre a
questão do deficiente por parte da sociedade. Hoje, esses indivíduos são vistos
como pessoas com potenciais a serem aproveitados no desenvolvimento de
inúmeras atividades. Basta que eles tenham acesso. Embora a falta de acesso seja
um problema que ainda temos hoje, ao mesmo tempo, podemos contar com uma
sociedade mais informada e consciente sobre essa questão a ponto de apoiar
nossa luta.
Depois do acidente, voltei a trabalhar em 1981, na cadeira de rodas.
Havia outros no movimento que trabalhavam. Como o Cândido Pinto de Melo que
trabalhava no Instituto do Coração do HC, na área de informática. Tínhamos,
também, entre nós, professor, relojoeiro, que nunca haviam sido vistos como
deficientes, porque usavam muletas. Isso importa para mostrar que a sociedade
não tinha clareza sobre a definição de pessoas deficientes ou sobre a posição
dessas pessoas no meio social. Tanto que um participante do movimento, Rui
Bianchi do Nascimento, foi ao teatro certo dia e, na porta, de repente, foi abordado
por uma mulher que botou dinheiro no colo dele!
Certa vez, em 1975, quando ainda estava internado no Hospital das
Clínicas, eu estava ouvindo as notícias sobre a inauguração do metrô em São
Paulo pela rádio Excelsior. A reportagem estava na Praça da Sé e, enquanto
entrava e saía gente da estação, a repórter perguntou para o presidente da
Companhia do Metrô: “Esta porta não é muito rápida, não?” Ele respondeu que
não haveria problema, porque o metrô seria usado apenas pelas pessoas que
trabalhavam ou estudavam! Isso ficou na minha cabeça até que pude entender
que ele se referia às pessoas plenamente ativas. Ou seja, aquele meio de
transporte, que não considerava em seu projeto os aposentados e demais
pessoas, não tinha função social! Estava voltado apenas para a produção, para a
empresa.
Tempos depois, um arquiteto do metrô presente em uma de nossas
mesas-redondas explicou que, quando criaram a linha Norte-Sul do metrô, havia
elevadores no projeto, conforme os modelos vistos em outros países. Mas, o
presidente da empresa, na época, eliminou os elevadores por considerá-los um
custo desnecessário, já que os usuários não iam precisar de elevador! Hoje, a
empresa está tendo de colocá-los em todas as estações, e por um preço muito
maior. É o custo da mentalidade de uma época na qual apenas aqueles que não
tinham dificuldades de locomoção eram considerados membros da sociedade.
Quem não conseguia isso estava excluído.
231
Como a linha Leste-Oeste foi construída depois da nova Constituição,
suas estações têm acessibilidade. A única estação da linha Norte-Sul que teve
acessibilidade foi a do Terminal Tietê, devido à conexão com a linha de trem e
com a rodoviária. Mas, foi ocasional, caso contrário, nem teria.
A esse respeito, entre 1983 e 1984, fizemos várias manifestações. Eram
até divertidas porque contavam com a participação de vários cadeirantes que iam
para a Praça da Sé tentar pegar o metrô todos ao mesmo tempo! Era um correcorre de funcionários para ajudar essas pessoas a irem pela escada rolante.
Houve um caso exemplar de uma tetraplégica que ia descer para a estação e foi
derrubada. Foi algo horrível, mas que demonstrou o total despreparo da equipe do
metrô para lidar com pessoas deficientes.
No ano seguinte fizemos outra manifestação lá. Só que levamos um bolo
de segundo aniversário. O diretor do metrô apareceu para marcar uma reunião
conosco na nossa sede. Ele sugeriu a criação de linhas de ônibus adaptados
paralelas – e em substituição – à linha do metrô! Um absurdo! E, pelo que ele
descreveu, nem eram ônibus, mas sim peruas adaptadas. Ele só não saiu chutado
da reunião porque ninguém ali podia chutar!
Outra ferramenta de manifestação que preparávamos era o que
chamávamos de “pirulito”. Como mandar fazer faixas era muito caro, fazíamos um
cartaz, em cartolina grande, com palavras de ordem. O cartaz era segurado por um
pedaço de madeira no qual era fixada a cartolina. Comprei vários sarrafos de 4
metros de comprimento e precisava de alguém para serrá-los em pedaços. Um
cego se ofereceu e falou: “Tá bom. Eu serro, mas preciso de uma ajuda.” E outro
cego se ofereceu: “Eu ajudo!” Fiquei numa “saia justa”, imaginando como fariam o
serviço. Um deles me pediu um modelo do tamanho da madeira a ser cortado. Fiz a
medida e dei para eles, que fizeram tudo certinho! Com tudo pronto, lá fomos nós
para o metrô com os pirulitos com as frases “Cadê a nossa acessibilidade?”, “Nós
temos direito, pagamos imposto” e outras. Nós também fazíamos uns panfletinhos,
mas não eram muitos, por falta de recursos. Quando distribuíamos, pedíamos para
a pessoa ler e passar para outra. Havia uma conscientização naquele trabalho. Até
a Constituinte foi assim, com muita luta. Por isso, sabemos que o que está lá é fruto
de nossa batalha. Foram reivindicações que partiram das pessoas com deficiência e
se tornaram parte do texto da Constituição. É prazeroso ver o fruto de uma luta.
É interessante perceber que temos outra realidade hoje. Há novos
militantes. Porém, acho que o aspecto político tem menos peso. Tenho a
impressão de que isso acontece porque as pessoas mais novas não tiveram a
experiência dos movimentos social e estudantil e de outros grupos que se
manifestavam na minha época de universitário. Tive essa experiência não apenas
na USP, mas em casa também. Antes de ser funcionário público, meu pai
trabalhava em uma empresa de ônibus e participava de greves. Em uma delas, foi
demitido. Além disso, havia uma atuação forte das Sociedades de Amigos de
Bairro. Cheguei a ser diretor de uma dessas entidades.
Quando estava com 14 anos, comecei a trabalhar como contínuo (hoje
office-boy) no Banco Auxiliar de São Paulo. Era um bom emprego. Apesar da
minha pouca idade, logo fui promovido e decidi fazer greve por melhores
salários. E consegui! Desde cedo, percebi que reivindicar meus direitos valia à
pena. Mas, em uma segunda greve, terminei sendo demitido porque, ao invés de
parar e ficar dentro do banco, decidi pegar cinema com um amigo. Não diria que
eu tinha uma consciência proletária. Acredito que fosse uma consciência mais
social. E isso foi ampliado quando entrei na faculdade, onde aprendi sobre
aspectos
232
ideológicos dessas questões, pois as ideias iam desde a extrema direita à
extrema esquerda no movimento estudantil.
Assim, passamos os anos 1990 fazendo várias reivindicações. Porém, o
movimento passou a perder força no final da década. Isso aconteceu porque ele
começou a se fragmentar em várias causas específicas. Assim, havia uma
associação voltada apenas para o esporte, outra só para o aspecto profissional e
assim por diante.
Infelizmente, apareceram muitas pessoas, em grupos que eu chamaria de
“oportunistas”, que passaram a ocupar espaço dentro da luta. Eles defendiam
outro tipo de relação com as autoridades oficiais. Algo muito mais baseado na
questão das “trocas” de favores e interesses. Chegaram de tal forma que
atingiram níveis de direção no movimento. Percebo que o momento atual traz uma
nova fase. Ela é formada por um novo pessoal que, embora não tenha ainda uma
consciência clara de seu papel, está começando a ver a situação de uma maneira
mais ampla. São pessoas que percebem que seus problemas específicos devem
ser resolvidos num âmbito maior, de coletividade, e não em termos individuais.
Sem dúvida, é um processo de transição. Lembro-me que, em 1984,
durante o governo do Franco Montoro, criamos o Conselho Estadual para
Assuntos das Pessoas Deficientes. Isso foi possível porque aquela gestão tinha a
proposta de ser democrática. E foi mesmo! Ela criou essa oportunidade e o
pessoal que estava no movimento pôde participar.
Continuamos a ter abertura quando, em 1989, a Luiza Erundina foi eleita
prefeita de São Paulo. Em sua gestão, nós, deficientes, recriamos o Conselho
Municipal da Pessoa Deficiente (CMPD). Esse Conselho foi criado por decreto e,
em 1992, conseguimos transformá-lo em lei. Uma legislação que está vigente até
hoje. E eu, que participei desses dois processos, brincava dizendo que, como era
o responsável, estava aberto tanto aos elogios quanto às críticas ... mas
principalmente aos elogios!
Em relação ao decreto e à lei, procuramos fazer uma experiência nova,
formando o Conselho somente por pessoas com deficiência. Porque, quando criamos
o Conselho Estadual, havia uma proposta de que seria composto por 50% de
deficientes e o restante por entidades e membros do governo. O governo foi contra.
Propusemos, então, um conselho com composição tripartite: um terço de
representantes dos deficientes, outro terço de entidades prestadoras de serviço e
outro terço formado pelo governo. Assim, entramos em um consenso e essa estrutura
foi aprovada.
Porém, a divisão ficou mais complexa porque as pessoas com deficiência
eram representadas por entidades e, cada uma delas, após ser eleita, indicava
seus representantes. Assim, no começo, era algo como nove, nove e nove,
totalizando 27 membros. Com o tempo, percebi que houve uma espécie de
cooptação – baseada em “trocas” – que fez com que o governo e as entidades
prestadoras de serviço votassem unidos, garantindo sempre maioria para a área
governamental, o que permitia a ela eleger o presidente.
Ciente disso, decidi apresentar, em 1988, uma nova proposta de estrutura
para o Conselho Municipal das Pessoas Deficientes: um conselho formado por
100% de pessoas com deficiência, como está até hoje, sem a presença do
governo.
O Conade (Conselho Nacional dos Direitos da Pessoa Portadora de
Deficiência) 70 tem pressionado para que o CMPD seja formado por 50% de
representantes governamentais
70
. Órgão criado para acompanhar e avaliar o desenvolvimento da política nacional para inclusão da pessoa
com deficiência. O Conade faz parte da estrutura básica da Secretaria Especial dos Direitos Humanos da
Presidência da República (Lei nº 10.683/03, art. 24, parágrafo único).
233
e a outra metade seja composta pela sociedade civil. Essa é a condição para o
CMPD participar do Conade. Porém, o Conade inclui, em sua definição de
“sociedade civil”, tanto os deficientes quanto entidades prestadoras de serviço e
outras instituições. É outro modelo que, no meu entendimento, tem
características de “conselho de governo”, já que, como ele tem metade do
poder, apenas será aprovado o que o governo quiser. Não sou contrário à
participação governamental. Sou contra que o governo tenha esse seu peso
exagerado no conselho.
Acredito que toda essa trajetória de lutas foi uma experiência muito boa
porque permitiu aos deficientes a possibilidade não apenas de organização e
mobilização, mas também de discussão e decisão. Nesse sentido, entendo que o
modelo utilizado no Conselho de Saúde deveria ser o parâmetro para os outros.
Criado pela Lei federal nº 8.142, sua composição é formada por 50% de usuários,
25% de trabalhadores da área de saúde e 25% por representantes do governo e
de empresa prestadora de serviço na área da saúde. Um formato no qual o
governo está presente, sem ser maioria, e os maiores interessados, os usuários,
representam 50% do órgão!
Esse modelo é ideal. Está presente nos conselhos que mais funcionam
no Brasil, que são os de saúde. Os mais dinâmicos e atuantes! Pude perceber
isso durante os quatro anos em que fiz parte do Conselho Municipal de Saúde/SP,
como representante dos deficientes. Fui eleito para um mandato de dois anos e
depois reeleito. Foi uma verdadeira escola para mim. Agora, em janeiro de 2010,
depois de dois anos fora, me elegeram outra vez. E continuo acreditando nesse
modelo porque permite uma discussão equilibrada entre o governo e os usuários,
o que implica muita negociação.
O modelo do Conade, criado no governo Fernando Henrique e mantido
pelo governo Lula, é uma estrutura estática e acomodada. Metade é
governamental. Na outra parte, representada pela sociedade civil, os deficientes
são minoria. O resto é formado por outras instituições. Fazem reuniões mensais
em Brasília, mas, na prática, não alteram a realidade em nada. E, como todos
aqueles grupos corporativistas estão “ganhando o seu”, não há o mínimo interesse
em mudanças reais. Além disso, ficam forçando os outros conselhos para que
adotem o mesmo formato, ou seja, com 50% da presença do governo.
Atualmente, aposentado pelo INSS por tempo de serviço após 38 anos
de contribuição, sou representante do Segmento das Pessoas com Deficiência
no Conselho Municipal de Saúde de São Paulo e participo de um projeto
educacional. Trata-se de um trabalho voluntário numa Escola Municipal de
Ensino Fundamental, a Des. Amorim Lima, na qual sou membro do Conselho
Pedagógico representando os pais. Trata-se de um projeto inovador e essa
história começou quando, em 2001, matriculei nessa escola minha f ilha, Diuly,
que optou ficar comigo quando de meu divórcio. Comecei a participar do
conselho escolar junto de outros pais, professores, alunos e funcionários e, dois
anos depois, em 2003, fui eleito presidente desse conselho. Como havia muita
reclamação devido à baixa qualidade do ensino, decidimos começar a discutir o
projeto pedagógico. Foi quando percebemos que nada daquilo que estava no
papel acontecia no dia a dia daquela escola. Criamos uma comissão e fizemos
vários levantamentos. Um deles referia-se às aulas dadas. Com a pesquisa,
descobrimos que 83% das aulas de Geografia não eram ministradas. Em
português, a porcentagem chegava a 60%.
A diretora da escola nos apresentou uma pessoa que conhecia o modelo
pedagógico da Escola da Ponte, da cidade do Porto, Portugal, que nos apresentou
um vídeo sobre
234
essa experiência. Decidimos abraçar esse método como solução para os nossos
problemas. Montamos o nosso projeto tendo como base a experiência portuguesa
e adaptando-a à nossa realidade. Em setembro de 2003 estava pronto. No mês
seguinte, aproveitamos a visita da secretária municipal de educação, Aparecida
Perez, ao CEU Butantã, e entreguei o projeto a ela convidando-a para uma
reunião no Conselho da Escola. Ela aceitou, foi à reunião, na qual apresentamos
mais detalhes e diretrizes sobre o projeto. Ela concordou com nossa iniciativa e
deu recursos para implantação do mesmo. Assim, contratamos uma equipe
pedagógica que nos ajudou a implantá-lo. Em janeiro de 2004, período de início
das aulas, elas começaram sob essa nova metodologia, que está lá até hoje,
chegando ao oitavo ano consecutivo. No ano seguinte eu fui eleito para o
Conselho Pedagógico, onde estou no momento, além do Conselho de Saúde,
como disse anteriormente. São ações que me dão muito prazer, porque gosto do
que estou fazendo, mesmo sem ter remuneração alguma.
Além disso, estou fazendo um planejamento para voltar a viajar pelo
Brasil dirigindo meu carro, uma Fiat/Elba modelo 92. É uma prática que gosto
muito, mas que tive de abandonar durante um tempo devido às outras atividades.
Já tive quatro acidentes com carros e, e num deles, perdi um Opala. Estava
voltando de um pronto-socorro, que atendeu meu sobrinho devido a problema
respiratório, e no início da rodovia Raposo Tavares o freio falhou e a roda do lado
esquerdo travou. O carro rodou e bateu no poste no semáforo, ficando em forma
de “V”. Resultado: meu sobrinho teve fratura exposta na perna e eu fratura
próxima ao joelho. Minha irmã e sobrinha saíram ilesas. Fomos socorridos pelos
bombeiros e levados novamente ao pronto-socorro, agora do HC. O carro ficou
num estado tal que terminei vendendo peça por peça e comprei uma Variant, na
qual instalei um sistema de adaptação alemão. Ela foi roubada da garagem de
casa e junto foi a cadeira de rodas que estava no porta-malas! Em seguida,
comprei a primeira Elba.
Viajar e festas com a família são coisas que gosto muito de fazer. Acho
que herdei isso do meu pai. A família cresceu, com muitos sobrinhos, e fazemos
festas regularmente. Esses encontros acontecem a cada dois meses, sempre
inventando alguma coisa para comemorar. Isso tudo depois de 38 anos de
trabalho, mais outros tantos de movimento estudantil e das pessoas com
deficiência, e depois de ter começado a trabalhar aos 12 anos, entregando
mercadorias e carregando cestas pra lá e pra cá, num empório.
Agora, falando especificamente do movimento das pessoas com
deficiência, fizemos muita coisa, mas quase nada foi registrado. Ficou apenas na
memória das pessoas e em algumas fotografias. Por isso, acho esses relatos
importantes para que as pessoas de hoje reconheçam um pouco da nossa história
de lutas.
Sou apenas um peixinho dentro desse processo todo. Tivemos conosco
muita gente de muito valor! Muito valor mesmo! Um dia, minha irmã estava vendo
algumas fotos, entre tantas que tenho, e encontrou uma foto de 1981, quando
fizemos o Encontro Nacional, em Recife, Pernambuco. Nessa foto está a
delegação de São Paulo! Estamos todos nós!… A Maria de Lourdes Guarda, que
era uma mulher muito lutadora mesmo estando numa maca!
Por isso tudo, tenho de agradecer pela atenção e mandar um abraço
àqueles que ajudaram a construir esta realidade que temos hoje em relação às
conquistas para as pessoas com deficiência.
235
Imagem. Jornal O Globo - Domingo, 7/12/80.
Movimento aprova programa para defesa do deficiente.
SÃO PAULO (O GLOBO) – Em reunião realizada na Assembléia Legislativa, com a participação de cerca de 400 pessoas, o Movimento Pelos Direitos Das Pessoas
Deficientes aprovou a carta-programa da entidade, estabelecendo os princípios para a sua atuação, principalmente com vistas a 1981, declarado pela ONU o Ano
Internacional das Pessoas Deficientes.
Um dos coordenadores do movimento, professor José Evaldo de Mello Dorn, explicou que o movimento espera reunir as 15 entidades que tratam do problema:
— O movimento é político, mas não partidário, e sem burocracia, pois não tem presidente. Destina-se a promover o lobby da pessoa deficiente, para que ela passe a ser
encarada sem piedade e paternalismos, tornando-se dono de seu próprio destino, afirmou o professor Mello Dorn, lembrando que, só em São Paulo, existem dois
milhões de deficientes.
CARTA-PROGRAMA. A carta – programa do movimento repudia a marginalização das pessoas deficientes, decorrente da “noção errônea de que seriam seres
inferiores em capacidade profissional e respeitabilidade, incapazes de tomar decisões por si mesmos e ignorantes por não serem vistas nas escolas”. Ela repudia também
a “existência de instituições de permanência, onde os deficientes e anciãos deterioram-se solitários, humilhados, e sem assistência, até a morte”.
O documento rejeita “o preconceito de que a deficiência seja um castigo divino por um pecado cometido” e denuncia o despreparo técnico de profissionais de saúde e de
reabilitação que, inadvertidamente, têm assumido uma postura de superioridade com seus clientes, não consultando a opinião destes sobre suas próprias necessidades e
opções”.
Da mesma forma, a carta-programa do movimento também não aceita “o sentimento de piedade que a sociedade demonstra para com as pessoas deficientes e o
desencargo de consciência mediante a prática de dar esmolas aos pedintes, fazer donativos às instituições sociais, promover festinhas pensando em alegrar os
deficientes”. Ela ainda denuncia a existência de barreiras arquitetônicas e ambientais que impedem que os deficientes tenham livre acesso às escolas, às urnas de
votação, ao trabalho, aos locais de lazer etc.
AÇÃO CONJUNTA. “As pessoas portadoras de deficiência consideram-se uma parcela integrante da sociedade e exigem o respeito efetivo aos direitos e deveres que
lhes são reservados para participarem plenamente da vida comunitária e contribuírem como seres humanos socialmente úteis” afirma um dos princípios específicos do
movimento.
Também se descarta, segundo a carta-programa, “todo e qualquer benefício que tenha características de dádiva, privilégio ou concessão, reivindicando-se o que é de
pleno direito como cidadãos de um país e seres humanos integrais”.
A atuação do movimento baseia-se no princípio de que “apenas uma ação conjunta, consciente e com poder de pressão, para esclarecer e mobilizar o Estado e a
sociedade. (sic)
De acordo com José Evaldo Dorn, a entidade se preocupa em distinguir dois tipos de deficientes: os que, pelo seu posicionamento na pirâmide social, tem condições de
trabalhar e prover as suas próprias condições de existência; e os que subsistem à mercê dos favores familiares, sem vida produtiva e sem os mínimos direitos de
cidadania.
.
Legenda: Acervo digital Memorial da Inclusão. Doação Romeu Sassaki
236
Imagem. Capa e páginas internas (doze) do folheto do Movimento pelos Direitos das Pessoas Deficientes (MDPD).
Capa: Movimento pelos Direitos das Pessoas Deficientes (M.D.P.D.) - Um pouco de sua história, seus princípios, sua Carta Programa e como dele participar.
237
Imagem.
[Pág.1] MOVIMENTO: MAIS DE 10 ANOS DE LUTAS. Em meados de 1979, iniciou-se uma série de reuniões entre pessoas e algumas entidades do Estado de São
Paulo interessadas em discutir a organização das pessoas portadoras de deficiência e suas lutas pelo espaço social e não apenas assistencial, como vinham se
caracterizando as iniciativas relativas a esta área. Destas reuniões mensais, francas e abertas surgiu a idéia de se formar um movimento amplo e aberto que levasse as
pessoas deficientes a organizarem-se na luta por seus direitos. A preocupação sempre esteve com o conteúdo da ação, centrada na organização e luta por direitos e sem
compromissos com govêrnos, elites econômicas e sociais. Era a busca das próprias pessoas deficientes e todos aqueles realmente solidários com suas lutas, em busca do
espaço social e da quebra da tutela (as pessoas portadoras de deficiência falam - elas mesmas – de suas necessidades e não através de outros, por mais competentes
profissionalmente que estes sejam). O MOVIMENTO junta-se a iniciativas similares de vários Estados e adere a “Coalizão Pró-Federação Nacional de Entidades de
Pessoas Deficientes” – hoje dividida nas entidades nacionais dos deficientes físicos (ONADEF), dos visuais e dos auditivos -, que realiza o I Encontro Nacional de
Entidades de Pessoas Deficientes, em Brasília, em outubro de 1980.
[Pág.2] Em dezembro de 1980, em reunião realizada na Assembléia Legislativa de São Paulo adotou-se o nome de MOVIMENTO PELOS DIREITOS DAS PESSOAS
DEFICIENTES - MDPD e aprovou-se uma “Carta Programa” com os princípios programáticos. Em março de 1981, por haver omissão das autoridades governamentais,
o Movimento resolve abrir oficialmente no Estado o ANO INTERNACIONAL DAS PESSOAS DEFICIENTES, em solenidade na Câmara Municipal de São Paulo. No
ano seguinte, fruto de sua atuação e por necessidade, o MDPD foi legalizado, assumindo a estrutura de uma das entidades que participou desde o início de sua
formação. A partir daí, o MOVIMENTO deu prosseguimento a suas ações fiel aos seus princípios e tem atuado de forma aberta e democrática: sua direção (eleita
anualmente) é composta por 5 membros e mantém as reuniões mensais abertas (nos segundos sábados de cada mês). O MOVIMENTO tem contribuído para formação
de outros movimentos e entidades similares em vários locais do país, como meio de fortalecer a lutas pelos direitos dos portadores de deficiência. Em todos os
momentos importantes da vida nacional (movimentos sociais, eleições, diretas já, Constituinte, etc) sempre esteve presente o MOVIMENTO, defendendo os direitos
dos portadores de deficiência e a construção de uma sociedade justa, humana e fraterna.
238
Imagem.
[Pág.3] O M.D.P.D. TEM ATUADO EM DEFESA DOS PORTADORES DE DEFICIÊNCIA. O MOVIMENTO tem atuado como uma entidade aberta a todos
Interessados: Entidades e Pessoas (deficientes ou não), que estejam interessadas pelos direitos sociais dos portadores de deficiência, tendo como base os princípios de
sua CARTA PROGRAMA: Nestes mais de 10 anos de lutas, o Movimento tem procurado atuar em várias frentes: Contra as discriminações e os preconceitos, apoiando
os discriminados; Incentivando e apoiando a organização das pessoas deficientes em várias regiões, em todo país. Apoiando as Entidades Nacionais; Participando de
estudos técnicos que eliminem a discriminação (normas técnicas, projetos, estudos, etc.); Realizando atividades de conscientização através de publicações e organizando
manifestações públicas (como o Dia Nacional de Luta, realizado a cada 21 de setembro); Incentivando a criação de Conselhos à nível Nacional, Estaduais, Municipais
para que se tenha um política governamental nas área de educação, saúde, transporte, lazer, esporte, habitação, trabalho, etc.; Pressionando e colaborando com os
governos para
[Pág.4] que cumpram suas obrigações junto aos cidadãos particularmente frente as pessoas deficientes; Entretanto com ações jurídicas, para assegurar os direitos dos
portadores de deficiência. Neste sentido, o marco histórico foi o processo ganho em 1991, contra o Metrô de São Paulo, obrigando-o a construir rampas e elevadores em
suas estações.
[Consta gravura de um homem em cadeira de rodas cortando com uma serra elétrica o batente de uma porta].
239
Imagem.
[Pág.5] COMO O MOVIMENTO SE MANTEM: Cada sócio paga uma pequena mensalidade simbólica e aqueles que podem, contribuem com um adicional. Mas, as
mensalidades representam pequena receita. Para manter suas atividades, boletins, impressos, viagens, etc. o MOVIMENTO realiza promoções e campanhas especiais de
arrecadação. Só assim, o Movimento pode manter contatos frequentes com seus sócios e demais pessoas deficientes, muitas das quais, pela dificuldade de locomoção,
tem em nossas correspondências a forma principal de informação. Contribuir financeiramente é uma forma de solidarizar-se com nossa luta!
PORQUE ASSOCIAR-SE: Ficar sócio do MOVIMENTO é uma forma de participar, contribuir e ficar informado. Para ficar sócio é necessário concordar com seus
princípios, preencher a ficha de inscrição e participar, sempre que possível, de suas reuniões e ações. O Movimento possue dois tipos de sócios: SÓCIOS EFETIVOS
(Pessoas) e SÓCIOS ENTIDADES. Se você concorda com nossos princípios e quer nos apoiar: FIQUE SÓCIO. Se pertence a uma entidade que concorda com nossos
princípios, faça-a sócia.
[Pág.8] QUEM PODE PARTICIPAR DO MOVIMENTO.
O M.D.P.D. é um movimento aberto a todas as pessoas (deficientes ou não) e em particular a todas pessoas portadoras de deficiência (independente da deficiência), que
queiram lutar pelos direitos sociais dos portadores de deficiência, dentro de seus princípios programáticos. Para participar basta entrar em contato com o Movimento.
Para conhece-lo melhor venha participar de uma de nossas atividades.
COMO CONTRIBUIR COM O MOVIMENTO.
Pode-se contribuir divulgando os documentos do Movimento, seus princípios e suas ações. Outra forma de contribuir é financeiramente. Neste sentido envie para sede,
(Rua Dr. Cesar nº 850, Santana, CEP 02013 - São Paulo), um cheque nominal, cruzado, em nome do MOVIMENTO PELOS DIREITOS DAS PESSOAS
DEFICIENTES, escrevendo atrás “depositar apenas na conta do favorecido"; ou depositando em nossa conta nº5-012121, Banco Real, Agencia 411-3, Rua Teodoro
Sampaio.
240
Imagem.
[Págs. 6 e 7] [Página central do folheto é um mix de recortes de jornais colados uns sobre os outros em diferentes posições. É possível ler alguns títulos: ‘Os deficientes
reivindicam seus direitos’, Deficientes só têm promessas de melhorias nos transportes’, ‘Movimento diz que leis discriminam deficientes’, ‘Deficiente impedido de
assumir função pública’, ‘Pessoas deficientes inauguram seu Ano Internacional’, ‘Deficientes já têm programa de ação para 1983’, ‘Deficientes já podem integrar o
jornalismo’, ‘deficientes fazem ciclo de debates’, ‘Deficientes discutem arquitetura urbana’, ‘Deficiente quer sistema de saúde democratizado’, ‘Deficientes divulgarão
programa para este ano’, ‘Os deficientes querem melhorias dos transportes’, ‘O movimento debate os direitos dos deficientes’, ‘Aberto o Ano do deficiente’, ‘Poucas
conquistas marcam o Ano da Pessoa deficiente’].
241
Imagem.
[Pág.9] CARTA PROGRAMA (dezembro de 1980).
“Esta Carta Programa é parte integrante dos Estatutos do Movimento.”
Introdução: A problemática das pessoas deficientes em nosso país está contida no contexto mais amplo que abrange e confunde-se com a própria formação do povo
brasileiro.
A marginalização de segmentos sociais diferenciados (tais como os deficientes, favelados, negro, homossexuais, prostitutas, etc.) tem sido acobertada pela tendência
paternalista da elite brasileira. A idéia de que preconceitos não existem e que todos os segmentos sociais estão integrados, é veiculada como senão comum,
corporificada em leis "protecionistas" elaboradas de cima para baixo e que mascara a realidade.
As entidades paternalistas foram aceitas pacificamente durante longo tempo, sem questionamento e sem consciência de uma realidade que a cada dia se torna mais
ameaçadora. Neste sentido, observa-se ainda hoje a marginalização das pessoas deficientes refletida nos seguintes fatos:
[Pág. 10] Concepção errônea da que os deficientes seriam seres inferiores em capacidade profissional e respeitabi1idade, incapazes de tomar decisões por si mesmos;
Existência de instituições de permanência onde anciões e deficientes deterioram-se solitários, humilhados e sem assistência até a morte; Preconceito de que a deficiência
seria um castigo divino por pecado cometido; Estigma da suposta contagiosidade atribuída a todos tipos de deficiência; Despreparo técnico das entidades e de
profissionais de saúde e reabilitação que, inadvertidamente, têm assumido uma postura de superioridade com seus clientes, não consultando a opinião destes sobre suas
próprias necessidades e opções; Sentimento de piedade que a sociedade demonstra para com as pessoas deficientes; Desencargo de consciência mediante a prática de
dar esmolas, fazer donativos às instituições sociais, promover festinhas pensando em alegrar os deficientes; Existência da barreiras ambientais impedindo pessoas
deficientes de ter acesso à escola, às urnas de votação, ao trabalho, aos locais de lazer, etc.;
242
Imagem.
[Pág. 11] Existência de pessoas deficientes que ainda não tomaram consciência de que seus direitos universais e constitucionais estão sendo violados, pessoas essas que,
condicionadas a aceitar os comportamentos discriminatórios da família e da sociedade, se sentem agradecidos ao serem tratados como seres inválidos.
PRINCÍPIOS BÁSICOS.
1 - A dignidade humana é integral e essencial, sem necessidade de pré-requisitos.
2 - O acesso à vida, ao trabalho, às liberdades, à plena realização individual não é uma dádiva ou concessão de indivíduo, de uma coletividade ou do Estado, mas sim
um direito inalienável de todos.
3 - O Estado tem como obrigação intrínseca proporcionar à coletividade os instrumentos para a plena realização de todos os indivíduos.
4 - A coletividade ou parte dela tem o dever de fiscalizar, de organizar-se e de pressionar, quando necessário, no sentido de que o estado cumpra seus fins.
[Pág.12] Carimbo: MOVIMENTO PELOS DIREITOS DAS PESSOAS DEFICIENTES Rua Dr. Cesar, 850 Santana São Paulo SP. CEP 02013 – Fones (011) 852.5943
– 2807313.
Referência bibliográfica: Movimento pelos Direitos das Pessoas deficientes, São Paulo: s.d. (várias páginas).
Legenda: Movimento pelos Direitos das Pessoas deficientes, São Paulo: s.d. (várias páginas). Acervo digital Memorial da Inclusão. Doação Lia Crespo
243
Imagem. Jornal Folha de S. Paulo, de 14 de agosto de 1981.
Deficientes terão seu 1° congresso. Recife sediará de 26 a 30 de outubro próximo, o 1° Congresso das Pessoas Deficientes. O presidente João Batista Figueiredo será o
seu presidente de honra e o evento, promovido pela Coalizão Nacional de Entidades e Pessoas Deficientes, conta com o apoio da Comissão Nacional no Ano
Internacional das Pessoas Deficientes e do governo do estado de Pernambuco, além de particulares e outras entidades governamentais.
O Congresso terá como tema central a “Realidade das Pessoas Deficientes no Brasil” e serão abordados os seguintes temas básicos: o Estado e o direito das pessoas
deficientes: a política governamental face às pessoas deficientes; o trabalho; situação e perspectiva para os portadores de deficiência; educação e profissionalização;
vida familiar e comunitária dos deficientes; aspecto da prevenção à condição de deficiente; espaço urbano, transportes e barreiras arquitetônicas; legislação e a pessoa
deficiente e a organização dos deficientes no Brasil.
A partir do próximo dia 16 e até 15 de setembro, os interessados poderão se inscrever na sede do Congresso, à rua conselheiro Portella, 253, Espinheiro, Recife; para
maiores informações, entrar em contato com Maria de Lourdes ,pelo telefone 284-5493 São Paulo (CA).
Legenda. Acervo digital Memorial da Inclusão. Doação Romeu Sassaki.
Imagem. Foto em preto e branco. Numa sala, quarenta pessoas aproximadamente posam para foto. No rodapé da foto há o símbolo da ONU para o AIPD e o título do
Encontro “I Congresso Brasileiro das Pessoas Deficientes – 28 a 30 de Outubro de 1981 – Centro de Convenções Recife / Pernambuco”.
Legenda: I Congresso Brasileiro das Pessoas Deficientes – 28 a 30 de Outubro de 1981 – Centro de Convenções Recife / Pernambuco. Entre os participantes, Maria de
Lourdes Guarda, Leila Bernaba Jorge, Isaura Helena Pozzatti e Gilberto Frachetta. Acervo digital Memorial da Inclusão. Doação Gilberto Frachetta.
244
Imagem. Folder de uma dobradura do Conselho Estadual para Assuntos das Pessoas Deficientes (CEAPD), SP
Capa: Gravura de três pessoas carregando sob seus braços direitos uma enorme caneta. Sobre a gravura lê-se “Constituinte sem povo não cria nada de novo". No centro
da capa: "Ninguém tem um problema tão grande que não possa lutar por seus direitos. Deficiente, participe da Constituinte”.
Lado interno do folder: "Mais do que nunca, é hora do deficiente lutar por seus direitos. 1. Direito de viver, trabalhar, competir e participar. 2. Direito de combater
barreiras criadas pela natureza ou pelo homem. 3. Direito à igualdade total. 4. Direito à Justiça (e não à caridade). 5. Direito a projetos adequados para vencer
dificuldades e derrubar preconceitos. 6. Direito à reabilitação para poder produzir. 7. Direito ao transporte adaptado ("Transporte é um direito do cidadão e um dever do
Estado". 8. Direito a oportunidades iguais na educação. 9. Direito efetivo ao trabalho. 10. Direito a uma verdadeira integração na sociedade. Por uma nova constituinte
que integre a pessoa com deficiência."
Verso do folder. Coordenação: Conselho Estadual para Assuntos da Pessoa Deficiente, Governo Montoro.
Legenda: Folder do Conselho Estadual para Assuntos das Pessoas Deficientes (CEAPD), SP. Acervo digital Memorial da Inclusão. Doação Lia Crespo
245
Imagem. Foto em branco e preto: Evento "O Deficiente e a Constituinte"
Mesa de abertura do evento realizado em São Paulo, Capital, em novembro de 1985, no Palácio dos Bandeirantes. Ao centro, Cândido Pinto de Melo fala para a platéia.
A parede de fundo está forrada com cartazes do evento, com a frase “Ninguém tem um problema tão grande que não possa lutar por seus direitos”.
Legenda: Evento “O Deficiente e a Constituinte”, novembro de 1985, Palácio dos Bandeirantes/São Paulo. Assessoria de Imprensa, foto de Edvaldo Ramos. Acervo
digital Memorial da Inclusão. Doação Dra. Linamara Rizzo Battistella
246
Isaura Helena Pozzatti
Imagem. Retrato colorido de Isaura Helena Pozzatti. Contêm epígrafe: “Só para lembrar, o Ano Internacional das Pessoas Deficientes aconteceu em pleno regime
militar! Nessa época, não se queria contar quantos deficientes havia no Brasil. Sabíamos que, naquela época, se houvesse contagem do número de pessoas com
deficiência, alguém ia ter de tomar alguma providência.”
eu nome é Isaura Helena Pozzatti. Nasci em Londrina, no Paraná, em 1950.
Então, fiz 60 anos em 2010. Sou a quarta filha de uma família de imigrantes
italianos. Nasci com uma má-formação congênita. Na época os médicos não
sabiam do que se tratava. Achavam que era algum problema causado por um
tombo que minha mãe levou durante a gravidez. Eles também acreditavam que o
fato de ter nascido em um hospital favoreceu minha sobrevivência. Porém, na
época, a equipe médica não conseguia explicar o que era a bolsinha formada nas
minhas costas, nem como minha medula tinha ficado fora do lugar.
Devido ao conselho dos médicos, fui trazida para São Paulo, com quase
3 meses de vida. O Hospital das Clínicas havia acabado de ser fundado. Então, fui
para a Santa Casa, onde fui operada, meio por curiosidade dos neurologistas de
lá. Minha mãe contava que tinha mais de 20 médicos na sala de cirurgia. Embora
não tivesse sido diagnosticada com hidrocefalia, o que é um caso raro nesse tipo
de deficiência, minha previsão de vida era de 6 meses. Mas, com o tempo, a
previsão foi aumentada para um ano e assim fui sobrevivendo até hoje.
Na época, o fundador da AACD (Associação de Assistência à Criança
Defeituosa), dr. Renato Bonfim, era ortopedista da Santa Casa. Ele tinha fundado
a associação em três de agosto de 1950, mesmo mês e ano em que nasci. Era um
colégio para meninas deficientes que ficava numa casa no centro de São Paulo.
Eu até brincava dizendo que ele tinha preparado aquele espaço para mim. Fui
para lá apenas aos 6 anos de idade. Até então tinha ficado mais tempo na Santa
Casa do que com a minha família. Quando cheguei à AACD eu era uma das
crianças mais novas, mas já comecei a participar das aulas. Éramos cerca de 20
meninas, todas com paralisia infantil. E, embora o meu caso fosse diferente, fui
criada como portadora dessa doença, que era a mais conhecida na época.
Com esse diagnóstico, fui colocada em um aparelhinho e recebi uma
muleta para me virar. Além disso, eu tinha uma forte incontinência urinária, outra
doença que os médicos praticamente desconheciam. Mesmo com todo esse
quadro, tive uma infância totalmente feliz na AACD. Aprendi a conviver com a minha
deficiência, assim como minhas amigas de lá se acostumaram com as delas. Foi um
processo sem muitas dificuldades porque o dr. Renato Bonfim fazia questão
absoluta de que a gente participasse da vida social do bairro. Como não tínhamos
local para brincar no nosso terreno, éramos levadas, andando, até o quartel do
Corpo de Bombeiros, que ficava na rua atrás da sede, onde nos divertíamos com
várias brincadeiras.
Naquela época, a AACD ainda ficava próxima do antigo palácio Campos
Elíseos, no bairro de mesmo nome. Depois, mudou para o Ibirapuera. Então,
quando a gente se comportava bem, ou quando era feriado, íamos até o palácio
para brincar nos jardins de lá. Havia até um lago com patinhos! Outra atividade
que fazíamos todos os domingos era ir à missa na Igreja Sagrado Coração de
Jesus. Tínhamos o nosso lugar reservado entre os bancos da igreja. E, em dias de
festas, a gente era convidada a tomar o café da manhã com os meninos, no
colégio deles, que existe até hoje.
M
247
Nossa vida era tão integrada com a vizinhança que brigávamos com os
filhos dos vizinhos e isso fazia com que a gente não se sentisse discriminada.
Esse tipo de convívio foi perdido quando a AACD foi para o Ibirapuera, em um
local próprio, doado por um governador da época. Para a construção daquela
nova sede, a associação recebeu várias doações.
Porém, ali, ficamos isolados. Já havia o Hospital do Servidor Público.
Ainda existiam chácaras na região. Tínhamos vizinhos, mas ficavam meio
distantes, porque não existia a Avenida 23 de Maio. Então, a caminhada era mais
longa. Outra coisa que mudou na nova AACD foi que, como havia mais espaço, foi
possível juntar as meninas com os meninos. Aí virou um centro de reabilitação
realmente. A partir desse momento, começamos a sentir que tínhamos aula,
normalmente, com vários professores e a sede tinha muito mais funcionários.
Era diferente da casa de Campos Elíseos, onde ajudávamos na limpeza,
na cozinha e até na lavanderia. Participávamos de todas as atividades da casa.
Todas as crianças, por menores que fossem, colaboravam limpando os móveis,
encerando a casa toda, geralmente no sábado, que era dia de faxina. Essa
experiência foi muito boa para a gente. Agradeço muito por ter participado daquela
AACD porque, como vocês estão sabendo, não morri. Como disse, tenho 60 anos
e uma atividade normal hoje. Minha dificuldade foi voltar para a casa dos meus
pais.
Outro fato importante foi que, graças à associação, pude fazer amizades.
Montamos um grupo de meninas da mesma idade que era considerado o
terrorzinho da casa. Fazíamos todas as artes do mundo, como qualquer criança
fisicamente normal. Isso acontecia porque a gente não tinha, assim, ideia de que
era deficiente e de que, por isso, não poderia fazer certas coisas.
Chegamos a fazer amizade com o papagaio do vizinho, um menino que
subia no muro e mostrava a língua para a gente. Isso era a coisa mais terrível na
época! Em troca, a gente jogava pedrinha nele. Acabamos descobrindo que ele
tinha essa ave. Quando a gente chamava, ela vinha para o nosso lado. A gente
escondia o bicho. Quando o menino percebia, vinha chorando, com a mãe, na
nossa porta. Mas, ninguém de nós falava nada sobre onde o papagaio poderia
estar. As funcionárias da casa nem sabiam onde ele estava!
A gente também invadia o depósito da casa para roubar banana e
bolacha. Havia uma escada e não podíamos acender a luz porque senão algum
funcionário ia perceber. Então, a gente descia de muletinha. Uma das meninas
ficava de tocaia, mais ou menos perto, para avisar caso aparecesse alguém. E
qual era o castigo? Ficar sem a sobremesa, que era banana! Esse era o máximo
do castigo que as funcionárias aplicavam. Quando o dr. Renato, que
considerávamos nosso pai na época, ficava sabendo, ele punia a gente de uma
forma diferente. Ele nos levava para sua sala, onde sentávamos, muitas vezes,
em cima da mesa dele, todas bem-comportadas. Tomávamos guaraná, comíamos
bolachinha, enquanto ele fazia várias perguntas sobre História do Brasil, o assunto
que ele mais gostava.
Como a gente sabia que teria de responder, a gente estudava muito.
Principalmente, sobre a Guerra do Paraguai, que era a paixão dele. Ele chegava a
fazer até um concurso! Quem ganhasse ia para o Rio de Janeiro com ele. A
viagem era uma atividade da qual ele fazia questão absoluta de que
participássemos, assim como de outras coisas da vida dele.
Ele era uma pessoa muito rica da sociedade paulista. Sua casa era uma
mansão na Avenida República do Líbano, para onde éramos levadas, em grupos de
três ou quatro meninas, nos finais de semana. Lá, aprendíamos a comer legumes e
verduras, noções de etiqueta, a usar corretamente os talheres e como se comportar à
mesa. Quem nos ensinava era a esposa dele. Éramos consideradas filhas do casal, já
que eles não tinham filhos. Posso dizer que, por causa do dr. Renato, tivemos na
AACD o que houve de melhor em termos de assistência às crianças deficientes.
A AACD tinha uma estrutura de colégio interno, com férias no meio do
ano e no Natal. Quando os meus pais, assim como os dos outros meninos, vinham
me buscar, na época
248
das férias, o dr. Renato perguntava quanto dinheiro cada família podia dar naquele
ano. Ele sabia que meu pai era operário e tinha mais três filhos em casa. Às
vezes, meu pai chegava a dizer: “Olha, doutor, não posso deixar nada neste ano.”
E ele respondia: “Não tem problema. Ela volta depois das férias.” Ainda, hoje, com
92 anos, meu pai ainda comenta esse gesto.
Na verdade, eu costumava voltar antes do fim das férias porque não
gostava de ficar em casa com os meus pais e os meus irmãos por muito tempo.
Durante a primeira semana, era tudo muito divertido. Mas, de repente, batia a
saudades da AACD e dos meus amigos. Além disso, principalmente, a minha mãe
achava que eu tinha de ficar o tempo todo sentadinha, quietinha em casa, vendo
as outras crianças brincarem. Eu não podia sair, correr, andar de bicicleta, não
podia nada.
Ela pensava isso, mas na associação a gente sempre dava um jeito para
brincar; tirava o aparelho e sentava ou ia gatinhando pelo chão para brincar.
Também tínhamos o costume de invadir a parte do prédio que ainda estava em
construção para brincar com os pedreiros, tirar as coisas do lugar, sumir com as
ferramentas deles e outras estripulias. A gente também atravessava a Rua Borges
Lagoa para brincar no meio do mato, dentro de uma chácara que existia do outro
lado, enquanto os professores e funcionários estavam preocupados tentando nos
achar. Imagina se hoje isso é possível naquela região!
Minha mãe tentava impedir que eu brincasse com as crianças da
vizinhança, com quem meus irmãos brincavam. Nesse momento eu chorava, fazia
escândalo e começava a dizer que queria voltar para a AACD. Porque lá, apesar
de até levar alguns puxões de orelha das tias, escondido do dr. Bonfim, a gente
podia brincar e se sujar como qualquer criança.
Além disso, havia um agravante no caso da relação com minha mãe. Ela
era traumatizada por eu ter incontinência urinária. Essa foi a parte mais difícil do
relacionamento com a minha família. Foi nesse período que alguns médicos da
associação começaram a pesquisar o meu problema.
Como já havia urologistas trabalhando lá, chegaram a fazer uma cirurgia
na minha bexiga para tentar descobrir o que eu tinha. Era tudo muito novo e minha
expectativa de vida tinha ultrapassado muito o previsto. Então, eles não sabiam o
que fazer. Ao mesmo tempo, para mim, foi uma evolução tranquila lá dentro. Até
porque começaram a aparecer outras crianças com a mesma lesão que a minha e
muitas outras com hidrocefalia.
Nesse período, a AACD ganhou uma Kombi. Com isso, algumas crianças
começaram estudar como semi-internas, já que havia transporte para buscá-las
para assistirem às aulas. Isso era importante porque, naquela época, nenhuma
escola aceitava criança deficiente, por menor que fosse essa deficiência.
As crianças com outras deficiências achavam estranho eu usar fraldas e
riam de mim. Eu não deixava barato e era uma guerra, porque sempre fui muito
brava e queria descontar na meninada. Então, um batia, o outro chorava, outra
levava um puxão de orelha etc. Foi nesse cenário que aprendi a me virar e
conviver com as minhas limitações. A minha mãe não conseguia aceitar esse
problema. Ela morreu com 79 anos, mas, nunca conseguiu lidar com essa parte. O
resto, que era o fato de eu não poder andar, era mais fácil para ela.
Estava com quase 14 anos quando voltei para casa definitivamente.
Minha família já tinha mudado do Paraná para São Paulo. Quando cheguei, meus
parentes não tinham a menor ideia sobre como lidar comigo, quer dizer, com uma
pessoa deficiente. Naquela época, a rejeição dos familiares e nossa adaptação a
eles não eram trabalhadas nos tratamentos. Por um lado, meus parentes não
estavam preparados para aquela situação. Por outro, comecei a me sentir meio
rejeitada por eles. Ouvi muito uma frase: “As coisas do mundo não são para
249
você.” Ou seja, literalmente tudo: estudar, trabalhar, namorar, casar nem pensar!
Tudo o que significasse viver não pertencia para mim, na visão deles.
Ao mesmo tempo, eu tinha completado, na AACD, o que, na época, a
gente chamava de primário, ou seja, os quatro primeiros anos de estudo. O dr.
Bonfim queria que a gente continuasse a estudar. Ele acompanhava nossas notas
fora do colégio ou fora de São Paulo. Ele fazia tanta questão de que a gente
estudasse que usou seu bom relacionamento, com pessoas influentes da área
política e financeira, para que algumas escolas passassem a aceitar alunos
portadores de deficiência. Ele era tão influente que as professoras da associação
eram pagas pelo governo estadual, o terreno da sede no Ibirapuera havia sido
doado pelo governador.
Então, algumas escolas realmente nos aceitavam. Claro que havia todos
os obstáculos possíveis. Não tinha banheiro adaptado, tivemos de aprender a
subir degraus com muleta. A gente tinha sido educada para não ter nenhuma
dificuldade de ultrapassar as barreiras. A gente foi realmente treinada para isso.
Eu só não havia sido treinada para conviver com a minha família. E assumo isso.
Lá em casa, eu tinha de ser uma bonequinha, dentro de uma redoma de
vidro. Quem me conhece sabe que isso jamais passou pela minha cabeça. Foi um
conflito muito grande sempre. Assim, quando me desesperava e chorava, minha
mãe me levava para AACD, como quem diz “fiquem com ela porque eu não dou
conta”. Então, era o momento de os profissionais de lá conversarem com ela e,
enquanto isso, eu ficava na associação. Eles tentaram preparar o meu retorno
para minha família novamente. Porém, nunca foi muito fácil.
Assim, a gente teve uma infância e uma adolescência normal na AACD.
Quando eu estava com 22 anos, tentaram fazer com que alguns de nós
começássemos a trabalhar. Infelizmente, não deu certo, embora estivéssemos
naquela fase de querer trabalhar e sempre tivéssemos sido incentivadas a isso.
Eu também queria, embora não tivesse terminado meus estudos porque a minha
família não me permitiu. Por causa deles, fiz só até o sexto ano. Não sei como é
que chama hoje. Mesmo assim, aos trancos e barrancos.
Em 1972, um empresário estava terminando a construção de um hotel na
Avenida São Luís. Ele foi até a AACD com a proposta de que todas as telefonistas
do hotel fossem deficientes. A Associação mandou as meninas para lá. Eu ainda
andava de muleta e com aparelho, não estava com a cadeira de rodas ainda. Mas,
algumas de nós já andavam de cadeira de rodas. Essas já foram descartadas
imediatamente. Embora dissessem que elas não haviam passado no teste.
Quando chegamos para trabalhar, num período de teste, o hotel ainda não
estava funcionando. A entrada dos funcionários era a mesma rampa íngreme do
estacionamento. Nós nos recusamos a entrar por lá. Também havia uma escada em
espiral para subir para o vestiário, mas ela acabava em nada! E nós, de muleta e
aparelho, não tínhamos como acessar. Reclamamos e nos deixaram entrar pela
entrada social. Afinal de contas, o hotel não estava funcionando.
Todo mundo achou muito simpático da parte dele e começamos a ocupar
nossos lugares, porque tínhamos feito um cursinho para aprender a mexer com o
equipamento que, na época, era o PBX e o PABX.
Mas, para nossa surpresa, o local tinha umas cadeiras com rodinhas para a
gente sentar na frente do equipamento. Ficou meio complicado porque o chão tinha
buracos, por onde passavam os fios, que não tinham sido tampados ainda. A gente
teve muita dificuldade porque, de repente, a cadeira escorregava ou a gente
escorregava, ou colocava a muleta no buraco…
Além de tudo isso, aconteceu um fato. Ficamos 15 dias trabalhando, duas
pessoas em cada horário, 24 horas por dia, em duas mesas, uma perto da outra.
Certo dia, recebemos um telefonema com uma ameaça de bomba. Estou falando
de 1972, quando Israel estava em
250
guerra. E o proprietário do hotel era um judeu chamado sr. Aron San. Ele foi
empresário da construção civil famoso na época.
Embora tivéssemos 20 anos ou mais, éramos adolescentes tardias, talvez
porque a gente foi muito protegida na AACD. Então, nos comportávamos um
pouco como adolescentes. Ao mesmo tempo, estávamos informadas sobre a
realidade. Por isso, a minha colega entrou em pânico, tirou o equipamento do
ouvido e contou o ocorrido. A gente ligou imediatamente para o responsável pela
segurança. Ele chegou dando risada.
Ficamos sabendo, depois, que era uma brincadeira de péssimo gosto. E a
história ficou como se fôssemos as meninas bobinhas: “Imagina! Vocês
acreditaram!?” Como não gostei, fiquei insistindo e comentei com ele: “Quem é o
dono? De onde ele é?” Realmente não tinha bomba, mas, foi uma coisa muito
chata.
Quinze dias depois, todas as deficientes foram dispensadas. Devolveram
nossos documentos e carteira profissional sem nada escrito. Minha amiga
começou a passar mal e foi parar no hospital. Ela já tinha passado por uma
situação difícil com a história da bomba, que abalou seu estado emocional.
Ficamos sem entender. Fomos para casa, depois de um dia normal de
trabalho, e, no dia seguinte, fomos avisadas que todas as vagas estavam
preenchidas por moças fisicamente normais. Na verdade, o que o empresário
queria era usar o nome da associação para fazer uma propaganda. O que, por
sinal, a gente achou de muito mau gosto. Após duas ou três semanas, fiquei
doente e fui parar no hospital. A AACD entrou em ação. Exigiu que o hotel
pagasse nossos salários e que fôssemos indenizadas. Eu me lembro muito bem
que recebi pelos 15 dias. Não me recordo a quantia, mas recebi meu salário. Fui
até uma loja e comprei tudo em LPs! Comprei um monte. Todos os que eu queria!
