nº 36 - Editorial Franciscana

Transcrição

nº 36 - Editorial Franciscana
CADERNOS DE ESPIRITUALIDADE
FRANCISCANA
36
Editorial Franciscana
BRAGA - 2009
1
Ficha Técnica
Coordenador:
Fr. José António Correia Pereira, ofm
Editorial Franciscana
Apt. 1217
4711-856 BRAGA
Tel. 253 253 490 / Fax 253 619 735
E-mail: [email protected]
Edição on-line no site:
www.editorialfranciscana.org
Capa:
Desenho de Fr. José Morais, ofm
Edição:
Editorial Franciscana
Propriedade:
Província Portuguesa da Ordem Franciscana
Depósito Legal: 14549/94
I. S. B. N.: 972-9190-46-1
Caderno 36- 2009
Cada número dos Cadernos é vendido avulso
2
Índice
I — Estudos
1. Fr. Tomás Eccleston
– Implantação da Ordem dos Frades Menores na Inglaterra .............. 5
2. Doutora Manuela Silva
– Ao encontro da radicalidade do evangelho: Que tem
Francisco de Assis para nos dizer hoje? ...................................... 75
3
I — Estudos
IMPLANTAÇÃO DA ORDEM DOS FRADES
MENORES NA INGLATERRA
Tomás Eccleston
5
IMPLANTAÇÃO DA ORDEM DOS FRADES MENORES
NA INGLATERRA
INTRODUÇÃO
São poucas as referências biográficas que temos de Tomás Eccleston, autor da crónica, ou tratado De adventa fratrum in Anglia1. Dizendo-se de Eccleston, é de supor que seria inglês, não se podendo contudo
afirmar que fosse este o seu lugar de origem. Podemos afirmar com
alguma certeza que se fez frade menor por volta de 1230.
No nº 70 da sua Crónica fala de um «um eminente leitor que estudou comigo em Oxford…», o que pressupõe que era um frade com uma
boa preparação cultural. O nº 30 da Crónica diz que «vieram para Ingla-terra muitos outros irmãos não menos distintos, de origem inglesa, mas
entrados na Ordem em Paris, irmãos esses que conheci quando ainda era
leigo…», o que sugere que o contacto com os Frades Menores influenciou
a sua opção vocacional. Parece ter vivido sempre em Inglaterra, ora em
—————
1
A primeira edição da CRÓNICA DE ECCLESTON foi publicada por I. S. BREWER
no primeiro tomo da Monumenta Franciscana. Teve como base dois códices (na AF,
códices A e B). Os Colóquios de I a VI foram publicados por R. Howlett ( códices C na
AF). Cf. AF, T I, p. 216, nota 1.
As traduções modernas da Crónica de Eccleston têm como base o texto latino:
Tractatus fr. TOMAE vulgo diti de ECCLESTON, De adventu fratrum minorum in
Angliam, edidit, notis et commentario illustravit A. G. LITTLE, in CED, VII, Paris 1909.
São também textos de referência a edição de J. R. H. MOORMAN, Manchester, 1951 e a
edição Liber de adventu fratrum minorum in Angliam, Analecta Franciscana sive
Chronica aliaque varia Documenta (AF), T. I. Quaracchi 1885, pp. 215-256. Para as
notas servimo-nos da edição da AF e da edição italiana, em Fonti Francescane, Nuova
edizione a cura di ERNESTO CAROLI, Editrici Francescane, Padova, 2004.
6
Oxford, ora em Londres, e teve relações de amizade com muitos frades. A
sua obra abarca e sintetiza vinte e seis anos de vida dos irmãos da Inglaterra. As últimas notícias que reporta referem-se a 1259. É provável que
tenha falecido pouco depois dessa data.
O objectivo da obra de Tomás Eccleston é bem claro: dar a conhecer os exemplos dos maiores, pois os ―exemplos comovem e arrastam
mais do que as palavras‖ (nº 2). Pretende relatar a vida dos primeiros
irmãos, para que os mais jovens encontrem ―motivo de edificação na sua
vocação‖ (nº 2).
Divide a sua obra em colóquios (collationes), talvez recordando os
primeiros tempos, quando os irmãos ingleses se reuniam todos os dias
depois da ceia ―para a conversação e para beberem juntos‖ um bom copo
de cerveja (nº9). Mais tarde, estas collationes foram ritualizadas e transformaram-se em capítulos conventuais, muito mais estruturados, perdendo-se a informalidade e a frescura das relações humanas das primeiras
fraternidades.
Os irmãos chegaram à Inglaterra em 1224. Eram nove; quatro clérigos e cinco leigos: Fr. Agnelo de Pisa, diácono, superior da missão; Fr.
Ricardo de Ingworth, inglês, sacerdote e pregador; Fr. Ricardo de Doven,
inglês, acólito, frade jovem; Fr. Guilherme de Ashby, inglês, ainda
noviço; Fr. Henrique Treviso, leigo, nascido na Lombardia; Fr. Lourenço,
leigo francês; Fr. Guilherme de Florença, leigo italiano; Fr. Meliorato,
leigo; Fr. Tiago, leigo italiano. Este primeiro grupo foi enviado pelo próprio Francisco que, ao nomear um dos seus companheiros, Fr. Agnelo de
Pisa, como primeiro Ministro Provincial da Inglaterra, quis manifestar
como esta missão lhe era particularmente querida2.
Ao contrário do que aconteceu na Alemanha, os irmãos foram
muito bem recebidos pelo povo e pelas autoridades das Ilhas Britânicas.
Este bom acolhimento foi retribuído pelos primeiros irmãos com uma singular amabilidade que «… atraiu à Ordem as simpatias de inúmeros
seculares» (nº5).
Em toda a sua obra, Eccleston faz a apologia da sua província e
apresenta-a com orgulho como modelo para toda a Ordem. Para ele não
restam dúvidas de que os irmãos da Inglaterra podiam ser ponto de
—————
2
Sobre os nomes cf. AF, T. 1. P. 216, nota 2.
7
referência para as outras entidades da Ordem. É o próprio Fr. João
Parente, geral da Ordem, quem o confirma, tal como recorda Eccleston:
―Como eu desejaria que esta província fosse colocada no centro do
mundo, para que servisse de exemplo a todos!‖ (nº 126).
O autor não se cansa de salientar as três características de marca dos
irmãos ingleses: a pobreza, a simplicidade e o amor aos estudos. Se a
pobreza e a simplicidade são características do frade menor, já o amor ao
estudo faz supor um desenvolvimento notável em relação às primeiras
comunidades franciscanas, onde muitas vezes o estudo, porque podia
engrossar o ego, nem sempre era tido em boa conta. Mesmo quando
recordam Francisco e as primeiras comunidades, os irmãos ingleses não
deixam de acentuar o valor dos estudos, seguindo, aliás, os conselhos do
bispo de Lincoln que afirmava: ― Se os irmãos não cultivassem os estudos
e não se ocupassem em estudar com ardor a lei divina, certamente também nos aconteceria a nós o que aconteceu a outras ordens religiosas, que
vemos caminhar desgraçadamente nas trevas da ignorância…‖ (nº 118); a
ciência não é vista como um ornamento da simplicidade, nem como um
obstáculo (nº 19); os frades devem ser mestres, leitores e ocupar cátedras
(nº 65-71). Passados 32 anos depois da sua chegada à Inglaterra, já havia
1242 irmãos distribuídos por 49 conventos (nº 13), com universidade,
estudos, mestres próprios, bispos, pregadores e confessores (nº 66-67).
Isto mostra que os irmãos não só cresceram em número como em qualidade e souberam criar estruturas exemplares de formação3.
Outra característica dos irmãos ingleses relacionada com a simplicidade, e que Eccleston não se cansa de acentuar, é o cuidado que tiveram
em cultivar as relações humanas e a forma como souberam aliar a penitência, muitas vezes sob a forma de abstinência de carnes, à sã convivialidade, não só entre si, mas com outros religiosos e com o povo (nº7). Nisto
—————
3
Neste ponto o texto de Eccleston dá conta da grande mudança que se deu na
Ordem dos Frades Menores. A Ordem ganhou um rosto cada vez mais clerical, onde a
pregação foi assumida como actividade importante. Daí o grande incremento dos estudos. Nas Constituições chamadas pre-norbanenses, de 1239-40, podemos ler: ―Não se
receba na Ordem quem não tiver competente instrução em gramática, ou em lógica, ou
em medicina, ou em direito, ou em leis, ou em teologia…‖. Os irmãos ingleses são o
exemplo dessa mudança, não perdendo a simplicidade que caracteriza o frade menor.
Cf. MERLO, G. G. Francisco de Asís – Historia de los Hermanos Menores y del franciscanismo hasta los comienzos del siglo XVI, Arantzazu, 2005, p. 121-133.
8
seguiam, mais uma vez, os conselhos que o bispo de Lincoln dava a Fr.
Pedro de Tewkesbury, que foi Ministro provincial na Alemanha: «De
outra vez disse a um irmão pregador: ―Três coisas são necessárias para a
saúde do corpo: o alimento, o sono e o bom humor‖. Uma vez deu órdens
a um irmão melancólico que bebesse um copo do melhor vinho como
penitência, e quando o bebeu, embora à má cara, disse-lhe: ―Caríssimo
irmão, se fizesses com frequência esta penitência, terias também melhor
consciência‖» (nº 118). Bem sabiam já os irmãos ingleses que a sã convivialidade, o bom humor e a informalidade nas relações fraternas são o
melhor antídoto contra as depressões.
Usando o género literário das colações, tanto em voga no seu
tempo, Tomás de Eccleston apresenta assim uma numerosa galeria de
representantes de uma província verdadeiramente ―franciscana‖.
9
TEXTO
1. A caríssimo padre, frei Simão de Ashby4, seu irmão Tomás
deseja, na doçura do Senhor e Salvador nosso Jesus Cristo, a consolação
do Espírito Santo.
2. O justo deve julgar a sua vida comparando-a com os exemplos
dos maiores, pois os exemplos quase sempre comovem e arrastam mais
do que as palavras. E pois considero útil que possas dispor do relato das
nossas coisas para poderes animar os teus caríssimos filhos, a fim de que
eles, que renunciaram a tantas e tão grandes coisas (inclusivamente a si
mesmos) para poderem partilhar da vida da nossa Ordem, do mesmo
modo que lêem e ouvem as coisas maravilhosas das demais Ordens, também encontrem não menor motivo de edificação na sua vocação, e assim
dêem contínuas graças ao doce Jesus que os chamou.
Por esta razão te confio, pai caríssimo no Senhor, estes colóquios
que muito me aprouve ter recolhido dos meus educadores e condiscípulos,
no espaço de vinte e seis anos. É, pois, em honra d’Aquele, em quem o
Pai se compraz (Mt 3,17), Jesus Cristo, dulcíssimo Deus e Senhor nosso,
que te envio este escrito.
COLÓQUIO I
Chegada dos irmãos menores a Inglaterra
3. No ano do Senhor de 1224, em tempos do papa Honório, ou seja,
no mesmo ano em que por ele foi confirmada a Regra de São Francisco5,
oitavo do reinado de Henrique, filho de João, na quarta-feira após a festa
da Natividade da Virgem, que nesse ano caía num domingo, os irmãos
—————
4
Não conhecemos o destinatário do opúsculo, mas como Tomás lhe chama ―caríssimo padre‖, podemos deduzir que devia ocupar um lugar de autoridade. O nome do
irmão Simão de Ashby não aparece, no entanto, na lista dos ministros provinciais de
Inglaterra. No texto da AF aparece Simoni de Esseby, cf. p. 218.
5
Honório III confirmou a Regra em 29 de Novembro de 1223. Os primeiros
irmãos desembarcaram na Inglaterra numa quarta-feira, a 10 de Setembro de 1224, precisamente no oitavo ano (28 de Outubro de 1223-27 de Outubro de 1224) de Henrique
II, filho de João sem Terra.
10
menores, quatro clérigos e cinco leigos, chegaram pela primeira vez a
Dover, na Inglaterra.
4. Foram estes os clérigos: o primeiro, frei Agnelo de Pisa, diácono,
de cerca de 30 anos, a quem São Francisco havia nomeado ministro provincial para a Inglaterra no último Capítulo geral6. Antes, tinha sido custódio de Paris e agira com tanta prudência que, devido à sua fama de santidade, ganhou tanto a simpatia dos irmãos como dos seculares.
O segundo foi frei Ricardo de Ingworth, inglês de nascimento,
sacerdote e pregador, de idade mais avançada. Tendo sido o primeiro na
Ordem a pregar às gentes de além dos Alpes, foi mais tarde enviado como
ministro provincial à Irlanda por frei João Parente7, de santa memória.
Tinha sido vigário de frei Agnelo em Inglaterra, quando este se dirigiu ao
Capítulo geral em que teve lugar a trasladação das relíquias de São Francisco e dera luminosos exemplos de grande santidade. Terminado o seu
ministério, fiel e grato a Deus, foi dispensado no Capítulo geral pelo
irmão Alberto, de santa memória, de todos os ofícios junto dos irmãos.
Inflamado pelo zelo da fé, partiu para a Síria, onde morreu santamente.
O terceiro foi o irmão Ricardo de Devon, também inglês, jovem
acólito, que deixou abundantes exemplos de paciência e obediência. Com
efeito, depois de ter viajado por obediência por várias províncias, sofreu
frequentes febres quartãs durante onze anos, vivendo todo este tempo no
lugar chamado Romney.
O quarto foi frei Guilherme de Ashby, ainda noviço de caparão8,
inglês, muito jovem e entrado na Ordem pouco tempo antes. Nos vários
cargos que exerceu durante muito tempo, deixando-se conduzir pelo espírito de Jesus Cristo com uma constância notável, deixou exemplos de
humildade e de pobreza, de caridade e serenidade, de obediência, de
—————
6
No Capítulo do Pentecostes, de 12 de Junho de 1224. Fala-se de um autógrafo da
carta obediencial, que teria sido vista ainda por volta de 1637 no palácio episcopal de
Saint-Omer na Flandres, cuja reprodução pictórica bem pode ser o pergaminho que o
bem-aventurado Agnelo tem nas mãos no fresco do Alverne (cfr. P. ROBINSON, em
AFH, I (1908), p. 468).
7
Fr. João Parente foi o primeiro Ministro Geral eleito depois da morte de S. Francisco (1227-1233).
8
Caparão, capuz comprido prescrito pela Regra como distintivo dos noviços (1R
2,8; 2R 2,10), mais tarde reduzido a uma simples tira de pano.
11
paciência e de toda a perfeição. Quando o irmão Gregório, ministro de
França, lhe perguntou se queria ir para Inglaterra, respondeu que não sabia
se queria. Como se admirasse o ministro de semelhante resposta, frei
Guilherme replicou que não sabia se queria ou não porque a sua vontade
não era sua mas do ministro: daí só querer tudo o que ministro queria que
ele quisesse. Frei Guilherme de Nottingham deu testemunho da sua
grande obediência. Quando o ministro lhe pediu que escolhesse lugar para
residir, respondeu que lhe agradava sumamente o lugar que mais aprouvesse ao ministro.
5. E como no relacionamento com os demais fosse particularmente
dotado duma singular amabilidade, atraiu à Ordem as simpatias de inúmeros seculares. Além disso, levou ao caminho da salvação pessoas bem
preparadas de várias condições, idade e ofícios e demonstrou em muitas
ocasiões que o manso Jesus sabe fazer coisas maravilhosas e vencer
gigantes com gafanhotos (Nm 13, 33).
Padecendo de fortes tentações carnais, a si próprio se castrou por
amor à pureza. Devendo então recorrer ao Papa, este, depois de o censurar
duramente, concedeu-lhe dispensa para celebrar. Morreu muitos anos
depois, em Londres.
6. Estes são, finalmente, os irmãos leigos: primeiro, frei Henrique
de Treviso, lombardo9 de nascimento, o qual, em razão da sua santidade e
grande prudência, foi logo nomeado guardião de Londres. Cumprido o seu
ministério na Inglaterra e tendo aumentado bastante o número dos frades,
voltou à sua pátria.
O segundo foi frei Lourenço, oriundo de Beauvais. Ocupou-se
desde o princípio em trabalhos artesanais, segundo o preceito da Regra10.
Voltou depois para junto do bem-aventurado Francisco e mereceu vê-lo
com frequência e gozar da consolação da sua palavra. Finalmente, o bem-aventurado Pai deu-lhe a sua própria túnica com expressões de muito
—————
9
Segundo a AF deve-se tratar de Tarvisio. A ed. De Brewer escreve Ceruise. Cf.
AF p. 218, nota 6. Lombardia, tinha então uma extensão geográfica maior que hoje:
abarcava todo o Norte de Itália.
10
1R 7; 2R 5.
12
afecto e enviou-o de novo a Inglaterra, agraciando-o com a sua bênção11.
Depois de muitos trabalhos e pelos méritos do mesmo bem-aventurado
pai, chegou, assim creio, à tranquilidade da residência de Londres, onde,
atingido por uma enfermidade incurável, espera agora o fim da sua tão
afanosa vida.
O terceiro foi frei Guilherme de Florença, que voltou à França imediatamente depois da chegada dos irmãos à Inglaterra.
O quarto foi frei Meliorato. O quinto foi Tiago, ultramontano e
ainda noviço de caparão.
7. Estes nove irmãos foram caritativamente transportados para
Inglaterra pelos monges de Fécamp e cortesmente providos de todo o
necessário. Chegados a Canterbury, ficaram dois dias no priorado da Santíssima Trindade; seguidamente, quatro deles, os irmãos Ricardo de Ingworth, Ricardo de Devon, Henrique e Meliorato, partiram para Londres.
Os outros cinco seguiram para o hospício dos sacerdotes12 e aí permaneceram até lhes conseguirem alojamento próprio. De facto, bem cedo lhes foi
concedido um pequeno quarto nos baixos de uma escola onde viviam
permanentemente encerrados de dia; quando os alunos voltavam a suas
casas, entravam eles na escola, acendiam o lume e sentavam-se em seu
redor. No momento da colação, penduravam por vezes uma panela com
mosto de cerveja e bebiam todos dela, um após outro, com a única caneca
disponível, dizendo alguma palavra de edificação. Conforme testemunhou
quem participou nesta serena pobreza e santa simplicidade, e teve a sorte
de ter estado com eles, a bebida era muitas vezes tão espessa que, para
reabastecer a caneca, tinham de lhe acrescentar água, bebendo depois alegremente. A mesma coisa aconteceu com frequência em Salisbury, onde,
à hora da colação, os irmãos bebiam mosto de cerveja com tanta alegria e
jovialidade, na cozinha junto ao fogo, que cada qual, para beber, se divertia em arrebatar fraternalmente a caneca ao vizinho.
—————
11
Seria talvez o irmão a que se referem 2C 181, LP 90 e EF 34.
12
Hospitale sacerdotum. O termo ―hospital‖ tinha então um sentido mais genérico
que o actual. Era indiferentemente casa de hóspedes, de enfermos ou de pobres. Neste
caso, podemos interpretar como a casa de sacerdotes. Por isso traduzimos ―hospício‖.
13
A mesma coisa aconteceu em Sherwsbury, quando os irmãos aí
chegaram. O velho frei Martinho, que foi o primeiro a chegar a esse lugar,
recorda com saudade tal costume.
8. Nesses dias andavam os irmãos tão preocupados em não contrair
dívidas, que só se endividavam em casos de extrema necessidade. Sucedeu que frei Agnelo quis analisar a contabilidade dos irmãos de Londres,
nos tempos em que era guardião frei Salomão. Importava saber quanto
tinham gasto durante o ano, e vendo que tinham gasto demasiado, embora
os irmãos tivessem um teor de vida bastante modesto, atirou ao chão
registos e facturas e, batendo no rosto, exclamou: ―Ai de mim, que me
enganaram!‖, e não quis ver mais as contas. Aconteceu também que, um
dia, chegaram dois irmãos muito cansados a um convento da Ordem. Uma
vez que faltava a cerveja, o guardião, a conselho dos mais velhos, mandou
buscar um jarro a crédito, mas os frades do convento, que faziam companhia aos hóspedes, não beberam, simulando que só beberiam por caridade,
a título de confraternização.
9. Adenda. Antes da constituição definitiva da Ordem, costumavam
os irmãos reunir-se todos os dias para a conversação e para beberem juntos, os que queriam13, e reuniam-se todos os dias em capítulo. Não havia
então limitações quanto à qualidade dos alimentos e do vinho; no entanto,
em muitos conventos só aceitavam três vezes por semana os guisados de
carne que lhes ofereciam. No mesmo convento de Londres, em tempos do
ministro frei Guilherme, de santa memória, sendo guardião frei Hugo, vi
irmãos beber cerveja tão ácida, que alguns preferiam água, e, também,
comer aquela espécie de pão que se chama ―torta‖. Igualmente, faltando o
—————
13
Os termos collatio e collationem facere já apareceram nesta narrativa em todas
as acepções possíveis. ―Colóquio‖ é mesmo o título português destas recolhas de frei
Tomás; ou ―encontro depois da ceia‖, como também parece ser aqui; momento para
duas ocupações: conversação familiar enquanto se bebe cerveja. Particularmente nesta
―conjunção‖ que transmite um costume da Ordem, poder-se-ia entender collatio no seu
sentido mais simples: os irmãos costumavam reunir-se ao fim do dia em volta do lume e
beber um pouco de cerveja, entremeando palavras de edificação. Um costume que faz
lembrar a alegria de se encontrarem juntos. O capítulo tinha antigamente um significado mais espiritual e penitencial.
14
pão, muitas vezes comi pão de cevada na presença do referido ministro e
dos hóspedes da casa14.
COLÓQUIO II
Primeira expansão dos irmãos
10. Chegados, pois, a Londres, os mencionados irmãos dirigiram-se
à residência dos irmãos pregadores e foram por eles benevolamente acolhidos. Aí permaneceram quinze dias comendo e bebendo o que lhes
punham diante, como se fossem verdadeiros membros da comunidade.
Alugaram depois uma casa em Cornhill e aí fizeram celas com tabiques de arbustos secos. Viveram nesta santa simplicidade até ao Verão
seguinte, sem uma capela própria, porque ainda não tinham licença para
erigir altar e celebrar missa nos respectivos hospícios15. Imediatamente
antes da festa de Todos os Santos, antes mesmo da vinda de frei Agnelo a
Londres, partiram para Oxford frei Ricardo de Ingworth e frei Ricardo de
Devon, os quais foram igualmente acolhidos pelos irmãos pregadores:
comeram no seu refeitório e dormiram no seu dormitório durante oito
dias, como se pertencessem ao convento. Depois, alugaram uma casa na
paróquia de Santa Eva e aí viveram até ao Verão seguinte, sem capela
própria.