Só sobrou o dinheiro do táxi! As meninas ficaram tão traumatizadas que
começaram a dizer que nunca mais iam trabalhar, nunca mais iriam se expor. No
meu caso, minha família ficou muito feliz, porque era exatamente o que queriam:
que eu ficasse em casa. Apenas ouvi: “Tá vendo!”
Eu falo “minha família”, mas, havia uma exceção. O meu pai até que me
dava força. Porém, lá em casa o regime era matriarcal. Coisa de família italiana. O
fato é que ele não tinha dificuldades em lidar com minha deficiência. Tinha
tranquilidade inclusive com minha incontinência urinária. Algumas vezes, meio
escondido, meu pai me ajudava. Ele me acordava durante a noite ou de
madrugada e dizia: “Filha, você não tá precisando trocar a fralda? Papai fica com
a luz acesa no corredor te esperando para te ajudar a voltar para cama.”
Eu mesma me trocava. Minha mãe nunca aprendeu a colocar o aparelho
nem nada. Mas, eu não permitia que meu pai me trocasse. Achava que se ele
fizesse isso, aí sim, ia ser mais complicado. Então, se eu molhasse a cama, eu
trocava. Isso de me cuidar aprendi na AACD. Acho que meu pai aceitava melhor
minha condição porque sempre soube que eu era tranquila em relação à
deficiência. Sabia que eu fazia tudo de maneira normal, embora tenha enfrentado
várias situações difíceis.
Essa minha aventura trabalhando no hotel, claro, me deixou um pouco
frustrada. Mesmo assim, decidi procurar emprego no bairro em que morava.
Contrariando minha família, meus irmãos, todo mundo, fui até uma fábrica de
velas de aniversário, essas de numerozinho, que ficava na rua em que meus pais
moravam. Convenci o dono da fábrica a me dar trabalho. Eu dizia para ele: “Não
precisa me registrar nem nada. Eu quero apenas trabalhar, fazer alguma coisa.”
Na AACD, havia aprendido a fazer tricô e bordadinho. Não era o que eu
queria. Buscava uma atividade fora de casa, ter patrão, para ver como era. Sei
que acabei fazendo todo o serviço, a produção toda da fábrica, colando aquelas
florezinhas do decalque de toda a
251
produção. Deveria entregar a base da vela pronta para que fosse feito o
acabamento e voltasse para a fábrica. Às vezes, trabalhava até de madrugada,
porque tinha a obrigação de entregar tudo no dia seguinte. O chefe trazia toda a
produção até a minha casa, onde tinha um porão que meu pai adaptou para mim,
pôs mesa de madeira etc. Eu trabalhava em pé, porque era mais fácil assim. Ele
pôs até um radinho para mim!
Terminei empregando seis meninas. Todas tinham entre 12 e 13 anos e
moravam na rua de minha casa. Três delas estudavam à tarde e me ajudavam de
manhã. As outras três meninas estudavam de manhã e trabalhavam à tarde
comigo. Elas me ajudavam a pegar as caixas de vela, essas coisas. Só que
chegava um determinado horário em que todas elas iam embora. Mas, se tivesse
de continuar, se tivesse produção para entregar, eu varava a noite. Para variar,
meu pai me trazia um lanche ou o jantar.
Meus irmãos não falavam comigo porque ficaram revoltados. Minha mãe
também achava absurdo eu estar trabalhando. Para eles, eu não precisava
daquilo. Tudo que eu quisesse, eles iam me dar: um doce, uma roupa, um disco.
Eles diziam: “O que é que você quer?” E eu queria trabalhar.
Então, de um jeito ou de outro, meu pai sempre tentou dar uma forcinha
para mim, às vezes, contrariando, e muito, minha mãe. Fiz esse serviço por mais
de dois anos. Até que, infelizmente, precisei parar de usar aparelho e passar para
a cadeira de rodas. Minha coluna havia ficado muito torta. Os médicos disseram
que não deveria nunca ter colocado aparelho! Eu havia colocado, pela primeira
vez, aos 5 anos! Isso quer dizer que fiquei 25 anos usando aparelho e muleta. Por
causa da minha lesão, eu deveria já ter sido reabilitada na cadeira de rodas. Mas
fui uma criança que subia em árvore e muro, andava na garupa da bicicleta,
amarrava as minhas pernas ou arrumava um jeito, entortando o aparelho para
poder conseguir sentar e até brincava de correr!
Quando passei para a cadeira de rodas, foi uma fase terrível. Aconteceu
uma coisa que ninguém conseguiu entender direito, muito menos minha mãe. Pela
primeira vez, me senti deficiente! Até então, não me sentia, porque fazia tudo o
que as outras crianças e os outros adolescentes faziam. Até arrumei emprego
sozinha! Não se falava em depressão na época, mas passei um período muito
chorosa e não queria sair do quarto.
Um pouco antes de começar a usar a cadeira de rodas, numa consulta na
AACD, conheci uma pessoa que era voluntária lá fazia pouco tempo. Ela morava numa
mansão com serviçais, mordomo com luvas etc. Ela havia ido à associação porque
uma senhora amiga sua estava chegando da França, onde participava de um grupo de
voluntários. Elas tinham a ideia de criar casas para deficientes aqui. Parecia uma ideia
meio maluca, mas ela me convidou para fazer parte do grupo. E, naquele momento, eu
estava interessada em tudo para o que me convidassem. Nem sabia se minha mãe ia
permitir, mas, essa senhora disponibilizou motorista particular e, assim, fomos fazer
reunião na casa da amiga dela, que morava na Chácara Flora, um lugar muito chique.
Eu me encantei com elas. Porém, foi a primeira e última vez que fui nessa casa.
Acabei caindo nas graças de uma delas, uma senhora que morava no final da Avenida
Paulista, num apartamento imenso. Ela era neta do ex-presidente da República,
Washington Luís. Era casada com um francês ou um suíço, alguma coisa assim, e
tinha dois filhos. Eu era praticamente uma adolescente. E me encantei com ela porque,
quando ficou sabendo que eu não estudava mais, resolveu pagar para mim o colégio
particular em Santana, além do táxi para eu ir e vir. Eu me agarrei a ela.
Minha mãe entrou em pânico com essa situação. Porque eu estudava à
noite e minha casa tinha escada. Então, minha mãe brigava porque, quando
chovia, meu pai ficava acordado para me ajudar a subir os degraus, embora
tivesse de levantar às 4 horas da manhã para trabalhar. Engraçado que ele nunca
reclamou. Enquanto isso, ela brigava comigo.
252
Depois de tudo isso, fui para a cadeira de rodas. Parei de trabalhar. Minha
mãe ficou feliz porque eu iria parar de estudar, já que não tinha como ir para a
escola na cadeira de rodas. Entrei em parafuso. Tentei fazer algumas loucuras.
Tomei algumas caixas de remédio da minha mãe. Queria dar fim à minha vida. Na
realidade, queria era chamar a atenção de alguém...
Um dia, resolvi descer da cadeira de rodas, jogá-la escada abaixo, descer
sentada, passar para cadeira novamente e tentar sair para o mundo. Aí, vi os
degraus, os obstáculos da rua, não tinha guia rebaixada nem nada. Percebi que
com a cadeira de rodas era diferente! Então, como é que eu ia fazer para sair? O
que eu ia fazer? Diante dessa situação, primeiro fiz um “show”. Fui parar na casa
do padre que morava em frente. Ele me acolheu. Era um senhor italiano bem
idoso que minha mãe respeitava muito, pois era muito religiosa. Naquele
momento, eu tinha brigado, inclusive, com Deus. Por que eu tentava ser sempre o
contrário de minha mãe.
O padre me recebeu e quebrei toda a casa dele, as louças, móveis, tudo
que eu consegui. Eu estava muito nervosa e o padre foi deixando, deixando, até
que disse: “Você não vai voltar para casa da sua mãe agora, porque está muito
nervosa. Vou te levar para casa da sua irmã.” Na época ela já estava casada e
morava num bairro muito longe, no Butantã, enquanto meus pais moravam na
Serra da Cantareira.
Como já havia levado uns tapas de minha mãe, fomos para a casa de
minha irmã. Era um sobrado com os quartos na parte de cima. Isso não foi
problema para mim. Como sempre, me virei porque tinha muita agilidade, algo que
consegui praticando esportes. Estava com minha irmã, mas só pensava no que
iria fazer dali em diante.
Mais uma vez, a AACD me acudiu. Eles me arrumaram um serviço de
telefonista numa fábrica na Lapa. Fiquei lá por mais de um ano, trabalhando meio
período na parte da manhã. Enquanto trabalhava nessa empresa, continuava a
me reunir com esse grupo de senhoras que queria montar uma casa para
deficientes. Elas me transportavam e eu não tinha gasto algum. Num desses
encontros, conheci o padre Geraldo, um jovem jesuíta recém-chegado do Rio
Grande do Sul. Parece que tinha estudado por dois anos em São Leopoldo, onde
ele conheceu outro jesuíta, um espanhol que estava trazendo para o Brasil a ideia
de um movimento chamado Fraternidade Cristã de Deficientes (FCD), grupo que
havia começado seus trabalhos no interior da França e já havia chegado à
Espanha.
A história desse grupo é muito interessante. Tudo começou por causa de
um jovem que nasceu muito doente. Devido isso, a família deu a ele certa
liberdade para que fizesse o que quisesse. Um dia, resolveu ser padre. Ninguém
ficou contra. Como era doente, foi para um hospital. Só que o tempo foi passando
e ele não morreu. Quando já era adulto, resolveu formar um grupo, uma
Fraternidade, com os doentes crônicos do hospital dessa cidadezinha. Foi assim
que tudo começou.
Então, aquele padre espanhol veio para o Brasil e conheceu o padre
Geraldo, que, agora, morava no Colégio São Luís, aqui em São Paulo. Na época,
um padre desse colégio levava a comunhão, diariamente, para uma senhora que
“morava” no antigo Hospital Matarazzo – o qual, anos depois, passou a se chamar
Umberto Primo –, que ficava no bairro da Bela Vista. Certo dia, o padre espanhol e
o jesuíta Geraldo foram levados ao hospital para conhecer essa senhora muito
religiosa chamada Maria de Lourdes Guarda.
Ela fazia parte de um grupo religioso sem relação com deficientes. Ao
ouvir falar da FCD, Lourdes ficou entusiasmada. Isso aconteceu em 1977. Padre
Geraldo me convidou para participar da Fraternidade. Isso aconteceu exatamente
na época em que comecei a morar com a minha irmã. Também havia começado a
trabalhar e, ao mesmo tempo, frequentava a primeira casa para deficientes que
acabara de ser montada.
253
O motorista da madame ia me buscar, porém, estava muito contrariada
por ter passado a usar cadeira de rodas. Não sabia lidar com a situação de ser
uma deficiente. Era uma situação terrível. Eu chegava do serviço e chorava
durante o resto da tarde porque estava com muitos problemas: minha mãe não
falava comigo, minha irmã estava numa situação complicada, tendo de me
hospedar em sua casa, embora também fosse contra minha atitude. A situação
chegou a um ponto em que pensei: “Não vou participar de nada. Não quero mais
deficientes na minha vida.” Mas, o padre Geraldo passou meu endereço para a
Lourdes. Ela começou a me escrever, mas não respondi às primeiras cartas.
Enquanto ela me convidava para visitá-la, eu pensava: “O que vou fazer?”
Ela morava há mais de 20 anos no hospital. Construí uma imagem terrível
dela na minha cabeça: uma pessoa que vivia num hospital e não saía da cama... A
minha revolta em relação a ser deficiente era tão grande que passei a imaginá-la
como uma pessoa magrinha, chata e cheia de doenças... Certa vez, escrevi uma
carta para ela, a qual, mais tarde, virou motivo de piada. Depois de um tempo, ela
brincava dizendo que tinha mais lágrima do que letras naquele papel.
Um dia, já em 1978, em fevereiro ou final de janeiro, eu estava assistindo
a um programa da TV Globo e vi um rapaz deficiente muito bonito dando uma
entrevista. Eu ainda trabalhava como telefonista nessa época, então, no dia
seguinte, liguei para a Globo do Rio de Janeiro para saber, por curiosidade, quem
era aquele moço tão bonito. Era o João Carlos Pecci, irmão do Toquinho.
Como me passaram o telefone dele, eu liguei. Quando atendeu e soube
quem eu era, disse: “Nossa! Você é a primeira deficiente que conversa comigo!”
Comecei a conversar com ele, meio que por curiosidade, e descobri que, por
coincidência, ele morava perto da antiga AACD, em Campos Elíseos.
Ele me convidou para ir à sua casa. Fui e ficamos muito amigos. Eu tinha
um amigo deficiente e, para mim, naquele momento, bastava. Em uma das visitas,
comentei com o João sobre “aquela doente coitada” que morava no hospital. Ao
mesmo tempo em que tinha criado um poço de preconceitos em relação à Lourdes,
estava me relacionando muito bem com o João.
Então, dia 11 de fevereiro de 1978, um sábado, resolvi fazer uma
caridade, sai do serviço e fui fazer uma visita para aquela “coitada doente” que
morava no hospital. Fui de táxi. Como tinha muita agilidade, fechei a cadeira e
pulei para o banco de trás do fusquinha. O motorista fechava a porta puxando uma
cordinha.
Eu dizia “doente” porque, para mim, deficiente vivia em casa, como eu,
aos trancos e barrancos. Cheguei ao hospital e entrei no quarto. Ela olhou para
mim e disse: “Puxa, mas você demorou para vir me visitar!” Respondi: “Ué, então
você sabe quem eu sou?” Ela falou: “Você não é a Isaura? A gente troca cartas.
Aliás, sua última carta só tinha lágrimas!”
Entrei em pânico, mas foi assim, paixão, literalmente, à primeira vista. Se
existe uma coisa que não acreditava, até então, era em paixão, no sentido de
amizade. Depois que a conheci, nunca mais consegui sair de perto dela. A partir
desse encontro, passei a ter duas paixões: o João e ela. O João era um pouco mais
velho do que eu. A gente conversava muito. Ele reclamava que as meninas não
deficientes chegavam perto dele por causa do irmão famoso. Ao mesmo tempo,
queria saber como é que eu vivia, como é que eu subia a escada na casa da minha
irmã etc. Inclusive, escreveu em seu primeiro livro, de pura brincadeira, que eu subia
a escada de bumbum.
Na ocasião, eu ainda estava numa crise muito grande. Estava muito
agressiva, sempre “batendo primeiro” para me defender. Havia, realmente,
construído um muro bem alto em volta de mim porque me sentia cansada de levar
tanta pancada. A Lourdes, com o jeito dela, mexeu comigo. E, depois que contei
minha vida inteira para ela, não consegui fazer
254
absolutamente mais nada sozinha. Eu queria ficar 24 horas com ela. Algumas
pessoas chegavam a pensar que eu era sua filha, até porque ela era loira de olho
azul. Eu também sou clara. Isso virou mais um motivo de desespero para minha
mãe verdadeira, que era morena clara…
A Lourdes estava interessada na ideia da Fraternidade e comecei a
participar das reuniões. Sempre pensando em movimento e não em entidade. Aqui
no Brasil seria um movimento ecumênico ligado à igreja de Roma. A gente não
tinha ideia de onde buscar apoio. Foi então que encontramos um juiz que tinha um
filho estudando no São Luís. Dessa forma, conseguimos descobrir que havia
deficientes na Penitenciária do Estado e a Lourdes passou a visitar esse pessoal
na prisão. Consegui coragem para ir lá apenas uma vez, depois não deu mais.
Então, o movimento começou assim, buscando deficientes. Era uma ação de
pessoas com deficiência para pessoas com deficiências, como gente recémacidentada, por exemplo.
Sobre os deficientes presidiários, a Lourdes brincava falando assim:
“Todos foram vítimas de acidente de trabalho. Você sabe por que ele levou um tiro
nas costas? Porque estava rezando ajoelhado e o tiro pegou na coluna. Se ele
tivesse em pé, pegava no bumbum e, aí, não ia ter problema, não ia ficar
paraplégico.” O “rezar” para ela era assaltar, troca de tiro, era uma maneira de ela
até brincar com a situação.
Tive uma ligeira experiência com vítimas de acidentes, quando ainda
estava na AACD. Isso aconteceu entre o final de 1969 e o começo de 1970,
quando tinha 19 anos. Nessa época começou a aparecer por lá muitos jovens
lesados medulares, que vinham de todo o país. A maioria era vítima de acidente
de carro. Mas, havia também quem tivesse sofrido acidente de trabalho. Alguns
chegavam cheios de escaras no cóxi ou nas costas. Foi quando uma assistente
social, uma psicóloga da AACD, teve a ideia de formar um grupo de deficientes
para recepcionar de uma forma acolhedora esses jovens. Nós, que fomos crianças
deficientes, tínhamos crescido, assim, com deficiência. Eles ficaram deficientes
depois de adultos. Foi complicado para a gente perceber como era difícil para
esses jovens. Por isso, tentávamos levar meio que na brincadeira. E, como
sempre fui muito falante, meu negócio era fazer amizades, conhecer pessoas.
Brincadeira e festa eram comigo mesmo! Então, participei de algumas ações
assim, no tempo em que fiquei na AACD.
Em relação à Fraternidade e ao movimento, apesar de ainda estar
depressiva e cheia de problemas com a família, resolvi participar. Principalmente
por causa da paixão louca que tinha pela Lourdes, que foi um negócio assim,
devastador, graças a Deus. Nessa época, pedi demissão do serviço de telefonista.
Todo mundo achou uma loucura. Fiz isso quando descobri que a telefonista do
turno da tarde ganhava quase o dobro do que eu, sendo que fazíamos o mesmo
número de horas e o mesmo serviço! Além disso, descobri que estava contratada
por que eles tinham pena de mim! Isso em uma época na qual não havia lei que
obrigasse a contratação de deficientes. A Lourdes me deu total apoio. No início,
fiquei preocupada sobre onde iria trabalhar. Ela, que sempre foi muito otimista,
dizia que logo iria aparecer algo.
Entre março e julho de 1978, fiquei sem trabalhar, morando na casa da
minha irmã. Ao mesmo tempo, participava do movimento que estava começando.
Então, a AACD – sempre o pessoal da associação na minha vida –, que nunca me
esqueceu, me avisou que uma grande empresa estatal queria empregar deficientes.
Era a Cesp, a Companhia Energética de São Paulo.
A ideia surgiu porque um chefe do setor de microfilmagem, José Ernesto
Tozzi, tinha ido aos Estados Unidos fazer um curso. Lá, conheceu um birô de
microfilmagem, onde havia alguns deficientes trabalhando. Então, quando surgiu
uma vaga no setor dele, foi à AACD, que era o único centro de reabilitação na
época, e apresentou a proposta.
A associação reuniu um grupo e, ao invés de concurso, a empresa
aplicou um teste no qual participaram tanto deficientes quanto pessoas sem
deficiência. Se algum deficiente
255
passasse no teste, teria prioridade. Os deficientes foram espalhados em grupos
diferentes. Por isso, não vi nenhum outro deficiente, quando fiz minha prova. Eu
não tinha formação, não tinha estudo suficiente. Como sempre gostei muito de ler,
sempre fui uma pessoa bem informada. Além disso, sempre fui muito falante. E, o
melhor de tudo, eu tinha a Lourdes me incentivando muito.
Meses depois, fiquei sabendo que um rapaz não cadeirante, mas, com
uma leve deficiência, que andava com uma bengala, também havia passado.
Fiquei surpresa quando me informaram que fui aprovada e pensei: “E agora?”
Porque a gente não tinha ideia do que ia acontecer. Quando vi um monte de
pessoas não deficientes, fiquei pensando por que eu estava ali e o que será que
eles queriam. Comecei a trabalhar dia 10 de agosto de 1978. Como faço
aniversário no dia 24, acho que foi um presente! Quando contei para Lourdes, ela
ficou feliz e foi logo falando: “Ótimo! E qual é o seu próximo sonho?” Parei e disse:
“Eu ainda vou começar a trabalhar amanhã!” Ela respondeu: “Tudo bem. Isso já
passou. E o próximo sonho qual é? Morar sozinha?”
Em fevereiro de 1979, quando completaram seis meses, Tozzi, o
responsável pela ideia, chegou para mim e disse: “Olha, você passou pelos três
meses de observação. Pedi para o departamento de Recurso Pessoal (RH) mais
três, e você passou também! Vou viajar a serviço para Bauru e, na volta, quero
que você me dê uma lista de deficientes, porque vou passar para outras
empresas, para começarem a empregar essas pessoas.” O Tozzi era uma pessoa
simpaticíssima. Todo mundo adorava ele no setor.
Nessa época, estava muito envolvida com o movimento. Havia passeatas,
encontros, viagens, compromissos que aconteciam nos finais de semana. Ao
mesmo tempo, às vezes, eu tinha de sair mais cedo do serviço para praticar
esporte, algo que havia voltado a fazer. A minha grande paixão era jogar
basquete. Apesar de ser baixinha, como tinha muita agilidade, jogava bem.
Comecei a participar de jogos nacionais.
Ainda em 1978, pouco tempo depois de ter voltado a praticar, durante
feriado prolongado de 7 de setembro, tivemos um campeonato nacional, no Rio de
Janeiro. Em novembro de 1978, fui convocada para a Seleção Feminina de
Basquete. A equipe iria para o Pan-Americano de Pessoas Deficientes, também
no Rio, que aconteceria em datas diferentes do Pan-Americano dos fisicamente
normais.
O Tozzi achava fantástico que eu fizesse essas coisas maravilhosas.
Quando ficou sabendo da minha convocação para o Pan-Americano de Pessoas
Deficientes, ficou mais encantado ainda. Embora tivesse sido contratada há
poucos meses, o Tozzi queria que a empresa pagasse minha passagem aérea e
me liberasse pelo mês inteiro. Os treinos eram aqui em São Paulo. Mas, depois,
eu ia ter que ficar uma semana no Rio de Janeiro. Ele abriu mão de tudo e me fez
ir. Fiquei apreensiva, mas ele me incentivou muito!
Infelizmente, o avião, no qual ele e outros funcionários estavam, explodiu
quando retornava de Bauru para a capital. Soube do acidente logo cedo naquele
dia, pois entrava no serviço às 8 da manhã e saia às 5 e meia da tarde. Apesar de
ter ouvido no rádio, na minha casa, ainda assim não acreditava! Foi um drama
terrível! Fiquei em pânico quando ele morreu. Ficamos afastados por dois dias, de
luto. Quando voltei, já havia outra pessoa no lugar do Tozzi. Era um funcionário do
próprio setor. Um analista que tinha preconceito em relação a trabalhar comigo
porque eu era deficiente. Ele não dizia diretamente para mim. Falava para outras
pessoas. E a informação de que ele não queria trabalhar com a “aleijada” chegou
ao meu ouvido. Esse novo chefe criou um clima de guerra que durou cerca de um
ano. Eu chorava todos os dias durante esse período. Ele chegava e esmurrava a
minha mesa para me amedrontar.
256
Para complicar ainda mais, depois do Pan, acabei sendo convocada para
as Olimpíadas e, ao mesmo tempo, praticamente, contratada por um clube
carioca. Nesse período, num final de semana, jogava no Rio. No outro, jogava
aqui em São Paulo. Ia para a rodoviária nas sextas. Voltava, às vezes, na
segunda de manhã e ia direto para a Cesp. Era o que eu gostava.
Tinha uma agenda cheia. Quando não jogava basquete, estava viajando
com a Fraternidade Cristã de Deficientes, atividade da qual não queria, nem
poderia, abrir mão. A Lourdes, que era a coordenadora estadual, tinha sido eleita
para a coordenação nacional da FCD. Eu, como sua vice, tive de assumir o
Estado. Além disso, eu estava completamente envolvida nos preparativos para o
Ano Internacional das Pessoas Deficientes (AIPD). Na época, já estávamos com
vários núcleos da FCD na capital e em cidades como Campinas, Piracicaba,
Americana, Santa Bárbara d’Oeste, Atibaia, Mairiporã etc. Eu tinha de visitar os
núcleos para incentivar os deficientes participantes. Então, a minha vida estava
tão agitada que até esqueci minha família.
Em 11 de setembro daquele ano, quando voltei dos Jogos Nacionais, no
Rio de Janeiro, aluguei uma quitinete. Meu irmão decidiu me ajudar. Disse que
pagaria metade do aluguel por seis meses. Além disso, me deu uma cama, que
eu, brincando, dizia ser de terceira mão, e um colchão, que eu falava que era de
quinta, pois estava todo rasgado. Naquela ocasião, minha preocupação era,
realmente, continuar minha atividade no movimento. Já estava muito envolvida.
Era coordenadora de grupo e do Estado. Até abriria mão do esporte, mas não da
Fraternidade.
Foi quando recebi um convite do Romeu Sassaki, que também
participava do movimento, para fazer uma palestra na PUC (Pontifícia
Universidade Católica), em um congresso de Serviço Social. Fui chamada por ser
uma das únicas pessoas deficientes que trabalhava numa grande empresa estatal
do porte da Cesp. Disse que tudo bem, mas o evento aconteceria durante a
semana, de segunda à quarta. E a minha palestra seria na segunda-feira pela
manhã.
Naquele momento, minha cabeça estava a mil porque havia muitos
eventos. Os preparativos para o Ano Internacional era apenas um deles. Havia
também o 1º Encontro Nacional das Pessoas Deficientes, em Brasília, onde
conseguimos colocar 500 deficientes! Tinha índio deficiente e tudo o que você
pudesse imaginar! Tivemos de arrancar a porta do banheiro do alojamento para
fazer de rampa para a cadeira de rodas entrar. E, no meio disso tudo, fui
convidada para o Congresso da PUC. O convite chegou ao meu setor na Cesp.
Meu chefe me chamou na sala dele e me deu uma bronca fenomenal, para variar,
esmurrando a mesa, que era sua maneira de me intimidar. Eu me lembro bem de
uma frase dele: “Pode chegar um convite do papa que não vou te liberar.”
O evento iria acontecer dali a um mês, mas, diante daquela conversa,
comentei com o Romeu que não poderia ir. Não podia faltar no trabalho. Não
poderia tentar conseguir um atestado porque, caso saísse algo na imprensa e meu
chefe visse, eu teria problemas. Eu precisava daquele emprego. O Romeu não se
conformou: “Isaura, isso é impossível! Você tem que ir!” Pouco tempo depois, ele
me contou que havia mandado um comunicado para o departamento de RH da
Cesp. Falei: “Nossa! Isso vai me criar uma situação e vou ser mandada embora.”
No departamento de RH, havia um funcionário antigo com algum poder lá
dentro. Ele tinha tido uma doença, ficou algum tempo afastado. Voltou com uma
lesão na perna. Mancava muito e usava muleta. Eu o encontrava, às vezes, no
corredor. Eu na cadeira de rodas e ele de muletas. Esse senhor mandou o convite
para o gerente administrativo, que era um coronel. Era comum, na época do
regime militar, oficiais ocuparem postos em empresas estatais, principalmente
naquelas ligadas a energia elétrica e usinas. O coronel quis saber quem
257
eu era. O pessoal do RH explicou e ele foi falar com o diretor administrativo. Eu
não estava sabendo de nada disso.
Uns 15 dias antes da data do congresso, recebi um telefonema da
secretária do diretor administrativo me perguntando: “A que horas você sai para o
almoço?” Respondi: “Meio-dia e 15.” Ela disse: “Vou falar meu nome, mas não fale
alto.” Pensei: “Estou demitida.” Ela se apresentou: “Sou a secretária do doutor
fulano de tal” – que eu não sabia quem era – “e eu quero que você venha aqui no
8º andar para a gente almoçar juntas. Não comente com ninguém.”
Quando cheguei ao 8º andar, fui recebida de braços abertos. A secretária
virou minha amiga íntima. Falou sobre o diretor e o que estavam planejando: “Olha,
estamos montando um esquema, porque o doutor fulano e o gerente administrativo
ficaram encantados com o convite que você recebeu. Também ficamos sabendo
que você participou do Pan e que joga basquete. Todos ficaram entusiasmados
porque nenhum funcionário aqui faz parte de algo assim.”
Achei tudo muito estranho e fiquei um pouco assustada no começo.
Depois me acalmei. Para resumir, eles montaram uma coisa que parecia uma
pecinha de teatro para que meu chefe me liberasse. Na sexta-feira, o gerente
administrativo, a secretária e uma pessoa do RH me chamaram na sala do meu
chefe. Eram umas 5 da tarde. A única coisa que sabia, até então, era uma dica
que a secretária me deu: “Olha, você não pode rir”. Perguntei: “Rir por quê?” Ela
respondeu: “Você vai ver.”
Quando cheguei, todos rasgaram elogios para mim. Meu chefe ficou
olhando muito bravo para minha cara. E eles dizendo o tempo todo ao meu chefe:
“Você não acha, Luís Felipe, que é uma honra termos uma funcionária como ela?
Olha, ficamos sabendo que, entre outras coisas, ela joga basquete. Você tem
notícia de algum outro funcionário aqui ou do interior que participe de alguma
outra competição? Não é fantástico? Justo ela!”
Aí entendi porque não poderia rir. Ele ficou muito sem graça enquanto
ouvia: “Estamos aqui porque ficamos tão honrados com o convite que ela recebeu
para esse congresso. Você não acha que podemos liberá-la para os três dias do
evento?” Ele teve que assinar minha liberação para os três dias. E foram comigo
mais duas pessoas do RH, entre elas, uma psicóloga, para reportar aos diretores
como havia sido o encontro.
Quando voltei a trabalhar, na quinta-feira, meu chefe mandou pôr na
minha mesa uma pasta fechada, dizendo que não era para mostrar para ninguém.
Cheguei a pensar que era minha carta de demissão. Era uma carta assinada pelo
presidente da Cesp, com vários elogios. Todos os diretores, de cima até embaixo,
também tinham assinado. Inclusive meu chefe! Daí em diante, percebi que ele
havia me jogado nos braços do presidente da empresa. Então, na próxima vez em
que veio esmurrar a minha mesa, como fazia há mais de um ano, dei um murro
também e gritei: “Eu já sabia que você não queria trabalhar com aleijado. A partir
de hoje, se você gritar, vou gritar mais alto. E se você não se comportar direitinho,
vou contar para o coronel que você põe o seu paletozinho e sai mais cedo, com o
seu amigo, aqui do setor, para dar aula, no curso lá na Rua Augusta. Sei que o
setor todo sabe e ninguém tem coragem de dizer porque acham você muito bravo.
Mas, não tenho mais medo de você.” Foi uma situação terrível. Tivemos uma
conversa séria: “Se você tem algum problema em relação ao meu serviço, se eu
não fiz alguma coisa, você tem todo o direito de chamar minha atenção. Mas,
como chefe, você não precisa gritar.” Depois disso, ele ficou meu amigo. Foi até
meu amigo-secreto no Natal seguinte!
De repente, comecei a ter noção dos direitos que nós deficientes
tínhamos. Afinal de contas, a Fraternidade mostrava isso para a gente.
Discutíamos muito essas situações que tínhamos de enfrentar. Por exemplo, aqui
na Rua Frei Caneca, onde moro, não havia guia
258
rebaixada. Por isso, era comum quebrar o eixo das cadeiras de rodas. Mesmo
com a agilidade que eu tinha, caí muitas vezes na rua, subindo e descendo
degrau. Cheguei a fotografar as guias rebaixadas, junto com um amigo. Também
chamei a imprensa, briguei e gritei até que o prefeito Jânio Quadros fez alguns
rebaixamentos. Porém, aquele tipo de rampinha que termina num degrau, pior do
que não ter rampa. A gente começou a lutar ao perceber como é difícil ser
deficiente. Tínhamos duas opções: desistir ou dar a cara para bater. Chegamos a
fazer passeata na Avenida Paulista, onde íamos brigar por metrô com
acessibilidade. Porque, até então, eles diziam que poucos de nós usávamos o
metrô. Então, para que adaptar? Reunimos quase cem deficientes na estação do
metrô e dissemos: “Bom, estamos aqui. Todo mundo pagou o bilhete!” O que acho
que é uma coisa justa. “Então, temos o direito de reclamar.”
Naquela época, pessoa com deficiência não precisava nem votar. Os
médicos liberavam e o Tribunal Regional Eleitoral também. Porém, nós da
Fraternidade fizemos uma campanha para que todo mundo fosse tirar o seu título
de eleitor, inclusive a Lourdes, na sua maquinha! E sempre apareciam aquelas
“desculpas”: “Ah, mas é difícil, onde eu moro”. “Mas tem escada”. Da primeira vez
em que a Lourdes foi votar tinha uma baita escadaria no colégio. O que ouvimos
foi: “Não precisa. A senhora pode voltar para casa.” Ao que ela respondeu: “Não
quero voltar para casa. Quero votar!” Não havia urna eletrônica ainda. Houve uma
discussão e ameaçamos chamar a imprensa porque havia um monte de gente
deficiente ali. Foi quando vários fiscais, de todos os partidos, desceram com uma
urna até onde ela estava. Já era final do dia e estávamos lá desde a manhã. Ela,
deitada numa maca, não desistiu para dar exemplo para nós deficientes também.
Ela fazia muito disso. No dia em que nos conhecemos, eu estava com o
astral baixo, mas, estava pensando nas coisas que conseguia fazer, mesmo
sendo deficiente: ganhar dinheiro com meu trabalho, pegar um táxi usando cadeira
de rodas, ir até o hospital para fazer um gesto de caridade... Quando cheguei, fui
recebida com um sorriso enorme que me desconsertou. Logo que entrei no quarto,
ela me pediu para alcançar um copo de água para ela. Foi um jeito que imaginou
para mostrar que eu também tinha limitações. Tempos depois, eu falei para ela:
“Lourdes, você queria acabar comigo naquele dia, não é?” Respondeu com uma
frase que ela sempre dizia: “O mais importante é a vida, não importa se é deitada,
sentada, enxergando, escutando. O mais importante é o dom da vida!” E
realmente era isso, porque a gente sempre tem como lutar. Depois dessa
experiência, fui fazer terapia para tentar entender a minha mãe e consegui.
Comecei a perceber que era uma situação muito complicada para todos naquela
época. A família que tinha um membro deficiente, fosse qual fosse a deficiência,
era marcada pela sociedade.
Na época, eu estava namorando um antigo colega, um deficiente do
interior, que eu havia trazido para o grupo. Ele havia sofrido um acidente e ficado
tetraplégico. Como não teve uma secção de medula, só compressão, hoje ele
caminha com muletas, sem aparelho nem nada, graças a Deus! Terminamos o
namoro com uma briga. Sempre fui namoradeira, mas, até então, só havia
namorado deficientes. Não imaginava que uma relação com um não deficiente
fosse possível. E ainda tinha o trauma causado pela minha mãe devido à minha
incontinência urinária. Ela sempre dizendo que “as coisas do mundo não eram
para mim” ficou muito presente na minha cabeça. Eu pensava: “Como alguém,
que não fosse como eu, iria entender minhas dificuldades?”
Foi quando esse rapaz não deficiente se apaixonou por mim e eu ria dele
o tempo todo. Ele era técnico de câmara hiperbárica, recém-separado e tinha uma
filha que morava no Rio. Além disso, era mais novo do que eu sete anos. Para
variar, esse rapaz chega para mim, não sem se encantar com a Lourdes. Ele se
apaixonou por ela e começou a fazer parte da Fraternidade.
259
Quando tinha algum evento no final de semana, ele se prontificava a ir. A Lourdes
falava para mim: “Isaura, o Luís é apaixonado por você!” Eu apenas ria. Achava
engraçado. Ele me ligava no serviço e tudo.
Um dia, ele chegou para mim e pediu para conversar comigo, longe do
quarto da Lourdes e perguntou: “Por que essa resistência toda? Sei que você é
lesada medular e que tem incontinência urinária. Peguei tua ficha e sei tudo o que
você vai falar. E nada disso me interessa. Quero você como mulher. E aí?” Ele
conseguiu acabar com a minha pose porque o meu médico da clínica hiperbárica
era cunhado dele e os dois trabalhavam juntos. Ele me derrubou nessa.
Algumas deficientes, inclusive da Fraternidade, achavam que era uma
loucura porque ele era jovem, tinha 25 anos, e eu tinha 31. E quando tivemos a
nossa primeira noite, foi algo estranho, porque eu sempre ouvia de funcionárias de
hospitais que sexo para deficiente era como chupar bala com o papel. Certa vez,
estive internada em Brasília, no hospital Sara Kubitschek. Ali, uma assistente
social, para variar, uma psicóloga, me convidou para participar de um grupo que
discutia sexualidade. Eu era a única mulher e não sei por qual motivo eles
acharam que eu tinha alguma coisa a acrescentar. E, naquele grupo, havia um
médico da Bahia que havia ficado lesado medular após um acidente numa estrada
do interior. Ele relatou que a primeira coisa que ouviu, quando atendido, foi: “Olha,
pode pendurar as chuteiras porque homem você não é mais.”
Nesse sentido, nós da Fraternidade tínhamos a sorte de ter a Lourdes
conosco. Embora morasse num hospital desde os 20 anos, sua cabeça era
incrível e, às vezes, abordávamos a sexualidade em nossas palestras. Muita gente
tinha curiosidade, a meninada queria saber. Então a gente foi atrás. Mesmo assim,
eu ainda tinha bloqueio, porque me lembrava do que tinha ouvido em Brasília. O
Luís simplesmente tirou isso de mim. Porque, na realidade, a dificuldade está na
cabeça da gente e não no local atingido pelo acidente. Ficamos juntos até eu ter
outro problema com a minha família. Meu pai tinha ficado doente, havia sido
hospitalizado e meus parentes esconderam isso de mim por um tempo. Isso foi
ideia de minha mãe e minha irmã para me castigarem por eu morar sozinha, ser
independente e pelo fato de eu estar namorando um não deficiente.
Naquele momento comecei a me questionar: “Vale a pena ficar com o
Luís? E a minha família?” Foi quando resolvi acabar com o namoro. Não queria um
relacionamento naquelas circunstâncias. Então, escolhi minha família, mesmo
sabendo que ela nunca tinha me escolhido. O Luís entrou em pânico. Ele já havia
contado para os parentes que estava namorando uma pessoa mais velha e
deficiente. Foi quando recebi alguns telefonemas na minha casa e no serviço. Era a
família dele perguntando se eu estava pagando para ele me namorar. Pra complicar
a situação, minha mãe pensava a mesma coisa. Então, nada colaborava para o
nosso namoro.
Depois de não sei quantos anos, eu estava no quarto da Lourdes sozinha
e tocou o telefone. Atendi, mas tenho muita dificuldade para reconhecer a voz das
pessoas. Era o Luís. Fazia cinco ou seis anos que não nos falávamos, mas, ele
reconheceu minha voz. A Lourdes entrou no quarto, nesse momento. Tirei o fone
do ouvido e ela perguntou quem era. Eu disse: “É para você.” Peguei minhas
coisas e fui saindo. A Lourdes me segurou. Disse que eu deveria esperar, pois
não sabia o que tinha acontecido na vida dele. O Luís e eu acabamos morando
juntos por uns oito ou nove anos. Nesse período, eu trabalhava com a Célia Leão,
que tinha sido eleita deputada estadual. Fiquei com ela, até quando a Lourdes
faleceu. Aí, eu não quis mais ficar em São Paulo. Avisei todo mundo que iria sumir
daqui.
Durante um encontro, aqui em São Paulo, em homenagem à Lourdes,
vieram alguns deficientes de um grupo que eu tinha formado em Santa Bárbara
d’Oeste, quando fui
260
coordenadora estadual da FCD. Esse pessoal começou a me dizer: “Por que você
não vai para lá?” Tudo ficou muito complicado para mim e terminei indo para o
interior. Eu comentava com a Célia que queria uma casa com cachorro e jardim
em santa Bárbara d’Oeste e que não aguentava mais morar em apartamento. A
família da Lourdes estava lá e eu os conhecia. Por fim, consegui financiar uma
casinha por lá e fazer as adaptações necessárias. No primeiro ano na nova
cidade, já estava decidida a me separar do Luís, porque não era o que eu queria.
Não era justo. Há muitos anos que meu coração era de outra pessoa, um
deficiente, com o qual nunca tive nada. Pedi para o Luís se afastar. Não queria
mais ficar com ele.
Tem outra coisa interessante nessa história. Cheguei à cidade casada
com um não deficiente e, de repente, ele partiu. Embora morassem outros
deficientes na minha rua, os vizinhos começaram a cochichar: “Com ela vai se
virar? Ela é aleijada, está na cadeira de rodas e ele a abandonou…” Para eles, eu
não iria sobreviver. Eles não sabiam que um deficiente conseguia morar sozinho.
E eu já morava só há muito tempo. Tinha uma boa resistência, a ponto de subir
cinco quarteirões, daqui até a Paulista, na cadeira manual. Além do mais, trabalhei
subindo e descendo degraus até me aposentar. Não tenho certeza, mas acho que
morei em Santa Bárbara d’Oeste por sete anos.
Voltei para São Paulo a pedido do meu pai e da minha filha postiça, que
chorava quase todo dia no telefone por eu estar longe. Ela achava que, caso
precisasse me ajudar, não poderia me acudir devido a distância. Minha casinha lá
era uma paixão. Infelizmente, vendi e não deu para comprar nem uma quitinete
aqui.
Mas, tudo bem. Tem outras coisas boas, como o fato de eu estar aqui
hoje. Consegui voltar para o mesmo prédio em que morava e fui muito bem
recebida por todo mundo. Reencontrei várias pessoas. O zelador é o mesmo
depois de dez anos longe desse prédio! Também há as pessoas em volta, como
o dono da lanchonete, o dono da padaria, o dono da farmácia da esquina da Rua
Augusta. Todos ainda são os mesmos, assim como muitos moradores. No final
do ano passado, o dono do meu apartamento quis vender. Procurei nas
redondezas, mas todos os prédios em volta não têm acesso para deficiente.
Então, eu teria de ir embora para outro bairro. Quando os conhecidos souberam
da história, chegaram a fazer manifestação!
O dono da lanchonete, o dono da padaria e os moradores daqui, todos
foram até a administradora do prédio exigir que eles me arrumassem outro
apartamento aqui mesmo. O pessoal disse até que eu sou parte do patrimônio do
prédio! Outros disseram que faço parte do patrimônio do bairro! No final, depois de
seis meses, o irmão do síndico resolveu comprar o imóvel para me deixar aqui. Há
20 dias, ouvi dele: “Fique tranquila porque não vou te tirar daqui. Soube de sua
história e todo mundo gosta muito de você. E não quero que saia, não.” Então,
estou de volta.
Atualmente, tenho uma série de dificuldades de saúde. Rompi o tendão
nos dois ombros de tanto rodar minha cadeira manual. Hoje sou obrigada a ter
uma cadeira motorizada, mas é difícil porque a manutenção custa muito caro. Vou
fazer 60 anos e tenho várias amigas na minha faixa etária. Então, além das
nossas deficiências, temos as doenças da idade! Há cerca de dois anos, vi uma
capa da Veja com um portador de síndrome de Down, um homem com os seus 50
e poucos anos, e a manchete dizia: “Quem vai cuidar de nós?” Não sei se as
autoridades e a sociedade têm pensando nisso. A medicina evoluiu tanto que os
portadores de Down estão chegando à terceira idade. E o mesmo aconteceu com
as pessoas com outras deficiências. Eu, que iria morrer em seis meses ou um ano,
já tenho 60! E há doenças novas, como a tal da síndrome pós-pólio, cuja
descoberta e discussão também são muito recentes aqui no Brasil.
261
Então, quem vai cuidar do deficiente idoso? Tenho um pai com 92 anos e
que está na cadeira de rodas! Minha irmã tem 64! E aí? Nós não fomos
preparados para chegar à terceira idade. Nem os médicos foram treinados para
essa realidade! Muitos especialistas do meu convênio, como vasculares,
ginecologistas, urologistas e mesmo ortopedistas, não têm a menor ideia de como
lidar conosco! Tenho problema vascular grave decorrente da minha deficiência.
Hoje complicou muito mais. Então, quem vai cuidar e como?
Isso não é algo considerado quando nos aposentamos. A minha
aposentadoria não é um salário mínimo porque trabalhei em empresa estatal, o
que me garantiu também o convênio médico da companhia. Até 1972, as estatais
aposentavam o funcionário com o salário total. Como entrei em 1978, recebo
apenas uma parte do valor. Mesmo assim, tenho despesas ligadas à deficiência,
que não são baratas – fralda, sonda, cadeira de roda motorizada –, sem falar em
táxi, alimentação e aluguel!
Gostaria de reforçar essa questão que acho fundamental: “Quem vai
cuidar de nós?” Não digo eu, a Isaura, mas nós deficientes da terceira idade.
Porque mesmo os lares de idosos não estão preparados para atender pessoas
com deficiência. Sei que a maioria dos idosos de hoje são deixados em clínicas,
ou com outras pessoas para cuidar. Nem sempre são bem cuidados. Então, é uma
coisa que todos precisam pensar a respeito. Tenho certeza de que, se a Lourdes
estivesse aqui, já teria pensado em alguma coisa a respeito dessa questão de
“quem vai cuidar de nós”.
Realmente, nos dias de hoje, conseguimos muita coisa em termos de
adaptação. Participei dessa luta e tenho orgulho de ter feito parte dessa história.
Muitas vezes, passamos por situações terríveis. Só para lembrar, o Ano
Internacional das Pessoas Deficientes aconteceu em pleno regime militar! Nessa
época, não se queria contar quantos deficientes havia no Brasil. Sabíamos que,
naquela época, se houvesse contagem do número de pessoas com deficiência,
alguém ia ter de tomar alguma providência. Acredito que pouca gente sabe disso,
mas as autoridades brasileiras não receberam o representante da Organização
Mundial de Saúde (OMS) naquela ocasião. Ele ficou hospedado na casa de um
deficiente, em São Paulo, e de outro, no Rio de Janeiro. Era nossa turma, formada
por vários movimentos, que ficava transitando com ele pelos eventos.
Então, a gente ficava na dependência das estatísticas da OMS para os
países em desenvolvimento e para os subdesenvolvidos. Ao mesmo tempo,
faziam a gente acreditar que o nosso país fazia parte do grupo dos países em
desenvolvimento! Tínhamos – e acredito que ainda temos – nossos bolsões de
pobreza. Viajei pelo interior do Mato Grosso do Sul e pelo Nordeste e vi em que
estágio está o desenvolvimento daquelas regiões. Há muitos lugares que podem
ser chamados de quinto mundo, com deficientes passando fome!
Fui a lugares onde membros da terceira ou quarta geração de famintos
param de andar com 5, 6 anos. Conheci um rapaz no interior do Maranhão que
parou de andar aos 17 anos devido à desnutrição! Então, acredito que – mesmo
que falemos hoje em coisas como internet e que está tudo maravilhoso – as
coisas não tenham mudado muito pelo interiorzão do país.
Voltando a falar sobre o Ano Internacional, houve uma grande
movimentação e a gente estava envolvida com vários encontros, palestras e mesmo
brigas. Tanto que, de repente, em Brasília, a gente formou uma comissão para
invadir o Palácio do Governo. Naquele dia, o pessoal da guarda presidencial não
sabia se segurava aquelas armas ou se ajudava a empurrar nossas cadeiras de
rodas. Foi cômico, muito divertido mesmo. A gente queria dar a cara para bater.
Além disso, havia uma diferenciação entre movimento e entidade. Porque
as entidades para deficientes, tipo a Apae (Associação de Pais e Amigos dos
Excepcionais), não
262
gostavam de conversar com os deficientes. A visão dos membros dessas
organizações era de que, por serem técnicos, eles entendiam tudo sobre o
assunto. Eu me lembro de um médico, diretor da AACD, que foi convidado para
uma palestra com dois ou três deficientes numa mesa-redonda. Ele se recusou,
não quis participar.
Ao mesmo tempo, a gente tinha muita dificuldade de se comunicar com
os deficientes auditivos. Isso, quando a gente conseguia alguém que fizesse a
linguagem dos sinais. Ao mesmo tempo, os deficientes visuais achavam que o que
estava sendo passado aos deficientes auditivos era diferente do que estava sendo
dito durante o congresso do Ano Internacional em Brasília. O Romeu lembra muito
bem disso. Havia uma guerra. Além disso, nós, deficientes físicos, tínhamos de ter
algumas adaptações que eles não precisavam. Então, não entendiam, porque
viviam em um mundo diferente. A gente queria juntar todos. Achávamos que a luta
tinha de ser de todo mundo que, de alguma maneira, fosse excluído.
Havia dois participantes da Fraternidade que moraram na AACD. Eles
tinham paralisia cerebral, com grande dificuldade motora, mas com uma
inteligência brilhante. Eram o Serginho e o Zé Roberto. Eles tinham uma paralisia
espástica muito acentuada. Um deles tinha uma cabeça fantástica! Como eles
falavam com dificuldade, muitas vezes, a gente não entendia. Principalmente, o
que o Serginho falava. Então pedíamos para ele repetir e ficava todo mundo em
silêncio. Porque queríamos realmente ouvir o que ele falava. Isso era um princípio
essencial na Fraternidade: dar voz a quem nunca a teve.
Em certa ocasião, a Lourdes foi convidada para ir à Buenos Aires
participar de um encontro da Fraternidade na América do Sul. Justamente nesse
momento, ela teve um problema de saúde e precisou fazer uma cirurgia de
emergência para retirar uma pedra na bexiga. Foi uma loucura e lá foi a Isaura
para a Argentina, representando a FCD do Brasil. Aquele país estava num
momento maluco, pois tinha perdido a Guerra das Malvinas há três ou quatro
meses. O pessoal tinha muita dificuldade para sair de casa. A coordenadora da
Fraternidade teve pólio no corpo todo e usava um respirador. Era uma menina
fantástica! Havia também o coordenador espiritual, que era um padre. Aquele
grupo tinha uma visão diferente da nossa sobre a questão da deficiência.
Lembro que, nas reuniões, eles discutiam se a deficiência era um prêmio ou um
castigo. Isso, para nós brasileiros, era uma loucura! Víamos aquelas pessoas
todas com cara de santo, os deficientes com cara de coitados e nós todos ali
com outra visão.
Tudo era muito diferente para nós. Por exemplo, aqui no Brasil, onde quer
que fossemos participar de eventos, a gente sempre saía para passear. Lá na
Argentina, estávamos em um local que parecia um colégio de freiras e não tinha
janelas voltadas para a rua. No dormitório, as camas eram separadas por
biombos. Algumas meninas participantes tinham de voltar para casa diariamente.
O padre Geraldo também foi com a gente. O pessoal entendeu que ele era o
padre geral dos Jesuítas, então, ninguém falou nada, quando arrancou a porta e
improvisou uma rampa para as cadeiras de rodas subirem os degraus que havia
nos banheiros. Conversávamos entre nós, brasileiros, sobre a situação dos
argentinos. O pessoal da Argentina – com mais tempo de Fraternidade e com
mais experiência com doenças, como a poliomielite – tinha tratamentos de
fisioterapia mais avançados. Mesmo assim, tinham uma visão que
considerávamos atrasada.
Houve muitas outras viagens e em todas aconteceram momentos
engraçados. A Lourdes também passou por muitas dificuldades nas viagens que
fez com o pessoal da FCD, naquela Kombi. Certa vez, depois de atravessarem
uma região, começou a chover muito e não puderam voltar. Então, todos tiveram
de dormir dentro da perua! Aconteciam coisas assim. Muitas pessoas falavam que
ela deveria escrever sobre sua vida, como muitos deficientes fazem.
263
E ela respondia: “Quem quiser escrever sobre a minha vida que escreva.
Porque a minha vida eu vou é viver.”
Desde que começaram os problemas financeiros, o hospital Umberto
Primo foi, várias vezes, fechado e reaberto. Quando fechou definitivamente, a
Lourdes estava doente e alguns funcionários a mantiveram por lá. Para isso, um
restaurante da região mandava comida e as enfermeiras se revezavam para
cuidar e dormir com ela. Quando a doença dela piorou, houve uma espécie de
briga entre os hospitais de São Paulo. Todos queriam ficar com a Lourdes.
Inclusive o governo do Estado queria que ela fosse para o Hospital das Clínicas.
Ela falava: “Isaura, não quero sair daqui desse pedaço. Fiquei 50 anos aqui no
Bixiga!” Finalmente, foi transferida para o Hospital Santa Catarina, onde faleceu.
Muita gente não sabe, mas a Célia pagava uma pessoa para dormir com ela no
hospital, uma enfermeira que era do antigo hospital Umberto Primo. Infelizmente,
foram poucas noites, porque ela faleceu logo depois.
Eu não conseguia visitar a Lourdes quando ela adoeceu de vez. Isso me
desesperava, mas não conseguia… Ficava apenas na porta. Quando o câncer
piorou e ela já estava delirando, passou a brigar comigo por telefone. Fiquei muito
chateada e, ao mesmo tempo, não entendia o que estava acontecendo. Foi
quando me disseram que ela realmente estava piorando e que eu deveria ir visitála. Nos seus últimos dias, eu entrei em choque. Não queria chegar perto, nem
encostada na porta do quarto. Não consegui falar com ela. Porque aquela não era
a Lourdes que eu conhecia. Não era aquela gordinha que a gente abraçava e
beijava tanto. Sua fisionomia e seu corpo tinham mudado tanto.
Quando ela ficou doente, o ex-dono da Kopenhagen foi visitá-la. Ele
brincava dizendo que era advogado de um amigo secreto da Lourdes. Descobri,
por acaso, quem ele era porque um amigo do meu irmão trabalhava no escritório
da Kopenhagen. Não chegou de carro com motorista. Veio de táxi ao hospital,
chegou ao quarto, tirou o talão de cheque, assinou uma folha em branco. Ele
queria que a Lourdes falasse com ele sobre qualquer coisa que precisasse, para
quem quer fosse, em qualquer parte do Brasil, para deficiente, criança, passagem
aérea, tratamento, o que fosse. Quando a doença piorou, ele falou: “Se eu
pudesse eu comprava a vida dessa mulher.”