11. Aqui semeou o doce Jesus o grão de mostarda que se transformou na maior das plantas (Mt 13, 31-32). Depois, frei Ricardo de Ingworth e frei Ricardo de Devon partiram para Northampton e hospedaram-se no hospício16; seguidamente, alugaram uma casa na paróquia de Santo
Egídio. Foi primeiro guardião do lugar frei Pedro, espanhol, que trazia um
cilício de ferro na sua carne, e deu muitos outros exemplos de perfeição.
O primeiro guardião de Oxford foi frei Guilherme de Ashby, ainda
noviço; mas foi-lhe concedido o hábito de professo. O primeiro guardião
—————
14
Em vez de ―tortam‖, BREWER usa hordea. Mas HOWLETT prefere ―alia‖, provavelmente por ―alicam‖, precisamente pão de cevada. Cf. AF p. 220, nt. 5.
15
Só em 3 de Dezembro de 1224, Honório III concedeu aos irmãos a faculdade de
celebrar missa e os divinos ofícios em seus oratórios, sem por isso se apropriarem dos
direitos próprios das igrejas paroquiais. Cfr. A bula Quia populares tumultus.
16
Ver mais acima, nota 12.
15
de Cambridge foi frei Tomás de Espanha. O primeiro guardião de Lincoln
foi frei Henrique Misericorde, leigo.
Adenda. Durante o governo deste último, esteve no convento frei
João de Yarmouth, homem de grande santidade, que morreu depois em
Nottingham e está sepultado junto dos cónegos de Selford.
12. O senhor João Travers foi o primeiro a acolher os irmãos em
Cornhill e alugou-lhes uma casa. Foi feito seu guardião um certo irmão
leigo lombardo, de nome Henrique. Este começou então a estudar letras
de noite, na igreja de São Pedro, em Cornhill, chegando a ser depois vigário de Inglaterra quando Agnelo partiu para o Capítulo geral. Tinha como
companheiro no vicariato, frei Ricardo de Ingworth. Mas, por fim, não
resistindo ao prazer efeminado de tantas honrarias e esquecendo-se da sua
própria dignidade, abandonou miseravelmente a Ordem.
13. É digno de menção que no segundo ano do exercício de frei
Pedro de Tewkesbury, quinto ministro de Inglaterra, ou seja, no 32º ano
da chegada dos irmãos a este país, se calculou que vivessem nele 1242
irmãos, distribuídos por 49 conventos.
COLÓQUIO III
Aceitação de noviços
14. Quando os primeiros frades que chegaram a Inglaterra se dividiram partindo para distintos lugares, alguns seculares, tocados pelo espírito
de Jesus, quiseram entrar na Ordem.
15. O primeiro a ser recebido foi frei Salomão, jovem de excelente
carácter, famoso pela sua beleza e elegância. Costumava contar-me que,
quando era noviço, foi nomeado esmoleiro do convento e foi a casa de sua
irmã pedir esmola. Ela, porém, ao dar-lhe um pão, voltou-se para o lado
dizendo: ―Maldita a hora em que te vi‖; mas ele, rejubilando, aceitou o
pão e partiu. Tão rigidamente se atinha à forma da mais estrita pobreza
que, por vezes, chegou a transportar no capelo farinha, sal e alguns figos
para os irmãos doentes e, debaixo do braço, lenha para o fogo, cuidando
16
sempre de não aceitar ou recolher mais do que o estritamente indispensável17.
Aconteceu, certa vez, ter sentido tanto frio que julgou estar a ponto
de morrer; e como os irmãos nada tivessem para o aquecer, a santa caridade sugeriu-lhes esta excelente ideia: juntaram-se todos à sua volta e
apertaram-se contra o seu corpo para o aquecer, como faria uma ninhada
de bacorinhos18.
Quando devia ser promovido a acólito, foi enviado pelo venerável
pai, o arcebispo Estêvão (Langton), de santa memória, e apresentado por
um dos irmãos mais idosos. Recebeu-o o arcebispo com muita gentileza e
conferiu-lhe a ordem convocando-o com este título singular: ―Aproxima-te, frei Salomão da Ordem dos Apóstolos‖!19. Lembrei este facto para que
se saiba o apreço que tinham as pessoas sábias pela simplicidade dos primeiros irmãos. Depois de ter comido à mesa do arcebispo, voltaram para
Canterbury descalços, pela neve, que estava então muito alta e metia
medo só de a ver. Depois, contraiu a gota num pé, pelo que esteve doente
durante dois anos em Londres, tanto que não podia deslocar-se senão
transportado. Durante a enfermidade teve a honra de uma visita de frei
Jordão, de santa memória, mestre geral da Ordem dos pregadores20, que
disse: ―Irmão, não te envergonhes pelo facto de o Pai do Senhor Jesus te
chamar para Ele só com um pé‖.
No entanto, depois de ter estado durante tanto tempo prostrado
numa cela, onde não podia ouvir missa – os irmãos ainda a não celebravam no convento, indo ouvi-la e celebrar os divinos ofícios na igreja
paroquial, – agravou-se de tal maneira a situação que, segundo os
médicos, se tornou inadiável a amputação do pé afectado. Mas quando
trouxeram o cutelo e se descobriu o pé, saiu pus que deu alguma
—————
17
Segundo o exemplo de Francisco; cf. EP 12.
18
Dificilmente se encontraria uma imagem tão original dos cuidados fraternos.
19
Título verdadeiramente importantíssimo, revelador do que parecia ser, na sua
essência, a vida dos irmãos: uma vida apostólica. Era um título muito mais valioso que
o de qualquer benefício eclesiástico. Todavia, não se deve confundir com a Ordem dos
Apóstolos de que fala Salimbene.
20
Bem-aventurado Jordão da Saxónia, segundo mestre geral da Ordem dos
pregadores, de Maio de 1222 até à sua morte num naufrágio, em Fevereiro de 1237.
Visitou a província inglesa em 1230. Verdadeiramente familiar nas suas relações com
os irmãos menores ingleses.
17
esperança de cura, e por tal motivo se adiou para outra oportunidade a
dura sentença. Então frei Salomão agarrou-se a uma esperança certa: que,
se fosse levado ao túmulo de Santo Elói21, recuperaria o uso do pé e a
saúde. Por tal motivo, quando chegou frei Agnelo, ordenou que, sem
demora, levassem frei Salomão ao ultramar da maneira mais cómoda.
Assim se fez e a sua fé não foi defraudada; tão bem se restabeleceu que
pôde caminhar sem bastão e celebrar missa. Chegou mesmo a ser guardião de Londres e confessor de toda a cidade. No entanto, como tivesse
suplicado ao bom Jesus que o purificasse de seus pecados nesta vida,
sobreveio-lhe o mal da gota que lhe afectou a coluna vertebral, a ponto de
esta se tornar rígida e curva. Teve também uma hidropisia infecciosa e
hemorróides, com perda de sangue, que o atormentaram até à morte.
Finalmente, na véspera do dia em que voltou para o doce Jesus, este
enviou ao seu coração uma tristeza que não conseguia explicar, ao ponto
de pensar que todas as dores que tinha suportado nada eram em comparação com semelhante angústia. Chamou então três irmãos com quem tinha
maior intimidade e, expondo a agonia da sua alma, suplicou-lhes que
orassem intensamente por ele. E enquanto os irmãos perseveravam juntos
em oração, apareceu-lhe o dulcíssimo Jesus na companhia do apóstolo
Pedro e deteve-se diante do seu leito olhando para ele. De imediato frei
Salomão reconheceu o Salvador e exclamou: ―Tende piedade de mim,
Senhor , tende piedade de mim‖ (Sl 56, 2): O Senhor Jesus respondeu:
―Uma vez que tanto me pediste para te atormentar nesta terra (cf. Dan
10,12) e te fazer expiar completamente os pecados, mandei-te este sofrimento, sobretudo por teres abandonado o teu fervor de antes e não teres
feito, como devias, dignos frutos de penitência (Mt 3, 8), em conformidade com a tua vocação, e, mais ainda, por teres sido demasiado indulgente com os ricos na imposição da penitência‖. São Pedro acrescentou:
―Hás-de saber, além disso, que pecaste gravemente ao julgar frei João de
Chichester que morreu recentemente. Agora roga a Deus que te dê uma
morte como a que teve este irmão‖. Chorando, frei Salomão suplicou:
―Tem piedade de mim, dulcíssimo Senhor, tem piedade de mim, doce
Jesus!”. Sorrindo, Jesus fixou-o com uma expressão tão suave, que toda a
—————
21
Que era venerado em Noyon. Santo Elói, patrono dos ourives e de tantas outras
categorias de trabalhadores de metais, também era invocado contra enfermidades crónicas, úlceras, etc.
18
angústia anterior lhe desapareceu do coração, e com a alma cheia de gozo
concebeu uma firme esperança de salvação. Em seguida, chamou os
irmãos e contou-lhes o que tinha visto e eles ficaram muito consolados.
16. Adenda. É também digno de menção este facto: quando os
irmãos estavam em Cornhill, veio um dia o diabo visivelmente e disse a
frei Gilberto de Vyz, quando se encontrava sentado sozinho: ―Julgas tu
que me escapas? Para já, toma, que já comeste…‖, e atirou para cima dele
um punhado de piolhos, desaparecendo em seguida.
17. O segundo irmão a ser aceite na Ordem por frei Agnelo foi frei
Guilherme de Londres, que esteve mudo durante um certo tempo, mas
recuperou a fala em Barking por intercessão de Santa Etelburga, segundo
ele mesmo me disse. Também tinha sido amigo do juiz de Inglaterra,
Humberto de Burgh e, embora laico e culto, como se dizia, e famosíssimo
como alfaiate22, foi admitido ao hábito em Londres, quando os irmãos
ainda não tinham nem terreno para construir, nem capela.
O terceiro foi frei Joyce de Cornhill, clérigo, oriundo da mesma
cidade de Londres, jovem de óptima índole, nobre e gentil. Suportadas
muitas fadigas na sua cidade, foi viver para Espanha, onde morreu santamente.
O quarto foi frei João, clérigo, jovem de aproximadamente dezoito
anos, de boa índole e óptima conduta, que cedo levou a bom termo o
curso da vida, voltando para o Senhor Jesus Cristo. Tinha sugerido ao
sacerdote Filipe, que sofria de uma insuportável dor de dentes, que
enviasse pão e cerveja aos irmãos, e prometera-lhe que o Senhor o curaria.
Pouco tempo depois consagraram-se ambos ao Senhor e entraram na
Ordem dos irmãos menores.
O quinto foi este frei Filipe, nascido em Londres, sacerdote. Guardião de Bridgnorth muito cedo, foi-lhe cometida a missão de pregar, e por
ela obteve muitos frutos. Por fim, enviado para a Irlanda, aí morreu santamente.
—————
22
Como anteriormente LITTLE, devemos também nós render-nos às qualificações
deste irmão. Alguns termos e a própria construção de Tomás podem ter muitos e variados sentidos.
19
18. Depois destes, entraram na Ordem alguns Mestres, que aumentaram a fama dos irmãos, a saber, frei Walter de Burgh, a respeito de
quem um irmão tinha tido uma maravilhosa visão: viu o Senhor descer do
céu e oferecer a fr. Walter um rolo em que estava escrito: ―O lugar da tua
colheita não é aqui; é noutro lugar‖. O Senhor revelou-lhe também o ardil
de uma religiosa que, recorrendo astutamente a visões simuladas, induziu
em erro um irmão, ao ponto de ele as registar por escrito. Mas frei
Agnelo, ao não acreditar, ordenara aos irmãos do convento que pedissem
ao Senhor que o iluminasse sobre certo assunto que o preocupava. Ora
sucedeu que, nessa noite, frei Walter teve esta visão: viu uma fêmea de
veado subir rapidamente ao cimo duma alta montanha e dois cães negros
que, perseguindo-a, a fizeram voltar ao vale, onde a despedaçaram. Frei
Walter correu então ao sítio onde julgava estar o animal e só encontrou
um saco cheio de sangue. Quando contou esta visão a frei Agnelo, logo
este intuiu que essa mulher tinha sido seduzida devido à sua hipocrisia, e
mandou a dois irmãos prudentes que fossem ver a religiosa, a qual, depois
de ter confessado que tinha inventado tudo o que lhes dissera, foi finalmente reconduzida à verdade.
Entrou também na Ordem outro mestre, o normando frei Ricardo.
Quando o referido Walter lhe pediu uma palavra edificante, reflectiu longamente e respondeu: ―Quem quiser viver em paz, cale-se‖ (“Ky vout
estre en pes, tenge sey en pes‖).
19. Nesse tempo entrou também na Ordem o mestre Vicente de
Coventry, o qual, com o seu zelo e a ajuda de Jesus Cristo, convenceu
pouco depois seu irmão, mestre Henrique, a fazer outro tanto. Foi admitido na festa da Conversão de São Paulo juntamente com o mestre Adão
de Oxford, de santa memória, e o senhor Guilherme de York, grande
bacharel. Este mestre Adão, famoso em todo o mundo, tinha feito o voto
de cumprir quanto lhe fosse pedido por amor de Nossa Senhora. Ele
mesmo o dissera a certa reclusa23 da sua confiança. Mas ela revelou o
segredo aos amigos, nomeadamente a um monge de Reading, a alguns
cistercienses e a um irmão pregador, dizendo-lhes que poderiam tirar pro—————
23
Na Idade Média algumas mulheres consagravam-se à vida reclusa. Viviam à
entrada das cidades, encerradas nos seus cubículos, entregues a uma intensa vida de
oração e penitência.
20
veito de tal homem, porque não queria que se fizesse frade menor. Mas
sempre que algum deles se aproximava dele, Nossa Senhora não permitia
que pedisse uma tal coisa por seu amor e diferia sempre o pedido para
outra ocasião. Entretanto, o mestre Adão teve uma visão: certa noite,
devia atravessar uma ponte onde alguns homens, metidos na água, estendiam as redes para o apanhar; apesar disso, conseguiu escapar com não
pequena dificuldade e chegou a um lugar completamente tranquilo.
O certo é que, enquanto, por um desígnio divino, conseguia escapar
das outras Ordens, aconteceu ir visitar os frades menores e, enquanto lhes
falava frei Guilherme de Colville, homem provecto e de grande santidade,
disse-lhe entre outras coisas: ―Mestre caríssimo, por amor à Mãe de Deus,
entra na nossa Ordem e dignifica a nossa simplicidade‖. Apenas ouviu
estas palavras, foi como se as tivesse ouvido dos lábios da Mãe de Deus e
aceitou de seguida24.
20. Ele, que era já então companheiro do mestre Adão de Marsh e
participante de todos os seus bens, conseguiu com a ajuda da graça de
Deus e os seus modos persuasivos convencê-lo a entrar também na
Ordem, não muito depois de ele próprio o ter feito. Uma noite, frei Adão
de Marsh teve uma visão: tinha chegado com frei Adão de Oxford a uma
arribana, em cuja porta estava pintado um crucifixo que devia ser beijado
por todo aquele que nela entrasse. Frei Adão de Oxford beijou o crucifixo
e entrou em primeiro lugar; o outro irmão Adão seguiu-o, depois de o ter
beijado por sua vez. Mas o primeiro descobriu logo uma escada em espiral e subiu-a tão rapidamente que desapareceu da vista do segundo num
abrir e fechar de olhos. Este exclamou: ―Sobe mais devagar!‖ Mas nunca
mais voltaram a juntar-se. Esta visão afigurava-se muito clara a todos os
irmãos que naquele tempo estavam na Inglaterra. Com efeito, depois da
sua entrada na Ordem, o irmão Adão de Oxford partiu para se encontrar
com o papa Gregório IX, o qual, tal como tinha desejado, o enviou como
missionário para entre os Sarracenos25; mas morreu em Barletta, conforme
—————
24
O códice, de Howlett, acrescenta: et sicut deveniens cum aedificationis coeli
máxima intravit. Cf. AF p. 224, nt. 8.
25
Ao começar a primavera de 1232, Gregório IX enviou vários grupos de frades
menores ao Sultão de Damasco e a outros príncipes maometanos. O irmão Adão de
21
o tinha predito a seus companheiros. Diz-se que chegou a ser famoso
pelos seus milagres.
Adão de Marsh entrou depois na Ordem, em Worcester, levado
sobretudo por um grande amor à pobreza.
No seguimento destes, entrou frei João de Reading, abade de Osney,
que nos deixou exemplos de grande perfeição. Depois dele veio também o
mestre Ricardo Rufus, tão famoso na Ordem como em Paris.
Entraram também na Ordem alguns cavaleiros: Ricardo Gobion,
Egídio de Merk, Tomás, espanhol, e Henrique de Walpole. A propósito da
entrada deste último, o Rei disse: ―Se tivesses sido mais prudente em
aceitar os irmãos e não tivesses procurado privilégios à custa de outros e,
sobretudo, se não te tivesses mostrado importuno ao mendigar, terias
podido dominar sobre os príncipes‖.
COLÓQUIO IV
Fundação dos conventos
21. Como aumentasse o número dos irmãos e se divulgasse a fama
da sua santidade, cresceu também, por sua vez, a devoção dos fiéis, que
lhes proporcionaram habitações condignas. Em Canterbury, o senhor Alexandre, mestre do hospício dos sacerdotes, deu-lhes um pequeno terreno e
construiu uma capela suficientemente grande para as necessidades dessa
altura; e como os irmãos não quisessem aceitar nenhuma propriedade, a
cidade constituiu-se proprietária e concedeu o uso aos frades26. Chegaram
a ser seus protectores, particularmente o senhor Simão de Langton, arcediago de Canterbury, o senhor Henrique de Sandwich e a nobre condessa
que vivia reclusa em Hakington. Ela favorecia-os em tudo, como faz uma
mãe com os filhos, atraindo para eles engenhosamente o favor dos príncipes e prelados, sobre quem tinha conquistado de modo maravilhoso uma
profunda influência.
—————
Oxford ( ou, para outros, de Exonia, Exeter) entrou na Ordem talvez para poder realizar
mais facilmente o seu desejo de ir para entre os muçulmanos.
26
Fiéis ao preceito taxativo da Regra bulada (c.6) que proíbe todo o tipo de
propriedade, os irmãos aceitaram esta casa somente para seu uso. O que viria a ser
depois uma longa e áspera polémica, é resolvido agora simplesmente deixando a propriedade dos bens doados à autoridade civil da cidade.
22
22. Em Londres, João Iwyn deu hospedagem aos irmãos e transferiu
para a cidade a propriedade de um terreno comprado para os irmãos, deixando-lhes o usufruto segundo a vontade dos cidadãos; depois, o mesmo
entrou na Ordem como irmão leigo e deixou-nos exemplos de verdadeira
penitência e grande piedade. Joyce, filho de Pedro, ampliou este terreno, e
seu filho, jovem piedoso e de bom coração, entrou também com entusiasmo na Ordem e nela perseverou devotissimamente até ao fim.
Depois, Guilherme Yoynier construiu a capela a expensas suas e
ofereceu, com vários intervalos, uma quantia de cerca de duzentas libras
esterlinas para erigir a outra construção, continuando a ser amigo dos frades27 e seu benfeitor até à morte.
Para a construção da enfermaria, Pedro de Eyland deixou por sua
morte 100 libras esterlinas. Henrique de Frowik e um jovem maravilhoso,
Salekin de Basings, contribuíram especialmente com as suas ofertas para a
construção de um aqueduto, para o qual, de resto, o rei deu um subsídio
com admirável prodigalidade. Durante o tempo da minha estadia em Londres vi o dulcíssimo Jesus prover os irmãos com tantas ofertas para as
suas construções, para aquisição de livros, ampliação do terreno e outras
necessidades, que havia de surpreender a todos. Por este motivo, os
irmãos devem amá-lo e honrá-lo eternamente, distinguindo-o acima dos
demais benfeitores.
23. Em Oxford, Roberto le Mercer foi o primeiro a acolher os
irmãos e arrendou para eles uma casa, em que foram admitidos à Ordem
muitos honrados bacharéis e senhores da nobreza. Depois, alugaram a
Ricardo le Muliner uma casa, na zona onde agora estão; este transferiu
dentro do ano o terreno e o edifício para uso da comunidade da cidade.
Mas o terreno era pequeno e muito estreito.
24. Em Cambridge, os irmãos foram recebidos primeiramente pelas
autoridades da cidade, que lhes confiou uma antiga sinagoga anexa à prisão. Mas como a vizinhança da prisão se tornasse algo molesta para os
irmãos e para os carcereiros, deu-lhes o rei dez marcos para, com o seu
rendimento, poderem pagar ao procurador o aluguer de um pedaço de ter—————
27
Isto é amicus spiritualis fratrum, segundo 2R 4, a quem os frades podiam recorrer nas necessidades. Cf, AF, p. 226, nt. 1.
23
reno. Deste modo, os irmãos puderam construir uma capela, mas tão
pobre que o carpinteiro a levantou num só dia com quinze pares de vigas.
Para a festa de São Lourenço, embora fossem três apenas os frades clérigos, ou seja, frei Guilherme de Ashby, frei Hugo de Bugeton e um noviço
chamado Elias, que era tão coxo que tinha de ser transportado à capela,
cantaram solenemente o ofício com música. O noviço chorou tanto que as
lágrimas lhe corriam pela face enquanto cantava; depois da sua santa
morte, em York, apareceu a frei Guilherme de Ashby em Northampton, e
quando este lhe perguntou como estava, respondeu: ―Estou bem; pede por
mim!‖.
25. Em Shrewsbury, o rei deu aos irmãos um terreno. Um cidadão
chamado Ricardo Pride construiu a igreja e Lourenço Cox as outras
dependências. Mas, por vontade do ministro, frei Guilherme, e amor à
pobreza, foram derrubadas as paredes de pedra do dormitório e reconstruídas em barro, tudo fazendo com admirável submissão, paciência e
grande esforço.