A gente também participava de movimentos de outras minorias ligados à
Igreja Católica. Eram prostitutas, índios, sem-terras. Acho que, na época era algo
mais verdadeiro e menos bagunçado do que é hoje. A Lourdes não cuidava só dos
deficientes. Cuidava de todos ao seu redor. Como ela fazia amizade com o
pessoal do hospital, levavam criança com câncer que tinha tratamento para
conversar com a “vó Lourdes”. Depois que as crianças iam para casa, ela ligava
para conversar, para brincar por telefone. Eram os “netos” dela. Eu brincava:
“Lourdes, daqui a pouco vão ser os bisnetos.” A gente pegava a camisola dela e
brincava: “Lourdes, quando você virar santa, vamos picar tudo em pedacinhos e
vender como relíquias da santa.” Quando ela morreu, eu e a Célia choramos tanto,
nos desesperamos tanto…
O jornal aqui do bairro, o jornal italiano, queria que eu escrevesse alguma
coisa sobre a Lourdes, porque ela era moradora aqui da região. Sempre falo para
um jornalista, que mora aqui no prédio do lado, que não gosto de escrever, mas,
gosto de falar, de contar as histórias sobre a Lourdes. Por isso, fiquei muito feliz
de poder participar desse papo e falar sobre essa pessoa fantástica que era minha
amiga, com quem convivi desde 1978.
Infelizmente, acho que não estarei viva para ver a beatificação da
Lourdes. Eu dei o meu testemunho. No meu caso, a oportunidade de conviver com
ela foi um presente que não tem tamanho. A Lourdes me modificou totalmente.
Devo a ela 99,9% da Isaura que sou hoje. Tenho de me sentir privilegiada.
Agradeço a Deus todos os dias por ter conhecido a Lourdes. Essa foi minha vida
dentro da Fraternidade.
264
Imagem. Documento.
DIA NACIONAL DE CONCENTRAÇÃO
1981 - Fraternidade Cristã de Doentes e Deficientes
A Fraternidade Cristã de Doentes e Deficientes promove esta concentração, no âmbito internacional (5 continentes). Visa com isto a conscientização, ou seja, transmitir
à população o fato de que as pessoas deficientes (físico, mental, sensorial...), como cidadãos íntegros e participantes na vida da sociedade, têm direito ao transporte,
estudo, trabalho, reabilitação e lazer, direito este fundamental da pessoas humana, deficiente ou não. A própria ONU (Organização das Nações Unidas) instituiu que,
nos países membros, 1981 seja o Ano Internacional da Pessoa Deficiente, com o tema: PLENA PARTICIPAÇÃO E IGUALDADE.
Tendo uma limitação física, sensorial ou mental, o deficiente não está limitado de ser uma pessoa normal, que possa trabalhar, estudar, passear, casar, enfim, não está
limitado de viver.
UM POUCO DE HISTÓRIA
A FCD é um movimento internacional, ecumênico, nascido em 1942 na cidade de Verdun, França, através di Monsenhor Henry François. Ele, com mais 50 deficientes,
perceberam juntos que a deficiência não havia lhes tirado os valores e a capacidade e, com todas as limitações, estavam vivos e esta vida deveria ser vivida com
intensidade.
No Brasil, iniciou-se em 1972, no Rio Grande do Sul. Contamos atualmente com mais de 70 núcleos, em vários Estados.
OBJETIVOS DA FCD...
Pretende o desenvolvimento integral dos doentes e deficientes, tanto no plano humano como espiritual.
Contribui para que nós deficientes nos integremos com outros deficientes, com a sociedade, uma vez que também somos sociedade.
Atualmente, nosso trabalho se estende aos Hansenianos (leprosos). Não os evite, são pessoas como nós, que podem viver normalmente na sociedade pois, a hanseníase
tem cura, não precisando ficar isolados em leprosários. Visite-os.
Acreditamos que a luta dos deficientes, é a mesma luta do negro, índio, operário, etc., ambos marginalizados. Esperamos que, unidos e conscientes, consigamos reconquistar o nosso lugar e os nossos direitos, para uma vida digna na sociedade.
Convidamos você, deficiente ou não, a participar e ajudar na construção de um mundo melhor, mais justo e humano.
Entidades que apóiam a fraternidade:
ADEVA – Associação dos Deficientes Visuais e amigos
Clube dos paraplégicos de São Paulo
ARPDB – Associação de reabilitação profissional do deficiente visual
ABRADEF – Associação Brasileira de Deficientes Físicos
SODEVIBRA – Sociedade dos Deficientes Visuais do Brasil
NID – Núcleo de integração dos deficientes
QUINTA RODA
MDPD – Movimento pelos Direitos das pessoas deficientes
UNADEF – União Nacional dos deficientes físicos
AIDE – Associação de Integração dos Deficientes
Maiores informações:
Equipe Nacional: Maria de Lourdes Guarda (Coordenadora) Fone: 284-5493
Equipe Regional: Isaura Helena Pozzatti (Coordenadora) Fone: 251-3433
Legenda: Acervo digital Memorial da Inclusão. Doação Romeu Sassaki.
265
.
Imagem. Documento em duas páginas.
FRATERNIDADE CRISTÃ DE DOENTES E DEFICIENTES FÍSICOS. 16/09/1980
III ENCONTRO PREPARATÓRIO DO “I ENCONTRO NACIONAL DE PESSOAS DEFICIENTES”.
RELATÓRIO DO SUB-GRUPO “LEGISLAÇÃO”
Data: 10 de agosto de 1980
Local: Ginásio do DEFE, São Paulo/SP.
Participantes: Leila (AID/SP); Vinícius (ABRADEF/SP); Ana Crespo (NID/SP); Carlos Lelis (AID/SP); e, Messias (FCD/PE).
Temas p/ trabalho: Como agir durante o Ano Internacional das Pessoas Deficientes, no campo da legislação.
Os trabalhos não foram desenvolvidos como exigiria o assunto, em face da exigüidade de tempo. Partindo das sugestões oferecidas pela Mesa (extraída do plano de
trabalho sugerido pela ONU), procuramos ver o que poderíamos debater dentro do tempo que tínhamos, e que resultasse em sugestões concretas para melhoria da
legislação brasileira, pelo menos a nível nacional.
Segundo a opinião do subgrupo os problemas que exigem importantes mudanças na legislação, ou mesmo o início de uma legislação inexistente são:
educação/profissionalização para deficientes; melhoria das condições de transporte e acesso; introdução de normas nos códigos de obras municipais, visando a
eliminação de barreiras arquitetônicas; atualização de legislação previdenciária, quer quanto à assistência médica/reabilitação, quer quanto ao regime de aposentadorias;
incentivo às fábricas de equipamentos utilizado por pessoas deficientes, visando a melhoria de qualidade de produtos nacionais, bem como a introdução de tecnologia
própria.
Sobre os problemas “regime de aposentadoria do INAMPS”, bem como “incentivo às fábricas de equipamentos p/ deficientes”, chegou-se a formular os termos de uma
minuta de anteprojeto de lei. Não foi um trabalho – continua –
266
Imagem. Continuação do documento anterior.
pronto, já que há a necessidade de um estudo mais minucioso dos problemas enfocados, todavia, como linhas gerais, concluímos que:
- aposentadoria p/ INAMPS: “assegurar ao segurado portador de deficiência a possibilidade de obter um novo emprego, quando sua reabilitação o permitir, com o
direito de retorno à ‘aposentadoria por invalidez’, caso venha a perder o emprego conseguido...”; e,
- incentivo às fábricas de equipamentos p/ deficientes: “conceder incentivos às indústrias nacionais que fabriquem equipamentos para pessoas deficientes, (diminuição
da incidência do IPÌ) e que demonstrem, concretamente, estar fabricando produtos de qualidade superior ou equivalente aos fabricados nas melhores procedências do
exterior...” // “também conceder igual incentivo, quando as mencionadas indústrias fabricarem produtos desenvolvidos mediante tecnologia própria, de real interesse
para as pessoas portadoras de deficiência...” // ... a verificação da qualidade dos produtos e/ou inovação na sua tecnologia ficaria a critério de comissão governamental,
composta, também, de representante da entidade máxima de representação das PD.
Ficamos de acordo também quanto à necessidade de constituirmos uma comissão encarregada de acolher sugestões para mudança na legislação, elaborar minutas de
anteprojetos para ser encaminhadas ao Poder Legislativo. Essa comissão seria mais ou menos permanente; procuraria, também, obter legislação de outros países (muitos
de nós já possuímos material da espécie) e adaptá-la à realidade brasileira.
Recife-PE, 16 de setembro de 1980.
Assinatura de Messias Tavares de Souza,
Coordenador subgrupo
Legenda: Acervo digital Memorial da Inclusão. Doação Romeu Sassaki.
267
Imagem. Jornal O Estado de S. Paulo, de 07 de dezembro de 1980.
Deficientes aprovam os planos de ação para 1981.
A carta-programa e os membros da coordenação do Movimento pelos Direitos das Pessoas Deficientes foram aprovados ontem, na Assembléia Legislativa, por um
grupo de deficientes que representam cerca de 15 entidades diversas e pretendem atuar em nome de 2,2 milhões de deficientes que vivem em São Paulo. O objetivo
básico do movimento é uma atuação política formando uma espécie de “lobby” que ajude a vencer a grande carga da marginalidade praticamente imposta ao deficiente,
no Brasil.
Os coordenadores do movimento são o engenheiro Cândido Pinto de Melo, o professor José Evaldo de Melo Doim, o advogado Vinicius Gaspar Viana de Andrade, a
advogada Leila Bernarba Jorge, o psicólogo Luís Celso Marcondes de Moura, o conselheiro de reabilitação Romeu Kazumi Sassaki e Maria de Lourdes Guarda. Ainda
durante a reunião de ontem, ficou decidida a realização de vários simpósios em 1981, escolhido pela ONU como o Ano Internacional das Pessoas Deficientes. Esses
encontros culminarão com um grande congresso onde serão debatidos temas como as barreiras arquitetônicas para o deficiente, saúde e reabilitação e trabalho e
profissionalização.
Para os coordenadores do MDPD, todos os deficientes enfrentam preconceitos e barreiras em sua vida, o que dificulta a integração social. Segundo a carta-programa, a
sociedade como um todo tem uma “noção errônea de que os deficientes seriam seres inferiores em capacidade profissional e respeitabilidade, incapazes de tomar
decisões por si mesmos”, o que leva à existência de instituições de permanência “onde deficientes e anciãos deterioram-se solitários, humilhados e sem assistência até a
morte”.
Para evitar essa situação, os deficientes firmaram seus princípios básicos que são “a dignidade humana é integral e essencial, sem a necessidade de pré-requisitos”; “o
acesso à vida, ao trabalho, às liberdades, à segurança e à plena realização individual não é uma dádiva ou concessão, mas sim um direito inalienável de todos” e “o
Estado tem como obrigação intrínseca proporcionar à coletividade os instrumentos para a plena realização de todos os indivíduos”.
Legenda: O Estado de S.Paulo, 7 de dezembro de 1980. Acervo digital Memorial da Inclusão. Doação Romeu Sassaki.
268
Imagem. Jornal Folha de S. Paulo, 22 de julho de 1980.
Problemas dos deficientes físicos debatidos em SP.
Contém duas fotos em preto e branco. 1. Inúmeras pessoas, sentadas e em pé, entre elas Maria de Lourdes Guarda na maca, empunham cartazes. Legenda: na platéia,
muitos cartazes com as principais reivindicações. Foto de Adalberto Marques; 2. Mesa com participantes e platéia lotada. Legenda: Os deficientes físicos discutem seus
problemas até amanhã, na PUC. Foto de Luis Parra.
Começou ontem, na Pontifícia Universidade Católica (PUC), o 2º Congresso Brasileiro de Reintegração Social, promovido pelo Co légio Brasileiro de Administradores
de Saúde, com o objetivo de discutir a importância da participação do deficiente físico no trabalho, educação, lazer e em todas as atividades da sociedade, “mas sem
paternalismos”. Segundo dados da ONU, há cerca de dez milhões de deficientes físicos no Brasil. O congresso termina amanhã à tarde.
O encontro foi aberto por um representante do deputado federal Tales Ramalho – também deficiente físico –, autor da emenda constitucional que garante aos deficientes
físicos os mesmos direitos dos demais. O deputado não compareceu por estar adoentado.
MARGINALIZADOS
Um dos temas discutidos no primeiro dia foram as dificuldades impostas à participação do deficiente físico na sociedade. Segundo Romeu Sassaki, conselheiro do
Centro de Desenvolvimento de Recursos para a Integração Social, os deficientes no Brasil são marginalizados do trabalho, educação e lazer até mesmo pelos centros de
reabilitação e empresas que fabricam aparelhos especiais para incapacitados.
“Há a própria barreira arquitetônica – explica Romeu – que impede o deficiente de frequentar certos locais.” Cita como exemplos escolas com escadarias, corredores
estreitos, sem elevadores e os transportes coletivos, que não se preocupam com o deficiente. “A sociedade simplesmente ignora a existência do deficiente”, lembra
Romeu.
LEI AMPARA
Em outubro de 1978, o Congresso Nacional promulgou a emenda constitucional do deputado Tales Ramalho que proíbe a discriminação aos deficientes e lhes assegura
acesso a todas as áreas de atividade. No entanto, Romeu Sassaki reconhece que só a existência da emenda não soluciona o problema. “É necessária a mobilização dos
próprios deficientes para pressionar os Estados e Municípios a criarem leis que lhes garantam trabalho e uma vida como a de todas as pessoas”, explica Sassaki.
Ele conta que já há movimentos organizados em São Paulo, Porto Alegre, Rio de Janeiro, Curitiba, Salvador, Brasília, Recife e Ourinhos e que, muito em breve, pode
surgir uma federação nacional de associações de pessoas com deficiências.
SEM PATERNALISMO
O presidente do Colégio Brasileiro de Administradores da Saúde, João Catarim Mesomo, explica que a realização do congresso objetiva “alertar as autoridades para o
problema do deficiente físico, a fim de que, a médio prazo, se forma uma outra mentalidade em relação ao deficiente, principalmente quanto ao paternalismo, que só
sufoca e não liberta.”
Os deficientes reivindicam também que as empresas que produzem e vendem artigos para incapacitados, como cadeiras de rodas, consultem os consumidores para
melhorarem o produto
DUZENTOS PROTESTAM NA SÉ
Cerca de 200 deficientes físicos realizaram ontem um ato público na Praça da Sé, para protestar contra as discriminações de que são vítimas e que os marginalizam da
sociedade, deixando-lhes como alternativa apenas os subempregos.
“Não reivindicamos privilégios, apenas meios para que possamos exercer os direitos comuns a todos os seres humanos. Como pode uma pessoa deficiente exercer o seu
direito de voto, se ela é impedida de fazê-lo porque sua seção possui escadas? Como pode uma pessoas deficiente exercer seu direito de utilizar o transporte coletivo se
os degraus do ônibus são altos demais?”, afirma uma carta aberta, distribuída à população pelo Núcleo de Integração de Deficientes (NID), que participou do ato
público, convocado pela Associação Brasileira de Deficientes Físicos.
Com faixas e cartazes reivindicando igualdade de tratamento, os deficientes físicos protestaram contra a “perseguição dos fiscais da prefeitura aos vendedores
ambulantes” e exigiram o cumprimento da legislação que reconhece os direitos dos portadores de defeitos físicos.
“Existe uma lei que obriga as empresas a contratarem entre 3 a 5% de deficientes físicos, em relação ao número de seus funcio nários, mas isso não vem ocorrendo,
assim como não é respeitada a lei que regulamenta o trabalho os vendedor de bilhetes de loteria, que hoje é obrigado a comprar esses bilhetes no câmbio negro, pois as
casas lotéricas monopolizam a comercialização”, afirmou
269
Imagem. Continuação...
Davi Pinto Bastos, presidente da Associação Brasileira de Deficientes Físicos.
Segundo ele, existem no Estado um milhão e meio de deficientes, dos quais apenas cinco por cento conseguiram empregos.
REIVINDICAÇÕES
Os deficientes físicos reivindicam degraus mais baixos nos ônibus, pois “se para as pessoas não portadoras de deficiências físicas já é difícil galgar os degraus altos do
ônibus, para uma pessoa que usa aparelho ortopédico ou membros mecânicos, esse ato comum se torna uma façanha quase impossível”, como afirma a carta aberta à
população.
Os deficientes pedem ainda a instalação de rampas automáticas nos ônibus para acesso às cadeiras de rodas, a redução do limite de velocidade que “põe em perigo a
segurança de todas as pessoas, em particular a do deficiente”.
Com relação aos táxis, os deficientes querem a abolição dos bancos dianteiros dos táxis-mirins, para facilitar o transporte de cadeiras de rodas e orientação aos
motoristas, que atualmente recusam corridas por não compreenderem as dificuldades dos deficientes.
Os deficientes se queixam da falta de conservação das calçadas, o que dificulta a locomoção em cadeiras de rodas, de faixas de segurança em todos os cruzamentos e
duração muito rápida dos semáforos, que não permitem a travessia com segurança de deficientes, idosos e crianças.
Legenda: Folha de S.Paulo, 22 de julho de 1980. Acervo digital Memorial da Inclusão. Doação Romeu Sassaki.
270
Imagem. Jornal Folha de S. Paulo, de 15 de março de 1981.
Declaração dos Direitos abre Ano do Deficiente
Cerca de 400 pessoas portadoras de deficiências físicas participaram ontem na Câmara Municipal da solenidade de abertura do Ano Internacional das Pessoas
Deficientes, que prosseguirá com a realização de mesas-redondas e organização de encontros nos bairros e junto aos sindicatos e outras entidades de classe.
Odete Cláudio Machado, cega, leu de uma publicação Braile a Declaração dos Direitos da Pessoa Deficiente, abrindo a cerimônia, à qual estiveram presentes o
secretário-geral da CNBB, D. Luciano Mendes de Almeida, o deputado federal Horácio Ortiz, o juiz-corregedor dos Presídios, Renato Talli e representantes de diversas
entidades de assistência.
O Movimento pelos Direitos das Pessoas Deficientes (MDPD) que organizou a solenidade, programou para o restante do ano uma série de atividades objetivando
“conscientizar a sociedade a respeito da verdadeira imagem da pessoa deficiente como ser humano; defender os direitos dos deficientes; eliminar barreiras ambientais;
atualizar a legislação de amparo ao deficiente; denunciar os casos de exploração e humilhação; criar uma política nacional que estabeleça padrões mínimos de qualidade
e quantidade para os programas e serviços de educação e reabilitação de pessoas deficientes; levantar as áreas e aspectos da vida comunitária onde os direitos dos
deficientes continuam esquecidos; incentivar a formação de núcleos de pessoas deficientes em bairros e cidades; e obter representatividade junto aos poderes
constituídos para defender os interesses das pessoas deficientes”.
Cândido Pinto de Mello e José Evaldo de Mello Doin, dois dos oito coordenadores do MPDP, ressaltaram durante a solenidade que a organização “tem caráter político
não-partidário, existe há dois anos e se constitui em instrumento de pressão dos deficientes, rejeitando qualquer forma assistencialista de tratamento”.
Dificuldades.
A grande maioria das pessoas teve muita dificuldade para chegar ao plenário da Câmara, onde se realizou a solenidade. Para os que usam muletas, a rampa de acesso ao
saguão de entrada representava o risco de uma queda; os que se movimentavam em cadeira de rodas não podiam subir o degrau de entrada do plenário. Quase todos
precisavam da ajuda de parentes ou amigos para chegar ao local da reunião.
Dona Maria de Lourdes Guarda, que devido a uma doença que provocou a calcificação de parte de sua coluna, vive há 34 anos deitada numa cama de rodas, teve que ser
levada por quatro pessoas. Ela participa de entidades assistenciais há cerca de dez anos, e acha que “o melhor resultado que se pode obter com o Ano Internacional dos
Deficientes é uma conscientização do povo e das autoridades no sentido de que nós temos capacidade para produzir, mas é preciso criar as condições para isso”.
Legenda: Folha de S. Paulo, 15 de março de 1981. Acervo digital Memorial da Inclusão. Doação Romeu Sassaki.
271
Imagem. Jornal Shopping News, 4 de janeiro de 1981.
A valente e engajada Maria de Lourdes. Contém foto em preto e branco. Retrato de Maria de Lourdes Guarda, sorrindo.
Há 33 anos, Maria de Lourdes Guarda vive numa cama no quarto 259 do Hospital Matarazzo. Vítima de uma doença na coluna, quando tinha 20 anos de idade, ela se
submeteu a várias operações até se convencer de que não poderia mais andar. Mas não desistiu de viver. Hoje, aos 53 anos, Maria de Lourdes é a responsável pela
regional paulista da Fraternidade Cristã de Doentes e Deficientes Físicos, viaja constantemente numa maca para o interior ajudando a organizar novos núcleos da
sociedade (mês que vem estará em São Bernardo do Campo) e, definitivamente, não pode ser considerada uma inválida.
— Não vejo razão para não fazer nada — afirma ela. Posso transmitir a experiência que vivi até hoje para as pessoas que estão começando.
Extrovertida, seus olhos azuis brilham quando fala de seu trabalho. Entre pastas, livros, agendas e anotações, Maria de Lourdes organiza seus programas com absoluta
eficiência. No começo, lembra, foi difícil aceitar a situação. “Mas graças a minha fé assumi a responsabilidade de viver como podia”. Para se manter, começou a fazer
trabalhos manuais. Até que, em 1974, convidada para um encontro de deficientes no Colégio São Luis, descobriu que havia muita gente inconsciente de suas
potencialidades e que, por isso, vivia amargurada. “Então, me propus a ajudar de outra forma. Deixei de lado os trabalhos manuais e me engajei na luta de reintegração
do deficiente à sociedade.”
Legenda: Shopping News, 4 de janeiro de 1981. Acervo digital Memorial da Inclusão. Doação Romeu Sassaki.
272
Imagem. Foto colorida. Maria de Lordes Guarda rodeada de pessoas. Um homem está com um gravador.
Legenda: Maria de Lourdes Guarda. Encontro de Delegados da Coalizão, julho de 1982, quando da criação do Dia Nacional de Luta - Vitória/ES. Acervo digital
Memorial da Inclusão. Doação Cláudio Vereza.
Imagem. Foto colorida. Maria de Lourdes Guarda posa para foto com cinco mulheres. Todas sorriem.
Legenda: Maria de Lourdes Guarda, Isaura Pozzatti e amigas. Acervo digital Memorial da Inclusão. Doação irmã Leonor Guarda.
273
José Roberto Amorim
Imagem. Retrato colorido de José Roberto Amorim. Contêm epígrafe: “Em 1981, durante o Ano Internacional das Pessoas Deficientes, fiquei
conhecendo a Fraternidade Cristã de Doentes e Deficientes (FCD), que hoje se chama Fraternidade Cristã de Pessoas com Deficiência”
eu nome é José Roberto de Amorim. Nasci, em 28 de fevereiro de 1953,
nesta casa, aliás, onde moro até hoje e se, Deus quiser, vou continuar
morando, no bairro de Arthur Alvim, na zona leste da cidade de São Paulo.
Meu pai trabalhava de segunda a sábado. Ele trabalhou no comércio, foi
porteiro, fazia de tudo. Trabalhou na Coca-Cola e seu último emprego foi nas Lojas
Clipper, fazendo coisas de carpintaria. Não era bem carpinteiro, mas quebrava o
galho. Ele tinha muitas preocupações sociais. Ele queria que as coisas
acontecessem, que todo mundo tivesse comida, roupas decentes, alimentação e
transporte justos. Só que éramos uma família pobre, então, a realidade não era do
jeito que ele gostaria que fosse. Aliás, acho que minha veia política veio daí.
Lembro-me de que, certa vez, meu pai contou uma história que achei
muito interessante. Daquelas que a gente guarda no coração. Perto de um Natal,
ele estava trabalhando em uma determinada casa comercial. Não pagaram o
décimo terceiro salário, nem o vale, até a véspera das Festas. Mas, ele queria
fazer um almoço ou um jantar um pouquinho melhor para os filhos naquela data.
Então, chegou para o chefe e falou: “Olha, se amanhã não sair o vale e não puder
levar um franguinho para os meus filhos, posso vir aqui e fazer uma besteira.
Posso até te matar. Porque mato pelos meus filhos.” Não deu outra. O pagamento
foi feito no dia seguinte. Ele deu graças a Deus porque os seus filhos iam poder
“chupar um ossinho de frango”, como costumava dizer.
Meu pai era assim. Uma pessoa muito justa, muito trabalhadora e tinha
esse lado “social”. Tanto que atuou muito no movimento do bairro. Para termos luz
elétrica, aqui na região, por exemplo, ele reuniu alguns amigos e lutou por isso.
Com a água encanada e o asfalto foi a mesma coisa. Até que, depois de um
tempo, ele se decepcionou. Numa das reuniões da Associação de Bairro, viu o
pessoal colocar uma garrafa de pinga em cima da mesa. Ele falou: “Espera aí!
Vamos tratar das questões do bairro ou vamos beber? Não sou contra bebida,
beba quem quiser. Mas, depois da reunião e lá no bar, aqui não.” Então, virou as
costas, foi embora e nunca mais voltou. Esse relato mostra um pouco como era o
meu pai.
Ele sentava do meu lado e a gente conversava muito sobre política. Às
vezes, não entendia o que ele falava, mas ouvia com muita atenção. Ele me dizia
que era seu companheiro porque, como eu não podia sair, ficava ao lado dele
ouvindo. Na época, achava aquilo chato, porque, como adolescente, tinha outras
preocupações. Agora, compreendo o que ele queria dizer. Hoje em dia, tenho
consciência de que aprendi muito. Aquelas conversas valeram muito para mim.
Foram ideias que, de uma forma ou de outra, pratiquei na minha vida. Foi muito
bom crescer com esses valores transmitidos por meu pai.
Meus pais tiveram cinco filhos. Meu pai e dois irmãos já faleceram. Hoje,
somos três irmãos – dois homens e uma mulher – e a minha mãe, que completa
92 anos agora em 2010. Meus pais tinham um planejamento muito legal. Queriam
ter um filho a cada três anos.
M
274
E essa é a diferença de idade entre meus irmãos. Mas, a diferença de idade entre
eu e minha irmã mais nova é de seis anos. Depois, soube o motivo. Após meu
nascimento, ainda queriam uma menina. Mas, como nasci deficiente, resolveram
dobrar a diferença porque ficaram com medo porque, naquele tempo, não se tinha
muita informação sobre o que era deficiência. As pessoas se perguntavam quem
era o culpado e quem não era. Seria alguma coisa relacionada ao sangue? Ou
seria um castigo divino?
Quando nasci, não tive toda a assistência que a minha filha teve. Aliás, há
um detalhe muito importante: quem fez o parto da minha mãe foi minha avó. Até
que meus pais se conscientizaram de que minha deficiência foi uma dessas coisas
que acontecem, uma fatalidade, minha mãe pensava em explicações. Ela conta
que se assustou, quando um cachorro latiu perto dela durante a gestação. Nesse
momento, teria acontecido a lesão que causou a falta de oxigênio responsável
pela minha deficiência. Até hoje, quando conversamos a respeito, ela logo ela fala
assim: “Ah, minha mãe não teve culpa.” Então, a gente até evita conversar sobre
isso, para que não fique chateada. A gente sabe que ela não teve culpa.
Aconteceu.
Meus pais perceberam que tinha alguma errada comigo quando, na idade
normal de uma criança sentar, eu não sentava. Então, os médicos pediram para minha
mãe me dar vitaminas. Mas, não adiantou. Resolveram reunir uma junta médica para
saber o que acontecia comigo. Naquela época, não se sabia muito bem o que era
paralisia cerebral. Então, quando o médico deu o diagnóstico, dizendo que eu nunca
iria andar, meu pai se assustou e ficou aborrecido. Antes de mim, tiveram três filhos e
nada de errado tinha acontecido. Os médicos falaram para me colocarem na AACD
(Associação de Assistência à Criança Defeituosa). Disseram que, assim, eu teria a
possibilidade de aprender a ler e me desenvolver fisicamente um pouco. Foi o que
aconteceu.
Cheguei lá em 1959. Tinha 6 anos. Tive acesso à reabilitação que a
AACD oferecia naquela época. Estavam começando e não tinham os recursos que
têm hoje. Éramos alocados em um espaço com três casas alugadas, lá no bairro
de Campos Elíseos, na região central da cidade. Uma das casas só era usada
para fisioterapia. Não sei quem pagava o aluguel. Não havia adaptação nenhuma,
as casas tinham escadas. Como éramos crianças, era fácil para os funcionários
nos carregarem no colo. A AACD foi muito importante na minha vida. Primeiro,
porque me deu reabilitação. Talvez tenha sido a melhor da época. Além disso, me
deu a oportunidade de aprender a ler, que é algo fundamental. Fui alfabetizado
dentro da associação. Para mim, com meus 6 anos, naquela época, tudo era
muito legal. Havia professores e fisioterapia. A única coisa chata é que via meus
pais apenas no segundo domingo de cada mês, o que era terrível. Mas, a gente
acabava se acostumando porque a coisa acontecia normalmente.
Depois que fui para a AACD, minha mãe conta que passei a abrir as mãos,
que eram totalmente fechadas. Ela também comenta que, até então, minha fala era
incompreensível. Hoje, falo até no rádio. Mas, quando me escutam, fico pensando
se minha voz ainda é terrível, embora seja mais compreensível do que antes. Acho
que o tratamento de foniatria – hoje chamado fonoaudiologia – me ajudou no
desenvolvimento da fala. Mas, acho que, para isso, foi decisivo o fato de que, logo
depois que saí da associação, entrei no movimento Fraternidade Cristã de Pessoas
Deficientes. Durante as reuniões, você era obrigado a falar. Você falava ou não
participava. Então, acho que foi no movimento que fui aperfeiçoando minha fala
naturalmente.
Houve dois momentos durante a minha internação na AACD. Entre 1959 e
60, ficávamos naquelas casas alugadas. Conhecíamos muito bem a cozinheira e a
fisioterapeuta que, de vez em quando, brincavam conosco no quintal da casa. Não
havia aquela postura formal de “sou fisioterapeuta, tenho minha sala e um tempo
estabelecido para cuidar do seu caso”. Até o motorista era legal! Nos momentos em
que não estava dirigindo, ele ficava empurrando a cadeira da gente para todos os
lados. A lavanderia ficava na parte de baixo da casa e sempre íamos lá bater
275
papo com as lavadeiras. Era um jeito muito gostoso de viver. Em 1961, foi
construído o prédio atual da AACD, no bairro do Ibirapuera. Mudamos para lá e, a
partir desse momento, passamos a ter uma vida de instituição mesmo. Com as
novas regras da associação, nos afastamos um pouco daquelas pessoas das quais
havíamos aprendido a gostar. (ponto final)
Uma coisa que ficou muito marcante na minha memória é que toda vez que
eu ia fazer alguma refeição, um atendente tinha de me ajudar a comer. Sempre
gostei de conversar muito. Por isso, demorava para comer. Todo mundo acabava e
eu ainda estava lá batendo o maior papo. Até que, um dia, a responsável pela
cozinha falou: “Amanhã vou dar comida pra você.” Respondi: “Tá bom!” Ela veio e,
como eu não tinha a mesma liberdade que tinha com as atendentes, comi mais
rápido do que o meu normal. Acho que nunca comi tão rápido na vida! Com isso,
eles queriam mostrar que não podia conversar com as atendentes enquanto me
alimentava. Esse fato me marcou porque me senti podado. Não podia mais
conversar com as pessoas. Tinha apenas que comer rápido. De repente, só poderia
conversar com os amigos, como se os funcionários não fossem mais gente. Sei lá,
fiquei muito preocupado… Quer dizer, me preocupei, mas, depois, passou. Só fui
fazer a crítica desse modelo de reabilitação, mais tarde, na FCD, depois de adulto.
Na ocasião, a associação dizia que haveria um acompanhamento quando
a gente saísse de lá. Mas isso não acontecia. Quando saí, em 1966, com 13 ou 14
anos, a assistente social disse que viria na minha casa, anualmente ou a cada
seis meses. Até hoje, nunca veio ninguém da AACD me visitar aqui em casa. Nem
mesmo um telefonema! Voltei lá, várias vezes, para ir ao médico. Nunca houve
alguém que quisesse saber detalhes sobre como eu estava fisicamente ou no que
estava pensando, coisas assim. Coincidentemente, neste ano, fui até lá procurar
umas cirurgias e ouvi: “Zé! Faz dez anos que você não aparece aqui?!” Quase
falei: “Bom, faz 40 anos que vocês não aparecem na minha casa!” Mas, pensando
bem, naquela época, éramos cerca de 50 crianças. Hoje, atendem umas 600
pessoas ou mais diariamente, afinal será que não é seu papel? Não tem como
acompanhar tanta gente. Por isso, luto por uma política de saúde e reabilitação
descentralizada oferecida pelo município e não apenas em instituições como a
AACD. Quando me mandaram para casa, disseram: “Nós não podemos fazer
muito mais do que já fizemos.” Eu me senti estranho porque não sabia o que fazer
da minha vida a partir daí. Não ouvi nada positivo como: “Olha, vamos
acompanhar você no que for necessário. Se precisar de uma escola, vamos brigar
juntos.” Não. Quase disseram: “A gente fez o que pôde, vá pra casa e se vira.” Só
não falaram isso porque seria uma grosseria, mas, a mensagem era “se vira”.
Ficou claro para mim que, dali em diante, seria “só por Deus”. Enfim, a associação
me deu reabilitação, mas, não tenho saudade nenhuma daquele tempo.
Diante disso, meu pai falou: “É meu filho e vou levá-lo pra casa”. Meus pais
não tiveram nenhuma orientação sobre o que deveriam fazer, qual era a melhor
forma de lidar comigo e minha deficiência. Naquela época, no meu bairro, não tinha
nada, não tinha fisioterapia em lugar nenhum. Tínhamos apenas a estrutura da casa
de uma família pobre. Tínhamos uma televisão em preto e branco. Eu passava o dia
acompanhado pela minha mãe, enquanto os outros estavam trabalhando ou
estudando. Então, pensava: “Pô, mas o que eu vim fazer neste mundo?” Na
ocasião, não havia praticamente nada aqui no bairro para os jovens entre os 14 e 16
anos. De todo modo, não conseguia nem sair na rua. Primeiro, porque não tinha
cadeira de rodas, só tinha a cadeira de madeira que meu pai tinha feito. Em
segundo lugar, as ruas, na época, eram de terra. Hoje em dia, andar de cadeira de
rodas no asfalto é complicado. Andar numa rua de terra era terrível. Quando chovia,
nem no portão conseguia chegar. Quando olhava para o lado esquerdo de minha
casa, via uma mata, onde hoje estão os prédios da Cohab (Companhia
Metropolitana de Habitação). Ao virar para o lado direito, enxergava o fim da rua.
Assim, nem havia o desejo de sair de casa. Era óbvio para mim que não tinha como
fazer isso.
276
Em 1981, durante o Ano Internacional das Pessoas Deficientes, fiquei
conhecendo a Fraternidade Cristã de Doentes e Deficientes (FCD), que hoje se
chama Fraternidade Cristã de Pessoas com Deficiência. Quando tive de me
apresentar, numa das primeiras reuniões, falei que assistia a muitos filmes da
Sessão da Tarde, na minha TV em preto e branco. Nada mais acontecia, pois, o
médico da AACD disse para o meu pai que eu não tinha mais jeito e me deu uma
sentença fatídica: eu não podia fazer nada na vida. O pessoal da FCD me disse:
“Olha, é mentira desse cara. Você pode fazer o que quiser.” E, desde então, não
paro mais em casa. Estou sempre em reuniões, representando a FCD em algum
lugar. Antigamente, tínhamos aquele almoço familiar, de vez em quando, tinha até
churrasco. Mas, agora, dificilmente, almoço em casa aos domingos. Meu pai até
falava: “Puxa vida, Zé, antes de você entrar nessa tal de FCD você almoçava com
a gente. Agora você nem participa mais!” Mas, acontece que abracei esse
movimento com muito carinho. Nem podia ser diferente. Afinal, o pessoal da FCD
mudou minha vida, quando me disse: “Olha, você pode tudo, pode até não fazer o
que eu faço, exatamente como faço, mas vai fazer a mesma coisa, só que da sua
maneira.”
A turma da Fraternidade me mostrou que eu não precisava seguir
exatamente o que a AACD ensinava: “Para fazer a transferência da cadeira de
rodas para cama, você tem que levantar o pé esquerdo e jogar a bundinha para a
esquerda.” Meus amigos me disseram: “Você não precisava fazer isso, faz do seu
jeito, se joga”. Antes, meu pai me pegava no colo para me colocar na cama ou na
cadeira de banho. Um dia, ele caiu do telhado e ficou engessado por um tempo.
Ele ficou todo preocupado porque não podia me ajudar enquanto estivesse
naquela situação: “E agora, meu filho, como é que vou te colocar na cama?”
Respondi: “Deixa comigo!” E pulei da cadeira para a cama. Já, no dia seguinte, a
minha mãe só me deu a mão e voltei para a cadeira. Devo à FCD – e não à AACD
– essa noção de autonomia. Foi a Fraternidade que me mostrou que eu poderia
fazer as coisas do meu jeito, que não estava limitado às indicações da
fisioterapeuta da associação. Foi a partir daí que decidi acreditar um pouco mais
em mim e comecei minha atuação política. Embora tenha vivido sempre nessa
região, não conheço muito o pessoal daqui. Isso aconteceu porque, quando
comecei a militar e a aprender a fazer articulações – por assim dizer –, minha
atuação política e social aconteceu muito mais em Itaquera, onde a Fraternidade
tinha uma presença muito forte, embora atuasse em toda a cidade de São Paulo.
Durante os trabalhos relacionados à Constituição de 1988, a FCD atuou
com o MDPD (Movimento pelos Direitos das Pessoas Deficientes), com o NID
(Núcleo de Integração de Deficientes), e com todos aqueles movimentos e
entidades, da época, para definir o que iríamos mandar para Brasília em termos de
reivindicações de leis. Havia uma mobilização em nível nacional e o pessoal de São
Paulo estava muito engajado e ativo, pois, sabia o quanto era importante discutir e
colocar no papel os pontos a serem reivindicados junto ao poder público. Foi nesse
momento que senti a necessidade de voltar à escola. As coisas estavam
acontecendo e eu tinha apenas o quarto ano primário. Eu queria aprender para
colaborar mais. Mas, devido à minha deficiência e à minha idade – estava com 44
anos –, as escolas da época não me aceitavam. Só venci essa barreira quando
consegui contatar uma pessoa da Secretaria da Educação, com quem chegamos a
trabalhar no Conselho Municipal das Pessoas Deficientes. Ela falou: “Olha, Zé,
conversei com alguém na Secretaria e descobri que tem uma escola próxima da sua
casa que vai te atender.” Fui lá, e me deram a oportunidade de voltar a estudar.
Abracei isso com as duas mãos e hoje tenho o segundo grau completo. Apresentei
toda a documentação necessária para a matrícula e a direção pediu para que eu
fizesse um teste para saberem meu nível de aprendizado. Depois de aprovado, o
diretor veio até mim, com uma professora, e disse: “E, agora, o que a gente faz com
você?” Respondi: “Ué? Vocês vão ter de me ensinar, a partir de agora.”
277
Só havia um detalhe: a secretaria não tinha nenhuma política ou fórmula
para ensinar uma pessoa que não escrevia com a mão. Eles não sabiam como
ajudar. Então falei: “A gente vai ter que desenvolver juntos.” Foi muito legal porque,
depois de conversar com as professoras, elas se colocaram à disposição para
encarar esse desafio. Lembro que a professora de Português me disse: “Olha Zé,
não sei como a gente vai fazer, porque essa matéria exige escrita.” Respondi: “É,
mas eu não escrevo.” A solução apareceu logo. A Elza me doou um computador.
Na época, os monitores tinham aquela tela verde. E não tinha nenhuma adaptação.
Comecei a teclar com a língua. Minha mãe ajudou com um dinheiro que havia
guardado e compramos uma impressora. Foi assim que comecei a fazer as lições
em casa. Mas, não tinha como acentuar as palavras. Então, chegava à escola e
pedia para a professora me mostrar quais palavras eram acentuadas para que eu
fizesse as correções. Foi assim durante todo o primeiro grau.
Depois, me deram outra oportunidade, no Supletivo Clara Mantelli71, no
bairro do Belém, onde fiz o segundo grau. Naquela escola, você estuda, faz os
exercícios e presta a prova. Para os outros alunos, tanto fazia ir de manhã, à tarde
ou à noite, de segunda a sexta. Mas, eu tinha um horário predeterminado pelo uso
que fazia do transporte Atende72. Por causa da minha dificuldade para escrever,
uma professora precisava ficar comigo na hora da prova. Tinha um professor que
me perguntava: “O teu acompanhante não pode fazer a prova com você?” Eu dizia
que não. Não queria correr o risco de que meu acompanhante me ajudasse com
as respostas, caso ele soubesse. Eu dizia: “Quero que você, como professor,
assuma isso, pois quero ser o mais justo e realista possível.” Nesse sentido,
sempre defendi que é muito melhor tirar zero ou dez, por mim mesmo, do que ser
aprovado porque outra pessoa me ajudou a responder as questões. Foi um drama
estudar Matemática e Física porque você tem que escrever as fórmulas. Não tem
como só decorar. Eu não tinha como fazer isso, tinha que guardar na cabeça.
Mas, mesmo assim, consegui. Foi pura força de vontade.
Tinha uma coisa legal nessa escola: eu não era a única pessoa
deficiente. Outra coisa bacana é que, na época, o colégio já tinha internet. Mas
ficava no andar de cima do prédio que não tinha elevador. Como comecei a fazer
parte do Conselho Escolar, numa das reuniões, falei, numa boa: “Diretor Carlos, o
pessoal deficiente de cadeira de rodas quer usar a internet.” Ele respondeu: “Mas,
Zé, é lá em cima”. Devolvi na hora: “É só pegar o computador e trazer aqui pra
baixo. Você pega um fio, puxa por fora da janela e clica aqui no PC.” Eles fizeram
exatamente assim. A partir daquele momento, as coisas foram mudando na
escola. Veio o banheiro e outras adaptações. Foi tudo uma questão de conversar
e mostrar as necessidades.
Mas, não precisava ser assim. Fico chateado porque as leis que obrigam
todas as escolas a serem adaptadas não são cumpridas. As justificativas são as
mais absurdas: “Ah, mas, aqui não tem deficiente.” Então, não sei se já não era
hora de a gente dar um jeito para que as coisas aconteçam. Fico triste também
com a posição de alguns deficientes. Outro dia, durante um relato na reunião da
FCD, em Artur Alvim, um deles falou: “Justifico o meu voto porque tem escada na
minha zona eleitoral.” Então, perguntei por que não transferia o título para uma
escola acessível. Ouvi dele: “Ah, mas, são eles que têm que adaptar.” Ele estava
certo, mas fui além e quis saber por que ele não reivindicava essa adaptação. Sua
resposta foi: “Ah, não vou brigar por uma coisa que eles são obrigados a fazer.”
Fico chateado com esse tipo de postura. Acredito que ainda temos muito pelo o
que brigar, sim! Muitas mudanças aconteceram
71
. Centro Estadual de Educação Supletivo Dona Clara Mantelli.
72
. O Serviço de Atendimento Especial (Atende), criado pelo Decreto municipal nº 36.071, de 9 de maio de 1996,
é uma modalidade de transporte porta a porta, gratuito, para pessoas com deficiências severas.
278
na vida das pessoas deficientes porque elas “chutaram o pau da barraca”,
brigando com os representantes do governo. Em todas as escolas por onde
passei, alguma adaptação foi feita no banheiro ou em relação à acessibilidade ao
andar de cima. Outras pessoas com deficiência que estudarem lá vão se
beneficiar dessas melhorias.
Além da consciência política, a FCD me deu outra perspectiva de vida. Se
a AACD tinha me proporcionado uma reabilitação física, o movimento me ofereceu
uma espécie de “reabilitação social”. Por exemplo, até então, minha mãe tinha de
me dar comida na boca. Tinha que ser ela. Precisava levá-la – ou alguém da minha
família – para todo lugar aonde eu fosse. Lembro que quando fui, pela primeira vez,
num encontro com o movimento, minha mãe foi comigo. Mas, num determinado
momento, à noite – foi até engraçado –, quando ela foi até o quarto dos homens
para escovar meus dentes, um colaborador da FCD de Americana, que eu admirei
muito, disse: “Quer dizer que é a senhora que tem de escovar os dentes dele? Não,
dona Garia, pode deixar que a gente vai dar uns tapas no seu filho. Imagina! Deixa
com a gente.”
A partir daquele momento, percebi que era legal ter a mãe ao lado, mas
não precisava ser 24 horas por dia. Ela poderia até cuidar de outros deficientes. A
dona Garia começou, então, a participar de um rodízio, no qual a irmã de um
cuidava de mim, a minha mãe cuidava de outro, e assim por diante. A gente
começou a perceber que não era só a mãe que podia cuidar, que as outras pessoas
da comunidade também podiam. É por isso que a gente defende muito a inclusão
do deficiente na comunidade. Porque os pais, as mães, os irmãos, eles vão passar.
Quem vai morrer primeiro eu não sei. E aí se eu ficar por último? Como é que eu
vou fazer para tomar banho, para comer? Então, você tem que acreditar na outra
pessoa, na pessoa que está do seu lado. Essa foi a “reabilitação social” que recebi
da FCD. Continuo dependendo de ajuda. Eu não como sozinho, então, alguém tem
que me dar, mas, hoje em dia, não dependo só da minha mãe. Qualquer pessoa
pode me ajudar. Pode até ser minha mãe, mas, também pode ser minha esposa ou
uma vizinha. A gente tem que acreditar nas pessoas. E, muito mais de eu acreditar,
a minha família tem que acreditar que as pessoas podem cuidar de mim. O próprio
jeito de a FCD trabalhar, indo buscar o deficiente em casa, ensina a família que ela
tem que acreditar naquele colaborador. O colaborador é a pessoa não deficiente
que me ajuda, me empresta as mãos. Eu costumo até dizer que sou tão favorecido
por Deus que, de repente, em determinados momentos, quando três pessoas estão
me ajudando, tenho seis mãos! Desse jeito, posso fazer um monte de coisas. Posso
sair na rua para, por exemplo, comemorar – todo dia 21 de setembro – o Dia
Nacional de Luta das Pessoas Deficientes. Uma vez, até fechamos a Avenida
Paulista! Foi uma loucura! Nas fotos da época, estou lá, com cara de moleque,
segurando meu pirulito – que era como chamávamos os cartazes nos quais
escrevíamos nossas reivindicações –, com alguém empurrando minha cadeira de
rodas. Certa vez, fui a um seminário do movimento em um hotel fazenda e passei
por uma experiência muito interessante. Na hora do almoço, vi o Serginho sendo
ajudado a se alimentar por uma pessoa surda e os dois estavam “conversando”!
Aquela cena fez com que começasse a me perguntar como é que os dois estavam
se entendendo. Ele não podia fazer gestos porque suas mãos tinham movimentos
involuntários. Ao mesmo tempo, o Serginho tinha uma dificuldade tremenda para
articular a fala. Quem o conhecia tinha alguma facilidade para entendê-lo, mas isso
não acontecia com quem não estava acostumado. Mas, os dois estavam se
comunicando sem nenhuma dificuldade! Como, eu não sei.
Parece que, em termos dos direitos da pessoa deficiente, hoje em dia, a
legislação brasileira é uma das mais avançadas do mundo. Se for assim, acho que
nossa função agora é fazer com que esses direitos sejam respeitados. Porém,
percebo que, mesmo com tantos avanços, alguns deficientes ainda estão
acomodados, esperando a ajuda do vizinho para se locomover. Impedimentos,
como o medo ou falta de motivação por causa da idade avançada,
279
não permitem que essas pessoas procurem as escolas que já têm estruturas
acessíveis para continuar seus estudos. Mas, eu quero fazer uma faculdade.
As rampas e os elevadores nas estações do metrô não estão lá porque o
governo de São Paulo é bonzinho. Foi resultado de uma luta inacreditável. Foi um
custo até eles perceberem que o metrô de Artur Alvim não tinha acessibilidade na
calçada! Eu telefonava para eles e dizia: “Olha, gente, não tem rampa de acesso
para a calçada!” Até que, finalmente, conseguimos marcar uma visita com os
funcionários responsáveis por esse setor e começaram a construir a tal rampa.
Essas conquistas não acontecem em apenas um dia. São frutos de um trabalho
contínuo. Gostaria que todos agissem para buscar seus direitos, mas não é o que
acontece.
Mesmo com as decepções momentâneas – inclusive vindas dos próprios
deficientes –, continuo com minha atuação. Mesmo que minha filha não precise de
adaptação, tenho de pensar que, talvez, ela seja uma professora ou uma
fisioterapeuta que saberá como isso é importante. Costumo dizer que, depois que
comecei a fazer política, fiquei viciado nessa prática. Mesmo apanhando muito por
querer ver as coisas acontecerem rapidamente e com eficiência. Até hoje, fico
agoniado por ver como os políticos demoram em resolver algumas ações que, por
experiência, sei que são muito simples.
Hoje, tenho uma casa “adaptada”, dentro daquilo que posso chamar de
acessível. Há um computador adaptado e alguns outros recursos também. Mas sei
que nem todo mundo tem essa infraestrutura. Então, tenho de pensar no “carinha”
que mora lá na favela. Lutamos muito e conseguimos alguns programas de
assistência social. Porém, muitas dessas conquistas ficaram limitadas às
subprefeituras, que são os órgãos municipais que administram os bairros da cidade
de São Paulo. Sei que, se não reivindicarmos sempre, o poder público não vai se
mexer para facilitar a vida da pessoa com deficiência que mora nas favelas! Eu
posso ir à subprefeitura, reclamar e reivindicar. Mas o “neguinho” lá da favela não
pode. Ele não tem nem telefone nem conhecimento para ligar e dizer: “Olha, quero
um carro do serviço Atende aqui, porque, se você não mandar, vou reclamar meus
direitos!” Mesmo esse serviço, o Atende, precisa ser melhorado. Ele vem me buscar
porque hoje participo do Conselho Municipal de Saúde que fez um acordo com o
Atende para que eu seja levado às reuniões. Mas as pessoas da favela, geralmente,
não têm nem os recursos – no caso, o telefone –, nem o conhecimento necessário
para reivindicar seus direitos.
Recentemente, presenciei uma discussão, no Conselho Municipal de
Saúde, que achei incrível. Estávamos conversando sobre a necessidade de
divulgar para a população o funcionamento do serviço emergencial das
ambulâncias do Samu (Serviço de Atendimento Móvel de Urgência). No meu
ponto de vista, a população precisa saber que o Samu trabalha com uma
hierarquia de importância. Atende primeiro os chamados mais urgentes. Mas, o
povo não sabe disso. Ligam e ficam naquele desespero até o socorro chegar. Um
dos médicos que representava a secretaria disse que não teríamos de informar a
população a esse respeito. Quase perdi o controle e esculhambei: “Por quê? Qual
o problema? As pessoas precisam saber como o serviço funciona!” Algumas
pessoas querem sonegar as informações de um jeito que até parece que a
ditadura militar ainda não acabou no Brasil. Esse médico me deixou preocupado.
Percebi que, mesmo depois de 30 anos de luta do movimento, não posso deixar
de representar a população em determinados lugares. Ainda é necessário ter
alguém como eu para brigar e ajudar as pessoas. Penso assim porque sou da
geração que militou muito por várias causas. Lutamos por transporte, por salário,
por emprego e várias outras questões sociais que envolviam pessoas deficientes.
Sou de uma época durante a qual a gente só via ônibus ou trem com
acessibilidade em filmes europeus, porque nem no Canadá tinha esse serviço. Era
um sonho. E o primeiro enrosco na vida de um deficiente sempre foi o transporte,
portanto, a gente brigava muito por
280
isso. Eu participava de reuniões, não apenas na FCD, mas também em um fórum
itinerante. Ao meu lado, estavam várias pessoas: o Gilberto, o Cândido, o Luiz
Baggio, a Lia Crespo.
A linha Norte-Sul do Metrô da cidade de São Paulo, por exemplo, não
tinha nenhuma adaptação até que o MDPD e outras entidades de pessoas
deficientes moveram e ganharam uma ação na Justiça, obrigando o Metrô a fazer
acessibilidade em todas as estações de todas as linhas. Quando não tinha
nenhuma acessibilidade nas estações, passávamos por uma situação terrível
porque tínhamos nossas cadeiras erguidas pelos seguranças, ou mesmo pelos
usuários, para pular as catracas do metrô. As pessoas ficavam olhando, tentando
entender o que estava acontecendo e pensando: “O que esse cara está fazendo
aqui?” Mas, não tínhamos alternativa. Fazíamos isso ou não andávamos pela
cidade!
As rampas e os elevadores que hoje existem nas estações do metrô não
estão lá porque o governo é bonzinho. Para que isso acontecesse, nós, dos
movimentos, fizemos verdadeiras loucuras! Chegamos a amarrar um deficiente, num
Dia Nacional de Luta das Pessoas Deficientes, nas escadas do metrô para fazer
protesto! Eu me lembro de outra coisa muito legal que fizemos em uma das
estações. Chegamos em, mais ou menos, 40 cadeirantes. Claro que não tinha
elevador. Decidimos que queríamos sair da estação por uma escada de cimento que
tinha lá. Os funcionários do metrô foram logo dizendo que não era possível.
Respondemos que tínhamos de sair porque íamos ao cinema. Ficaríamos ali, nem
que demorasse o dia inteiro, até que todos fossem levados até a calçada. Ao mesmo
tempo, já tínhamos preparado uma manifestação do lado de fora, com carro de som
e com a imprensa. Esse episódio aconteceu depois do Ano Internacional.
Mesmo com toda essa história, ainda há coisas a serem feitas. Muitas leis
ainda estão paradas no Congresso, na Assembleia ou na prefeitura. Ao mesmo
tempo, existem deficientes que ainda não assumiram seus direitos! Não estou me
referindo apenas à questão do voto! Parece que há certa acomodação ou falta de
informação. Não sei bem ao certo. Ninguém mais age como eu, quando cheguei,
na primeira escola onde estudei. Disse ao diretor que precisava construir um
banheiro adaptado. Enquanto isso não acontecia, eu faria xixi em sua sala, porque
não tinha outro lugar. Cada vez que isso acontecia, ele tinha de sair da sala. A
outra opção seria eu urinar na sala de aula. Mas, aí, a professora teria de tirar os
40 alunos da sala. Então, era mais fácil que apenas uma pessoa saísse de um
espaço para que eu fizesse minhas necessidades usando “papagaio”. A direção
achava difícil fazer a reforma. Mas eu insistia para fosse feito o banheiro
acessível. Às vezes, perguntavam se valia à pena tanto esforço, porque logo eu
sairia da escola. Um pensamento absurdo, como se depois de mim não fosse
aparecer mais nenhum aluno deficiente! Até que a direção me perguntou como
poderia resolver a situação. Orientei para que pedisse um projeto ao Conselho
Municipal das Pessoas Deficientes. Corremos atrás da verba e o banheiro foi feito.
Outras pessoas, com certeza, estão usando. Eu acho que tudo isso é vida, é vida
que acontece. Isso aconteceu por volta de 1998.
Eu me lembro que, uma vez, um padre veio aqui: “Vamos fazer a Eucaristia
dentro da sua casa”. Eu disse: “Não quero”. “Mas, você não é católico?”, perguntou o
padre. Respondi: “Sou”. E o padre: “Mas, você é orgulhoso?” Falei: “Eu não. Acontece
que quero ir lá até a igreja, caramba!” E o padre disse: “Mas, é tão difícil. Alguém tem
que te empurrar até lá. Não é mais fácil eu vir aqui, conversar com você?” Respondi:
“Mas, padre, eu não quero ver só você. Quero ver a dona Maria, a dona Teresinha, o
João, o Pedro, o Antônio. Quero participar da comunidade, sei lá, quero participar da
festa!” Hoje, a mesma igreja tem guia rebaixada, tem fileira de banco adaptada.
Essa é uma realidade que acontece até hoje. Por isso, a luta não pode
parar! Atualmente, tem dia em que até peço para minha esposa dizer que não
estou, quando alguém telefona, porque quero ficar em casa curtindo e brincando
com minha filha. Mas, ainda tenho alguns planos. Pretendo, talvez, no ano que vem,
montar um projeto de atendimento, talvez criar uma
281
ONG, não só para o pessoal deficiente, mas que integre vários setores da
população. Falo sobre os meninos de rua terem acesso a alfabetização, artesanato,
talvez, computação, alguma coisa que identifique o potencial dessas pessoas.
Nesse sentido, a FCD tem um grupo de cerca de 30 membros aqui na região. São
pessoas que moram em Artur Alvim, na Penha, no Itaim Paulista, entre outros
bairros. É possível contatar outras associações, fazer parcerias com Rotary Club,
por exemplo. A minha irmã já se prontificou a ajudar na área de alfabetização. Outra
pessoa vai dar aula de pintura. Começamos assim e vamos crescendo. Tenho
falado a respeito de trabalhar com os deficientes e buscar oportunidades de trabalho
para eles aqui no bairro mesmo. A pessoa deficiente não precisa trabalhar no centro
da cidade se o comércio da região estiver disposto a contratá-la. Mas, para isso, é
necessário um processo de conscientização de todos os lados.
Eu até falo em aposentadoria, mas não consigo parar. Participo de uma
reunião sempre pensando no encontro do mês seguinte. Por isso, minha mulher
fala assim: “Zé, fica em casa hoje. O que você vai fazer lá? Vai se chatear, vai
ficar bravo.” Mas, na hora que chega o carro, a única coisa que me vem à cabeça
é: “Vamos lá, alguém está precisando.” Acho que quero dividir aquilo que aprendi
no movimento. Se vão aproveitar da mesma forma que eu, é outro problema. Eu
quero que apareçam novas pessoas para continuarem essa luta que eu, o
Serginho, o Janilson, o Gilberto, o Rui, a Lourdes Guarda e todo o pessoal da
minha época começou. Estou na ativa, mas sempre esperando que apareçam
outros que possam levar a luta, para que eu possa ficar na retaguarda. Mas, tenho
percebido como é difícil.
Não vejo mais, por exemplo, as entidades saírem na rua! Nesse ano
aconteceu uma coisa que me chamou a atenção e me deixou preocupado, mas
ninguém falou nada a respeito. Eu e um amigo começamos a colocar frases do
dia, frases de luta, pelo Orkut. Foi quando me assustei: “Meu Deus! Estamos
fazendo um movimento pela internet!” O que significa isso? Significa que a gente
não está mais saindo na rua, como fazíamos antes. Eu me lembro de uma
manifestação muito legal, que fizemos durante a gestão do prefeito Celso Pitta.
Naquela época, havia pouco transporte adaptado, embora houvesse uma lei
dizendo que metade da frota deveria ser acessível. Então, fomos para o metrô D.
Pedro II para, dali, seguir para a prefeitura, que era no Palácio das Indústrias73.
Quando estávamos saindo do metrô, caiu o maior temporal! Mas, estávamos tão
empolgados que nem a chuva segurou a gente. Não sei de onde surgiram dois
carros de polícia, com os policiais falando: “Não vamos impedir, não. Vamos
acompanhar o pessoal.” Eles fizeram isso até porque não tinham onde colocar
tanto cadeirante. Chegamos ao gabinete do prefeito todos molhados e nos
disseram que o Pitta não estava. Dissemos: “Ah, procura ele porque a gente só vai
sair daqui depois que o prefeito aparecer.” Em dez minutos o homem apareceu.
Aí, claro, tivemos de eleger uma comissão, e fomos falar com ele sobre o
transporte acessível. Estávamos ensopados, mas muito contentes por estarmos
sendo atendidos pelo prefeito. No mês passado, voltei ao Parque do Carmo e
queria muito rever o casarão, porque ele tem uma história. Entre 1992 e 1994, no
tempo da Erundina, olha só que loucura, o movimento queria que fosse feita uma
rampa no local. Naquele espaço a prefeitura desenvolvia programas de
desinstitucionalização de pessoas com doença mental e oferecia formação
profissional para esse público. Era um Centro de Convivência e a gente também
queria ter acesso. Foi uma fase muito bonita da minha vida porque nós
convivíamos com aquelas pessoas num mesmo espaço. Mas, para conseguir isso,
tivemos que brigar muito para que fosse construída a rampa de acesso. A
arquiteta falava: “Não pode
73
. O Palácio das Indústrias, antiga sede da Prefeitura de São Paulo, no centro da cidade, foi transformado, em
2009, em um museu público de ciências batizado de Catavento.
282
porque a casa foi tombada. Isso vai descaracterizar”. A gente dizia: “E daí se vai
descaracterizar? Queremos ter acessibilidade” A prefeitura fez a proposta: “Então,
vamos colocar a rampa atrás da casa.” Respondemos: “Não, mas não vão mesmo.
Queremos a rampa na frente da casa.” A gente batalhou na Justiça, uma luta
muito grande. O casarão virou um museu e a rampa está lá até hoje. Por causa da
história dessa rampa, outras partes do parque também estão adaptadas. Queria
ver esse espaço porque sei o quanto lutamos pela rampa. Não fomos apenas nós,
daquela época, que ganhamos. Mas, no dia da visita, o casarão estava fechado.
Você pensa assim: “Puxa, eu fiz alguma coisa na vida, eu sou história!”
Infelizmente, não vemos mais isso hoje em dia. Nós, deficientes mais
antigos, esperávamos que os mais novos começassem a assumir um pouco mais,
e até rediscutissem o que é a luta e para onde ela vai, quais as reivindicações a
partir de agora etc. Mas, quando chegamos ao Conselho Municipal das Pessoas
Deficientes, percebemos que não existe mais o tesão e a seriedade de antes. Os
temas atuais são passeios para ver orquídeas e não sei mais o quê. Não sei, não.
Acho que estão passeando muito com os deficientes e não estão oferecendo mais
proposta de política para o grupo. O pessoal do movimento da minha época viu
uma cidade que não tinha nada e, de repente, hoje, você basta andar para ver
várias mudanças, como os shoppings todos adaptados. Mesmo a Secretaria da
Saúde, onde lembro que eu tinha de entrar numa sala para usar o papagaio, hoje
tem um banheiro adaptado dentro da sala do conselho.
É uma vida inteira e, quando começo a lembrar de tantas coisas que
foram feitas, acho que fui premiado. Sempre pensei que existe o deficiente José
Roberto, aquele que sabe e lamenta suas condições, mas assume sua deficiência.
E existe o homem José Roberto, com seus sonhos, que gostaria de casar e ter
filhos. Depois de ter namorado bastante, conheci a pessoa certa para ser minha
esposa, pela vida inteira. De repente, conheci a Zelinda, casei e tivemos a Yara,
nossa filha. Combinamos várias coisas antes mesmo do casamento. A gente
sonhava em ter três filhos. Só que a realidade é outra. Conversamos sobre isso.
Discutimos se poderíamos realmente sustentar três crianças. Sou contra aquele
tipo de família que tem dez filhos ou mais e não pensa no sustento. Além disso,
não acredito que a saída seja apelar para o governo para comer e conseguir
roupas.
Quando a Zelinda estava esperando a Yara, ficamos preocupados em
saber se a criança seria ou não deficiente. Mas os médicos garantiram: “Zé, não tem
nada a ver. Sua filha está ótima e é normal. Ela vai crescer, estudar, bagunçar, te
dar dor de cabeça e mais um monte de coisas. Mas não vai ser deficiente. Pode
parar de pensar nisso”. Temos uma menina que anda por todos os lados e bagunça
tanto que temos de mudar as coisas de lugar para que ela não derrube. Eu gosto de
ver isso. Claro que brigo, mas, no fundo, fico feliz. A mãe dela tem de arrumar tudo
de novo. Mas, graças a Deus, foi um sonho que realizei. Tive uma filha que gosto
muito.
A Zelinda e eu nos conhecemos de uma forma engraçada. Estudávamos
juntos e ela estava fazendo uma prova de arte. De repente, a minha cadeira bateu
na dela. Foi quando a Zelinda olhou feio para mim e olhei feio de volta. Mas, logo
depois, ela estava me dando o jantar no refeitório da escola. Até então, apenas
olhava para mim e estranhava os movimentos do meu corpo, porque me mexo
muito. Fomos aos poucos nos aproximando e a coisa foi acontecendo. A gente foi
conversando. Mesmo ela tendo paralisia do lado direito do corpo, começou a me
ajudar na escola, me empurrando para cá e para lá, a ponto de eu quase não
precisar mais de acompanhante. Isso terminou se repetindo um pouco aqui na
rotina de casa. Claro que ela não faz tudo, mas faz a maioria das coisas.
Geralmente, quem me ajuda é meu irmão. Mas, quando ele não está, a
Zelinda me ajuda a subir na cadeira, a calçar o sapato, a me vestir etc. Então, se
tenho que sair dali a uma hora, ela começa a me arrumar duas horas antes. Hoje
em dia, ela tem que se dividir em duas,
283
porque tem a nenê e eu, o bebezão dela… E nossa família criou alguns hábitos
interessantes. Na hora da alimentação, no almoço ou no jantar, em vez de
colocarmos três pratos, resolvemos melhorar a situação: colocamos tudo num
prato só e vamos distribuindo. A gente vai se adequando às necessidades. Nesse
sentido, a nenê ainda dorme conosco. Porque daria muito trabalho colocá-la num
berço. Até porque a Zelinda dorme sem o aparelho, que é o que lhe dá equilíbrio.
Então, caso precise cuidar da menina, fica mais fácil se ela estiver dormindo com
a gente. Quando a nenê desmamar e dormir mais tranquila, aí, sim, vai para a
caminha dela. Como temos o hábito de adaptar tudo, a Yara sobe no caixote da
minha cadeira de rodas onde apoio meus pés para comer, porque fica mais fácil
para gente. Como ela vê a mãe dar comida na minha boca, ela quer fazer o
mesmo. Então, estamos até planejando, quando ela crescer um pouquinho mais,
vamos fazer uma macarronada com bastante molho, para gente se divertir e fazer
uma farra com ela.
Quero que a Yara estude. Não sei se vai ser médica, professora...
Deixarei que ela escolha a profissão que quiser. Convidei um casal amigo para
batizá-la e falei: “Olha, ela terá uma formação cristã, não necessariamente
católica. Porém, se um dia ela resolver ser ateia, ninguém vai proibir.” Vamos dar
uma formação moral e religiosa cristã. Conversaremos a respeito sempre que
tivermos oportunidade. Mas a gente nunca sabe o futuro de ninguém. Ela vai ter
liberdade para escolher as coisas. Isso é algo que a vida me ensinou. Não adianta
dizer que tem de ser deste ou daquele jeito. Por isso, minha filha terá de descobrir
o jeito dela de estar no mundo e fazer o que quiser. Tive o casamento que eu
sonhava com a Zelinda, que comprou minha proposta. Não é fácil conviver com o
José Roberto, um cara chato, totalmente dependente, tem que puxar a calça dele,
colocar o papagaio, dar banho, mas que também precisa de uma companhia para
sair e ou ter alguém para conversar nas noites de sábado. Agora, tenho duas
pessoas! Sei que minha filha vai me acompanhar com certeza. Quero passar para
ela toda essa vontade de transformar as coisas que tenho.
Resumindo: tenho uma vida feliz. Mesmo que o dinheiro seja curto e
acabe antes do fim do mês. Eu divido com a minha mãe a pensão por morte do
meu pai. Já, a Zelinda recebe o Loas74, por ser órfã e deficiente de paralisia
infantil. Depois que conseguiu esse benefício, até apareceram algumas
oportunidades de trabalho. Mas, para aceitá-las, ela teria de abrir mão do Loas.
Pensamos bem e decidimos que era mais seguro continuar com o benefício, pois
hoje ela poderia estar empregada e amanhã perder o emprego. A gente tem
vontade de inventar alguma coisa que possa vender aí na frente da casa para
aumentar a renda, quando a nossa filha começar a ir para a escola.
Engraçado que, antigamente, adorava sair de casa, ir para o cinema,
voltar tarde, ia para pizzaria e outros lugares. Hoje, saio para fazer minhas coisas,
minhas palestras, minhas reuniões e logo fico doido para voltar para casa. Isso
acontece por vários motivos. Um deles é saber como é gostoso chegar ao portão
e escutar “papai!”. Interessante porque cheguei a ouvir que não poderia ser pai
“porque não tinha mão”. Nunca entendi essa frase, mas tudo bem. Eu ficava
pensando no significado dela. Quando minha filha estava para nascer, não tive
coragem de ficar ao lado da Zelinda, “na hora do vamos ver”. Mas, o que mais
queria era carregar minha filha no colo. Mas, não podia pegá-la porque minhas
mãos são pesadas e qualquer movimento errado poderia machucá-la. Fiquei
encucado sobre como poderia carregar a minha filha
74
. O Benefício de Prestação Continuada da Assistência Social (BPC-Loas) é um benefício da assistência social,
integrante do Sistema Único da Assistência Social (Suas), pago pelo governo federal, operado pelo Instituto
Nacional do Seguro Social (INSS) e assegurado por lei.
284
no colo. Uma enfermeira ou voluntária do hospital segurou a bebê bem perto e
beijei minha filha com duas horas de vida. Foi a coisa mais importante que me
aconteceu. Hoje é gostoso acordar às 2 da manhã e ouvir: “Papai, vamos ver a
Xuxa?” Então, vamos ver… Fazer o quê?
Quero que a Yara cresça vendo muitos deficientes e com naturalidade. Já
pedi para os padrinhos dela que me ajudem num ponto só: participar das reuniões
de pais e mestres na escola dela, porque sou “papai coruja”. Já em relação aos
coleguinhas dela, penso que vão falar: “Olha, sua família é diferente. Seu pai usa
cadeira de rodas e sua mãe anda de aparelho, com muleta.” Já pedi para que, se
isso acontecer, os padrinhos falem para ela: “Olha, seus pais são diferentes, mas
são teus pais, viu?” Mas, talvez isso nem aconteça. Porque a gente sempre leva a
Yara na AACD, onde está cheio de casais de pessoas deficientes com filhos. Se
tiver reunião em Itaquera ou em outro lugar onde haja núcleo e ou grupos de FCD,
a Yara vai junto. Lá, também encontramos um monte de casais com deficiência
que já têm filhos. Eles brincam todos juntos. Acho que assim ela vai percebendo
que é algo natural da vida. Então, essa vivência com pessoas com deficiência
talvez não seja algo estranho na cabecinha dela.
Agora, estou com uma ideia fixa na cabeça. Quero fazer mais uma
loucura na vida: candidatar-me a vereador. Se isso vai acontecer ou não é outro
problema. Mas, estou buscando isso, que é uma coisa que meu pai fazia muito.
Ele era uma pessoa muito política, mas nunca se candidatou a nada. Não sei se
será na próxima eleição. O PT não me deu retorno até agora, mas, vamos lá.
Posso até não ganhar, isso são outros quinhentos. Mas tenho de tentar ser
vereador. Inclusive, ontem, estava falando sobre esse projeto para um amigo. Não
quero ser só o representante. Quem vai fazer a política junto comigo serão as
pessoas. Não estou levando nenhum projeto. Quero que as pessoas me tragam
suas necessidades. Não será um gabinete fechado. Talvez eu até quebre a
estrutura. Quero que o pessoal assine os documentos. Se não puder, vou brigar
para que seja possível. Quero que os objetivos sejam atingidos. Um exemplo é
todo transporte ser adaptado e circular à noite toda e nos fins de semana. Assim,
o Atende vai poder atender apenas as pessoas que realmente não possam sair de
casa de outro jeito.
Uma vez, saí de casa, em um domingo, para visitar uma deficiente em
outro bairro. Um amigo meu foi empurrando a cadeira. Planejávamos ir de ônibus
adaptado. Chegamos ao ponto e esperamos o carro por um bom tempo.
Começamos a achar estranho e fomos conversar com o coordenador da linha. Ele
nos disse que a empresa não liberava esse tipo de ônibus aos domingos, embora
tenha se oferecido para nos ajudar a entrar em um veículo comum. Achei um
absurdo e na segunda-feira liguei na secretaria para denunciar essa situação e falar
para que isso mudasse. Afinal de contas, como a empresa iria saber se um
cadeirante sairia ou não aos domingos? O mesmo vale para o limite de horários nas
linhas noturnas. Até porque há deficientes que estudam à noite e saem da aula
depois das 10. Acho até que tem discriminação aí no meio dessa história. Já, no
caso do Atende, hoje ele é um serviço sobrecarregado exatamente porque a lei
sobre ônibus acessíveis não está sendo cumprida. Se tivermos mais veículos
adaptados, isso vai facilitar a vida de todos. Meu vizinho poderá muito bem me
deixar no ponto de ônibus mais próximo porque terei certeza que em tal horário irá
passar um veículo acessível.
Eu dou palestras para a juventude e observo algumas coisas. Certa vez,
uma amiga e eu estávamos conversando com um grupo de jovens em Mogi. O
maior problema deles é a droga. Na ocasião, estava lá uma moça numa situação
realmente difícil. Falamos sobre fé, possibilidade de conquistas e outras coisas. A
moça começou a se emocionar. Quando terminamos, essa jovem veio conversar
com a gente: “Olha, eu gostaria muito de adotar uma criança. Mas, uso droga e
nenhum juiz vai me conceder a guarda”. Então, falamos: “Por que você não larga
as drogas e tenta trabalhar e ajudaremos no processo de adoção. Temos uns
conhecidos que podem auxiliar nesse processo. Depois também ajudaremos no
começo da criação”.
285
Tempos depois, ganhei uma cadeira motorizada e comecei a rodar por aí.
Num belo dia, fui ao shopping Tatuapé e, de repente, comecei escutar: “Psiu,
psiu”. Pensei logo que era alguém me paquerando. Mas, quando me aproximei,
ela falou assim: “O senhor se lembra de mim?”. Respondi: “Olha, me desculpa,
mas não lembro não”. Ela me recordou: “Sou aquela moça que usava droga e
estava naquele grupo de Mogi e que queria adotar uma criança. Eu queria dizer
para o senhor que larguei a droga, adotei a criança e, olha, estou trabalhando!”
Pensei: “Puxa vida! Quer melhor salário que isso?” Nunca mais vi essa pessoa.
Sei apenas de notícias que o pessoal me dá de que a neném está crescendo, que
ela está cuidando. Isso me fez sentir o homem mais feliz do mundo por ter
ajudado alguém a se salvar!
É isso que me deixa feliz. O que não impede de querer outras coisas para
mim. Sei lá, quero algum dia, voltar a estudar, fazer faculdade. Mas depois de toda
essa minha trajetória, gostaria que os deficientes se aceitassem mais, que eles
“saíssem da casca do ovo”. Digo por experiência: pode sair, porque é o maior
barato! E dar a cara para bater é importante. Quer dizer, fiz muita coisa que não
deu certo. Bati a cara no muro. Mas essa batida surtiu muitas outras coisas. A
gente também aprende com os próprios erros!
Devemos investir e acreditar em nós mesmos. E o mais importante é
ajudar o próximo. E isso não quer dizer dar dinheiro, mas, sim, agir. Aquela rampa
no metrô, aquele elevador que ajudei a colocar etc. Se algum dia a história disser:
“O Zé Roberto esteve aqui. O Serginho esteve aqui”, legal. Eu e o pessoal do
movimento ficaremos muito agradecidos. Mas, se não tiver, a gente vai ficar
agradecido da mesma maneira porque ninguém vai destruir o que a gente fez.
Será muito gostoso passar num lugar e falar para a Yara assim: “Olha, minha filha,
isso daqui o seu pai ajudou a fazer. Então, o seu pai não foi uma porcaria, que
deixou de fazer as coisas porque estava sentado numa cadeira de rodas. Ele
‘chutou o pau da barraca’ e brigou muito.”
As pessoas têm me procurado. Na semana que vem, vou receber metade
de uma turma de estudantes de Terapia Ocupacional da USP para conversar
sobre algumas propostas. Isso acontece há cerca de dez ou 15 anos. Então,
acredito que alguma coisa boa deve ter acontecido nesse tempo todo. Talvez,
tenha algo para ensinar, então, por que vou deixar de fazer essas coisas? Eu tinha
vontade de ir para o litoral ou para o interior, ficar num lugar tranquilo, mas, decidi
ficar aqui. Quero que a Secretaria da Pessoa Deficiente me chame quando
precisar. Basta alguém vir me buscar.
O deficiente precisa assumir a sua deficiência, porque isso é assumir
aquilo que você é. Antigamente, tinha vergonha de ir para uma reunião porque
balanço a cabeça quando falo. Hoje em dia, não estou nem aí. Semana passada,
“quebrei um pau” com o representante da Secretaria Municipal de Saúde. Foi mais
uma boa discussão política.
Já superei essa história de milagres tipo: “Levanta dessa cadeira! Você
não tem fé?” Hoje, não sinto necessidade de sair da cadeira de rodas. Ela já faz
parte do meu corpo. O difícil é ter uma cadeira de rodas nova neste país, mas tudo
bem… Fui fazer o pedido de uma cadeira de rodas comum na AACD e me
disseram: “Olha, você vai ter que esperar dois anos.” Respondi: “Se estiver vivo
até lá, vou agradecer!” É um absurdo ter de esperar dois anos para poder ter uma
cadeira de rodas comum, não motorizada! Apenas, tenho receio de que essa
cadeira que estou usando não aguente. Mas, vai aguentar, a gente chega lá. É um
absurdo você necessitar de uma cadeira motorizada que custa 8 mil reais, quando
você ganha um salário.
Mas, mesmo assim, acredito que as coisas vão mudar! Só depende de a
gente sair do portão para fora. Nem que seja para ficar na calçada mostrando a
cara. Alguma coisa vai acontecer! Tenho certeza. Havia o medo de que, quando
alcançássemos nossas conquistas, o movimento acabaria. Porém, sempre achei
que a pessoa que quer ter uma vida o mais normal
286
possível não vai parar de brigar nunca. Penso que aproveitei bem minha vida. Que
fiz muito mais do que ficar apenas vendo a Sessão da Tarde. Aliás, nem sei se
esse programa ainda existe. Acho que não passei pela vida em vão porque vou
deixar algumas coisas para as outras gerações. O que digo para as pessoas
deficientes, que estão começando a lidar com essa situação agora, é que basta
acreditar em si. Apenas isso. Acreditar e acreditar. Daí em diante, as coisas
acontecem naturalmente. É isso. Obrigado.
Imagem. Jornal da Tarde, de 02 de janeiro de 1981.
Símbolo da ONU para o Ano Internacional dos Deficientes. Sobre fundo preto símbolo e letras na cor branca. O símbolo consiste de um triângulo, formando a imagem
estilizada de duas pessoas, uma de frente para a outra, com os braços estendidos e as mãos dadas, como crianças brincando de rodopio. Todo o conjunto é rodeado e
protegido por folhas de louro, as mesmas que formam o símbolo das Nações Unidas. Sob o símbolo, título da matéria: “Um Símbolo para 1981, o Ano Internacional dos
Deficientes”. Início da matéria. Este é o desenho que a ONU escolheu para simbolizar o Ano Internacional das Pessoas Deficientes que começou ontem. Ano em que os
deficientes físicos ou mentais (que a ONU calcula serem 500 milhões em todo o mundo) pretendem, acima de tudo, lutar para ter oportunidades iguais às outras pessoas.
287
Imagem. Continuação.
Página 18. Os cegos, surdos, paralíticos e portadores de outras deficiências físicas ou mentais devem conquistar no Brasil um alto nível de organização, que tenha o
poder de assegurar o respeito a seus direitos. Esse é, na verdade, o objetivo básico a ser anunciado por seus líderes neste ano, que a Organização das Nações Unidas
(ONU) considera o Ano Internacional das Pessoas Deficientes.
Os líderes fazem parte da coordenação do Movimento pelos Direitos das Pessoas Deficientes (MDPD), criado há um ano com representantes das várias associações que
pretendem promover os interesses dos deficientes brasileiros. Até agora, o MDPD concentra suas atividades no Estado de São Paulo. No entanto, seus líderes começam
a criar núcleos do Movimento em diferentes regiões do País.
Em São Paulo, os mais ativos coordenadores do MDPD são estes deficientes: Leila Barnaba Jorge, advogada; Cândido Pinto de Melo, engenheiro eletrônico; José
Evaldo de Melo, professor de História Econômica; Vinicius Viana de Andrade, advogado; Luiz Celso Marcondes de Moura, psicólogo, e Maria de Lourdes Guard,
presidente da Fraternidade Cristã de Doentes e Deficientes Físicos.
Embora não sejam deficientes, integram ainda a coordenação do Movimento o conselheiro de reabilitação Romeu Kasumi Sassaki e o ortopedista José Robinson de
Carvalho. Os coordenadores ressaltam a necessidade de ultrapassar os limites das associações tradicionais, que aparecem divididas por defenderem os interesses
diferentes dos vários tipos de deficientes físicos e mentais.
Na opinião dos líderes, o MDPD deverá fortalecer a capacidade organizativa dos deficientes brasileiros, além de sustentar suas campanhas reivindicatórias e de
mobilizar a sociedade em torno de uma prioridade: eliminar o atual sistema paternalista, que nega ao deficiente o direito de determinar o caminho mais adequado à sua
integração no processo de desenvolvimento nacional.
Romeu Sassaki admite que o deficiente continua marginalizado no Brasil. E justifica a opinião, lembrando que o Brasil ainda desconhece sua população portadora de
deficiências físicas e mentais. Aplicando um método utilizado pela ONU, Romeu calcula em cerca de 12 milhões os brasileiros deficientes físicos e mentais. Com o
mesmo critério, julga que 70% deles estão desassistidos.
— É insignificante — diz Romeu — o número de centros para reabilitação da população brasileira de deficientes. Igualmente baixo é o nível de formação profissional
dos que se ocupam com a reabilitação dos deficientes. Torna-se portanto evidente a extrema falta de interesse pela promoção humana e social dos portadores de
deficiências físicas e mentais no Brasil.
Alguns deles já nasceram com deficiências, enquanto outros as adquiriram em acidentes de trânsito e, principalmente, de trabalho. Preocupados com os acidentes de
trabalho e doenças profissionais que geram deficiências, os maiores sindicatos paulistas acabam de criar o Departamento Intersindical de Estudos e Pesquisas de Saúde
e Ambientes de Trabalho (Diesat).
O Médico Herval Pina Ribeiro, coordenador técnico do Diesat, cita dados da Secretaria de Planejamento do INPS para mostrar que os acidentes de trabalho e doenças
profissionais são responsáveis pelo “brutal aumento” dos casos de invalidez permanente. Em 1977, o Brasil registrou 2.378 casos de invalidez permanente e, só no
primeiro semestre de 1980, teve 8.278 casos.
Os dados do INPS revelam ainda que as doenças profissionais, geradoras de deficiências, aumentaram sua ocorrência no Brasil, onde elas representavam em 1977
apenas um total de 3.013 casos e, no primeiro semestre de 1980 já totalizavam 2.163 casos.
Denúncia: a omissão do governo brasileiro. Os dados oficiais admitem que teriam ocorrido no Brasil, de 1971 a 1976, apenas 17.282 casos de doenças profissionais. O
total incluiria 16.417 casos de dermatoses (doenças de pele), de saturnismo (envenenamento por chumbo) e de surdez, o que representaria quase 95% das ocorrências.
Assim, ficariam reduzidos a 865 (5%) os casos de todas as outras doenças, durante seis anos.
Entre elas, a silicose, doença ainda incurável, provocada pela inalação do pó de sílica, que acaba gerando nos pulmões lesões irreversíveis. O mais recente estudo sobre
a incidência da silicose no Brasil é a tese de doutoramento do professor Renê Mendes pela Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo. Seus cálculos
denunciam a omissão dissimulada nos dados oficiais.
Renê Mendes mostra que o Brasil tem de 150 mil a 200 mil trabalhadores expostos ao risco de inalação do pó de sílica. E, baseado em uma amostragem representativa,
calcula que 30 mil são doentes de silicose. Desse total, a região Sudeste concentra 20 mil silicóticos; só em Minas, 7.400; no Rio de Janeiro, 6.900; e, no Estado de São
Paulo, cerca de 5.100 silicóticos.
Sensibilizados com a desgraça dos silicóticos, os líderes de ativos sindicatos paulistas promoveram, em maio de 1979, a primeira Semana de Saúde do Trabalhador
(Semsat), quando discutiram com médicos as doenças pulmonares adquiridas em ambientes de trabalho: silicose, asbestose, bissinose e outras igualmente
incapacitantes. Só então observaram o desinteresse oficial pelas doenças profissionais.
Embora a inalação do pó de amianto provoque nos pulmões as lesões da asbestose, os participantes da Semsat concluíram que o Brasil não tem dados sobre a incidência
dessa doença, e, ainda, que só tinham sido relatados, até então, quatro casos entre trabalhadores brasileiros, expostos ao risco da asbestose. Mas os médicos explicaram
aos trabalhadores que esse risco não é desprezível.
Em outros países, a crescente utilização do amianto está aumentando a incidência da asbestose e do câncer pulmonar entre os trabalhadores expostos. Por isso, os
participantes da Semsat recusaram-se a aceitar que só tivessem ocorrido, até então, quatro casos de asbestose no Brasil. Indignados, preferiram julgar os quatro casos
como indicativos do desinteresse nacional pelas doenças profissionais.
Mas indicativa de idêntico comportamento lhes pareceu a ignorada incidência da bissinose, outra irreversível lesão pulmonar, devida à inalação de poeiras de algodão,
sisal e linho. Apenas em 1973, uma equipe da Faculdade de Saúde Pública da USP divulgou um estudo sobre a bissinose na cidade de São Paulo, não permitindo
verificar a incidência nacional dessa doença incapacitante.
Vinculada ao Ministério do Trabalho, a Fundação Jorge Duprat Figueiredo de Segurança e Medicina do Trabalho (Fundacentro) formou, de 1973 a 1978, o total de
57.273 especialistas, dos quais 10.717 médicos do trabalho e 11.389 engenheiros em segurança do trabalho. Mas os participantes da Semsat acusaram a Fundacentro de
não pesquisar a epidemiologia das doenças profissionais.
Para os participantes da Semsat, é imperdoável o desinteresse das autoridades e instituições pelo levantamento dos índices brasileiros de doenças incapacitantes,
adquiridas em ambientes de trabalho insalubres. O desinteresse pareceu-lhes revelar a insensibilidade do Brasil em relação a importantes fontes geradoras de deficientes
físicos, que exigem sua reintegração na sociedade.
Existem escolas, mas faltam professores. O governo do Estado de São Paulo tem, hoje, em suas escolas, um total de 990 classes especiais, onde estudam 13.817
crianças cegas, surdas, paralíticas e retardadas mentais. Embora seja muito maior a população paulista de crianças deficientes, está em melhores condições de
atendimento do que as crianças portadoras de deficiência físicas e mentais em outros Estados brasileiros.
É o que admitem alguns técnicos do Centro Nacional de Educação Especial (Cenesp), vinculado ao Ministério da Educação e Cultura, que coordena as atividades
educacionais programadas no Brasil para as crianças portadoras de deficiências físicas e mentais. Segundo eles, São Paulo oferece às crianças deficientes a rede escolar
pública e muitas instituições particulares.
Entretanto, o Estado de São Paulo sente falta de professores habilitados para o ensino de crianças deficientes. Para exercer as atividades programadas para as atuais 990
classes especiais, há apenas 699 professores admitidos pela Secretaria da Educação. O governo estadual procura compensar a falta de professores especializados
adotando um sistema de ensino itinerante.
Entre as crianças deficientes, os técnicos paulistas da Secretaria da Educação parecem mais preocupados com as portadoras de retardamento mental, classificadas em
três níveis de quociente intelectual (QI): as educáveis (55 a 79 de QI), as treináveis (30 a 54 de QI) e as dependentes (QI inferior a 30). Só o retardado educável pode ser
matriculado nas classes especiais do Estado.
O retardamento ou deficiência mental é, muitas vezes, efeito da desnutrição ocorrida durante o primeiro ano de vida de uma criança. “Há relação de causa e efeito entre
prejuízo nutricional, crescimento do cérebro e desenvolvimento mental”, concluíram os
288
Imagem. Continuação.
professores Eduardo Marcondes e João Yunes, da Clínica Pediátrica da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo.
A conclusão se apóia em exames e medições dos cérebros de 2.647 crianças brasileiras (1.367 do sexo feminino e 1.280 do masculino) na faixa etária de três dias a três
anos. As observações dos autores estão publicadas na revista Arquivos de Neuro-Psiquiatria, sob o título “Perímetro cefálico em crianças de até três anos: influência de
fatores sócio-econômicos”.
Para pesquisar a possível cura de lesões ou distúrbios nos movimentos, nos nervos e no psiquismo das desnutridas crianças brasileiras, o professor Eduardo Marcondes
criou uma grande equipe nos departamentos de Pediatria e Neurologia da Faculdade de Medicina da USP. O supervisor neuropediátrico da equipe foi o professor
Antônio Branco Lefèvre, que examinou a deficiência mental.
Concluindo o relatório sobre a importante pesquisa, seus autores atribuíram “a deficiência mental comprovada nas crianças à carência nutricional, provavelmente
presente no primeiro ano de vida, a julgar pelo perímetro cefálico reduzido, observado em todos os casos”. Mas a Fundação Serviços de Saúde Pública (FSESP) mostra
que apenas 29,8% das crianças brasileira escapam da desnutrição.
Uma mudança no comportamento da ONU. Há 30 anos, a ONU promove programas para reabilitação de deficientes por intermédio de seus órgãos especializados: a
Organização Internacional do Trabalho (OIT), a Organização Mundial da Saúde (OMS), a Organização para Educação, Ciência e Cultura (Unesco) e o Fundo das
Nações Unidas para a Infância (Unicef). Mas a ONU mudou de comportamento em relação aos deficientes.
Em 1950, quando começou sua experiência em programas de reabilitação, a ONU parecia interessada em trabalhar para os deficientes. Agora, porém, mostra-se disposta
a exercer uma atividade com eles. A mudança de comportamento tornou-se evidente quando a assembléia da ONU aprovou a proposta da Líbia, pedindo que fosse
instituído o Ano Internacional das Pessoas Deficientes.
Confirmando a mudança de comportamento, a ONU ressaltou a necessidade de “estimular os portadores de deficiências e suas organizações a tomarem parte ativa nas
atividades previstas para o Ano Internacional das Pessoas Deficientes”. Além disso, a ONU recomenda que os deficientes tenham oportunidades iguais às oferecidas a
todos os integrantes da comunidade, eliminando o paternalismo.
O secretário geral da ONU, Kurt Waldheim, determinou que sejam removidas as barreiras arquitetônicas nos edifícios que abrigam órgãos das nações Unidas, onde
deve ser facilitado o acesso de “todas as pessoas sem descriminação”.
No entanto, a mudança de comportamento pode remontar a 1975, quando a assembléia geral das Nações Unidas adotou a Declaração dos Direitos das Pessoas
Deficientes. Segundo o artigo 12 da Declaração, “as organizações de deficientes poderão ser consultadas, com grande vantagem, em todas as questões relacionadas com
o exercício dos direitos inerentes aos portadores de deficiências”,
No mesmo sentido, o artigo 9º da Declaração dos Direitos das Pessoas Surdas-Cegas, aprovada por unanimidade em setembro de 1977, durante a Conferência Mundial
Helen Keller, do Conselho Mundial para Bem-Estar dos Cegos, determinou que os surdos e cegos devem ter a oportunidade de serem consultados em relação a todas as
questões que afetem seu interesse direto, como grupo social.
Com maior clareza, a declaração de Manila, aprovada pela Segunda Conferência Internacional sobre Legislação das Pessoas Deficientes, proclamou em 1978 que a lei
deverá garantir a máxima participação dos deficientes no processo decisório, na formulação de políticas e na implantação de planos nacionais que tenham relação com
seus respeitáveis interesses coletivos.
As associações particulares apóiam a mudança de comportamento da ONU. Nos Estados Unidos, a organização pelos Direitos das Pessoas Deficientes, fundada na
Califórnia em 1979, institui uma Carta de Direitos do Deficiente, que tem 16 artigos. Um deles assegura, expressamente, ao deficiente “o direito de determinar seu
próprio destino e definir suas próprias escolhas de vida”.
A ONU calcula em 500 milhões a população mundial de portadores de deficiências físicas e mentais. No entanto, já observou que 60% dessa população não têm acesso
às técnicas de reabilitação, o que contribui para a total marginalização dos deficientes no mundo. Daí a prioridade que a ONU atribui aos programas destinados à
assimilação e aplicação das técnicas de reabilitação.
Um documento, pedindo o fim do paternalismo. Os líderes do MDPD prometem distribuir ao público, nesta semana, cinco mil cópias de um documento que o JT
divulga com exclusividade: a Carta-Programa do Movimento pelos Direitos das Pessoas Deficientes no Brasil. Assim, a distribuição da Carta-Programa coincide com a
abertura do Ano Internacional das Pessoas Deficientes. Seus autores começam argumentando:
“A problemática das pessoas deficientes em nosso país está contida em um universo mais amplo, que abrange a formação e a situação do povo brasileiro, com o qual se
confunde. A marginalização de segmentos sociais diferenciados tem sido acobertada pela tendência paternalista da elite brasileira. Esses segmentos incluem os
deficientes, favelados, negros, homossexuais e prostitutas, entre outros”.
“A idéia de que não existem preconceitos e de que todos os segmentos sociais estão integrados é veiculada como senso comum, corporificado em leis ditas
protecionistas, que são elaboradas de cima para baixo e que mascaram a realidade”.
“As atitudes paternalistas foram aceitas, pacificamente, durante longo tempo, sem questionamento e sem consciência de uma realidade que, a cada dia, se torna mais
ameaçadora. Neste sentido, observa-se ainda hoje a marginalização dos deficientes refletida nos seguintes fatos”.
“Um deles é a noção errônea de que os deficientes seriam inferiores em capacidade e em respeitabilidade, incapazes de tomar decisões por iniciativa própria. Outro é o
despreparo de entidades e profissionais da reabilitação, que assumem inadvertidamente uma postura de superioridade com seus clientes, não os consultando sobre suas
necessidades e opções pessoais”.
Na Carta-Programa, há denúncias mais contundentes, quando seus autores acusam, com veemência, “instituições de permanência, onde anciãos e deficientes
deterioram-se solitários, humilhados e privados de assistência até à morte”. Ou ainda “as barreiras ambientais impedindo o acesso das pessoas deficientes à escola, ao
trabalho, às urnas de votação e aos locais de lazer”.
Mas os autores da Carta-Programa não se limitam a denunciar sintomas de injustiça ou desigualdades sociais, que pretendem corrigir. Com esse objetivo, definem os
três princípios específicos para uma mudança de comportamento em relação aos portadores de deficiências:
“1º — As pessoas deficientes são uma parcela integrante da sociedade e exigem o respeito efetivo aos direitos e às responsabilidades que lhes estão reservados, para que
possam participar plenamente da vida comunitária e, assim, contribuir como seres humanos socialmente úteis”.
“2º — As pessoas deficientes não reivindicam benefícios que tenham as características de privilégios, dádivas ou concessões, mas reclamam o que é de seu pleno direito
como cidadãos de um país e como seres humanos integrais”.
“3º — As pessoas deficientes proclamam que apenas uma ação conjunta, consciente e dotada de poder de pressão será capaz de esclarecer e mobilizar a sociedade e o
Estado para o diferencial de necessidades, que caracterizam os portadores de deficiências”.
Legenda: Jornal da Tarde, 02 de janeiro de 1981. Acervo digital Memorial da Inclusão. Doação Romeu Sassaki.
289
Lilia Pinto Martins
Imagem. Retrato colorido de Lilia Pinto Martins. Contêm epígrafe: “O movimento das pessoas com deficiência deslanchou mesmo, ganhou uma consistência muito
grande, durante 1981. Mas acho que, naquele momento, não estávamos nos dando conta do quanto o AIPD viria a ser influente para as organizações do movimento.”
ontraí pólio aos 2 anos de idade, durante a época da guerra, em 1941 ou 1942,
no Rio de Janeiro. Na ocasião, não havia nenhum recurso no Brasil. Minha
família foi surpreendida com essa realidade e me disponibilizou o que havia de
melhor na ocasião. Quando tinha, talvez, uns 3 anos, frequentei uma clínica e fiz
minha primeira operação em São Paulo. Durante muito tempo, fiz exercícios físicos,
de acordo com as condições que existiam, porque ainda não havia fisioterapia, nem
nada mais especializado na área da reabilitação. Passei longos anos da minha
infância nesse esquema de fazer tratamento e cirurgias.
Sempre tentando andar, usei aparelhos ortopédicos muito pesados, iam da
cintura até os pés e faziam com que eu me parecesse mais com um robô do que
com uma pessoa. Além disso, eu me lembro muito bem do medo que sentia ao
andar de muletas com um aparelho que me pesava horrivelmente e não me dava o
equilíbrio necessário.
Até os 8 anos de idade, como era tradição na época, fiz mais umas seis ou
sete cirurgias ortopédicas, todas visando a melhores condições para a marcha, e,
depois, acho que encerrei. Acho que, no fundo, eu tinha uma percepção de que não
voltaria a andar e desejava outro tipo de coisas para mim, queria parar com aquelas
tentativas que me frustravam muito. Então, com uns 8 ou 9 anos, comecei a tomar
grandes decisões que foram muito importantes para minha vida inteira.
Na infância, não pude frequentar escolas comuns, pois nenhuma me
aceitava. Eu lembro, até muito constrangidamente, que, na época, meus pais até
me levaram para um teste na Sociedade Pestalozzi (instituição que atende crianças,
adolescentes e adultos com deficiência intelectual). Felizmente, não fui aprovada.
Caso contrário, teria feito meu primário – meu início de escolarização – na
Pestalozzi. Não que eu tenha algo contra, mas acho que essa reprovação me deu a
oportunidade para não me fechar num esquema mais especial. Na infância, tinha
aulas particulares em casa. Não eram exatamente professoras. Eram pessoas mais
velhas, senhoras, que faziam aquilo como um hobby. Não me davam nenhuma
noção de dever, de disciplina, tanto que eu as enganava o tempo todo. Eu colava de
mim mesma! Desse modo, acabei ficando muito por minha própria conta. Só fui
frequentar escolas bem mais tarde.
Tenho um casal de irmãos, gêmeos entre si, com apenas um ano de
diferença em relação a mim. Eles iam para o colégio e me lembro de que eu meio
que tirava uma casquinha daquela oportunidade que tinham. Eu frequentava as
festas escolares, as festividades de fim de ano... E vivia aquilo um pouco como se
fosse o “meu espaço”. Na época, era muito comum as meninas fazerem cadernos
de recordação, que depois eram passados para que as coleguinhas escrevessem
bilhetinhos a serem guardados como lembrança. As minhas coleguinhas, para quem
eu fazia o meu caderno, eram as amigas da minha irmã, do meu irmão, enfim, eu
vivia através deles. Isso me marcou profundamente.
Por causa da deficiência, as pessoas todas, mas, principalmente, meus
pais, me compensavam com privilégios. Por exemplo, como não ia à escola, eu
podia acordar quando bem
C
290
quisesse. Se resolvesse almoçar numa determinada hora, tudo bem. Se não, estava
bom também. Se não queria tomar banho, não tomava. Na época, desfrutei desse
poder como um ganho, mas, para uma criança, essa era uma situação meio
esquizofrênica e acabou sendo prejudicial para minha vida futura. Ter todo esse
poder de decisão e saber que meu desejo imperava sobre qualquer noção de
disciplina ou obrigações me causaram dificuldades quando, mais tarde, precisei
assumir compromissos. Também me prejudicou o fato de não ter essa noção de um
espaço mais particular, onde eu pudesse experimentar o desejo como meu, sem
que aquilo fosse alguma coisa disponibilizada pelo outro.
Acho que eu mesma tive saúde o suficiente para romper com isso. Decidi
fazer o exame de admissão para entrar num colégio particular tradicional do Rio
de Janeiro e comecei a minha carreira escolar. Fiz o que, na época, era o ginásio,
cursei o clássico (divisão do ensino secundário, escolhido por estudantes que
desejavam cursar faculdade na área de Humanas), no mesmo colégio, e, depois,
então, fui para a faculdade. Dali em diante, o processo se desencadeou
normalmente.
Na mesma ocasião em que resolvi frequentar uma escola, também dei um
basta em todos os tratamentos. Aos 8 ou 9 anos, eu mesma tomei essas decisões.
Só, então, minha família me comprou minha primeira cadeira de rodas. Até então,
para me locomover, eu me arrastava pelo chão. Usava roupas que eram práticas
para a circunstância. Andava sempre com uma calça comprida que, naquela época,
se chamava jardineira e tinha umas alcinhas que abotoavam numa espécie de
suspensório. Isso mantinha a roupa no lugar, enquanto me arrastava. Eu vivia
dentro daquela roupa e me locomovia por toda parte dessa maneira.
Ao coincidirem essas três coisas – o meu rompimento com aquela inércia, o
fato de ter ido para uma escola e de ter recebido a primeira cadeira de rodas –, foi
como se a noção da minha deficiência tivesse ganhado realmente uma referência e
uma realidade. Talvez, até aquele momento, meus pais, inconscientemente, por
dificuldade deles, talvez ainda esperassem um milagre que fizesse com que eu saísse
andando. Mas no momento em que eu mesma senti que aquilo era uma ilusão, de
certa maneira, acho que eles também desistiram daquela fantasia. Ao receber minha
primeira cadeira de rodas, foi como se eu tivesse sentado, realmente, em cima da
minha deficiência.
Deixei de lado a reabilitação, o tratamento e realmente ganhei a vida. Fui
estudar e sempre fui uma boa aluna.
Da minha família, eu tive o que considero um presente. Era uma família
muito grande, tanto por parte do meu pai quanto da minha mãe. Portanto, eu tinha
muitos tios e primos. Uma família que sempre se reunia, estava junta para
comemorar tudo: festa de aniversário, Natal, Dia das Mães etc. E tudo isso muito
centrado ao redor da minha avó paterna. Com isso, convivi muito com esses primos.
Tenho uma lembrança muito agradável, muito prazerosa daqueles anos em que
éramos crianças e eu dormia na casa dos meus primos. Era uma verdadeira farra.
Depois, mais tarde, papai construiu uma casa de campo, na qual a família toda
passou a se reunir e na qual os primos sempre iam passar as férias conosco.
Apesar de não ter tido uma convivência escolar – naquela época, eles
recusavam mesmo as crianças com deficiência –, tive esse contato muito forte,
muito intenso com primos da minha idade. Meus tios também achavam que eu
podia ir para qualquer lugar. Eles se disponibilizavam a me levar. E, naquela época,
uns moravam em sobrados. Mas me levavam escada acima, eu dormia com a
criançada. Não tinha nenhuma diferença. Isso me fortaleceu.
Até hoje, reluto entre dois planos. Num deles, vejo minha infância como
um período de muita alegria, de muito encontro, com relacionamentos muito
fortes, que me deram sustentação para toda uma vida de relação futura. Ao
mesmo tempo, há o outro plano, marcado pela negação e pelo sofrimento, porque
não é fácil para uma criança se submeter a cirurgias
291
durante vários anos de sua vida, viver a questão da imobilidade, da diferença, de
não poder brincar como as outras crianças.
Por outro lado, às vezes, havia certa tirania, da minha parte, digamos
assim. Eu ditava as regras. Quando a gente brincava de correr, eu determinava:
“Não vale pular a janela, isto está fora da regra.” Se eu não podia pular a janela,
ninguém podia. As coisas eram feitas a meu modo e as outras crianças acabavam
se adaptando à minha maneira de brincar. Hoje em dia, penso muito em escrever
sobre a questão dos irmãos das crianças com deficiência, porque realmente eles
têm uma situação muito difícil também para enfrentar. Meu irmão, até hoje, comenta
que era muito difícil para ele ir à escola e me deixar em casa... A culpa que isso
trazia... Como não usava cadeiras de rodas e vivia pelo chão, eu trazia eles para
uma situação, não digo igual, mas próxima à minha. Lembro de nós duas – minha
irmã e eu – brincando durante horas. Ela também sentada no chão. Não sei o peso
que isso tem na cabeça deles. Sei que tem um peso. E, para mim, também. Acho
que é complicada esta coisa de você sentir que tem de trazer o outro para uma
situação próxima da sua, não reconhecendo uma diferença. Eles tinham uma
condição de mobilidade que eu não tinha. “Todos são irmãos, todos são iguais”,
diziam. Mas me pergunto o quanto foi justo impor, de certa maneira, a meus irmãos
a negação dessa diferença.
Foi construída uma “amarração” entre nós, os irmãos. Um não podia ir para
onde o outro não fosse. Criou-se uma situação em que o meu impedimento
construía o impedimento deles. Estou falando isso em termos emocionais, no nível
do inconsciente. Mas acho que isso trouxe elementos muito fortes, os quais a gente
vai descobrindo ao longo da vida. Faço análise já há muitos anos, o que, para mim,
foi fundamental para entender todos esses questionamentos da vivência da infância.
Durante meu período de adolescência, convivi com turmas. A gente sempre
frequentou Itaipava (bairro de Petrópolis, RJ), onde temos nossa casa. Havia turmas
de adolescentes que iam lá. Tudo muito facilitado em função da minha condição. Eu
lembro que, sempre, a nossa era uma casa de portas abertas. Era lá que se reuniam
os amigos, durante nossa adolescência e mesmo mais tarde, na juventude. Era uma
casa aberta para que as pessoas se dispusessem a vir e me colocassem junto,
participando. Ao mesmo tempo, acho que tive um talento também, no sentido de que
as pessoas conviviam muito intensamente comigo. Tive grandes amizades nessa
época, com pessoas com as quais até hoje ainda tenho certa relação. Essas pessoas
achavam, assim, tranquilo me carregar para aonde fossem. Lembro que havia uma
piscina de água natural em uma fazenda próxima. Nas férias, a turma toda gostava
muito de ir para lá. Embora o caminho fosse de terra, com ladeiras – portanto, um
trajeto difícil de ser percorrido –, todo mundo me levava, puxava a cadeira ou um
levava a cadeira e o outro me carregava no colo. Para eles, não era um problema eu
ir junto. Também frequentei o tempo todo a praia com meus amigos. Sempre tendo
um para me levar no colo, já que a cadeira não chegava até a areia. Ficava o tempo
todo com todo mundo.
Meus pais facilitaram essa conjunção muito grande, por conta daquela casa
aberta para todos. Mas também houve uma disposição minha também, para esse
encontro, para essa necessidade de relacionamento. Agora, o grande impacto foi na
época da minha formatura em Psicologia. Acho que foi nesse momento que a festa
acabou. Eu me vi adulta, tendo que assumir um lado profissional e, ao mesmo tempo,
tive que enfrentar uma realidade para a qual não estava preparada.
Assim que me formei entrei numa crise muito forte, muito intensa, a grande
depressão da minha vida. Era a época dos casamentos. O período em que as
pessoas jovens, entre os 20 e os 30 anos, iam se casando. Minha irmã se casou, as
outras amigas e um grande amigo meu também se casaram. Realmente, entrei
numa crise muito grande por conta disso. Entrei em pânico e foi quando comecei a
fazer análise. Eu estava sobrando, não tinha feito uma relação. A questão da
sexualidade era a grande dificuldade na minha vida pessoal. Foi muito difícil. Não
ousei
292
enfrentar. Naquela época, não conseguia me assumir ou me colocar como uma
pessoa sexualizada. Era sempre a pessoa amiga. A companheira sempre disposta
a ouvir, a confidente. Eu era o ombro amigo, sempre disponível para escutar os
dramas, as crises, as histórias dos namoros de cada um dos amigos. E, claro, eu
me apaixonei várias vezes. Mas foi uma coisa muito minha. Não ousava me arriscar
para ver se poderia acontecer ou não uma relação de fato.