26. Em Northampton28, um cavaleiro, Ricardo Gobion, albergou os
irmãos num terreno recebido em herança, fora da porta oriental, perto da
igreja de Santo Edmundo, onde pouco depois o filho do referido benfeitor,
de nome João, recebeu o hábito. Mas os parentes ficaram perturbados com
a sua entrada na Ordem e o pai mandou aos frades que saíssem do terreno
que era dele e o deixassem livre. Com ponderação, o guardião respondeu
deste modo: ―Coloque-se o jovem no meio, e a parte que ele escolher será
aprovada por ambos‖. Os parentes aceitaram. O jovem foi, pois, colocado
no meio do coro, com os parentes a um lado e os frades a outro. Quando o
guardião lhe disse que escolhesse, frei João correu para os irmãos, apertou
nos braços a estante e disse: ―Quero ficar aqui‖. Os irmãos dispuseram-se
a abandonar o convento, enquanto o dito senhor aguardava à porta: avançando dois a dois em procissão, seguia em último lugar um irmão idoso e
débil, levando na mão um saltério. Ao observar tanta simplicidade e
humildade, e comovido com a divina inspiração, desfez-se o dito senhor
em lágrimas e pediu-lhes logo que lhe perdoassem e voltassem para o
convento. E assim fizeram. Depois, comportou-se com os irmãos como
—————
28
A versão publicada em AF omite o texto do número 26.
24
um pai. Mais tarde, os cidadãos introduziram os irmãos na parte de cidade
onde ainda residem29.
COLÓQUIO V
Pureza de vida dos primeiros irmãos
27. Os irmãos desse tempo, de posse das primícias do Espírito (Rm
8, 23), serviam o Senhor não impelidos por leis humanas, mas segundo a
livre inclinação da sua religiosidade, contentes apenas com a sua Regra e
os pouquíssimos estatutos que haviam sido publicados no mesmo ano da
aprovação da mesma. E foi esta a primeira constituição que São Francisco
fez depois da promulgação da Regra bulada, como disse frei Alberto de
Pisa, de santa memória: que os irmãos não deviam comer na companhia
de seculares, a não ser três bocados de carne, pelo respeito à prescrição do
Evangelho30, pois corria o rumor de que os irmãos pecavam pela avidez
no comer.
Tinham eles o costume de guardar silêncio até à hora de Tércia e
eram tão assíduos na oração que quase não havia hora nocturna em que
não estivesse alguém no ―oratório‖. Nas principais festas do ano cantavam
com tanto fervor o ofício da vigília que não raras vezes o prolongavam
noite dentro; e mesmo quando não eram mais de três ou quatro, ou
quando muito seis, recitavam-no solenemente cantando.
A sua simplicidade e pureza eram tão límpidas que no Capítulo se
acusavam mutuamente até das poluções nocturnas. Era também seu costume nunca julgar ninguém, limitando-se a dizer simplesmente: ―Assim
é‖ (cf. Mt, 5,37). Apenas alguém era repreendido pelo superior ou por
algum companheiro, respondia imediatamente: ―mea culpa‖, e com frequência se prostrava por terra. A este respeito, frei Jordão, mestre geral
dos pregadores, disse que o diabo, aparecendo-lhe uma vez, lhe tinha dito
que este ―mea culpa‖ lhe destruía tudo quanto julgava arrebatar aos
—————
29
Fica deste modo patente a preocupação dos irmãos ingleses em manter a
pobreza formal como estava mandado, fazendo com que a propriedade dos edifícios
fosse das comunidades locais ou do rei. Cf. MERLO, G. G. Francisco de Asís – Historia
de los hermanos Menores y del franciscanismo hasta los comienzos del siglo XVI,
Arantzazu, 2005, p. 79-95.
30
Lc 10, 8; 1R 3, 13; 2R 3, 14.
25
irmãos menores, porque confessavam uns aos outros a sua culpa quando
ofendiam um irmão.
28. Os irmãos eram sempre tão amáveis e joviais uns com os outros
que só a muito custo podiam deixar de rir quando se encontravam juntos.
Mas como os jovens irmãos de Oxford riam com demasiada frequência,
foi imposto a um deles que, sempre que se risse no coro ou na mesa,
outras tantas se castigasse com a ―disciplina‖.
Aconteceu que, num só dia, esse pobre irmão teve de se disciplinar
onze vezes sem poder conter o riso. Uma noite, porém, teve uma visão:
estando toda a comunidade no coro, e encontrando-se todos tentados de
riso, como em outras ocasiões, o crucifixo que estava pendurado na porta
do coro voltou-se para eles como se estivesse vivo e disse: ―São filhos de
Coré (cf. Nm 16), que na hora da cruz riem ou dormem‖. Pareceu-lhe
também que o crucificado tentava despregar-se da cruz, como se quisesse
descer e ir-se embora; mas de imediato o guardião do convento subiu e
rebateu os cravos para que não pudesse baixar. Contada, pois, a visão, os
irmãos ficaram desconcertados e desde então mostraram-se mais sérios e
menos dados ao riso.
Tinham um tal amor à verdade que quase não ousavam dizer coisa
alguma por metáforas, e jamais ocultavam as próprias culpas, embora
soubessem que seriam castigados se as confessassem.
29. A questão de escolher um convento ou de permanecer no que
lhes era destinado, não representava qualquer espécie de dificuldade para
eles; nem sequer os preocupava terem de cumprir outras ordens, quaisquer
que fossem, ou qualquer que tivesse de ser a maneira de as cumprir. Bastava-lhes saber que eram ordens do superior. Sucedeu, até, que foram
enviados para lugares que agora são tidos por sertanejos ou ermos, irmãos
que eram nobres de nascimento, ou importantes por outros motivos na
vida secular, ou de grande respeito na Ordem, e eles partiam sem qualquer
murmuração. Por haver entre eles um grande afecto, a única coisa que os
entristecia era terem de se separar. Por esse motivo, acontecia com frequência que os irmãos acompanhavam os que partiam durante um longo
trecho de caminho, e demonstravam o mútuo afecto vertendo muitas
lágrimas no momento da separação.
26
COLÓQUIO VI
Promoção dos pregadores
30. Embora os irmãos se empenhassem com todas as veras em
manter em tudo a máxima simplicidade e pureza de consciência, entregavam-se com todo o ardor ao estudo das Escrituras e das disciplinas escolásticas, tanto assim que todos os dias se dirigiam às escolas de teologia,
por distantes que fossem, descalços, mesmo na aspereza do frio invernal e
da lama abundante. Por isso, com a ajuda da graça do Espírito Santo,
foram vários os promovidos em pouco tempo ao ofício da pregação. O
primeiro entre eles foi frei Henrique de Baldock, de feliz memória, depois
frei Filipe de Londres e frei Guilherme de Ashby, o qual anunciou a palavra de Deus tanto ao clero como ao povo, não apenas com a pregação mas
com o exemplo da sua piedade.
31. Deu um grande impulso à pregação e novos motivos de prestígio e autoridade, a entrada na Ordem de frei Haymon de Faversham31. Era
já sacerdote e pregador famoso quando pediu para ser admitido à Ordem
juntamente com outros três mestres, em Saint-Denis, numa Sexta-feira
santa.
Quando ainda pertencia ao clero secular, usava o cilício até aos joelhos e dava muitos outros exemplos de austeridade. Por esse motivo,
emagreceu e enfraqueceu tanto que dificilmente sobreviveria se não
usasse roupas delicadas e quentes. Um dia, teve esta visão: encontrava-se
em Faversham a pregar na igreja diante do crucifixo, quando do céu desceu uma corda; ele agarrou-a e assim foi puxado para o céu. Quando, mais
tarde, viu os irmãos menores em Paris, lembrando-se da visão, recobrou
ânimo e, reagindo contra a própria debilidade, convenceu com muita delicadeza o companheiro, mestre Simão de Sandwich e outros dois famosos
—————
31
Fr. Haymon de Faversham entrou na Ordem em Paris no ano de 1222. Depois
de os irmãos chegarem a Inglaterra juntou-se a eles, em 1224. Foi custódio em Paris,
leitor em Tours, Bolonha e Pádua. Gregório IX enviou-o como delegado à corte do
imperador grego João Vatácio II. Era grande opositor de Fr. Elias e contribuiu para que
fosse destituído de Ministro Geral (Cf. Col. XIII), em 1239. Foi eleito Ministro geral
em 1 de Novembro de 1240. Foi durante o seu governo que a Ordem começou a ter um
ordenamento jurídico, mais tarde completado por S. Boaventura. É recordado na Crónica de Jordão de Giano (nº 70-71).
27
mestres, a pregarem nosso Senhor Jesus Cristo, enquanto ele celebrava a
missa para implorar que lhe revelasse o que era melhor para a sua salvação. E como a todos parecesse que a melhor opção era professarem nos
irmãos menores, para maior segurança foram ter com frei Jordão, mestre
dos irmãos pregadores, de santa memória, rogando lhes dissesse com verdade qual era o melhor conselho segundo a sua consciência. Este, que
estava verdadeiramente inspirado por Deus, confirmou com o seu conselho a escolha feita. Desta maneira, os quatro apresentaram-se diante do
ministro provincial, frei Gregório de Nápoles32, que os recebeu em Saint-Denis, depois de Haymon ter pregado na Sexta-feira santa sobre o versículo: “Quando o Senhor restaurar os destinos de Sião (Sl 125,1); e com
grande satisfação receberam o hábito franciscano.
No dia de Páscoa, vendo uma grande multidão na igreja paroquial
onde os irmãos assistiam à missa, porque ainda não tinham capela própria,
frei Haymon disse ao custódio, um leigo chamado frei Benvenuto, que, se
lhe parecesse bem, pregasse ao povo para que ninguém comungasse em
pecado mortal. O custódio, inspirado pelo Espírito Santo, ordenou-lhe que
pregasse. E frei Haymon pregou de maneira tão comovente, que muitos
decidiram diferir a Comunhão até terem ocasião de se confessar. Permaneceu na igreja durante três dias ouvindo confissões e confortando a todo
o povo.
32. Como já se disse, quando os irmãos vieram para Inglaterra, veio
também com eles este irmão e, mercê da pregação e das disputas escolásticas, mas principalmente pela simpatia que granjeou junto de muitos
prelados, pôde levar muitos à simplicidade dos primeiros frades. Era tão
cortês e eloquente que conseguia ser aceite até pelos que não viam a
Ordem com bons olhos. Por essa razão, foi eleito primeiramente custódio
de Paris e depois leitor em Tours, Bolonha e Pádua. Posteriormente, o
papa Gregório, de piedosa memória, enviou-o em missão diplomática à
Grécia, ao imperador Vatácio, juntamente com frei Rodolfo de Reims, de
feliz memória.
—————
32
Quando S. Francisco se ausentou para o Egipto e Terra Santa deixou dois vigários, Fr. Gregório de Nápoles e Mateus de Narni. Fr. Gregório foi também Ministro
provincial da França (1223-1233).
28
33. Frei Haymon fez remover do provincialado frei Gregório de
Nápoles, então ministro de França, por causa dos seus abusos, e por justo
juízo de Deus mandou que fosse encarcerado, libertando aqueles que o
ministro tinha encarcerado injustamente. Sustentado por uma singular
ajuda de Deus, fez depor também frei Elias, que era Ministro Geral, por
causa dos seus escândalos e pela tirania que tinha exercido sobre os
observantes da Ordem, na presença do nosso pai, o papa Gregório IX,
uma vez que, por sua iniciativa, muitas províncias tinham apelado contra
frei Elias.
Quem pode, pois, presumir dos seus méritos e sentir-se seguro de si
próprio quando vê cair tão baixo pessoas tão importantes? Quem pode
comparar-se a um homem como Gregório de Nápoles entre os pregadores
ou os prelados da Universidade de Paris, ou entre o clero de toda a
França? Quem foi mais famoso e estimado em todo o mundo cristão do
que frei Elias? No entanto, o primeiro destes mereceu a prisão perpétua, o
outro foi excomungado pelo soberano pontífice por desobediência e
apostasia. Fosse como fosse, ambos se arrependeram, embora tardiamente.
34. Chegou depois a Inglaterra, com frei Haymon, frei Guilherme de
Colville, o velho, homem simples e de extraordinária caridade. Sua irmã
foi cruelmente estrangulada mais tarde na catedral de Chichester por
defender a sua virgindade. De facto, um jovem, rendido à sua beleza,
tinha desejado durante muito tempo encontrar-se a sós com ela e seduzi-la. Ao não conseguir vergá-la aos seus desejos, deixou provado como é
perverso o amor carnal degolando-a na igreja.
Com frequência, entre duas pessoas que se amam carnalmente
estala um ódio igual em intensidade ao primeiro amor.
35. Seguidamente, vieram para Inglaterra muitos outros irmãos não
menos distintos, de origem inglesa, mas entrados na Ordem em Paris.
Conheci-os quando ainda era leigo. Eram eles, em primeiro lugar, frei
Ricardo Rufus, leitor insigne, o qual, graças ao seu empenhamento na
reforma da Ordem contra frei Elias, foi enviado à cúria papal com frei
Haymon, como representante da França. Contou ele que um noviço lhe
tinha confidenciado que padecia então de uma sede tão persistente que
não podia dormir, até que, numa noite, lhe apareceu um homem de belo
29
aspecto, com hábito de frade; mandando-lhe que se levantasse e o
seguisse, foi levado a um lugar muito ameno e fê-lo entrar num palácio
maravilhoso. Oferecendo-lhe uma bebida gostosíssima, disse-lhe: ―Meu
filho, sempre que tiveres sede, vem ter comigo e dar-te-ei de beber‖. O
noviço perguntou-lhe quem era, e ele respondeu que era frei Francisco.
Ao despertar, o irmão de quem estamos a falar nunca mais teve a sensação
de sede, antes se sentiu sempre satisfeito e confortado na alma e no corpo.
36. Nesse tempo, chegou também frei Rodolfo de Rochester, que
veio a ser muito amigo do rei de Inglaterra devido ao seu talento oratório.
Já pelo fim da vida demonstrou como é inimiga da alma a amizade deste
mundo. Ser-se honrado com os favores dos grandes e privar continuamente com os príncipes em seus palácios são coisas contrárias à perfeição
da Ordem dos irmãos menores.
37. Outro que também veio foi frei Henrique de Burford, que,
enquanto noviço e cantor entre os irmãos de Paris, compôs durante a
meditação os seguintes versos contra as tentações que tinha de combater:
Tu que és irmão menor, nunca rias,
pois só as lágrimas te convêm;
faz que ao teu nome corresponda a tua vida.
Menor és de nome; que o sejas também de verdade.
Suporta de bom grado a fadiga
e que a paciência te abata o orgulho da mente.
Na verdade, o coração corrige a pusilanimidade,
a paciência purifica o que pode haver de impuro.
Se alguém te corrige, tem-no como protector;
pois não é a ti que odeia, mas ao mal que fazes.
Quem julgas ser, metido em tão vil estamenha,
com essa comida e jazida mais próprias de porcos?
Na verdade, tudo perdes se, com a tua conduta,
contradizes o que dizes com o hábito.
Sombra apenas de menor é quem só lhe usa o nome33.
—————
33
Qui minor est, noli ridere, tibi quia soli convenit ut plores;
iungas cum nomine mores.
30
Mais tarde, devido à sua grande honestidade, teve este irmão a
honra de ser companheiro de quatro ministros gerais34 e de quatro ministros provinciais de Inglaterra35. Foi também o primeiro intérprete e pregador do Patriarca de Antioquia, quando veio como legado à Lombardia36, e
depois penitenciário do papa Gregório IX, custódio de Veneza e, por
algum tempo, vigário do custódio de Londres.
38. Chegou também nesse tempo frei Henrique de Reresby, que
mais tarde, enquanto vigário do custódio de Oxford, foi nomeado ministro
da Escócia, mas morreu antes de tomar posse do cargo. Depois da sua
morte, apareceu ao custódio dizendo que, embora os irmãos não sejam
condenados pelos gastos excessivos com as construções, são severamente
punidos, e acrescentou que se os irmãos recitarem bem o ofício divino
serão as ovelhas dos apóstolos.
39. Nesse tempo veio também para a Inglaterra frei Martinho de
Barton, que teve a dita de ver frequentemente São Francisco. Foi eleito
vigário do ministro da Inglaterra e comportou-se muito exemplarmente
noutros ofícios. Frei Martinho relatou que no Capítulo geral em que São
Francisco tinha mandado demolir a casa que fora construída expressamente para o Capítulo, estavam presentes cerca de cinco mil irmãos, e que
seu irmão carnal, sendo procurador do Capítulo, proibiu a demolição em
nome da cidade. Estando o bem-aventurado Francisco sob uma intempérie, à chuva mas sem se molhar, escreveu uma carta37, redigida pelo próprio punho, e enviou-a por seu intermédio ao ministro e aos irmãos de
—————
Nomine tu Minores, minor actibus esto, labores perfer,
et ingentem nuntiat pacientia menten.
Nempe cor obiurgat pernam, patientia purgat, si quidquam faecis est;
Si quis te corripit, is est, qui te custodit, non te, sed quod facis odit.
Quid tibi cum vili veste, cibo, quoque cubili porcorum?
Certe, tu singulis perdis aperte, si mentitus eris factis quod veste fateris.
Umbra Minoris erit, qui nomem re sine quaerit.
34
João Parente, Elias, Haymon de Faversham e Crescêncio de Jessi.
35
Agnelo de Pisa, Alberto de Pisa, Haymon e Guilherme de Nottingham.
36
Trata-se de Alberto de Rizzato, bispo de Bréscia e depois patriarca de Antioquia. Foi legado apostólico na Lombardia em 1235.
37
Não temos o texto desta carta de S. Francisco. Cf. Escritos de São Francisco e
Santa Clara, Ed. Franciscana, Braga, 2001, p. 112.
31
França, que se alegraram de a receber e louvaram a SSma Trindade,
dizendo: ―Bendigamos o Pai, o Filho e o Espírito Santo‖.
Nesse mesmo dia, o bem-aventurado padre, correndo para a igreja
mal ouviu o estrondo duma queda, salvou com a sua aflita oração um confrade que tinha caído a um poço profundo. Disse-nos também que um
irmão, que estava em oração em Bréscia no dia de Natal, foi encontrado
ileso sob os escombros da igreja durante o terramoto que São Francisco
havia anunciado e mandado anunciar pelos irmãos em todas as escolas de
Bolonha, mediante carta escrita em latim vulgar38. Este terramoto teve
lugar antes da guerra travada pelo imperador Frederico e prolongou-se
durante quarenta dias, tanto que foram sacudidas todas as montanhas da
Lombardia.
40. Veio também para Inglaterra frei Pedro de Espanha, que foi
depois guardião de Northampton. Envergava um corpete de malha de
ferro para vencer as tentações da carne.
Havia no seu convento um noviço que foi tentado a deixar a Ordem;
por fim, frei Pedro convenceu-o a acompanhá-lo até junto do ministro.
Enquanto caminhavam, começando ele a falar-lhe da virtude da santa
obediência, uma ave silvestre veio pousar-lhes à frente, precedendo-os na
caminhada. Então o noviço, chamado Estêvão, disse: ―Se é como tu dizes,
pai, manda a esta ave em nome da santa obediência que pare já, para que
possa apanhá-la‖. Dada a ordem, a ave parou de imediato e o noviço,
indo-se a ela, agarrou-a e fez com ela o que lhe aprouve. Imediatamente
toda a tentação desapareceu e o Senhor deu-lhe um coração novo, de
modo que voltou para Northampton e prometeu perseverar. Chegou
depois a ser um grande pregador, como eu próprio pude testemunhar.
COLÓQUIO VII
Divisão da província em custódias
41. Depois destes factos, multiplicados os conventos e aumentados
os irmãos tanto em mérito como em número, pareceu oportuno dividir a
—————
38
As Crónicas locais da Alta Idade Média registam este terramoto, com epicentro
em Bréscia, no ano 1222.
32
província em custódias. No primeiro Capítulo provincial de Londres foi,
pois, dividida em várias custódias e cada uma delas distinguiu-se por uma
virtude particular.
A custódia de Londres, confiada a frei Gilberto, a quem, no
momento da morte apareceu a bem-aventurada Virgem, brilhou sobretudo
pelo fervor, pela humildade e pela devoção no ofício divino. A custódia
de Oxford, que foi presidida por frei Guilherme de Ashby, tornou-se
famosa sobretudo pela actividade intelectual.
42. Na mesma custódia de Oxford39, governada durante doze anos
por frei Pedro, os irmãos não usaram almofadas enquanto frei Alberto de
Pisa não chegou a ministro. Por isso, quando frei Alberto disse no Capítulo que os irmãos usavam apoios incapazes de manter elevada a cabeça,
o custódio respondeu que os irmãos sabiam muito bem que tinham debilidades humanas, mas que não era preciso que lho dissessem. Nem sequer
usavam sandálias, a não ser os doentes e os débeis, e só com licença dos
superiores.
Ora aconteceu que frei Walter de Madeley, de boa memória, tendo
encontrado um par de sandálias, calçou-as para ir a matinas. Em matinas,
assim lhe pareceu, sentiu-se muito melhor que antes. Mas, quando foi para
a cama e adormeceu, sonhou que tinha de atravessar um desfiladeiro perigoso entre Oxford e Gloucester, chamado Baizalis, onde se acoitavam
habitualmente os salteadores; e quando chegou ao fundo do vale saltaram
estes de ambos os lados do caminho, gritando: ―Mata-o. Mata-o!‖.
Assustadíssimo, frei Walter defendeu-se dizendo que era frade menor.
Mas eles replicaram: ―Mentes, porque estás calçado‖. O irmão, cuidando
estar sem sandálias como de costume, disse: ―Então não vêem que caminho descalço?‖. E, ao avançar um pé para fazer prova, viu que efectivamente estava calçado. Acordado de repente, vencido pelo medo, atirou
com as sandálias para o meio do pátio.
43. Na custódia de Cambridge, presidida por frei Ricardo de Ingworth, floresceu o desapego ao dinheiro, tanto que, quando frei Alberto
visitou a Inglaterra, os irmãos da custódia não usavam sequer mantos,
segundo testemunhou o mesmo padre.
—————
39
O texto do número 42 não consta da edição da AF. Cf. p. 233.
33
44. Na custódia de York, governada por frei Martinho de Barton,
reinou o zelo pela pobreza. Não permitia ele que nos conventos o número
dos irmãos fosse superior aos víveres que se pudessem juntar apenas com
a recolha de esmolas e não com o recurso a endividamentos40.
45. Na custódia de Salisbury, presidida por frei Estêvão, floresceu
principalmente o amor à mútua caridade. O próprio custódio era tão afável
e jovial, tinha uma tão extraordinária caridade e compaixão, que recorria a
todos os meios para que ninguém andasse triste. Por isso, quando chegou
a hora da morte e recebeu a sagrada partícula, viu na hóstia uma porta por
onde devia passar, e assim, cantando em alta voz a ―Salve rainha, mãe de
misericórdia‖, morreu santamente, em Salisbury.
46. Na custódia de Worcester, presidida por frei Roberto de Leicester, reinou especialmente a primitiva simplicidade. De pequena estatura,
mas de grande coração, praticou sempre a mais límpida simplicidade e
confiou cargos da Ordem a vários homens dotados desta virtude. Finalmente, em Worcester, restituiu a sua alma santa e simples ao Senhor, com
poderoso clamor e lágrimas (Hb 5, 7).
COLÓQUIO VIII
Os Capítulos dos visitadores41
47. Decorridos alguns anos, foram enviados a Inglaterra visitadores
especiais que, por ocasião das suas visitas, celebraram Capítulos. O primeiro visitador foi frei Guilherme de Colville, o velho, que celebrou o seu
Capítulo sob o provincialado de frei Agnelo, em Londres, onde o senhor
Guilherme Joynier tinha construído uma capela a expensas suas, e cuja
—————
40
Cf. EP 10.
41
Na 1R 4 diz-se que os ministros devem ―visitar, instruir e confortar‖ os irmãos.
O mesmo é referido na 2R 10. A primeira vez que se falou dos visitadores nomeados
pelo Ministro geral foi no caso de Fr. Gregório de Narni que, na ausência de Francisco,
ficou, como vigário, com a incumbência de visitar as províncias. Cf. JORDÃO DE GIANO
11.
34
imauguração, celebrada com memorável pompa, coube ao referido visitador42.
48. Neste mesmo Capítulo da visita de frei Guilherme de Colville,
um irmão pregou contra o abuso de se contrair dívidas, e disse que aos
procuradores43 lhes tinha acontecido o mesmo que a certo sacerdote que
costumava celebrar todos os anos a festa de São Nicolau. Ficou reduzido a
tal pobreza à conta das dívidas, que já não a podia celebrar nem preparar o
costumado banquete. Quando chegou o dia da festa e os sinos tocaram a
matinas, estendido na cama, cogitava no que poderia fazer. O primeiro
sino que tocou parecia dizer: ―Ieo ke fray, ieo ke fray‖ (que farei eu, que
farei eu?); o segundo parecia responder: ―A crey, a crey‖ (um empréstimo,
um empréstimo!); e enquanto pensava no modo como pagar os gastos da
celebração, ambos os sinos voltaram a tocar, dizendo: ―Ke del un, ke del
un, ke dele el‖ (Um pouco de um, um pouco de outro!). Levantando-se,
celebrou a festa com dinheiro tomado de empréstimo. O Capítulo aprovou
este procedimento.
49.44 Depois dele veio para Inglaterra João de Malvern, que foi o
primeiro a trazer-nos a declaração sobre a Regra do papa Gregório IX45.
Este, por ocasião da visita que fez sob o provincialado de frei Agnelo,
reuniu os irmãos em grande número, bem como os noviços, em Londres,
Leicester e Bristol. Era tão rígida nessa ocasião a consciência dos irmãos
em matéria de construção de edifícios e de pinturas, que adoptou as mais
severas medidas a propósito das janelas da igreja do convento de Gloucester, e, por causa do púlpito que um irmão tinha pintado por sua iniciativa, tirou o capuz ao referido irmão e impôs o mesmo castigo ao guardião
que a tinha tolerado.
50. O terceiro visitador foi enviado pelo ministro geral frei Elias
durante o provincialado de frei Alberto. Era frei Vigério, alemão, muito
—————
42
Na edição da AF, este número tem muito mais texto, que não consta nas edições
mais modernas.
43
Procuratori tem duplo sentido: os leigos como administradores, e os frades
como esmoleres.
44
Os números 49 a 51 não constam no texto da AF.
45
Refere-se à bula Quo elongati de 28 de Setembro de 1230.
35
celebrado pelo conhecimento que tinha do direito, pela honestidade em
toda a sua conduta e ser muito amigo do senhor cardeal Otão, que era na
altura legado na Inglaterra46. Este tinha recebido do Ministro Geral instruções muito severas e precisas; em particular que fossem excomungados
imediatamente todos aqueles que, de qualquer modo, lhe ocultassem
alguma coisa ou encobrissem a verdade, e que só por ele podiam ser
absolvidos, uma vez sentenciados. Exigia, além disso, que referisse ao
ministro geral todas as acusações. O resultado foi surgir uma tal agitação
entre os frades que nenhuma outra se vira igual. Com efeito, quando os
irmãos foram convocados para Londres, Southampton, Gloucester e
Oxford, e juntos se encontraram em grande número, prolongando excessivamente a sua estadia, produziu-se imediatamente em toda a Província um
enorme e intolerável alvoroço, uma vez que, dentro do Capítulo, os
irmãos se acusavam uns aos outros, e crescia fora a suspeita dos seculares.
Por fim, terminada a visita a todos os conventos, celebrou-se o Capítulo
provincial em Oxford e, por decisão unânime, foi enviada uma queixa
contra frei Elias.
51. O visitador, como além da visita detinha o poder, e no seu mandato recebera instruções para fazer outras coisas que se tornariam um peso
considerável para os irmãos, dirigiu-se à província da Escócia e, convocado o Capítulo, quis fazer a visita. Mas os irmãos reclamaram e expuseram o seu pedido dizendo que já tinham tido a visita do ministro provincial da Irlanda, delegado pelo Capítulo geral, e que não queriam outra.
Vendo que havia por toda a parte uma agitação generalizada, também o
visitador se sentiu bastante confundido e voltou para a Alemanha levando
consigo a informação da visita. Frei Guilherme de Ashby, que ele tinha
mandado a visitar a Irlanda, apenas concluiu a missão para que fora mandado, juntou-se a ele em Colónia.
—————
46
Foi na segunda metade do ano 1237. Também Jordão de Giano (62) fala nos
visitadores enviados por Fr. Elias, os quais, como favorecessem os seus programas,
acabaram por exasperar muitos irmãos que, por isso, decidiram recorrer ao Ministro
geral contra os visitadores e, não sendo escutados, apelaram ao Papa (63). Também se
revoltaram contra os contributos que os visitadores exigiam para a construção da
grande Basílica de S. Francisco (61).
36
Por este motivo, quando os irmãos se reuniram em Roma, pediram
que as visitas fossem as que já tinham sido designadas pelo Capítulo
geral, em conformidade com a legislação sobre os visitadores. Frei
Arnulfo, penitenciário do Papa, disse que se o diabo tivesse encarnado,
não teria encontrado laço mais subtil e forte para enredar as almas que a
visita então terminada.
52. No Capítulo da visita de frei Vigério, foi reiteradamente acusado
frei Eustáquio de Mere, de santa memória, então excluído do Capítulo
durante um dia e meio. Outro irmão, que gozava de menor estima, foi
imediatamente justificado. Tinha ele exclamado: ―Pobre de mim! Aquele
homem de tão famosa santidade, de virtude tão provada e de prudência
tão sagaz foi julgado tão severamente, enquanto eu consigo escapar são e
salvo! Quem poderá acreditar ainda na justiça dos homens?‖.
COLÓQUIO IX
A divisão da Inglaterra em províncias
53. Decorrido um certo tempo após o estabelecimento dos irmãos
em Inglaterra, frei Elias, ministro geral, deu ordens para que a província
inglesa fosse dividida em duas: a da Escócia e a da Inglaterra, como antes.
Desejava ele, segundo se dizia, que, assim como a Ordem dos Irmãos
Pregadores tinha doze priores provinciais em todo o mundo, à imitação
dos doze apóstolos, teria ele sob o seu mando setenta e dois ministros
provinciais, à imitação dos setenta e dois discípulos.
Foi eleito ministro da Escócia frei Henrique de Resreby, mas morreu antes de receber a nomeação. Sucedeu-lhe frei João de Kethene, guardião de Londres, que incluiu na Província todos os conventos do outro
lado de York, e admitiu seguidamente na Ordem várias pessoas honestas e
de grande proveito. Particularmente zeloso do ofício divino, ofereceu-se a
si mesmo como exemplo de piedade. Recebeu com as maiores honras o
nosso venerável frei Alberto de Leicester e humildemente lhe pediu que
explicasse a Regra aos irmãos. Depois de ter governado de maneira
exemplar a província da Escócia durante vários anos, e uma vez que ficou
unida novamente à de Inglaterra, foi eleito ministro provincial da Irlanda
pelo ministro geral frei Alberto.
37
54. Adenda. No tempo de frei João, frei Elias mandou que os irmãos
lavassem eles mesmos as suas roupas: os irmãos da província inglesa
obedeceram, ao passo que os da Escócia ficaram à espera de uma ordem
particular para eles.
55. Julgo digno de menção o facto de também este irmão, frei João,
ter apoiado com firmeza o ministro de Inglaterra, frei Guilherme de Nottingham, de santa memória, juntamente com frei Gregório de Bosellis, no
Capítulo geral de Génova, e, contra quase todo o Capítulo geral, ganharam a causa pela qual devia ser abolido completamente o privilégio concedido pelo Papa a respeito da aceitação de dinheiro por meio dos procuradores, e se devia limitar a interpretação da Regra dada pelo papa Inocêncio IV naquelas coisas em que era mais ampla que a de Gregório IX47.
56. No mesmo Capítulo geral, Frei João de Kethene interveio sempre diante de todos os definidores em favor da reconciliação de frei Elias,
e obteve que fosse dirigida a este uma exortação da parte dos irmãos para
que não protelasse por mais tempo o seu regresso à obediência da Igreja e
da Ordem48.
Além disso, este frei João estava de tal maneira empenhado na promoção dos estudos, que mandou adquirir em Paris uma Bíblia completamente comentada e fê-la enviar para a Irlanda. Era tão solícito em confortar os irmãos, que muitos amargurados de outras províncias procuraram
refúgio junto dele e chegaram a fazer grandes progressos sob a sua direcção. Tendo ocupado o cargo de ministro durante cerca de vinte anos, foi
dispensado do ofício no Capítulo de Metz, como sucedeu também com
frei Guilherme, ministro de Inglaterra.
57. Adenda. Quando frei Elias foi deposto do cargo, ficou estabelecido que só houvesse na Ordem trinta e duas províncias49: dezasseis para
além dos Alpes e dezasseis para aquém, pela seguinte razão: uma vez que
—————
47
Trata-se da bula Ordinem vestrum, de 14 de Novembro de 1245, que dava
autorização aos irmãos para recorrerem aos ―nuncii‖ na questão do dinheiro, em caso
de ―necessidade‖ e ―utilidade‖ dos irmãos.
48
Segundo Little, há aqui alguma confusão com as datas e lugares dos Capítulos
gerais (de Adventu, 52, n. a).
49
Cf. Jordão de Giano 67
38
a eleição do ministro geral incumbia unicamente aos ministros provinciais
e custódios, se o número dos que tinham voz na eleição e nas deliberações
fosse demasiado elevado – já que a multidão é motivo de confusão – teria
sido quase impossível obter o consenso de tantas pessoas sobre qualquer
assunto.
COLÓQUIO X
Transformação e ampliação dos conventos
58. Dado que o número dos irmãos aumentava de dia para dia, as
casas e os terrenos que tinham sido suficientes para um pequeno número,
já o não eram para uma multidão. Além disso, graças à divina Providência, entravam com frequência na Ordem pessoas a quem se afigurava justo
e devido proporcionar condições de vida mais decentes. De facto, lugares
havia em que a simplicidade dos irmãos levara a aceitar inconsideradamente espaços tão apertados que nem sequer se podia pensar em os
ampliar, sendo forçoso remover completamente as habitações. Isso levou
a que, enquanto vivia ainda frei Agnelo de Pisa, de santa memória, se
recorresse necessariamente a numerosas ampliações de casas e terrenos.
Porém, era tão grande o seu zelo pela pobreza que a muito custo permitia
se ampliassem os terrenos e se construíssem novas casas, a não ser por
absoluta necessidade. Isto foi particularmente evidente quanto à enfermaria de Oxford, tão pobremente construída que a altura das paredes não
excedia muito a de um homem, e até no tempo de frei Alberto o convento
não tinha sequer quartos para hóspedes. Da mesma forma, mandou substituir as paredes de adobe do dormitório de Londres por paredes de pedra,
deixando o tecto como estava. Sob frei Alberto, foi alterada a localização
dos conventos de Northampton, Worcester e Hereford.
59. Executaram-se também várias ampliações de lugares ocupados
pelos irmãos sob a presidência de frei Haymon, pois afirmava preferir que
os irmãos tivessem mais terra e a cultivassem, de modo a terem as verduras necessárias, de preferência a mendigarem por outros lados. Isto o disse
ele por ocasião da ampliação do terreno de Gloucester que, por uma decisão de frei Agnelo, os irmãos tinham reduzido anteriormente, cedendo-o
em grande medida, e agora puderam recuperar com muita dificuldade da
39
parte do senhor Tomás de Berkeley, graças à sagaz dedicação de sua
mulher.
60. Sob a presidência de frei Guilherme foram trasladados os conventos de York, Bristol, Bridgewater, e suficientemente ampliadas as
casas de Grimsby e Oxford. Mas quando um irmão, movido por excessiva
confiança ‒ tanto que os irmãos lhe chamavam a sua alma e tinha recebido efectivamente uma carta muito afectuosa escrita pelo punho do
ministro quando se encontrava deprimido ‒ disse a frei Guilherme que o
acusaria diante do Ministro geral pelo facto de o convento de Londres não
estar rodeado de muros, respondeu-lhe com ardente zelo: ―E eu responderei ao Geral que não entrei na Ordem para levantar muros‖. Devido a esse
zelo, mandou devolver à sua primitiva simplicidade o tecto da igreja de
Londres e retirar as ornamentações do claustro. Apesar disso, confessou
certa vez a esse irmão, que era aliás seu amigo, que certamente deviam
edificar construções suficientemente amplas, de modo a que, no futuro, os
irmãos não tivessem de as fazer maiores.
61. Adenda50. Frei Roberto de Slapton contou-me que quando os
irmãos viviam numa casa arrendada, antes de terem terreno próprio, o
guardião teve a seguinte visão: viu São Francisco chegar ao convento, e os
irmãos, correndo de imediato ao seu encontro, levarem-no ao terraço. E
como aí se sentasse a olhar à sua volta, calado durante muito tempo ante o
pasmo dos irmãos, o guardião perguntou: ―Em que estás a pensar, Pai?‖
São Francisco respondeu: ―Repara bem nesta casa‖. Obedecendo, voltou a
olhar e eis que toda ela lhe pareceu feita de ramaria entrelaçada, de barro e
de palha. São Francisco disse aos irmãos: ―Assim deveriam ser as casas
dos irmãos menores‖51. Então o guardião, tomando água, lavou-lhe os pés
e beijou-lhe as chagas. Estes factos passaram-se, creio, com frei Roberto.
Eu mesmo conheci um famoso pregador que confessava publicamente
que, por causa da sua preocupação em construir os conventos duma
cidade, tinha perdido o gosto de pregar e o fervor que costumava ter na
oração.
—————
50
Na edição de AF, esta parte não é apresentada como Adenda.
51
Cf. EP 10-11; 2C 56
40
62. Também frei João, visitador dos irmãos pregadores da Inglaterra, disse a respeito de frei Guilherme de Abington que, antes de começar a construção do convento de Gloucester, tinha o inestimável dom da
pregação, e que nunca um tão persuasivo pregador se devia ocupar em
construções, já que, continuou frei João, devido às preocupações em angariar esmolas, de tal maneira se aviltou, que o rei de Inglaterra lhe chegou a
dizer: ―Frei Guilherme, sabias falar tão espiritualmente e agora a única
coisa que sabes dizer é ―dá-me, dá-me, dá-me‖. Noutra ocasião, como frei
Guilherme insistisse em lisonjear o rei para lhe arrancar alguma coisa, este
chamou-lhe serpente.
63. O senhor abade de Chertsey contava-me que quando um irmão
dominicano, muito seu amigo, lhe pediu lenha, ele deu-lhe apenas um
cavaco; e como esse irmão lhe dissesse que o desgostava ter-se incomodado tanto em ir tão longe por tão pouca coisa, o abade deu-lhe um outro
cavaco; e como insistisse em dizer que Deus era trino e que, portanto,
devia dar-lhe três cavacos, o abade respondeu: ―Em nome de Deus, que é
um só, um só terás‖.
64. Quando frei Henrique de Burford recebeu o hábito em Paris, a
comunidade era composta apenas por trinta irmãos. Nesse tempo, estavam
estes a construir o convento de Valvert: uma construção tão folgada, de tal
comprimento e altura que pareceu a muitos irmãos contrária ao estado de
pobreza da Ordem. Por essa razão, alguns, particularmente frei Agnelo,
suplicavam a São Francisco que a derrubasse. E eis que, quando os irmãos
se preparavam para entrar no convento, por divina inspiração ninguém
nela entrou, e foi nesse preciso momento que o tecto e as paredes desabaram até aos fundamentos, encontrando-se no seu lugar estes dois versos
escritos: ―A graça divina ensinou com esta derrocada que o homem feliz
deve ter habitação mais modesta‖; e deste modo os irmãos abandonaram o
lugar.
COLÓQUIO XI
Promoção dos leitores
65. Depois de ter ampliado o convento, onde florescia o principal
estudo de Inglaterra e onde a totalidade dos estudantes tinha o costume de
41
se reunir, frei Agnelo mandou construir uma escola suficientemente
decente na casa dos irmãos e pediu a mestre Roberto Grossatesta52, de
santa memória, que aí os leccionasse.
Sob a sua orientação, fizeram notáveis progressos em pouco tempo,
tanto nas matérias teológicas como nas morais, que são necessárias a um
pregador53. Quando, depois, por providência divina, foi transferido da
cátedra de mestre para a de bispo, ensinou os irmãos o mestre Pedro, que
mais tarde foi bispo na Escócia. A este sucedeu mestre Rogério de
Weseam, antigo decano da diocese de Lincoln, nomeado posteriormente
bispo de Coventry. Da mesma maneira, mestre Tomás de Gales, depois de
ter ensinado com grande proficiência os irmãos desse convento, foi eleito
bispo de São David, em Gales. Estes mestres, sempre dedicados aos
irmãos em tudo, difundiram os seus feitos e a sua forma de vida em vários
lugares. Por essa razão, a fama dos irmãos ingleses e os seus progressos
nos estudos chegaram a ser igualmente tão conhecidos noutras províncias
que o ministro geral, frei Elias, pediu a frei Filipe de Gales e a frei Adão
de York que ensinassem em Lião54.
66. Quando chegou a Inglaterra, frei Alberto de Pisa nomeou frei
Vicente de Coventry leitor em Londres, e seu irmão carnal, Henrique,
leitor em Cambridge. E assim, em pouco tempo, foram nomeados para
vários lugares outros leitores: frei Guilherme de Leicester em Hereford,
frei Gregório de Bosellis em Leicester, frei Gilberto de Cranford em
Bristol, frei João de Weston em Cambridge, frei Adão de Marsh em
Oxford. O dom da sabedoria difundiu-se na Província inglesa com tal
abundância que antes do termo do provincialado de Guilherme de Nottingham havia na Inglaterra trinta leitores, que disputavam solenemente e
três ou quatro que ensinavam sem direito a disputa. De facto, o ministro
provincial tinha escolhido estudantes de cada convento para a Universi—————
52
Roberto Grossatesta ensinou os irmãos desde 1229 até 1235, quando foi eleito
bispo de Lincoln. Manifestando a estima que tinha pelos irmãos, enquanto ensinava
renunciou a todos os privilégios a que tinha direito. A sua presença teve grande importância na implantação dos estudos em Inglaterra.
53
O códice A acrescenta aqui que Roberto Grossatesta foi bispo de Lincoln de
1235 a 1252.
54
Sobre o desenvolvimento dos estudos na Ordem, cf. Storia degli studi scientifici
nell’ Ordine francescano, Siena, 1911. Cf. nota 3.
42
dade, a fim de sucederem aos leitores que falecessem ou fossem removidos de seus cargos. Agora, porém, deixando de lado outras coisas, falaremos sucintamente da sucessão dos leitores na Universidade.
67. Alguns começaram a ensinar como mestres, outros leram como
bacharéis. Em Oxford ensinou primeiramente frei Adão de Marsh. O
segundo mestre foi frei Rodolfo de Collebruge, que entrou na Ordem
quando ocupava meritoriamente o cargo de mestre suplente em Paris, e foi
nomeado pelo Ministro geral com o mesmo grau em Oxford, onde ensinou sendo ainda noviço. O terceiro foi frei Eustáquio de Normanville (que
no mundo tinha sido rico, mestre em artes e direito e chanceler de
Oxford).
68. Frei Pedro, ministro provincial de Inglaterra, disse que a entrada
na Ordem de frei Eustáquio foi de maior edificação que a de muitos
outros por ser nobre e rico no mundo, ter ensinado artes e direito como
mestre regente, ter sido chanceler de Oxford e estar preparado para iniciar
o magistério em teologia.
69. O quarto foi frei Tomás de York. O quinto, Ricardo Rufus de
Cornovaglia, que recebeu o hábito franciscano em Paris no tempo em que
frei Elias perturbava a Ordem, e fez a sua profissão na Inglaterra com
fidelidade e devoção durante o período da apelação a Roma contra o referido irmão. Seguidamente, leu as Sentenças (de Pedro Lombardo) como
bacharel ―cursor‖ em Paris, onde foi reconhecido como um grande e brilhante filósofo55.
(Este frei Ricardo, quando chegou a Inglaterra, contou no Capítulo
de Oxford que, em Paris, certo irmão teve uma visão quando se encontrava em êxtase: viu frei Gil, irmão leigo de grande simplicidade mas
homem de contemplação, subir ao púlpito e comentar as sete petições da
oração dominical e os ouvintes eram apenas os irmãos leitores da Ordem.
Entrando, São Francisco ficou primeiramente em silêncio, mas depois
exclamou: ―Que vergonha para vós, que um homem sem cultura ultrapasse os vossos méritos diante de Deus!‖ E acrescentou: ―E como a ciên—————
55
O texto que se segue, até ao número 71, inclusive, não consta na edição da AF.
43
cia incha e a caridade edifica, muitos irmãos doutos que são muito respeitados… nada serão no reino eterno de Deus‖)56.