Minha vida profissional me aproximou dessas questões, em nível pessoal e
profissional. E foi uma troca muito importante. O diretor da Faculdade de Psicologia
da PUC, no Rio, na qual me formei, me ofereceu a possibilidade de um estágio na
Associação Brasileira Beneficente de Reabilitação (ABBR), que é lá no Rio. Não só
fiz o estágio, como também, depois, fui contratada como profissional. Fiz minha
carreira em torno disso. Fiquei muitos anos na ABBR. Muito da minha experiência
profissional foi resultado dessa troca muito grande entre os clientes e eu. Pude me
retratar em várias situações enfrentadas pelas pessoas que eu atendia. Para mim,
foi uma experiência muito importante porque, através da compreensão de uma
pessoa que eu atendia, podia compreender muitas questões em torno da deficiência
e do que ela significa. Na ABBR, o cliente prioritário era a pessoa com deficiência
física. Evidentemente, uma situação muito próxima à minha. Havia aspectos
favoráveis e desfavoráveis dessa situação, na contratransferência, por exemplo.
Uma vez, fui atender um paciente recém-internado numa enfermaria, por causa de
uma lesão medular. Quando entrei e me apresentei como psicóloga da instituição,
ele não aceitou, não quis ser atendido por mim. Percebi que, para ele, a grande
pergunta ainda era: o que será de mim? Supus que minha condição de deficiente,
talvez, estivesse confirmando a realidade que ele ainda não podia admitir. Por outro
lado, atendi outras pessoas para as quais a situação em comum – a deficiência –
facilitou muito a comunicação, a criação de uma identidade. Muitas vezes,
trabalhamos em grupos essas questões. Mesmo mais tarde, já no Centro de Vida
Independente do Rio de Janeiro (CVI-RJ), formamos grupos para discutir o que é
ser uma pessoa com deficiência e sua sexualidade. Sempre com essa mesma
preocupação: a de uma troca entre iguais.
É muito difícil sair daquela posição de profissional – dona da verdade, que
sabe mais do que a pessoa que está sendo atendida – e assumir uma atitude mais
disponível para compartilhar situações e experiências, dar para a outra pessoa a
possibilidade de um papel ativo. Para o Movimento de Vida Independente, essa é a
tônica básica do conceito e da filosofia de vida independente. Tive que passar por
uma série de circunstâncias que me trouxeram muitos conflitos. Saí de uma posição
muito empoderada, como profissional, para poder viver a experiência de quebrar
parâmetros, na época, muito bem definidos da análise, da psicologia analítica, nos
quais o terapeuta, o analista, tinha que ter uma postura muito formal e controlada,
para, só assim, deixar a pessoa fluir e, com isso, o inconsciente poder vir à tona.
Uma posição teórica que você assume. Mas, na situação em que estava, tive que
me adaptar, sem nunca tentar fugir da minha visão, da minha concepção de vida,
existencial. Minha compreensão ainda é psicanalítica. Mas faço, hoje, o que já é
uma proposta muito natural, isto é, transpor uma teoria psicanalítica para uma
situação institucional. Você não faz psicanálise em uma instituição. Melhor dizendo,
você faz psicanálise em uma instituição, mas não nos moldes da psicanálise
tradicional, clássica, de consultório. E isso foi muito importante para mim, porque
comecei realmente a criar espaços institucionais para um trabalho psicológico.
Além dessa influência na vida profissional, como pessoa, a convivência com
outros deficientes foi muito importante também para meu desenvolvimento individual.
Mas uma coisa demorou um pouco mais para ser resolvida: a questão da
sexualidade. Apenas quando já era uma pessoa mais madura, consegui quebrar
certas resistências e dificuldades para me aproximar. Só tive a minha primeira relação
sexual lá pelos 40 e tantos anos. E foi uma coisa fortuita, que surgiu.
293
Na época, fiz uma pesquisa em torno da questão do que é ser uma mulher
com deficiência. Achava, como ainda acho hoje – apesar dos avanços que surgiram
–, que a condição da mulher com deficiência não tinha espaço algum.
Em todas as discussões sobre sexualidade das quais participava, os
homens sempre tomavam a frente. Todas as preocupações eram em torno deles,
principalmente, daqueles com lesão medular, em virtude da questão da ereção e da
possibilidade ou não de virem a ter filhos. As mulheres que frequentavam o grupo
não se manifestavam. Elas próprias se colocavam muito pouco. Achei que tinha
uma contribuição a dar, se pudesse refletir, junto com outras mulheres, o que
significa se assumir com um corpo diferente e, assim mesmo, se reconhecer como
uma mulher com sexualidade. Levei uns dois anos trabalhando, nessa pesquisa, da
forma mais ampla possível. Entrevistei individualmente muitas mulheres com
deficiência e fiz discussões com grupos de mulheres com deficiência, exatamente
para tratar dessa questão da sexualidade.
Tive algumas respostas que mudaram consistentemente minha maneira de
entender essa questão. Ao mesmo tempo em que trabalhava com essas mulheres, fui
reconstruindo, na minha cabeça, talvez, toda uma visão sobre o que seria ser uma
mulher com deficiência. Eu tinha meus parâmetros, a minha visão de mundo, minhas
dificuldades e resistências. E vi mulheres que já tinham quebrado há muito tempo
essas noções, tinham ido à luta, enfrentado o desafio e construído relações afetivas e
sexuais. Mulheres que tinham encarado a maternidade e estavam com relações
firmadas. Mas também colhi muitos depoimentos de mulheres que confirmavam
minha suspeita de que elas são muito mais rejeitadas do que os homens com
deficiência. Muitas mulheres assinalaram que havia sempre um grande momento de
crise, quando se apresentavam com sua deficiência e toda sua realidade. Nesse
momento decisivo, havia a possibilidade de construir uma relação, em moldes muito
mais verdadeiros, reais, ou, então, a relação não prosseguiria.
Ao longo desse trabalho, claro que me mobilizei muito e, a partir daí, acho
que pude reformular uma série de coisas. Acho que disso resultou uma mudança
nos meus parâmetros de vida. Um pouco depois desse período, comecei a ter uma
vida sexual ativa. Eu já não era uma pessoa jovem. Não sei se pela minha história,
construí sempre relações intermediadas por terceiros. Já que a minha vida sempre
foi muito assim, de viver em grupo, junto com a família, acabei construindo relações
sobre as quais não tinha certeza se eram ou não eventuais, apenas para uma
satisfação sexual. Não me colocava realmente como uma pessoa valorizada para
uma relação mais constante, mais estável. Fiz muitas relações nesses moldes. Eu
até sabia que esses homens tinham relações com outras mulheres. A última delas,
a mais recente, é uma relação com um homem que sempre está viajando. A gente
tem muito mais um contato pela internet do que pessoalmente, na vida real. Essa
relação foi muito importante em vários níveis, mas, a partir de um momento, ele
disse que tinha outra pessoa. Ainda sustentei isso, por algum tempo, mas, depois,
realmente, comecei a me questionar. Será que essa é uma relação da qual se pode
esperar alguma coisa? De que maneira posso reclamar uma presença, um
compromisso, ou seja lá o que for, se já está sendo dito claramente que existe outra
pessoa. Esse tipo de situação sempre caracterizou minhas relações e, atualmente,
estou meio, assim, parada.
Não sei se é uma coisa na qual pretenda insistir. Não sei. Pode acontecer.
Não vou me negar a isso. Mas, talvez, tenha de reconhecer que não pude lidar bem
com essas circunstâncias. Não foi um aspecto da minha vida no qual tenha tido
sucesso. É uma lacuna na minha vida. Não vou dizer que não tenha lastimado, mas
essa é minha realidade. Por um lado positivo, acho que construí relações muito
intensas, muito íntimas, com amigos que são realmente amigos de longos anos.
São amigos e amigas com os quais tenho muito prazer em estar junto.
Meu envolvimento com o movimento das pessoas com deficiência
começou quando trabalhava na ABBR, cujo serviço social fazia um trabalho com
grupos de pacientes internos. E,
294
por uma dessas coincidências felizes – ou porque, historicamente, havia um
momento para isso –, dentre as pessoas internadas, havia algumas muito ativas,
bastante transgressoras dos modelos tradicionais, pessoas com um nível cultural
muito elevado, com grande capacidade de liderança também. Acho que, naquele
momento, elas já se apresentavam assim. O trabalho desse grupo fez com que se
desenvolvesse a primeira ideia de um clube, que reunisse as pessoas internadas
naquela ocasião, para que começassem a trabalhar ativamente o significado do
estar hospitalizado em um centro de reabilitação. O nome do clube era Clube dos
Amigos da ABBR (Clam/ABBR), Clam de Clandestino, o que dava bem a noção de
que a gente queria transgredir e, já naquela época, sair daquele modelo médico
vigente. Acho que foi o primeiro protagonismo do nosso movimento. Uma história
muito particular, que aconteceu no Rio de Janeiro, na década de 1970, e acho que
foi o início de tudo.
Naquele momento, estávamos iniciando um esboço do que viria a ser o
movimento para reivindicar e defender nossos direitos. As pessoas que formavam o
Clam/ABBR – praticamente todas elas – se tornaram líderes ativos, ficaram à frente,
no início do nosso movimento. Antes do Clam/ABBR, naquela época, a única coisa
que existia, lá no Rio, eram duas associações, de caráter esportivo, o Clube do
Otimismo (fundado, em 1958, por Robson de Almeida Sampaio) e o Clube dos
Paraplégicos, que misturavam a atividade esportiva com a função de oferecer uma
subsistência básica, uma moradia, um abrigo, pois seus participantes eram pessoas
bastante pobres.
Através do Clam/ABBR, começamos a trabalhar questões que surgiam
dentro do hospital, Mas que, depois, foram extrapoladas para toda a sociedade. No
Clam, tinha o setor de acessibilidade (que, na época, não se chamava assim,
evidentemente), cujo objetivo era remodelar todas as instalações da instituição, para
que as próprias pessoas lá dentro tivessem acessibilidade. Outro setor trabalhava a
questão da profissionalização das pessoas com deficiência. Havia também uma
atuação mais política, de conscientização, trabalhada em grupos. Tudo isso aliado à
prática de esportes, na época, uma ação muito congregadora. O primeiro presidente
do Clam foi Fidélis Bueno, um piloto e autor do livro O Último Voo, Depoimento de
um Piloto Acidentado (Arte Final, 1982), que sofreu um acidente de avião e ficou
com lesões causadas por queimaduras em todo o corpo. Era uma pessoa brilhante,
muito congregadora.
Inicialmente, eu participava a distância, mas, quando Fidélis Bueno teve
alta e saiu do hospital, ele me convidou para ficar na presidência. Relutei muito
porque eu era psicóloga da instituição e não sabia como conciliar uma atividade
com a outra. Era uma atividade que me envolvia com as pessoas internadas,
principalmente. Eu achava que isso ia confundir um pouco meu papel de
profissional, estando em uma relação muito mais informal. Temi que, talvez, me
tirasse – não digo a neutralidade, pois não gosto dessa palavra –, mas um pouco do
distanciamento necessário para ter um olhar que não fosse apenas o de uma
relação informal. Eu queria me preservar como profissional. Foi um conflito muito
grande que travei comigo mesma, mas acabei aceitando o desafio. Alguma coisa
me chamava para isso. Realmente, nesse momento, me foi aberta outra dimensão,
outra possibilidade de participação. Foi muito difícil, mas, ao mesmo tempo, foi
empolgante estar nessa nova postura, dentro da instituição na qual trabalhava. Ter
uma aproximação muito maior com as pessoas e, simultaneamente, ter o cuidado
de não sair de uma postura profissional. Parece que não, mas foi muito difícil, e tive
que trabalhar isso comigo mesma por muito tempo. Acabei me envolvendo
bastante. Foi desse grupo inicial do Clam que se formou a primeira associação de
pessoas com deficiência do Rio: a Associação dos Deficientes Físicos do Rio de
Janeiro (Adeferj), criada em 1977, antes, portanto, do Ano Internacional das
Pessoas Deficientes (AIPD), que foi em 1981. Fui a primeira presidente da Adeferj,
da qual participavam Paulo Roberto Guimarães Moreira, paraplégico; Luís Carlos
Oliveira de Morais, médico e também paraplégico; o próprio Fidélis, que era piloto e
ao mesmo tempo tinha toda uma
295
formação ligada à Sociologia. Mais tarde, apareceram Rosângela Berman Bieler e
Izabel Maria Loureiro Maior, que também tinham participado do Clam e, depois,
tornaram-se reconhecidas internacionalmente como grandes líderes do movimento.
O José Gomes Blanco (único representante da Coalizão Nacional de
Entidades de Pessoas Deficientes na Comissão Nacional do Ano Internacional das
Pessoas Deficientes) era de outro clube, era fundador da Sociedade dos Amigos
do Deficiente Físico (Sadef), com a qual tínhamos uma ligação muito forte,
principalmente, quando era presidida pelo Blanco. Havia um time de basquete do
Clam que disputava torneios com a Sadef, com o Clube do Otimismo e o Clube
dos Paraplégicos. Essa ligação, feita através do esporte, foi trazida para a Adeferj,
quando ela foi criada.
Apesar da prática do esporte ser um catalisador, a Adeferj tinha objetivos
políticos mesmo. Objetivos esboçados no Clam que foram assumidos pela Adeferj.
Por exemplo, trabalhar com a questão das barreiras arquitetônicas – como a gente
dizia na época – e com a capacitação profissional das pessoas com deficiência.
Sobretudo, começamos a, realmente, fazer um trabalho político para reunir as
várias associações que foram sendo criadas. Havia um movimento de cegos que
tinha lideranças importantes, uma atuação muito forte e um nome enorme do qual
não me lembro mais. Começamos cada organização dando ênfase à questão da
sua área de deficiência. Naquele momento, a gente não queria se agregar a
outros movimentos. A gente queria se caracterizar como o movimento das
pessoas com deficiência física, o movimento das pessoas com deficiência visual.
Ninguém queria muito se misturar, apesar de que, já naquela época, fazíamos
grandes eventos, ainda não nacionais, mas restritos ao Rio. Nessas ocasiões, as
associações todas de luta se uniam e trabalhávamos com os cegos, com os
hansenianos, com a deficiência física, auditiva. Esses eventos que promovíamos
sempre tiveram um caráter amplo, analisando todas as áreas de deficiência. Até
que houve um momento em que nós mesmos começamos a criticar essa
composição. E, cada vez mais, começamos a encaminhar as questões em um
bojo único, no qual trabalharíamos a questão dos vários tipos de deficiências
como uma coisa só. Mas, em 1977, no início de tudo, os movimentos eram
separados em categorias: deficientes físicos, visuais, auditivos, hansenianos que
também, na época, participavam ativamente.
Até que culminou, em 1981, com o Ano Internacional das Pessoas
Deficientes. Aí, sim, houve o grande boom, as organizações se fortaleceram e,
mais adiante, em 1988, essas associações de luta participaram unidas durante a
Assembleia Geral Constituinte. Acho que foi o primeiro movimento importante que
atuou, efetivamente, naquela ocasião, para que a Constituição Federal
contemplasse a questão da deficiência. Foi através do movimento de pessoas
com deficiência que isso aconteceu. Acho que é uma coisa da maior importância,
pois, a partir dali, passamos a ter uma Constituição que atendia, mais
especificamente, aos direitos das pessoas com deficiência. Em função do nosso
movimento, do trabalho dessas associações que se organizaram numa coalizão
nacional, foram criadas leis, em todos os âmbitos, federal, estadual e municipal
em defesa de nossos direitos.
Eu me lembro de ter participado do 1º Congresso Brasileiro de Pessoas
Deficientes, que reuniu 600 participantes, em Recife, em 1981. A grande liderança
local era Messias Tavares. São Paulo também já estava presente no movimento.
Nesses encontros nacionais, reuniam-se as lideranças de vários Estados
brasileiros. Naquela época, a gente era muito mais aventureira do que qualquer
outra coisa. Eu lembro que a gente passava por situações complicadas para
participar de um evento. Você ia de qualquer maneira. Você não tinha nada
previsto. Eu lembro que, uma vez, fui a São Paulo participar de um evento.
Ficamos nos alojamentos dos atletas do Estádio do Pacaembu. Para
296
nós, foi uma barra, ficamos em um alojamento coletivo, homens e mulheres juntos,
e com um banheiro horroroso. Mas não me lembro da ocasião como sendo
desagradável, porque, ao mesmo tempo, havia muita convivência e energia,
principalmente, nesses encontros entre pessoas com vários tipos de deficiência.
Convivíamos e começamos a fazer uma série de brincadeiras em torno disso. Foi
muito interessante porque tirou muito daquela impressão de a deficiência ser uma
coisa séria, pesada. A gente brincava e se divertia. Os cegos diziam, brincando:
“Não aguento mais esse ambiente cheio de cadeirantes que só atrapalham a
passagem.” A gente convivia com as nossas diferenças de uma maneira muito
boa, interessante e, principalmente, enriquecedora. A gente fazia reuniões em
qualquer espaço que nos fosse cedido, até nos quartéis da polícia, por exemplo.
Vários encontros nossos, naquela época, foram realizados onde dava. A Adeferj
tinha uma sala cedida e fazia reuniões, na época, na Sociedade das Bandeirantes.
Depois, mais adiante, usamos um espaço cedido na Casa do Estudante, lá no Rio,
que era um prédio antiquérrimo, caindo aos pedaços. Era uma coisa muito
desagradável. Você não tinha acomodação boa, não tinha banheiro adaptado. A
gente tinha que fazer uso como podia. Mas isso mostra como era a situação na
época, quando não havia nenhuma condição favorável para uma ação nossa. E,
se a gente não fosse dessa maneira, não iria para lugar nenhum.
Apesar de todos os avanços, ainda hoje, você precisa enfrentar muitas
dificuldades. Para muitas coisas, acho que você acaba tendo que ter uma
disposição para ir, é claro. Agora, a gente tem, em nossa defesa, muita coisa já
construída, muitas leis, muitos decretos, que já reforçam essa nossa força, esse
nosso poder. Naquela época, a gente ia porque tinha que ir e porque queria ir. O
desejo era muito forte. Então, enfrentamos viagens de ônibus sem adaptação
nenhuma. Aquele grupo de cadeirantes ou de cegos fretava ou até conseguia
ônibus da prefeitura, o que fosse necessário, para se deslocar. Acho muito
importante mostrar o retrato do Brasil, há 30 ou 40 anos. Não havia nada, nada,
nada. Na década de 1950, por aí, começaram a surgir os primeiros centros de
reabilitação, pois, antes disso, também não havia nada desse tipo. A partir da
década de 1950, começou a se formar o primeiro centro de reabilitação. Foi o
grande boom da especialidade, lá no Rio. A ABBR foi fundada em 1958. A partir
daí, começou um processo mais consistente em torno da reabilitação.
O movimento das pessoas com deficiência deslanchou mesmo, ganhou
uma consistência muito grande, durante 1981. Mas acho que, naquele momento,
ainda não estávamos nos dando conta do quanto o AIPD viria a ser influente para
as organizações do movimento. Acho que os encontros nacionais foram um
grande desafio. Naquela época, para as pessoas com deficiência, deslocar-se a
partir de vários Estados, para fazer um encontro nacional, era verdadeiramente
uma aventura. Você não tinha recurso nenhum ou, quando conseguia algum
recurso, era sempre com muita dificuldade. Mesmo ganhando a passagem de
ônibus ou de avião, a viagem sempre era uma coisa muito difícil para a gente.
Muitas vezes, eu me desloquei, de carro, com um amigo. Naquela época, as
pessoas já começavam a ter carros adaptados. Eu ainda não dirigia. Mas ia com
amigos que dirigiam. Tomávamos essa iniciativa. Era por nossa conta, ninguém
estava pagando nada, nem as associações dispunham de recursos para bancar
absolutamente nada. A gente pedia doações de passagens ou ia e vinha com
dinheiro próprio, do jeito como conseguia.
Os encontros nacionais foram grandes momentos para o movimento.
Havia a participação de organizações de várias regiões do Brasil. Os conflitos
eram emergentes. Havia diferenças muito grandes entre o que os grupos
desejavam e reivindicavam na época. Houve muita guerra entre nós, dentro do
movimento. Mas não era uma guerra destrutiva, alguma coisa que desagregasse o
grupo. Acho que era um momento mesmo de muitos questionamentos,
297
de uma visão de vários ângulos. Os cegos, com uma reivindicação; nós, do
movimento dos deficientes físicos, com outras questões. Era uma briga saudável,
porque confrontava as nossas diversidades. Dessa maneira, encaminhávamos as
questões e obtinha-se um consenso. Mas houve muitos conflitos. Realmente,
aquele foi um momento muito forte e, consequentemente, as pessoas batalharam
muito as suas reivindicações. Acho que foi um momento histórico. Acho que esse
seu trabalho é muito importante por resgatar essa memória. Acho que precisamos
mesmo falar sobre isso. Essa história não vai ser conhecida, se não dermos o
testemunho da nossa participação. Hoje em dia, por exemplo, temos muitas
pessoas representativas do movimento em órgãos públicos, em cargos
importantes. Mesmo aqui, dentro deste congresso, no qual a gente está
trabalhando a questão da Convenção, percebemos a importância, a
representatividade, a evolução do movimento.
Posso estar exagerando, mas atribuo uma força política muito grande ao
movimento. Acho que foi fundamental a nossa presença e representação. Mais do
que isso, acho que foi a nossa voz que prevaleceu. O que consta, hoje, na
legislação ou na Constituição, não foi coisa que a gente recebeu de outros. Não
foram juristas que nos deram de presente. Ou, melhor dizendo, as leis podem ter
sido feitas pelos políticos e até por juristas. Mas foram feitas sob a nossa
orientação, a nossa inspiração, dentro do espírito que a gente colocou. Sempre fui
contra a ideia de um estatuto da pessoa com deficiência e sou cada vez mais
contra. Diante da Convenção, acho que as propostas de criação de um estatuto
não deviam ser mais discutidas. Com a Convenção, acabou, definitivamente,
qualquer influência ou qualquer representatividade que qualquer estatuto pudesse
ter. Além do mais, o grupo que defende a existência de um estatuto não tem a
representatividade que tínhamos no início do movimento. Agora, discute-se um
estatuto que vem de cima para baixo, quando sempre trabalhamos de baixo para
cima, no sentido de conseguir não só uma legislação, mas, até mesmo, órgãos de
governo, como secretarias ou coordenadorias específicas. Acredito que isso
ocorreu em virtude da força do movimento. E não só isso, havia também a enorme
contribuição de pessoas com deficiência que eram também profissionais e
atuavam em suas áreas específicas, como psicólogos, assistentes, arquitetos,
médicos. Eu lembro que, desde cedo, no âmbito da minha profissão, participei de
reuniões de trabalho, no Ministério da Saúde, e criamos, na época, um primeiro
esboço do que seria a Reabilitação Baseada na Comunidade (RBC), que teria
toda uma perspectiva de trabalhar na comunidade, ao invés de trazer as pessoas
todas para um centro de reabilitação, que não comportaria, nem comporta
atualmente, o número de pessoas que realmente precisam de reabilitação.
Fomos criando e nos entranhando nos espaços das políticas públicas.
Não aceito – e tenho sérias dúvidas sobre – alguns dos interesses que perpassam
as pessoas que estão aflitas e desejosas de colocar um estatuto em
funcionamento. Eu – que participei do movimento durante quase quarenta anos –
tenho uma visão de que fomos muito atuantes, conseguimos uma representação
de fato, que nos dá, até hoje, uma força que acho que a gente não pode perder,
tem que cuidar com muito carinho e formar novas lideranças. É preciso promover,
cada vez mais, essa representatividade. Agora, já são outras questões, já
avançamos muito, Mas ainda existem muitos buracos negros que a gente precisa
preencher. Eu me sinto muito orgulhosa de ter participado disso. De ter
contribuído para que, no Brasil, exista, atualmente, uma situação que, realmente,
me parece muito favorável. Quando você vê como está a situação em outros
países da América Latina e dos países africanos de língua portuguesa – que é a
visão que estamos tendo neste congresso – percebemos o quanto estamos à
frente deles em muitas questões.
O Movimento de Vida Independente foi trazido (em 1988) por Rosângela
Berman Bieler, a partir dos centros de vida independente que ela conheceu nos
Estados Unidos.
298
Na época, isso coincidia com um desejo nosso – meu, da Rosângela e da
Sheila Bastos Salgado, que é fisioterapeuta, sem deficiência. Nós três tínhamos,
na época, uma ideia de uma organização, mais prestadora de serviços do que
propriamente uma entidade de luta, de reivindicação política, porque, naquela
época, a gente já tinha avançado bastante nesse aspecto. Foi um momento em
que, no Rio, o movimento de pessoas com deficiência declinou bastante. As
lideranças acabaram se desviando daquele foco central e, até o momento, acho
que o Rio ainda está muito fragmentado em torno de várias lideranças, com
objetivos diferentes. Mas, talvez, agora, (o movimento) surja de outra maneira,
com os conselhos, os centros de vida independentes estaduais. Não sei, vamos
ver. É um momento que ainda estou observando.
Mas, de qualquer modo, quando a Rosângela trouxe essa ideia dos CVIs,
vimos que tinha tudo a ver com o que desejávamos na ocasião. Nós três –
Rosângela, Sheila e eu – fundamos o CVI-Rio e começamos a formar uma equipe
de trabalho, para desenvolver este projeto. Havia serviços que ficaram
caracterizados como específicos do movimento de vida independente, como o
Aconselhamento entre Pares (troca de experiências entre pessoas). O módulo
básico dos CVIs é o fortalecimento da pessoa com deficiência e sua inclusão
social. Acho que tem tudo a ver com o que se discute, atualmente, quando se fala
da pessoa com deficiência como protagonista da sua própria ação. Essa era a
ideia básica do movimento: a pessoa com deficiência precisava ser pessoa antes
de tudo, antes do que ser/ter uma deficiência. Além do mais, ela própria devia ser
o agente da sua própria ação. Ela devia ter um papel ativo em qualquer processo
em que fosse inserida. Era preciso sair de um modelo médico, vigente na época,
em que a pessoa era simplesmente colocada passivamente na ação. Eram os
especialistas que diziam o que era bom para a pessoa com deficiência, de que
maneira ela podia caminhar ou até de que maneira ela tinha que caminhar. Na
época, eu lembro que as pessoas com lesão medular tinham, obrigatoriamente,
que fazer treinamento de marcha, mesmo que se arrastassem durante duas horas
para avançar meio metro de distância. Elas tinham que estar preparadas para a
marcha, qualquer que ela fosse.
Eu via essa intervenção como muito ditatorial e, hoje em dia, vejo e acho
fantástico que a pessoa tenha a opção pela cadeira de rodas logo de cara. Você,
hoje, tem a opção de que, mesmo podendo andar, você use a cadeira por uma
questão de maior conforto e maior mobilidade. Antes, era inadmissível pensar em
uma cadeira de rodas como um elemento mais cômodo e que daria mais
autonomia. A cadeira sempre foi considerada um peso, alguma coisa
extraordinária que ocupa um espaço enorme. Como é que você – como pessoa –
poderia escolher essa situação como sendo a melhor? Hoje em dia, você vê
pessoas que usam prótese, pessoas que preferem não usar. Já está acontecendo
isso. Sempre trabalhei em reabilitação, mas mesmo na época, como psicóloga, via
certos casos em que a instituição estava querendo, por exemplo, protetizar uma
pessoa sem perguntar se aquele era o desejo real dela. Por exemplo, havia uma
menina de 5 ou 6 anos que já andava nos cotos, tinha uma agilidade incrível. Ia
para todo lado, brincava, pulava etc. Quando foi protetizada nos dois membros,
ela ficou parada, não se mexia, ficou como um robô. Começou a ficar triste.
Questionamos se, naquele caso em particular, não seria melhor deixar as próteses
para mais tarde, quando ela fosse adolescente e, se quisesse, poderia retomar as
próteses, como também poderia não retomar.
Essa liberdade de poder fazer suas opções em torno do que quer para o
seu corpo é um ganho fundamental. O CVI-Rio trabalha muito essas questões
particulares, dando a liberdade para a pessoa fazer suas próprias opções e
escolher seu caminho. Não somos nós que vamos dizer o que é melhor para a
pessoa. Ela é que tem que se encontrar, tem que se fortalecer naquilo que ela é,
tem que ter consciência das suas próprias limitações, deficiências etc. A pessoa
com deficiência precisa ter instrumentos que favoreçam sua vida prática de todo
299
dia. Acho que é uma visão muito nova, muito diferente. Acho que o básico, agora,
é trabalhar em torno disso. A partir de 1988, os movimentos políticos, lá no Rio,
começaram a decrescer. Nós – que tínhamos criado uma associação muito forte
que era a Adeferj – nos transferimos para o CVI-Rio e nos focamos em torno
dessa nova organização. Ela deu e dá muito trabalho para conseguir sobreviver.
Não é fácil manter uma organização em padrões razoáveis de ação.
Acho que as conquistas que a gente obteve estão à altura da nossa luta.
E acho até que – com essa nossa presença – conseguimos adesão de pessoas
que também foram importantíssimas fora do movimento. Não fomos nós, sozinhos,
que construímos isso. Mas acho que a nossa presença foi importante para mudar
a cabeça de legisladores, de órgãos públicos, de governos, para favorecer
políticas públicas que respeitem as necessidades das pessoas com deficiência.
Precisamos estar ainda vigilantes, principalmente agora, para que a Convenção –
que tem status de preceito constitucional – seja respeitada, pois ela contempla
realmente essas novas ideias, essa nova postura, essa nova visão em relação à
pessoa com deficiência. Acho que o movimento ainda tem um papel. Temos
atuado, no egislativo, no executivo. A Convenção foi elaborada, aprovada na ONU
e ratificada pelo governo brasileiro a partir de uma atuação consistente da
Coordenadoria Nacional para a Integração da Pessoa Portadora de Deficiência
(Corde) e do Conselho Nacional dos Direitos da Pessoa Portadora de Deficiência
(Conade). Existem pessoas com deficiência à frente dos principais órgãos
relativos a esse segmento social. É muito importante não perder essa posição que
a gente ocupa, e, cada vez mais, incluir profissionais com deficiências em todas as
áreas, pois acho que a questão da deficiência perpassa todas as áreas da
atividade humana: saúde, educação, transporte, lazer, esporte, trabalho etc. E
todas elas precisam considerar as questões das pessoas com deficiência.
Dentro do movimento do qual participo, é uma preocupação constante a
continuidade, a formação de novas lideranças. A gente tem que tratar dessa
questão de uma maneira muito séria e muito objetiva. Mas, ao mesmo tempo, vejo
novas lideranças se agregando ao movimento e isso tem acontecido de uma
maneira espontânea. As pessoas se sentem mobilizadas, atingidas por uma ação
que consideram séria, consistente, e a adesão é espontânea. Hoje, temos a
companhia de várias pessoas que se somam ao movimento e que são pessoas de
outra geração, com outra vivência, com outra postura. E isso é importantíssimo
para a renovação do movimento. E é nossa responsabilidade cuidar para que
novos líderes assumam nosso lugar.
O Movimento de Vida Independente representou, no Brasil, uma coisa
muito nova. Existem, atualmente, quase 20 CVIs atuantes. O CVI-Brasil é um
conselho formado pelos CVIs brasileiros, que orienta as políticas e a composição
dos CVIs. Por ter essa representatividade em nível nacional, o representante do
CVI-Brasil pode ser eleito para a diretoria do Conade, como aconteceu com o
Alexandre Baroni, originário do CVI-Maringá e atual presidente do CVI-Brasil.
O Movimento de Vida Independente trouxe ao Brasil uma nova maneira
de encarar a questão da deficiência e essa visão precisa ser cuidada por nós, que
somos do movimento, pois, hoje, muitas pessoas que sequer participam de um
CVI fazem parte da lista virtual de discussão do Movimento de Vida Independente.
Os CVIs dos Estados Unidos são autônomos, isolados, não formam essa
composição de unir os Estados. Aqui, apesar de ser um movimento ainda em
organização, que não está totalmente consolidado, temos o CVI-Brasil. Por isso,
vejo um futuro para o movimento. Espero que permaneça para propor projetos e
fiscalizar as políticas públicas, que são atividades muito próprias do nosso
movimento.
300
Imagem. Jornal Correio Braziliense, Brasília, de 20 de abril de 1980. Contém foto, tipo retrato, em preto e branco de mulher, com legenda: “Maria Luiza, da
Associação: pela reabilitação social”. (...) Deficientes vão a Figueiredo. Eles vão pedir rebaixamento das calçadas e espaço nos ônibus para as cadeiras de rodas.
Maria Luiza fala dos objetivos da Associação e, entre eles, o destaque é para a formação educacional ou profissional, com a possibilidade de uma colocação no mercado
de trabalho. “Temos muitos planos nesse sentido. Aqui, no Sarah, nós temos um programa para isso. Eu, por exemplo, era bibliotecária em Salvador, minha terra. Então,
nada mais justo que eu continue exercendo essa função. Temos aqui sapateiros, recepcionistas, vamos ter telefonistas, etc. O nosso trabalho é o de encaminhar o
deficiente para as empresas. O deficiente físico é capaz de exercer qualquer função, desde que queira”. O vice presidente da ADF-Brasília, Benício Tavares da Cunha,
diz que há necessidade de uma lei que obrigue empresas reservar 10% de seu quadro de funcionários para deficientes. “Isso é muito importante e necessário. É uma
forma de termos emprego.”
Outra função da Associação é ajudar aos que necessitam de tratamento médico e aparelho locomotor, “Sempre recebemos pedidos de internamento, de tratamento
fisioterápico e estamos fazendo tudo para encontrar vagas para esses necessitados. Quanto à parte de aparelho locomotor, nós pedimos que sejam exigidos menos
documentos, porque a burocracia para o recebimento desses aparelhos é muito grande e demora muito tempo.” Para facilitar o recebimento dos aparelhos, a ADFBrasília está solicitando ao Ministro da Previdência Social, Jair Soares, que instale na sede do Sarah Kubitschek, um pequeno posto especificamente para esse fim.”
Assim, o deficiente não tem que ficar de um lado para o outro mexendo com papéis”.
Outra preocupação da Associação é a relação família-deficiente. Nilton Pelegrini, também membro da Associação, diz que, às vezes, uma família pode destruir um
paciente por não aceitá-lo com naturalidade. “Quando um homem fica com qualquer tipo de deficiência, a família o trata como um aleijado, o que não é verdade. É
preciso um trabalho junto às famílias para fazer com que elas entendam que o deficiente físico é uma pessoa capaz.
REIVINDICAÇÕES
Entre as reivindicações que a Associação dos Deficientes Físicos de Brasília está fazendo ao governo está o rebaixamento nas calçadas, para que eles possam subir, com
suas cadeiras de rodas, sem precisar pedir ajuda. Benício Tavares diz que esse é um dos principais pontos de solicitação. “É uma barreira arquitetônica e, como essa,
existem diversas outras, mas vamos primeiro a essa. Você já viu o quanto é difícil, para não dizer impossível, uma pessoa, em cadeira de rodas, subir uma calçada? Pois
é, então porque não rebaixar o piso? Isso nos facilitaria muito.
Outra coisa necessária são as rampas nos edifícios. Não podemos subir escadas com as cadeiras e uma rampa dá para subir. Existe uma rampa no Conjunto Nacional,
mas é impraticável ir até o segundo andar da rodoviária. Ir ao aeroporto. Ir a um cinema ou teatro, também é uma dificuldade porque a maioria deles tem escadas. Os
restaurantes são muito apertados para as cadeiras, os elevadores são pequenos, as portas são estreitas, enfim é uma série de coisas, de barreiras, que nos impedem de
circular com mais mobilidade.”
O grande problema, para Benício, são os ônibus. Ele vai pedir, em nome da Associação, ao Secretário de Serviços Públicos, José Geraldo Maciel, que, no plano de
melhoria de transportes coletivos, dê atenção aos deficientes. “Uma pessoas com deficiências, que mora na cidade-satélite e tem um trabalho aqui no Plano Piloto, tem
uma imensa dificuldade em relação ao transporte. Simplesmente, não há lugar no ônibus para a cadeira de rodas e, para entrar, a dificuldade também aparece. Esses
problemas têm que ser vistos pelos governantes.”
REUNIÃO
De 17 a 23 de outubro, haverá, em Brasília, uma reunião de todas as associações estaduais para a formação da Associação Nacional dos Deficientes Físicos. Durante a
reunião, será tirado um documentos com todas as reivindicações dos deficientes, para ser encaminhado ao Presidente da República. “Na mesma ocasião, teremos
também os VI Jogos Nacionais sobre Cadeira de Rodas. Serão disputadas as seguintes modalidades: corrida, vôlei, atletismo, arco e flecha, tiro ao alvo, tênis de mesa e
sinuca. Para esse evento, nós esperamos cerca de 1500 pacientes.”
Diversos grupos estão atuando nas cidades-satélites, em conjunto com a ADF-Brasília. Benício diz que os deficientes devem procurar os coordenadores dos grupos para
uma maior reintegração. Os coordenadores e locais dos grupos são: QMN 4, conjunto F. casa 20, Ceilândia: coordenadora – Luiza: QNM 34, conj. F. casa 17. Guará II,
coordenador Jaime e Quadra 1. Conj. G casa 425. Gama. Coordenador Damião.
Segundo Benício, o próximo programa da ADF-Brasília é a formação de cursos como os de datilografia, Inglês, recepção e computação.
Legenda: Correio Braziliense, 20 de abril de 1980, Brasília/DF. Acervo digital Memorial da Inclusão. Doação Maria Luiza Costa Câmera.
301
Luiz Baggio Neto
Imagem. Retrato colorido de Luiz Baggio Neto. Contêm epígrafe: “O Ano Internacional das Pessoas Deficientes (AIPD) foi como um parto para a personalidade da
pessoa com deficiência, cujos direitos básicos devem ser assegurados e cuja autonomia e identidade devem ser reconhecidas. Quem já estava discutindo essas questões
teve a oportunidade de ampliar o debate com outras pessoas.”
ive pólio em 1957, quando ainda não havia a vacina Salk (desenvolvida em
1955), nem a Sabin (desenvolvida em 1962). A pólio foi muito severa comigo.
Tive uma tetraparesia (incapacidade parcial de realizar movimentos voluntários
com todos os membros do corpo) e passei muitos meses no Hospital das Clínicas
(HC), no chamado “pulmão de aço”, um aparelho que fazia uma respiração forçada.
Meus pais, evidentemente, tiveram uma atitude muito positiva que foi importante
para minha recuperação. Logo que saí da fase aguda da pólio e deixei o hospital,
eles decidiram partir para a reabilitação. Nos primeiros anos, um fisioterapeuta do
próprio HC fazia os exercícios na minha casa. Depois, entrei para a AACD
(Associação de Assistência à Criança Deficiente) que, naquela época, era o único
centro de reabilitação que existia, embora incipiente. Lá cursei o primário e fiz
reabilitação até os 20 anos de idade.
Como todo sequelado de pólio, passei por seis ou sete cirurgias. Todas
extremamente traumáticas porque comprometeram períodos muito importantes da
minha vida. Aos 16 anos, fiz uma cirurgia de coluna que me deixou um ano e meio
engessado, deitado na cama. Sem qualquer outra possibilidade, meu único
relacionamento com o mundo externo era feito através das pessoas que vinham me
ver no meu quarto. Foi uma fase cheia de problemas, pois é na adolescência que
acontecem uma série de experiências e vivências importantes para o amadurecimento.
Evidentemente, em algum momento da vida, todas as pessoas deficientes
passam por situações emblemáticas de gravíssima discriminação. Mas, de forma
geral, não tive falta de apoio, amizade, nem sofri discriminação por parte das
pessoas próximas a mim. Não me casei. Brinco dizendo que escapei por duas
vezes! Não sei se foi bom ou ruim. A gente nunca sabe avaliar essas coisas. Mas
não me casei, nem tive filhos. Acho que isso não foi um grande problema.
A partir do ginásio, estudei em escolas particulares da rede regular de
ensino. Quando fazia o terceiro colegial, no Objetivo, na Avenida Paulista, apesar
dos apelos de meu pai ao diretor, durante um ano inteiro, todos os dias, tive de subir
e descer cerca de 20 degraus, carregado por meus amigos e colegas de classe,
para ter acesso a minha sala de aula. Às vezes, era divertido, em outras, era um
sufoco. Quebrei a cadeira de rodas duas vezes e vivi momentos de pânico.
Obviamente, desconsideravam meu direito de estar ali. Hoje, se fizessem isso, era
fácil, era só chamar a polícia ou o Ministério Público.
Eu me formei em Letras, pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências
Humanas (FFLCH), da Universidade de São Paulo (USP). Fiz boa parte do curso
onde hoje é o Conjunto Residencial, o Crusp. Nesse prédio, os elevadores só param
num nível intermediário entre um andar e outro. Portanto, era inevitável ser
carregado para subir ou descer escadas. Na ECA (Escola de Comunicações e
Artes, USP), tive professores que não facilitaram em nada a minha vida. Lucila
Bernadete, que ministrava o curso optativo sobre Literatura e Cinema, disse-me que
não havia possibilidade de remanejar as aulas para o andar térreo. Acabei
desistindo sem terminar o curso porque não aguentava mais esperar duas horas
para reunirem seguranças do câmpus suficientes para me subir ou descer. Entrava
na aula sempre atrasado e saía bem mais tarde do
T
302
que todo mundo. Por ironia do destino, após alguns anos, encontrei a Lucila numa
reunião de deficientes. Tinha sofrido um acidente e ficado paraplégica. Ironia muito
triste porque ela era uma pessoa intelectualmente maravilhosa e, como pessoa, se
tornou minha amiga também. Apesar de ter criado o USP Legal e abrigado a rede
Saci75, esses são percalços que as pessoas com deficiência ainda vivenciam na
Universidade de São Paulo.
Em 1979, criei uma editora e entrei para o mundo dos livros. Mais tarde,
trabalhei para editoras como Ática, Brasiliense e Difel. Na década de 1980, para um
cara como eu, que usa metade de um braço, trabalhar era considerado um absurdo.
No entanto, a partir de um convite que jamais imaginei receber de uma pessoa
muito amiga, trabalhei como funcionário na Editora Clube do Livro. Dei minha
contribuição, até que a empresa teve outro rumo. Em 1992, depois de um período
dedicado ao movimento dos deficientes, voltei a montar uma editora, a Nova
Alexandria, da qual me desliguei em 2004. De lá para cá, tenho me dedicado
exclusivamente à atuação na Associação Brasileira da Síndrome Pós-Pólio.
Comecei no movimento de pessoas deficientes em 1981, em pleno Ano
Internacional das Pessoas Deficientes (AIPD), a partir de um convite feito por meu
amigo Gilberto Frachetta. Eu gosto de brincar dizendo que, na verdade, ele é – ao
mesmo tempo – meu melhor amigo e pior inimigo. O melhor amigo porque é um
grande companheiro e pior inimigo porque me botou naquela jogada toda.
Eu era estudante da USP, com ideais democráticos já consolidados, aquela
coisa de esquerda, trotskista, leninista, revolucionária, e acreditava, como acredito
até hoje, que era fundamental construir uma sociedade mais justa. Mas, em relação
à deficiência, até então, só tinham me convidado para participar de clubinhos
destinados à recreação e ao jogo de cartas. Para mim, isso era insuportável. Então,
quando o Gilberto me convidou para participar de um grupo de pessoas deficientes,
parti para cima dele com quatro pedras na mão. Ele me explicou os objetivos do
Movimento pelos Direitos das Pessoas Deficientes (MDPD), criado no bojo da
abertura democrática, e topei na hora.
Gilberto tinha um carro adaptado e vinha me buscar em casa para
participar das reuniões mensais do MDPD. Descobri um monte de gente deficiente
brigando por questões fundamentais, como acessibilidade e transporte, coisas
básicas que não eram atendidas. A gente gritava, brigava, fazia abaixo-assinados e
moções. Formavam-se grupos para fazer os trabalhos e redigir as reivindicações.
Aquilo me entusiasmou, eu me engajei e nunca me afastei totalmente, a não ser nos
períodos em que estive profissionalmente muito absorvido.
Em São Paulo as lideranças eram Cândido Pinto de Melo; Rui Bianchi do
Nascimento; Lia Crespo; Ana Rita de Paula; Gilberto Frachetta; Leila Bernaba Jorge;
Maria de Lourdes Guarda; Sérgio Lisboa; José Roberto Amorim; Evaldo Doin e muitos
outros. Havia também o Messias Tavares, em Recife; o Robinson de Carvalho, em
Ourinhos; e o Thomas Frist, da Sorri-Bauru. Havia aquela coisa de entidade “de”
deficientes e “para” deficientes. E as “para” eram tratadas com um pouco de
desconfiança: “Ah, você é ‘para’... O que está querendo aqui?” Havia também os
cariocas, da ABBR (Associação Brasileira Beneficente de Reabilitação), muito
engajados, e um pessoal do Rio Grande do Sul. A nacionalização do movimento era
muito difícil, pois claro, não havia, como hoje, internet, nem Skype. Tudo era na base
do telefone e do correio. O telefonema interurbano era caro e a carta demorava muito.
Não era fácil, mas todo mundo, ao seu modo, estava tentando construir uma
plataforma básica de reivindicações para dar o salto. Muitas dessas pessoas já
morreram. Foram fundamentais
75
. A Rede Saci disponibiliza, em seu site, artigos, reportagens e análises que fornecem informações para
estimular a inclusão social e digital, a melhoria da qualidade de vida e o exercício da cidadania das pessoas com
deficiência..
303
para o que somos hoje e para o que o movimento é atualmente. Com o
desaparecimento delas, perdeu-se também parte da história, lamentavelmente.
Entrei no movimento no começo de 1981 e, em outubro, já estava no 1º
Congresso Brasileiro de Pessoas Deficientes, que reuniu 600 participantes em Recife.
Aquilo foi realmente uma vertigem, uma coisa alucinante. Constatamos in loco
problemas agudos como a pobreza e a discriminação dentro das famílias. As pessoas
que mais deveriam dar apoio eram as que mais discriminavam. Isso era, até então,
uma coisa desconhecida para mim. Em Recife, essa realidade se mostrou de forma
muito cruel. Havia, portanto, a necessidade de criar um movimento muito forte.
Naturalmente, por causa do AIPD, alguém da Coseas (Coordenadoria de
Assistência Social da USP), da USP, resolveu fazer um censo das pessoas com
deficiência na universidade. Foi uma coisa absolutamente primária. Mandavam um
questionário para que a secretária de cada unidade, quando encontrasse alguém
mancando ou em cadeira de rodas, perguntasse se a pessoa era deficiente, se era
homem ou mulher etc. Evidentemente, era uma pesquisa com um recorte ridículo.
Na época, devia haver – em todo o campus da Cidade Universitária – uns sete ou
oito estudantes com deficiência. Mas essa pesquisa foi motivação suficiente para
que eu, já esquentado pelos caldeirões do movimento, começasse a esboçar um
grupo de pessoas com deficiência na universidade. Criamos o núcleo de estudantes
da USP e acabamos tomando posse de uma sala que, por iniciativa da Coseas,
deveria ter alguns toca-fitas cassete, imagine, para os cegos ouvirem os livros
gravados. O local nunca funcionou desse jeito. Por um lado, não havia quem lesse e
gravasse os livros e, por outro, os cegos não precisavam daquilo. Mas, sim, de um
ambiente arquitetônico mais fácil para se locomover e de acesso a publicações em
braile.
Começamos a trabalhar com a Prefeitura da Cidade Universitária, a Coseas e
o Fundusp (Fundo de Construção da Universidade de São Paulo), para garantir
acessibilidade nos prédios. Conseguimos fazer algumas intervenções de imediato.
Mas, outras foram incorporadas às plantas das futuras edificações do câmpus. O
elevador do prédio da Letras é um exemplo. Se, hoje, essa unidade tem relativa
acessibilidade às pessoas com deficiência, isso se deve àquele grupo guerrilheiro.
Dentre os participantes mais ativos do núcleo da USP, lembro-me do hoje promotor
Ricardo Fonseca e do Pedro Aquino. Havia também a Cristina Correia (Nia) e o
Admon, estudante de jornalismo, que já não estão vivos. Havia outros que começavam
a participar, mas logo desistiam. Havia pessoas com muita vergonha de ser deficiente.
Na época, quando um deficiente entrava na USP, era como se tivesse deixado a
deficiência para trás, durante o vestibular. Tinha virado anjo e dizia para si mesmo:
“Certo, cheguei até aqui, não sou mais deficiente, nada me segura.” Eu me lembro,
claramente, de ter procurado algumas pessoas para saber das condições de acesso.
Elas negavam ter qualquer dificuldade. Quando eu insistia: “Mas você não tem
problema nenhum para andar na USP usando muletas e cadeira de rodas?” O cara, já
indo embora, dizia: “Não tenho nenhum problema, não!”. Evidentemente, considerava
até uma ofensa ser questionado.
Entre 1986 e 1989, apresentei, na Rádio USP FM, um programa semanal
sobre pessoas com deficiência. Rui Bianchi do Nascimento, meu amigo e também
militante do movimento, era o coprodutor e, muitas vezes, me substituiu. Eu
acreditava que a gente não poderia tratar da questão da pessoa com deficiência,
naquele programa, naquele momento, de forma rígida, acadêmica. Caso contrário,
correríamos o risco de aprofundar a antipatia e a separação entre nós e a sociedade.
Por isso, o programa era muito irreverente, irônico e brincalhão. Eu me lembro do
nosso programa de abertura, cuja vinheta inicial era a música Inútil, do Ultraje a Rigor,
que dizia “A gente não sabemos votar, a gente não sabemos trabalhar, a gente não
sabemos...” Era um programa muito legal! Havia um público fiel. Mas também recebi
uma ou duas cartas de deficientes visuais revoltados, porque, no entender deles, eu
estava tratando com deboche a questão das pessoas com deficiência. Acontece que
eu não temia dizer palavras como “aleijado”’, “chumbado” etc., pois era assim que
grande parte da população conhecia e se referia às pessoas com deficiência. Hoje,
vejo que parecia
304
mesmo um programa estranho. Amadureci muito com essa experiência. Do ponto de
vista pessoal, foi um ganho fabuloso. Pude refletir muito sobre minhas ideias, minha
participação no movimento de pessoas com deficiência e os rumos que ele deveria
ter. Foi quando senti que a gente precisava consolidar um diálogo muito mais estreito
com o Estado, principalmente, em função da Constituição Federal que havia acabado
de ser promulgada. Além disso, deveríamos manter a atitude meio guerrilheira, que,
atualmente, em grande parte, não existe mais.
Foi muito produtiva essa época heroica do movimento. Participamos das
discussões da Associação Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), para elaborar a
primeira norma sobre acessibilidade, a NBR 9050. Na ocasião, tínhamos poucos
elementos para estruturar a questão da acessibilidade e do transporte no Brasil.
Como parâmetro, tínhamos apenas algumas normas regionais dos Estados Unidos.
Não havia ainda a Americans with Disability Act (ADA)76, que é uma lei que nós
deveríamos ter também aqui.
Um dos momentos dos quais participei intensamente ocorreu quando
começamos a dialogar com a Companhia do Metropolitano de São Paulo.
Estivemos conversando com um sujeito que se orgulhava de ter a carteira
profissional número 2 do Metrô. Numa de nossas assembleias, com 30 ou 40
pessoas, ele afirmou categoricamente que a companhia não previa a presença de
pessoas com deficiência em estações e trens, porque alguém com cadeira de rodas
ocuparia o espaço de duas ou três pessoas em pé. Além disso, para ele, o
embarque e o desembarque dessa pessoa seriam, naturalmente, muito lentos, e os
atrasos iriam denegrir a imagem de eficiência do Metrô. Obviamente, o cara saiu de
lá tomando pedradas de todo mundo. Continuamos a cobrar soluções do Metrô e
acabamos tendo acesso às plantas da linha Norte-Sul, que é a mais problemática.
Descobrimos que um dos arquitetos do Metrô, Roberto MacFadden, que foi
presidente da Emurb (Empresa Municipal de Urbanização), tinha previsto poços de
elevadores em várias estações, sobretudo na linha Leste-Oeste. Quando a direção
do Metrô se recusou a implantar os equipamentos, ele sugeriu, então, que os
espaços projetados fossem usados para instalar monta-cargas, um tipo de elevador
de carga. Portanto, se não soterraram os buracos, ainda devem estar lá. Esse foi o
tipo de embate e surpresa que tivemos.
Lembro-me de que, num 21 de setembro, data escolhida pelo movimento
para ser o Dia Nacional de Luta das Pessoas Deficientes, a gente fez um bloqueio
na estação Sé do Metrô. Não havia seguranças suficientes no local para ajudar a
transportar, ao mesmo tempo, 30 cadeiras de rodas pelas escadarias. Todos os
seguranças da companhia foram deslocados para nos atender. O Metrô parou,
literalmente. Para piorar a imagem da companhia, houve um acidente com uma
moça deficiente.
Os debates para incluir nossas reivindicações durante a Constituinte foram
fundamentais também. Embora sem uma participação mais objetiva, pois não
estivemos com os parlamentares, pudemos levar, através dos partidos e dos
parlamentares próximos a nós, algumas das questões. E, sobretudo, fizemos um
barulho na imprensa, para que fossem incluídas.