70. Um eminente leitor, que estudou comigo em Oxford, tivera
sempre este costume: enquanto o mestre ensinava e disputava, não o
escutava e ocupava-se noutras coisas, como em transcrever códices. Ora
aconteceu que, chegando a sua vez de leitor, os alunos estavam tão distraídos que afirmava sentir-se tentado todos os dias a fechar o livro e ir-se
embora. Arrependido, declarou: Por justo castigo divino ninguém me quer
prestar atenção, porque eu tão-pouco a prestei a qualquer mestre‖. Além
disso, como tinha muito frequentes relações com os amigos seculares, e
como, por causa dessa familiaridade, prestava menos atenção do que
devia aos irmãos, com a sua conduta demonstrou aos demais que só no
silêncio e na paz se podem aprender as palavras da sabedoria e que não se
pode penetrar na lei de Deus, como diz um santo, senão na tranquilidade
da mente.
Quando mais tarde voltou a si, enamorou-se do sossego e do silêncio e tais progressos fez, que o bispo de Lincoln declarou que ele mesmo
não teria ensinado tão bem. Por isso, ao crescer a fama do seu valor, foi
chamado à Lombardia pelo ministro geral57 e ganhou a simpatia da própria
cúria pontifícia. Finalmente, a Mãe de Deus, por quem tinha grande devoção, apareceu-lhe quando estava para morrer e, afastando dele os espíritos
malignos, alcançou-lhe a graça de entrar ditosamente no Purgatório, como
ele mesmo revelou a um dos seus amigos. Disse-lhe que estava no Purgatório e que padecia muito dos pés, porque com muita frequência tinha
ido até junto duma piedosa senhora para a confortar, quando mais se devia
ter preocupado com as lições e outras ocupações mais necessárias; e pediu
—————
56
Este episódio manifesta a grande estima e veneração de que gozava Fr. Gil de
Assis, um dos primeiros companheiros de Francisco. Morreu em 1262. Além da simplicidade, contemplação e espírito de trabalho que o caracterizavam, era também conhecido pelo seu humor. Alguns dos seus ditos, cheios de sabedoria, são conhecidos como
―Ditos de Fr. Gil‖. Cf. 1C 25; LM 4. 3; TC 1; 32, 2; AP 14,4; 15, 7.
57
Não é conhecido o nome deste companheiro de Tomás Eccleston. Talvez fosse
Fr. Estêvão que, segundo Salimbene, foi enviado pelo Ministro geral João de Parma
como professor para Génova e depois para Roma.
44
que mandasse celebrar missas por sua alma. O amigo mandou-as celebrar
durante dois anos seguidos e ofereceu muitos outros sufrágios58.
71. Os mestres que vieram depois ensinaram por sua vez em Cambridge: frei Vicente de Coventry, frei João de Weston, frei Guilherme de
Poitiers, frei Hermano Humphrey. Este último contou-me que, um dia,
estando doente em Cambridge, ouviu uma voz que lhe dizia: ―Fica quieto
como uma pedra!‖ Jazendo pois imóvel como uma pedra, apareceram-lhe
dois demónios que se sentaram à sua esquerda, e um anjo que se sentou à
direita. Os demónios começaram a molestá-lo com falsas acusações,
enquanto o anjo permanecia calmo, em silêncio. Por fim, os dois demónios disseram: ―Quando os irmãos se põem a falar ou a beber em vez de
irem a Completas, ocupamo-nos deles; e quando vão, vamos trabalhar
para outro lado‖. Então o anjo disse-lhe: ―Vê como é grande a malícia
destes demónios: querem matar-te de desgosto, para que depois não possas estar em condições de louvar o nome do teu Criador‖. Confortado com
estas palavras, começou a transpirar e curou-se59.
COLÓQUIO XII
Instituição dos confessores
72. Houve também alguns irmãos que, embora não tivessem o ofício de pregadores ou de leitores, foram, por bondade e favor dos seus
prelados, encarregados de ouvir em vários lugares as confissões tanto de
religiosos como de leigos, por obediência e vontade do ministro provincial. Entre estes, o mais conhecido foi frei Salomão, que chegou a ser confessor geral dos cidadãos e dos membros da corte em Londres. No tempo
em que era guardião de Londres, depois da sua enfermidade, como antes
dissemos, o senhor Rogério, de santa memória, bispo de Londres, pediu-lhe a obediência canónica. Mas frei Salomão, que durante muito tempo
tinha estado de boas relações com o bispo, resistiu amigavelmente e
obteve uma prorrogação. Tinha o bispo uma tal estima pela Ordem que se
—————
58
Na edição de LITTLE seguem-se várias páginas com vários nomes de leitores de
Oxford. São acrescentos de autores posteriores.
59
Omitimos uma longa lista de nomes de leitores de Cambridge, que constam da
edição de LITTLE.
45
punha de pé sempre que um irmão o saudava. Nesta ocasião, frei Agnelo
enviou sem demora à cúria romana um seu delegado e obteve para os
irmãos a bula intitulada “Nimis iniqua”60.
73. No ministério de confessor ficou também famoso frei Maurício
de Dereham, de boa memória. Certo dia, encontrara ele um rapaz que de
há muito sofria duma enfermidade incurável. Ouvido de confissão, impôs-lhe a penitência de rezar todos os dias três ave-marias e impetrar da bem-aventurada Virgem a saúde para poder vir a ser um frade menor. O rapaz
obedeceu e curou-se completamente. Por isso, quando chegou perto dos
quinze anos, frei Maurício obrigou-o a viver entre os irmãos como um
deles, até chegar à idade exigida; uma vez alcançada, vestiu logo o hábito,
sendo frei Agnelo o provincial.
74. Em Gloucester foi deveras famoso frei Vicente de Worcester,
verdadeiro pai para toda a região. Era de uma tal austeridade e rigor para
consigo mesmo, e de tanta doçura e afabilidade para com os súbditos, que
era amado de todos como um anjo. Devido à sua vida austera e à sua
extraordinária prudência, foi mais tarde promovido ao ofício de pregador
e chegou a ser confessor de Rogério, bispo de Coventry.
75. Em Lynn, frei Godofredo de Salisbury distinguiu-se pela fama
de santidade. Era um homem que, pela austeridade de vida, se mostrou –
se assim podemos exprimir-nos – qual outro Francisco e, pela sua virtude,
bondade e simplicidade, como um segundo António. Quando ouvia as
confissões, a piedade e compaixão eram nele tão grandes que, quando não
encontrava nos penitentes sinais de profunda contrição, comovia-os até ao
pranto com as suas próprias lágrimas e soluços, como sucedeu precisamente com o nobre Alexandre de Bassingbourn. Confessava ele os seus
pecados como quem conta uma história, e frei Godofredo, chorando
amargamente, com os seus méritos e sábios conselhos convidou-o a tomar
—————
60
Cf. Colóquio III. A bula, de 21 de Agosto de 1231, é de Gregório IX. Cf. Bullarium Franciscanum, T I, p. 54 e WADDINGO, Annales ad Annum 1231, n. 56, et ad a.
1324, n.7. Com esta bula, O Papa dirigia-se a todos os prelados e defendia os Frades
Menores contra a prepotência do clero secular, que muitas vezes dificultava a acção
pastoral dos irmãos.
46
a decisão de entrar na Ordem dos menores. Nela entrado, nela morreu
santamente. Apareceu em seguida a um amigo, frei João de Stamford, e,
ao perguntar-lhe este como estava, respondeu: ―Le meye alme le fet cum
creature que est obeysant a sun Creatur; et repose est en celi k ela fit per
ducour” (a minha alma comporta-se como criatura obediente a seu Criador e encontra o seu descanso naquele que a criou por amor). Também o
instruiu sobre a fé no sacramento da Eucaristia de modo tão sublime, que
nenhum mortal estaria em condições de o imitar.
76. Em Oxford distinguiu-se frei Eustáquio de Merc, de boa memória. Foi guardião e finalmente custódio de York. Comprazia-se em contar
o seguinte episódio. Querendo São Lanfranco entrar numa Ordem religiosa quando já era um eminentíssimo teólogo, vestiu um trajo de
palhaço61 e peregrinou por vários mosteiros, a fim de conhecer a vida
monástica. Chegava, batia à porta do coro com o bastão e, quando via os
monges olhar na direcção da porta e rir, dizia: ―Deus não está aqui‖. Mas
quando chegou a Bec-Hellouin e nenhum monge prestou atenção a quem
batia, entrou como converso. Quando, depois, o Papa celebrou um Capítulo contra Berengário, obteve licença para ir com o seu abade e, enquanto
todos permaneciam em silêncio, consternados com as palavras do herege,
pediu para ser ouvido e desfez os seus argumentos com tanta clareza, que
Berengário disse: ―Ou tu és Lanfranco ou o diabo‖. E desta maneira foi
reconhecido pelo Concílio‖62.
COLÓQUIO XIII
Sucessão dos ministros gerais
77. O primeiro ministro geral depois de São Francisco foi frei Elias,
que tinha sido escrivão em Bolonha. Sucedeu-lhe frei João Parente de Florença, ministro provincial de Espanha, homem sábio, piedoso e de grande
austeridade. Removido do ofício pelos partidários de frei Elias, este foi
—————
61
A edição de LITTLE usa a palavra ―fatui‖, louco ou palhaço. A AF usa a palavra
―fratrum‖. Cf. AF, T I, p.244. Trata-se de S. Lanfranco, de Pavia, monge e abade de
Bec, grande mestre e mais tarde arcebispo de Canterbury.
62
Trata-se do Concílio de Latrão de 1059. Foi convocado por Nicolau II e levou à
submissão de Berengário de Tours, que negava a transubstanciação.
47
novamente eleito ministro geral. As coisas passaram-se deste modo: no
Capítulo celebrado por ocasião da trasladação das relíquias de São Francisco63, precisamente aqueles que Elias tinha autorizado a comparecer no
Capítulo – de facto, tinha concedido licença a todos os que a ele desejassem assistir – queriam fazê-lo geral contra o parecer dos ministros provinciais. Foram, pois, buscá-lo à sua cela e levaram-no até à porta da sala do
Capítulo e, depois de a arrombarem, quiseram instalá-lo no lugar de
ministro geral. Quando frei João isto viu, desnudou-se diante de todo o
Capítulo. Cheios de vergonha, os irmãos deixaram então de se agitar. E
não quiseram ouvir nem a Santo António nem a nenhum ministro provincial. De qualquer modo, o povo julgou que a discórdia tinha surgido pelo
facto de o corpo de São Francisco ter sido trasladado três dias antes de os
irmãos se reunirem; mas cinco noviços, que tinham sido cavaleiros e estavam presentes no Capítulo, onde tudo presenciaram, afirmaram, chorando, que este alvoroço teria trazido um grande benefício à Ordem, porque a Ordem não devia conservar no seu seio qualquer elemento de discórdia. E assim sucedeu, porquanto estes perturbadores foram dispersos
por várias províncias para que fizessem penitência. Depois, retirando-se
para um ermitério, frei Elias deixou crescer a barba e o cabelo e com esta
simulação de santidade, reconciliou-se com a Ordem e com os irmãos.
78. Este Capítulo enviou mensageiros ao papa Gregório IX para
obter uma declaração sobre a Regra, a saber, Santo António, frei Gerardo
Rossignol, penitenciário do Papa, frei Haymon, que mais tarde chegou a
ser ministro geral64, frei Leão, nomeado depois arcebispo de Milão, frei
Gerardo de Módena e frei Pedro de Bréscia65. Estes também informaram o
—————
63
A trasladação do corpo de S. Francisco foi a 25 de Maio de 1230. Cf. Besse,
VIII; Legenda da Úmbria, 11; Julião de Espira, 75. As informações que aqui são dadas
estão muito influenciadas pelo clima de hostilidade contra Fr. Elias.
64
Cf. nota 31.
65
É por Eccleston que temos informação sobre o grupo de irmãos, entre os quais
se encontrava Santo António, que compôs o comentário da Regra apresentado ao Papa.
Gregório IX respondeu com a bula Quo elongati, de 28 de Setembro de 1230. Há
alguma confusão na cronologia destes capítulos gerais. Jordão de Giano faz alguma luz
sobre estes capítulos (n.61). Frei Leão de Valvassori, nomeado bispo de Milão desde
1241, era grande pregador e orientou o povo de Milão frente ao movimento do Aleluia
e na guerra contra Frederico II; Gerardo de Módena vem referenciado também em
48
Papa do grande escândalo provocado por frei Elias, pelo facto de o ministro geral ter revogado o seu decreto, em que dava licença a todos os
irmãos que o desejassem, de assistir ao Capítulo, e fizeram-lhe saber também que frei Elias, indignado por este motivo, tinha mandado trasladar o
corpo de São Francisco antes de os irmãos se reunirem. Deveras perturbado com estas coisas, o Papa tomou uma atitude muito dura contra Elias
até que teve notícia da vida insólita que estava a conduzir no ermitério.
No entanto, mais tarde, no Capítulo geral de Rieti66, depois de João
Parente ter sido desligado do cargo, o Papa permitiu que Elias fosse
nomeado Ministro geral, tendo sobretudo em consideração a amizade que
existira entre ele e o bem-aventurado Francisco.
79. Mais tarde, uma vez que frei Elias era motivo de perturbação
para toda a Ordem em razão do seu amor às comodidades e dos seus
modos violentos, frei Haymon de Paris apresentou uma queixa contra ele.
Embora à revelia de frei Elias, muitos ministros e irmãos de provada virtude das províncias cismontanas assentaram em celebrar um Capítulo
geral, sendo frei Arnolfo, penitenciário do papa Gregório IX, encarregado
dos assuntos da Ordem junto da cúria. Depois de longas discussões, foram
escolhidos de entre toda a Ordem irmãos com o encargo de preparar uma
reforma. Concluído o projecto, este foi lido na presença do Papa no
Capítulo geral em que estiveram presentes também sete cardeais67. O
Papa pronunciou um sermão sobre a estátua de ouro vista por Nabucodonosor, tomando como tema o versículo: “Ó rei, os pensamentos que te
vieram ao espírito enquanto estavas no leito…” (Dn 2,29). Acabado o
discurso, frei Elias começou a desculpar-se, aduzindo que os irmãos,
quando o elegeram para geral, estavam de acordo que comesse ouro e
tivesse cavalo, caso a sua má saúde o exigisse; mas agora acusavam-no,
escandalizados com a sua conduta. Frei Haymon quis responder-lhe, mas
o Papa não o consentiu, até que o cardeal Roberto de Somercotes lhe
—————
Salimbene, 31e 53. Aliás, Gerardo de Módena e Leão de Perego foram animadores do
movimento Aleleuia, referido por Salimbene (50-53)
66
Ao contrário de Jordão de Giano (n.61), esta informação parece certa. Jordão
diz que o Capítulo de 1232 foi em Roma.
67
Refere-se ao Capítulo de 15 de Maio de 1239. Também Jordão de Giano menciona esse Capítulo (nn. 63-68).
49
disse: ―Senhor Papa, este é um homem sábio; é bom que o escuteis, porque é conciso no falar‖.
80. Levantou-se, pois, frei Haymon quase intimidado e trémulo,
enquanto Elias se mantinha sentado completamente tranquilo e imperturbável, ao menos na aparência. Frei Haymon limitou-se a dizer que apreciava as palavras de frei Elias como as de um pai venerando, mas fazia-lhe notar que se os irmãos tinham dito que desejavam que comesse ouro,
não tinham dito que aprovavam que possuisse um tesouro. E se tinham
dito também que queriam que tivesse um cavalo, não tinham dito que
aprovavam um palafrém. De imediato, frei Elias, perdendo a paciência,
declarou em alta voz que frei Haymon mentia68. Os seus partidários
começaram a proferir injúrias e a vociferar, outro tanto fazendo os do lado
oposto. Perturbado, o Papa ordenou-lhes que se calassem e disse: ―Isto
não é um comportamento digno de religiosos‖. Depois, permanecendo
longo tempo sentado, em silêncio e reflexão, causou em todos um grande
espanto.
Durante esse tempo, o cardeal Reinaldo, protector da Ordem, sugeriu abertamente a frei Elias que entregasse a sua demissão nas mãos do
Papa. Mas este respondeu publicamente que rejeitava a proposta. Apelando antes às qualidades pessoais do irmão e realçando a amizade que
tinha havido entre ele e São Francisco, o Papa concluiu que tinha acreditado que os irmãos estavam contentes de o terem como ministro geral;
mas, uma vez que já não o estavam, conforme se provava neste Capítulo,
decretava que fosse destituído das suas funções e de imediato o removeu
do cargo de ministro geral. Sucedeu-se uma explosão de alegria tão
grande e indescritível que os que tinham merecido estar presentes declararam nunca terem testemunhado nada parecido.
81. Então o Papa retirou-se sozinho para um dos aposentos e chamou os ministros e custódios para a eleição, ouvindo o parecer de cada
um deles, antes de votarem. Logo que foi nomeado canonicamente
Alberto de Pisa, ministro de Inglaterra, frei Arnolfo, penitenciário do
—————
68
É na Crónica de Salimbene que mais se nota a aversão contra Fr. Elias. Nos
parágrafos 21-28 lemos o enorme rol de acusações feitas contra Fr. Elias pelos seus
adversários.
50
Papa, que tinha sido a alma de todo este caso, proclamou a eleição e
entoou o Te Deum laudamus. E como, conforme se dizia, frei Elias nunca
tivesse feito profissão da Regra confirmada com bula pelo papa Honório
III, pelo que se julgava autorizado a receber dinheiro, foi-lhe ordenado
imediatamente que professasse esta Regra, e a mesma disposição foi
estendida a todo o Capítulo e, consequentemente, a toda a Ordem. Assim
se fez. Celebrada a missa, o ministro neo-eleito disse aos irmãos que não
tinham tomado parte no Capítulo: ―Acabam de ouvir a primeira missa
celebrada por um ministro geral desta Ordem. Voltem agora para seus
conventos com a bênção de Jesus Cristo‖69.
82. Neste Capítulo foi eleito frei Haymon ministro de toda a Inglaterra, e frei João de Kethene, antes ministro da Escócia, nomeado ministro
da Irlanda.
83. Depois destes acontecimentos, frei Elias optou por morar em
Cortona e, sem licença e apesar da proibição do Ministro geral, foi visitar
o mosteiro das Senhoras Pobres, razão pela qual pareceu ter incorrido na
sentença de excomunhão decretada pelo Papa70. Frei Alberto ordenou-lhe
que recorresse a ele para receber a absolvição ou, pelo menos, que se
encontrassem em qualquer lugar a meio caminho. Mas Elias recusou-se
rotundamente, e o facto chegou aos ouvidos do Papa. Sabendo frei Elias
que o Papa queria que obedecesse ao Ministro geral, como qualquer outro
irmão, não suportando a humilhação, ele que nunca tinha aprendido a
obedecer, mudou-se para a região de Arezzo71. Foi então excomungado
publicamente pelo Papa, como bem merecia.
84. Quanto a frei Alberto, comportou-se duma maneira digna de
louvor no ofício de ministro geral, corrigindo os excessos do seu predecessor e transferindo-se para além dos Alpes, onde o primitivo fervor da
—————
69
Os anteriores ministros gerais não eram sacerdotes.
70
A notícia de Eccleston sobre a visita de Fr, Elias a S. Damião, seguida de
excomunhão, revela a grande amizade e confiança que Santa Clara tinha por Fr. Elias.
Depois de afastado do governo da Ordem, foi certamente em S. Damião que se sentiu
acolhido com compreensão.
71
Por essa altura, fins de 1239 a Janeiro de 1240, encontrava-se em Arezzo o
imperador Frederico II, que deu apoio a Fr. Elias.
51
Ordem se tinha debilitado. Morreu depois santamente em Roma, elogiando e distinguindo os ingleses entre todos os irmãos pelo seu zelo religioso.
85. Sucedeu-lhe frei Haymon, inglês, que se empenhou em continuar a obra iniciada pelo predecessor. Sob a sua administração, foi celebrado o primeiro e o último Capítulo dos definidores, pois nunca mais foi
convocado na Ordem por causa da insolência de alguns deles. Recorreram
estes a todos os meios para afastar os ministros provinciais que estavam
no Capítulo com o ministro geral; o que efectivamente aconteceu. Por
esse motivo, o estatuto que fora redigido na presença do Papa no Capítulo
em que foi deposto frei Elias (respeitante ao Capítulo dos súbditos e ao da
eleição canónica dos custódios e guardiães, precisamente por causa da
insolência dos súbditos), foi abolido no Capítulo seguinte. De facto,
alguns irmãos pediam que fossem completamente eliminados os custódios
da Ordem, dizendo que o seu ofício era supérfluo. Frei Haymon encontrava-se no outro lado dos Alpes quando lhe foi entregue, em pleno
Inverno, a citação da parte do protector da Ordem e dos demais cardeais.
Respondeu diante deles de uma maneira tão exaustiva às acusações feitas
contra ele, que reconquistou as suas graças.
86. Enquanto era ministro geral, foi publicado pelo Capítulo o
decreto segundo o qual se deviam designar irmãos em todas as províncias
da Ordem que anotassem as passagens da Regra sobre que existiam dúvidas e as transmitissem ao ministro geral. Foram eleitos na Inglaterra frei
Adão de Marsh, frei Pedro, custódio de Oxford, frei Henrique de Burford
e algum outro mais. Nessa mesma noite, São Francisco apareceu a frei
João de Bannister e mostrou-lhe um poço profundo. Frei João disse: ―Pai,
os padres querem explicar a Regra; seria muito melhor que fosses tu a
explicá-la‖. O Santo respondeu: ―Filho, vai ter com os irmãos leigos e eles
te exporão a Regra‖. Por isso, quando tiverem anotado alguns artigos, os
irmãos mandá-los-ão ao ministro geral, numa cédula sem selo, conjurando-o em nome do sangue precioso de nosso Senhor Jesus Cristo para
que permita que a Regra permaneça tal como tinha sido escrita por São
Francisco, por inspiração do Espírito Santo.
Este decreto agradou muito, tanto ao protector da Ordem como aos
irmãos das Províncias do Ultramar; e isto só confirma o testemunho que
52
frei Alberto tinha dado a propósito dos irmãos de Inglaterra. Frei Haymon
morreu em Anagni. O papa Inocêncio dignou-se ir visitá-lo durante a
enfermidade.
87. Adenda72. A respeito dos irmãos que, depois duma enfermidade,
não queriam voltar para o convento sem se terem restabelecido completamente, pelo receio de não poderem fazer mais uso do período de convalescença, frei Haymon disse que podiam comparar-se a um menino a
quem ensinassem as letras contra sua vontade. Quando a criança dissesse
A, embora soubesse pronunciar o B tão bem como o A, não queria continuar de maneira nenhuma, porque se dissesse B, o mestre mandá-lo-ia
dizer C, e assim sucessivamente.
Frei Haymon disse também que, quando secular, tinha tão fraca
saúde, que não podia viver sem muitas roupas e calçado, mas que depois
veio a ser mais forte sem tais cuidados. Todavia, quando frei Haymon
voltou do Capítulo geral em que fora eleito ministro provincial, temendo
pela sua débil constituição, pensou que, se mudasse para além dos Alpes,
nada teria a temer, mas aconteceu que foi precisamente onde mais se
devia preocupar com a saúde, que mais resistente se tornou, ao passo que
em França se sentia mais fraco.
88. Sucedeu-lhe frei Crescêncio, que fora médico famoso e ministro
provincial de Verona. O seu zelo era todo inflamado pela caridade,
modelado pela ciência e fortificado pela firmeza. Mas os irmãos da sua
província eram-lhe tão contrários que na mesma noite do Capítulo em que
foi eleito, após uma denúncia feita aos observantes da Ordem relativamente a uma rebelião de seus irmãos, um irmão teve esta visão: viu frei
Crescêncio com a cabeça rapada, a barba branca e comprida até à cintura,
e ouviu uma voz vinda do céu que dizia: ―Eis Mardoqueu!‖ Quando frei
Rodolfo de Reims soube desta visão, disse logo: ―Certamente este será
eleito geral hoje mesmo‖. Depois de ter dirigido a Ordem por algum
tempo com fidelidade e prudência, frei Crescêncio pediu para ser removido do cargo; e foi logo eleito bispo da sua cidade natal73.
—————
72
Na AF esta adenda vem depois do número 88, sem ser como adenda.
73
O Capítulo geral de 1244, em Génova, elegeu Fr. Crescêncio de Jessi. Nele se
ordenou que todos os irmãos escrevessem as recordações que tinham de S. Francisco. A
53
89. Adenda. Este frei Rodolfo de Reims, inglês, depois de muitos
trabalhos, tornou para Inglaterra e morreu santamente em Salisbury,
depois de se ter dedicado longo tempo à contemplação. Contava ele que,
enquanto São Francisco seguia ao longo dum caminho com vento gelado,
teve um desmaio. Cobrado o ânimo, subiu à montanha, desfez-se do
hábito e, voltando-se para o vento, a si próprio disse que se teria sentido
melhor se tivesse ficado com a túnica.
90. Sucedeu-lhe frei João de Parma74, um dos mais observantes da
Ordem, que tinha lido em Paris as Sentenças como bacharel ―cursor‖.
Veio para Inglaterra no tempo de frei Guilherme de Nottingham, celebrou
um Capítulo provincial em Oxford e reconduziu à unidade os irmãos que
queriam impor-se aos outros sustentando ideias peregrinas75. Exaltou
depois em todas as províncias a obediência e o fervor dos irmãos ingleses.
Em Paris reconciliou pessoalmente os irmãos com os mestres, reafirmando na Universidade a simplicidade da profissão da Ordem, depois de
ter revogado o apelo dos frades contra os mestres.
Decidiu que o Capítulo geral se devia celebrar daí em diante de
maneira alternada, aquém e além dos Alpes. Finalmente, ao não se sentir
já com forças para suportar o cargo de ministro geral, obteve do papa
Alexandre IV licença para renunciar.
Frei João de Parma dizia que o edifício da Ordem devia assentar em
dois pilares, a saber: a santidade de vida e a ciência, e que os irmãos
tinham levantado o muro da ciência até ao céu, ao ponto de se perguntarem se Deus existia; em contrapartida, o muro da virtude tinham-no
rebaixado tanto que já era um grande louvor ouvir dizer de um irmão: ―é
um homem em quem se pode confiar‖. Por isso, considerava que se estava
a construir de modo errado. Queria, além disso, que os irmãos cuidassem
muito mais em se apresentar diante dos prelados e dos príncipes creditados mais pela santidade de suas vidas e por méritos públicos, do que exi—————
partir desses dados, Tomás de Celano escreveu a Vita Secunda. Foi criticado pelos
espirituais, por ter combatido os movimentos separatistas.
74
Foi eleito no Capítulo de Lião, de Agosto de 1247. Salimbene na sua Crónica
tece-lhe rasgados elogios. Cf. Salimbene, nn. 41-44.
75
Tratava-se de disputas à volta da questão: Utrum Deus sit.
54
bindo privilégios papais, e, enfim, que fossem verdadeiramente os
menores de todos pela humildade e mansidão.
91. Adenda. Frei João de Parma, ministro geral durante o Capítulo
geral de Génova, mandou a frei Bonifácio, que tinha sido companheiro de
São Francisco, que dissesse a verdade sobre as chagas do Santo, porque
no mundo muitos duvidavam. Frei Bonifácio respondeu chorando:
―viram-nas os meus olhos pecadores; tocaram-nas as minhas mãos pecadoras‖.
92. Também frei Leão, companheiro de São Francisco, disse a frei
Pedro, ministro provincial de Inglaterra, que a aparição do Serafim a São
Francisco tinha ocorrido enquanto ele estava enlevado em contemplação,
e que a aparição tinha sido mais evidente do que se escrevera estando ele
vivo76; e que muitas coisas lhe tinham sido reveladas naquela aparição que
jamais deu a conhecer. São Francisco, todavia, tinha revelado a frei
Rufino, seu companheiro, que quando viu o anjo à distância, tinha ficado
muito assustado e que o anjo o ferira duramente, e que tinha dito que a sua
Ordem duraria até ao fim do mundo, que nenhum irmão de má vontade
nela perseveraria por muito tempo, que ninguém que odiasse a Ordem
viveria por muito tempo e que nenhum religioso que a amasse teria mau
fim. Depois, São Francisco tinha pedido a frei Rufino que lavasse e
ungisse com óleo a pedra em que o anjo pousara; e ele obedeceu. Estas
coisas, que escreveu frei Garino de Sedenefeld foram-lhe relatadas pessoalmente por frei Leão77.
COLÓQUIO XIV
Sucessão dos ministros provinciais
93. O primeiro ministro provincial de Inglaterra foi, pois, como se
disse mais acima78, frei Agnelo de Pisa. Era um homem dotado sobretudo
de prudência natural, maravilhoso em toda a virtude, na disciplina e
—————
76
Cf. 1C 94-95
77
Cf. EP 79. Na AF aparecem aqui duas Adendas que correspondem aos nnº 100 e
101 da edição de LITTLE.
78
Cf. Coloquio I e ss.
55
honestidade de vida. Ao voltar duma missão conduzida exemplarmente na
cúria romana a favor dos prelados ingleses na companhia de frei Pedro de
Tewkesbury, então guardião de Londres, e alguns irmãos pregadores,
adoeceu de disenteria em Oxford, não só por causa do frio, como então se
dizia, e pelos trabalhos por que passara para conseguir a paz entre o rei e o
governador da região de Gales, como ainda pelas viagens através de
Inglaterra. Curado da disenteria por meio de medicinas, foi depois atingido por uma colite intestinal e uma dor nas costas tão lancinante que dificilmente conseguia conter os gritos.
Antes de morrer, durante três dias implorou continuamente: ―Vem
dulcíssimo Jesus!‖ Quando recebeu os sacramentos da Igreja, pediram-lhe
que propusesse o seu sucessor; e ele aconselhou que se enviasse frei Hugo
de Wellys a frei Elias, e que os irmãos lhe pedissem para ministro frei
Alberto de Pisa, ou então frei Haymon ou frei Rodolfo de Reims. Pelo que
lhe dizia respeito, designou frei Pedro de Twkesbury como seu vigário, e,
depois de ter pedido a cada um dos irmãos as suas orações e encomendado a alma a Deus diante de toda a comunidade, expirou santamente.
Frei Walter de Maddeley, seu companheiro, julgou ver então um corpo
estendido no chão do coro, e este corpo parecia de alguém acabado de
descer da cruz, com as cinco feridas a sangrar, tal como Jesus Cristo.
Acreditando ser o corpo do próprio Senhor, aproximou-se mais e viu que,
afinal, era o de frei Agnelo.
Muitos anos decorridos, quando os irmãos precisaram de remover o
seu corpo, ou seja, quando destruíram a capela em cujo coro estava
sepultado, próximo do altar, encontraram não só a caixa de chumbo em
que jazia, como a própria cova, cheias de um óleo puríssimo e o seu corpo
incorrupto, ainda coberto com as próprias vestes, exalando um perfume
suavíssimo.
94. Adenda. É digno de menção o facto de o venerável mestre Serlo,
decano de Exeter, ter repreendido frei Agnelo por comer raramente fora
do convento. Aconteceu que um certo guardião, no mesmo dia em que
tinha pregado ao povo, se demorou a falar com um monge diante de um
secular, depois de terem comido com os irmãos; e esse secular disse em
voz baixa a um irmão, seu secretário, que tal modo de falar não era digno
de um prelado e de um pregador. Esse mesmo guardião disse-me depois
que teria preferido ser atravessado nas costas por uma lança, do que ter
56
dado semelhante exemplo. Os irmãos preocupavam-se com o bom nome
da Ordem e frei Agnelo mais que ninguém, ao ponto de nem sequer ter
aberto excepção com o secretário do rei, antes o retirou da corte e não lhe
permitiu que desse ou recebesse coisa alguma.
95. Adenda79. Frei Agnelo foi ministro de Inglaterra durante longo
tempo, embora só fosse diácono, e não quis ser promovido ao sacerdócio
antes de o Capítulo provincial ter pedido ao Capítulo geral que o promovesse. Era tão devoto no ofício divino que não só na missa, como no coro
e quando ia de caminho, parecia chorar continuamente, mas de um modo
tal que não era notado por qualquer ruído, gemido ou alteração da voz.
Além disso, recitava sempre o ofício de pé e repreendeu asperamente um
irmão que, depois duma sangria, rezava as horas sentado. Quando sentiu
que a morte estava próxima, disse a frei Pedro de Tewkesbury: ―Conheces
toda a minha vida‖. E como frei Pedro lhe respondesse que nunca tinha
feito uma confissão geral, moveu a cabeça e, começando a chorar abundantemente fez em seguida uma confissão de toda a sua vida com admirável contrição. Depois, chamados os irmãos, perdoou-lhes todas as faltas, e
quando, por sua manifesta vontade, começaram as orações pelos moribundos, fechou os olhos com a própria mão e cruzou os braços sobre o
peito.
96. Quando frei Elias soube da morte de frei Agnelo, destruiu imediatamente o selo da Província, em que estava representado um cordeiro
com a cruz. E como tivesse recebido com indignação o pedido dos irmãos
de Inglaterra para que nomeasse como ministro qualquer dos que eles
tinham designado, tanto bastou para que demorasse quase um ano a
nomear o novo ministro de Inglaterra. Finalmente, depois de ter chamado
de novo um irmão que tinha enviado anteriormente, ordenou a frei
Alberto de Pisa, que tinha sido ministro da Hungria, Alemanha, Bolonha,
Marca de Ancona, Treviso e Toscana, que partisse para Inglaterra e assumisse o cargo de ministro dos irmãos.
Tendo chegado a Inglaterra no dia de Santa Luzia, no dia da Purificação80 celebrou o Capítulo provincial em Oxford e pregou sobre este
—————
79
Esta Adenda falta na AF.
80
13 de Dezembro e 8 de Fevereiro.
57
tema: “Considerai a rocha de que fostes talhados, a pedreira donde fostes tirados” (Is 51, 1). Relativamente aos irmãos, agiu em todas as circunstâncias com inflexibilidade, segundo o seu juízo, e teve ocasião de
experimentar de muitos modos a humildade, a doçura, a simplicidade, o
zelo, a caridade e a paciência dos irmãos de Inglaterra. Embora tivesse
dito publicamente aos irmãos que o encontrariam sempre, até ao fim, tal
como se lhes tinha mostrado no Capítulo, no entanto, misturando desde
então, com sabedoria sempre crescente, o sal evangélico em cada sacrifício, mudou completamente. De facto, mais tarde, cresceu tanto a sua
estima pelos irmãos de Inglaterra que se entregou a eles com todo o afecto
do coração e a si os ligou com um vínculo inefável. Na verdade, encontrou-os conformes à sua vontade em cada propósito de perfeição e dispostos a sofrer a prisão e o exílio com ele, pela reforma da Ordem.
97. Frei Alberto estabeleceu que nas casas de hóspedes se devia
observar sempre o silêncio à mesa, a menos que estivessem presentes
irmãos pregadores ou religiosos de outras províncias. Quis também que os
irmãos usassem as suas velhas túnicas sobre as novas, por humildade, e
para que as novas durassem mais tempo. Mandou derrubar o claustro de
Southampton, que era de pedra, embora com muita dificuldade, devido à
resistência dos habitantes da cidade; e restituiu de bom grado o documento ou acordo estipulado entre os irmãos e os monges de Reading,
segundo o qual estes não podiam expulsá-los por mero capricho, e ele
mesmo se ofereceu para transferir os irmãos do convento, se assim quisessem. (Quanto à capela do convento, já que não a podiam despojar mais,
porque tinha sido construída pelo rei, desejou que fosse demolida pelo
céu). Só muito a custo logrou instalar os irmãos em Chester e Winchester.
98. Frei Alberto recebeu do papa Gregório IX uma bula, em que se
estabelecia que os irmãos pregadores não podiam impedir ninguém de
entrar na Ordem religiosa que escolhesse espontaneamente, e não podiam
admitir os seus noviços à profissão sem terem completado um ano de
prova81. Na realidade, estes tinham o costume de admitir à profissão, se
—————
81
Trata-se da bula Non solum de 11 de Julho de 1236. Os Frades menores receberam uma bula semelhante em 13 de Julho. Mas a obrigação do ano de noviciado já
58
assim queriam, no mesmo dia do seu ingresso na Ordem, como fez frei
Roberto Bacon, de boa memória. Mas os irmãos pregadores, muito perturbados, recorreram ao papa Inocêncio IV pedindo-lhe que nenhum
irmão menor pudesse receber na Ordem quem já se tivesse comprometido
com eles, e que quem o fizesse fosse excomungado no próprio acto; e
prometiam que fariam o mesmo em relação a nós. Mas estes manietaram
de tal modo as pessoas com tais maneiras e de tal modo divulgaram o seu
privilégio, que a grande custo concediam a alguém mudança para outra
Ordem (irmãos menores). Mas esta contrariedade não durou muito. De
facto, Frei Guilherme de Nottingham, de boa memória, e frei Pedro de
Tewkesbury mostraram ao Papa o que o seu predecessor tinha decidido; e
ele, declarando que tinha sido enganado, revogou o decreto, embora só
depois de um atraso nocivo.
99. Frei Alberto disse uma vez que devíamos amar com todas as
veras os irmãos pregadores porque em muitas coisas tinham sido de
grande proveito para a Ordem e nos tinham ensinado ocasionalmente
como precaver-nos de perigos futuros.
100. Frei Alberto dizia que três coisas, sobretudo, tinham dado
esplendor à Ordem: ―a nudez dos pés, a vileza do trajo e o desprezo da
pecúnia‖.
101. Frei Walter de Reygate dizia que tinha sido revelado a um
irmão da província de São Francisco que os demónios celebravam todos
os anos um concílio contra a Ordem e que tinham encontrado três caminhos para os prejudicar: a familiaridade com mulheres, a admissão de pessoas inúteis e o uso do dinheiro.
102. O ministro provincial, frei Alberto, costumava dizer a seu
companheiro, frei Ognibene, quando visitavam algum amigo espiritual:
―Come, come, que já podemos fazê-lo sem perigo‖. Mas cuidava-se muito
de frequentar os seculares.
—————
havia sido imposta por Honório II com a bula Cum secundum, de 22 de Setembro de
1220.
59
103. Nesses dias aconteceu que dois irmãos muito conhecidos chegaram a casa de um proprietário de terras, que os recebeu com honras e os
serviu com abundantes iguarias. Enquanto estavam à mesa, juntou-se-lhes
o reitor da igreja que, depois de os censurar por não o terem ido visitar, os
aconselhou instantemente a comerem os pratos de carne que tinham na
frente. Mas como não conseguisse demovê-los de tanta sobriedade, irado,
disse: ―Comei, comei, porque o frio mata os vossos corpos como a gula as
nossas almas‖. E levantando-se, desandou.
104. Na celebração do ofício divino, frei Alberto mostrou-se sempre
devotíssimo e evitava as distracções da mente fechando os olhos. Na
companhia dos irmãos, ganhou-lhes o afecto graças à sua jovialidade e
cortesia.
Um dia, em que todos os irmãos do convento se tinham submetido à
sangria82, frei Alberto propôs aos companheiros a seguinte parábola,
sobretudo para utilidade de um noviço que estava presente e que presumia
de muito sábio e se intrometia nas coisas que não lhe diziam respeito.
―Um camponês, disse, ao ouvir que no Paraíso há um grande sossego e
muitas delícias, partiu em busca delas, esperançado em poder entrar.
Quando, finalmente, chegou à porta, encontrou São Pedro e pediu-lhe
para entrar. São Pedro perguntou-lhe se era capaz de observar as leis em
vigor no Paraíso, e ele respondeu que sim, desde que lhe dissesse quais
eram. O Santo respondeu que era uma só: guardar silêncio. Aceitou-a e,
prometendo observá-la com muito gosto, foi introduzido.
Passeando pelo Paraíso viu um tal a lavrar com dois bois, um muito
magro, outro muito gordo. A este permitia que avançasse à vontade, ao
passo que aguilhoava continuamente o outro. O camponês interveio e pôs-se a censurá-lo. De imediato apareceu São Pedro e quis expulsá-lo, mas
perdoou-lhe mesmo assim, advertindo que andasse mais atento daí em
diante. Seguindo um pouco mais além, viu outro homem que carregava
uma trave comprida e queria entrar em casa com ela de través; correndo
para ele, o camponês ensinou-o a virar uma das extremidades da trave, de
modo a enfiá-la pela porta. De imediato interveio São Pedro e quis
expulsá-lo pelas mais santas razões do mundo, mas perdoou-lhe também
desta vez. Continuando o caminho pela terceira vez, viu um guarda—————
82
Naquele tempo era comum esta operação em determinados períodos do ano.
60
-florestal a abater árvores. Deixando para trás as mais velhas e retorcidas,
cortava as que estavam aprumadas, verdes e perfeitas. De novo se aproximou o camponês para o censurar. Interveio São Pedro e desta vez
expulsou-o‖.
Frei Alberto queria, em suma, que os súbditos fossem reverentes
para com os superiores, pois se impõe vigiar, dizia, para que ―a familiaridade não degenere em sobranceria‖.
105. Frei Adão de Marsh contava de um rapaz extremamente débil,
que, afectado por uma enfermidade e insistindo o pai para que comesse e o
fizesse por seu amor, já que era seu filho predilecto, respondeu que não era
seu filho. Do mesmo modo respondeu à mãe que lhe fizera idêntico pedido.
E quando o pai lhe perguntou outra vez de quem pensava ser filho se não
dele, respondeu com desdém e insolência: ―Sou filho de mim mesmo‖.
Assim são também aqueles que são escravos das suas paixões e caprichos.
106. Adenda. Na conversação anterior, frei Alberto narrou esta parábola contra a presunção dos jovens. Havia um touro que andava livremente
pelos prados e pelos campos, mas, certo dia, pela hora de Prima ou de Tércia, aproximou-se dum arado e viu uns bois velhos que avançavam lentamente e que tinham lavrado bem pouco. Então, como os tivesse censurado e
lhes dissesse que ele podia fazer o mesmo trabalho num segundo apenas, os
bois pediram-lhe que os ajudasse. Posto sob a canga, pôs-se a lavrar com
uma tal fúria que, chegado ao meio do carreiro, exausto, começou a arfar e,
olhando em redor, disse: ―Como? Ainda não acabei?‖ Os bois velhos responderam que não, escarnecendo dele. O touro replicou que não podia mais.
Então os bois disseram que andavam mais lentamente porque tinham que
trabalhar de contínuo e não um instante apenas.
107. Frei Alberto estava presente num Capítulo em Oxford onde pregou um jovem irmão. Dado que condenava duramente o luxo dos conventos
e a abundância das iguarias, frei Alberto acusou-o de ser um vaidoso.
108. Obrigou frei Eustáquio de Merc a comer peixe contra o costume, dizendo que a Ordem tinha perdido muito boas pessoas por falta de
discrição. E recordava que quando residia num hospício com São Francisco, o Santo tinha-o obrigado a duplicar todos os dias a quantidade de
61
alimento que costumava tomar83. Frei Alberto era também tão generoso
que, uma vez, repreendeu severamente um guardião e o ecónomo por não
terem provido os irmãos com mais abundância depois dos trabalhos duma
grande solenidade. Era tão condoído e compreensivo que deu a um irmão
de débil saúde as obedienciais para ir até ao seu país natal, e de viajar de
um convento para outro em toda custódia, se assim o desejasse, pois lhe
pagaria os gastos sempre que fosse gravoso para os irmãos sustentá-lo.
Depois de ter regido a província de Inglaterra com solicitude
durante dois anos e meio, partiu juntamente com vários delegados para o
Capítulo convocado contra frei Elias. E depois de ter sido ministro geral,
morreu santamente em Roma, entre os seus irmãos ingleses.
109. Sucedeu-lhe frei Haymon. Homem de grande benevolência e
mansidão, preocupou-se em fazer reinar a paz e a caridade entre os
irmãos. Vestiu com o hábito da Ordem o bispo de Hereford, Rodolfo de
Maidstone, após uma visão que teve a propósito de frei Haymon, quando
este era arcebispo de Chester. Foi esta a visão: estando sentado enquanto
decorria um sínodo e nomeava o clero, aproximou-se dele um jovem que
lhe atirou com água à cara. De repente, transformou-se numa criança
digna de dó, aproximou-se do leito em que estava deitado frei Haymon e
pediu-lhe que o deixasse deitar-se a seu lado. E assim o fez.
Frei Haymon administrou a província de Inglaterra durante um ano,
no fim do qual foi eleito ministro geral.
110. Quando era ministro provincial de Inglaterra, frei Haymon
disse que quando os frades conseguiram fazer consagrar altares e cemitérios na área de seus conventos, uma espécie de agitação percorrera toda a
Ordem, porque estes lugares já não podiam ser destinados a usos profanos. Era tão zeloso da pobreza que durante um Capítulo provincial se
sentou no chão do refeitório, vestindo um hábito pobríssimo e roto.