Com a Constituição de 1988, a gente deu um salto gigantesco. Quer dizer,
do Saara que era o Brasil no que diz respeito aos deficientes, saltamos para o
reconhecimento de alguns direitos básicos. Depois da Constituição, vem o susto da
sociedade: “Puxa, mas esses caras têm mesmo que andar de ônibus? Que
absurdo! Como é que faz? Põe elevador? Abaixa o ônibus?” Essa discussão
acabou se tornando bizantina por culpa nossa também. Hoje, a gente não tem
condições melhores por falta de vergonha no país.
76
. A lei federal Americans with Disabilities Act (ADA) foi assinada em 26 de julho de 1990, pelo presidente
George H. W. Bush. A ADA representa – para as pessoas com deficiência – o mesmo que a lei federal que aboliu
a discriminação e a segregação racial, de 1964, significa para os afro-americanos.
305
Eu fui eleito duas vezes presidente do Conselho Municipal da Pessoa
Deficiente (CMPD), criado na gestão da prefeita Luiza Erundina, pela Lei nº 11.315, de
21 de dezembro de 1992. O Gilberto Frachetta tinha sido o primeiro presidente.
Embora fosse um governo bastante democrático e aberto, que criou conselhos de
participação popular para tratar de políticas públicas, nada era obtido sem luta. A gente
almoçava com o secretário e batia nele à tarde. De manhã, a gente ia para a imprensa
acusar a CMTC (Companhia Municipal de Transportes Coletivos) de não estabelecer
diálogo conosco e, no dia seguinte, a companhia tinha preparado um ônibus para
inaugurarmos.
A Cida Fukai, a Vera Dana e a Silvana Cambiaghi tiveram participação
fundamental no grupo de barreiras arquitetônicas do CMPD. Essas pessoas
construíram, junto com a Secretaria de Habitação, um Código de Edificações da
cidade de São Paulo, absolutamente, acessível. Com o apoio da então secretária da
Habitação, Emília Maricato, foi possível fazer, de fato, uma base de acessibilidade,
de inclusão da pessoa com deficiência na cidade. São Paulo seria um paraíso se
seguisse e aprimorasse realmente esse código, sem falcatruas e sem corrupção.
Houve outras iniciativas também muito positivas. Por exemplo, mesmo sem
uma legislação adequada, o Contru (Departamento de Controle do Uso de Imóveis)
nos ajudava a cobrar acessibilidade nos cinemas restaurantes e outras áreas de uso
público. Em São Paulo, o primeiro local a ser projetado com acessibilidade foi o
Cine Astor, inaugurado em 1961, no edifício Conjunto Nacional, na Avenida
Paulista, de saudosa memória. O Contru não fez outra coisa a não ser uma grande
chantagem com eles. Ameaçou aplicar uma multa lascada se não colocassem seis
áreas para cadeira de rodas, uma rampa, sanitário acessível etc. Com a CMTC,
chegamos a estabelecer as normas básicas de acessibilidade e a criar um projeto
para todos os ônibus, Mas com a extinção “malufiana”77, da CMTC, a coisa mudou e
a briga está aí até hoje. Embora houvesse muitos embates, naquela época, o
CMPD foi bastante eficaz. Mas em essência, os conselhos dão o seu recado. Não
estou frequentando conselhos, nem sei quem que vai lá.
Desde o começo até hoje, as reivindicações continuam as mesmas que
eram e continuam sendo básicas: educação inclusiva (que eu gostaria que fosse
menos teórica e mais objetiva do que é hoje); acessibilidade irrestrita, ou seja, que o
desenho universal seja uma determinação para tudo. Saúde para todos e que, de
fato, o Estado assuma a questão da reabilitação como algo próprio dele, e não algo
contratado, mediado por outros interesses que não os da própria população, como
até hoje tem sido feito. Transporte acessível. Sem essa história de 1%, 10%, 5% da
frota. Todos os ônibus e todas as estações do Metrô têm que ser acessíveis. Tem
que haver uma frota de táxi acessível. No Exterior, pode-se perceber que dignidade
não é uma coisa que se empresta. Mas, sim, algo que a sociedade reconhece. No
Brasil, não tem dignidade para as pessoas de um modo geral, tanto para as com
deficiência quanto para as não deficientes. Não existe dignidade, o povo brasileiro
não é digno. Ele é uma vítima da sua história.
Estive recentemente em Miami e vi duas coisas que me deixaram
absolutamente comovido. A primeira é que todos os ônibus são acessíveis. O
ônibus para, abaixa, todo mundo espera você embarcar e travar a cadeira de rodas.
Dentro do ônibus, uma voz diz “parada requerida”, “esquina da rua tal com a rua tal”.
A mesma mensagem também aparece por escrito. Quando para no ponto, o ônibus
também diz: “Número 23, vai para o Boulevard não sei o quê”. Ou seja,
acessibilidade total no transporte público. Isso é cidadania. A segunda coisa que me
comoveu muito foi ver que, em todos os ônibus, há um embleminha, em cima de um
banco, dizendo: “Este banco é dedicado a Rosa Parks”, a primeira negra a se
recusar a ceder seu lugar no ônibus, em 1º de dezembro de 1955, na cidade de
Montgomery, Estado do Alabama, para um passageiro branco, dando início ao fim
de todo o sistema racista norte-americano.
77
. Paulo Maluf foi prefeito de São Paulo entre 1993-1997.
306
No Brasil, os ônibus têm simbolozinhos em cima dos bancos preferenciais
para idosos, grávidas e aleijados, ou seja, os caras que estão em “desvantagem”.
Só os ferrados têm acesso àquele troço. É muito diferente de ter conquistado o
reconhecimento à cidadania, que precisamos alcançar não apenas como
deficientes, Mas também como brasileiros.
Há também outras questões fundamentais, como o direito ao lazer, ao
entretenimento, à sexualidade, ao amor. Existem muitos deficientes vivendo
situações de discriminação absoluta. Nunca há a imagem de uma pessoa deficiente
associada a uma relação amorosa, na publicidade, por exemplo. Sempre é o herói
superando coisas absurdas, uma tarefa gigantesca, maior do que ele, ou é uma
criancinha simpática, com uma síndrome de Down. Isso só para falar em mídia. Mas
nunca o amor está associado, com naturalidade, à pessoa com deficiência.
A pessoa com deficiência ainda é vista como incapaz. Há medidas e leis
para atender suas necessidades. Mas nunca a pessoa com deficiência é incluída no
debate. Nunca ela é vista com autodeterminação. Assim como os índios são
imbecis, os velhos são caducos, os deficientes são incapazes. Então, é preciso
“tomar conta” deles e oferecer algo benéfico, “um conforto, para que a vida não seja
tão dura e a cruzada não seja tão dolorosa...”
Quando, a partir dos anos 1990, começaram a falar de “inclusão social’’,
perguntei: “Mas vocês estão falando de participação plena e igualdade?” As
pessoas respondiam: “Nãããããããooo! Segundo Fulano de Tal, na inclusão, a
sociedade deve se modificar para atender às necessidades dos deficientes e não o
contrário.”
Bem, “Participação Plena e Igualdade” era o lema do Ano Internacional e
se reflete perfeitamente bem no movimento pela inclusão. Mas talvez, eu esteja
dando uma de ignorante que desconhece as sutilezas do emprego da expressão. É
bonita a palavra “inclusão”. Mas, aqui, sentado na minha cadeira, digo que o papo é
o mesmo.
Enfim, nossas reivindicações sempre foram e continuam sendo acesso a
tudo o que é de direito de um indivíduo que vive em sociedade e tem dignidade. Acho
que as conquistas não estão à altura das reivindicações e da luta que foi
empreendida. A gente vive um problema fundamental na sociedade brasileira. Não sei
se decorrente de nossa origem latina ou se tem outra causa. Talvez seja essa
maldição do cristianismo, que é profundo na nossa cultura. Talvez, se fôssemos mais
helênicos, seríamos mais felizes. Mas acredito que somente quando a questão da
tutela cair por terra, poderemos, de fato, conquistar nossa autonomia e seremos vistos
como pares e não párias.
Apesar disso, evidentemente, é impossível não ter melhorado nada de 1980
para cá. Melhorou, sim. As pessoas começam a ver, pelo menos, que existem direitos
assegurados. Hoje, por exemplo, há vagas de estacionamento reservadas para
deficientes. Quem não respeita já é considerado “malvado”. A criança não vai muito
bem na escola, mas tem a rampinha. Essas coisas foram conquistas. A gente não
pode radicalizar e dizer que a luta não adiantou nada. Adiantou, sim. Houve
conquistas importantes. As pessoas estão mais presentes nos ambientes. Podemos
notar isso. Demorei a comprar uma cadeira de rodas motorizada porque, até há
pouco tempo, ela seria inútil, não havia acesso aos lugares mais comuns. Hoje,
restaurantes, hotéis e cinemas já têm que ter, obrigatoriamente, a acessibilidade
garantida. Naturalmente, não adianta ter acessibilidade na Avenida Paulista se, lá no
Jardim Umarizal, Zona Sul, de São Paulo, há um centro de saúde, cujo médico nem
desconfia do que seja uma poliomielite, por exemplo. Ainda são necessários centros
de reabilitação públicos, onde as pessoas com deficiência possam ser reabilitadas o
mais próximo possível da sua casa. Muitas coisas ainda precisam ser conquistadas,
Mas muita coisa foi feita. Sem dúvida nenhuma, o ambiente está um pouco mais
favorável. Já não é estranho você chegar e dizer: “Olha, cara, aqui está faltando uma
rampa”, e a pessoa perceber que está contra a corrente.
Eu me sinto privilegiado de hoje estar dirigindo uma organização como a
Associação Brasileira de Síndrome Pós-poliomielite. É importante continuar lutando
307
porque a pólio é uma doença erradicada em muitos países, mas nós ainda estamos
aqui, vivos e sofrendo as consequências do agravamento das sequelas da
poliomielite e das complicações inerentes ao passar do tempo, à velhice. Vejo que
as pessoas continuam interessadas e atuantes. A sociedade está menos lenta para
responder às inquietações dos deficientes. Os nossos parlamentares ouvem o que
querem ouvir, evidentemente. Mas de um modo geral, sinto que há mais
permeabilidade na aproximação com o Estado. No que diz respeito à questão da
Síndrome Pós-pólio – uma novidade no Brasil, assim como em muitas partes do
mundo –, conseguimos estabelecer alguns diálogos, por exemplo, com a
Previdência Social. O Ministério Público é atuante e nos ajuda muito no momento
em que a coisa endurece. Temos algum acesso à Secretaria de Saúde, apesar dos
famosos “grupos de trabalho”, que não passam de formas de não fazer alguma
coisa. Mesmo assim, percebe-se que há a possibilidade de diálogo e que a pressão
sobre a sociedade tem um resultado mais imediato. As pessoas, talvez, não
percebam, Mas existe uma abertura maior. Talvez, a gente tenha que acertar um
pouco o foco, centralizar as forças e atuar com mais impacto.
Da década de 1990 para cá, o movimento enfraqueceu um pouco, no
Brasil. A preparação de novos líderes sempre foi um problema. Não foram criados
parâmetros de atuação para as gerações seguintes. Mas poucas pessoas já eram
líderes quando emergiu o movimento dos deficientes, exceto, talvez, Cândido Pinto
de Melo e Gilberto Frachetta, que vinham do movimento estudantil e político. Os
outros foram se formando durante a fase heroica. Quando digo isso, não estou
valorizando. Não estou dizendo: “Olha, que maravilha ser herói!” Na verdade, era
muito mais uma coisa tipo “vamos botar para quebrar e ver no que dá”. Os embates
eram muito maiores. Hoje, temos uma forma de atuação muito mais light.
O Ano Internacional das Pessoas Deficientes (AIPD) foi como um parto para
a personalidade da pessoa com deficiência, cujos direitos básicos devem ser
assegurados e cuja autonomia e identidade devem ser reconhecidas. Quem já estava
discutindo essas questões teve a oportunidade de ampliar o debate com outras
pessoas. Pessoalmente, 1981 foi o ano em que percebi que não convivia com outras
pessoas com deficiência e me engajei no movimento de luta dos deficientes.
O Brasil tem problemas com a história, sobretudo a recente. Não é preciso
saudosismo, mas é necessário saber o que já foi feito para fazer algo novo. Além de
resgatar, é preciso apontar para a frente. Por isso, o evento comemorativo dos 25
anos do AIPD foi fabuloso!
A gente reviu a história do movimento, os colegas e a própria trajetória.
Coisas que a gente deixa para traz, mas que, na verdade, contribuíram para a
nossa própria personalidade. Resta saber em que medida aquele resgate foi só um
reconhecimento ou se também impulsionou algumas ações que vieram em seguida
e se vai inspirar as que devem vir.
Concordo com o Ricardo Fonseca (primeiro juiz cego do Brasil), quando diz
que, agora, devemos revisar e repensar como consolidar nossos direitos, pois muitos
deles têm uma fragilidade legal muito grande. Tudo bem que esteja na Constituição
que educação básica é para todos. Mas está no plano de educação do governo de
não sei quem que a educação deve ser inclusiva. Quem me garante que, no próximo
ano, não haverá uma “educação dispersiva” ou qualquer outra balela. Temos que
ampliar o diálogo interno e também tentar estabelecer contato com organizações da
América Latina, que têm as mesmas dificuldades. A Argentina, por exemplo, com uma
economia que até está mais ou menos dando certo, é um abismo para as pessoas
com deficiência.
Precisamos criar instrumentos sólidos para garantir nossos direitos. Neste
momento, não temos que discutir com o Executivo a implantação deste ou daquele
programa. Temos que consolidar os aspectos legais dos nossos direitos para que
não haja mais discussão. Encerrar o papo. Ou seja, enraizar as nossas conquistas.
Essa é a nossa perspectiva agora.
308
Imagem. Frente do Boletim nº 1 do Movimento pelos Direitos das Pessoas Deficientes – MDPD. Contém carimbo do símbolo da ONU para o AIPD. [Frente] Boletim
1981 ano 1 – nº 1 MDPD. R. Joaquim Antunes 611/53 05415 S.Paulo – SP 284.5493 e 65.6739. Movimento pelos Direitos das Pessoas Deficientes – M.D.P.D. [Coluna
da esquerda] O nosso protesto. Em nossa última reunião geral de 8/1, o plenário protestou de forma veemente quanto ao comportamento da presidente da Comissão
Nacional para o AIPD que quase não se dirigiu às PD e não quis receber os Coordenadores do MDPD presentes na Abertura do AIPD em Bauru-SP. Tendo em vista
estes acontecimentos e os anteriores, que refletem a forma de como esta Comissão foi nomeada, imposta e sem participação de representantes de Pessoas Deficientes, o
plenário, por maioria de votos, resolveu renega-la. Entretanto, visando aprofundar a discussão, a Coordenação resolveu incluir o assunto na pauta da próxima reunião
(21/03 FMU - Av. Stº Amaro), para definir-se a forma de como será traduzida esta decisão.
Apoio e Estímulo ao Desenvolvimento do AIPD – Comissão Estadual. AIPD – Decreto nº 16.742 de 05/03/1981, do Exmo. Sr. Governador do Estado de São Paulo,
criou junto a Casa Civil do Gabinete do Governador a Comissão de Apoio e Estímulo ao Desenvolvimento do AIPD que será integrada por representantes das
Secretarias da Administração, Informação e Comunicações, Educação, Promoção Social, Saúde, Relações do Trabalho e Transporte, além de Ivan Ferraretto (AACD),
José Geraldo Bueno (DERDIC), Stanislau Krynski (APAE), D. Dorina de Gouveia Nowill (Fund. p/Livro do Cego do Brasil), José Rodrigues Louzã (HC.FMUSP),
Edmundo Pinto Fonseca (Fund. Centro Pesq. Oncologia), Luis Celso M. Moura (CEDRIS), José Evaldo de M. Doin (MDPD). Esta comissão terá a Presidência do Sr.
Calim Eid (Secretário da Casa Civil) e Secretaria de Otto Marques da Silva (HC.FMUSP).
[Coluna da direita] Nós fazemos o A.I.P.D. O MDPD elaborou uma programação com realização de Mesas Redondas mensais, abordando questões de interesse das PD,
cujo objetivo é conscientizar, discutir e indicar soluções, comprometer o Estado e a Sociedade para as necessidades das PD e sobretudo levar às PD a lutar por seus
legítimos direitos.
Mesas Redondas: Dia/Mês – Assunto: 25, abril - Espaço Urbano (inter/exter); 23, maio - Trabalho; 27, junho - Transportes (indiv/colet); 18, julho - Assistência Médica,
Reabilitação e Equipamentos Auxiliares; 29, agosto - Legislação; 19, set. - Lazer e Esportes; 17, out. - Educação; 21, nov. - Relações Humanas e Sociais. Todas as
mesas redondas serão realizadas no Colégio Anchietanum, R. Apinagés, 2033, Sumaré, a partir de 13:00 horas.
Pague sua mensalidade: mínimo de: Entidade Cr$ 500,00, Individual Cr$ 10,00.
Calendário de reuniões: Dia/Mês – Local: 21, março – FMU; 11, abril – FMU; 09, maio – FMU; 13, junho – FMU; 11, julho – Anchietanum; 08, agosto – FMU; 12,
setembro – FMU; 10, outubro – FMU; 14, novembro – FMU; 05, dezembro – Anchietanum. FMU – Faculdades Metropolitanas Unidas, Anchietanum – Colégio
Anchietanum.
309
Imagem. Continuação. Verso do Boletim nº 1.
[Coluna da esquerda] A guarda agora é nacional – Durante a IV Assembléia Nacional da Fraternidade Cristã de Doentes e Deficientes (FCD), realizada em São
Bernardo do Campo de 18 a 25 de Janeiro de 1981, Maria de Lourdes Guarda foi eleita como coordenadora Nacional, na mesma chapa Célia Camargo Leão foi eleita
vice-coordenadora e o Pe. Geraldo M.L. Nascimento conselheiro Nacional.
MDPD no interior – Realizada em Bauru em 28 de fevereiro a reunião do MDPD que contou com cerca de 70 pessoas representando entre outras as cidades de Marília,
Bauru, Ourinhos, Jacarezinho, Lins, Rio Claro, Andradina e Pederneiras. Discutiu-se a Carta Programa do MDPD e formas de ampliar o Movimento no Interior. Luis
Celso e Robson representaram a Coordenação.
MDPD faz a justiça – Está sendo formada a comissão jurídica do Movimento, tendo como coordenadora a companheira Leila Bernaba Jorge. Uma das primeiras
medidas foi o envio de uma carta à Empresa Brasileira de Correios e Telégrafos pedindo esclarecimentos sobre o caso de um deficiente físico (seqüela de pólio), de
Araçoiaba da Serra (SP) não ter sido admitido para trabalhar mesmo passando no concurso. Interessante é que a EBCT está lançando selo comemorativo do AIPD.
Recebemos: - A revista “Reabilitação”, editada no Rio de Janeiro, bem cuidada publicação com matérias de interesse geral e notícias variadas; - Carta da coordenadora
do núcleo da FCD em Marília, Olympia Salete Rodrigues tecendo proveitosos e oportunos comentários sobre o MDPD e suas reuniões mensais; - A revista “Missões”,
que conta a colaboração do companheiro Pe. Hilário.
O Espírito Santo comunicou-se com o MDPD. Recebemos um Boletim do Grupo Capixaba de Pessoas com Deficiência com sua programação para o AIPD e avisando
que a abertura será feita no dia 20 de março de 1981, às 17:00 hs em Vitória-ES.
[Coluna da direita] Encha o Bexiga – o Bairro do Bexiga promoverá nos dias 11 e 12 de abril, uma festa com os objetivos de comemorar o Ano Internacional das
Pessoas Deficientes e de proporcionar à comunidade daquele bairro um dia de lazer integrado, pois esta festa não será feita para os deficientes, mas com eles. Na
ocasião, serão programados jogos e divertimentos que poderão ser disputados tanto por deficientes como por não-deficientes, sempre em nível de igualdade, As
entidades interessadas em participar poderão entrar em contato com a coordenação do MDPD.
Acampamento integrado – Nos dias 28 e 29 de março, o NID – Núcleo de Integração de Deficientes promoverá um acampamento no sopé do Pico do Jaraguá, que
contará com a participação de pessoas deficientes e não-deficientes. Esta experiência será objeto de uma palestra que o NID irá proferir durante o Congresso
Internacional Sobre Lazer e Desenvolvimento, a realizar-se em setembro deste ano, em São Paulo.
Adesivos – O MDPD recebeu da AIDE – Associação de Integração dos Deficientes, como forma de colaboração, 1000 (mil) adesivos para serem vendidos, sendo que o
valor total da venda ficará para o Movimento.
Formigas e elefantes - O Movimento pelos Direitos das Pessoas Deficientes teve um encontro com o prêmio Nobel da Paz, Adolfo Perez Esquivel, no dia 26 de
fevereiro. Com uma parábola sobre a força da união das formigas contra o tamanho do elefante, mostrou bem a importância do entendimento que deve existir entre
todas as entidades de e para deficientes, apesar das diferenças, no trabalho conjunto e na reivindicação dos direitos das pessoas deficientes dentro da sociedade.
Super 8: Deficientes em Ação – A AIDE – Associação de Integração dos Deficientes e o MDPD estão promovendo, juntamente com a RTC – Rádio e Televisão
Cultura, o I Concurso Nacional de Filmes Super 8 sobre as Pessoas Deficientes, dentro do programa Ação Super 8.
[Rodapé do Boletim: As pessoas deficientes não reivindicam benefícios que tenham características de dádiva, privilégios ou concessões, mas reivindicam o que é de
pleno direito delas como cidadãos de um país e seres humanos integrais. — Carta Programa MDPD.
Legenda: Acervo digital Memorial da Inclusão. Doação Romeu Sassaki.
310
Imagem. Jornal Folha de S.Paulo, com data manuscrita 5/1/81. Folha de S. Paulo – Um Jornal a Serviço do Brasil. Questão de direito. Ao menos em termos de Brasil,
os tais “anos internacionais” promovidos pela ONU têm sido de uma perfeita inutilidade. Ou alguém acreditará que tenhamos dado um só passo na direção da solução
do problema do menor no Ano Internacional da Criança? É pois com o ceticismo justificado pela experiência passada que se espera o que acontecerá em 1981,
proclamado pela ONU o Ano Internacional do Deficiente. Não custa entretanto alimentar esperanças. Pode ser que a consciência nacional realmente desperte para a
situação de parcela ponderável da nossa população, marginalizada por deficiências físicas ou mentais.
O mínimo a desejar dos governantes seria a revisão da legislação que faculta ao deficiente o direito ao trabalho. Há disposições dispersas, inspiradas quase sempre na
melhor das intenções, mas nem sempre capazes de ultrapassar invencíveis óbices burocráticos e preconceitos. Experiente alguém, em cadeira de rodas, tomar posse num
cargo público, ainda que conquistado por concurso. Tamanhas barreiras se levantarão contra ele — mesmo que a sua deficiência não o incapacite para determinados
tipos de trabalho — que será necessária quase uma sobre-humana força de vontade para vencê-las. Nesse sentido, o que se impõe, também, é uma verdadeira mudança
de mentalidade; burocratas de segunda ou terceiro escalão precisariam compenetrar-ser de que não lhes cumpre dificultar — se não desejam ajudar — aqueles que,
parcialmente incapacitados, ainda assim não se resignam à passividade e à acomodação.
As reivindicações dos deficientes físicos incluem alterações arquitetônicas nas cidades — de maneira que sua locomoção seja facilitada —, alterações na legislação
sobre equipamentos importados e uma ou outra coisa mais. O essencial, porém, é que se encare a situação desses milhões de brasileiros sob uma óptica não sentimental
ou paternalista. Não é de caridade que necessitam, nem reclamam favores especiais. No fundo, como toda minoria, desejam apenas o reconhecimento de seus direitos;
querem, em síntese, uma oportunidade para mostrar que podem ser úteis à sociedade, num momento em que esta reclama a participação de todos.
O decorrer do ano mostrará se a proclamação da ONU vai sensibilizar os brasileiros para um problema de profundo significado humano e social. Milhões de pessoas
podem escapar à marginalização completa se a sociedade, como um todo, compreender-lhes as aspirações; não serão necessários maciços investimentos, nem aparatosas
campanhas, muito menos exibições de emotividade barata. Em favor dos deficientes, pede-se apenas que seus direitos sejam respeitados. E que se lhes dêem as
oportunidades a que todo ser humano faz jus. E.M.N.
Legenda: Folha de S.Paulo, 05 de janeiro de 1981. Acervo digital Memorial da Inclusão. Doação Romeu Sassaki.
311
Imagem. Jornal O Estado de S. Paulo, de 25 de outubro de 1981. Da Sucursal de Recife. Congresso começa no Recife. Com a participação de cerca de 600 deficientes,
tem início amanhã no Recife o I Congresso Brasileiro de Pessoas Deficientes, que terá um caráter político e reunirá também autoridades e cientistas, como o professor
Nelson Chaves que, mesmo hospitalizado, confirmou sua presença.
Um dos membros da Comissão Executiva Nacional de Entidades de Pessoas Deficientes, Messias Tavares de Souza, foi enfático ao dizer que a participação do
nutricionista pernambucano Nelson Chaves é uma homenagem ao trabalho dele em prol dos deficientes mentais, uma vez que a carência de alimentação provoca graves
lesões cerebrais, constatadas pro inúmeros trabalhos do nutricionista.
O Congresso, que até ontem não tinha confirmada a participação das delegações de Mato Grosso, Sergipe, Maranhão e dos territórios, será aberto pelo governador
Marco Maciel e pelo ministro Rubem Ludwig, da Educação, no Centro de Convenções de Pernambuco. No encontro, que irá até o dia 30, os deficientes discutirão não
apenas os aspectos técnicos e científicos: “O debate será muito político”, disse Messias Tavares de Souza, acrescentando:
“Consideramos este Congresso uma reunião política, pois será um meio de congregar os deficientes. Este ano tudo é muita motivação. E, para 1982, com o fim do Ano
dos Deficientes Físicos, nós pretendemos ser um grupo de pressão, um grupo político, capaz de reivindicar mudanças no sistema de atendimento aos deficientes, nos
programas de reabilitação e na luta contra as barreiras ambientais e sociais. Este Congresso, inclusive, pode determinar a criação de uma federação”.
Legenda: O Estado de S. Paulo, 25 de outubro de 1981. Acervo digital Memorial da Inclusão. Doação Romeu Sassaki.
312
Sandra Maria de Sá Brito Maciel
Imagem. Retrato colorido de Sandra Maria de Sá Brito Maciel. Contêm epígrafe: “Entre 1981 e 1982, a Adeva e outras entidades que estavam surgindo nessa época,
motivadas pelo Ano Internacional das Pessoas Deficientes, lutavam pela criação de conselhos municipais e estaduais, que promovessem a integração do deficiente,
porém, no que diz respeito à abertura do mercado de trabalho a esse segmento, as coisas não estavam acontecendo.”
eu nome é Sandra Maria de Sá Brito Maciel. Nasci no dia 7 de outubro de
1946, em Porto Alegre, no Estado do Rio Grande do Sul. Meus pais são
gaúchos. Além disso, são primos. Eles já moravam aqui quando minha mãe
engravidou e voltou para o Sul para que eu, que sou a terceira filha, nascesse lá.
Quando tinha 4 meses, retornamos todos para São Paulo.
Vim ao mundo com 53 centímetros. Um bebê grande! Nasci com visão
subnormal com 5% de alcance, problema que apenas foi diagnosticado
corretamente após dois anos. Até essa idade, meus pais acreditavam que eu era
totalmente cega, conforme os médicos haviam dito nas primeiras consultas.
A partir dos 2 anos, comecei a sofrer fraturas com facilidade e frequência.
Tinha até três por ano. Fui diagnosticada como portadora de descalcificação óssea
congênita, uma doença pouco conhecida na época. Alguns médicos acreditavam
que a causa poderia ser alguma doença que minha mãe pudesse ter contraído
durante a gestação. Outros desconfiavam do parentesco entre meus pais. Devido a
esse quadro, comecei a andar com mais firmeza só depois dos 5 anos.
Minha mãe teve problemas de aceitação com tudo isso. A primeira filha
faleceu logo após o nascimento. Já, o segundo filho não teve problema algum.
Então, veio o meu nascimento. Depois, nasceu minha irmã, com deficiência mental
e visual. Em seguida, nasceram normais a quarta e a quinta filhas.
O fato de eu não andar deixou minha mãe tão chateada que, quando
falava a meu respeito para as pessoas, ela diminuía um ano na minha idade. Fui
descobrir essa história muito tempo depois, aos 24 anos! Pode parecer uma
bobagem, mas, quando soube disso, fiquei muito triste. Entendi que havia um
preconceito por trás e, atrás dele, estava a rejeição.
Esse relato demonstra bem o tipo de reação que cada família pode ter em
relação à presença de um deficiente em casa. E, se pensarmos bem, ninguém está
preparado. Acho que, quando conseguimos analisar essa situação dessa forma,
em vez de julgá-los, devemos relevar alguns de seus comportamentos e, até
mesmo, dar graças a Deus pelas coisas que nós tivemos e outros não.
Assim, talvez o melhor caminho seja tentar ver o que fizeram certo e
consertarmos, nós mesmos, o que fizeram de errado. O conhecimento que eles
tinham era fruto de uma cultura – ainda existente – que dificultava lidar com a
diferença e gerava muitos preconceitos em relação à deficiência.
Ainda hoje, vemos famílias cuidando de seus deficientes como se fossem
doentes mentais totais! Existem casos de deficientes visuais adultos, inteligentes,
cujos parentes, além de não ensinarem nada e não darem independência, ainda
fazem tudo para eles: dão banho, comida na boca, acham que precisam limpá-los
quando vão ao banheiro, coisas, assim, do “arco da velha”!
M
313
Falo de rapazes ou homens grandes e fortes, cujas mães vêm correndo
quando eles saem do banheiro, para fechar o zíper da calça deles! Coisas que
causam indignação. Quando vejo essas cenas, penso: “Apesar de meus pais terem
me protegido bastante, graças a Deus, não chegaram a fazer esse tipo de coisa.”
Mas, conquistar minha independência foi algo que demorou bastante. Nos
primeiros anos, o que mais dificultou foram as fraturas. Eles não sabiam o que
fazer comigo em matéria de estudos, tinham medo de que as outras crianças
esbarrassem em mim e me derrubassem. Isso durou até os meus 11 anos!
Finalmente, decidiram ir à Fundação Dorina Nowill pedir orientação para a
assistente social. No entanto, ela também não sabia o que fazer. A instituição
atendia basicamente os deficientes visuais. Até havia uma classe para adultos
deficientes visuais com problemas mentais. Porém, nunca tinham lidado com
alguém com meu quadro de fragilidade óssea.
Como os funcionários da fundação não encontraram outra solução,
aconselharam meus pais a me colocarem nessa classe especializada em dupla
deficiência. Ali, eu estaria numa classe pequena, não teria tanto perigo de me
derrubarem, porque os alunos não eram crianças. Infelizmente, não perceberam o
quanto era complicado colocar uma criança com inteligência normal numa classe
só com deficientes mentais. Ainda por cima, todos eram adultos!
Devido à timidez e insegurança, não tinha coragem para perguntar o que
estava acontecendo. Tive de descobrir por mim mesma. Comecei a me comparar
com as outras pessoas dali. Então, percebi a deficiência mental. Foi quando passei
a me perguntar se eu era deficiente mental como eles. Embora fosse criança,
comecei a observar tudo em volta e a me autoanalisar. Até que percebi que era
diferente deles, que não tinha deficiência mental: “Se estou com toda essa
preocupação e estou observando tudo isso, então, não devo ser igual a eles.” Por
isso, digo que foi como a história do “penso, logo existo”.
As professoras estavam acostumadas com aquele pessoal com
deficiência mental. Tudo tinha de ser feito várias vezes, já que eles precisam
repetir para aprender. Eu era obrigada a fazer da mesma forma. Tudo que o
aluno fazia bem feito era uma novidade e recebia elogio. Só que eu tinha noção
de que não estava fazendo nada de mais. Isso não me motivava em nada.
Durante um ano e meio tive fraturas consecutivas, que me prendiam em
casa, durante algum tempo. Parava por causa das fraturas e depois voltava.
Quando retornava, ainda não estava andando e tinha que ser carregada no colo
pelo meu pai, que me levava e ia buscar. Claro que essa situação deixava meus
pais preocupados, pensando no que iriam fazer comigo.
Sempre me recordo de um episódio que mostra bem o quanto minha
timidez era preocupante. Aconteceu depois de me recuperar de uma das fraturas,
voltei para a escola, mas, só andava de mão dada com alguma das professoras.
Uma vez, tinha ido para o refeitório tomar um lanche com elas. Quando estávamos
voltando, minha acompanhante me deixou no corredor, avisou que iria pegar a
bolsa e saiu. Nisso, um deficiente visual começou a vir em minha direção. Eu não
andava sozinha e sabia que, se não falasse alguma coisa, ou gritasse, ele não me
veria e iria me derrubar. Seria mais uma fratura, mais dor, mais tudo. Assim
mesmo, não falei nada. A professora viu a cena, gritou e veio correndo até mim,
perguntando: “Por que você não gritou?” Não respondi. Fiquei calada de tanta
insegurança e medo. Quando falo que sou tímida e as pessoas riem, costumo
contar essa história, que mostra como eu era.
Em 1958, fui encaminhada para uma recém-inaugurada classe de
recursos no Grupo Escolar Professor Pedro Voss, no mesmo bairro. Essa sala
atendia os deficientes visuais. Eles ficavam na classe comum e a professora da
sala de recursos dava assistência.
314
Acho interessante o pessoal de agora falar tanto sobre “inclusão”. Acho
que a inclusão real era a que existia naquela época. O aluno frequentava a classe
normal e tinha todo apoio na classe de recursos. Hoje, em nome da “inclusão”, as
classes de recursos têm sido fechadas. É considerado “inclusão” jogar o estudante
numa classe normal, sem dar praticamente nenhuma assistência. Além disso, os
cursos de professores especializados em cada área de deficiência estão acabando!
A educação especial está regredindo! E isso é muito complicado. Claro
que o aluno pode ser colocado numa classe comum, mas, ele precisa receber uma
assistência especial, como é feito em outros países. Nos Estados Unidos é habitual
os professores especializados ficarem numa classe comum dando toda assistência
aos deficientes.
Por exemplo, no caso do deficiente visual, é necessário passar todas as
matérias, exercícios e provas para o braile. Depois, os testes devem ser transcritos
para que a professora comum possa corrigir. E, quando abriu essa classe no Pedro
Voss, a professora especializada que foi para lá, era uma profissional em início de
carreira. Era a primeira classe dela. Mas, era uma pessoa maravilhosa! Dessas que
a gente fala que é psicóloga nata, que faz as coisas e nem tem noção de como
está fazendo tudo certo.
Fui para uma classe comum dessa escola. A Fundação me colocou no
segundo ano do Primário, com assistência dessa professora especializada,
chamada Dona Rute. Eu sabia ler, mas não sabia escrever. Não sei se foi por
causa daquela falta de motivação, pelo fato de a pedagogia aplicada ser a mesma
usada com os deficientes mentais, realmente não sei. Mas, era muito boa aluna
nas outras matérias!
Mesmo assim, quando fui colocada na classe comum, não consegui
acompanhar a turma porque não sabia escrever. A professora comum não dava
atenção nenhuma, parecia que ela não queria ter aluno deficiente na sua turma. Foi
a professora especializada que acabou percebendo minhas reais necessidades.
Quando chegou o meio do ano, ela decidiu ficar comigo em sua sala,
por um período. Eu iria fazer o segundo ano com ela e ficar outro período na
classe normal como ouvinte, para fazer amizades e conviver com outras
crianças. Ficava meio período na classe normal, tentando acompanhar e fazer as
coisas, com a ajuda das minhas colegas. Depois ia para outra sala, onde ficava
mais meio período, recebendo lição e mais mil tarefas para serem feitas em
casa. E quanto mais fazia, mais recebia outras lições. Ela falava assim: “Se a
Sandra faz, é porque tem condição de fazer mais.” Em praticamente seis meses,
ela me alfabetizou completamente. Fiz o primeiro e o segundo ano do primário,
principalmente focada na parte de escrita.
No terceiro ano, ela procurou me colocar com a professora que acreditava
ter as melhores condições, atenção e experiência. Foi bom porque algumas
amizades que havia feito no segundo ano estavam nessa classe, inclusive minha
irmã.
Minha irmã começou a estudar muito cedo, fez o primeiro ano do primário
com apenas 5 anos de idade. Estávamos na mesma série, embora já estivesse
com 13 anos na época. Também fizemos juntas o segundo ano. Ela foi aprovada
com mais facilidade porque já sabia escrever bem, e eu não. Já, no terceiro ano
cheguei ao primeiro lugar da turma.
Ela e eu tínhamos a mesma altura nessa época, embora ela estivesse
com 8 e eu com 13 anos. Foi quando percebi que não estava crescendo. Falei com
meus pais, que me levaram ao médico. O diagnóstico dizia que eu não cresceria
mais. Qualquer tratamento que fizesse apenas me faria engordar. Naquele tempo,
não se falava sobre hormônio do crescimento. Minha altura seria por volta de 1
metro e 20 centímetros.
315
Continuei sendo a primeira da turma durante todo o terceiro e quarto ano.
Foi nesse ano que ganhei uma medalha do governador Carvalho Pinto, que era
entregue ao melhor aluno do ano, de cada escola. Para que eu não precisasse
fazer o quinto ano, passei a estudar em dois períodos. Um período na sala comum
e o segundo, na sala de recursos, para uma espécie de preparatório para o
chamado “exame de admissão” ao ginásio. A intenção era estudar na Escola
Caetano de Campos, considerada uma das melhores escolas estaduais da época.
Naquele tempo essa escola era bem exigente e concorrida. Fiz a prova e consegui
ser aprovada. Na Escola Caetano de Campos, fiz o ginásio e o colegial clássico da
época.
Eu ainda era bem introvertida, mesmo em casa. Na minha rua, andava
sozinha porque ficava em uma vila sem movimento. Estava sempre com minha
irmã ou com meus pais, quer dizer, sempre acompanhada. Ainda na época da
Caetano de Campos, quase não tinha convivência com deficientes visuais. Por
isso, não fazia ideia de que poderia me locomover sozinha. Nesse aspecto, era
muito protegida pela minha família. Mesmo em casa, em relação aos serviços
domésticos, minha mãe nunca achou que eu pudesse fazer alguma coisa. Ela
mandava minhas irmãs menores fazerem. Inclusive, nunca deixava eu me
aproximar do fogão, embora tenha até me ensinado a fazer bolos que levava para
a escola.
Não sei se minhas irmãs ficavam bravas com isso. Acho que essa
situação causou muito problema para uma de minhas irmãs, que se achava muito
explorada. Minha mãe não gostava de ensinar as pessoas. Apenas observava e, se
alguém fizesse algo errado, ela achava que a pessoa não saberia nunca fazer
certo. Não estimulava, ao contrário, terminava deixando todos inseguros ao dizer
que as coisas iam cair ou que íamos derrubar tudo.
Na escola, era muito diferente. Não havia essa superproteção. Foi uma
relação muito legal porque, como ia bem, tinha facilidade com as matérias, as
amizades eram muito recíprocas. As meninas não me evitavam. Elas me ajudavam
com minhas dificuldades e eu ensinava as matérias que não entendiam. Assim,
compartilhávamos muito as coisas, fazíamos trabalhos de matemática juntas,
porque era uma disciplina fácil para mim.
Houve um desses exames de segundo semestre, no terceiro ou quarto
ano, em que as professoras trocavam de classe. Recebemos alguém que não
conhecia nossa turma e que, quando viu, do meu lado, duas ou três amigas e mais
a minha irmã, todas falando comigo, achou que estavam me ajudando, ditando a
matéria ou explicando alguma coisa da lousa. Quando a nossa professora foi ver
as notas, eu tinha tirado 10 no exame de matemática, enquanto a turma toda que
estava em volta de mim tirou 9,5 e o resto da classe tirou de 8 para baixo. Ela
apenas olhou assim para nós e perguntou: “O que aconteceu aqui?”
Respondemos: “Nada, não temos a menor ideia.” E as meninas ainda olharam
bravas para mim, querendo saber por que tirei 10 e elas 9,5, como se eu tivesse
feito de propósito, deixado de ensinar alguma coisa para elas. Mas, logo
descobrimos o que aconteceu. Elas duvidaram de algumas respostas que passei e
decidiram fazer de outro jeito.
Todas essas experiências foram boas porque, além de me ajudar a fazer
amizades, me faziam sentir que havia um relacionamento recíproco. Não era aquilo
de estar recebendo ajuda por ser “diferente”. Acabava fazendo sempre amizade
com as melhores alunas da classe, porque eram essas que tinham mais vontade
de ajudar. Foi assim desde o primário.
Interessante que no meu primeiro dia naquela sala – a que falei que
estava só como ouvinte –, a professora falou para a menina ao lado da qual sentei:
“Ajuda ela aí.” Tempos depois, essa garota contou que ficou muito chateada
naquele momento, já que não entendia por qual razão, logo ela, teria de me ajudar.
Somos amigas até hoje! Sou madrinha da filha dela e já completamos bodas de
ouro de amizade, ou seja, 50 anos de amizade! Também tenho duas
316
amigas que conheci no ginásio. Na faculdade foi a mesma coisa, tenho várias
amigas com quem mantenho contato.
Como a Caetano de Campos era uma escola maravilhosa, muito melhor
do que qualquer escola particular, inclusive de agora, fiz um cursinho de dois
meses e entrei na USP (Universidade de São Paulo). Prestei vestibular em 1968,
com 22 anos, enquanto minhas amigas tinham 17 ou 18. Isso aconteceu porque
tinha entrado na escola com 11 ou 12 anos.
Estava em dúvida entre fazer Psicologia ou Direito. Sempre achei que
minha área fosse o Direito e a família dizia o mesmo. Mas, não sei por qual motivo,
comecei a achar que queria Psicologia. Como tinha feito Latim no clássico, optei
por Matemática no último ano do colegial. Como achei que não estava bem
preparada para Matemática, não prestei para Psicologia, mas para Ciências
Sociais e Línguas Orientais, na USP, e para Direito, na PUC (Pontifícia
Universidade Católica), porque lá não tinha Latim. Passei nos três! Logo eu, que
prestei Línguas Orientais por medo de não ser aprovada em nada, por pensar nos
anos de atraso nos estudos e no fato de meus pais me sustentarem. Tinha de
entrar em alguma faculdade. Prestei Línguas Orientais, por acreditar ser menos
concorrida. Inclusive escolhi Russo, sem saber que era o mais concorrido! Apesar
de serem muito mais jovens do que eu, minhas amigas também tinham essa
mesma preocupação em relação a entrar na universidade.
Nunca fui reprovada em nenhum ano. Fui tão bem durante o ginásio
quanto no primário. Na primeira e na segunda séries, principalmente, ainda
conseguia pegar o segundo lugar da turma. Depois, ficou mais difícil porque tive
professores de matemática que não queriam nem saber. Apenas colocavam a
matéria na lousa e pronto. Não queriam dar explicação nenhuma. Tinha que
estudar praticamente sozinha. Isso me prejudicou um pouco na terceira e na quarta
séries, porém, sempre deu para passar sem exame. E na Escola Caetano de
Campos a média era oito! O curso era muito bom mesmo.
Mesmo depois de ter entrado nas faculdades, ainda tinha a maior dúvida
sobre o que iria fazer. Comecei a assistir aulas na PUC e na USP para decidir de
uma vez por todas. Foi quando percebi que o curso que iria gostar mais era o de
Ciências Sociais, na USP. Mas, ao mesmo tempo, sentia que lá, além de ter de ler
muito – o que seria complicado –, percebi que a rejeição do pessoal iria ser maior.
Parece que a turma que se achava mais intelectual era a que mostrava mais
rejeição. Eles me olhavam de um jeito que fazia com que me sentisse como uma
marciana!
Nesse sentido, a turma da PUC foi muito mais acessível e amiga. Senti
que o curso seria menos puxado, que teria muito mais ajuda das minhas colegas
para conseguir acompanhar as aulas. Depois de seis meses fazendo os dois
cursos – um era na Rua Maria Antônia e o outro, na Rua Monte Alegre –, quando o
curso da USP mudou para a Cidade Universitária, decidi pelo Direito, na PUC.
Realmente tive muita ajuda das minhas colegas e consegui levar muito
bem o curso graças a elas. Digo isso porque não tinha material em braile e,
naquela época, não tinha como consultar uma internet. Porém, eu tinha colegas!
Eram as mais ocupadas que liam em voz alta e gravavam para mim – naqueles
gravadores com fitas de rolo de seis horas de duração – todos os livros e todas as
matérias!
Às vezes, passava as noites inteiras ouvindo a gravação, principalmente
nas vésperas de exames. Eu também ia para a casa da amiga ou ela vinha na
minha para estudarmos juntas. Outras colegas que estudavam comigo também
ajudavam, porém, só uma amiga gravava toda a matéria.
Fiz dois meses do cursinho Equipe, antes do vestibular. É outra lembrança
boa que tenho. Tinha professores maravilhosos. Adorei essa época. Foram dois
meses que parecem
317
vários anos. Acho que nesse período comecei a me desembaraçar mais, devido à
convivência com os professores e os alunos.
Havia uma turminha de rapazes e moças que gostavam mais de estudar
juntos. Talvez, por causa deles, tenha começado a ficar mais solta. E, depois, no
primeiro ano da faculdade, eu já participava daqueles movimentos estudantis, em
1969 ou 70. Acho que estar envolvida nas discussões ajudou bastante, além do
fato de começar a conviver mais com os rapazes.
Outra coisa interessante foi que, no tempo da Caetano de Campos, até
cruzava com alguns deficientes visuais, no entanto, nunca tive uma relação mais
próxima ou de amizade com eles. Isso só foi acontecer no meu primeiro ano de
faculdade, porque a minha irmã continuava na escola fazendo colegial clássico, na
classe dos deficientes visuais. Essa irmã havia começado a estudar comigo,
porém, ficou dois anos para trás. Como tinha 9 anos, não poderia ir para o ginásio
com essa idade. Por isso, fez mais uma vez o quarto ano na Caetano de Campos e
depois foi para o quinto ano lá mesmo.
Ela saía da escola com os colegas deficientes visuais, passava na
faculdade e levávamos o pessoal que morava perto da nossa casa. Como
trocávamos muitas ideias, fomos fazendo amizade. Esse nosso grupo era formado
por três irmãos – duas meninas e um rapaz –, eu e minha irmã. Começamos a
frequentar muito a casa deles. Foi quando percebi que os três tinham menos visão
do que eu e, mesmo assim, andavam sozinhos. Decidi que tinha de andar sozinha
também.
Nunca tinha feito isso porque meus pais não acreditavam que seria
possível. Estava claro para mim que não poderia chegar para eles e dizer que iria
andar sozinha. Nunca aceitariam. Ao mesmo tempo, esses novos amigos não
paravam de me incentivar, sem falar nada até para minha irmã: “Olha, você vai sair
da sua faculdade, vai pegar o ônibus tal e, primeiro, você vai descer aqui perto de
casa. Faz primeiro esse trajeto, antes de ir para sua casa sozinha.”
Combinamos tudo direitinho. E fiz. Foi assim que comecei realmente a
andar sozinha, aos 23 anos. Depois que fazia as coisas, chegava em casa e
contava. Meus pais ficavam assustados, mas, achavam legal. Como já tinha feito,
eles apenas poderiam aceitar. Eles até vibravam junto e não tinha problema.
Principalmente meu pai, porque minha mãe ainda ficava muito apavorada. Depois
que dizia que havia feito e que tinha dado certo, não havia oposição, apenas
incentivo. Mas eles nunca diriam para mim “faça”.
Decidi que queria trabalhar quando estava no quarto ano da faculdade.
Prestei um concurso para ser monitora do Mobral. Passei e muito bem. Mas, fui
barrada no exame médico. Fizeram uma reunião, chamaram uma psicóloga e uma
pedagoga, para me dizer que eu havia ido muito bem, que não era problema meu,
porém, achavam que a minha figura iria deprimir os alunos. Disseram que,
infelizmente, não seria possível e tiraram o meu nome da lista.
Não entrei com recurso, com mandado de segurança, nem “quebrei o pau”
como deveria ter feito, porque, naquele momento, estava querendo fazer um monte
de coisas. Depois, mandei um currículo para Secretaria das Finanças do Município.
Não havia concurso para fazer estágio. Os candidatos eram selecionados de
acordo com o currículo escolar.
Consegui um estágio de dois anos. A Secretaria de Finanças era no bairro
da Liberdade, no centro da cidade. Eu fazia faculdade de manhã, na PUC, da Rua
Monte Alegre, no bairro de Perdizes. Almoçava perto do trabalho, na Rua da Glória,
e ia para a Secretaria, onde trabalhava da uma às 5 da tarde.
Naquele tempo aconteceu o primeiro curso de programação de
computador para deficientes visuais aqui em São Paulo. Fiquei sabendo porque
conhecia dois rapazes deficientes que tinham conseguido um professor para
ensiná-los. Depois, eles mesmos tinham conseguido
318
fazer algumas adaptações. Esses moços tinham conseguido estágio no Serpro
(Serviço Federal de Processamento de Dados).
Ao mesmo tempo, eles tinham conseguido juntar uma turma para dar
aula de programação de computador. Na época, o curso era da Burroughs. Eles
conseguiram uma sala no Colégio Coração de Jesus para as aulas, que
aconteceriam em duas noites por semana durante seis meses. Isso aconteceu
em 1972, quando estava no quinto ano da faculdade e fazendo o estágio na
Secretaria de Finanças do Município. Eu decidi fazer o curso, muito mais para
incentivar meus amigos deficientes visuais do que por acreditar que tivesse
alguma coisa a ver comigo. Queria que meus amigos aproveitassem a
oportunidade de colocação no mercado de trabalho.
Um dos meus amigos, o Ricardo, estudava Letras no Sedes Sapientiae.
Eu ia para lá e ficava esperando até umas 6 e meia, quando acabava a aula dele.
Como chegava por volta das 5 e pouco, punha a reglete, que usava para escrever
em braile, num murinho da faculdade e ficava em pé, ali na rua, fazendo os
exercícios do curso de programação para não perder tempo.
Quando ele saía, a gente ia jantar no colégio Equipe, ali perto. Depois,
íamos para o Colégio Coração de Jesus fazer o curso. Voltávamos de táxi e
costumava deixá-lo em sua casa. Eu ainda morava com meus pais, perto do
monumento ao Borba Gato, lá no bairro de Santo Amaro. Como minha irmã havia
começado a trabalhar, ela passou a me ajudar com a condução. Parei de usar o
ônibus a partir desse momento e minha vida ficou bem mais fácil. Principalmente
porque não precisei mais andar a pé a distância de mais de um quilômetro entre o
ponto de ônibus e a casa da minha mãe.
Infelizmente meus amigos desistiram do curso. Cheguei a ficar bem
deprimida na época, apesar de estar gostando das aulas, que terminaram em
1972. Éramos uma turma pequena. Só eu e mais dois foram aprovados. Além
disso, não havia muita colocação profissional na área porque, na época, o mercado
já estava começando a usar computadores da IBM. Mas no ano seguinte apareceu
outro curso para fazer.
Uma amiga que havia feito o ginásio comigo trabalhava como perfuradora
na Control Data. Ela sugeriu que eu fosse falar com o chefe dela para conseguir
um estágio lá, depois que acabasse o curso. Fui e falei muito sobre as aulas e o
professor, que era genial, e ele se entusiasmou: “Não vou te dar estágio, vou dar
outra coisa: um curso de programação IBM para vocês. Também vamos dar bolsas
para quem vier de outros Estados e os melhores serão contratados. E quero
conhecer esse seu professor. Vou contratá-lo para dar as aulas.”
Conversei com meu professor e foi combinado um curso de dez meses de
programação da IBM em duas linguagens: Assembly78 e Cobol79. Foram abertas
cerca de 40 vagas. Veio gente do Rio de Janeiro, Bahia, Porto Alegre, Santa
Catarina, enfim, de vários Estados.
Depois de começar a fazer esse curso, já não pensava mais em exercer o
Direito. Mudei totalmente o foco e passei a querer trabalhar na área de informática.
Mas, mesmo assim, como havia me formado, comecei a fazer pós-graduação em
Direito Tributário na PUC mesmo. Cheguei a cursar duas matérias; Teoria do
Direito e Filosofia do Direito. As aulas eram aos sábados. Durante a semana, fazia
as aulas da IBM na Control Data.
78
. Assembly ou linguagem de montagem é uma notação legível por humanos para o código de máquina, que
uma arquitetura de computador específica usa. A linguagem de máquina, que é um mero padrão de bits, torna-se
legível pela substituição dos valores em bruto por símbolos chamados mnemônicos.
79
. COBOL é uma linguagem de programação de Terceira Geração. Este nome é a sigla de COmmon Business
Oriented Language (Linguagem Orientada aos Negócios).
319
Coincidentemente, toda a minha família acabou indo para essa área,
menos a caçula. Meu irmão foi um dos primeiros. Ele era chefe da área de
programação e análise do InvestBanco.
Nesse período, eu e minha irmã (que trabalhava no Serpro), indicamos os
dois deficientes visuais professores do curso e estagiários do Serpro como
candidatos a programadores para o meu irmão. Pedimos que eles fossem
avaliados e contratados, segundo suas capacidades. E assim foi feito. Meu irmão
os submeteu a testes rigorosos, ficando entusiasmado com o desempenho de
ambos. Quanto a nós, aconselhamos os dois a não renunciarem a suas pretensões
salariais. Um deles foi contratado e o outro efetivado no Serpro, como programador
pleno, com o mesmo salário do amigo.