111. Sucedeu-lhe o seu vigário, frei Guilherme de Nottingham,
eleito por unanimidade e confirmado por aqueles a quem se tinha pedido a
eleição. Apesar de não ter experiência de cargos inferiores, como o de
guardião e custódio, frei Guilherme governou com tanta decisão e empenho, que o seu zelo e honestidade tiveram eco em todas as províncias.
—————
83
Cf. LP 50; EP 27; 2C 22.
62
112. Frei Guilherme costumava contar que Santo Estêvão, fundador
da Ordem de Grandmont, tinha depositado uma caixa num lugar secreto e
seguro, proibindo a todos que dela se aproximassem enquanto vivesse.
Estavam os irmãos deveras intrigados e curiosos por saber o que continha
a caixa, mas o Santo quis que todos tivessem por ela o maior respeito,
como ele, aliás. Depois da sua morte, não podendo esperar mais, os
irmãos abriram-na e só encontraram um cartão em que estava escrito:
―Frei Estêvão, fundador da Ordem de Grandmont, saúda seus irmãos e
suplica-lhes que cuidem dos seculares; porque assim como vós, enquanto
não soubestes o que estava na caixa, tivestes por ela muito respeito, assim
procederão convosco os seculares‖.
COLÓQUIO XV
Progressos espirituais de alguns irmãos
113. Finalmente, considero justo recordar que, enquanto ainda
viviam muitos irmãos que tinham implantado a vinha dos menores na
Inglaterra, os seus ramos se estenderam tanto na província e na Ordem
que os seus irmãos foram revestidos de várias dignidades e ofícios, tanto
na Ordem como fora dela, principalmente os mais humildes. Assim, frei
Nicolau, que era leigo e tinha estudado letras na Inglaterra, chegou a ser
mais tarde confessor do papa Inocêncio IV, e depois bispo de Assis.
Houve também um jovem que fora admitido muito novo na Ordem
como irmão leigo; mais tarde apareceu-lhe a gloriosa Virgem pondo-lhe
um dedo na boca para lhe fazer saber que chegaria a ser não só pregador e
eminente leitor, mas promovido aos mais altos cargos da Ordem.
É, porém, difícil narrar os progressos feitos singularmente por aqueles
que, movidos de um grande fervor, entraram na Ordem imediatamente após
a chegada dos irmãos. Embora alguns tenham sido antes bons bacharéis e
homens ilustres, traziam o ―capuz da provação‖ (ou seja, o caparão). Mais
tarde, vários deles distinguiram-se pela seriedade e louvor com que exerceram o ofício da pregação, do ensino ou do governo da Ordem.
114. Frei Eustáquio de Merc, que foi durante muito tempo guardião
de Oxford e, mais tarde, custódio de York, observou continuamente até à
morte a abstinência, as vigílias e a mortificação da carne. Mas teve sempre
com os demais uma atitude de doçura afectuosa e angélica. No momento
63
da morte, repetia continuamente, do fundo do coração, estas palavras à
Mãe de misericórdia: ―Por teu Filho, pelo Papa e pelo Espírito Santo, te
rogo, ó Virgem, que me assistas na morte e na última viagem‖.
Frei Roberto de Thornham, primeiramente guardião de Lynn e
depois custódio de Cambridge durante muitos anos, estimulado por um
fervor maravilhoso, pediu obedienciais para partir com os cruzados para a
Terra Santa. Depois de ter adquirido uma fama incomparável, tanto entre
os seculares como entre os irmãos, no cumprimento de ofícios gravosos,
deu sinais de salvação tão evidentes na sua morte, que ninguém deveria
pô-la em causa.
Frei Estêvão de Belassise, primeiro guardião de Lynn, depois custódio de Hereford, foi um homem de tanta mansidão e virtude que mostrava
até com lágrimas o zelo do seu coração quando via o relaxamento dentro
da Ordem. Devido ao seu grande desejo de sossego, obteve dispensa de
todos os cargos, e o resultado foi uma vida santa, e finalmente, a vida
eterna (Rm 6, 22).
Frei Guilherme Cook, homem de força excepcional, gastou quase
todo o seu vigor nos trabalhos iniciais da custódia de Londres e noutros
labores; passou depois da vida activa à contemplativa e, rico de boas
obras, morreu em paz.
115. Frei Agostinho, irmão carnal de frei Guilherme de Nottingham,
de boa memória, foi no princípio fámulo do papa Inocêncio IV, depois
partiu para a Síria juntamente com o patriarca de Antioquia, sobrinho do
Papa, e chegou mais tarde a ser bispo de Laodiceia. Este contou diante de
todos, no convento de Londres, que tinha estado em Assis para a festa de
São Francisco, em que também participou o papa Gregório, e quando o
Papa se adiantou para pregar, os irmãos cantaram a antífona: “Hunc
sanctus praeelegerat in patrem”, e o Papa sorriu84.
No dito sermão, o Papa relatara como tinha acontecido a conversão
de dois hereges em Veneza, a ele enviados com cartas dos cardeais que
estavam presentes como legados. Nestas cartas se dizia que ambos os
hereges tinham visto numa certa noite, à mesma hora, a nosso Senhor
Jesus Cristo na atitude de juiz, sentado com os apóstolos e os represen—————
84
É a antífona III das primeiras vésperas do ofício de S. Francisco, composto por
Julião de Espira.
64
tantes de todas as Ordens do mundo, mas não tinham visto nenhum irmão
menor, nem sequer a São Francisco, que um dos delegados tinha proclamado, numa prédica, maior que São João Evangelista, por causa das chagas. Tinham visto seguidamente o Senhor inclinar-se sobre o peito de
João e este, por sua vez, sobre o de Jesus. Mas enquanto eles insistiam em
dizer, confirmando aliás a sua opinião, que o legado tinha blasfemado, e
por isso estavam gravemente escandalizados e tinham criticado o seu sermão, – eis que o doce Jesus abriu com as suas mesmas mãos a ferida do
lado, e nela apareceu perfeitamente visível São Francisco dentro do peito
de Nosso Senhor; depois, o doce Jesus fechou a sua ferida, encerrando
nela a São Francisco. Apenas os hereges despertaram e se encontraram no
dia seguinte, contaram um ao outro a visão, confessaram-se depois publicamente diante dos cardeais e, como se disse, foram enviados ao Papa e
por ele plenamente reconciliados.
116. Oh, quão profundamente agradecidos, quão docemente cumulados de dons divinos, quão imensamente honrados foram aqueles que
puderam encontrar conselho em suas dúvidas, consolação nas tribulações,
exemplo e estímulo nas coisas mais graves de tais pessoas, que tinham as
primícias do Espírito Santo (Rm 8,23). Oh, graça inefável! Oh, privilégio
incomparável! Oh, amor suavíssimo de uma doçura inesgotável, poder
gozar da confiança de tais homens, ser confortados durante a peregrinação
terrena com o especial afecto de tão eminentes pessoas, ser protegidos
pelo favor de homens tão assinalados85!
117. Depois desse sermão, os novos cavaleiros dirigiram-se a visitar
o Papa e ele depôs em cada um deles uma grinalda de flores. É neste
acontecimento que tem origem o costume, segundo o qual todos aqueles
que deviam ser armados cavaleiros recebiam as armas. Nesta ocasião o
Papa celebrou a missa fora da igreja, sobre uma mesa ao ar livre, por não
o poder fazer no interior por causa da enorme multidão.
118. Frei Pedro de Tewkesbury, ministro da Alemanha, com a ajuda
da graça de Deus, defendeu a causa da Ordem contra o rei, o legado e
vários falsos irmãos, e fê-lo com tanta mestria que a fama da sua interven—————
85
O texto do número 116 não consta na AF.
65
ção se espalhou por muitas províncias e o seu amor à verdade se evidenciou invencível.
Frei Pedro mereceu o afecto especial do bispo de Lincoln86 e dele
recebeu com frequência, em segredo, sábios conselhos. Com efeito, disse-lhe um dia que se os irmãos não cultivassem os estudos e não se ocupassem em estudar com ardor a lei divina, certamente também nos aconteceria o mesmo que a outras Ordens religiosas, que vemos caminhar desgraçadamente nas trevas da ignorância.
Pediu também o bispo de Lincoln a frei João de Dya, que lhe
enviasse do seu país seis ou sete clérigos idóneos, a quem pudesse encarregar de alguns ofícios na sua diocese, embora não conhecessem a língua
inglesa, pois pregariam com o exemplo. Isto prova que o bispo não rejeitou nem os clérigos que o Papa tinha nomeado, nem os protegidos dos
cardeais, por não saberem a língua inglesa, mas porque só estavam interessados nas coisas temporais. Por isso, quando um advogado disse na
cúria: ―Os cânones ordenam isto‖, ele respondeu: ―Não são os cânones,
são os cães que ordenam isto!‖. Mas depois levantou-se e, de joelhos,
declarou a sua culpa em inglês, diante dos jovens que tinham sido apresentados pelo cardeal e bateu no peito chorando e lastimando-se. Perturbados, os jovens retiraram-se.
Noutra ocasião, durante a sua visita à cúria, um camareiro do senhor
Papa pediu ao bispo mil libras e queria que ele as pedisse emprestadas aos
mercadores; o bispo respondeu que não lhes queria dar uma ocasião de
pecar gravemente, mas que, se voltasse são e salvo a Inglaterra, depositaria o dinheiro no templo de Londres; de outro modo, jamais o camareiro
veria um centavo87.
De outra vez, disse a um irmão pregador: ―Três coisas são necessárias para a saúde do corpo: o alimento, o sono e o bom humor‖. Certa ocasião ordenou a um irmão de temperamento melancólico que bebesse um
copo cheio do melhor vinho como penitência, e quando o bebeu, embora à
má cara, disse-lhe: ―Caríssimo irmão, se tivesses feito com frequência esta
penitência, terias também melhor consciência‖.
—————
86
Trata-se de Roberto Grossatesta.
87
A casa dos cavaleiros do templo, servia também de banco.
66
119. Além disso, frei Pedro contou que quando alguns clérigos do
arcebispo Santo Edmundo lhe pediram um favor para um dos parentes
que era cocheiro, este santo bispo respondeu: ―Se o seu carro está avariado, mandá-lo-ei reparar em atenção aos seus rogos; se não puder ser
reparado comprar-lhe-ei outro, mas tenho como certo que nunca modificarei o seu estado‖. O mesmo santo bispo disse também, quando lhe ofereceram jóias preciosas e insistiam para que as aceitasse: ―Que me enforquem, se as aceitar! Entre as palavras latinas ―prendere” e “pendere” não
há senão a diferença de uma letra a mais‖.
Ainda o mesmo padre, frei Pedro, contou que o bispo de Lincoln
não tinha cavalos quando tomou posse da diocese. O seu mordomo foi vê-lo enquanto estava sentado no meio dos livros e anunciou-lhe que dois
monges brancos acabavam de chegar para lhe oferecer dois belíssimos
palafréns e insistiam que os aceitasse, alegando que os monges estavam
isentos. Mas o bispo, sem se mexer do lugar, recusou categoricamente e
disse: ―Se os aceitasse arrastar-me-iam para o Inferno com as suas
rédeas‖.
120. Roberto Grossatesta, bispo de Lincoln, ofendeu-se certa vez
pelo facto de o ministro provincial não ter permitido a um irmão que
morasse na sua casa, como o tinha feito em outras ocasiões, e não quis
falar a nenhum irmão, nem sequer ao seu confessor. Então frei Pedro
disse-lhe que, embora tivesse dado todos os seus bens aos irmãos, de nada
lhe serviria se não lhes desse também o afecto do coração. O bispo pôs-se
a chorar e disse: ―Na verdade estais a pecar, porque me afligis muito, já
que não posso deixar de vos amar, embora vos mostre esta cara‖. Com
efeito, embora os irmãos comessem com ele à mesa, não lhes quis falar.
O bispo disse a frei Pedro que os conventos situados sobre água não
são saudáveis, a não ser que os situem bem alto. Disse também que lhe
agradava muitíssimo ver as mangas remendadas dos irmãos. Acrescentou
também ser melhor, no molho, a pimenta pura que o gengibre. Disse ainda
que se alegrava quando via os alunos prestarem pouca atenção às suas
aulas, preparadas aliás com a maior diligência, porque lhe tiravam uma
ocasião de vanglória, e por isso não perdia nada do seu mérito.
67
121. Frei Mansueto88, núncio do papa Alexandre IV na Inglaterra,
contou ao mesmo padre e no mesmo lugar, que no dia em que era lida em
consistório a carta de oito pontos que Inocêncio IV tinha publicado contra
os irmãos pregadores e os irmãos menores89, perdeu a fala e depois só
conseguia dizer a frase: ―Propter iniquitatem corripuisti hominem”, castigando os seus erros, corriges o homem (Sl 38,12). Invocava amiúde São
Francisco, e quando ainda gozava de boa saúde, costumava dizer que
nenhum santo o tinha ajudado tanto como São Francisco.
O papa Alexandre IV tinha predito, quando ainda era bispo de
Óstia90, que certamente o Senhor afastaria o Papa, devido ao favor que
tinha concedido em prejuízo da Ordem. Mas quando morreu, todos os
seus familiares o abandonaram, menos os irmãos menores. E o mesmo
tinha acontecido na morte dos seus predecessores, Gregório, Honório e
Inocêncio, em cuja morte esteve presente o próprio São Francisco91. Frei
Mansueto acrescentou que nenhum mendicante, nem nenhum homem
morre mais miserável e vilmente do que um Papa92.
O mesmo frei Mansueto referiu que no próprio dia da sua eleição, o
papa Alexandre IV suspendeu a carta que Inocêncio IV tinha redigido
contra os irmãos pregadores e os irmãos menores, e que o primeiro acto
do seu pontificado foi o de a revogar. Com efeito, Inocêncio tinha decretado que seriam excomungados todos os irmãos que acolhessem qualquer
paroquiano em dia de festa para ouvir missa, e outras coisas semelhantes.
122. Contou também frei Mansueto que, estando um irmão a rezar
no horto de uma localidade da Sicília, viu um poderoso exército de cinco
mil cavaleiros entrar no mar, e que o mar começou a crepitar como se eles
fossem todos de bronze liquefeito e a arder; e que um deles lhe disse que
era o imperador Frederico que ia para o monte Etna. Efectivamente, Frederico morreu por esse tempo.
—————
88
Trata-se de Fr. Mansueto de Castiglione, homem culto e de grande virtude.
Esteve na corte pontifícia durante muitos anos e foi delegado em França e Inglaterra.
89
A bula Etsi animarum limitava os privilégios dos mendicantes no que concerne
à pregação e à confissão.
90
Cardeal Reinaldo de Segni, protector da Ordem dos Frades Menores.
91
Notícia preciosa. Francisco está ao lado de Inocêncio III, o Papa que lhe aprovou a Forma de Vida, quando este morre em Perusa, em dia 16 de Julho de 1216.
92
Conhecemos por Tiago de Vittry que o cadáver de Inocêncio foi maltratado.
68
123. Contava também que, quando ainda era menino de uns dez
anos, os irmãos menores o tinham ensinado a ter uma muito grande reverência pela Eucaristia, e ele, para poder ser digno de comungar no dia de
Páscoa, embora menino, tinha jejuado durante quase toda a quaresma. Ora
sucedeu que no mesmo dia de Páscoa, enquanto todo o povo comungava,
um verdadeiro celerado, um homem de péssima reputação chamado Gêncio93, aproximou-se também para receber a comunhão, e recebendo-a sem
o devido respeito, voltou logo para o lugar, sentou-se num banco e começou a conversar com os vizinhos, comportando-se nem mais nem menos
como se tivesse comido um bocado de pão qualquer. Tinha visto então
sair da sua boca a sagrada hóstia e cair no chão a uma grande distância.
Correu logo para o sacerdote, que era um santo homem, e contou-lhe o
que tinha visto. O sacerdote ordenou-lhe que fosse buscar a hóstia onde a
tinha visto cair e encontrou-a no mesmo lugar, apesar de ser um sítio de
passagem dos que comungavam. O mesmo menino comungou essa hóstia
e todas as outras, igualmente consagradas, que tinham ficado sobre o altar.
A sua fé fortaleceu-se ainda mais do que é possível dizer.
124. Frei Pedro, ministro de Inglaterra, muito íntimo da casa de
Godofredo le Despenser, contou que, um dia, tinha ido a essa casa e, como
sempre, dele se tinha aproximado com grande afecto o filho do senhorio,
um menino chamado João. Indo logo com a mãe à capela, também ele tinha
assistido à missa celebrada por frei Pedro. Regressando a casa, o menino
começou a evitar o religioso, e nem sequer a mãe conseguia convencê-lo a
voltar para junto dele. Quando lhe perguntaram a razão, o menino respondeu que tinha visto frei Pedro a devorar um menino sobre o altar da capela,
e por isso tinha medo de que lhe fizesse o mesmo94.
125. Frei Garino de Erwelle entrou na Ordem ainda jovem e fez tais
progressos, que ensinou em vários conventos, com grande admiração de
muitos. Comportou-se com prudência nas suas relações com os grandes e
tratou os assuntos da Ordem de uma maneira digna de todo o louvor, cres—————
93
Ou Exécio, Gécio… ou porventura Ezelino. No texto latino da AF escreve-se
Gentius. Frei Mansueto, amigo de Salimbene terá vivido nessa região.
94
A Chronica XXIV generalium atribui o mesmo episódio a frei Pedro de Brabant. Brabant era uma custódia da província de Colónia, onde fora ministro frei Pedro
Twkesbury (cfr. AF, III, pp. 240-241).
69
cendo cada dia no ministério da pregação, como também, e maravilhosamente, na contemplação. Morreu em Southampton, diante do altar, na
hora de Noa, abraçando e beijando o crucifixo. Aconteceu depois que um
irmão, chamado João, falecido havia muito, apareceu em Salisbury a frei
Simão de Wimbourne e lhe revelou que estava bem e que frei Garino,
após breve tempo no Purgatório, subira para o Senhor Jesus.
126. A província de Inglaterra tinha-se elevado a uma tal altura de
perfeição que frei João de Parma, ministro geral, estando na Inglaterra,
repetia com frequência: ―Como eu desejaria que esta província fosse colocada no centro do mundo, para que servisse de exemplo a todos!‖ Este
mesmo ministro geral celebrou o Capítulo provincial de Inglaterra em
Oxford e nele confirmou as constituições provinciais respeitantes à
sobriedade e pobreza dos edifícios. Tendo dado aos irmãos a liberdade de
escolher entre confirmar ou remover o ministro provincial, estes pediram
a confirmação por unanimidade.
127. Este frei Guilherme95 contou que quando o bispo de Lincoln,
de santa memória, ensinava os frades menores em Oxford, pregou um dia
no Capítulo conventual sobre a pobreza, declarando que na escala da
pobreza o degrau mais próximo do céu era o da mendicidade; mas depois
disse confidencialmente a frei Guilherme que havia um degrau ainda mais
alto: o de viver do próprio trabalho. Por isso afirmava que as Beguinas são
uma Ordem santíssima e absolutamente perfeita, porque vivem do seu
trabalho e não constituem um peso para a sociedade, já que não saem a
esmolar96.
128. O mesmo padre disse também que um noviço, querendo
observar a abstinência, confidenciou a seu mestre que se propusera experimentar pouco a pouco até onde poderia chegar. O mestre deu-lhe con—————
95
Frei Guilherme de Nottingham, o ministro provincial de quem se fala escassamente.
96
As Beguinas viviam uma vida consagrada sem emitirem votos públicos. Viviam
em beguinatos e dedicavam-se ao serviço dos mais necessitados. Particularmente florescente na primeira metade do século XIII, tiveram grande influência no norte da Itália, na Alemanha e na Bélgica, onde se mantiveram até meados do século XX. Devido á
influência que tiveram na Bélgica, os beguinatos estão incluídos nos circuitos turísticos
na Bélgica.
70
sentimento com alegria. Este começou, e durante muitos dias, ao perguntarem-lhe como se sentia, respondeu que tudo ia bem, mas um dia confessou que receava estar a enfraquecer demasiado. Então o mestre disse-lhe:
―Come e bebe já, por amor de Deus, se não desmaiarás, porque é a fé que
te falta agora. Tal como São Pedro, que, por medo, se afundava nas
águas‖.
129. Dizia também frei Guilherme que é preciso considerar atentamente o pensamento de São Francisco e a intenção que teve ao redigir a
Regra, de outro modo cresceriam as superfluidades dentro da Ordem, tal
como crescem insensivelmente os pelos da barba. É importante, pois,
resistir às tentações do mundo muito mais energicamente do que pareceria
necessário, de outra maneira isto nos podia arrastar mais baixo do que
seria desejável, como faz a onda do rio àqueles que querem atravessá-lo
para alcançar directamente a margem oposta.
Declarou também que um homem não pode saber se é bom ou mau
mudar de lugar enquanto não o experimentar, do mesmo modo que não
pode dar-se conta de que tem cabelo na cabeça enquanto não puxar por ele.
Este frei Guilherme dedicava-se ao estudo das Escrituras e tudo
eram estratagemas para interessar nelas os estudantes. Sucedia, até, que
quando se encontrava à mesa fora do refeitório, queria ter sempre consigo
o livro de leitura, venerava com um amor muito particular o nome de
Jesus e repetia com muita devoção as palavras do santo Evangelho. Compilou também uma obra utilíssima sobre a Unum ex quator de Clemente97
e preocupou-se em fazer transcrever totalmente para a sua Ordem a Expositio composta pelo mesmo autor. Permanecia longo tempo em meditação,
especialmente depois de matinas, e não queria ouvir mais as confissões e
confidências dos irmãos durante a noite, como tinham feito os seus predecessores. Declarou igualmente que, assim como é pior dar maus conselhos
sobre o modo de fazer uma coisa do que fazê-la mal, também são piores
os juízos malignos sobre factos da Ordem do que as obras dos irmãos com
alguma imperfeição.
Dificilmente acreditava nas acusações, a menos que o acusador
estivesse disposto a repeti-las diante de várias pessoas; e preocupava-se
—————
97
Trata-se da obra de Clemente de Langton, cujo título é Concordia quatuor
evangelistarum.
71
sobretudo em evitar suspeitas. Evitava por isso, com sumo zelo, a intimidade com os grandes e as mulheres, e com uma magnanimidade verdadeiramente admirável fazia pouco caso da ira dos poderosos, quando estava
em jogo a justiça. Afirmou certa ocasião que os grandes encandeiam os
amigos com os seus conselhos, e que as mulheres, como são trapaceiras e
cheias de malícia, tratam de fazer perder a cabeça igualmente às pessoas
devotas. Preocupava-se concretamente em restituir o bom nome às pessoas que o tinham perdido, se as via realmente arrependidas, e com grande
delicadeza as incentivava a confortar os aflitos, especialmente os que ocupam lugares de responsabilidade na Ordem.