Daquele curso muita gente acabou desistindo. Talvez porque o professor
era bem ligeiro e preferia lecionar para aqueles que seguiam o ritmo dele, sem dar
muita atenção para os que não conseguiam acompanhá-lo. Ele ficou muito
contente quando percebeu que eu estava ajudando quem ficava para trás. Ensinar
era uma coisa que eu gostava muito. O pessoal passou a estudar comigo. Aqueles
três que ele tinha aprovado no outro curso e mais alguns do Rio e de Porto Alegre.
Assim, conseguimos terminar o curso com 13 alunos. O ano de 1973 foi o primeiro
e único com maior número de deficientes visuais empregados nessa área no Brasil!
E não havia nada disso de recurso especial. Não existia listagem em braile, não
tinha leitor de tela, muito menos lei de cotas.
Tudo aconteceu por meio de contatos políticos, por exemplo, com o
prefeito e com o governador. Foi assim que conseguimos emprego em empresas
como a Prodam (Empresa de Tecnologia da Informação do Município de São
Paulo), a Prodesp (Empresa de TI do Estado de São Paulo) e o Serpro (Serviço de
Processamento de Dados do Governo Federal) além do InvestBanco
(posteriormente comprado pelo Itaú).
Nós 13 conseguimos colocação no mercado, contratados em regime de
CLT. Hoje, muitos já estão aposentados. No meu caso, não quis ir para onde tinha
parente. Fui para a Prodesp e ainda estou na ativa. Continuo a trabalhar na Cesp
(Companhia Energética de São Paulo) como analista de sistemas. No momento,
estou “emprestada” para a Adeva (Associação de Deficientes Visuais e Amigos).
Mas meu primeiro emprego foi na Prodesp, em 1973. Havia poucos
recursos nessa época. Por isso, às vezes, éramos aceitos pela diretoria da
empresa, porém, o pessoal da própria área não acreditava na gente. Era uma
batalha tremenda para fazer com que eles nos passassem tarefas. Na Prodesp a
coisa não foi nada fácil.
Tive um chefe, durante um período, que era um dos que menos acreditava
no meu trabalho. Por mais que fizesse bem, que cumprisse prazos, eu precisava
brigar para conseguir serviço. Certa vez, fiquei tantos meses sem tarefas que entrei
em depressão. Até deixei de fazer minha pós, porque não estava mais com ânimo.
Tinha ficado deprimida com o fato de ir para a empresa diariamente, sentar e ficar
olhando para a mesa. Não existe coisa mais deprimente do que uma situação
dessas!
Quando houve troca de diretoria na Prodesp, vários setores receberam
ordem para despedir pessoal, e cada um fez sua lista. A chefia aproveitou essa
ocasião e pôs os dois deficientes visuais entre os que seriam dispensados. Nós
estávamos nessa lista. Eu e o outro rapaz. Quando fomos demitidos, nosso exprofessor ficou sabendo. Ele tinha contato com as diretorias das empresas,
inclusive da Prodesp, onde o novo diretor foi seu chefe no InvestBanco. Após esse
contato, o Departamento Pessoal foi avisado para chamar a gente de volta e dizer
que havia acontecido um engano.
320
Quando eles nos chamaram de volta, o outro rapaz ficou quieto e
retornou, pois era ele quem sustentava a família e tinha vindo do Nordeste, tinha
casado, trouxe família do Ceará para São Paulo. Já, eu disse: “É o seguinte:
vocês não acreditam nos deficientes que estão aqui. Ele ainda vai ter uma
batalha para conseguir convencer vocês. Eu não quero mais isso. Vou procurar
um lugar onde confiem no meu trabalho. Agora, se vocês quiserem dar
oportunidade a deficientes visuais, com meu salário de programador júnior,
contratem dois trainees. Eu até fiz indicação de duas pessoas e eles aceitaram,
sendo que estão na empresa até hoje.
Eu sabia que naquela época não era fácil, mas, não pensei que fosse tão
difícil. Comecei a procurar emprego e mandei currículo para a cidade inteira. Só
que no currículo não havia a informação que eu era deficiente. Cheguei a ser
chamada para entrevistas em muitas empresas. Mas, em cada uma, ouvia a
desculpa mais absurda do que na anterior. E dava para perceber que era por causa
da minha deficiência.
Inclusive, mesmo depois de me chamarem para os testes e verem no
currículo meu nome, “Sandra”, eles tinham a coragem de dizer: “Ah, não pegamos
mulher!” Achavam que era menos feio dizer isso do que assumir que não
contratavam deficientes! Ouvi isso várias vezes! E a outra justificativa que ouvia
era: “Você está pedindo um salário muito alto. Pelo valor que você está pedindo
podemos contratar dois.” Inventavam tudo quanto era desculpa!
Outras empresas deixavam que eu fosse para o exame médico, onde era
barrada. Um dos lugares onde isso aconteceu foi na Antártica. Soube que só
haviam aprovado dois nos testes: eu e outro rapaz. Só que ele tinha problema
cardíaco. No final, a empresa não contratou nenhum de nós. Eles me fizeram
passar pelo ortopedista, por neurologista, por um monte de especialistas. Eu até
perguntei: “Aqui a gente tem que participar da corrida da São Silvestre?”
Nesse meio-tempo tive a ideia de entrar em contato com uma amiga que é
jornalista. Existia uma seção no Jornal da Tarde, chamada “São Paulo Pergunta”.
Resolvemos escrever uma carta para o jornal. Começava falando meu nome,
minha altura – 1,20 cm, meu peso – 42 quilos e também a deficiência. Disse que,
apesar disso, estava procurando serviço e relatei as desculpas que recebia nas
empresas. Aí eu fiz a pergunta: “O direito ao trabalho não está garantido na
Constituição do país?” A partir daquele momento, foi interessante, pois as pessoas
me paravam na rua para perguntar: “Você é aquela que escreveu para o Jornal da
Tarde?”
Depois disso, ainda fiz outros testes e continuava sendo recusada. Porém,
percebi que as desculpas estavam mais caprichadas. Com isso, vi que muitos
leram aquela carta. Soube depois que algumas empresas afixaram a página do
jornal nos quadros de aviso.
Fui me preparar para o meu décimo teste: no Citibank. Cheguei lá e
ninguém me perguntou nem falou nada. Fiz o teste e fui embora. Tinha achado
tudo muito estranho. Consegui fazer tudo à mão, não usei o braile nem nada
porque enxergava um pouquinho. Só que precisei de mais tempo e eles me deram.
Fiquei o dia todo lá. Eu não estava acreditando. Já havia perdido as esperanças.
Como achava que não seria aprovada, resolvi acampar, que era algo que
adorava. Pretendia ir com uma turma de amigos da Prodesp. Aliás, entre 1975 e
1978, foi a época em que mais acampei. Era fácil. Não precisava de nada. Andava
devagar, mancando, como dizia meu ex-marido, “remando sem usar aparelho ou
bengala”.
Estava me preparando para a viagem, quando meu pai me disse: “Liga lá
no banco para saber. Quem sabe?” Liguei e ouvi: “Amanhã você vem fazer a
entrevista.” Desliguei e a primeira coisa que disse foi: “Ih! Meu camping!” Pensei
primeiro no meu acampamento porque realmente não estava acreditando!
321
Mesmo assim, fui até lá, no dia seguinte, fazer a entrevista e conversei
com três chefes. Um deles falou: “Você pediu muito. Só podemos pagar tanto.”
Decidi fazer diferente e aceitar só para saber qual seria a desculpa deles: “Tá bom,
então, aceito.” Ele respondeu: “Então, tá bom. Você vai passar pelo exame
médico.”
Aí não me segurei e falei: “O exame médico vai me reprovar se vocês não
avisarem lá que é para me contratar, apesar da minha deficiência. Não quero mais
ficar passando por exame médico como desculpa. Se vocês estão a fim de me
contratar, avisem para eles. Caso contrário, me falem agora que não querem me
contratar!” Ele me disse: “Pode ir sossegada. Não tem problema.” Fui e me
contrataram. Havia ficado nove meses procurando emprego. Entre maio de 1975 e
janeiro de 1976. Fiquei nove anos no banco. Fui promovida. Trabalhei para valer e
foi muito bom. Tive chefes que confiaram realmente no meu trabalho. Eles
perceberam que eu desempenhava bem tarefas mais complexa, pois eu sempre
entregaria dentro do prazo.
Recebia os programas mais complicados do sistema e, de fato,
profissionalmente, no Citibank, eu me realizei. Dava até para esquecer que era
deficiente, porque não tinha restrição. Trabalhei de verdade e eles confiaram no
meu trabalho a ponto de receber promoções. Foi muito bom, embora isso não
tenha acontecido durante todos os nove anos. Mas, foi assim, pelo menos, nos
cinco primeiros.
Depois, as chefias foram mudando e aí é o que sempre acontece na vida
do deficiente. A cada mudança, você precisa começar do zero. Ninguém quer
saber o que você fez, se o chefe anterior acreditava, nem o que você conseguia
fazer. Tem de provar tudo novamente. É como se nada que você tivesse feito antes
existisse, é como se você estivesse entrando naquele momento. Essas mudanças
coincidiram com a época em que me casei e tive dois filhos.
Depois que entrei no Citibank, meu sonho era morar sozinha, mesmo sem
saber se conseguiria realizar todas as tarefas da casa. Seria um tratamento de
choque, mas acreditava que morar sozinha seria a conquista de minha
independência. Poderia viver e fazer as coisas do meu jeito.
Em 1977, comprei meu apartamento. Meu pai, apesar de estar “louco da
vida”, acabou me ajudando e aceitando. Isso, ao mesmo tempo em que dizia que
eu estava matando minha mãe. Claro que era chantagem dele. Mas achei que
tinha de sair antes de minha irmã caçula. Depois que ela casasse iria ser pior.
Comprei uma quitinete na Rua Brigadeiro Tobias, que era perto do Citibank, na
esquina da Avenida São João com a Avenida Ipiranga, e assim dava para ir a pé.
Era perfeito para mim.
Eu tinha muitos amigos e uma vida social e cultural bastante intensa. O
meu apartamento era sempre frequentado pelos amigos e alunos deficientes
visuais, que vinham aprender a linguagem Cobol comigo.
Em 1975, inspirados na carta enviada ao Jornal da Tarde, montamos um
grupo com o objetivo de reivindicar a abertura do mercado de trabalho aos
deficientes visuais e mostrar ao público em geral as grandes dificuldades
enfrentadas por essas pessoas, na conquista do seu espaço.
O senador Franco Montoro, que foi meu professor, apresentava no
Congresso os projetos que enviávamos a ele. Esse grupo, que ao longo de 1976
acabou se dispersando, foi chamado novamente por mim em 1977, para fundarmos
uma entidade, com os seguintes objetivos: integrar o deficiente visual na
sociedade, principalmente através de sua inserção profissional; buscar diminuir os
preconceitos sociais pela convivência; levar aos não deficientes as informações
sobre suas capacidades e aos deficientes a conscientização de seu papel na
conquista de sua cidadania. Seria uma entidade com participação e direitos
igualitários de deficientes e
322
não deficientes e se chamaria Adeva (Associação de Deficientes Visuais e
Amigos). A partir daí, começamos a planejar o estatuto, que foi registrado em 9 de
agosto de 1978.
Em 1979, Marcos, de Salvador, veio fazer o curso de Cobol em São Paulo,
pois tinha sofrido um acidente automobilístico, no qual perdeu a visão. A empresa
na qual trabalhava, a Dow Química, sabendo que em São Paulo havia
programadores cegos, determinou que ele viesse para cá, fizesse o curso e
retornasse para a empresa para trabalhar na área de processamento de dados. Ele
me procurou e eu lhe dei o curso o mais rápido que pude, dando aulas em qualquer
período, gravando o material para ele. Conseguimos. Ele retornou para Salvador
no final do ano e, no início do ano seguinte, começou na empresa como
programador.
Ele acabou por encaminhar outro colega deficiente visual para São Paulo,
para fazer o mesmo curso. Esse rapaz fez o curso de Cobol, terminou seus
estudos e, em 1981, começou a trabalhar como estagiário e a participar da Adeva.
No começo desse mesmo ano, iniciamos nosso namoro e, em setembro, nós
casamos. Foi tudo realmente muito rápido.
Tivemos dois filhos. Nas duas gestações foi necessário tirar algumas
licenças, pois, devido ao meu tamanho, a criança pressionava meu estômago, o
que me fazia vomitar, principalmente à noite. Pelo menos, não engordei, emagreci!
Diante da grande quantidade de exames de raios X que fiz durante toda minha
vida, minha gravidez era considerada de risco.
Depois de consultar vários especialistas famosos, que só me assustaram
sobre esse risco, além do sofrimento que poderia passar, resolvi consultar outro
médico, que cuidou de uma amiga que havia sido mãe recentemente. Ele não era
muito conhecido, no entanto, tinha sido assistente de um especialista considerado
muito bom profissional. Seus comentários foram animadores: “Tá tudo bem. Mas,
claro, que você, provavelmente, pode ter um filho prematuro de 7 meses, mas, isso
não é problema nenhum. Quando você estiver no sétimo mês, daremos uma
injeçãozinha para fortalecer o pulmão do bebê. Um filho de 7 meses tem toda a
probabilidade de viver. O que vier a mais de 7 meses vai ser lucro.” A sensação foi
tão boa que meus dois partos foram feitos por ele.
Meu primeiro filho nasceu uma semana antes do que ele havia previsto.
Tomei a injeção com sete meses, conforme o combinado. O bebê nasceu com 51
centímetros e 3,580 quilos. Um “nenezão”, mas, tranquilíssimo. Apenas tive medo
de que ele tivesse de ir para incubadora. Até fui me informar sobre qual era o
melhor berçário de São Paulo, porque sabia que ir para incubadora era um risco.
Conheço várias pessoas que ficaram deficientes visuais após exposição excessiva
ao oxigênio desses aparelhos.
Decidi que meu filho teria de nascer no melhor berçário de São Paulo. Fui
para a maternidade do hospital Albert Einstein. Sempre falo que tenho que
agradecer muito a Deus porque tive como fazer economias suficientes para isso.
Gastei exatamente o que tinha e não fiquei devendo nada para ninguém.
Engraçado que essa aventura de ser mãe foi uma coisa muito doida.
Achava que não poderia. Eu me via tão cheia de deficiências que achava que não
poderia engravidar. Mesmo tendo consultado a médica, que afirmou que não
haveria problema algum, eu ainda não acreditava que seria possível. Na hora que
vi que estava grávida foi a maior realização de todas! Por isso, não quis nem saber
das minhas dificuldades. Para mim, custasse o que custasse, nunca iria fazer nada
para não ser mãe. Não queria saber de objeções, queria acreditar e queria que me
ajudassem a acreditar. E tinha certeza, acreditava piamente que teria um filho
normal e que não ia ter problema.
Logo eu, que era medrosa em relação a dor. Até por tudo que havia
sofrido com as fraturas. Mas não tive medo de ter filhos. Não tive nenhum medo do
parto cesariano. Agora,
323
sobre a parte de cuidar, não tinha a menor ideia. Nunca tinha cuidado de criança.
Ninguém tinha confiado em mim para me deixar fazer alguma coisa com bebês.
Jamais tinha trocado uma fralda.
Quando Fernando nasceu, a Iêda, uma amiga deficiente visual, morava
conosco. Dos três, ela foi quem teve mais coragem no início, fazendo, ajudando e
ensinando tudo o que podia. Sabia lidar com crianças porque as irmãs tinham
confiado nela para ajudar a cuidar dos sobrinhos. Essa moça morava comigo já há
um tempo e era muito independente, não deixava ninguém cuidar de suas coisas.
Ela lavava e passava sua roupa tão bem que andava impecável. Além disso,
arrumava a casa de um jeito que não ficava um pozinho em lugar nenhum, e
também cozinhava muito bem. Era uma pessoa maravilhosa. Mas, infelizmente, já
faleceu.
Meu marido também não ficava atrás. Foi ele quem deu o primeiro banho
no bebê. Entre outras coisas, meu pai havia ensinado a ele como se pegava um
recém-nascido com um braço só. Eu fui quem demorou um pouquinho mais. Com o
tempo, fui criando coragem e comecei a fazer tudo também.
Fora eles dois, não deixei ninguém da família ir lá para casa. Também não
quis saber de ficar com minha mãe. Fiz isso porque sabia que, se eles estivessem
por lá, eu continuaria a achar que não saberia nunca fazer nada. Assim, fomos nós
três que demos conta daquela novidade toda. Depois dessa experiência, o
nascimento do segundo foi bem mais fácil. Contratamos uma empregada
mensalista para ficar com o bebê durante o dia, pois retornei ao trabalho. Não tive
empregada à noite nem nos finais de semana.
Desde a época de minha segunda gravidez algumas transformações
ocorreram no Citibank, pois toda a diretoria foi alterada. O pessoal que era chefe foi
para o exterior e a nova não estava muito interessada na questão do funcionário
deficiente. Esses acontecimentos coincidiram com a introdução dos terminais de
computador. Os programas, que eram codificados manualmente e perfurados em
cartões, passaram a ser digitados pelo programador diretamente nos terminais.
Antes mesmo de analisarem se eu iria conseguir ou não trabalhar no terminal, eles
já acreditaram que não seria possível e pronto! Inclusive colocaram o equipamento
da minha sala num lugar tão alto, que não tinha a menor chance de eu alcançar.
Acho até que fizeram assim para que não alcançasse mesmo. E, então, também
passei a achar que não ia ser possível. Ao mesmo tempo, não tinha condições de
experimentar, logo, não dava para ter certeza.
Depois, quando nasceu meu segundo filho, o banco esperou passar um
mês da volta da licença e me fez uma proposta. A ideia era me mandar para uma
entidade onde eu daria cursos durante três anos e o meu salário seria pago pelo
Citibank. Indiquei para eles uma associação, a APPD (Associação dos
Profissionais de Processamento de Dados) aqui de São Paulo e fui para lá.
Durante esse período, fiquei procurando emprego, o que acabei conseguindo
exatamente após o término do acordo com o banco. Por isso que não posso
reclamar, pois Deus sempre me ajudou.
Desde a fundação da Adeva até essa época, continuei sempre preparando
as pessoas para trabalhar na área de processamento de dados. Essa colocação,
no entanto, não era fácil. Tentávamos junto ao governo estadual, na Prodam e em
empresas privadas.
Entre 1981 e 1982, a Adeva e outras entidades que estavam surgindo
nessa época, motivadas pelo Ano Internacional das Pessoas Deficientes, lutavam
pela criação de conselhos municipais e estaduais que promovessem a integração
do deficiente, porém, no que diz respeito à abertura do mercado de trabalho a esse
segmento, as coisas não estavam acontecendo. Apesar disso, ainda conseguimos
colocar algumas pessoas no Banespa, Serpro, Cesp e Eletropaulo e, em 1984,
colocamos mais um na Cesp.
324
Fiquei dando cursos e tentando empregar esse pessoal e a mim mesma,
até 1988, quando consegui falar com o prefeito Jânio Quadros sobre o monopólio
que existia na Prodam, que não estava mais contratando e, quando contratava, era
por indicação de alguma entidade. Expliquei a ele que não queríamos indicações
para nossa entidade. Queríamos um processo aberto para todas as instituições,
para que todos pudessem concorrer em condições iguais. O Jânio afirmou que não
aprovava monopólios e assim abriu a oportunidade para que o pessoal da Adeva e
outras pessoas pudessem fazer os testes na Prodam. Dessas pessoas, seis foram
contratadas, inclusive eu e meus alunos.
Eram épocas bem movimentadas e era difícil para conciliar trabalho,
vida familiar e participação na Adeva e em outros movimentos sociais, mas
acabava dando tudo certo. Os trabalhos e eventos da Adeva só podiam ser
realizados à noite e em finais de semana. Sempre levei meus filhos às atividades
da entidade, como bazares, churrascos no Sesc, onde ficava na portaria com o
carrinho do bebê, trocando fraldas e os alimentando, enquanto trabalhava.
Nossos filhos percebiam nossas deficiências, mas nunca deixamos eles se
sentirem responsáveis por serem nossos guias. Eles viam muito o pai ajudar a mãe
e a mãe ajudar o pai. Eles sabiam que, como eu enxergava um pouco, quando
andávamos juntos, dava a impressão de que eu estava guiando meu marido. Ao
mesmo tempo, ele estava me ajudando com o problema físico. Acho que eles não
tinham aquela preocupação de nos ajudarem.
Talvez a situação tenha ficado complicada com a separação. Acho que
pesou muito para eles, psicologicamente. Percebi que eles ficaram meio perdidos
no começo, pensando como teriam de agir daquele momento em diante, em
relação aos pais.
Outra coisa interessante é que eles nunca se queixaram de comentários
preconceituosos na escola. Soubemos, mais tarde, de situações que mostram o
quanto nossos filhos levaram as coisas até na brincadeira. Por exemplo, o meu exmarido usa prótese nos dois olhos. Descobrimos que um dos meninos levou uma
delas para mostrar aos colegas, fazendo gozação: “Olha o olho do meu pai.” Agora
eles contam isso como piada.
No que diz respeito a minha dificuldade física, da puberdade até a
menopausa tive poucas fraturas, mas em 1993 tive uma grave de fêmur e, como
para o meu caso não foi recomendada nenhuma cirurgia, fui para a cadeira de
rodas. Foi na época em que os meninos já estavam um pouco maiores. Um estava
com 11 e outro com 9 anos. Imagino que esse tenha sido um momento complicado
para a cabeça deles.
Eu sonhava em voltar a andar, porém, quando percebi que não era mais
possível, retomei minhas atividades normais. Continuei com as mesmas
responsabilidades e a mesma independência. Quando resolvi “encarar” a cadeira
eu me adaptei. Lutei também para convencer a empresa de que poderia retornar
ao trabalho, mesmo na cadeira de rodas. Não só consegui como também cheguei,
pouco tempo depois, a coordenar uma equipe de programadores durante dois
anos.
Quanto aos anos de militância nos movimentos de pessoas com
deficiência, lembro que foi uma fase bem interessante. A gente participou muito em
nível nacional. Entre 1980 e 1982, procurávamos muito a representatividade não só
em termos de leis, mas, também tentávamos unir as entidades. Porém, havia muita
divergência, tinha aquele pessoal que queria fazer organizações separadas por
deficiências, já outros eram a favor da união. Havia muita polêmica nessa parte.
Mesmo assim, houve a tentativa de fazer alguma coisa juntos, mas, havia muita
desunião. Acho que isso acontece sempre, em qualquer partido político também.
Várias tendências e dificuldades.
325
Porém, esse cenário não impedia que viajássemos e realizássemos
congressos. Fomos para Brasília, fazer contatos com políticos. Fazíamos alguns
eventos e palestras que duravam todo o final de semana. Depois, resolvemos fazer
vários congressos pelo país para saber como fundaríamos a federação de
entidades e movimentos de pessoas deficientes. Foi nessa época que conheci Lia
Crespo, do NID (Núcleo de Integração de Deficientes). Partilhávamos das mesmas
ideias.
Lembro que, na época, São Paulo teve uma posição diferente das outras
localidades. Aqui, fomos favoráveis a uma união, a fazer uma federação de todas
as deficiências, pois achávamos muito mais representativo. Eu, a Lia e as nossas
entidades pensávamos assim. Mas, quando realizamos um congresso nacional, na
região do ABC, aqui em São Paulo, para resolver essa questão, perdemos a
posição. Assim, foram fundadas quatro federações. Uma de deficientes visuais,
uma de auditivos, uma de deficientes mentais e a outra de físicos. Porém, como
prevíamos, não foram entidades fortes, justamente por serem menores. A de
deficiente visual existiu até pouco tempo. Acredito que uma estrutura global teria
sido muito mais forte. Talvez, a nossa posição fosse utópica, porque as
reivindicações eram muito diferentes para cada grupo de deficiências. Foi uma
pena. Mas, brigamos, escrevemos e falamos bastante.
Eu me lembro que íamos às reuniões em São Bernardo usando a perua
Kombi da Lourdes Guarda, que morava no hospital Matarazzo, e depois levava a
gente em casa. Eu ia sentada em cima do motor, mesmo grávida de uns seis ou
sete meses. Além disso, era uma das últimas a ser entregue, e chegava em casa
quebrada.
Quando estava no quinto mês da segunda gravidez, tive uma hemorragia.
Foi no dia em que estava mudando de apartamento. Os homens estavam lá
montando o meu quarto. Estava sentada no chão e eles montando os móveis,
quando senti a hemorragia. Corri apavorada para o banheiro, com medo de perder
o bebê. E, ao mesmo tempo, falava para ele: “Você vai me obedecer! Pelo menos
agora, você vai me obedecer. Você vai ficar quietinho aí! Não vai sair, nem vai se
mexer. Não tá na hora ainda! Fica aí quietinho. Obedece a mamãe. Você vai ficar
aí, não vai sair.” E ele ficou.
Chegando ao médico ele providenciou um ultrassom e, quando fui fazer
esse exame, as mulheres ficaram muito curiosas, acho que pela minha deficiência.
Elas entravam, falavam, olhavam, cochichavam e perguntavam: “Você nasceu
deficiente? Desde quando você é deficiente? Tem mais gente deficiente na sua
família?” Quando relatei tudo ao médico, ele me tranquilizou dizendo que eu estava
com a placenta baixa, mas que voltaria ao normal, recomendando apenas que
tomasse os devidos cuidados.
Como, depois de mais de um mês, não havia acontecido nada, voltei a
minha vida normal de sentar no motor da Kombi e chegar morta em casa. Inclusive
fui participar de um congresso que aconteceu em dezembro, quando já estava nos
últimos dias da gravidez, com a barriga gigante, no qual fiquei falando um tempão
em pé.
Um dia, chegando da Adeva em casa, começaram as contrações. Foi
engraçado porque meu marido havia saído para comprar o remédio recomendado
pelo médico. Recebi a visita de um casal que foi à minha casa se desculpar por
uma pilantragem que haviam feito um tempo antes. Eles e outros deficientes
haviam ido a outra entidade vender algumas cestas de Natal, em nome da nossa
organização, sem que soubéssemos. Eu preferiria que eles fossem embora para
que eu pudesse me arrumar e ir para a maternidade, pois eram pessoas com as
quais não tinha nenhuma intimidade. Eu dizia: “Tá tudo bem. Acabou. Vamos
esquecer isso.” Andava pela sala, porque parecia que assim sentia menos a
contração, e repetia: “Tá tudo bem. Vamos esquecer isso.” E eles insistindo: “Você
não quer ajuda? Quer que a gente fique para ajudar a
326
arrumar a mala ou para fazer alguma coisa?” Respondia que não, quase dizendo:
“Pelo amor de Deus, vão embora!” Quando eles, finalmente, saíram e meu marido
voltou, fui para o hospital, direto para a sala de parto. Assim como no primeiro filho,
o segundo nasceu bem rápido. Um nasceu ao meio-dia e meia e o outro à meianoite e meia.
A Adeva, com a Fraternidade Cristã de Doentes e Deficientes (FCD),
coordenada pela Lourdes Guarda; o Movimento pelos Direitos das Pessoas
Deficientes (MDPD) e o Núcleo de Integração de Deficientes (NID), lutaram pela
implantação dos conselhos estaduais e municipais dos direitos das pessoas
deficientes. O conselho estadual foi conseguido no governo de Franco Montoro e o
municipal com Mario Covas. A Adeva participou das primeiras diretorias de ambos
os conselhos. Depois de algumas discordâncias, principalmente referentes aos
critérios de escolha de novos conselheiros, decidimos nos retirar.
Lutávamos para que o conselho fosse paritário, ou seja, para que tivesse
representação das entidades de deficientes, das prestadoras de serviço para
pessoas deficientes e das secretarias de Estado. Percebemos que os conselhos,
apenas sendo consultivos e não deliberativos, muito pouco estavam fazendo.
As deficiências são diferentes e cada grupo tinha suas próprias
reivindicações. Para o deficiente físico, por exemplo, a acessibilidade é essencial,
obviamente. Para o visual, é o acesso à informação escrita, já que seu problema é
a leitura. E isso está relacionado às áreas de educação e cultura. A posição da
minha entidade, a Adeva, e da organização da Lia, o NID, era a de que nunca
reivindicaríamos ações paternalistas ou que sugerissem que as pessoas
deficientes só devam ter direitos e não deveres. Nossa posição sempre esteve
ligada à igualdade, à participação e aos direitos, porém, com deveres.
Mas não devemos lembrar apenas de nossas experiências negativas. Por
isso, quero citar alguns episódios que demonstram que política é a ciência de
promover e realizar o bem comum. Quando estávamos na época da implantação
do Conselho Municipal e fazíamos as reuniões em pleno saguão da prefeitura, o
prefeito Mario Covas veio até nós, sendo prático e objetivo, como de costume,
perguntou como seria o conselho que imaginávamos. E ele tomou todas as
providências para que o conselho fosse uma realidade.
Noutra ocasião, o prefeito estava inaugurando uma frota de ônibus. A Lia
aproveitou a oportunidade para mostrar a ele sua dificuldade para entrar no
veículo. Ele aproximou-se para ajudá-la e perguntou o que deveria ser feito para
resolver o problema. Ela pediu que ele assinasse um decreto que já se encontrava
em sua mesa, justamente sobre a implantação de ônibus adaptado. Ele
imediatamente mandou buscar o decreto e assinou.
Na época em que ele era senador, precisávamos de um contato em
Brasília e ligamos para o seu gabinete. A secretária disse que ele não poderia
atender naquele momento. Pediu para que deixasse meu telefone para retorno.
Não imaginei que ele fosse retornar porque já estava acostumada a ligar para os
vereadores e não ter resposta! Por volta das 10 e meia da noite, meu telefone
tocou: “Aqui, é o senador Covas, a senhora quer falar comigo?” Ele era assim. Eu o
admiro porque nem mesmo um chefe de empresa nem os vereadores faziam isso.
Estavam sempre ocupados. Ele era senador! E ligou depois das 10 da noite, sem
saber quem eu era, nem o que era a Adeva!
Em 1999, a Adeva conseguiu a aprovação de um projeto com a Fundação
Vitae, no qual obtivemos impressoras braile e computadores. Alugamos um
apartamento na Praça da Bandeira e iniciamos o Centro de Treinamento Bandeira,
no qual seriam ministrados cursos de capacitação em Informática, Telemarketing,
Estenotipia, Educação para o Trabalho etc. A Cesp, que já apoiava as iniciativas da
entidade, cedeu os seus funcionários deficientes visuais para
327
trabalharem na Adeva. A partir do ano 2000, eu e Markiano passamos a implantar
e coordenar o Projeto Desenvolvendo Talentos. O Carlos assumiu a Informática;
Célia e Celso, a Gráfica. Paralelamente, solicitávamos ao governo de São Paulo
um local para o nosso Centro de Treinamento, pois o nosso era alugado.
Um dia, quando eu estava na minha mesa, na Cesp, e o Markiano – que é
o presidente da Adeva atualmente – estava na outra mesa, ao meu lado, tocou o
telefone, ele atendeu e ficou até assustado. Foi engraçado: “É o governador! O que
falo?” O Mario Covas queria saber se nós poderíamos encontrar com ele, na tarde
do dia seguinte. Eu disse que tudo bem e ele nos recebeu. Nesse dia, 6 de outubro
de 2000, o governador fez uma surpresa, assinando o decreto que nos cedia a
utilização de um espaço no Colégio Estadual Marina Cintra, e pediu aos seus
secretários que montassem um grupo de trabalho, no sentido de viabilizar todas as
adaptações e instalações necessárias. Só foi inaugurado após seu falecimento,
com a presença de sua esposa, em 2001, como Centro de Treinamento Mario
Covas.
Em 2002, inauguramos, no mesmo espaço, o Infocentro para deficientes
visuais, com a presença do governador Geraldo Alckmim. Alguns anos depois, o
Centro de Treinamento Mario Covas foi transferido para o Colégio Estadual Lasar
Segall. O projeto Desenvolvendo Talentos, que está completando dez anos,
ampliou sua grade de cursos, com Telecurso; Montagem e Manutenção de
Microcomputadores; Programação Cobol; Auxiliar Administrativo, Inglês, além do
Braile e da Locomoção, entre outros.
Durante esse período, devemos ter completado aproximadamente 10 mil
atendimentos. A nossa Gráfica, além de confeccionar nosso material didático,
presta serviços ao público em geral. Temos colocado inúmeras pessoas no
mercado de trabalho e, graças aos nossos parceiros de sempre e outros novos,
estamos realizando nosso sonho de integração dos deficientes visuais na
sociedade, através do trabalho.
Imagem. Foto em preto e branco. Numa sala com carteiras escolares duas mulheres e dois homens, todos com crachás portando seus nomes. Legenda: Reunião Colégio
Anchietanum, 26 de fevereiro de 1980, com Adolfo Perez Esquivel. Ieda, Sandra e Orlando. Acervo digital Memorial da Inclusão. Doação Lia Crespo.
328
Imagem. Jornal Folha de S. Paulo, de 24 de julho de 1980. Congresso termina com recomendações sobre deficientes. Uma associação de deficientes físicos, entidades e
pessoas que defendem seus direitos e interessadas na promoção de sua integração na sociedade foi proposta ontem, no encerramento do 2.o Congresso Brasileiro de
Reintegração Social, cujo tema central foi “A Realidade de Trabalho das Pessoas Deficientes”.
Entre as conclusões apresentadas pelos demais grupos de trabalho, destacam-se as seguintes recomendações: “O cumprimento da legislação sobre vendedores
ambulantes é fundamental para o benefício do deficiente, com a eliminação dos “marreteiros”; as empresas devem eliminar ou reduzir as condições de trabalho que
geram deficiência física nos empregados; a reabilitação deve ser matéria curricular em cursos universitários de psicologia, serviço social, medicina, educação,
enfermagem e terapia ocupacional; a filosofia de reabilitação deve ser praticada já nos hospital (sic), onde o paciente entra depois de acidente ou doença grave; melhorar
a orientação da família quanto aos problemas do deficiente”.
Para o próximo Congresso Brasileiro de Reintegração Social, a ser organizado em São Paulo ainda sem data marcada, foi proposto que se inclua em sua temática
problemas ligados à família, à sexualidade dos portadores de deficiência, à catequese diferencial e ao lazer dos deficientes, assim como sua realização seja feita em
cinco dias e que se tente conseguir a participação das autoridades e entidades ligadas ao problema.
Legenda: Folha de S.Paulo, 24 de julho de 1980. Acervo digital Memorial da Inclusão. Doação Romeu Sassaki.
Imagem. Jornal O Globo, de 13 de maio de 1981. Deficientes relançam campanha na Câmara de SP. São Paulo (O Globo) – O Ano Internacional das Pessoas
Deficientes será relançado amanhã no plenário da Câmara Municipal de São Paulo pelo Movimento pelos Direitos das Pessoas Deficientes (MDPD). Segundo a
entidade, o Brasil possui 12 milhões de deficientes físicos, mentais, visuais e auditivos.
A campanha será relançada porque no último dia 14, quando o Presidente João Figueiredo realizou a abertura oficial do ano “anunciou o nome errado, ficando apenas
como Ano Internacional do Deficiente Físico”. O MDPD explicou que Figueiredo esqueceu os deficientes mentais, visuais e auditivos.
- O principal objetivo dos trabalhos – disse Romeu Kazumi, membro da coordenação geral – é levar ao público o problema e engajar as autoridades e a sociedade na
luta para igualar os deficientes na vida comunitária.
A programação prevê a realização de mesas redondas todos os meses, até novembro, para debater temas como “Espaço Urbano”, “Trabalho”, “Transportes”,
“Assistência médica, reabilitação e equipamentos auxiliares”, “Legislação”, “Lazer e esportes”, “Educação” e “Relações humanas e sociais”.
O maior problema dos deficientes, explicou Romeu Kazumi, é a dependência dos deficientes em relação a outras pessoas.
Legenda: O Globo, 13 de março de 1981. Acervo digital Memorial da Inclusão. Doação Romeu Sassaki.
329
Imagem. Jornal Diário Popular, de 07 de dezembro de 1980. Deficientes querem respeito e Justiça: “Basta de paternalismo!” “As pessoas portadoras de deficiência
consideram-se uma parcela integrante da sociedade e exigem respeito afetivo aos direitos e deveres que lhe são reservados para participarem plenamente da vida
comunitária e contribuírem como seres humanos socialmente úteis”.
Esse parágrafo faz parte dos princípios específicos contidos numa carta-programa lançada ontem na Assembléia Legislativa por elementos pertencentes ao Movimento
pelos Direitos das Pessoas Deficientes, cujo objetivo é lutar, ombro a ombro, pela participação plena das pessoas deficientes em todo o Brasil.
Esse movimento é de natureza político-apartidária aberta a todas as entidades e pessoas que desejam conscientizar a sociedade a respeito da verdadeira imagem da
pessoa deficiente. Em função de 1981 ter sido denominado pela ONU como o “Ano Internacional das Pessoas Deficientes” é que esse movimento aproveitou o ensejo e
está mobilizando o número maior possível de correligionários que por ventura se entusiasmem com o tema: deficiente físico. E para tanto é que o movimento elegeu as
seguintes metas prioritárias para serem desenvolvidas no ano que vem, através de seminários e palestras: “Barreiras Arquitetônicas e Transporte”; “Trabalho e
Profissionalização” e “Saúde e Reabilitação”.
Objetivos. O plano de trabalho que deverá ser empreendido vai desde defesa dos direitos da pessoa deficiente; eliminação de barreiras ambientais, estabelecimento de
padrões mínimos de qualidade e quantidade para os programas e serviços de reabilitação de pessoas deficientes, bem como para os equipamentos e aparelhos auxiliares,
até representatividade junto aos poderes constituídos para defender os interesses das pessoas deficientes na elaboração de programas que pretendam beneficiar toda a
população.
Ainda de acordo com o grupo que coordena o Movimento, liderado por Cândido Pinto de Melo, José Evaldo de Melo Doin, Vinícius Gaspar Viana de Andrade, Maria
de Lourdes Guarda, Leila Bernaba Jorge, Luis Celso Marcondes de Moura e Romeu Kazumi Sassaki, além de ser necessário o incent ivo a formação de núcleos de
pessoas deficientes em bairros e cidades, orientando-os e dando-lhes cobertura com material de divulgação, informações, etc. é preciso que se mude a idéia e o conceito
de que os deficientes físicos são seres inferiores em capacidade profissional e respeitabilidade, ou mesmo incapazes de tomar decisões por si mesmos.
De volta a realidade. “As atitudes paternalistas foram aceitas pacificamente durante longo tempo, sem questionamento e sem consciência de uma realidade que a cada
dia se torna mais ameaçadora” comenta a carta-programa, apontando em seguida os fatos que eles consideram principais focos de marginalização social: Existência de
instituições de permanência, onde os deficientes e anciãos deterioram-se solitários, humilhados e sem assistência até a morte; preconceito de que a deficiência seria um
castigo divino por um pecado cometido; despreparo técnico de profissionais de saúde e de reabilitação que, inadvertidamente, têm assumido uma postura de
superioridade com seus clientes, não consultando a opinião destes sobre suas próprias necessidades e opções e, finalmente, sentimento de piedade que a sociedade
demonstra para com as pessoas deficientes e a existência de barreiras ambientais impedindo pessoas deficientes de ter acesso à escola, às urnas de votação, ao trabalho,
aos locais de lazer e outras tantas mazelas.
Partindo do princípio de que as pessoas deficientes descartam todo e qualquer benefício que tenha característica de dádiva, privilégio ou concessão, é que eles acreditam
que apenas uma ação conjunta, consciente e com poder de pressão, pode esclarecer e mobilizar o Estado e a sociedade para o diferencial de necessidades das pessoas
deficientes.
Para os integrantes desse movimento, lançado ontem oficialmente na Assembléia Legislativa, e que contou com a presença de centenas de correligionários e até mesmo
entidades representativas, os contatos ficam ao encargo de Dona Lourdes ou Leila através dos telefones: 284-5493 ou 65-6739. As correspondências deverão ser
endereçadas à Rua Joaquim Antunes, 611/53 – CEP-05415 São Paulo SP. Bruno Torre.
Legenda: Diário Popular, 7 de dezembro de 1980. Acervo digital Memorial da Inclusão. Doação Romeu Sassaki.
330
Wilson Akio Kyomen
Imagem. Retrato colorido de Wilson Akio Kyomen. Contêm epígrafe: “Havia muitas viagens para várias partes do país durante o Ano Internacional. Eu circulava mais
pelo Estado de São Paulo porque, devido ao trabalho, não dava para me ausentar muito. Tanto é que a única viagem longa que fiz foi para um congresso que aconteceu
em Recife, mas não me recordo da data exata.”
eu nome é Wilson Akio Kyomen. Tenho 47 anos. Nasci no dia 8 de abril de
1963, em Sapopemba, que fica na Zona Leste de São Paulo. Sou o filho
caçula de uma família de três irmãos. Mas minha irmã já morreu.
Meu pai, um japonês nato, conheceu minha mãe, uma brasileira, filha de
japoneses, aqui na cidade. Minha família mora no bairro desde a década de 1960 e
foi uma das primeiras da região. Hoje, resido e trabalho no bairro como professor
em duas escolas, no período matutino e vespertino.
Apesar da minha deficiência, tive uma infância praticamente normal.
Geralmente, brincava em casa com meus amigos. Na minha turma, era comum
inventarmos vários jogos. Por exemplo, como não podíamos jogar futebol
convencional, criávamos algum jogo parecido, no qual, geralmente, eu era goleiro.
Também gostávamos de futebol de botão. Mas havia outras coisas, como xadrez e
outras brincadeiras que não exigiam muitos movimentos.
Sobre minha deficiência, não nasci com ela. Tive poliomielite aos 8 meses
de vida. Então, praticamente, não cheguei a andar. Mas, graças a Deus, minha
família reagiu com naturalidade e minha mãe sempre teve o objetivo de me dar
todo o apoio possível para que eu fizesse uma reabilitação adequada.
Ela foi a todos os lugares possíveis. Não mediu esforços. Até que
chegamos à AACD (Associação de Assistência à Criança Defeituosa80), onde
passei a fazer fisioterapia, natação e outras atividades, duas ou três vezes por
semana. Mas, nunca fui interno, nem semi-interno da associação. Minha mãe me
levava, permanecia e participava todos os dias em que tinha horários de
reabilitação.
Graças a essas atividades na AACD, pude conquistar alguns movimentos.
Consegui recuperar um pouco da minha mobilidade e pude andar com aparelho.
Mas, isso aconteceu apenas após os 4 anos de idade. Ainda me lembro do período
em que estava treinando para andar. Era a minha irmã quem me segurava e me
ajudava a dar os primeiros passos.
No começo, mesmo com as muletas, sempre ficava paralisado. Foi difícil
dar o primeiro passo. Até que certo dia 12 de novembro, data de aniversário da
minha mãe, tornou-se inesquecível para todos nós. Foi quando consegui dar meu
primeiro passo. Uma vitória muito grande, tanto para mim quanto para ela!
Assim, continuei a viver com seu apoio até o dia em que ela se foi, há cinco
anos. Aquela mulher acompanhou minha luta em todos os momentos, desde a
infância até depois de meu casamento. Foram muitos anos ao meu lado, sempre com
aquela preocupação típica de mãe...
M
80
. Hoje, Associação de Assistência à Criança Deficiente.
331
Durante minha infância, não tive tanto contato com outras pessoas
deficientes. Houve um coleguinha que conheci na casa da minha madrinha, quando
fui visitá-la certa vez. Éramos muito pequenos na época. Brincamos juntos algumas
vezes, até que perdi contato com ele.
Só depois de mais de dez anos, quando estava no ensino médio, voltei a
encontrar aquele coleguinha deficiente. Sempre estudei nas escolas públicas
próximas de casa. Coincidentemente, fomos estudar no mesmo local. Porém, foi
um reencontro muito rápido. Por isso, não criamos um vínculo de amizade muito
duradouro, não.
Existiram outros momentos marcantes durante minha infância. Um deles
foi quando, primeira vez, pisei numa quadra para jogar futsal. Estava com 13 anos
e estudava com uma turma de reposição da sétima série, do antigo primeiro grau.
No ensino médio, foi a primeira vez que participei de uma aula de Educação Física!
E isso só foi possível porque meus próprios colegas de sala insistiram para que eu
jogasse.
Eles sabiam que eu gostava de futebol e convenceram o professor, que
permitiu minha participação, e acabou dando certo no final. O gesto da minha
turma tornou esse momento mais especial ainda, porque não havia sido uma
iniciativa ou um pedido meu. Eles é que se prontificaram a me incluir naquela
atividade por saber o quanto eu gostava daquele esporte.
E jogar futsal, ou fazer pela primeira vez qualquer coisa que a gente goste
muito, é algo que ninguém esquece! É uma emoção muito grande que eu não
esperava. Considero que foi praticamente um presente dos meus colegas de
escola. Algo como um acolhimento geral muito bom, inclusive do professor. Depois
daquela experiência, houve outras, nas quais o professor mesmo me deixou livre
para participar quando eu quisesse.
Diria que esse gesto fez com que me sentisse mais incluído. Enfim, foi
algo muito especial e que não teve nada de paternalista. Algo no sentido de: “Ah…
coitadinho… Ele nunca pode jogar. Vamos deixá-lo ver como é, ao menos uma
vez.” Acho que a parte de minha vida escolar se resume a isso. Entendo que o final
foi melhor do que o começo.
Entre minha primeira e terceira séries, ainda estávamos sob o regime
militar. Por isso, tínhamos de cantar o Hino Nacional, com a bandeira postada,
cada vez ela era segurada por um aluno. Eles faziam com que eu ficasse lá na
frente também.
Acho que tive sorte com meus professores, porque poderiam ter me
deixado de lado, inclusive nesses momentos. Mas, sempre fizeram questão de que
eu participasse de todas as atividades possíveis. Isso também é marcante porque
criou uma espécie de continuidade no meu processo de crescimento e convívio
social, uma coisa que foi cada vez melhor para mim.
Nunca fui colocado de lado em nenhum momento, não sinto que
ocorreram momentos de exclusão e essa parte foi muito boa. Porém, já vi
situações assim, durante meu trabalho. E, quando vejo como alguns professores
interpretam – ainda hoje – o tema da inclusão, isolando a pessoa portadora de
deficiência, durante certas atividades, isso ainda me deixa muito perturbado.
Minha formação prosseguiu assim. Saí do ensino médio com o magistério
e logo comecei a trabalhar na área, embora não fosse o que quisesse. Gostaria de
atuar em fonoaudiologia e já estava até trabalhando nisso, junto aos movimentos
do pessoal deficiente.
E é engraçado. Eu tinha a profissão, o local para trabalhar, tudo
preparado, só faltava entrar na faculdade, mas não consegui. A fonoaudiologia era
uma área nova no Brasil. Havia poucas vagas nas universidades, algo entre 15 e
25 vagas. A PUC (Pontifícia Universidade Católica) ofDecidi trabalhar no
magistério, enquanto tentava o vestibular. Terminei ficando na Educação até hoje.
Agora, não mudo de jeito nenhum. Em parte achei que essa mudança foi boa.
Porque, caso tivesse entrado no curso, estaria em uma situação difícil, já que teria
de pagar
332
as mensalidades e os meus pais não tinham condições. Eu teria dificuldade para
trabalhar e estudar em um curso de período integral.
Recebi o resultado da prova da PUC pelo correio. Não me esqueço: minha
classificação foi 104. Como era comum que aqueles que prestavam o vestibular da
Católica também se inscrevessem para a USP (Universidade de São Paulo), eu
teria alguma chance, porque sempre havia desistências. Mas, naquele ano, foi
diferente porque ninguém tinha passado na USP.
Fiquei muito frustrado e decidi que não iria tentar novamente. Optei por
fazer outra especialização no magistério. Acabei optando por Letras. Depois, fiz
Pedagogia, mas resolvi me dedicar mais ao ensino mesmo, porque já estava
começando a me apaixonar por ele. Muito mais do que agora, quando já estou um
pouco cansado. Depois de 28 anos na área, vi muita coisa e é tempo suficiente
para se cansar também. Mesmo assim, acho que a aposentadoria ainda vai
demorar um pouco.
Naquele tempo, no começo dos anos 1980, eu estava terminando o ensino
médio e o magistério. Já tinha uma atuação junto ao movimento das pessoas com
deficiência. Conheci esse campo pelo fato de sempre gostar de ler jornais para me
informar. Por isso, já sabia que o ano seguinte seria o Ano Internacional das
Pessoas Deficientes.
No mesmo período, tinha ouvido falar de um ou outro movimento. Entrei
em contato com o Núcleo de Integração de Deficientes, o NID. E a primeira pessoa
com quem tive contato foi a Lia e, depois, conheci a Ana Rita. Elas me convidaram
para participar de uma reunião. A partir daí, comecei a frequentar sempre. Era
novo, tinha 18 anos, mas já estava “antenado” com as coisas.
A minha participação, principalmente entre os anos 1980 e 90, foi muito
intensa, não só no movimento de pessoas com deficiência, mas também no
sindicato na área educacional. Então, todo o meu tempo era tomado por essas
ações. Eu conseguia dividir tudo dentro do que era possível, já que tinha três
funções, fora o magistério.
Eu era conselheiro na Apeoesp (Associação dos Professores do Ensino
Oficial do Estado de São Paulo) – hoje, exerço a mesma função pelo Sinpeem
(Sindicato dos Profissionais em Educação no Ensino Municipal de São Paulo) – e
militava no movimento das pessoas deficientes, mais precisamente, no NID e,
depois, no CVI-Araci Nallin, além do trabalho em sala de aula. Depois de conhecer
todo o trabalho do movimento, assumi vários postos porque gostava da atuação.
Hoje, diria que já fechei alguns ciclos de minha vida. Continuo com
atividades apenas em relação à deficiência, que é uma luta interminável à base de
planejamentos seguidos. Ou seja, sempre que alcançamos um objetivo,
começamos um novo plano para continuar atingindo outros objetivos. E isso nada
tem a ver com “replanejar”. Por isso, nunca vou fechar a militância no movimento
de pessoas com deficiência. Já, no caso dos sindicatos, estou praticamente
encerrando minha participação, porque a parte política me esgotou um pouquinho.
Mas, na época, tudo era novo para mim. Aquele mundo se abriu à minha
frente e me fez pensar: “O que vai acontecer?” Discriminação eu nunca tinha
sofrido… Mas, poderia sofrer... Mesmo que ser estagiário no magistério era
praticamente ser professor, ainda não me considerava plenamente inserido no
mercado de trabalho.
Apesar de conseguir trabalhar, ao mesmo tempo, ficava pensando sobre
outros assuntos da minha vida pessoal, era quando apareciam aquelas dúvidas de
toda pessoa saindo da adolescência. E, no meu caso, isso se somava à questão de
ser aceito com minha deficiência.
Ainda tinha outro ponto: “Vou casar ou não vou casar, ter filhos ou não?
Vou morar sozinho?” Enfim, havia muitas coisas que me chamavam a atenção.
Eu sabia que havia,
333
no movimento, pessoas que também pensavam sobre os mesmos assuntos,
além de estarem ali com os mesmos objetivos. Estar com eles, naquele
momento, foi muito bom porque me motivou.
Digamos que nos primeiros anos de minha trajetória no movimento,
praticamente, só convivi. Não fui muito ativo. Tanto que o pessoal falava que eu
não abria a boca. A primeira pessoa com quem tive contato presencial foi a Lia,
numa reunião do movimento na FMU (Faculdades Metropolitanas Unidas). Ela
havia chegado cedo, junto de seu irmão e, como estávamos apenas nós ali,
começamos a conversar. Esse primeiro contato foi, assim, meio casual.
Eu queria descobrir mais, por isso fiquei algum tempo apenas ouvindo,
sem conseguir abrir a boca para falar quase nada. Isso está relacionado ao meu
jeito de ser. Mas, acredito que tive fases. Na infância, por exemplo, era um
tagarela. Depois, na adolescência, fiquei mais calado.
Essa reunião não era particularmente do NID. Era do movimento das
pessoas deficientes que, depois, acabou virando uma organização não
governamental chamada MDPD (Movimento pelos Direitos das Pessoas
Deficientes).
Até foi engraçado porque depois de ficarmos alguns anos sem nos enc
ontrar, a Lia me chamou para participar da formação do Centro de Vida
Independente Araci Nallin (CVI-AN) e, em uma das reuniões, ela brincou assim:
“Ué?! Ele fala?” Porque, até então, eu não abria a boca. Mas, nesses encontros já
estava mais solto, porque conhecia mais o pessoal e me sentia com liberdade para
falar.
Embora acredite que essa liberdade para falar tenha nascido no convívio
no movimento e com o NID, também foram importantes as outras vivências e os
outros aprendizados que tive, até mesmo na própria docência.
Quando comecei a trabalhar, fui lidar com crianças, e aí tinha de falar.
Depois, acabei pegando uma coordenação pedagógica, área na qual também era
obrigado a me expressar, não havia outra opção. Mesmo assim, até hoje, falo com
alguma timidez.
Isso tudo aconteceu no decorrer do Ano Internacional. Em 1981, percebia
muita euforia, como se aquilo fosse uma moda. Então, todo mundo procurava os
movimentos das pessoas deficientes, todas as organizações, instituições, para
fazer palestras e outras coisas.
A minha parte era mais direcionada à acessibilidade, educação, lazer e
legislação. Então, pediam palestras em praticamente todo o país. Era, realmente,
uma quantidade muito grande de solicitações. Com isso, cada vez mais a gente
adquiria mais conhecimento.
Ao mesmo tempo, as pessoas que viviam nessas cidades aonde a gente
ia começavam a conhecer cada vez mais os movimentos. Começavam a se
engajar e formar novos núcleos, grupos ou instituições. Foi assim que presenciei o
movimento crescendo.
Aquela divulgação toda foi muito boa para as pessoas portadoras de
deficiência porque elas aprenderam que existiam outros deficientes. Ao mesmo
tempo, esse grupo passou a ser mais conhecido pela população em geral.
Como era um momento inicial, aconteceram muitos fatos interessantes. Eu
me lembro de um que deixou a gente um pouquinho constrangido. Aconteceu em
Catanduva, onde estávamos eu, a Lia e a Maria de Lourdes Guarda, que conheci
nessa viagem, todos ali para um evento. Um dos organizadores do encontro pediu
para a gente conversar com uma pessoa deficiente que não queria participar.
Aquilo foi desconfortável porque nosso discurso era o de que a pessoa
deficiente tem de ser sujeito e não um objeto do movimento. Isso quer dizer que ela
tem de ir por sua própria vontade para buscar seus direitos. Quando ouvimos
aquilo, olhei para a Lia e ela para mim.
334
Tivemos de falar que não era daquele jeito que atuávamos. Mas até a gente
explicar… No fim, a pessoa acabou convencida, ou melhor, forçada a ir.
Depois, fui conversar com a Lia sobre aquela situação. O interessante
dessa história é que o constrangimento talvez tenha sido maior para nós do que
para aquela pessoa que havia sido levada, vamos dizer assim, à força. Acho que
esse relato mostra bem como a questão da deficiência era entendida naquele
momento. Mas, como tudo era novo para nós, a gente “engolia”. Porém, sempre
aconselhávamos as pessoas no sentido de que apenas fizessem aquilo o que
achassem mais correto.
Havia muitas viagens para várias partes do país durante o Ano
Internacional. Eu circulava mais pelo Estado de São Paulo porque, devido ao
trabalho, não dava para me ausentar muito. Tanto é que a única viagem longa que
fiz foi para um congresso que aconteceu em Recife, mas não me recordo da data
exata.
Enfim, como em quase todos os congressos, existe a parte política,
quando a gente ouve muitas promessas. Mas, na ocasião, também foram
divulgados todos os trabalhos feitos durante o ano. Tivemos um saldo positivo
porque aquela movimentação criou uma semente para os anos seguintes, que
culminou na legislação e na Constituição de 1988. Infelizmente, mais uma vez
devido ao trabalho, não participei das viagens desse período.
Mas pude atuar nos trabalhos referentes à Constituição Estadual. Foi um
período de muita atividade, que começou a colocar na legislação tudo aquilo que
as pessoas portadoras de deficiência precisavam e que entendiam como o início de
um processo de inclusão.
Isso tudo aconteceu exatamente no momento durante o qual o país
começava a sair do período do regime militar. Tudo em relação aos direitos civis
era novidade. Os sindicatos começavam a fazer suas exigências. Todas as
categorias de classe começavam a lutar pelos seus direitos e, no caso do
movimento dos deficientes, não foi diferente.
Havia algumas preocupações naquele momento histórico. Por exemplo, eu
temia muito que houvesse uma avalanche de direitos sendo pedidos, mas que
seriam negados em sua maioria. O fato de sermos vistos como “minoria” dificultava
ainda mais nossa situação. Mas, ainda bem que boa parte do que propomos foi
aprovado.
Naquela época, usávamos o princípio da carta de 1981, que fazia
referência à participação plena e à igualdade. Por isso, a palavra que utilizávamos
era “integração”. Assim, a ideia era que buscássemos meios para nos
“integrarmos” à sociedade.
Mais adiante, o termo foi alterado para “inclusão”, no sentido de abranger,
praticamente, tudo. Porque ela não envolve apenas a entrada do deficiente na
sociedade, mas também o próprio meio social se adequar a essa nova realidade.
Isso representou um avanço muito grande na luta pelos direitos. Claro que o que
aconteceu a partir da Constituição foi marcante. Mas, assim como difícil mobilizar
os políticos, também foi árduo o trabalho pela união de todos os grupos de pessoas
deficientes do Brasil.
No caso de São Paulo, a gente tinha um grande apoio do PT. Isso trazia
preocupações porque os aspectos políticos estavam saindo de um partido de
oposição, vindo de uma classe operária. E, naquele momento, de fim de regime
militar, isso era considerado um problema.
A movimentação que aconteceu entre 1981 e 1988 para consolidar a
legislação e chegar à Constituição foi muito importante. Costuma-se dizer que ela é
bastante progressista na questão dos direitos, não só do deficiente, mas do
cidadão de uma maneira geral.
Creio que o avanço foi muito grande, até por percebermos que nossas
reivindicações estavam sendo postas no papel. Era um início. A gente sabe que,
depois, as leis tiveram de ser baixadas e promulgadas de acordo com a
Constituição. E elas são baixadas até hoje!
335
Penso que ainda vai demorar um pouco para que todas as necessidades
dos deficientes sejam sanadas no Brasil. Mas, dividiria a trajetória de luta em duas
vertentes iniciais: uma que vai até 1988 e outra, a partir do momento seguinte, que
vem para consolidar tudo. Também creio que haverá uma terceira, responsável por
“aparar as arestas”, que ainda são muitas. Mas isso é trabalho para as gerações
seguintes.
Chamo de “arestas” os pontos importantes que precisam ser resolvidos.
Nesse sentido, falo muito mais da minha área que é a Educação. Já temos a
inclusão – e defendo a inclusão total, com unhas e dentes –, mas vejo uma
realidade dentro da sala de aula que precisa ser mudada. Enfim, é uma luta
profissional, mas que não pode lesar o que já foi conquistado.
Observo que o processo de inclusão das crianças nas salas de aula, hoje,
é parecido com o empilhamento de objetos dentro de um depósito. Digo isso
porque falta suporte para essa ação. Embora o discurso diga que esse apoio já
exista, as ações existentes não são eficazes.
Quando trabalhei como coordenador, tive dificuldade para incluir um
deficiente visual, por exemplo. Mesmo pedindo a transferência dele para outra
escola, com uma condição melhor, fui impedido de atuar apenas por que era de
outra Diretoria de Ensino. Esse fato demonstra como a inclusão no âmbito escolar
é um processo complexo, que envolve a falta de preparo dos profissionais da
educação para lidarem com o aluno portador de deficiência.
Fico com aquela impressão de que quem não sente determinada
dificuldade na pele não vai procurar aperfeiçoamento, vai ficar apenas criticando.
Acredito que, geralmente, são aqueles indivíduos com alguma experiência familiar
ou com amigos com deficiência que têm uma visão diferenciada sobre o problema.
Além disso, o ser humano tem o hábito de dizer “não” antes mesmo de saber qual
é a questão. Então, não é culpa do professor ou do sistema.
Porém, há o trabalho dos excelentes professores que vi na prefeitura,
inclusive na escola em que estou. Há uma profissional aqui que trabalhou comigo
na rede estadual. É o caso de alguém que, mesmo sem ter passado por uma
situação de lidar com deficientes, teve um aluno com deficiência visual. E o que ela
fez? Procurou se aperfeiçoar, aprendeu braile, além de várias técnicas de trabalho
e alfabetizou essa criança, que ficou com ela por dois anos.
No ano seguinte, esse aluno passou tudo o que havia aprendido para a
professora que iria acompanhá-lo nos dois anos seguintes. O menino teve um
excelente desempenho até a quarta série. Infelizmente, desandou quando chegou
ao quinto ano e teve de conviver com seis ou sete professores e a situação ficou
complexa. Senti isso como uma derrota muito grande!
Outra história interessante aconteceu na época em que fazia algumas
ações com alunos membros do grêmio estudantil da escola municipal na qual
trabalhava. Ao visitarmos outros estabelecimentos de ensino – como os CEUs
(Centro Educacional Unificado) –, pedia para os alunos prestarem atenção às fotos
que víamos nas mostras culturais realizadas por aqueles estudantes e também
para observarem o comportamento deles. Como já realizávamos atividades juntos
há algum tempo, o pessoal do grêmio sabia o que eu queria mostrar ao fazer esses
pedidos.
Quando vimos um cadeirante, em um desses eventos, perguntei ao meu
grupo: “Qual a diferença entre aqui e a nossa escola, onde temos dois
cadeirantes?” A resposta foi: “É… Parece que eles não participam.” Eu falei: “Pois
é! Vocês conseguem perceber!” Por isso, digo que muita coisa deve ser feita. É
isso que chamo de “aparar as arestas’” a respeito da inclusão.
Já temos as leis responsáveis pelo início do processo, mas falta um
suporte digno e bem estruturado. Sei que há lugares onde as iniciativas já
funcionam bem, mas isso precisa alcançar todos os locais. Não podemos ficar
limitados à questão de que “há escolas e escolas”, “diretorias e diretorias” ou
mesmo “oficinas pedagógicas e oficinas pedagógicas”. Enfim, vejo
336
muita coisa a ser feita, embora fale apenas do setor educacional. As outras áreas
devem ter os seus pormenores também.
Por exemplo, o transporte é uma dessas questões que precisam ser
resolvidas. Muitas pessoas usam o serviço de vans adaptadas, vinculado à
Prefeitura de São Paulo, chamado Atende. Mas reclamam que esperam cerca de
60 minutos até essa condução chegar. Essas falhas ainda acontecem, embora
tenhamos lutado e conseguido algumas vitórias nesses 30 anos de trabalho.
Portanto, sabemos que ainda não é o suficiente. Sendo assim, não podemos parar
de reivindicar.
Mas repito que essa ação, com seu caráter contínuo, é um eterno
planejamento, algo que deve gerar progresso ininterrupto. O que não pode ser
confundido com o replanejar, que seria dar dois passos para frente e um para trás.
Embora defenda essa ideia de planejamento contínuo, vejo que os
trabalhos têm seguido um caminho mais lento, dando dois passos e parando por
um tempo, até os próximos dois passos, e assim por diante. Mas, ao menos, do
jeito que as coisas têm acontecido, não há retrocessos. Essa forma de ver as
coisas fez com que eu postasse uma frase no Facebook: “Penso que a vida é um
eterno planejamento, não um eterno replanejamento.”
Além de toda essa trajetória junto ao movimento, há o aspecto privado de
minha vida, ou seja, minha vida particular como deficiente, que diz respeito ao meu
casamento e ao nascimento de minha filha. Mas para falar sobre isso, tenho de
voltar um pouquinho na linha do tempo.
Digo isso porque, logo depois que comecei a atuar no movimento, ainda
em 1983, acabei entrando em uma escola localizada dentro de uma favela. Eu era
“eventual”, que é a denominação para o profissional que não é efetivo. E durante
todo aquele ano trabalhei com uma sensação estranha de estar sendo vigiado.
Minha suspeita tinha fundamento. A assistente de direção tinha pedido
para uma das meninas da oitava série me ajudar no trabalho da sua sala. Era um
ambiente muito difícil, formado por alunos repetentes de dois ou três anos. Enfim,
era complicado.
Quando o ano terminou, fui chamado por essa assistente que falou:
“Posso te falar uma verdade?” Perguntei: “O quê?” Ela disse: “Quando você entrou
por essa porta e disse que queria fazer inscrição, eu queria negar”. Perguntei o
motivo e ela contou a história de outra professora, com uma deficiência menor do
que a minha, que havia sido admitida, mas faltava mais do que ia trabalhar.
Ela continuou: “Desde então, fiquei com uma imagem negativa em relação
aos deficientes. Eu agradeço por você ter me mostrado que estava errada. Aquela
pessoa que coloquei na sua sala estava lá para me informar sobre seu trabalho. E
ela me dizia que você não a deixava fazer praticamente nada! Por isso, caso você vá
a algum lugar onde eu estiver, terá sempre o meu aval.”
Esse fato me marcou muito porque diz respeito à deficiência. Ela era uma
senhora que já estava se aposentando na época, e acabei, sem saber, quebrando
uma visão preconceituosa que ela carregava sobre o deficiente no trabalho! Aquele
ano, que começou com várias dificuldades, terminou em vitória para mim! Eu
estava recém-formado, era a minha primeira sala, uma turma muito difícil de
trabalhar etc.
Voltando à minha vida particular e ao casamento, minha visão era a de
que deficiente tinha de casar com deficiente. Porque era o que víamos quando
participávamos de atividades dos movimentos. Era deficiente casando com
deficiente ou, devido à convivência, era deficiente casando com psicólogo. Diante
disso, nada mais normal do que pensar que as coisas aconteciam apenas daquele
jeito.
337
Ao mesmo tempo, sentia que a pessoa que eu procurava estaria no
movimento. Mas, não estava. Acabei casando com uma professora que lecionava
na mesma escola onde eu trabalhava e hoje sou pai de uma menina. É uma
história muito longa, mas que começa com minha cunhada sendo minha aluna na
quarta série.
E, no meio do processo, havia aquele receio em relação à aceitação da
família. Mesmo sabendo que comigo não haveria nenhum problema, já que minha
futura sogra já me conhecia. Claro que isso ajudou muito. Mas, mesmo assim,
imaginava que haveria um olhar desconfiado.
Quando minha esposa ficou grávida, sabíamos que não haveria riscos, em
relação à pólio, na gestação. Mesmo assim, pensava: “Será que meus sogros
sabem disso?” Como todo pai e toda mãe, era normal a torcida para que nosso
filho nascesse perfeito. E, de fato, a menina nasceu normal. Hoje, ela me ajuda
muito, além de me trazer muita alegria. Então, essa parte da minha vida já foi
resolvida. Falta apenas escrever um livro e plantar uma árvore…
Como, além de pai, sou educador – assim como a mãe dela –,
inevitavelmente, nossa filha sofre uma cobrança dupla e mais exigente nesse
sentido. E, ao mesmo tempo, ela teve de lidar com minha deficiência. Mas, tive a
sorte de ela perceber rapidamente minhas limitações. Assim, minha garotinha sabe
onde posso ir ou não e lida muito bem com isso hoje.
Tanto é que, quando temos algum compromisso familiar, sua primeira
pergunta é referente à acessibilidade, sobre a existência de escadas etc. Depois de
checar essas informações, ela me avisa se é possível eu ir ao local. E não há
problemas, caso eu não possa ir. Para ela isso já é algo natural.
Quando aconteceu sua primeira apresentação na escola, ela queria muito
que eu fosse. Quando a coordenadora do curso – com quem já havia trabalhado –
soube que eu estava na frente da escola, mas dentro do carro, fez questão de
arrumar um jeito de eu entrar pelo elevador do estacionamento. Quando me viu,
minha filha ficou radiante. Pude perceber sua alegria, naquele momento muito
importante para todos nós.
Curiosamente, minha esposa tem mais preocupação a respeito da minha
deficiência do que minha filha. Às vezes, quando tenho de sair sozinho, seja para
fazer alguma compra num shopping ou ir ao banco, ouço: “Não gosto que você vá
sozinho…” Então, tenho de lembrá-la de que, quando nos conhecemos, eu andava
só e já fazia muito mais coisas do que faço hoje.
A gente se conheceu por volta de 1996. Naquela época, eu ainda tinha
muitas atividades – três ou quatro ao mesmo tempo –, mas já estava diminuindo
meu ritmo. Então, ficava claro para ela que, se quisesse namorar comigo, teria de
me acompanhar.
Foi um período durante o qual eu estava assessorando a União dos
Escoteiros do Brasil em relação a atividades de acantonamento e acampamento
inclusivo. O NID e eu chegamos até a organizar dois acampamentos utilizando o
campo escola deles, lá no sopé do Pico do Jaraguá, na região de Pirituba, aqui na
cidade.
Eu era responsável por organizar alguns jogos inclusivos possíveis de
serem realizados por deficientes e não deficientes. Por isso, meu vínculo com os
escoteiros começou a ficar mais forte a partir desses acampamentos. Com isso,
eles percebiam que o acampamento de um grupo de deficientes não era apenas
ficar no meio do mato sem fazer nada. Eles poderiam ter lazer e recreação
normalmente.
Mas choveu nos dias que agendamos. Por isso, tivemos de improvisar e
usamos um galpão. E isso de ter sempre um “plano B” é uma característica
minha. Planejo uma coisa e, se vejo, que há algum empecilho, crio uma
alternativa para realizar o que havia programado. Com aquela chuva, a primeira
pergunta que ouvi quando o grupo chegou foi:
338
“O que vamos fazer agora, que está tudo molhado e a terra virou barro por lá?”
Eu falei: “Tá. Dá para usar o galpão?” Então, comecei a dar as informações e
fomos montando as atividades. Tudo deu certo.
Acho que aprendi a resolver problemas de última hora trabalhando nas
escolas públicas. Porque lá, geralmente, não tinha quadras cobertas. Quando
planejávamos apresentações e chovia no dia, o que iríamos fazer? Desmarcar?
Não. Sempre pensava em outra solução.
Fui sempre assim. Porque olhar para o céu e ficar chorando não adianta
nada. Tenho de resolver. Foi aí que começaram a falar que, devido a esse meu
jeito, eu poderia ser escoteiro. A partir daí, me convidaram e comecei a trabalhar
com eles durante um tempo. Essa foi uma daquelas fases que passei.
Acho que chega uma hora em que temos de definir nossa vida.
Continuamos a fazer as mesmas coisas que fazíamos quando solteiro ou nos
voltamos para a vida familiar. Uma vez comentei com um colega que, entre casar
com política e casar com família, ficaria apenas com a segunda opção. Porque, a
meu ver, as duas coisas não vivem juntas. É muito difícil.
E os tempos mudaram. Nos anos 1980 havia muitos jovens entrando na
luta. Hoje, a realidade é outra. Vejo um grande problema que não existe apenas no
movimento de pessoas deficientes, não. É a dificuldade para a formação de novos
líderes. Essa é uma briga que tive também no setor sindical, no qual acontecia a
mesma coisa. Parece um comportamento geral: os líderes que estão aí pensam
que podem ser eternos.
Porém, na área da deficiência, há uma característica diferente, pois
existem no movimento tanto pessoas antigas quanto novas. Mas, essas devem ser
capacitadas, num primeiro momento. Acredito que tenha de existir uma formação
desses jovens líderes. Fora isso, temos outro problema: a dificuldade de
locomoção. Esse fator atrapalha muito a mobilização e a realização de reuniões.
O movimento é muito parecido com uma onda do mar: de repente, chove
um monte de coisas, há muitas pessoas chegando e fazendo atividades. Depois,
elas vão embora e fica aquele marasmo até vir outra turma. E, quando esse
pessoal novo chega, alguns, às vezes, por questão de ego, se esquecem do que
foi feito anteriormente e querem “começar do zero”. Claro que há outras pessoas
que têm uma postura de continuidade e dizem: “Vamos dar continuidade ao que já
foi feito de importante.”
Quando comecei, há 30 anos, era muito difícil realizar as reuniões. Por
exemplo, eu era o membro do NID que morava mais longe. Alguém, que não me
lembro mais quem foi, um dia, falou assim: “Se o Wilson vem lá de Sapopemba
aqui para a Rua Guaipá, na Lapa, então dá pra o fulano que, mora mais perto, vir
sem problemas.” Para mim, na época, era importante participar. Eu tinha meus
propósitos, as coisas que queria atingir e aprender, além de vivenciar aquela
realidade para ter uma boa experiência.
Vejo que hoje estamos novamente naquela situação de não haver líderes,
nem interesse por formação. Existem as instituições, mas parece que estamos
presos a algumas atividades e esquecemos outras. Ao mesmo tempo, sinto que há
pessoas que querem participar, mas, a locomoção, o transporte dificulta. Os
deficientes têm usado a internet para resolver parcialmente esse empecilho e
manterem-se informados. Boa parte dos deficientes está fazendo isso. Dessa
forma, acho interessante que essa história seja divulgada em livro e também na
internet.
Assim, as pessoas vão saber sobre as coisas que aconteceram no
passado e vão entender que tudo não surgiu agora, ou dos anos 1990 para cá.
Basta pensar que os mais novos não tiveram a vivência desses 30 anos, já que
nem tinham nascido. Realmente é interessante fazer algo que ligue os pontos
desse processo, que é algo contínuo.
339
Esse registro é importante inclusive para essa formação de novos líderes,
porque vai trazer mais informações para esse pessoal novo. Mas isso requer um
tempo e não dá para recuperar aquele que já foi perdido nos momentos de baixa
do movimento.
Ao mesmo tempo em que temos de dar conta das coisas que continuam
acontecendo agora, há um desconhecimento sobre o que já foi feito. Por exemplo,
a pessoa vai brigar pela reforma das calçadas, chega à Câmara dos Vereadores e
vai falar com algum político, mas nem ela nem ele sabem que já existe uma lei a
respeito desse tema. Por pura desinformação, o político se prontifica a criar uma
“nova lei” a respeito. Isso não pode acontecer!
Uma coisa que me chamou muito a atenção foi perceber como as pessoas
realmente estão não apenas procurando por informações na internet, mas,
também, estão interagindo pela rede. Digo isso porque criei um blog sobre as áreas
de deficiência e de educação e uma pessoa acessou a página para me agradecer
por eu ter postado informações sobre as leis a respeito da inclusão na sala de aula
comum. Ela leu na minha página e foi pesquisar mais detalhes por conta própria.
Isso aconteceu em 2008 ou 2009.
Isso foi muito gratificante pra mim porque é mais uma pessoa que está
informada sobre esse assunto que é tão importante. Porque a falta de acessibilidade
pode fazer com que o cadeirante, ou a pessoa com alguma outra deficiência motora,
sinta-se barrado até mesmo em casa!
Como a escola na qual trabalho é térrea, já vi muitas cenas a esse
respeito. Havia uma menina de 8 anos que precisava apenas fazer fisioterapia,
mas a mãe preferiu colocá-la numa cadeira de rodas. Depois, ela mudou-se para
outro bairro e perdi o contato. E não são poucas as famílias nessa situação! Isso
mostra como ainda é difícil informar e conscientizar as pessoas, mesmo nossa luta
tendo começado lá nos anos 1980!
Houve outro caso. Dessa vez foi uma professora que pediu para que eu
fizesse uma palestra sobre educação inclusiva e os direitos das pessoas com
deficiência para um grupo de deficientes da região de Itaquera. Fui lá e acabei
falando dos direitos de todos. Mostrei que eles tinham direito à educação, saúde
etc. Mas o fato é que aqueles deficientes não estavam estudando nem sabiam que
poderiam!
Uma semana depois, encontrei com essa professora – que, por sinal,
também era deficiente –, e ela disse: “Obrigado por ter ido lá”. Respondi: “Tudo
bem. Isso faz parte do trabalho da gente mesmo.” E ela continuou: “Mas você falou
sobre o direito à matrícula e teve gente que foi na escola brigar por isso. Será que
esse pessoal não correu o risco de ficar chateado ou mesmo frustrado?” Fiquei
assustado com o que estava ouvindo e falei: “Mas como? Tem mais é que ir, que
lutar pelos seus direitos! Por que não?”
Enfim, essa cena estranha ficou comigo: a própria deficiente se
discriminando, dizendo que o grupo não poderia chegar ao ponto que ela chegou!
O que para mim era uma vitória – abrir a mente das pessoas que estavam lá – não
era visto da mesma forma por essa professora.
Outra situação da qual me recordo aconteceu, com essa mesma
professora, quando mudou a terminologia de “integração” para “inclusão”. Ela veio
com aquela frase feita: “Só muda a palavra, mas é tudo a mesma coisa.” E não é a
mesma coisa! Expliquei o que era integração e o que era inclusão. E recebi como
resposta: “Ah, então preferia ‘integração’.” Respondi: “Não. Talvez a integração
seja interessante para a sua deficiência, porque você consegue se virar. Mas
temos que pensar de forma geral!”
Como tratar aqueles casos, principalmente de deficiência mental, na
escola? Há situações que devem ser analisadas com cautela. Como é que vai
incluir? Se não houver suporte, não haverá inclusão, infelizmente.
340
Mais uma vez é a questão de “aparar as arestas”. Não, não sou contra,
acho que tem que exigir esse suporte. Porque inclusão não é só colocar na sala e
dizer que está sociabilizando. Não é assim. Inclusão é participar, é ter um
planejamento.
Por volta de 2000, presenciei o caso de uma deficiente visual aluna do
curso de Educação para Jovens e Adultos (EJA), do período noturno. O fato é que
os professores queriam aplicar uma atividade, mas não sabiam como lidar com ela.
Entrei no meio da conversa e disse: “Escuta, vocês perguntaram para ela como
que ela aprende?” Um olhou para a cara do outro e falou: “Não.” Eu disse: “Então,
perguntem! É mais fácil do que vocês ficarem aqui quebrando a cabeça. E tem
mais, não adianta vocês decidirem, vocês não são médicos. Aliás, nos dias de
hoje, nem eles decidem mais sozinhos!”
Quando era pequeno, o médico chegava e falava assim: “Você vai usar
esse aparelho com essa especificação e tudo mais.” Mais adiante, chegou outro e
me deu uma descrição segundo a qual eu iria usar goteira na perna esquerda e o
aparelho na perna direita. Só que tem um detalhe: não tenho força na perna
esquerda. Tenho é na perna direita. Ele inverteu os lados. E foi difícil convencê-lo
de que tinha de fazer o aparelho invertido. Esse médico não era da AACD, mas,
como conhecia o técnico da Associação há anos, ele falou: “Ah, você é diferente.
Tem que usar o aparelho ao contrário.” Então, ele fez o aparelho ao contrário.
Enfim, voltando ao caso da aluna do EJA, resolveram conversar com ela,
e aí foi muito mais fácil para eles conseguirem dar continuidade. Só que, como todo
aluno de alfabetização de adultos com dificuldade, ela acabou saindo da escola.
O ambiente escolar tem desafios enormes. A cada ano é uma situação.
Cada turma tem um jeito. Eu lembro que, depois de um período na coordenação,
voltei para sala de aula e percebi que os alunos – todos com cerca de 10 anos –
estavam com medo. Não sabia se aquilo estava acontecendo porque era deficiente
ou porque havia sido coordenador. Perguntei e me disseram que era porque havia
sido coordenador e era bravo. Não tinha nada a ver com minha deficiência! Quando
ouvi isso, percebi que as crianças não têm discriminação. Elas olham, às vezes
querem tocar na sua cadeira, de uma forma absolutamente normal. O mesmo
ocorre em outros ambientes.
Quando era solteiro e ia à praia com um amigo deficiente visual, que
também era professor, acontecia a mesma coisa. Pelo fato de andar de muleta ou
em cadeira, na praia, ficava sentado na areia ou ele me carregava. Não demorava
muito para as crianças começarem a se aproximar. Uma vez, ele falou: “Nós
atraímos a meninada de qualquer jeito. Até aqui! Já não basta na escola!” E é pura
curiosidade da parte delas. Depois, convivem com a gente numa boa, como se
fôssemos apenas mais uma pessoa que eles conheceram.
Fiquei 20 anos trabalhando no EJA e aqueles alunos adultos falavam que
eu era um exemplo. Se o professor já é visto socialmente como um indivíduo
modelo, imagina um professor deficiente! Além disso, eu trabalhava apenas com
mulheres entre a primeira e a quarta série. Também havia a questão de gênero.
Eram muitas dúvidas que passavam pela minha cabeça a respeito de como e por
que era tratado de certa forma. O fato é que estava num lugar no qual qualquer
professor iria ser modelo. Além disso, é cada vez mais raro um homem que dá aula
para alunos de primeira à quarta série. Então, talvez a questão da deficiência fosse
a última a chamar a atenção.
Só houve uma aluna que quase apanhou das colegas por ter comentado
algo sobre a parte sexual. Ela era uma pessoa simples e tinha a curiosidade de
saber se eu era normal ou não. Aí, as alunas ficaram bravas, queriam brigar com
ela, deram muita bronca etc. Mas respondi: “Cada caso é um caso. Algumas
pessoas têm dificuldade na vida sexual e outras, não” Foi o único comentário mais
complicado com o qual tive de lidar.
341
Não tenho dúvida de que as questões relacionadas à sexualidade e à
deficiência ainda sejam um tabu. Existe o preconceito de que o sexo não é possível
para nenhum deficiente. Claro que é algo que faz todo mundo pensar. Na
adolescência – seja de um deficiente ou não –, sempre surge o pensamento sobre
como vai ser. É uma coisa normal.
Posso dizer que tive sorte, porque minha vida foi praticamente normal e
tudo o que quis fazer eu fiz. E não posso dizer que me arrependi. Nunca me
arrependo do que faço, porque já está feito e sou assim. Não tive apenas uma
namorada. Mas também não tive muitas porque não sou namorador. Sempre fui
mais de procurar a pessoa certa. Se não dava certo, eu mesmo ou a outra pessoa
acabava terminando.
O que ficou de todas as minhas experiências pode ser resumido numa
palavra, que acho muito adequada: “aceitação”. Porque, às vezes, a pessoa que
está com você te aceita. Mas existe a família, que pode ser contra, por exemplo.
Nesse caso, você consegue quebrar o estigma ou, simplesmente, acaba largando
a pessoa ou ela te larga porque não aguenta a situação.
Aí a gente pensa se terminou por causa da deficiência. Tenho um colega
que deixou de casar com uma mulher, simplesmente, porque os pais dela não
gostavam, nem simpatizavam com ele, que não tinha deficiência nenhuma! Isso
mostra que essas coisas ocorrem com todo mundo. Até porque existem
preconceitos a respeito de muitas coisas. No caso dele, foi estritamente religioso.
Já, aquele meu amigo com deficiência visual teve uma vida diferente
da minha. Seu único engajamento foi na área sindical. Fora isso, ele acabou
casando com uma aluna dele do período noturno, está muito bem e tem dois
filhos. Claro que, nesse ponto, ele teve aquela preocupação sobre se eles iriam
nascer com algum problema, porque poderia ser algo hereditário. Mas, o
primeiro nasceu saudável e ele se acalmou. E o segundo também veio sem
problemas. Sempre é a mesma história porque qualquer gravidez causa
preocupação ao casal. Acho que, às vezes, a gente dá muito valor a uma
situação e não percebe que todo mundo passa por ela.
Em relação à parte sexual, isso nunca me encucou. Francamente, não sei
se pela vivência que tive, pelo meu histórico. Mas o fato é que não sentia essa
dificuldade e tive a minha vida normal. O que me preocupava mais era saber se iria
casar e se seria pai. Talvez tenha demorado para casar, porque quis primeiro curtir
a vida. Até que chegou o momento de parar e fazer outras coisas.
Fui cuidar da minha vida. Mudei meus hábitos. Eu saía todo final de
semana para as noitadas, que hoje chamam de “baladas”, com o pessoal do NID e
do CVI-Araci Nallin. Nossa grande amizade foi muito importante pra mim. Lembrome que íamos ao teatro, ao cinema, restaurantes. Enfim, tivemos uma convivência
muito intensa e foi muito bom. Até porque, quando conversávamos, e isso
acontecia frequentemente, todo mundo tinha os mesmos problemas.
Durante toda a minha vida, passei por muitas experiências. Lembro-me de
uma reunião na Diretoria de Ensino. Houve uma atividade de orientação técnica de
descontração, quando uma orientadora, assim como eu, propôs uma dinâmica
simples, de dar um passo para a frente, outro para trás e outro para o lado. Ela só
se esqueceu de que seria um pouco difícil para eu realizá-la.
Quando a orientadora anunciou essa atividade, sutilmente, protestei. Saí
da roda acompanhado por outras duas pessoas e ficamos observando. No final, ela
veio pedir desculpas e falei: “Inclusão não é algo apenas para o aluno. É pra todos.
Antes de você organizar uma atividade, lembre-se disso. E se tivesse outra pessoa
deficiente aqui?”
342
Cheguei a registrar essa experiência no Centro de Apoio Pedagógico
Especializado (Cape), assim como fiz observações em relação ao próprio Centro
de Estudo do Governo do Estado, que fica lá na Rua Pensilvânia, onde encontrei
algumas dificuldades. Foi uma situação engraçada porque, no dia, a coordenadora
do local iniciou o evento dizendo: “Esse prédio é totalmente adaptado e inclusivo.”
Ela estava presente durante o almoço e tive a oportunidade de comentar
sobre todas as dificuldades pelas quais eu estava passando e outras que poderiam
afetar pessoas com outros tipos de deficiência que frequentassem aquele local.
Depois, nos momentos finais da reunião, ela disse, olhando para mim:
“Quero fazer uma correção. Esse prédio é ‘quase totalmente’ adaptado porque nos
foram apontados hoje os erros que existem na construção.” Aquilo valeu muito para
mim. Foi mais uma contribuição para a mudança da realidade.
Eram detalhes, mas são eles que fazem a diferença, principalmente na
área que trata dos deficientes. São pontos que, às vezes, passam despercebidos
por muitos. Tanto é que a escola onde trabalho também não é totalmente
acessível. Embora tenham sido construídas rampas quando eu ocupava a
coordenação.
Foi quando a direção falou: “Você precisa ter acesso à determinada sala,
então, vamos colocar rampas.” Por isso, há muitas pela escola, mas não no prédio
inteiro. A minha sala de aula, no final do corredor, é a única que vai ter esse tipo de
acesso.
Nunca me esqueço de uma charge que tratava da ida de duas pessoas a
um restaurante, um deficiente e um não deficiente. O garçom chega para atendêlos e pergunta para o não deficiente o que ele e o deficiente iriam comer, como se
a pessoa com deficiência não pudesse nem escolher seu prato! E isso aconteceu
comigo! Mas “tirei de letra” e intervi dizendo para o garçom: “O deficiente aqui
pensa, olha, fala e também tem gosto! Se você quiser, posso responder sua
pergunta.” Nunca havia imaginado que uma cena dessas poderia acontecer na vida
real, mas aconteceu.
Da mesma forma, presenciei outro fato, que não está relacionado com
minha deficiência, mas foi muito engraçado. Estava numa loja de roupas femininas
em um shopping center e veio uma vendedora me atender. Pedi para ver uma
blusa e ela respondeu, sem a menor noção: “Mas aqui é local de roupa feminina.”
Falei: “Sim. E daí, qual o problema? Vou comprar roupa pra minha mãe.” A mulher
ficou completamente desnorteada com minha resposta. Às vezes temos de agir
assim para a pessoa pensar antes de falar.
Tanto é que aprendi uma coisa, os homens recebem muito mais atenção
em lojas femininas do que as mulheres. Quando entra uma mulher, as vendedoras
atendem de forma comum. Já, quando é um cliente masculino, ele tem
atendimento quase que personalizado! Enfim, na convivência em sociedade a
gente passa por tudo isso.
Falar sobre as nossas vidas é fazer uma seleção. Escolhemos os
momentos mais marcantes. Acho muito bom saber que, depois de todo esse
tempo, aquilo que a minha geração pensou e moldou, lá atrás, já tem uma forma
própria e está quase pronto. Sei que sempre haverá outros detalhes para serem
feitos. Mas creio que o principal já está em prática. Agora temos de aparar,
arrumar, ajustar muita coisa. E, sim, a luta continua, sempre vai continuar e creio
que outras gerações também diriam isso.
343
Imagem. Jornal da Tarde, 16 de março de 1981.
Consta foto em preto e branco. Centenas de pessoas com e sem deficiência lotam o plenário da Câmara Municipal, com legenda: “A Câmara Municipal, lotada para a
cerimônia”.
Em defesa dos deficientes. A abertura oficial brasileira do Ano Internacional dos Deficientes foi feita neste fim de semana. O plenário da Câmara Municipal esteve
lotado, neste fim de semana, por cegos, surdos, paralíticos e algumas autoridades que promoviam a abertura simbólica do Ano Internacional das Pessoas Deficientes no
Brasil. Iniciando a promoção, a cega Odete Cláudio Nascimento leu da tribuna, em Braille, a Declaração dos Direitos do Deficiente, segundo o texto aprovado pela
ONU.
A leitura foi concluída sob intensos aplausos. Entre os deficientes que participavam da promoção, havia representantes de praticamente todos os Estados brasileiros.
Para os responsáveis pela promoção, os pronunciamentos dos oradores e as entusiásticas manifestações dos ouvintes indicavam que a população brasileira de deficientes
começa a se organizar em defesa de seus direitos.
Os responsáveis pela promoção eram os coordenadores do Movimento pelos Direitos das Pessoas Deficientes (MDPD) que foi criado há um ano em São Paulo, mas já
tem núcleos em fase de organização em todas as regiões do País. Um dos coordenadores é o engenheiro eletrônico Cláudio Pinto de Melo, que ocupou a presidência da
mesa escolhida para executar o programa oficial da promoção.
Participavam também da mesa estas autoridades: o juiz Renato Laércio Talli, corregedor dos presídios do Estado de São Paulo; o jurista Dalmo de Abreu Dallari; Dom
Luciano Mendes de Almeida, secretário da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB); padre Júlio Munaro, representante do cardeal Paulo Evaristo Arns; Otto
Marques da Silva, da Comissão para o Ano Internacional das Pessoas Deficientes.
Entre as manifestações de apoio à promoção, foi lida uma carta de P. Koenz, representante residente da ONU no Brasil, que considerou “altamente louvável” a abertura
simbólica do Ano Internacional das Pessoas Deficientes em São Paulo e desejou “muito sucesso ao evento e a todas as atividades programadas pelo MDPD”, cujos
objetivos elogiou.
Os participantes da promoção receberam várias publicações do MDPD e, principalmente, o texto oficial de sua Carta-Programa. Além de denunciar injustiças e
desigualdades sociais, os autores da Carta Programa ressaltam os três princípios específicos para uma mudança de comportamento em relação aos portadores de
deficiências físicas e psíquicas no Brasil:
“1º - As pessoas deficientes são uma parcela integrante da sociedade e exigem o respeito efetivo aos direitos e às responsabilidades que lhes estão reservados, para que
possam participar plenamente da vida comunitária e, assim, contribuir como seres humanos socialmente úteis.
2º - As pessoas deficientes não reivindicam benefícios que tenham as características de privilégios, dádivas ou concessões, mas reclamam o que é de seu pleno direito
como cidadãos de um país e como seres humanos integrais.
3º - As pessoas deficientes proclamam que apenas uma ação conjunta, consciente e dotada de poder de pressão será capaz de esclarecer e mobilizar a sociedade e o
Estado para o diferencial de necessidades, que caracterizam os portadores de deficiências.”
Segundo os autores da Carta-Programa, “a idéia de que não existem preconceitos e de que todos os segmentos sociais estão integrados é veiculada como senso comum,
corporificado em leis ditas protecionistas, que são elaboradas de cima para baixo e que mascaram a realidade”. Por isso, eles admitem que os deficientes brasileiros têm
grandes obstáculos a superar.
Nesse sentido, o jurista Dalmo de Abreu Dallari foi muito aplaudido, em seu pronunciamento, quando advertiu sobre o risco de que o Ano Internacional das Pessoas
Deficientes se torne “um fracasso semelhante ao do Ano Internacional da Criança”. Para evitar o risco, propôs que os interessados no êxito “estejam dispostos a lutar
contra os preconceitos da sociedade e contra a acomodação”.
Legenda: Acervo digital Memorial da Inclusão. Doação Romeu Sassaki.
344
Imagem. Jornal Notícias Populares, de 29 de março de 1981. Deficientes físicos acampam no Járagua. Dezenas de deficientes físicos, enfrentando as chuvas caídas
sexta-feira à noite sobre a capital, rumaram para o Camp Escola Jaraguá onde participaram de um original acampamento de fim de semana, pois esta é a primeira vez no
Brasil que se realiza um acampamento desse tipo. A iniciativa foi do núcleo de Integração de Deficientes, de São Paulo, com a colaboração da União dos Escoteiros do
Brasil, região de São Paulo. Tudo foi feito com muita alegria, num clima de festa, como parte das comemorações do Ano Internacional da Pessoa Deficiente.
Legenda: Acervo digital Memorial da Inclusão. Doação Lia Crespo
Imagem. Foto colorida. Numa sala, com uma mesa com toalha de renda branca oito pessoas posam descontraidamente para a foto. Legenda: Confraternização natalina
do NID, dezembro de 1981. Ana Rita, Luiz Celso Marcondes, Romeu Sassaki, Lia Crespo, Luiz Garcia Bertotti, Wilson e Nia Correa.
Acervo digital Memorial da Inclusão. Doação Lia Crespo
345
Imagem. Cartaz manuscrito. 1º Acampamento do NID Março – 1981. Ponto de encontro: Local: R.Guairá, 1263; Horário: 7:00hs (impreterivelmente); data: 28/29 –
março. Observação: será recolhida a importância de $300,00 referente a alimentos. Haverá carros à disposição para aqueles sem condução.
Legenda: Cartaz “1º Acampamento do Nid – março de 1981”. Acervo digital Memorial da Inclusão. Doação Lia Crespo.
346
Imagem. Foto colorida. Ao ar livre, à noite, pessoas sentadas em volta de uma fogueira, conversando em grupos de três ou quatro pessoas. Um homem está com um
violão.
Legenda: 1º Acampamento do NID, março de 1981. Leila Bernaba Jorge, Maria Conceição Lima Ferreira, Cila Ankier, Luizão, Natália, Ana Rita de Paula e Sr. Décio.
Acervo digital Memorial da Inclusão. Doação Lia Crespo.
Imagem. Foto colorida. À noite, oito pessoas – sendo duas delas crianças - estão ao ar livre. Atrás delas há um carro branco. Legenda: 1º Acampamento do NID, março
de 1981. Cristina Sugaiama com Diane e Roger, Marisa Paro, Lia Crespo, Gonçalo Borges, Araci Nallin e Cila Ankier. Acervo digital Memorial da Inclusão. Doação
Lia Crespo.
Imagem. Foto colorida. Uma mulher é suspendida da cadeira de rodas por um guindaste (elevador portátil) para pessoa com deficiência. Duas mulheres observam. Ao
fundo parede de tenda de acampamento. Legenda: 1º Acampamento do NID, março de 1981. Marisa Paro e Cila Ankier. Acervo digital Memorial da Inclusão. Doação
Lia Crespo.
347
Imagem. Foto colorida. Numa mesa de madeira, sobre a qual há um livro aberto, uma mulher e um homem realizam dobradura em papel. Um homem de costas e uma
mulher estão próximos à mesa.
Legenda: 1º Acampamento do NID, março de 1981. Atividade de dobradura. Sandra, Luizão, Gonçalo Borges (de costas) e Lia Crespo. Acervo digital Memorial da
Inclusão. Doação Lia Crespo.
Imagem. Foto colorida. Em torno de uma mesa de madeira, sobre a qual há um livro aberto, várias pessoas observam atentas as explicações concedidas por um homem
em pé com uma folha de papel entre as mãos. Distantes da mesa, uma mulher e um menino no seu colo também observam atentos. No fundo parede de tenda de
acampamento.
Legenda: 1º Acampamento do NID, março de 1981. Atividade de dobradura. Ana Rita de Paula, Araci Nallin, Romeu Sassaki, Sandra, Luizão, Cristina Sugaiama com
Roger no colo. Acervo digital Memorial da Inclusão. Doação Lia Crespo.
Imagem. Foto colorida. Um homem em pé, com as pernas afastadas em postura de equilíbrio, sustenta com os braços estendidos as costas de outro homem em postura
ereta, pés juntos, pendido em diagonal sobre o primeiro homem. Ambos riem. Duas pessoas observam sentadas num banco. No fundo parede de tenda de acampamento.
Legenda: 1º Acampamento do NID, março de 1981. Confiança: Romeu Sassaki e Gonçalo Borges. Acervo digital Memorial da Inclusão. Doação Lia Crespo.
348
Imagem. Foto colorida. Cinco pessoas posam para foto ao ar livre, tendo às costas um rio.
Legenda: Fartura/SP, em 1983, durante palestra na Prefeitura do município. Maria Cristina Correa, Lia Crespo, Wilson Akio Kyo men, João Batista Cintra Ribas e Dora.
Acervo digital Memorial da Inclusão. Doação Lia Crespo.
Imagem. Foto colorida de três homens sentados em mesa de evento, onde é possível a leitura das placas de identificação: “NID Wilson Akio” e “NID João Batista”.
Legenda: “Ciclo de Debates: Os partidos políticos e as questões das pessoas deficientes”, julho de 1982, São Paulo. Orlando Filpo, Wilson Akio Kyomen, João Batista
Cintra Ribas. Acervo digital Memorial da Inclusão. Doação Lia Crespo.
Imagem: Foto colorida onde dezesseis pessoas – entre homens, mulheres e crianças –posam no alto de uma montanha. Legenda: Pico do Jaraguá/SP. Visita de
reconhecimento para o “1º Acampamento do NID – março de 1981”. Romeu Sassaki, Ana Rita de Paula, sr. Décio, Leila Bernaba Jorge, Araci Nallin e Wilson Akio
Kyomen. Acervo digital Memorial da Inclusão. Doação Lia Crespo.
349
350
CAPÍTULO
5
351
352
O esporte na inclusão da pessoa
com deficiência no Brasil
Vanilton Senatore
Apresentação
Ao definir 1981 como o Ano Internacional da Pessoa com Deficiência,
a ONU conseguiu que a maioria dos seus países membros nos cinco continentes
colocasse, em todas as pautas e de forma incisiva, as questões referentes aos
direitos e a efetiva inclusão dessas pessoas. Houve um crescente despertar das
pessoas com deficiência para a defesa dos seus direitos fazendo com que o
movimento ganhasse proporções inimagináveis. Nas três décadas vividas desde
então, o assunto tem sido focado em todas as atividades humanas. Espaços
foram sendo conquistados nas áreas da educação, do trabalho, da saúde. Em
nosso país não foi diferente e, ao comemorarmos os 30 anos do AIPD, não
podemos deixar fora desse relato a importância e a contribuição que as atividades
esportivas tiveram no processo de busca e consolidação da cidadania das
pessoas com deficiência em nosso país.
É absolutamente importante referenciarmos a luta empreendida pelas
pessoas com deficiência, líderes e protagonistas maiores dessa parte de nossa
história que, por meio das atividades paradesportivas, abriram caminhos
cumprindo importante missão na luta pelos direitos das pessoas com deficiência
em busca de sua efetiva inclusão e do alcance tão sonhado da cidadania.
Mais à frente estaremos referenciando alguns desses líderes esportistas
que foram responsáveis no Brasil pelos primeiros passos de um movimento que
apenas engatinhava pelo mundo. Não temos dúvidas em afirmar que eles, com
coragem, visão e ousadia, além de serem corresponsáveis diretos pela honrosa
posição de nona potência mundial no esporte
353
paraolímpico conquistada pelo Brasil nas Paraolimpíadas de Pequim 2008, foram
decisivos na luta que uniu e integrou as diversas áreas de deficiência em nosso
país buscando a igualdade de tratamento e a justiça social.
Mas não podemos deixar de registrar o trabalho de abnegados
profissionais das diversas áreas de atuação envolvidos com o trabalho esportivo,
com destaque para os professores de educação física. Atuando na maioria das
vezes de forma voluntária e silenciosa, eles representam um marco nesse
processo que propiciou uma guinada no entendimento, na percepção e no
reconhecimento, por parte da maioria de nossa população, das potencialidades
das pessoas com deficiência. Também mais à frente estaremos relatando fatos e
nominando pessoas que foram decisivas no processo de mudança de paradigmas
nas atividades esportiva para pessoas com deficiência.
Relembrar a atuação das grandes lideranças das pessoas com
deficiência e de profissionais da Educação Física que contribuíram nesse
processo é a maneira de homenagearmos e deixarmos registrados para a história
fatos e dados que foram de fundamental importância no desenvolvimento
alcançado em nosso país e que permitiram nos colocar entre as dez maiores
potências paraolímpicas do mundo.
Nessa resenha histórica, duas frentes atuaram no trabalho desenvolvido e
foram igualmente significativas. De um lado as entidades das pessoas com
deficiência lideradas por seus dirigentes na luta pelos direitos; e do outro os
profissionais das organizações governamentais que deram ressonância e forma
aos clamores com atos legais que contribuíram para assegurar e garantir o avanço
das ações propostas e o seu desenvolvimento.
Um pouco da história do movimento
Inicialmente é preciso resgatar alguns fatos referentes às origens do
esporte paraolímpico no mundo e, em especial, no Brasil, onde a história teve seu
começo há mais de meio século e já é plena de lutas, competições, conquistas e
glórias.
No mundo
O esporte para pessoas com deficiência existe há mais de cem anos. Nos
séculos 18 e 19 a contribuição das atividades esportivas foi maior no sentido da
reeducação e da reabilitação das pessoas com deficiência. As primeiras notícias
da existência de clubes esportivos para pessoas surdas datam de 1888, em
Berlim, Alemanha.
Depois da Primeira Grande Guerra (1914/1918) a fisioterapia e a
medicina esportiva surgiram como recursos importantes na recuperação das
cirurgias internas e ortopédicas. Os primeiros registros de esporte para pessoas
portadoras de deficiência foram encontrados em 1918 na Alemanha, nos quais
consta que soldados alemães que se tornaram deficientes físicos na guerra se
reuniam para praticar tiro e também arco e flecha. Em agosto de 1924
aconteceram, em Paris, os Jogos do Silêncio, com a participação de 145 atletas
de nove países europeus, primeira competição internacional para pessoas com
deficiência. No evento, em 24 de agosto, foi fundado o Comitê International des
Sports Silencieux – Ciss. Em 1932, na Inglaterra, formou-se uma associação de
jogadores de golfe com um só braço.
354
Em 1944, ainda durante a Segunda Grande Guerra, o governo britânico
contratou o neurocirurgião alemão, Dr. Ludwig Guttmann, para começar um
trabalho de reabilitação para lesionados medulares, dando origem ao Centro
Nacional de Lesionados Medulares de Stoke Mandeville, na Inglaterra. Dr.
Guttmann marcou seu trabalho de reabilitação médica e social direcionados aos
veteranos de guerra com um diferencial ao usar prática esportiva como parte do
tratamento médico.
O sucesso do trabalho motivou o Dr. Guttmann a organizar a primeira
competição para atletas em cadeiras de rodas e, no dia 29 de julho de 1948 – data
da cerimônia de abertura dos Jogos Olímpicos de Londres ‑ , aconteceu a primeira
edição da competição denominada Stoke Mandeville Games. Em 1952, exsoldados holandeses se uniram para participar dos jogos de Stoke Mandeville e,
com os ingleses, fundaram a ISMGF – International Stoke Mandeville Games
Federation – Federação Internacional dos Jogos de Stoke Mandeville, dando
início ao movimento esportivo internacional que viria a ser base para a criação do
que hoje conhecemos como esporte paraolímpico.
Em 1960 incentivados pelo Dr. Antonio Maglio, diretor do Centro de
Lesionados Medulares de Ostio na Itália, o comitê organizador dos jogos de Stoke
Mandeville aceitou o desafio e realizou os jogos em Roma logo após os Jogos
Olímpicos. Usando os mesmos espaços esportivos e o mesmo formato das
olimpíadas, 400 atletas de 23 países participaram da primeira paraolimpíada. A
partir de Roma em 1960 e a cada quatro anos, os jogos foram realizados de forma
cada vez mais organizada e sempre com um número crescente de países
participantes.
Até os jogos de 1972, realizados em Heildelberg, Alemanha, apenas
atletas em cadeiras de rodas participavam oficialmente dos jogos. Em 1976 nas
Paraolimpíadas de Toronto, Canadá, houve a inclusão dos atletas cegos e
amputados e a partir de 1980, em Arnhem, na Holanda, foram incluídos os
paralisados cerebrais. A décima quarta edição dos jogos acontecerá em Londres,
de 27 de agosto a 10 de setembro de 2012.
Em 1976 tiveram início as Paraolimpíadas de Inverno, na cidade de
Ornskoldsvik, Suécia. Até 1992 os jogos de inverno aconteciam no mesmo ano
dos jogos de verão. Em 1994 o ciclo foi ajustado, passando a ser realizado no
mesmo ano dos Jogos Olímpicos de Inverno. A décima segunda edição
acontecerá na cidade russa de Socchi em 2014.
Nos jogos de Atlanta, EUA, em 1996, os atletas com deficiência
intelectual tiveram sua primeira participação no movimento paraolímpico com
provas de atletismo em caráter de demonstração. Nas Paraolimpíadas de Sidney2000, na Austrália, eles foram oficialmente incluídos nas modalidades de
Atletismo, Basquetebol, Natação e Tênis de Mesa. Devido a problemas sérios de
irregularidades e fraudes encontradas quanto à elegibilidade de atletas presentes
em Sidney na modalidade de Basquetebol, os atletas com deficiência intelectual
foram suspensos das atividades promovidas pelo IPC até que se encontrasse um
meio eficaz e seguro de definir sua elegibilidade e, por isso, eles não participaram
dos Jogos de Atenas 2004 e Pequim 2008. Em Londres 2012, sob um novo
sistema de elegibilidade, os atletas com deficiência intelectual estarão novamente
incluídos nas modalidades de Atletismo, Natação e Tênis de Mesa.
Com a possibilidade natural da prática esportiva pelas pessoas com
deficiência, entidades mundiais nas diversas áreas de deficiência foram criadas
assumindo a responsabilidade de administrar e organizar os eventos. Em ordem
cronológica, tivemos a fundação das entidades a seguir relacionadas:
355
1924 – Ciss – Comité International des Sports Silencieux – Embora
tenham participado entre 1986 até 1995 do movimento paraolímpico, o
CISS sempre realizou de forma independente os seus próprios jogos.
Atualmente é denominado ICSD – International Committee of Sports for
the Deaf, Inc. e tem como representante brasileiro a CBDS –
Confederação Brasileira de Desportos para Surdos.
1952 – ISMGF – International Stoke Mandeville Games Federation –
Criada inicialmente com o nome de Federação Internacional dos Jogos de
Stoke Mandeville, destinava-se ao esporte para deficientes em cadeira de
rodas e sua ação esportiva estava mais concentrada no Basquetebol.
Posteriormente passou a ser denominada ISMWSF – International Stoke
Mandeville Wheelchair Sports Federation – Federação Internacional de
Stoke Mandeville para Esportes em Cadeira de Rodas. Em novembro de
2004 a ISMWSF e a Isod se uniram para formar a Iwas – International
Wheelchair and Amputee Sports Federation – Federação Internacional
de Esportes para Cadeiras de Rodas e Amputados. Até 2006 o Brasil foi
repres

Documentos relacionados