130. Assim, depois de ter governado a província de Inglaterra
durante quase catorze anos98, foi dispensado do cargo no Capítulo geral de
Metz e enviado ao Papa como delegado do mesmo Capítulo. Mas quando
chegou a Génova juntamente com o ministro geral, o seu companheiro,
frei Ricardo, contraiu a peste que havia irrompido na cidade. Enquanto os
demais se afastavam apressadamente, ele ficou para o assistir, e, ao contagiar-se, morreu também. Porém, tendo os irmãos de Inglaterra ouvido
dizer que tinha sido dispensado do cargo, e não sabiam da sua morte, convocado o Capítulo provincial, voltaram a elegê-lo.
Quando o ministro geral soube da notícia de que os irmãos tinham
actuado mais por afecto que por motivo seriamente considerado, mandou
convocar novamente o Capítulo por meio do vigário, frei Gregório de
Bosellis, e ordenou que nunca mais se elegesse um irmão dispensado do
cargo pelo Capítulo geral. Pediu a confirmação do eleito aos irmãos João
de Kethene, Adão de Marsh e João de Stamford. E foi eleito e confirmado
frei Pedro de Twkesbury.
131. Quando frei Elias foi deposto de ministro geral, foi perguntado
ao papa Gregório se podia ser reeleito, e o Papa respondeu negativamente.
132. Uma vez, reclamando alguns frades que não se deviam contrair
dívidas indiscriminadamente, frei Guilherme confiou-me o seu pensamento: os irmãos não deviam comprometer-se de nenhum modo a pagá-las, nem a fixar o tempo exacto para o pagamento, antes, e licitamente,
—————
98
A edição da AF regista ―circiter novem annos‖. Little afirma que a questão da
data deste Capítulo de Metz é insolúvel.
72
deviam empenhar-se seriamente em que a divida seja escruplosamente
satisfeita99.
Dizia também que os irmãos podiam contrair dívidas legalmente
numa centena de casos e que o irmão não cometia pecado se distribuísse o
dinheiro pelos demais a título de esmola.
Frei Guilherme deixou dito que durante a sua longa estadia no convento de Roma, ao não terem os irmãos outro alimento senão castanhas,
tinha engordado tanto que sentia muita vergonha. Também me disse que
quando estava ainda na casa dos pais, foram uns meninos pobres pedir-lhe
esmola; deu-lhes do seu pão e eles deram-lhe do deles, e pareceu-lhe que
aquele pão duro, mendigado por amor de Deus, era mais saboroso que o
pão fresco que ele e os seus comiam. Por isso, para fazer com que o seu
pão fosse mais saboroso, os meninos pediam uns aos outros pão por amor
de Deus. Dizia também frei Guilherme que, depois da visita dos irmãos,
precisava de gracejar um pouco para esquecer o que tinha ouvido. Confessou-me também que o manso Jesus tinha suscitado uma nova Ordem para
estimular a nossa, e eu creio que isto se verificou com a instituição da
Ordem da Penitência de Jesus Cristo100.
133. No Capítulo de Stamford havia recomendado aos irmãos, de
um modo especial, os religiosos da Ordem de Santo Agostinho. Já antes
tinha acolhido com muita familiaridade os Carmelitas, que Ricardo de
Gray tinha levado para Inglaterra no regresso do conde Ricardo da Síria.
(O senhor Roberto, bispo de Lincoln, repeliu os irmãos da Ordem
dos Crucíferos, e do mesmo modo foram repelidos, mas justamente, os
irmãos da Ordem da Cruz). Os irmãos da Ordem da Trindade tinham ido
para Inglaterra muito tempo antes; tinham sido fundados por inspiração
divina, sob o papa Inocêncio III, por um mestre em teologia, chamado
João, a quem Jesus Cristo tinha aparecido enquanto celebrava a missa
diante do bispo de Paris e do clero.
—————
99
A sentença pode ser um pouco estranha se não for relacionada com o princípio
da pobreza absoluta. Quem nada possui não pode comprometer o que não tem. Por conseguinte, não pode assumir tal compromisso; antes deve garantir que fará tudo o que
estiver da sua parte (trabalho, esmola, recurso aos amigos) para que a dívida seja paga.
100
É natural que esta esperança se tenha difundido entre os ―espirituais devido à
influência do joaquinismo.
73
Frei Pedro recebeu antes os irmãos da Penitência de Jesus Cristo e
recomendou-os no Capítulo de Londres101. Estes surgiram na Provença,
no tempo do Concílio de Lião, e tinham sido fundados por um noviço
expulso da nossa Ordem. No terceiro ano do provincialado de frei Pedro,
chegaram a Inglaterra os irmãos da Ordem dos Mártires, fundada por um
tal Martinho, que, em Paris, tinha sido bufão de nobres alemães.
135. Um tal João102, homem de grande valor no mundo, por ser de
grande estatura e rico de bens de fortuna, mas simples, devido à pouca
instrução, tendo recebido o hábito e feito a profissão na Ordem, exerceu
até à velhice o ofício de porteiro. Pouco antes de morrer predisse com
certeza a hora do falecimento, afirmando que devia subir numa só noite a
um alto monte; mas quando ia apenas a meio, trepando com as mãos e os
pés, extenuado, desistiu de subir mais. Foi então que muitas crianças,
brincando felizes e com o rosto muito alegre, gritaram do alto: ―Coragem,
frei João! Porque paras? Sobe!‖ E de imediato algumas o tomaram nos
braços, outras puxaram-lhe pela corda e outros pelas mangas e o levaram
alegremente até ao cimo do monte. ―Eu creio, disse, que os meninos e os
pobres cuja fome saciei na portaria com os restos da mesa dos irmãos, me
ajudarão a alcançar o céu‖; e dizendo isto, expirou nas mãos do Salvador.
Tradução: Fr. José David Antunes
Introdução e notas: Fr. José António Correia Pereira
—————
101
Com este nome se mencionavam os Saccati (1251), chegados a Inglaterra em
1257, tendo sido fundados na Provença por um tal frei Raimundo Atanolfo, noviço
franciscano despedido. Cf. Salimbene 55.
102
Não aparece na edição na AF.
74
AO ENCONTRO
DA RADICALIDADE DO EVANGELHO
- Que tem Francisco de Assis para nos dizer hoje?
Doutora Manuela Silva
75
AO ENCONTRO DA RADICALIDADE DO EVANGELHO
- Que tem Francisco de Assis para nos dizer hoje? *
1. Introdução
É para mim um privilégio poder dirigir algumas palavras à numerosa família franciscana em Portugal, reunida aqui em Fátima, nesta data
em que se celebram oitocentos anos do reconhecimento pelo Papa Inocêncio III da Regra de vida apresentada por Francisco de Assis, em nome
de uma primeira, mas já numerosa, comunidade de irmãos que se reuniam à sua volta movidos pelo desejo de viverem o Evangelho na sua
pureza original. Para Francisco, a Regra de Vida proposta podia sintetizar-se, como ele próprio disse, numa única frase: Viver o Evangelho.
Oito séculos volvidos, o que leva uma multidão de homens e
mulheres, de diferentes idades, culturas e condições de vida, a deixarem-se seduzir, por este convite de Francisco: Viver o Evangelho.
Por outras palavras: Que tem Francisco de Assis para nos dizer
hoje?
Nesta apresentação, procurarei abrir pistas para responder a esta
interrogação.
Na minha apresentação, tentarei deixar alguns traços da personalidade de Francisco e do contexto histórico em que viveu. Procurarei, de
seguida, surpreender esse ponto de viragem na vida do Cavaleiro de
Assis e combatente na cidade rival de Perusa que o leva a perceber o
vazio e o absurdo da guerra e abre caminho ao seu encontro com o Cristo
—————
*
Conferência proferida no Centro Pastoral Paulo VI, em 3 de Outubro de 2009,
durante a Peregrinação Nacional da Família Franciscana.
76
crucificado, encontro esse que há-de marcar, definitivamente, a orientação da sua vida na descoberta do Deus-Amor e, a esta luz, o impele a
viver a radicalidade do Evangelho. Nos pontos seguintes da exposição,
sublinharei alguns tópicos da espiritualidade franciscana que têm muito a
dizer-nos nestes nossos conturbados tempos de mudança.
2.
Uma personalidade histórica num tempo de crise (viragem do
século XII para o século XIII)
Quem foi o santo que aqui nos convoca?
Sabemos que terá nascido em Assis, em 1181 ou 1182. Não se
sabe precisar esta data, pois é incerto o dia exacto do seu nascimento. A
Igreja celebra a data da sua morte a 3 de Outubro de 1226.
Sabemos que pertencia a uma família abastada. O seu pai era
grande negociante de panos, habituado a viajar fora do país. É, aliás, no
regresso de uma das suas viagens ao sul de França que o pai lhe muda o
nome de baptismo, João Bernardone, para Francisco. E é com o nome de
Francisco de Assis, sua terra natal, que ficou para a história.
Convém recordar que a transição do século XII para o século XIII
foi marcado por conflitos vários, nos quais Francisco se envolveu
durante a sua juventude.
Em síntese, podemos dizer que Francisco de Assis experimentou o
fervor dos combates de cavalaria em defesa da sua cidade e dos seus
interesses de classe burguesa na luta contra o império, assim como, posteriormente, se empenhou, fora dos campos das batalhas, em viabilizar
uma sociedade mais fraterna e solidária com os mais pobres. Enfrentou a
rivalidade com a cidade vizinha de Perusa e aí ficou prisioneiro durante
um ano. Tomou partido nos confrontos entre o Imperador e o Papa. A
Europa de então estava, literalmente, a ferro e fogo e o jovem cavaleiro
corria os riscos próprios da sua época para fazer vingar os seus ideais. É
próprio dos tempos de crise que os mais argutos e generosos acreditem
na mudança que se anuncia como nova realidade emergente e dêem o
melhor de si para a viabilizarem. Então, como agora.
Quando olhamos para a nossa época, também temos a intuição de
que se anunciam tempos novos: os fundamentos do actual sistema económico de matriz capitalista ameaçam ruir, mas ainda não se afirmam
alternativas credíveis. Apenas algumas experiências inovadoras, alguns
77
sinais portadores de um futuro outro, alguns esforços para atenuar as
brechas que se vão cavando.
Apesar de importantes na sua vida, não foram, porém, estas lutas
que fizeram de Francisco um santo; terão, no entanto, preparado o seu
espírito para se abrir à novidade da radicalidade do evangelho.
Quando Francisco encontra o leproso e o beija, percebe que este
sinal simbólico o colocará para sempre do lado dos excluídos e dos marginalizados e de que a sua vida passará a ser, doravante, decidida em
função da libertação dos oprimidos. Na sociedade medieval, assim como
na Antiguidade e na tradição judaica, os leprosos eram gente à margem
da sociedade que causava repulsa e impunha regras de intocabilidade.
Isto por razões de defesa da saúde, mas também porque se associava à
doença e ao sofrimento físico do leproso o seu pecado e o merecido castigo divino. Francisco, porém, vê para além da aparência e, tal como
Jesus nos caminhos da Galileia, descobre no leproso a dignidade intocável de todo o ser humano. Como escreve José António Merino: Ao
assumir tudo o que havia de negativo e estranho no pobre marginalizado, redime o que de mais oculto se encontra nas zonas mais profundas
da sua personalidade1. Começa neste encontro com o leproso uma etapa
de conversão pessoal que levará Francisco a uma crescente identificação
com Cristo, através da pobreza voluntária e do serviço junto dos mais
pobres.
Esta é uma mensagem que tem toda a oportunidade nestes nossos
conturbados tempos, também eles a necessitar de combates sérios em
favor dos mais pobres e destituídos de direitos humanos fundamentais.
Adiante voltaremos a este tema.
3.
O encontro decisivo de Francisco com o Cristo crucificado e a
descoberta de Deus-Amor
A conversão não é obra de um momento, mas antes um processo
em tudo semelhante a um encontro de amizade que se vai desenrolando,
aprofundando e consolidando.
Na vida de Francisco, ao encontro com o leproso e o que este lhe
traz de descoberta da dignidade humana segue-se uma intensa busca
—————
1
MERINO, J. A., São Francisco e tu, Editorial Franciscana, Braga, 2009
78
espiritual, a busca de sentido para a sua própria existência. É nesse
estado de alma que procura o silêncio na natureza e se refugia na capela
abandonada de São Damião. Aí descobre um ícone bizantino com o rosto
de Cristo cuja contemplação o move ao entendimento de que Deus é
Amor e nada mais é pedido ao ser humano que ser imagem viva deste
Deus-Amor. Francisco encontra aqui a razão de ser da sua vida.
Acho que podemos recolher nesta etapa decisiva da vida de São
Francisco importantes lições para o nosso tempo e para as nossas vidas.
A primeira é que, face à agitação que é característica do estilo de vida
das nossas sociedades, é preciso saber parar para sermos capazes de nos
colocar a questão primordial do sentido que dou à minha vida.
A segunda lição é que importa aprender com Francisco a escutar o
que Deus tem para me dizer. Deus fala-nos através dos outros e das circunstâncias, mas nem sempre estamos disponíveis para escutar a palavra
e para a pôr em prática. Francisco viu no edifício da igreja de São
Damião em ruínas o apelo a que o reparasse e assim procedeu. Mais
tarde viria a entender que este episódio era apenas uma metáfora de um
desafio maior: a necessidade de revitalização da própria Igreja dilacerada
por lutas internas e sob a poderosa ameaça das heresias da época. Cristo
escolhera Francisco, um leigo empenhado em viver a radicalidade do
Evangelho no meio do mundo, para reconstruir a sua Igreja.
4.
Actualidade da espiritualidade franciscana
Ao longo destes oito séculos foi-se aprofundando e consolidando
uma certa forma de viver, uma espiritualidade com traços comuns bebidos nas fontes, ou seja junto do Fundador, o que leva a criar uma corrente de espiritualidade própria dentro da Igreja.
Inspirada na radicalidade do evangelho e no empenho pessoal e
colectivo em procurar viver esta radicalidade na vida quotidiana, é uma
espiritualidade poliédrica que tem sabido adaptar-se a oito séculos de
história e responder aos desafios próprios de cada época.
No mundo contemporâneo, creio que podemos distinguir alguns
contributos do franciscanismo da maior actualidade:
- A paixão pela fraternidade universal
- A opção pelos pobres
- A vida simples e a ética do necessário
79
- A contemplação como modo de ser, de estar e de viver
- O anúncio do Cristo vivo e da alegria pascal
4.1 A paixão pela fraternidade universal
Vivemos num tempo em que se caminha a passos acelerados no
sentido da mundialização. A economia que é a base da organização da
sociedade, está cada vez mais globalizada. Desde a produção (especialização produtiva, tecnologias utilizadas, relações comerciais), aos
padrões de consumo, ou às regras que presidem aos negócios.
Mas, como diz Bento XVI na sua última carta encíclica, Caritas in
veritate: a sociedade cada vez mais globalizada torna-nos vizinhos, mas
não nos faz irmãos.2
Ora, sem uma maior consciência de fraternidade universal, ficarão
sem solução muitos dos problemas do mundo contemporâneo. O progresso tecnológico pode trazer aumento de riqueza e de rendimento, mas
não dá garantia de que estes resultados se destinem a satisfazer as necessidades básicas dos seres humanos ou se repartam equitativamente.
E que dizer das movimentações de população dos países mais
pobres em direcção às zonas mais prósperas, se não existir um ambiente
de fraternidade à altura de as acolher, respeitar os seus direitos e providenciar as ajudas indispensáveis à sua integração?
Ou, ainda, como contrariar a xenofobia que grassa em tantos
ambientes, senão através de um suplemento de fraternidade universal?
Ou, também, como enfrentar as discórdias, declaradas ou latentes,
que têm por base a religião ou a diversidade de culturas, se não houver
uma consciência mais profunda da fraternidade universal como projecto
de Deus em construção.
Francisco pode servir de exemplo, pois ele viveu apaixonadamente
a fraternidade para além de todas as barreiras e foi ousado na luta contra
todo o tipo de discriminação praticada no seu tempo.
4.2 A opção pelos pobres
A espiritualidade franciscana é conhecida pelo empenho posto no
amor aos mais pobres, incluindo os destituídos de bens materiais, mas
—————
2
BENTO XVI (2009) - A Caridade na verdade.
80
também os doentes, os menos válidos ou certos grupos de população
particularmente vulneráveis (as crianças, os idosos, os deficientes, etc). É
uma espiritualidade que exalta a partilha dos bens, partilha essa tão
necessária num mundo caracterizado pela opulência e pela abundância
de bens materiais a par de extensa e severa pobreza de muitos que não
conseguem ter a parte que lhes é devida na mesa comum. A espiritualidade franciscana convida os seus seguidores a não fecharem os olhos a
estas duras realidades do nosso tempo, numa dupla preocupação: a da
partilha dos seus próprios bens com quem mais precisa e a do compromisso com a construção de caminhos de justiça e verdade na organização
da economia e da sociedade. No seguimento do pobre de Assis há que
não passar ao lado das necessidades dos nossos irmãos, necessidades de
ajuda material mas também de companhia, de apoio moral na solidão, de
conselho e apoio para encontrar sentido de vida, emprego e autonomia
em meios de subsistência.
A opção pelos pobres vai, porém, mais longe do que o movimento
de dar ou prestar ajuda, implica que se assuma, como nossa, a condição
do pobre, a luta pelos seus direitos, a sua perspectiva de relacionamento
com a sociedade. Implica, em suma, construir um mundo mais justo,
tendo os pobres como destinatários principais da mudança e seus protagonistas.
4.3 O caminho da vida simples e da ética do necessário
É cada vez mais generalizada a convicção de que o actual modelo
de crescimento económico é insustentável a prazo, tanto por razões de
coesão social como de saúde ambiental do Planeta. Há que arrepiar
caminho relativamente a um consumismo voraz e predador de recursos
não renováveis, com destaque para a energia e para algumas matérias-primas.
Por outro lado, o elevado nível de consumo, que caracteriza a
sociedade ocidental, é conseguido à custa de ritmos de trabalho e custos
sociais em duração de transportes, segurança e outros que tornam a vida
nas sociedades urbanas particularmente stressante. A realidade seria bem
diferente se cada um de nós fizesse escolhas mais racionais quanto ao
seu padrão de consumo e quanto à utilização que faz do seu tempo.
81
A espiritualidade franciscana tem abertura para liderar a indispensável e urgente mudança de atitudes e comportamentos dos nossos concidadãos e concidadãs, no sentido do maior apreço pela vida simples e
para fomentar a prática da ética do necessário, através do testemunho de
vida dos seus seguidores.
4.4 A contemplação como modo de ser, de estar e de viver
Conscientemente ou não, vivemos imersos numa cultura de cariz
materialista, uma cultura que privilegia o ter e desconsidera o ser, que
aposta na eficácia e põe de lado os menos capazes, que atafulha de coisas
a existência quotidiana e não deixa tempo para o cuidado dos outros, da
natureza, da relação com Deus. É uma Humanidade que vive aquém da
sua sede de infinito e transcendência e, por isso, este nosso tempo é, de
algum modo, um tempo triste, propício às depressões individuais e
colectivas.
Em Francisco de Assis podemos encontrar o exemplo de alguém
que soube enfrentar as seduções de um capitalismo nascente que fazia da
ostentação e do dinheiro um objectivo. Às honras da cavalaria e à grandeza da fortuna familiar, que pareciam estar-lhe destinadas, o poverello
soube contrapor o seu desejo de viver em profundidade a sua própria
humanidade no seguimento de Jesus de Nazaré: escutando a sua palavra
(a radicalidade do evangelho), contemplando os mistérios da sua vida,
morte e ressurreição, abrindo-se à beleza da criação.
Francisco tratou todas as criaturas por irmãs (o irmão sol, a irmã
água, o irmão lobo, …), encantou-se com o canto dos pássaros, com a
frescura das fontes, com a força dos ventos ou com a prodigiosa fecundidade de uma pequena semente.
E nós? Não temos que salvaguardar esta dimensão contemplativa
do ser humano? Não temos que passar esta mundividência às gerações
mais novas? Não temos que desenvolver a nossa capacidade de contemplação como modo de ser e de estar neste mundo dominado pela força do
marketing e a ilusão da realidade virtual? Não temos que criar condições
para uma vida em harmonia com o que há de mais fundo no ser humano,
o seu sentido de transcendência?
82
4. 5 A missão do discípulo: anunciar o Cristo vivo e a alegria pascal
Por último, uma referência muito breve sobre uma outra dimensão
da espiritualidade franciscana que a bem dizer é o núcleo central da fé
cristã.
Os que seguem a Cristo vivem dum impulso da fé no Ressuscitado,
prolongam nas suas vidas o inesperado da manhã de Páscoa e a alegria
de verem com os olhos da fé para além do sepulcro vazio, a vitória de
Cristo e o começo do Reino por Ele anunciado. A missão do discípulo é
anunciar esta boa nova: Cristo ressuscitou e está vivo no meio de nós.
Quaisquer que sejam as dificuldades, as incoerências, os absurdos
do tempo presente, o crente em Jesus Cristo reconhece neles que, em
gérmen, está um mundo novo em construção, o Reino de Deus e anima-o
a esperança de que o Espírito Santo agirá no sentido da justiça, da verdade e da paz. Não é de mais sublinhar como é importante o testemunho
desta alegria na vida quotidiana de cada cristão.
A Francisco de Assis, não faltaram contrariedades e obstáculos na
sua missão, mas em todas as circunstâncias nos deixou o exemplo de um
homem livre, centrado na contemplação, irradiando a alegria da novidade pascal.
83

Documentos relacionados

Florinhas de S. Francisco de Assis e seus

Florinhas de S. Francisco de Assis e seus Saint François d’Assise, Documents não indica qual a edição italiana de que se serviu. Nas emendas que nos permitimos introduzir no texto do P. Aloysio baseámo-nos habitualmente na edição italiana ...

Leia mais

1_S.Boaventura_Legenda Maior (LM)

1_S.Boaventura_Legenda Maior (LM) A sua memória é abençoada38, porquanto Deus, depois de o ter enriquecido de bênçãos preciosas39, misericordiosamente o retirou dos perigos deste mundo e o cumulou abundantemente de dons da graça. 2...

Leia mais